Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TERESA DESQUEYROUX / François Mauriac
TERESA DESQUEYROUX / François Mauriac

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Teresa Desqueyroux vive em Argelouse, perto de Bordéus, com o marido, Bernardo, dono de uma vasta propriedade. Enclausurada num casamento de conveniência, envenena o marido. É então condenada pela família a viver só - cativeiro que apenas o sonho de conhecer Paris torna suportável. Escrita em 1927, esta obra é o retrato fiel de uma época com que ainda nos podemos identificar. François Mauriac nasceu em Bordéus, em 1885, no seio de uma abastada família católica. Formou-se em Letras na Faculdade de Bordéus e mudou-se para Paris em 1906. É depois da 1ª Guerra Mundial que demonstra o seu talento com obras que o colocam a par dos melhores romancistas do seu tempo, entre elas Teresa Desqueyroux. Em 1932 é nomeado Presidente da Société de Gens de Lettres. Após 1945 surge como figura cimeira do jornalismo político, resultado do trabalho desenvolvido na clandestinidade.


.
.
.

.
.


Teresa, muitos dirão que não existes. Mas eu sei que existes, eu que há anos te espio e muitas vezes te detenho ao passares, te desmascara.
Adolescente, recordo-me de ter visto, na sala sufocante de um tribunal, entregue aos advogados menos ferozes do que as damas empenachadas, o teu pequeno rosto branco e sem lábios.
Mais tarde, num salão de província, apareceste-me sob os traços de uma jovem desvairada que os cuidados dos seus velhos pais e de um esposo ingénuo irritavam: "Mas que tem ela?", diziam. "No entanto cumulamo-la de tudo."
Desde então, quantas vezes te admirei, sobre afronte vasta e bela, a mão um pouco grande! Quantas vezes, através das grades vivas de uma família, te vi caminhar de um lado para outro, a passo de loba; e, com o olhar mau e triste, tu encaravas-me.
Muitos se admirarão de que eu tenha podido imaginar uma criatura ainda mais odiosa do que todos os meus outros heróis. Saberei eu, algum dia, falar dos seres inundados de virtude e que têm o coração nas mãos? Os "corações nas mãos" não têm história; mas eu conheço a dos corações enterrados e misturados com um corpo de lama.
Teria querido que a dor, Teresa, te entregasse a Deus; e, durante muito tempo, desejei que fosses digna do nome de Santa Locusta. Mas muitos, que todavia crêem na queda e na redenção das nossas almas atormentadas, teriam bradado contra o sacrilégio.
Pelo menos, nesta rua onde te abandono, tenho a esperança de que não estás só.
O advogado abriu uma porta. Teresa Desqueyroux, naquele corredor escondido do Palácio da Justiça, sentiu no rosto a bruma e aspirou-a profundamente. Tinha medo de ser esperada, hesitava em sair. Um homem, de gola levantada, que estava encostado a um plátano, avançou para ela; reconheceu o pai. O advogado gritou: "Dado como improcedente!" e, voltando-se para Teresa:
- Pode sair: não há ninguém.
Ela desceu os degraus molhados. Sim, a pequena praça parecia deserta. O pai não a beijou, não lhe dirigiu sequer um olhar; interrogava o advogado Duros que respondia em voz baixa, como se estivessem a ser espiados. Teresa ouvia-lhes confusamente as palavras:
- Receberei amanhã o aviso oficial da improcedência.
- Não poderá haver ainda qualquer surpresa?
- Não. A questão está arrumada.
- Após o depoimento do meu genro, podíamos ficar seguros.
- Seguros... seguros... Nunca se sabe.
- Desde que ele próprio declarou que nunca contava as gotas...
- Você bem sabe, Larroque, que, nesta espécie de casos, o testemunho da vítima...
A voz de Teresa ergueu-se:
- Não houve vítima.
- Vítima da sua imprudência, minha senhora, quis eu dizer.
Durante um instante, os dois homens observaram a mulher, imóvel, cingida no casaco, e aquele rosto muito pálido de que nada transparecia. Ela perguntou onde estava o carro; o pai mandara-o esperar na estrada de Budos, fora da cidade, para não chamar a atenção.
Atravessaram a praça: folhas de plátano estavam coladas aos bancos molhados da chuva. Felizmente, os dias tinham diminuído muito; aliás, para alcançar a estrada de Budos, podem seguir-se as ruas mais desertas da Subprefeitura. Teresa caminhava entre os dois homens que ela dominava e que de novo discutiam como se não estivesse presente; mas, constrangidos por esse corpo de mulher que os separava, empurravam-no com os cotovelos. Então ela ficou um pouco para trás, descalçou a luva da mão esquerda para arrancar musgo das velhas pedras ao longo das quais seguia. Às vezes, um operário de bicicleta ou uma carripana ultrapassavam-na; os salpicos de lama obrigavam-na a encolher-se contra a parede. Mas o crepúsculo escondia Teresa, impedindo que os homens a reconhecessem. O cheiro do pão saído do forno e do nevoeiro já não era para ela somente o cheiro do anoitecer numa pequena cidade: encontrava nele o perfume da vida que lhe era restituída finalmente; fechava os olhos ao bafo da terra adormecida, molhada e rescendendo a ervas; esforçava-se por não ouvir as palavras do pequeno homem de curtas pernas arcadas, que nem uma só vez se virou para a filha; ela poderia ter tombado à beira do caminho, que nem ele nem Duros teriam dado por nada. E já não receavam elevar a voz:
- O depoimento do senhor Desqueyroux era excelente, não há dúvida. Mas havia aquela receita: em suma, tratava-se de uma falsificação... E tinha sido o doutor Pédemay quem apresentara queixa...
- Ele retirou-a...
- Apesar de tudo, a explicação que ela deu: um desconhecido que lhe entrega uma receita...
Teresa, menos por cansaço do que para fugir àquelas palavras com que havia semanas a aturdiam, afrouxou em vão a marcha; impossível deixar de ouvir a voz de falsete do pai:
- Fartei-me de lhe dizer: "Mas, desgraçada, arranja outra coisa... arranja outra coisa..."
Fartara-se com efeito de lho dizer e podia prestar justiça a si mesmo. Porque se agita ele ainda? À honra do nome, em que tanto fala, está salva; quando chegarem as eleições senatoriais já ninguém se lembrará desta história. Assim pensa Teresa, que desejaria não ter de alcançar os dois homens; mas, no fogo da discussão, eles detêm-se no meio da estrada, gesticulam:
- Acredite-me, Larroque, enfrente a situação; tome a ofensiva nO Semeador de domingo. Ou prefere que eu me encarregue disso? Conviria um título como "O infame rumor"...
- Não, meu velho; não, não! Aliás, que responder? É demasiado evidente que a instrução do processo foi concluída à pressa; não se recorreu sequer aos peritos de escrita; silenciar, silenciar o caso é a única táctica a seguir. Agirei, não me pouparei a esforços; mas, para bem da família, é preciso abafar tudo isto... é preciso abafar...
Teresa não ouviu a resposta de Duros, pois eles tinham alargado o passo. Aspirou de novo o ar chuvoso da noite, como um ser ameaçado de sufocar; e, de súbito, acordou nela o rosto desconhecido de Júlia Bellade, a sua avó materna - desconhecido: ter-se-ia procurado inutilmente em casa dos Larroque ou dos Desqueyroux um retrato, um daguerreótipo, uma fotografia dessa mulher de quem ninguém sabia nada, senão que partira um dia. Teresa imagina que poderia ter sido também assim apagada, aniquilada, e que, mais tarde, nem sequer teria sido permitido à filha, à sua pequena Maria, encontrar num álbum o rosto da que a trouxera ao mundo. Àquela hora, já Maria dorme num quarto de Argelouse, aonde Teresa chegará tarde nessa noite; e, quando chegar, ouvir-lhe-á nas trevas o sono de criança; inclinar-se-á e os seus lábios procurarão, como uma água, aquela vida adormecida.
À beira da valeta, as lanternas de uma caleche, cuja capota estava descida, iluminavam as garupas magras de dois cavalos. Além, à esquerda e à direita da estrada, erguia-se a muralha sombria de uma floresta. De um talude ao outro, os cimos dos pinheiros juntavam-se e, sob esse arco, embrenhava-se a estrada misteriosa. Por cima dela, o céu cavava um leito obstruído de ramos. O cocheiro contemplava Teresa com uma atenção gulosa. Quando ela lhe perguntou se chegariam à estação de Nizan a tempo de apanhar o último comboio, ele tranquilizou-a: apesar disso, mais valia não se demorarem.
- É a última vez que te dou esta maçada, Gardère.
- Já não tem mais nada que fazer aqui, minha senhora?
Ela sacudiu a cabeça; o homem continuava a devorá-la com os olhos. Teria ela, durante toda a vida, de ser encarada daquele modo?
- Então, estás contente?
Era o pai, que parecia enfim aperceber-se de que a filha estava ali. com um breve olhar, Teresa perscrutou-lhe o rosto sujo de bílis, as faces eriçadas de duros pêlos de um branco amarelado que as lanternas iluminavam vivamente. E disse em voz baixa: "Tenho sofrido tanto... estou sem forças..." Interrompeu-se: para quê falar? Ele não a ouve; já a não vê. Que lhe importa o que Teresa sente? Só isto conta: a ascensão para o Senado, interrompida, comprometida por causa daquela rapariga (todas umas histéricas, quando não umas idiotas). Felizmente, ela já não se chama Larroque; é uma Desqueyroux. Evitado o tribunal, ele respira. Como impedir os adversários de remexerem na ferida? Amanhã mesmo irá ter com o prefeito. Graças a Deus, pode-se contar com o director da Charneca Conservadora: uma história de raparigas desmioladas... Pegou no braço de Teresa:
- Sobe depressa; são horas.
Então o advogado, talvez perfidamente - ou para que Teresa não se afastasse sem que ele lhe houvesse dirigido a palavra -, perguntou se ela iria ter ainda essa noite com o senhor Bernardo Desqueyroux. E quando ela respondeu: "Mas com certeza, meu marido espera-me...", pela primeira vez acudiu ao espírito de Teresa, desde que deixara o juiz, que, com efeito, dentro de algumas horas, transporia o limiar do quarto onde o marido estava deitado, ainda um pouco doente, e que uma infinita sucessão de dias e de noites se abriria, ao longo dos quais seria preciso viver colada àquele homem.
Instalada em casa do pai, às portas da pequena cidade, desde que a instrução do processo começara, sem dúvida que muitas vezes fizera a mesma viagem que empreendia agora; mas, dessas vezes, nada mais a preocupava a não ser informar com exactidão o marido; antes de subir para o carro, escutava os últimos conselhos de Duros, relativos às respostas que o senhor Desqueyroux devia dar, quando fosse de novo interrogado; nenhuma angústia em Teresa nesse tempo, nenhum constrangimento à ideia de se encontrar frente a frente com aquele homem enfermo: tratava-se então, entre eles, não do que realmente se passara, mas do que importava dizer ou não dizer. Nunca nada uniu melhor os dois esposos que uma tal defesa; unidos numa só carne - a carne da sua pequena Maria. Recompunham, para uso do juiz, uma história simples, fortemente coerente e que pudesse satisfazer-lhe o espírito lógico. Nessa época, Teresa subia para a mesma caleche que nesta noite a espera - mas com que impaciência de acabar a viagem nocturna, de que deseja agora não ver o fim! Recorda-se de que, mal subia para o carro, ansiava encontrar-se já no quarto de Argelouse e ia relembrando as instruções que Bernardo aguardava (que ele não receie afirmar que, uma noite, Teresa lhe falara da receita de que um desconhecido lhe suplicara que se encarregasse, sob pretexto de que já não tinha coragem para aparecer diante do farmacêutico, a quem devia dinheiro... Mas Duros não era de opinião que Bernardo fosse até ao ponto de pretender que se recordava de ter censurado à mulher semelhante imprudência)... Dissipado o pesadelo, de que falariam Bernardo e Teresa nessa noite? Em pensamento, vê a casa perdida onde ele a espera; imagina o leito no meio do quarto ladrilhado, o candeeiro baixo sobre a mesa, entre jornais e frascos de remédios... Os cães de guarda, que o carro acordou, ladram ainda; e quando se calarem, de novo reinará aquele silêncio solene, como durante as noites em que contemplava Bernardo presa de vómitos atrozes. Teresa esforça-se por imaginar o primeiro olhar que trocarão dentro em pouco; depois a noite, e o dia seguinte, os outros dias, as semanas, naquela casa de Argelouse, onde já não terão de construir juntos uma versão confessável do drama que viveram. Nada haverá entre eles além do que realmente aconteceu... do que realmente aconteceu... Tomada de pânico, Teresa balbucia, voltada para o advogado (mas é ao velho que ela se dirige):
- Conto ficar alguns dias com meu marido. Depois, se as melhoras se acentuarem, voltarei para casa de meu pai.
- Ah! Isso não, não, não, minha filha!
E como Gardère se agitava no banco, o senhor Larroque prosseguiu em voz baixa:
- Estás completamente louca? Deixar o teu marido num momento destes?! Vocês têm de ser como dois dedos da mesma mão... como dois dedos da mesma mão, entendes? até à morte...
- Tens razão, pai... Onde tinha eu a cabeça? Irás tu então a Argelouse...
- Mas, Teresa, tu é que virás a minha casa, como de costume, nas quintas-feiras de mercado. Virás, como sempre vieste.
Era inacreditável que ela não compreendesse que a mais pequena violação dos usos seria a morte da família. Estaria bem entendido? Poderia contar com Teresa? Ela já tinha causado à família bastante mal...
- Farás tudo o que o teu marido te ordenar. É o que te tenho a dizer.
E impeliu-a para o carro.
Teresa viu estender-se para ela a mão do advogado, as suas duras unhas negras: "Tudo está bem quando acaba bem", disse Duros; e era do fundo do coração; se o caso tivesse seguido o seu curso, pouco haveria sido o lucro dele; a família teria recorrido ao doutor Peyrecave, do foro de Bordéus. Sim, tudo está bem...
Teresa ama aquele cheiro de coiro bafiento dos antigos carros. Como se esqueceu dos cigarros, consola-se com a ideia de que detesta fumar no escuro. As lanternas iluminam os taludes, uma orla de fetos, a base dos pinheiros gigantes. Os montões de pedras vão quebrando a sombra do carro. Por vezes, uma carroça passa e as mulas, sozinhas, tomam a direita, sem que o carroceiro adormecido se mexa. Parece a Teresa que jamais chegará a Argelouse; tem esperança de jamais chegar; mais de uma hora de carro até à estação de Nizan; depois o pequeno comboio que, em cada estação, pára tempos infinitos. Mesmo de Saint-Clair, onde descerá, até Argelouse, dez quilómetros a percorrer de carripana (é tal a estrada que, por ela, nenhum automóvel ousaria aventurar-se de noite). O destino, em qualquer momento, pode ainda surgir e libertá-la; Teresa cede ao pensamento que a teria dominado, na véspera do julgamento, se a acusação houvesse sido mantida: a esperança de um cataclismo. Tira o chapéu, apoia contra o coiro cheiroso a sua pequena cabeça pálida que oscila, entrega o corpo aos solavancos. Até essa noite, tinha vivido de se sentir acossada; agora, que está salva, mede o esgotamento a que chegou. Faces cavadas, maçãs do rosto salientes, lábios sumidos e aquela fronte larga, magnífica, compõem uma cara de condenada - sim, embora os homens a não tenham considerado culpada -, condenada à solidão eterna. O seu encanto, que o mundo ainda pouco antes dizia irresistível, todos os seres o possuem - e o rosto deles trairia um secreto tormento, a dor aguda de uma chaga interior, se não fizessem todos os esforços para iludir. No fundo da caleche aos solavancos, na estrada aberta na espessura sombria dos pinheiros, uma mulher sem máscara acaricia docemente a face de queimada viva. Quais serão as primeiras palavras de Bernardo, que a salvou com o seu falso testemunho? Por certo que nessa noite ele não fará perguntas... Mas amanhã? Teresa fecha os olhos, torna a abri-los e, como os cavalos seguem a passo, tenta reconhecer a subida. Ah! não prever... Será talvez mais simples do que imagina. Não prever... Dormir... Mas porque não está já ela na caleche? Um homem por detrás do tampo verde de uma mesa: o juiz de instrução... de novo... E, todavia, ele sabe bem que a questão está resolvida. Move a cabeça de um lado para o outro: a improcedência não pode ser declarada; surgiu um facto novo. Um facto novo? Teresa volta a cabeça para que o inimigo lhe não veja o rosto decomposto. "Procure lembrar-se, minha senhora. Na algibeira interior da velha romeira - a que só usa em Outubro para a caça ao pombo bravo - não terá esquecido, dissimulado nada?" Impossível protestar: sente-se sufocada. Sem perder de vista a presa, o juiz coloca sobre a mesa um minúsculo embrulho lacrado de vermelho. Teresa poderia recitar a fórmula inscrita no invólucro e que o homem decifra com voz cortante:
Clorofórmio 10 gramas
Aconitina 2 gramas
Digitalina 20 centigramas
O juiz solta uma gargalhada... O travão range contra a roda. Teresa desperta: o peito dilatado enche-se-lhe de nevoeiro (deve ser a descida do riacho branco). Adolescente, também ela sonhava que um erro a obrigava a ter de repetir os exames. Sente agora o mesmo alívio que quando então acordava: apenas uma vaga inquietação, pois a improcedência não é ainda oficial: "Bem sabes que primeiro tem de ser notificada ao advogado..."
Livre... que desejar mais? Ser-lhe-ia fácil tornar possível a sua vida junto de Bernardo. Abrir-se a ele inteiramente, nada deixar na sombra, eis a salvação. Que tudo o que estava escondido apareça à luz, e a partir dessa noite. Esta resolução inunda Teresa de alegria. Antes de chegar a Argelouse, terá tempo de "preparar a sua confissão", segundo a expressão que a sua devota amiga Ana de La Trave repetia todos os sábados, na época das suas férias felizes. Irmãzinha Ana, querida inocente, que lugar ocupas nesta história! Os seres mais puros ignoram aquilo com que estão misturados cada dia, cada noite, e o que germina de envenenado sob os seus passos infantis.
Sem dúvida que essa rapariguinha tinha razão quando repetia a Teresa, estudante de liceu e zombeteira: "Não podes imaginar a libertação que se sente depois da confissão, depois do perdão, quando, em paz com a consciência, se pode recomeçar de novo a vida." E bastava a Teresa ter decidido dizer tudo para conhecer já, na verdade, uma espécie de delicioso alívio: "Bernardo saberá tudo; dir-lhe-ei..."
Que lhe dirá ela? Por que confissão começar? As palavras bastarão para conter o encadeamento confuso de desejos, de resoluções, de actos imprevisíveis? Como farão os que conhecem os seus crimes?... "Eu não conheço os meus crimes. Não quis aquilo de que me responsabilizam. Não sei o que quis. Nunca soube para que tendia esse poder cego que havia em mim e fora de mim: eu própria me sentia aterrada com o que ele destruía no seu caminho..."
Um candeeiro de petróleo fumarento iluminava a parede caiada da estação de Nizan e uma carripana parada. (Que as trevas se tornem a fechar rápidas em redor!) De um comboio na estação vinham mugidos, balidos tristes. Gardère pegou no saco de Teresa e uma vez mais a devorou com o olhar. A mulher devia ter-lhe recomendado: "Vê bem como ela está, a cara que faz..." Para o cocheiro do senhor Larroque, Teresa encontra instintivamente o sorriso que fazia dizer às pessoas: "Não se pergunta se é bonita ou feia, aceita-se-lhe o encanto..." Teresa pediu-lhe que fosse comprar o bilhete, pois tinha receio de atravessar a sala de espera, onde duas camponesas sentadas, com um cesto sobre os joelhos e abanando a cabeça, faziam malha.
Quando ele trouxe o bilhete, Teresa disse-lhe que guardasse o troco. Gardère levou os dedos ao boné; já com as rédeas na mão, voltou-se uma última vez para observá-la.
O comboio ainda não estava formado. Noutro tempo, na época das férias grandes ou do começo das aulas, a paragem na estação de Nizan constituía uma festa para Teresa Larroque e Ana de La Trave. Comiam na estalagem um ovo estrelado com presunto e depois, segurando-se pela cintura, seguiam pela estrada, tão tenebrosa nessa noite; mas Teresa só a vê, naqueles anos passados, branca de luar. Elas riam então das suas longas sombras confundidas. Sem dúvida falavam das professoras, das companheiras - uma defendendo o seu convento, a outra o seu liceu. "Ana..." Teresa pronuncia-lhe o nome em voz alta, no escuro. Era dela que primeiro seria necessário falar a Bernardo... O mais preciso dos homens, esse Bernardo: classifica todos os sentimentos, isola-os, ignora a rede de desfiladeiros, de passagens, que entre eles existe. Como introduzi-lo nas regiões indeterminadas onde Teresa viveu e sofreu? Todavia é necessário. Nenhum outro gesto possível, dentro em pouco, ao penetrar no quarto, senão o de se sentar na beira do leito e conduzir Bernardo de fase em fase, até ao momento em que ele a deterá: "Compreendo agora; levanta-te, perdoo-te."
Teresa, às apalpadelas, atravessou o jardim do chefe da estação; cheirou-lhe a crisântemos sem os ver. Ninguém no compartimento de primeira, onde, aliás, a chama do candeeiro não chegaria para lhe iluminar o rosto. Impossível ler: mas que história não teria parecido insípida a Teresa, em comparação com a sua terrível vida? Talvez morresse de vergonha, de angústia, de remorso, de fadiga - mas não morrerria de enfado.
Meteu-se num canto e fechou os olhos. Seria verosímil que uma mulher com a sua inteligência não conseguisse tornar aquele drama inteligível? Sim, terminada a confissão, Bernardo erguê-la-ia: "Vai em paz, Teresa, não te inquietes. Nesta casa de Argelouse, esperaremos ambos a morte, sem que nos possam jamais separar as coisas consumadas. Tenho sede. Desce tu à cozinha. Prepara-me um copo de laranjada. Bebê-la-ei de um trago, mesmo que esteja turva. Que importa que o gosto me recorde o que tinha outrora o meu chocolate da manhã? Lembras-te, minha querida, desses vómitos? A tua mão sustentava-me a cabeça; não desviavas os olhos do líquido esverdeado; as minhas síncopes não te assustavam. No entanto, como empalideceste na noite em que descobri que as minhas pernas estavam inertes, insensíveis. Eu tiritava. Recordas-te? E o imbecil do doutor Pédemay estupefacto de que a minha temperatura estivesse tão baixa e o meu pulso tão agitado..."
"Ah!, pensa Teresa, ele não terá compreendido. Será necessário tornar a contar tudo desde o princípio..." Onde está o começo dos nossos actos? O nosso destino, quando queremos isolá-lo, assemelha-se a essas plantas que é impossível arrancar com todas as suas raízes. Remontará Teresa até à sua infância? Mas a infância é ela própria um termo, um resultado.
A infância de Teresa: neve na nascente do rio mais maculado. No liceu, tinha parecido viver indiferente e como ausente das pequenas tragédias que dilaceravam as companheiras. As professoras propunham-lhes com frequência o exemplo de Teresa Larroque: "Teresa não deseja outra recompensa salvo a alegria de realizar em si um tipo de humanidade superior. A consciência é a sua única e suficiente luz. O orgulho de pertencer ao escol humano sustenta-a melhor do que o faria o temor do castigo..." Deste modo se exprimia uma das professoras. Teresa interroga-se: "Era eu assim tão feliz? Era eu tão cândida? Tudo o que precede o meu casamento toma, na minha lembrança, esse aspecto de pureza; contraste, sem dúvida, com a indelével mácula das núpcias. O liceu, para lá do meu tempo de esposa e de mãe, aparece-me como um paraíso. Não tinha então consciência disso. Como teria podido saber que, nesses anos anteriores à vida, vivia eu a minha verdadeira vida? Pura, era-o, sim, um anjo! Mas um anjo cheio de paixões. Quaisquer que fossem as pretensões das minhas professoras, eu sofria e fazia sofrer. Saboreava o mal que causava e o que me vinha das minhas amigas; puro sofrimento que nenhum remorso alterava: dores e alegrias nasciam dos mais inocentes prazeres."
Para Teresa, a recompensa consistia, na estação quente, em se não julgar indigna de Ana, que ela encontrava de novo sob os carvalhos de Argelouse. Tinha de poder dizer à criança educada no Sagrado Coração: "Para ser tão pura como tu, não preciso de todas essas fitas, nem de todas essas cantilenas..." A própria pureza de Ana de La Trave era feita sobretudo de ignorância.
