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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TERESA, A SANTA APAIXONADA / Rosa Amanda Strausz
TERESA, A SANTA APAIXONADA / Rosa Amanda Strausz

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

   

Louca, sedutora, herege eu uma mulher apaixonada por Deus?

Nasceu na Espanha barroca e inquisitorial do século XVI. Era rica, jovem e bela, mas a morte da mãe mudou por completo o rumo da sua vida. Quando o seu pai, D. Alonso de Sanchez y Cepeda, decidiu interná-la no Convento de Nossa Senhora das Graças, não poderia imaginar qual seria o destino da sua impetuosa filha.

Teresa D’Ávila, a jovem que não se comovia com a Paixão de Cristo nos primeiros anos do convento e que tinha aversão à ideia de casamento, acabou por ter algumas dificuldades ao longo da sua vida monástica. Ao expressar o seu desejo de querer casar com Jesus, sentiu de perto a inveja das irmãs, o peso dos inquisidores e sofreu no corpo as dores da penitência. Mesmo condenada por todos, persistiu. Recolheu-se à oração, escreveu um livro, reformulou a Ordem das Carmelitas, abandonou o seu nome de baptismo e passou a chamar-se Teresa deJesus.

Este livro conta-nos a história dessa travessia, de como Teresa D’Ávila se transformou em Teresa de Jesus, a doutora da Igreja.

 

 

 

  

          O último baile

 

A chegada de Isabel de Portugal a Ávila, em Maio de

1531, deixou a cidade febril. A imperatriz trazia consigo o príncipe Felipe que, cerca de duas décadas mais tarde, se tornaria Felipe II, (1) e passaria para a história como o rei cristão.

 

Nota 1: Felipe II de Espanha, rei deste país desde 1556, e Felipe I de Portugal, a partir de 1580. (N. do E.)

 

A pequena majestade tinha, então, quatro anos. Ávila havia sido escolhida como cenário para as cerimónias nas quais o príncipe trocaria as suas roupas de bebé pelos trajes reais. Estávamos em plena Idade do Ouro na Espanha. Um período exagerado, barroco e extremo em todos os sentidos. As caravelas que retornavam do Novo Mundo vinham repletas de ouro, prata e riquezas. O período era de fartura ostensiva e uma festa real não podia deixar de reflectir o orgulho pelas novas conquistas.

Milhares de maravedis tinham sido gastos nas festividades. Embora os mouros tivessem sido expulsos da Espanha no século anterior, ainda era a sua moeda, o dinar de ouro, chamado maravedi, que movia a economia local. E não deixava de ser irónico que fossem as antigas moedas que permitissem adornar as ruas de Ávila com arcos triunfais, tapeçarias de veludo púrpura e de damasco carmesim. O príncipe cristão simbolizava a vitória da Espanha unificada sob o signo da cruz.

Usualmente austera, a cidade foi sacudida por dois meses seguidos de torneios, corridas de touros, música e festas. Pelas ruas, desfilavam pajens, cavaleiros e senhores trajados de brocados e sedas, bispos ostentando rosários de ouro e pedras preciosas, anéis cravejados de brilhantes e cruzes ricamente trabalhadas, damas cobertas de jóias e envoltas nos mais raros tecidos.

Entre as jovens nobres avilenses que saltitavam de festa em festa, uma chamava particularmente a atenção. Rica, extraordinariamente bela e adulada por um séquito particular, Teresa de Ahumada Sánchez y Cepeda, aos 16 anos, descobria-se tão encantadora quanto qualquer dama da corte. Ou mais. O seus gestos veementes e graciosos eram emoldurados por um vestido de seda branca, com mangas de tafetá cor-de-rosa-brilhante que ondulava a cada trejeito. Uma inacreditável quantidade de pequenas pérolas salpicava as mangas, os ombros e a cintura do vestido, fazendo com que cada suspiro ou sorriso fosse acompanhado de milhares de cintilações. Os seus cabelos castanhos, fartos e ondulados, entremeavam-se com fieiras das mesmas pérolas que adornavam o vestido, o que dava ao conjunto um ar ao mesmo tempo luminoso e angelical. Mas o seu rosto deixava dúvidas sobre essa impressão. Carnuda, de um vermelho realçado por carmim, e sempre sorridente, a boca transmitia mais sedução do que serenidade. Os olhos castanhos, já normalmente febris e agitados, lampejavam diante da admiração que a sua presença provocava.

Perante a corte, Teresa confirmava a suspeita que sempre a acompanhara: era uma mulher especial, do tipo que faz qualquer um perder a cabeça. E não apenas pelos seus dotes físicos ou elegância. Ela sabia seduzir, conhecia os atalhos que levam rapidamente a conversa até ao ponto mais agradável, tinha charme, presença, espírito. Nos olhos dos seus admiradores, Teresa via reflectida a própria imagem. Embriagada pela descoberta, tonta de tanta felicidade, dançou todas as músicas, cantou todas as canções, rodopiou alegremente pelos mais nobres salões da cidade.

Tudo conduzia para o grande clímax, o 26 de Julho, quando, finalmente, Felipe receberia as novas roupas. Seria a maior das festas. Mas Teresa não compareceu à cerimónia. No dia 13 do mesmo mês, D. Alonso de Sánchez y Cepeda, seu pai, internou-a no convento das agostinianas de Nossa Senhora das Graças.

Ao atravessar os pesados portões, Teresa despiu-se das jóias e vestidos. Mas a inquietude da sua alma, o brilho febril dos seus olhos e o inacreditável poder de persuasão da sua palavra atravessaram os séculos e chegam-nos até hoje por meio das palavras de Santa Teresa de Jesus.

É da história dessa longa travessia que trata este livro.

 

A honra dos Sánchez y Cepeda

Internar moças em conventos não era atitude incomum no século XVI. E menos ainda na Espanha. Pelos corredores silenciosos dos claustros, transitavam órfãs ainda crianças, moças cujo comportamento inquietava os seus pais, jovens desprovidas de dote matrimonial, viúvas desapegadas da vida e até mesmo candidatas sinceras ao noviciado.

O ambiente conventual era considerado o melhor lugar para aprimorar a única educação considerada adequada às mulheres: a religiosa. Ir para o convento não significava, necessariamente, tornar-se freira. Muitas moças ali permaneciam apenas o tempo suficiente para que um casamento fosse arranjado. Enquanto isso, desenvolviam as virtudes, e mantinham-se longe das tentações mundanas e dos comentários maldosos.

Ainda assim, enviar Teresa para Nossa Senhora das Graças representou uma decisão dolorosa para D. Alonso. A menina era a alegria da casa, a filha adorada, aquela cujas vontades eram sempre prontamente atendidas. Privar-se da sua presença tornava os dias de D. Alonso - que enviuvara três anos antes e acabara de casar a filha mais velha - ainda

mais sombrios.

Porque teria então o fidalgo tomado medida tão severa?

É a própria Teresa, na autobiografia, O Livro da Vida, quem responde: «A minha forma de proceder não permaneceu tão oculta a ponto de não lançar dúvidas contra a minha honra e criar suspeitas no meu pai.»

A que se referiria ela? Jamais saberemos ao certo. São bem conhecidas, no entanto, as qualidades exigidas das candidatas ao matrimónio. Esperava-se que a donzela fosse obediente, recatada, tímida e modesta, além de trazer consigo um bom dote. Nada que a caçula dos Cepeda - àquela altura em sérias dificuldades financeiras - pudesse exibir. Por outro lado, a julgar pelos relatos de Teresa, os temores do seu pai em relação à sua virtude eram infundados. É certo que o comportamento da menina roçava o escandaloso para os padrões da época. Também é certo que tinha ficado órfã de mãe aos 13 anos, que a sua única irmã acabara de casar-se, e que não havia, na família, uma mulher mais velha que pudesse cuidar da sua educação. Ainda assim, o sofrimento de D. Alonso ao separar-se da filha indica que só tomou a dura decisão por estar pressionado por uma forte necessidade: a de salvaguardar a honra da família.

 

A honra

Poucos valores foram tão cultivados no século de ouro espanhol quanto a honra, e essa verdadeira obsessão nacional foi profusamente retratada, tanto na literatura como na dramaturgia. Dos romances de cavalaria ao teatro popular, de Lope de Rueda e Calderón de la Barca a Cervantes, dos ensaios eruditos à poesia, a honra é sempre o motor que precipita a acção, o valor omnipresente que regula a vida quotidiana.

No entanto, o conceito de honradez carregava consigo um amplo espectro de nuances, capazes de modificar profundamente o seu sentido. Havia uma honra para as mulheres (ligada à castidade, à fidelidade conjugal e à virtude) e outra para os homens. Uma para os nobres e outra para os plebeus. E é bastante provável que a honra que D. Alonso procurasse defender - ou afirmar - com o seu gesto extremo tivesse raízes mais profundas do que o simples comportamento estouvado da filha. Afinal, para os nobres, essa questão estava estreitamente ligada à linhagem, um assunto sempre sensível na casa dos Sánchez y Cepeda.

 

O nome que vem da terra

A honra dos nobres era um bem tão palpável quanto as suas terras. Não por acaso, a porção territorial cujos proprietários não pagavam impostos à Coroa era chamada de honra. Geralmente, a propriedade era concedida ao cavaleiro que se destacava na defesa do reino. Tratava-se de um reconhecimento da sua lealdade à Coroa, extensivo aos seus descendentes.

O nobre honrado era aquele que exibia os atributos de um verdadeiro cavaleiro: coragem, engajamento nas causas reais (inclusive contribuindo com exércitos, cavalos e dinheiro para a guerra) e religiosidade. Religiosidade cristã, bem entendido. Não era usual que tal privilégio fosse concedido a judeus ou muçulmanos.

No entanto, se poucos judeus puderam exibir os símbolos sociais da sua honra, o mesmo não se pode dizer do seu oposto: a desonra. Oficialmente expulsos da Espanha em 1492, já sentiam, desde algumas décadas antes, o peso da perseguição religiosa. A Espanha unificava-se sob o peso da cruz e, mais do que nunca, a honra ou a sua falta passariam a ser determinantes no destino de cada um.

 

A conversão do comerciante Sánchez

Era impressionante como a vida havia mudado em apenas um século. E para comprovar isso, basta observar o que ocorreu com a família de um rico comerciante de tecidos chamado Alonso Sánchez. Ainda na primeira metade do século XV, podemos vê-lo em Toledo, proprietário de vinhas e de imóveis. Judeu, casado com a também judia Teresa, Alonso viu, ao longo da sua vida, a tolerância religiosa reduzir-se gradualmente. Antevendo uma situação complicada, converteu os filhos ao catolicismo e cuidou de casá-los com nobres de prestigiadas famílias cristãs.

O que ele não poderia imaginar era que a simples conversão não bastaria. A Espanha mudava rapidamente demais e o que antes poderia ser considerado como uma pressão social pela conversão religiosa, no fim do século XV tornou-se um pesadelo.

O Conselho da Geral e Suprema Inquisição, criado em Toledo, em 1485, e depois estendido para todo o reino, não seguia a mesma orientação dos tribunais da Inquisição directamente controlados por Roma. A sua actuação concentrava-se na fiscalização dos conversos. O inquisidor-geral ele próprio originário de uma família convertida - entrou para a história. O seu nome - Tomás de Torquemada - é até hoje associado ao terror.

Parte significativa dos conversos - e Alonso estava entre eles - havia caído numa cilada. Como judeus, estariam sujeitos a perseguições e restrições. Mas não podiam ser acusados de heresia - que consiste na interpretação não autorizada dos princípios e doutrinas cristãs. No entanto, na condição de católicos declarados, deveriam provar, a cada hora do dia, que haviam deixado de facto para trás as práticas religiosas originais, sob pena de cair nas malhas do tribunal.

Vista pelos olhos laicos de hoje, a situação parece mais simples do que de facto era. Mas a vida, no século XV, era regida pela fé. Trocar de religião implicava mudar hábitos alimentares, gestos quotidianos, até mesmo a maneira de lidar com o tempo.

Afirmar publicamente a nova identidade exigia um grande esforço de adaptação. Era inevitável que detalhes - imperceptíveis para os convertidos, mas evidentes de mais para os cristãos antigos - escapassem a todo instante.

Diante da verdadeira febre fiscalizadora que tomava a sociedade, esses pequenos sinais poderiam arruinar a reputação de uma família.

Foi o que aconteceu com Juan Sánchez de Toledo, um dos filhos de Alonso. Nem o facto de ser convertido, nem o casamento com Inês de Cepeda, uma jovem de origem nobre, o livraram de uma denúncia à Inquisição.

Em 22 de Junho de 1485, os arquivos do Santo Ofício de Toledo registavam: «Juan de Toledo, comerciante, filho de Alonso Sánchez, paróquia de Santa Leocádia, confessou diante dos Senhores Inquisidores ter cometido numerosos e graves crimes e delitos de heresia e apostasia contra nossa santa fé católica.

Provavelmente por ser casado com uma jovem da velha cepa cristã - um dos ascendentes de Inês de Cepeda combatera os mouros em Gibraltar ao lado do rei Alfonso XI - Juan Sánchez recebeu uma pena leve. Não foi queimado nas fogueiras de Torquemada, não ficou com os bens confiscados, nem foi torturado. Mas foi condenado a participar numa penitência pública, o que significava que a desonra se abatera sobre a sua família.

Vestido com o sambenito - uma capa amarela que trazia o seu nome e uma cruz bordados -, com um chapéu de papel na cabeça, uma vela apagada nas mãos, sem meias e com os pés protegidos apenas por sandálias, Juan Sánchez foi obrigado, juntamente com outros condenados, a desfilar pelas ruas da cidade, parando diante de cada igreja, para rezar e pedir perdão por seus pecados. A procissão era acompanhada por um ruidoso grupo de monges que, empunhando crucifixos, exortavam os condenados ao arrependimento, atraindo a atenção de transeuntes e chamando às janelas os moradores. O humilhante desfile foi repetido por sete sextas-feiras seguidas.

Juan Sánchez tinha oito filhos. O segundo era Alonso, que trazia o nome do avô. Aos dez anos, foi espectador da humilhação pública do pai. Aos trinta, daria à sua segunda filha o nome de Teresa. Aos 46, na tentativa de proteger a honra da família, enviaria a sua Teresita para o convento.

 

As marcas do passado

Entre os séculos XV e XVII, multiplicaram-se os estatutos de limpeza do sangue, outra obsessão espanhola no século do ouro. Até mesmo para exercer determinados ofícios era imprescindível provar, possuir «sangue puro», livre da mistura com judeus ou muçulmanos.

Como sobreviver, então, se mesmo depois de paga a pena, o sambenito, com o nome do condenado, permanecia em exposição na igreja paroquial, marcando para sempre a família e seus descendentes? A mácula pública atravessaria gerações e transformaria os seus filhos, netos e bisnetos em pessoas vulneráveis, sempre à beira de serem transformados em párias.

Para escapar à vergonhosa situação e tentar recomeçar a vida noutras bases, Juan Sánchez tomou uma decisão arriscada. Vendeu a sua casa em Toledo para o soldado Garcilaso de la Veja, por 550 000 maravedis, abandonou a cidade e fixou moradia em Ávila.

Tratava-se de uma mudança radical. Toledo, com 90 000 habitantes, era um importante centro comercial e cultural. Pela posição geográfica e pela dinâmica da economia local, a cidade estava sempre em movimento. Juntamente com as mercadorias, por ali circulavam livros, peças de teatro, filósofos, músicos, doutores, astrónomos e viajantes.

Nada podia ser mais diferente dos ares cosmopolitas de Toledo do que a pequena e isolada Ávila. Localizada no alto do planalto de Castela, a 1127 metros de altitude, era uma cidade-fortaleza, conhecida como a terra dos santos e dos cavaleiros.

Construída no século XI, entre paredões de rochas escarpadas, a cidade mantinha os seus três mil habitantes protegidos por uma extensa muralha de granito rosa, sobre a qual assentavam 2500 ameias e 88 torres. Até hoje, o olhar atento do visitante pode entrever, entre as sólidas rochas que formam o impressionante conjunto, vestígios de cerâmicas e inscrições que atestam as sucessivas conquistas daquele território, ao longo dos séculos que precederam a construção da muralha: celtas, visigodos, romanos, árabes. É a muralha que diz: agora chega, ninguém mais entra aqui sem autorização. Para reforçar a proteção da cidade, estrategicamente localizados ao longo da sua face interna, castelos fortificados formavam um segundo círculo de protecção que a tornava praticamente inexpugnável.

Se Toledo era o epicentro do comércio e da cultura, Ávila era o centro da política e da guerra. Sempre ao lado do rei, sempre em posição de combate, a cidade acumulava títulos como Ávila do Rei, Ávila dos Leais e Ávila dos Cavaleiros, concedidos em agradecimento às muitas provas de coragem dos seus habitantes.

O recomeço da vida, na nova cidade, não foi fácil. Já estava distante o momento em que Juan Sánchez de Toledo exibia a sua ousadia, confessando publicamente uma culpa que o tornava infame. Agora, o futuro da família dependia da sua habilidade em ocultar qualquer traço da cultura e região originais. Já lhe bastava ser conhecido na cidade pela alcunha de o Toledano.

Como a maior parte dos conversos ricos, comprou um falso título de nobreza e fez-se passar por fidalgo de velha família cristã. De posse do documento, do brasão e da nova posição, passava a estar incluído no privilegiado grupo legalmente protegido de sequestros, da prisão por dívidas e da tortura - caso porventura fosse encarcerado por qualquer outro motivo.

Não se tratava, portanto, apenas de uma mudança de moradia, mas de papel social, de vida e de cultura. Viver como fidalgo significava ocultar da sociedade, obsessivamente, qualquer sinal do passado. Para a conquista desse objetivo, não era suficiente frequentar a igreja e exibir um falso título. Era preciso eliminar a sombra de qualquer suspeita sobre a sua origem.

Um dos indicativos que poderia vir a traí-lo - e considerado suficientemente forte para lançar dúvidas sobre a sua honra - era o facto de desempenhar actividades profissionais típicas da colónia judaica. Nenhum cristão-velho comerciava tecidos. Tão pouco prestava serviços ligados aos seus conhecimentos linguísticos, médicos ou farmacêuticos. Fidalgos simplesmente não deveriam trabalhar.

Para se tornar num avilense cristão, Juan Sánchez deixou, portanto, de comerciar abertamente. No entanto, a riqueza acumulada por meio da lã e da seda, juntamente com a nova posição de fidalgo, permitiu-lhe dedicar-se, discretamente, ao comércio do dinheiro.

No que consistia esse comércio, exactamente, não se sabe. É certo que, como nobre, tinha a prerrogativa de recolher o dinheiro devido ao rei e, nalguns casos, à Igreja. E não é improvável que tenha utilizado a sua larga experiência no mundo dos negócios para extrair lucro da actividade de colecta e repasse de taxas e impostos.

Juan confiava o suficiente na sua estratégia para educar os filhos como fidalgos. Alonso, Rui, Pedro e Francisco receberam uma formação muito diferente da do seu pai. Em relação à cuidadosa representação da nova vida, havia um item fundamental: era preciso que a educação dos meninos fosse a mais esmerada possível, mas não tivesse qualquer sentido prático - como ajudá-los a ganhar a vida. A vida dos senhores já estava ganha por antecipação. A honra não estava em pagar - mas no seu contrário.

Com tal complexidade de significados, com tamanha gama de subtilezas e, sobretudo, com tão forte carga sobre a família, não é de estranhar que Alonso tenha sido criado para prezar, acima de tudo, as aparências sobre tudo.

Honra, na casa de D. Alonso, era um conceito capaz de fazer a família passar por cima da sua história, de sentimentos, de hábitos. Independentemente do que de facto ocorria com Teresa, «o que os outros vão pensar» sempre seria motivo suficiente para enviá-la para um convento, onde estaria bem protegida dos olhares fiscalizadores da sociedade avilense.

 

Os casamentos de D. Alonso

Em 1505, Alonso tinha 30 anos e era um perfeito cavaleiro. Culto, rico, elegante, bom conversador, respeitado na sociedade e profundamente católico. Os seus assuntos predilectos eram Deus e as guerras. Não lhe foi difícil casar-se com uma nobre de família cristã: D. Catarina el Peso y Enao. No entanto, após ter-lhe dado dois filhos, no período de dois anos - Juan e Maria -, Catarina sucumbiu à peste, de 1507.

A epidemia não deixou Alonso apenas viúvo. Ficou também órfão. Juan Sánchez de Toledo, o homem destemido que havia enfrentado a Inquisição e criado uma nova história para a família, morreria no mesmo ano. Com Juan, também morreria o conhecimento para os negócios, a habilidade para fazer o dinheiro se multiplicar e o inacreditável talento para reinventar a vida. Agora, o futuro dos seus filhos dependia inteiramente da sua capacidade de legitimar o falso título de nobreza herdado.

Isso não quer dizer que Alonso tivesse ficado numa situação financeira ruim. É verdade que em 1507 possuía apenas 374 000 maravedis em dinheiro (menos do que o seu pai tinha obtido pela venda da casa de Toledo, uns 20 antes). Mas tinha boas terras, imóveis, rebanhos e muitas jóias.

Morava numa bela casa de pedra próxima das muralhas, como convinha a um verdadeiro cavaleiro. O seu portão era orgulhosamente encimado pelo brasão da família. E não poderia estar mais visível, exibido numa das principais ruas da cidade, rota obrigatória das procissões e dos transeuntes que subiam do campo para o centro.

Chamava-se Casa da Moeda porque anteriormente tinha abrigado uma oficina de cunhagem. Mas, agora, pelos pátios e jardins que ligavam os dois prédios que compunham o conjunto, passeavam pavões. Tanto o galinheiro como a estrebaria estavam repletos de animais. Na selaria, além de todos os apetrechos necessários para que os cavalos e mulas desfilassem com pompa, havia ainda uma liteira para damas.

Por trás dos jardins, as construções abrigavam peças amplas e bem mobiliadas. O inventário feito por Alonso, aquando da morte de Catarina, permite visualizar a vida que levavam. É o caso, por exemplo, de um dos baús de roupas de Alonso, onde estavam três gibões, um deles de fustão italiano; um gibão de damasco violeta e outro de cetim carmim; um gorro mourisco; camisas bordadas de ouro e escarlate; um cinturão dourado de cavaleiro; um traje de luto; um conjunto de casaca e calções negros; um conjunto completo de luto para cobrir o cavalo, incluindo às testeiras; além de espadas, luvas, calçados e outras peças.

Os baús onde se guardavam as roupas de Catarina eram ainda mais luxuosos. Ali, abundavam os tecidos caros, como os veludos, os brocados, os cetins e tafetás, numa profusão de cores e brilhos que, à falta de maiores informações a respeito do carácter da dama, poderiam indicar uma pessoa exuberante e fortemente interessada na vida social.

A morte quase simultânea do pai e da mulher transformou o já habitualmente melancólico D. Alonso num homem quase soturno. Se até então os livros sempre tinham sido seus bons companheiros, agora tornavam-se ainda mais importantes. Mergulhava na leitura da Vida de Jesus Cristo, do padre cartuxo Ludolph de Saxe, considerado na época como um quinto evangelho. Lia também Séneca, a Vida de Cristo, escrita por Juan de Padilla, Cícero, Virgílio e os aforismos de Hipócrates.

Além de consolo, os livros traziam-lhe também novos planos. Os vários pergaminhos sobre a conquista do Novo Mundo, as terras descobertas em 1492 por Cristóvão Colombo, incendiavam a sua imaginação. Mais tarde, já novamente casado, enviará os filhos homens, um a um, para além-mar.

 

A menina que gostava de ler

Não era comum que nobres tivessem bibliotecas tão fartas em casa. Nem era comum que se dedicassem à leitura. Livros e pergaminhos eram peças extraordinariamente caras. Assim, não é de todo impossível que a biblioteca de D. Alonso tenha sido um encanto à parte para Beatriz de Ahumada, jovem de uma família de Olmedo, tão bela quanto nobre, e quase uma criança mesmo para os padrões da época.

Beatriz tinha 14 anos e pertencia a uma família de trece roeles, 13 discos - círculos esmaltados de vermelho que, nos brasões, indicavam valor, coragem e ânimo bélico. Cada roele era concedido à família pelo rei por um acto de bravura. Nenhum brasão, em Ávila, ostentava tal posição. Sobre os portões senhoriais, o máximo que se encontrava eram seis roeles.

As origens da família Ahumada perdem-se nos tempos. E as lendas sobre o seu nome também. Contavam que Ahumada - que quer dizer enfumaçada - teria origem num episódio de guerra. Perseguido por mouros, um antepassado de Beatriz ter-se-ia abrigado numa torre do seu castelo e provocado um incêndio. A espessa nuvem de fumaça formada teria desorientado os atacantes. Ninguém explicava como um acidente tão espetacular não havia vitimado a família. Mas isso não tinha a menor importância. A história de cada nome confundia-se com a lenda. Se o brasão atestava a eficácia da estratégia, ninguém ousaria contestá-la com pormenores.

Beatriz era uma menina completamente apaixonada por livros. De natureza frágil e delicada, tanto se dedicava (abertamente) à leitura religiosa, como (secretamente) aos romances de cavalaria. Não é difícil imaginar que o ambiente da casa de D. Alonso a tenha cativado, a despeito da enorme diferença de idade entre eles.

 

Parênteses

O pouco que sabemos a respeito de Beatriz é-nos contado por Teresa, sua filha. Ao contrário dos homens - e principalmente dos homens nobres -, cuja vida deixa traços documentados, a vida das mulheres costuma ser invisível. A sua história não deixa rasto nos brasões, os seus bens não são inventariados (porque não lhe pertencem), os seus feitos não correm de boca em boca. A não ser que tenham sido capturadas pela Inquisição, não há sequer processos contra elas.

Assim, temos muitas pistas para chegar a D. Alonso, o pai de Teresa: o processo inquisitorial contra o seu pai, o inventário dos seus bens, o processo jurídico que ele e os irmãos sofreram em 1519. De Beatriz, a segunda esposa de Alonso, conhecemos apenas as glórias dos seus antepassados, registos religiosos, como o baptismo e a primeira comunhão, e o que nos contará, muitos anos mais tarde, a filha.

O problema é que Teresa perdeu a mãe muito criança. Tinha apenas 13 anos quando Beatriz morreu, aos 32 anos. Então, a única Beatriz que podemos conhecer é aquela vista pelos olhos de uma menina.

 

A noiva flutuante

As núpcias de D. Beatriz e D. Alonso ficaram gravadas na crónica de Ávila, embora tenham sido celebradas na casa de campo de Gotarrendura. Bela propriedade, Gotarrendura era cercada por amplas pastagens, terras férteis, um rebanho de muitos milhares de cabeças de ovinos e um imenso pombal - um dote à altura da noiva.

Frágil, quase etérea, vestida de branco e ouro, iluminada por extrema juventude e beleza, Beatriz pairava sobre a festa como uma visão celestial. No entanto, fiel ao roteiro previamente escrito para as mulheres honradas da época, ao despir-se do vestido de noiva guardou também dentro dos pesados baús qualquer resquício de vaidade. Nunca mais foi vista em trajes de gala, nunca mais voltou a usar sumptuosos vestidos de festa. Terminadas as bodas, o casal partiu para a casa de pedra da Plazuela de São Domingos, bem protegido pelas muralhas de Ávila. Ao chegar ao seu novo lar, Beatriz encontrou duas crianças para cuidar. Nos 18 anos seguintes, ainda traria à luz nove filhos.

Para dar conta das pesadas responsabilidades domésticas, Beatriz contava com quatro criados, mas era ajudada pelas numerosas famílias que viviam em torno da casa e que a serviam. Ao contrário de outras famílias nobres, D. Alonso recusava-se a possuir escravos mouros. A ideia repugnava-o a tal ponto que quando um dos irmãos lhe confiou uma criança moura, ele criou-a como um ser livre.

Dois anos após o casamento, Beatriz teve seu primeiro filho, Fernando. No ano seguinte, em 1512, chegou Rodrigo.

Em 28 de Março de 1515, às cinco e meia da manhã, os primeiros raios de Sol tocaram as muralhas de Ávila ao mesmo tempo que o choro de uma criança ecoou pelos aposentos da casa de pedra.

Era uma menina, a primeira de Beatriz. Chamou-se Teresa, um nome que não existia no martirológio cristão - ou seja, não homenageava nenhuma santa. Era o nome da sua avó materna - Teresa de las Cuevas. Não era santo, mas tinha boa linhagem. No entanto, oculta sob a homenagem aos antepassados de Beatriz, havia uma outra. Discretamente, quase como uma senha, a menina trazia também o nome de Teresa Sánchez, mulher de Alonso Sánchez, o comerciante judeu que iniciara o processo de conversão da família ainda na primeira metade do século anterior.

O facto não causou nenhuma estranheza. Em 4 de Abril daquele ano, a primeira filha de Beatriz foi baptizada. O seu padrinho era Francisco Nuñez Vela, um dos mais importantes nobres da região. No mesmo dia, era inaugurado o Mosteiro da Encarnação, o convento de carmelitas que, anos mais tarde, mudaria completamente a vida de Teresa.

 

Entre o quintal e a biblioteca

A pequena Teresa tinha apenas quatro anos quando o seu pai e tios se meteram numa empreitada arriscada, cujos motivos até hoje não foram bem elucidados. Os irmãos Sánchez y Cepeda - Alonso, Rui, Pedro e Francisco entraram, em 6 de Agosto de 1519, com um processo no tribunal de Valladolid para que a sua nobreza fosse oficialmente reconhecida.

Mexer no passado não era das atitudes mais seguras. Muito pelo contrário. Os irmãos não teriam corrido tal risco se não estivessem absolutamente certos do seu resultado. Ou se não fossem muito fortemente pressionados a tomar esse caminho.

Ao que tudo indica, os conselheiros de um pequeno município de Majalbalago, chamado Hortigosa, reivindicavam o pagamento de impostos à família.

Ora, cobrar impostos significava questionar a fidalguia. Manter-se na defensiva numa hora daquelas era arriscar-se a acabar nas fogueiras de Torquemada, que ardiam por toda a Espanha.

Já na primeira instância do processo, os irmãos Sánchez viram o que os esperava. Uma testemunha declarara ter visto Juan Sánchez vestido com o sambenito, desfilando as suas culpas pelas ruas de Toledo. Na segunda instância do processo, já no tribunal das causas de fidalguia de Valladolid, uma testemunha ocular descrevera minuciosamente a humilhação e desonra de Juan Sánchez. O passado ameaçava eclodir.

No entanto, o paciente trabalho de inserção social da família havia sido bem feito. Não havia apenas desonra para levar ao tribunal. Entre as inúmeras actividades exercidas por Juan Sánchez, havia o período em que fora secretário do rei Henrique IV de Castela. Um dos seus sobrinhos tinha sido cónego na catedral de Toledo. Além disso, a família possuía excelentes relações no mundo eclesiástico e entre a nobreza avilense.

O processo, longo, doloroso e caro, só foi concluído em 26 de Novembro de 1520, com o reconhecimento oficial da nobreza da família.

Teresa tinha, então, cinco anos e meio. Não é difícil imaginar que a casa se tenha tornado muito misteriosa naquele período, cheia de palavras cochichadas, olhares eloquentes, comentários de criados e um esforço monumental para que a vida prosseguisse em aparente normalidade.

Teria ela sabido de alguma coisa? Teria desconfiado? Impossível saber. Totalmente fiel ao pacto de silêncio feito pela família, jamais tocou no assunto. Nem mesmo quando escreveu muitos anos mais tarde, por solicitação do seu confessor dominicano - um homem ligado à Inquisição -, a história da sua vida.

Se nem mesmo ao seu confessor-inquisidor Teresa abriu esse capítulo da sua trajectória, que dirá a nós? Podemos simplesmente especular, imaginar, juntar factos, interpretá-los livremente. Exactamente como fazia a pequena Teresa, uma menina de imaginação desbragada e febril, a quem jamais escapava uma boa história.

Juan, Maria, Fernando, Rodrigo, Teresa, Lourenço, António, Pedro e Jerónimo. Nove crianças soltas entre o jardim e o quintal. À sua volta, os criados e as famílias que serviam o senhor formavam um ruidoso grupo ocupado em cozinhar, limpar, cortar lenha, matar animais, plantar, colher, tosquiar ovelhas, cardar a lã, curtir o couro, produzir artefactos, selar cavalos. A criadagem e os servos trabalhavam duro. Mas também falavam, cantavam, contavam histórias, levavam e traziam notícias, teciam intrigas, interpretavam factos à luz dos seus próprios pontos de vista, faziam circular uma constante torrente de palavras que sempre chegava até às crianças.

Ao lado da austeridade intelectual de D. Alonso e da imaginação transbordante - porém silenciosa - de D. Beatriz, o burburinho da criadagem fazia parte da formação das crianças.

Era ali, nas estrebarias, cozinhas e jardins que elas tomavam conhecimento do que ocorria nas ruas, inclusive dos assuntos ditos impróprios para os pequenos.

 

Era uma vez

Narrativas, seja em forma de histórias inventadas ou casos reais, têm o poder de colocar de maneira ordenada o caos primordial de sentimentos e emoções contraditórios no qual vivemos. Se isso é verdadeiro para adultos - e daí a nossa incessante necessidade de fabular -, é ainda mais concreto para crianças, que carregam consigo muito mais espantos e possuem muito menos palavras para exprimi-los e assim organizá-los.

É assim que vemos Teresa sempre atrás dos criados mais falantes, sempre pedindo histórias. Teresa e o seu turbilhão de emoções conflituantes estavam prontos para serem germinados pelas palavras.

E elas vinham. Muitas. Uma das preferidas da menina era a de Jimena Blázquez. Teresa pedia. E a criada contava pela vigésima vez. No ano de 1109, a senhora Blázquez estava sozinha no seu castelo, cercada apenas por criadas. O seu marido, o governador, havia partido com todos os seus homens para a guerra. Sabedores de tal facto, e certos de que não haveria resistência alguma por parte das mulheres, os mouros aproveitaram para atacar. Mas não contaram com a coragem de Jimena Blázquez. Refugiada na mais alta torre do seu castelo, providenciou barbas falsas para si e para as outras mulheres. Assim, vestidas como homens, ostentando espadas e armas que ninguém sabia explicar de onde teriam tirado (e que importância isso teria numa história?), fizeram uma pantomima de defesa tão convincente que conseguiram que os atacantes recuassem.

Nem todas as histórias eram tão confortadoras. Havia também as das crianças assassinadas por infiéis. As de bruxas que lhes arrancavam os pequenos corações para confeccionar feitiços. A de um menino torturado, coroado com espinhos e crucificado por judeus a poucas léguas de Ávila. Claro que, para livrá-los de tudo aquilo, existia a protecção: da cruz e da Santa Inquisição. Se ficassem quietos, dentro de casa, nenhum mal lhes aconteceria. Mas as crianças desobedientes, as que perguntavam demais, as que saíam de casa sozinhas, estariam sujeitas às crueldades de mouros e judeus - que naquela altura se tinham convertido nos bichos-papões preferidos das babás.

Mal os criados se afastavam, todas aquelas histórias se transformavam em brincadeiras. Um dos irmãos virava o ímpio; outro, o delator; um outro, o inquisidor. E nos jardins floridos da casa de pedra, fogueiras imaginárias saudavam Deus e a liberdade, sempre sob as ordens de Teresa, a roteirista principal. Não é preciso dizer que, quando brincavam de Jimena Blázquez, todos tinham que virar mulheres sob as ordens de Teresita/Jimena, com o rosto pintado de carvão, à guisa de barba, negra e um galho de árvore fazendo o papel de espada.