As senhoras do Sagrado Coração interpunham mil véus entre a realidade e as suas pupilas. Teresa desprezava-as por confundirem virtude e ignorância: "Tu, querida, não conheces a vida...", repetia, nesses longínquos Verões de Argelouse. Esses belos Verões... No pequeno comboio que enfim começa a afastar-se da estação, Teresa reconhece que é para eles que o seu pensamento deve encaminhar-se, se pretender ver claro. Inacreditável verdade a de que nas alvoradas puríssimas das nossas vidas as piores tempestades pairavam já. Manhãs demasiado azuis: mau sinal para o tempo da tarde e da noite. Elas anunciam os canteiros devastados, os ramos partidos e a lama. Teresa não reflectiu, nada premeditou em nenhum momento da sua vida; nenhuma viragem brusca: desceu um declive insensível, primeiro lentamente, depois mais depressa. A mulher perdida desta noite é o mesmo jovem ser radioso dos estios dessa Argelouse aonde agora volta furtiva, protegida pela noite.
Que fadiga! Para quê descobrir as causas secretas do que está consumado? Através dos vidros, Teresa distingue apenas o reflexo do seu rosto morto. O ritmo do pequeno comboio quebra-se; a locomotiva apita longamente, aproximando-se com prudência de uma estação. Uma lanterna balançada por um braço, campónios chamando outros, gritos agudos de bácoros desembarcados: Uzeste já. Mais uma estação e será Saint-Clair, donde terá de fazer em campana o caminho que a separa de Argelouse. Como é pouco o tempo que lhe resta para preparar a sua defesa!
Argelouse é realmente uma extremidade da terra, um desses sítios para lá dos quais é impossível prosseguir, aquilo a que se chama aqui um lugar: algumas casas arrendadas, sem igreja, nem câmara, nem cemitério, disseminadas em volta de um campo de centeio, a dez quilómetros do burgo de Saint-Clair, ao qual as liga uma única estrada escalavrada. Este caminho cheio de rodeiras e buracos transforma-se, depois de Argelouse, em veredas arenosas; e, até ao oceano, nada mais há além de oitenta quilómetros de pântanos, de lagunas, de pinheiros raquíticos, de charnecas onde, no fim do Inverno, as ovelhas têm a cor da cinza. As melhores famílias de Saint-Clair provêm deste lugar perdido. Por meados do século passado, quando a resina e a madeira começaram a aumentar os magros recursos que eles extraíam dos rebanhos, os avós dos que hoje vivem estabeleceram-se em Saint-Clair e as suas casas de Argelouse foram arrendadas. As vigas esculpidas do alpendre, por vezes uma chaminé em mármore, testemunham a antiga dignidade. Dão de si um pouco cada ano e a grande asa fatigada de um dos tectos quase roça o chão.
Duas dessas velhas moradas, no entanto, são ainda casas de senhores. Os Larroque e os Desqueyroux conservaram as habitações de Argelouse tal como as receberam. Jerónimo Larroque, presidente da câmara e conselheiro-geral de B., e que tinha às portas da subprefeitura a sua residência principal, nada quis mudar ao domínio de Argelouse, que lhe vinha da mulher (morta de parto, quando Teresa era ainda de berço) e onde não se admirava de que a rapariga gostasse de passar as férias. Ela instalava-se lá a partir de Julho, sob os cuidados de uma irmã mais velha do pai, a tia Clara, velha solteirona surda que se comprazia também naquela solidão, porque aí, dizia ela, não via mexerem-se os lábios dos outros e porque sabia que, nessa velha morada, só se podia ouvir o vento nos pinhais. O senhor Larroque felicitava-se por Argelouse, que o desembaraçava da filha, a aproximar de Bernardo Desqueyroux - com quem ela, segundo o voto das duas famílias, deveria casar um dia, embora o acordo não revestisse ainda carácter oficial.
Bernardo Desqueyroux herdara do pai, em Argelouse, uma casa vizinha da dos Larroque; nunca ninguém o via antes da abertura da caça e só lá dormia em Outubro, pois instalara perto a sua cabana para a caça ao pombo bravo. De Inverno, aquele rapaz de juízo seguia em Paris o curso de Direito; de Verão, poucos dias consagrava à família: exasperava-o Heitor de La Trave, que sua mãe, viúva, desposara "sem vintém" e cujas grandes despesas eram o motivo de conversa de Saint-Clair. A sua irmã Ana, filha desse segundo casamento, parecia-lhe então demasiado jovem para que ele lhe pudesse conceder alguma atenção. Pensaria muito mais em Teresa? Toda a região lhes celebrava já o casamento, pois que as propriedades de ambos dir-se-iam destinadas a formar uma só - e, neste ponto, o ajuizado rapaz estava de acordo com toda a região. Mas Bernardo não abandonava nada ao acaso e punha todo o orgulho na boa organização da vida: "Só somos infelizes por nossa própria culpa...", repetia aquele rapaz um pouco gordo para a idade. Até ao casamento, consagrou tempo igual ao trabalho e ao prazer; se não desprezava a comida, nem a bebida, nem sobretudo a caça, trabalhava também "como um escravo", segundo a expressão da mãe. Porque um marido deve ser mais instruído do que a mulher; e já a inteligência de Teresa era famosa; um espírito forte, sem dúvida... mas Bernardo sabia a que razões cede uma mulher; e depois, insistia a mãe, não era mau "ter um pé em cada campo"; o pai Larroque poderia ser-lhe útil. Aos vinte e seis anos, após algumas viagens previamente estudadas com minúcia, pela Itália, pela Espanha e pelos Países Baixos, Bernardo Desqueyroux desposaria a rapariga mais rica e mais inteligente da charneca, talvez a mais bonita: "não se pergunta se é bonita ou feia, aceita-se-lhe o encanto".
Teresa sorri a esta caricatura de Bernardo que ela desenha em pensamento: "Na verdade, ele era mais afinado do que a maior parte dos rapazes com quem eu poderia ter casado." As mulheres da charneca são muito superiores aos homens que, desde o colégio, vivem uns com os outros e pouco se afinam; a charneca ficou-lhes no coração; continuam a viver lá em espírito; nada existe para eles além dos prazeres que ela lhes dispensa; perder a semelhança com os seus rendeiros, renunciar à linguagem de campónio, às maneiras frustes e selvagens, seria abandoná-la mais, seria traí-la. Sob a dureza exterior de Bernardo, não existiria uma espécie de bondade? Quando estivera quase a morrer, os rendeiros diziam: "Depois dele, já não haverá senhor aqui." Sim, bondade, e também uma justeza de espírito, uma grande boa-fé; fala pouco do que não conhece, aceita os seus limites. Adolescente, não era assim tão feio, esse tosco Hipólito - menos curioso das raparigas que da lebre que caçava na charneca...
Todavia, não é ele que Teresa, pálpebras descidas e a cabeça encostada ao vidro da carruagem, vê surgir de bicicleta nessas manhãs de outros tempos, na estrada de Saint-Clair a Argelouse, pelas nove horas, antes que o calor tenha atingido o auge; não o noivo indiferente, mas a sua irmãzita Ana, de rosto afogueado; - e já as cigarras, de pinheiro em pinheiro, se agitavam e sob o céu começava a ressoar a fornalha da charneca; milhões de moscas elevam-se das altas urzes. "Põe o casaco para entrares no salão; é uma geleira..." E a tia Clara acrescentava: "Só beberás quando não estiveres a suar..." Ana gritava à surda inúteis cumprimentos. "Não te esganices tanto, querida, ela compreende tudo pelo movimento dos lábios..." Mas a rapariga articulava em vão cada palavra e deformava a boca minúscula; a tia respondia ao acaso, até que as duas amigas se viam forçadas a fugir para rirem à vontade.
Do fundo do compartimento escuro, Teresa lembra aqueles dias puros da sua vida - puros, mas iluminados por uma débil felicidade imprecisa; e não sabia então que esse embaciado clarão de alegria devia ser a sua única parte neste mundo. Nada a advertia de que todo o seu quinhão se encontrava num salão tenebroso, no meio do Verão implacável - sobre um canapé de repes, ao pé de Ana, cujos joelhos juntos sustentavam um álbum de fotografias. Donde lhe vinha tal felicidade? Tinha Ana um único dos gostos de Teresa? Odiava a leitura e só gostava de coser, tagarelar e rir. Nenhuma ideia sobre nada, ao passo que Teresa devorava com o mesmo apetite os romances de Paulo de Kock, as Causeries de Lundi e a História do Consulado, tudo o que se encontra nos armários de uma casa de província. Nenhum gosto comum, senão o de estarem juntas durante essas tardes em que o fogo do céu sitia os homens entrincheirados numa semitreva. Por vezes, Ana levantava-se para ver se o calor diminuíra. Mas mal entreabria as janelas de madeira, a luz, semelhante a uma golfada de metal em fusão, jorrava de súbito, parecendo queimar a esteira, e de novo era preciso fechar tudo e alapardar-se.
Mesmo ao crepúsculo, e quando o sol já só avermelhava a base dos pinheiros e uma última cigarra, rente ao chão, se obstinava em cantar, o calor mantinha-se estagnado sob os carvalhos. Como se se tivessem sentado na borda de um lago, as amigas estendiam-se à beira do campo. Nuvens tempestuosas propunham-lhes imagens fugidias; mas antes que Teresa tivesse tempo de distinguir a mulher alada que Ana via no céu, já ela se transformara, dizia a rapariga, num estranho animal deitado.
Em Setembro, podiam sair depois da ceia e penetrar na região da sede: nem o menor fio de água em Argelouse; é preciso caminhar durante muito tempo na areia para alcançar as nascentes do riacho chamado Hure. Numerosas, elas brotam num terreno baixo de estreitos prados, por entre as raízes dos amieiros. Os pés nus das raparigas tornavam-se insensíveis na água glacial; depois, mal secavam, ficavam de novo a escaldar. Uma das cabanas que servem, em Outubro, para a caça ao pombo bravo, acolhia-as, como pouco antes o salão sombrio. Nada que dizerem uma à outra; nenhuma palavra: os minutos dessas longas paragens inocentes fugiam, sem que nenhuma delas pensasse em mexer-se, como se não mexe o caçador quando, à aproximação de um bando, faz sinal de silêncio. De igual modo, parecia-lhes que um só gesto teria afugentado aquela imprecisa e casta felicidade. Ana era a primeira a espreguiçar-se, impaciente por ir caçar calhandras ao crepúsculo; Teresa, que odiava esse entretenimento, seguia-a, não obstante, insaciável da presença dela. Ana desprendia da parede do vestíbulo a espingarda de calibre 24, que não dá coice. A amiga, que ficava no talude, via-a, no meio do centeio, apontar ao Sol como para apagá-lo. Teresa tapava os ouvidos; um grito ébrio irrompia no azul e a caçadora apanhava a ave ferida, apertava-a com mão cautelosa e, enquanto lhe acariciava com os lábios as penas quentes, estrangulava-a.
- Vens amanhã?
- Oh! todos os dias, não!...
Não desejava vê-la todos os dias; palavras sensatas a que nada devia opor-se; qualquer protesto teria parecido, mesmo a Teresa, incompreensível. Ana preferia não voltar; nada, sem dúvida, a teria impedido; mas porque haviam de ver-se todos os dias? "Acabariam", dizia ela, "por embirrar uma com a outra." Teresa respondia: "Sim... sim... sobretudo não transformes isto numa obrigação. Vem quando te apetecer, quando não tiveres nada de melhor." A adolescente, de bicicleta, desaparecia na estrada já escura, fazendo soar a campainha.
Teresa tornava a casa; as rendeiras saudavam-na de longe; as crianças não se aproximavam. Era a hora em que as ovelhas se espalhavam por debaixo dos carvalhos; de súbito corriam todas ao mesmo tempo, enquanto o pastor gritava. A tia esperava-a na soleira da porta e, como fazem os surdos, falava sem interrupção para que Teresa lhe não falasse. Mas que angústia era aquela? Não lhe apetecia ler, não lhe apetecia nada; e errava de novo. "Não te afastes: olha que vamos comer." Voltava à beira da estrada - vazia até onde os seus olhos podiam alcançar. A sineta tocava à porta da cozinha. Talvez fosse preciso acender o candeeiro. O silêncio não era mais profundo para a surda imóvel, com as mãos cruzadas sobre a toalha, do que para essa rapariga um pouco desvairada.
Bernardo, Bernardo, como introduzir-te neste mundo confuso, tu que pertences à raça cega, à raça implacável dos simples? "Às primeiras palavras interromper-me-á", pensa Teresa: ""Porque casaste comigo? Eu não corri atrás de ti..."" Sim, porque casara com ele? Era certo que Bernardo não mostrara qualquer pressa. Teresa lembra-se de que a mãe dele, a senhora De La Trave, repetia ao primeiro que aparecia: "Ele teria esperado, mas ela quis, ela quis, ela quis. Infelizmente não tem os nossos princípios; por exemplo, fuma como um campónio: é para se dar ares; mas é uma natureza recta, franca como poucas. Depressa a levaremos à razão. É verdade que nem tudo nos sorri neste casamento. Sim... a avó Bellade... bem sabemos... Mas já está esquecido. Mal se pode dizer que houve escândalo, de tal modo a coisa foi bem abafada. Acredita na hereditariedade? O pai pensa mal, sem dúvida; mas só lhe deu bons exemplos: é um santo laico. E pessoa de grande influência. Precisamos de toda a gente. Enfim, não temos outro remédio senão fechar os olhos a certas coisas. E depois, por mais inacreditável que pareça, ela é mais rica do que nós. Ninguém diria, mas é assim mesmo. E tem uma adoração por Bernardo... o que, aliás, não faz mal nenhum."
Sim, ela estivera em adoração perante ele: nenhuma atitude que exigisse menos esforço. No salão de Argelouse ou sob os carvalhos à beira do campo, bastava-lhe erguer os olhos, que era ciência sua encher de candura amorosa. Uma tal presa a seus pés lisonjeava Bernardo, mas não lhe causava espanto. "Não brinques com ela", repetia-lhe a mãe, "porque fica a moer-se."
"Casei com ele porque..." Teresa, de sobrancelhas franzidas e a mão sobre os olhos, procura recordar-se. Havia a alegria pueril de se tornar, por esse casamento, cunhada de Ana. Mas era Ana, principalmente, quem se divertia com isso; para Teresa, esse laço pouco contava. Na verdade, porque corar? Os dois mil hectares de Bernardo não a tinham deixado indiferente. "Sempre tivera a propriedade no sangue." Quando, levantada a mesa depois das longas refeições, se servem as bebidas, Teresa muitas vezes se deixara ficar com os homens, retida pelas suas conversas sobre os rendeiros, os esteios para minas, a gema, a terebintina. As avaliações de propriedades apaixonavam-na. Nenhuma dúvida de que o domínio de tão grande extensão de matas a tenha seduzido. "Também ele, aliás, estava enamorado dos meus pinhais..." Mas Teresa obedecera talvez a um sentimento mais obscuro que se esforça por pôr a claro: talvez procurasse menos no casamento um domínio, uma posse, do que um refúgio. O que nele a precipitara, não teria sido o pânico? Rapariga prática, educada para dona de sua casa, tinha pressa de ocupar a sua posição, de encontrar o seu lugar definitivo; queria tranquilizar-se não sabia contra que perigo. Nunca Teresa parecera tão sensata como na época do noivado: incrustava-se num bloco familiar, "acomodava-se"; entrava numa ordem. Salvava-se.
Seguiam, naquela primavera do noivado, o caminho arenoso que liga Argelouse a Vilméja. As folhas mortas dos carvalhos manchavam ainda o azul do céu; os fetos secos juncavam o solo, donde brotavam os novos rebentos, minúsculos báculos de um verde ácido. Bernardo dizia: "Toma cuidado com o cigarro; pode ainda estar a arder. E já não há água na charneca." Ela perguntara: "É verdade que os fetos contêm ácido prússico?" Bernardo não sabia se conteriam o suficiente para envenenar uma pessoa. E interrogara ternamente: "Tens vontade de morrer?" Teresa rira e ele emitira o voto de que ela se tornasse mais simples. Teresa recorda-se de ter fechado os olhos, enquanto duas grandes mãos lhe envolviam a pequena cabeça e uma voz lhe murmurava ao ouvido: "Há ainda aqui algumas ideias falsas." Ela respondera: "Cabe-te a ti destruí-las, Bernardo." Tinham observado o trabalho dos pedreiros que acrescentavam uma sala à casa da herdade de Vilméja. Os proprietários, bordaleses, queriam instalar aí o filho mais novo "que se ia finando, doente do peito". A irmã tinha morrido do mesmo mal. Bernardo sentia grande desdém por esses Azevedo: "Juram por todos os deuses que não são de origem judaica... mas basta olhar para eles. E, ainda por cima, tuberculosos; todas as doenças..." Teresa estava calma. Ana viria do Convento de S. Sebastião para assistir ao casamento. Devia ter por par o filho dos DeguiIhem. Ela pedira a Teresa que lhe descrevesse "na volta do correio" os vestidos das outras damas de honor: "Não poderia conseguir amostras? Era do interesse de todas escolherem tons que se harmonizassem..." jamais Teresa conheceu tamanha paz - o que ela acreditava ser a paz e que era apenas a sonolência, o entorpecimento desse réptil no seu seio.
No dia sufocante do casamento, na estreita igreja de Saint-Clair, onde o falatório das damas cobria o pequeno órgão sem fôlego e os seus odores triunfavam do incenso, foi nesse dia que Teresa se sentiu perdida. Entrara sonâmbula no cárcere e, de repente, ao fragor da pesada porta que se fechara, a miserável criança tinha acordado. Nada mudara, mas ela tinha o sentimento de não poder, doravante, perder-se sozinha. No fundo espesso de uma família, ela ia viver surdamente, semelhante a um fogo invisível que rasteja sob o mato, incendeia um pinheiro, depois outro, e pouco a pouco vai criando uma floresta de archotes. Naquela multidão, nenhum rosto em que repousar os olhos, a não ser o de Ana; mas a alegria infantil da rapariga isolava-a de Teresa. A sua alegria! Como se ela ignorasse que iam ser separadas nessa mesma noite, e não só no espaço, mas também por causa do que Teresa estava prestes a sofrer - daquilo que o seu corpo inocente ia sofrer de irremediável. Ana ficava na margem onde aguardam os seres intactos; Teresa ia confundir-se com o rebanho das que serviram. Recorda-se de que na sacristia, ao inclinar-se para beijar aquele rosto hílare erguido para o seu, apercebera de súbito o nada em volta do qual criara um universo de dores vagas e de vagas alegrias; num instante, descobrira a desproporção infinita que havia entre as forças obscuras do seu coração e a atraente face cheia de pó-de-arroz.
Ainda muito tempo depois, em Saint-Clair e em B., as pessoas não falavam desse casamento de Gamache (em que mais de cem rendeiros e criados tinham comido e bebido debaixo dos carvalhos) sem lembrar que a noiva, "que não é, decerto, uma beleza perfeita, mas que é o próprio encanto", parecera a todos, nesse dia, feia e mesmo horrenda: "Não era a mesma, parecia outra..." As pessoas viram apenas que ela era diferente da sua aparência habitual; atribuíram as culpas ao vestido branco, ao calor; não lhe reconheceram o verdadeiro rosto.
Na tarde dessa boda meio camponesa, meio burguesa, grupos donde sobressaíam os vestidos das raparigas obrigaram o automóvel dos noivos a afrouxar a marcha para aclamá-los. Na estrada juncada de flores de acácia, eles foram ultrapassando as carripanas ziguezagueantes conduzidas por pândegos com uma pinga a mais. Ao pensar na noite que se seguiu, Teresa murmura: "Foi horrível..." Depois corrige-se: "Não... não foi assim tão horrível..." Durante a viagem aos lagos italianos, sofreu muito? Não, não; ela entrara no jogo: não se trair. Ilude-se facilmente um noivo; mas um marido! Qualquer sabe proferir palavras enganosas; as mentiras do corpo exigem outra ciência. Imitar o desejo, a alegria, a fadiga feliz, nem a todos é dado. Teresa soube dobrar o corpo a tais simulações, delas tirando um amargo prazer. A imaginação ajudava-a a conceber que naquele mundo desconhecido de sensações, onde um homem a forçava a penetrar, talvez também para ela tivesse havido uma felicidade possível. Mas que felicidade?... Como diante de uma paisagem sepultada pela chuva imaginamos o que ela teria sido ao sol, assim Teresa descobria a volúpia.
Bernardo, esse rapaz de olhar vazio, sempre inquieto de que os números dos quadros não correspondessem aos de Baedecker, satisfeito por ter visto no menor tempo possível tudo o que era para ver, que fácil se tornava iludi-lo! Estava encerrado no seu prazer como aqueles porquinhos encantadores que é divertido observar através da porta da pocilga, quando fungam de felicidade no lodaçal ("era eu o lodaçal", pensa Teresa). Tinha como eles um ar apressado, azafamado, sério; era metódico. "Mas parece-te que isso é sensato?", arriscava por vezes Teresa, estupefacta. Bernardo ria e sossegava-a. Onde aprendera ele a classificar tudo o que diz respeito à carne - a distinguir as carícias do homem sério das do sádico? Jamais uma hesitação. Uma noite, em Paris, onde eles, na viagem de regresso, tinham ficado, Bernardo abandonara ostensivamente um music-hall, chocado pelo espectáculo: "Dizer que os estrangeiros vêem isto! Que vergonha! E é por estas coisas que nos julgam..." Teresa admirava-se de que aquele homem pudico fosse o mesmo de quem teria de suportar, daí a menos de uma hora, as pacientes invenções das trevas.
"Pobre Bernardo! Não era pior do que os outros! Mas o desejo transforma o ser que se aproxima de nós num monstro que se lhe não assemelha. Nada já nos separa do nosso cúmplice excepto o seu delírio: sempre vi Bernardo mergulhar no prazer - e eu fazendo de morta, como se, ao menor gesto, corresse o risco de ser estrangulada por esse louco, esse epiléptico. A maior parte das vezes, à beira do prazer extremo, descobria de súbito a sua solidão; a sombria fúria interrompia-se. Bernardo voltava atrás e encontrava-me como numa praia para onde eu tivesse sido lançada, com os dentes cerrados, fria."
Uma única carta de Ana: a rapariga gostava pouco de escrever; mas, por milagre, não havia uma só linha que não agradasse a Teresa: uma carta exprime muito menos os nossos sentimentos reais do que aqueles que devemos experimentar para que seja lida com alegria. Ana lamentava-se de não poder ir para os lados de Vilméja desde a chegada do filho dos Azevedo; vira de longe a sua cadeira de repouso, no meio dos fetos; os tísicos causavam-lhe horror.
Teresa relia com frequência aquelas páginas e não esperava outras. Por isso, muito surpreendida ficou, à hora do correio (na manhã que se seguiu ao espectáculo de music-hall interrompido), ao reconhecer em três envelopes a letra de Ana de La Trave. Diversas postas-restantes tinham-lhes feito chegar a Paris um maço de cartas, visto eles terem passado por vários sítios sem se demorarem: "com pressa", dizia Bernardo, "de regressarem ao ninho"; - na verdade, porque já não podiam mais estar um com o outro: ele morria de aborrecimento longe das suas espingardas, dos seus cães, da estalagem onde o licor de romã tem um gosto que não possui noutro local; e depois, aquela mulher tão fria, tão trocista, que nunca mostrava o seu prazer e não gostava de conversar sobre o que interessa!... Teresa, pelo seu lado, desejava voltar para Saint-Clair, como uma deportada que, aborrecendo-se num cárcere provisório, está curiosa de conhecer a ilha onde deve consumir-se o que lhe resta de vida. Teresa decifrara com cuidado a data marcada em cada um dos envelopes; e abria já o mais antigo quando Bernardo soltou uma exclamação e pronunciou algumas palavras de que ela não compreendeu o sentido, pois que a janela estava aberta e os autocarros mudavam de velocidade naquele cruzamento. Ele interrompera a barba para ler uma carta da mãe. Teresa vê-lhe ainda a camisola interior de presidiário, os musculosos braços nus, a pele branca e, de súbito, o vermelho vivo do pescoço e da cara. Nessa manhã de Julho, reinava já um calor sulfuroso; o Sol brilhando num céu de chumbo tornava mais sujas, para lá da sacada, as frontarias mortas. Bernardo aproximara-se de Teresa e gritava: "Esta é forte! A tua amiga Ana vai depressa de mais. Quem diria que a minha irmãzinha..."
E como Teresa o interrogava com o olhar:
- Não queres tu saber que ela se embeiçou pelo filho dos Azevedo? Sim, esse reles tísico para quem eles tinham mandado aumentar a casa de Vilméja... Sim, sim, o caso parece sério... Ela declara que esperará até atingir a maioridade... A minha mãe diz que a rapariga está completamente louca. Contanto que os Deguilhem não o saibam! O filho seria capaz de não a pedir em casamento. Recebeste cartas dela? Então vamos saber... Mas abre-as lá!
- Quero lê-las por ordem. Aliás, não tas mostrarei. Sempre a mesma, sempre a complicar tudo... Mas, enfim, o essencial era que ela conduzisse a rapariga à razão:
- Os meus pais contam contigo. Conseguirás dela o que quiseres... sim, sim! Eles esperam-te como a salvação.
Enquanto ela se vestia, Bernardo ia mandar um telegrama e marcar dois lugares no Sud-Expresso. Teresa podia começar a arrumar as malas:
- Mas por que esperas para ler as cartas da rapariga?
Que tu já aí não estejas.
Muito tempo depois de Bernardo ter fechado a porta, Teresa ficara estendida, a fumar e a olhar as letras de ouro enegrecido, fixas na sacada em frente; depois abrira o primeiro envelope. Não, não; não era essa tolinha, não podia ser essa aluna de um colégio de freiras, de espírito estreito, que inventara tais palavras de fogo. Não podia ser desse coração seco - porque ela tinha o coração seco: Teresa sabia-o talvez! - que jorrara aquele cântico dos cânticos, aquele longo queixume feliz de uma mulher possuída, de uma carne quase morta de prazer desde o primeiro instante:
... Quando o encontrei, não podia acreditar que fosse ele: brincava com o cão, correndo e gritando. Como poderia eu imaginar que era esse o tal doente... Mas ele não está doente: apenas se tomam precauções por causa das desgraças que tem havido na família. Nem sequer é fraco, mas magro; e depois, habituado a ser amimado, apaparicado... Não me reconhecerias: sou eu quem lhe vai buscar a samarra, logo que o calor diminui...
Se Bernardo tivesse entrado no quarto nesse momento, ter-se-ia apercebido de que aquela mulher sentada sobre o leito não era a sua mulher, mas um ser desconhecido, uma criatura estranha e sem nome. Deitou fora o cigarro, abriu o segundo envelope:
... Esperarei o tempo que for preciso; nenhuma resistência me mete medo; o meu amor nem sequer o sente. Retêm-me em Saint-Clair, mas Argelouse não é tão distante que João e eu nos não possamos encontrar. Lembras-te da cabana para a caça ao pombo bravo? Foste tu, minha querida, quem antecipadamente escolheu os lugares onde eu devia conhecer tão grande alegria... Oh! mas não vás julgar que façamos alguma coisa de mal. Ele é tão delicado! Não podes imaginar um rapaz assim. Estudou e leu muito, como tu: mas num rapaz isso não me irrita e nunca pensei em implicar com ele. O que eu não daria para ser tão culta como tu! Querida, que felicidade é essa que hoje tens e que eu ainda não conheço, para que a proximidade dela seja já uma tal delícia? Quando, na cabana para onde sempre querias que levássemos a merenda, fico junto dele e a sua mão repousa imóvel sobre o meu peito, e sobre o dele a minha, que eu apoio no sítio onde lhe bate o coração (é o que ele chama "a última carícia permitida"), sinto em mim a felicidade, como qualquer coisa que eu poderia tocar. Digo a mim mesma, no entanto, que existe uma alegria para além desta alegria; e quando João se afasta, muito pálido, a recordação das nossas carícias, a expectativa do que vai ser o dia seguinte, tornam-me surda às lamentações, às súplicas, às injúrias dessa pobre gente que não sabe... que nunca soube... Perdoa-me, querida: falo-te dessa felicidade como se também tu a não conhecesses; todavia, ao pé de ti, nada mais sou que uma noviça: por isso, tenho a certeza de que estarás ao nosso lado contra os que nos fazem mal...
Teresa abriu o terceiro envelope; apenas algumas palavras rabiscadas:
Vem, minha querida. Separaram-nos, guardam-me à vista. Eles julgam que te porás ao lado deles. Garanti-lhes que me submeteria à tua decisão. Explicar-te-ei tudo: ele não está doente... Sou feliz e sofro. Sou feliz por sofrer por causa dele e amo a sua dor como o sinal do amor que tem por mim...
Teresa não continuou a leitura. Quando metia a folha no envelope, descobriu uma fotografia por que não dera antes. Ao pé da janela, contemplou aquele rosto: era um rapaz cuja cabeça, por causa dos espessos cabelos, parecia demasiado forte. Teresa reconheceu o local - o talude onde João Azevedo se erguia, semelhante a David (havia por detrás uma charneca onde pastavam ovelhas). Trazia o casaco no braço e a camisa entreaberta... "É o que ele chama a última carícia permitida..." Teresa levantou os olhos e ficou espantada com a sua cara no espelho. Foi-lhe necessário um esforço para descerrar os dentes e engolir a saliva. Esfregou as fontes e a testa com água-de-colónia. "Ela conhece essa alegria... E eu, e eu? Porque não eu?" A fotografia tinha ficado sobre a mesa; ao pé, luzia um alfinete...
"Fui eu que fiz isso. Fui eu que fiz isso..." No comboio que balança e que, a uma descida, se precipita, Teresa repete: "Há já dois anos, nesse quarto de hotel, peguei no alfinete e furei a fotografia no sítio do coração - não furiosamente, mas com calma e como se se tratasse de um gesto habitual; depois, nos lavabos, puxei o autoclismo e fi-la desaparecer."
Ao entrar, Bernardo admirara-se de que ela estivesse tão grave, como alguém que reflectiu muito e já estabeleceu mesmo um plano de acção. Mas era um disparate Teresa fumar daquela maneira: intoxicava-se! Ao ouvi-la, não se devia atribuir demasiada importância aos caprichos de uma rapariga. Teresa comprometia-se a levá-la à razão... Bernardo desejava que ela o sossegasse
- todo entregue à alegria de sentir na algibeira os bilhetes de regresso, lisonjeado sobretudo de que a família recorresse já a sua mulher. Ele informou-a de que, para o último almoço da viagem de núpcias, iriam a um restaurante do Bosque, sem olhar a preços. No táxi, falou dos seus projectos para a abertura da caça; tinha muito interesse em experimentar o cão que Balion andava a ensinar. A mãe dizia-lhe na carta que, graças às pontas de fogo, a égua deixara de coxear... Havia ainda pouca gente no restaurante, cujo abundante serviço os intimidava. Teresa recorda-se do cheiro: gerânio e salmoura. Bernardo nunca bebera vinho do Reno: "Apre, custa os olhos da cara!" Mas nem todos os dias eram de festa. Os ombros largos do marido escondiam a sala a Teresa. Por detrás dos grandes vidros, deslizavam, detinham-se automóveis, mais silenciosos do que num filme. Junto das orelhas de Bernardo, ela via mexer-se o que sabia serem os músculos temporais. Logo após as primeiras goladas, pôs-se todo vermelho: rapaz sadio do campo a quem apenas faltava, havia semanas, o espaço onde consumir a sua ração quotidiana de comida e de bebida. Teresa não o odiava. Mas que desejo de estar só para poder pensar no seu sofrimento, para procurar o ponto exacto onde sofria! Simplesmente, que ele não esteja ali; que ela se não veja obrigada a comer, a sorrir; que não tenha o constante cuidado de compor o rosto, de extinguir o brilho do olhar; que o seu espírito se fixe livremente sobre esse desespero misterioso: uma criatura evade-se da ilha deserta onde tu a imaginaras a teu lado até ao fim; ela transpõe o abismo que te separa dos outros, alcança-os - muda enfim de planeta... Não; que ser mudou jamais de planeta? Ana fizera sempre parte do mundo dos seres simples; a cabeça que, outrora, durante as suas férias solitárias, repousava adormecida nos joelhos de Teresa, pertencia a um fantasma: a verdadeira Ana de La Trave nunca ela a conhecera - a que hoje vai ter com João Azevedo a uma cabana abandonada entre Saint-Clair e Argelouse.
- Que tens tu? Não comes? Não deixes ir nada para dentro; seria uma pena, pelo preço que custa... Sentes muito calor? Não me digas que vais desmaiar?! A não ser que seja já uma indisposição...
Teresa sorriu; só a sua boca sorria. Disse que estava a pensar na aventura de Ana (tinha de falar de Ana). E como Bernardo declarasse sentir-se inteiramente tranquilo desde que ela se encarregara da questão, a mulher perguntou-lhe por que motivo eram os pais de Ana hostis àquele casamento. Ele julgou que ela estava a zombar e pediu-lhe que não recomeçasse com os seus eternos paradoxos:
- Em primeiro lugar, sabes bem que são judeus: a minha mãe conheceu o avô Azevedo, o que recusou o baptismo.
Mas Teresa pretendia que nada havia de mais antigo em Bordéus do que esses nomes de israelitas portugueses:
- Os Azevedo ocupavam já uma posição elevada quando os nossos antepassados, pastores miseráveis, tiritavam de febre à beira dos seus pântanos.
- Vejamos, Teresa: não discutas pelo prazer de discutir; todos os judeus valem o mesmo... e depois é uma família de degenerados, tuberculosos até à medula, toda a gente o sabe.
Ela acendeu um cigarro, com um gesto que sempre chocara Bernardo:
- És capaz de me dizer de que morreu o teu avô, e o teu bisavô? Quando casaste comigo, procuraste saber por que doença tinha minha mãe sido levada? Julgas que entre os nossos ascendentes não encontraríamos tuberculosos e sifilíticos suficientes para envenenar o universo?
- Vais demasiado longe, Teresa, permite-me que to diga. Mesmo por brincadeira e para me irritar, não deves tocar na família.
Ele empertigava-se, vexado, querendo ao mesmo tempo dar-se um ar arrogante e não parecer ridículo a Teresa. Mas ela insistia:
- As nossas famílias fazem-me rir com a sua prudência de toupeiras! Esse horror das taras aparentes só tem igual na indiferença pelas que, embora muito mais numerosas, não são conhecidas... Tu próprio, todavia, empregas esta expressão: doenças secretas... As doenças mais temíveis para a raça não serão secretas por definição? As nossas famílias nunca pensam nisso, elas que, não obstante, se entendem tão bem para encobrir, para sepultar as suas imundícies. Sem os criados, nunca se saberia nada; felizmente que eles existem...
- Não te responderei. Quando aqueces, o melhor é esperar que acabes. Comigo, o mal não é grande: sei que te estás a divertir. Mas em casa, como deves calcular, isso não seria tomado assim. Nós não brincamos no capítulo da família.
A família! Teresa deixou apagar o cigarro; de olhar fixo, ela via esse cárcere de grades inúmeras e vivas, atapetado de ouvidos e de olhos, onde, imóvel, acocorada, o queixo sobre os joelhos e os braços rodeando as pernas, aguardaria até à morte.
- Vejamos, Teresa, não faças essa cara; se te visses...
Ela sorriu, pôs de novo a máscara:
- Estava a brincar... És pateta, querido.
Mas no táxi, quando Bernardo se aproximou, a sua mão afastou-o, repeliu-o.
Naquela última noite antes do regresso, deitaram-se às nove horas. Teresa tomou um comprimido, mas desejava demasiado o sono para que ele viesse. Durante um instante adormeceu, até que Bernardo se voltou na cama, murmurando palavras incompreensíveis; ela sentiu então contra si esse grande corpo escaldante; empurrou-o e, para lhe não suportar o fogo, estendeu-se na beira da cama; alguns minutos depois, ele rolou de novo para ela, como se a carne sobrevivesse ao espírito ausente e, mesmo no sono, procurasse confusamente a sua presa costumada. Brutalmente e sem todavia o acordar, afastou-o de novo... Ah! afastá-lo de uma vez por todas e para sempre! Precipitá-lo fora do leito, nas trevas.
Através da Paris nocturna, as buzinas dos automóveis respondiam umas às outras, como em Argelouse os cães e os galos quando a Lua brilhava. Nenhuma frescura subia da rua. Teresa acendeu a luz e, com o cotovelo no travesseiro, olhou aquele homem imóvel a seu lado, aquele homem nos seus vinte e sete anos: ele tinha empurrado a roupa; nem sequer se lhe ouvia a respiração; os cabelos em desalinho cobriam-lhe a testa ainda pura e as fontes sem rugas. Adão desarmado e nu, dormia num sono profundo e como eterno. Depois de o ter tapado, Teresa levantou-se, procurou uma das cartas de que interrompera a leitura e aproximou-se do candeeiro:
... Se ele me dissesse que o seguisse abandonaria tudo sem olhar para trás. Detemo-nos à beira, à beira extrema da última carícia, mas por vontade dele, não por minha resistência - ou antes, é ele que me resiste e eu que desejaria atingir esses extremos desconhecidos, cuja aproximação, segundo me repete, ultrapassa já todos os prazeres; ao ouvi-lo, devemos ficar sempre aquém; sente orgulho de poder refrear-se nos declives onde diz que os outros, uma vez que neles se aventurem, resvalam irresistivelmente...
Teresa abriu a janela e, debruçada sobre o abismo de pedra que uma carroça, a essa hora antes da alvorada, fazia ressoar, rasgou as cartas em bocadinhos. Os fragmentos de papel redemoinhavam, iam pousar nas varandas dos andares inferiores. O odor vegetal que respirava, de que campo vinha até àquele deserto de betume? Imaginava a mancha do seu corpo despedaçado na calçada
- e, em redor, o vaivém dos polícias, dos noctívagos... Imaginação de mais para te matares, Teresa! Na verdade, não desejava morrer; um trabalho urgente chamava-a, não de vingança, nem de ódio: mas essa idiota, em Saint-Clair, que julgava a felicidade possível, era preciso que soubesse, como Teresa, que a felicidade não existe. Se não possuíam nada de comum, que tivessem ao menos isso: o tédio, a ausência de toda a tarefa elevada, de todo o dever superior, a impossibilidade de nada mais esperar senão os baixos hábitos quotidianos - um isolamento sem lenitivo. A alvorada iluminava os telhados; Teresa dirigiu-se para o leito onde dormia aquele homem imóvel; mas mal se estendeu a seu lado, já ele se aproximava.
Acordou lúcida, sensata. Que ia ela procurar tão longe? A família chamava-a em seu socorro; agiria segundo o que era exigido pela família; estaria assim certa de não se afastar do seu caminho. Teresa estava de acordo com Bernardo quando ele repetia que seria um desastre se o casamento de Ana com o filho dos DeguiIhem se malograsse. Os Deguilhem não pertenciam ao seu mundo: o avô tinha sido pastor... Sim, mas possuíam os mais belos pinhais da região; e Ana, no fim de contas, não era assim tão rica: do lado paterno, só poderia esperar as vinhas do paul, perto de Langon, inundadas de dois em dois anos. Era preciso, a todo o custo, que Ana não deixasse de casar com o filho dos Deguilhem. O cheiro do chocolate que enchia o quarto agoniava Teresa; esse leve mal-estar confirmava outros sinais: grávida já. "É melhor tê-lo quanto antes", dizia Bernardo; "depois não se pensa mais nisso." E contemplava com respeito a mulher que trazia no ventre o senhor único de pinheiros sem número.
Em breve Saint-Clair! Saint-Clair... Teresa avalia o caminho que o seu pensamento percorreu. Conseguirá que Bernardo a siga até aí? Não ousa esperar que ele consinta em caminhar a passos tão lentos por essa estrada tortuosa; no entanto, do essencial nada foi dito: "Quando tiver alcançado com ele este desfiladeiro onde me encontro, tudo me restará ainda por descobrir." Ela debruça-se sobre o seu próprio enigma, interroga a jovem burguesa casada, de quem todos, quando fora viver para Saint-Clair, louvavam a sensatez, ressuscita as primeiras semanas na casa fresca e sombria dos sogros. Do lado da grande praça, as janelas de madeira estão sempre fechadas; mas, à esquerda, uma grade deixa ver o jardim abrasado de heliotrópios, de gerânios, de petúnias. Entre o casal La Trave, emboscado no fundo de um pequeno salão tenebroso, no rés-do-chão, e Ana, errando pelo jardim donde lhe não era permitido sair, Teresa ia e vinha, confidente, cúmplice. Ela dizia aos La Trave: "Fiquem com o mérito de ceder um pouco, proponham-lhe uma viagem antes de tomar qualquer decisão: conseguirei que elas lhes obedeça neste ponto; durante a vossa ausência, agirei." O quê? Os La Trave entreviam que ela entraria em contacto com o jovem Azevedo. "Não pode esperar nada de um ataque directo, mãe." A acreditar na senhora De La Trave, nada ainda transpirara, graças a Deus. A encarregada do correio, a menina Monod, era a única que estava no segredo; interceptara várias cartas de Ana: "Mas essa rapariga é um túmulo. Aliás, temo-la na mão... não irá dar à língua." "Procuremos fazê-la sofrer o menos possível...", repetia Heitor de Ia Trave; mas ele, que pouco tempo antes cedia aos mais absurdos caprichos de Ana, não podia deixar de aprovar a mulher, dizendo: "Não se pescam trutas a bragas enxutas...", ou então: "Ela há-de agradecer-nos um dia." Sim, mas até lá, não cairia doente? Os dois esposos calavam-se, de olhar vago; por certo seguiam eles em pensamento, lá fora, a filha consumida, a quem todo o alimento causava repulsa: ela esmagava flores que não via, caminhava a passos de corça ao longo da vedação do jardim, procurando uma saída... A senhora De La Trave sacudia a cabeça: "Mas eu não posso comer em vez dela. Enche-se de fruta no jardim, para, durante a refeição, poder ficar com o prato vazio." E Heitor de La Trave: "Ela censurar-nos-ia mais tarde por termos dado o nosso consentimento... Que mais não fosse, por causa dos infelizes que deitaria ao mundo..." A mulher não lhe perdoava aquele ar de quem procurava desculpas: "Felizmente que os Deguilhem ainda não voltaram. Temos sorte de que eles queiram tanto a esse casamento como à menina dos seus olhos..." Esperavam que Teresa houvesse abandonado a sala, para perguntarem um ao outro: "Mas que é que lhe meteram na cabeça no convento? Aqui só teve bons exemplos; vigiámos-lhe as leituras... Teresa diz que não há nada pior para dar volta ao miolo das raparigas do que os romances de amor da obra dos bons livros... Mas ela é tão paradoxal... Aliás, graças a Deus, Ana não tem a mania da leitura; nunca tive de lhe fazer observações a tal respeito. Nisso é ela bem uma mulher da família. No fundo, se conseguíssemos levá-la a mudar de ares... Lembras-te como Salies lhe fez bem depois daquele sarampo complicado por uma bronquite? Iremos para onde lhe agradar; é o mais que posso dizer. Na verdade, é uma criança bem digna de lástima." O senhor De La Trave suspirava baixinho: "Oh! uma viagem connosco... Nada, nada!", respondia ele à mulher que, um pouco surda, lhe perguntava: "Que disseste tu?" Do fundo dessa fortuna que lhe assegurara uma posição, que viagem de amor recordava subitamente aquele velho, que horas abençoadas da sua juventude amorosa?
Teresa fora ter ao jardim com a rapariga, para quem os vestidos do ano anterior se haviam tornado demasiado largos. "Então?", gritava Ana, mal a via aproximar-se. Cinza das áleas, prados secos que estalavam sob os pés, perfume dos gerânios ressequidos pelo calor e essa rapariga mais consumida, na tarde de Agosto, do que qualquer planta - nada Teresa deixa de encontrar ainda no seu coração. Por vezes, aguaceiros tempestuosos forçavam-nas a abrigar-se na estufa; o granizo fazia ressoar os vidros.
- Que te importa partir, já que o não vês?
- Não o vejo, mas sei que ele respira a dez quilómetros daqui. Quando o vento sopra do leste, sei que ouve o sino ao mesmo tempo que eu. Seria igual para ti que Bernardo estivesse em Argelouse ou em Paris? Não vejo João, mas sei que não está longe. Aos domingos, na missa, não tento sequer virar a cabeça, pois que dos nossos lugares só o altar é visível e um pilar nos isola da assistência. Mas à saída...
- No domingo passado, ele não estava lá? Teresa sabia-o, sabia que Ana, arrastada pela mãe,
procurara baldamente na multidão um rosto ausente.
- Talvez tivesse adoecido... Retêm-lhe as cartas; não posso saber nada.
- É todavia estranho que ele não ache um meio de te mandar notícias.
- Se tu quisesses, Teresa... Sim, sei bem que a tua posição é delicada...
- Concorda com essa viagem e, durante a tua ausência, talvez...
- Não posso afastar-me dele.
- De qualquer maneira, minha querida, ele ir-se-á embora. Dentro de algumas semanas, deixará Argelouse.
- Ah! cala-te! É um pensamento insuportável. E nem uma palavra sua para me ajudar a viver. Sinto-me morrer já; é preciso que, a cada instante, recorde as palavras que ele me dizia e mais alegria me causavam; mas, à força de as repetir a mim mesma, já não consigo ter a certeza de que ele as tenha pronunciado realmente; estas, na última vez em que nos encontrámos, julgo ainda ouvi-las: "Não há ninguém na minha vida além de ti..." Ele disse isto, a não ser que tenha sido: "És o que eu tenho de mais querido na vida..." Não consigo lembrar-me exactamente.
De sobrancelhas franzidas, ela procurava o eco das palavras consoladoras, de que alargava o sentido ao infinito.
- Afinal, como é ele?
- Não podes imaginar.
- Parece-se assim tão pouco com os outros?
- Gostaria de to descrever... mas ele está tão acima do que eu poderia dizer!... E, no fim, talvez o considerasses muito vulgar... mas estou certa de que não.
Ana já não conseguia distinguir nenhuma particularidade no jovem resplandecente de todo o amor que ela lhe dedicava. "A mim", pensava Teresa, "a paixão tornar-me-ia mais lúcida; nada me escaparia do ser que eu desejasse."
- Teresa, se me resignasse a essa viagem, tu vê-lo-ias, transmitir-me-ias as suas palavras? Far-lhe-ias chegar as minhas cartas? Se eu partir, se tiver a coragem de partir...
Teresa abandonava o reino da luz e do fogo e penetrava novamente, como uma vespa sombria, no escritório onde os pais aguardavam que o calor abrandasse e que a filha fosse subjugada. Haviam sido precisas muitas dessas idas e vindas para decidir finalmente Ana a partir. E por certo Teresa não o teria conseguido sem o regresso iminente dos Deguilhem. Ana tremia diante do novo perigo. Teresa repetia-lhe que, para um rapaz tão rico, "esse Deguilhem não estava nada mal".
- Mas, Teresa, eu mal o vi: ele usa lunetas, é calvo, é um velho.
- Tem vinte e nove anos.
- É o que eu digo: um velho. E depois, velho ou novo...
À refeição da noite, os La Trave falaram de Biarritz, preocuparam-se com um hotel. Teresa observava Ana, esse corpo imóvel e sem alma. "Faz um esforço... é preciso fazer um esforço", repetia a senhora De La Trave. Num gesto automático, Ana aproximava a colher da boca. Nenhuma luz nos seus olhos. Nada nem ninguém existia para ela: só esse ausente. Por vezes, um sorriso errava-lhe nos lábios, à lembrança de uma palavra que ouvira de uma carícia recebida, na época em que, numa cabana de ramos, a mão demasiado forte de João Azevedo lhe esgarçava um pouco a blusa. Teresa olhava o busto de Bernardo debruçado sobre o prato: como estava sentado em contraluz, ela não lhe via o rosto; mas ouvia-lhe a lenta mastigação, a ruminação do alimento sagrado. Teresa levantou-se da mesa. A sogra dizia: "Ela prefere que não demos por nada. Gostaria de a tratar com outros cuidados, mas ela irrita-se com isso. Esses incómodos é o menos que se pode ter no seu estado. Mas, diga o que disser, fuma de mais." E a velha senhora desfiava recordações dos seus tempos de gravidez: "Quando estava à tua espera, tinha de cheirar uma bola de borracha: era a única coisa que me fazia passar as agonias."
- Teresa, onde estás?
- Aqui, no banco.
- Ah! estou a ver o teu cigarro.
Ana sentava-se, apoiava a cabeça num ombro imóvel, olhava o céu e dizia: "Ele vê estas estrelas, ele ouve o toque das Ave-Marias..." E acrescentava: "Beija-me, Teresa." Mas Teresa não se inclinava para aquela cabeça confiante. Apenas perguntava:
- Sofres?
- Não, esta noite não sofro: compreendi que, de uma maneira ou de outra, irei ter com ele. Agora sinto-me tranquila. O essencial é que ele o saiba; e vai sabê-lo por ti: decidi não me opor à viagem. Mas, quando voltar, atravessarei as muralhas; cedo ou tarde, lançar-me-ei nos seus braços; tu, pelo menos, não me pregues moral, não me fales da família...