As histórias de guerra tornaram-se bem mais reais em 1520, quando estourou a revolta dos Comuneros.

Embora se tenha iniciado em Toledo e Segóvia, não tardou dois meses para que Ávila se tornasse o epicentro dos acontecimentos. Foi na catedral da cidade que se reuniu a Santa Junta, o grupo que lutaria pela rainha castelhana D. Juana, filha dos Reis Católicos, que era considerada louca e estava prisioneira em Tordesilhas, contra o filho, Carlos V, imperador do Sacro Império Romano-Germânico, herdeiro das coroas de Castela, Aragão, Leon, Valença e Maiorca, Barcelona, os Países Baixos e parte da Itália. Não era à toa que ele era visto em Aragão e Castela (onde se localizava boa parte do que hoje compreendemos como a Espanha) como um rei estrangeiro.

Logo, a palavra de ordem, Comunidade, ecoava pelas pedras da cidade. Como em toda revolta popular, havia muito mais excitação nervosa do que compreensão dos factos. Ávila tinha sido chamada para defender a rainha - para a maior parte dos avilenses, isso bastava para que as espadas fossem desembainhadas. A rainha era filha dos Reis Católicos, aqueles que haviam instaurado os Tribunais do Santo Ofício em território espanhol. Isso parecia motivo suficiente para que a multidão desse vivas à Inquisição.

  1. Alonso, no entanto, não partilhava da agitação geral. No meio da tensa atmosfera guerreira, conseguiu manter-se neutro. Nenhuma das posições o empolgava e não seria ele quem confundiria Deus com a Inquisição. Mas essa posição de equilíbrio terminava onde acabava o assoalho da casa de pedra. Pelos quintais, pelos jardins, pelos aposentos da criadagem, a revolta ganhava tintas épicas.

Entre as crianças, Teresa era a mais inflamada pelo espírito bélico. A sua espada de Jimena Blázquez libertava a rainha Juana da prisão, devolvia Castela aos castelhanos, fazia cumprir na Terra a justiça divina. Os irmãos espantavam-se com tamanha paixão guerreira, tão incomum numa menina.

Havia uma ideia que a empolgava. Ao contrário dos ímpios jogados nas fogueiras ou dos infiéis decapitados, aqueles que morriam por Deus iriam para o céu. Teriam momentos de dor e sofrimento, mas seriam recompensados com nada menos do que a eternidade ao lado de Deus Pai.

 

Um lugar especial

Não eram apenas as histórias da criadagem que encantavam Teresa. Os retábulos da Vida de Cristo da biblioteca do seu pai pareciam-lhe fascinantes. Originalmente, retábulos eram peças sacras que ornamentavam a parte posterior dos altares. Mas não se tratavam de peças meramente decorativas. Ricamente ilustrados com cenas piedosas, tinham função educativa numa época em que a maioria da população era analfabeta. Na França, na Holanda, na Alemanha e na Espanha, os melhores artistas eram contratados para pintar e esculpir retábulos temáticos, que tratavam, na sua maioria, da Paixão de Cristo.

Algumas, poucas, famílias, nobres e muito ricas, possuíam pequenos retábulos em suas casas. Normalmente, enfeitavam oratórios ou capelas particulares. Na casa de D. Alonso ficavam na biblioteca, e cumpriam a sua função original: a de educar, a de relatar, por meio de imagens, passagens da vida sacra.

  1. Alonso apontava uma imagem e contava histórias relacionadas com o episódio. Teresa, sempre muito viva e curiosa, acabava completando os relatos do pai com outros.

Em contraste com a facilidade com que a criadagem abria a boca para contar histórias, a aura de solenidade que marcava a leitura dos retábulos da Vida de Cristo dizia a Teresa que ali estava a verdadeira glória.

Por isso, ao lado de brincadeiras guerreiras havia as religiosas. No jardim, construiu um pequeno eremitério. Era ali que se recolhia durante horas, sem falar com ninguém, sem comer nem beber, apenas dedicada aos altos pensamentos que os seus cinco anos permitiam. Nesses momentos, transformava-se na eremita Teresa, e ai de quem ousasse perturbar o retiro espiritual. O único admitido no seu refúgio era o pequeno Rodrigo, apenas um ano mais velho, mas escolhido como seu discípulo.

Rodrigo também era um dos primeiros a serem chamados para brincar ao convento. A madre superiora, evidentemente, era Teresa. O quintal transmutava-se em claustro, as baias das mulas em celas, as criadas em noviças e entre regras conventuais criadas ao sabor da hora, os irmãos iniciavam-se nos mistérios da vida monástica.

Muitos anos mais tarde, Teresa diria que «a imaginação é a louca da casa». Pois na sua infância e adolescência, a louca era a dona da casa. Tudo o que lia, tudo o que imaginava, tudo o que sonhava transformava-se, a seus olhos, em possibilidade concreta. Quanto mais sedutora a ideia, quanto mais a apaixonasse, mais interessante e factível lhe parecia.

Foi assim também com a história dos mártires.

 

Morrer em Rodes

A boa biblioteca de D. Alonso foi uma das primeiras a receber a Vida dos Santos, uma publicação fartamente ilustrada, que romanceava as circunstâncias em que tinham sido mortos os principais ícones do catolicismo. Teresa ficou fascinada com aquilo. Nem as imagens realistas dos suplícios, nem os horrores das torturas a impediram de sonhar com o martírio. Agora, não desejava mais brincar de Jimena Blázquez: queria virar Santa Catarina.

Vale a pena lembrar a história da santa. Catarina viveu cerca do século IV. Filha do rei Costus, de Alexandria, era uma jovem culta, bela e profundamente católica. Não se tratava de uma mulher comum. A sua cultura era tão vasta, que costumava discutir filosofia, política e religião com os grandes mestres. Não fazia isso como discípula, mas em público. A fama da jovem logo correu mundo. E o imperador Maximiliano, temível perseguidor dos cristãos, ofereceu-lhe o trono de imperatriz. Estava apaixonado, é certo. Mas também queria tirar do seu caminho a liderança cristã. Ofereceu à moça tudo o que uma jovem ambiciosa poderia desejar. Em troca, pedia apenas que ela renegasse o Deus cristão e abraçasse a religião egípcia. A moça, é claro, recusou. E foi ainda mais além. Tentou converter Maximiliano ao cristianismo. Os seus argumentos eram tão convincentes, a sua defesa tão apaixonada, que Maximiliano procurou ajuda a sábios. Mais uma vez, o brilho e a inteligência de Catarina foram mais fortes. Com as suas palavras, terminou por converter os próprios conselheiros do imperador.

Cego de fúria, Maximiliano condenou os sábios à morte.

Mas destinou a Catarina um suplício especial. Mandou construir um aparelho de tortura composto por lâminas cortantes e pontas afiadas para que o corpo da jovem fosse lentamente despedaçado. Catarina deixou-se conduzir até o local sem oferecer resistência. Ali, rezou com tamanha devoção que o aparelho desfez-se em pedaços. Sem se dar por vencido, o imperador conduziu, pessoalmente, a tortura até à morte. Mesmo depois de verificar que o seu corpo não tinha mais vida, mandou decapitá-la. Mas nada poderia deter o poder de Catarina. Morta, decapitada, teve o seu corpo levado por anjos para o alto do monte Sinai.

É fácil deduzir que a glória de Jimena Blázquez empalidecia diante de tal história. E o livro tinha também outras narrativas, que sugeriam possibilidades de vida - e de morte - ainda mais extraordinárias. Havia São Lourenço, capaz de rir dos carrascos que o queimaram vivo, Santa Etiene apedrejada, São Bartolomeu esquartejado sobre uma mesa. Nenhum deles temia a dor. Nenhum temia a morte. Só uma coisa os animava: a glória eterna.

 

Para sempre

Eterna. Essa palavra começava a soar muito bem aos ouvidos de Teresa. Só para ter a certeza, correu para a mãe e perguntou o que queria dizer. «Eterno quer dizer para sempre, Teresa», respondeu-lhe Beatriz.

Era uma palavra muito ouvida na época. Os ímpios arderiam no fogo do Inferno eternamente. Os justos gozariam da glória eterna. Os assuntos da alma - território exclusivo da Igreja - não admitiam nuances, muito menos mudanças. Uma vez conquistada - e reconhecida - a glória ou a danação, nada mais poderia mudá-las. Nem processos vindos de municípios menores, nem intrigas de estrangeiros, nem obscuras histórias de família. Se havia uma coisa concreta na qual se apoiar, essa coisa era a vida eterna. E, a despeito de a eternidade ser um tempo um bocado longo, para a Igreja, ela definia-se em poucos gestos. Bastava uma vida - na época algo em torno de, no máximo, 50 anos - para que se definisse o «para sempre», essa entidade fixa, imutável, absolutamente segura.

Muitos anos mais tarde, Maria de São José, companheira inseparável de Teresa no seu caminho para a santidade, descreveria em El Libro de Recreaciones os relatos que a amiga lhe fizera a esse respeito. A força extraordinária que a expressão «para sempre» gravara no espírito de Teresa acompanhou-a para o resto da vida. E não é improvável que, graças a ela, ainda hoje se fale da apaixonada menina de Ávila.

Assuntos teológicos não eram exactamente considerados próprios para crianças. Esperava-se que orientassem os seus actos pelos ensinamentos católicos, mas não que fossem mais longe do que os textos aprovados recomendavam. Não é difícil supor que D. Alonso ou D. Beatriz tentassem cortar os arroubos da filha com sensatos conselhos sobre o comportamento quotidiano, do tipo «mentir é pecado; quem mente vai para o Inferno». Mas, honestamente, como conduzir tal tipo de assunto em família sem sair da superfície mais visível?

Teresa logo percebeu que só tinha um interlocutor possível: seu irmão Rodrigo. Era o único que a escutava com os olhos arregalados, com o coração em disparada, o único que se deixava arrastar sem resistência pelas loucas fantasias engendradas nos quintais da casa de pedra.

Os dois escondiam-se no eremitério e ali confabulavam. Longas conversas sobre Deus, sobre a vida eterna, sobre os mártires incendiavam as suas tardes. Como mais tarde Teresa relataria a Maria de São José, as conversas eram tão intensas, deixava-os em tal estado de excitação, que costumavam terminar com a repetição incansável da expressão «para sempre». Repetir a ideia de eternidade até à vertigem, como se fosse um mantra, uma oração secreta, deixava-os no estado espiritual adequado para buscar Deus.

Até que, um dia, Teresa expôs claramente seu plano: «Vamo-nos tornar mártires!» Sem dúvida, teriam de sofrer muito. As histórias e as figuras das vidas dos santos estavam ali como prova. Teriam os olhos arrancados, os corpos retalhados a chicotadas, as entranhas expostas, a pele carbonizada. Mas seria por pouco tempo. No máximo, alguns dias. Logo, logo estariam mortos. E, então, teriam a glória eterna. Para sempre.

«Veja, Rodrigo, veja isso!», exaltava-se Teresa. E lia em voz alta a Vida de São Paulo de Tebas, o primeiro eremita:

Um mártir perseverara na fé e conseguira suportar a tortura do cavalete e das lâminas em brasa. Valeriano deu ordens de borrifá-lo de mel e expô-lo, com as mãos atadas às costas, ao sol ardente, evidentemente a fim de que aquele que resistira aos discos de fogo cedesse às mordidas das moscas.

«Viu? Temos apenas de perseverar na fé!», teimava a irmã. Rodrigo relutava. Ainda eram muito crianças para enfrentar tamanha provação. Mas Teresa tinha argumento para tudo. Pois não havia ali mesmo, em Ávila, uma linda basílica dedicada aos três pequenos mártires Vicente, Cristeta e Sabina? Uma basílica!! Não uma capela, nem uma igrejinha. E a menina punha-se a descrever como seria a futura basílica dos irmãos mártires Teresa e Rodrigo.

Rodrigo contra-argumentava. Os três irmãos foram chicoteados, submetidos ao suplício da roda e, como teimavam em louvar o nome de Jesus e recusar-se a aceitar os falsos deuses dos romanos, tiveram a cabeça esmagada com pedras. Ele não estava certo de se querer meter em semelhante empreitada. Nem mesmo por uma catedral com seu nome.

Mas Teresa não se deixava abater. Estava certo, eles sofreram. Mas, então, o que aconteceu? Rodrigo devia pensar mais longe, pensar no futuro, na eternidade!

«Qual futuro?», perguntava Rodrigo, atordoado.

«Ora, o martírio não era apenas feito de dores», respondia Teresa.

Os pagãos proibiram que as crianças fossem enterradas, queriam que seus corpos ficassem ao relento como os dos animais. Mas uma terrível serpente que habitava a região arvorou-se em guardiã das crianças mortas. Não permitiu que as aves de rapina se aproximassem de seus corpos, nem que ninguém os profanasse. Apenas um judeu - esse bicho-papão medieval - ousou aproximar-se dos cadáveres. Mas foi obrigado a afastar-se, a invocar o nome de Jesus e a prometer à serpente que se baptizaria na primeira igreja que encontrasse.

Pois era isso o que ela queria. Uma gigantesca serpente que resguardasse o seu corpo, aparelhos de tortura que se desmontassem, chamas que não a atingissem. De bónus, mais uma basílica e a glória eterna. Tudo isso em troca de alguns momentos de sofrimento. Seriam atrozes, é verdade. Mas tinha a certeza de que o Senhor lhes daria a coragem necessária. Além do mais, para enfrentar o sofrimento, bastava determinação. E isso ela possuía de sobra.

Tinha tanta que conseguiu convencer o caçula Rodrigo a segui-la até à ilha de Rodes, recentemente conquistada pelos turcos. Lá, afirmariam a palavra de Cristo, seriam capturados e mortos. Tudo muito simples, sobretudo porque os conhecimentos de religião de Teresa eram infinitamente superiores à sua noção de geografia. Para ela, não haveria o menor problema em sair da Espanha, atravessar o Sul da França, o Norte da Itália, a Eslovénia, a Croácia, a Bósnia e a Albânia para entrar na Grécia pelo Norte. Tão pouco lhe parecia complicado atravessar a Grécia, cruzar o mar Egeu e o mar de Creta para chegar incólume à ilha de Rodes, onde seria decapitada e conduzida à glória eterna pelos mouros. Nada disso lhe passava pela cabeça. Mas Rodrigo teimava. Como chegariam até tão longe sem cavalos, sem suprimentos? «A pé», respondia Teresa. «Seremos mendicantes em nome de Deus. Ninguém nos negará um pedaço de pão.»

Como contestar tamanha convicção? A Rodrigo, coube apenas uma última pergunta: «Quando partiremos?» «Amanhã bem cedo», respondeu a irmã.

E assim foi feito. Nenhum preparativo era necessário. Bastava-lhes a vontade. «Um pouco de determinação, Rodrigo!» Ao alvorecer, assim que as portas de Ávila foram abertas, Teresa e o irmão cruzaram a ponte da Adaja e partiram em direção à ilha de Rodes. Tivessem um mapa, tivessem ao menos estudado o trajecto, logo saberiam que tinham tomado o caminho errado. Com o passo firme, e uns poucos pedaços de pão arrumados numa cesta, iniciaram a peregrinação pela rota que lhes era mais familiar: a de Salamanca - que fica exactamente na direcção oposta à que deveriam tomar.

Caso a empreitada tivesse sido bem sucedida chegariam, a pé, à fronteira com Portugal. Avançavam para noroeste, em vez do nordeste. Mas a aventura não chegou tão longe. Mal os pés de Rodrigo começaram a doer, pouco depois de terem cruzado a ponte da Adaja, os dois foram surpreendidos pelo tio. Francisco Alvarez de Cepeda não quis saber de conversa, segurou a dupla pelo cangote e devolveu-a à casa paterna.

Para quem deveria enfrentar o martírio, Rodrigo revelou-se um fracasso. Ao primeiro olhar severo do pai, confessou tudo. A ideia tinha sido de Teresa. À menina, coube encarar com estoicismo verdadeiramente cristão o castigo: umas boas palmadas e uma dura reprimenda.

Nada que a conduzisse à glória eterna. Mas o bastante para sedimentar uma vontade inabalável de alcançá-la.

De volta ao quintal, redobrou energias nas brincadeiras de eremitério e de convento. Ninguém escapava delas. Qualquer desavisado que passasse pelo quintal era prontamente convocado a ajoelhar-se, rezar, pedir perdão pelos seus pecados e, em seguida, seguir para a sua cela em jejum. A madre superiora era muito enérgica.

O problema era o confinamento. Um quintal não tem a amplidão necessária para as suas fantasias. A clausura é uma prisão. Por mais que se esforçasse, por mais que empilhasse pedras na gruta do seu eremitério, tudo era tão pouco, tão pequeno.

 

O modelo da virtude exausta

A fuga dos altos muros da casa paterna, como era de esperar, não se deu por fora, mas por dentro.

Dois anos mais tarde da desastrada empreitada com o irmão, podemos ver Teresa sentada ao lado da mãe. Já não pula pelos quintais. Já não exterioriza com tanta facilidade as suas fantasias. Reclinada nas almofadas, deitada sobre tapetes, à beira do fogo, a fisionomia perfeitamente apaziguada, Teresa lê. Só interrompe a leitura para jogar punhados de alfazema sobre as chamas. Gosta do crepitar das centelhas, gosta do cheiro que se desprende das folhas secas.

Já tem sete anos e domina o texto com desenvoltura. Os olhos percorrem linhas cheias de letras e formam, dentro de sua mente, aventuras extraordinárias. Ninguém percebe. Ninguém vai buscá-la num reino distante para devolvê-la bruscamente à realidade. Está ali, quietinha, como convém a uma boa menina: o corpo imóvel e a alma em chamas.

Aos 27 anos, Beatriz é uma mulher reclusa e esgotada. Tem nove crianças sob os seus cuidados. A sua constituição, sempre frágil, pede mais repouso do que agitação. As tarefas diárias são entregues à criadagem, inclusive o trato diário com a filharada. A ela, no entanto, cabe tudo o que não exige esforço físico: enxugar lágrimas, dar beijinho no dói-dói, contar histórias, pegar ao colo, afagar, rir das brincadeiras, explicar os mistérios da vida.

Não recebe visitas, não frequenta casas vizinhas, não vai a festas, não tem mais vaidades. Os seus ricos vestidos estão dobrados dentro das arcas. As suas jóias, bem guardadas nos cofres. Só ultrapassa o portão de pedra para ir à igreja.

Beatriz é um modelo da virtude exausta.

 

Como sonhar sem fazer barulho

Por detrás do langor, da docilidade, da total submissão ao papel esperado de uma boa mãe, no entanto, Beatriz guarda um lampejo de transgressão: lê, às escondidas do marido, romances de cavalaria.

Não era apenas ela. Entre os poucos letrados da época, sobretudo entre o reduzido grupo das mulheres alfabetizadas, os romances de cavalaria eram quase um vício.

Desnecessário será dizer que os padres, conselheiros e maridos desaprovavam fortemente tal tipo de leitura. Perez de Moya, pensador da época, exprimiu bem a opinião masculina vigente. Segundo ele, essas histórias eram «peças que despertam o demónio nos delicados sentimentos das donzelas e nos meninos frívolos».

Não se sabe se D. Alonso teve acesso ao pensamento de Moya. Mas é certo que desaprovava essas leituras perigosas. Para ele, havia apenas dois tipos de leitura admitida: a religiosa - que enobrece a alma - e a informativa - que prepara o homem para os atributos da vida. Como as mulheres não tinham nenhuma necessidade de se preocupar com guerras, viagens e outros assuntos do mundo, deveriam restringir as leituras às obras pias.

Mas, mesmo por detrás da mais submissa das mulheres existe um núcleo inquebrantável de resistência - que se revela das mais variadas maneiras. O de Beatriz residia na biblioteca. Podia abrir mão da sua beleza, da sua palavra, dos seus vestidos, das suas jóias, da sua vaidade, da sua saúde. Mas nada, nem mesmo uma ordem do marido, a afastaria da delícia trazida pela leitura proibida.

Não é improvável que tenha decidido partilhar esse segredo com a única filha após vê-la, descabelada e raivosa, devolvida à casa paterna ao fim da desastrada viagem à ilha de Rodes. A maior parte dos estudiosos da vida de Teresa afirma que, a partir do episódio da fuga, D. Beatriz decidiu acompanhar mais de perto a educação da filha. Segundo esses estudos, a mãe teria tentado de todas as maneiras apaziguar a mente inquieta da menina.

A afirmação faz algum sentido. De facto, Beatriz passou a solicitar a presença da filha com muita frequência, começou a ensinar-lhe os trabalhos de agulha, deu-lhe noções de desenho e pintura, dedicou um bocado de tempo a apresentar-lhe a figura de Nossa Senhora - o modelo de mãe que toda a mulher deveria seguir na vida.

No entanto, por outro lado, foi Beatriz quem apresentou Teresa aos romances de cavalaria. Não custa repetir: essa era a sua transgressão secreta. Extremamente sensível aos estados de alma dos filhos, pode muito bem ter estendido à filha o seu primeiro livro proibido como quem oferece uma porta. Uma porta secreta, que se abre para dentro sem ruído e sem testemunhas.

 

O príncipe encantado

Mas, afinal, em que consistiam tais novelas para que parecessem tão ameaçadoras?

Na sua origem, os romances de cavalaria tinham por finalidade divulgar e celebrar os feitos da Ordem da Cavalaria, uma classe política e religiosa, criada na França, no século XI, pela mais alta elite da nobreza cristã.

A imagem do cavaleiro, nascida nesta época, foi tão forte que ainda hoje, um milénio mais tarde, permanece viva. Está presente nos contos de fada, nas aspirações românticas das mocinhas casadoiras, no ideal de ego dos homens. O cavaleiro encarna a perfeição masculina.

Para pertencer à Ordem da Cavalaria, o nobre devia obedecer a um rígido código de honra e demonstrar o seu heroísmo físico e espiritual. A sua formação exigia um difícil e prolongado período de aprendizagem nas artes da luta, da guerra e da equitação, ao lado de uma intensa preparação religiosa.

O ritual de sagração do cavaleiro era considerado como um segundo baptismo. Após longas vigílias, jejuns, orações, provações físicas e espirituais, o sacerdote benzia a espada e lembrava ao cavaleiro que seu dever era o de estar sempre ao serviço da Igreja nas guerras santas, nas Cruzadas, e pronto para defender as viúvas, os órfãos e os desvalidos cristãos contra as «crueldades dos pagãos».

Foram as façanhas desses cavaleiros - ou o que o povo contava delas, independentemente de sua veracidade - que inspiraram os romances de cavalaria.

As novelas preferidas de Teresa - como o Amadis de Gaula - eram aquelas em que as proezas e os valores éticos da cavalaria se uniam aos códigos do amor cortês.

Este tipo de cavaleiro tinha um atractivo especial. Ele não era apenas forte, protector, viril e nobre (não se limitava a encarnar um punhado de virtudes inatingíveis). Também apresentava uma faceta que o tornava irresistível para as mulheres: era um homem capaz de amar. O perfeito cavaleiro devotava dedicação absoluta à sua amada, a dama escolhida por ele para personificar as virtudes da cavalaria pelo lado feminino: a perfeição física, a pureza da alma e a nobreza da linhagem.

Vejamos um trecho da obra:

O rei ficou só, com a sua amada, e olhava-a ao clarão de três lumes que ardiam na câmara, e parecia-lhe que a beleza do mundo estava nela reunida, considerando-se muito feliz por tê-la levado até aquele ponto. E assim abraçados foram deitar-se no leito, onde aquela que, por tanto tempo solicitada pela sua grande beleza e juventude, tinha sabido defender-se de príncipes e grandes homens, permancendo livre e virgem, em pouco mais de um dia, e justamente quando o seu pensamento estava mais longe e alheio a tudo isso, quebrando pela força do amor todos os fortíssimos laços da sua honesta e santa vida, rompeu sua castidade e, a partir de então, tornou-se mulher. (Amadis de Gaula)

Para os corações inflamáveis das meninas, havia uma esperança de glória terrena: ser amada por um cavaleiro. Era um sinal distintivo, uma honraria exclusivamente feminina - e umas das únicas concedidas à mulher.

Para as poucas alfabetizadas - não por acaso, todas nobres -, os romances de cavalaria eram gasolina sobre fogo. Caso abrissem um exemplar, caso mergulhassem na sua leitura, a centelha duramente reprimida se poderia alastrar. Poderiam sonhar, precipitar-se num mundo todo feito de fantasia e letra, onde as mulheres eram elevadas às mais altas categorias pelo simples facto de fazer o que sempre faziam: serem discretas, virtuosas, religiosas, castas e silenciosas. Afinal, aquela montureira de tarefas do dia-a-dia; aquela sucessão de missas, preces e confissões; aquela sequência interminável de afazeres quotidianos - aos quais ninguém dava a menor atenção - tinha valor.

Os romances de cavalaria estão na origem dos contos de fadas que, séculos mais tarde, encantariam as crianças de todo o mundo. O cavaleiro tornou-se um príncipe. A amada transformou-se na princesa. E, como se sabe, o casal foi feliz para sempre. Até ao século XX, pelo menos.

No século XVI, no entanto, ninguém falava em contos de fadas. Nem em maravilhamento. Nem em fantasia. O que havia era, por um lado, a dura realidade de mulheres sem nenhuma chance de realização concreta. Por outro, rapazes obrigados a seguir um ideal masculino muito distante da sua possibilidade humana. Na vida real, os rapazes eram chamados a participar numa sociedade extraordinariamente violenta e bélica; as meninas preparavam-se para engolir qualquer ambição e a sacrificar a saúde em sucessivos partos. Instalado no meio desse ambiente, o casal cavaleiro e amada reluzia sorridente como a ilustração pintada num texto

fantástico.

Para a mente de Teresa, a figura do herói sobre-humano - capaz de legitimar a existência de uma donzela extraordinária por meio de um amor absoluto - funcionava como um chamariz muito sedutor. Nalgum lugar do mundo - e muito provavelmente na Espanha; e mais provavelmente em Ávila, que era a terra dos cavaleiros - haveria um homem pronto para morrer por ela, para reconhecer a sua singularidade, a sua virtude e individualidade. E era preciso encontrá-lo.

Mais tarde, muito mais tarde, Teresa encontraria o seu cavaleiro absoluto. E tornar-se-ia sua amada. Mas ainda faltava muito para que isso acontecesse. Por enquanto, podia apenas partilhar o seu segredo com a mãe: ambas sonhavam com um homem que estava fora do alcance do seu presente. Ambas seriam capazes de mentir, forjar pretextos, fazerem-se doentes, só para ganhar alguns minutos de isolamento e se abrigarem nos braços imaginários dos seus cavaleiros de papel.

Mais tarde, Teresa relataria: «Não me parecia ruim passar muitas horas do dia e da noite em exercício tão vão, escondida do meu pai. Era tamanha a minha absorção que, se não tivesse um livro novo, em mais nada encontrava contentamento.»

 

O corpo de Beatriz

Seria injusto, no entanto, afirmar que Beatriz buscava apenas cumplicidade nos silenciosos momentos de leitura junto à filha. É possível que ela acreditasse sinceramente que deixar a mente viajar loucamente enquanto o corpo cumpria o papel que dele se esperava seria uma alternativa de vida viável para sua Teresita.

Mas Beatriz também sabia que, como projecto de vida, o bovarismo de resultados era um bocado arriscado. Era o seu corpo quem o dizia. Cada vez mais fraca, mais doente, mais esgotada, intuía que haveria pouco tempo para fazer da filha uma mulher tão adequada quanto ela.

Beatriz passava períodos cada vez mais prolongados na casa de campo de Gotarrendura. Ali, ela e Teresa mantinham longas conversações. Ao lado das histórias de cavalaria, do sonho do amor absoluto que glorifica a mulher, passou a insistir nos relatos da mãe celestial, que cuidava das meninas quando as suas mães partissem. Nossa Senhora ganhava um espaço especial nessas conversas, que duravam horas.

Esses momentos devem ter sido mesmo muito especiais, porque marcaram Teresa para sempre. Por toda a sua vida, teria uma atracção especial pelo campo, pelas casas simples e rústicas, pelas vinhas, pela paisagem campestre que se alonga até onde a vista alcança. Gotarrendura ficou como o lugar onde é possível ter contacto com o mundo interior. Quanto mais longe os olhos pudessem ver, mais conseguia mergulhar dentro de si. Para quem tinha sido criada dentro dos altos muros de uma casa de pedra, cercada por uma muralha histórica, a amplidão do horizonte de Gotarrendura era um banho visual de liberdade.

Ao que tudo indica, o campo fazia o mesmo bem a Beatriz. Foi ali que teve Agostinho e, um ano mais tarde, Joana - nome dado em lembrança de Juan, o mais velho dos filhos de Alonso, que acabava de ser morto na guerra contra Francisco I e abria caminho para a trajectória guerreira dos meninos da família. Depois do nascimento da caçula sua segunda menina - não conseguiu mais retornar à Casa de Pedra.

Em 24 de Novembro de 1528, escreveu o testamento: «Deixo minha alma para Deus Todo-Poderoso, que a criou e animou com seu precioso sangue. Deixo o meu corpo para a terra da qual ele se formou.»

Era assim que as mulheres, mesmo as mais ricas, dispunham dos seus únicos bens na hora da morte.

 

A mais bela

Teresa ainda não completara 13 anos quando Beatriz morreu. Não havia mais nenhuma mulher que a compreendesse tão bem, que lhe apontasse caminhos, que a botasse no colo e dissesse que tudo ia dar certo. Olhando em volta, via apenas sua irmã mais velha, Maria, uma alma simples e virtuosa, jamais perturbada por nada que pudesse desviá-la de uma vida honesta. Maria não tinha dúvidas, não gostava de romances de cavalaria, era uma moça concreta, real e perfeitamente adaptada à vida.

Foi totalmente vestida de preto, seguindo o corpo da mãe, que Teresa ouviu dizer pela primeira vez que era linda. Deveria repelir a vaidade que a assaltava em hora tão imprópria. Mas não havia mais ninguém com quem falar sobre aquilo. Bela, atormentada, tocada pelos hormónios da adolescência como por uma poção mágica e proibida, Teresa sentiu-se absurdamente só.

Ninguém poderia compreender - e preencher - a falta que Beatriz lhe faria. Só uma mãe sobre-humana. Uma mãe universal e perfeita. Aquela que Beatriz lhe havia indicado pouco antes da morte.

«Quando comecei a perceber o que havia perdido, ia aflita a uma imagem de Nossa Senhora e suplicava-lhe, com muitas lágrimas, que fosse ela a minha mãe», contaria mais tarde.

 

Fim da infância

Bem que Maria, dez anos mais velha, podia ter assumido a educação de Teresa. Era o esperado dela. Mas não havia comunicação possível entre o seu universo perfeitamente conformado e a alma em ebulição da irmã mais nova. Anos mais tarde, Teresa escreveria:

Eu tinha uma irmã mais velha do que eu, e não aprendi nada com sua grande honestidade e bondade. (...) Mas assimilei todo o mal de uma parenta que frequentava muito a nossa casa. Sua grande leviandade levara minha mãe a se esforçar muito para afastá-la de casa. (...) Passei a gostar dessa parenta. Com ela, tinha conversas e entretenimentos, porque ela me ajudava em todas as diversões do meu agrado e até me atraía para elas, tornando-me, ainda, confidente de suas conversas e vaidades.

Teresa escreveu essas palavras muitos anos mais tarde, já totalmente empenhada no seu projecto religioso, e a pedido do seu confessor. Por hora, basta registar que foi essa parenta que acabou por assumir lugar de destaque na sua vida.

A menina estava com 14 anos. Desabrochava. Nossa Senhora podia ser a mãe ideal, mas permanecia muda no seu altar e nada podia dizer de concreto acerca do turbilhão de sensações que a inundava. Só lhe restava mesmo dividir o espanto das descobertas do crescimento com a parenta indesejada.

E, se tinha uma coisa que a amiga - cujo nome jamais se soube - conhecia bem, era o universo da sedução. Ensinou Teresa a cuidar-se, a tratar das mãos e dos cabelos, a vestir-se, a deixar fluir o seu encanto natural. Tudo o que Beatriz - recolhida a seu mundo interior - reprovaria.

Teresa não parecia pensar muito sobre esse assunto. Precisava ser amada. Aperfeiçoava os seus sorrisos e o seu dom para a conversação com tanto empenho quanto experimentava novos e extraordinários cosméticos. Nem mesmo o seu pai, tão austero, conseguia censurá-la. Não havia quem não amolecesse diante da sua presença. Muito mais tarde, o seu primeiro biógrafo, frei Luís de León, afirmaria ter ouvido de parentes e conhecidos: «Teresa fazia qualquer um perder a cabeça.»

E foi assim que, um por um, os baús que guardavam os preciosos vestidos que Beatriz abandonara ao longo da vida foram abertos. Teresa pedia, D. Alonso não conseguia negar. Nenhum irmão ousava contrariá-la. Nenhum queria privar-se da sua alegria.

Aos 16 anos, jamais estava sozinha. Um verdadeiro séquito de admiradores acompanhava-a por toda parte. Os tranquilos momentos de leitura ao lado da mãe tinham sido deixados para trás. Agora, ela descobria um novo poder da palavra: a palavra falada, principalmente quando acompanhada por um sorriso ou por um gracioso meneio de cabeça.

Nada daquilo poderia ser errado. Era tão bom! Que mal haveria em ser bela e adulada? E Teresa ia cada vez mais longe, exercitando o poder de sedução até aos seus limites.

Até 13 de Julho de 1531, dia em que D. Alonso percebeu que não conseguiria manter a sua Teresita distante dos comentários maldosos que já começavam a pipocar (1) aqui e ali.

 

Nota 1 Verbo intransitivo usado no Brasil, que significa estalar ou saltar como pipocas; rebentar. (N. do E.)

 

Afinal, Teresa atraía os rapazes como mariposas tontas pela luz. Mas, ao contrário da sua irmã Maria, não demonstrava a menor inclinação pelo casamento.

Sabe-se que houve um namorico com um primo. Mas sem maiores consequências práticas - além do coração incendiado, muitos bilhetes, juras de amor e lágrimas. Não eram suficientes para encaminhá-la na vida. E o destino da família era assunto cada vez mais delicado. Totalmente endividado, incapaz de produzir dinheiro, D. Alonso investiu as suas energias em casar as filhas e enviar os filhos para além-mar, de onde esperava que voltassem carregados de ouro e riquezas. Assim, em 1530, Fernando, seu primeiro filho, partiu para as Índias na companhia de Francisco Pizarro. Maria casou-se com um modesto fidalgo da região. E Teresa precisava decidir o que fazer da vida.

Não era conveniente que andasse tão solta pelas festas. Não era adequado ser alvo de intrigas. Sobretudo, para um pai, não era prudente confiar apenas na própria autoridade, tão facilmente dobrada pelos sorrisos e truques da filha.

Teresa não foi para o convento contra vontade. Foi para lá porque precisava de algum tempo para se decidir. Mas, ao contrário do que pensava, a sua estada entre as religiosas não seria tão suave quanto inicialmente pode ter imaginado.

 

Eu, pecador, me confesso

Ao cruzar os portões do convento das Agostinianas de Nossa Senhora das Graças, Teresa encontrou-se imediatamente com Deus. Não com o amoroso Deus cristão, tal como o concebemono século XXI, mas com a entidade terrível que regia a vida espiritual do século XVI.

Àquele Pai severíssimo não se podia enganar. E, para ser admitida na sua família, eram necessárias provas tão duras quanto as que formariam qualquer cavaleiro. Falhar nas demonstrações de virtude e obediência era caminho certo para o Inferno, com letra maiúscula. Qualquer desvio era atribuído à força do Demónio - também com maiúscula. E quem determinava o que levaria ao céu ou ao Inferno era a Igreja, com as suas regras implacáveis.