- Não estou a pensar na família, querida, mas nele; não se entra assim na vida de um homem: ele também tem a sua família, os seus interesses, o seu trabalho, talvez uma ligação...
- Não, ele disse-me: "Só te tenho a ti na vida...", e doutra vez: "O nosso amor é a única coisa que vale para mim neste momento..."
- "Neste momento"?
- O quê? Julgas que ele só falava do minuto presente?
Teresa já não precisava perguntar-lhe se sofria: ouvia-a sofrer no escuro; mas sem piedade. Por que razão havia de ter piedade? Como deve ser doce repetir um nome, que designa um certo ser a que se está ligado estreitamente pelo coração! Basta o pensamento de que ele vive, de que respira, de que adormece à noite com a cabeça sobre o braço dobrado, de que acorda de manhã, de que o seu corpo jovem afasta a bruma...
- Estás a chorar, Teresa? É por minha causa que choras? És minha amiga...
Ana pusera-se de joelhos, apoiara a cabeça no ventre de Teresa e, de repente, endireitara-se:
- Senti na testa qualquer coisa a mexer.
- Sim, há já alguns dias que se mexe...
- A criança?
- Sim, já tem vida.
Tinham voltado para casa, enlaçadas como antes na estrada de Nizan, na estrada de Argelouse. Teresa recorda-se de que aquele fardo que estremecia a amedrontava. Que paixões, no mais profundo do seu ser, tal carne ainda informe devia penetrar! Ela revê-se nessa noite, sentada no quarto, diante da janela aberta. (Bernardo gritara-lhe do jardim: "Não acendas por causa dos mosquitos.") Teresa tinha contado os meses que faltavam para o nascimento; desejaria conhecer um Deus para conseguir dele que aquela criatura desconhecida, ainda toda misturada com as suas entranhas, se não manifestasse nunca.
O estranho é que Teresa só se recorde dos dias que se seguiram à partida de Ana e dos La Trave como de uma época de torpor. Em Argelouse, onde ficara combinado que ela acharia maneira de agir sobre João Azevedo e de o levar a afastar-se de Ana, pensava apenas em dormir, em descansar. Bernardo consentira em não habitar na sua casa, mas na de Teresa, mais confortável e onde a tia Clara lhes evitaria todos os aborrecimentos da lida doméstica. Que importavam a Teresa os outros? Que se arranjassem sozinhos. Nada lhe agradava salvo aquele entorpecimento, até que a criança nascesse. Todas as manhãs Bernardo a irritava, lembrando-lhe a promessa de abordar João Azevedo. Ela respondia-lhe com aspereza: começava a suportá-lo com menos facilidade. Era possível que o estado de gravidez, como o julgava Bernardo, não fosse estranho àquele humor. Ele próprio sofria então os primeiros ataques de uma obsessão comum à gente da sua raça, embora raramente se manifestasse antes dos trinta anos: esse medo da morte causava espanto sobretudo num rapaz feito de pedra e cal. Porém, que lhe responder quando ele protestava: "Não sabes o que sinto..."? Esses corpos de grandes comedores, descendentes de uma raça ociosa e superalimentada, têm da força apenas o aspecto. Um pinheiro plantado numa terra adubada beneficia de um crescimento rápido; muito cedo, porém, o coração da árvore apodrece e, na sua plena força, é preciso abatê-la. "É nervoso", repetiam a Bernardo; mas ele bem sentia essa falha no metal - essa fenda. E depois, era inacreditável: não comia, já não tinha apetite. "Porque não vais ao médico?" Ele encolhia os ombros, afectava desinteresse; na verdade, a incerteza parecia-lhe menos temível do que um veredicto talvez de morte. Às vezes, de noite, um ralo acordava Teresa em sobressalto: a mão de Bernardo pegava na sua e apoiava-a contra o peito esquerdo, para que ela se apercebesse das intermitências. Teresa acendia a vela, levantava-se, deitava valerianato num copo de água. Que acaso, pensava, que aquela mistura fosse benéfica! Porque não mortal? Nada acalma, nada adormece verdadeiramente, a não ser para a eternidade. Porque tinha aquele homem lamuriento tanto medo do que o aquietaria para sempre? Bernardo adormecia antes dela. Como esperar o sono junto daquele grande corpo, cujo ressonar roçava por vezes a angústia? Graças a Deus, ele já lhe não tocava: de todos os exercícios, o amor parecia-lhe o mais perigoso para o seu coração. Os galos da alvorada acordavam as herdades. O ângelus de Saint-Clair tangia no vento leste; os olhos de Teresa fechavam-se por fim. Então o corpo do homem agitava-se de novo: vestia-se rapidamente, mal molhando a cabeça na água fria, como um camponês. Esgueirava-se para a cozinha, guloso dos restos guardados no armário; de pé, comia à pressa uns pedaços de galinha, uma fatia de carne assada, ou então um cacho de uvas e um naco de pão com alho; a sua única boa refeição do dia! Atirava bocados ao Ruço e à Diana, cujas maxilas davam estalos. Era a hora em que Bernardo já não sofria, em que sentia de novo a sua juventude omnipotente. Em breve os pombos bravos passariam: tinha de preparar as aves que serviriam de isca, furar-lhes os olhos. Às onze horas, encontrava Teresa ainda deitada.
- Então? E o filho dos Azevedo? Sabes que a minha mãe espera notícias em Biarritz, pela posta-restante?
- E o teu coração?
- Não me fales do coração. Basta que me fales dele para que o sinta de novo. Evidentemente, isso prova que é nervoso... Acreditas que seja nervoso?
Ela jamais lhe dava a resposta que ele desejaria:
- Nunca se sabe; só tu podes dizer o que sentes. Mas lá porque o teu pai morreu com uma angina de peito, não é razão para pensares que sofres do mesmo... sobretudo na tua idade... Claro que o coração é o ponto fraco dos Desqueyroux. Como és ridículo, Bernardo, com o teu terror da morte! Nunca tiveste, como eu, o sentimento profundo da tua inutilidade? Não? Nunca pensaste que a vida da gente da nossa espécie se assemelha já terrivelmente à morte?
Ele encolhia os ombros: ela maçava-o com os seus paradoxos. Não é mau ter espírito: e, para isso, basta tomar em tudo a posição contrária ao que é razoável. Mas mais valia, acrescentava Bernardo, não o gastar com ele e reservar-se para a entrevista com o filho, dos Azevedo.
- Sabes que ele deve deixar Vilméja em meados de Outubro?
Em Villandraut, a estação que precede Saint-Clair, Teresa pensa: "Como persuadir Bernardo de que não amei esse rapaz? Ele vai, por certo, acreditar que o adorei. Como todos os seres a quem o amor é profundamente desconhecido, imagina que um crime como aquele de que me acusam só pode ser passional." Seria necessário que Bernardo compreendesse que, nessa época, ela estava longe de o odiar, embora ele lhe parecesse com frequência importuno; mas Teresa não suspeitava de que um outro homem lhe pudesse ser de algum socorro.
Ao fim e ao cabo, Bernardo não era assim tão mau. Ela execrava nos romances a pintura de seres extraordinários, com nunca se encontram na vida.
O único homem superior que julgou conhecer era seu pai. Teresa esforçava-se por atribuir alguma grandeza a esse radical obstinado, cheio de desconfianças, que se repartia por actividades várias: proprietário-industrial (além de uma serração em B., ele mesmo tratava a sua resina e a da numerosa parentela numa fábrica em Saint-Clair); político, sobretudo, a que as suas maneiras desabridas tinham prejudicado, mas muito ouvido na prefeitura. E que desprezo pelas mulheres - mesmo por Teresa, na época em que todos lhe louvavam a inteligência! E depois do drama: "todas umas histéricas, quando não umas idiotas!", repetia ele ao advogado. Esse anticlerical mostrava-se facilmente pudibundo. Embora por vezes trauteasse um estribilho de Béranger, não suportava que diante dele se abordassem certos assuntos e corava como um adolescente. O senhor De La Trave tinha dito a Bernardo que Larroque casara virgem: "Toda a gente me lembra que, mesmo depois que é viúvo, ninguém lhe conhece amantes. É um tipo original, o teu sogro!" Sim, era um tipo original. Mas se, de longe, fazia do pai uma imagem embelezada, desde que ele estava presente Teresa media-lhe a baixeza. Ele ia pouco a Argelouse, com mais frequência a Saint-Clair, pois não gostava de encontrar os La Trave. Na presença deles, e embora se tivesse assentado em não falar de política, surgia desde a sopa o debate imbecil que depressa se azedava. Teresa envergonhar-se-ia de se meter no assunto: punha o seu orgulho em não abrir boca, salvo se se tocava na questão religiosa. Então precipitava-se em socorro do pai. Todos gritavam, a ponto de que a própria tia Clara, percebendo pedaços de frases, se lançava na confusão e, com a sua horrível voz de surda, dava livre curso à paixão de velha radical "que sabe o que se passa nos conventos"; no fundo (pensava Teresa), mais crente do que qualquer La Trave, mas em guerra aberta contra o Ser Infinito que permitira que ela fosse surda e feia, que morresse sem nunca ter sido amada nem possuída. Desde o dia em que a senhora de La Trave abandonara a mesa, evitou-se de comum acordo a metafísica. A política, aliás, bastava para pôr fora de si aquelas pessoas que, da direita ou da esquerda, nem por isso deixavam de estar de acordo sobre este princípio essencial: a propriedade é o único bem deste mundo e a vida nada vale se não se possuir a terra. Mas deve-se ou não abandonar uma coisa para salvar o resto? E se a isso nos resignarmos, em que medida? Teresa, "que tinha a propriedade no sangue", gostaria que a questão fosse posta com esse cinismo, mas odiava a hipocrisia com que os Larroque e os La Trave mascaravam a sua comum paixão. Quando o pai proclamava "uma indefectível dedicação à democracia", ela interrompia-o: "Não vale a pena, estamos sozinhos." Teresa dizia que o sublime em política lhe causava náuseas; o trágico do conflito de classes escapava-lhe, numa região onde o mais pobre é proprietário e só aspira a sê-lo mais, onde o gosto comum da terra, da caça, da comida e da bebida cria entre todos, burgueses e camponeses, uma estreita fraternidade. Mas Bernardo, além disso, possuía instrução; dizia-se dele que soubera suplantar os seus iguais; mesmo Teresa se felicitava de que ele fosse um homem com quem se podia conversar: "Em suma, muito superior ao seu meio..." Assim o julgava ela, até ao dia em que encontrara João Azevedo.
Era a época em que a frescura da noite se mantém durante toda a manhã; e desde a merenda, por mais quente que tenha sido o sol, um pouco de bruma anuncia de longe o crepúsculo. Os primeiros pombos bravos passavam e Bernardo raramente voltava para casa antes do anoitecer. Nesse dia, no entanto, depois de uma má noite, tinha ido directamente a Bordéus, a fim de consultar o médico.
"Eu não sentia então qualquer desejo", pensa Teresa; "andava uma hora pela estrada, pois que uma mulher grávida deve caminhar um pouco. Evitava os bosques, onde, por causa das cabanas para a caça, é necessário determo-nos a cada instante, assobiar, aguardar que o caçador, com um grito, nos autorize a partir; mas, por vezes, um longo assobio responde ao nosso: um bando desceu para os carvalhos; é preciso acocorarmo-nos. Depois regressava a casa; dormitava diante do fogo do salão ou da cozinha, servida em tudo pela tia Clara. Tal como um deus não olha a sua serva, eu não prestava atenção àquela mulher, sempre a contar na sua voz fanhosa histórias de cozinha ou de campónios; falava, falava, a fim de não ser forçada a procurar ouvir: quase sempre histórias sinistras a respeito dos camponeses que ela tratava, que velava com lúcida dedicação: velhos reduzidos a morrer de fome, condenados ao trabalho até à morte, doentes abandonados, mulheres escravizadas a tarefas extenuantes. com uma espécie de júbilo, a tia Clara citava numa inocente linguagem campesina as suas mais atrozes expressões. Na verdade, ela não amava mais ninguém além de mim - que nem sequer a via pôr-se de joelhos, desapertar-me os sapatos, tirar-me as meias, aquecer-me os pés nas suas velhas mãos."
"Balion vinha receber ordens quando tinha de ir, no dia seguinte, a Saint-Clair. A tia Clara elaborava a lista das encomendas, juntava as receitas para os doentes de Argelouse: "Vais primeiro à farmácia; são tantos os remédios que o dia não será de mais para os preparar...""
"O meu primeiro encontro com João... É necessário que recorde todas as circunstâncias: resolvera ir à cabana abandonada onde saboreara noutros tempos a companhia de Ana e onde sabia que, depois, ela gostava de se encontrar com ele. Não se tratava, no meu espírito, de uma peregrinação. Mas os pinheiros cresceram demasiado daquele lado para que se possa ficar aí à espreita dos pombos bravos: não corria o risco de incomodar os caçadores. A cabana deixara de servir, pois a floresta em redor tapava o horizonte; os cimos afastados já não desenhavam essas largas avenidas de céu onde o caçador vê surgir os bandos. Lembra-te bem: o sol de Outubro ainda queimava; eu ia-me arrastando pelo caminho arenoso; as moscas importunavam-me. Como o ventre me pesava! Ansiava por sentar-me no banco apodrecido da cabana. Quando abri a porta, um homem ainda jovem saiu, de cabeça nua; ao primeiro olhar, reconheci João Azevedo. O seu rosto mostrava tanta confusão que, de princípio, julguei vir perturbar algum encontro. Em vão quis afastar-me; era estranho que ele só pensasse em me reter: "Não, não, minha senhora, entre; juro que não me incomoda, de maneira alguma. Porque me perguntou se, de fora, se podia ver o que se passava no interior? Fiquei admirada de que não houvesse ninguém na cabana, onde penetrei a instâncias dele. Talvez a pastora tivesse fugido por outra saída. Mas nenhum ramo estalara. Também ele me tinha reconhecido e, no primeiro instante, o nome de Ana de La Trave veio-lhe aos lábios. Eu estava sentada; ele de pé, como na fotografia. Através da camisa de tussor, olhei o sítio onde espetara o alfinete: curiosidade despojada de toda a paixão; recordei-me sem qualquer cólera do que Ana escrevera: "Apoio a minha mão no sítio onde lhe bate o coração... o que ele chama a última carícia permitida..." Era ele belo? Uma testa forte, os olhos aveludados da sua raça, faces demasiado cheias; e depois, o que me desgosta nos rapazes daquela idade: borbulhas, os sinais do sangue em movimento; tudo o que supura; principalmente as palmas húmidas, que ele enxugava com um lenço antes de nos apertar a mão.
Mas o seu belo olhar queimava; eu amava aquela boca sempre entreaberta sobre dentes agudos: a goela de um jovem cão com cio. E eu? Um ar de senhora de família, se me recordo. Já eu tomava um tom ameaçador, o acusava solenemente "de trazer a perturbação e a divisão a uma casa honrada". Ah! lembra-te da sua estupefacção sincera, da sua gargalhada juvenil: "Julga então que quero casar com ela? Acredita que conspiro contra tal honra?" Assombrada, medi num relance o abismo que existia entre a paixão de Ana e a indiferença do rapaz. Ele defendia-se com ardor: como não ceder ao encanto de uma criança deliciosa? Não é proibido brincar; e justamente até porque não podia tratar-se de casamento entre eles, a brincadeira lhe parecera inofensiva. Sem dúvida que tinha fingido participar das intenções de Ana... E como eu altivamente o interrompia, retorquiu com veemência que a própria Ana podia atestar que ele soubera não ir demasiado longe; quanto ao resto, não duvidava de que ela lhe ficasse devendo as únicas horas de verdadeira paixão que por certo lhe seria dado conhecer durante a sua monótona existência: "Diz-me que ela sofre; mas acredita que Ana tenha alguma coisa de melhor a esperar do seu destino do que esse sofrimento? Quanto a si, minha senhora, conheço-a de reputação; sei que se lhe podem dizer estas coisas e que se não parece com a gente daqui. Antes que Ana embarque para a mais lúgubre travessia a bordo de uma velha casa de Saint-Clair, provi-a de um capital de sensações, de sonhos de que salvá-la talvez do desespero e, em todo o caso, do embrutecimento. Já me não lembro se me senti crispada por um tal excesso de pretensão, de afectação, ou se fui sensível a ele. Na verdade, as suas palavras eram tão desembaraçadas e rápidas que, de princípio, não consegui segui-lo; em breve o meu espírito se afez àquela volubilidade: "Julgar-me capaz, a mim, de desejar esse casamento; de lançar a âncora; de ter à minha responsabilidade, em Paris, uma rapariga! Conservarei de Ana uma imagem adorável, claro está; e, no momento em que me surpreendeu, estava precisamente a pensar nela... Mas como é possível a alguém fixar-se? Cada minuto deve trazer o seu prazer - um prazer diferente de todos os que o precederam."
"Esta avidez de animal jovem, esta inteligência num só ser pareciam-me tão estranhas que o escutava sem o interromper. Sim, decididamente, eu estava deslumbrada: com pouca coisa, aliás! Mas estava-o. Recordo-me da tropeada, dos badalos, dos gritos selvagens dos pastores que anunciavam de longe a aproximação de um rebanho. Disse a João Azevedo que poderia parecer estranho que estivéssemos os dois naquela cabana; teria desejado que ele respondesse que mais valia não fazer qualquer ruído até que o rebanho passasse; teria saboreado esse silêncio, lado a lado, essa cumplicidade (já eu também me tornava exigente, desejando que cada minuto me trouxesse de que viver). Mas ele, sem protestar, abriu a porta da cabana e, cerimoniosamente, desapareceu. Só me acompanhou até Argelouse depois de se ter assegurado de que eu não via inconveniente nisso. Como me pareceu rápido o regresso, embora o meu companheiro tenha achado tempo para tocar em mil assuntos! Ele rejuvenescia estranhamente os que eu julgava conhecer um pouco: sobre a questão religiosa, por exemplo, quando eu repetia o que costumava dizer em família, ele interrompeu-me: "Sim, sem dúvida... mas é mais complicado do que isso..." com efeito, João Azevedo lançava no debate claridades que me pareciam admiráveis... Mas, no fundo, seriam elas tão admiráveis?... Creio bem que dispensaria hoje esse prazer: ele dizia que acreditara durante muito tempo que nada importava senão a busca, a procura de Deus: "Embarcar, tomar o largo, fugir como da morte aos que se persuadem de ter encontrado, se imobilizam, constróem abrigos para dormir; durante muito tempo, desprezei-os..."
"Perguntou-me se lera a Vida do Padre de Foucauld de René Bazin; e como eu afectava rir, asseverou-me que esse livro o tinha perturbado seriamente: "Viver perigosamente, no sentido profundo", acrescentou, "não é talvez tanto procurar Deus, mas encontrá-lo e, tendo-o descoberto, permanecer na sua órbita." Descreveu-me "a grande aventura dos místicos", queixou-se de que o seu temperamento lhe não permitia tentá-la - "mas tão longe quanto podia ir a sua memória, não se lembrava de ter sido puro. Tanto impudor, uma tal facilidade em confessar-se, como isso me compensava da reserva provinciana, do silêncio que cada um de nós guarda aqui sobre a sua vida interior! As bisbilhotices de Saint-Clair só tocam nas aparências: os corações nunca se descobrem. No fundo, que sei eu de Bernardo? Não existirá nele infinitamente mais do que a caricatura com que me contento, quando preciso imaginá-lo? João falava e eu continuava muda: nada me vinha aos lábios à excepção das frases habituais nas nossas discussões de família. Do mesmo modo que, aqui, todos os carros são "à medida", isto é, bastante largos para que as rodas correspondam exactamente às rodeiras das carroças, todos os meus pensamentos tinham sido até então "à medida" do meu pai, dos meus sogros. João Azevedo seguia de cabeça nua; revejo-lhe a camisa aberta sobre um peito de criança, o pescoço demasiado forte. Sofri eu um encanto físico? Ah! meu Deus, não! Mas ele era o primeiro homem que eu encontrava, para quem a vida do espírito contava mais do que tudo. Os seus mestres, os seus amigos parisienses, de quem lembrava constantemente os ditos ou os livros, impediam-me de o considerar como um fenómeno: fazia parte de um escol numeroso, "os que existem", dizia ele. Citava nomes, não imaginando sequer que eu pudesse ignorá-los; e eu fingia não os ouvir pela primeira vez."
"Ao virar da estrada, o campo de Argelouse apareceu. "Já!", exclamei. Fumos de ervas queimadas arrastavam-se rentes a essa pobre terra que dera o seu centeio; atravessando um talude, um rebanho deslizava como leite sujo e parecia ir roendo a areia. Para chegar a Vilméja, João tinha de atravessar o campo. "Acompanho-o", disse-lhe eu; "todas estas questões me apaixonam." Mas não achámos mais nada que dizer. Através das sandálias, as hastes cortadas do centeio magoavam-me os pés. Sentia que ele desejava estar só, sem dúvida para seguir à vontade um pensamento que lhe surgira. Fiz-lhe notar que não havíamos falado de Ana; asseverou-me que não éramos senhores de escolher a matéria dos nossos colóquios, nem aliás das nossas meditações: "Ou então", acrescentou com soberba, "temos de nos submeter aos métodos inventados pelos místicos... Os seres como nós seguem sempre correntes, obedecem a inclinações..." Assim reduzia tudo às suas leituras de momento. Marcámos encontro para combinar um plano de conduta acerca de Ana. Ele falava distraidamente; sem responder a uma pergunta minha, baixou-se e, num gesto infantil, mostrou-me um cogumelo, que aproximou do nariz, dos lábios."
Na soleira da porta, Bernardo espiava a vinda de Teresa: "Não tenho nada! Não tenho nada!", gritou, logo que lhe divisou o vestido na sombra. "Apesar de todo o meu arcaboiço, calcula tu que estou anémico! É inacreditável, mas é verdade. Não nos devemos fiar nas aparências. vou seguir um tratamento... o tratamento Fowler: é arsénico. O importante é que recupere o apetite..."
Teresa lembra-se de que, ao princípio, se não irritou: tudo o que vinha de Bernardo a atingia cada vez menos (como se o golpe fosse vibrado de mais longe). Não o ouvia, o corpo e a alma orientados para outro universo onde viviam seres ávidos e que só desejavam conhecer, compreender - e, segundo uma expressão que João Azevedo repetira com satisfação profunda, "tornar-se o que são". Quando, à mesa, ela lhe falou enfim do encontro que tivera, Bernardo bradou: "E não dizias nada?! És uma mulher esquisita! E então? Que decidiram vocês?"
Teresa improvisou imediatamente o plano que, com efeito, deveria ser seguido: João Azevedo dispunha-se a escrever uma carta a Ana, na qual, com doçura, lhe tiraria todas as esperanças. Bernardo rira a bandeiras despregadas quando ela lhe garantira que o rapaz não desejava de modo algum tal casamento: um Azevedo não querer casar com Ana de La Trave! "Ora essa! Estás louca? Simplesmente, o que ele sabe é que não pode fazer nada; não é gente que se arrisque quando está certa de perder. És ainda muito ingénua, minha pequena!"
Por causa dos mosquitos, Bernardo não quisera que se acendesse o candeeiro; não vira assim o olhar de Teresa. "Tinha recuperado o apetite", dizia ele. Já esse médico de Bordéus lhe restituía a vida.
"Tornei a ver João Azevedo com frequência? Ele deixou Argelouse em fins de Outubro... Talvez tenhamos dado cinco ou seis passeios; só isolo aquele em que nos ocupámos em redigir em conjunto a carta para Ana. O ingénuo rapaz insistia em fórmulas que julgava tranquilizadoras e de que eu sentia, sem lho dizer, todo o horror. Mas confunde os nossos últimos encontros numa única recordação. João Azevedo descrevia-me Paris, os grupos que frequentava, e eu imaginava um reino cuja lei seria "tornarmo-nos nós mesmos". "Aqui, somos condenados à mentira até à morte. Pronunciava ele tais palavras com intenção? Que suspeitava a meu respeito? Ao ouvi-lo, era impossível que eu pudesse suportar aquele clima sufocante: "Repare", dizia-me ele, "nessa imensa e uniforme superfície gelada onde todas as almas estão presas; por vezes, uma fenda descobre a água negra: alguém se debateu, desapareceu; a crusta torna a formar-se... pois aqui, como em qualquer outro sítio, todos nascem com a sua lei própria; aqui, como em qualquer outro sítio, cada destino é particular; e, todavia, é preciso submetermo-nos a esse monótono destino comum; alguns resistem: daí os dramas acerca dos quais as famílias guardam silêncio. Como se diz aqui: "É preciso guardar silêncio...""
""Ah, sim!", exclamei. Algumas vezes procurei indagar acerca de determinado tio-avô ou determinada avó, cujas fotografias desapareceram de todos os álbuns; nunca obtive resposta, salvo, uma vez, estas palavras: "Desapareceu... fizeram-no desaparecer.""
"Temia João Azevedo esse destino para mim? Ele afirmava-me que lhe não passaria pela cabeça a ideia de conversar com Ana a propósito de tais coisas, pois que ela, a despeito da sua paixão, era uma alma simples, um pouco rebelde, mas que em breve seria subjugada: "Mas a senhora!... Sinto em todas as suas palavras uma fome e uma sede de sinceridade..." Será necessário reproduzir exactamente estas frases a Bernardo? É loucura esperar que ele possa entender alguma coisa! Que saiba, ao menos, que me não rendi sem luta. Lembro-me de lhe ter objectado que ele adornava de frases hábeis o mais vil consentimento à degradação. Recorri mesmo a recordações de leituras morais que nos faziam no liceu. "Sermos nós mesmos?", repeti. "Mas nós só somos na medida em que nos criamos." (Inútil desenvolver; mas talvez se torne necessário para Bernardo). Azevedo recusava admitir que existisse degradação pior que a de se renegar. Pretendia que não havia herói nem santo que não tivesse feito mais de uma vez o total exame de si próprio, que não tivesse primeiro atingido todos os seus limites: "É preciso ultrapassar-se para encontrar Deus", insistia. Ou ainda: "Aceitar-se obriga os melhores dentre nós a encararem-se a si mesmos, mas de rosto descoberto e num combate sem embustes. E eis porque acontece com frequência que esses libertos se convertem à mais rigorosa religião."
"Não discutir com Bernardo o fundamento daquela moral; - conceder-lhe mesmo que se tratava, sem dúvida, de pobres sofismas; mas que compreenda, que se esforce por compreender até onde uma mulher da minha espécie podia ser atingida e o que eu sentia, à noite, na sala de jantar de Argelouse. No fundo da cozinha próxima, Bernardo descalçava as botas, relatava numa linguagem de campónio as caçadas do dia. Os pombos presos debatiam-se, inchavam o saco lançado sobre a mesa; Bernardo comia lentamente, todo entregue à alegria do apetite reconquistado, contava com amor as gotas de Fowler: "É a saúde", repetia ele. Um grande fogo ardia e, à sobremesa, não tinha mais do que virar a poltrona para estender à chama os pés calçados de pantufas. Os olhos fechavam-se-lhe sobre A Pequena Gironda. Por vezes ressonava, mas muitas outras também não se lhe ouvia sequer a respiração. Os chinelos de Balionte arrastavam-se ainda na cozinha; depois ela trazia as palmatórias com as velas. E era o silêncio o silêncio de Argelouse! As pessoas que não conhecem esta charneca perdida não sabem o que é o silêncio: ele cerca a casa, como solidificado na massa espessa de floresta onde nada vive, a não ser, por vezes, uma coruja ululante (julgamos ouvir, na noite, o soluço que retemos).
"Foi sobretudo após a partida de Azevedo que conheci esse silêncio. Enquanto sabia que, no dia seguinte, de novo veria João, a sua presença tornava inofensivas as trevas exteriores; o seu sono próximo povoava as charnecas e a noite. Desde que ele partiu de Argelouse, depois da última vez em que nos vimos e em que marcou encontro para o ano seguinte, cheio de esperança, dizia-me, de que nessa época eu saberia libertar-me (ainda hoje ignoro se falava irreflectidamente ou com segunda intenção; inclino-me a crer que esse parisiense já não suportava o silêncio, o silêncio de Argelouse, e que adorava em mim o seu auditório único), desde que o deixei, julguei penetrar num túnel infinito, mergulhar em trevas que cresciam constantemente; e, por vezes, perguntava a mim mesma se alcançaria enfim o ar livre antes de sucumbir asfixiada. Até ao parto, em Janeiro, nada aconteceu..."
Aqui, Teresa hesita; procura afastar o pensamento do que se passou na casa de Argelouse, dois dias depois da partida de João: "Não, não, pensa ela, isso nada tem que ver com o que, dentro em pouco, me será necessário explicar a Bernardo; não tenho tempo para perder em pistas que não conduzem a nada." Mas o pensamento é rebelde; impossível impedi-lo de correr aonde quer: Teresa não aniquilará da memória essa noite de Outubro. No primeiro andar, Bernardo despia-se; Teresa aguardava que a última acha se consumisse inteiramente para ir ter com ele - feliz por ficar um instante só. Que faria João Azevedo àquela hora? Talvez estivesse a beber num pequeno bar de que lhe falara; talvez (tanta era a doçura da noite) rolasse de automóvel, com um amigo, pelo Bosque de Bolonha deserto. Talvez estivesse sentado à sua mesa de trabalho, enquanto Paris murmurava ao longe; o silêncio, era ele que o criava, que o conquistava sobre o tumulto do mundo; não lhe era imposto de fora como o que sufocava Teresa; esse silêncio era obra sua e não se estendia para além da claridade do candeeiro, das prateleiras carregadas de livros... Assim pensava Teresa; e eis que o cão ladrou, depois gemeu e, no vestíbulo, uma voz conhecida, uma voz extenuada lhe trouxe a calma; Ana de La Trave abriu a porta; chegava de Saint-Clair a pé, de noite, com os sapatos cheios de lama. No seu pequeno rosto envelhecido, os olhos brilhavam. Atirou o chapéu para uma poltrona e perguntou: "Onde está ele?"
Teresa e João, uma vez a carta escrita e posta no correio, tinham julgado arrumado o assunto - muito longe de imaginarem que Ana pudesse não abandonar a luta - como se um ser cedesse a razões, a raciocínios, quando se trata da sua própria vida! Ela conseguira iludir a vigilância da mãe e tomar um comboio. Na estrada tenebrosa de Argelouse, a mancha de céu claro entre os cimos dos pinheiros servira-lhe de guia. "A única coisa necessária era tornar a vê-lo; se o visse de novo, ele seria reconquistado; era preciso tornar a vê-lo." Tropeçava, torcia os pés nos buracos, tanta era a pressa de chegar a Argelouse. E Teresa dizia-lhe agora que João tinha partido, que estava em Paris. Ana faz que não com a cabeça, não acredita; tem necessidade de não acreditar para não tombar de fadiga e desespero:
- Mentes como sempre mentiste.
E como Teresa protestasse, acrescentou:
- Ah! integraste-te bem no espírito da família! Armas em mulher livre... mas, desde que casaste, tornaste-te imediatamente uma mulher da família... Sim, sim, isto mesmo: julgaste proceder bem; traías-me para me salvar, não é? Poupo-te as explicações.
Como ela abria a porta. Teresa perguntou-lhe aonde ia.
- A Vilméja, a casa dele.
- Garanto-te que já lá não está há dois dias.
- Não te acredito.
Ana saiu. Teresa acendeu a lanterna pendurada no vestíbulo e foi ter com ela:
- Perdeste-te no caminho, minha querida Ana. Por aqui vais dar a Biourge. Vilméja é por além.
Atravessaram a bruma que transbordava de um prado. Cães acordaram. E eis os carvalhos de Vilméja, a casa não adormecida mas morta. Ana gira em volta desse sepulcro vazio, bate à porta com os dois punhos. Teresa, imóvel, depôs a lanterna na erva. Ela vê o fantasma da sua amiga colar-se a cada uma das janelas do rés-do-chão. Sem dúvida Ana repete um nome, mas sem o gritar, sabendo que é inútil. Por instantes, a casa tapa-a; torna a aparecer, vai ainda à porta e tomba suavemente, com os braços em volta dos joelhos onde esconde o rosto. Teresa levanta-a, arrasta-a. Ana, cambaleante, repete: "Partirei amanhã de manhã para Paris. Paris não é assim tão grande... Hei-de encontrá-lo em Paris..." mas no tom de uma criança cuja resistência se esvai e que se abandona já.
Acordado pelo ruído das vozes, Bernardo esperava-as em roupão. Teresa faz mal em expulsar da memória a cena que eclodiu entre o irmão e a irmã. Esse homem capaz de agarrar rudemente os pulsos de uma rapariga exausta, de a arrastar do salão até a um quarto do segundo andar, de lhe aferrolhar a porta, é o teu marido, Teresa: esse Bernardo que, dentro de duas horas, será o teu juiz. O espírito de família inspira-o, salva-o de toda a hesitação. Ele sabe sempre, em qualquer circunstância, o que convém fazer no interesse da família. Cheia de angústia, tu preparas uma longa defesa; mas só os homens sem princípios podem ceder a uma razão estranha. Bernardo não ouvirá os teus argumentos: "Sei o que tenho de fazer." Ele sabe sempre o que tem de fazer. Se às vezes hesita, diz: "Discutimos o assunto em família e decidimos que..." Como podes tu duvidar que ele não tenha preparado a sua sentença? A tua sorte está fixada para sempre; será melhor dormires.
Depois de os La Trave terem reconduzido Ana vencida a Saint-Clair, Teresa, até à aproximação do parto, não mais deixara Argelouse. E foi durante as noites desmedidas de Novembro que lhe conheceu verdadeiramente o silêncio. Uma carta dirigida a João Azevedo tinha ficado sem resposta. Por certo considerava ele que aquela provinciana não valia a maçada de uma correspondência. Primeiro, uma mulher grávida nunca constitui uma bela recordação. E, à distância, talvez julgasse Teresa insípida, uma imbecil que falsas complicações e atitudes teriam retido! Mas que podia ele compreender dessa simplicidade enganadora, desse olhar directo, desses gestos que nunca hesitavam? Na verdade, ele achava-a capaz, como a pequena Ana, de lhe pegar na palavra, de abandonar tudo para o seguir. João Azevedo desconfiava das mulheres que depõem as armas cedo de mais para que o assaltante tenha tempo de levantar o cerco. A nada temia tanto como à vitória, como ao fruto da vitória. Teresa, todavia, esforçava-se por viver no universo de João; mas os livros que ele admirava, e que ela mandara vir de Bordéus, pareceram-lhe incompreensíveis. Que inacção! Não se lhe podia pedir que trabalhasse no enxoval: "não lhe estava no feitio", repetia a senhora De La Trave. No campo, muitas mulheres morrem de parto. Teresa fazia chorar a tia Clara afirmando que acabaria como a mãe, que estava certa de não escapar. Acrescentava sempre que "pouco lhe importava morrer". Mentira! Nunca ela tão ardentemente desejara viver; nunca também Bernardo lhe manifestara tanta solicitude: "Ele não se preocupava comigo, mas com o que eu trazia no ventre. Em vão repisava, com a sua horrível pronúncia: "Come mais puré... Não comas peixe... Hoje já andaste bastante..." Isso não me impressionava mais do que a uma ama estranha que se apaparica pela qualidade do leite. Os La Trave veneravam em mim um vaso sagrado, o receptáculo da sua progenitura; nenhuma dúvida de que, se necessário, me teriam sacrificado a esse embrião. Eu perdia o sentimento da minha existência individual. Era apenas o sarmento; aos olhos da família, só o fruto ligado às minhas entranhas contava."
"Até ao fim de Dezembro, foi necessário viver naquelas trevas. Como se não bastassem os inumeráveis pinheiros, a chuva ininterrupta multiplicava em redor da sombria casa os seus milhões de grades movediças. Quando a única estrada para Saint-Clair ameaçou tornar-se impraticável, fui levada para o burgo, para a casa quase tão tenebrosa como a de Argelouse. Os velhos plátanos da Praça disputavam ainda as suas folhas ao vento chuvoso. Incapaz de viver noutro sítio senão em Argelouse, a tia Clara não quisera instalar-se à minha cabeceira; mas, estivesse bom ou mau tempo, fazia amiúde o caminho, no seu cabriole "à medida"; trazia-me as gulodices que eu adorara em criança e que, conforme julgava, eu continuava a adorar: fogaças e bolinhos trigueiros de mel e centeio. Ana, que eu só via às refeições, não me dirigia a palavra; resignada, segundo parecia, submetida, perdera num instante a frescura. Os cabelos demasiado esticados descobriam-lhe feias orelhas transparentes. Não se pronunciava o nome do filho dos Deguilhem, mas a senhora De La Trave afirmava que se ela ainda não dissera sim, também já não dizia não. Ah! João não se enganara: não tinha sido preciso muito tempo para lhe puxarem as rédeas e a meterem nos varais. Bernardo não ia tão bem, pois recomeçara a beber aperitivos. Que palavras trocavam aqueles seres à minha volta? Lembro-me de que falavam muito do cura (vivíamos em frente do presbitério). Perguntavam a si mesmos, por exemplo, "porque tinha ele nesse dia atravessado a praça quatro vezes e regressado, de cada uma delas, por caminhos diferentes...".
Devido a algumas frases de João Azevedo, Teresa passara a prestar mais atenção àquele sacerdote ainda jovem, que não conseguia comunicar com os seus paroquianos que o achavam orgulhoso: "Não é o género que convém aqui." No decorrer das suas raras visitas a casa dos La Trave, Teresa observava-lhe as têmporas brancas, a testa alta. Nenhum amigo. Como passaria ele os serões? Porque escolhera aquela vida? "Ele é muito cumpridor", dizia a senhora De La Trave; "faz a sua adoração todas as tardes; mas falta-lhe unção, não creio que seja o que se chama piedoso. E quanto às obras, abandona tudo." Ela deplorava que ele tivesse suprimido a fanfarra do patronato; os pais queixavam-se de que já não acompanhasse os filhos no campo de futebol: "É muito bonito ter o nariz sempre metido nos livros, mas uma paróquia depressa está perdida." Para o ouvir, Teresa frequentou a igreja. "Decide-se, minha filha, precisamente no momento em que o seu estado a teria dispensado." As homilias do cura a respeito do dogma ou da moral eram impessoais. Mas Teresa interessava-se por uma inflexão de voz, por um gesto; uma palavra, por vezes, parecia mais pesada... Ah! talvez ele tivesse podido ajudá-la a desenredar em si esse mundo confuso; diferente dos outros, também ele tomara um partido trágico; à sua solidão interior, acrescentara o deserto que a sotaina cria em volta do homem que a veste. Que reconforto tirava ele daqueles ritos quotidianos? Teresa tinha querido assistir à sua missa na semana, quando, sem outra testemunha além do menino de coro, murmurava palavras, curvado sobre um bocado de pão. Mas uma tal ida teria parecido estranha à família e às pessoas do burgo, ter-se-ia falado em conversão.
Por mais que tenha sofrido nessa época, foi a seguir ao parto que começou verdadeiramente a não poder suportar a vida. Nada transparecia; nenhuma cena entre ela e o marido; e Teresa mostrava maior deferência para com os sogros do que o fazia o próprio Bernardo. Aí residia a tragédia: que não houvesse uma razão de ruptura; era impossível prever um acontecimento que tivesse impedido as coisas de seguirem o mesmo ritmo até à morte. O desentendimento supõe um terreno de encontro onde o choque se dá; mas Teresa nunca encontrava Bernardo e muito menos os sogros; as palavras deles pouco a atingiam e não lhe vinha sequer a ideia de que fosse necessário responder-lhes. Possuíam ao menos um vocabulário comum? Eles davam às palavras essenciais um sentido diferente. A família admitira, de uma vez para sempre, que Teresa adorava os ditos de espírito; e se um grito de sinceridade lhe escapava, a senhora De La Trave dizia: "Finjo que a não ouço e, se insiste, que não ligo importância; ela sabe que connosco isso não pega..."
No entanto, a senhora De La Trave tolerava mal, na nora, essa afectação de não poder suportar que as pessoas soltassem exclamações acerca da sua semelhança com a pequena Maria. As frases costumadas ("Não pode negar...") lançavam Teresa em sentimentos extremos que nem sempre conseguia dissimular. "Esta criança não tem nada de mim", insistia ela. "Vejam-lhe esta pele castanha, estes olhos de azeviche. Reparem nas minhas fotografias: eu era uma criança descorada."
Não queria que Maria se parecesse com ela; desejava nada mais ter em comum com aquela carne que se separara da sua. Começava a correr o rumor de que o sentimento maternal lhe não pesava muito. Mas a senhora De La Trave assegurava que ela gostava da filha à sua maneira: "Claro que se não pode pedir a Teresa que lhe vigie o banho ou lhe mude os cueiros: não está no seu feitio; mas vi-a ficar serões inteiros sentada junto do berço, deixando de fumar para olhar a criança que dormia... Aliás, temos uma criada muito séria; e depois, Ana está cá. Ah! sim, essa dará uma excelente mãe!..." Na verdade, desde que uma criança respirava na casa, Ana recomeçara a viver. As mulheres são sempre atraídas por um berço; mas Ana, mais que qualquer outra, tratava da criança com profunda alegria. Para entrar mais livremente no quarto de Maria, tinha feito as pazes com Teresa; nada, porém, subsistia da antiga ternura, fora os gestos e os chamamentos familiares. A rapariga temia sobretudo o ciúme maternal de Teresa: "A criança conhece-me muito melhor do que à mãe. Começa a rir logo que me vê. Há dias, tinha-a ao colo; quando Teresa quis pegar nela, desatou a chorar. De tal modo me prefere que, por vezes, me sinto constrangida..."
Ana não deveria sentir-se constrangida. Nessa época, Teresa vivia separada da filha, como de tudo o resto. Apercebia os seres e as coisas e o seu próprio corpo e até o seu espírito como uma miragem, um vapor suspenso fora de si. Só Bernardo tomava, nesse nada, uma horrível realidade: a sua corpulência, a sua voz nasalada e aquele tom peremptório, aquela satisfação. Sair do mundo... Mas como? E para onde ir? Os primeiros calores oprimiam Teresa. Nada a advertia do que estava prestes a cometer. Que se passou naquele ano? Não se recorda de qualquer incidente, de qualquer disputa; lembra-se de ter execrado o marido, mais que de costume no dia da festa do Corpo de Deus, quando, por entre as janelas de madeira semicerradas, espreitava a procissão. Bernardo era quase o único homem atrás do pálio. Em poucos instantes, a aldeia tornara-se deserta, como se tivesse sido um leão e não um cordeiro que se houvesse soltado nas ruas... As pessoas metiam-se na toca para não serem forçadas a descobrir-se ou a ajoelhar. Passado o perigo, as portas tornavam a abrir-se uma após outra. Teresa observou o cura, que avançava com os olhos quase fechados, trazendo nas mãos aquela coisa estranha. Mexia os lábios: a quem falava ele com aquele ar de dor? E a seguir, logo atrás, Bernardo, "que cumpria o seu dever".
Sucederam-se semanas sem que caísse uma gota de água. Bernardo vivia no terror do incêndio e de novo sofria do coração. Quinhentos hectares tinham ardido do lado de Louchats: "Se o vento soprasse do norte, os meus pinheiros de Balisac estavam perdidos." Teresa esperava não sabia o quê daquele céu inalterável. Nunca mais choveria... Um dia, toda a floresta crepitaria em redor e nem o próprio burgo seria poupado. Porque não ardiam jamais as aldeias da charneca? Ela achava injusto que as chamas escolhessem sempre os pinheiros e nunca os homens. Discutia-se em família, indefinidamente, acerca das causas do sinistro: Um cigarro? Maldade? Teresa sonhava que se levantava uma noite, saía de casa, alcançava a parte da floresta mais invadida de ramos, lançava o cigarro aceso - até que um fumo imenso obscurecesse o céu da alvorada... Mas expulsava semelhante pensamento: tinha o amor dos pinheiros no sangue; não era para as árvores que ia o seu ódio.
Ei-la no momento de olhar de frente o acto que cometeu. Que explicação fornecer a Bernardo? Não lhe resta mais que recordar ao marido, ponto por ponto, como a coisa aconteceu. Foi no dia do grande incêndio de Mano. Homens entravam na sala de jantar, onde a família almoçava à pressa. Uns asseguravam que o fogo parecia muito afastado de Saint-Clair; outros insistiam em que se tocasse a rebate. O perfume da resina queimada impregnava aquele dia tórrido e o Sol parecia embaciado. Teresa revê Bernardo com a cabeça voltada, escutando o relato de Balion, enquanto a sua forte mão peluda se esquece por cima do copo e as gotas de Fowler caem na água. Ele bebe de um trago o remédio, sem que, entorpecida pelo calor, Teresa tenha pensado sequer em adverti-lo de que duplicou a dose habitual. Toda a gente se levantou da mesa - excepto ela que continua a abrir amêndoas frescas, indiferente, estranha àquela agitação, desinteressada daquele drama, como de qualquer drama que não o seu. O sino não toca a rebate. Bernardo volta por fim: "Desta vez, tiveste razão de não te assustar: é do lado de Mano que está a arder..." E pergunta: "Tomei as minhas gotas?" Mas sem esperar resposta, de novo as deita no copo. Ela calou-se, talvez por preguiça, por fadiga. Que esperava Teresa nesse minuto? "Impossível que eu tenha premeditado calar-me."
No entanto, nessa noite, quando à cabeceira de Bernardo, que vomitava e chorava, o doutor Pédemay lhe fez perguntas acerca dos incidentes do dia, ela não disse nada do que vira à mesa. Teria sido todavia fácil, sem se comprometer, chamar a atenção do médico para o arsénico que Bernardo tomara. Teria podido encontrar uma frase como esta: "No momento não me apercebi... Estávamos todos transtornados pelo incêndio... mas ia jurar agora que ele tomou uma dose dupla..." Manteve-se, porém, calada. Experimentou ao menos a tentação de falar? O acto que, durante o almoço, sem que o soubesse, estava já nela, começou então a emergir do fundo do seu ser - ainda informe, mas semibanhado de consciência.
Após a partida do médico, Teresa olhara Bernardo que adormecera finalmente; e pensava: "Nada prova que seja isso; pode ser uma crise de apendicite, embora não haja nenhum outro sintoma... ou um caso de gripe infecciosa." Dois dias depois, Bernardo estava a pé. "Havia possibilidades de que tivesse sido isso." Teresa não o iria jurar; gostaria de estar segura. "Sim, eu não tinha de modo algum o sentimento de ser presa de uma tentação horrível; tratava-se de uma curiosidade um pouco perigosa de satisfazer. No primeiro dia em que, antes de Bernardo entrar na sala, lhe deitei gotas de Fowler no copo, lembro-me de ter repetido: "Só uma vez, para ter a certeza... Saberei se foi isso que o pôs doente. Só uma vez, e acabou-se.""
O comboio afrouxa, apita longamente, torna a partir. Duas ou três luzes no escuro: a estação de Saint-Clair. Mas Teresa nada mais tem que examinar; precipitou-se no crime medonho; foi aspirada pelo crime; o que se seguiu, Bernardo conhece-o tão bem como ela: o súbito reaparecimento do mal e Teresa velando-o noite e dia, embora parecesse completamente esgotada e fosse incapaz de engolir a mínima coisa (a ponto de ele a ter persuadido a experimentar o tratamento Fowler e ela ter obtido uma receita do doutor Pédemay). Pobre doutor! Espantava-se do líquido esverdeado que Bernardo vomitava; nunca acreditara que pudesse existir um tal desacordo entre o pulso de um doente e a sua temperatura; tinha verificado muitas vezes, na paratifóide, um pulso calmo a despeito de uma febre alta; - mas que podiam significar aquelas pulsações precipitadas e a temperatura abaixo do normal? Gripe infecciosa, sem dúvida: a gripe explica tudo.
A senhora de La Trave pensava em mandar chamar um grande médico, mas não queria melindrar o doutor Pédemay, um velho amigo; e depois, Teresa receava afligir Bernardo. Todavia, em meados de Agosto, após uma crise mais alarmante, foi o próprio Pédemay quem desejou a opinião de um dos seus colegas; felizmente, no dia seguinte, o estado de Bernardo melhorava; três semanas mais tarde falava-se de convalescença. "Escapei de boa", dizia o médico. "Se o grande homem tivesse tido tempo de aparecer, seria ele quem ficaria com toda a glória desta cura."
Bernardo mandou que o levassem para Argelouse, contando estar curado para a caça ao pombo bravo. Teresa fatigou-se muito nessa época: uma crise aguda de reumatismo retinha no leito a tia Clara; tudo caía sobre ela: dois doentes, uma criança, sem contar com as tarefas que a tia deixara interrompidas. Teresa pôs toda a sua boa vontade em substituí-la junto da gente pobre de Argelouse. Andou pelas casas dos camponeses, procurou, como a tia, fazer cumprir as prescrições do médico, pagou da sua algibeira os remédios. Nem sequer se sentiu triste por ver fechada a herdade de Vilméja. Já não pensava em João Azevedo, nem em ninguém no mundo. Atravessava sozinha um túnel, vertiginosamente; encontrava-se na parte mais escura; era preciso, sem reflectir, como um animal, sair daquelas trevas, daquele fumo, alcançar o ar livre, depressa, depressa!