Ali não haveria criadas cúmplices, pais e mães amorosos, amigas solidárias ou amigos fascinados. Logo que passou pelos pesados portões, foi despida do seu cordão de quatro voltas em ouro puro, seus anéis, suas pulseiras, seus brincos, seu lindo vestido, sua capa bordada. Recebeu uma roupa absolutamente igual à das outras monjas aprendizes, foi obrigada a cobrir os cabelos com um pesado véu e pendurou no pescoço um crucifixo grande - o suficiente para lembrá-la da única jóia admitida ali dentro. Se havia uma primeira coisa a sacrificar, era a individualidade.

Os primeiros oito dias foram os mais dolorosos. Além de todas as perdas que precisava de enfrentar, havia ainda o medo de que a sua história se tivesse espalhado. Imaginava as fofocas da criadagem repercutindo pelas pedras de Ávila: Teresa foi mandada para o convento por causa de sua extrema vaidade. Sentiu uma vergonha que jamais havia experimentado antes.

Se antes de entrar ali, havia momentos em que temia ofender a Deus, agora parecia-lhe ter sido atirada para o epicentro das suas culpas. Como se todo o horror do seu comportamento pregresso estivesse a ser revelado de uma só vez, sem atenuantes.

Entre o claustro e a cela, havia dias inteiros dedicados à oração, à expiação das culpas, à confissão, à penitência, à construção de um caminho interior que agradasse àquele Deus, tão exigente que não permitia a seus filhos escapar do seu controlo nem mesmo em pensamentos. Afinal, não entregara o seu próprio filho ao sacrifício na cruz? Cristo não se deixara martirizar por amor à humanidade? Não fora para salvar cada alma que Ele derramou o sangue, que padeceu os mais atrozes sofrimentos? Como mostrar-se desatenta e ingrata, diante de tamanha prova de amor? Como não retribuir à altura a mais pura forma de amor, a única considerada legítima diante dos olhos de Deus?

E Teresa sabia muito bem o que acontecia com os que se negavam a entregar a alma ao Senhor. O Demónio tomava-as para si. Mal terminasse o seu tempo de permanência na vida terrena, os rapazes sorridentes que a adulavam transmutar-se-iam em súcubos libidinosos com tridentes envenenados. As correntes de ouro transformar-se-iam em ferro em brasa e queimariam na sua pele para sempre. Os seus sorrisos sedutores congelar-se-iam em esgares de dor. Para sempre.

Para sempre!

As palavras que costumava repetir com seu irmão Rodrigo, na infância, voltavam com força redobrada e significados mais pesados. Não era apenas a glória que podia ser eterna. Nem o amor. A danação também jamais teria fim. Nada redimiria os seus actos. Depois de morta, nada mais poderia ser feito para salvar a sua alma.

Não era mais criança. Tinha de decidir qual caminho seguir: o de Deus ou o do Demónio. Não existia opção intermediária.

 

O milagre de Maria de Briceno

Se era para seguir o caminho adequado - completar a sua formação religiosa e calar a boca do povo -, tinha escolhido o lugar certo. Nenhum convento em Ávila tinha tanto prestígio quanto o de Nossa Senhora das Graças. Ali, só eram recebidas moças da mais alta linhagem, cuja educação ficava a cargo de monjas reconhecidas por sua austeridade e fervor.

Entre essas monjas estava D. Maria de Briceno y Contreras, a orientadora espiritual das jovens seculares. Aos 36 anos, Maria tinha fama de santidade e era extraordinariamente rigorosa com as pupilas. Sabia que a entrada para o convento era um momento difícil para qualquer menina, mesmo para as dotadas de vocação. E não as abandonava nenhum minuto do dia. Dormia com elas no quarto colectivo, não as deixava a sós nem mesmo para irem à capela, e acompanhava-as às visitas no parlatório.

Ainda assim, era adorada pelas alunas. Possuía sensibilidade para compreender os tormentos das almas jovens sob os seus cuidados e um forte poder de persuasão para dirigi-las para o caminho de Deus. Era o que se convencionou chamar de uma educadora nata. Logo percebeu que o atalho para chegar até Teresa estava na palavra. A menina expressava-se com facilidade incomum e, mesmo entre muitas lágrimas, conseguia estabelecer uma conversação inteligente.

Anos mais tarde, Teresa admitiria: «Comecei a gostar da boa e santa conversa daquela monja.» De facto, a tutora era uma porta-voz apaixonada pelas virtudes cristãs e a menina parecia encantada por passar longas horas a seu lado. Maria contava-lhe como decidira tornar-se monja, as dificuldades iniciais, mas também as generosas dádivas que recebera pelo caminho:

Ela falava-me da recompensa dada pelo Senhor a quem deixa tudo por amor a Ele. Essa boa companhia foi dissipando os hábitos que a má tinha criado, elevando o meu pensamento no desejo das coisas eternas e reduzindo um pouco a imensa aversão que sentia por ser monja.

Teresa passou ano e meio no convento de Nossa Senhora das Graças. Não se queixava da disciplina rígida e procurava, sinceramente, despertar em si uma centelha da vocação teimosamente oculta. Tentava evitar contacto com seus antigos amigos de farra, desencorajava bilhetes e recados, fazia um imenso - e inútil, diga-se - esforço para emocionar-se com os grandes temas da vida monástica e para concentrar-se nas orações.

Os resultados, no entanto, eram pífios. Morria de saudades de sua antiga vida. As preces escorriam da sua boca como um texto mal decorado, sem alcançar sentido maior.

Não conseguia comover-se nem mesmo com a Paixão de Cristo, e isso era considerado uma falha muito grave. De acordo com São Bernardo, um cristão insensível ao relato da Paixão não pode ser salvo por nenhuma virtude.

Era uma situação angustiante. Tinha apenas duas opções: casar-se ou abraçar a vida religiosa. A primeira apavorava-a. Ao lado da mãe, pudera constatar que nem mesmo o mais nobre dos cavaleiros garantiria a sua felicidade. Pelo contrário. O acto mais elevado em que um perfeito cavaleiro se revelava capaz consistia em procriar descontroladamente - fixando assim a sua linhagem.

Mas a segunda alternativa entediava-a de mais.

No período em que passou no convento, Teresa rezou muito. Também pedia às amigas religiosas e aos familiares que a encomendassem a Deus, «para que Ele me indicasse o caminho em que melhor o servisse». Mas acrescentava sempre: «Eu queria, no entanto, que não fosse como monja, que Deus não me desse esse desejo, muito embora eu temesse o casamento.»

A vida matrimonial não era apenas sinónimo de esgotamento físico. É provável que, mais do que recear estragar a saúde em sucessivas gestações e partos, Teresa se apavorasse diante da perspectiva de perder a sua alma. Não era exagero. Esperava-se da mulher casada um tal grau de submissão que nem mesmo os seus pensamentos e sentimentos estariam livres da vontade do marido. Os manuais da perfeita esposa cristã, que proliferavam na época, eram bem claros a esse respeito: a boa mulher «acreditará em tudo o que [o marido] lhe disser, ainda que ele conte coisas inverossímeis e incríveis; será um reflexo de todas as expressões de seu rosto; se ele rir, ela rirá; se ele se entristecer, mostrar-se-á triste».

Com todas as suas restrições, a vida religiosa ainda parecia mais atraente. Depois de fazer algumas visitas a uma amiga, Juana Juárez, noviça no Mosteiro da Encarnação, Teresa descobrira que nem todos os conventos eram tão rigorosos quanto o seu. As carmelitas mitigadas poderiam ser uma alternativa, caso, enfim, se decidisse pelo hábito.

 

«A imaginação é a louca da casa»

O problema é que não conseguia decidir-se. «Tinha algumas vezes bons pensamentos de dedicar-me a Deus, mas estes logo passavam, e eu não me convencia a fazê-lo», conta.

Uma vez que a própria Teresa admite que Deus não era o centro das suas atenções, podemos perguntar: o que ocupava a sua mente nos infindáveis momentos de reclusão, de trabalhos manuais e de reflexão?

Longe dos amigos e dos irmãos, privada das suas leituras preferidas, afastada de todo o tipo de passeios, festas e diversões, só lhe restava pensar.

Pensar, imaginar, fabular. Essas três actividades costumam ocupar a mente de qualquer ser humano. Todos nós elaboramos um discurso interno que constrói e desconstrói, continuamente, as nossas vivências mais banais, dando-lhes o sentido necessário para prosseguirmos a nossa história particular. Aí se incluem o passado longínquo, o passado recente e os futuros possíveis.

Algumas pessoas, no entanto, possuem a mente mais loquaz do que a maioria. Há quem atribua essas mentes muito falantes aos escritores - e não estão errados. Sem a superabundância no fluxo interno de palavras, não existe material para construir o texto visível que se grava sobre o papel. (E não custa lembrar que Teresa foi a maior escritora espanhola do século XVI, embora, naquele momento, ainda não soubesse disso.)

Essa agitação febril do texto interno, no entanto, não é prerrogativa dos escritores. Qualquer leitor contumaz a conhece bem: a palavra escrita tem o poder de disparar o nosso narrador interno. O livro empresta palavras, conceitos e situações possíveis para expressar a nossa própria história.

Da mesma maneira, não é novidade nenhuma dizer que é nos momentos de maior angústia que o processo de narrar a própria história ganha mais impulso. Portanto, embora Teresa nada nos conte sobre a sua principal ocupação no ano e meio passado no convento de Nossa Senhora das Graças, podemos perfeitamente supor que dedicou um bocado de tempo a elaborar o que estava a acontecer.

Ao cruzar os portões do convento pela primeira vez, a personagem principal da sua história era uma jovem confiante na sua capacidade para dirigir a própria vida. Mas, talvez, aos poucos, essa personagem tenha sido amputada de algumas das suas características. E ganho outras - bem menos confortáveis de contemplar.

De acordo com os preceitos cristãos, a tal jovem mulher não passava de uma miserável pecadora. Era fútil, má, mentirosa, corruptora, vaidosa, incapaz de reconhecer graças que lhe tinham sido concedidas pelo Senhor.

Esse trabalho de desconstrução da sua imagem prosseguirá ao longo de sua vida. Já perto dos cinquenta anos, quando escreve O Livro da Vida, Teresa recordará sua juventude da seguinte maneira:

...depois dessa idade [da infância], em que comecei a entender as graças da natureza que o Senhor me dera - que, segundo diziam, eram muitas -, e devendo começar a dar graças por elas, passei a utilizar todas para ofendê-Lo...

Pronto. A moça linda e estouvada estava definitivamente morta. Mas isso seria aos 50 anos. Aos 17, a protagonista da vida de Teresa estava apenas ferida.

Mas gravemente ferida.

Teresa fechava os olhos e não conseguia mais visualizar a linda nobre que arrebatava corações. Em seu lugar, havia uma imagem híbrida, borrada, com um sorriso levemente diabólico no canto dos lábios. Aquela personagem não tinha nenhum futuro. Seu destino era a danação no fogo do Inferno. Para sempre!

O rosto da protagonista da vida de Teresa ia-se apagando. E ainda não havia outro para pôr no seu lugar.

Teresa de Ahumada Sánchez y Cepeda adoeceu. É claro que podemos descartar todas as suposições acima e dizer simplesmente que uma doença - totalmente fora do alcance da medicina da época e ainda hoje não esclarecida - quase a matou.

O facto é que, nos anos seguintes, todas as suas energias foram concentradas em manter o corpo vivo. Ao fim desse período, emergiria outra mulher.

 

A libertação possível

No início, parecia apenas uma crise nervosa. A paz gélida do convento fazia-lhe mal. Sua alma, por natureza inquieta, debatia-se contra um quotidiano excessivamente regrado e vigiado, todo feito de orações que não lhe diziam nada, além de despertarem o temor a Deus. Faltava alegria ali. Faltava vida.

Depois de alguns meses, nem mesmo a conversa de Maria de Briceno conseguia acalmá-la. Seu frágil equilíbrio emocional dava sinais de poder vir a romper-se a qualquer momento. Teresa tinha crises de choro, faltava-lhe o apetite, um cansaço imenso tomara conta do seu corpo. Naquele momento, ainda não tinha palavras para descrever o vazio que lhe corroía por dentro - hoje, chamar-lhe-íamos crise depressiva.

Sabia-se apenas que Teresa estava muito doente. E D. Alonso mandou buscá-la para que se restabelecesse em casa.

 

Os navios queimados

Pode ser que Teresa tenha sentido algum alívio ao entrar na liteira que fora buscá-la ao convento. Mas a volta para casa representou um choque. Por entre a cortina nublada da depressão, percebeu que a sua vida antiga se tinha desmoronado. Fernando havia partido para o Peru. Maria casara-se. Rodrigo, seu irmão adorado, mal pôde dar-lhe atenção, completamente envolvido com os preparativos da sua própria viagem. Também partiria numa expedição ao Novo Mundo em companhia de Francisco Pizarro. Os primos acompanhá-lo-iam - inclusive Pedro, aquele que imaginara ser seu cavaleiro. Ao contrário do que ocorria nos romances, em vez de libertá-la da prisão do convento, de raptá-la e concretizar o sonho da amada absoluta, Pedro vestiu a reluzente armadura e embarcou na caravela que o levaria na direção oposta.

Tão pouco encontrou alívio na companhia de D. Alonso, cada vez mais preocupado com o rumo dos negócios e com a iminente quebra financeira da família. Não havia mais o clima ameno das agradáveis horas de leitura na biblioteca.

Por outro lado, tanto quanto Teresa, os seus irmãos menores queriam ressuscitar os bons momentos passados. Mas para isso precisavam dela. Queriam que risse, que brincasse, que passasse pela casa como uma ventania alegre. Nada que ela pudesse fazer no momento. Pelo contrário. A insistência dos pequenos deixavam-na esgotada.

Em vez de se restabelecer, a sua saúde piorou.

Sem saber mais o que fazer, D. Alonso resolveu enviá-la para a casa de Maria, a irmã mais velha que, casada, morava no campo.

 

Horizontes

A decisão foi acertada. Maria mudara-se para Castellanos de la Canada, uma aldeia de apenas dez casas e uma igrejinha de pedra. De modo geral, o lugar lembrava Gotarrendura. Os mesmos campos e amplos horizontes, a mesma luz abundante, os rebanhos e o som de seus sinos, as colinas e bosques, o forte cheiro das plantas aromáticas que invadia até mesmo o quarto de dormir.

Martin Guzman, seu cunhado, pouco parava em casa, o que deixava tempo para que as irmãs dessem longos passeios pelas redondezas. Sempre tranquila e silenciosa, Maria levava Teresa à igrejinha e, depois, deixava-a mergulhada em seus pensamentos à beira de um riacho cristalino que corria ao pé da casa.

Dispensada da rígida disciplina do convento, longe da sufocante atenção da orientadora espiritual e daquele Deus terrível que parecia só esperar o melhor momento para despachá-la para o Inferno, Teresa foi melhorando.

No campo, encontrava um outro Deus - o criador. A entidade suprema responsável pelo cheiro da terra molhada, pelo aroma das plantas, pela explosão de cores sob as mais diversas incidências de luz, pela inebriante variedade de criaturas, pela festa musical dos pássaros ao entardecer.

Sem a obrigação de recitar orações a cada minuto do dia, podia dedicar-se, simplesmente, à contemplação da obra divina. Depois de um curto período, sentia-se quase bem, quase feliz, embora a decisão sobre seu futuro ainda a pressionasse. Era hora de retornar à casa paterna.

 

Os argumentos de tio Pedro

A caminho de Ávila, D. Alonso decidiu deixar Teresa por alguns dias na casa de seu irmão, Pedro Sánchez y Cepeda.

Foi uma brusca mudança de ambiente. A casa de Pedro, em Hortigosa, assemelhava-se muito a um convento. Menos pela decoração - austera, mas confortável -, e mais pelo clima de intensa religiosidade que se desprendia dali.

Pedro vivia recluso, em companhia apenas dos seus livros - todos religiosos. Viúvo, já idoso, estava a preparar-se para abandonar tudo e entrar para um mosteiro, onde aguardaria a chamada de Deus. Passava o dia entretido com orações, com a leitura das obras dos Pais da Igreja e tratados místicos contemporâneos.

Não era o melhor ambiente para recuperar a vivacidade e a inquietude de uma moça de 18 anos. As prolongadas leituras e conversas com o tio tinham um efeito terrível sobre Teresa, que mal convalescia de uma doença que ela própria não compreendia. O facto é que a depressão - esse mal informe e desestabilizador - a fizera tomar contato prematuro com a ideia da própria finitude. E a religiosidade do tio só fazia acentuar as suas apreensões.

Pedro, no entanto, tentava mostrar-lhe um outro caminho. Queria partilhar com a sobrinha a sua paixão pela mística contemporânea espanhola. Para não deixar que a sobrinha ficasse entregue aos seus próprios devaneios, pedia-lhe que lesse em voz alta os seus autores preferidos.

A princípio, a actividade entediava-a profundamente. Só fazia a vontade do tio porque não conseguia deixar escapar uma oportunidade de mostrar-se prestativa e adorável. Por isso, disfarçava o sono provocado pela leitura e esforçava-se para manter longas conversas a respeito dos textos.

Embora enfadonhas, as leituras faziam o seu trabalho na alma de Teresa. Sentia-se mais forte, sabia que precisava de tomar uma decisão definitiva. Na falta de desejo ou vocação - fosse para o casamento, fosse para a vida conventual - necessitava de argumentos fortes que a ajudassem a escolher um rumo na vida.

Tentava concentrar-se nas epístolas de São Jerónimo:

«Irmão, que fazes no mundo, tu que és maior que o mundo?»

Prosseguia na leitura:

«Que temes? A pobreza? - Jesus Cristo declarou feliz o pobre. O trabalho? - Que atleta é coroado de louros sem lutar? Amedronta-te comprimir contra a terra um corpo extenuado pelo jejum? Junto a ti, o Senhor repousará.»

Mas não, não era nada disso que Teresa temia. Não a assustavam a fome, o cansaço, o trabalho, nem mesmo a pobreza. Aos sete anos já estava disposta a abandonar tudo para conquistar a glória eterna. Ainda sentia em si a coragem necessária para enfrentar o martírio.

O que a apavorava era a imolação contínua, sem tréguas, perene, da vida conventual. Eram os dias sempre iguais, as fisionomias mais ocas do que iluminadas, a repetição interminável de um quotidiano sem sentido.

Tornar-se monja era decisão para o resto da vida - o equivalente terreno ao «para sempre» da sua infância. Naquele momento, o sentido de «perpétuo» pesava tanto quanto o de «eterno».

«És fraco de mais, irmão, se queres gozar aqui em baixo com o século, para em seguida reinar com Jesus Cristo», parecia replicar São Jerónimo.

E o velho Pedro reforçava argumentos. Lia com a sobrinha as epístolas do santo a Paulo, Eustáquio e Heliodoro, os tratados de moral de São Gregório, inflamava-se, discutia, convencia.

Mais tarde, Teresa escreveria em O Livro da Vida:

Passei a pensar e a temer que talvez fosse para o Inferno caso morresse naquele momento. Apesar da minha vontade de ser monja não ser absoluta, percebi ser essa a condição melhor e mais segura; e, assim, aos poucos, decidi forçar-me a abraçá-la.

 

A fuga

De volta à casa paterna, Teresa precisava de fortalecer a sua decisão - o que equivale a dizer: falar. Para dentro e para fora. Necessitava de argumentos e de interlocutores. Infelizmente, Rodrigo não estava mais ao seu alcance. Nada no mundo o convenceria a passar horas falando de Deus. O seu negócio, agora, era a espada.

Mas havia António, cinco anos mais moço do que ela e totalmente fascinado pelo encanto da irmã. Exaltada, Teresa dizia-lhe tudo o que queria dizer para si. Recitava São Jerónimo, repetia mil vezes que já não era desse mundo.

Mais tarde, relataria:

Passei três meses nessa batalha, lutando comigo com o seguinte raciocínio: os trabalhos e sacrifícios de ser monja não poderiam ser maiores do que os do purgatório, e eu bem que merecia os do Inferno. Por isso, não seria demais viver como se estivesse no Purgatório, se depois fosse directamente para o Céu. E assim me decidi.

Não foi fácil, e nem era uma escolha muito firme. A cabeça dizia-lhe uma coisa, o corpo outra. Tinha febres inexplicáveis, desmaios e uma fraqueza física constante.

Justamente por saber que a sua decisão estava longe de se mostrar inabalável, a reação de D. Alonso apanhou Teresa de surpresa. Jamais imaginara que o pai se pudesse opor tão tenazmente aos seus planos. Se precisava de testar a sua vontade, não poderia haver oportunidade mais favorável.

Teresa respirou fundo e repetiu os seus melhores argumentos, aqueles que ela mesma dizia tantas vezes. Tudo em vão. Nem o tio Pedro, nem os amigos do meio eclesiástico, nem mesmo o seu padrinho conseguiram demover o velho Alonso a liberar a filha para Deus.

Uma coisa era passar uma temporada no convento aprimorando a educação religiosa, aquietando a vivacidade excessiva e acalmando as más-línguas enquanto aguardava por um bom casamento. Outra, bem diferente, era trancar-se num mosteiro. D. Alonso foi categórico: «Só depois da minha morte.» Mais uma vez, foi São Jerónimo quem deu forças a Teresa:

Que fazeis sob o tecto paterno, soldados cheios de moleza? Ainda que vossa mãe vos suplique, com os cabelos em desalinho e às roupas rasgadas, ainda que o vosso próprio pai se deite à porta, passai sobre o corpo de vosso pai. Nesse caso, a piedade filial consiste apenas em não ter piedade.

Decidiu fugir e, em 2 de Novembro de 1535, repetiu a cena da sua infância, esgueirando-se de casa sem que ninguém percebesse. Agora, não era mais Rodrigo quem a acompanhava, e sim António, que pediria o hábito dominicano no Colégio de São Tomás. Não buscava mais a morte rápida em Rodes, mas o lento esmaecer da vida no mosteiro carmelita da Encarnação. Ao sentir o vento gelado da madrugada no seu rosto, soube que agora era para sempre. E «para sempre» era uma expressão que doía.

Lembro-me bem, e creio que com razão, que o meu sofrimento ao deixar a casa paterna não foi menor do que a dor da morte. Tinha a impressão de que os meus ossos se afastavam de mim.

 

Entre as carmelitas

Nada podia ser mais diferente do convento de Nossa Senhora das Graças do que o mosteiro carmelita da Nossa Senhora da Encarnação. Assim que atravessou os portões, Teresa foi recebida por sua amiga, Juana Juárez, e pela madre superiora, D. Maria de Aguila, não por acaso sua madrinha.

E não era apenas pelo acolhimento carinhoso, quase cúmplice. O ambiente era muito especial. Nenhuma monja precisava de fazer voto de clausura - a prisão invisível que a fecharia para sempre dentro das muralhas de Deus e a isolaria do mundo. Tanto noviças quanto freiras podiam sair, visitar parentes e amigos, e até mesmo passar alguns dias em casa deles - desde que acompanhadas por uma irmã de confiança, o que parecia não faltar no mosteiro.

Da mesma maneira, não havia muitas restrições a visitas. O parlatório era dos mais animados. E não só pelo clima informal das conversas, tantas vezes acompanhadas de risadas estridentes. Era possível cantar, formar grupos, recitar poemas. Tratava-se de um precioso espaço de intersecção com o mundo, um lugar de intenso convívio, onde circulavam informações, afectos e presentes - como roupas, jóias e comida.

Nem tudo, no entanto, era tão público e partilhado. O mosteiro reproduzia, sem maiores censuras, a estrutura social da época. Quem tivesse dinheiro e origem nobre poderia transportar para ali o seu modo de vida. Celas amplas e confortáveis - verdadeiros apartamentos que chegavam a incluir uma cozinha -, decoradas com objectos pessoais, a criadagem, até escravas podiam ser levadas para o convento. As monjas mais ricas não era proibido sequer que providenciassem a sua própria comida, sem falar na falta de regras que restringissem o uso de tecidos finos, rendas e jóias. Se o que Teresa procurava era um refúgio que lhe garantisse o reino dos céus e, ao mesmo tempo, lhe permitisse continuar a viver de acordo com os valores que até então tinha cultivado, o mosteiro da Encarnação não poderia ser mais adequado.

Havia um único problema a ser contornado. A resistência de D. Alonso. D. Maria de Aguila estava encantada por ter a afilhada entre as noviças. Mas não abria mão do consentimento paterno para acolhê-la sem reservas. Se havia uma coisa que a madre superiora não queria era meter-se em encrencas com os nobres da região.

 

O preço do noviciado

Foi um D. Alonso destruído que chegou ao mosteiro da Encarnação. A fuga da filha predilecta mostrara-lhe que a vida jamais voltaria a ser a mesma. Não foi difícil reconduzir António para casa. Mas Teresa teimou. Queria tornar-se monja carmelita. Não voltaria atrás, nem queria ouvir falar noutro convento. Já tinha escolhido o seu purgatório particular e era aquele mesmo. Só restou ao pai tomar as providências necessárias para o dote e a tomada do hábito - tão onerosos quanto um casamento e sem a garantia de uma vida terrena tão confortável do ponto de vista material.

Além de custear o enxoval completo de uma religiosa - que incluía roupas, móveis para a cela, livros e outros bens -, D. Alonso comprometeu-se, em cartório, a fornecer anualmente 25 fanegas (duas toneladas e meia nas medidas da época) de trigo e cevada, ou 200 ducados de ouro. Era uma despesa considerável, principalmente para um nobre falido. No entanto, mais uma vez, ele não conseguira contrariar a sua Teresita.

Se era para vê-la feliz, paciência. E, de facto, ao que tudo indica, Teresa adaptou-se muito bem às regras das carmelitas mitigadas. Era popular no locutório, estudava com afinco, rezava o suficiente para garantir o seu lugar no reino dos céus, e começava a achar que uma confortável vida eterna não era, enfim, um objectivo tão inatingível. Livre de maiores pressões, voltou a exercer o seu fascínio e poder de sedução, agora iluminados por uma leve aura de santidade. Tinha a palavra fácil, estava aliviada, quase feliz. Sentia que o Senhor aprovava a sua nova vida.

 

Uma ordem em conflito

Nem tudo, no entanto, era tão simples, nem tão fácil. Teresa havia ingressado em uma ordem antiga, cuja história acumulava tantas glórias quanto problemas.

Em hebraico, o nome Carmelo queria dizer jardim. Designava o monte, de aproximadamente 600 metros de altura, localizado na Palestina, no Norte do actual Estado de Israel e próximo ao Mediterrâneo.

Foi ali que o profeta Elias desafiou os sacerdotes de Baal e provou que existia apenas um Deus. Também foi no monte Carmelo que Sunamita procurou ajuda do profeta Eliseu para ressuscitar o seu filho. Segundo a tradição, os dois profetas guiaram os seus discípulos até o monte, em cujas encostas se dedicavam a orar e meditar. Escavações arqueológicas mostram que, desde o século III, cristãos gregos buscavam no monte o local ideal para se estabelecerem como eremitas.

A palavra eremita vem de eremus, que quer dizer deserto. A vida solitária no deserto teve o seu início no século III, com São Paulo de Tebas (229-342) e Santo Antão (250-356). Como esses cristãos viviam só para Deus, longe do mundo, passaram a ser chamados monges - do grego monachós (monos quer dizer só) -, aqueles que estão sós, que vivem só para Deus. Essa origem da vida monástica fará com que o tema da fuga mundi - a renúncia ao mundo social - marque profundamente a concepção cristã de vida religiosa.

Ao longo dos séculos, o fascínio da solidão como meio de elevação espiritual atraiu todo o tipo de eremitas. Em 1177, um monge chamado Focas relatou ter encontrado no monte Carmelo um grupo de dez ex-cruzados, reunidos em torno de um velho calabrês, Américo de Malafaida, que afirmava ter tido visões do profeta Elias. Tinham construído uma capela, uma torre e uma cerca para isolá-los do mundo e ali viviam em estado de extrema pobreza e contemplação. Em 1205, Santo Alberto, patriarca de Jerusalém, deu ao grupo uma regra de vida com o ideal do Carmelo: trabalho, meditação das Sagradas Escrituras e vida contemplativa. Assim, nasceu a ordem dos carmelitas, inspirada no profeta Elias.

Eram regras muito duras, baseadas no isolamento - o longe deveria permanecer dia e noite na sua cela meditando na Lei do Senhor e fortalecendo o espírito com pensamentos santos -, em jejuns e severas mortificações do corpo.

Diz a tradição que, por ocasião da sangrenta invasão do monte pelos sarracenos, o grupo começou a cantar a Salve-Rainha. Naquele momento, a própria Virgem do Carmo apareceu e prometeu-lhes que seria sua Estrela do Mar. Expulsos do seu local de origem, os carmelitas espalharam-se pela Europa, levando consigo a sua regra de silêncio e meditação.

Desde então, surgiram inúmeras casas de terceiros do Carmelo. Eram comunidades leigas, que reuniam católicos decididos a praticar um estado de oração contínua em total solidão, mesmo que acompanhados de outros que compartilhavam os mesmos ideais.

Esses grupos leigos constituíam uma permanente fonte de preocupação para a Igreja. Ao longo dos séculos precedentes, diversos deles tinham sido destruídos pela Inquisição. Extremamente místicos, febris na devoção, incansáveis na busca de um caminho directo de comunicação com Deus, colocavam-se fora do alcance da autoridade eclesiástica, não raro a questionavam e, muitas vezes, arrastavam numerosos seguidores. Por toda a Europa proliferavam os iluminados, gente cujas vivências místicas e religiosas a Igreja não só não legitimava como condenava abertamente. Muitos deles faziam interpretações livres das Sagradas Escrituras - o que, aos olhos da Igreja, representava heresia. Além do mais, os místicos acreditavam no extraordinário poder da oração em detrimento da estrita observância das regras ditadas por Roma. Havia um gosto de liberdade na experiência individual, uma possibilidade de experimentação interior que parecia - e era - muito ameaçadora para o poder eclesiástico. A onda de misticismo que tomou a Espanha entre o século XV e o XVI coalhou as suas estradas e montanhas de eremitas e alumbrados. Não tardou que atraíssem os olhares sempre vigilantes da Inquisição.

Em 1467, uma dessas casas foi criada em Ávila. Era um beatorio, uma casa de beatas - mulheres que optaram pelo enclausuramento sem, contudo, aderir a nenhuma ordem religiosa controlada pela Igreja. Em número de 14, as mulheres da casa de Ávila veneravam a Virgem do Carmo, obedeciam às regras do Carmelo e inspiravam-se no profeta Elias.

Temerosa de ter a pequena comunidade confundida com um desses grupos marginais, uma das beatas, D. Beatriz Guiera, convenceu as companheiras a tornarem-se autênticas religiosas. Aos 26 anos, Beatriz tornou-se superiora do agora convento - devidamente subordinado à ordem carmelita. Comprou o terreno antes pertencente a um cemitério judaico, fora dos muros da cidade, e ali construiu um prédio de acomodações tão modestas que não poderiam afastar as religiosas dos seus votos de pobreza e simplicidade extrema. As paredes eram forradas apenas com taipa, o telhado não tinha forro, e as monjas viviam do pão que recebiam do mosteiro. No Inverno, nevava dentro do coro; no Verão, o sol escaldante queimava a pele das freiras. Tão duras provações levaram as monjas ali sedeadas a serem chamadas pelo povo de «as pobrezinhas da Encarnação».

A despeito das severíssimas condições de vida, a nova comunidade não parava de atrair candidatas ao noviciado. Era o auge de um ciclo do catolicismo penitente que então vigorava na Espanha. Um Deus terrível parecia pedir a todos que se punissem sem complacência. Sofrer agora era um dos caminhos garantidos para a conquista da glória eterna ao lado do Pai. Quanto mais se martirizassem, mais santificadas seriam.

Como resultado, em poucos anos, as 14 beatas aumentaram para 150. Não havia pão para aquela multidão. Nem espaço físico. O convento estava ameaçado de entrar em colapso.

Foi quando uma nobre rica e muito religiosa, Elvira de Medina, decidiu construir o mosteiro. Inaugurado em 4 de Abril de 1515 - mesma data do baptismo de Teresa -, foi chamado de Mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação.

Não tinha sido, no entanto, apenas uma mudança de prédio. Entre a prática religiosa espartana do primeiro convento e o festivo ambiente encontrado por Teresa em 1535, muita coisa se havia transformado na ordem carmelita.

Na realidade, as principais mudanças eram bem anteriores à criação do beatório de Ávila. Em 1247, o Papa Inocêncio IV já havia mitigado o excessivo rigor da regra carmelita original, concedendo-lhe, inclusive, o privilégio de ser incluída entre as ordens mendicantes ao lado dos franciscanos e dominicanos. De acordo com a bula Quae Honorem, os religiosos passavam a poder residir em cidades e a fundar mosteiros fora do deserto, alimentar-se num refeitório comunitário e rezar em grupo o Ofício Divino. Além disso, a abstinência de carne foi suavizada e o tempo obrigatório de silêncio consideravelmente reduzido. Em 1432, outro Papa, Eugênio IV, amenizou os jejuns, acabou com a abstinência de carne e com o encerramento dos monges nas celas.

Mas havia outros motivos, mais impostos pelas condições socioeconómicas do que pelas bulas papais, para a liberalização dos mosteiros carmelitas. De maneira geral, a ordem estava decadente. Sem as duras restrições da regra original, os conventos abriram-se para acolher moças pobres e sem dote - que eram transformadas em criadas, mas obrigadas a fazer os mesmos votos de pobreza, castidade e obediência das demais. Levadas pelos pais para os conventos - muitas vezes ainda crianças ou mocinhas e sem nenhuma vocação religiosa -, condenadas a uma vida monacal subalterna, essas moças traziam para dentro do mosteiro uma imensa carga de frustração e animosidade. As suas pequenas conquistas eram preservadas a ferro e fogo; a menor possibilidade de perda, motivo para disputas encarniçadas.

Se havia entre elas algumas com verdadeira vocação - e havia -, para a maioria a vida monástica era apenas um meio de sobrevivência - e o único possível.

Não era apenas a população de conversas e escravas que circulava ruidosamente pelos corredores dos conventos. A maioria deles aceitava também crianças. Acreditava-se que, se fossem educadas desde a mais tenra idade longe do mundo e de suas tentações, as meninas se tornariam perfeitamente adaptadas à vida monástica. Se, por um lado, essa era uma maneira de criar irmãs conversas mais dóceis e obedientes, também consistia numa eficiente maneira de garantir a política do poder local. Não era incomum que a superiora trouxesse sobrinhas e parentas - algumas escolhidas ainda no berço - para dentro dos mosteiros. Era uma das formas de garantir a sucessão. Educada especialmente para dirigir o estabelecimento, a menina não demorava a receber o título de subprioresa. Dessa forma, os grandes conventos eram totalmente controlados pelas poderosas famílias locais.

Tantas e tamanhas contradições não eram exclusivas da ordem carmelita. Mas ela não estava imune ao seu tempo.

No monastério da Encarnação, como em tantos outros, a busca da transcendência deveria dar-se num ambiente pleno de intrigas, ameaças e disputas sem fim.

Nos primeiros tempos, encantada demais por ter encontrado uma saída para o seu futuro, Teresa só percebeu o clima de amena religiosidade que parecia reinar no local. Mas os dias passam. E os problemas não se escondem por muito tempo.

 

Determinação, desejo e paixão

Para que se compreenda o rumo tomado por Teresa a partir da sua entrada no mosteiro da Encarnação é preciso resgatar uma palavra que já fazia parte dos arroubos da sua infância: determinação.