No começo de Dezembro, uma recaída abateu Bernardo: uma manhã, acordara a tiritar, com as pernas inertes e insensíveis. E o que se seguiu! Um outro médico trazido uma noite de Bordéus pelo senhor de La Trave; o seu longo silêncio depois de ter examinado o doente (Teresa segurava o candeeiro e Balionte ainda se recorda de que ela estava mais branca que os lençóis); no patamar mal iluminado, Pédemay, baixando a voz por causa de Teresa à escuta, explica ao colega que Darquey, o farmacêutico, lhe mostrara duas das suas receitas falsificadas: à primeira, uma mão criminosa havia acrescentado: Licor de Fowler, na outra figuravam doses bastante fortes de clorofórmio, digitalina e aconitina. Balion tinha-as levado à farmácia, juntamente com muitas outras. Darquey, atormentado por ter vendido aqueles tóxicos, correra no dia seguinte a casa de Pédemay... Sim, Bernardo conhece tudo aquilo tão bem como Teresa. Uma ambulância transportara-o urgentemente a Bordéus, para uma clínica; e, a partir desse dia, começou a melhorar. Teresa tinha ficado sozinha em Argelouse: mas, por maior que fosse a sua solidão, sentia à sua volta um imenso rumor; animal escondido que ouve aproximar-se a matilha; sem forças, como após uma corrida desesperada - como se perto do termo, a mão estendida já, tivesse sido de súbito lançado por terra, com as pernas quebradas. O pai tinha aparecido uma noite, no fim do Inverno, conjurando-a a que arranjasse uma desculpa. Tudo podia ainda ser salvo. Pédemay consentira em retirar a queixa, pretendendo já não estar certo de que qualquer das receitas não fosse inteiramente do seu punho. Quanto à aconitina, ao clorofórmio e à digitalina, não podia ter prescrito doses tão fortes; mas desde que nenhum indício tinha sido encontrado no sangue do doente...
Teresa recorda-se da cena com o pai, à cabeceira da tia Clara. Um fogo de lenha iluminava o quarto; nenhum deles desejava o candeeiro aceso. Ela explicava com a voz monótona de uma criança que recita uma lição (a lição que repetia durante as noites de insónia): "Encontrei na estrada um homem que não era de Argelouse e que, uma vez que eu mandava alguém à farmácia, me perguntou se não me importaria de me encarregar da sua receita; ele devia dinheiro a Darquey e preferia não aparecer... Prometeu vir buscar os remédios a nossa casa, mas não me deixou o nome, nem a morada..."
- Arranja outra coisa, Teresa. Suplico-te em nome da família. Arranja outra coisa, desgraçada!
O pai Larroque repetia obstinadamente a sua desaprovação; semierguida nos travesseiros, sentindo pesar sobre Teresa uma ameaça mortal, a surda gemia: "Que te está ele a dizer? Que te querem eles? Porque te fazem mal?"
Teresa achara forças para sorrir à tia, segurar-lhe na mão, enquanto como uma criança no catecismo recitava: "Foi um homem, na estrada; fazia demasiado escuro para que pudesse ver-lhe a cara; não me disse onde vivia." Uma outra noite, ele tinha vindo buscar os remédios. Por infelicidade, ninguém em casa dera por nada.
Saint-Clair finalmente. À descida do comboio, ninguém a reconheceu. Enquanto Balion entregava o bilhete de Teresa, ela contornara a estação e, por entre pilhas de tábuas, dirigira-se para a estrada onde estacionava uma carripana.
Esta carripana é-lhe agora um refúgio; no caminho esburacado, não receia encontrar ninguém. Toda a sua história, penosamente reconstruída, se desmorona: nada resta da confissão que preparou. Não: nada que dizer em sua defesa; nem sequer uma razão a fornecer; o mais simples será calar-se ou responder apenas às perguntas. Que pode ela temer? Aquela noite passará, como todas as noites; o Sol nascerá no dia seguinte: está certa de sair dela, aconteça o que acontecer. E nada pode suceder de pior do que aquela indiferença, aquele desinteresse total que a separa do mundo e do seu próprio ser. Sim, a morte na vida: ela saboreia a morte, tanto quanto pode saboreá-la um ser vivo.
Os seus olhos acostumados à escuridão reconheceram, a uma volta da estrada, a herdade onde algumas casas baixas se assemelham a animais deitados e adormecidos. Aqui, noutro tempo, Ana tinha medo de um cão que se atirava sempre às rodas da bicicleta. Mais longe, amieiros revelavam um terreno baixo, onde, nos dias mais escaldantes, uma frescura fugitiva pousava nas faces esbraseadas das raparigas. Uma criança de bicicleta, com os dentes a luzir sob o chapéu que a protegia do sol, o som de uma campainha, uma voz que grita: "Olha! Já tiro as duas mãos do guiador!" - eis a imagem confusa que retém Teresa, tudo o que encontra, nesses dias passados, onde repousar um coração exausto. Maquinalmente, vai repetindo frases ritmadas pelo trote do cavalo: "Inútil a minha vida - o nada da minha vida - solidão sem limites - destino sem saída." Ah! o único gesto possível, Bernardo não o fará. Se, no entanto, ele abrisse os braços sem nada exigir! Se ela pudesse apoiar a cabeça num peito humano, se pudesse chorar contra um corpo vivo!
Teresa distingue o talude do campo onde João Azevedo se sentou num dia de calor. Dizer que ela acreditou que existisse um sítio no mundo onde poderia desabrochar no meio de seres que a teriam compreendido, talvez admirado, amado! Mas a sua solidão está-Ihe ligada mais estreitamente do que ao leproso a sua úlcera: "Ninguém pode nada por mim; ninguém pode nada contra mim."
Balion puxou as rédeas. Duas sombras avançavam. Bernardo, ainda tão fraco, tinha vindo ao encontro dela - impaciente por se sentir tranquilo. Teresa ergue-se um pouco, anuncia de longe: "Dado como improcedente!" Sem nenhuma outra resposta além de um "podemos estar descansados", Bernardo ajudou a tia a trepar para a carripana e pegou nas rédeas. Balion regressaria a pé. A tia Clara sentou-se entre os esposos. Foi preciso gritar-Ihe ao ouvido que tudo estava arrumado (aliás, ela tinha do drama apenas um conhecimento confuso). Como de costume, a surda começou a falar pelos cotovelos; dizia que eles tinham tido sempre a mesma táctica e que era o caso Dreyfus que recomeçava: "Caluniem, caluniem, que da calúnia alguma coisa fica. Eles são muito fortes e os republicanos fazem mal em não se pôr em guarda. Desde que se lhes dá o mais pequeno momento de tréguas, esses animais matreiros saltam-nos em cima..." Esta tagarelice dispensava os esposos de trocar qualquer palavra.
Ofegante, com uma vela na mão, a tia Clara subiu a escada:
- Não se vão deitar? Teresa deve estar estafada. Encontrarás no quarto uma chávena de caldo e uns bocados de galinha fria.
Mas o casal mantinha-se de pé, no vestíbulo. A velha viu Bernardo abrir a porta do salão, afastar-se diante de Teresa, desaparecer atrás dela. Se não fosse surda, teria colado o ouvido... mas nada havia que recear de uma emparedada viva. No entanto, apagou a vela, tornou a descer às apalpadelas, espreitou pela fechadura: Bernardo mudava um candeeiro de um lado para outro; o rosto vivamente iluminado parecia ao mesmo tempo intimidado e solene. A tia viu Teresa de costas, sentada; ela atirara o casaco e o chapéu para uma poltrona; o fogo fazia-lhe fumegar os sapatos molhados. Por um instante, ela virou a cabeça para o marido e a velha regozijou-se ao notar que Teresa sorria.
Teresa sorria. No breve intervalo de espaço e de tempo entre a estrebaria e a casa, enquanto caminhava ao lado de Bernardo, vira de súbito, julgara ver o que importava que fizesse. Bastara a aproximação daquele homem para reduzir a nada a sua esperança de se explicar, de se confiar. Como deformamos os seres que melhor conhecemos, quando eles não estão presentes! Durante toda a viagem, esforçara-se, sem que o soubesse, por recriar um Bernardo capaz de a compreender, de tentar compreendê-la; - mas, ao primeiro relance, ele aparecera-lhe tal como era realmente: o que nunca, nem uma só vez na vida, se pusera no lugar de outro, o que ignora o esforço para sair de si mesmo, para ver o que o adversário vê. Escutá-la-ia sequer Bernardo? Ele percorria a largas passadas a grande sala húmida e baixa, e o sobrado aqui e além apodrecido estalava-lhe sob os pés. Não olhava a mulher - todo cheio das palavras que havia muito premeditara. Teresa sabia também o que ela própria ia dizer. A solução mais simples é aquela em que nunca pensamos. Ela ia dizer: "Desaparecerei, Bernardo. Não te inquietes comigo. Se quiseres, agora mesmo desaparecerei na noite. A floresta não me mete medo, nem as trevas. Elas conhecem-me; nós conhecemo-nos. Fui criada à imagem desta terra árida, onde nada é vivo, salvo as aves que passam e os javalis nómadas. Consinto em ser repelida; queimem todas as minhas fotografias; que nem a minha própria filha saiba jamais o meu nome, que eu seja aos olhos da família como se nunca tivesse existido."
E já Teresa abre a boca, já diz:
- Deixa-me desaparecer, Bernardo.
Ao som da sua voz Bernardo volta-se. Do fundo da sala, ele precipita-se, com as veias do rosto intumescidas, balbucia:
- O quê? Tu ousas ter uma opinião, emitir um desejo? Basta. Nem uma palavra mais. Só tens que escutar, que receber as minhas ordens - que te submeter às minhas decisões irrevogáveis.
Bernardo já não gagueja, encadeia agora as frases preparadas com cuidado. Apoiado à chaminé, exprime-se em tom grave, tira um papel da algibeira, consulta-o.
Teresa já não tem medo; sente vontade de rir. Ele é grotesco, é um grotesco. Pouco importa o que ele diz com o ignóbil sotaque que faz rir toda a gente fora de Saint-Clair; ela partirá. Porquê todo aquele drama? Não teria tido nenhuma importância que aquele imbecil desaparecesse do número dos vivos. Sobre o papel que treme, ela observa-lhe as unhas mal cuidadas; a camisa não tem punhos; é um desses campónios ridículos fora do seu buraco e cuja vida não interessa a nenhuma causa, a nenhuma ideia, a nenhum ser. Só por hábito se atribui uma importância infinita à existência de um homem. Robespierre tinha razão; e Napoleão, e Lénine... Ele vê-a sorrir, exaspera-se, levanta a voz; ela é obrigada a ouvi-lo:
- Estás nas minhas mãos. Entendes? Obedecerás às decisões tomadas em família, senão...
- Senão, o quê?
Teresa já não pensa em simular indiferença; toma um ar de fanfarronice, de zombaria, e grita:
- Demasiado tarde! Depuseste em meu favor; já não podes desdizer-te. Serias acusado de falso testemunho...
- Pode descobrir-se sempre um facto novo. Guardo na minha secretária essa prova inédita. Não há prescrição, graças a Deus!
Ela estremece, pergunta:
- Que queres de mim?
Ele consulta as notas e, durante alguns segundos, Teresa mantém-se atenta ao silêncio prodigioso de Argelouse. A alvorada ainda está longe; nenhuma água corre naquele deserto, nenhum vento agita os cimos dos pinheiros.
- Não cedo a considerações pessoais. Eu apago-me: só a família conta. O interesse da família ditou sempre todas as minhas decisões. Foi pela honra da família que consenti em enganar a justiça do meu país. Deus me julgará.
Este tom pomposo fazia mal a Teresa. Ela desejaria suplicar-lhe que se exprimisse de maneira mais simples.
- É necessário, pela família, que o mundo nos creia unidos e que não pareça, a seus olhos, que eu ponho em dúvida a tua inocência. Por outro lado, quero proteger-me o melhor possível...
- Meto-te medo, Bernardo?
Ele murmura: "Medo? Não: horror." Depois:
- Procedamos depressa e que tudo fique dito de uma vez para sempre: amanhã deixaremos esta casa e instalar-nos-emos ao lado, na casa Desqueyroux; não quero lá a tua tia. As refeições ser-te-ão servidas no quarto, por Balionte. O acesso a todas as outras divisões fica-te vedado; mas não te impedirei de andares pelos bosques. Ao domingo, assistiremos juntos à missa, na igreja de Saint-Clair. É preciso que te vejam pelo meu braço; e, nas primeiras quintas-feiras do mês, iremos em carro aberto à feira de B. e a casa de teu pai, como sempre fizemos.
- E Maria?
- Maria parte amanhã com a criada para Saint-Clair; minha mãe levá-la-á depois para o Meio-Dia. Arranjaremos um motivo de saúde. Não esperarias, com certeza, que a deixássemos contigo?! Temos de a pôr também a salvo! Desaparecido eu, seria ela quem, aos vinte e um anos, herdaria as propriedades. Depois do marido, a filha... porque não?
Teresa ergue-se, retém um grito:
- Julgas então que foi por causa dos pinheiros que eu...
Dentre as mil causas secretas do seu acto, esse imbecil não soubera descobrir nenhuma; e inventa a razão mais baixa:
- Naturalmente: por causa dos pinheiros... Então porque seria? Basta proceder por eliminação. Desafio-te a indicar um outro móbil... De resto, isso não tem importância, nem já me interessa; não faço mais perguntas; tu já não és nada; o que existe é o nome que usas, infelizmente! Dentro de alguns meses, quando toda a gente estiver convencida do nosso entendimento e Ana tiver casado com o filho dos Deguilhem... Sabes que os Deguilhem exigem um prazo para pensar?... nesse momento poderei enfim instalar-me em Saint-Clair; tu ficarás aqui. Diremos que sofres de neurastenia, ou de qualquer outra coisa...
- De loucura, por exemplo.
- Não, isso iria prejudicar Maria. Mas não faltarão razões plausíveis.
Teresa murmura: "Em Argelouse... até à morte..." Aproxima-se da janela, abre-a. Nesse momento, Bernardo conheceu uma autêntica alegria; aquela mulher que sempre o intimidara e humilhara, como ele a domina agora, como ela se deve sentir desprezada! Sentia-se orgulhoso da sua moderação. A senhora De La Trave repetia-lhe que ele era um santo; toda a família lhe louvava a grandeza de alma: pela primeira vez, Bernardo tinha o sentimento de tal grandeza. Quando, com mil precauções, na casa de saúde, o atentado de Teresa lhe fora revelado, o seu sangue-frio, que tantos louvores lhe valera, pouco esforço lhe havia custado. Nada é verdadeiramente grave para os seres incapazes de amar; e, por isso, Bernardo experimentara apenas essa espécie de alegria tremente, depois de passado um grande perigo: o que pode sentir um homem que descobre ter vivido, durante anos, sem o saber, na intimidade de um louco furioso. Mas, nessa noite, Bernardo tinha o sentimento da sua força; dominava a vida. Considerava com admiração que nenhuma dificuldade resiste a um espírito recto e que raciocina com justeza; mesmo após semelhante tormenta, estava pronto a sustentar que só somos infelizes por nossa própria culpa. Arrumara o pior dos dramas como qualquer outra questão. Quase nada se saberia; as aparências ficariam salvas. Deixariam de lamentá-lo; e ele não queria ser lamentado. Que há de humilhante em ter casado com um monstro, quando a última palavra é nossa? Aliás, a juventude tem vantagens e a proximidade da morte aumentara-lhe maravilhosamente o gosto pelas propriedades, pela caça, pelo automóvel, pela comida e a bebida - pela vida, enfim!
Teresa continuava de pé, em frente da janela; via um bocado de saibro branco, sentia o perfume dos crisântemos que uma rede protegia contra os rebanhos. Mais ao longe, uma massa negra de carvalhos escondia os pinheiros; mas o cheiro a resina enchia a noite; Teresa sabia que eles cercavam a casa, semelhantes a um exército inimigo, invisível mas próximo. Esses guardiões, de que ela ouvia o surdo queixume, vê-la-iam enlanguescer ao longo dos Invernos, ofegar durante os dias tórridos; seriam as testemunhas do seu lento sufocar. Teresa fechou a janela e aproximou-se de Bernardo:
- Julgas que me reterás à força?
- Como quiseres... Mas fica sabendo: só sairás daqui de mãos amarradas.
- Que exagero! Conheço-te bem: não te faças pior do que és. Não exporias a família a essa vergonha! Posso estar tranquila.
Então, como homem que tudo pesou, ele explicou-lhe que partir era reconhecer-se culpada. Nesse caso, a família só poderia evitar opróbrio amputando o membro gangrenado, repelindo-o, renegando-o à face dos homens.
- Era mesmo a resolução que primeiro minha mãe tinha querido que tomássemos. Estivemos quase a deixar que a justiça seguisse o seu curso; e se não fosse por causa de Ana e de Maria... Mas ainda estamos a tempo. Não te exijo pressa na resposta. Dou-te tempo até amanhã.
Teresa murmurou:
- Resta-me meu pai.
- Teu pai? Mas eu e ele estamos inteiramente de acordo. Ele tem a sua carreira, o seu partido, as ideias que representa: só pensa em abafar o escândalo, custe o que custar. Ao menos, reconhece o que ele fez por ti. Se a instrução do processo foi concluída à pressa, a teu pai se deve... Aliás, ele deve ter-te manifestado a sua vontade formal... Não?
Bernardo já não elevava a voz, tornava-se quase cortês. Não era porque experimentasse a mínima compaixão. Mas aquela mulher, a quem já nem sequer ouvia respirar, jazia vencida finalmente; encontrara o lugar que lhe competia. Tudo entrava na ordem. A felicidade de um outro homem não teria resistido a tão grande golpe: Bernardo sentia-se orgulhoso de ter conseguido assim domá-la; toda a gente pode enganar-se; toda a gente, aliás, a propósito de Teresa, se enganara - até a senhora De La Trave, a quem, normalmente, bastava um olhar para ajuizar de alguém. É que as pessoas, agora, não tomam em suficiente conta os princípios; não acreditam no perigo de uma educação como a que Teresa recebeu; um monstro, sem dúvida; apesar de tudo, é inútil dizer-se: se ela acreditasse em Deus... o medo é o começo da sabedoria. Assim pensava Bernardo. E dizia ainda a si mesmo que todo o burgo, impaciente por saborear a vergonha deles, ficaria bem decepcionado, aos domingos, à vista de um casal tão unido! Quase tinha pena de que o domingo ainda estivesse longe, para ver a cara que as pessoas fariam!... Por seu lado, a justiça não perderia nada. Pegou no candeeiro; o braço levantado iluminava a nuca de Teresa:
- Não sobes ainda?
Ela pareceu não o ouvir. Bernardo saiu, deixando-a no escuro. No fundo da escada, no primeiro degrau, estava acocorada a tia Clara. Como ela o fitava, ele sorriu com esforço, pegou-lhe no braço para que se levantasse. Mas ela resistia - velho cão junto do leito do dono que agoniza. Bernardo pousou o candeeiro no chão e gritou ao ouvido da velha que Teresa já se sentia muito melhor, mas que ela queria, antes de se ir deitar, ficar só alguns instantes:
- Como sabe, é uma das suas manias!
Sim, a tia sabia-o: a sua má sorte fora sempre ir ter com Teresa no momento em que ela desejava estar sozinha. Muitas vezes, bastara-lhe entreabrir a porta para se sentir importuna.
Pôs-se de pé com esforço e, apoiada ao braço de Bernardo, dirigiu-se para o quarto que ocupava por cima do salão. Bernardo entrou atrás dela, acendeu uma vela que estava sobre a mesa; depois beijou-a na testa e afastou-se. A tia não desviara os olhos dele. Que coisas não lia ela no rosto dos homens, cujas vozes lhe eram vedadas?! Ela aguarda que Bernardo tenha tempo de chegar ao quarto, torna a abrir a porta lentamente... mas ele ainda está no patamar, encostado ao corrimão, a enrolar um cigarro. Recua apressada, com as pernas a tremer, sem fôlego, a ponto de não ter forças para se despir. E fica deitada no leito, com os olhos abertos.
No salão, Teresa estava sentada no escuro. Ainda brilhavam tições debaixo da cinza. Ela não se mexia. Do fundo da sua memória, agora que era demasiado tarde, surgiam farrapos da confissão preparada durante a viagem. Mas porque censurar-se por se não ter servido dela? Na verdade, aquela história demasiado bem construída mantinha-se sem nexo com a realidade. Que tolice a importância que se comprazerá em atribuir aos discursos do jovem Azevedo! Como se isso tivesse a mínima importância! Não, não: ela obedecera a uma profunda lei, a uma lei inexorável; não tinha destruído a família: era ela, portanto, quem seria destruída: tinham razão de a considerarem um monstro, mas também ela os julgava monstruosos. Sem que nada transpirasse, eles iam, com um lento método, aniquilá-la. "Doravante, será montada contra mim essa poderosa máquina familiar - por eu não ter sabido travá-la nem sair a tempo da engrenagem. Inútil procurar outras razões que não esta: porque eram eles, porque era eu... Dissimular-me, salvar as aparências, iludir, eis um esforço que nem dois anos consegui suportar e que outros seres (todavia meus semelhantes) são capazes de realizar persistentemente, muitas vezes até à morte, salvos talvez pela rotina, cloroformizados pelo hábito, embrutecidos, adormecidos no seio da família maternal e omnipotente. Mas eu, mas eu..."
Levantou-se, abriu a janela, sentiu o frio da alvorada. Porque não fugir? Apenas aquela janela a saltar. Persegui-la-iam? Entregá-la-iam de novo à justiça? Era um risco a correr. Tudo se tornava preferível àquela agonia interminável. E já Teresa arrasta uma poltrona, a encosta ao peitoril. Mas não tem dinheiro; milhares de pinheiros lhe pertencem em vão; sem a intervenção do marido não poderá receber um centavo. Seria o mesmo que embrenhar-se na charneca, como o fizera Daguerre, esse assassino acossado, por quem Teresa, criança, tanta compaixão sentira (ela recorda-se dos polícias, aos quais Balionte servia vinho na cozinha de Argelouse); - e fora o cão dos Desqueyroux que descobrira a pista do miserável. Tinham-no apanhado semimorto de fome, no meio do mato. Teresa viu-o amarrado em cima de uma carroça de palha. Contava-se que ele tinha morrido no barco, antes de chegar a Caiena. Um barco... trabalhos forçados... Não serão eles capazes de a entregar como disseram? A prova que Bernardo pretendia possuir... mentira, sem dúvida; a não ser que tivesse descoberto, na algibeira da velha romeira, o pequeno embrulho com venenos...
Teresa poderá saber ao certo. Às apalpadelas, mete-se pela escada. À medida que sobe, vai vendo mais claro, pois, no alto, a madrugada ilumina os vidros. No patamar das águas-furtadas, lá está o armário donde pendem as velhas roupas - as que nunca se dão, porque servem durante a caça. A romeira desbotada tem uma algibeira muito funda: aí guardava a tia Clara o seu tricot, no tempo em que também ela, numa cabana solitária, espreitava a vinda dos pombos bravos. Teresa introduz a mão, retira o embrulho lacrado:
Clorofórmio 10 gramas
Aconitina 2 gramas
Digitalina 20 centigramas
Relê as palavras, os números. Morrer. Sempre teve o terror de morrer. O essencial é não olhar a morte de frente - prever apenas os gestos indispensáveis: deitar a água, diluir o pó, beber de um trago, estender-se no leito, cerrar as pálpebras. Não procurar ver nada para além. Porque temer esse sono mais que todos os outros sonos? Se treme é porque a madrugada está fria. Desce, detém-se diante do quarto onde Maria dorme. A criada ressona como um animal. Teresa empurra a porta. As janelas de madeira filtram o dia que nasce. O estreito leito de ferro branqueja no escuro. Dois punhos minúsculos repousam sobre o lençol. O travesseiro afoga um perfil ainda informe. Teresa reconhece aquela orelha demasiado grande: a sua. As pessoas têm razão: está ali uma réplica de si mesma, entorpecida, adormecida. "Vou-me embora - mas esta parte de mim ficará, e todo um destino, de que nada será omitido, a cumprir até ao fim." Tendências, inclinações, leis do sangue, leis inelutáveis. Teresa leu que há desesperados que arrastam consigo os filhos na morte; a boa gente deixa cair o jornal: "Como são possíveis semelhantes coisas?" Porque é um monstro, Teresa sente profundamente que isso é possível e que um nada basta... Ajoelha, toca de leve com os lábios numa pequenina mão adormecida; espanta-se com o que nasce do mais profundo do seu ser, lhe sobe aos olhos, lhe queima as faces: algumas pobres lágrimas, ela que nunca chora!
Teresa levanta-se, olha uma vez mais a criança, volta finalmente ao quarto, deita água no copo, quebra o lacre do embrulho, hesita entre as três pequenas caixas de veneno.
A janela estava aberta; os galos pareciam rasgar o nevoeiro, de que os pinheiros retinham entre os ramos diáfanos farrapos. Campo banhado de aurora. Como renunciar a tanta luz? O que é a morte? Não se sabe o que é a morte. Teresa não está certa do nada. Teresa não está absolutamente certa de que não haja ninguém. Teresa odeia-se por sentir um tal terror. Ela, que não hesitava em precipitar nele um outro, detém-se em sobressalto diante do nada. Como a sua cobardia a humilha! Se existe esse Ser (e, num breve instante, revê a opressiva festa do Corpo de Deus, o homem solitário esmagado sob uma capa dourada, e o que ele trazia nas mãos, e aqueles lábios que mexiam, e o seu ar de dor)... Já que Ele existe, que desvie a mão criminosa antes que seja demasiado tarde; - e se é sua vontade que uma pobre alma cega transponha a passagem, possa Ele, ao menos, acolher com amor esse monstro, sua criatura. Teresa deita na água o clorofórmio, cujo nome, mais familiar, lhe mete menos medo porque suscita imagens de sono. Que ela se apresse! A casa desperta: Balionte abriu as janelas de madeira do quarto da tia Clara. Que grita ela à surda? Habitualmente, a criada sabe fazer-se compreender pelo movimento dos lábios. Um ruído de portas e de passos precipitados. Teresa mal tem tempo de atirar um xaile sobre a mesa, a fim de esconder os venenos. Balionte entra sem bater:
- A senhora morreu! Encontrei-a morta, em cima da cama, toda vestida. Já está fria.
Puseram, apesar de tudo, um rosário entre os dedos da velha ímpia, um crucifixo sobre o peito. Camponeses entram, ajoelham, saem, não sem terem longamente observado Teresa, de pé junto do leito. ("E quem sabe se não foi ela que fez mais esta!?") Bernardo partira para Saint-Clair, a fim de avisar a família e proceder às diligências necessárias. Ele deve ter dito com os seus botões que o acontecimento vinha a propósito, que ajudaria a desviar as atenções. Teresa contempla aquele corpo, aquele velho corpo fiel que se estendera sob os seus passos no momento em que ia lançar-se na morte. Acaso; coincidência. Se lhe falassem de uma vontade particular, encolheria os ombros. As pessoas murmuram: "Viste? Ela nem sequer fingiu chorar!" No íntimo do coração, Teresa fala àquela que já ali não está: viver, mas como um cadáver nas mãos dos que a odeiam. Não tentar ver nada para além.
No funeral, Teresa ocupou o seu lugar. No domingo seguinte, entrou na igreja com Bernardo que, em vez de passar por uma das naves laterais, como era seu costume, atravessou ostensivamente a nave central. Teresa só levantou o véu de crepe depois de ter tomado lugar entre a sogra e o marido. Um pilar tornava-a invisível à assistência; em frente, nada havia além do coro. Cercada por todos os lados: a multidão atrás, Bernardo à direita, a senhora De La Trave à esquerda e só isso lhe resta aberto, como a arena ao touro que sai da escuridão: esse espaço vazio, onde, entre duas crianças, um homem paramentado está de pé, murmurando, com os braços afastados levemente.
Bernardo e Teresa foram nessa noite para Argelouse, para a casa Desqueyroux, praticamente desabitada havia anos. A tiragem das chaminés não dava saída ao fumo, as janelas fechavam mal e o vento entrava por baixo das portas que os ratos tinham roído. Mas o Outono foi tão belo nesse ano que, de início, Teresa não sofreu com a falta de conforto. A caça retinha Bernardo até ao anoitecer. Mal entrava, ele instalava-se na cozinha, jantava com os Balion: Teresa ouvia o ruído dos garfos, as vozes monótonas. Anoitece cedo em Outubro. Os poucos livros que mandara vir da casa vizinha eram-lhe demasiado conhecidos. Bernardo deixara sem resposta o pedido que ela lhe fizera de transmitir uma encomenda ao seu livreiro de Bordéus; permitiu apenas que Teresa renovasse a provisão de cigarros. Remexer nos tições... mas o fumo resinoso que refluía queimava-lhe os olhos, irritava-lhe a garganta já doente por causa do tabaco. Logo que Balionte levava os restos de uma rápida refeição, Teresa apagava o candeeiro, deitava-se. Quantas horas se conservava estendida, sem que o sono a libertasse! O silêncio de Argelouse impedia-a de dormir; preferia as noites de vento: o queixume indefinido das árvores contém uma doçura humana. Teresa abandonava-se a esse embalar. As noites agitadas do equinócio adormeciam-na melhor que as noites calmas.
Por intermináveis que elas lhe parecessem, acontecia-lhe muitas vezes regressar antes do crepúsculo - quer porque uma mulher, ao vê-la, tivesse pegado no filho pela mão e o tivesse levado rudemente para casa, quer porque um boieiro, de quem ela sabia o nome, não tivesse respondido à sua saudação. Ah! como seria bom perder-se, submergir-se no mais profundo de uma cidade populosa! Em Argelouse, não havia um pastor que não conhecesse a sua lenda (a própria morte da tia Clara lhe era atribuída). Ela não teria ousado transpor nenhum umbral; saía por uma porta escondida, evitava as casas; o solavanco longínquo de uma carroça bastava para que se metesse por um atalho. Caminhava depressa, com o coração angustiado de um animal que o caçador persegue, escondia-se no mato à espera que passasse uma bicicleta.
Aos domingos, na missa de Saint-Clair, não sentia esse terror e saboreava algum repouso. A opinião do burgo parecia-lhe mais favorável. Teresa não sabia que o pai e os La Trave a pintavam sob os traços de uma vítima inocente e ferida de morte: "Receamos que a pobrezita não consiga restabelecer-se; não quer ver ninguém e o médico diz que é preciso não a contrariar. Bernardo rodeia-a de todos os cuidados, mas o moral está atingido..."
Na última noite de Outubro, um vento furioso vindo do Atlântico atormentou longamente as árvores, e Teresa, semiadormecida, mantinha-se atenta àquele ruído de oceano. Mas ao amanhecer, não foi o mesmo queixume que a acordou. Abriu as janelas de madeira e o quarto conservou-se sombrio; uma chuva miúda, cerrada, caía sobre as telhas das cocheiras, sobre as folhas ainda espessas dos carvalhos. Nesse dia, Bernardo não saiu. Teresa fumava, atirava fora o cigarro, ia até ao patamar da escada, e ouvia o marido, no rés-do-chão, errar de uma sala para outra; um cheiro de cachimbo insinuou-se até ao quarto, dominou o do tabaco louro de Teresa, e ela reconheceu o odor da sua antiga vida. O primeiro dia de mau tempo... Quantos teria de viver em frente daquela chaminé onde o fogo morria? Nos cantos, a humidade despegava o papel da parede, onde se via ainda o sinal dos retratos antigos que Bernardo levara para adornar o salão de Saint-Clair - e os pregos enferrujados que já nada seguravam. Sobre a chaminé, numa tripla moldura a imitar tartaruga, havia fotografias pálidas, como se os mortos que elas representavam aí tivessem morrido uma segunda vez: o pai de Bernardo, a avó e o próprio Bernardo penteado "à filho do rei Eduardo". Todo aquele dia a viver ainda, naquele quarto; e depois as semanas, os meses...
Quando a noite chegou, Teresa não se conteve, abriu a porta docemente, entrou na cozinha. Viu Bernardo, diante do fogo, sentado numa cadeira baixa, e que de súbito se pôs de pé. Balion interrompeu a limpeza de uma espingarda; Balionte deixou cair a malha que estava a fazer. Todos três a fixavam com uma tal expressão que ela perguntou:
- Meto-lhes medo?
- Estás proibida de vir à cozinha. Não sabias? Ela não respondeu, recuou para a porta. Bernardo chamou-a:
- Já que te vejo... quero dizer-te que a minha presença aqui se tornou desnecessária. Soubemos criar em Saint-Clair uma corrente de simpatia; julgam-te, ou fingem julgar-te um pouco neurasténica. Está assente que preferes viver só e que eu te venho ver com frequência. De hoje em diante, dispenso-te da missa...
Teresa balbuciou que "não se aborrecia de lá ir". Ele respondeu que não era o divertimento dela que interessava. O resultado que se procurava tinha sido conseguido:
- E visto que a missa, para ti, não significa nada...
Ela abriu a boca, pareceu prestes a falar, mas ficou silenciosa. Ele insistiu em que ela não comprometesse por nenhuma palavra, por nenhum gesto, um êxito tão rápido, tão inesperado. Teresa perguntou como estava Maria. Bernardo respondeu que estava bem e que partiria no dia seguinte com Ana e a senhora De La Trave para Beaulieu. Também ele iria passar aí algumas semanas: dois meses, quando muito. Abriu a porta e afastou-se para que Teresa passasse.
Na madrugada escura, ela ouviu Balion preparar o carro. A seguir a voz de Bernardo, os cascos impacientes do cavalo, os solavancos da carripana que se afastava. Depois a chuva sobre as telhas, sobre os vidros embaciados, sobre o campo deserto, sobre cem quilómetros de charnecas e de pântanos, sobre as últimas dunas movediças, sobre o oceano.
Teresa acendia cigarro sobre cigarro. Pelas quatro horas, pôs um impermeável, meteu-se à chuva. Mas teve medo da noite e voltou para o quarto. O fogo estava apagado; como se sentia tiritar, deitou-se. Às sete horas, Balionte trouxe-lhe um ovo estrelado com presunto. Ela recusou-se a comer; aquele gosto de gordura começava a repugnar-lhe. Sempre presunto ou carne conservada em gordura. Balionte dizia que não tinha nada de melhor que lhe dar: o senhor Bernardo havia-lhe proibido a galinha. Ela queixava-se de que Teresa a fazia subir e descer inutilmente (tinha uma doença de coração e as pernas inchadas). Aquele serviço era já demasiado pesado para ela; se o fazia, era pelo senhor Bernardo.
Teresa teve febre nessa noite; e o seu espírito estranhamente lúcido construía toda uma vida em Paris: revia o restaurante do Bosque onde estivera - mas sem Bernardo, com João Azevedo e algumas mulheres. Punha sobre a mesa a cigarreira de tartaruga, acendia um Abdullah. Falava, abria o coração, enquanto a orquestra tocava em surdina. Encantava um círculo de rostos atentos, mas de modo algum espantados. Uma das mulheres dizia: "É como eu... também senti o mesmo." Um homem de letras chamava-a à parte: "Deveria escrever tudo o que se passa em si. Publicaríamos na nossa revista esse diário de uma mulher de hoje." Um jovem que sofria por causa dela reconduzia-a no seu automóvel. Subiam a avenida do Bosque; ela não se sentia perturbada, mas saboreava o prazer daquele jovem corpo perturbado, sentado à sua esquerda. "Não, esta noite não", dizia-lhe ela. "Esta noite, janto com uma amiga." "E amanhã à noite?" "Também não." "As suas noites nunca estão livres?" "Quase nunca... por assim dizer, nunca..."
Um ser entrara na sua vida, graças ao qual todo o resto do mundo lhe parecia insignificante; um ser que ninguém do seu círculo conhecia; uma criatura muito humilde, muito obscura; mas toda a existência de Teresa girava em torno desse sol apenas visível ao seu olhar e cujo valor só a sua carne conhecia. Paris murmurava como o vento nos pinheiros. Aquele corpo contra o seu corpo, por mais leve que fosse, impedia-a de respirar; mas preferia perder o fôlego a afastá-lo. (E Teresa faz o gesto de quem abraça: a mão direita aperta o ombro esquerdo e as unhas da mão esquerda vão cravar-se no outro ombro.)
Levanta-se descalça, abre a janela; as trevas não estão frias; mas como imaginar que possa um dia deixar de chover? Choverá até ao fim do mundo. Se tivesse dinheiro, fugiria para Paris, iria direita a casa de João Azevedo, a ele se confiaria. Ser uma mulher sozinha em Paris, que ganha a sua vida, que não depende de ninguém...
Não ter família! Deixar somente ao coração o cuidado de escolher os seus - não segundo o sangue, mas segundo o espírito, e segundo a carne também; descobrir a sua verdadeira família, por mais rara e disseminada que fosse... Adormeceu por fim, com a janela aberta. A madrugada fria e húmida despertou-a: batia os dentes, sem coragem para se levantar e fechar a janela - incapaz mesmo de estender o braço, de puxar os cobertores.
Não se levantou nesse dia, nem se arranjou. Engoliu dois ou três pedaços de carne e bebeu café para poder fumar (em jejum, o estômago já não suportava o tabaco). Tentou voltar aos devaneios nocturnos; de resto, já pouco barulho havia em Argelouse e a tarde não era menos sombria do que a noite. Nos dias mais curtos do ano, a chuva espessa unifica o tempo, confunde as horas; um crepúsculo liga-se a outro crepúsculo no silêncio imutável. Mas Teresa não desejava dormir e os seus sonhos tornavam-se mais precisos; procurava com método, no passado, rostos esquecidos, bocas que amara de longe, corpos indistintos que encontros fortuitos, acasos nocturnos haviam aproximado do seu corpo inocente. compunha uma felicidade, inventava uma alegria, criava um a um todos os elementos de um impossível amor.
- Não sai da cama, nem come nada - dizia algum tempo depois Balionte a Balion. - Mas garanto-te que esvazia a garrafa. Se mais lhe dessem, mais a velhaca beberia. E, ainda por cima, queima os lençóis com o cigarro. Acabará por deitar fogo à casa. Fuma tanto que tem os dedos e as unhas amarelos, como se os tivesse metido em arnica. Se não é uma pena! Lençóis que foram tecidos em casa... Espera lá que já tos mudo!
Dizia ainda que não se negava a varrer o quarto, nem a fazer a cama. Mas aquela madraçona é que não queria levantar-se. E não valia a pena que ela, com as pernas inchadas, lhe levasse lá cima jarros de água quente: encontrava-os à noite, à porta do quarto onde os deixara de manhã.
O pensamento de Teresa desviava-se do corpo desconhecido que para sua alegria suscitara; cansava-se dessa felicidade, experimentava a saciedade do imaginário prazer - inventava outra evasão. Ajoelhavam em volta do seu catre. Uma criança de Argelouse (uma das que fugiam quando ela se aproximava) era trazida moribunda ao seu quarto; Teresa pousava a mão sobre ela e a criança levantava-se curada. Inventava outros sonhos mais humildes: contentava-se com uma casa à beira-mar, via em pensamento o jardim, o terraço, dispunha as salas, escolhia um a um os móveis, encontrava o lugar para os que possuía em Saint-Clair, discutia consigo mesma a escolha dos tecidos. Depois o cenário começava a desvanecer-se, tornava-se menos preciso - e nada mais restava à excepção da álea de um jardim, de um banco diante do mar. Teresa, sentada, repousava a cabeça num ombro, erguia-se ao toque da sineta anunciando a refeição, entrava na álea escura; alguém que caminhava a seu lado rodeava-a de súbito com os braços, puxava-a para si. Um beijo, pensa ela, deve suspender o tempo; Teresa imagina que existem no amor segundos infinitos. Imagina; nunca o saberá. Vê a casa ainda branca, o poço; a bomba range; heliotrópios salpicados de água perfumam o pátio; o jantar será um repouso antes da felicidade da noite, felicidade que deve ser impossível olhar de frente, tanto ela ultrapassa o poder do nosso coração: assim, o amor, de que Teresa mais que nenhuma outra criatura foi frustrada, a possui, a penetra. Mal ouve os ralhos de Balionte. Que grita a velha? Que o senhor Bernardo voltará do Meio-Dia de um momento para outro, sem avisar: "E que dirá ele quando vir este quarto? Uma verdadeira pocilga! A senhora tem de se levantar, quer queira quer não." Sentada no leito, Teresa olha com espanto as pernas esqueléticas e os pés que lhe parecem enormes. Balionte envolve-a num roupão, impele-a para uma poltrona. Teresa procura ao lado os cigarros, mas a mão cai no vazio. Um sol frio entra pela janela aberta. Munida de uma vassoura, Balionte agita-se ofegante, resmunga injúrias - Balionte que, no entanto, é boa, pois se conta em família que, todos os Natais, a morte do porco que ela engordou lhe arranca lágrimas. Guarda rancor a Teresa por esta lhe não dar resposta: o silêncio é a seus olhos um ultraje, um sinal de desprezo.
Mas não dependia de Teresa falar. Quando sentiu no corpo a frescura dos lençóis lavados, julgou ter dito obrigado; na verdade, nenhum som lhe saíra dos lábios. Antes de se ir embora, Balionte ainda lhe lançou: "Estes não os vai a senhora queimar!" Teresa sentiu medo de que ela lhe tivesse levado os cigarros, estendeu a mão para a mesa: os cigarros já lá não estavam. Como viver sem fumar? Era preciso que os seus dedos pudessem tocar a todo o instante aquela coisa seca e quente; era preciso que ela pudesse em seguida cheirá-los indefinidamente e que o quarto mergulhasse numa bruma que a sua boca aspirara e repelira. Balionte só voltaria à noite; uma tarde inteira sem tabaco! Fechou os olhos, enquanto os dedos amarelecidos faziam ainda o movimento habitual em volta de um cigarro.
Às sete horas, Balionte entrou com uma vela, pôs sobre a mesa o tabuleiro: leite, café, um bocado de pão. "Não precisa de mais nada?" Esperou malignamente que Teresa reclamasse os cigarros; mas Teresa não desviou a cara voltada para a parede.
Balionte esquecera-se por certo de fechar bem a janela: um vento mais forte abriu-a e o frio da noite encheu o quarto. Teresa sentia-se sem coragem para afastar a roupa, levantar-se, correr descalça até à janela. Imóvel, toda encolhida e com o lençol puxado até aos olhos, recebia nas pálpebras e na testa um sopro gelado. O rumor imenso dos pinheiros enchia Argelouse, mas, a despeito desse ruído de oceano, era sempre o silêncio de Argelouse. Teresa pensava que, se desejasse sofrer, se não teria encolhido assim debaixo da roupa. Tentou afastá-la um pouco, mas só pôde conservar-se exposta ao frio durante alguns segundos. Depois, como por jogo, conseguiu manter-se por mais tempo. Sem que fosse segundo uma vontade deliberada, a dor tornava-se deste modo a sua ocupação e - quem sabe? - a sua razão de ser.
- Uma carta do senhor Bernardo.
Como Teresa não pegava no envelope que ela lhe estendia, Balionte insistiu: com certeza que o senhor Bernardo dizia quando vinha; ela precisava saber, a fim de preparar as coisas.
- Se a senhora quer que eu leia...
Teresa disse-lhe que lesse. E como sempre fazia na presença de Balionte, voltou-se para a parede. No entanto, as frases que a velha decifrava arrancaram-na do torpor:
Fiquei contente por saber, pelas notícias de Balion, que tudo segue bem em Argelouse...
Bernardo anunciava que regressaria de automóvel, mas que, como contava parar em várias cidades, não podia ainda fixar a data exacta da chegada.
Não será, por certo, depois de 20 de Dezembro. Não te admires de me ver aparecer com Ana e o filho dos Deguilhem. O noivado ficou combinado em Beaulieu; mas ainda não é oficial; o filho dos Deguilhem insiste em ver-te primeiro. Puro respeito das conveniências, assegura ele; por mim, tenho a impressão de que quer formar uma opinião acerca daquilo que tu bem sabes. És demasiado inteligente para te saíres mal desta prova. Lembra-te de que estás doente, de que o moral foi atingido. Enfim, deixo isso à tua responsabilidade. Saberei reconhecer o teu esforço para não prejudicar a felicidade de Ana, nem comprometer o feliz resultado deste projecto, sob todos os aspectos tão satisfatório para a família; assim como não hesitarei também, se for necessário, em fazer-te pagar caro qualquer tentativa de sabotagem; mas estou certo de que nada há que temer.
Estava um belo dia claro e frio. Teresa levantou-se, dócil às imposições de Balionte, deu pelo braço dela alguns passos pelo jardim, mas só com dificuldade conseguiu engolir um bocado de peito de galinha. Faltavam dez dias para 20 de Dezembro. Se a senhora estivesse disposta a mexer-se um pouco, não seria preciso mais para se pôr fina...
"Não se pode dizer que ela não tenha boa vontade", dizia Balionte a Balion. Faz o que pode. O senhor Bernardo sabe bem ensinar os maus cães! Quando lhes põe a coleira de bicos!... Esta não foi difícil de ensinar. Mas bom seria que ele não se fiasse muito..."
com efeito, Teresa punha todo o seu esforço na renúncia ao sonho, ao sono, ao aniquilamento. Forçava-se a caminhar, a comer, sobretudo a tornar-se lúcida, a ver com os olhos da carne as coisas e os seres; - e como se voltasse a uma charneca por ela incendiada, como se lhe pisasse a cinza e vagueasse por entre os pinheiros queimados e negros, assim tentaria também falar e sorrir no meio daquela família - a sua família.
No dia 18, pelas três horas, por um tempo coberto mas sem chuva, Teresa estava sentada diante do fogo do quarto, com a cabeça apoiada nas costas da poltrona e os olhos fechados. A trepidação de um motor despertou-a. Reconheceu a voz de Bernardo no vestíbulo; ouviu também a senhora De la Trave. Quando Balionte, ofegante, empurrou a porta sem bater, já Teresa estava de pé, em frente do espelho. Pintava as faces e os lábios, e dizia: "Não posso meter medo a este rapaz."
Bernardo cometera, porém, uma falta não subindo primeiro ao quarto da mulher. O filho dos Deguilhem, que prometera à família "estar de olho alerta", dizia para consigo "que era, pelo menos, uma falta de solicitude que dava que pensar". Afastou-se um pouco de Ana e, levantando a gola de pele, observou que "era inútil tentar aquecer aqueles salões de província." E perguntou a Bernardo: "Não têm adega por baixo? Então o sobrado acabará por apodrecer, a não ser que mandem pôr uma camada de cimento..."
Ana de La Trave trazia um casaco de petit-gris e um chapéu de feltro sem enfeites. ("Mesmo assim", dizia a senhora De La Trave, "custa mais caro do que os nossos chapéus de antigamente, com as suas plumas e as suas aigrettes. É verdade que o feltro é lindíssimo. Foi comprado na casa Lailhaca, mas é um modelo de Reboux.") A senhora De La Trave estendia as botinas para o fogo, enquanto o rosto ao mesmo tempo imperioso e mole se voltava para a porta. Prometera a Bernardo estar à altura das circunstâncias. Mas advertira-o: "Não me peças que a beije. Não se pode exigir isso da tua mãe. Será já para mim bem terrível ter de lhe tocar a mão. Deus sabe como é horrível o que ela fez! Pois bem, não é o que me revolta mais. Já todos sabíamos que há gente capaz de assassinar... É a sua hipocrisia! Sim, isso é que é horrível! Lembras-te? Sente-se nesta poltrona, mãe, estará melhor..."E recordas-te quando ela dizia ter medo de te provocar qualquer comoção? "O pobrezito tem o horror da morte; uma junta médica pode acabar de matá-lo..." Juro-te que não suspeitava de nada; mas aquele "pobrezito", na boca dela, tinha-me surpreendido..."
Agora, no salão de Argelouse, a senhora De La Trave já só é sensível ao constrangimento que todos experimentam: observa os olhos de pássaro do filho dos DeguiIhem, fixos em Bernardo.
- Bernardo, devias ir ver porque é que Teresa demora... Talvez esteja mais doente.
Ana (indiferente, como desligada do que pode acontecer) é a primeira a reconhecer um passo familiar; e murmura: "Vem a descer." Bernardo, com a mão apoiada no peito esquerdo, sofre de palpitações. Era idiota não ter regulado antecipadamente a cena com Teresa. Que iria ela dizer? Era capaz de comprometer tudo, sem fazer precisamente nada que pudesse ser-lhe censurado. Como ela desce lentamente a escada! Estão todos de pé, virados para a porta que Teresa abre por fim.