Aos sete anos, a sua noção de força de vontade chegava a ser um pouco cómica - bastaria um «pouquinho de determinação» para caminhar de Ávila até Rodes, tornar-se mártir, resistir aos suplícios, ganhar uma basílica com seu nome e o reino dos céus para sempre. Com o passar do tempo, no entanto, Teresa descobriu que, de facto, a palavra seria a pedra fundamental de seu trajecto.

Embora tenha sido totalmente impregnada pelo clima orgulhoso e cavalheiresco de Ávila - cujo lema era Antes quebrar do que torcer -, a vontade de Teresa assemelhava-se mais à força irresistível da água do que à da lança. Havia alguma coisa torrencial dentro de si que precisava fluir. Assim que encontrava um obstáculo, desviava-se e prosseguia sem jamais se deter, arrastando os que estavam à sua volta como um rio caudaloso.

Para Teresa, a verdadeira decisão vem de dentro e por isso é indestrutível. Da mesma maneira, determinação não é apenas ter disciplina para cumprir o que quer que seja. É a construção do caminho por onde passará o desejo.

 

O noviciado da vontade

Teresa decidira tornar-se monja e estava determinada a fazê-lo. O facto de ter optado por um convento mais liberal não significava que estivesse de brincadeira. Havia ali alguma coisa muito nova, muito desconhecida, que a desafiava.

A falta de vocação ainda a incomodava. Estava muito consciente de que escolhera uma espécie de casamento de conveniência com Jesus. Agora, queria aprender a amá-lo. Teria uma longa luta a travar contra si própria e estava disposta a enfrentá-la.

Marcou para 2 de Novembro - Dia de Finados - a cerimónia na qual tomaria o véu de noviça. Não era uma escolha aleatória.

Naquela manhã, os sinos da cidade dobravam pelos mortos. O primeiro canto que ecoou pela capela foi o Requiem. Depois de ajoelhar-se diante dos membros da comunidade e receber o seu abraço de boas-vindas, Teresa respondeu ao longo questionário feito pelo padre, fez votos de obediência, castidade e pobreza. Em seguida, a superiora despiu-a das suas roupas e entregou-lhe os trajes de noviça. Já vestida dessa maneira, dirigiu-se ao coro para fazer os votos simples da regra mitigada: silêncio, solidão e oração. Silêncio. Solidão. Oração. Havia quatro anos que tinha sido bruscamente arrancada da mais linda de todas as festas. Quatro anos que a jovem rica, adulada e sedutora rodopiava em torno da própria angústia. Os votos - silêncio, solidão, oração - soavam-lhe como uma condenação. Mas nada no seu rosto traía a profunda perturbação daquele momento. «Ninguém percebeu o combate que eu travava comigo mesma. Exteriormente, eu só transmitia uma inabalável firmeza», relataria anos mais tarde.

Paradoxalmente, sentia também um alívio imenso.

Como se a sua alma, subitamente, se esvaziasse. Não conteve as lágrimas, o que foi prontamente observado por algumas irmãs mais maldosas. No entanto, foi no meio do choro e do alívio que sentiu ter aberto, de facto, um caminho. Depois dos anos de mudo desespero, sentia-se agora invadida por um novo sentimento que, à falta de palavra melhor, chamou «ternura». E começava a gostar desse sentimento.

 

O noviciado e a paz do Demónio

O mais extraordinário na obra que Teresa viria a criar nos anos seguintes é que ela será totalmente baseada na sua experiência. Serão os seus estados de espírito, dificuldades, angústias e luta interior a fonte de sua criação. E não lhe faltou material para tanto.

As terríveis provações do seu ano de noviciado transformar-se-ão em páginas de aconselhamento para as jovens monjas e para as orientadoras espirituais dos 18 conventos que fundará.

Como noviça, Teresa era um desastre. Não sabia rezar, não conhecia as músicas cantadas no coro, errava a maioria, atrapalhava-se com os rituais. Além de orgulhosa demais para perguntar, não podia contar com a ajuda espontânea da mestra das noviças. Embora a função dessa religiosa fosse a de orientar as recém-chegadas, nada indica que exercesse esse papel com um mínimo de atenção.

Fosse menos indiferente, teria logo percebido que Teresa estava perdida. Fosse mais sábia, adivinharia que, com o seu temperamento, a jovem candidata não suportaria errar tanto e tão publicamente.

Humilhada, a noviça observava as monjas mais experientes. Como funcionárias acomodadas de uma repartição celeste, dedicavam-se a longos períodos de oração e traziam um semblante sempre sereno. Logo percebeu, no entanto, que, por detrás da sua aparência apaziguada e satisfeita, a maior parte delas era capaz de cometer pequenos delitos. Como conseguiam manter a consciência tranquila se, no íntimo, sabiam que trapaceavam?

E como seria possível não saber? Uma religiosa não era alguém devotado a Deus? O Senhor não era omnipresente, omnipotente? Seria possível esconder alguma coisa dele?

Teresa impressionava-se. A quem aquelas monjas de aparência tão serena acreditavam enganar? Não a ela, certamente. Acaba de descobrir uma nova vida e pretende segui-la a seu modo: intensamente. É altiva, orgulhosa,

Vaidosa, exagerada - mas sincera. Irrita-se com os seus próprios erros, por vezes acaba sucumbindo a acessos de ira, chega a ofender algumas das irmãs, arrepende-se, chora, exige de si e dos outros. Pela primeira vez na vida, sente-se não a primeira, mas a última. Não a mais inteligente, mas a mais desajeitada. Seu nome, rapidamente, começa a fazer parte do burburinho dos corredores. Criadas, conversas e irmãs maledicentes espalham histórias a seu respeito. Afinal, não era todo dia que aparecia uma noviça extraordinariamente bonita, rica, culta... e tão atrapalhada. A inveja reinante no local transformava cada pequeno deslize de Teresa em assunto do dia.

Às vezes, parecia que tinha caído não no purgatório, mas no Inferno.

 

Em busca da santidade

Nos momentos mais duros, Teresa recorria a lembranças da infância para renovar forças. No fundo da sua memória, ainda existia um pequeno eremitério feito com pedras soltas, que nunca paravam quietas no lugar. Foi ali no jardim da Casa da Moeda, tentando transformar pilhas de pedras em gruta, que acalentou as primeiras ideias a respeito da santidade.

Pois agora a chance estava ali, bem à sua frente. Aos vinte anos, decidiu seguir o caminho da santidade. Nada mais convidativo num momento em que o mundo nos parece rejeitar.

É preciso que não se confunda a busca da santidade - um conjunto de atitudes que visam ligar estreitamente a alma a Deus - com o reconhecimento oficial da santidade - um processo político-religioso levado a cabo pela Igreja. Nada indica que Teresa estivesse almejando a canonização. Queria apenas tornar sua vida santa.

 

Tornar-se melhor

O caminho que leva à santidade passa por uma profunda revisão de sentimentos e comportamentos. É preciso coragem, e uma extrema honestidade. Não por acaso, a Igreja facilitou a vida dos fiéis traçando alguns roteiros prévios, que são observados no ritual da confissão. Os dez mandamentos falam de atitudes, de acções concretas e verificáveis; os sete pecados capitais abrangem o universo das paixões humanas.

Para o bom católico, basta observar o que dizem os mandamentos, e não cometer os pecados capitais. No entanto, para quem pretende seguir o caminho da santidade, não pecar é pouco. É preciso atingir o extremo oposto.

Não é suficiente fugir da luxúria; é necessário ser casto até mesmo em pensamentos. Não é bastante evitar a ira; é preciso amar o próximo como a si mesmo. Não vale simplesmente resistir à gula; deve-se jejuar sempre que possível, e passar a desprezar na comida tudo o que evoque prazer. Não permitir que os olhos faísquem de cobiça? É pouco. O santo doa tudo o que é seu, faz voto de pobreza, nada mais possui e nem deseja possuir além da graça divina.

Matar em si tudo o que é mais humano é a essência da iluminação em muitas religiões. O trabalho começa de dentro, do fundo da alma. Teresa sabia disso. E estava plenamente consciente da árdua tarefa que teria pela frente. Mas como matar as paixões, logo ela que flamejava?

 

Com a cabeça coberta de cinzas

Não lhe foi difícil escolher por onde começar. Naquele exacto momento, a origem dos seus piores sofrimentos estava no orgulho. Como doía ser criticada por irmãs tão evidentemente inferiores a ela! Como era horrível ser motivo de escárnio até mesmo para as conversas!

Precisava de começar por ali. Pelo extremo oposto do orgulho.

Que, como se sabe, é o caminho da humilhação.

Teresa atirou-se à tarefa de humilhar-se com a mesma paixão que dedicava a tudo na vida. Era uma questão de determinação. Precisava deixar de ser orgulhosa. Paradoxalmente, havia uma boa carga de vaidade nos seus exercícios de humildade. Por paixão, para sentir-se reconhecida, para ser estimada, acabava exagerando.

Queria ser amada. Precisava de ser aceite. E acreditava estar a desenvolver as suas virtudes quando estava apenas perdida.

Boa parte das suas atitudes foi copiada de monjas que Teresa acreditava estarem num estágio mais elevado de espiritualidade. Caminhava sempre de olhos baixos, limpava os sapatos das irmãs. Assim como D. Teresa de Quezada - uma nobre que abriu mão de ter aposentos confortáveis para ficar no dormitório das mais pobres -, passou a desprezar a cama para dormir no chão do dormitório das conversas (embora mantivesse o seu apartamento), acostumou-se a acompanhar as mais idosas até à cama, carregando lamparinas. Nenhum tipo de serviço subalterno lhe parecia suficientemente árduo. Varria o chão, limpava banheiros, mantinha-se sempre em silêncio.

Num mosteiro conhecido pela rígida separação entre monjas pobres e ricas, o comportamento extravagante da noviça fez efeito. Embora não tenha calado as más-línguas, parte das irmãs começou a estimá-la.

Isso era coisa que Teresa conhecia bem. Intuía os caminhos da aceitação. Tinha boa vontade, buscava a aprovação dos outros com tamanha sede que acabava sendo amada. E os primeiros sucessos incentivaram-na a ir ainda mais longe.

Certa vez, surpreendeu tudo e todos. Entrou no refeitório de quatro, com a cabeça coberta de cinzas, carregando um cesto de pedras como se fosse uma mula. Para completar a cena, vinha puxada por um cabresto. Quem a trazia era uma irmã que Teresa tinha ofendido na véspera. Era a sua maneira de pedir desculpa.

E os exageros não paravam. Uma vez iniciada a viagem, Teresa não conseguia parar.

Ouviu falar de uma religiosa que sofria de uma doença tão terrível e repugnante que nenhuma irmã queria estar a seu lado na enfermaria. A pobre tinha a barriga coberta de úlceras, por onde saíam fezes e pus. Teresa não titubeou. Tomou a doente a seus cuidados e dedicou-se a alimentá-la e a limpar-lhe as feridas.

Mas ainda era pouco. Jejuava mais do que seria recomendável, açoitava-se com urtigas, recusava agasalhos e expunha-se a temperaturas baixas ou altas demais.

Com tudo isso somado à terrível pressão, acabou por adoecer.

E, daquela vez, não era só uma depressão. Desnutrida, exposta a todo tipo de bactérias contagiosas que pululavam pela enfermaria - numa época em que se desconheciam as mais elementares técnicas de desinfecção -, com a pele ferida pelas mortificações que se impunha, e enfraquecida pelos maus-tratos que se infligia, Teresa caiu de cama.

Ninguém sabia o que era aquilo. Violentas palpitações sacudiam o seu corpo, vómitos, desmaios e uma terrível fraqueza deixavam-na prostrada, dores terríveis pareciam trespassar-lhe o coração.

Nem por isso reduziu o empenho no caminho da mortificação. Indiferente, a mestra das noviças deixou-a errar da pior maneira possível: a que pode levar à morte.

 

Núpcias de sangue

Cada dia mais enfraquecida, Teresa preparou-se para a cerimónia dos seus votos perpétuos. Nem as febres nem as dores a impediriam de selar o compromisso definitivo.

Em 3 de Novembro de 1536, a religiosa que atravessou a capela em nada lembrava a jovem que ali entrara um ano antes. Não caminhava, flutuava, com os olhos em brasa. Uma palidez extrema, acentuada pela brancura da túnica e do véu de noviça que logo abandonaria, contrastava violentamente com o brilho das sedas, veludos e xantungues com que os nobres locais se cobriam.

Todos estavam ali, como para uma festa de casamento. E era. Teresa, enfim, subiria ao altar onde encontraria seu Amado Esposo.

E agora, seria para sempre.

Deixou que cortassem os seus longos cachos castanhos, vestiu os trajes monacais que o padre acabara de benzer e estremeceu quando a grade do coro se fechou com estrépito nas suas costas. Um frisson percorreu a plateia, como sempre acontecia quando o estrondo das grades anunciava mais uma moça subtraída ao mundo. Com a cabeça cingida por uma coroa de flores brancas, Teresa afastou-se, quase desfalecida, amparada por duas jovens irmãs.

Agora, era uma monja. Tinha acabado de aceitar Cristo como Esposo.

 

De mãos dadas

Ó filhas de Eva, sabei que vosso Esposo não tem as inclinações de Adão, e que com Ele não comereis a maçã da suavidade. Vosso Esposo é o Cristo Jesus. Se Lhe derdes vossa mão de esposa, um prego a unirá à Dele. É um esposo de sangue. Se quereis portanto que o Rei se enamore de vossa beldade, é de um vestido de sangue que vos deveis ornar. Se Ele se inclinar sobre o seio de sua esposa, só poderá feri-la.

A autora deste texto não é Teresa mas sim Maria de São José, que viria a ser sua discípula e superiora dos conventos fundados pela madre muitos anos mais tarde. Em

1536, ainda não tinha sido escrito.

No entanto, o trecho aplicava-se muito bem ao rito de passagem de Teresa - e talvez ao de tantas monjas anónimas. O Deus do século XVI tinha esse rosto. Era preciso que o bom católico sofresse, em vida, o que Seu Filho sofrera na cruz pela humanidade. Só assim estariam unidos na dor. Era necessária grande coragem para tomar por Esposo um marido celestial com tamanhas exigências.

Teria pensado seriamente nisso ao decidir abraçar a vida religiosa? Provavelmente não. É bom não esquecer que Teresa preferiu a liberalidade da Encarnação aos rigores do convento de Nossa Senhora das Graças.

Durante o ano de noviciado, tinha-se transformado. Começava a descobrir a força extraordinária que reside no abandono e no despojamento. Estava a perder o medo. Não temia mais ser criticada pelos corredores, a fome não a incomodava, a dor física não a assustava, o desconforto não a dobrava. Sobretudo, a morte parecia-lhe uma experiência desejável.

Muitos anos mais tarde, ao escrever o Caminho da Perfeição, afirmava que Deus costuma dar sofrimentos muito maiores aos contemplativos (como ela). Por isso, é «necessário que Sua Majestade lhes dê mantimentos; não água, mas vinho para que, embriagados, não percebam aquilo por que passam e possam suportá-lo». E depois, completava: «São poucos os contemplativos que eu não veja determinados a sofrer, porque a primeira coisa que Deus faz por eles, se forem fracos, é incutir-lhes ânimo e tirar-lhes o medo de padecer.»

Pois bem. Teresa estava embriagada. Tinha feito sozinha, sem nenhuma orientação, e da maneira mais confusa e perigosa possível, uma iniciação à vida contemplativa. Ainda não sabia disso. No momento, não sabia nada. Apenas percebia, de uma maneira ainda não completamente clara, que os padecimentos a conduziam a uma espécie de libertação. De acordo com o melhor espírito da época, levavam-na a Deus.

E é a Deus que Teresa atribui sua doença. D. Alonso envia os melhores médicos do reino ao mosteiro da Encarnação. Nenhum consegue diagnosticar o mal que a aflige. Os tratamentos não conseguem sequer amenizar os sintomas que a deixam prostrada, quase desfalecida a maior parte do tempo.

Para ela, tudo parece muito claro. O Senhor envia-lhe os tormentos físicos, como um favor, para aproximá-la Dele. Muitos biógrafos, sobretudo os religiosos, partilham esse ponto de vista. A longa doença da jovem monja seria uma maneira de mostrar que a sua alma é muito maior do que o seu corpo, que precisa libertar-se do jugo da carne. Os estudiosos da linha psicanalítica interpretam os sintomas de Teresa como manifestações de histeria, que estaria somatizando os piores fantasmas.

Há, no entanto, uma outra hipótese a ser considerada. A de que estivesse, de facto, gravemente enferma. A sua saúde, já debilitada pelas penitências exageradas que se impunha, não teria resistido ao contacto com as doenças infecciosas que grassavam na enfermaria, onde Teresa passara um longo período.

Os sintomas que apresentará nos anos seguintes são muito semelhantes ao que hoje conhecemos como febre reumática, uma complicação tardia de infecções causadas por estreptococos. Embora inicialmente possa passar quase despercebida - pode assemelhar-se a uma gripe forte associada à amigdalite -, a sua evolução posterior pode acometer o coração, as articulações e o sistema nervoso central.

 

Sob o signo da dor

A hipótese de Teresa ter sido vítima de uma séria doença infecciosa choca com a visão psicanalítica, mas não é incompatível com a religiosa. Embora não seja possível provar que tal sofrimento lhe tenha sido enviado por Deus, o facto de se ter iniciado na vida mística sob o signo da dor, e mergulhada num estado alterado de consciência - provocado pela febre, pela desnutrição e pela extrema fragilidade física -, seria determinante para o caminho que a sua espiritualidade tomaria dali em diante.

Apenas a título de exercício intelectual, poderíamos perguntar: se Teresa não tivesse passado por tamanhas dificuldades, ter-se-ia tornado contemplativa? Teria conseguido levantar o véu que separa vida e morte para flutuar num estado intermediário que lhe permitisse ampliar tão extraordinariamente a sua percepção?

Místicos de todos os credos martirizam voluntariamente o corpo em busca dessa fronteira. Estão vivos, mas as suas almas - não por acaso tantas vezes chamada de «libertada»

- conseguem tocar com a ponta dos dedos uma sabedoria que ultrapassa toda possibilidade de explicação. É o limite da vida. O limite do mistério. Como uma prolongada vigília na qual corpo e alma adquirem o mesmo peso, e fome e sede passam a ser tão relevantes quanto a necessidade de transcendência.

 

Tecidos finos para um corpo transparente

Teresa já se encontrava próxima desse estado quando a vestiram para sair. Como a regra mitigada das carmelitas se adaptava ao modo de vida das jovens ricas, a indumentária da comunidade combinava com a sua posição social. Delicados tecidos formavam a túnica e o escapulário. A touca, finamente plissada, servia de passe-partout para a moldura do rosto: um véu negro forrado de musselina branca que destacava o brilho da pele clara. No Inverno, o conjunto era completado por uma longa capa de lã branca, que só deixava de fora os pés, calçados com botinhas de couro de salto alto.

Ainda de acordo com a regra mitigada, a monja poderia passar períodos fora do mosteiro, desde que autorizada pela superiora e acompanhada por uma irmã.

Assim, numa fria manhã de Novembro de 1536, Teresa saiu da Encarnação com sua amiga, Juana Juárez. Sob o sol frio da manhã, o traje carmelita realçava a elegância de Juana, mas boiava sobre os ossos de Teresa, muitos quilos mais magra do que o habitual. O véu e seu forro de musselina não destacavam a luminosidade da sua pele, mas a palidez do seu rosto descarnado, de onde saltava um par de olhos febris. Os pés, arqueados pelos saltos da botina, não ajudavam, tropeçavam, e Teresa teve de ser praticamente carregada até os braços de D. Alonso, que aguardava para conduzir as monjas à casa da Plazuela de São Domingos.

Pela primeira vez, Teresa sentiu-se deselegante. As roupas eram finas, mas caíam-lhe mal. No entanto, deu pouca importância a isso. Naquele momento, o que contava mesmo era chegar rapidamente à casa paterna e deitar-se.

 

Novamente no campo

A estada em casa de D. Alonso seria curta. Desesperado em busca de cura para a sua Teresita, o pai planeava levá-la a Becedas, onde vivia uma famosa curandeira.

Não deve ter sido uma decisão fácil. Como tantos filhos de conversos, D. Alonso tornara-se um católico sincero e fervoroso - e as curandeiras eram muito malvistas pela Igreja, além de serem abertamente perseguidas pela Inquisição.

Pode ter sido por isso, pode ter sido para evitar uma penosa viagem em pleno Inverno, ou talvez o motivo tenha sido a vaga esperança de que o ar do campo fizesse um milagre o certo é que D. Alonso decidiu que Teresa passaria uma temporada em casa da irmã, Maria, antes de seguir para Becedas. Se até à Primavera ela não melhorasse, iriam ver a curandeira.

A viagem até Castellanos de la Canada foi cercada de cuidados. Teresa seguiu na liteira que conduziu Beatriz a Gotarrendura em sua derradeira viagem. Era a mesma liteira que encontramos no inventário feito por D. Alonso em 1509, um veículo para senhoras, muito adornado e forrado de tecido da melhor qualidade. Atrás da liteira, vinha D. Alonso a cavalo, e Juana, montada sobre uma mula coberta com tecido de losangos. A despeito da falência financeira, D. Alonso conservava o apreço pelo conforto e pelas aparências.

Para poupar a doente a um trajeto que, mesmo curto, lhe era penoso, decidiram parar em casa de tio Pedro. Mais uma vez, Teresa viu-se envolta no clima austero e sereno da casa de Hortigosa.

E, mais uma vez, sairia da biblioteca do tio uma obra destinada a mudar sua vida.

 

Um Deus mais caloroso

Ao contrário da biblioteca de D. Alonso - muito bem servida para um homem da sua época, mas limitada às obras religiosas clássicas -, a de D. Pedro era repleta de autores contemporâneos. Nas suas estantes podiam ser encontradas as questões que suscitavam os mais acalorados debates no interior da Igreja.

Pedro interessava-se, particularmente, pelos místicos, por aqueles pensadores de alma incendiada e prática contemplativa, que pareciam conseguir um contacto tão próximo com Deus ainda em vida.

Não eram obras populares. Vistos com muitas suspeitas pela Igreja oficial - e muitos deles viriam a ser proibidos pelo Index de 1559 -, esses livros traziam implícita uma visão da divindade bem diferente daquela que os padres costumavam apregoar nos púlpitos.

O Deus que emergia da pena dos autores preferidos de D. Pedro era uma figura ameaçadora para os poderes eclesiásticos hegemónicos da época. Mas extraordinariamente doce para Seus filhos. Em oposição ao Pai vingativo e cruel que crepitava acima das fogueiras e dos autos-de-fé comandados por Torquemada, o Deus dos místicos era amoroso, próximo, caloroso e muito acessível àqueles que se dispusessem a abrir as almas com fervorosa disposição.

De maneiras diferentes - mas com muitos pontos em comum -, era esse o Deus a quem se dirigiam os alumbrados, os reformistas protestantes, as beatas, os loucos, mas também parte significativa dos religiosos e dos teólogos da época. Um Deus a quem se podia falar directamente, sem a intermediação de um padre, uma fonte de sabedoria e compaixão capaz de ultrapassar qualquer obstáculo para chegar até quem o buscasse com fé.

De uma maneira geral, quem partilhava esse Deus amoroso era simplesmente posto à margem da sociedade, quando não perseguido e morto. Mas havia - sempre houve - correntes da própria Igreja que sustentavam, com sólidos argumentos teológicos e muita habilidade política, essa visão. Parte desses estudiosos estava nas universidades religiosas, levantando teses e ideias que inquietavam os eruditos mais tradicionais.

E eram justamente esses estudiosos que apaixonavam Pedro Sánchez e lotavam as suas estantes. Entre eles, havia um especialmente brilhante: um teólogo franciscano chamado Francisco de Osuna, que havia publicado, em 1527, a terceira parte de uma série de seis livros espirituais - Abecedarios.

Ao ver a sobrinha tão perdida e tão desprovida de quem lhe oferecesse uma orientação religiosa consistente, tio Pedro não titubeou. Deu-lhe o seu único exemplar do terceiro Abecedario e recomendou-lhe que o lesse sem demora.

 

Enfim, o amor

Quando teria Teresa aberto o livro de Osuna? Nos poucos dias em que esteve em casa de tio Pedro? Durante o Inverno, passado aos cuidados de Maria, no qual os sintomas da doença se agravariam?

A própria Teresa nada diz a esse respeito. Não sabemos se fazia sol ou se chovia, se estava acamada ou sob uma árvore, se fazia frio ou calor. Em parte porque a doença lhe turvara a percepção do que ocorria à sua volta, mas principalmente porque o livro de Osuna a puxou para dentro das suas páginas com tal força que nada mais importava.

Todo leitor já viveu o momento mágico em que é sugado para dentro de um livro. As letras desaparecem, as páginas somem-se, o mundo à volta desvanece-se e o texto passa do papel para a nossa mente como uma transfusão. Nessas horas, não parece que estamos a ler, mas a pensar. As ideias formam-se com muita nitidez, e traduzem exatamente o que sentimos - só faltavam aquelas palavras para organizar o que borbulhava informe dentro de nós.

E foi justamente esse o efeito que o Tercer Abecedario teve sobre Teresa.

Aquele livro falava com ela. Para ela! Falava dela!

E isso podia ser percebido logo nas primeiras páginas. Primeiras páginas? Nas primeiras linhas! A palavra «amor» estava escrita três vezes apenas no parágrafo inicial do Prólogo. E não se tratava de mera formalidade eclesiástica. Osuna falava de uma possibilidade muito concreta de amar e ser amado pela divindade: aquilo que ele - assim como tantos outros místicos - chamava de «amizade com Deus».

Naquele livro não havia menção aos tormentos do inferno, não havia palavras que induzissem à culpa, não havia ameaças, nada se dizia a respeito dos sacramentos ou dos rituais. O que existia era a promessa de um paraíso ainda em vida, todo feito de dádivas e confortos, construído sobre um amor absolutamente sobre-humano, infinito e generoso.

Logo no primeiro capítulo, o autor deixava bem claras as suas intenções. Explicava as três razões pelas quais uma pessoa podia querer chegar perto de Deus.

A primeira é que a amizade e a comunicação com Deus são possíveis nessa vida de desterro. Não uma pequena amizade, mas um tipo de ligação mais estreita e segura do que jamais houve entre irmãos ou entre mãe e filho.

E prosseguia:

Não é por se chamar «espiritual» que essa amizade deixa de ser muito mais concreta e segura, e não falo daquela divina aceitação e nem daquela dúvida que assalta os mortais quando ignoram se estão em estado de graça ou não. (...) Falo da comunicação que buscam e encontram as pessoas que trabalham na oração e na devoção, a qual é tão certa que não existe coisa mais certa nesse mundo, nem mais prazerosa, nem de maior valor, nem preço.

Antes que o leitor pudesse objectar que tal amizade não estava ao seu alcance, Osuna argumentava:

A segunda razão é que (...) essa comunicação não é menos possível para ti - oh! homem, quem quer que sejas! - do que para os outros. Pois não és menos feito à imagem de Deus do que todos os outros; e nem acredito que o desejo de te tornares bem-aventurado seja menor do que o dos outros.

O livro tratava-a por tu com total intimidade, como se a conhecesse de longa data, como se conhecesse os problemas que enfrentava.

É certo que o texto era dirigido a homens, e não a mulheres - e não observar esse aspecto teria graves consequências sobre a vida de Teresa. Mas era tão eloquente e respondia tão perfeitamente a tudo o que ela precisava de ouvir naquele momento, que simplesmente passou por cima do facto de nem a Igreja e nem mesmo os teólogos mais heterodoxos admitirem a hipótese de uma mulher comunicar-se directamente com Deus.

Pois a experiência mística proposta por Osuna valia qualquer risco - se é que Teresa percebeu o perigo a que se expunha. Era ele quem afirmava que Deus estaria à espera dos seus filhos «com os braços abertos de sua amizade, com maior consolo e alegria do que uma mãe recebe o filhinho que vem queixar-se de uma aflição. Não só a mãe abre os braços para o filho como também o abraça, descobre o seu seio e mata a sua fome, encosta o seu rosto ao dele e, perdido o medo, cessam as lágrimas e os lamentos».

O Deus de Osuna era mais do que um irmão, mais do que uma mãe. Como poderia negar-lhe amor e consolo, logo a ela que tinha perdido o rumo com a orfandade, e que via os seus adorados irmãos partirem para mundos distantes um a um?

Mas o que a deve ter convencido de vez foi a terceira razão de Osuna, que parecia talhada à medida de Teresa:

A terceira razão é que, para buscar a comunicação, por quaisquer meios que sejam, é fundamental que a alma tenha um cuidado que não a deixe sossegar, o qual se destina apenas a procurar por Deus.

Ou seja, era uma questão de determinação. Mesmo doente, esse era um assunto que Teresa dominava muito bem.

O Tercer Abecedario não se limitava a encorajar o encontro com Deus ainda em vida. Propunha um método para que tal comunicação fosse estabelecida. Tratava-se de chegar a um estado de silêncio e quietude interior absolutos, de total entrega, de desapego completo. Nesse estado, a mente estaria esvaziada de pensamentos e o coração desprovido de quaisquer sentimentos que não o desejo de união com Deus.

Esse estágio perfeitíssimo de comunicação não era imediatamente conseguido. Para alcançá-lo, o postulante deveria exercitar três modos de orar, que o conduziriam a etapas sucessivamente mais próximas de Deus.

O primeiro modo de orar, que está no plano da fé, é como enviar uma carta a um amigo dando-lhe notícias. O segundo, no plano da esperança, é como enviar a carta a uma pessoa muito próxima. Mas o terceiro, no plano do amor, é como o do amigo a quem nos dirigimos pessoalmente. A primeira oração é como o beijo nos pés; a segunda, como o beijo nas mãos; a terceira é como o beijo na boca.

A oração mental consistia, portanto, em colocar-se num estado de escuta, de quietude e de união. Para atingi-lo, era necessário estabelecer com Deus um discurso interior, no qual as palavras do coração fluiriam livremente, ou o silêncio se tranformaria em escuta, sem que fosse preciso decorar palavras prontas, recitar o Ofício ou meditar sobre temas obrigatórios - como faziam regularmente as monjas dos conventos pelos quais tinha passado.

Mais do que um profundo alívio - Teresa jamais escondera o mal-estar que todo tipo de recitação lhe provocava -, havia ali um caminho que parecia ter sido feito sob medida para ela. Seriam as suas próprias palavras, os seus estados de alma, a sua imensa necessidade de explicar o inexplicável e a sua ânsia de arrebatamento a matéria das suas orações iniciais.

Mas o método não era tão livre assim, muito pelo contrário. Osuna tinha sido muito claro na terceira razão. Era preciso ter a alma totalmente concentrada na busca de Deus, e não apenas na hora da oração. Tratava-se de um estado de atenção permanente.

Onde quer que vás, leva o teu pensamento contigo e não o deixes ficar dividido; nem permitas que o corpo ande por um lado e o coração por outro, sem ver bem as coisas que fazes. Antes, serve a Deus com este teu corpo mortal.

Osuna comparava o leitor a um vaso. Se estivesse partido em mil pedaços, não poderia guardar nada.

O coração é dividido em tantas partes quantas são as tuas preocupações. Cada cogitação leva o seu pedaço. Pensas que Deus há-de derramar Suas graças em vaso tão inútil?

Teresa concordava. Era isso o que desejava: estar inteira em si mesma.

Leu muitas vezes o livro. Anotou, sublinhou, estudou, releu passagens mais difíceis - afinal, a despeito da clareza e sedução da linguagem de Osuna, o Tercer Abecedario era obra de um teólogo e continha muitos argumentos com os quais Teresa não estava habituada.

Sobretudo, começou a praticar a oração mental.

 

Na fronteira do mistério

Teresa começou a praticar a oração mental em condições muito especiais. O seu corpo, gravemente adoecido, parecia esforçar-se para expulsar a alma. No estado fronteiriço de consciência em que se encontrava, a orientação de Osuna serviu para organizar e dar um sentido seguro ao fluxo de sensações e pensamentos que, de outra maneira, poderiam tê-la levado à loucura.

Dedicou o Inverno, passado em casa da irmã, à prática da nova forma de oração. No entanto, chegou a Primavera e a sua saúde não melhorava. D. Alonso venceu os últimos receios e decidiu levar a filha à curandeira de Becedas.

Os dois meses passados em Becedas só mostraram que, ao contrário do que tantas vezes Teresa afirmaria, a sua saúde era invejável. De outra maneira, como teria sobrevivido aos tratamentos da mulher? Os remédios empíricos não apenas não melhoraram o seu estado como a deixaram à beira da morte. Cada dia mais enfraquecida, já não conseguia comer ou beber, as dores pioravam a e sua mobilidade começava a ficar comprometida.

Ainda assim, o rosto irradiava uma nova luz. Ao seu encanto natural - tudo indica pouco comprometido pela doença -, somava-se agora a doce alegria da descoberta dos primeiros passos da oração mental. Ao contrário de tantos místicos, não precisava de martirizar o corpo nem de submeter-se a violentos jejuns com a finalidade de preparar a alma para a oração, até porque a doença fazia isso por ela.

Teresa encontrava-se em permanente estado de semiconsciência. Mal ancorada no corpo, a alma expandia-se.

 

Feitiços de amor

Um episódio relatado por ela em O Livro da Vida mostra bem que a sua capacidade de sedução continuava intacta. Mas, agora, começava a descobrir outros rumos para aquele talento inato. Não era mais a mocinha embriagada por si mesma. Mas podia usar - e usava - o seu charme e encanto para falar de Deus.

O problema da sedução é que nem sempre é possível controlar os seus efeitos. Faz parte do clima encantatório turvar a própria visão e a alheia, de tal maneira que os limites entre o humano e o divino fiquem muito esfumaçados.

Assim, em Becedas, Teresa tomou por confessor um padre recém-formado, de boa família e instrução superior, tão loquaz e encantador quanto ela - e talvez ainda menos cauteloso.

A afinidade entre os dois foi imediata. Durante longas horas, o jovem padre permanecia à cabeceira da enferma, em conversações sem fim, totalmente fascinado pela monja que lhe falava tão apaixonadamente da entrega e arrebatamento proporcionados pela oração espiritual.

Logo, já não a visitava apenas como confessor. Retornava vezes sem fim porque não conseguia manter-se longe do seu anjo incendiado. É Teresa quem conta:

Eu não via nada de errado na grande afeição que ele me dedicava, embora ela pudesse ser da mais elevada pureza. E houve circustâncias nas quais, se não tivéssemos muito presente o pensamento de Deus, poderíamos ter sido levados a ofendê-Lo gravemente.

Usualmente tão discreta a respeito de assuntos amorosos mundanos, a declaração de Teresa dá-nos bem a medida da intensidade da ligação que se iniciava. Ao que tudo indica, o jovem padre não conseguiu - ou nem mesmo tentou ocultar da amiga o turbilhão de sentimentos que o assaltava. De outra maneira, ela não contaria:

Ele entendera que, por nada deste mundo, eu iria contra a minha consciência em coisas sérias, e assegurava-me que as suas intenções eram às mesmas, de modo que as nossas longas conversas não tinham fim.

E era preciso mesmo que o jovem religioso lhe desse tais garantias, já que, conforme confessaria a Teresa mais tarde, havia anos que vivia em pecado mortal com uma mulher da aldeia. Nem a indisciplina do seu corpo e nem o facto de tal ligação ser de conhecimento de todos o impedia de rezar a missa. Sobretudo no campo, tal tipo de arranjo era muito comum. Pecado, sim, sem dúvida. E pecado mortal. Mas a culpa atormentava-o bem menos do que o desejo.

Assim, o sexo tornou-se tema das conversações dos dois. Se tal assunto perturbou Teresa, não se sabe. Mas é ela quem conta, não sem uma ponta de malícia:

Estou convencida de que os homens sempre se sentirão inclinados para as mulheres que consideram tendentes à virtude. É esta inclusive, para elas, a melhor maneira de conquistar essa ascendência que desejam ter.

E justamente foi essa a ascendência que Teresa obteve. Acabou por conseguir que o padre abandonasse a sua antiga ligação. Cerca de um ano depois, o jovem apaixonado morreria, jamais se soube porquê.

 

Olhos de cera

Por esta mesma época, a própria Teresa esteve tão perto da morte quanto jamais estivera. Em Julho de 1537, abandonou Becedas e foi levada de volta à casa paterna. O tratamento da curandeira fracassara. Pior, agravara ainda mais o seu estado. Mas não se pode negar que a excitação nervosa provocada pela amizade amorosa com o confessor também teve peso na deterioração do que restava da saúde de Teresa.

As dores no coração tornaram-se mais agudas e frequentes. Não havia mais alimento que passasse pela sua garganta, sempre contraída, assim como os nervos, que se retorciam e provocavam crises dolorosas que a faziam gritar. Não conseguia comer, nem dormir, nem descansar.

O único alívio era a oração mental, que não parou de praticar nem mesmo no meio da dor. Habituou-se a aceitar os tormentos físicos como um favor divino que a impulsionava cada vez mais para o alto, para os domínios que pertencem apenas à alma, como uma preparação para o encontro com o Senhor. Acreditava que não faltava muito para esse momento. Quanto mais a doença avançava, mais intensificava as orações. Na vigília permanente em que se transformara a sua vida, tentava manter a atenção no sentimento de Deus. Chamava por Ele, não permitia que nenhum outro pensamento ocupasse a mente, concentrava-se na entrega final.

Na véspera da festa da Assunção, pediu ao pai que lhe trouxesse um padre para a extrema-unção. Não conseguia imaginar nem mais um dia de vida para si. Estava a dissolver-se, e sabia disso. Mas D. Alonso recusou-se a atender ao pedido da filha. A ideia da morte de Teresa era-lhe simplesmente intolerável.

Durante a noite, a filha entrou em coma. D. Alonso teve de chamar o padre.

O religioso não teve dúvidas: ela estava morta. Ministrou-lhe a extrema-unção e preparou o corpo da monja, derramando cera sobre as pálpebras. A casa vestiu luto. Só D. Alonso se recusava a acreditar na morte da filha. E aferrou-se àquela ideia com tamanha teimosia que ninguém conseguiu levar o corpo de Teresa dali. Ajoelhado ao pé da cama, não permitia que ninguém se aproximasse.

Completadas as primeiras 24 horas, permanecia irredutível. Como poderia a filha estar morta? É verdade que não respirava e não se escutava o seu coração. Mas o corpo ainda não esfriara totalmente e não havia sinal de cheiro de decomposição. Não, ninguém levaria Teresa.

Assim se passaram quatro dias. Quatro dias nos quais parentes e amigos tentaram demover o pobre pai desesperado a liberar o corpo da filha. Quatro dias nos quais D. Alonso rezou e velou pelo fio de vida que só ele percebia.

Finalmente, ao fim do quarto dia, Teresa mostrou que o pai tinha razão. Tentou abrir os olhos. Não conseguiu - estavam vedados com cera. Como um alucinado, D. Alonso ria e chorava enquanto limpava as pálpebras da sua Teresita e via novamente o seu olhar luminoso, ainda tão frágil, tão esmaecido. Mas decididamente vivo.

Com o despertar, voltaram também as dores, ainda mais intensas. E Teresa queixou-se de ter sido trazida de volta do céu, onde julgava ter estado.

Mas o retorno à vida não significou a cura. Pelo contrário. Convulsões faziam-na morder a língua, que estava permanentemente ferida. Ainda que a boca permitisse a ingestão de alimentos, a garganta não deixava que passasse nem mesmo água. Tentava respirar e sufocava. Os membros estavam tão contraídos que não se moviam. Mesmo paralisada, Teresa tinha o corpo tão dolorido que não suportava que lhe encostassem um dedo.

Ainda assim, no Domingo de Ramos pediu que o pai a levasse de volta ao mosteiro da Encarnação. Era o seu lugar. Fosse para morrer ou para viver.

Ali, passaria três anos, paralítica, até ao restabelecimento.

As horas lentas

 

Tinha 22 anos, portanto, quando retornou ao mosteiro da Encarnação e foi posta na enfermaria, de onde só saiu aos 25. Mais de mil dias sobre a cama, praticando a oração espiritual, e fazendo de tudo para ignorar o corpo e elevar a alma.

O tempo sempre corre mais lentamente para os enfermos. E mais vagarosamente ainda para quem sente dor. Totalmente fiel ao mestre Osuna, Teresa dedicou esse período a concentrar o seu pensamento em Deus.

Isso não significava apenas rezar, mas também enfrentar com bom humor o sofrimento, manter-se bem distante das intrigas e maledicências do convento, apurar as menores possibilidades de alegria, transcender a própria condição para agradecer a Deus cada dia conquistado.

Até que um dia, tão misteriosamente quanto havia surgido, a doença começou a ceder. No começo, Teresa conseguiu apenas arrastar-se pelo chão. Mas ficou tão animada com a redução das dores e a possibilidade de cura que passou a fazer de tudo para recuperar a saúde.

Fazer de tudo, nesse caso, é pedir a São José que interceda junto de Deus pelas suas melhoras, mandar rezar muitas missas e celebrar muitas festas para o santo. Mas também alimentar-se melhor e evitar sobrecarregar o corpo com penitências.

O facto é que a vida voltou a correr forte e vigorosa no seu corpo. E, junto com a vida, veio-lhe uma alegria imensa, sentiu-se novamente pronta para encantar os que a rodeavam, a palavra voltou a jorrar facilmente da sua boca, a beleza retornou ao seu rosto.

Agora, iluminada pelo encontro com a morte, cingida por uma aura de mistério, passava a ser a bela monja salva por um milagre.

 

O tempo não se perde

A julgar pelas palavras de Teresa, escritas décadas após a cura, o retorno à vida foi marcado por um prolongado período de inércia espiritual.

(...) Ele [Deus] mostrou quem é ao fazer que eu me levantasse, andasse, e não mais ficasse paralítica. Também eu mostrei quem sou, usando tão mal esse favor.

É preciso, no entanto, ver com cautela esse tipo de afirmação. Acreditar que Teresa passou os 20 anos seguintes perdida na própria vaidade, enredada nas sedutoras armadilhas que criava para si e para os outros, sem dar sequer um pequeno passo na direcção da sua elevação interior chega a ser ingenuidade. Pois como poderia alguém passar tanto tempo adormecido e, subitamente, levantar-se e produzir uma grande obra?

Vamos partir do princípio de que não existem hiatos no tempo. Vamos supor que a vida de Teresa tenha sido um tanto semelhante à de todas as pessoas: uma lenta acumulação de experiências que parecem enfileirar-se ao acaso mas - aí sim - subitamente ganham sentido e transformam-se numa realidade inteiramente nova. Vamos aceitar a hipótese de que o caminho da santidade também possa ser uma construção, um trabalho de formiguinha, cheio de percalços, dúvidas e hesitações. Mas, sobretudo, vamos imaginar que nada do que vivemos se perde. Toda a experiência pode vir a ser útil, até mesmo o deixar-se levar pelas circunstâncias, desde que tenhamos os olhos muito abertos para aprender.

Do ponto de vista distanciado que mais de quatro séculos nos permitem, podemos observar que nos seus chamados «20 anos de dissipação» Teresa não apenas acumulou condições emocionais e espirituais como também teceu e consolidou a rede social e política que lhe permitiria realizar a obra da sua vida. Evidentemente, ela não tinha consciência disso - não estamos a falar de uma mulher calculista. Mas foi a sua imensa capacidade de extrair o que a realidade apresenta de melhor - mesmo nas condições mais adversas - que lhe permitiu atravessar um período de turbulências internas e externas e daí sair cada vez mais fortalecida.

 

A estrela do locutório

O Mosteiro da Encarnação jamais chegara a ser uma instituição rica. Mas, em finais da década de 1530, encontrava-se imerso numa grave crise financeira. O número de religiosas aumentara muito além da capacidade económica da comunidade. Já passavam de 180 e, a cada dia, surgiam novas postulantes.

Entre os muitos motivos para esse afluxo, estava a falta de rapazes disponíveis para o casamento. Havia, por toda a Espanha, mas sobretudo em Ávila, terra de guerreiros e cavaleiros, uma verdadeira febre de conquistas além-mar. No rasto das descobertas de Cristóvão Colombo e das expedições de Francisco Pizarro, não paravam de partir caravelas, lotadas de jovens homens dispostos a fazer fortuna. Nenhum dote de noiva, por melhor que fosse, rivalizava com as promessas de fortuna que acenavam do México, do Peru, das Índias e da África. Em casa de Teresa não fora diferente. Todos os seus sete irmãos partiram, assim como primos e parentes mais próximos.

Superlotado com as moças que, sem nenhuma vocação religiosa, aguardavam em local seguro um casamento que jamais viria, o mosteiro entrou em crise. Um relato da época dá bem a medida da situação:

O convento tem renda de 10 700 fangas de trigo, cevada e centeio, e 30 000 maravedis em dinheiro (...). Daí, deve-se tirar, para os frades que, no dito mosteiro, administram os sacramentos e os divinos ofícios, cem fangas de trigo e outras 150 como salário do confessor, do administrador, do médico, do procurador e outras pessoas (...). Com o que resta, elas não têm podido nem podem manter-se senão vivendo em estado de extrema necessidade, de modo que cada religiosa não costuma ter nem sequer, todos os dias, meio quarto de pão e um quarto de carne para almoço e jantar.

Se, em condições normais, a liberalidade do convento era bem maior do que a encontrada noutras ordens, em tempos de crise as suas relações com o mundo tornavam-se muito mais estreitas. Não apenas as monjas passavam a depender da ajuda da família - em forma de alimentos e dinheiro - como também o parlatório ocupava lugar de destaque como meio de obter esmolas. Era uma época de muitas visitas. As freiras não saíam apenas para ver a família - e passar, por vezes, longos períodos fora do convento mas também acontecia serem cedidas a casas de nobres que apreciavam a sua companhia.

Com a vida social de tal modo incentivada, e a saúde restabelecida, rapidamente Teresa se tornou na estrela do locutório. Sabia agradar, gostava de ser admirada, e a doença não lhe tirara nada do charme e da habilidade para manter a conversa sempre animada.

Não eram apenas amigos próximos e parentes que a procuravam. Mal a sua figura, impecavelmente arrumada, surgia por trás das grades, formava-se um círculo interessado em ouvi-la falar de Deus, mas também em conversar sobre tudo o que ocorria no mundo e em Ávila. Tais encontros tinham um ar de festa. Os visitantes traziam bolos, pães, frutas e as tardes transcorriam muito agradavelmente. Além disso, era cada vez mais comum que nobres adoecidas ou simplesmente entediadas pedissem permissão à prioresa para ter Teresa por alguns dias em seus castelos. A monja tornara-se numa espécie de embaixadora do convento, alguém solicitado para compartilhar a vida dos nobres e santificar as casas com a sua reputação. Como eram justamente essas pessoas poderosas os mecenas do mosteiro, os seus pedidos eram prontamente atendidos. Teresa passava cada vez mais tempo nos salões - e menos na sua cela.

Novamente bela, novamente rodeada por um séquito de fãs, novamente o centro indiscutível das atenções. Teresa não podia negar: adorava aquilo. Deixava-se envolver docemente pela aura de admiração que sabia provocar em torno de si.

Paralelamente à intensa actividade social, cumpria rigorosamente os seus deveres. Era impossível apanhá-la na menor falta. Rezava quando tinha de rezar, confessava-se regularmente, recitava o Ofício, era obediente e solícita. Com um comportamento tão irrepreensível - e que trazia tão bons dividendos para a coletividade -, ninguém ousava criticar a sua crescente mundanidade.

Ninguém a não ser ela própria.

E seu pai. D. Alonso, que havia encontrado em Teresa uma interlocutora para guiá-lo nos primeiros passos da oração mental, que dividira tantas tardes em conversações espirituais com ela, que fazia progressos tão rápidos na nova prática, não reconhecia mais a filha, agora mais ocupada em recrear-se ou frequentar a sociedade do que em dedicar-se à vida interior. Tiveram uma conversa dura, na qual o pai comunicou à filha que não mais a procuraria no convento. Para ele, dividir a atenção de Teresita com tantas visitas era pura perda de tempo, e disse-lhe isso com toda a franqueza.

Sempre dividida, sempre atormentada pela culpa, sempre exigente demais consigo mesma, Teresa estava a trair alguns compromissos internos fundamentais, assumidos depois da leitura do Tercer Abecedario, e não o ignorava. Para usar uma imagem de Osuna, agora ela era o vaso estilhaçado, onde Deus não depositaria nenhuma graça. Por isso, voltou a rezar como todas as outras monjas, com palavras decoradas. Sentia-se indigna de praticar a oração mental.

E assim comecei, de passatempo em passatempo, de vaidade em vaidade, de ocasião em ocasião, a envolver-me tanto em tão grandes ocasiões e a estragar a alma em grandes vaidades que tinha vergonha - em tão particular amizade como é tratar de oração - de me aproximar de Deus.

 

  1. Francisco

Muitos anos mais tarde, a oração espiritual transformar-se-ia numa necessidade real. O estado de profunda interiorização e a intensa ligação com Deus seriam o único caminho possível para aplacar o estado de combustão interna no qual Teresa sempre estivera mergulhada.

Sem esse precioso caminho, ficava à mercê dos seus estados apaixonados.

E era o que acontecia agora. A ela acorriam jovens devotos, interessados em discutir temas religiosos. Mas também belos cavaleiros, como D. Francisco de Guzman, um nobre sevilhano que, após as primeiras visitas, passou a retornar a intervalos cada vez mais curtos. E a demorar-se cada vez mais. E a deixar que os seus olhares se cruzassem com crescente eloquência e reduzida prudência.

Pronto, era o que faltava para que o amor voltasse a enfunar as velas. Teresa e o seu coração de caravela, sempre pronto a expandir-se. D. Francisco despertara a sua bússola interna, aquela que apontava sempre o mesmo norte: o da paixão.

Num dia, feliz; noutro, perturbada; noutro, dividida, Teresa flutuava da cela para o locutório. Certo dia, teve uma visão. Cristo aparecia-lhe com o rosto muito zangado, deixando bem claro o seu descontentamento com aquela amizade. No fundo, sabia que não tinha mais o direito de apaixonar-se daquela maneira. Embora nada tivesse feito que pudesse ser censurado - o seu comportamento continuava inatacável -, não podia mentir para si mesma e decidiu não mais encontrar-se com D. Francisco.

Mas já não era dona de si. O fidalgo insistia, deixava recados. Teresa fraquejava e deixava-se atrair para o locutório. Depois de algum tempo, convenceu-se de que não tinha tido visão nenhuma, aquilo era fruto da sua imaginação. Como poderia ter visto Cristo? Isso era coisa de iluminados. Todos sabiam que Jesus não aparecia às mulheres. Por outro lado, excitadas, loucas por novidades, as jovens monjas encorajavam-na. De acordo com a opinião geral, a presença de um fidalgo tão nobre não apenas não comprometia a imagem de Teresa como ainda a tornava mais importante.

 

Entre dois amores

O problema de tais paixões é que rapidamente se transformam em tormentos. Impossibilitada de vivê-la plenamente, e até mesmo de admitir a intensidade do que sentia, Teresa estava de tal modo envolvida que apenas fingia cumprir as obrigações religiosas. Por dentro, era incapaz de dirigir o pensamento para Deus. Pior, daquela vez, não era mais a menina ingénua que sonhara casar-se com um primo que partira para terras longínquas. Nem a bela moribunda que dividira um sentimento febril com o jovem padre de Becedas. Aos 28 anos, era uma mulher madura e saudável, plenamente senhora dos seus encantos e dona de um corpo que se rebelava. A presença de D. Francisco deixava-a sem fôlego, o coração em disparada, o desejo aceso.

Poucos anos antes, descobrira em Osuna uma possibilidade de consumir-se de amor e, com isso, tornar-se cada vez mais pura, posto que aquele era o amor divino. Privada dos seus exercícios, distante demais daquele que viria a ser seu amado, Teresa buscava a paixão terrena como um viciado procura a sua droga. A oração espiritual tinha aberto na sua alma uma nova necessidade, agora imperiosa, de entregar-se até o esgotamento.

Para aplacar o corpo, Teresa usava o recurso mais conhecido na época: a mortificação. Trancava-se na cela, pegava no chicote e castigava as costas até que o sangue espirrasse nas paredes e o desejo se esvaísse na dor. Mas, no dia seguinte, podia novamente ser vista no parlatório, os olhos mergulhados nos olhos de D. Francisco, a respiração suspensa, o sorriso esbraseado.

Agora, estava dividida entre duas realidades, sem pertencer, de facto, a nenhuma delas. Não podia abandonar os votos perpétuos e casar-se com o cavaleiro, como teria feito alguns anos antes. Mas também não conseguia tornar-se inteiramente monja.

Como seguir o caminho religioso com tamanha sede de paixão? Como conformar-se à fria serenidade das freiras que mais admirava - e que ela tomava como sinal seguro de santidade? Como querer para si o esvaziamento de todo o desejo? Como abrir mão da embriaguez que a loucura amorosa lhe proporcionava, tão deliciosa que a fazia esquecer o medo do Inferno?

Só o tempo responderia a essas questões.

 

Orfandade

Chicotes mortificam a carne, mas também a redimem. Lavado em dor, o corpo sente-se limpo de pecado. Muito mais punição do que remédio, o castigo corporal só marca o que já passou, mas não evita as emoções do dia seguinte.

Só um grande choque tiraria Teresa do estado de transe apaixonado em que se encontrava. E esse choque foi a morte do pai.

  1. Alonso pediu a presença da filha para assistir aos seus últimos momentos. A seu lado, a monja rebelde viu-se soterrada pela culpa. O velho fidalgo tinha levado a sério a oração espiritual e, na ocasião, já estava muito mais adiantado do que a filha que o iniciara na prática do amor divino.

A proximidade da morte tornara D. Alonso ainda mais sereno. Nenhum temor turvava os seus últimos momentos.

Deixava-se conduzir para o desconhecido com a certeza de quem encontraria o paraíso em breve.

Ninguém sabe o que conversaram, nos derradeiros momentos, pai e filha. Nem se falaram muito. Na realidade, as palavras não eram necessárias. Havia uma história construída em conjunto, na qual cada um desempenhava um papel. Foi D. Alonso quem a encerrou no primeiro convento, mas foi ele quem lutou para que ela não seguisse a carreira religiosa. Foi para encontrar argumentos para convencer o pai que Teresa mergulhou tão profundamente nas primeiras leituras místicas, mas foi ela quem o apresentou àquele novo caminho do amor divino.

Sentir-se tão próxima da orfandade total levou Teresa a arrepender-se de todas as ocasiões em que negligenciara o pai. E tinham sido tantas nos últimos tempos.

Diante de uma dor mais intensa do que a do chicote («era como se me tivessem arrancado a alma»), o rosto de Francisco finalmente desbotava na memória e aparecia-lhe como era, de facto: uma doce ilusão, produto da fantasia, necessidade de preencher uma atávica ânsia de acreditar-se amada.

Quando D. Alonso finalmente fechou os olhos, a meio da recitação do Credo, Teresa decidiu procurar ajuda. Sabia que não iria encontrá-la dentro dos muros da Encarnação. Decidiu confessar-se com o padre que assistiu o pai nos últimos momentos, o dominicano Vicente Barón.

Não lhe escondeu nada. Falou de D. Francisco, de como a sua conduta irrepreensível escondia um coração atormentado pela simulação, da ânsia de amor, contou que não era mais merecedora da amizade com Deus, não podia nem sequer sonhar em se comunicar com Ele.

Sábio e experiente, Vicente Baron recomendou que ela retomasse imediatamente a oração espiritual. Mesmo que se julgasse indigna ou incapaz. Afinal, os primeiros passos da oração mental são justamente esses. Basta falar a Deus como a um amigo. Confie-lhe as aflições, converse com Ele, não se prive disso, aconselhou o padre.

No entanto, mesmo livre da paixão por D. Francisco, Teresa passara a ter outros problemas para resolver. A irmã caçula, Joana, de 15 anos, teve de se juntar à multidão das seculares que esperavam por um casamento no mosteiro da Encarnação. Só 11 anos mais tarde, em 1553, viria a contrair matrimónio. Em 1544, um ano após a morte de D. Alonso, Maria e o seu marido, Martin Guzman, decidiram disputar litigiosamente a herança de D. Alonso. Jóias, objectos domésticos e até móveis foram motivo para brigas desgastantes para toda a família.

É difícil concentrar-se na oração com tantos problemas à volta - tirando o facto de que abrir mão da amizade com D. Francisco lhe deixara um vácuo na alma. Mas, finalmente, tinha um orientador espiritual sensato. Passou a confessar-se com Vicente Barón, no convento dominicano de São Tomás Real, onde, até hoje, existe a capela para onde Teresa se dirigia.

Ali, há uma portinhola que exibe a inscrição: Aqui se confessava Santa Teresa.

 

A derrota de Anaquito

Mal se recuperava do processo jurídico - ganho, em

1548, por Maria, para prejuízo de Joana e Teresa -, nova onda de más notícias chegou a Ávila. Dos cinco irmãos que se encontravam no Peru, um morreu e dois ficaram feridos num combate em Anaquito, ocorrido em 18 de Janeiro de 1546.

Nas cartas recebidas dos irmãos e nos relatos escritos por Lourenço ao rei Felipe II, desvanecia-se a imagem dourada de um Novo Mundo. Os territórios retratados ali eram plenos de cobiça e cupidez, ocupados por homens embriagados pela possibilidade de riqueza rápida. O ouro e a prata que chegavam à Espanha vinham tingidos de sangue - e não apenas dos nativos, dizimados sem piedade. No ano seguinte, o seu padrinho, Francisco Nuñez Vela, também seria barbaramente assassinado no Peru.

E assim se enterravam os últimos sonhos da juventude, aqueles que tinham sido tão fartamente alimentados pelos romances de cavalaria. Nem existia o cavaleiro absoluto que viria legitimar a existência das mocinhas, nem o eldorado paradisíaco, do qual os rapazes retornariam cobertos de glória e riquezas. Do outro lado das fantasias juvenis, o que havia era morte e decepção.

Aos 32 anos, Teresa, finalmente, decide resignar-se. Obedece ao confessor e retoma a oração espiritual, mas sem o ímpeto inicial. Talvez, no íntimo, tenha medo de abrir-se novamente a emoção. Não quer mais sentir-se tomada de assalto por sentimentos que não consegue controlar. Foge também das diversões, embora continue a frequentar o locutório e a fazer visitas à nobreza. Continua a ser a melhor embaixadora do mosteiro, mas, agora, uma certa melancolia tinge os seus dias.

Durante os 14 anos seguintes, a sua vida pouco se alterará. Mais tarde, escreverá magnificamente sobre o que chamará de estados de «aridez» ou «secura» - esses longos momentos da vida em que a nossa alma mais se parece com um deserto.

 

A Espanha incendiada

Enquanto Teresa tentava encontrar o caminho por meio da oração, Espanha pegava fogo.

Literalmente.

Desde a década de 1520, a Inquisição tinha perdido o impulso inicial. Os conversos - seu alvo preferencial - ou se tinham tornado mais cuidadosos ou, de facto, convertido à fé católica de maneira a não deixar rastos. Mas agora, expulsos os judeus, eliminados os conversos, um novo fantasma rondava a Igreja. Dessa vez mais temível, uma vez que saía do seu próprio seio: o protestantismo.

Martinho Lutero, um fervoroso eremita da ordem de Santo Agostinho, havia começado, como tantos místicos, apenas a buscar «essa passividade amorosa que lhe permitirá atingir, no mais profundo de si mesmo, o Deus imanente». Mas rapidamente o caminho espiritual tomara cunho político e, desta maneira, espalhara-se pela Europa. Para além do luteranismo, outros movimentos se propagavam - nem sempre afinados com o que lhes dera origem e muitas vezes mais violentos.

Felipe II, herdeiro de Carlos V, era o poderoso rei da Espanha que dominava o mais vasto império do seu tempo. Já estava com problemas com o protestantismo na Inglaterra onde, em 1 de Fevereiro de 1555, a primeira vítima acusada de heresia fora levada à fogueira pela Inquisição. A França escapava-lhe do controlo. Os Países Baixos deixavam-se seduzir pelas novas ideias.

Nada disso, no entanto, tinha ainda chegado a Espanha, surpreendentemente alheia ao cisma religioso até 1558. Existiam notícias e boatos, mas sempre referentes a factos ocorridos noutros países.

Em Espanha, o que florescia e ganhava força era o humanismo cristão irradiado, principalmente, a partir das universidades católicas, como as de Alcalá e Salamanca. Dali, saíram Inácio de Loyola, Pedro de Alcántara, Francisco de Osuna - o autor do Tercer Abecedario -, João Ávila, João da Cruz e tantas outras figuras proeminentes, muitas das quais canonizadas nos séculos seguintes.

Mais mística do que clerical, crítica e flexível em relação aos dogmas, a renascença católica espanhola buscava uma religião mais simples, acessível e despojada. Nem por isso os seus maiores estudiosos eram intuitivos ou ingénuos. Pelo contrário. Havia uma fome sagrada por livros religiosos e pelo debate de ideias, em grande parte alimentados pela invenção da imprensa. Produzidos em série, circulando livremente - e não mais restritos às bibliotecas dos mosteiros -, os livros religiosos representaram cerca de 75 por cento de todas as obras produzidas nas tipografias entre 1445 e 1520. Isso explica, por exemplo, porque Pedro, tio de Teresa, possuía em sua casa as obras recentes que a conduziram a uma mudança de rumo.

Não fora apenas Francisco de Osuna quem, com seu Tercer Abecedario, havia ampliado o campo de influência do humanismo cristão e jogado em cena ideias muitas vezes incómodas para a oficialidade católica. Em 1559, dentro da prisão, João Ávila escrevia o seu Audi filia, no qual reconhecia a possibilidade de as mulheres falarem com Deus e deixava em polvorosa os meios mais conservadores. Os livros de Erasmo - o pensador holandês que elegeu o humanismo cristão como proposta de renovação para toda a Europa - circulavam livremente. Embora desconfortáveis para o rei e para a oficialidade religiosa, as ideias dos humanistas alimentavam o clima fervilhante das universidades - uma vez que mal chegavam ao clero regular e, menos ainda, ao povo.

No entanto, como imaginar que a Espanha ficaria incólume ao vendaval que varria a Europa? Do modo como a Igreja e o rei estavam apavorados com o avanço do protestantismo, bastaria um facto, por insignificante que fosse, para desencadear o terror.

 

O argumento decisivo

E o facto foi provocado por Fernando de Valdés, um dos ambiciosos assessores que cercavam o rei.

Presidente do conselho real desde o tempo em que Felipe II era ainda menino, Valdés fora nomeado arcebispo de Sevilha em 1546 e inquisidor-geral no ano seguinte. Tinha poder, tinha prestígio, e não demorou a mostrar que pretendia ampliar a sua área de influência. Conseguiu que os funcionários da Inquisição passassem a receber salários - até então, viviam exclusivamente do confisco das propriedades dos condenados.

À primeira vista, parecia uma medida moralizante. E não deixava de ser. Tirava dos ombros dos profissionais da perseguição a suspeita, sempre presente, de cobiça. No entanto, logo Valdés saberia usar a suposta isenção a seu próprio favor.

Inteiramente absorvido pela administração de um império que ameaçava romper-se sob o cisma religioso, Felipe II delegava cada vez mais poderes nos seus conselheiros na Espanha.

Se em circunstâncias normais a vida palaciana já era feita de intrigas e disputas veladas, naquela situação, era natural que os assessores se engalfinhassem. Assim, ao ver ameaçada a sua sobrevivência política, após algumas intervenções desastradas que haviam chegado aos ouvidos do rei, Valdés lançou mão de um argumento que teria um peso decisivo na reconquista do seu prestígio. Em 1558, apoiado por Juana, irmã de Felipe, enviou um relatório ao rei no qual denunciava a existência de focos de protestantismo em Valladolid, Sevilha e Salamanca. Aos ouvidos de Felipe, então às voltas com a delicada situação inglesa, a notícia caiu como uma bomba.

A resposta do rei não tardou. «Em nada me pode dar maior satisfação do que se proceder com toda a severidade contra os que foram presos, a fim de investigar e punir um mal tão grande.»

 

Todo o poder ao fogo

Era tudo o que Valdés queria ouvir. Nos meses seguintes, sempre respaldado por D. Juana, implementou uma lista de medidas de controlo, inclusive uma rigorosa censura.

A proibição de uma extensa lista de livros representaria um duro golpe nos místicos e humanistas cristãos. Não apenas livros como o Tercer Abecedario estavam banidos da vida religiosa, como também os seus autores passaram a ser perseguidos. Todos os livros de oração de Teresa foram confiscados. Restaram-lhe apenas os breviários com as preces tradicionais, como a ave-maria, o padre-nosso, etc.

A partir daquele momento, qualquer tentativa individual de comunicação com Deus passava a ser considerada suspeita de heresia.

No mesmo ano, atendendo a insistentes pedidos de conselheiros, Felipe II retornou à Espanha. A pretensa descoberta de núcleos protestantes era apenas um dos graves problemas a resolver. Chuvas torrenciais fizeram transbordar o rio Douro e o consequente alagamento dos campos. O Sul de Castela foi atingido pela escassez de grãos e pela fome. Em Aragão, a tentativa da Inquisição de ampliar o seu controlo sobre os nobres descendentes de mouros fez eclodir uma revolta política. Por toda parte, e por diversos motivos, o clima era tenso.

Mas não era apenas por isso que os conselheiros clamavam pela presença do imperador. Em pouco mais de um ano, o crescente poder de Valdés tornara-se assustador. Afinal, o grupo que ele acusara de heresia incluía conhecidos membros do clero e da nobreza, além de funcionários reais.

Em Maio de 1559, o primeiro de uma série de autos-de-fé foi realizado em Valladolid. Ao contrário das acanhadas cerimónias da década de 1520, este fora preparado para ser um grande espectáculo. Encenado como uma peça teatral, seguia um roteiro cuidadosamente elaborado para culminar numa apavorante catarse colectiva.

A cerimónia transformava a praça principal da cidade em cenário. Começava às seis da manhã e durava cerca de 12 horas. Entre missas, sermões, a leitura das sentenças, cenas desesperadas de arrependimento, castigos e punições, a multidão embarcava num crescente paroxismo de excitação. O cheiro de carne humana chicoteada e queimada espalhava-se pela praça como incenso. O Inferno estava ali, à vista de todos, e não poupava ninguém. Se até os poderosos podiam ser punidos daquela maneira, que dizer do homem comum? Eloquentes sermões formavam o fundo sobre o qual se assentava o espetáculo: aquele era o fim de quem ousava contestar a supremacia da Santa Igreja Católica, única tradutora de Deus na Terra. Jamais haveria possibilidade de salvação fora dos seus ritos e dogmas. Desviar-se significava a danação eterna - e a amostra do que podiam ver nada era, perto do que aguardavam aquelas almas no encontro com o Senhor.

 

A vingança

E agora, além da festa - pois tratava-se de uma festa pública -, havia ainda o gosto de vingança proporcionado por ver figuras tão ilustres humilhadas e castigadas como se fossem gente do povo. No auto de Maio, por exemplo, podia ser visto Augustín Cazalla, um padre cujos sermões o próprio rei apreciava, para não falar dos nobres aos quais o povo costumava pagar tributos. Pois estavam ali, expostos na praça, oficialmente tomados pelo demónio e ensurdecidos pelos urros da multidão que, num transe colectivo, pedia o fogo para os culpados.

Para o homem médio espanhol, a presença do Diabo era tão concreta que nada havia de espantoso no conteúdo de tais cerimónias. Se havia um sentimento diário e quotidiano, era o medo. Além das guerras endémicas, das doenças, dos seus tratamentos dolorosos e tantas vezes ineficazes, da ameaça de fome, da miséria, dos assaltos e pilhagens, havia a sensação de que o sofrimento e a morte rondavam o tempo todo. Tudo coisa do Demo. A ciência ainda não se revelara capaz de confrontar os caprichos da natureza, a organização social ainda não se mostrara eficiente na protecção do direito à vida. A única explicação possível para a sucessão de desgraças que se abatia sobre as suas vidas era a religiosa.

E era ele, o Demónio, o personagem principal dos autos-de-fé. Encontrar na praça pública figuras ilustres só mostrava ao homem comum aquilo que ele sempre soubera. O Tinhoso estava em toda parte, o mundo fora dominado. Mas o Santo Ofício zelava por Deus. Com a ajuda do homem do povo - e logo os padres trariam esse discurso para os púlpitos - seria possível identificar e punir os hereges que se escondiam sob uma capa de respeitabilidade.

Haveria apelo mais sedutor do que aquele?

Em Setembro, outro auto-de-fé seria realizado em Sevilha. Ainda maior e mais grandioso do que o de Valladolid, levou a multidão ao delírio. Agora, havia também freiras e bruxas entre as condenadas. Eram as mulheres que julgavam falar com Deus.

 

Outubro de sangue

Nada, no entanto, se comparou ao auto-de-fé de Outubro, em Valladolid. Este, já contou com a presença de Felipe II. Aterrado e surpreendido, o imperador viu, entre os condenados, o dominicano Bartolomeu Carranza arcebispo de Toledo, capelão e pregador da corte, que o tinha acompanhado na última visita ao estrangeiro -, não por acaso, um dos mais fortes rivais de Fernando Valdés. Era acusado, entre outras heresias, de incentivar a oração espiritual e de defender a circulação de obras religiosas em vernáculo, e não apenas em latim. Mas o rei não vira entre os condenados apenas um arcebispo com papel de destaque na sua corte. O auto de Outubro incluía o governador civil de Toro, Carlos de Seso, e inúmeras outras autoridades. Felipe absteve-se de assistir à execução na fogueira de 12 dos acusados, grupo que incluía quatro freiras. Carranza foi poupado. Mas passou 17 anos na prisão.

Nos autos-de-fé que presenciou nos meses seguintes, Felipe II viu desfilarem, próximos demais da fogueira, valiosos conselheiros seus, bispos e arcebispos, governadores e nobres. Difícil imaginar que tal visão não lhe tenha causado preocupação. Mas apavorado pelo avanço do luteranismo, preferiu fechar os olhos aos evidentes abusos de Valdés.

 

A luz feminina

Entre os condenados, era cada vez maior a presença de mulheres. Mas elas sempre tinham sido vistas com muitas suspeitas pela Inquisição. Em 1511, uma beata de Piedrahita, que tinha fama de santa, foi perseguida por entregar-se a longos êxtases espirituais, nos quais falava com Cristo. Outra beata, a franciscana Isabel de la Cruz, foi a primeira condenada, em 1529. No auto-de-fé ocorrido em Toledo, foi chicoteada em praça pública e enviada à prisão perpétua.

No entanto, agora, com nova feição, a Inquisição estava mais interessada do que nunca em desencorajar essas mulheres de comportamento místico, que tamanha veneração suscitavam entre o povo. Não era possível ver surgir, todos os dias, uma nova santa. O momento era de controlo total.

As histórias logo se espalhavam. Na mente do povo, o número cada vez maior de mulheres condenadas só reafirmava a crença de que o Diabo preferia mesmo o corpo delas. E não tardavam a surgir denúncias contra bruxas, feiticeiras e iluminadas.

 

Ecce Homo

Ameaçada por toda a parte, a oração mental tornava-se uma prática quase secreta. Continuava a ser feita nalguns conventos e mosteiros mas, mesmo assim, cercada de muitos cuidados. Sobre os religiosos e - sobretudo - as religiosas que enveredavam pelos seus caminhos, sempre pairava um olhar desconfiado, pronto para podar qualquer desvio suspeito.

Não se sabe qual efeito a perseguição aos místicos teve sobre a determinação de Teresa. Mas não deixa de ser curioso que justamente quando o caminho escolhido por ela passava a ser duramente combatido pelos poderosos, mais ele lhe parecia possível e desejável.

De medrosa e acomodada, a monja não tinha nada.

Enquanto a Inquisição bradava pelas ruas que a oração espiritual era uma porta aberta para que o demónio entrasse nas almas, ela vivenciava exactamente o contrário. Mais tarde, afirmaria de muitas maneiras que o Demónio não nos conduz para a oração; ao contrário, nos afasta dela.

Do que tenho experiência posso falar: quem começou a ter oração não deve deixá-la, por mais pecados que cometa. Com ela, terá como se recuperar e, sem ela, terá muito mais dificuldade. E que o Demónio nunca tente ninguém como me tentou a mim, levando-me a abandonar a oração por humildade.

Nesse trecho, ela referia-se ao período em que abandonara a prática mística por julgar-se indigna de tentar uma aproximação amigável com Deus.

No entanto, já fazia 14 anos que orava com regularidade. Esforçava-se por representar Cristo no seu pensamento, tentava imaginar que Ele estava sempre a seu lado, conversava para dentro. Mas percebia um entrave interno que impedia a sua alma de expandir-se. Ia até certo ponto e parava.

Eu rezava assim: como não podia raciocinar com o intelecto, esforçava-me por representar Cristo dentro de mim, e sentia-me melhor - ao que parece - nas passagens onde o via mais sozinho. Eu acreditava que, estando só e aflito, Ele haveria de me acolher, sendo eu a pessoa necessitada.

Não deixa de ser curioso. Acompanhado, possivelmente de outras almas mais evoluídas do que a sua, Ele não lhe daria a mesma atenção? Logo ela, aquela que sempre conseguia chamar para si todas as atenções, sentia que pisava em território desconhecido. Se se tratasse de um homem, por mais poderoso que fosse, não hesitaria. Mas, diante de Sua Majestade, os seus artifícios revelavam-se pueris. Como aproximar-se de tamanha fonte de amor e luz?

Anos mais tarde, ela explicará aos principiantes:

A pessoa pode imaginar que está diante de Cristo e acostumar-se a enamorar-se da Sua sagrada Humanidade, tendo-O sempre consigo, falando com Ele, pedindo-Lhe auxílio nas suas necessidades, queixando-se dos seus sofrimentos, alegrando-se com Ele nos seus contentamentos e nunca se esquecendo Dele por nenhum motivo e, sem procurar orações prontas, preferindo palavras que exprimam os seus desejos e necessidades.

Mas era justamente isso que ela fazia. Havia tanto tempo.

Até ao dia em que, «no espaço de um Credo», compreendeu, «sem raciocinar, mais do que em muitos anos com [meus] esforços terrenos».

Segundo as suas próprias palavras, na teologia mística, o intelecto deixa de agir porque Deus o suspende. É nesse limbo da mente, nesse terreno absolutamente vazio, preenchido apenas com o desejo de fusão com o divino, que o Senhor produz a sua obra.

No caso dela, um episódio foi determinante para o encontro. Muito provavelmente próximo à Quaresma de 1554, o mosteiro recebeu uma imagem de Cristo. Tratava-se de um Ecce Homo tristíssimo, com olhos infinitamente doces e amorosos, e o corpo coberto de chagas. Como acontece nos grandes momentos da arte sacra, a imagem era extraordinariamente expressiva, tão plena de sentimento que parecia gente. Com dimensões humanas, criava imediatamente uma sensação de proximidade e contacto.

Estava guardada na capela, onde Teresa entrara para orar. Nem sempre fazia aquilo. De um modo geral, preferia buscar contacto com Deus no jardim, ao ar livre, mais perto da criação divina do que da humana. Mas, naquele dia, ao entrar na capela, teve a atenção despertada pela imagem.

Diante de si, estava aquele cuja capacidade de entrega jamais fora suplantada, o homem que vivera apenas para morrer de amor. Era tão lindo aquele rosto, tão doce e terno. Só «de vê-lo, fiquei perturbada», contaria.

Difícil é imaginar que, mesmo diante da expressividade da imagem, Teresa, com a sua mente inquieta, não tenha questionado a emoção que a assaltava. Afinal, por mais sacra que fosse, tratava-se de uma peça esculpida e pintada. Mas, e aqueles olhos? O que os animava de tal maneira? Como conseguiam concentrar tamanha intensidade de afecto e calor?

Fortemente impressionada, decidiu meditar diante daquele Cristo. Ajoelhou-se, deixou que a mente se esvaziasse e o coração se abrisse ao abandono.

Repentinamente, soube o que lhe faltara. Soube sem palavras, sem pensar. Não era preciso fazer nada, mas justamente o oposto. Tratava-se de atingir um grau a mais na escala da passividade, da confiança. E era muito simples. Bastava deixar-se conduzir pela infinita doçura daqueles olhos.

Como quem sucumbe a uma deliciosa vertigem, como quem se deixa suspender no ar por poderosos braços invisíveis, entregou-se completamente. Deixou-se cair aos pés da estátua, aos prantos, pedindo ao Senhor que fizesse dela uma pessoa melhor, que lhe desse forças para que ela jamais voltasse a ofendê-Lo com vaidades e mentiras.

Imediatamente, veio-lhe à mente a imagem de Maria Madalena, uma das santas da sua devoção. Aquela que se jogara aos pés de Cristo, a que percebera «já no primeiro dia (...) estar enferma de amor».

 

Apaixonada

Quanto tempo teria Teresa permanecido prostrada na capela, deixando que o amor divino a inundasse como uma transfusão? Não se sabe. O facto é que a mulher que se jogou aos pés da imagem não era a mesma que se levantou dali.

A partir daquele dia, não precisou mais de se esforçar para representar ou imaginar Cristo. Bastava-lhe lembrar. Como quem se apaixona perdidamente, agora só desejava voltar a encontrar-se com seu amado. Conhecia o caminho: a oração mental. E intensificou esta prática com mais determinação do que nunca.

Minha alma ganhou grandes forças da Divina Majestade, que deve ter ouvido as minhas súplicas e ter-se condoído por tantas lágrimas. Aumentou em mim a vontade de ficar mais tempo com Ele, passei a fugir das ocasiões de pecado porque, livre delas, logo voltava a amar Sua Majestade.

Amar, amar, amar. Enfim, revelava-se o único glorioso cavaleiro capaz de acolher a sua apaixonada intensidade. Aquele que podia (e devia) ser adorado todas as horas do dia, aquele que jamais rejeitaria quem lhe dedicasse afecto total; pelo contrário, em troca de cada arroubo só pedia ainda mais.

Cada vez mais.

Sempre mais.

E Teresa jogou-se numa espiral ascendente, cada vez mais luminosa e subtil.

 

Ela quer ser santa

Essa era a novidade que corria pelo locutório. E também pelos corredores, pelas celas, pela cozinha. «Ela» era Teresa, é claro, cujo comportamento se transformara de tal maneira que as antigas companheiras mal a reconheciam. Cada vez mais silenciosa e esquiva, caminhava pelo convento como quem não estivesse mais ali, alheia até mesmo aos comentários maldosos que se levantavam ao seu redor.

Inicialmente tomado como apenas «mais uma das novidades de Teresa», o seu isolamento intrigava e provocava despeito nas outras. Embora aquela fase estivesse a durar mais do que as precedentes, não era a primeira vez que ela decidia assumir a reclusão.

Agora, no entanto, possuía novas ferramentas internas. Além do enamoramento induzido pelo Ecce Homo, encontrara uma edição das Confissões, de Santo Agostinho, publicada em espanhol, em 1554, que completava com palavras tudo aquilo que vinha sentindo. O tríptico das Meditações, Solilóquios e Manual de Espiritualidade era uma das poucas obras aprovadas pela Igreja.

 

Serve-me

Na prática, não procurava ninguém e não conversava porque estava sem interlocução. Com quem, no mosteiro da Encarnação, poderia dividir as suas descobertas? A quem contar que estava apaixonada pelo Senhor, que o buscava a todo momento, que se perturbava com a intensidade dos seus sentimentos, que estava à beira de um abismo que a jogava para cima, em vez do contrário?

É em Santo Agostinho que lê:

Eu buscava erradamente fora o que estava dentro. Enviei ao exterior todos os meus sentidos para buscar-te, não te encontrei. Afligi-me longamente a buscar-te fora de mim, quando habitas em mim, quando simplesmente te desejo.

Lê, relê, concorda, sublinha, anota. Conversar, somente com Sua Majestade, no profundo silêncio da oração, onde acabaria por descobrir uma nova fonte de sabedoria, menos dependente do intelecto e mais próxima da experiência.

Por essa época, já conseguia atingir o que Osuna chamava de oração de quietude, uma concentração total no desejo da presença de Deus, de tal maneira que as faculdades (como a fala, a audição e o olfato) se recolhem.

(...) essas faculdades não se perdem, nem ficam adormecidas, só a vontade se ocupa, de modo que, sem saber como, se torna cativa, apenas dando consentimento para que Deus a encarcere, como bem sabe ser presa daquele a quem ama.

Foi, provavelmente, por estar tão aberta e concentrada na palavra divina, que Teresa ouviu, pela primeira vez, a voz do Senhor.

Os cochichos à sua volta não cessavam, ela recolhia-se cada vez mais. Até que um dia, ao rezar as Horas, ouviu claramente que Deus lhe dizia: «Serve-me e não te envolvas nisso.» Levou um susto e começou a temer estar tendo alucinações. Deus não costumava falar directamente com quem ainda se encontrava num estágio tão inicial da oração. Muito menos com alguém tão distante da perfeição como ela julgava estar. Se a voz não era de Deus, só poderia ser do Demónio.

Mas a quem perguntar? Onde buscar orientação? Teresa olhava em volta e não via quem pudesse ajudá-la. No ambiente político inflamado da época, abrir a boca para dizer que falava com o Senhor era puro suicídio. Dedicou-se com mais afinco ainda aos exercícios espirituais. Se houvesse uma resposta, teria de sair dali.

 

O glorioso desatino

Concentrava-se cada vez mais, em busca de um grau superior de desprendimento. Embora temesse a intensidade do que sentia, estava persuadida de que não poderia ser coisa maligna. Desde que retornara à oração, tinha uma certeza: o que o Demónio queria era afastá-la de Deus. Se a oração a aproximava Dele, estava certa, mesmo que os seus caminhos pudessem assustá-la.

Segundo os seus relatos, a oração que ela viria a chamar «de terceiro grau» ou a «terceira água», ou ainda a chegada à «terceira morada», tinha-lhe sido concedida «em abundância, muitas vezes», por volta de 1559. Mas o início fora anterior a isso.

Mais fortemente interiorizada, mais desprendida do ambiente ao seu redor, muito menos preocupada com o que diriam as irmãs, ela atingia territórios desconhecidos com surpreendente velocidade. Não precisava de se esforçar para manter a atenção na oração: era tomada por ela. Suas faculdades entravam num estado como o do sono:

(...) nem se perdem de todo nem percebem como agem. (...) Aqui, a água da graça é posta na garganta da alma; esta já não pode ir adiante, nem sabe como, nem pode voltar atrás, ela gostaria de regozijar-se com uma grandíssima glória. É como um moribundo que está com a vela na mão, prestes a ter a morte que deseja, fluindo naquela agonia com o maior prazer que se pode imaginar. Não me parece senão um morrer quase por inteiro para todas as coisas do mundo e um estar fruindo de Deus. (...)

Nesse estado, a alma não sabe o que fazer: se fala, se fica em silêncio, se ri ou se chora. É um glorioso desatino, uma loucura celestial, onde se aprende a verdadeira sabedoria, sendo, para a alma, uma maneira muito deleitosa de se regozijar.

Pela intensidade da experiência descrita, pode-se imaginar o tormento de não poder dividi-la com ninguém. Como viver em segredo tão impressionantes descobertas? Mais do que nunca, o mosteiro da Encarnação - com as suas vaidades e disputas, a sua religiosidade asséptica, o seu constante fervilhar de intrigas - parecia-lhe mais o mundo e menos um lugar onde aproximar-se de Deus. Os confessores à sua disposição? Ninguém que fugisse à burocracia do espírito, aos sermões decorados. Em nenhuma parte via um lampejo mais forte de fé, uma fagulha de inteligência transcendente.

Mas precisava de falar. Tinha chegado ao ponto em que era impossível abrir mão da palavra. As delícias da oração conduziam-na para sensações demasiado perturbadoras. A alma flutuava, mas o corpo, firmemente ancorado na carne, rebelava-se contra a imaterialidade daquela paixão.

 

Amores perigosos

A volúpia espiritual proporcionada pela prática contemplativa era um dos motivos que preocupavam os religiosos mais formais e as autoridades eclesiásticas. E também era o que atraía tantos iluminados. Os abismos de êxtase para os quais eram atraídos os místicos seduziam todo tipo de gente, inclusive aqueles que, sem a necessária delicadeza espiritual, se debatiam na fronteira do sensualismo até enlouquecerem de vez.

O que levantava suspeitas nos inquisidores, e até hoje causa estranheza em quem não tem essa vivência, é que os seus sinais mais exteriores podem ser muito perturbadores - principalmente nos exercícios dos principiantes ou em formas doentias. Aliás, são justamente essas últimas as mais visíveis e, por isso, as que se tornam mais conhecidas. Não é improvável que - não obstante o carácter político das atividades do Santo Ofício - algumas mulheres queimadas como bruxas e homens condenados como hereges fossem apenas pessoas que manifestavam modos patológicos de sensualidade mística.

A experiência mística avançada não se dá a conhecer com tanta facilidade. Não se traduz com exactidão nem mesmo em palavras. Tanto mais intensa quanto interiorizada e subtil, ela escapa inteiramente à compreensão de quem jamais a viveu. O facto de ser traduzida em palavras muito amorosas e apaixonadas só reforça a ideia da sua corporalidade que, no entanto, é nula. Dessa maneira, tentar apreendê-la intelectualmente só nos conduz à nossa própria experiência - mas não à de Teresa.

Porque é preciso que se diga - o misticismo apresenta um forte componente erótico. Pela própria natureza das meditações - impregnadas da ideia do corpo de Cristo e de Sua humanidade -, pelo estado de exaltado abandono que exige dos seus praticantes, pelo voo interno que provoca, pela consciência de que o que se busca é um acto de amor que transcende a realidade dos sentidos, a experiência mística precisa de atravessar a barreira da carne para se realizar plenamente. Mas, por outro lado, o que esperar dos seus praticantes, todos homens e mulheres, que têm como modelo ideal do amor a paixão terrena?

Qualquer pessoa comum, quando lê os poemas mais arrebatados de Teresa ou de João da Cruz, pensa no objecto de desejo mais próximo e físico.

«Com que delicadeza me embriagas de amor!», escreve João da Cruz - e imediatamente nos lembramos de uma pessoa, de carne e osso, capaz de nos arrancar de dentro de nós mesmos, na busca de uma sensação totalmente desconhecida. Os textos místicos, repletos de expressões como delícias concedidas, doce embriaguez, loucura celestial, beijos de Sua Majestade, hálito do amado, conduzem-nos a vivência sexual concreta.

No entanto, embora a linguagem dos contemplativos nos convide a misturar a experiência do amor divino com a sexualidade, estudos carmelitas contemporâneos lançam outras luzes sobre essa questão. Um dos mais interessantes é o do padre Louis Beinaert. Ele sugere que não seria a experiência mística que evocaria o acto sexual, mas justamente o contrário. A união sexual é que teria a capacidade de simbolizar uma união superior. Nesse sentido, o êxtase amoroso carnal - que não deve ser confundido com o simples orgasmo genital - seria a parcela de sagrado que todos trazemos inscrita no corpo como possibilidade.

 

Rigorosa disciplina

Por mais erotizada que nos pareça, a experiência contemplativa precisa de transcender o corpo para se tornar plena. Não é uma empreitada suave, nem fácil. João da Cruz - que, anos mais tarde, se tornaria companheiro de Teresa na reforma da ordem carmelita - relata em A Noite Escura:

Acontece com frequência que, com exercícios espirituais, ocorram, contra a nossa vontade, movimentos de sensualidade e actos desordenados que não dependem de nós. Essas sensações frequentemente têm por causa o prazer que a natureza experimenta nas coisas espirituais (...). O Demónio que as espreita oferece-lhes ao vivo as imagens mais grosseiras e mais vergonhosas. Às vezes, constata-se, inclusive, nos sentidos, rebeliões, revoltas, efeitos incómodos e actos humilhantes. À menor emoção, os humores e o sangue agitam-se e provocam esses transtornos.

Teresa também toca no assunto. Impregnada de bom senso, com a tranquilidade de quem já tinha ultrapassado as dificuldades iniciais - mas sabia que jamais se livraria totalmente delas -, aconselhava aos iniciantes:

É bom temer a si mesmo, não confiando em si, para não se pôr em situações nas quais se ofenda a Deus; isso é deveras necessário até que a virtude assente sólidas raízes na alma. E não há muitos que alcancem tal estado que, em ocasiões favoráveis aos seus apetites naturais, se possam descuidar, visto que, enquanto vivermos, e até por humildade, é bom conhecer a nossa natureza miserável.

Era necessário, portanto, evitar as ocasiões propícias ao surgimento dos «apetites naturais». Mais do que evitar, era preciso eliminar em si os espaços onde tais apetites se poderiam desenvolver. Por isso, o enamoramento por Cristo trazia implícito um modelo de comportamento e virtude extremamente severo. Para merecer as graças, os regalos, a «loucura celestial», era necessário contentar o amado de todas as maneiras possíveis. Isso significava um rígido autocontrole dos gestos, pensamentos e até mesmo necessidades básicas como saciar a fome e a sede, descansar e buscar conforto físico. Era preciso viver em estado de santidade, despojar-se dos próprios desejos até o limite da própria corporalidade - ou da vida.

Muitos anos mais tarde, num de seus poemas mais conhecidos, Aspiração à Vida Eterna, Teresa escreveria:

Esta divina prisão

De amor, em que sempre vivo,

Faz a Deus ser meu cativo,

E livre meu coração;

E causa em mim tal paixão

Deus prisioneiro em mim ver,

Que morro de não morrer.

E, no mesmo poema, um pouco mais adiante:

AU, como é larga esta vida

E duros estes desterros!

Este cárcere, estes ferros

Em que a alma vive metida1....

Só de esperar a saída

Me faz tanto padecer,

Que morro de não morrer.

Teresa aproximou-se cada vez mais dessa ténue membrana que separa o ser do não ser. Para ela, não foi tão difícil. Uma vez abandonadas as resistências iniciais, descobria que a experiência mística esperava por ela, como o único meio possível para escoar e fazer desabrochar a sua capacidade amorosa que, até então, não tinha encontrado um amado à altura.

Olhar o corpo como um cárcere, uma fonte de sofrimento, desprezar a vida terrena como uma armadilha enganosa, desejar intensamente ser apenas alma, pura essência sem vínculos humanos, nada disso lhe era estranho.

Talvez, aos 16 anos, Teresa pensasse diferente. Mas agora, depois de ter quase morrido de facto, de ter passado por tamanhos tormentos físicos e emocionais, sentia a miséria da carne como um facto inegável - a comida dos vermes nas palavras de Osuna. Queria libertar-se da condição meramente humana para acolher a centelha do amor divino.

Agora, que tinha encontrado dentro de si a pista, nada deteria o seu transbordamento.

 

PALAVRAS PARA OS TEÓLOGOS

Mais uma vez, recorreu a Pedro de Cepeda, o tio que lhe tinha mostrado a via mística. Muito cautelosamente, disse-lhe que precisava de alguém para orientá-la nas suas dificuldades, sem entrar em maiores detalhes. Pedro apresentou-a a D. Francisco de Salcedo, a quem Teresa viria a chamar Eí Santo Caballero. Não era um padre. Não podia ser seu confessor. Mas havia estudado teologia durante 20 anos no colégio dominicano de São Tomás e era considerado pelo frei Pedro de Alcántara - um dos grandes místicos da época, mais tarde canonizado - como um dos melhores doutores do seu tempo.

Mas nem a ele Teresa confiou os seus segredos. Nada disse a respeito das graças que estava a alcançar por meio da oração, e nem dos seus temores. Pelo contrário, limitou-se a pedir ajuda para vencer as dificuldades - as suas fraquezas, o pouco conhecimento que tinha a respeito das mortificações, até onde eram necessárias, enfim, nada que arranhasse a superfície das suas dúvidas mais profundas. Falava como se pouca experiência tivesse - e não como quem precisava de legitimar as vivências que tivera. Ressaltava as suas fraquezas - e ocultava as suas conquistas. Tinha medo de expor o que tinha conseguido sozinha, uma vez que ninguém acreditaria que uma mulher tivesse chegado tão longe, sem a orientação de um mestre mais experiente.

Teresa hesitava. Receava o tipo de orientação que receberia. E foi justamente o seu comportamento ambíguo que fez do primeiro encontro com Gaspar Daza - o confessor indicado por Francisco Salcedo - um desastre.

Daza não era um padre comum. Ao contrário da maior parte dos sacerdotes, dedicava parte significativa do seu tempo a levar o conhecimento religioso para fora dos muros das cidades. Era para o campo, onde as práticas cristãs se misturavam à herança pagã, onde as crendices proliferavam, que ele preferia levar o Evangelho. Se o Index proibia os textos em vernáculo, ele traduzia-o directamente para os ouvintes. Corajoso, brilhante, famoso na região e grande estudioso da mística cristã, era um homem obcecado pela sua missão.

Quando viu a monja, reticente, claramente intimidada pela sua presença, descrever em linguagem quase infantil as suas dificuldades para avançar na oração espiritual, impacientou-se. Disse-lhe claramente que não tinha tempo a perder. Se ela não se contentava com os confessores que a ordem colocava à sua disposição, paciência. Ele tinha mais que fazer. Não se dispunha nem mesmo a confessá-la.

 

Os sábios assustam-se

À falta de um orientador confiável, Teresa, aos poucos, decidiu abrir-se com D. Francisco. Em longas conversas, muito a conta-gotas, foi-lhe revelando as graças recebidas, as delícias, a loucura celestial, a voz do Senhor que a ordenava servir-Lhe e ignorar o resto.

A cada dia, o velho estudioso ficava mais preocupado. O que escutava não lhe parecia normal. É certo que tais graças e tal grau de evolução espiritual já tinham sido conquistados por outros religiosos. Mas era gente que passara por um longo processo de penitências e mortificações, que havia desenvolvido a virtude num patamar muito acima das pessoas comuns. Ninguém jamais tinha ouvido falar numa freira - mulher, ainda por cima! - que, alardeando muito mais as suas limitações e receios do que as suas virtudes, tivesse chegado tão perto da iluminação. Parecia mais coisa de iluminada do que de uma religiosa sincera.

Quando Teresa, finalmente, abrira o seu coração e lhe contara, sem reservas, o que se passava no seu enamoramento pelo Senhor, Francisco de Salcedo ficou assustado. «Tome cuidado», recomendou. «Há fortes sinais da presença do maligno nesses seus estados alterados.»

Sem perda de tempo, chamou Gaspar Daza que, desta vez, veio correndo.

 

Palavras para os teólogos

Diante dos dois teólogos, os piores temores de Teresa confirmaram-se. Nenhum deles acreditava que ela estivesse, de facto, em comunicação com Deus. De tudo o que lhes contara, causou preocupação especial o que ela chamava de «o sono das faculdades». Já nervosa, aos prantos, buscava aflita as palavras necessárias para provar que não estava a inventar, nem a iludir-se. Mas elas não vinham. Ou, pelo menos, não chegavam com a convicção necessária, ou com a racionalidade exigida pelo momento.

Em busca de argumentos teológicos que lhe parecessem consistentes, acabou por lançar mão de um recurso pouco hábil. Destacou no livro A Ascensão do Monte Sião, de Bernardino de Laredo, as frases que melhor exprimiam aquilo que sentia. Estava tudo ali, e Teresa julgava que a palavra de um estudioso convenceria com mais facilidade os doutores.

Grande asneira. Jesuítas como Salcedo e Daza viam os místicos - como Bernardino de Laredo - com desconfiança. O arrebatamento franciscano parecia-lhes sentimental demais, muito mais baseado na experiência do que na argumentação. Teresa não dialogava com contemplativos, mas com intelectuais.

Os letrados recolheram exemplar anotado do livro de Laredo e pediram-lhe que fizesse um relato, por escrito, das experiências que tinha tido. Com esse material em mãos, dedicaram-se a estudar o caso. Algum tempo depois, deram o veredicto: era o Demónio, e não Deus, quem estava a manifestar-se nos seus transes. Ela deveria interromper imediatamente a oração mental.

Compreensivos, não a denunciaram à Inquisição. Não era caso para tanto, uma simples religiosa confusa. Limitaram-se a encaminhá-la a um confessor: o padre Diego de Cetina, um jovem sacerdote, ainda estudante de teologia, conhecedor de Osuna e dos místicos contemporâneos. No entanto, após ouvir Teresa, em confissão, algumas vezes, impressionado com a sua sinceridade e com a vivacidade dos seus argumentos, declarou: «É Deus quem se manifesta aqui.» Ela poderia continuar seus exercícios, desde que sob a supervisão de um orientador.

 

O coração trespassado

Interiormente, Teresa tinha absoluta convicção de que não estava a ser enganada pelo Demónio. Mas a sua certeza não era suficiente para legitimar diante dos outros o que sentia. E tal reconhecimento era fundamental. Tudo o que se passava entre a alma e Deus devia ser submetido ao crivo dos especialistas. Eram os teólogos, letrados e doutores os únicos que podiam dar a palavra final que decidiria o seu destino.

Teresa também tinha lido muitos livros. Lia em espanhol, é verdade, e não em latim - a única maneira de ser intelectualmente respeitada na época. E lia com a alma, bebendo as palavras que necessitava e desprezando as outras. Mais apaixonada do que crítica, desenvolvera um modelo de argumentação muito distante da frieza académica dos letrados.

No entanto, nem mesmo os seus livros preferidos podia citar sem temor. A maior parte deles tinha sido proibida. Um dos principais tinha sido Audi, filia do teólogo João Ávila, que acabara encarcerado pela Inquisição por - entre outras coisas - sustentar que Deus podia falar às mulheres. Embora prevenindo os leitores contra as ilusões e os excessos, Ávila afirmava que Deus pode falar a todo mundo, e não apenas a quem tinha sufocado dentro de si todos os desejos, fraquezas e imperfeições.

O facto é que não podia citar João Ávila, nem Osuna, nem nenhum dos autores que a tinham conduzido à vida mística, não tinha estudado na universidade, não conhecia regras académicas de argumentação e já confessara os seus arroubos de «loucura celestial».

Mas não estava sob suspeita por falta de cultura, pelo contrário. A fragilidade mental das mulheres era opinião corrente na época. Nem mesmo a própria Teresa contestava a incapacidade intelectual feminina. Os seus textos estão repletos de alusões à sua própria ignorância. (E também perpassados por uma fina ironia em relação à sabedoria dos letrados e doutores.)

No entanto, assim como era consenso que as mulheres não raciocinavam, também o era que constituíam as presas mais fáceis para as armadilhas do Demónio. Está nos Provérbios: «A mulher deu início ao pecado, pelo qual todos morremos.»

 

Os doutores

Depois do desastrado primeiro relato escrito em 1554, Teresa tivera alguns encontros fundamentais com homens que fortaleceriam as suas convicções. Dois deles - Francisco Borgia e Pedro de Alcántara - viriam a ser canonizados após as suas mortes. Grandes místicos, deram a Teresa a segurança necessária para prosseguir na oração numa época em que parecia estar a ser atirada de um lado para o outro. A aprovação de Borgia e de Pedro fora fundamental para que Daza e Salcedo voltassem atrás na opinião pouco lisonjeira que tinham das experiências da monja.

Mas, na realidade, nem os letrados nem os seus confessores se entendiam, e cada um dava-lhe orientações diferentes. Um mandava-a evitar a oração, outro autorizava-a desde que Teresa fugisse dos regalos que Deus lhe concedia, um terceiro mandava-a mortificar a carne. Entre uma opinião e outra, a sua história espalhava-se.

As constantes saídas de Teresa do mosteiro para encontrar-se com diferentes confessores, as numerosas visitas que recebia, os seus transes, o seu comportamento, cada dia mais suspeito aos olhos das irmãs, tudo contribuía para que se multiplicassem versões sobre o seu caso.

Se havia quem a apoiasse, também não faltavam religiosos maldosos a espalhar intrigas. Um grupo de jesuítas chegou a considerar a hipótese de exorcizá-la, com amplo apoio das monjas da Encarnação.

De tudo aquilo, Teresa só conseguia compreender uma coisa: apenas o Senhor detinha a verdade absoluta. Os homens, com seus arrazoados e palavras cultas, limitavam-se a arranhar a superfície dos mistérios. Se desejava encontrar, de facto, a amizade com Deus, deveria concentrar-se na oração.

Na realidade, naquela altura, não se tratava mais de uma opção. Havia muito, Teresa perdera o controlo sobre os seus arroubos. Tinha visões, ouvia a voz do Senhor, e sentia que era Ele quem, de facto, a orientava.

Quando me mandaram (...) resistir, os favores [do Senhor] aumentaram muito. Mesmo quando me queria distrair, eu nunca saía da oração. Mesmo dormindo, tinha a impressão de estar nela, porque cresciam o amor e as queixas que eu fazia ao Senhor; não podia suportar não pensar nele, nem isso estava ao meu alcance, por maior que fosse o meu desejo e por mais que me esforçasse. No entanto, obedecia quando era possível; mas era pouco, ou quase nada, o que eu podia fazer. O Senhor nunca me disse que não obedecesse mas, ao mesmo tempo que me mandava obedecer, dava-me garantias, ensinando-me o que eu haveria de dizer às pessoas (...), dando-me razões tão fortes que me deixavam plena de confiança.

Certa vez, quando se curvava à vontade de um confessor que a havia mandado carregar sempre uma pequena cruz durante a oração - para afastar o suposto efeito do maligno -, «o Senhor tomou-a em Suas mãos e, quando ma devolveu, ela estava formada por quatro pedras grandes, muito mais preciosas do que diamantes, incomparáveis, pois quase não se pode comparar o visível com o sobrenatural».

Os êxtases de Teresa passaram a ser tão intensos que não podia ocultá-los de quem quer que fosse. «Mesmo estando entre pessoas, não podia resistir a eles.» Não conseguia mover o corpo; se estivesse de pé, caía como um objeto sem vida; mal conseguia respirar, apenas gemer. Mais de uma vez, teve a visão com o anjo que se tornaria famoso:

Eu via um anjo perto de mim, do lado esquerdo, em forma corporal, o que só muito raramente acontece. (...) Era pequeno e muito formoso, com um rosto tão resplandecente que parecia o dos anjos muito elevados que se abrasam. (...) Vi que trazia nas mãos um comprido dardo de ouro, em cuja ponta de ferro julguei que havia um pouco de fogo. Eu tinha a impressão de que ele me perfurava o coração com o dardo algumas vezes, atingindo-me as entranhas. Quando o tirava, parecia-me que as entranhas eram retiradas, e eu ficava toda abrasada num imenso amor de Deus. A dor era tão grande que eu gemia, e era tão excessiva a suavidade produzida por essa dor imensa, que a alma não desejava que tivesse fim, nem se contentava senão com a presença de Deus.

Se, enquanto ainda tinha algum controlo sobre os seus sentidos, o falatório no convento já era intenso, o que dizer agora! O clima era, francamente, insuportável.

Já próxima dos 40 anos, Teresa não era mais a mocinha que se deixava abater pelas chacotas e pouco temia as perseguições. Mas via com muita clareza que os seus anseios espirituais não cabiam na balbúrdia da Encarnação. Nem os dela e nem os de ninguém, a não ser o de religiosas que nada esperavam da vida conventual, além de uma vida sem percalços e uma eternidade confortável.

Cada vez mais, pensava em como a regra carmelita se tinha desviado dos seus objectivos originais. Tudo o que a havia seduzido na regra mitigada, 20 anos antes, agora parecia-lhe um empecilho para o crescimento.

 

O livro vivo

Para piorar as coisas, o ano era o terrível 1559, quando o inquisidor Valdés parecia o dono do mundo e das almas, quando Roma havia acabado de publicar um novo Index de livros proibidos e até bispos - como Carranzas, um dos defensores da oração mental - eram condenados pela Inquisição, para não falar de João Ávila, recentemente enviado para a prisão, e Francisco Borgia, processado.

Agora, praticamente não havia mais o que pudesse, ou quisesse, ler. Até mesmo as traduções, mesmo que parciais, das Escrituras e dos textos do Ofício divino, estavam proibidas. Falar com Deus, só em latim - o que excluía as mulheres e o povo de qualquer possibilidade de conhecimento.

Foi neste momento que o Senhor lhe disse:

Não te aflijas, eu te darei um livro vivo.

O livro vivo é uma das mais belas imagens do misticismo cristão. É o livro da experiência interior. Como se fosse uma obra encantada, expressa-se de maneira diferente para cada leitor/autor, mas as suas páginas contam apenas uma história: a da porta de comunicação que liga cada alma a Deus.

O seu tomo invisível constrói-se em cada dia. Muda, aperfeiçoa-se. Receber o livro vivo das mãos de Sua Majestade significa transformar a própria vida em obra. Nessa biblioteca incorpórea e infinita, homens, mulheres, intelectuais, conversos, cristãos-velhos, nobres e pobres estão unidos num só texto: o das criaturas que transformam o amor divino em palavras.

Embora ainda não o percebesse claramente, o livro vivo estava construindo-se em Teresa. Seu confessor de então, o jesuíta Baltasar Álvarez, estava cada vez mais perplexo com as ideias da monja que tinha sob os seus cuidados. Não era um homem despreparado, nem agia de má-fé. Mas, como a maioria dos religiosos do seu tempo, dava mais valor à cautela do que à busca da verdade. Inquiria, questionava, voltava a fazer as mesmas perguntas infinitas vezes a Teresa. Ela respondia, com firmeza cada vez maior, com argumentos cada vez mais sofisticados. Embora não fosse essa a sua intenção, Baltasar Álvarez, com intermináveis questionários, ajudava Teresa a aperfeiçoar o seu texto.

O seu texto vivo.

Ela, que na juventude tinha sido a melhor causeuse entre os seus pares, que na vida adulta fora considerada a estrela do locutório, agora afinava novas palavras, novas ideias. Em breve, os tempos em que gaguejara diante dos letrados estariam definitivamente enterrados.

Dia a dia, o livro inscrevia-se por sob sua pele com a nitidez de uma tatuagem de luz.

Para melhor compreendê-lo, em 1560, fez um voto de perfeição. Não era um dos votos obrigatórios que a noviça faz ao tornar-se monja, mas um passo a mais, opcional, na direção da santidade. Prometer a perfeição significa ampliar a vigilância sobre os próprios actos e pensamentos. Era nunca mais mentir, nem enganar, nem fazer de conta. Agora, estava face a face com Deus. Só ele poderia julgá-la.

 

De volta ao Carmelo

Em torno de Teresa, no entanto, não havia apenas intrigas e incompreensão. Ao longo do seu percurso, acumulara boas relações, além de um selecto grupo de monjas que a acompanhava e admirava. E foi entre esse grupo que começou a nascer a ideia de fundar um novo mosteiro, que seguisse a regra carmelita primitiva, dedicada à contemplação e à meditação, baseado na clausura absoluta e rigoroso silêncio. Retornariam aos pais da Igreja, aos primeiros eremitas, às beatas radicais. Voltariam a um tempo em que a Espanha ainda não estava manchada pelo ouro que vinha das Américas, em que ainda não havia o frenesi de poder e cobiça que a tudo esmagava. Um tempo de pobreza e simplicidade, no qual apenas o desejo de servir a Deus importava.

No novo mosteiro, de acordo com a regra primitiva, a oração mental teria condições não apenas de ser praticada, mas também de ser preservada, como um tesouro ameaçado pelos tempos obscuros.

Era bom sonhar, e Teresa sonhava. Um pequeno grupo de monjas, não mais do que 15, totalmente fechadas para o mundo, vivendo em silêncio e pobreza, bem distantes das intrigas, da política eclesiástica e dos confessores burocráticos. Criariam as próprias regras e tudo o que pudesse afastar as irmãs do crescimento espiritual seria banido. Neste paraíso recluso, não existiria lugar para questões de linhagem, nem diferenças sociais. Ninguém disputaria confortos, porque não haveria conforto algum. Ninguém seria melhor do que ninguém. Estariam unidas, exclusivamente, pelo desejo de servir a Sua Majestade. A passividade amorosa seria o seu modo de vida.

A notícia logo chegou aos ouvidos de D. Guiomar de Ulloa, uma das jovens nobres avilenses que frequentemente solicitava a presença de Teresa em sua casa e que, prontamente, se dispôs a ajudar no que fosse necessário. Rica, bem relacionada e muito objectiva, D. Guiomar rapidamente começou a esboçar planos para levantar recursos e autorizações.

Primeiro, teriam de encontrar um local adequado. Existia. Era uma pequena casa, próxima do campo, com largos horizontes, boa luz natural, ventilada e repleta de sons de pássaros e abelhas. O Deus que circulava nos seus arredores era o da Criação, o dos primeiros dias, quando o mundo era recém-nascido e tudo explodia em cores, cheiros e sons. Estava um tanto abandonada, é verdade, e precisava de algumas adaptações para transformar-se em mosteiro. Mas, pela sua extrema simplicidade, não era cara.

Seria um primeiro passo bem concreto e estava ali, ao alcance do grupo. Era questão de ter a iniciativa. Teresa hesitou. Sabia que nada seria tão fácil. E que, uma vez tomada a dianteira, estaria irremediavelmente comprometida.

Mais uma vez, ouviu a voz do Senhor. Ele ordenava-lhe que fosse em frente. Só recomendava algumas cautelas como, por exemplo, não fazer nada sem falar com o seu confessor. E, antes que Teresa replicasse, enviou, por meio dela, um recado. Que Baltasar àlvarez não criasse obstáculos, uma vez que aquela era a Sua vontade.

 

Agruras do confessor

Pobre Baltasar Àlvarez. Com certeza, daria um braço para não se ver metido em tais apuros. Teresa não tivera coragem de repetir-lhe, pessoalmente, as palavras do Senhor. Mas enviara-lhe uma carta. E era essa carta que, agora, lhe queimava as mãos. Estava convicto da sinceridade da monja. Mas também sabia que poderiam - ambos - ser denunciados à Inquisição por uma ousadia daquelas. Uma coisa era que Teresa tivesse visões. Outra, bem diferente, era que pretendesse formar seguidores. A experiência individual por si, já tão combatida na época em que viviam - ganhava cunho político. E explosivo. Trazia no seu seio a defesa da espiritualidade, o questionamento não apenas da ordem carmelita mitigada mas também do modus vivendi da nobreza reproduzido nos conventos, defendia a capacidade das mulheres se comunicarem com Deus. Enfim, aquilo não era uma carta, mas a peça de abertura de um inquérito.

Mesmo apavorado, Álvarez não teve coragem de negar o pedido da sua orientanda. Que outros o fizessem em seu lugar. Absteve-se de aprovar o que quer que fosse, levantou uma série de objecções ao projecto e recomendou que Teresa pedisse autorização ao provincial da ordem carmelita, o padre Gregório Fernandez.

Teresa obedeceu. Mas, paralelamente, encaminhou a petição para a criação da nova casa a Roma.

Mais uma vez, foi D. Guiomar de Ulloa quem se prontificou a ser portadora da solicitação em Ávila. Sem dúvida, o provincial seria muito mais sensível ao pedido de uma das mais importantes nobres locais do que de uma monja conhecida pelo seu comportamento polémico.

Contra todas as expectativas, Fernandez, o provincial da ordem carmelita mitigada pronunciou-se favoravelmente ao projecto. Hipóteses para tal disposição, há muitas. Podemos imaginar que, numa época em que o poder decisório era disputado entre Roma e as províncias, o padre quisera dar uma demonstração de independência. Ou que D. Guiomar lhe tivesse apresentado o projecto sob a sua face mais inocente

- a do grupo de monjas que apenas desejava retirar-se do mundo. Ou, ainda, que ele imaginasse que Teresa, voluntariamente mantida em regime de total reclusão, causaria menos problemas à ordem.

Fossem quais fossem as motivações, Gregório Fernandez avaliou mal a situação. A notícia da criação do novo mosteiro caiu como uma bomba sobre Ávila.

 

Ela enlouqueceu

Então, não bastava que Teresa fizesse pose de iluminada, agora queria também reformar a ordem que a havia acolhido. Criar um mosteiro onde as mulheres viveriam num estado de virtude comparável ao dos Pais da Igreja! Estava louca?

No Mosteiro da Encarnação, a reacção foi ainda pior. O mínimo que se ouvia pelos corredores é que se tratava de inaceitável ingratidão. Pretensão. Ofensa. Afinal, se ela queria arrecadar recursos, que o fizesse para o convento que a acolheu, e não para criar uma cisão na ordem. Não faltou mesmo quem quisesse denunciá-la à Inquisição.

No entanto, agora, segura de si, Teresa passava altiva por entre muralhas de palavras torpes. Nalguns casos, chegava a rir dos disparates que as irmãs lhe diziam. Lembrava-se do voto de perfeição. Deveria perdoar e amar aqueles que a ofendiam.

Mas os piores ataques partiram das outras ordens religiosas. Mais um convento em Ávila significaria dividir por um número maior a mesma quantidade de donativos que ano a ano era mais reduzida. A pressão chegou ao ponto de um padre da Igreja Santo Tomás dedicar um sermão, a esbravejar contra «às religiosas que saem dos seus conventos; sob pretexto de fundarem novas ordens». Na noite de Natal, um outro padre negou a absolvição a D. Guiomar de Ulloa - publicamente comprometida com a construção do novo mosteiro.

Diante de tamanha repercussão, o provincial dos carmelitas voltou atrás e retirou a promessa de autorização.

Mas não foi apenas ele quem sucumbiu à campanha contrária. Pressionado pelo seu reitor, Baltasar Álvarez, confessor de Teresa, proibiu-a de levar o projecto por diante.

De tudo, a posição de Álvarez foi a que mais doeu. Mas, mais uma vez, o Senhor ordenou que obedecesse ao seu confessor e que ficasse quieta até que chegasse o momento certo de agir.

 

Aquela que nada teme

Como quem passa anos caminhando meio às cegas e, no fim, vê que traçava um rumo muito bem definido, Teresa agora percebia que tudo o que tinha vivido transformava-se em matéria-prima para a sua temperança. As terríveis mortificações e penitências que alguns confessores mais tradicionais lhe haviam imposto - e às quais ela obedecera com muita relutância - tinham feito dela uma mulher que nada mais temia. Se tinha o Senhor a seu lado, que mal a poderia afligir? A fome? Havia muito que deixara de incomodá-la. A humilhação? Só a aproximaria de seu Mestre, que se deixou vilipendiar pelos homens por amor a eles. A dor física? Pois se ela mesma tinha submetido o corpo a tão intensos maus tratos apenas para estar mais próxima do sofrimento de Jesus. A morte? Pois existiria glória maior do que morrer para cumprir uma vontade de Sua Majestade?

Teresa tinha alcançado o estado em que nada mais poderia atingi-la. Pois tudo o que nos faz sofrer deriva da condição humana, e o santo - independentemente do seu reconhecimento oficial pela Igreja - é aquele que transcendeu a sua individualidade por meio do desejo absoluto de fundir-se no amor divino. Não há mais medo, nem paixões, nem vontade pessoal. Totalmente convicta de estar a cumprir ordens divinas, Teresa limitou-se a agradecer ao Amado.

O Senhor ensinou-me o imenso bem que é passar por sofrimentos e perseguições por Ele, porque foi tanto o aumento do amor de Deus que vi em minha alma (...) que fiquei espantada. Isso faz-me não poder deixar de desejar tribulações.

Mas agora não havia apenas uma coragem sobre-humana. Nos seus chamados «20 anos perdidos», Teresa tecera uma poderosa rede de relações. Tinha a seu lado desde nobres locais, como D. Guiomar, até frei Pedro de Alcántara e Francisco Borgia - religiosos com acesso ao rei Felipe II. Desde que os dois atestaram a legitimidade das suas visões, passara a contar também com o precioso apoio de Francisco de Salcedo e Gaspar Daza. Além deles, tinha ganho um aliado de última hora na figura de Pedro Ibañez, um dominicano que simpatizara com o projecto apresentado por ela e D. Guiomar, pouco antes de o provincial ter cancelado a licença para a fundação do novo mosteiro.

E foi com esses dois últimos que Teresa contou para que o projecto seguisse adiante. Afinal, o confessor proibira-a de tomar qualquer providência - mas nada dissera em relação aos seus amigos. A nova ordem surgia quase que em segredo. Era um risco imenso. No mínimo, Teresa corria o risco de prisão e excomunhão.

Durante cinco ou seis meses, permaneceu em silêncio. Na Encarnação, todos julgavam que estivesse envergonhada. Os ânimos foram-se acalmando em Ávila. O assunto parecia quase esquecido.

Finalmente, em Abril de 1561, o reitor dos jesuítas foi substituído. Dionísio Vásquez, aquele que tinha pressionado o seu confessor para que a fizesse parar com o projecto, partiu, dando lugar a Gaspar de Salazar, um homem culto e sensível às aspirações dos espirituais.

Teresa conhecia bem as inseguranças e hesitações do seu confessor. Mas também sabia que uma das características dos jesuítas era a de sempre seguir as ordens dos seus superiores. Se conseguisse convencer o reitor Salazar da justeza dos seus planos, o confessor voltaria atrás e deixa-la-ia prosseguir com o projecto do novo mosteiro.

Por isso, assim que teve uma chance, procurou o reitor. Ainda não o conhecia. Tudo o que sabia dele era que se tratava do homem capaz de fazer suspender a interdição que Baltasar Álvarez lhe havia imposto. Era o suficiente. Dirigiu-se a Salazar com a confiança iluminada de que faria dele um aliado.

Ao entrar no confessionário, tive um sentimento interior desconhecido que não me lembro de ter sentido, nem antes, nem depois com ninguém (...). Porque foi um prazer espiritual, uma sensação de que aquela alma havia de entender a minha, de que havia entre elas uma afinidade.

Não se enganara. Ao abrir a alma e deixar que as palavras fluíssem livremente, Teresa não discutia teologia, mas formava uma teia de palavras capaz de atrair para o seu campo gravitacional toda a simpatia do interlocutor. A monjinha assustada que gaguejara diante dos doutores da Igreja era passado. Agora, as palavras que saíam aos borbotões eram resultado de uma longa experiência interior, de profunda maturação. Falava rápido, é verdade. Os seus olhos brilhavam, a voz era inflamada. A loucura celestial tomara-a por inteiro. Mas o seu discurso não era caótico. Transbordava em argumentos brilhantes, que tocavam directamente o coração do velho reitor.

Totalmente rendido ao projecto de Teresa, Gaspar de Salazar não ofereceu resistência quando, pouco tempo mais tarde, a monja lhe pedira para prosseguir a obra.

Pouco tempo depois desse contacto, o Senhor voltou a impelir-me a tratar da questão do mosteiro, mandando-me dizer ao meu confessor e a esse reitor das muitas razões e motivos para que eles não se tornassem empecilhos a isso.

 

A casa erguida em segredo

A casinha já estava comprada, em nome de Joana, para não levantar suspeitas. Mas precisava de reformas. Era minúscula e necessitava apenas de algumas adaptações para não prejudicar a saúde das que ali viveriam. Isso não significava conforto. Tudo seria muito tosco e até mesmo grosseiro. Nenhum enfeite, nada supérfluo. Mas faltava uma pequena capela.

Impossibilitada de buscar recursos, já que tudo estava a ser feito quase clandestinamente, Teresa contratou operários sem saber como os pagaria. Na hora certa, o dinheiro apareceu. Seu irmão, Lourenço, tesoureiro real em Quito e dono de muitos feudos, enviara-lhe, da América, exactamente a quantia necessária para finalizar o projeto: 200 ducados.

Mas a ideia causava tanta celeuma em Ávila que até mesmo pequenas providências, como levantar um muro, se transformavam em façanhas. Há um causo famoso que, provavelmente, ocorreu nesse período. Contam que Teresa precisava de um despachante para pôr em ordem alguns papéis. Apresentaram-lhe um sujeitinho insolente, um dos poucos no local que se dispunha a trabalhar em obra tão polémica. Debochado, provocador, disse à monja que faria o serviço de graça se ela lhe desse um beijo. Era para ser uma afronta. Mas Teresa, felicíssima de ver o projecto a caminhar, ignorou a ofensa. Prontamente, ergueu-se da sua cadeira e beijou o sujeito. Afastou-se, rindo muito, e comentando:

- Nunca pensei que um notário me saísse tão barato!

Envergonhado, o homem cumpriu a palavra e a papelada começou a correr.

 

Visões do esplendor

Por essa época, as visões de Teresa tornaram-se muito intensas. A oração espiritual pusera-a em contacto directo com Deus, ela entregava-lhe todos os seus problemas, desde como lidar com os operários até às questões mais subtis da alma.

No dia da Nossa Senhora da Assunção, dirigiu-se à capela da ordem de São Domingos onde, tantos anos atrás, o padre Vicente Barrón a orientara na retoma da vida espiritual logo após a morte de D. Alonso. Era um local muito especial, cheio de recordações. Começou a refazer, interiormente, o seu trajecto. As lembranças chegavam, as saudades, os arrependimentos.

De repente, veio-me um arroubo tão intenso que quase perdi os sentidos. (...) Enquanto me encontrava naquele estado, tive a impressão de que me cobriam com uma roupa de grande brancura e esplendor. No início, eu não via quem o fazia, tendo percebido depois Nossa Senhora a meu lado direito, e meu pai São José, do esquerdo, adornando-me com aquelas vestes. Eles deram-me a entender que eu estava purificada dos meus pecados.

Teresa prossegue:

«Depois que acabaram de me vestir, estando eu com enorme deleite e glória, tive a impressão de que Nossa Senhora me tomava as mãos dizendo-me que lhe dava muito contentamento ver-me servir ao glorioso São José e que eu estivesse certa de que o mosteiro se faria de acordo com meu desejo. (...) Como sinal de verdade, ela dava-me uma jóia.

«Tive a impressão de que ela me punha no pescoço um colar de ouro muito formoso, do qual pendia uma cruz de muito valor. O ouro e as pedras dessa jóia são tão diferentes dos de cá que não há comparação. (...) Pareceu-me então vê-los subir ao céu, com uma enorme corte angélica. Fiquei com muita saudade, mas tão consolada, enlevada, recolhida em oração e enternecida que por algum tempo permaneci quase fora de mim, sem poder mover-me nem falar.»

Desde o primeiro momento, Teresa quisera dedicar seu mosteiro a São José, o santo que lhe havia salvo a vida 20 anos antes. Agora, depois daquela visão, parecia-lhe mais certa do que nunca a ligação com o santo e com a Virgem Maria, os dois guardiões do seu projecto na Terra.

Durante essa visão, São José e a Virgem disseram uma coisa importante: Teresa não deveria submeter-se à jurisdição da sua ordem, mas directamente à do bispo da cidade. Era um conselho ousado, mas politicamente hábil. Havia um movimento, impulsionado pelo Concílio de Trento, para favorecer a concentração do poder nas autoridades diretamente ligadas a Roma, em detrimento das instâncias decisórias paroquiais. Além disso, por motivos mais do que óbvios, a ordem carmelita jamais veria com bons olhos uma tentativa de reforma no seu próprio seio.

O mesmo não se pode dizer do bispo de Ávila, D. Álvaro de Mendoza, conde de Pérnia. Teresa não lhe apresentaria nenhum disparate. A despeito da antipatia que os movimentos espirituais provocavam no meio clerical, havia no projecto de reforma da ordem muitos pontos em comum com o que então se discutia nos altos escalões da Igreja. Pressionada pelo avanço da reforma protestante, Roma precisava, justamente, de iniciativas que demonstrassem apoio à moralização das ordens religiosas, ao retorno à pobreza como ideal de vida, à observância da clausura. Era preciso reerguer as ordens religiosas que manifestavam franca decadência. Além disso, a histeria antiespiritual era muito mais reflexo de uma posição da Inquisição espanhola do que do papado - embora também ali a palavra dos letrados fosse mais considerada do que a dos místicos.

Mais afinado com os objectivos de Roma do que com as disputas paroquiais, D. Álvaro de Mendoza tomou o projecto sob sua protecção. Viria a ser o superior do convento de São José entre 1562 e 1577. Hoje, uma placa de mármore branco, fixada no seu mausoléu, informa os visitantes que ele foi o poderoso protector da ordem carmelita reformada.

O apoio do bispo foi fundamental para que o convento se transformasse num empreendimento viável. No entanto, ainda faltava o breve do papa.

 

Partida para Toledo

Finalmente, tudo parecia correr bem. Mas esse tipo de segredo jamais consegue ser mantido por muito tempo. Num lugar pequeno, como Ávila, nenhuma reforma de casa conseguia permanecer oculta. Menos ainda uma casa com capela. Muitíssimo menos se essa casa com capela pertencesse à irmã de Teresa, e a monja e D. Guiomar supervisionassem pessoalmente a obra.

Do jeito como a notícia se espalhava, não demoraria muito e o provincial apareceria por lá, embargando o projeto e criando toda sorte de empecilhos. A licença de Roma resolveria todos esses problemas, uma vez que o provincial não ousaria opor-se ao bispo depois da chegada do breve. Mas o documento tardava. No momento, havia uma disputa velada de poder entre o provincial e o bispo.

Gregório Fernandez, no entanto, tentou ser político. Em vez de entrar em confronto directo com Teresa, preferiu afastá-la de Ávila por algum tempo. Assim, nas vésperas do Natal de 1561, ordenou-lhe, sob voto de obediência, que partisse imediatamente para Toledo, onde deveria assistir D. Luísa de la Cerda, amiga íntima do provincial.

Não era a primeira vez que a presença de Teresa era solicitada pela nobreza. Mas agora era diferente. D. Luísa era da família dos Grandes de Espanha, irmã do duque de Medinacelli, amiga de alguns dos mais renomados teólogos da sua época. No entanto, nem os seus amigos doutores, nem a sua posição social, lhe valiam de nada naquele momento. Depois de perder seis dos seus sete filhos, todos mortos quando ainda eram pequenos, D. Luísa enviuvara. Desde então, era tomada por crises de angústia e tristeza que a deixavam prostrada. A fama de Teresa chegara a Toledo onde, ao contrário da acanhada Ávila, já era considerada santa. E a viúva depositava nela esperanças de melhoras. Nada mais conveniente para o provincial das carmelitas do que aquele pedido.

Teresa ficou arrasada. Logo agora, que a reforma da casa chegava ao fim e tudo parecia tão bem encaminhado. Mas não tinha como desobedecer. Ainda era uma carmelita da regra mitigada e Fernandez era o seu superior. Dessa maneira, partiu para Toledo, deixando D. Guiomar e Pedro Ibañez encarregados das derradeiras providências para a abertura do Mosteiro de São José.

 

A vida dos grandes

Teresa nunca tinha estado antes numa cidade como Toledo, que então contava com cerca de 90 000 habitantes. Aquilo assustava-a. O constante burburinho das ruas, a actividade febril, tudo lhe parecia excessivo, movimentado demais, francamente perturbador. Além disso, havia a miséria - de uma forma que ela jamais vira antes.

Em Ávila, existiam mendigos, é certo. Estavam por toda parte. Os pobres eram considerados uma espécie de intermediários entre a nobreza e Deus - Dá aos pobres e emprestas a Deus, diz o ditado. Esmolas e doações ajudavam a pavimentar o caminho que levava os ricos ao céu. Alguns nobres chegavam a reservar somas consideráveis para serem distribuídas pelos «seus» pobres em testamento.

Em Toledo, no entanto, a miséria transformava-se num espectáculo dantesco. Era tão ostensiva quanto o luxo desbragado dos palácios. Pelas ruas, espalhavam-se multidões de pessoas feridas - muitas vezes propositalmente -, havia casos de gente que furava os olhos dos próprios filhos para torná-los mais rentáveis na mendicância. Cada miserável deveria parecer mais necessitado do que outro, numa macabra concorrência de horrores. Valia tudo para atrair a compaixão dos que desfilavam conforto pela rua.

Misturada à multidão de pedintes, uma variada fauna de gatunos e vigaristas infernizava a vida de quem não contava com residências bem guardadas por muitos muros e criados. Bandos de ladrões assaltavam e matavam por qualquer motivo. Todo mundo tinha uma história de morte violenta para contar. Um fervilhante submundo, totalmente fora do controlo das autoridades, espalhava-se pelas ruelas escuras e ditava as regras do quotidiano da cidade.

Depois de se ver invadida pela miséria das ruas, foi um choque para Teresa avistar o palácio dos duques de Medinacelli. Cercado por vastos jardins, adornados por fontes, o palácio erguia-se, imponente, no centro de uma ampla planície. Era quase uma cidade, com um interminável vai e vem de criados, damas de honra, valetes e agregados. À época, 300 pessoas circulavam por ali. No século seguinte, a casa de Medinacelli chegaria a abrigar mais de 700 pessoas.

Não é improvável que, na sua juventude, tivesse sonhado tornar-se uma grande senhora. Mas agora, já cercada pelos muros do castelo dos La Cerda, podia bem perceber que teria detestado tudo aquilo.

Se, entre a nobreza de Ávila, as questões da honra e da linhagem já a incomodavam, ali pareciam-lhe superlativas. Jamais a posição social era deixada de lado. Tudo - a roupa, a alimentação, os gestos mais pessoais - era carregado de sinais que sublinhavam não apenas a linhagem de cada dama que cercava D. Luísa de la Cerda como também serviam como uma espécie de código secreto para a demonstração de prestígio.

Nem por isso Teresa se intimidou. Tratou as grandes damas «com a naturalidade de quem fosse igual a elas». E foi justamente essa maneira de ver a pessoa que se esconde por trás da sua orgulhosa posição que lhe permitiu chegar ao coração de D. Luísa. «Vi que ela era mulher, e tão sujeita a paixões e fraquezas quanto eu.» Cercada de aduladores e intrigas, sempre obrigada a cumprir complicados rituais de afirmação de honra, vergada sob o peso da etiqueta citadina, D. Luísa viu na monja de voz calorosa e franqueza desconcertante uma saída para os seus males.

Nascia ali uma amizade que seria preciosa para o futuro de Teresa. E, do estreito convívio com a nobre toledana, uma série de definições a respeito de como a honra e a linhagem seriam tratadas no mosteiro de São José. Não chegavam a ser formulações novas. Havia muito que ela conhecia os caminhos enganosos da honra. Nalguma parte oculta da sua memória, jaziam histórias dolorosas: um avô desfilando de sambenito, um processo que desestabilizara a sua família, um vago temor que perpassava todos os actos, uma ameaça subtil e permanente que pairava sempre sobre a família.

Mas agora, estava decidido - ao contrário da Encarnação e da maioria dos conventos da época -, a ordem carmelita reformada não importaria para dentro dos seus muros as normas e convenções da vida mundana. A única hierarquia admitida seria a religiosa. Ignoraria os estatutos de limpieza de sangre que ainda vigoravam, mesmo tanto tempo depois da expulsão dos judeus e do esmagamento dos conversos.

Para ingressar no seu mosteiro, seria suficiente a sinceridade da noviça. Ela teria de desejar, acima de tudo, despojar-se da sua condição, fosse ela qual fosse. E nada melhor para simbolizar essa disposição do que os trajes das monjas (e o dela própria). Não passariam de uma túnica feita de lã grosseira e um véu do mesmo tecido. Nos pés, apenas sandálias rústicas (de onde vem o nome «carmelitas descalças»). Estariam vestidas como as mais pobres entre os pobres, sem nenhuma sombra de vaidade mundana. Nada de panejamentos finos, nada de conforto, nada de protecção em excesso. A roupa deveria limitar-se a ocultar o corpo e a não deixar que a saúde fosse muito afectada pelas intempéries.

Ali dentro, nobres ou plebeias, viveriam na mais extrema pobreza, tendo para sobreviver apenas o estritamente necessário.

Para D. Luísa, literalmente aprisionada nas suas jóias, penteados e pesadas roupagens, todo aquele desejo de simplicidade parecia um sonho. Embora nem lhe passasse pela cabeça abandonar o palácio para se enclausurar no Mosteiro de São José, o simples facto de alguém imaginar tal lugar e lembrar que Deus queria apenas um espaço na sua alma para inundá-la de amor, desde que deixasse um pouquinho de lado tantas convenções e luxos - abria à sua frente um amplo leque de possibilidades de libertação.

Encantada com a visitante, D. Luísa apresentou-lhe o padre Garcia de Toledo, um jovem dominicano, teólogo, que se prontificava a ser seu confessor durante a sua estada. O facto de o padre ter contacto com João Ávila, o grande doutor místico, autor do Audi, filia, e com Pedro de Alcántara parecia-lhe muito auspicioso.

Garcia de Toledo simpatizou imediatamente com a monja. Mas estávamos em 1561, um tempo ainda incendiário, no qual qualquer palavra mal colocada podia deixar um confessor em apuros. Embora fascinado com as experiências que Teresa lhe relatava, assustava-se com os seus transbordamentos. Mais uma vez, ela teria de convencer um letrado de que as suas experiências não tinham origem diabólica, que embora fosse mulher ela falava com Deus, que os seus estados de inconsciência eram uma maneira de estar próxima de Sua Majestade. Etc., etc., etc.

Aquilo parecia nunca ter fim. Sempre haveria mais um confessor, mais um doutor, mais um letrado para questionar tudo antes de acreditar nela? Quantas vezes mais teria de voltar ao zero?

Mas Garcia de Toledo não queria - ou não podia decidir sozinho. A história de Teresa era extraordinária de mais. E ele era muito mais político do que engajado na causa dos espirituais. Por isso, assim como tinham feito Francisco de Salcedo e Gaspar Daza, tantos anos atrás, pediu-lhe que fizesse um relato, por escrito, das suas experiências para que ele as encaminhasse aos seus superiores.

Mais uma vez, teria de recorrer às suas próprias palavras para explicar o que acontecia quando Deus suprimia a sua capacidade de raciocínio e lhe explicava coisas que não podiam ser ditas com palavras.

Mas agora possuía o seu livro vivo.

 

Que sejamos todos loucos de amor

Na realidade, Teresa já iniciara o relato, a pedido de Baltasar Álvarez, seu confessor em Ávila. Falava da sua infância, da sua criação, de como ingressou no primeiro convento, da doença, da proximidade da morte, da descoberta da oração espiritual. Mas agora, em Toledo, vinha-lhe o desejo de dar um rumo diferente ao texto. Ou, por outro lado, de transformá-lo numa peça definitiva. Queria escrever ali toda a sua experiência, mas de tal modo que nunca mais precisasse de repetir, pela milésima vez, que não estava possuída pelo demónio. Tinha, também, uma ambição secreta: a de que Garcia de Toledo enviasse o seu relato ao grande místico João Ávila, o homem condenado por defender a possibilidade de as mulheres falarem com Deus.

Não se sabe exactamente em que ponto do relato muda o seu interlocutor. Mas, desde o capítulo 16, fica muito clara a mudança de tom. Nalguns momentos, Teresa dirige-se a Deus, mas em vários outros é directamente ao confessor que fala. Chama-o de «meu filho», já como quem ensina e não como quem pede aconselhamento. Ao contrário do tempo em que tropeçava nas palavras, agora quer contagiar o seu leitor, quer convencê-lo, arrastá-lo para a sua divina prisão e fazê-lo padecer do mesmo mal de amor que a aflige. Apaixonada, escreve:

Que fiquem loucos do Vosso amor todos com quem eu me relacionar, ou que eu já não me relacione mais com ninguém - ou, então, que já não me importe com nada deste mundo, ou que dele seja tirada por Vós.

Não procura mais defender-se. Nada mais teme. Aos que possam vir a acusá-la de bruxaria, provoca:

Não entendo esses medos. Por que dizer «Demónio! Demónio!», quando se pode dizer «Deus! Deus!» - fazendo tremer o Demónio? Sim, pois já sabemos que o Demónio não pode sequer mover-se se o Senhor não lhe permitir. Que digo? Sem dúvida, tenho mais medo dos que temem muito o Demónio do que dele mesmo, porque ele não me pode fazer nada, ao passo que aqueles, especialmente se são confessores, trazem muita inquietação.

Mas não é aos inquisidores que tenta convencer. É aos seus futuros aliados. Àqueles que ainda a vêem com apreensão - mas podem ser atraídos para a sua órbita luminosa. Por isso, Teresa dirige-se directamente a Garcia de Toledo:

O que vejo parece um sonho e só queria ver enfermos deste mal que me aflige. Suplico a vossa mercê que sejamos todos loucos de amor por Quem por nós se fez chamar assim.

E prossegue cada vez mais inflamada:

Vossa mercê diz que me estima, e desejo que o prove, dispondo-se a que Deus lhe conceda essa graça, porque são muito poucos os que não têm razão demasiada quando se trata dos seus próprios interesses. Talvez eu a tenha mais do que todos: que vossa mercê, Padre meu, que é também meu filho, por ser meu confessor, a quem confiei a minha alma, não o permita. Desiluda-me com verdade, embora não se costumem dizer verdades.

Mas quem ousaria fazê-lo? Garcia de Toledo? Tonto com as páginas que se acumulavam à sua frente, possivelmente preocupado por não poder mostrá-las a quem quer que fosse sem se comprometer, via-se irremediavelmente atraído para o convite: «Prove!»

No entanto, Teresa é hábil. Sabe que o seu confessor pode ser acusado de ser demasiado complacente. Por isso, acrescenta ao fim do capítulo 16:

Se lhe parecer conveniente, rasgue vossa mercê o que eu disse, tomando-o como carta pessoal, e me perdoe, pois me mostrei muito atrevida.

Pronto. De agora em diante, seria assim. Não lhe interessava catequizar o mundo. A experiência que propunha não era para todos, mas apenas para aqueles realmente desejosos de encontrar o caminho divino pela via do sensível. E essa corda ela sabia tocar muito bem com as palavras. Uma vez que pousasse os olhos sobre a figura de um companheiro, não o deixaria sair ileso do encontro.

Ali, em Toledo, as palavras fluem como água. Transbordam pelos dedos. Teresa escreve como quem fala, pouco preocupada com a pontuação, com repetição de palavras, com as idas e vindas do texto. O livro que sairia dali seria único em seu género. É repleto de palavras fortes, imagens poderosas. Teresa deixa correr a fantasia, é prolixa, desculpa-se pelos excessos mas nem por isso os reprime. O seu texto, exuberante e embriagador, arrasta o leitor para um mundo cujo único valor e medida é a paixão.

 

As quatro águas

Prosseguiu. Explicou, da melhor maneira possível, o que não pode ser descrito com palavras: a inefável comunicação com Deus. Falou dos quatro estágios da oração espiritual, ou das quatro águas. Das dificuldades e alegrias de cada uma. Das maneiras de aperfeiçoar a alma para atingir os estágios seguintes. Dos percalços e conquistas. Explicou como falava com o Senhor e como Ele lhe respondia. Falou de êxtase, de arrebatamento, de loucura. Mas também de trabalho duro e pesado, de humildade e de dor. Descreveu, minuciosamente, como lhe surgiu a ideia de fundar um convento de Carmelitas Descalças, os passos já dados, os obstáculos que tinha enfrentado e a ajuda que o Senhor lhe dava, uma vez que «era da Sua vontade» que tal obra se

fizesse.

Seis meses depois de iniciado o relato, ainda não o tinha terminado. Escrevia, mostrava ao confessor, escutava as suas críticas e objecções, iniciava o capítulo seguinte. A obra, que seria concluída em Ávila, é o Livro da Vida, o primeiro escrito por Teresa a chegar até os dias de hoje.

 

Uma descalça no palácio

Certo dia, os guardas do palácio dos Medinacelli apanharam um susto. Uma pequena multidão de mendigos aproximava-se dos jardins. Entre eles, destacava-se uma mulher descalça, vestida com um hábito religioso em farrapos. Pedia para falar com Teresa.

Ela já esperava pela visita. Era Maria de Jesus, uma beata do carmelo de Alcalá. Jamais se tinham encontrado pessoalmente, mas cada uma conhecia bem a história da outra.

Maria era sete anos mais nova do que Teresa. Casou-se menina e, depois de enviuvar, entrou para o convento das carmelitas. Não chegou, no entanto, a pronunciar os votos definitivos. Antes disso, também incendiada pela ânsia de uma entrega mais completa ao Senhor, compreendeu que o carmelo mitigado jamais a conduziria aonde desejaria chegar. Assim como Teresa, decidiu reviver a regra original. No entanto, foi mais directa (ou mais ousada). Necessitava da autorização papal. E não tinha ninguém que servisse de portador para o seu pedido. Assim, partiu a pé e descalça, como teria feito uma monja do carmelo original. Chegou a Roma com os pés em carne viva, a roupa em farrapos, o corpo em frangalhos. E conseguiu a autorização. Fundou, em Mântua, um convento tão fechado, que suas monjas eram chamadas por «emparedadas».

Mais do que uma simples visita, Maria trazia uma experiência preciosa. Nos 15 dias passados no castelo dos Medinacelli, deu-lhe informações fundamentais - algumas, na realidade, um pouco preocupantes.

Teresa tinha pensado em muitos detalhes, mas não em todos. Além disso, o seu conhecimento da regra primitiva não era tão sólido. como julgava. Maria, ao contrário, gravara de cor as primeiras Constituições da regra. Era um livro vivo e falante. Por meio dela, Teresa tomou conhecimento de uma das principais fontes de litígio ligadas à reforma dos carmelos: a ausência de rendimentos. De acordo com a regra primitiva, o convento deveria viver exclusivamente de esmolas. Em ocasiões muito especiais, poderia aceitar dotes de noviças. Mas o mosteiro não poderia possuir nada. A vida perfeita exigia a perfeita pobreza.

 

Viver de amor

Era uma temeridade. Teresa tinha planeado justamente o contrário. Afinal, a sua experiência na Encarnação mostrará-lhe até que ponto a falta de dinheiro pode corromper a religiosidade. Depender das doações de familiares e protectores fazia com que o quotidiano se voltasse, irremediavelmente, para a captação de recursos e desviava a atenção das monjas daquilo que realmente importava.

Mas a regra primitiva era clara. Deveriam viver de esmolas.

A ideia era tão explosiva que pareceu viável a Teresa. Ainda assim, como era seu costume, pediu a opinião de várias pessoas. Tanto o seu confessor como letrados amigos opuseram-se frontalmente à ideia. Argumentos políticos não faltavam, todos muito sólidos e coerentes. Uma fundação sem rendas, encontraria muito mais dificuldades junto das autoridades locais - e Teresa não precisava de mais problemas, ou precisava?

Quase a convenceram.

Dois factos, no entanto, fizeram-na teimar na ideia da pobreza absoluta. O primeiro deu-se quando retornou à presença do Cristo na cruz. Ao vê-lo tão «inteiramente pobre e despojado», revoltou-se contra os cuidados daqueles homens que se pretendiam tão espirituais, mas se apegavam a questões tão mesquinhas. Afinal, Deus garantira que nada lhes faltaria. E ela compreendera bem. O amor do próximo fornecer-lhes-ia o pão. Era o que bastava para que se dedicasse inteiramente àquilo que, de facto, necessitava: o amor do Senhor.

Somado a isso, chegou uma carta de Pedro de Alcántara. Faltava, naquele debate, a palavra de um franciscano. O grande místico estava furioso. As suas palavras eram duras e directas.

Bem surpreso fiquei, posso assegurar-vos, por ver que entregais ao julgamento dos teólogos uma questão que em nada lhes diz respeito. Ainda se se tratasse de questão de processo ou caso de consciência (...). Mas, tratando-se de perfeição, devemos consultar apenas aqueles que a praticam (...). Se (...) quiserdes aconselhar-vos com teólogos alheios à vida espiritual, dotai-vos de sólidos rendimentos e verificai em seguida se uns e outros vos são mais úteis do que a pobreza abraçada por Cristo. (...) Não preconizo a pobreza por si só, mas a pobreza suportada com paciência, pelo amor do Cristo e, muito mais ainda, a pobreza desejada, buscada, abraçada por amor.

Foi o que bastou. Teresa decidiu-se. O mosteiro não teria rendimentos e as religiosas não possuiriam coisa alguma.

Era uma sucessão de riscos - e passar fome era o menor deles. Perderia a maior parte dos apoios que tão duramente havia conquistado entre os letrados. Atrairia a ira de conselheiros municipais e dos outros conventos. Seria chamada de irresponsável e de presunçosa. Mas onde o medo? Estava de tal modo disposta a tornar-se perfeita para o Amado, e a passar por cima do que fosse preciso para chegar ao seu objectivo, que chegou a escrever para Pedro Ibañez dizendo-lhe que «renunciava aos benefícios da teologia e lhe implorava que desta vez [a] poupasse de seu saber».

Ao seu lado, tinha a beata Maria e Pedro de Alcántara. Este último, tão empolgado quanto ela com a nova fundação, escrevera ao bispo de Ávila, garantindo-lhe que o projeto de Teresa nada tinha de irresponsável - era santo, pois «o Espírito de Deus está com ela».

Tal empenho era mesmo necessário. O novo convento ficaria sob jurisdição de D. Álvaro de Mendoza e o facto de não possuir rendimentos significava que a responsabilidade financeira pelo empreendimento recairia sobre o seu orçamento. Seria ingenuidade imaginar que o bispo aceitaria tal convite de bom grado.

Este, no entanto, era um problema para resolver mais tarde. As últimas definições tinham-lhe trazido profundo alívio. O Verão chegara, finalmente, banhando os dias com uma luz ofuscante. Estávamos em Julho de 1562 e o vento quente trazia o cheiro das plantas aromáticas e das flores que explodiam pelos jardins. Ali, também havia um rio cujo som parecia passar por dentro de suas veias, limpando toda a ansiedade e trazendo uma profunda sensação de paz. Embora cercada de luxo e conforto, a propriedade tinha um quê de Gotarrendura e da casa da sua irmã, Maria. Bastava-lhe caminhar um pouco, fechar os olhos, e o palácio de pompa e intrigas desaparecia. Ali, ao ar livre, entregava-se à oração da maneira como sempre preferira: em contacto directo com a obra do Criador.

Mas não se deixava enganar; estava no centro de uma tempestade. A tranquilidade não duraria muito.

 

Queres carregar a minha cruz?

A bomba chegou na forma de uma carta do provincial, firmemente disposto a impedir a fundação do novo convento - e ainda mais agora, que a notícia da opção pela pobreza absoluta já chegara a Ávila.

Não havia, no entanto, nem uma linha de recriminação. Aliás, o novo mosteiro não era assunto da carta. O provincial ignorara-o. Entre muitos elogios à alta espiritualidade e à firmeza moral de Teresa, escrevia-lhe para falar da eleição da nova superiora do mosteiro da Encarnação. Pedia-lhe que retornasse imediatamente a Ávila para concorrer ao cargo. Com o apoio dele, naturalmente.

Tratava-se de uma armadilha política, e das mais hábeis. Se enquanto estava em Ávila, a fama de Teresa já corria a Espanha, agora, a partir dos contactos feitos em Toledo, o seu nome era dos mais conhecidos. Até mesmo dominicanos com contacto com a Inquisição, como Garcia de Toledo e Pedro Ibañez, a respeitavam - embora discordando veementemente de algumas das suas posições. Não era mais uma monja estouvada que se pudesse imobilizar facilmente.

Por um lado, Gregório Fernandez, o provincial das carmelitas, ainda tinha esperança de capitalizar a fama da sua subordinada mais ilustre. Não havia nome melhor do que o dela para dirigir o Encarnação. E, depois, se o que ela pretendia era reformar a ordem, corrigindo desvios e aproximando-a das directrizes de Roma, não haveria oportunidade melhor. Por quê começar com um pequeno convento, se podia ter sob as suas ordens um imponente mosteiro com 180 monjas? Por outro lado, Fernandez sabia muito bem que a eleição de Teresa a prenderia no Encarnação por, no mínimo, três anos.

O provincial conhecia bem a teimosia da religiosa. Mas avaliava mal a sua ambição. Não era o poder que a interessava. Desprezava as honrarias e pagaria qualquer preço para não ter de arcar com responsabilidades oficiais.

A ideia de ter sob a sua direcção uma multidão de monjas sem vocação horrorizava-a. Nem mesmo a possibilidade de voltar por cima, comandando aquelas que tanto se tinham esforçado para humilhá-la nos últimos tempos a seduzia. Na sua mente, só havia um desejo: formar um pequeno grupo de monjas realmente devotadas para, juntas, se encerrarem na mais absoluta clausura e assim proteger ó tesouro da oração espiritual. Nada mais.

Não podia, no entanto, afrontar o provincial. E recusar tal convite seria quase uma ofensa. Mais uma vez, prostrou-se aos pés de Cristo, mergulhou profundamente dentro de si em busca da Sua palavra e deixou que o Amado decidisse por ela. Disse-lhe Sua Majestade: «Queres carregar minha cruz? Pois há uma que te espera.»

O que quereria dizer aquilo? Que deveria aceitar o convite ou tentar escapar à armadilha? Na dúvida, Teresa decidiu por si.

Faria as duas coisas ao mesmo tempo.

 

A última fagulha dos olhos de fogo

Obediente, retornou a Ávila. Mas rodeou-se de alguns cuidados. Em primeiro lugar, sabia muito bem que o poder do provincial nos assuntos internos do mosteiro era limitado. Mesmo em eleições de cartas marcadas - como sempre tinham sido as anteriores e seria aquela - ele não conseguiria impor um nome claramente rejeitado pela maioria das monjas. Fernandez esperava que Teresa se empenhasse para conquistar o cargo, que usasse a sua conhecida habilidade política para acalmar os temores das irmãs mais apegadas aos seus privilégios. Mas ela fez justamente o contrário. Antes da partida, escreveu às religiosas dizendo, com toda a clareza, que não desejava o cargo.

Nem precisaria de ter feito isso. Não passava pela cabeça de nenhuma delas elegê-la.

 

Fuga para Tiemblo

A autorização papal para a fundação do mosteiro tinha sido assinada no dia 2 de Fevereiro daquele ano. Mas só chegou a Ávila entre Julho e Agosto, no mesmo dia em que Teresa voltou à cidade. E estava bem clara: permitia a criação de um mosteiro, sem rendimentos, e sob a jurisdição do bispo.

  1. Álvaro de Mendoza também foi muito claro: aceitava a incumbência, mas só se o convento tivesse rendas. E para evitar um debate que prometia ser desgastante, viajou para Tiemblo, cidade situada a 12 léguas dali.

Mas como fugir da obstinação dos apaixonados? Que tolice imaginar que a distância deteria a vontade férrea dos místicos. Pois não eram eles os que não temiam a fome, nem o cansaço, nem a morte?

Na mesma ocasião, Pedro de Alcántara encontrava-se em Ávila. Profundamente doente, tentava restabelecer a saúde em casa de Francisco de Salcedo. Ao saber da fuga do bispo, dispôs-se a atravessar as 12 léguas que separavam as duas cidades para falar-lhe pessoalmente. Pela primeira vez, não pôde ir a pé, como era seu hábito. Trémulo de febre, reuniu as suas últimas forças, montou numa mula e foi até Tiemblo.

Pode perguntar-se o que teria ele dito a Álvaro de Mendoza, para fazê-lo mudar de ideias. Mas é mais fácil imaginar o poder dos seus olhos de fogo, ainda mais incendiados pela proximidade da morte. O facto é que, ao regressar a Ávila, Pedro de Alcántara trazia Mendoza consigo. Foram directamente ao mosteiro da Encarnação encontrar-se com Teresa. Se faltava alguma coisa para convencê-lo, a palavra da monja terminou por vencer as suas últimas resistências.

A partida de Pedro doeu fundo em Teresa. Sabia que aquele era o último encontro. O corpo já era quase nada, consumido pela doença. Só a alma transbordada cada vez mais intensamente.

Poucos meses mais tarde, ninguém precisou de lhe contar nada. Enquanto a notícia da morte de Pedro de Alcántara ainda corria pelas estradas, Teresa viu a sua alma, envolta numa vertigem de luz, elevar-se cada vez mais alto.

 

O total esquecimento de si

Com o breve em mãos, as obras da pequena casa aceleraram-se. Se ainda houvesse dúvidas em relação às intenções de Teresa, uma simples visita ao local dissipava-as: ali estava a ser construída a divina prisão.

Silêncio, reclusão, oração, rigorosa disciplina. As ideias sobre as quais se baseava a nova ordem materializavam-se na arquitectura e nos arranjos do local.

O pequeno locutório ganhou duas grades fortes e espessas: uma por dentro e outra por fora, de modo «que em nenhuma delas caiba uma mão». O mesmo tipo de grade separava a capela das dependências particulares do convento. Por meio dela, as religiosas acompanhariam as missas. Uma pequena janela permitia que recebessem a comunhão. A portaria foi reforçada com dois ferrolhos; a clausura, duas chaves.

Quando começaram a mobiliar a casinha, o modo de vida do convento ficou ainda mais claro.

Dentro das celas, apenas uma cama, sem colchão. De acordo com as Constituições que Teresa se ocupava em redigir, as monjas dormiriam «sobre um enxergão de palha, provado que está ser suficiente para pessoas fracas e com pouca saúde», sobre travesseiros e lençóis de estamenha. Nenhum tapete forraria o chão, com excepção da igreja, e estavam proibidas também as almofadas para sentar.

À volta das monjas, jamais haveria detalhes de cor nem nos hábitos, nem nas roupas de cama - nem espelhos, nem enfeites. Até mesmo o cabelo - sempre oculto sob o véu - seria mantido bem curto «para não gastar tempo a penteá-lo».

Como tudo seria considerado bem comum - da roupa à comida -, nenhuma irmã possuiria «arca, nem arquinha, nem gaveta, nem armários, salvo os que têm os ofícios da comunidade». O desprendimento precisava de ser absoluto. Caso a prioresa observasse que alguma monja se apegara a alguma coisa - «seja livro, cela ou qualquer outra coisa» -, deveria retirá-lo prontamente da irmã desejante.

As regras que disciplinavam a comunicação das monjas entre si e com o mundo não eram menos severas. Praticamente, todas as horas do dia estavam ocupadas com orações, meditações, leituras, missas e com os trabalhos quotidianos que, na sua maioria, deveriam ser realizados em silêncio. «O Senhor providenciará para que reste um pouco de tempo para ganhar o necessário», esclarecia ela. Mas, mesmo esse «necessário» era bem pouco.

Há-de viver-se de esmola sempre, sem nenhuma renda e, quando se puderem sustentar, não peçam nada. Somente em caso de grave necessidade pedirão esmolas. De contrário, como fazia São Paulo, valham-se do trabalho das próprias mãos e o Senhor proverá o necessário.

O objectivo de regras tão espartanas era bem claro: o «total esquecimento de si».

 

Nem honra, nem linhagem

No mosteiro de São José nenhuma jovem seria internada contra a sua vontade. Para entrar ali, era preciso querer. E querer muito.

Não bastava pedir. Títulos de nobreza, atestados de limpeza de sangue e dinheiro de nada valiam. Para ser aceite, a pretendente deveria demonstrar, no ano de noviciado, que pretendia «toda a perfeição e menosprezo do mundo». Além disso, a Constituição garantia que, «se por qualquer motivo, estiverem descontentes e não quiserem ficar, tenham possibilidade de manifestá-lo».

Teresa sabia o que fazia. Aprendera muito com a experiência passada entre as agostinianas e as carmelitas mitigadas. Na sua casa, não havia lugar para vocações mal desenvolvidas. Era tudo ou nada. «Se [as candidatas] não vêm desapegadas do mundo, dificilmente poderão suportar nosso género de vida.»

Quem a acompanharia, então? As loucas de amor. As que, da vida, só queriam a mais doce das mortes: serem devoradas pela vertigem do êxtase. As que desejavam que todo empecilho entre suas almas e Deus fosse eliminado.

E disso Teresa tinha cuidado bem. É fácil olhar para as regras concebidas e ver ali apenas restrições - estão mesmo por toda parte. No entanto, para uma época marcada por fortes convenções sociais, as Constituições das descalças são um raro exemplo de coragem e ousadia.

Onde mais encontraríamos um item específico para determinar que «a tábua com os nomes das que devem varrer comece com o nome da madre prioresa, para que em tudo dê bom exemplo»? Ou que «nunca a prioresa, ou qualquer outra irmã, seja chamada por algum título nobiliárquico»? Ou ainda que:

Atente-se muito para que as que tiverem o ofício de roupeira e provisora provejam as irmãs com caridade, quer na comida quer no restante. Não se dê mais à Prioresa e às mais antigas do que às outras, mas, como prescreve a Regra, atenda-se mais às necessidades e à idade, e mais à necessidade, porque às vezes as idosas têm menos necessidade.

Por outro lado, as Constituições são repletas de regras que visam coibir a intriga, a inveja e a maledicência. Mas, em vez de proibi-las, preocupam-se em eliminar as causas que levam a essas situações. Afinal, quem ingressava no convento procurava um caminho para a perfeição espiritual. E - Teresa bem o sabia - as piores falhas nascem dos pequenos detalhes do dia-a-dia. É ali, entre um minuto e outro, entre um pequeno gesto e outro, que se infiltram os pecados. Como evitar a cobiça, a inveja, o orgulho, a ira, se a todo instante temos alguém para nos lembrar que é melhor do que nós sem sê-lo? Por isso, Teresa desce a detalhes, àqueles que conhece bem. Deixa registado que:

Nenhuma [irmã] repreenda outra pelas faltas que vier a cometer; se forem grandes, seja avisada a sós, com caridade. (...) Como há zeladoras, encarregadas de observar as faltas, descuidem-se, deixem passar as que virem, ocupando-se mais com as próprias.

A Regra volta ao tema. Além da hora diária dedicada à auto-análise das faltas, uma vez por semana, as religiosas realizam o capítulo (reunião) das culpas graves. Entre elas, está previsto o castigo para «aquela que disser alguma coisa falsa da outra, com a obrigação de fazer o possível para restituir a boa fama à caluniada». No entanto, mais grave ainda é lançar à cara de uma irmã culpas passadas, pelas quais já tenha feito penitência, ou seus defeitos naturais, ou dos seus pais», falta que merece pena dobrada. Finalmente, é considerada culpa gravíssima «revelar aos outros, de algum modo, uma grave culpa de irmã ou da comunidade; revelar aos seculares ou a outras pessoas estranhas os segredos do mosteiro, causando dano à boa fama das irmãs».

Seriam, no máximo, 13 monjas no mosteiro de São José. Ainda assim, Teresa havia pensado em tudo. O que redigia, nas Constituições, era um lúcido retrato de todas as dificuldades que tinha encontrado para trilhar o caminho da perfeição. Nas entrelinhas, um desabafo: que ninguém mais precisasse de passar pelo que ela passou para chegar a Deus.

 

A casa do Amado

A data da fundação já estava marcada. Seria o dia 24 de Agosto de 1562, dia de São Bartolomeu. Teresa, a prioresa do convento, aguardava as quatro primeiras postulantes.

As suas histórias, origens e temperamentos não poderiam ser mais diversos. No entanto, ao despirem-se das suas roupas seculares e vestirem o hábito de tecido grosseiro, costurado pela própria Teresa, deixavam para trás também a sua individualidade. Agora, seriam apenas as servas amorosas do Senhor.

Antonieta de Henao e Úrsula de Revilla pertenciam à nobreza avilense. Nem por isso se assemelhavam. A primeira era uma apagada donzela de 25 anos, cujos arroubos se tinham concentrado totalmente nos êxtases espirituais, a segunda era uma mulher exuberante, de 40 anos, que fizera o voto de perfeição depois de enviuvar.

Maria de la Paz era uma das damas de companhia de D. Guiomar e Maria d’Ávila, filha de tecelãos e irmã do capelão do convento.

O dia mal clareava quando o pequeno sino repicou no mosteiro de São José. No altar, adornado com tecidos e paramentos bordados à mão por Teresa, Gaspar Daza celebrava a primeira missa diante de um grupo cuidadosamente selecionado. Além de Teresa e das quatro postulantes, apenas D. Guiomar de Ulloa; Francisco de Salcedo; Juliano d’Ávila, o capelão; duas carmelitas, que aguardavam a liberação do provincial para poderem ingressar no novo mosteiro; e Juana, irmã de Teresa, e o seu marido Juan de Ovalle.

Ali estava a singela casa de oração e sacrifício, encimada por um sino tão pobre e acanhado, cujo som mal chegava aos limites do Bairro de São Roque, onde estava localizada. Mas não era preciso fazer muito barulho para chamar a atenção. Até então mantido quase na clandestinidade, o projecto estava agora exposto à sanha da cidade, que tão duramente o havia combatido.

Quando a missa terminou, já era inegável o contraste entre os poucos que se encontravam dentro da capela e a multidão que se apinhava do lado de fora. Em poucas horas, a notícia corria por toda a cidade.

A casa estava fundada, possuíam o breve papal e nada reverteria esse facto. Contavam com o apoio de Roma e do bispo. Mas Teresa encontrava-se numa situação jurídica complicada. Agira sem a autorização do provincial das carmelitas - o único que detinha o poder de desligá-la da antiga ordem. Pior ainda, Gregório Fernandez - que era um dos mais ferrenhos oponentes do projeto, mas cujas artimanhas eram bem conhecidas - tinha sido substituído por Angel de Salazar, até ao momento uma incógnita. Para todos os efeitos, ainda era uma carmelita do mosteiro da Encarnação. O mínimo de que podiam acusá-la era de insubordinação - e do modo como os ânimos estavam exaltados na cidade, ninguém esperava menos do que isso.

A Teresa, nada mais importa. A sua obra está ali, é real e concreta. Deixara, por escrito, as principais orientações para as primeiras carmelitas descalças do mosteiro de São José. Fez a única coisa que estava ao seu alcance no momento: esperou pelas consequências.

 

Gravíssima culpa

E elas não tardaram. Naquele mesmo dia, uma mensagem de D. Maria Cimbron, prioresa da Encarnação, ordenava que ela regressasse imediatamente à sua cela. Despediu-se das irmãs, designou Úrsula de Revilla superiora do novo convento e partiu.

Seguiu tranquila. Os seus nervos, que tantas vezes no passado a tinham desestabilizado, agora pareciam envoltos em algodão. Aquele seria apenas mais um empecilho que o Demónio colocava no seu caminho. Vencê-lo, mais uma vez, só a tornaria mais forte.

No Encarnação, foi recebida por uma tempestade de ira. Até o ar tremia, movido pelo ódio das antigas companheiras. Ignorou o tumulto ao seu redor, dirigiu-se imediatamente à sala da superiora e, lá, prostrou-se a seus pés. Surpreendida com tal demonstração de humildade, D. Maria Cimbron constatou, estupefacta, que Teresa estava muito bem amparada em termos legais e apoios oficiais. Viu o breve do papa, os documentos do bispo, as cartas de Pedro de Alcántara, toda a documentação que nos últimos meses fora mantida em segredo. Enfim, por menos que gostasse da ideia, não poderia acusar Teresa de leviandade.

À saída da sala da superiora, uma multidão de irmãs alvoroçadas aguardava o resultado da conversa. Todas queriam ver a «louca» ser conduzida até à prisão, todas queriam ser a primeira a divulgar as duras punições que Teresa receberia. Foi, portanto, com um misto de indignação e decepção que a viram dirigir-se directamente à sua cela e lá permanecer. Logo, a notícia correu: não haveria castigo nenhum.

A revolta explodiu pelos corredores. Era inadmissível. Teresa ofendia-as, insinuara que eram vaidosas, fúteis, dissipadas, relaxadas. Pretendia ser mais perfeita do que todas. Traíra a sua ordem. Estava a fomentar um cisma. E voltaria tranquilamente para a sua cela, como se nada tivesse acontecido?

Exaltadas, as religiosas exigiram a presença do provincial para a convocação de um capítulo, para julgar aquela que as afrontava. Chamado com urgência, Angel de Salazar já as encontrou reunidas, vestidas com o hábito negro, lotando a sala onde se julgavam as culpas gravíssimas.

Nem mesmo atirada para o centro de tal tumulto, Teresa se deixou abalar. Manteve silêncio enquanto ouvia uma quantidade inacreditável de acusações - muitas delas tão absurdamente falsas que só mesmo o ressentimento poderia tê-las produzido. Não tentou defender-se. Deixava que as palavras passassem por ela como um vento incómodo. Em vez de acalmar os ânimos, a sua atitude deixava as religiosas ainda mais encolerizadas. O clima de tensão chegou a tal ponto, que o provincial teve de repreender as monjas. Ao perceber que Teresa permanecia alheia à confusão reinante, e que o seu silêncio era tomado como uma ofensa ainda maior, ordenou-lhe que respondesse às acusações.

Só então, ela ergueu os olhos e abriu a boca.

Serena, completamente impermeável ao clima que banhava o local, relatou o que tinha feito e expôs os seus motivos. Queria apenas viver em paz, de acordo com a regra original do carmelo. Não pretendia que ninguém a seguisse. Mas desejava, para si, a solidão e a pobreza que jamais alcançaria na ordem mitigada.

Impressionado com a sua segurança, o provincial pediu para lhe falar a sós. Ali, destemida, Teresa abriu a alma. Mais uma vez, deixou que as palavras fluíssem directamente do coração. Não tinha mais gestos exaltados, nem o discurso transbordante que contagiara tantos religiosos. Agora, uma certeza calma envolvia o seu interlocutor e mostrava-lhe que nada havia a temer pois Deus estava a seu lado.

Ao sair dali, levava consigo a promessa de que, assim que os ânimos se acalmassem, o provincial a autorizaria a voltar ao Mosteiro de São José.

 

O processo

A indignação, no entanto, não se limitava ao Encarnação. As autoridades municipais ficaram em polvorosa com a nova fundação. Então, a «irresponsável» decide viver como eremita e envia-lhes a conta para pagar? Sim, porque alguém terá de sustentar o novo mosteiro. Ele não possui rendimentos próprios. Dessa maneira, a questão dos rendimentos volta ao debate, mais acalorado que nunca.

Imaginar que um pequeno convento, com apenas cinco monjas, firmemente empenhadas em viverem da maneira mais pobre possível, pudesse comprometer o orçamento de Ávila parece uma ideia absurda. Mas a questão da pobreza mexia profundamente com o modo de vida das comunidades religiosas, todas ligadas aos poderes paroquiais, e muito pouco dispostas a discutir um tema que, mais dia menos dia, se voltaria contra eles mesmos.

Afinal, Teresa não se subordinava a nenhuma autoridade religiosa local. Passara por cima de todos, ignorara as leis municipais, fora directa ao bispo, escrevera ao papa, agira com tamanha independência e desenvoltura que nada lhes garantia que, amanhã, não estaria a fomentar uma revolta em nome da pobreza.

A mais alta autoridade municipal, o corrigidor, enviou uma equipa da sua guarda para tirar, se preciso à força, as quatro religiosas do novo mosteiro e fechar as suas portas. Pura perda de tempo. Trancadas com os muitos ferrolhos, protegidas por São José e pela Virgem Maria, declararam que só obedeceriam ao bispo de Mendoza ou ao papa.

Pronto. Estava caracterizada a insubordinação. O corrigidor convocou uma junta municipal, formada por teólogos, deputados e membros do conselho de Ávila, para decidir a questão. Mas os doutores, liderados por Gaspar Daza e pelo jovem dominicano Domingos Bañez, não se convenceram a mandar fechar o mosteiro. Diante do ambiente incendiado da cidade, conseguiram transferir a questão para o Conselho Real, em Madrid.

 

Mais uma morte

Lento e oneroso, o processo judicial arrastou-se. Durante quase um ano, Teresa foi mantida no Encarnação. Não era exactamente uma prisioneira. Não existiam grades que a impedissem de sair - e as regras continuavam tão liberais quanto antes. Mas estava proibida de assumir o seu lugar no mosteiro que ela própria criara e cuja autorização obtivera do papa.

Ainda era uma carmelita calçada e, nessa qualidade, devia obediência à regra.

Para qualquer pessoa menos concentrada, os meses passados no Encarnação teriam sido torturantes. Se alguns anos atrás, as religiosas a atormentavam com mexericos e malediências, agora era ódio o que destilavam à sua passagem. Uma onda de rancor acompanhava-a por toda parte. Nenhum sorriso, nenhuma palavra de encorajamento ou admiração, nenhum gesto amigo, com excepção de um reduzido grupo de monjas que sonhava seguir Teresa. Sozinha na cela, escrevia:

 

                 Que nada te perturbe

                 que nada te apavore

                 tudo passa

                 só Deus não muda

                 a paciência tudo alcança

                 quem tem a Deus

                 nada lhe falta

                 só Deus basta.

 

E era mesmo necessária uma grande paciência. O processo arrastar-se-ia por anos até à vitória. Enquanto Teresa se mantinha imperturbável na sua cela, os seus amigos articulavam-se, escreviam às autoridades, buscavam inclusive o apoio real. A rede luminosa que ela tecera propagava-se em silêncio. Mais uma vez, as suas palavras multiplicavam-se e fluíam como água, agora na boca dos seus aliados.

Tanta discrição deu resultado.

Aos poucos, a cidade acalmou-se. Até mesmo as religiosas do Encarnação se cansaram da própria raiva. Quase muda, quase invisível, Teresa não era um assunto tão interessante assim. Sempre havia outros prontos a incendiarem a comunidade de 180 monjas, alimentando disputas e rivalidades.

De alguma maneira, esse período, todo feito de horas lentas, tem semelhança com os anos em que passou doente na enfermaria. Antes, enquanto o corpo definhava, a sua alma expandia-se. Agora, enquanto caminhava em silêncio pelos longos corredores do Encarnação, percebia que um outro tipo de morte rondava os seus dias.

Não havia nada a lamentar. Essa era uma morte doce. Percebia claramente que aquele era um período de despedida.

Um dia, ela sairia dali.

Mas Teresa de Ahumada não.

As roupas que vestia pertenciam à outra. Estavam velhas e gastas, é verdade. Mas ainda eram os trajes da que fora outrora. Na lembrança das monjas com as quais se cruzava a todo instante, havia uma sucessão de episódios que ligava as suas histórias.

Decididamente, Teresa de Ahumada, a carmelita da ordem mitigada, pertencia ao Encarnação.

E ali ficaria para sempre.

 

Finalmente descalça

Conforme o prometido, num dia de Abril de 1563, Angel de Salazar chamou a monja e autorizou-a a voltar a São José. Conforme ela havia pedido, liberava também duas outras internas do Encarnação: Ana de los Angeles e Maria de San Pablo.

Ela sorriu, feliz, com a alma leve. Tudo passa, só Deus não muda.

Não precisou sequer de voltar à sua cela para fazer a mudança. Deixava para trás os belos móveis que a adornavam, as jóias que lhe restaram, a delicada roupa de cama.

Despiu-se dos últimos resquícios de Teresa de Ahumada: o véu, o fino escapulário e os sapatos de saltos. Vestiu o grosseiro hábito de burel que ela mesma tinha costurado, sem pregas nem enfeites, feito da maneira mais económica possível. Nos pés, calçou meias de estopa e as sandálias de cânhamo que faziam dela uma carmelita descalça.

Da mulher que fora, guardava apenas a ânsia de infinito.

Acompanhada das novas postulantes, dirigiu-se ao mosteiro de São José, onde foi recebida em lágrimas pelas monjas que há tanto tempo a esperavam.

Ao entrar na clausura, bateu com a pesada porta atrás de si.

Desta vez, não havia plateia para sentir o frisson causado pelo estrondo. A rua estava silenciosa e deserta.

  1. Teresa de Ahumada estava morta.

No seu lugar, passou a assinar Teresa de Jesus, seu nome de casada. Conta o padre António Vieira, num dos seus sermões:

(...) foi uma entrega de ambos os corações, total e recíproca, com que não só Teresa ficou Teresa de Jesus, senão também Jesus, Jesus de Teresa. Ainda aquele de é supérfluo, porque ser um do outro distingue dois sujeitos, e a união entre Jesus e Teresa foi tão íntima que, passando de união a unidade, já Teresa e Jesus não eram dois e distintos, senão um só e o mesmo.

 

Ao entrar para o Mosteiro de São José, Teresa de Ahumada Sánchez y Cepeda trocou o nome de nascimento por Teresa de Jesus. Antes de morrer, aos 67 anos, em 4 de Outubro de 1582, ainda fundaria 18 mosteiros, enfrentando imensas dificuldades com as autoridades locais.

Foi oficialmente reconhecida como santa em 1622. Entre os milagres descritos no processo de canonização, encontra-se o da transverberação do seu coração. Após a morte, puderam constatar que o órgão apresentava uma cicatriz indicativa de que tivesse sido trespassado, tal como Teresa descreveu nos seus encontros com o anjo. O coração e o corpo - até hoje incorrupto - estão expostos na cidade de Alba.

Graças à brilhante e extensa obra que deixou escrita, o Papa Paulo VI proclamou-a Doutora da Igreja, em 1970.

 

A palavra e a paixão

A ideia de que é possível biografar uma pessoa é das mais interessantes. Biografia é a vida escrita - ou seja, reduzida aos elementos vitais que se deixam traduzir num discurso contínuo e coerente. Aparentemente, o encarregado dessa tarefa trabalha como o investigador - acumula factos comprovados, fotos, mapas, datas, documentos, depoimentos. Mas em seguida... percebe que tudo aquilo só pode ganhar vida se o material colectado for aglutinado com uma generosa dose de subjectividade. De outra maneira, teremos um arquivo morto, mas não a história de uma pessoa.

Essa premissa vale para qualquer ensaio biográfico inclusive para os nossos diários pessoais - mas torna-se ainda mais necessária quando a protagonista provocou grandes polémicas ao longo da sua vida.

Este é o caso de Teresa de Ahumada Sánchez y Cepeda, mais conhecida como Teresa d’Ávila e que passou para a hagiografia católica como Santa Teresa de Jesus. No extenso hiato de tempo que separa a sua existência concreta das possíveis histórias construídas, proliferam visões, muitas vezes contraditórias, da mulher que teria sido.

Onde encontrar a verdade sobre Teresa? No processo de canonização de 1622, que garante a sua santidade? Ou no movido pelo Santo Ofício, por volta de 1575, no qual era acusada de heresia? Nas palavras das religiosas carmelitas da ordem mitigada que, em 1562, a consideravam uma traidora? No processo movido contra ela pela cidade de Ávila, no mesmo ano, onde é retratada como impostora? Na opinião de psicanalistas como Joseph Breuer, contemporâneo de Sigmund Freud, que lhe chamava a «santa padroeira das histéricas»? Nos historiadores da literatura espanhola que vêem nela a mais expressiva voz feminina do barroco espanhol? No Livro da Vida, sua autobiografia, tão generosa no relato de seu trajecto interior, mas também tão cuidadosa em despistar nomes, factos concretos e datas? Nas suas outras obras, tão intensas mas também tão pouco esclarecedoras a respeito das circunstâncias em que se deu a sua rica experiência de vida?

A lista poderia prosseguir. Existe material para a construção não de uma, mas de várias Teresas. Cada uma delas depende das escolhas feitas pelo autor. Por isso, chamo a Teresa retratada neste livro «minha» Teresa.

Que o leitor não se engane: trata-se de uma visão um bocado pessoal. Aqui, pouco importa se Teresa era santa, se possuía traços de histeria, se exagerava, se manipulava ou seduzia.

Interessei-me pelo que a tornava tão especial, o que fez com que o seu nome atravessasse os séculos e ainda hoje desperte apaixonado interesse.

Por esse motivo, este livro concentrou-se no processo de transformação de Teresa de Ahumada em Santa Teresa de Jesus. É a vida de uma menina que, numa época pouco propícia à expressão feminina, conseguiu tomar a palavra. Antes de ser a história de uma santa, é o trajecto de uma escritora, de uma mulher que precisava de se expressar.

Adoptar esse tipo de recorte trouxe-me alguns riscos e outros tantos incómodos. O primeiro deles é dar ao leitor - sobretudo ao leitor leigo - uma visão demasiadamente individualista de Teresa - o que corresponde apenas à primeira fase da sua vida. Aqui, o importante papel político que ela viria a desempenhar ainda não está bem delineado, a sua evolução espiritual - que resultaria na expansão da sua caridade - ainda não se completara.

Mantive esse ponto de vista por um motivo simples. Tentei ater-me ao objectivo desta colecção: o de retratar a vida dos santos a partir do que possuíam de mais humano, o de vê-los como pessoas (muito especiais, mas ainda assim pessoas). Assim, a Teresa aqui retratada é mais mulher do que santa.

E uma mulher especialíssima. Afinal, ela não viveu no século XX ou XXI, quando o individualismo já se transformara numa praga social. Na sua época - e sobretudo no ambiente clerical espanhol - defender a experiência religiosa individual era atitude que demandava uma coragem extraordinária.

Não costumava render dividendos pessoais, mas o risco de processos inquisitoriais, tortura, humilhação, cadeia e morte. Nem fidalgas, como Teresa, nem nobres, como D. Guiomar de Ulloa, escaparam disso. Só mesmo a intensa capacidade de apaixonar-se - primeiro por si mesma, mais tarde por indivíduos, em seguida por Deus, depois pela humanidade - e manter-se viva por meio da capacidade de doar-se de múltiplas maneiras fez com que o nome dessas - e de outras mulheres incomuns - chegasse até nós.

 

                                                                                Rosa Amanda Strausz  

 

 

                      

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