Bernardo lembrar-se-ia, muitos anos depois, que à vista daquele corpo destruído, daquele pequeno rosto branco e pintado, o seu primeiro pensamento foi este: Tribunal. Não por causa do crime de Teresa. Num segundo, reviu a imagem colorida do Pequeno Parisiense que, entre muitas outras, ornava os pavilhões do jardim de Argelouse; e enquanto as moscas zumbiam e lá fora as cigarras cantavam no dia de fogo, os seus olhos de criança esquadrinhavam o desenho vermelho e verde que representava a sequestrada de Poitiers.
Assim contemplava ele, agora, Teresa exangue, descarnada, e media a sua loucura de não ter afastado, custasse o que custasse, aquela mulher terrível - como se deita à água uma bomba que, de um minuto para outro, pode rebentar. Consciente ou inconscientemente, Teresa suscitava o drama - pior que o drama: a tragédia sentimental; ela tinha de ser ou criminosa ou vítima... Houve, do lado da família, um rumor de espanto e copaixão tão pouco fingido que o filho dos Deguilhem hesitou nas conclusões, não sabendo que pensar. Teresa dizia:
- É muito simples: como o mau tempo me impedia de sair, perdi o apetite. Não comia quase nada. É melhor emagrecer do que engordar... Mas fala-me de ti, Ana. Sinto-me feliz...
Pegou-lhe nas mãos (ela estava sentada e Ana de pé). Teresa contemplava-a. Naquele rosto que dir-se-ia devorado, Ana reconhecia bem o olhar cuja insistência dantes a irritava. Lembrou-se de que costumava dizer-lhe: "Quando tiveres acabado de me olhar desse modo..."
- Folgo com a tua felicidade, minha querida Ana. Sorriu brevemente à "felicidade de Ana", ao filho dos Deguilhem - àquele crânio, àqueles bigodes de polícia, àqueles ombros caídos, àquela samarra apertada, àquelas pequenas coxas gordas sob umas calças pretas de riscas cinzentas. (Mas que tinha?! Era um homem como todos os homens - enfim, um marido.) Depois de novo se voltou para Ana:
- Tira o chapéu... Ah! assim reconheço-te, minha querida.
Ana via agora de muito perto uma boca levemente contraída e os olhos sempre secos, os olhos sem lágrimas; mas não sabia o que Teresa pensava. O filho dos Deguilhem dizia que o inverno, no campo, não era assim tão terrível para uma mulher que goste do lar: "Há sempre tanta coisa que fazer numa casa!"
- Não me pedes notícias de Maria?
- É verdade... Fala-me de Maria...
Ana pareceu de novo desconfiada, hostil; havia meses que repetia com frequência, com as mesmas entoações que a mãe: "Ter-lhe-ia perdoado tudo, porque, enfim, é uma doente; mas o que não posso suportar é a sua indiferença por Maria. Por mais desculpas que se inventem, acho ignóbil que uma mãe não se interesse pela filha."
Teresa lia no pensamento da rapariga: "Despreza-me porque lhe não perguntei primeiro por Maria. Mas como explicar-lhe? Ela não compreenderia que só me interesso por mim mesma, que estou inteiramente ocupada comigo. Ana, pelo seu lado, espera apenas ter filhos para se aniquilar neles, como fez a mãe, como fazem todas as mulheres da família. A minha única preocupação é descobrir-me; esforço-me por me encontrar... Ao primeiro vagido do fedelho que esse gnomo lhe fará, sem tirar sequer a samarra, Ana esquecerá a sua adolescência ao pé da minha, as carícias de João Azevedo. As mulheres da família aspiram a perder toda a existência individual. É bela essa dádiva total à espécie; sinto a beleza de uma tal destruição, de um tal aniquilamento... Mas eu, mas eu..."
Procurou não ouvir o que diziam à sua volta, tentou pensar em Maria; a pequena já devia falar: "Gostaria talvez de a ouvir durante alguns segundos, mas imediatamente ela me cansaria e eu ficaria impaciente por me encontrar de novo sozinha comigo mesma..."
- Maria já deve falar bem...
- Repete tudo o que a gente quer. É de morrer a rir. Basta o cantar de um galo ou a buzina de um automóvel para que ela levante o dedo e diga: "Tás ouvi?" É um amor, uma jóia!
Teresa pensa: "E tenho de escutar o que dizem. Sinto a cabeça vazia. Que está o filho dos Deguilhem a contar?" Faz um grande esforço, procura prestar atenção.
- Na minha propriedade de Balisac, os resineiros não se esforçam tanto como aqui: quatro porções de resina, enquanto os camponeses de Argelouse apanham sete ou oito.
- Pelo preço que a resina está, não podem mandriar.
- Um resineiro, hoje, chega a receber cem francos por jorna... Mas parece-me que estamos a fatigar a senhora Desqueyroux...
Teresa apoiava a cabeça nas costas da poltrona. Todos se levantaram. Bernardo decidiu não ir para Saint-Clair. O filho dos Deguilhem ofereceu-se para conduzir o automóvel que o motorista traria no dia seguinte para Argelouse, com a bagagem de Bernardo. Teresa fez um esforço para se erguer, mas a sogra obrigou-a a ficar quieta.
Teresa fecha os olhos e ouve Bernardo dizer à senhora De La Trave: "Os Balion vão ouvir-me. Há-de ficar-lhes de emenda!" "Tem cuidado, não te excedas. É preciso que eles não se ponham a andar; primeiro, sabem de mais; depois, quanto às propriedades... Balion é o único a conhecê-las bem."
A senhora De La Trave responde a uma observação de Bernardo, que Teresa não ouviu: "Apesar de tudo, sê prudente, não te fies demasiado nela, vigia-lhe os gestos, nunca a deixes entrar só na cozinha ou na sala de jantar... Não, não está desmaiada; está a dormir ou a fingir que dorme."
Teresa abre os olhos: Bernardo está diante dela; segura um copo e diz: "Bebe; é vinho de Espanha; dar-te-á forças." E como faz sempre o que decidiu fazer, entra na cozinha, grita encolerizado. Teresa ouve a voz esganiçada de Balionte e pensa: "Bernardo teve medo, é evidente. Mas medo de quê?" Ele volta:
- Penso que comerás com mais apetite na sala de jantar do que no teu quarto. Dei ordem para que o teu talher seja posto na mesa como dantes.
Teresa reencontrava o Bernardo do tempo da instrução do procresso: o aliado que, a todo o custo, pretendia livrá-la de mais apuros. Ele quer que ela se cure, seja de que maneira for. Sim, é evidente que teve medo. Teresa observa-o, sentado em frente, remexendo no lume, mas não adivinha a imagem que os seus olhos muito abertos contemplam nas chamas: o desenho vermelho e verde do Pequeno Parisiense - a sequestrada de Poitiers.
Por muito que chova, a areia de Argelouse não conserva nenhuma poça. Em pleno Inverno, basta uma hora de sol para que se torne possível percorrer impunemente, de alpercatas, os caminhos atapetados de agulhas elásticas e secas. Bernardo caçava o dia inteiro, mas voltava à hora das refeições, tinha cuidados com Teresa, tratava dela como nunca o fizera. Muito pouco constrangimento nas relações entre ambos. Bernardo obrigava-a a pesar-se de três em três dias, a só fumar dois cigarros depois de cada refeição. A conselho dele, Teresa caminhava muito: "O exercício é o melhor aperitivo."
Ela já não tinha medo de Argelouse; parecia-lhe que os pinheiros se afastavam, abriam as suas fileiras, lhe faziam sinal de que fugisse. Uma tarde, Bernardo dissera-lhe: "Peço-te que aguardes até ao casamento de Ana; toda a gente nos tem de ver juntos ainda uma vez; depois serás livre." Teresa não tinha podido dormir durante toda a noite que se seguiu. Uma alegria inquieta conservava-lhe os olhos abertos. Pela alvorada, ouviu os inúmeros galos que não pareciam responder uns aos outros: cantavam em conjunto, enchendo a terra e o céu de um único clamor. Bernardo soltá-la-ia no mundo, como outrora na charneca aquele javali fêmea que ele não soubera domesticar. Casada Ana, as pessoas poderiam dizer o que lhes apetecesse: Bernardo faria desaparecer Teresa no mais profundo de Paris e escapar-se-ia. Ficara combinado entre eles. Nada de divórcio, nem de separação oficial; inventar-se-ia, para o mundo, um motivo de saúde ("ela só passa bem em viagem"). Nos dias de Todos os Santos, ele entregar-lhe-ia fielmente o dinheiro das suas resinas.
Bernardo não interrogava Teresa acerca dos seus projectos: que fosse fazer disparates para onde quisesse. "Só ficarei tranquilo", dizia ele à mãe, "quando a vir desembaraçar o terreno." "Acho conveniente que retome o nome de solteira... No entanto, isso não impedirá que, se fizer das suas, tu não venhas a pagar também as favas." Mas Teresa, afirmava ele, só escoicinhava nos varais. Livre, talvez não houvesse pessoa mais sensata. De qualquer modo, era preciso correr o risco. Idêntica era a opinião do senhor Larroque. No fim de contas, tornava-se preferível que Teresa desaparecesse; seria esquecida mais depressa e as pessoas perderiam o hábito de falar no caso. Esta ideia tinha criado raízes neles e nada os teria feito desistir: era necessário que Teresa saísse dos varais. Como se sentiam impacientes!
Teresa amava aquela nudez que o fim do Inverno impõe a uma terra já tão nua; todavia, o burel tenaz das folhas mortas mantinha-se pegado aos carvalhos. Ela descobria que o silêncio de Argelouse não existe. Nos tempos mais calmos, a floresta geme como alguém que chora sozinho, se embala e adormece, e as noites não são mais que um murmúrio indefinido. Haveria alvoradas da sua vida futura, dessa inimaginável vida, alvoradas tão desertas que ela teria talvez saudades da hora em que acordava em Argelouse, do clamor único dos galos. Nos estios que vão seguir-se, Teresa lembrar-se-á das cigarras do dia e dos grilos nocturnos. Paris: não mais os pinheiros dilacerados, mas os seres temíveis; a multidão dos homens após a multidão das árvores.
Marido e mulher admiravam-se de que restasse entre eles tão pouco constrangimento. Teresa pensava que os seres se nos tornam suportáveis desde que estamos seguros de poder deixá-los. Bernardo interessava-se pelo peso da mulher - mas também pelo que ela dizia: Teresa falava diante dele mais livremente do que jamais o fizera: "Em Paris... quando estiver em Paris..." Viveria num hotel, procuraria talvez uma casa. Contava seguir cursos, assistir a conferências e a concertos, "retomar a sua educação pela base". Bernardo não pensava em vigiá-la; e, despreocupadamente, comia a sopa, esvaziava o copo. Ó doutor Pédemay, que por vezes os encontrava na estrada de Argelouse, dizia para a mulher: "O que me espanta é que eles não têm de modo algum o ar de quem está a representar."
Numa manhã quente de Março, pelas dez horas, a onda humana corria já, batia o terraço do Café de La Paix onde Bernardo e Teresa estavam sentados. Ela deitou fora o cigarro e, como faz a gente da charneca, esmagou-o com cuidado.
- Tens medo de deitar fogo ao passeio?
Bernardo tinha um riso forçado. Censurava-se por ter acompanhado Teresa até Paris. Sem dúvida que, no dia seguinte ao do casamento de Ana, o fizera por causa da opinião pública - mas obedecera sobretudo ao desejo da mulher. Ele dizia para consigo que a especialidade dela eram as situações falsas: enquanto Teresa continuasse na sua vida, corria o risco de condescender assim em tomar atitudes insensatas; mesmo sobre um espírito tão equilibrado, tão sólido como o seu, aquela louca conservava um resto de influência. No momento em que ia separar-se dela, Bernardo não conseguia furtar-se a uma tristeza que nunca teria admitido: nada lhe era mais estranho do que um sentimento daquele género, provocado por outrem (mas, sobretudo por Teresa... era impossível imaginar). Como se sentia impaciente por fugir àquela perturbação! Só respiraria livremente no comboio do Sul. O automóvel esperá-lo-ia nessa noite em Langon. Sem demora, ao sair da estação, na estrada de Villandraut, os pinheiros começam. Observava o perfil de Teresa, as suas pupilas que por vezes fixavam um rosto entre a multidão e o seguiam até ele desaparecer; e de súbito:
- Teresa... gostaria de te perguntar...
Desviou os olhos, nunca tendo podido sustentar o olhar da mulher; e a seguir, muito depressa:
- Gostaria de saber... Era porque me detestavas? Porque eu te causava horror?
Ela escutava as suas próprias palavras com espanto, com irritação. Teresa sorriu, depois fitou-o com ar grave: Finalmente! Bernardo punha-lhe uma questão, a mesma que primeiro teria assomado ao espírito de Teresa se estivesse no lugar dele. A confissão longamente preparada na caleche, ao longo da estrada de Nizan, depois no pequeno comboio de Saint-Clair, aquela noite de procuras, de busca paciente, o esforço para remontar à origem do seu acto - enfim, esse retorno esgotante a si mesma estava talvez prestes a receber a sua recompensa. Sem o saber, tinha perturbado Bernardo. Tinha-o complicado; e eis que ele a interrogava como alguém que não vê claro, que hesita. Menos simples... portanto, menos implacável.
Teresa lançou sobre aquele homem novo um olhar complacente, quase maternal. Todavia, respondeu-lhe zombeteira:
- Não sabes que foi por causa dos teus pinheiros, Bernardo? Sim, quis ser senhora única dos teus pinheiros.
Ele encolheu os ombros:
- Já não acredito em tal coisa... se alguma vez acreditei. Porque fizeste aquilo? Podes dizer-mo agora.
Teresa tinha um olhar longínquo: naquele terraço, à beira de um rio de lama e de corpos que se apertavam, no momento em que ia lançar-se, debater-se nele, ou consentir em ser tragada, percebia um clarão, uma alvorada: imaginava um regresso à terra secreta e triste - toda uma vida de meditação, de aperfeiçoamento, no silêncio de Argelouse: a aventura interior, a procura de Deus... Um marroquino que vendia tapetes e colares de vidro julgou que ela lhe sorria e aproximou-se. com o mesmo ar de quem zomba, Teresa disse:
- Ia responder-te: "Não sei porque fiz aquilo"; mas, agora, talvez o saiba, imagina tu! É possível que tenha sido para ver nos teus olhos uma inquietação, uma curiosidade - a perturbação, enfim: tudo o que neles descubro há um segundo.
Ele resmungou, num tom que lembrava a Teresa a viagem de núpcias:
- Hás-de dizer sempre graças até ao fim... A sério: porquê?
Ela já não ria e perguntou por sua vez:
- Um homem como tu, Bernardo, conhece sempre todas as razões dos seus actos, não é?
- Seguramente... sem dúvida... Pelo menos, parece-me.
- E eu desejaria tanto que nada te ficasse escondido! Se soubesse a tortura a que me sujeitei para ver claro... mas todas as razões que teria podido dar-te, mal as tivesse enunciado, ter-me-iam parecido mentirosas...
Ele impacientou-se:
- Enfim, houve apesar de tudo um dia em que te decidiste... em que fizeste o gesto!...
- Sim, Bernardo, no dia do grande incêndio de Mano.
Tinham-se aproximado um do outro, falavam em voz baixa. Naquela encruzilhada de Paris, sob um sol fraco, ao vento um pouco fresco que cheirava a tabaco de além-mar e agitava as cortinas amarelas e vermelhas, Teresa achava estranho evocar a tarde sufocante, o céu cheio de fumo, o fuliginoso azul, o penetrante cheiro a archote que se desprende das pinhas queimadas - e o seu próprio- coração entorpecido onde o crime tomava forma lentamente.
- Eis como a ideia me veio: estávamos na sala de jantar, escura como sempre ao meio-dia; tu falavas, com a cabeça um pouco voltada para Balion, esquecendo-te de contar as gotas que caíam no copo.
Teresa não olhava Bernardo, toda entregue ao cuidado de não omitir a mínima circunstância; mas ouviu-o rir e encarou-o: sim, ele ria com o seu estúpido riso; dizia: "Não! Mas por quem me tomas tu?" Não acreditava nela (mas, na verdade, era crível o que ela contava?). Ele soltou uma gargalhada e Teresa reconheceu o Bernardo confiante em si e que se não deixa levar. Retomara a sua segurança; ela de novo se sentiu perdida. Ele zombava:
- A ideia veio-te então assim de repente, por obra e graça do Espírito Santo?
Como se odiava por ter interrogado Teresa! Era perder todo o benefício do desprezo com que tinha feito sucumbir aquela louca: e ela começava já a levantar a cabeça. Porque cedera ele ao brusco desejo de compreender? Como se houvesse alguma coisa que compreender com essas transtornadas! Mas a pergunta escapara-lhe; não reflectira...
- Escuta, Bernardo: o que te digo não é para te persuadir da minha inocência, bem longe disso!
Pôs uma estranha paixão em culpar-se: para ter agido assim, como sonâmbula, era preciso, dizia ela, que durante meses tivesse acolhido no seu coração, alimentado pensamentos criminosos. Aliás, realizado o primeiro gesto, com que furor lúcido prosseguira no seu desígnio, com que tenacidade!
- Só me sentia cruel quando a minha mão hesitava. Odiava-me por te prolongar o sofrimento. Era preciso ir até ao fim, e depressa! Eu cedia a um horrível dever. Sim, era como um dever.
Bernardo interrompeu-a:
- Frases! Vê se consegues dizer-me, de uma vez para sempre, o que querias - se fores capaz!
- O que eu queria? Seria talvez mais fácil dizer o que não queria; não queria fingir que era uma outra, fazer gestos, pronunciar fórmulas, renegar enfim a cada instante uma Teresa que... Mas, não, Bernardo... procuro apenas ser verdadeira; e vê tu como tudo o que te digo soa tão falso!...
- Fala mais baixo: o senhor que está na nossa frente voltou-se.
Bernardo só desejava acabar. Mas ele conhecia aquela maníaca: ela teria prazer em complicar as coisas. Teresa compreendia também que aquele homem, que durante um segundo se aproximara, se afastara de novo até ao infinito. Insistia, no entanto, compunha o seu melhor sorriso, dava à voz certas inflexões graves e roucas de que outrora ele gostava.
- Mas agora, Bernardo, sinto bem que a Teresa que instintivamente esmaga o cigarro porque um nada basta para deitar fogo ao mato - a Teresa que adorava contar os seus pinheiros, vender a sua resina, a Teresa que se orgulhava de ter casado com um Desqueyroux, de ocupar a sua posição no seio de uma boa família da charneca, contente por se ter "acomodado", como costuma dizer-se, essa Teresa é tão real como a outra, tão viva como ela; não, não: não havia nenhuma razão para sacrificá-la à outra.
- Qual outra?
Ela não soube que responder e ele consultou o relógio. Teresa murmurou:
- Contudo, terei de lá ir de vez em quando, por causa das propriedades... e de Maria.
- Quais propriedades? Sou eu quem administra os bens da comunidade. Não vamos outra vez falar sobre o que já está assente. Terás o teu lugar em todas as cerimónias oficiais, em que seja necessário, por honra do nome e no interesse de Maria, que nos vejam juntos. Numa família tão numerosa como a nossa, os casamentos não faltam - graças a Deus! - nem os funerais. Para começar, não me espantaria se o tio Martinho não durasse até ao Outono: será uma ocasião, pois que, pelos vistos, já começas a sentir-te farta...
Um polícia a cavalo aproximou um apito dos lábios, abriu invisíveis eclusas: um exército de peões apressou-se a atravessar a calçada negra, antes que a vaga dos táxis a cobrisse de novo. "Eu deveria ter partido, uma noite, para a charneca do Meio-Dia, como Daguerre. Deveria ter caminhado por entre os pinheiros raquíticos daquela terra má - caminhado até ao esgotamento. Não teria tido a coragem de conservar a cabeça mergulhada na água de uma laguna (como fez, no ano passado, esse pastor de Argelouse, a quem a nora não dava de comer). Mas teria podido deitar-me na areia, fechar os olhos... É certo que há os corvos e as formigas que não esperam..."
Contemplou o rio humano, aquela massa viva que ia abrir-se sob o seu corpo, empurrá-la, arrastá-la. Nada mais restava. Bernardo puxou de novo pelo relógio:
- Onze menos um quarto: o tempo de passar pelo hotel...
- Não terás muito calor na viagem.
- Estou mesmo a ver que, à noite, no automóvel, terei de me cobrir.
Ela viu em pensamento a estrada por onde ele rolaria, imaginou que o vento frio lhe fustigava o rosto, esse vento que cheira a pântano, a lenha resinosa, a ervas queimadas, a hortelã, a bruma. Olhou Bernardo, teve o sorriso que outrora fazia dizer às senhoras da charneca: "Não se pode dizer que seja bonita, mas é o próprio encanto." Se Bernardo lhe houvesse dito: "Perdoo-te; vem...", ter-se-ia levantado, tê-lo-ia seguido. Mas Bernardo, de súbito irritado por se sentir comovido, experimentava apenas o horror dos gestos inacostumados, das palavras diferentes das que é hábito trocar todos os dias. Bernardo estava "à medida", como os seus carros: tinha necessidade das suas rodeiras; quando de novo as encontrar, nessa noite mesmo, na sala de jantar de Saint-Clair, saboreará a calma, a paz.
- Quero pedir-te perdão uma última vez, Bernardo.
Ela pronuncia estas palavras com demasiada solenidade e sem esperança - último esforço para que a conversa se não extinga.
Mas ele protesta:
- Não falemos mais disso...
- Vais sentir-te muito só: sem estar lá, ocupo um lugar; melhor seria para ti que eu tivesse morrido.
Bernardo encolheu um pouco os ombros e, quase jovial, pediu-lhe que "não se apoquentasse com ele".
- Cada geração de Desqueyroux teve o seu solteirão! Ficarei a fazer as vezes dele. Possuo todas as qualidades requeridas (não serás tu quem irá dizer o contrário!). Só lamento que tenhamos tido uma filha, por causa do nome que vai acabar. Verdade seja que, mesmo que tivéssemos continuado juntos, não teríamos querido outro filho... Assim, feitas as contas, está tudo certo... Não te incomodes; deixa-te ficar.
Chamou um táxi, mas voltou atrás para lembrar a Teresa que a despesa estava paga.
Ela olhou durante muito tempo a gota de vinho do Porto no fundo do copo de Bernardo; de novo encarou a gente que passava. Alguns pareciam esperar, andavam de cá para lá. Uma mulher virou-se duas vezes, sorriu a Teresa (operária ou vestida de operária?). Era a hora em que os ateliers de costura se esvaziam. Teresa não pensava em sair dali; não sentia aborrecimento nem tristeza. Decidiu não ir ver João Azevedo nessa tarde - e soltou um suspiro de libertação; não lhe apetecia vê-lo: mais palavras, mais fórmulas! Conhecia João Azevedo; mas não conhecia os seres cuja aproximação desejava; sabia somente deles que poucas palavras exigiriam. Teresa já não temia a solidão. Bastava-lhe ficar imóvel: assim como, estendido na charneca do Meio-Dia, o seu corpo teria atraído as formigas e os cães, assim ela pressentia já, em volta da sua carne, uma agitação obscura, um redemoinho. Sentiu fome, levantou-se, viu numa montra de Old England a mulher que era: aquele fato de viagem muito justo ficava-lhe bem. Mas, do seu tempo de Argelouse, ela conservava uma cara que parecia devorada: as maçãs do rosto demasiado salientes, o nariz curto. Pensou: "Não tenho idade." Almoçou (como muitas vezes nos seus sonhos) na Rua Royale. Para que voltar ao hotel, já que lhe não apetecia? Um cálido contentamento a tomava, graças à meia garrafa de Pouilly. Pediu cigarros. De uma mesa vizinha, um homem ainda novo estendeu-lhe o isqueiro aceso, e ela sorriu. Dizer que, havia uma hora apenas, desejara embrenhar-se de noite, ao lado de Bernardo, na estrada de Villandraut, por entre os pinheiros sinistros! Que importa amar esta terra ou aquela outra, os pinheiros ou os robles, o oceano ou a planície?! Nada a interessava além do que vive, além dos seres de carne e osso. "Não é a cidade de pedra que eu adoro, nem as conferências, nem os museus, mas a floresta viva que nela se agita, atormentada por paixões mais furiosas do que nenhuma tempestade. O gemido dos pinheiros de Argelouse, de noite, só emocionava pelo que dir-se-ia ter de humano."
Teresa tinha bebido um pouco e fumado de mais. Ria sozinha como uma bem-aventurada. Pintou a cara e os lábios com minúcia; depois dirigiu-se para a rua e caminhou ao acaso.

 

 

                                                                  François Mauriac

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades