Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
TERESA RAQUIN
No princípio da Rua Génégaud, para quem vem do cais, encontra-se a passagem da Ponte Nova, uma espécie de corredor estreito e sombrio, que vai da Rua Mazarino à Rua do Sena. Esta passagem tem 30 passos de comprimento por dois de largura, no máximo; é pavimentada com lajes amareladas, gastas, sem juntas e revelando uma umidade acre; a vidraça que a cobre, cortada em ângulo reto, está negra de imundície. Nos dias belos de verão, quando um sol pesado queima as ruas, uma claridade esbranquiçada cai das vidraças sujas e projeta-se miseravelmente na passagem. Nos dias feios de inverno, nas tardes de nevoeiro, as vidraças só projetam a noite nas lajes viscosas, a noite imunda e ignóbil.
À esquerda, abrem-se lojas obscuras, baixas, como que esmagadas, deixando escapar frios bafos de adegas. Existem ali alfarrabistas, comerciantes de brinquedos, cartonageiros, cujas mercadorias cinzentas de pó dormem vagamente na sombra; as vitrinas, feitas de pequenos quadrados, fazem ondular estranhamente as mercadorias com reflexos esverdeados; por detrás das prateleiras, as lojas tenebrosas são outros tantos buracos lúgubres nos quais se agitam formas bizarras.
À direita, a toda a extensão da passagem, estende-se um muro de que os lojistas fronteiros se serviam para montar estreitos armários; ali, objetos sem nome, mercadorias esquecidas 'há mais de 20 anos, estão expostas ao longo de estreitas prateleiras pintadas de um horrível castanho. Uma vendedora de jóias de fantasia estabeleceu-se com um dos armários onde vende anéis a 15 soldos, delicadamente dispostos em estojos de veludo azul, dentro de uma caixa de mogno.
Por cima da vidraça, o muro sobe, negro, toscamente rebocado, como que recoberto de lepra e todo sulcado de cicatrizes. A passagem da Ponte Nova não é um lugar de passeio. É atravessada para encurtar caminho, para poupar alguns minutos. Cruzam-na pessoas apressadas cuja única preocupação é a de caminhar rapidamente, de seguir em frente. Vêem-se aprendizes com o avental de serviço, operárias transportando o seu trabalho, homens e mulheres com embrulhos debaixo do braço; vêem-se também alguns velhos arrastando-se no crepúsculo melancólico que escorrega das janelas, e bandos de crianças que para ali vão, à saída da escola, fazendo ecoar ruidosamente os tamancos sobre as lajes. Durante todo o dia, ouve-se o ruído seco e insistente de passos sobre a pedra, com irritante irregularidade; ninguém fala, ninguém se detém; cada qual corre para as suas ocupações, de cabeça baixa, passo rápido, sem dirigir o olhar para as lojas. Os comerciantes olham com ar inquieto para os transeuntes que, por um milagre, se detenham junto das vitrinas.
À noite, a passagem é iluminada por três bicos de gás, dentro de pesados candeeiros quadrados. Dependurados acima do lajedo, sobre o qual lançam fugidias manchas de luz, criam à sua volta um pálido clarão que vacila e por instantes parece desaparecer. A passagem adquire o aspecto sinistro de autêntico refúgio de malfeitores; as sombras alongam-se pelas lajes e da rua desprendem-se baforadas úmidas; dir-se-ia uma galeria subterrânea vagamente iluminada por três candeeiros funerários. Para iluminar as suas vitrinas, os comerciantes contentam-se com os débeis raios de luz emitidos pelos bicos de gás; além disso, acendem na loja uma lâmpada munida de quebra-luz, que colocam a um canto do balcão, o que permite aos transeuntes distinguir o que existe no fundo daqueles buracos onde a noite habita durante o dia. No alinhamento escuro das fachadas, brilha a vitrina de um cartonageiro: duas lâmpadas de xisto furam a sombra com duas chamas amarelas. E, do outro lado, uma vela dentro de uma chaminé de vidro, arranca estrelas de luz da caixa de jóias de fantasia com as mãos escondidas sob o xale, a vendedora cochila no fundo da tenda.
Há alguns anos atrás, encontrava-se diante desta vendedora uma loja de cujo forro de madeira de um verde-garrafa escorria umidade por todas as fendas. A tabuleta, feita de uma tábua estreita e comprida, ostentava, em letras negras, a palavra Capelista, e num dos vidros da porta um nome de mulher, Teresa Raquin, em letras vermelhas, À direita e à esquerda, fundas vitrinas, revestidas de papel azul. Durante o dia, à luz difusa, não se distinguia nada para além da vitrina. De um lado, algumas peças de roupa branca: toucas de tule em canudos a dois e a três francos, mangas e golas de musselina; depois, peças de tricô, meias, coturnos, alças. Cada objeto, amarelecido e amarrotado, estava lamentavelmente pendurado num gancho de ferro. De alto a baixo, a vitrina estava assim abarrotada de farrapos esbranquiçados, que adquiriam um aspecto lúgubre na semiobscuridade. As toucas novas, um pouco mais brancas, formavam manchas cruas sobre o papel azul que guarnecia as prateleiras.
Presos a uma vara, os coturnos de cor punham uma nota sombria na presença turva e vaga dá musselina. Do outro lado, numa vitrina mais estreita, amontoavam-se grossos novelos de lã verde, botões pretos em cartões brancos, caixas de todas as cores e todas as dimensões, redes de pérolas de aço dispostas sobre rodelas de papel azulado, feixes de agulhas de tricotar, amostras de tapeçarias, rolos de fitas, um amontoado de objetos opacos e desbotados, que ali dormiam, sem dúvida, há cinco ou seis anos. Todas as cores se tinham uniformizado num cinzento sujo, naquele armário que o pó e a umidade apodreciam. Por volta do meio-dia, no verão, quando o sol aquecia as ruas e as casas com os seus raios fulvos, avistava-se, por detrás das toucas da outra vitrina, o perfil pálido e grave de uma jovem. Salientava-se vagamente da penumbra que reinava na loja; da testa baixa e seca descia o nariz comprido, estreito e afilado; os lábios eram dois traços delgados de um rosa-pálido, e o queixo, breve e nervoso, ligava-se ao pescoço por uma linha flexível e suave. Não se avistava o corpo, que se perdia na sombra; era apenas visível o perfil, de uma brancura mate, onde brilhavam dois olhos negros muito abertos e que pareciam esmagados sob os espessos cabelos negros.
Ali permanecia durante horas, imóvel e sossegada, entre duas toucas sobre as quais as varas úmidas deixaram manchas de ferrugem.
À noite, quando o candeeiro estava aceso, via-se o interior da loja. Era mais comprida do que funda; num dos extremos localizava-se um pequeno balcão; no outro uma escada em caracol comunicava com os compartimentos no primeiro andar. De encontro às paredes alinhavam-se as vitrinas, os armários, as filas de caixas verdes; quatro cadeiras e uma mesa completavam o mobiliário. A quadra parecia nua, glacial; as mercadorias, dentro das embalagens, comprimidas nos cantos, não tiravam partido do conjunto, por vezes alegre, das cores. Habitualmente, encontravam-se duas mulheres sentadas atrás do balcão: a jovem de perfil grave e uma velha senhora que dormia sorrindo. Esta última tinha cerca de 60 anos; o rosto cheio e plácido brilhava ao clarão do candeeiro. Enrolado a um canto do balcão, um gato gordo, de pêlo rajado, observava-a no seu sono.
Sentado numa cadeira, um homem de uns 30 anos lia ou conversava a meia voz com a jovem. Era baixo, de aspecto débil; com os cabelos louros desbotados, a barba escassa e o rosto coberto de sardas, parecia uma criança doente e mimada. Um pouco antes das 10 horas, a velha senhora acordava. Fechavam a loja e toda a família subia para se deitar. Ronronando, o gato seguia os donos, esfregando a cabeça em todas as grades da escada. O andar superior estava dividido em três compartimentos.
A escada terminava na sala de jantar, que servia simultaneamente de sala de estar. À esquerda, estava uma lareira de cerâmica colocada num nicho; diante da escada erguia-se o bufê, as cadeiras estavam encostadas às paredes e o centro da sala era ocupado por uma mesa redonda, completamente aberta. Ao fundo e por detrás de uma parede divisória envidraçada, ficava a cozinha enegrecida. Opostos à sala de jantar, situavam-se dois quartos.
A velha, depois de abraçar o filho e a nora, retirava-se para o seu quarto. O gato dormia sobre uma cadeira, na cozinha. O casal entrava no seu quarto: este tinha uma segunda porta, que dava para uma escada, que desembocava na passagem por meio de um corredor estreito e obscuro. O marido, constantemente a tremer de febre, metia-se na cama; enquanto isso, a jovem abria a janela para fechar as persianas. Demorava nisso alguns minutos, defronte do muro negro, de grosseiro reboco, que se estende para um e outro lado da galeria. Passeava pelo muro um olhar vago e, sem uma palavra, deitava-se, por sua vez, com desdenhosa indiferença.
A senhora Raquin tinha sido capelista em Vernon. Durante cerca de 25 anos vivera numa pequena loja daquela localidade. Alguns anos depois da morte do marido, foi tomada pelo abatimento e pelo enfado, e vendeu os seus bens. As economias acrescentadas ao valor da venda colocaram-lhe nas mãos um capital de 40.000 francos, que pôs a render e do qual obtinha 2.000 francos de juro. Esta renda dava-lhe para viver tranqüilamente. Levava uma vida de reclusa, ignorando as alegrias e as preocupações pungentes deste mundo; criara uma existência de paz e de tranqüila ventura. Mediante uma renda de 400 francos, alugara uma pequena casa cujo jardim descia até à margem do Sena.
Era uma residência murada e discreta, que lembrava vagamente um claustro; um caminho estreito dava acesso a este retiro, situado no meio de extensos prados; as janelas davam para o rio e para as vertentes desertas da outra margem. A boa senhora, que já passara a casa dos 50, envolveu-se nesta solidão e aqui experimentou uma serena alegria, entre o filho Camilo e a sobrinha Teresa.
Camilo tinha então 20 anos. A mãe rodeava-o dos mesmos mimos da meninice. Adorava-o por tê-lo disputado à morte durante uma longa juventude de sofrimentos. A criança tivera sucessivamente todas as febres, todas as doenças imagináveis. A senhora Raquin sustentou uma luta de 15 anos contra males terríveis, que se sucediam e se agravavam para lhe arrancar o filho. A todos venceu pela sua paciência, pelos seus cuidados, pela sua adoração.
Salvo da morte, Camilo cresceu, conservando os traços dos repetidos abalos que sofrera na carne. Afetado no desenvolvimento, não passou de uma estatura pequena e débil. Os membros franzinos tinham movimentos lentos e fatigados. A mãe amava-o ainda mais por causa desta fraqueza que o dominava. Olhava a insignificante e pálida figura com protetora ternura e lembrava-se sempre que lhe dera a vida mais de uma dezena de vezes. Durante os raros intervalos das doenças, o rapaz freqüentara uma escola comercial de Vernon.
Ali aprendera ortografia e aritmética. Os seus conhecimentos limitaram-se às quatro operações e umas noções muito superficiais da gramática. Mais tarde, teve lições de escrituração e de contabilidade. A senhora Raquin começou a tremer quando a aconselharam a mandar o filho para o colégio; sabia que ele morreria longe dela, dizia que os livros o matariam. Camilo não prosseguiu os estudos e a sua ignorância foi mais uma fraqueza a juntar às que já possuía. Aos 18 anos, ocioso, aborrecendo-se mortalmente no ambiente morno em que a mãe o rodeava, entrou como caixeiro a serviço de um comerciante de tecidos. Ganhava 60 francos por mês. O seu espírito inquieto tornava-lhe a ociosidade insuportável. Estava, no entanto, mais calmo neste trabalho fatigante, que o mantinha debruçado todo o dia sobre as faturas, sobre as somas intermináveis, das quais soletrava laboriosamente cada parcela. À noite, estafado, de cabeça vazia, desfrutava infinitas voluptuosidades no fundo do enfraquecimento que se apossava dele. Para entrar a serviço do comerciante de tecidos, teve de discutir com a mãe; esta queria-o sempre junto de si, entre dois cobertores, longe dos acidentes e da vida. O jovem bateu o pé; reclamou o trabalho como as crianças exigem os brinquedos, não por espírito do dever mas por instinto, por necessidade natural. A ternura e a dedicação da mãe tinham-lhe criado um egoísmo feroz; julgava gostar de quem o amava e acariciava; na realidade, porém, vivia à parte, no fundo de si mesmo, amando apenas o seu ego, procurando por todos os meios possíveis aumentar os seus prazeres. Quando a envolvente afeição da senhora Raquin o enjoava, lançava-se com delícia numa ocupação tola, que o salvava das tisanas e dos remédios.
Depois, à noite, no regresso do escritório, corria à beira do Sena com sua prima Teresa.
Teresa ia fazer 18 anos. Um dia, 16 anos atrás, quando a senhora Raquin ainda tinha a capelista, o irmão, o capitão Degans, trouxera-lhe nos braços uma criança. Acabava de chegar da Argélia.
— És tia desta criança — dissera-lhe ele com um sorriso. — A mãe morreu... Não sei o que fazer dela. Dou-te.
A senhora Raquin pegou na menina, sorriu-lhe e beijou-lhe as faces rosadas. Degans ficou oito dias em Vernon. A irmã poucas perguntas lhe fez acerca da criança que ele lhe confiava. Soube vagamente que a pequena nascera em Orã e que a mãe fora uma indígena de grande beleza. O capitão, uma hora antes de partir, entregou-lhe uma certidão de nascimento na qual perfilhava Teresa, que tinha o seu nome. Partiu e não mais foi visto; alguns anos mais tarde morreu na África.
Teresa cresceu, dormindo no mesmo leito de Camilo e sob os mornos carinhos da tia. Tinha uma saúde de ferro mas recebeu os mesmos cuidados de uma criança débil, partilhando os medicamentos que o primo tomava e vivendo no ambiente abafado do quarto do doente. Durante horas, ficava agachada diante do fogo, pensativa, olhando as chamas sem mexer as pálpebras.
Esta vida de convalescente forçada tornou-a introvertida; habituou-se a falar em voz baixa, a caminhar sem fazer ruído, a permanecer imóvel e muda numa cadeira, de olhos abertos sem expressão. E quando erguia um braço, quando avançava um pé, sentia-se nesses movimentos uma flexibilidade felina, músculos prontos e poderosos, toda uma energia e uma paixão que dormiam latentes na sua carne.
Um dia, o primo caiu, por falta de forças; ela ergueu-o e transportou-o com um gesto brusco, e esta demonstração de força fizera-lhe subir vivamente o sangue ao rosto. A vida de clausura que levava e o regime debilitante a que era submetida, não enfraqueceu o corpo magro mas robusto; o rosto adquiriu apenas um tom pálido, ligeiramente amarelado e que na sombra quase parecia feio. Por vezes, ia até à janela e contemplava as casas fronteiras sobre as quais o sol projetava manchas douradas. Quando a senhora Raquin vendeu os bens e se retirou para a pequena casa à beira do rio, Teresa vibrou secretamente de alegria.
Tantas vezes a tia lhe repetira "não faças barulho, fica quieta", que conservava cuidadosamente escondidos no íntimo todos os arrebatamentos da sua natureza. Possuía um sangue-frio insuperável, uma tranqüilidade aparente, que mascarava uma enorme exaltação. Julgava-se sempre no quarto do primo, junto de uma criança moribunda; tinha os movimentos suaves, a placidez e as palavras balbuciantes de uma velha. Quando ia ao jardim, assaltava-a o desejo selvagem de correr e de gritar, à vista do rio branco, dos vastos prados verdes que desapareciam no horizonte; sentia o coração latejar-lhe com força no peito: mas nem um só músculo do rosto mexia, limitando-se a sorrir quando a tia lhe perguntava se lhe agradava a nova casa.
A vida tornou-se então melhor para ela. Manteve o modo suave de andar, a fisionomia calma e indiferente, continuou a ser a criança que tinha crescido no leito de um doente; mas interiormente vivia uma existência ardente e arrebatada. Quando estava só, na relva, junto da água, estendia-se de bruços, como um animal, os olhos negros dilatados, o corpo prestes a saltar. E assim ficava durante horas, não pensando em nada, mordida pelo sol, feliz por enterrar os dedos na terra. Pela sua cabeça passavam sonhos loucos; olhava em desafio o rio que rumorejava, imaginando as águas a abaterem-se sobre si para a atacarem; retesava-se então, como que preparando-se para a defesa, e interrogava-se com raiva para saber como poderia vencer as ondas.
No serão, calma e silenciosa, Teresa cosia junto da tia; o seu rosto parecia dormir à luz amortecida, que escorria molemente do abajur. Camilo, enterrado numa poltrona, sonhava com as suas somas. Uma palavra murmurada de vez em quando perturbava por instantes a quietude do ambiente entorpecido.
A senhora Raquin olhava os jovens com serena bondade. Tinha resolvido casá-los. Sempre tratara do filho débil; tremia ao pensar que um dia morreria e o deixaria só e doente. Lembrava-se então de Teresa, dizendo de si para si que a jovem seria uma enfermeira para Camilo. com o seu ar tranqüilo, os seus mudos sacrifícios, a sobrinha inspirava-lhe confiança sem limites. Tinha-a criado, queria dá-la ao filho como um anjo da guarda. O casamento era acontecimento previsto, firmado.
Os jovens sabiam há muito que um dia casariam. Tinham crescido dentro deste pensamento, que se tornara para eles familiar e natural. Falava-se em família desta união como de uma coisa necessária, que fatalmente aconteceria. A senhora Raquin dissera: "Esperaremos que Teresa chegue aos 21 anos." E esperavam pacientemente, sem perturbação, sem rubor.
Camilo, cuja doença enfraquecera o sangue, ignorava os ávidos desejos da adolescência. Continuava a ser criança perante a prima, abraçando-a como abraçava a mãe, por hábito, sem nada perder da sua tranqüilidade egoísta. Via nela a camarada condescendente, que se abstinha de o aborrecer e que, por vezes, lhe preparava a tisana. Quando brincava com ela e a tinha entre os braços, era como se fosse um rapaz; nem um frêmito lhe perpassava pela carne. Jamais, nesses momentos, lhe ocorreu o pensamento de beijar os lábios quentes de Teresa, que se debatia rindo nervosamente.
Igualmente a jovem parecia ficar fria e indiferente. Fixava por vezes os grandes olhos em Camilo, olhando-o durante longos minutos com soberana calma. Somente os lábios revelavam nessas ocasiões pequenos movimentos imperceptíveis. Nada se conseguia ler naquele rosto fechado, permanentemente doce e solícito por uma vontade implacável. Quando se falava do casamento, Teresa escutava com gravidade, limitando-se a aprovar com a cabeça tudo o que dizia a senhora Raquin. Camilo adormecia.
No verão, os dois jovens escapavam no fim da tarde para a margem do rio. Camilo irritava-se com os incessantes cuidados da mãe; sentia revolta e tinha vontade de correr, de cair doente, de escapar às meiguices que lhe provocavam náuseas. Arrastava então Teresa, provocava-a para lutar, para se rebolar na erva. Um dia, empurrou a prima e fê-la cair; a jovem ergueu-se instantaneamente num ímpeto selvagem e, de rosto ardente e olhos injetados, precipitou-se sobre ele de braços erguidos. Camilo escorregou para o chão. Sentiu medo.
Correram os meses e os anos.
O dia fixado para o casamento chegou. A senhora Raquin chamou Teresa de parte, falou-lhe do pai e da mãe, contou-lhe a história do seu nascimento. A jovem ouviu a tia e no fim abraçou-a sem dizer palavra. À noite, Teresa, em vez de entrar no seu quarto, que ficava à esquerda da escada, entrou no do primo, que se situava à direita. Nisso consistiu a alteração que se deu na sua vida nesse dia. No dia seguinte, quando os jovens esposos desceram, Camilo conservava o abatimento doentio, a santa tranqüilidade de egoísta, e Teresa mantinha a doce indiferença, a fisionomia contida, de assustadora calma.
Decorridos oito dias após o seu casamento, Camilo manifestou claramente à mãe a intenção de deixar Vernon e ir viver em Paris. A senhora Raquin ficou espantada: tinha disposto da existência do filho e não queria alterar um único ponto. O filho teve uma crise de nervos e ameaçou cair doente se ela não cedesse ao seu capricho.
— Jamais te contrariei os desejos — disse-lhe.
— Desposei a minha prima, tomei todas as drogas que me deste. É o menos que pode suceder, hoje que tenho uma vontade, que sejas da minha opinião... Partiremos no fim do mês.
A senhora Raquin não dormiu nessa noite. A decisão de Camilo alterava-lhe por completo a vida e ela procurava, desesperadamente, por em ordem a sua existência. Aos poucos, recuperou a calma. Considerou que o jovem casal podia ter filhos e que a pequena fortuna já não seria suficiente. Era necessário ganhar dinheiro, voltar ao comércio, encontrar uma ocupação lucrativa para Teresa. No dia seguinte, já se encontrava habituada à idéia da partida e construíra o plano para uma vida nova. No almoço mostrou-se alegre.
— Eis o que vamos fazer — disse para os filhos. — Irei a Paris amanhã; procurarei um pequeno estabelecimento de capelista e voltaremos, Teresa e eu, a vender agulhas e linhas. Com isso nos ocuparemos. Tu, Camilo, farás o que quiseres; passearás ao sol ou procurarás emprego.
— Procurarei emprego — respondeu o jovem. A verdade é que Camilo se sentia possuído por uma súbita ambição. Queria empregar-se num grande escritório; sentia-se com ar de prazer ao ver-se em pensamento no meio de um vasto escritório, com as mangas de alpaca, a pena atrás da orelha.
Teresa não foi consultada; mostrara sempre tamanha obediência que a tia e o marido acharam nem valer a pena perguntar-lhe a opinião. Ela ia para onde eles fossem, fazia o que eles fizessem, sem uma queixa, sem uma censura, sem mesmo parecer saber que mudava de lugar. A senhora Raquin foi a Paris e dirigiu-se imediatamente para a passagem da Ponte Nova.
Uma velha senhora de Vernon tinha-lhe indicado uma parente que ali possuía uma loja que queria vender. A antiga capelista verificou que a loja era um pouco pequena e algo escura; mas ao atravessar Paris tinha-se assustado com o ruído nas ruas, com o luxo das vitrinas, e aquela estreita galeria de vitrinas modestas fez lembrar-lhe a antiga loja, tão sossegada. Julgou-se ainda na província, respirou fundo, pensou que os filhos queridos seriam felizes naquele canto ignorado. O preço modesto fê-la decidir-se; era dela por 2.000 francos. O aluguel da loja e do primeiro andar ficava por 1.200 francos. Como as suas economias chegavam aos 4.000 francos, a senhora Raquin calculou que poderia pagar a loja e o primeiro ano de renda sem tocar na sua fortuna. O ordenado de Camilo e os lucros do comércio seriam suficientes, segundo pensava, para as necessidades do dia a dia; assim, não tocaria nos rendimentos que acresceriam ao capital para dotar os filhos.
Regressou, radiante, a Vernon, dizendo que encontrara uma pérola, um local delicioso em plena Paris. Pouco a pouco, decorridos alguns dias de conversas ao serão, a loja úmida e obscura da passagem transformara-se em palácio; via-a cômoda, espaçosa, sossegada, dotada de mil vantagens incalculáveis.
— Ah! minha boa Teresa — dizia — verás como seremos felizes naquele cantinho! Tem três belos quartos em cima... A passagem é cheia de gente... Faremos umas vitrinas atraentes... Verás que não nos aborreceremos.
Não se cansava de falar a respeito da loja. Revelavam-se de novo os instintos de comerciante; adiantava conselhos à Teresa sobre a venda, sobre as compras e sobre as manhas do pequeno negócio. A família deixou finalmente a casa à beira do Sena; nessa mesma noite instalou-se na passagem da Ponte Nova.
Quando Teresa entrou na loja onde passaria a viver dali em diante, teve a sensação de enterrar-se no fundo viscoso de uma fossa. Sentiu um aperto de repugnância na garganta e arrepios de pavor. Percorreu com os olhos a galeria suja e úmida, esteve no armazém, subiu ao primeiro andar, entrou em todas as divisões. Aqueles compartimentos nus, sem mobiliário, arrepiavam pela solidão e pelo mau estado em que se encontravam. A jovem não esboçou um gesto, não pronunciou uma palavra. Sentia-se gelada. A tia e o marido desceram e ela sentou-se num baú, as mãos hirtas, os soluços atravessados na garganta, sem conseguir chorar.
Perante a realidade, a senhora Raquin estava embaraçada, envergonhada dos sonhos que alimentara. Procurou, no entanto, defender a aquisição que fizera, descobrindo remédio a cada novo inconveniente que surgia, explicando que a obscuridade era causada pelo tempo encoberto e concluindo com a afirmação que uma vassourada bastaria para pôr tudo em ordem.
— Bah! — respondia Camilo — tudo isso é muito conveniente... Aliás, só estaremos aqui à noite. Eu não chegarei antes das cinco ou seis horas... Estarão as duas juntas e não se aborrecerão.
Jamais o jovem teria consentido em viver em semelhante pocilga se não estivesse a contar com o doce aconchego do escritório.
Dizia de si para si que estaria aquecido durante o dia e que, à noite, se deitaria cedo.
Durante uma longa semana, a loja e a habitação permaneceram em desordem. Desde o primeiro dia, Teresa sentou-se atrás do balcão e não arredava dali. A senhora Raquin admirou-se com aquela atitude de desalento; julgara que a jovem se empenharia em embelezar a casa, colocar flores nas janelas, pedir papel para forrar as paredes, pôr cortinas e tapetes. Quando sugeria um arranjo qualquer, ouvia a resposta tranqüila da sobrinha:
— Para quê? Estamos muito bem assim, não temos necessidade de luxo.
Foi a senhora Raquin quem teve de arranjar os quartos e de pôr um pouco de ordem na loja. Teresa acabou por se impacientar por vê-la incessantemente a passar diante dos seus olhos de um lado para outro; contratou uma mulher para a limpeza e forçou a tia a sentar-se junto de si. Camilo ficou um mês sem conseguir encontrar emprego. Permanecia o menos tempo possível na loja, vagueando durante todo o dia.
O tédio invadiu-o a tal ponto que falou de voltar para Vernon. Finalmente, entrou para o escritório da estrada de ferro de Orleans. Ganhava 100 francos por mês; o seu sonho tinha-se realizado.
Saía de casa às oito horas. Descia a Rua Génégaud e chegava ao cais. Dali, em passos lentos, as mãos nas algibeiras, seguia o Sena, do Instituto ao Jardim das Plantas. O longo percurso, que fazia duas vezes por dia, jamais o aborrecia. Acompanhava o curso das águas, detinha-se para ver passar os barcos que desciam o rio.
Não pensava em nada. Muitas vezes ficava parado diante de Notre-Dame, contemplando os andaimes que rodeavam a igreja, então em reparação; sem saber por quê, as grossas vigas divertiam-no. Prosseguindo o seu caminho, dava uma olhadela no Porto dos Vinhos e contava os fiacres que chegavam da gare. À noite, embrutecido, recordando qualquer história tola ouvida no escritório, atravessava o Jardim das Plantas e ia ver os ursos, se acaso não tinha pressa.
Ali ficava uma meia hora, inclinado para o fosso, seguindo as evoluções dos animais. Gostava de ver o andar pesado e bamboleante das feras; observava-as, de lábios abertos, olhos escancarados, com um gozo de imbecil perante os seus movimentos. Decidia-se então a regressar, arrastando os pés e passeando os olhares pelos transeuntes, pelas viaturas e pelas vitrinas dos armazéns.
Logo que chegava, tomava a sua refeição e em seguida dedicava-se à leitura. Comprara as obras de Buffon e propusera-se a ler a cada serão 20 ou 30 páginas, não obstante o tédio que tal leitura lhe causava. Lia ainda, em fascículos de 10 cêntimos, a História do Consulado e do Império, de Thiers, e a História dos Girondinos, de Lamartine, e também obras de divulgação científica. Acreditava trabalhar para a sua educação. Por vezes, forçava a mulher a ouvir a leitura de algumas páginas, de certas anedotas. Espantava-se de que Teresa se mantivesse pensativa e silenciosa durante todo um serão, sem sentir a tentação de pegar num livro. Pensava, no fundo, que a mulher tinha uma pobre inteligência.
Teresa repelia os livros com impaciência. Preferia ficar inativa, de olhos fixos e o pensamento flutuante e perdido no espaço.
Mantinha, por outro lado, uma disposição uniforme e dócil; toda a sua vontade se aplicava a transformar o seu ser num instrumento passivo, de suprema condescendência e abnegação.
O negócio caminhava sem sobressaltos. Todos os meses, os lucros eram idênticos. A clientela era composta por operários que viviam no bairro. De cinco em cinco minutos entrava uma jovem e comprava alguns sous de mercadoria. Teresa atendia sempre com as mesmas palavras, com um sorriso que lhe animava mecanicamente os lábios. A senhora Raquin mostrava-se mais servil, mais expansiva e, a bem dizer, era ela quem atraía e conservava a clientela.
Durante três anos, os dias correram quase iguais. Camilo não faltou uma única vez ao emprego; a mãe e a mulher mal saíram da loja. Vivendo na úmida sombra, num silêncio morno e esmagador, Teresa via a vida estender-se à sua frente, nua, trazendo-lhe cada noite o mesmo leito frio, e cada manhã o mesmo dia vazio.
Uma vez por semana, na quinta-feira, a família Raquin recebia. No serão, acendia-se um candeeiro grande na sala de jantar e punha-se no fogo o bule para fazer chá. Era um acontecimento importante. Esse serão sobrepunha-se a todos os outros; entrara nos hábitos da família como se se tratasse de uma orgia burguesa de alegria louca. Deitavam-se às 11 horas.
A senhora Raquin encontrara em Paris um dos seus velhos amigos, o comissário de polícia Michaud, que exercera o seu cargo em Vernon durante 20 anos e que habitara a mesma casa em que vivera a capelista. Estabelecera-se assim estreita amizade entre eles; depois, quando a viúva vendera os bens para morar na casa à beira do rio, os contatos, pouco a pouco, rarearam. Michaud abandonara a província alguns meses mais tarde para passar a viver calmamente em Paris, na Rua do Sena, dos 1.500 francos da sua reforma. Num dia de chuva, encontrara a velha amiga na passagem da Ponte Nova; nessa mesma noite jantava na casa dos Raquin.
Desta forma se iniciaram as recepções das quintas-feiras. O antigo comissário da polícia adquiriu o hábito de aparecer pontualmente uma vez por semana. Acabou por trazer o filho Olivier, um moço de 30 anos, alto, seco, e magro, que casara com uma mulher pequena, parada e doente. Olivier tinha na prefeitura da polícia um emprego de 3.000 francos, pelo qual Camilo se mostrara particularmente invejoso: era o funcionário principal no departamento da polícia da ordem e da segurança.
Desde o primeiro dia, Teresa detestou o rapaz hirto e frio que dava ares de honrar a loja ao passear nela a magreza do seu grande corpo e a fraqueza da pobre mulher.
Camilo, por sua vez, apresentou um outro convidado, um velho empregado da estrada de ferro de Orleans, Grivet. Grivet tinha 20 anos de serviço; era primeiro amanuense e ganhava 2.100 francos. Era ele quem distribuía o trabalho pelos empregados no escritório de Camilo e este testemunhava-lhe um certo respeito. Pensava que, um dia que Grivet morresse, o substituiria, ao fim de 10 anos.
Grivet ficou encantado com o acolhimento da senhora Raquin e passou a ir todas as semanas com perfeita regularidade. Ao cabo de seis meses, a visita da quinta-feira era para ele um dever: dirigia-se para a passagem da Ponte Nova da mesma forma como todas as manhãs ia para o escritório, mecanicamente, instintivamente.
Desde logo as reuniões tornaram-se agradáveis. Às sete horas a senhora Raquin acendia o fogo, colocava o candeeiro no centro da mesa, perto um jogo de dominó, e limpava as peças do serviço de chá do bufê. Às oito horas precisas, os velhos Michaud e Grivet encontravam-se diante da loja, vindos um da Rua do Sena e outro da Rua Mazarino. Entravam, toda a família subia ao primeiro andar e sentavam-se em volta da mesa, aguardando Olivier Michaud e a mulher, que chegavam sempre atrasados.
Quando o grupo estava completo, a senhora Raquin servia o chá, Camilo esvaziava a caixa do dominó sobre o tampo encerado, e cada um mergulhava no seu jogo. Nada mais se ouvia além do entrechocar das pedras. Após cada partida, os jogadores questionavam durante dois ou três minutos e voltava o silêncio, morno, salpicado dos ruídos secos.
Teresa jogava com uma indiferença que irritava Camilo. com uma das mãos acariciava François, o gato que a senhora Raquin trouxera de Vernon e que se aninhava no seu colo, enquanto com a outra colocava as pedras do dominó.
Os serões de quinta-feira eram para ela um suplício. Não raro queixava-se de indisposição, de uma forte enxaqueca, para não jogar e ficar de lado, semi-adormecida.
Com um cotovelo sobre a mesa e a face apoiada na palma da mão, ficava olhando os convidados da mãe e do marido através da espécie de nevoeiro amarelado que se desprendia do candeeiro. Todos aqueles rostos a exasperavam. Os olhos saltavam-lhe de um para outro com profunda repulsa, com surda irritação. O velho Michaud estendia uma face pálida, marcada de pontos avermelhados, um desses rostos de velho caído na infância; Grivet tinha o rosto estreito, os olhos redondos e os lábios delgados de um cretino; Olivier, cujos ossos pareciam furar a pele, ostentava gravemente sobre um corpo ridículo uma cabeça hirta e insignificante. Quanto a Susana, a mulher de Olivier, era pálida, de olhos vagos, lábios esbranquiçados e expressão frouxa. Teresa não encontrava um homem, um ser vivo entre as criaturas grotescas e sinistras daquele círculo. Era, por vezes, presa de alucinações, julgando-se fechada no fundo de uma caverna na companhia de cadáveres mecânicos, que meneavam a cabeça e agitavam os braços e as pernas quando se lhes puxava os cordéis. O ambiente denso da sala de jantar era insuportável; o silêncio arrepiante e o clarão amarelado do candeeiro incutiam-lhe um pavor vago, uma inexprimível angústia.
Na porta do armazém tinha sido colocada uma campainha, cujo tilintar agudo anunciava a entrada dos clientes. Teresa ficava de ouvido à escuta; quando a campainha tocava, descia rapidamente, num alívio, feliz por abandonar a sala de jantar. Atendia o cliente vagarosamente. Ao ficar só, sentava-se por detrás do balcão, retardando-se o mais possível, receando subir e sentindo verdadeira satisfação por não ter nem Grivet nem Olivier diante dos olhos. O ar úmido da loja acalmava a febre que lhe queimava as mãos, e Teresa recaía na espécie de sonho que lhe era habitual.
Não podia, porém, permanecer muito tempo assim. Camilo irritava-se com a sua ausência, não compreendia como se podia preferir a loja à sala de jantar nas noites de quinta-feira. Debruçado sobre a escada, procurava a mulher com o olhar:
— Então! — dizia — que fazes tu aí? Por que não sobes?... Grivet está com uma sorte dos diabos. Acaba de ganhar outra vez.
A jovem levantava-se a custo e retomava o seu lugar diante do velho Michaud, cujos lábios pendentes desenhavam sorrisos repugnantes. E até às 11 horas ficava abatida na sua cadeira, fitando François, aninhado no colo para não ver as bonecas de cartão que faziam caretas à sua volta.
Numa quinta-feira, ao voltar do escritório, Camilo ia acompanhado de um rapaz de ombros largos, que fez entrar na loja com um gesto familiar.
— Mãe, lembras-te deste senhor?
A senhora Raquin olhou para o rapaz, rebuscou nas suas recordações mas nada encontrou. Teresa seguia a cena com ar plácido.
— Como! — exclamou Camilo — não reconheces Laurent, o pequeno Laurent, o filho do tio Laurent, que possui belas searas para os lados de Jeufossê?... Não te lembras?... Eu ia à escola com ele; se encontrava comigo de manhã, saindo da casa do tio, que era nosso vizinho, e tu davas-lhe fatias de pão com compota.
A senhora Raquin recordou-se bruscamente do pequeno Laurent, que achou extraordinariamente desenvolvido. Havia bem 20 anos que não o via e, querendo fazer esquecer o acolhimento frio, fez desabar uma onda de recordações e de mimos maternais. Laurent sentou-se, sorriu tranqüilamente e lançou à sua volta olhares calmos e desembaraçados.
— Calculem que este farsante está empregado na estação da estrada de ferro de Orleans há mais de ano e meio, e que só hoje nos encontramos. É tão grande e tão importante essa repartição! — prosseguiu Camilo.
Ao mesmo tempo que fazia este comentário, abria os olhos e mordia os lábios, orgulhoso por ser insignificante peça de enorme maquinismo. Sacudiu a cabeça e acrescentou:
— Oh! Mas ele porta-se bem, estudou, já ganha 1.500 francos... O pai mandou-o para o colégio; estudou direito e aprendeu pintura. Não é assim, Laurent?... Tu jantas conosco.
— Com muito gosto — respondeu, sem cerimônia, Laurent.
Tirou o chapéu e instalou-se na loja. A senhora Raquin foi para a cozinha. Teresa, que não dissera ainda uma palavra, observava o recém-chegado. Nunca vira um homem.
A compleição robusta e o rosto fresco de Laurent causavam-lhe admiração. Contemplava com uma espécie de espanto a testa baixa, onde nascia uma indomável cabeleira negra, as faces cheias, os lábios vermelhos e o rosto de traços regulares de beleza sangüínea. Deteve por instantes o olhar no pescoço: era largo e curto, espesso e poderoso. Em seguida, deteve-se longamente nas mãos, que Laurent tinha estendidas sobre os joelhos. Os dedos eram nodosos; fechados, deviam formar um punho enorme, capaz de abater um boi. Laurent era um autêntico filho de camponês, de perfil algo pesado, de costas arqueadas, de movimentos lentos e precisos, de ar tranqüilo e obstinado. Sob a roupa adivinhavam-se-lhe os músculos desenvolvidos num corpo espesso e rijo. Teresa examinava-o com curiosidade, percorrendo-o com os olhos dos punhos ao rosto, sentindo ligeiros arrepios quando se detinha no pescoço taurino.
Camilo mostrou os seus volumes de Buffon, os fascículos de 10 cêntimos, para mostrar ao amigo que também ele trabalhava.
Depois, como que respondendo à pergunta que fazia a si próprio há alguns instantes:
— Mas tu deves conhecer a minha mulher... Não te lembras daquela priminha que brincava conosco em Vernon?
— Reconheci-a perfeitamente — respondeu Laurent, olhando Teresa de frente.
Sob o olhar direto que a parecia penetrar, a jovem sentiu uma espécie de mal-estar. Ensaiou um sorriso forçado e trocou algumas palavras com Laurent e com o marido, não tardando a ir ter com a tia. Sofria.
Sentaram-se à mesa. A partir da sopa, Camilo não mais deixou de se ocupar do amigo.
— Como vai o teu pai?
— Não sei — respondeu Laurent — estamos zangados; há mais de cinco anos que não nos escrevemos.
— Bah! — exclamou Camilo, exprimindo desta forma o seu espanto.
— Sim, o cavalheiro tem idéias próprias... Como está permanentemente em litígio com os vizinhos, meteu-me no colégio, sonhando ter mais tarde em mim o advogado que lhe ganharia todas as causas... Oh! O tio Laurent só tem ambições úteis; mesmo das loucuras quer tirar partido.
— E não quiseste ser advogado? — interrogou Camilo, cada vez mais admirado.
— Palavra que não — respondeu o amigo, sorrindo. — Durante dois anos fingi que seguia o curso para receber a pensão de 1.200 francos que meu pai me mandava. Vivia com um dos meus camaradas de colégio, que é pintor, e comecei também a dedicar-me à pintura. Divertia-me; é uma profissão extravagante e que não fatiga. Passávamos o dia a fumar e a gracejar...
A família Raquin escancarou os olhos.
— Infelizmente, aquela vida não podia continuar. O pai soube que lhe mentia, cortou-me os 100 francos da mesada e disse-me para ir cavar a terra com ele. Tentei então pintar quadros religiosos; mau comércio...
Como não tive dúvidas que ia morrer de fome, mandei a arte ao diabo e procurei um emprego... O pai acabará morrendo; espero que isso aconteça para viver sem fazer nada.
Laurent falava com voz calma. Acabava de contar em poucas palavras uma história que caracteristicamente o descrevia por completo. Era. no fundo, um preguiçoso, de apetites sangüíneos, de desejos determinados, de prazeres fáceis e constantes. Aquele corpo possante só pedia que nada fizesse, que se espojasse em permanente e ociosa saciedade. Queria apenas comer bem, dormir melhor, satisfazer fartamente os apetites sem mudar de lugar, sem arriscar o mínimo esforço.
A profissão de advogado tinha-o assustado e estremecia à idéia de trabalhar no campo. Dedicara-se à arte, esperando encontrar aí um ofício de preguiçoso. O pincel afigurava-se-lhe instrumento leve; além disso, acreditava no êxito fácil. Sonhava com uma vida de voluptuosidades baratas, uma bela vida recheada de mulheres, de repouso sobre divãs, de festins e farras. O sonho durou enquanto Laurent pai enviou dinheiro. Depois, o jovem, que tinha já 30 anos, viu a miséria no horizonte e começou a refletir. Sentiu-se sem coragem perante as privações, não queria aceitar um dia sem comer por amor à arte. Tal como disse, mandou ao diabo a pintura no dia em que compreendeu que ela jamais lhe satisfaria os desmedidos apetites.
Os primeiros trabalhos não tinham atingido sequer a mediocridade; o seu olhar de camponês tinha uma perspectiva estreita e desajeitada da natureza. As suas telas empastadas, mal concebidas, ridículas, desencorajavam toda a crítica. Além disso, não demonstrava a mínima ponta de vaidade como artista nem manifestou excessivo desgosto quando foi necessário abandonar os pincéis. Do que realmente teve pena foi do ateliê do camarada de colégio, aquele vasto ateliê no qual se refestelou voluptuosamente durante quatro ou cinco anos. Lamentou ainda as mulheres que posavam e cujos caprichos estavam ao alcance da sua bolsa. Este mundo de prazeres deixara-lhe vivas necessidades carnais. Estava, pois, à vontade na sua profissão de empregado; vivia uma existência primária, gostava de não pensar no amanhã, o que o fatigava e lhe embotava o espírito. Apenas duas coisas o irritavam: a falta de mulheres e as refeições dos restaurantes a 18 sous, que não satisfaziam as vorazes necessidades do seu estômago.
Camilo escutava-o com um espanto de néscio. O rapaz débil, cujo corpo sem energia jamais tivera um frêmito de desejo, sonhava puerilmente com a vida de ateliê de que o amigo falava. Imaginava aquelas mulheres mostrando a pele nua. E interrogava Laurent:
— Mas houve então mulheres que tiraram a roupa diante de ti?
— Claro que sim — respondia Laurent, sorrindo, ao mesmo tempo que olhava para Teresa, que entretanto empalidecera.
— Isso devia fazer um efeito singular em vocês — volvia Camilo, com uma risada infantil.
— Eu ficaria embaraçado... A primeira vez deves ter ficado estúpido.
Laurent olhava fixamente para a palma da grossa mão. Os dedos tremiam-lhe ligeiramente e o rosto enrubesceu:
— A primeira vez — disse, como se falasse apenas para si próprio — creio que achei natural... É bastante divertido, o diabo da arte, mas simplesmente não dá um sou... Tive por modelo uma ruiva adorável: carnes rijas, peito soberbo, as ancas de uma largura...
Erguendo a cabeça, Laurent viu Teresa diante de si, muda e imóvel. A jovem olhava-o com ardente fixidez. Os olhos, de um negro aveludado, pareciam dois poços sem fundo, e através dos lábios entreabertos viam-se reflexos rosados. Parecia esmagada pelo que ouvia.
Os olhares de Laurent foram de Teresa para Camilo. O ex-pintor reteve um sorriso. A frase terminou-a com um gesto, largo e voluptuoso, que a jovem acompanhou com os olhos. Era no fim da refeição e a senhora Raquin descera à loja para atender uma cliente.
Depois de retirada a toalha, Laurent, que durante alguns minutos permanecera pensativo, dirigiu-se bruscamente a Camilo:
— Sabes? preciso fazer o teu retrato.
A idéia encantou a senhora Raquin e o filho. Teresa não saiu do seu mutismo.
— Estamos no verão — continuou Laurent — e como saímos do escritório às quatro horas, poderia vir aqui e pintar durante duas horas. Era uma questão de oito dias.
— É isso — respondeu Camilo, rubro de satisfação — jantas conosco; eu friso o cabelo e visto a sobrecasaca preta.
Soaram as oito horas. Grivet e Michaud entraram. Olivier e Susana chegaram a seguir.
Camilo apresentou o amigo ao grupo. Grivet comprimiu os lábios. Detestava Laurent, cujo ordenado tinha subido demasiado depressa, na sua opinião. Aliás, era toda uma questão de apresentação de um novo convidado: o círculo dos Raquin não podia receber um desconhecido sem uma certa frieza.
Laurent comportou-se bem. Compreendeu a situação, quis agradar, fazer-se aceitar rapidamente. Contou histórias, animou o serão com as suas gargalhadas e conquistou a amizade do próprio Grivet.
Nessa noite, Teresa não procurou pretexto para descer à loja. Até às 11 horas não se levantou da cadeira, jogou, conversou, evitando os olhares de Laurent, que, aliás, não procuravam os seus. A natureza sangüínea daquele homem, a voz cheia, as risadas pastosas e o odor acre que se desprendia dele, perturbavam a jovem, provocando-lhe uma angústia nervosa.
A partir daí, Laurent passou a aparecer quase todas as noites na casa dos Raquin. Morava na Rua de Saint-Victor, em frente do Porto dos Vinhos, num pequeno apartamento mobiliado, pelo qual pagava 18 francos por mês. Era uma mansarda, com uma clarabóia, que se estreitava para o céu e que não tinha mais de seis metros quadrados. Laurent passava o mínimo tempo possível no seu sótão.
Antes de encontrar Camilo, como não tinha dinheiro para se arrastar pelos bancos dos cafés, demorava-se no pequeno restaurante onde habitualmente jantava, fumando cachimbo e bebericando o seu café com aguardente, que lhe custava três sous.
Subia depois a Rua de Saint-Victor, demorando-se ao longo do cais, detendo-se algumas vezes nos bancos quando o tempo a isso convidava.
A loja da passagem da Ponte Nova tornou-se para ele um lugar agradável, tranqüilo, cheio de palavras e de atenções amistosas.
Poupava os três sous do seu café com aguardente e bebia avidamente o excelente chá da senhora Raquin. Ficava até às 10 horas, fazendo indolentemente a digestão, como se estivesse em sua casa. Não partia antes de ajudar Camilo a fechar a loja.
Um dia, levou o cavalete e a paleta. Começaria no dia seguinte o retrato de Camilo. comprou-se a tela e fizeram-se minuciosos preparativos. Finalmente, o artista começou a sua obra no próprio quarto do casal; dispunha ali, segundo dizia, de mais luz.
Ocupou três serões desenhando a cabeça. Passava cuidadosamente o carvão sobre a tela, em traços curtos, sem vigor; o desenho, rígido e seco, era grotescamente primitivo. Reproduziu a face de Camilo como um aluno principiante, com a mão hesitante e uma exatidão desastrada, que emprestava à figura um ar contraído. Na quarta sessão, dispôs sobre a paleta pequenas quantidades de cores e começou a pintar com a ponta dos pincéis. Pontilhando a tela de pequenas manchas grosseiras, fazia depois sombreados curtos e cerrados, como se desenhasse a lápis. No fim de cada sessão, a senhora Raquin e Camilo ficavam extasiados.
Laurent ia dizendo que era necessário esperar, que a semelhança se veria depois.
Desde o dia em que o retrato foi começado, Teresa não deixou o quarto transformado em ateliê. Deixou a tia só atrás do balcão; ao mínimo pretexto subia, passando horas esquecidas vendo Laurent pintar.
Sempre grave, oprimida, mais pálida e mais muda, seguia atentamente o trabalho dos pincéis. Contudo, a cena não parecia diverti-la muito; ia para lá como que impelida por ignorada força e ali ficava como que pregada. Por vezes, Laurent voltava-se para ela, sorria-lhe e perguntava-lhe se gostava do retrato. Ela respondia com dificuldade, estremecendo, para, em seguida, retomar a atitude estática. Ao regressar, à noite, à Rua de Saint-Victor, Laurent discutia consigo próprio longamente se devia ou não tornar-se amante de Teresa.
— Aqui está uma mulher que será minha amante quando eu quiser. Está sempre ali, a meu lado, olhando para mim, medindo-me, pesando-me... Treme, tem uma figura esquisita, muda e apaixonada. É certo que tem necessidade de um amante; isso vê-se-lhe nos olhos... É preciso dizer que Camilo é um pobre diabo.
Laurent ria interiormente, ao lembrar-se da magreza pálida do amigo.
— Ela aborrece-se naquela loja — prosseguia
— mas eu vou lá porque não sei para onde ir.
Se não fosse isso, não me apanhavam muitas vezes na passagem da Ponte Nova. É úmida, triste. Uma mulher deve morrer naquele lugar... Agrado-lhe, estou certo disso; por que não eu, então, em vez de qualquer outro?
Detinha-se, com ar enfatuado, olhando absortamente para as águas do Sena.
— Ora, tanto pior — exclamava — abraço-a na primeira ocasião... Aposto que me cai nos braços a seguir.
Recomeçando a caminhar, assaltavam-no as indecisões:
— Apesar de tudo, é feia. Tem o nariz comprido e a boca grande. Não a amo, além disso. vou, talvez, atirar-me a uma história desagradável e isso precisa ser bem pensado.
Prudente como era, Laurent revolveu estes pensamentos durante uma longa semana. Avaliou todos os incidentes possíveis de uma ligação com Teresa e somente se decidiu a tentar a aventura quando se convenceu da existência de um verdadeiro interesse em o fazer.
É certo que, para ele, Teresa não era bonita e que não a amava; mas, por outro lado, ela nada lhe custaria. As mulheres que comprava por pouco dinheiro não eram, certamente, nem mais belas nem tampouco as amava também. Eram razões de ordem econômica que o aconselhavam a apossar-se da mulher do amigo. Além disso, havia muito tempo que não satisfazia os seus apetites; sendo o dinheiro escasso, refreava a carne e não queria deixar escapar de maneira nenhuma a ocasião de a saciar. Enfim, refletindo bem, semelhante ligação não poderia dar mau resultado: Teresa tinha interesse em dissimular tudo e abandoná-la-ia facilmente quando quisesse; admitindo mesmo que Camilo descobria e reagia despeitadamente, abatê-lo-ia a soco.
De qualquer ângulo, a questão apresentava-se a Laurent fácil e tentadora.
Passava assim o tempo calmamente, aguardando o momento propício. Estava decidido a agir com decisão na primeira oportunidade.
Via à sua frente serões bem agradáveis.
Todos os Raquin concorreriam para o seu prazer: Teresa apaziguaria os ardores do seu sangue; da senhora Raquin receberia os afagos de uma mãe, e Camilo, conversando com ele, evitar-lhe-ia que se aborrecesse demasiado na loja. O retrato estava chegando ao fim e não tinham surgido ocasiões. Teresa estava sempre ali, abatida e ansiosa, mas Camilo não saía do quarto um único instante e Laurent sentia-se impotente para afastá-lo nem que fosse por uma hora. Tornava-se evidente que teria de anunciar a conclusão do retrato para o dia seguinte. A senhora Raquin declarou que jantariam todos e festejariam a obra do pintor. No dia seguinte, depois de Laurent ter dado a última pincelada, toda a família se reuniu para gabar a semelhança. O retrato era ignóbil, de um cinzento sujo com largas manchas violáceas.
Laurent não sabia utilizar as cores mais claras sem as tornar opacas e pastosas. Tinha, além disso, exagerado os traços pálidos do modelo e o rosto de Camilo lembrava a face esverdeada de um afogado; o desenho tosco tornava convulsivos os traços, acentuando mais a sinistra semelhança. Mas Camilo estava encantado; dizia que a tela tinha um ar distinto. Depois de bem admirar a sua figura, anunciou que ia buscar duas garrafas de champanha. A senhora Raquin voltou para a loja. O artista ficou a sós com Teresa. A jovem mantivera-se dobrada sobre si própria, olhando vagamente para a frente. Parecia esperar, palpitante. Laurent hesitou; examinava a tela, brincando distraidamente com os pincéis. O tempo passava, Camilo podia chegar, a ocasião talvez não voltasse a repetir-se. Voltando-se bruscamente, o pintor ficou diante de Teresa. Durante alguns segundos, olharam um para o outro.
Com um movimento violento, Laurent curvou-se e apertou a jovem contra o peito. Tombou-lhe a cabeça para trás, esmagando-lhe os lábios contra os seus. Ela teve uma sacudidela de revolta, selvagem, arrebatada, e,'ato contínuo, abandonou-se, deslizando para o chão. Não trocaram uma só palavra. O ato foi silencioso e brutal.
Desde o princípio, os amantes consideraram a ligação necessária, fatal, inteiramente natural. No primeiro encontro trataram-se por tu, abraçaram-se, sem embaraço, sem rubor, como se a intimidade fosse de há longos anos. Viviam sem constrangimento a nova situação, com completa tranqüilidade e impudência.
Combinaram os encontros. Como Teresa não podia sair, ficou decidido que Laurent iria à sua casa. A jovem descreveu com voz clara e firme o meio que encontrara.
As entrevistas teriam lugar no seu quarto. O amante passaria pelo corredor que dava para a passagem, onde lhe abriria a porta da escada. Camilo estaria no escritório e a senhora Raquin na loja.
Era um plano muito audacioso, que daria resultado.
Laurent aceitou. Da sua prudência fazia parte uma espécie de temeridade brutal, a temeridade do homem que possui dois fortes punhos. O aspecto grave e calmo da amante convidava-o a saborear uma paixão tão ousadamente oferecida. Escolheu um pretexto, obteve do chefe uma licença de duas horas e correu para a passagem da Ponte Nova.
O gosto voluptuoso da aventura começou à entrada da passagem. A vendedora de bijuterias estava sentada precisamente diante da porta que tinha de franquear. Foi necessário aguardar que estivesse ocupada, que chegasse uma jovem operária para comprar um anel ou um par de brincos de cobre. Então, rapidamente, penetrou no corredor; subiu a escada estreita e escura, apalpando as paredes escorrendo umidade. Os pés batiam nos degraus de pedra e a cada passo sentia uma queimadura que lhe atravessava o peito. A porta abriu-se. No limiar, recortada na luz, viu Teresa em camisola e saia, resplandecente, os cabelos apanhados no pescoço. Ela fechou a porta e dependurou-se-lhe no pescoço. Subia dela um odor morno, um cheiro a roupa branca e a corpo recentemente lavado.
Atordoado, Laurent achou a amante bela, Jamais vira aquela mulher. Flexível e forte, Teresa comprimia-se contra ele, atirando a cabeça para trás e pelo rosto perpassavam-lhe ardentes clarões e apaixonados sorrisos. O seu rosto de amante parecia ter-se transfigurado, tinha um ar fogoso e acariciador; os lábios úmidos, os olhos brilhantes, toda ela resplandecia. A jovem possuía uma beleza estranha, feita de arrebatamento. Dir-se-ia que o corpo se iluminara interiormente e que através da pele escapavam labaredas, que o sangue em ebulição e os nervos, que se retesavam, libertavam um odor tépido, penetrante e acre.
Ao primeiro beijo ela revelou-se cortesã. O corpo insatisfeito lançou-se perdidamente na voluptuosidade. Parecia acordar de um sonho, nascendo para a paixão. Passava dos braços débeis de Camilo para os braços vigorosos de Laurent e a aproximação a um homem possante causava-lhe um brusco abalo que a arrancava do sono em que mantivera a carne. Todos os instintos de mulher nervosa estalaram com violência inaudita; o sangue materno, o sangue africano que lhe queimava as veias, começou a correr, a latejar furiosamente no seu corpo magro, quase virgem. Estendia-se, mostrava-se, oferecia-se com soberano impudor. Longos estremecimentos percorriam-na da cabeça aos pés.
Jamais Laurent conhecera mulher assim. Ficou surpreendido, pouco à vontade. As suas amantes não costumavam recebê-lo com tamanho arrebatamento. Estava acostumado aos beijos frios e indiferentes, aos amores secos e sem entusiasmo. Os soluços e as crises de Teresa quase o espantavam, ao mesmo tempo que lhe excitavam a voluptuosidade.
Quando a deixou, vacilava como um ébrio. No dia seguinte, já senhor da sua calma e prudente, perguntou a si próprio se voltaria para junto da amante cujos beijos o deixavam febril. A primeira reação foi a de ficar em casa, mas em seguida vacilou. Queria esquecer, não voltar a ver a nudez de Teresa, sentir as suas carícias doces e simultaneamente brutais e, contudo, a sua imagem não deixava de lhe aparecer, implacável, estendendo-lhe os braços. O sofrimento físico que a visão lhe causava tornou-se intolerável.
Cedeu e foi a novo encontro na passagem da Ponte Nova.
A partir desse dia Teresa entrou na sua vida. Não a aceitava ainda, mas submetia-se a ela. Tinha horas de pavor, momentos de prudência, em suma, a ligação abalava-o desagradavelmente. Porém, os terrores e as inquietações tombavam perante os seus desejos. Os encontros sucederam-se, multiplicaram-se. Teresa não sentia essas dúvidas. Entregava-se sem governo, seguindo em linha reta para onde a paixão a puxava. Esta mulher, que as circunstâncias tinham curvado, erguia-se enfim, pondo a nu todo o seu ser e contando a sua vida. Às vezes passava os braços em volta do pescoço de Laurent e encostada ao seu peito dizia, com a voz ainda palpitante:
— Oh! Se soubesses quanto sofri! Cresci no ambiente quente e úmido do quarto de um doente. Dormia com Camilo; à noite afastava-me dele, enojada do seu cheiro. Era mau e teimoso; não queria tomar os remédios que eu recusava partilhar; para agradar a minha tia, eu tinha que tomar todas as drogas. Não sei como não morri...
Tornaram-me feia, roubaram-me tudo o que tinha, e tu não podes amar-me como eu te amo.
Chorava, abraçava Laurent e prosseguia com um ódio surdo:
— Não lhes desejo mal. Educaram-me, recolheram-me e defenderam-me da miséria... Mas eu teria preferido o abandono à sua hospitalidade. Tinha aguda necessidade de ar livre; em pequena sonhava correr pelos caminhos, descalça na poeira, pedindo esmola, vivendo como os ciganos. Disseram-me que minha mãe era filha do chefe de uma tribo, na África. Sonhei muitas vezes com ela, compreendi que lhe pertencia pelo sangue e pelos instintos, e desejaria não a ter deixado nunca, para atravessar as areias, atada às suas costas... Ah! que juventude a minha! Ainda sinto repulsa e revolta quando me recordo dos longos dias passados no quarto onde Camilo agonizava.
Ficava acocorada diante do fogo, olhando estupidamente ferver as tisanas, sentindo inteiriçarem-se os membros. Não podia mover-me porque a minha tia ralhava-me se fazia barulho... Mais tarde, passei grandes alegrias na pequena casa à beira do rio; mas já estava embrutecida, mal sabia andar, não tardava a cair quando corria. Depois, enterraram-me viva nesta loja ignóbil.
Teresa arfava, apertando o amante com ambos os braços, vingava-se; as narinas finas abriam-se e fechavam-se nervosamente.
— Não podes acreditar quanto me tornaram má. Fizeram de mim uma hipócrita e uma mentirosa... Abafaram-me na sua doçura burguesa e nem sei como tenho ainda sangue nas veias... Baixei os olhos, tenho como eles um rosto triste e imbecil, tive a vida morta que eles têm. Não é verdade que quando me viste tinha o ar de um animal?
Estava esmagada, embrutecida. Já não esperava nada, pensava que um dia acabaria no Sena... Mas antes de chegar a esse ponto de prostração, quantas noites de cólera!
Em Vernon, no meu quarto frio, mordia a almofada para não me ouvirem chorar, batia a mim própria e chamava-me covarde.
O sangue queimava-me e fazia-me rasgar o corpo. Por duas vezes quis fugir, ir em frente ao sol; faltava-me a coragem, eles tinham feito de mim um animal dócil com a sua benevolência mole e enjoativa ternura.
Menti, menti sempre. Fiquei, amolecida e silenciosa, querendo bater e morder.
A jovem deteve-se, passou os lábios úmidos no pescoço de Laurent. Depois de um breve silêncio, acrescentou:
— Não sei por que consenti em desposar Camilo.
Não protestei, por uma espécie de desdenhosa indiferença. Aquela criança fazia-me dó. Quando brincava com ele sentia os dedos enterrarem-se nos seus membros como se fossem argila. Aceitei-o porque a minha tia me oferecia e nunca tive intenção de me incomodar com ele... E encontrei no meu marido o rapazinho doente com o qual já dormira aos seis anos. Era débil, queixava-se tanto e tinha sempre aquele cheiro característico de doente que tanto me repugnava outrora... Digo-te tudo isto para que não sintas ciúmes... Eu sentia a repulsa subir-me à garganta; lembrava-me das drogas que tivera de beber e afastava-me dele, passava noites terríveis... Mas tu, tu...
Teresa empertigava-se, deitava-se para trás, os dedos presos nas mãos grossas de Laurent, olhando os seus ombros largos, o pescoço forte...
— Amo-te, amo-te desde o dia em que Camilo te trouxe à loja... Tu talvez não gostes de mim porque me entreguei inteira, de uma vez... É verdade, 'não sei como isso aconteceu. Sou altiva, sou arrebatada. Quisera bater-te, no primeiro dia, quando me abraçaste e me deitaste no chão neste quarto... Não sei como te amava; ou antes, detestava-te. O teu olhar irritava-me, fazia-me sofrer; quando tu estavas, sentia os nervos prestes a romper a pele, a cabeça ficava vazia e via tudo vermelho.
Oh! como sofria! Mas procurava esse sofrimento, esperava a tua chegada, rodeava a tua cadeira para respirar-te o hálito, para roçar o vestido na tua roupa. Parecia-me que o teu sangue projetava baforadas de calor e era essa espécie de nuvem ardente em que me envolvias que me atraía e me retinha junto de ti, malgrado a revolta surda que sentia... Recordar-te quando pintavas aqui: uma força fatal empurrava-me para o teu lado, respirava o teu ar com cruel delícia. Eu tinha consciência de que parecia implorar beijos, tinha vergonha dessa força invencível, sentia que se me tocasses cairia. Cedia, porém, à fraqueza, tremia de frio, esperando que me tomasses nos braços...
Teresa calava-se, fremente, com uma sensação de orgulho e de vingança. Tinha Laurent ébrio sobre o seu peito e, no quarto nu e glacial, desenrolavam-se ardentes cenas de paixão, de sinistra brutalidade. Cada novo encontro trazia crises mais fogosas.
A jovem parecia comprazer-se na audácia e na impudência. Não revelava uma hesitação, o mínimo medo. Lançava-se no adultério com uma espécie de franqueza, energicamente, afrontando o perigo e como que ufanando-se de o desafiar. Quando se aproximava a hora da chegada do amante, tinha a precaução de prevenir a tia que ia subir para repousar; lá, porém, andava de um lado para o outro, falava, agia ousadamente sem pensar por um momento em evitar o ruído.
A princípio, Laurent assustava-se.
— Por Deus! — dizia em voz baixa para Teresa — não faças tanto barulho. A senhora Raquin pode subir.
— Bah! — era a resposta, entre sorrisos estás sempre a tremer... Ela está pregada atrás do balcão; que queres tu que ela venha fazer aqui? Tem medo que a roubem.. E depois, que venha, se quiser. Tu esconder-te-ás... Eu caçoo dela. Amo-te.
Estas palavras não sossegavam muito Laurent. A paixão não tinha ainda adormecido a sua prudência sonsa de camponês. Não tardou no entanto que o hábito o levasse a aceitar, sem maiores sobressaltos, os riscos dos encontros em pleno dia no quarto de Camilo, a dois passos da velha cape lista. A amante repetia-lhe que o perigo poupa aqueles que o desafiam de frente, e tinha razão. Não poderiam ter encontrado lugar mais seguro do que aquele quarto, onde ninguém os iria procurar. E davam curso ao seu amor em plena tranqüilidade.
Um dia, porém, a senhora Raquin subiu, receando que a sobrinha estivesse doente, pois estava há quase três horas no quarto.
Teresa levava a audácia ao ponto de não fechar com ferrolho a porta do quarto que dava para a sala de jantar.
Quando Laurent ouviu os passos pesados subindo a escada de madeira, perturbou-se e procurou nervosamente o colete, o chapéu.
Teresa começou a rir ao ver a singular expressão do seu rosto. Pegou-lhe num braço com força e fê-lo encolher-se num canto perto da cama, ao mesmo tempo que lhe dizia em voz muito baixa e calma:
— Fica aqui... Não te mexas.
Lançou sobre Laurent as suas roupas e por último a sua própria saia branca. Todos estes preparativos foram feitos com gestos rápidos e precisos, sem o mínimo ar de pânico. Depois deitou-se, em desalinho, seminua, ainda corada e fremente.
A senhora Raquin abriu a porta docemente e aproximou-se do leito em passos abafados. A jovem fingia dormir. Laurent suava debaixo das roupas.
— Teresa — perguntou a capelista com solicitude — estás doente, minha filha?
Teresa abriu os olhos, bocejou, voltou-se e respondeu com voz dolente que sentia uma atroz enxaqueca. Suplicou à tia que a deixasse dormir. A velha senhora afastou-se do mesmo modo que viera, sem fazer qualquer ruído.
Os dois amantes, rindo em silêncio, abraçaram-se com apaixonada violência.
— Bem vês que nada temos a temer aqui — disse Teresa triunfante — são todos cegos: eles não amam.
Uma ocasião a jovem teve uma idéia bizarra: comportava-se às vezes como louca, delirante.
O gato, François, estava sentado sobre as patas traseiras, no meio do quarto. Grave, imóvel, olhava os dois amantes com os grandes olhos redondos.
Parecia examiná-los atentamente, sem baixar as pálpebras, mergulhado em diabólico êxtase.
— Repara em François. Dir-se-ia que compreende e que vai contar tudo esta noite a Camilo... Diz lá se não seria divertido se começasse a falar na loja um destes dias; ele sabe belas histórias a nosso respeito...
A idéia de François poder falar divertiu singularmente a jovem. Laurent olhou para os grandes olhos verdes do gato e sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo.
— Ele faria assim — continuou Teresa levantava-se e apontando para mim com uma das patas e para ti com a outra, exclamava:
"Este senhor e esta senhora abraçam-se no quarto; não desconfiam de mim, mas como os seus amores criminosos me aborrecem, peço que os metam na prisão; assim, não perturbarão a minha sesta."
Teresa brincava como uma criança, imitava o gato alongando os dedos em forma de garras e imprimindo aos ombros ondulações felinas. François mantinha a imobilidade de pedra, sem deixar de contemplar Teresa; só os olhos pareciam estar vivos; os cantos da boca repuxados imprimiam um esgar de riso à cabeça que dir-se-ia de animal empalhado.
Laurent sentiu frio nos ossos. Achava ridícula a brincadeira de Teresa. Levantou-se e levou o gato para a porta. Na realidade, sentia medo.
A amante não o dominava ainda inteiramente; no seu íntimo restava um pouco do mal-estar que experimentara aos primeiros beijos de Teresa.
Na loja, ao serão, Laurent sentia-se infeliz. Habitualmente acompanhava Camilo no regresso do escritório. A senhora Raquin sentia por ele uma amizade maternal; sabia que tinha dificuldades, que comia mal, que dormia num sótão e dissera-lhe insistentemente que tinha sempre lugar posto à mesa. Tinha pelo jovem aquela ternura expansiva dos velhos pelos conterrâneos, que trazem consigo recordações do passado distante.
Laurent servia-se largamente da hospitalidade assim oferecida. Depois de sair do escritório, dava uma volta pelo cais com Camilo. A ambos agradava a intimidade; aborreciam-se menos, conversavam enquanto vagueavam. Encaminhavam-se então para a loja, para a refeição da senhora Raquin. Laurent fazia-se dono da casa, abrindo a porta da loja; esparramava-se nas cadeiras, fumando e cuspindo como se estivesse em sua casa.
A presença de Teresa não o constrangia absolutamente nada. Tratava a jovem com amistosa naturalidade, gracejava, dirigia-lhe galanteies banais, sem mover um só músculo do rosto. Camilo ria e, como a mulher só respondesse ao amigo por meio de monossílabos, estava firmemente convencido de que ambos se detestavam. Chegou mesmo um dia a criticar Teresa pelo que chamava de frieza em relação a Laurent.
Para este as coisas tinham-se passado como previra: era amante da mulher, amigo do marido, menino mimado da mãe. Jamais vivera em tamanha satisfação dos seus apetites.
Deixava-se embalar nos infinitos prazeres que a família Raquin lhe proporcionava. Aliás, a sua posição no seio da família parecia-lhe inteiramente natural. Desprezava Camilo sem cólera, sem remorsos. Não se preocupava com os gestos nem com as palavras, tão seguro estava da sua prudência e da sua calma; o egoísmo com que saboreava os seus prazeres protegia-o contra qualquer falta. Na loja, a amante era uma mulher como qualquer outra, que não devia beijar e que não existia para ele. Se não a abraçava diante de todos era pelo receio de não poder voltar. Apenas esta circunstância o detinha. De outro modo teria abertamente escarnecido da dor de Camilo e da mãe.
Não tinha a mínima consciência daquilo a que poderia conduzir a descoberta da sua ligação. Julgava agir simplesmente, como qualquer outro no seu lugar, como homem pobre e faminto. Daí a sua beatíssima tranqüilidade, as audácias comedidas, as atitudes desinteressadas e atrevidas.
Mais nervosa e vibrante, Teresa era obrigada a desempenhar outro papel. E desempenhava-o com perfeição, graças à sábia hipocrisia que provinha da sua educação.
Durante perto de 15 anos mentira, dominando os anseios febris, com implacável vontade para parecer melancólica e submissa.
Não lhe era assim difícil afivelar a máscara de morte que lhe gelava o rosto. Quando Laurent entrava, achava-a grave, carrancuda, o nariz mais comprido e os lábios mais delgados. Era feia, áspera, arisca.
Tinha, aliás, o cuidado de não exagerar os efeitos, exteriorizava a personalidade sem chamar a atenção por demasiada brusquidão.
Sentia amarga voluptuosidade em enganar Camilo e a senhora Raquin; nisso não era como Laurent, afundado na rude satisfação dos seus desejos, inconsciente do dever; ela sabia que procedia mal e sentia desejos ferozes de se levantar da mesa e abraçar Laurent à vista de todos, para mostrar ao marido e à tia que não era um animal e que tinha um amante.
Em certos momentos subia-lhe à cabeça um cálido júbilo, e por muito boa comediante que fosse não conseguia nessas ocasiões evitar de cantar, quando o amante não estava ali e não havia qualquer perigo de se trair. Estas explosões de alegria encantavam a senhora Raquin, que acusava a sobrinha de demasiada gravidade. A jovem comprou vasos de flores para a janela do quarto; mandou colar papel novo nas paredes, quis um tapete, cortinados, móveis de palissandro. Todo este luxo era para Laurent.
A natureza e as circunstâncias pareciam tê-la destinado àquele homem e tê-los empurrado um para o outro. A mulher, nervosa e hipócrita, o homem másculo e rude, formavam um par poderosamente ligado. Completavam-se e protegiam-se mutuamente. À noite, à mesa, à luz pálida do candeeiro, sentia-se a força da sua união, à vista do rosto rude e sorridente de Laurent perante a máscara impenetrável de Teresa.
Eram serões calmos e doces. No silêncio, na sombra transparente e morna, elevavam-se palavras amistosas. Em volta da mesa, depois da sobremesa, falava-se de mil insignificâncias do dia, do que se passara na véspera e das perspectivas para o dia seguinte. Camilo gostava de Laurent, tanto quanto podia gostar um egoísta satisfeito, e Laurent parecia retribuir-lhe o afeto; trocavam frases amistosas, gestos obsequiosos, olhares atenciosos. O rosto plácido da senhora Raquin revelava a paz com que envolvia os filhos no ar tranqüilo que respiravam. Dir-se-ia uma reunião de velhos amigos que se conheciam e repousavam na confiança da sua amizade.
Teresa, imóvel e tranqüila como os outros, seguia estas alegrias burguesas, estas trocas de amabilidades sorridentes. No seu íntimo, havia risos selvagens; todo o seu ser escarnecia mas o rosto exteriorizava apenas uma rigidez fria. Dizia para si, com requintes de voluptuosidade, que algumas horas antes estivera no quarto vizinho, seminua, em desordem, sobre o peito de Laurent; recordava cada pormenor dessa tarde de paixão louca, prolongava-os na memória, para os comparar com a cena morta que tinha diante dos olhos. Ah! Como enganava aquelas boas pessoas e como se sentia feliz de as enganar com tão triunfante impudência! Era ali, a dois passos, do outro lado do estreito tabique, que recebia um homem; era ali que se rebolava nas asperezas do adultério. E naquele instante o amante tornava-se um desconhecido, um camarada do marido, uma espécie de imbecil e de intruso, com o qual não devia importar-se. Essa atroz comédia, estes enganos da vida, a comparação entre os beijos ardentes da tarde e a indiferença afetada da noite, redobravam o ardor no sangue da jovem.
Se acaso a senhora Raquin e Camilo desciam à loja, Teresa erguia-se de um salto e colava silenciosamente, com energia quase brutal, os lábios aos lábios do amante, assim permanecendo, ofegante, até ouvir estalarem os degraus da escada. Então, com um movimento brusco, voltava para o seu lugar e reassumia o ar mal humorado.
Com voz calma, Laurent por sua vez retomava a conversa interrompida com Camilo. Era como que um clarão de paixão, rápido e deslumbrante, num céu morto. Na quinta-feira, o serão era um pouco mais animado. Laurent, que nesses dias se aborrecia mortalmente, fazia no entanto questão de não faltar a nenhuma dessas reuniões: como medida de prudência queria travar conhecimento e amizade com os amigos de Camilo. Tinha de escutar as conversas de Grivet e do velho Michaud; este passava o tempo a repetir as histórias de mortes e de roubos; Grivet falava ao mesmo tempo dos seus subordinados, dos chefes, do escritório. O jovem refugiava-se junto de Olivier e Suzana, que lhe pareciam os menos maçantes, e apressava-se a reclamar a partida de dominó.
Era nessas noites que Teresa fixava a hora e o dia dos encontros. Na agitação da despedida, quando a senhora Raquin e Camilo acompanhavam os convidados à porta, a jovem aproximava-se de Laurent e apertava-lhe a mão, falando em voz baixa. Por vezes, quando todos estavam de costas, abraçava-o atrevidamente.
Esta vida de agitação e ao mesmo tempo de saciedade manteve-se durante oito meses. Os amantes viviam uma felicidade completa; Teresa já não se aborrecia, nada mais desejava; Laurent, saciado, coberto de atenções, ainda mais gordo, receava apenas que acabasse a bela existência que levava.
Um dia, à tarde, quando Laurent se preparava para sair do escritório e correr para junto de Teresa que o esperava, o chefe mandou chamá-lo dizendo-lhe que daí em diante não podia ausentar-se. Que abusara das dispensas e que a administração estava decidida a demiti-lo se voltasse a sair.
Pregado à secretária ficou em desespero até à hora da saída. Tinha de ganhar o seu pão e não podia contribuir para que o despedissem. No serão, o rosto irritado de Teresa foi para ele uma tortura. Não sabia como explicar à amante a sua ausência ao encontro. Aproveitando a hora em que Camilo fechava a loja, aproximou-se rapidamente da jovem:
— Não podemos voltar a ver-nos — disse-lhe em voz baixa — o meu chefe recusa-se a dispensar-me.
Camilo voltava. Laurent tinha de retirar-se sem poder dar mais explicações, deixando Teresa debaixo do efeito da súbita notícia. Exasperada, sem querer admitir a interrupção dos seus sensuais prazeres, passou a noite em claro arquitetando complicados planos de encontros. Na quinta-feira seguinte, não conseguiu conversar com Laurent por mais de um minuto. A ansiedade de ambos estava tanto mais viva quanto sentiam a desorientação por não saberem onde se encontrarem para conversar e combinar uma solução. A jovem marcou novo encontro com o amante, a que este pela segunda vez faltou. A partir daí, ela só tinha uma idéia fixa: voltar a vê-lo, custasse o que custasse.
Passaram-se 15 dias sem que Laurent pudesse aproximar-se de Teresa. Sentiu então a falta que ela lhe fazia; o hábito da voluptuosidade criara-lhe novos apetites, de uma exigência aguda. Não sentia já nenhum mal-estar nos abraços da amante, antes os procurava agora com a obstinação de um animal esfaimado. A paixão tinha-se-lhe infiltrado nos músculos e agora que lhe retiravam a amante, a paixão estalava-lhe com cega violência. Amava furiosamente.
Tudo parecia inconsciente na sua pujante natureza rude; obedecia aos instintos, deixava-se conduzir pelas vontades do seu organismo. Um ano antes ter-se-ia rido às gargalhadas se lhe dissessem que viria a ser escravo de uma mulher a ponto de comprometer a sua tranqüilidade. O surdo peso dos desejos atuara nele, sem que disso se desse conta, e acabara por submetê-lo de pés e mãos atados às quentes carícias de Teresa. Receava, pois, esquecer a prudência e não se atrevia a ir à passagem da Ponte Nova para não cometer uma loucura.
Não era já senhor de si; a amante, com as suas carícias felinas e os seus estremecimentos nervosos, invadira-lhe pouco a pouco cada uma das fibras do corpo. Tinha necessidade daquela mulher para viver, como se tem necessidade de comer e de beber.
Teria, certamente, cometido uma imprudência se não fosse receber uma carta de Teresa, na qual esta lhe pedia para ficar em casa no dia seguinte. A amante prometia-lhe chegar por volta das oito horas da noite.
Ao sair do escritório, livrou-se de Camilo, alegando estar fatigado, e que iria deitar-se em seguida. Teresa, por sua vez, desempenhou o seu papel depois do jantar: falou de uma cliente que mudara de casa sem lhe pagar e declarou que iria reclamar a dívida. A cliente morava em Batignolles.
A senhora Raquin e Camilo disseram-lhe que era longe e a tentativa perigosa, mas, por outro lado, não mostraram admiração e Teresa saiu com toda tranqüilidade. A jovem correu para o Porto dos Vinhos, escorregando nas ruas, acotovelando os transeuntes na pressa de chegar. Sentia suor no rosto; as mãos queimavam-lhe. Parecia ébria. Galgou rapidamente a escada da pensão e, no sexto andar, ofegante, os olhos vagos, viu Laurent, que a aguardava, debruçado sobre o lanternim.
Teresa entrou nas águas-furtadas, nas quais a ampla saia rodada mal cabia. com um gesto rápido, arrancou o chapéu e, quase a desfalecer, apoiou-se à cama...
Completamente aberta, a clarabóia dava passagem à frescura da noite sobre o leito ardente. Por longo tempo os amantes ali permaneceram, como no fundo de um buraco.
De súbito, Teresa ouviu soar 10 horas no relógio da Pitiê. Desejou nesse instante ser surda; penosamente, ergueu-se, atou as fitas e sentou-se, dizendo com voz lenta:
— Tenho de partir.
Laurent ajoelhou-se diante dela e pegou-lhe nas mãos.
— Adeus — acrescentou Teresa, sem se mexer.
— Adeus não — exclamou ele — isso é muito vago... Quando voltas?
Ela olhou-o.
— Queres que seja franca? Pois bem, creio que não voltarei. Não tenho pretexto, não posso inventar mais nada.
— Então, temos de dizer adeus.
— Não, não quero!
Teresa pronunciou as palavras com arrebatamento. Mais suavemente, depois, sem saber o que dizia e sem abandonar a cadeira, acrescentou:
— Vou-me embora.
Laurent estava absorto. Pensava em Camilo.
— Não lhe quero mal — disse, por fim, sem o nomear — mas, na verdade, atrapalha-nos muito... Não poderias tu fazê-lo viajar para qualquer lugar bem longe?
— Ah! Sim, mandá-lo viajar! — repetiu Teresa, abanando a cabeça. — Tu pensas que um homem como ele consente em viajar... Só há uma viagem de onde não se regressa... Mas será ele a enterrar-nos a todos; as pessoas doentes são as últimas que morrem.
Houve um silêncio. Laurent, arrastando-se de joelhos, abraçou a amante, apoiando a cabeça no seu peito.
— Tenho um sonho — disse ele. — Queria passar uma noite inteira contigo, adormecer nos teus braços e acordar no outro dia com os teus beijos... Queria ser o teu marido... Compreendes?
— Sim, sim — respondeu Teresa, estremecendo.
Inclinou-se repentinamente para o rosto de Laurent, que cobriu de beijos. Roçou as fitas do chapéu na barba; não se lembrava que estava vestida e que amassava as roupas. Soluçante, balbuciava palavras por entre lágrimas.
— Não digas essas coisas — repetia — porque perco as forças para te deixar, ficarei aqui... Dá-me antes coragem; diz-me que nos voltaremos a ver... Não é verdade que precisas de mim e que um dia encontraremos maneira de viver juntos?
— Então vem, vem amanhã — respondeu-lhe Laurent, cujas mãos trêmulas lhe subiam ao longo do corpo.
— Mas não posso voltar... Disse-te que já não tenho pretexto.
Ela torcia as mãos.
— Oh! — disse — o escândalo não me mete medo. Se quiseres, quando voltar, digo a Camilo que és meu amante e volto para dormir aqui... É por ti que temo; não quero ser estorvo na tua vida, desejo dar-te uma existência feliz.
Os instintos de prudência do jovem voltaram à superfície:
— Tens razão, é preciso não agir como crianças. Ah! Se o teu marido morresse...
— Se o meu marido morresse... — repetiu lentamente Teresa.
— Poderíamos casar, nada mais teríamos a recear, desfrutaríamos o nosso amor... Que vida boa e doce!
A jovem endireitou-se. Pálida, encarava o amante com olhos sombrios; os lábios tremiam-lhe.
— As pessoas morrem em certas ocasiões murmurou por fim. — Somente, é perigoso para aqueles que sobrevivem.
Laurent não respondeu.
— Todos os meios conhecidos são maus continuou ela.
— Não me compreendeste — disse calmamente Laurent. — Não sou tolo, quero amar-te em paz... Estava pensando que acontecem acidentes todos os dias, que se pode escorregar, uma telha cair... Percebes? Neste último caso só o vento é que tem a culpa.
Falava com voz estranha. Sorriu em seguida e acrescentou em tom acariciador:
— Vai, fica descansada, amar-nos-emos, viveremos felizes... Uma vez que não podes voltar eu tratarei de tudo... Se ficarmos vários meses sem nos vermos não me esqueças, pensa que estou trabalhando para a nossa felicidade.
Envolveu nos braços Teresa, que abria a porta para partir.
— És minha, não é verdade? — disse ainda. — Juras entregar-te toda inteira, sempre, quando eu quiser?
— Sim — exclamou a jovem — pertenço-te, faz de mim o que quiseres.
Por momentos, permaneceram mudos e assustados. Depois, Teresa arrancou-se aos braços que a prendiam, com brusquidão e, sem voltar a cabeça, saiu da mansarda e desceu a escada. Laurent ficou a ouvir o ruído dos passos que se afastavam.
Quando voltou o silêncio, entrou e deitou-se. Os cobertores estavam mornos. Estava abafado naquele buraco estreito que Teresa enchera com o ardor da sua paixão. Parecia-lhe respirar ainda o odor da jovem; estivera ali, espalhando penetrantes emanações de violeta e agora nada mais podia apertar nos braços do que o fantasma inatingível que flutuava à sua volta; sentia o desejo febril de novos e insatisfeitos amores. Não fechou a janela. Deitado de costas, os braços nus e as mãos abertas, sequiosas de frescura, permaneceu pensativo, olhando o quadrado azul sombrio talhado pela moldura no céu.
A idéia fixa não o abandonou até o nascer do dia. Antes da visita de Teresa não pensava na morte de Camilo; falara nisso sob impulso dos fatos, irritado pelo pensamento de que não mais veria a amante. E era assim que nova faceta da sua natureza inconsciente acabava de se revelar: na exaltação do adultério, pensava no assassínio.
Mais calmo agora, a sós no meio da noite tranqüila, estudava o assassínio. A idéia de morte, lançada com desespero entre dois beijos, aguilhoava-o implacavelmente.
Dominado pela insônia e enervado com o perfume acre que Teresa deixara atrás de si, Laurent engendrava emboscadas, pesava os riscos e enumerava as vantagens que teria em tornar-se assassino.
Todos os seus interesses o impeliam para o crime. Dizia-se que o pai, o camponês de Jeufossê, não se decidia a morrer; teria, talvez, de continuar empregado por mais 10 anos, comendo em restaurantes baratos e a viver sem mulher numas águas-furtadas. A idéia exasperava-o. Ao contrário, com Camilo morto, desposaria Teresa, herdaria da senhora Raquin, apresentaria a demissão e passaria a perambular ociosamente ao sol. Agradava-lhe sonhar com essa existência de preguiça; via-se já sem nada fazer, comendo e dormindo e a esperar pacientemente pela morte do pai. Caindo em si, via em Camilo o obstáculo e cerrava os punhos como que para o abater.
Laurent queria Teresa, queria-a só para ele, sempre ao alcance da mão. Se não fizesse desaparecer o marido, a mulher escapava-lhe.
Ela dissera-lhe: não podia voltar.
Podia arrebatá-la, levá-la para qualquer lugar, mas acabariam por morrer de fome. Arriscava menos matando o marido; não provocava nenhum escândalo, afastava simplesmente um homem para tomar o seu lugar. Na sua lógica brutal de camponês achava o meio excelente e natural. A prudência aconselhava-lhe mesmo este rápido expediente.
Dava voltas na cama, ensopado em suor, colando o rosto úmido à almofada em que desfizera o penteado de Teresa. Mordia o tecido com os lábios secos, bebendo o leve perfume que ficara e ficava suspenso, sem alento, sufocado, vendo passar lâminas de fogo através das pálpebras cerradas.
Perguntava a si próprio como poderia matar Camilo. Instantes depois, quando lhe faltava o fôlego, virava-se de um golpe e ficava de costas, de olhos abertos, a receber em pleno rosto o ar fresco que entrava pela janela, procurando nas estrelas um conselho, um plano para o assassínio.
Não encontrava nada. Tinha dito à amante que não era nem criança nem idiota; não queria o punhal nem o veneno. Pretendia um crime dissimulado, levado a cabo sem perigo, uma espécie de extinção sinistra, sem gritos, sem terror, uma desaparição pura e simples. A paixão excitava-o e impelia-o para diante, mas todo o seu ser reclamava imperiosamente prudência. Era demasiado covarde e voluptuoso para arriscar a tranqüilidade. Matava a fim de viver calmo e feliz.
Lentamente, o sono dominou-o. O ar frio afastara do quarto a sombra cálida e perfumada de Teresa. Aniquilado, Laurent deixou-se invadir por uma espécie de torpor doce e vago. Antes de adormecer, decidiu que esperaria por uma ocasião favorável e o pensamento cada vez mais fugidio embalava-o, murmurando: "Matá-lo-ei, matá-lo-ei."
Cinco minutos mais tarde dormia, respirando com serena regularidade.
Teresa chegou em casa às 11 horas. com a cabeça em fogo, o pensamento tenso, chegou à passagem da Ponte Nova automaticamente, sem dar conta do caminho percorrido.
Parecia-lhe que saíra naquele instante da casa de Laurent, a tal ponto lhe soavam aos ouvidos as suas palavras. Encontrou a senhora Raquin e Camilo ansiosos e solícitos; respondeu secamente às perguntas que ambos lhe fizeram, dizendo que fizera uma caminhada inútil e que esperara uma hora por um ônibus.
Quando se deitou, achou os lençóis frios e úmidos. Os membros ainda ardentes estremeceram-lhe de repugnância. Camilo não tardou a adormecer e Teresa ficou por longo tempo a observar-lhe o rosto descorado pousado estupidamente no travesseiro, a boca aberta. Afastou-se, com vontade de abater o punho fechado sobre aquela boca.
Passaram-se quase três semanas. Laurent continuava a ir à loja todas as noites; parecia cansado, adoentado. Um círculo violáceo rodeava-lhe os olhos e os lábios estavam pálidos e rachados. Apesar disso revelava a mesma pesada tranqüilidade, olhava Camilo de frente e manifestava-lhe a mesma franca amizade. A senhora Raquin redobrava de atenções para com o amigo da casa, vendo-o cochilar numa espécie de febre latente.
Teresa retomara a atitude muda e distante. Dir-se-ia que estava mais imóvel, mais impenetrável e pacífica do que antes.
Parecia que Laurent não existia para ela; mal o olhava, dirigia-se-lhe raramente, tratando-o com perfeita indiferença. A bondade da senhora Raquin, que sofria com esta atitude, dizia por vezes ao rapaz: "Não faças caso da frieza da minha sobrinha. Eu conheço-a; o rosto parece frio mas o coração está cheio de ternura e de dedicação."
Os dois amantes não tinham voltado a encontrar-se. Depois da noite na Rua de Saint-Victor não tinham estado a sós. Quando se olhavam face a face, no serão, aparentemente calmos e estranhos um ao outro, sentiam no íntimo uma tempestade de paixão, de pavor e de desejo. Havia em Teresa arrebatamento e abandono, zombaria cruel; em Laurent obscura brutalidade, indecisões pungentes. Eles próprios não ousavam olhar para o íntimo, ir até ao fundo daquela febre turva que ensopava o cérebro numa espécie de vapor espesso e acre.
Quando as circunstâncias permitiam, estreitavam silenciosamente as mãos atrás da porta, num aperto rude e breve. Tinham vontade de arrancar mutuamente pedaços de carne; aquele contato de mãos era a única coisa que possuíam para apaziguar os desejos, e nele punham todo o corpo. Não pediam mais. Esperavam.
Num dos serões das quintas-feiras, antes de começarem a jogar, os convidados da senhora Raquin, como habitualmente, conversaram durante alguns momentos. Um dos assuntos obrigatórios era falar ao velho Michaud sobre as suas antigas funções, fazer-lhe perguntas acerca das estranhas e sinistras aventuras em que estivera envolvido.
Grivet e Camilo escutavam então as histórias do comissário de Polícia, com o semblante assustado e ao mesmo tempo atento de crianças às quais se contam as aventuras do Barba-Azul ou do Pequeno Polegar. Assustava-os tanto quanto os divertia.
Nesse dia Michaud, que acabava de contar as cenas de um tenebroso assassínio, cujos pormenores tinham arrepiado o auditório, acrescentou abanando a cabeça:
— E não se sabe tudo... Quantos crimes permanecem desconhecidos! Quantos assassinos escapam à justiça dos homens!
— Como! — exclamou Grivet com espanto quer dizer que existem por aí à solta canalhas que mataram e que não são presos?
Olivier começou a sorrir com ar de desdém.
— Meu caro senhor — disse por sua vez, com a sua voz áspera — se não são presos é porque se ignora que já mataram alguém.
O argumento não pareceu convencer Grivet. Camilo acorreu em seu auxílio:
— Eu sou da opinião do senhor Grivet... Tenho de acreditar que a polícia atua como deve e que não poderei cruzar-me num passeio com um assassino.
Olivier viu um ataque pessoal nestas palavras.
— Certamente que a polícia faz o que deve replicou, algo vexado. — Mas no entanto não podemos fazer o impossível. Há celerados que aprenderam o crime na escola do diabo; seriam capazes de escapar ao próprio Deus... Não é verdade, meu pai?
— Sim, sim — apoiou o velho Michaud que acrescentou: — Quando estavam em Vernon — talvez se lembre disto, senhora Raquin — um carroceiro foi morto na estrada principal. O corpo foi encontrado em pedaços, no fundo de uma vala. Nunca se deitou a mão ao culpado... Talvez ainda seja vivo, pode até ser nosso vizinho e talvez o senhor Grivet o encontre quando voltar para casa.
Grivet ficou branco como a cal. Ficou imóvel, sem ousar virar a cabeça, pensando que o assassino do carroceiro estaria atrás de si. Por outro lado, a sensação de medo fascinava-o.
— Ah, bem! — balbuciou, sem saber bem o que dizia — não, não quero acreditar nisso... Também eu sei de um caso: uma criada, que foi presa por roubar aos patrões um talher de prata. Dois meses depois, ao cortarem uma árvore, descobriram o talher num ninho de pega. Fora a pega a ladra e a criada foi solta... Como vêem, os culpados são sempre castigados.
Grivet exultava. Olivier riu-se com ar de zombaria.
— Então meteram a pega na prisão — disse.
— Não foi isso que o senhor Grivet quis dizer — interveio Camilo, irritado por ver o chefe metido a ridículo. — Mãe, dá-nos o dominó.
Enquanto a senhora Raquin ia buscar a caixa, Camilo continuou, dirigindo-se a Michaud:
— Então a polícia é impotente, é isso que quer dizer? Que há assassinos que andam a passear?
— Infelizmente sim — respondeu o comissário.
— É imoral — concluiu Grivet.
Teresa e Laurent tinham-se mantido silenciosos durante a conversa. Nem mesmo tinham sorrido da tolice de Grivet. De cotovelos apoiados na mesa, os rostos cobertos por palidez, os olhos vagos, escutavam. Os olhares encontraram-se por um momento, negros e ardentes. Pequenas gotas de suor perlaram a raiz dos cabelos de Teresa e Laurent sentiu um sopro gelado estremecer-lhe imperceptivelmente a pele.
No domingo, por vezes, quando o tempo estava bom, Camilo forçava Teresa a sair, a dar um passeio nos Campos Elísios. A jovem preferia ficar na obscuridade úmida da loja, fatigava-se e aborrecia-se ao lado do marido, que a arrastava pelos passeios, detendo-se diante das grandes lojas com exclamações de espanto, comentários e silêncios de imbecil. Camilo insistia; gostava de mostrar a mulher. Quando encontrava algum colega, sobretudo um dos chefes, fazia todo o possível para provocar o cumprimento. Fora isso, andava por andar, sem falar quase, rígido e contrafeito na roupa domingueira, embrutecido e vaidoso.
Para Teresa era um sofrimento ter semelhante homem a seu lado.
Nesses dias a senhora Raquin acompanhava os filhos até ao fim da passagem. Abraçava-os como se fossem partir para uma viagem.
E eram as recomendações sem fim, os pedidos insistentes.
— E sobretudo — dizia-lhes — tenham cuidado com os acidentes... há tantos carros por essa Paris!... Prometam-me não se misturarem com a multidão. .
Deixava-os enfim afastar-se, acompanhando-os longamente com os olhos. Voltava então para a loja. As pernas pesavam-lhe e não lhe permitiam grandes caminhadas.
Outras vezes, mais raramente, o casal saía de Paris: iam a Saint-Ouen ou a Asnières e almoçavam num dos restaurantes à beira da água. Eram considerados dias de extravagância, dos quais se começava a falar um mês antes. Teresa aceitava de boa vontade, quase com satisfação, estes passeios que lhe permitiam respirar ar livre até às 10 ou 11 horas da noite. com as suas ilhas cobertas de verdor, Saint-Ouen lembrava-lhe Vernon; sentia acordar a atração que desde criança sentia pelo Sena. Sentava-se no saibro, mergulhava as mãos na água e sentia-se viver sob os ardores do sol que temperavam as sombras frescas das árvores.
Enquanto rasgava e sujava o vestido nas pedras e na terra molhada, Camilo estendia cuidadosamente o lenço e acocorava-se a seu lado com mil precauções. Nos últimos tempos Laurent acompanhava o casal quase sempre, animando o passeio com as suas gargalhadas e a sua força de camponês.
Um domingo, Camilo, Teresa e Laurent partiram para Saint-Ouen por volta das 11 horas, depois do almoço. O passeio estava projetado desde há muito e devia ser o último do verão. O outono anunciava já a sua chegada, arrefecendo o ar das tardes.
Nessa manhã o céu mantinha-se ainda azul. O sol estava quente e as sombras agradáveis. Era preciso aproveitar os últimos momentos de bom tempo.
Os três tomaram um fiacre, acompanhados das lamentações, das inquietas efusões da velha capelista. Atravessaram Paris e deixaram o fiacre perto das fortificações; seguindo o caminho ao longo do rio, chegaram a Saint-Ouen. Era meio-dia. O caminho, coberto de poeira, batido pelo sol, dava em certa altura a sensação de cegar.
O ar, espesso e acre, queimava. Pelo braço de Camilo, Teresa caminhava em passos curtos, protegendo-se sob o chapéu de sol, enquanto o marido se abanava com um lenço enorme. Atrás seguia Laurent, sem parecer sentir os raios de sol que lhe mordiam o pescoço; assobiava, dava pontapés nas pedras e, de vez em quando, lançava olhares turvos aos meneios das ancas da amante.
Quando chegaram a Saint-Ouen apressaram-se a procurar a sombra de uma árvore com erva fresca para se estenderem. Passaram numa ilha e embrenharam-se numa pequena mata, onde as folhas avermelhadas formavam no solo uma camada que estalava debaixo dos pés com um frêmito seco. Os troncos erguiam-se eretos, em grande número, como feixes de colunatas góticas; os ramos desciam quase até à cabeça dos passeantes que por horizonte tinham assim a abóbada acobreada das folhas agonizantes e os frutos esbranquiçados e negros dos choupos e dos carvalhos. Estavam sós, num lugar melancólico, uma estreita clareira silenciosa e fresca.
À volta, ouviam o rumorejar do Sena.
Camilo escolheu um ponto seco e sentou-se, levantando as abas da sobrecasaca. Com grande ruído de saias amarrotadas, Teresa abateu-se sobre as folhas, ficando meio encoberta pelas pregas do vestido que se levantou à sua volta, descobrindo-lhe uma das pernas até ao joelho. Laurent, deitado ao comprido, com o queixo na terra, olhava para a perna enquanto escutava o amigo que se insurgia contra o governo declarando que todas as ilhotas do Sena deviam ser transformadas em jardins ingleses, com bancos, caminhos cobertos de saibro, árvores talhadas como nas Tulherias.
Ficaram cerca de três horas na clareira, esperando que o sol começasse a declinar para passearem pelos campos antes do jantar.
Camilo falou da repartição, contou histórias sem interesse. Depois, fatigado, deixou-se cair para trás e adormeceu, com o chapéu sobre os olhos.
Teresa por seu lado estava há um bom pedaço de pálpebras descidas, simulando dormir.
Laurent aproximou-se suavemente da jovem, estendeu os lábios e beijou-lhe a botina e o artelho; o contato com o couro e com a alva meia, queimou-lhe a boca. O cheiro acre da terra e o perfume tênue de Teresa misturavam-se e envolviam-no, excitando-lhe o sangue e irritando-lhe os nervos. Vivia há um mês uma castidade carregada de cólera. A caminhada sob o sol ardente pela estrada de Saint-Ouen, incendiara-o. Estavam isolados, num local rodeado de sombra e de silêncio e não podia apertar contra o peito a mulher que lhe pertencia. O marido poderia acordar, vê-lo, frustrar os seus cálculos de prudência. Sempre aquele homem surgia como um obstáculo.
E o amante beijava silenciosamente a botina e a meia branca. Como morta, Teresa não fazia um movimento. Laurent julgou que dormia.
As costas doíam-lhe e levantou-se, encostando-se a uma árvore. Viu então que a jovem olhava para o alto com dois grandes olhos abertos e brilhantes. O rosto, entre os braços deitados para trás, tinha uma palidez mate, uma fria rigidez. Teresa sonhava. Os olhos fixos pareciam um abismo sombrio onde apenas se via a noite. Continuou imóvel, não voltando sequer o olhar para o amante, de pé atrás de si.
Laurent contemplou-a, quase assustado pela sua imobilidade e por vê-la tão insensível às carícias.
Aquela cabeça branca e morta, envolta nas pregas das saias, provocava-lhe, contudo, uma espécie de arrepio, carregado de penetrantes desejos. Sentia vontade de se curvar e fechar com um beijo os grandes olhos escancarados. Quase envolvido pelas saias, porém, dormia também Camilo.
O pobre, cujo corpo deformado revelava a sua magreza, ressonava levemente; sob o chapéu, que lhe cobria parcialmente o rosto, distinguia-se a boca semi aberta, torcida grotescamente; alguns pêlos ruivos, espalhados sobre o queixo franzino, manchavam-lhe a carne pálida, e a cabeça deitada para trás deixava-lhe a descoberto o pescoço magro, enrugado, no qual a maçã-de-adão, cor de tijolo, oscilava a cada ronco. Estendido como estava, Camilo provocava irritação e nojo.Com um movimento brusco, Laurent levantou o pé. De um golpe, esmagar-lhe-ia o rosto.
Teresa susteve um grito. Empalideceu e fechou os olhos. Voltou a cabeça, como para evitar os salpicos de sangue.
Durante alguns segundos, Laurent manteve a perna erguida, suspensa sobre a cabeça de Camilo. Depois, lentamente, pousou a bota e afastou-se alguns passos. Disse para si que seria um assassínio imbecil. A cabeça esmagada não tardaria a pô-lo nas mãos da polícia. Queria livrar-se de Camilo unicamente para desposar Teresa; queria viver ao sol, depois do crime, como o assassino do carroceiro do caso contado pelo velho Michaud.
Foi até à beira da água, vendo correr o rio com ar estupidificado. Em seguida e bruscamente voltou-se: acabava de imaginar um plano, de inventar um homicídio cômodo e sem perigo para si.
Acordou Camilo, fazendo-lhe cócegas com uma palha no nariz. Camilo espirrou, ergueu-se e achou graça da brincadeira. Gostava de Laurent pelas piadas que o faziam rir. Em seguida sacudiu a mulher, que tinha os olhos cerrados, e assim que Teresa se levantou por sua vez e sacudiu das saias as palhas secas, os três passeantes deixaram a clareira, quebrando pequenos ramos à sua passagem.
Saindo da ilha, encaminharam-se para as passagens percorridas por grupos em passeio domingueiro. Por entre as sebes corriam crianças vestidas com roupas de cores claras; um grupo de barqueiros passava, entoando uma canção; filas de casais, de velhos, de empregados com as esposas, caminhavam pausadamente, à beira dos vaiados.
Cada caminho parecia uma rua movimentada e ruidosa. Apenas o sol conservava a sua generosa tranqüilidade; baixando para o horizonte, lançava um imenso lençol de luz pálida sobre as árvores tingidas de vermelho e sobre as veredas brancas. Do céu começava a tombar uma frescura penetrante.
Camilo caminhava sem dar o braço à Teresa; conversava com Laurent, ria dos gracejos e das provas de força do amigo, que saltava vaiados e levantava pesadas pedras.
Do lado oposto do caminho, a jovem seguia de cabeça baixa, curvando-se de vez em quando para arrancar uma erva. Quando ficava para trás, detinha-se a observar o amante e o marido.
— Eh! Não tens fome? — disse-lhe Camilo.
— Sim — respondeu ela.
— Então, a caminho!
Teresa não tinha fome; estava simplesmente cansada e inquieta. Ignorava os projetos de Laurent, mas as pernas tremiam-lhe de ansiedade.
Voltaram para a margem e procuraram um restaurante. Sentaram-se à mesa numa espécie de terraço de pranchas de uma taberna cheirando a gordura e a vinho. De todos os lados soavam gritos, misturados com canções e ruído de pratos e copos; em todos os compartimentos e no salão estavam grupos que falavam em altas vozes, cuja sonoridade era ampliada pelos tabiques finos. Os criados faziam estremecer a escada com as idas e vindas.
No terraço, a brisa que soprava do rio afastava os cheiros da comida. Apoiada na balaustrada, Teresa olhava para o cais. Para a direita e para a esquerda estendiam-se os restaurantes baratos e barracas de feira; sob os caramanchões, por entre as raras folhas amarelecidas, distinguia-se o branco das toalhas e os contornos negros dos paletós, das saias vivas das mulheres; as pessoas passavam de um lado para o outro, de cabeça descoberta, correndo e rindo. Ao ruído forte da multidão juntavam-se as canções lamentosas dos realejos. O odor de frituras e de pó espalhava-se pelo ar calmo.
Por baixo de Teresa, algumas jovens do quartier Latin faziam roda, entoando uma canção infantil. De chapéu caído para as costas e cabelos em desalinho, brincavam de mãos dadas como crianças. Reencontravam um fio de voz fresca, e os rostos sem cor, marcados por brutais carícias, coloriam-se suavemente de rubores virginais.
Pelos seus olhos impuros passavam névoas de enternecimento. Alguns estudantes que fumavam cachimbos de barro seguiam as suas evoluções, atirando-lhes pesados gracejos.
Mais além, no Sena, pelas encostas, descia a serenidade da noite, um ar azulado e vago que envolvia as árvores com leve e transparente neblina.
— Eh! rapaz — disse Laurent debruçando-se sobre o corrimão — então esse jantar?
E em seguida, como se mudasse de idéia:
— Que dizes, Camilo, de darmos um passeio no rio, antes de irmos para a mesa?... Tínhamos tempo, enquanto assam o nosso frango. Vamos aborrecer-nos durante uma hora à espera.
— Como quiseres — foi a resposta indolente de Camilo — mas Teresa está com fome.
— Não, não, posso esperar — apressou-se a dizer Teresa, que sentia sobre si o olhar fixo de Laurent.
Voltaram a descer. Antes de sair marcaram uma mesa, escolheram o menu, prevenindo que estariam de volta dentro de uma hora.
Como o proprietário do restaurante alugava botes, pediram-lhe que soltasse a amarra de um deles. Laurent escolheu um barco pequeno, cuja leveza assustou Camilo.
— Diabo — comentou — é preciso não nos mexermos lá dentro, senão mergulharemos.
A verdade é que tinha um medo horrível da água. Em Vernon, a doentia juventude não lhe permitira chapinhar no Sena; enquanto os camaradas de escola corriam a brincar no rio, ele passava o tempo entre dois cobertores.
Laurent tornara-se nadador intrépido, remador infatigável; Camilo conservara o medo que as crianças e as mulheres têm das águas profundas.
Tateou com o pé a borda do bote, como para se assegurar da sua solidez.
— Vamos, entra — incitou Laurent, rindo estás sempre a tremer.
Camilo transpôs a borda e em passos vacilantes tomou lugar à ré. Ao sentir as pranchas debaixo dos pés, esboçou um ar de à-vontade, gracejou, tentando revelar coragem.
Teresa estava em terra, grave e imóvel, ao lado do amante que segurava a amarra. Baixando-se, Laurent murmurou rapidamente:
— Presta atenção, vou jogá-lo n'água... obedece-me... respondo por tudo.
A jovem tornou-se terrivelmente pálida, e ficou pregada ao solo. Estava imóvel, com os olhos desmesuradamente abertos.
— Entra — acrescentou em voz baixa Laurent.
Ela não se moveu. Uma luta terrível desencadeava-se dentro de si. Empregava todas as suas forças para se dominar, pois receava romper em soluços e cair por terra.
— Ah! Ah! — exclamou Camilo para Laurent — olha para a Teresa... É ela que tem medo!... Ela entra, ela não entra...
Tinha-se estendido ao longo do banco traseiro, com os cotovelos apoiados na borda e bamboleava-se com ar fanfarrão. Teresa lançou-lhe um olhar estranho; o riso de zombaria do pobre atuou nela como um chicote. com um salto brusco entrou na barca, sentando-se à proa. Laurent pegou nos remos e afastou-se da margem, dirigindo-se lentamente para as ilhotas.
O crepúsculo descia. As árvores formavam grandes sombras e as águas escureciam. No meio do rio viam-se largas faixas prateadas.
O bote não tardou a deslizar no meio do rio. Os ruídos das margens chegavam ali amortecidos; os cantos e os gritos ouviam-se vagamente, melancólicos, com lânguida tristeza. Estavam longe do cheiro das frituras e do pó. Soprava uma brisa fria.
Diante deles, desenhava-se o maciço avermelhado das ilhotas. As duas margens, de um castanho-escuro com manchas cinzentas, pareciam duas largas barras que se uniam no horizonte. Água e céu pareciam cortados da mesma matéria esbranquiçada. Não há nada mais dolorosamente calmo do que um crepúsculo de outono. Os raios empalidecem no ar tremulante, as árvores deixam cair as folhas mortas. Os campos, queimados pelos raios ardentes do sol de verão, sentem chegar a morte com os primeiros ventos frios. Nos céus há sopros lamentosos de desespero. A noite cai do alto, trazendo o seu lençol de sombra.
Emudecidos, os três, sentados no barco que deslizava ao sabor da corrente, olhavam para as derradeiras manchas de luz que iluminavam ainda os pontos mais altos.
Aproximavam-se das ilhotas. As grandes massas avermelhadas escureciam; toda a paisagem se desvanecia e simplificava no crepúsculo; o Sena, o céu, as ilhas e as margens não eram mais do que manchas acastanhadas e cinzentas que se confundiam numa bruma leitosa.
Camilo, que acabara por se deitar de bruços, exclamou, mergulhando as mãos na água:
— Safa! Está fria! Não era nada agradável meter aqui a cabeça!
Laurent não respondeu. Havia momentos que os seus olhos percorriam as margens com inquietação; as grossas mãos afagavam os joelhos, e cerrava os lábios nervosamente. Hirta, imóvel, a cabeça ligeiramente inclinada, Teresa esperava.
A canoa avançava na direção de um braço do rio, sombrio e estreito, entre duas ilhotas. Do outro lado ouvia-se a canção entoada por um grupo de barqueiros que devia subir o Sena. Ao longe, para montante, o rio estava deserto.
Laurent ergueu-se e pegou Camilo pelo tronco.
— Ah! — exclamou Camilo contorcendo-se de riso — fazes-me cócegas, assim... Vamos lá, acaba com isso, vais fazer-me cair.
Laurent apertou mais fortemente e deu uma sacudidela. Camilo conseguiu voltar-se e deparou com o rosto medonho do amigo, terrivelmente convulsionado. Não compreendeu imediatamente; mas sentiu-se invadido por um vago terror. Quis gritar e sentiu uma mão rude apertar-lhe a garganta. com o instinto da fera que se defende, pôs-se de joelhos, agarrando-se na borda da canoa. Durante alguns segundos lutou nessa posição.
— Teresa! Teresa! — exclamou com voz abafada e sibilante.
A mulher olhava-o, com ambas as mãos presas a um dos bancos da canoa, que estalava e dançava. Não conseguia fechar os olhos; uma contração invencível mantinha-os escancarados, fixados no espetáculo horrível da luta. Muda e rígida, seguia a cena.
— Teresa! Teresa! — exclamou de novo o infeliz, num estertor.
Os nervos de Teresa não resistiram a este apelo, e ela estalou em soluços. A crise que temia lançou-a em farrapos para o fundo do bote, onde desfaleceu, dobrada sobre si própria, como morta.
Laurent continuava a sacudir Camilo, apertando-lhe com uma das mãos a garganta. Conseguindo finalmente arrancá-lo, ergueu-o no ar como uma criança, nos braços vigorosos.
Tinha a cabeça um pouco inclinada e a sua vítima, louca de raiva e de pavor, contorcendo-se desesperadamente, avançou os dentes e mergulhou-os no pescoço descoberto do algoz. Este, retendo um grito de dor, projetou bruscamente para o rio a vítima com um pedaço da sua carne entre os dentes.
Camilo fendeu a água lançando um uivo. Por duas ou três vezes veio à superfície, lançando gritos cada vez mais abafados.
Laurent não perdeu um segundo. Levantou a gola do casaco para esconder o ferimento, ergueu Teresa nos braços, como um fardo, e com um golpe brusco virou o bote, mergulhando por sua vez no rio, ao mesmo tempo que gritava lamentosamente por socorro.
Em remadas vigorosas, os barqueiros que momentos antes se encontravam do lado oposto da ilhota, aproximaram-se, compreendendo que acontecera uma desgraça. Recolheram Teresa, que deitaram sobre um banco e em seguida Laurent, que manifestara desespero pela morte do amigo. Lançando-se à água, procurou Camilo em pontos onde sabia que não o poderia encontrar, voltando a chorar, torcendo os braços, arrancando os cabelos. Os barqueiros tentaram acalmá-lo, consolá-lo.
— A culpa é minha — gritava — não devia ter deixado o pobre rapaz dançar e mexer-se como fez... A certa altura estávamos os três no mesmo lado do barco, que se virou... Quando caiu, gritou-me que salvasse a mulher...
Dois ou três barqueiros, como sempre acontece, pretenderam ter testemunhado o acidente.
— Nós bem os vimos — disseram — que diabo! uma canoa não é assim tão sólida como chão firme! Ah! A pobre jovem vai ter um mau despertar!
Os barqueiros voltaram a pegar nos remos e com a canoa a reboque conduziram Teresa e Laurent para o restaurante, onde o jantar esperava. A notícia do acidente espalhou-se por Saint-Ouen em poucos minutos. Os barqueiros contaram-no como se o tivessem presenciado, e diante do restaurante juntou-se uma pequena multidão compadecida.
O proprietário e a mulher, boa gente, puseram o guarda-roupa à disposição dos náufragos. Teresa, ao voltar a si, teve uma crise de nervos e rebentou em lancinantes soluços, sendo necessário deitá-la num leito: a natureza ajudava assim a sinistra comédia que acabara de se desenrolar.
Quando a jovem ficou mais calma, Laurent confiou-a aos cuidados dos donos do restaurante. Queria regressar a Paris só, para comunicar a terrível notícia à senhora Raquin com todas as cautelas possíveis. A verdade é que temia a exaltação incontrolada de Teresa, preferindo dar-lhe tempo para pensar e dominar a sua atitude.
Foram os barqueiros que comeram o jantar de Camilo.
No canto escuro da carruagem que o levava para Paris, Laurent acabou por amadurecer o seu plano. Estava quase seguro da impunidade. Sentia uma alegria pesada e ansiosa, a alegria do crime consumado. Chegado à barreira de Clichy, tomou um fiacre e mandou seguir para a casa do velho Michaud, na Rua do Sena. Eram nove horas da noite.
Encontrou o antigo comissário da polícia à mesa, acompanhado de Olivier e de Suzana. Dirigia-se ali em busca de proteção, para o caso de ser considerado suspeito e para evitar ir ele próprio anunciar a terrível notícia à senhora Raquin. Estranhamente, este passo repugnava-lhe; estava desesperado e receava não ser capaz de desempenhar o papel com suficiente convicção.
Depois, a dor daquela mãe tocava-o de certo modo, se bem que, no fundo, não se preocupasse sobremaneira. O olhar de Michaud fixou-o interrogativamente quando o viu entrar envergando as roupas grosseiras do dono do restaurante.
Laurent contou-lhe o acidente, com frases entrecortadas, parecendo sufocado pela dor e pela fadiga.
— Vim ter contigo — concluiu — porque não sabia o que fazer das duas mulheres tão cruelmente atingidas pelo infortúnio... Não teria coragem de ir sozinho à casa da mãe. Peço-lhe que me acompanhe.
Enquanto Laurent falava, Olivier olhava-o fixamente e de frente. O assassino lançara-se de cabeça baixa nas mãos de homens da polícia, revelando uma audácia que o salvaria. Não conseguia, porém, evitar um arrepio, ao sentir sobre si os olhares que pareciam querer penetrá-lo. Via desconfiança onde não havia mais do que estupefação e lástima. Suzana, pálida e mais frágil, estava prestes a perder os sentidos. Olivier, que a idéia da morte aterrorizava e cujo coração permanecia, não obstante, perfeitamente frio, tinha uma expressão de dolorosa surpresa, sondando por hábito o rosto de Laurent, sem a mais leve suspeita da sinistra verdade. Quanto ao velho Michaud, soltava exclamações de terror, de comiseração, de espanto; remexia-se na cadeira, esbravejando e levantando os olhos para o teto.
— Ah! Meu Deus — dizia, com a voz entrecortada — meu Deus, que coisa medonha!... Sai-se de casa e morre-se, assim, de um golpe... É horrível... E a pobre senhora Raquin, essa mãe, que vamos nós dizer-lhe?... Certamente que fez bem em vir ter conosco... Iremos contigo...
Levantando-se, procurou a bengala e o chapéu, arrastando os pés, e fez repetir a Laurent os pormenores da catástrofe, soltando novas exclamações a cada frase.
Desceram os quatro. À entrada da passagem da Ponte Nova, Michaud deteve Laurent:
— Não venha — disse-lhe — a sua presença seria uma espécie de testemunho brutal, que é preciso evitar... A infeliz mãe adivinharia imediatamente uma infelicidade e forçar-nos-ia a contar a verdade mais depressa do que o devemos fazer... Espere-nos aqui.
A sugestão tirou um peso de cima do assassino, que estremecia à idéia de penetrar na loja. Mais calmo, ficou a subir e a descer o passeio e aparentando despreocupação, esquecido por momentos do que se passara, olhava para as lojas, assobiava entre dentes e voltava-se para ver as mulheres que com ele se cruzavam. Ficou na rua uma longa meia hora, recuperando o sangue-frio à medida que o tempo passava. Não comera nada desde a manhã; sentiu fome, entrou numa pastelaria e encheu-se de bolos.
Na loja da capelista passava-se uma cena lancinante.
Apesar de todas as precauções, das frases suavizadas e amigáveis do velho Michaud, a senhora Raquin não tardou a compreender que acontecera uma desgraça ao filho. Exigiu a verdade com um arrebatamento de desespero e uma violência de lágrimas e gritos que fizeram ceder o velho amigo. Ao conhecer toda a extensão dos acontecimentos, a sua dor foi trágica; fundos soluços e estremecimentos dobraram a velha senhora, numa crise louca de terror e de angústia. Ficou comprimida, sufocada, lançando de vez em quando gritos agudos, e teria caído se Suzana não a tivesse abraçado pela cintura, erguendo para ela os olhos banhados de lágrimas. De pé, Olivier e o pai voltavam a cabeça, comovidos pelo espetáculo que lhes feria o egoísmo.
A pobre mãe via o filho envolvido nas águas turvas do Sena, o corpo rígido e horrivelmente deformado; via-o ao mesmo tempo no berço, quando lutava para o arrancar às garras da morte. Dez vezes lutara e 10 vezes vencera; amava o filho com todo o amor que lhe testemunhava há 30 anos.
E eis que morria longe dela, subitamente, na água fria e suja, como um cão. Lembrava os quentes cobertores com que o envolvia. Quantos cuidados durante a débil infância, quantos afagos e ternura para o ver um dia miseravelmente afogado! A estes pensamentos, a senhora Raquin sentia um nó na garganta; sentia-se morrer, estrangulada pelo desespero.
O velho Michaud apressou-se a sair. Deixou Suzana com a velha capelista e, acompanhado de Olivier, foi ter com Laurent a fim de partirem em seguida para Saint-Ouen.
Poucas palavras trocaram durante a viagem. Cada um deles afundou-se a um canto do fiacre, sacudidos pelos buracos da estrada.
Conservaram-se imóveis e silenciosos, na sombra que envolvia o carro, cortada por instantes pelo clarão de um bico de gás. O sinistro acontecimento que os reunia envolvia-os numa lúgubre opressão.
Quando, finalmente, chegaram ao restaurante junto do rio, encontraram Teresa deitada, as mãos e a cabeça ardentes. O comerciante disse-lhes a meia voz que a jovem tinha uma febre violenta. A verdade é que Teresa, sentindo-se fraca e sem energia, temendo denunciar o assassínio, num delírio, recorrera ao subterfúgio da doença.
Mantinha um teimoso mutismo, os lábios e as pálpebras cerrados, sem querer ver ninguém com receio de falar. com o lençol puxado até o queixo, o rosto meio escondido no travesseiro, encolhida, escutava ansiosamente tudo o que se dizia à sua volta. E, no clarão avermelhado que lhe atravessava as pálpebras, via sempre Camilo e Laurent lutando na borda da canoa, distinguia marido, pálido, horrível, enorme, elevando-se das águas lodosas. A visão implacável ativava-lhe a febre que a possuía.
O velho Michaud tentou falar-lhe para a consolar.
Com um movimento de impaciência ela voltou-se, recomeçando a soluçar.
— Deixe-a, senhor — disse o comerciante ela estremece ao mínimo ruído... Veja, precisa repousar.
Embaixo, na sala, um agente da polícia procedia ao auto do acidente. Michaud e o filho desceram, seguidos de Laurent. Olivier identificou-se e na qualidade de funcionário superior da Prefeitura, as formalidades ficaram concluídas em 10 minutos. Os barqueiros encontravam-se ainda ali, contando o afogamento com todos os pormenores, descrevendo a maneira como os três ocupantes tinham sido projetados ao rio e dando-se a si próprios como testemunhas oculares.
Se Olivier e o pai tivessem qualquer, suspeita, semelhantes testemunhos teriam sido suficientes para a desvanecer. Mas nem por um instante tinham duvidado da veracidade da versão de Laurent; pelo contrário, apresentaram-no ao agente como o melhor amigo da vítima, indo até a ponto de fazerem incluir nas declarações que o jovem se lançara à água para salvar Camilo Raquin.
Os jornais no dia seguinte noticiaram o acidente com grande soma de pormenores; a infeliz mãe, a viúva inconsolável, o amigo nobre e corajoso, nada faltou ao caso, cujo relato foi feito por toda a imprensa parisiense e seguidamente divulgado nos jornais de província.
Quando as declarações foram encerradas, Laurent sentiu a satisfação insuflar-lhe na carne uma vida nova. A partir do momento em que a sua vítima lhe cravara os dentes no pescoço, ficara tenso, agira mecanicamente, segundo um plano há muito delineado. Era apenas o instinto de conservação que o dominava, ditando-lhe as palavras e aconselhando-lhe os gestos. Agora, com a certeza da impunidade, o sangue retomava nas suas veias a normal circulação. A polícia passara ao lado do crime e nada vira; fora lograda e acabava de o absolver. Estava salvo.
Esta convicção provocou-lhe uma espécie de transpiração de prazer ao longo do corpo, um calor que restituiu a flexibilidade aos seus membros e à sua inteligência.
Continuou a desempenhar o papel de amigo lacrimoso, com saber e segurança incompatíveis. Mantinha, no fundo, os seus desejos brutais; sonhava com Teresa, que estava deitada no andar superior.
— Não podemos deixar aqui esta infeliz jovem — disse para Michaud. — Está sujeita a ficar gravemente doente e é absolutamente necessário conduzi-la para Paris... Venha, convencê-la-emos a ir conosco.
Subiu ao quarto e falou, suplicou a Teresa que se deixasse levar para a passagem da Ponte Nova. Ao ouvir-lhe a voz, a jovem estremeceu e abriu dois grandes olhos para ele. Estava trêmula e tinha um ar distante. Ergueu-se penosamente, sem responder. Os homens saíram, deixando-a só com a mulher do dono do restaurante, que a ajudou a vestir-se. Depois, com passos vacilantes, desceu a escada e entrou no fiacre, amparada por Olivier.
A viagem foi silenciosa. com perfeita impudência e enorme audácia, Laurent deslizou a mão ao longo da saia e prendeu nos seus os dedos de Teresa. Estava sentado à sua frente, na sombra indecisa; não via o rosto, que Teresa conservava caído para o peito. Manteve na sua a mão de Teresa até chegarem à Rua Mazarino. Sentia-se tremer mas a amante não a retirou, fazendo, pelo contrário, bruscas carícias. Enleadas, as duas mãos queimavam; estavam úmidas, colavam-se e os dedos, estreitamente apertados, magoavam-se mutuamente a cada sacudidela do fiacre. Ambos tinham a sensação que o sangue de um passava para o outro através das mãos unidas; as mãos eram uma espécie de fogão ardente onde fervilhavam as suas vidas. No meio da noite e do silêncio opressivo, as mãos furiosamente apertadas eram como que um peso esmagador sobre a cabeça de Camilo para a manter debaixo da água.
O fiacre deteve-se e Michaud e o filho desceram em primeiro lugar. Laurent inclinou-se para Teresa e disse-lhe docemente:
— Coragem, Teresa, lembra-te que temos muito que esperar...
A jovem abriu os lábios pela primeira vez depois da morte do marido:
— Oh! Não me esquecerei — respondeu, estremecendo, num sopro de voz.
Olivier estendeu-lhe a mão para a ajudar a descer. Laurent dessa vez foi até à loja. A senhora Raquin estava deitada, presa de violento delírio. Teresa arrastou-se até à sua cama e Suzana mal teve tempo de a despir. Tranqüilizado, vendo que tudo corria à medida dos seus desejos, Laurent retirou-se e lentamente encaminhou-se para a Rua de Saint-Victor.
Passava da meia-noite. Um ar fresco corria pelas ruas desertas e silenciosas. Sobre as pedras dos passeios ouvia-se apenas o ruído regular dos seus passos. A frescura fazia-lhe bem; o silêncio e a sombra davam-lhe fugazes sensações de volúpia. Caminhava com despreocupação.
Finalmente tinha-se livrado do seu crime. Matara Camilo. Era caso consumado de que não mais se falaria. Ia viver tranqüilo, aguardando a ocasião para tomar posse de Teresa. A idéia do assassínio tinha-o por vezes abafado; agora que estava consumado sentia o peito livre, respirava à vontade, estava refeito dos sofrimentos que lhe tinham causado a hesitação e o receio.
Estava um pouco fraco, sentindo os membros e os pensamentos pesados sob a ação da fadiga. Deitou-se e adormeceu profundamente.
Durante o sono, leves crispações nervosas perpassaram-lhe pelo rosto.
Laurent acordou fresco e bem disposto.
Dormira bem e o ar frio que entrava pela janela ativava-lhe o sangue espesso. A custo se lembrava das cenas da véspera; não fora a dor aguda no pescoço e julgaria que se deitara às 10 horas, depois de um calmo serão. A mordida de Camilo era um ferro em brasa encostado à sua pele; quando o pensamento se detinha na dor que lhe causava o ferimento, sofria cruelmente. Parecia-lhe o lento penetrar de uma dúzia de agulhas na sua carne.
Afastou o colarinho da camisa e observou o ferimento num espelho de 15 sous pendurado na parede. A ferida era do tamanho de uma moeda de dois sous; o buraco, de onde a pele tinha sido arrancada, mostrava a carne avermelhada, com manchas negras. Fios de sangue, agora seco e estalado, tinham corrido para o ombro. No pescoço branco, a mordida parecia adquirir um tom acastanhado e aspecto grave; era precisamente abaixo da orelha direita. De pescoço estendido, Laurent olhava para o espelho, que lhe devolvia a imagem de um rosto torcido numa careta de dor.
Satisfeito com o exame, lavou-se abundantemente, dizendo de si para si que a ferida estaria cicatrizada em poucos dias.
Em seguida vestiu-se e encaminhou-se para a repartição, tranqüilamente, como era seu hábito. Ali contou o acidente em tom comovido. Quando os colegas leram as descrições na imprensa, Laurent tornou-se um autêntico herói, e durante uma semana os empregados da estrada de ferro de Orleans não tiveram outro tema de conversa: estavam orgulhosos por um deles se ter afogado.
Grivet não cessava de falar na imprudência que era aventurar-se em pleno Sena, quando era fácil ver a cor da água ao atravessar-se uma ponte.
Laurent, contudo, sentia uma inquietação latente. A morte de Camilo não pudera ser verificada oficialmente. O marido de Teresa estava morto e bem morto, mas o assassino queria ter recuperado o cadáver para permitir a formalização do ato. Tinham sido inúteis as buscas levadas a cabo no dia seguinte ao do acidente, para encontrar o cadáver; estaria sem dúvida preso nalguma cavidade, sob as margens das ilhotas.
Alguns homens agitavam ativamente o rio, na ambição do prêmio.
Laurent passou a dirigir-se todas as manhãs à Morgue, no caminho para a repartição. Tinha jurado tratar ele próprio dos seus assuntos. Apesar da repugnância que lhe assaltava o coração, apesar dos estremecimentos que por vezes o sacudiam, caminhou para a Morgue durante mais de oito dias, examinando os rostos de todos os afogados estendidos nas lajes.
Assim que entrava, um odor neutro, de carne lavada, causava-lhe repugnância e sentia arrepios pelo corpo; a umidade das paredes parecia ensopar-lhe as roupas, que se tornavam mais pesadas. Ia direto à parede envidraçada que separava os espectadores dos cadáveres; colava o rosto sem cor aos vidros e olhava. À sua frente alinhavam-se as filas de lajes cinzentas. Aqui,e ali, os corpos nus punham manchas verdes e amarelas, brancas e vermelhas; alguns corpos conservavam as carnes virgens na rigidez da morte; outros pareciam montes de carne sangrenta e podre. Ao fundo, pendiam da parede calças e saias, farrapos lamentáveis que davam uma nota caricata à nudez do estuque. A princípio, Laurent só via o conjunto opaco do mármore e das paredes, manchado de vermelho e de negro pelas roupas e pelos corpos. Aos seus ouvidos chegava o ruído de água corrente.
Pouco a pouco distinguia os cadáveres e aproximava-se então. Interessavam-lhe apenas os afogados; quando havia vários cadáveres enrodilhados e azulados pela água, olhava-os avidamente, procurando reconhecer Camilo entre eles. Não raro, os rostos apresentavam-se sem pedaços de pele, os ossos furando a pele amolecida, reduzindo-os a papas. Laurent hesitava; examinava os corpos, buscando a magreza da sua vítima. Mas todos os afogados eram gordos; via ventres enormes, pernas inchadas, braços redondos e fortes. Indeciso, ficava arrepiado diante daqueles farrapos esverdeados que pareciam escarnecer em horríveis esgares.
Uma manhã, um acontecimento deixou-o verdadeiramente apavorado. Observava há minutos um afogado, de pequena estatura, atrozmente desfigurado, A carne estava mole e decomposta a tal ponto que a água com que era lavada a arrastava pedaço a pedaço. O jato que caía sobre o rosto abria um buraco ao lado do nariz e, bruscamente, este desfez-se, os lábios desapareceram, mostrando os dentes brancos: a cabeça do afogado rebentou em riso.
De cada vez que julgava reconhecer Camilo, Laurent sentia uma queimadura no coração. Desejava ardentemente encontrar o corpo da sua vítima, mas sentia a fraqueza invadi-lo quando imaginava vê-lo diante de si. As visitas à Morgue povoaram-lhe as noites de pesadelos e de frêmitos que o faziam arquejar. Tentava sacudir os terrores, dizia de si para si que não era criança, queria ser forte; não obstante, a sua carne revoltava-se, a repulsa e o terror apossavam-se dele enquanto permanecia no ambiente da Morgue.
Quando não havia mortos por afogamento na última fila de lajes, respirava aliviado; a repugnância não se fazia sentir. Transformava-se então num simples curioso, com um prazer estranho em olhar de frente a morte violenta nas suas atitudes lugubremente bizarras e grotescas. O espetáculo divertia-o, sobretudo se havia mulheres expondo a nudez do colo. A nudez brutal daqueles corpos estendidos, manchados de sangue, esburacados por vezes, atraía-o e retinha a sua atenção. Viu uma vez uma jovem do povo aparentando uns 20 anos, forte, que parecia dormir sobre a laje; o corpo, fresco e bem provido de carne, alvejava, com tons suaves de grande delicadeza; a boca esboçava ainda um sorriso na cabeça um pouco inclinada, e os seios avançavam de maneira provocante; dir-se-ia uma cortesã se não apresentasse no pescoço um sulco violáceo que parecia um colar de sombra. A jovem, num desespero de amor, acabara de se enforcar. Laurent olhou-a longamente, passeando os olhos ao longo do corpo, absorvido numa espécie de desejo tímido.
Todas as manhãs, enquanto ali se encontrava, ouvia à sua volta o vaivém das pessoas que entravam e saíam. A Morgue é espetáculo ao alcance de todas as bolsas, que pobres ou ricos oferecem gratuitamente a si próprios.
A porta está aberta, entra quem quer. Amadores há que fazem um desvio para não perder uma destas representações da morte. Se as lajes estão vazias, saem desapontados, murmurando entre dentes. Quando estão bem providas, quando há uma boa exposição de carne humana, os visitantes comprimem-se, dando-se emoções baratas, assustam-se, deleitam-se, aplaudem ou assobiam como no teatro e retiram-se satisfeitos, declarando que a Morgue nesse dia saiu-se bem.
Laurent conheceu depressa o público que ali acorria, público heterogêneo que se compadecia e escarnecia em comum. Entravam operários, a caminho do trabalho, com um pão e as ferramentas debaixo do braço; achavam a morte divertida. Entre eles encontravam-se os que faziam sorrir a galeria a cada frase sobre o ricto de cada cadáver; chamavam carvoeiros aos que tinham morrido queimados; os enforcados, os assassinados, os afogados, os cadáveres estripados ou esmagados, excitavam-lhes a imaginação zombeteira e com voz que lhes tremia ligeiramente balbuciavam frases cômicas no silêncio arrepiante da sala.
Chegavam depois pequenos proprietários, velhos magros e secos, ociosos que entravam ali por não terem nada que fazer e que olhavam para os corpos estupidamente e com modos de pessoas pacíficas e delicadas.
As mulheres eram em grande número; havia jovens operárias de cores rosadas, saias brancas, limpas, que iam de um extremo ao outro da divisória, lentamente, abrindo muito os olhos atentos como se estivessem diante da vitrina de uma loja de novidades; havia também mulheres do povo, rudes, com expressões lamentosas, e damas bem postas, arrastando negligentemente o vestido de seda.
Um dia, Laurent viu uma destas senhoras imóvel a alguns passos da divisória envidraçada, apertando o nariz com um lenço de cambraia. Usava uma deliciosa saia de seda cinzenta, com um grande mantelete de renda negra; um véu cobria-lhe o rosto e através das luvas adivinhavam-se as mãos pequenas e finas. Rodeava-a um aroma suave de violeta. Olhava para o cadáver de um rapaz, estendido a alguns passos sobre a laje, um pedreiro que morrera instantaneamente ao cair de um andaime; o peito era quadrado, de músculos fortes e curtos, e a carne branca e espessa; a morte transformara-o em mármore. A dama examinava-o, parecendo querer virá-lo com o olhar, pesava-o, toda absorvida no espetáculo daquele homem. Ergueu uma ponta do véu, lançou um último olhar ao corpo e saiu.
Às vezes apareciam bandos de garotos, rapazes de 12 a 15 anos que corriam ao longo da divisória só se detendo diante dos cadáveres de mulheres. Apoiavam as mãos nos vidros e passeavam atrevidamente os olhos pelos colos nus. Acotovelavam-se e lançavam ditos jocosos: aprendiam o vício na escola da morte.
É na Morgue que os jovens vadios têm a primeira amante.
Ao cabo de uma semana, Laurent estava enojado. Sonhava à noite com os cadáveres que via pela manhã. Este sofrimento, a repugnância diária que impunha a si próprio acabou por perturbá-lo a tal ponto que resolveu fazer apenas mais duas visitas. No dia seguinte, ao entrar, recebeu um violento golpe no peito: à sua frente, numa laje, estendido de costas, a cabeça levantada e os olhos entreabertos, Camilo olhava-o.
O assassino aproximou-se lentamente da divisória, como que atraído e sem conseguir afastar os olhos da sua vítima. Não sofria; apenas experimentava um enorme frio interior e leves picadas à flor da pele. Julgara que tremeria mais. Permaneceu imóvel durante cinco longos minutos, absorto numa contemplação inconsciente, malgrado seu, gravando no fundo da memória todos os contornos horríveis, todas as cores sujas do quadro que tinha diante dos olhos.
Camilo estava ignóbil. Estivera 15 dias na água. O rosto parecia ainda firme e rígido, conservando os traços, e somente a pele adquirira uma tonalidade esverdeada e lamacenta. A cabeça magra, ossuda e ligeiramente tumefacta, estava torcida num trejeito, com os cabelos colados às têmporas, as pálpebras levantadas mostrando o globo turvo; os lábios torcidos e pendendo para um dos cantos da boca tinham um ricto atroz; por entre a brancura dos dentes aparecia uma ponta da língua escurecida. Como que curtida e esticada, conservando aparência humana, a cabeça ficara mais assustadora de dor e de terror. O corpo parecia um monte de carne amolecida; sofrera horrivelmente. Os braços estavam deslocados; as clavículas furavam a pele dos ombros.
Na pele esverdeada do peito, as costelas marcavam faixas negras; o flanco esquerdo apresentava-se aberto e rodeado de farrapos de carne escurecida. Todo o dorso estava em decomposição. Mais firmes, as pernas alongavam-se, cobertas de manchas imundas. Os pés tombavam.
Laurent continuava com os olhos pregados em Camilo. Não tinha ainda visto um afogado com aspecto tão pavoroso. O cadáver tinha, por outro lado, um ar mirrado,magro e franzino; encolhia-se na podridão; fazia apenas um pequeno monte. Era fácil adivinhar que estava ali um funcionário de 1.200 francos, estúpido e doente, que a mãe alimentava com tisanas. Aquele pobre corpo, que crescera entre cobertores aquecidos, tiritava sobre a laje fria.
Quando Laurent se conseguiu arrancar à curiosidade pungente que o mantinha imóvel e de olhos escancarados, saiu e caminhou rapidamente ao longo do cais, não cessando de repetir: "Ali está o que fiz. É ignóbil." Tinha a sensação de que o seguia um odor acre, o odor que devia exalar aquele corpo em decomposição.
Dirigiu-se à casa do velho Michaud e disse-lhe que acabava de reconhecer Camilo na Morgue. Foram cumpridas as formalidades, enterrou-se o afogado e foi passada a certidão de óbito. Doravante tranqüilo, Laurent lançou-se com volúpia no esquecimento do crime e das cenas desagradáveis e penosas que se tinham sucedido.
A loja da passagem da Ponte Nova ficou fechada durante três dias. Quando reabriu, parecia mais sombria e mais úmida. A vitrina, amarelecida pela poeira, parecia ostentar o luto da casa; tudo estava ao abandono nas vitrinas sujas. Por detrás das toucas suspensas nas varas enferrujadas, o rosto de Teresa estava mais pálido, de cor mais terrosa, de uma imobilidade e de uma calma sinistras. Na passagem, todas as comadres e mexeriqueiras manifestaram compaixão. A vendedora de bijuterias mostrava a cada cliente o perfil emaciado da jovem viúva, como curiosidade interessante e lamentável.
Durante três dias, a senhora Raquin e Teresa ficaram de cama sem se falarem e sem mesmo se verem.
A velha capelista, sentada e recostada nas almofadas, olhava vagamente à sua frente com olhos de idiota. A morte do filho fora um golpe demasiado rude que a atingira profundamente. Quedava-se horas inteiras inerte, absorta no vazio do seu desespero; depois acometiam-na crises durante as quais chorava, gritava e delirava.
No quarto contíguo, Teresa parecia dormir; voltara o rosto para a parede e puxara as cobertas até aos olhos. Permanecia assim, hirta e muda, sem fazer um movimento. Dir-se-ia que escondia na sombra da alcova os pensamentos que a conservavam rígida. Suzana, que tratava das duas, repartia-se entre uma e outra, movendo-se suavemente, inclinando o rosto de cera sobre os dois leitos, sem conseguir fazer mudar a posição de Teresa, que tinha bruscos movimentos de impaciência, nem consolar a senhora Raquin, cujas lágrimas corriam quando uma voz a arrancava do seu abatimento.
Decorridos três dias, Teresa afastou as cobertas e sentou-se na cama num reflexo rápido, com uma espécie de febril decisão. Afastou os cabelos, sem pressa, e conservou por momentos as mãos na testa, de olhos fixos, parecendo ainda refletir. Depois saltou para o tapete. Tinha os membros avermelhados e com arrepios de febre, placas lívidas marcavam-lhe a pele que em alguns pontos se enrugava como por falta de carne. Tinha envelhecido. Suzana, que entrava nesse instante, ficou surpreendida por vê-la levantada; em tom calmo e suave, aconselhou-a a deitar-se de novo, a continuar a repousar. Teresa não a escutava; vestia-se com gestos apressados e trêmulos. Quando terminou olhou-se a um espelho, esfregou os olhos, passou as mãos pelo rosto como para apagar qualquer coisa. Em seguida, sem pronunciar uma palavra, atravessou rapidamente a sala de jantar e entrou no quarto da senhora Raquin.
A velha capelista estava numa fase de calmo embrutecimento. Quando Teresa entrou, voltou a cabeça e seguiu com os olhos a jovem viúva, que se colocou à sua frente, muda e oprimida. As duas mulheres contemplaram-se durante alguns segundos, a sobrinha com ansiedade crescente e a tia fazendo penosos esforços de memória. Coordenando finalmente as idéias, a senhora Raquin estendeu os braços trêmulos e rodeando o pescoço de Teresa, gritou:
— Meu pobre filho, meu pobre Camilo!
Rompeu em choro e as lágrimas secavam na pele ardente da viúva, que escondia os olhos secos numa prega da roupa. Teresa manteve-se naquela posição, deixando a velha mãe dar livre curso ao pranto. Receara aquele primeiro encontro depois do crime; retardara-o mantendo-se na cama, a fim de melhor refletir sobre o papel terrível que tinha de desempenhar.
Quando viu a senhora Raquin mais calma, agitou-se à sua volta incitando-a a levantar-se, a descer à loja. A velha capelista quase voltara à infância. A inesperada aparição da sobrinha causara-lhe um choque benéfico, restituindo-lhe a memória e a consciência das coisas e dos seres que a rodeavam. Agradeceu à Suzana os seus cuidados, conversou, embora enfraquecidamente e cheia da tristeza que por momentos a abafava. Olhava Teresa mover-se e rompia em lágrimas; chamava-a então para junto de si e abraçava-a entre soluços, dizendo sufocadamente que não tinha mais ninguém no mundo.
À noite acedeu a levantar-se e tentar comer. Teresa pôde ver em toda a extensão o golpe que atingira a tia. As pernas da pobre velha tinham-se tornado pesadas e foi amparada a uma bengala que se arrastou até à sala de jantar, cujas paredes lhe pareceram vacilar à sua volta.
Foi ela no entanto que insistiu para que se abrisse a loja a partir do dia seguinte. Receava enlouquecer no quarto. Desceu pesadamente a escada de madeira, pousando ambos os pés em cada degrau, e sentou-se atrás do balcão. A partir desse dia ficou ali, pregada numa serena dor.
A seu lado, Teresa sonhava e esperava. A loja retomou a soturna calma.
Laurent aparecia à noite, de dois em dois ou três em três dias. Ficava na loja, conversando com a senhora Raquin durante uma meia hora. Partia, sem ter olhado Teresa de frente. A velha capelista considerava-o o salvador da sobrinha, um coração nobre que tudo fizera para lhe trazer o filho. Era com enternecida bondade que o recebia.
Numa quinta-feira, à noite, em que Laurent se encontrava na loja, chegaram o velho Michaud e Grivet. Eram oito horas. O funcionário e o antigo comissário tinham cada um por seu lado concluído que podiam retomar os hábitos que lhes eram caros sem se mostrarem importunes, e tinham chegado ao mesmo tempo, como que impelidos pela mesma mola, Atrás deles chegaram Olivier e Suzana.
Subiram à sala de jantar. A senhora Raquin, que não esperava ninguém, apressou-se a acender o candeeiro e a fazer chá. Quando todos estavam à mesa, cada um diante da sua chávena e espalhadas as pedras do dominó, a pobre mãe, subitamente volvida ao passado, olhou para os visitantes e rompeu em soluços. Estava vazio um lugar, o lugar do filho.
A cena de desespero gelou e perturbou os circunstantes. Todos os rostos tinham um ar de beatitude egoísta e de repente sentiram-se incomodados; nos seus corações não existia a mínima recordação de Camilo.
— Vamos, cara senhora — exclamou o velho Michaud com ligeira impaciência — é preciso que não se desespere assim. Pode ficar doente.
— Somos todos mortais — afirmou Grivet.
— As lamentações não lhe restituirão o seu filho — sentenciou Olivier.
— Peço-lhe — murmurou Suzana — não nos faça sofrer.
E como a senhora Raquin soluçasse mais intensamente, sem conseguir deter as lágrimas:
— Vamos, vamos — insistiu Michaud — um pouco de coragem. Compreenda que viemos aqui para a distrair. Que diabo! Não vamos entristecer-nos, procuremos esquecer.
. . Vamos jogar a dois sous a partida, hem? Que dizem?
A capelista susteve o pranto, num esforço supremo. Teve talvez consciência do feliz egoísmo dos que ali se encontravam. Secou os olhos, trêmula ainda. As pedras do dominó tremiam-lhe nas pobres mãos e as lágrimas que tinham ficado suspensas nas pálpebras não a deixavam ver.
Jogaram.
Laurent e Teresa tinham assistido à curta cena com expressão grave e impassível. Laurent estava encantado pelo regresso aos serões das quintas-feiras. Desejava-os ardentemente, sabendo que teria necessidade daquelas reuniões para atingir os seus fins. Depois, sem saber porque, sentia-se mais à vontade entre aquelas pessoas que conhecia, e ousava olhar Teresa de frente.
A jovem, vestida de negro, pálida e recolhida, surgiu a seus olhos com uma beleza para ele até ali desconhecida. Sentiu-se feliz por reencontrar os seus olhares e por vê-los deterem-se nos seus com corajosa fixidez. Teresa continuava a pertencer-lhe, de carne e coração.
Passaram-se 15 meses. Os espinhos das primeiras horas suavizaram-se; cada dia trazia um pouco mais de tranqüilidade e de conformação; a vida retomava o seu curso com frouxidão, com o monótono embrutecimento que se sucede às grandes crises. A princípio, Laurent e Teresa abandonaram-se à existência nova que os transformava; desenrolava-se neles um trabalho surdo que seria necessário analisar com extrema delicadeza se se quisesse assinalar-lhe todas as fases.
Laurent não tardou a aparecer todas as noites na loja, como no passado. Não comia, porém, nem tampouco ficava os serões inteiros. Chegava às nove e meia e despedia-se depois de ter fechado o armazém. Dir-se-ia que cumpria um dever ao colocar-se ao serviço das duas mulheres. Se acaso um dia não cumpria a tarefa, no dia seguinte pedia humildemente desculpa.
Na quinta-feira ajudava a senhora Raquin a acender o fogo e a fazer as honras da casa. Tinha pequenas atenções que cativavam a velha capelista.
Tranqüilamente, Teresa olhava-o agitar-se à sua volta. Desaparecera-lhe a palidez; parecia ter recuperado a saúde, estava mais sorridente e mais doce. Eram raras as expressões em que a sua boca, apertando-se numa contração nervosa, cavava duas rugas profundas que lhe davam um estranho ar de dor e de terror.
Os dois amantes não procuravam ver-se a sós. Não tinham voltado a combinar um encontro e tampouco tinham trocado furtivamente um beijo. O crime tinha como que apaziguado momentaneamente a ardência voluptuosa da carne; tinham conseguido, matando Camilo, contentar os desejos impetuosos e insaciáveis que não tinham satisfeito nos braços um do outro. O crime parecia-lhes uma alegria dolorosa que os levara a sentir tédio e repulsa pelos abraços amorosos.
E no entanto teriam tido mil facilidades para realizar a vida livre de amor cujo desejo os levara ao assassínio. A senhora Raquin, entrevada, reduzida a um estado de idiota, já não era um obstáculo. A casa era deles, podiam sair para onde quisessem. Mas o amor já não os tentava, os apetites tinham-se desvanecido; ficavam ali, conversando calmamente, olhando-se sem rubor e sem estremecimentos, parecendo ter esquecido os loucos abraços que lhes magoaram a carne e fizeram estalar os ossos. Evitavam mesmo estar a sós; nessa intimidade nada encontravam para dizer um ao outro, receando ambos revelar mutuamente a frieza interior. Quando as suas mãos se tocavam experimentavam uma espécie de mal-estar com o contato.
Julgavam, no entanto, explicar a si próprios a razão da indiferença e do sobressalto entre eles. Levavam a frieza da atitude à conta da prudência. A calma e a abstinência eram, segundo eles, o resultado da aplicação do maior bom senso. Pretendiam ser conseqüência da vontade a tranqüilidade da carne, o adormecimento do coração. Por outro lado, consideravam vestígios do medo, a repugnância e o mal-estar que sentiam, um peso surdo do castigo. Por vezes impunham a esperança a si próprios, procuravam reatar os sonhos ardentes do passado e davam-se conta, com espanto, que a sua imaginação estava vazia. Agarravam-se então à idéia do casamento próximo; quando aí chegassem, nada mais tendo a recear, entregues um ao outro, voltariam a encontrar a paixão, desfrutariam as delícias sonhadas. Esta esperança acalmava-os, detendo-lhes ainda a queda no vazio que entre eles se cavara. Persuadiam-se de que se amavam como antigamente, aguardavam a hora que os tornaria completamente felizes unindo-os para sempre.
Teresa jamais tivera o espírito tão tranqüilo. Estava sem dúvida melhor. Todas as vontades implacáveis do seu ser afrouxavam de pressão.
À noite, sozinha no leito, sentia-se feliz; não mais sentia a seu lado o rosto macilento e o corpo definhado de Camilo, que lhe exasperava a carne e a mergulhava em desejos insatisfeitos. Julgava-se de novo criança, virgem, debaixo de brancas cortinas, tranqüila no meio do silêncio e da sombra. O quarto, vasto e algo frio, de teto alto, os cantos obscuros e um odor a claustro, agradava-lhe. Já gostava até do grande muro negro diante da janela; todas as noites, durante um verão inteiro, ficou horas a olhar para as pedras cinzentas e para as estreitas faixas de céu estrelado que as chaminés e os telhados deixavam ver. Não pensava em Laurent senão quando um pesadelo a acordava sobressaltada; sentava-se, trêmula, de olhos bem abertos, apertando a combinação contra o corpo e dizendo a si própria que se tivesse m homem deitado a seu lado não seria presa de semelhantes terrores súbitos. Pensava no amante como num cão que a guardasse e protegesse; pela sua pele fresca e alma não perpassava um só frêmito de desejo.
Durante o dia, na loja, interessava-se pelo que se passava à sua volta; saía de si própria, não mais vivendo surdamente revoltada, imersa em pensamentos de ódio e de vingança. A fantasia impacientava-a; tinha necessidade de agir e de ver. De manhã à noite observava as pessoas que atravessavam a passagem; o ruído e o movimento de vaivém divertia-a. Tornava-se curiosa e tagarela, mulher, numa palavra, já que, até ali, apenas tivera atos e idéias de homem.
Na espécie de espionagem que criou, veio a reparar num jovem, estudante, que vivia numa hospedaria mobiliada ali perto e que passava muitas vezes diante da loja.
O rapaz tinha uma beleza pálida, compridos cabelos de poeta e um bigode de oficial. Teresa achou-o distinto. Esteve apaixonada durante uma semana, apaixonada como uma colegial. Leu romances, comparou o jovem a Laurent e concluiu que este era bem mais gordo e pesado. A leitura abriu-lhe românticos horizontes que desconhecia; amara até ali com o sangue e os nervos apenas e começou a amar com a cabeça. Um dia, o estudante desapareceu; tinha-se mudado sem dúvida. Teresa esqueceu-o em poucas horas.
Fez-se assinante de um clube literário e apaixonou-se pelos heróis de todos os contos que lhe passavam debaixo dos olhos. Este súbito interesse pela leitura exerceu grande influência sobre o seu temperamento. Adquiriu uma sensibilidade nervosa que a fazia rir ou chorar sem aparente motivo; o equilíbrio, que tendia a estabelecer-se, foi rompido. Caiu numa espécie de sonho vago. Por momentos o pensamento de Camilo sacudia-a e lembrava-se de Laurent com renovados desejos, cheios de pavor e de desconfiança. Voltou assim às suas angústias; quanto mais procurava um meio para desposar o amante nesse mesmo instante, mais buscava salvar-se, não voltar a vê-lo. Ao falarem-lhe de castidade e de honra, os romances ergueram-lhe como que um obstáculo entre os instintos e a vontade. Ficou o animal indomável que queria lutar com o Sena e que se lançara violentamente no adultério; mas teve por outro lado consciência da bondade e da doçura, compreendeu o rosto mole e a atitude frouxa da mulher de Olivier, teve a percepção que podia não ter morto marido e ser feliz. Então não se entendeu a si própria, entrou numa existência de indecisão cruel.
Por seu lado, Laurent passou por diferentes fases febris e de acalmia. A princípio saboreava profunda tranqüilidade; estava como que aliviado de um peso enorme. Interrogava-se por vezes com espanto, julgando ter tido um pesadelo, se efetivamente lançara Camilo à água e vira o seu cadáver estendido numa laje da Morgue. A recordação do crime surpreendia-o estranhamente; jamais se teria julgado capaz de praticar um assassínio; toda a sua prudência e covardia o faziam estremecer e sentia suores frios na testa à idéia de que o crime poderia ter sido descoberto e por ele ter morrido na guilhotina. Sentia então no pescoço o frio da lâmina. Enquanto agira, caminhara em linha reta, com embrutecida obstinação e cegueira. Olhava agora para trás e ao ver o abismo que acabava de transpor assaltavam-no desfalecimentos de pavor.
— Sem dúvida que estava bêbado — pensava
— esta mulher embriagou-me com carícias. Meu Deus! Como fui estúpido e louco; Arriscava-me à guilhotina com uma coisa destas... Enfim, tudo correu bem. Se tivesse de voltar ao princípio, não o faria.
Laurent cedeu, ficou sem energia, mais covarde e mais prudente que nunca. Engordou e ficou mais flácido. Se alguém estudasse aquele grande corpo, abatido sob o próprio peso, que parecia não ter nem ossos nem nervos, jamais sonharia em acusá-lo de violência e de crueldade.
Voltou aos hábitos antigos. Durante alguns meses foi de novo um empregado modelo, fazendo o seu trabalho com exemplar monotonia. Jantava num pequeno restaurante na Rua de Saint Victor, cortando o pão em pequenos pedaços, mastigando lentamente, prolongando a refeição o mais possível; em seguida, encostado à parede, fumava o seu cachimbo. Dir-se-ia um bom chefe de família. Durante o dia, não pensava em nada; à noite adormecia com um sono pesado e sem sonhos. De rosto rosado e gordo, a barriga cheia e o cérebro vazio, era feliz. A sua carne parecia morta e não pensava muito em Teresa. Lembrava-se dela como se pensa numa mulher com quem se há de casar, num futuro indeterminado. Aguardava a hora do casamento pacientemente, esquecendo a mulher para ter presente apenas a nova situação que iria ter. Abandonaria a repartição, pintaria por distração e passearia. Estas perspectivas levavam-no todas as noites à loja da passagem, malgrado o vago mal-estar que experimentava quando entrava.
Um domingo, aborrecido, sem saber o que fazer, foi à casa do antigo companheiro do colégio, o jovem pintor com o qual vivera durante bastante tempo. O artista trabalhava num quadro que contava enviar ao Salão e que representava uma bacante nua, estendida sobre um pedaço de tecido. Ao fundo do ateliê estava estendido o modelo, a cabeça dobrada para trás, o tronco torcido e as ancas erguidas. A mulher ria de vez em quando, estendendo o peito e alongando os braços, num espreguiçar de músculos para descansar. Laurent, sentado diante dela, observava-a, fumando ao mesmo tempo que conversava com o amigo. O sangue começou a fluir-lhe com mais rapidez e os nervos sensibilizaram-se com a contemplação. Ficou até à noite e levou a mulher para as suas águas-furtadas. Durante quase um ano teve-a por amante. A pobre moça começara a amá-lo, achando-o um belo homem. De manhã partia para posar durante todo o dia e regressava regularmente à mesma hora todas as noites; comia e vestia-se, mantinha-se enfim, com o dinheiro que ganhava, não custando um sou a Laurent, que não se preocupava absolutamente nada em saber donde ela vinha ou que poderia ter feito. Esta mulher constituiu mais um equilíbrio na sua vida; aceitou-a como um objeto útil e necessário para manter a saúde e a paz do seu corpo, jamais soube se a amava e jamais lhe passou pela cabeça que traía Teresa. Sentia-se mais gordo e mais feliz. Era tudo.
O luto de Teresa acabou entretanto. A jovem voltou a vestir roupas claras e um dia Laurent encontrou-a remoçada e mais bonita. Continuava porém a não se sentir à vontade diante dela; parecia-lhe agora febril, cheia de caprichos, entristecendo-se sem motivo. A indecisão em que a via assustava-o, porque em parte adivinhava as suas lutas e perturbações. Começou a ser invadido pela hesitação, com um medo atroz de comprometer a tranqüilidade; ele vivia em paz, em sábia satisfação dos seus apetites e receava arriscar o equilíbrio unindo-se a uma mulher nervosa, cuja paixão já o tinha enlouquecido. Aliás, não raciocinava estas conclusões, sentia por instinto as angústias que a posse de Teresa lhe causaria.
O primeiro choque que teve e que lhe sacudiu o entorpecimento foi o pensamento de que devia finalmente encarar o casamento.
Camilo morrera há quase 15 meses. Por momentos assaltou-o o desejo de não se casar, de deixar Teresa e manter o modelo cujo amor complacente e pouco dispendioso o satisfazia. Depois, disse de si para si que não podia ter matado um homem para nada; ao recordar o crime, os esforços terríveis feitos para possuir exclusivamente aquela mulher que agora o perturbava, sentiu que o assassínio seria inútil se não a desposasse. Lançar um homem à água para lhe roubar a viúva, esperar 15 meses e decidir-se por fim a viver com uma jovem que arrastava o corpo por todos os estúdios, pareceu-lhe ridículo e fê-lo sorrir. Não estava aliás unido à Teresa por um laço de sangue e de horror?
Sentia-a vagamente gritar e contorcer-se dentro de si, que lhe pertencia. Tinha medo da cúmplice; se não a desposasse, talvez ela fosse revelar tudo à justiça, por vingança e por ciúme. Estas idéias martelavam-lhe a cabeça. A febre voltou a apossar-se dele. Neste entretempo a modelo abandonou-o subitamente. Um domingo a jovem não apareceu; encontrara sem dúvida um pouso mais quente e mais confortável. Laurent pouco se preocupou; estava simplesmente habituado a ver, à noite, uma mulher deitada a seu lado e deu-se conta de um vazio súbito na sua existência. Oito dias depois os seus nervos revoltaram-se. Voltou a instalar-se, durante serões inteiros, na loja da passagem, olhando de novo para Teresa com olhares repassados de clarões rápidos.
A jovem por sua vez, a quem as longas leituras a que se entregava deixavam fremente, enlanguecia e abandonava-se sob os olhares de Laurent.
Tinham assim voltado ambos à angústia e ao desejo, depois de um longo ano de tédio e de indiferença. Uma noite, ao fechar a loja, Laurent reteve um instante Teresa na passagem.
— Queres que venha esta noite ao teu quarto? — perguntou-lhe com voz ardente.
A jovem fez um gesto de pavor.
— Não, não, esperemos. Sejamos prudentes.
— Já espero há muito tempo, creio eu — volveu Laurent — estou cansado, quero-te.
Teresa olhou-o, enlouquecida; sentia ardores queimarem-lhe as mãos e o rosto. Pareceu hesitar; depois, em tom brusco:
— Casemo-nos, serei tua.
Laurent saiu da loja com o espírito tenso e a carne em sobressalto. O hálito quente e o consentimento de Teresa reacendiam-lhe os apetites de outros tempos. Encaminhou-se para o cais, de chapéu na mão, para receber no rosto e na cabeça todo o ar que pudesse.
Ao chegar à Rua de Saint-Victor, à porta da pensão, teve medo de subir, de ficar só. O pavor infantil, inexplicável, imprevisível, de encontrar um homem escondido nas águas-furtadas, apossou-se dele. Jamais se sentira dominado por semelhante pusilanimidade. Nem sequer tentou definir o estranho frêmito que o sacudia; entrou numa taberna e ficou ali durante uma hora, até à meia-noite, imóvel e mudo sentado a uma mesa, bebendo maquinalmente grandes copos de vinho. Pensava em Teresa e irritava-se contra ela, que não o quisera receber nessa noite no seu quarto e que, se tal tivesse acontecido, não teria sentido medo.
A taberna fechou e ele ficou à porta. Voltou a entrar para pedir fósforos. O escritório da pensão ficava no primeiro andar. Laurent tinha um longo caminho a percorrer antes de acender a sua vela. As escadas às escuras apavoravam-no. Habitualmente atravessava as trevas com indiferença, mas nessa noite não ousava tocar a campainha dizendo de si para si que na reentrância formada pela entrada para a adega, poderiam estar assassinos que lhe saltariam à garganta, à sua passagem. Decidiu-se finalmente a tocar, acendeu um fósforo e avançou pelo corredor. O fósforo extinguiu-se. Imobilizou-se, ofegante, sem forças para fugir e riscou alguns fósforos na parede úmida, com mão trêmula pela ansiedade. Tinha a sensação de ouvir vozes e passos à sua frente. Os fósforos partiam-se-lhe entre os dedos, até que conseguiu acender um.
O enxofre começou a borbulhar, a inflamar a madeira com uma lentidão que redobrou a angústia de Laurent; na luz pálida e azulada, no clarão breve da chama, julgou distinguir formas monstruosas. O fósforo crepitou, a pequena mancha de luz tornou-se mais clara. Aliviado, Laurent avançou com precaução, tomando o cuidado de não lhe faltar a luz.
Ao passar diante da entrada para a adega, comprimiu-se contra a parede oposta: aquela massa de sombra ainda o aterrorizava. Galgou depois vivamente os degraus que do escritório da pensão e considerou-se salvo ao pegar na vela. Os restantes degraus foram transpostos com mais calma, com a vela elevada acima da cabeça e a luz varrendo todos os cantos diante dos quais tinha de passar. As sombras vacilantes que se criam quando alguém está numa escada com uma luz, enchiam-no de um vago mal-estar, ora aproximando-se ora afastando-se dele.
Quando chegou ao alto, abriu a porta e fechou-a rapidamente atrás de si. A primeira preocupação foi a de olhar para debaixo da cama e passar minuciosa revista ao quarto, para se certificar de que não havia ninguém escondido. Fechou a clarabóia, pensando que bem poderia alguém penetrar por ali. Tomadas estas disposições sentiu-se mais calmo e começou a despir-se, ao mesmo tempo que se admirava dos seus terrores. Acabou por sorrir, e chamar criança a si próprio. Nunca fora medroso e não encontrava explicação para aquela crise súbita de terror.
Deitou-se. No aconchego dos cobertores o seu pensamento foi de novo para Teresa, que o medo tinha por momentos feito esquecer. com os olhos obstinadamente fechados, procurando o sono, não conseguia impedir o curso dos pensamentos, que se encadeavam e lhe apresentavam sempre as vantagens que teria em casar-se o mais depressa possível. Voltando-se de vez em quando, dizia de si para si: "Chega de pensar, vamos dormir; tenho de levantar-me amanhã às oito horas para ir para o escritório." Redobrava de esforços para conciliar o sono, mas as idéias continuavam a surgir, uma após outra; o trabalho surdo do raciocínio recomeçava; de repente estava mergulhado numa espécie de fantasia que no fundo do cérebro lhe desenrolava as necessidades do casamento, os argumentos que os seus desejos e a sua prudência alternadamente lhe forneciam a favor ou contra a posse de Teresa.
Vendo que não conseguia dormir, que a insônia dominava a carne e o pensamento, ficou de costas e de olhos abertos, abandonando a mente às recordações da jovem. O equilíbrio estava rompido, o calor da febre do passado sacudia-o de novo. Pensou levantar-se, voltar à passagem da Ponte Nova. Faria com que lhe abrissem a grade, iria bater à pequena porta da escada e Teresa recebê-lo-ia. Sentiu o sangue afluir-lhe ao pescoço ao chegar a este ponto do seu pensamento.
A fantasia tinha uma lucidez extraordinária. Via-se nas ruas, caminhando depressa ao longo das casas e dizia para si mesmo: "vou por este bulevar, atravesso este cruzamento para chegar mais depressa." Depois a cancela da passagem rangia, ele avançava pela estreita galeria, sombria e deserta, felicitando-se por poder chegar até junto de Teresa sem ser visto pela vendedora de bijuterias; imaginava-se em seguida no corredor, na escada estreita por onde passara tantas vezes. Ali, experimentava as alegrias penetrantes de outrora, recordava-se dos deliciosos terrores, das picantes volúpias do adultério. As recordações tornaram-se realidades que excitaram todos os seus sentidos: sentia o cheiro enjoativo do corredor, tocava nas paredes viscosas, via a sombra suja que arrastava. Subia degrau a degrau, ofegante, de ouvido atento, contentando já os desejos neste aproximar receoso da mulher desejada. Finalmente raspava na porta, a porta abria-se e Teresa que o esperava surgia, em saiote, toda branca.
Os pensamentos desenrolavam-se à sua frente em espetáculos reais. com olhos fixos na sombra, via. E quando, no fim da caminhada pelas ruas, da entrada na passagem e da subida da escada estreita, julgou distinguir Teresa, ardente e pálida, saltou vivamente da cama, murmurando: "Tenho de ir, ela espera-me."
O brusco movimento arrancou-o da alucinação: sentiu o frio do chão e teve medo. Por momentos ficou imóvel, os pés nus, à escuta. Parecia-lhe ouvir ruído no mosaico. Se fosse à casa de Teresa, era necessário passar de novo diante da porta da adega, embaixo; este pensamento fez-lhe correr um arrepio frio pela espinha. O terror invadiu-o de novo, um terror invencível, esmagador. Olhou desconfiadamente pelo quarto e viu arrastarem-se pedaços esbranquiçados de claridade; suavemente então, com cautelas plenas de ansiosa presa voltou a enfiar-se na cama e enrolou-se, escondendo-se, como para se esquivar a uma arma, a uma faca que o ameaçasse.
O sangue afluiu-lhe ao pescoço com violência, com uma sensação de queimadura. Levantou a mão e sentiu sob os dedos a cicatriz da mordida de Camilo, que quase esquecera por completo. Ficou aterrado ao senti-la, teve a impressão que lhe devorava a carne. Retirou vivamente a mão mas continuava a senti-la, devoradora, furando-lhe a pele. Quis cocar delicadamente, com a ponta da unha; o ardor terrível redobrou. Para não arrancar a pele fechou ambas as mãos entre os joelhos encolhidos. Tenso e irritado, permaneceu naquela posição, com o pescoço em fogo e os dentes a tremer de medo.
Os pensamentos ligavam-se agora a Camilo com aterradora fixidez. Até ali o afogado não tinha perturbado as noites de Laurent.
E eis que pensar em Teresa arrastava o espectro do marido. O assassino não ousava abrir os olhos; receava descobrir a vítima num canto do quarto. A certa altura pareceu-lhe que a cama estremecera estranhamente; imaginou que Camilo se escondera sob a cama e a sacudira para fazê-lo cair e mordê-lo em seguida. Fora de si, com os cabelos em pé, cravou os dedos no colchão, que lhe parecia sentir estremecer cada vez com mais violência.
Reagiu, apercebendo-se que o leito estava imóvel. Sentando-se, acendeu a vela e chamou imbecil a si próprio. Para acalmar a febre interior, engoliu um grande copo de água. "Fiz mal em beber na taberna", pensou. "Não sei o que tenho esta noite. É estúpido. Amanhã no escritório estou estafado. Devia adormecer ao meter-me na cama e não pensar num monte de coisas: foi isso que me causou insônia... Vamos dormir."
Soprou de novo a vela, mergulhou a cabeça no travesseiro, um pouco mais fresco, firmemente decidido a não pensar em mais nada, a não voltar a sentir medo. O cansaço começava a descontrair-lhe os nervos.
Não dormiu o sono habitual, pesado e profundo, deslizou lentamente para uma sonolência vaga. Estava como que simplesmente entorpecido, mergulhado num embrutecimento doce e voluptuoso. Não deixara de sentir o corpo; a inteligência mantinha-se acordada na carne adormecida. Afastara os pensamentos, defendera-se da vigília. Depois, quando ficou sonolento, quando as forças lhe faltaram e a vontade lhe escapou, os pensamentos voltaram suavemente, um após outro, reapossando-se do seu ser abatido.
Os sonhos voltaram. Voltou a fazer o caminho que o separava de Teresa: desceu as escadas, passou correndo diante da porta da adega e encontrou-se na rua; fez todo o percurso que fizera antes, ao sonhar de olhos abertos; entrou na passagem da Ponte Nova, subiu a escada estreita e arranhou a porta. Mas em lugar de Teresa, em lugar da jovem em saiote, de colo nu, era Camilo quem lhe abria a porta, Camilo tal qual o vira na Morgue, esverdeado e atrozmente desfigurado. O cadáver estendia-lhe os braços, com um riso ignóbil, mostrando um pedaço da língua escurecida por entre o branco dos dentes.
Laurent soltou um grito e acordou em sobressalto. Estava ensopado em suor gelado. Puxou o cobertor para os olhos, censurando-se, encolerizado contra si mesmo, e esforçou-se por voltar a adormecer.
Conseguiu-o como anteriormente, com lentidão; o mesmo abatimento, e, quando a vontade, na languidez da semi-sonolência o abandonou de novo, ei-lo no início da idéia fixa, correndo para ver Teresa e mais uma vez o afogado a abrir-lhe a porta. Aterrado, o miserável sentou-se na cama. Queria poder afugentar o implacável pesadelo. Ansiava por um sono de chumbo, que esmagasse os seus pensamentos. Enquanto acordado, possuía suficiente energia para afastar o fantasma da vítima; a partir porém do momento em que deixava de ser senhor do espírito, este conduzia-o para o terror ao levá-lo para a volúpia.
Tentou uma vez mais adormecer. Então, foi uma sucessão de entorpecimentos voluptuosos e despertares bruscos e dilacerantes.
Na sua furiosa obstinação encaminhava-se sempre para Teresa e sempre esbarrava no corpo de Camilo. Por 10 vezes fez o caminho, partiu, a carne em brasa, pelo mesmo percurso, teve as mesmas sensações, o mesmo procedimento, com minuciosa exatidão, e 10 vezes viu o afogado oferecer-se ao seu abraço no momento em que estendia os braços para cingir a amante. Este mesmo desfecho sinistro que de cada vez o fazia acordar sobressaltado, ofegante e desvairado, não lhe abrandava o desejo; minutos depois, de novo adormecido, o desejo fazia-o esquecer o cadáver ignóbil que o esperava e corria em busca do corpo tépido e macio de uma mulher. Durante uma hora Laurent debateu-se nesta sucessão de pesadelos, ininterruptos e sempre renovados que, a cada sobressalto, o prostravam com um pavor mais agudo.
A última agitação foi de tal modo violenta e dolorosa que decidiu levantar-se, não lutar mais. O dia rompia; um clarão acinzentado e triste entrava pela clarabóia, que cortava no céu um quadrado esbranquiçado e cor de cinza.
Laurent vestiu-se lentamente, com surda irritação. Estava exasperado por não ter dormido, exasperado por se ter deixado invadir por um terror a que chamava agora infantilidade. Enquanto enfiava as calças, espreguiçava-se, esfregava os membros, passava as mãos pelo rosto pisado e abatido por uma noite febril. E repetia: "Não devia ter pensado em tudo isto, devia dormir e agora estaria fresco e bem disposto... Ah! Se Teresa tivesse querido, a noite passada, se Teresa tivesse dormido comigo..."
A idéia de que Teresa lhe teria evitado o medo tranqüilizou-o um pouco. No fundo, temia passar outras noites idênticas à que acabava de suportar. Lavou o rosto e passou o pente pelos cabelos. Estes preparativos refrescaram-lhe a cabeça e dissiparam-lhe os últimos terrores.
Raciocinava agora com fluidez, não sentindo mais do que uma grande fadiga nos membros.
"E no entanto não sou um covarde", dizia para si mesmo enquanto acabava de se vestir, "bem me importo com Camilo... É absurdo crer que o pobre diabo está debaixo da minha cama. Agora vou talvez acreditar nisso todas as noites... Decididamente, tenho de casar o mais depressa possível.
Quando Teresa me apertar nos braços, não pensarei muito em Camilo. Abraçar-me-á pelo pescoço e deixarei de sentir a dor atroz que senti. Vejamos esta dentada."
Aproximou-se do espelho e estendeu o pescoço. A cicatriz tinha um tom rosado. Distinguindo a marca dos dentes da sua vítima, Laurent experimentou uma certa emoção, sentiu o sangue afluir-lhe à cabeça e deu conta do estranho fenômeno. A cicatriz adquiriu um tom avermelhado sob a onda de sangue, tornou-se viva e sangrenta destacando-se, toda avermelhada, no pescoço gordo e branco.
Simultaneamente, Laurent sentiu picadas agudas, como se lhe estivessem a enterrar agulhas naquele ponto. Apressadamente ergueu o colarinho. "Bah! Teresa curará isto... Bastarão alguns beijos... Como sou estúpido em pensar nestas coisas!"
Pôs o chapéu e desceu. Tinha necessidade de tomar ar, precisava andar. Ao passar diante da porta de acesso à adega, sorriu; contudo, assegurou-se da solidez do gancho da porta. Na rua caminhou em passos lentos, no ar fresco da manhã, ao longo dos passeios desertos. Eram cerca de cinco horas.
Laurent passou um dia terrível. Teve de lutar contra o sono que dele se apossou no escritório durante a tarde. A cabeça pesava-lhe, doía-lhe e pendia não obstante os seus esforços; endireitava-a bruscamente sempre que ouvia os passos de um dos seus chefes. Esta luta, estes sobressaltos, acabaram por alquebrar-lhe os membros,provocando-lhe ansiedade intolerável.
À noite, e não obstante o cansaço, quis ir ver Teresa. Encontrou-a febril, acabrunhada e cansada como ele.
— A nossa pobre Teresa passou mal a noite — disse-lhe a senhora Raquin quando ele se sentou — parece que teve pesadelos, uma insônia terrível... Várias vezes a ouvi gritar. Esta manhã estava mesmo doente.
Enquanto a tia falava, Teresa olhava fixamente para Laurent. Adivinharam, sem dúvida, os terrores comuns, porque idêntico arrepio nervoso atravessou os seus rostos. Ficaram frente a frente até às 10 horas, falando de banalidades, compreendendo-se, conjurando-se pelo olhar para apressar o momento em que poderiam unir-se contra o afogado.
Também Teresa fora visitada pelo espectro de Camilo durante aquela noite febril. A ardente proposta de Laurent para um encontro, decorrido mais de um ano de indiferença, tinha-a bruscamente espicaçado. A carne fervilhou quando, já deitada, pensou que o casamento teria lugar em breve. Por entre os sobressaltos da insônia, viu surgir-lhe o afogado; como Laurent, ela debatia-se no desejo e no terror e, como ele, dizia a si própria que não mais teria medo, que não voltaria a sentir tais sofrimentos quando o amante estivesse entre os seus braços. Acontecera, à mesma hora, nesta mulher e neste homem, uma espécie de desequilíbrio nervoso que os entregava, ansiosos e aterrados, aos seus terríveis amores. Um parentesco de sangue e de volúpia estabelecera-se entre eles. Estremeciam sob os mesmos frêmitos; os corações de ambos, numa espécie de fraternidade pungente, oprimiam-se sob o peso das mesmas angústias. Passaram a ter um só corpo e uma só alma para o prazer e para o sofrimento. Esta comunidade, esta penetração mútua é um caso de psicologia e de fisiologia que ocorre freqüentemente em seres atirados uns contra os outros com violência por grandes abalos nervosos.
Durante mais de um ano, Teresa e Laurent arrastaram sem esforço a cadeia cravada nos seus membros e que os unia; na prostração que se seguiu à crise aguda do assassínio, na repulsa e na carência de calma e de esquecimento que se sucedera, os dois forçados acreditaram serem livres, que não os ligava um anel de ferro; a cadeia arrastava-se por terra; descansavam, atingidos por uma espécie de estupor feliz, procuravam outros amores, viver com sábio equilíbrio.
No dia porém em que as circunstâncias os forçaram de novo a trocar palavras ardentes, a corrente esticou violentamente e receberam um safanão tal que se sentiram ligados um ao outro para sempre.
A partir do dia seguinte, Teresa empenhou-se na obra, trabalhou surdamente para preparar o caminho do seu casamento com Laurent. Era uma tarefa difícil, cheia de perigos. Os amantes tremiam à idéia de cometer uma imprudência, de despertar suspeitas, de revelar com demasiada brusquidão o interesse que tinham tido na morte de Camilo. Compreendendo que não podiam falar de casamento, decidiram um plano inteligente, que consistia em fazer com que lhes fosse oferecido pela própria senhora Raquin e pelos convidados das quintas-feiras, aquilo que não ousavam pedir. Tratava-se nem mais nem menos de fazer nascer naquelas pessoas a idéia de voltar a casar Teresa, fazer-lhe sobretudo acreditar que a idéia era deles e só deles partia.
A comédia foi longa e delicada de desempenhar. Teresa e Laurent puxavam cada um para si o papel que lhes convinha; avançavam com extrema prudência, calculando o mínimo gesto, a mais insignificante palavra. No fundo, estavam devorados pela impaciência que lhes retesava os nervos. Viviam em permanente irritação, era-lhes necessária toda a sua energia para exteriorizarem ares sorridentes e calmos.
Se tinham pressa de chegar ao fim era porque não mais podiam ficar separados e isolados. Todas as noites tinham a visita do afogado, a insônia aferrava-os a um leito de carvões em brasa, no qual os virava com pinças de fogo. O estado de irritação em que viviam ativava ainda mais em cada serão a febre do seu sangue, criando-lhes diante dos olhos alucinações atrozes. Assim que o crepúsculo chegava, Teresa não se atrevia a subir ao quarto; era insuportável a angústia que sentia por ter de se encerrar até de manhã naquele grande compartimento, iluminado por estranhos clarões e povoado de fantasmas. Passou a deixar a vela acesa, por não querer dormir, para conservar os olhos bem abertos. Quando a fadiga lhe baixava as pálpebras, imediatamente via Camilo e reabria os olhos em sobressalto. No dia seguinte, depois de escassas horas de sono, arrastava-se, cansada e alquebrada. Quanto a Laurent, tornara-se decididamente covarde depois da noite em que sentira medo de passar diante da porta de acesso à adega; antes, vivia com confiança de irracional; a partir de então tremia e empalidecia ao mínimo ruído, como uma criança. Um tremor apossou-se dos seus membros e não mais o abandonou. De noite sofria ainda mais do que Teresa; o medo, naquele grande corpo flácido, causava profundas perturbações. Era com cruel apreensão que via chegar o fim de cada dia. Muitas vezes se sentia tentado a não voltar para casa, a passar as noites inteiras percorrendo a pé as ruas desertas. Numa ocasião permaneceu até de manhã numa ponte, debaixo de forte chuva; encolhido, gelado, sem forças para se levantar e caminhar para a margem, ficou durante seis horas a ver correr as águas sujas na sombra esbranquiçada; houve momentos em que o terror o lançou sobre a terra ensopada: parecia-lhe ver, sob o arco da ponte, passarem longas filas de afogados ao sabor da corrente. Quando, vencido pelo cansaço e pelo abatimento subia ao quarto, fechava-se com duas voltas e até ao romper do dia debatia-se em horríveis acessos de febre. O mesmo pesadelo surgia com persistência: dos braços ardentes e apaixonados de Teresa caía nos braços frios e viscosos de Camilo; sonhava que a amante o envolvia num quente abraço, para em seguida sonhar que o afogado o apertava contra o peito decomposto, num abraço glacial; estas sensações bruscas e alternadas de volúpia e de repugnância, os contatos sucessivos de carne ardente de amor e de carne gélida, amolecida pelo lodo, deixavam-no ofegante e trêmulo, num estertor de angústia.
Dia após dia o terror dos dois amantes aumentava, dia após dia os pesadelos os esmagavam, enlouqueciam-nos cada vez mais. Contavam somente com os seus beijos para matar a insônia. Por prudência, não se atreviam a encontrarem-se, aguardando o dia do casamento como o dia da salvação, a que se seguiria uma noite feliz.
Era assim que queriam a sua união, como o desejo que tinham de dormir um sono calmo. Durante as horas de indiferença tinham hesitado, cada um esquecendo as razões egoístas e apaixonadas que se tinham como que desvanecido, depois de os terem levado até ao crime. com a febre de novo a consumi-los, no fundo da paixão e do egoísmo, voltavam a encontrar os verdadeiros motivos que os tinham decidido a matar Camilo, para fruir em seguida os prazeres que, segundo eles, um casamento legítimo lhes assegurava. Era, aliás, com um vago desespero que tomavam a suprema resolução de se unirem abertamente. No íntimo, tinham receio. Os seus desejos causavam calafrios. Estavam, de certo modo, inclinados um para o outro, como sobre um abismo cujo horror os atraía; dobravam-se mutuamente sobre o seu próprio ser, fincados, mudos, ao mesmo tempo que, com aguda volúpia, afrouxando-lhes os membros, as vertigens lhes provocavam a atração da queda. Mas diante das circunstâncias, da espera ansiosa e dos tímidos desejos, sentiam a necessidade imperiosa de vendar os olhos a si próprios, de sonhar com um futuro de felicidade amorosa e de prazeres calmos. Quanto mais tremiam diante um do outro, mais adivinhavam o horror do precipício no fundo do qual se iam precipitar e mais se empenhavam em fazer a si próprios promessas de felicidade, em desenrolar à sua frente os fatos invencíveis que fatalmente os conduziriam ao casamento.
Teresa desejava casar unicamente porque tinha medo e o seu organismo reclamava as carícias violentas de Laurent. Estava atormentada por uma crise nervosa que a deixava louca. A bem dizer ela não raciocinava, lançava-se na paixão, de espírito alterado pelos romances que lera, a carne irritada pelas insônias cruéis que se prolongavam por semanas.
Laurent, de temperamento menos sensível, embora cedendo aos seus terrores e desejos, entendia dever raciocinar a sua decisão. Para se convencer que o casamento lhe era necessário e que ia, enfim, ser completamente feliz, para dissipar os vagos receios que o assaltavam, reconstituía todos os antigos cálculos. O pai, o camponês de Jeufossê, obstinava-se em não morrer e, assim, a herança podia fazer-se esperar bastante tempo; receava mesmo que lhe escapasse para as algibeiras de um dos seus primos, um rapaz que tratava das terras a pleno contento do velho Laurent. E ele, ele ficaria sempre pobre, viveria sem mulher, numas águas-furtadas, dormindo mal e comendo ainda pior. Além disso, contava não trabalhar durante toda a vida; começava a aborrecer-se singularmente na repartição; o trabalho leve que lhe estava confiado tornava-se cansativo para a sua preguiça. O resultado das suas reflexões era sempre o de que a suprema felicidade consiste em nada fazer.
Lembrava-se então que tinha afogado Camilo para desposar Teresa e passar a não fazer nada. É certo que o desejo de possuir só para si a amante pesara bastante na idéia do crime, mas consumara-o talvez mais pela esperança de ocupar o lugar de Camilo, de ser tratado como ele, de gozar uma felicidade permanente; se apenas o movesse a paixão não teria revelado tanta covardia e tanta prudência; a verdade é que procurava assegurar, através do assassínio, a calma e ociosidade da sua vida, a satisfação duradoura dos seus apetites. Todos estes pensamentos, conscientes ou inconscientes, lhe ocorriam.
Para ganhar coragem, repetia para si próprio ser tempo de colher o proveito esperado pela morte de Camilo. Enumerava as vantagens, os benefícios da sua futura existência: deixaria a repartição, viveria mergulhado em deliciosa indolência; comeria, beberia e dormiria até se fartar; teria constantemente ao alcance da mão uma mulher ardente para lhe restabelecer o equilíbrio do sangue e dos nervos; não tardaria a herdar os 40 e tal mil francos da senhora Raquin, pois a pobre velha morria um pouco cada dia; teria, enfim, uma vida de animal repleto, esqueceria tudo. Depois do casamento ter ficado decidido entre Teresa e ele, Laurent passava o tempo a repetir tais pensamentos; rebuscava ainda outras vantagens e ficava imensamente satisfeito quando julgava ter encontrado um novo argumento no seu egoísmo, que reforçava o casamento com a viúva do afogado. Mas por mais que forçasse a esperança, por mais que sonhasse com um futuro de plena ociosidade e de volúpia, sentia sempre bruscos arrepios percorrerem-lhe o corpo e experimentava por momentos uma ansiedade que abafava a alegria na garganta.
Entretanto, o trabalho secreto levado a cabo por Teresa e por Laurent começava a dar resultados. Teresa assumira uma atitude melancólica e desesperada que, passados alguns dias, inquietou a senhora Raquin. A velha capelista quis saber o que tanto entristecia a sobrinha.
A jovem desempenhou então o seu papel de viúva inconsolável com requintada habilidade; falou em tristeza, em abatimento, em dores nervosas vagamente, sem nada precisar.
Quando a tia insistia nas perguntas, respondia invariavelmente que se sentia bem, que ignorava a causa da sua prostração, que chorava sem saber por quê. E sucediam-se as sufocações, os sorrisos pálidos e doloridos, os silêncios opressivos de vazio e de desespero.
Perante o comportamento da jovem, dobrada sobre si própria, que parecia morrer aos poucos de um mal desconhecido, a senhora Raquin acabou por se assustar seriamente; não tinha mais ninguém no mundo além da sobrinha e todas as noites rezava a Deus para que lhe conservasse aquela filha para lhe fechar os olhos. Um pouco de egoísmo se misturava ao derradeiro amor da sua velhice. Sentia atingidas as poucas consolações que ainda a ajudavam a manter-se viva, ao pensar que podia perder Teresa e morrer só, no fundo da loja úmida da passagem. A partir daí não mais deixou de observar a sobrinha, seguindo as tristezas da jovem, perguntando a si própria o que podia fazer para curá-la dos mudos desesperos.
Perante tão graves circunstâncias, entendeu dever aconselhar-se com o velho amigo Michaud. Num dos serões de quinta-feira reteve-o na loja e deu-lhe conta dos seus temores.
— Por Deus! — respondeu o velho com a rudeza franca das suas antigas funções — há muito tempo que me apercebi que Teresa anda enfadada e sei muito bem a razão por que está pálida e triste.
— Sabe por quê? Diga depressa — volveu a capelista — se pudéssemos curá-la!
— Oh! O tratamento é fácil — continuou Michaud sorrindo — a sua sobrinha definha porque está só, à noite, no quarto, há quase dois anos. Ela precisa de um marido; isso vê-se-lhe nos olhos.
A franqueza brutal do antigo comissário chocou dolorosamente a senhora Raquin. Pensava ela que a ferida que sentia sempre a sangrar depois do horrível acidente de Saint-Ouen, se matinha também viva e cruel no fundo do coração da jovem viúva. Morto o filho, parecia-lhe que não podia haver outro marido para a sobrinha. E eis que Michaud afirmara, a sorrir, que Teresa estava doente por falta de marido.
— Case-a o mais depressa possível — voltou a dizer, enquanto saía — se não a quer ver definhar-se por completo. É este o meu conselho, minha cara senhora, e é bom, creia.
Custou à senhora Raquin habituar-se à idéia de que o filho já estava esquecido. O velho Michaud não chegara a pronunciar o nome de Camilo e gracejara ao falar da pretensa doença de Teresa. A pobre mãe compreendeu que apenas ela conservava no fundo do ser a recordação viva do filho querido. Chorou, e pareceu-lhe que Camilo acabava de morrer pela segunda vez. Depois de se ter lamentado, começou a meditar, embora contrariada, nas palavras de Michaud e a acostumar-se à idéia de comprar um pouco de felicidade à custa de um casamento que, na sensibilidade da sua memória, lhe matava de novo o filho. Sentia-se pouco à vontade diante de Teresa, melancólica e taciturna, no meio do silêncio glacial da loja. Não era um espírito rígido e seco, dos que sentem uma alegria ávida em viver em eterno desespero; havia nela compreensão, espírito de sacrifício, efusões, todo um temperamento benévolo, afável, que a impelia a viver rodeada de ternura ativa.
Desde que a sobrinha deixara de falar e ali se conservava pálida e acabrunhada, a existência tornara-se-lhe intolerável, a loja parecia-lhe um túmulo; queria sentir afeto à sua volta, vida, carícias, alguma coisa de doce e alegre que a ajudasse a esperar sossegadamente a morte. Estes desejos inconscientemente sentidos fizeram-lhe aceitar o projeto de voltar a casar Teresa; esquecia mesmo um pouco o filho; na existência morta que levava deu-se como que um despertar, como que novas vontades e motivos para ocupar o espírito.
Procurava um marido para a sobrinha e isso enchia-lhe a cabeça. A escolha de um marido era um assunto importante; a pobre velha meditava nela ainda mais do que Teresa; queria casá-la de maneira a que ela própria fosse feliz, porque receava vivamente que o novo marido da jovem viesse perturbar os últimos momentos da sua velhice.
A idéia de que ia introduzir um estranho no seu dia-a-dia assustava-a; era somente isto que a sustinha, impelindo-a de falar abertamente com a sobrinha acerca de casamento.
Enquanto Teresa, com a perfeita hipocrisia que a educação lhe dera, desempenhava a comédia do abatimento, Laurent chamara a si o papel de homem sensível e solícito.
Estava sempre pronto a ser útil às duas mulheres, principalmente à senhora Raquin, que cumulava de delicadas atenções.
Pouco a pouco tornou-se indispensável na loja; era ele a única pessoa a pôr um pouco de alegria naquele buraco escuro. Quando lá não estava, à noite, a velha capelista olhava à sua volta, inquieta, como se algo lhe faltasse, quase sentindo medo de se encontrar à sós com os desesperos de Teresa. Aliás, Laurent apenas faltava uma noite para melhor acentuar a sua falta, todos os dias se dirigia para a loja ao sair da repartição e ali ficava até ao encerramento da passagem. Fazia recados e dava à senhora Raquin, que se deslocava com dificuldade, todos os objetos de que ela tinha necessidade.
Depois sentava-se, conversava.
Arranjara uma voz de ator, suave e penetrante, que empregava para lisonjear os ouvidos e o coração da boa velha. Demonstrava sobretudo grande inquietação pela saúde de Teresa, como amigo, como homem sensível cuja alma sofre com o sofrimento alheio. Em várias ocasiões, falando a sós com a senhora Raquin, aterrorizou-a mostrando-se ele próprio muito assustado com as mudanças e os estragos que dizia ver no rosto da jovem.
— Não tardaremos a perdê-la — murmurava com lágrimas na voz. — Não podemos dissimular a nós próprios que ela está bem doente. Ah! A nossa pobre felicidade, os agradáveis e tranqüilos serões!
A senhora Raquin escutava-o com angústia. Laurent levava a audácia a ponto de falar de Camilo.
— Veja — dizia ainda — a morte do meu pobre amigo foi um golpe terrível para ela. Há dois anos que definha, depois do dia funesto em que perdeu Camilo. Nada a curará. Temos de nos resignar.
Estas impudentes mentiras faziam chorar à velha senhora lágrimas de sangue. A recordação do filho perturbava-a e cegava-a. Cada vez que se falava em Camilo rompia em soluços, abandonava-se, teria abraçado a pessoa que pronunciava o nome do seu filho. Laurent notara o efeito perturbador e a comoção que se produzia nela. Podia fazê-la chorar quando quisesse, levá-la a um estado de emoção que a privasse da visão clara das coisas, e abusava desse poder mantendo-a submissa e dolorida na sua mão. Todas as noites, apesar da surda revolta das suas entranhas que estremeciam, puxava a conversação de modo a falar sobre as raras qualidades, a ternura de coração e o espírito de Camilo; exaltava a sua vítima com cinismo perfeito. Em certas ocasiões, ao deparar com os olhares estranhamente fixos de Teresa, estremecia, ele próprio acabando por acreditar no que dizia acerca do afogado; emudecia então, subitamente preso de atroz ciúme, temendo que a viúva amasse o homem que lançara à água e que agora exaltava com convicção de alucinado. Durante toda a conversação, a senhora Raquin derramava lágrimas, nada vendo do que se passava à sua volta. Enquanto chorava, pensava que Laurent tinha um coração afetuoso e generoso; apenas ele se lembrava do filho, apenas ele se lhe referia ainda com voz trêmula e comovida. E secando as lágrimas olhava para ele com infinita ternura, amando-o como ao próprio filho.
Numa quinta-feira, Michaud e Grivet encontravam-se já na sala de jantar quando Laurent entrou e se aproximou de Teresa inquirindo solicitamente sobre a sua saúde.
Sentou-se um instante a seu lado desempenhando, para os presentes, o seu papel de amigo afetuoso e preocupado. Enquanto os dois jovens estavam perto um do outro, trocando algumas palavras, Michaud, que os observava, inclinou-se para a velha senhora Raquin e disse, apontando para Laurent:
— Olhe, ali está o marido que convém à sua sobrinha. Trate depressa do casamento. Nós ajudaremos, se for necessário.
Michaud sorriu maliciosamente com a sua saída. Na sua idéia, Teresa devia precisar de um marido vigoroso. À senhora Raquin pareceu-lhe ver um relâmpago; num abrir e fechar de olhos viu todas as vantagens que pessoalmente retiraria do casamento de Teresa e de Laurent. O casamento não mais faria do que apertar os laços que já os uniam, a ela e à sobrinha, ao amigo do filho, ao coração excelente que as vinha distrair ao serão. Dessa maneira não introduziria um estranho em casa, não corria o risco de ser infeliz; pelo contrário, ao dar um arrimo a Teresa rodearia a sua velhice com uma nova alegria, encontraria um segundo filho naquele rapaz que ao cabo de três anos lhe testemunhava filial afeição.
Parecia-lhe, além disso, que Teresa seria menos infiel à recordação de Camilo casando com Laurent. Estranhas delicadezas têm os sagrados deveres do coração. A senhora Raquin, que teria chorado ao ver um estranho abraçar a jovem viúva, não sentia a mínima revolta ao pensamento de a entregar nos braços do antigo camarada do filho.
Pensava, como se costuma dizer, que a coisa não saía da família. Durante todo o serão, enquanto os convidados jogavam dominó, a velha capelista observou os jovens com olhares enternecidos que fizeram adivinhar a um e a outro que a comédia até então representada alcançava êxito e que o desenlace estava próximo. Antes de se despedir, Michaud trocou algumas palavras em voz baixa com a senhora Raquin; depois tomou afetadamente Laurent pelo braço, declarando que o acompanharia durante um pedaço do caminho. Ao sair, Laurent trocou um rápido olhar com Teresa, um olhar cheio de insistentes recomendações.Michaud encarregara-se de apalpar o terreno. achou que o jovem estava muito dedicado às duas mulheres, mas surpreendido a com a idéia de casamento com Teresa. Laurent acrescentou, com voz comovida, que amava como irmã a viúva do seu pobre amigo e que acreditaria cometer um verdadeiro sacrilégio desposando-a. O antigo comissário de polícia insistiu; deu uma centena de boas razões para obter um consentimento, chegando mesmo a falar em dedicação, a dizer ao jovem que era seu dever restituir um filho à senhora Raquin e um marido à Teresa. Pouco a pouco, Laurent deixou-se convencer; fingiu ceder à emoção, aceitar a idéia do casamento como idéia caída do céu, ditada pela dedicação e pelo dever, como dizia o velho Michaud. Quando este obteve um sim formal despediu-se, esfregando as mãos; estava convencido de que acabava de alcançar uma grande vitória e regozijava-se por ter sido sua a idéia do casamento que devolveria aos serões de quinta-feira toda a alegria de outrora.
Enquanto Michaud falava com Laurent, caminhando lentamente ao longo do cais, a senhora Raquin tinha uma conversa quase idêntica com Teresa. A velha capelista reteve Teresa por alguns instantes, quando esta, pálida e vacilante como de costume, se preparava para se retirar. Interrogou-a com voz suave, suplicando-lhe que fosse franca, que lhe confessasse as causas do tormento que a acabrunhava. Como não obtivesse mais do que respostas vagas, falou dos vazios da viuvez e pouco a pouco foi concretizando a possibilidade de novo casamento, concluindo por perguntar abertamente a Teresa se não tinha secretamente o desejo de voltar a casar.
Teresa teve uma exclamação de espanto, afirmou que não pensava nisso e que ficaria fiel a Camilo. A senhora começou a chorar. Falando contra o coração, deu a entender que o desespero não pode ser eterno; por fim, em resposta a um grito da jovem dizendo que jamais substituiria Camilo, citou bruscamente o nome de Laurent.
E veio a seguir uma torrente de palavras sobre a conveniência, sobre as vantagens de semelhante união; esvaziou a alma, repetiu em voz alta tudo aquilo em que estivera a pensar durante todo o serão, com um ingênuo egoísmo pintou o quadro das suas derradeiras felicidades entre os dois filhos queridos. Teresa escutou-a, de cabeça baixa, resignada e submissa, pronta a satisfazer-lhe os mínimos desejos.
— Gosto de Laurent como de um irmão disse dolorosamente quando a tia acabou. Uma vez que o deseja, tentarei amá-lo como um esposo. Quero torná-la feliz... Esperava que me deixasse chorar em paz, mas enxugarei as lágrimas, pois que se trata da sua felicidade.
Abraçou a velha senhora, surpreendida e perturbada por ter sido a primeira a esquecer o filho. Ao deitar-se, a senhora Raquin soluçou amargamente, acusando-se de ser menos forte do que Teresa, de querer por egoísmo o casamento que a jovem viúva aceitava simplesmente por abnegação.
No dia seguinte de manhã, Michaud e a sua velha amiga tiveram uma breve conversa na passagem, diante da porta da loja. Deram-se mutuamente conta do resultado das suas diligências e concordaram em levar as coisas até ao fim, forçando os jovens a ficarem noivos nessa mesma noite.
Às cinco horas Michaud já se encontrava no armazém quando Laurent chegou. Assim que o jovem se sentou, o antigo comissário segredou-lhe ao ouvido:
— Ela aceita.
Esta frase seca e brutal foi ouvida por Teresa, que empalideceu, fitando impudentemente Laurent. Os dois amantes entreolharam-se durante alguns segundos, como que se consultando. compreenderam que deviam aceitar a posição sem hesitar e acabar com aquilo de vez. Laurent ergueu-se e pegou na mão da senhora Raquin, que fazia todos os esforços para reter as lágrimas.
— Querida mãe — disse-lhe a sorrir — falei com o senhor Michaud ontem à noite sobre a sua felicidade. Os seus filhos querem fazê-la feliz.
A pobre velha deixou correr livremente as lágrimas ao ouvir "querida mãe". Pegou vivamente na mão de Teresa e, sem conseguir pronunciar palavra, colocou-a na de Laurent.
Os dois amantes tiveram um frêmito ao sentirem o contato da pele do outro. Ficaram de mãos cerradas e ardentes, num aperto nervoso. Laurent, com voz hesitante, perguntou:
— Teresa, quer que criemos à sua tia uma existência alegre e sossegada?
— Sim — respondeu a jovem com voz fraca — temos uma missão a cumprir.
Laurent voltou-se então para a senhora Raquin e acrescentou:
— Quando Camilo caiu à água, gritou para mim: "Salva a minha mulher, confio-a a ti." Creio cumprir o seu último desejo desposando Teresa.
Ouvindo as últimas palavras de Laurent, Teresa retirou a mão. Sentira como que uma pancada no peito; o cinismo do amante confundira-a. Olhava estupidamente, enquanto a senhora Raquin, abafada pelos soluços, balbuciava:
— Sim, sim, meu amigo, case com ela, torne-a feliz, o meu filho lhe agradecerá do fundo do túmulo.
Laurent sentiu-se fraquejar e apoiou-se no espaldar de uma cadeira. Michaud, que também estava comovido até às lágrimas, empurrou-o na direção de Teresa, dizendo:
— Beijem-se, será o vosso beijo de noivado. Laurent sentiu estranho mal-estar ao pousar os lábios na face da viúva e esta por sua vez recuou bruscamente, queimada pelos dois beijos do amante. Eram as primeiras carícias que aquele homem lhe fazia diante de testemunhas; o sangue subiu-lhe ao rosto, sentiu-se afogueada e ardente, ela que ignorava o pudor e que nunca enrubescera na infâmia dos seus amores.
Passado este mau momento, os dois assassinos respiraram. O casamento estava decidido, chegavam finalmente ao fim que procuravam há tanto tempo. Nesse mesmo serão ficou tudo combinado. Na quinta-feira seguinte o casamento foi anunciado a Grivet, Olivier e à mulher deste. Michaud estava radiante ao dar a novidade; esfregando as mãos, repetia:
— Fui eu que pensei nisto, fui eu que os casei... Vão ver o belo par!
Suzana abraçou silenciosamente Teresa. A pobre criatura, mortiça e branca, tornara-se amiga da jovem viúva, sombria e rígida. Amava-a como criança, com uma espécie de respeitoso terror. Olivier cumprimentou a tia e a sobrinha, e Grivet arriscou alguns comentários picantes que tiveram reduzido êxito. Os circunstantes mostraram-se, em suma, encantados, radiantes, declarando que tudo correra pelo melhor; em boa verdade, todos se viam já na boda.
A atitude de Teresa e de Laurent manteve-se digna e prudente. Manifestavam mutuamente uma amizade terna e solícita, apenas. Tinham o ar de quem cumpre um ato de suprema devoção. Nas suas fisionomias nada podia fazer suspeitar os terrores e os desejos que os abalavam. A senhora Raquin olhava-os com pálidos sorrisos, com suave e reconhecida benevolência.
Havia algumas formalidades a cumprir. Laurent tinha de escrever ao pai para lhe pedir o consentimento. O velho camponês de Jeufossê, que quase esquecera a existência do filho em Paris, respondeu-lhe em quatro linhas, dizendo que podia casar-se e enforcar-se, se quisesse; fez-lhe compreender que, resolvido a não lhe dar nunca um sou que fosse, o deixava senhor do seu corpo e o autorizava a cometer todas as loucuras do mundo. Uma tal autorização inquietou singularmente Laurent.
Depois de ter lido a carta daquele pai desnaturado, a senhora Raquin teve um impulso de bondade que a impeliu a fazer um disparate. Transferiu para a sobrinha os 40 e tantos mil francos que possuía, despojando-se assim inteiramente a favor dos noivos e confiando-se ao bom coração de ambos ao querer deles receber toda a felicidade.
Laurent nada trazia para o casamento; deu mesmo a entender que não ficaria para sempre no emprego, passando talvez a dedicar-se à pintura. Aliás, o futuro da pequena família estava assegurado; o rendimento dos 40 e tal mil francos, acrescido dos lucros da capelista, dariam para três pessoas viverem sem dificuldades. Teriam exatamente o suficiente para serem felizes.
Os preparativos para o casamento foram acelerados. Abreviaram-se as formalidades tanto quanto foi possível. Dir-se-ia que cada um deles tinha pressa de empurrar Laurent para o quarto de Teresa. O dia desejado chegou finalmente.
Cada um no seu quarto, Laurent e Teresa acordaram nesse dia com o mesmo pensamento de profunda alegria: ambos disseram para si mesmos que acabara a sua derradeira noite de terror. Não voltariam a deitar-se sós, defender-se-iam mutuamente do afogado.
Teresa olhou à sua volta com um estranho sorriso, medindo mentalmente o grande leito. Levantou-se, vestindo-se vagarosamente, esperando por Suzana que deveria ajudá-la a preparar-se para a cerimônia.
Por seu lado, Laurent ficou sentado na cama durante alguns minutos, despedindo-se das suas águas-furtadas que achava ignóbeis. Ia finalmente deixar aquele pardieiro e ter uma mulher sua. Estava-se em dezembro. Tremia. Saltou para o mosaico, dizendo para si mesmo que à noite teria calor.
A senhora Raquin, sabendo das suas dificuldades, metera-lhe na mão, oito dias antes, uma bolsa com 500 francos, todas as suas economias. O jovem aceitara sem hesitação e vestira-se de novo dos pés à cabeça. O dinheiro da velha capelista permitira-lhe, além disso, oferecer a Teresa as prendas de praxe.
Sobre duas cadeiras estavam as calças pretas, a casaca bem como o colete branco, a camisa e a gravata de bom tecido. Laurent ensaboou-se, esfregou o corpo com água de colônia e em seguida procedeu minuciosamente à toalete. Queria apresentar-se belo. Ao apertar o colarinho, um colarinho alto e engomado, sentiu uma dor no pescoço; o botão escapava-se-lhe por entre os dedos e impacientou-se, com a sensação de que o tecido hirto lhe cortava a carne. Ergueu o pescoço: a mordida estava tingida de vermelho vivo, por causa do ligeiro roçar do colarinho. Laurent cerrou os lábios e empalideceu; irritou-se à vista daquela mancha que lhe maculava o pescoço.
Amarrotou o colarinho e escolheu outro que colocou com mil cuidados. Acabou de se vestir. Ao descer, sentia-se apertado na roupa nova; não ousava voltar a cabeça, cujo pescoço estava entalado no tecido gomado. A cada movimento, o tecido do colarinho atuava como pinça sobre a cicatriz do ferimento que os dentes da vítima lhe tinham feito.
Foi neste sofrimento, no incômodo de agudas picadas que tomou um carro e se dirigiu para junto de Teresa, a fim de a acompanhar ao cartório e em seguida à igreja.
No caminho passou pelas casas de um funcionário da estrada de ferro de Orleans e do velho Michaud, que seriam as suas testemunhas.
Quando chegaram à loja, estava tudo a postos; encontravam-se ali Grivet e Olivier, testemunhas de Teresa, e Suzana, que olhava para a noiva como as crianças olham para as bonecas que acabam de vestir. A senhora Raquin, embora mal pudesse andar, quis acompanhar os filhos. Ajudaram-na a subir numa viatura e partiram todos.
Decorreu tudo normalmente no cartório e na igreja. A atitude calma e modesta dos nubentes foi assinalada e mereceu a aprovação de todos. Pronunciaram o sim sacramental com emoção, que comoveu o próprio Grivet. Sentiam-se num sonho. Não obstante, enquanto permaneciam sentados ou ajoelhados lado a lado, o ar tranqüilo escondia a fúria dos pensamentos que os dominavam. Evitaram olhar-se de frente; quando subiram no carro tinham a sensação de ser mais estranhos um ao outro do que antes.
Fora decidido que o copo-d'água se faria em família, num pequeno restaurante para os lados de Belleville. Os Michaud e Grivet eram os únicos convidados. Enquanto aguardavam as seis horas o cortejo passeou de carro ao longo dos bulevares; encaminharam-se depois para o restaurante onde estava posta uma mesa para sete num compartimento pintado de amarelo que cheirava a pó e a vinho.
A refeição não foi alegre. Os esposos estavam graves, pensativos. Desde a manhã que experimentavam sensações estranhas, que eles próprios procuravam não definir.
Sentiam-se aturdidos, desde as primeiras horas, pela rapidez das formalidades e da cerimônia que acabava de os unir para sempre. Depois, o longo passeio pelos bulevares tinha-os como que embalado e adormecido; parecia-lhes que durara meses; aliás, tinham-se deixado conduzir sem impaciência pela monotonia das ruas, correndo os olhos mortiços pelas lojas e pelos transeuntes, numa indiferença que os embotava e que tentavam sacudir com esporádicas gargalhadas.
Ao entrar no restaurante sentiam sobre os ombros o peso de uma fadiga invencível, e invadia-os uma estupefação crescente.
Sentados frente a frente, sorriam constrangidos e voltavam a cair em pesado devaneio; comiam, respondiam quando lhes falavam e moviam os membros como máquinas. No meio da lassidão que lhes envolvia o espírito, a mesma espécie de pensamentos fugazes surgia incessantemente. Estavam casados e não tinham consciência da nova situação; isso espantava-os profundamente. Imaginavam que um abismo os separava ainda; perguntavam a si próprios por momentos se poderiam atravessar esse abismo.
Julgavam-se no tempo anterior ao crime, quando ainda um obstáculo material se erguia à sua frente. Em seguida, recordavam-se bruscamente que estariam dormindo juntos, nessa mesma noite, dentro de algumas horas; olhavam-se então, espantados, sem compreender a razão por que isso lhes seria permitido. Não sentiam a sua união, pensavam pelo contrário que acabavam de ser afastados violentamente e atirados para longe um do outro.
Os convidados, que riam tolamente à sua volta, quiseram ouvi-los tratarem-se por tu para dissipar o acanhamento; eles balbuciaram, enrubesceram e não conseguiram tratar-se de modo mais íntimo diante de todos.
Os seus desejos tinham-se desvanecido com o tempo, todo o passado desaparecera. Tinham perdido os violentos apetites de volúpia, esqueciam mesmo a alegria sentida nessa manhã, a alegria profunda que deles se apossara à idéia de que não mais teriam medo. Estavam simplesmente cansados e atordoados com tudo o que se passara; os acontecimentos daquele dia revolviam na sua cabeça, incompreensíveis e monstruosos. Estavam ali, mudos, sorridentes, não esperando nada, sem esperança. No fundo do abatimento agitava-se uma ansiedade vagamente dolorosa.
E Laurent, a cada movimento do pescoço, sentia uma aguilhoada ardente; o colarinho postiço mordia-lhe a cicatriz da mordida de Camilo.
Enquanto o conservador lhe lera o código, enquanto o padre falava de Deus, em todos os minutos daquele longo dia sentira os dentes do afogado penetrarem-lhe a pele. Chegou a imaginar que lhe corria um fio de sangue pelo peito manchando-lhe a brancura do colete.
A senhora Raquin ficou interiormente reconhecida aos esposos pela sua gravidade; a pobre mãe sentir-se-ia ferida por demasiada alegria; para ela o filho estava ali, invisível, a entregar Teresa nas mãos de Laurent. Grivet não tinha as mesmas idéias; a cerimônia estava triste e esforçava-se por a alegrar não obstante os olhares de Michaud e de Olivier que o pregavam na cadeira de cada vez que tinha intenção de se levantar e dizer um gracejo. Conseguiu no entanto levantar-se uma vez e fez um brinde:
— Bebo à saúde dos filhos do casal — disse em tom brejeiro.
Era necessário corresponder ao brinde. Teresa e Laurent tinham ficado extremamente pálidos ao ouvir as palavras de Grivet. Nunca lhes tinha passado pela cabeça que poderiam ter filhos. Essa possibilidade causou-lhes um arrepio glacial. Tocaram os copos com um gesto nervoso e fitaram-se, surpreendidos, transtornados por se encontrarem ali, frente a frente.
Não tardaram a levantar-se da mesa. Os convidados quiseram acompanhar os esposos até ao quarto de núpcias. Não eram ainda nove e meia quando o cortejo chegou à loja da passagem.
A vendedora de bijuterias encontrava-se ainda na sua tenda, diante da caixa guarnecida de veludo azul. Ergueu a cabeça com curiosidade, olhando os recém-casados com um sorriso. O olhar não escapou aos dois e ambos ficaram aterrorizados. Talvez a velha vendedora soubesse dos seus antigos encontros, vendo Laurent deslizar ao longo do estreito corredor.
Teresa retirou-se quase imediatamente, acompanhada da senhora Raquin e de Suzana. Os homens permaneceram na sala de jantar, enquanto a noiva procedia à toalete de noite. Abatido, Laurent não manifestava a mínima impaciência; ouvia complacentemente os pesados gracejos do velho Michaud e de Grivet, que na ausência das mulheres a eles se dedicavam abertamente. Quando Suzana e a senhora Raquin saíram do quarto e com voz comovida a velha capelista disse a Laurent que a mulher o esperava, este estremeceu e ficou momentaneamente atordoado; depois apertou febrilmente as mãos que lhe estendiam e encaminhou-se para o quarto, apoiando-se à porta como um ébrio.
Laurent fechou cuidadosamente a porta atrás de si e ficou por instantes encostado a ela, percorrendo o quarto com os olhos inquietos e embaraçados.
As chamas crepitavam vivamente na lareira, projetando clarões amarelos que dançavam no teto e nas paredes. O quarto estava assim iluminado com luz vacilante mas viva; o candeeiro, sobre uma mesa, emitia apenas uma luz pálida no meio do clarão das chamas. A senhora Raquin fizera questão de preparar com requinte o quarto, que estava todo branco e perfumado, como para servir de ninho a jovens e frescos amores; comprazera-se em guarnecer o leito com rendas e colocara grandes ramos de rosas nas floreiras da lareira. Espalhava-se pelo quarto um calor doce e aromas suaves, um ambiente de calmo recolhimento, de voluptuoso entorpecimento. No meio do silêncio, ouvia-se o crepitar da lenha na lareira. Dir-se-ia um deserto feliz, um canto ignorado, acolhedor e perfumado, isolado de todos os ruídos, um desses locais preparados para as sensualidades e para as necessidades de mistério da paixão.
Teresa estava sentada numa cadeira baixa, do lado direito da lareira. com o queixo entre as mãos, olhava fixamente as chamas ondulantes. Não moveu a cabeça à entrada de Laurent. De saiote e camisola rendada, a sua brancura ressaltava à luz ardente da lareira. A camisola descera-lhe um pouco ao longo do ombro que surgia, rosado, meio encoberto por uma mecha de cabelos negros.
Laurent avançou alguns passos sem pronunciar palavra. Tirou a casaca e o colete e. em mangas de camisa, olhou de novo para Teresa que se mantinha imóvel. Hesitou; viu o ombro de Teresa e inclinou-se, trêmulo, para colar os lábios à pele nua. A jovem furtou-se ao contato e voltou-se bruscamente, fixando em Laurent um olhar tão estranho de repugnância e de terror que ele recuou, perturbado, ele próprio tomado de terror e de repulsa.
Sentou-se diante de Teresa, do outro lado da lareira. Ficaram assim, mudos, imóveis, durante cinco longos minutos. A espaços, escapavam-se dos troncos chamas avermelhadas que arrancavam reflexos sangrentos aos rostos dos assassinos.
Tinham decorrido cerca de dois anos desde que os dois amantes se tinham encontrado naquele mesmo quarto, sós, e se entregado um ao outro. Não tinham tido um único encontro amoroso desde o dia em que Teresa incutira em Laurent a idéia de assassínio, na Rua de Saint Victor. A prudência refreara-lhes a carne; mal se tinham permitido um aperto de mãos, um beijo furtivo de tempos em tempos. Quando novos desejos os invadiram, depois da morte de Camilo, tinham-se contido, aguardando a noite de núpcias, prometendo mutuamente loucas voluptuosidades, assegurada que estivesse a sua impunidade. E finalmente a noite de núpcias chegava e ali estavam frente a frente, ansiosos, tomados por súbita inquietação. Bastava-lhes estender os braços para se unirem num abraço apaixonado, e contudo, os braços pendiam-lhes, flácidos, como se estivessem já saciados de amor. A opressão do dia esmagava-os cada vez mais. Olhavam-se sem desejo, com tímido embaraço, sofrendo ao mesmo tempo pela atitude silenciosa e fria de ambos. Os sonhos ardentes desembocavam numa estranha realidade: bastara terem conseguido matar Camilo e casarem-se, bastara que a boca de Laurent tivesse aflorado o ombro de Teresa para que a luxúria ficasse saciada até ao enfado e ao pavor.
Ambos procuravam desesperadamente em si próprios um pouco da paixão que outrora os consumia. Parecia-lhes que a pele estava vazia de músculos, vazia de nervos.
O embaraço e a inquietação aumentavam; sentiam vergonha de permanecer calados e abatidos. Queriam sentir força para se estreitarem e despedaçarem, a fim de não passarem por imbecis aos seus próprios olhos. Mas qual! Pertenciam um ao outro, tinham matado um homem e desempenhado atroz comédia para terem a possibilidade de se espojarem com impudência numa saciedade permanente; e contudo ali estavam, cada um em seu extremo da lareira, hirtos, vazios, a mente conturbada e a carne morta. Semelhante desfecho acabou por lhes parecer de um ridículo horrível e cruel. Laurent tentou então falar de amor, evocar as recordações, fazendo apelo à imaginação para ressuscitar os antigos carinhos.
— Teresa, recordas-te das nossas tardes neste quarto?... Eu chegava por aquela porta... Hoje entrei por esta... Somos livres, podemos amar-nos em paz.
A voz de Laurent era hesitante, sem convicção. A jovem, enrolada sobre si própria na cadeira, parecia não o escutar, continuando a fitar as chamas. Laurent continuou:
— Lembras-te? Sonhei uma vez que queria passar uma noite inteira contigo, adormecer nos teus braços e acordar no dia seguinte com os teus beijos. Posso agora satisfazer este sonho.
Teresa fez um movimento, como que surpreendida por ouvir uma voz balbuciar-lhe ao ouvido; encarou Laurent, em cujo rosto se refletia um clarão avermelhado; olhou o rosto sangüíneo e estremeceu.
Mais perturbado e mais inquieto, Laurent insistiu :
— Conseguimos, Teresa, vencemos todos os obstáculos e somos um do outro... O futuro pertence-nos, não é assim? Um futuro de tranqüila felicidade, de amor satisfeito... Camilo já não existe...
Laurent emudeceu, a garganta seca e estrangulada, sem poder continuar. Ao ouvir o nome de Camilo, Teresa sentira um choque nas entranhas. Os dois assassinos entreolharam-se, estupidificados, pálidos e trêmulos. Os clarões amarelados da lareira continuavam a dançar no teto e nas paredes, o odor das rosas impregnava o ambiente e no silêncio ouviam-se os pequenos ruídos da lenha a estalar.
As recordações desapareceram. O espectro de Camilo acabava de se sentar entre ambos, diante das chamas. Teresa e Laurent voltavam a sentir o cheiro frio e úmido do afogado no ar quente que respiravam; diziam para si mesmos que se encontrava ali um cadáver, perto deles, e examinavam-se mutuamente, sem ousar mover-se. Então, toda a história terrível do crime se desenrolou no fundo da sua memória. O nome da vítima foi suficiente para os encher do passado, para os obrigar a viver de novo as angústias do assassínio. Não abriram os lábios, mas olharam-se e ambos tiveram o mesmo pesadelo, ambos mergulharam os olhares na mesma história cruel. A troca de olhares aterrorizados, o mudo relato que iam fazer do crime causou-lhes uma apreensão aguda, intolerável. Sentiam-se ameaçados por uma crise de nervos; acabariam por gritar, agredirem-se talvez. Para afastar as recordações, Laurent arrancou-se violentamente ao êxtase apavorado em que o mantinha o olhar de Teresa; ensaiou alguns passos pelo quarto, tirou as botas e enfiou as pantufas; depois, voltou a sentar-se no canto da lareira e tentou falar de banalidades.
Teresa, compreendeu. Fez esforços para responder às perguntas de Laurent. Falaram da chuva e do bom tempo. Procuraram deliberadamente uma conversação banal. Laurent disse que estava calor no quarto e Teresa observou que passava uma corrente de ar debaixo da porta que dava para a escada.
Com um estremecimento súbito, ambos se voltaram para a pequena porta. Ele apressou-se a falar das rosas, do fogo, de tudo aquilo em que os seus olhos pousavam; ela conseguia encontrar monossílabos para responder, esforçando-se por não deixar decair a conversa. Recolhiam-se um no outro; assumiam ares desprendidos, com a preocupação de esquecer quem eram e tratarem-se como estranhos que o acaso reunira.
Apesar de tudo, enquanto pronunciavam palavras desprovidas de sentido, um estranho fenômeno fazia com que adivinhassem mutuamente os pensamentos que escondiam sob a capa da banalidade das suas palavras. Pensavam irresistivelmente em Camilo. Os olhos continuavam a revelar o passado; pouco a pouco, uma conversação muda acompanhava as palavras trocadas. Estas nada significavam, eram desligadas, contradiziam-se; todo o seu ser se aplicava à troca silenciosa das recordações pavorosas. Quando Laurent falava das rosas ou do fogo, Teresa compreendia perfeitamente que ele lhe recordava a luta no bote, a queda surda de Camilo; e quando Teresa respondia laconicamente sim ou não a qualquer pergunta, Laurent compreendia que ela dizia recordar-se ou não de um pormenor do crime. Conversavam assim, com o coração nas mãos, sem necessidade de palavras e falando de outra coisa. Além disso, sem consciência das palavras que pronunciavam, seguiam ao sabor dos seus secretos pensamentos, frase atrás de frase; ser-lhes-ia possível prosseguirem bruscamente as confidências em voz alta sem deixar de se compreender. Esta espécie de adivinhação, esta obstinação da memória em apresentar-lhes incessantemente a imagem de Camilo, enlouquecia-os pouco a pouco; bem viam que adivinhavam mutuamente os pensamentos e que, se não se calassem, as palavras lhes subiriam por si à boca, mencionando o afogado, descrevendo o assassínio.
Apertando com força os lábios, pararam de falar.
No silêncio pesado que se estabeleceu, os dois criminosos continuaram a pensar na vítima. Parecia-lhes que os olhares penetravam mutuamente na carne, gravando frases nítidas e agudas. Por momentos julgavam ouvir o outro falar em voz alta; os sentidos deixavam-se iludir, a vista tornou-se uma espécie de ouvido, estranho e delicado: era tão nítida a sensação de ler os pensamentos um do outro, que esses pensamentos adquiriam um som estranho, brilhante, que lhes sacudia o organismo. Não se teriam entendido melhor se tivessem gritado com voz dilacerada: "Nós matamos Camilo, e o seu cadáver está estendido entre nós, a gelar-nos os membros." E as terríveis confidências voltavam sempre, mais visíveis, mais nítidas, no ambiente calmo e soturno do quarto.
Laurent e Teresa tinham reportado a narrativa muda ao dia da primeira entrevista na loja. As recordações seguiram-se umas s outras, ordenadamente; contaram um ao outro as horas de volúpia, os momentos de hesitação e de cólera, o terrível instante do assassínio. Fora nesse momento que tinham cerrado os lábios, interrompendo a conversação banal, com receio de mencionar de repente o nome de Camilo, sem querer. E os pensamentos, sem se deterem, tinham-nos levado em seguida para a angústia, para a receosa espera que se seguira ao assassínio.
Chegaram assim à Morgue, ao cadáver estendido numa laje. Num olhar, Laurent transmitiu a Teresa todo o pavor que sentira, e Teresa, sem poder dominar-se mais, forçada por uma mão de ferro a abrir os lábios, prosseguiu em voz alta:
— Viste-o na Morgue?
Laurent parecia esperar a pergunta. Acabara de a ler no rosto branco da jovem.
— Sim — respondeu com voz estrangulada.
Os criminosos sentiram um arrepio. Chegaram-se mais para o fogo e estenderam as mãos para as chamas, como para fugir a um sopro gelado que subitamente atravessasse o quarto. Calaram-se por instantes, encolhidos, acocorados. Teresa voltou, surdamente:
— Parecia ter sofrido muito?
Laurent não conseguiu responder. Fez um gesto de terror, como para afastar uma visão ignóbil. Levantou-se, foi até à cama e voltou com violência, de braços abertos, na direção de Teresa.
— Beija-me — disse, estendendo o pescoço. Teresa erguera-se, pálida na sua toalete de noite; inclinou-se, com o cotovelo apoiado sobre o mármore da lareira. Olhou para o pescoço de Laurent. Acabava de ver uma mancha rosada na brancura da pele que o fluxo de sangue avermelhava.
— Beija-me, beija-me — repetia Laurent, com o rosto e o pescoço em fogo.
A jovem voltou a cabeça ainda mais, para evitar o beijo, e apoiando o dedo na dentada de Camilo, perguntou ao marido:
— Que tens tu aqui? Não te conhecia esta ferida.
A Laurent pareceu que o dedo de Teresa lhe furava a garganta. Recuou bruscamente ao contato, soltando um ligeiro grito de dor.
— Isto — balbuciou — isto...
Hesitou, mas não pôde mentir, embora contrariado :
— Foi Camilo que me mordeu, sabes, no barco. Não é nada, está sarado... Beija-me, beija-me.
E o miserável estendia o pescoço, que o queimava. Queria que Teresa beijasse a cicatriz, contava que o beijo daquela mulher abrandasse as mil picadas que lhe dilaceravam a carne. E levantava o queixo, esticava o pescoço. Quase estendida sobre o mármore da lareira, Teresa teve um gesto de suprema repugnância e exclamou, suplicante:
— Oh! Não, aí não... Há sangue.
Caiu sobre a cadeira baixa, trêmula, com a testa entre as mãos. Laurent ficou estupefato. Baixou o queixo, olhando vagamente para Teresa. Depois, subitamente, tomou-lhe a cabeça entre as grandes mãos, apertou-a ferozmente, obrigando Teresa a passar os lábios pelo pescoço, pela dentada de Camilo. Por instantes, manteve esmagada contra a pele a cabeça de Teresa. Esta abandonara-se, soltando lamentos abados pelo pescoço de Laurent. Quando se soltou dos dedos dele, passou violentamente a mão pela boca e cuspiu na lareira.
Não pronunciou uma palavra.
Envergonhado da sua brutalidade, Laurent deu lentamente alguns passos entre o leito e a janela. Só o sofrimento, o odor horrível, o levara a exigir um beijo de Teresa, o sofrimento aumentava ao sentir frios os lábios dela sobre a cicatriz em brasa. O beijo alcançado pela violência fizera-o cair em si. Por nada do mundo queria repeti-lo, tão doloroso fora o choque. E olhava para a mulher com a qual viveria e que estremecia, dobrada diante do fogo, voltando-lhe as costas; repetia para si próprio que já não amava aquela mulher e que ela também não o amava. Por cerca de uma hora Teresa permaneceu abatida e Laurent mediu o quarto em todos os sentidos, silenciosamente. Ambos reconheciam que a paixão estava morta, que tinham aniquilado os desejos ao matar Camilo. s chamas na lareira morriam lentamente; um braseiro brilhava sobre as cinzas. O quarto abafava de calor; as flores murchavam, tornando mais espesso o ambiente com o seu aroma.
De súbito, Laurent julgou ter uma alucinação. Ao voltar da janela em direção à cama, viu Camilo num canto menos iluminado, entre a chaminé e o toucador. O rosto da sua vítima estava esverdeado e convulso, tal como o vira sobre a laje da Morgue. Ficou pregado ao tapete, desfalecido, apoiando-se a um móvel. Ao ouvir o grito surdo que ele soltara, Teresa ergueu a cabeça.
— Ali — exclamava Laurent aterrorizado. com o braço estendido, apontava para o canto sombrio no qual via o rosto sinistro de Camilo. Dominada pelo terror, Teresa foi apertar-se contra ele.
— É o seu retrato — murmurou em voz baixa, como se a figura do antigo marido a pudesse ouvir.
— O seu retrato — repetiu Laurent, com os cabelos em pé.
— Sim, tu sabes, o quadro que pintaste. A minha tia devia tê-lo levado para o seu quarto. Esqueceu-se com certeza de o fazer.
— Claro, é o seu retrato...
O criminoso hesitava em reconhecer a tela. Na sua perturbação, esquecia que ele próprio tinha desenhado aqueles traços angulosos e duros, espalhado aquelas tintas opacas que o apavoravam agora. O terror fazia-o ver o quadro tal como era, ignóbil, mal feito, empastado, mostrando sobre um fundo negro um rosto caricato de cadáver.
A sua obra espantava-o e esmagava-o pela fealdade atroz; destacavam-se sobretudo os dois olhos brancos flutuando nas órbitas flácidas e amareladas, que lhe recordavam exatamente os olhos putrefatos do afogado na Morgue. Arquejou por momentos, pensando que Teresa mentia para o sossegar.
Distinguiu depois a moldura e, pouco a pouco, pode acalmar-se.
— Vai tirá-lo — disse num sopro.
— Oh! Não, tenho medo — respondeu a jovem com um arrepio.
Laurent começou a tremer. Parecia-lhe que a moldura desaparecia, nada mais via do que os dois olhos brancos olhando para ele fixamente.
— Suplico-te, vai tirá-lo.
— Não, não.
— Voltá-lo-emos para a parede, já não teremos medo.
— Não, não posso.
O criminoso, covardemente, empurrava a jovem na direção da tela, ocultava-se atrás dela para se furtar aos olhares do afogado.
Teresa soltou-se e ele teve um ímpeto de audácia: aproximou-se do quadro e levantou a mão, tateando o prego. Mas o retrato teve um olhar tão esmagador e ignóbil, tão demorado, que Laurent, não conseguindo suportar a sua fixidez, recuou, vencido e dominado, murmurando:
— Não, tens razão, Teresa, não podemos... a tua tia retirá-lo-á amanhã.
E retomou as evoluções de um lado para o outro, de cabeça baixa, sentindo que o retrato o olhava, que lhe seguia os movimentos.
Não podia evitar, de quando em quando, relancear os olhos para a tela; da sombra vinham os olhares baços e mortiços do afogado. O pensamento de que Camilo estava ali, naquele canto, a espreitá-lo, assistindo à sua noite de núpcias, observando-os, a Teresa e a ele, acabou por enlouquecer Laurent de terror e de desespero.
Um acontecimento, que teria feito sorrir qualquer outra pessoa, levou-o a perder a cabeça por completo. Diante da lareira, onde se encontrava, ouviu uma espécie de raspar de unhas. Empalideceu, julgando que o ruído provinha do retrato, que Camilo descia da moldura. Compreendeu depois que o som se dera perto da escada. Olhou para Teresa, que o terror imobilizara.
— Está alguém na escada — murmurou. Quem poderá vir por ali?
A jovem não respondeu. Ambos pensavam no afogado e em ambos o mesmo suor gelado cobriu a testa. Refugiaram-se no fundo do quarto, à espera de ver a porta abrir-se bruscamente para deixar tombar no chão o cadáver de Camilo. O ruído persistia, mais seco e mais irregular, dando-lhes a sensação de que a sua vítima arranhava a madeira da porta para entrar. Durante cerca de cinco minutos, não se atreveram a mexer-se. Finalmente, ouviu-se um miado.
Laurent aproximou-se e viu o gato da senhora Raquin que ficara por descuido fechado no quarto e dali tentava sair, empurrando a porta com as garras. François teve medo de Laurent e saltou para uma cadeira; de pêlo eriçado e as patas tensas, fitava o novo dono, com um ar duro e cruel. Laurent não gostava de gatos e François quase lhe metia medo. Naquela hora que atravessava, de febril receio, pensou que o animal ia saltar-lhe à cara para vingar Camilo. Aquele animal devia saber tudo: havia pensamentos nos seus olhos redondos, estranhamente dilatados.
Laurent baixou as pálpebras perante a fixidez daquele olhar. Preparava-se para dar um pontapé em François.
— Não lhe faças mal.
A exclamação de Teresa causou-lhe uma estranha impressão. Ocorreu-lhe uma idéia absurda. "Camilo entrou neste gato. Tenho de matar este animal... Tem o ar de uma pessoa."
Não deu o pontapé, com receio de ouvir François falar-lhe com a voz de Camilo. Depois lembrou-se das brincadeiras de Teresa, nos tempos de volúpia, quando o gato testemunhava os beijos que trocavam. Disse para si mesmo que o animal sabia demasiado e que tinha de o jogar pela janela.
Não teve porém coragem de levar para diante o seu intento. François mantinha atitude belicosa; as garras saídas, o dorso arqueado por surda irritação, seguia os mínimos movimentos do seu inimigo com tranqüilo desdém. Laurent sentiu-se embaraçado pelo brilho metálico dos olhos; apressou-se a abrir a porta e o gato desapareceu soltando um miado agudo.
Teresa sentara-se de novo diante do fogo, agora apagado. Laurent retomou o percurso entre o leito e a janela. E assim esperaram o dia; não pensaram em deitar-se; a carne e o coração estavam bem mortos. Um único desejo os dominava, o desejo de sair daquele quarto onde abafavam.
Sentiam verdadeiro mal-estar por estarem encerrados juntos, por respirarem o mesmo ar; preferiam que estivesse ali alguém para deixarem de estar sós, para os tirar do cruel embaraço em que se debatiam, frente a frente, sem falar, incapazes de fazer ressuscitar a paixão. Os prolongados silêncios torturavam-nos; eram carregados de queixas amargas e desesperadas, de mudas censuras que ambos ouviam distintamente na tranqüilidade do ambiente.
O dia chegou enfim, nublado e alvacento, trazendo um frio penetrante.
Quando a pálida claridade se espalhou pelo quarto, Laurent, que tiritava, sentiu-se mais calmo. Olhou de frente para o retrato de Camilo e viu-o tal como era, banal e pueril; tirou-o da parede, encolhendo os ombros e chamando estúpido a si próprio. Teresa erguera-se e desfazia a cama para iludir a tia, para fazer crer numa noite feliz.
— Ah, não — disse-lhe Laurent com rudeza — espero que durmamos esta noite... Estas infantilidades não podem continuar.
Teresa deitou-lhe um olhar grave e profundo.
— Compreendes — prosseguiu Laurent não me casei para passar as noites em claro... Estamos sendo crianças... Foste tu que me perturbaste, com os teus ares do outro mundo. Esta noite trata de ficar alegre e de não me assustares.
Riu contrafeito, sem saber porque ria.
— Farei o possível — respondeu a jovem.
As noites seguintes foram mais cruéis ainda. Os criminosos tinham querido estar juntos, à noite, para se defenderem do afogado e, estranhamente, agora que estavam os dois tremiam ainda mais. Exasperavam-se, irritavam-se, sofriam crises atrozes de terror ao trocarem uma simples palavra, um simples olhar. À conversação mais simples, ao mínimo encontro a sós, exaltavam-se, deliravam.
A natureza seca e nervosa de Teresa agira estranhamente sobre a natureza espessa e sangüínea de Laurent. Antes, nos tempos de paixão, as diferenças de temperamento tinham feito daquele homem e daquela mulher um casal poderosamente ligado, estabelecendo entre eles uma espécie de equilíbrio, completando, por assim dizer, o seu organismo. O amante dava o sangue, a amante os nervos e viviam um no outro, sentindo a necessidade dos beijos para regularizar o mecanismo do seu ser. Mas acabava de se dar um desequilíbrio; os nervos sobre-excitados de Teresa tinham imperado. Laurent sentira-se lançado de um golpe em pleno eretismo nervoso; sob a influência ardente da jovem, o temperamento tornara-se-lhe pouco a pouco o de uma jovem tomada por aguda neurose. Seria curioso estudar as alterações que por vezes se dão em certos organismos, em conseqüência de determinadas circunstâncias.
Estas alterações, que nascem na carne, não tardam a atingir o cérebro e daí todo o indivíduo.
Antes de conhecer Teresa, Laurent possuía a lentidão, a calma prudente, a vida sangüínea de um filho de camponês. Dormia, comia, e bebia calmamente. Em qualquer momento, em todas as circunstâncias da existência diária, respirava pesadamente, satisfeito consigo próprio, um pouco embrutecido pela gordura. No fundo da carne espessa, mal sentia por vezes algumas sensações. Eram estas sensações que Teresa transformava em horríveis agitações. Ela tinha desenvolvido naquele grande corpo, gordo e mole, um sistema nervoso de extraordinária sensibilidade. Laurent, que outrora desfrutara a vida mais pelo sangue do que pelos nervos, adquiriu sentidos menos grosseiros.
Uma existência nervosa, penetrante e nova, foi-lhe bruscamente revelada com os primeiros beijos da amante. Esta existência decuplicou-lhe as volúpias, imprimiu um caráter tão agudo aos seus prazeres que a princípio ficou como que enlouquecido; abandonou-se desvairadamente à embriaguez que o sangue jamais lhe tinha proporcionado. Deu-se então nele estranha modificação; os nervos desenvolveram-se e arrastaram-no para além do elemento sangüíneo e este fato modificou a sua natureza. Perdeu a calma, a lentidão, deixou de viver uma vida adormecida. Teve um momento em que os nervos e o sangue se mantiveram em equilíbrio; essa foi uma hora de alegria profunda, de existência perfeita. Em seguida os nervos dominaram e ele caiu nas angústias que sacodem os corpos e os espíritos transtornados.
Fora assim que Laurent começara a tremer diante de um canto sombrio como criança medrosa. O ser assustadiço e espantado, o indivíduo novo que acabava de se libertar do camponês espesso e embrutecido, sentia os terrores, as ansiedades dos temperamentos nervosos. Todas as circunstâncias, as carícias felinas de Teresa, a febre do assassínio, a espera apavorada da volúpia tinham-no enlouquecido, exaltando-lhe os sentidos, martelando-lhe brusca e repetidamente os nervos. Por fim a insônia viera fatalmente, trazendo com ela a alucinação. A partir daí Laurent rolara para a vida intolerável, para o eterno temor em que se debatia. Os seus remorsos eram puramente físicos. Apenas o corpo, os nervos irritados e a carne trêmula tinham medo do afogado.
A consciência em nada participava dos seus terrores, não tinha o mínimo remorso por ter matado Camilo; quando estava calmo, quando o espectro não se encontrava junto de si, teria cometido de novo o crime se pensasse que o seu interesse lhe exigia. Durante o dia zombava dos seus temores, prometia a si próprio ser forte, repreendia asperamente Teresa, que acusava de o perturbar; segundo ele era Teresa quem estremecia, era Teresa e só ela quem provocava cenas desagradáveis à noite, no quarto.
Assim que a noite caía, assim que ficava só com a mulher, suores gelados afloravam-lhe a pele, sacudiam-no terrores infantis.
Sofria assim crises periódicas, crises de nervos que voltavam todas as noites, que lhe destorciam os sentidos ao mostrarem-lhe o rosto esverdeado e ignóbil da sua vítima. Dir-se-iam acessos de uma doença medonha, de uma espécie de histeria do crime. O nome de doença, de afecção nervosa, era realmente o único que se aplicava aos pavores de Laurent. O seu rosto contorcia-se e os membros ficavam hirtos; via-se que os nervos se lhe contorciam. O corpo sofria horrivelmente, mas a alma permanecia ausente. O miserável não sentia arrependimento; a paixão de Teresa transmitira-lhe um mal pavoroso e era tudo.
Também Teresa era assaltada por profundos sobressaltos. Nela, porém, a natureza primitiva não tinha feito mais do que exaltar-se desmedidamente. Desde os 10 anos que aquela mulher era perturbada por desequilíbrios nervosos, devidos em parte à maneira como crescera, no ambiente frouxo e nauseabundo do quarto onde agonizava o pequeno Camilo. Amassava vendavais dentro de si, fluidos poderosos que viriam a desencadear mais tarde autênticas tempestades.
Laurent fora para ela o que ela fora para Laurent, uma espécie de choque brutal. Desde o primeiro abraço amoroso o temperamento seco e voluptuoso que possuía viera à superfície com selvagem energia; não vivia para outra coisa além da paixão. Abandonando-se cada vez mais à febre que a consumia, chegara a uma espécie de estupor doentio. Os acontecimentos esmagavam-na, tudo a impelia para a loucura. No meio dos terrores mostrava-se mais mulher do que com o atual marido; tinha vagos remorsos, lamentações inconfessadas; sentia ânsias de se lançar de joelhos e de implorar ao espectro de Camilo, a pedir-lhe perdão jurando apaziguá-lo com o seu arrependimento.
Talvez Laurent se apercebesse destas fraquezas de Teresa; quando o terror comum os agitava, ele irritava-se e tratava-a com brutalidade.
Nas primeiras noites não conseguiram deitar-se. Ficavam à espera que o dia nascesse, sentados diante do fogo, ou passeando de um lado para o outro, como na noite de núpcias. A idéia de se estenderem lado a lado na cama causava-lhes uma espécie de assustada repugnância. Tacitamente, evitaram abraçar-se e nem mesmo olhavam para a cama que Teresa desfazia todas as manhãs. Quando a fadiga os dominava, cochilavam durante uma ou duas horas nas poltronas, para acordarem em sobressalto sob o efeito de desenlace sinistro de um pesadelo. com os membros hirtos e doloridos, o rosto salpicado de manchas lívidas, tiritando de desconforto, contemplavam-se estupefatos por se verem ali, revelando mutuamente estranhos pudores, vergonha de mostrar a sua repugnância e terror.
Lutavam aliás contra o sono. tanto quanto podiam. Sentavam-se nos extremos da lareira e falavam de mil banalidades, esforçando-se por não deixar morrer a conversação.
Diante da lareira ficava um largo espaço entre eles. Quando voltavam a cabeça, imaginavam que Camilo tinha puxado uma cadeira e ocupava aquele espaço e aquecia os pés de uma forma lugubremente escarnecedora. Esta visão que tinham tido na noite de núpcias voltava todas as noites. Este cadáver que assistia, mudo e trocista, às suas conversas, o corpo horrivelmente desfigurado que estava sempre ali, enchia-os de uma ansiedade permanente.
Laurent acabou por não querer sentar-se, sem confessar a Teresa a causa da decisão. Teresa compreendeu que Laurent devia ver Camilo como ela o via; declarou por sua vez que o calor lhe fazia mal, que ficaria melhor a alguns passos da lareira. Puxou a poltrona para junto do leito e ficou abatida, enquanto o marido retomava as passadas pelo quarto. De vez em quando abria a janela, deixando o frio das noites de janeiro varrer o quarto com o seu sopro glacial.
Isso acalmava-lhe a febre.
Durante uma semana os recém-casados passaram assim as noites inteiras. Cochilavam e descansavam durante o dia, Teresa por detrás do balcão e Laurent na repartição.
À noite imperava a dor e o temor. Fato mais estranho era ainda a atitude que mantinham diante um do outro. Não tinham uma palavra de amor, fingiam ter esquecido o passado; pareciam aceitarse, tolerar-se mutuamente como doentes que sentem secreta pena pelos padecimentos comuns. Ambos tinham a esperança de esconder os seus tédios e os seus temores, e nenhum deles parecia pensar na estranheza das noites que passavam e que devia esclarecê-los sobre o verdadeiro estado do seu ser. Ao manterem-se em pé até de manhã, mal se falando, empalidecendo ao menor ruído, davam a sensação de acreditar que todos os recém-casados se comportavam de igual maneira nos primeiros dias de casamento. Era a hipocrisia desastrada de dois loucos.
Não tardou que o abatimento os dominasse a tal ponto que uma noite decidiram estender-se na cama. Não se despiram, limitando-se a deitar-se sobre a coberta, receando o contato da pele. Parecia-lhes que teriam um doloroso abalo ao mínimo contato. Ao fim de duas noites de procedimento idêntico, de sono entrecortado e inquieto, aventuraram-se a tirar as roupas e a enfiarem-se entre os lençóis. Mantiveram-se, porém, afastados e com todas as preocupações para não se tocarem. Teresa deitava-se em primeiro lugar, e encostava-se à parede. Laurent esperava alguns momentos e deitava-se, aos pés da cama, junto da borda. Entre eles ficava um grande espaço: ali se deitava o cadáver de Camilo.
Assim que os dois criminosos ficavam estendidos sob os mesmos lençóis e fechavam os olhos, começavam a sentir o corpo úmido da sua vítima, deitada no meio da cama e que lhes gelava a carne. Era como que um obstáculo ignóbil que os separava. A febre e o delírio apossavam-se deles e aquele obstáculo materializava-se; tocavam naquele corpo, viam-no estendido, como um farrapo esverdeado e desfeito, respiravam o odor infecto daquele montículo de podridão humana; todos os seus sentidos eram tomados de alucinação, dando acuidade intolerável às sensações. À presença da imunda companhia de leito mantinha-os imóveis, silenciosos, perdidos de angústia.
Laurent pensava por vezes tomar violentamente Teresa nos braços; mas não ousava mover-se, dizendo para si mesmo que não poderia estender a mão sem reter um punhado da carne mole de Camilo. Pensava a seguir que o afogado se deitava entre eles para os impedir de se abraçarem. Acabou por compreender que o afogado era ciumento.
Outras vezes, contudo, chegavam a trocar um beijo tímido para ver o que acontecia. O jovem troçava da mulher e ordenava-lhe que o abraçasse. Mas os seus lábios estavam tão frios que parecia que a morte se colocara entre as suas bocas. Acometiam-lhes náuseas, Teresa tinha um arrepio de horror e Laurent, que ouvia os dentes a bater, irritava-se contra ela.
— Por que tremes tu? — exclamava. — Estás com medo de Camilo?... Vamos, o pobre homem já não sente os ossos a esta hora.
Evitavam confiar um ao outro a causa dos seus arrepios. Quando uma alucinação lhes fazia ver a máscara pálida do afogado, fechavam os olhos, envolvendo-se no terror, sem se atreverem a falar ao outro da visão, receando dar origem a uma crise ainda mais terrível. Quando Laurent, esgotado, enraivecido de desespero, acusava Teresa de ter medo de Camilo, este nome, pronunciado em voz alta, redobrava-lhe a angústia. O assassino delirava:
— Sim, sim — balbuciava para a mulher tu tens medo de Camilo... Bem o vejo, que diabo! És uma tola, não tens dois sous de coragem. Eh! dorme tranqüila. Acreditas que o teu primeiro marido venha puxar-te pelos pés, por eu estar deitado contigo...
Esta idéia, esta suposição de que o afogado podia puxar-lhe os pés, fazia eriçar os cabelos a Laurent. Mas continuava, com mais violência, dilacerando-se a si próprio:
— Tenho de levar-te uma noite ao cemitério... Abriremos o caixão de Camilo e verás o monte de podridão! Talvez deixes de ter medo... Vamos, ele não sabe que o jogamos na água.
Com a cabeça entre os lençóis, Teresa soltava lamentos abafados.
— Atiramo-lo à água porque nos atrapalhava — recomeçava Laurent. — Voltaríamos a faze-lo, não é verdade?... Não sejas criança. Sê forte. É asneira estragar a nossa felicidade... Não vês, minha tonta, quando morrermos não seremos nem mais nem menos felizes debaixo da terra por termos lançado um imbecil ao Sena, e teremos gozado livremente o nosso amor, o que é uma vantagem... Vamos, abraça-me.
A jovem abraçou-o, gelada, enlouquecida e ele estava tão trêmulo como ela.
Durante mais de 15 dias Laurent perguntou a si próprio o que poderia fazer para matar de novo Camilo. Tinha-o jogado na água e ei-lo que não estava completamente morto, que surgia todas as noites para se deitar na cama de Teresa. Quando os criminosos julgavam ter completado o assassínio e poder dedicar-se em paz às doçuras dos seus amores, a vítima ressuscitava para lhes gelar a cama. Teresa não era viúva, Laurent tornara-se o marido de uma mulher que já tinha por marido um afogado.
Pouco a pouco, Laurent chegou à loucura. Decidiu-se a varrer Camilo da sua cama. A princípio deitara-se todo vestido, depois evitara tocar na pele de Teresa.
Por raiva, por desespero, quis finalmente puxar a mulher para o peito, preferindo esmagá-la a deixá-la ao espectro da sua vítima. Foi uma revolta soberba de brutalidade.
Fora, em suma, a esperança de que os beijos de Teresa lhe curariam as insônias o único fato que o levara ao quarto da jovem.
Quando ali se viu, como dono, a sua carne dilacerada pelas mais atrozes crises, nem mesmo tentara a cura. E ficara como que esmagado durante três longas semanas, sem se lembrar que tudo fizera para possuir Teresa, não podendo tocar-lhe sem aumentar os seus sofrimentos, agora que a possuía.
O excesso de angústia fê-lo sair deste embrutecimento. No primeiro momento de estupor, no estranho acabrunhamento da noite de núpcias, conseguira esquecer as razões que o tinham levado ao casamento. Mas sob os repetidos golpes dos pesadelos uma irritação surda o invadiu e vencendo as fraquezas, restituiu-lhe a memória. Lembrou-se que se casara para afastar os pesadelos ao abraçar estreitamente a mulher. Então bruscamente uma noite tomou Teresa nos braços, com risco de passar sobre o corpo do afogado, e apertou-a com violência.
Também a jovem estava no limite das suas forças; ter-se-ia lançado ao fogo se pensasse que as chamas lhe purificariam a carne e a libertariam dos sofrimentos. Correspondeu ao abraço de Laurent, decidida a deixar-se consumir pelas carícias daquele homem, ou a encontrar nelas um alívio.
E apertaram-se num abraço horrível. A dor e o pavor substituíram-se aos desejos. Quando os seus membros se tocaram, ambos julgaram ter caído num braseiro. Soltaram um grito e apertaram-se ainda mais, para que entre eles não ficasse espaço para o afogado. E contudo sentiam sempre os farrapos de Camilo, esmagando-se ignobilmente entre ambos, gelando-lhes a pele nalguns pontos enquanto o resto do corpo ardia.
Os seus beijos foram terrivelmente cruéis.
Teresa procurou com os lábios a dentada de Camilo no pescoço grosso de Laurent e sobre ela colou a boca com arrebatamento. Era ali que estava a chaga viva; curada esta ferida, os criminosos dormiriam em paz. A jovem compreendia isso e tentava cauterizar o mal com o fogo das suas carícias. Mas os lábios queimavam e Laurent afastou-a violentamente, com um gemido surdo; pareceu-lhe que lhe tinham aplicado um ferro em brasa sobre o pescoço. Desvairada, Teresa quis beijar de novo a cicatriz; sentia uma volúpia acre em pousar a boca naquele ponto onde tinham mergulhado os dentes de Camilo. Por um instante teve a sensação de estar mordendo o marido, de lhe arrancar um enorme pedaço de carne, de fazer uma nova ferida, mais profunda, que levasse as marcas da antiga. E dizia para si mesma que não voltaria a empalidecer ao ver os sinais dos seus próprios dentes. Laurent porém protegia o pescoço dos seus beijos; sentia picadas pavorosas e repelia-a de cada vez que ela estendia os lábios.
Lutaram assim, ofegantes, debatendo-se no horror das carícias. Sentiam claramente que não faziam mais do que aumentar os sofrimentos. Era em vão que se comprimiam em abraços terríveis, que gritavam de dor, que se consumiam e martirizavam: não conseguiam apaziguar os nervos aterrorizados. Cada abraço só servia para tornar mais aguda a sua repulsa. Enquanto trocavam os medonhos beijos, dominavam-nos horrorosas alucinações; imaginavam que o afogado os puxava pelos pés e imprimia ao leito violentos safanões.
Soltaram-se momentaneamente. Sentiam repugnância, invencíveis revoltas nervosas. Mas não quiseram ser vencidos; voltaram a enlear-se e de novo se afastaram, como se lhes estivessem a enterrar na carne agulhas em brasa. Várias vezes tentaram vencer a repugnância, esquecer tudo, destruindo os nervos. De cada vez os nervos reagiram, se retesaram, causando-lhes tamanha exasperação que provavelmente morreriam de enervamento se continuassem nos braços um do outro. Este combate contra o próprio corpo exaltara-os até ao paroxismo; mas eles obstinavam-se, na ânsia de o vencer. Por fim, uma crise mais aguda prostrou-os; o choque foi de uma inaudita violência e julgaram cair em epilepsia.
Arrojados cada um deles para uma borda da cama, febris e martirizados, romperam em soluços.
E, por entre os soluços, parecia-lhes escutar as risadas de triunfo e de escárnio do afogado, que de novo deslizava para debaixo dos lençóis. Não tinham conseguido escorraçá-lo da cama; tinham sido vencidos. Camilo estendeu-se suavemente entre eles, enquanto Laurent chorava de impotência e Teresa tremia à idéia de que ocorresse ao cadáver a fantasia de tirar proveito da vitória e apertá-la por sua vez entre os braços putrefatos, como senhor legítimo. Tinham tentado um meio supremo; perante a derrota, compreendiam que, daí em diante, não teriam coragem para trocar um único beijo. A crise de amor louco que tinham tentado provocar para aniquilar os seus terrores, acabara por encerrá-los mais profundamente no pavor. Sentindo o frio do cadáver que, agora, os separaria para sempre, derramavam lágrimas de sangue e perguntavam a si próprios com angústia o que ia ser deles.
Tal como esperava o velho Michaud ao trabalhar para o casamento de Teresa e de Laurent, os serões de quinta-feira retomaram a antiga alegria, a partir do dia seguinte ao da boda. Esses serões tinham corrido um grande perigo quando da morte de Camilo. Os convidados tinham passado a aparecer receosamente naquela casa enlutada; em cada semana esperavam receber a despedida definitiva. O pensamento de que a porta da loja acabaria sem dúvida por fechar-se diante deles assustava Michaud e Grivet, que se agarravam aos seus hábitos com o instinto e a obstinação de animais. Diziam para si mesmos que a velha mãe e a viúva partiriam uma bela manhã para Vernon ou para qualquer outro lugar, para chorar o seu defunto, e que assim ficariam na rua, na quinta-feira à noite, sem saberem o que fazer; viam-se na passagem, errando lamentavelmente, sonhando com intermináveis partidas de dominó. Enquanto aguardavam estes tempos maus, desfrutavam timidamente as derradeiras alegrias, repetindo constantemente que talvez não voltassem mais.
Durante mais de um ano tinham sentido estes receios, não ousando expandir-se nem rir em face das lágrimas da senhora Raquin e dos silêncios de Teresa. Tinham deixado de se sentir à vontade, como nos tempos de Camilo; parecia, por assim dizer, que roubavam cada serão passado em volta da mesa da sala de jantar. Fora nestas circunstâncias desesperadas que o egoísmo levara o velho Michaud a dar um golpe de mestre, casando a viúva do afogado.
Na quinta-feira seguinte ao casamento, Grivet e Michaud fizeram uma entrada triunfal. Tinham vencido. A sala de jantar era novamente deles, já não receavam que lhes fosse interditada. Entraram como pessoas felizes, instalaram-se e disseram de enfiada os antigos gracejos. Pela sua atitude seráfica e confiante via-se que, para eles, acabava de ter lugar uma revolução. A recordação de Camilo já não existia; o marido morto, o espectro que os gelava, fora escorraçado pelo marido vivo. O passado ressuscitava e com ele as suas alegrias. Laurent substituía Camilo, desapareciam todos os motivos para tristezas, os convidados podiam rir sem afligir ninguém e isso mesmo deviam fazer para alegrar a excelente família que tão bem os recebia. A partir de então, Grivet e Michaud, que há quase 18 meses ali iam com o pretexto de consolar a senhora Raquin, podiam pôr de lado a pequena hipocrisia e instalar-se francamente, cochilar diante um do outro ao ruído seco das pedras de dominó.
E em todas as semanas existia um serão de quinta-feira, cada semana reunia uma vez em volta da mesa aquelas cabeças mortas e grotescas que outrora exasperavam Teresa.
A jovem falou de pôr aquela gente na rua; irritavam-na nas suas gargalhadas grosseiras, as suas reflexões estúpidas. Porém Laurent fez-lhe compreender que semelhante despedida seria um erro; era necessário que o presente se assemelhasse ao passado tanto quanto possível; era sobretudo necessário conservar a amizade da polícia, daqueles imbecis que os protegiam contra qualquer suspeita. Teresa cedeu; os convidados, bem recebidos, viram com felicidade estender-se à sua frente uma longa série de agradáveis serões.
Foi por esta altura que a vida dos esposos se desdobrou de certa maneira.
De manhã, assim que o dia dissipava os terrores da noite, Laurent vestia-se a toda a pressa. Só se sentia à vontade, só retomava o ar calmo e egoísta na sala de jantar, diante da enorme chávena de café com leite que Teresa lhe preparava. A senhora Raquin, impossibilitada, mal podendo descer à loja, sorria maternalmente a vê-lo comer. Ao engolir o pão torrado, ao encher o estômago, readquiria pouco a pouco o domínio de si mesmo. Depois da refeição, bebia um pequeno copo de conhaque. Ficava então completamente recomposto. Ele dizia "até logo à tarde" à senhora Raquin e à Teresa, sem nunca as abraçar, e dirigia-se para a repartição caminhando despreocupadamente. A primavera chegava; as árvores do cais cobriam-se de folhas, de um rendilhado leve verde-pálido. Embaixo o rio corria com ruídos acariciadores; no alto, os raios das primeiras manhãs de sol tinham uma tepidez suave. Laurent sentia-se renascer no ar fresco; respirava profundamente estes sopros de vida nova que caem dos céus de abril e de maio; procurava o sol, detendo-se para olhar os reflexos de prata que deslizavam pelo Sena, para escutar a agitação do cais, deixando-se penetrar pelos odores acres da manhã e desfrutando com todos os sentidos a hora clara e feliz. É evidente que não pensava em Camilo; por vezes dava consigo a contemplar maquinalmente a Morgue, do outro lado do rio; pensava então no afogado, da mesma forma que um homem corajoso refletiria acerca de um pavor tolo que tivesse sentido. com o estômago cheio e o rosto refrescado, reencontrava a tranqüilidade espessa e chegava à repartição, onde passava o dia inteiro a bocejar, a esperar a hora da saída. Não passava de um empregado como os outros, embrutecido e cheio de tédio, de cabeça vazia. A única idéia que o dominava então era a de apresentar a demissão e alugar um ateliê; sonhava vagamente com uma nova existência de lazer e essa idéia bastava para o ocupar até à tarde. Jamais a recordação da loja da passagem o vinha perturbar. À tarde, depois de ter desejado a hora da saída desde a manhã, saía com pena, caminhava ao longo do cais, surdamente perturbado e inquieto. Por mais lentamente que caminhasse, acabava por chegar à loja. Ali, esperava-o o pavor. Teresa experimentava as mesmas sensações. Enquanto Laurent não estava junto de si, sentia-se à vontade. Tinha dispensado a mulher da limpeza, dizendo que estava tudo em desordem e sujo, na loja como em casa. Assaltavam-na idéias de ordem e de arrumação. A verdade é que tinha necessidade de andar, de fazer qualquer coisa, de cansar os membros tensos. Não parava durante toda a manhã, varrendo, limpando o pó e os quartos, lavando a louça, fazendo as tarefas que outrora a teriam enfadado. Até ao meio-dia estes trabalhos caseiros mantinham-na de pé, ativa e silenciosa, sem lhe deixarem tempo para pensar em algo mais do que as teias de aranha que pendiam do teto e a gordura que sujava os pratos. Em seguida metia-se na cozinha e preparava o almoço. À mesa, a senhora Raquin desolava-se por vê-la constantemente a levantar-se para ir buscar os pratos; sentia-se enternecida e simultaneamente incomodada pela atividade da sobrinha; ralhava-lhe e Teresa respondia que era preciso fazer economias. Depois da refeição, a jovem vestia-se e decidia-se finalmente a juntar-se -à tia atrás do balcão. Assaltava-a então a sonolência; vencida pelas vigílias, cochilava, cedia ao voluptuoso entorpecimento que dela se apossava assim que se sentava. Não passava de leve sonolência, impregnada contudo de vago encanto, que lhe acalmava os nervos. A idéia fixa de Camilo desvanecia-se; passava pelo repouso profundo dos doentes aos quais os sofrimentos deixam repentinamente de afligir. Sentia a carne flexível, o espírito livre, e mergulhava numa espécie de vazio tépido e reparador. Sem estes momentos de calma, o seu organismo teria estalado sob a tensão do sistema nervoso; a eles ia buscar as forças necessárias para continuar a sofrer e a ser presa do terror na noite seguinte. Ela aliás não adormecia, mal chegando a baixar as pálpebras, perdida no fundo de um sonho de paz; quando entrava um cliente, abria os olhos e aviava os poucos sous de mercadoria pretendida, tombando de novo no seu devaneio flutuante.
Passava assim três ou quatro horas, perfeitamente feliz, respondendo por monossílabos à tia, abandonando-se com profundo prazer ao delíquio que lhe esvaziava o pensamento e que a prostrava. De vez em quando lançava uma olhadela para a passagem, sentindo-se ainda mais à vontade com o tempo cinzento, em que melhor escondia o seu abatimento na sombra. A rua úmida e ignóbil, cruzada por uma multidão de pobres diabos encharcados, cujos guarda-chuvas gotejavam sobre as lajes, parecia-lhe o caminho de um lugar perigoso, uma espécie de corredor sujo e sinistro onde ninguém a iria procurar e perturbar. Por momentos, vendo os clarões terrosos que se arrastavam à sua volta, sentindo o odor acre da umidade, imaginava que acabava de ser enterrada viva; via-se dentro da terra, no fundo de uma fossa comum onde os mortos se agitavam. E este pensamento consolava-a, acalmava-a; dizia para si mesma que estava agora em segurança, que ia morrer, que não sofreria mais. Outras vezes precisava ficar de olhos abertos; Suzana visitava-a e ficava bordando junto de si toda a tarde. A mulher de Olivier, com o seu rosto flácido, os gestos lentos, agradava-lhe agora e Teresa sentia um estranho alívio em olhar para aquela pobre criatura desfeita. Fizera dela uma amiga, gostava de vê-la a seu lado, sorrindo com um sorriso pálido, vivendo apenas em parte, introduzindo na loja um cheiro tênue de cemitério. Quando os olhos azuis de Suzana, de uma transparência vítrea, se fixavam nos seus, sentia um frio benéfico até ao fundo dos ossos.
Teresa permanecia assim durante quatro horas. Subia então para a cozinha, buscando de novo a fadiga, preparando o jantar para Laurent com uma pressa febril. E quando o marido se recortava no limiar da porta, a garganta fechava-se-lhe, a angústia torcia de novo todo o seu ser.
Dia após dia, as sensações de ambos eram quase as mesmas. Durante o dia, em que não estavam juntos, desfrutavam horas deliciosas de repouso; quando a noite os reunia, um pungente mal-estar envolvia-os.
Por outro lado, eram serões calmos. Teresa e Laurent, que estremeciam à idéia de entrar no quarto, faziam prolongar o serão o mais possível. Meio deitada numa larga poltrona, a senhora Raquin ficava entre eles e conversava com a sua voz plácida. Falava de Vernon, sempre pensando no filho mas evitando pronunciar o seu nome por uma espécie de pudor; sorria aos filhos queridos e fazia para eles projetos de futuro. O candeeiro projetava-lhe no rosto branco clarões pálidos; as suas palavras adquiriam extraordinária doçura no ambiente morto e silencioso. De cada lado, os dois criminosos, mudos, imóveis, parecendo ouvi-la com recolhimento; ria verdade, não procuravam seguir o sentido das divagações da pobre senhora, sentiam-se simplesmente satisfeitos por escutar o som das palavras doces que os impediam de ouvir o clarão dos seus pensamentos. Não ousavam olhar-se e fitavam a senhora Raquin para terem uma atitude aceitável. Nunca falavam em deitar-se; ficariam ali até de manhã, no tagarelar acariciador, no ambiente calmo que criava à sua volta a velha capelista, se não fosse ela própria a manifestar a vontade de ir para a cama. Só então deixavam a sala de jantar para se recolherem ao quarto com desespero, como quem se lança num precipício.
A estes serões íntimos, cedo preferiram os serões de quinta-feira. Quando estavam sós com a senhora Raquin não podiam aturdir-se; o fino fio de voz da tia, a sua alegria enternecida, não abafavam os gritos que os dilaceravam. Sentiam chegar a hora de se deitarem e estremeciam quando o acaso lhes encaminhava o olhar para a porta do quarto; a espera do momento em que estariam a sós tornava-se cada vez mais cruel à medida que a noite avançava. Às quintas-feiras, pelo contrário, entonteciam-se com tolices, cada um esquecia a presença do outro, sofriam menos. A própria Teresa acabou por desejar ardentemente o dia da recepção. Se Michaud e Grivet não viessem, ela iria procurá-los. A existência de estranhos na sala de jantar entre si e Laurent fazia-a sentir-se mais calma; desejaria que houvesse sempre convidados, ruído, qualquer coisa que a aturdisse e a isolasse. Perante as pessoas, manifestava uma espécie de nervosa vivacidade. Também Laurent reencontrava os pesados gracejos de camponês, as grandes gargalhadas, os gracejos de antigo pintor. As recepções jamais tinham sido tão alegres e ruidosas.
Era desta maneira que uma vez por semana Teresa e Laurent conseguiam estar frente a frente sem estremecer.
Em breve porém um receio os invadiu. A paralisia dominava pouco a pouco a senhora Raquin e não tardaram a prever o dia em que ficaria pregada à poltrona, impotente e idiota. A pobre velha começava a balbuciar frases desconexas; a voz enfraquecia-lhe, os membros morriam um após outro. Transformava-se num objeto.
Teresa e Laurent viam com terror desaparecer o ser que os separava ainda e cuja voz os arrancava aos pesadelos. Quando a inteligência abandonasse a antiga capelista e esta ficasse muda e hirta no fundo da poltrona, encontrarse-iam sós; à noite não poderiam escapar a um terrível encontro a sós. Então o terror começaria às seis horas em lugar de ser à meia-noite; enlouqueceriam.
Empenharam todos os esforços em conservar à senhora Raquin a saúde que lhes era tão preciosa. Mandaram chamar médicos, rodearam-na dos maiores cuidados, chegando mesmo a encontrar nessa tarefa de vigilantes o esquecimento, um apaziguamento que os levou a redobrar de desveles. Não queriam perder quem lhes tornava os serões suportáveis; não queriam que a sala de jantar, toda a casa, se tornasse um local sinistro e cruel como o seu quarto. A senhora Raquin ficou particularmente sensibilizada pelos diligentes cuidados que lhe prodigalizavam; por entre lágrimas, felicitava-se por os ter unido e por lhes ter abandonado os seus 40 e tal mil francos. Depois da morte do filho, jamais contara com semelhante afeição a rodear-lhe as últimas horas; a sua velhice estava sendo acalentada pela ternura dos seus filhos queridos. Não sentia a implacável paralisia que, apesar de tudo, a imobilizava dia após dia.
Entretanto, Teresa e Laurent continuavam a sua dupla existência. Em cada um deles havia dois seres bem distintos: um nervoso e aterrorizado que estremecia assim que caía o crepúsculo, e o outro, entorpecido e descuidado, que respirava à vontade com o nascer do sol. Viviam duas vidas, gritando de angústia a sós, e sorrindo calmamente diante de outras pessoas. Nunca o seu rosto, em público, deixava adivinhar os sofrimentos que os dilaceravam na intimidade; pareciam calmos e felizes, ocultando instintivamente os seus males.
Ninguém teria suspeitado, ao vê-los tão tranqüilos durante o dia, das alucinações que os torturavam à noite. Tomá-los-iam por um casal abençoado pelo céu, vivendo em plena felicidade. Galantemente, Grivet apelidava-os de "os pombinhos". Quando os seus olhos exibiam olheiras provocadas pelas prolongadas vigílias, perguntava-lhes, gracejando, quando era o batismo. E todos riam. Laurent e Teresa empalideciam ligeiramente e conseguiam sorrir; habituavam-se aos gracejos pesados do velho empregado.
Enquanto permaneciam na sala de jantar, dominavam os terrores.
Não se podia adivinhar a horrível mudança que se produzia neles quando se encerravam no quarto. Sobretudo à quintafeira a modificação era de uma brutalidade de tal violência que parecia ter lugar num mundo sobrenatural. O drama das suas noites, pela estranheza, pelos arrebatamentos selvagens, ultrapassava tudo o que se pode imaginar e ficava profundamente oculto no fundo do seu ser martirizado. Se falassem, julgá-los-iam loucos.
— Como são felizes, estes apaixonados! dizia muitas vezes o velho Michaud. — Não falam muito, mas nem por isso pensam menos. Aposto que se devoram de carícias quando não estamos aqui.
Era esta a opinião dos habituais convivas. Chegou-se a dar Teresa e Laurent por casal modelo. Toda a passagem da Ponte Nova celebrava o afeto, a felicidade tranqüila, a permanente luade-mel dos dois esposos. Só eles sabiam que o cadáver de Camilo se deitava entre ambos; só eles sentiam, por debaixo do aspecto calmo do seu rosto, as contrações dolorosas que, à noite, lhes repuxavam horrivelmente as feições e alteravam a expressão plácida da sua fisionomia numa máscara ignóbil e dolorosa.
Decorridos quatro meses, Laurent pensou em colher do casamento os benefícios que a si próprio prometera. Teria abandonado a mulher e fugido diante do espectro de Camilo três dias depois da boda, se os seus interesses não o tivessem pregado na loja da passagem. Suportava as noites de terror, permanecia no meio das angústias que o abafavam para não perder os proveitos do seu crime. Deixando Teresa voltava para a miséria, era forçado a manter o emprego; ficando com ela podia, pelo contrário, satisfazer os seus apetites de preguiça, viver fartamente, sem nada fazer, dos rendimentos que a senhora Raquin colocara em nome da mulher.
É de crer que teria desaparecido com os 40 mil francos, se os pudesse realizar; mas a velha capelista, aconselhada por Michaud, tivera a prudência de salvaguardar no contrato os interesses da sobrinha. Laurent via-se, assim, ligado a Teresa por um laço poderoso. Em compensação pelas atrozes noites que passava, queria ao menos viver em feliz ociosidade, bem alimentado, bem agasalhado, tendo na algibeira o dinheiro necessário para satisfazer os caprichos. Apenas por este preço admitia deitar-se com o cadáver do afogado.
Uma noite anunciou à senhora Raquin e à mulher que se despedira e que deixaria a repartição no fim da quinzena. Teresa esboçou um gesto de inquietação. Ele apressou-se a acrescentar que ia alugar um pequeno ateliê onde voltaria a pintar. Falou demoradamente sobre os aborrecimentos no emprego e sobre os largos horizontes que a arte lhe abria; agora que tinha algum dinheiro e que podia tentar o êxito, queria ver se era capaz de grandes coisas. A tirada que declamou a este propósito escondia simplesmente o feroz desejo de voltar à antiga vida de ateliê. com os lábios comprimidos, Teresa não respondeu; não entendia que Laurent gastasse a pequena fortuna que assegurava a sua liberdade. Quando o marido a apertou com perguntas para lhe arrancar o consentimento, deu algumas respostas secas. Fez-lhe compreender que, se deixava a repartição, nada mais ganharia e ficaria completamente às suas custas. Enquanto Teresa falava, Laurent observava-a de modo tão penetrante que a perturbou e lhe susteve na garganta a recusa que se preparava para dar; nos olhos do cúmplice julgou ler este ameaçador pensamento: "Digo tudo, se não consentes." Teresa começou a balbuciar. A senhora Raquin disse por sua vez que o desejo do seu querido filho era bastante justo e que era necessário fornecer-lhe os meios de se tornar um homem de talento. A boa senhora mimava Laurent como tinha mimado Camilo; estava sensibilizada pelas carícias que o jovem lhe prodigalizava, pertencia-lhe e submetia-se sempre à sua opinião.
Ficou, pois, decidido que o artista alugaria um ateliê e que disporia de 100 francos por mês para as diversas despesas que teria de fazer. O orçamento da família ficou determinado da seguinte maneira: os lucros da capelista pagariam a renda da loja e da casa e quase chegariam para as despesas cotidianas; Laurent retiraria o aluguel do ateliê e os seus 100 francos mensais dos 2.000 e algumas centenas de francos do rendimento; os rendimentos remanescentes seriam aplicados de acordo com as necessidades comuns. Desta forma não se mexeria no capital. Teresa ficou um pouco mais tranqüila. Fez jurar ao marido que nunca ultrapassaria a soma que lhe ficava destinada. Aliás, dizia para si mesma que Laurent não podia apoderar-se dos francos sem ter a sua assinatura, e ela firmemente prometia não assinar fosse que papel fosse.
No dia seguinte Laurent alugou um pequeno ateliê que cobiçava há um mês, no fundo da Rua Mazarino. Não queria deixar o emprego sem possuir um refúgio para passar tranqüilamente os dias, longe de Teresa.
No fim da quinzena, disse adeus aos colegas. Grivet ficou estupefato com o despedimento. Um homem novo – dizia — que tinha diante de si um belo futuro, um jovem que em quatro anos atingira o vencimento que ele, Grivet, levara 20 anos para alcançar! Maior foi o seu espanto quando Laurent lhe disse ir dedicar-se inteiramente à pintura.
O artista instalou-se finalmente no seu ateliê. Era uma espécie de águas-furtadas, de forma quadrada, com cerca de cinco ou seis metros; o teto inclinava-se bruscamente, em queda abrupta, com uma larga janela que deixava passar uma luz branca e crua sobre o chão e as paredes enegrecidas. Os ruídos da rua não chegavam àquelas alturas.
A janela, silenciosa, embaraçada, abrindo-se para o céu, parecia um buraco, um buraco aberto em argila cinzenta. Laurent mobilou o ateliê modestamente; duas cadeiras sem palha, uma mesa que encostou à parede para que não caísse, um velho aparador de cozinha, a caixa das tintas e o antigo cavalete; todo o luxo consistia num vasto divã que comprou por 30 francos num saldo.
Ficou 15 dias sem pensar em mexer em pincéis. Chegava entre as oito e as nove horas, fumava, deitava-se no divã, esperava pelo meio-dia, satisfeito por ser manhã e ter ainda diante de si longas horas de dia. Ao meio-dia ia almoçar e apressava-se a voltar, para estar só, para não ver por mais tempo o rosto pálido de Teresa. Fazia então a digestão, dormia, de ventre para cima, até à noite. O seu ateliê era um lugar de paz onde não tremia.
Um dia, a mulher pediu-lhe para visitar o seu querido refúgio. Recusou e como, não obstante a recusa, ela foi bater à porta, não abriu. Disse-lhe depois que tinha passado o dia no museu do Louvre. Temia que Teresa introduzisse com ela o espectro de Camilo.
A ociosidade acabou por lhe pesar. Comprou uma tela e tintas e pôs mãos à obra. Sem dinheiro suficiente para pagar a modelos, resolveu pintar ao sabor da fantasia, sem se preocupar em pintar ao vivo. Começou uma cabeça de homem.
Aliás, não ficava fechado muito tempo; trabalhava durante duas ou três horas todas as manhãs e empregava as tardes a vaguear através de Paris e pelos arredores.
Foi ao regressar de um desses longos passeios que encontrou, defronte do Instituto, o antigo amigo de colégio, que alcançara um belo êxito no último Salão.
— Como, és tu! — exclamou o pintor. — Ah! Meu pobre Laurent, nunca te teria reconhecido. Emagreceste.
— Casei-me — respondeu ele embaraçado.
— Casado, tu! Isso espanta-me mais do que ver-te tão esquisito... E que fazes agora?
— Arrendei um pequeno ateliê; pinto um pouco, de manhã.
Laurent contou o seu casamento em poucas palavras; depois falou dos seus projetos de futuro com voz febril. O amigo olhava-o espantado e o fato perturbava-o e inquietava-o.
A verdade é que o pintor não reconhecia no marido de Teresa o rapaz bronco e vulgar que conhecera noutros tempos. Parecia-lhe que Laurent assumia ares distintos; o seu rosto tinha-se afilado e tinha uma certa palidez de bom gosto, todo o corpo revelava mais dignidade e leveza.
— Tornaste-te um belo rapaz — exclamou o artista sem se conter — tens o aspecto de um embaixador. Estás na última moda. A que escola pertences, então?
O exame a que estava se abruptamente.
— Queres subir por um instante ao meu ateliê? — perguntou por fim ao amigo, que parecia não ter pressa de o deixar.
— De boa vontade — respondeu este.
Sem compreender as modificações que via, o pintor estava desejoso de visitar o ateliê do antigo camarada. É certo que não subia os cinco andares para ver as novas obras de Laurent, que certamente lhe causariam náuseas; era apenas a vontade de satisfazer a curiosidade.
Quando chegou ao cimo e relanceou os olhos pelas telas penduradas nas paredes, o seu espanto redobrou.
Estavam ali cinco estudos, duas cabeças de mulher e três de homem, pintadas com autêntica energia; o traço era cheio e firme, e cada peça sobressaía em impressões magníficas do fundo cinza claro. O artista aproximou-se vivamente e, estupefato, sem mesmo procurar ocultar a sua surpresa:
— Foste tu que fizeste isto? — perguntou.
— Sim. São esboços que vão servir-me para um grande quadro que estou preparando.
— Vejamos, a sério, és tu verdadeiramente o autor disto?
O pintor não se atreveu a responder: "Porque estas telas são de um artista e tu nunca passaste de um ignóbil borra-botas." Ficou longo tempo em silêncio diante dos estudos. Certo é que aqueles estudos eram desajeitados, mas possuíam uma singularidade tal e um caráter tão poderoso que revelavam um sentido artístico dos mais desenvolvidos. Dir-se-ia pintura vivida. O amigo de Laurent nunca tinha visto esboços tão prometedores. Quando acabou de examinar as telas, voltou-se para o autor:
— Francamente, nunca te julgaria capaz de pintar assim. Onde diabo aprendeste a ter talento? É coisa que habitualmente não se aprende.
E observava Laurent, cuja voz lhe parecia ser mais suave e cada gesto ter uma espécie de elegância.
Não podia adivinhar a espantosa convulsão que modificara aquele homem, criando-lhe nervos femininos, agudas e delicadas sensações. Sem dúvida um fenômeno estranho tivera lugar no organismo do assassino de Camilo. É difícil à análise penetrar em tais profundezas. Laurent tornara-se lentamente um artista como se tornara assustadiço, na seqüência do enorme desequilíbrio que lhe alterara a carne e o espírito. Antigamente, abafava sob o peso do sangue, cego pelo espesso vapor de saúde que o rodeava; agora, mais magro, trêmulo, manifestava a inspiração inquieta, as sensações vivas e penetrantes dos temperamentos nervosos. Na vida de terror que levava, o seu pensamento delirava e elevava-se até ao êxtase do gênio; a doença de certo modo moral, a neurose em que todo o seu ser se debatia, inoculava-lhe um sentido artístico de esquisita lucidez; depois que matara, a sua carne tinha-se adelgado, o cérebro desvairado parecia-lhe imenso e, na brusca amplitude do pensamento, via passar estranhas criações, fantasias de poeta. E fora desta maneira que os seus gestos tinham adquirido súbita distinção, fora por isso que as suas obras eram belas, transformadas de um só golpe em obras muito pessoais e vivas.
O amigo desistiu de encontrar explicação para o nascimento do artista. Partiu com o seu espanto. Antes, porém, olhou uma vez mais para as telas e disse para Laurent:
— Só tenho uma censura a fazer-te: é a de que todos os teus estudos têm um ar de família.
Estas cinco cabeças parecem-se umas com as outras. As próprias mulheres têm não sei que aspecto violento que lhes dá o ar de homens disfarçados... Compreendes, se queres fazer um quadro com esses esboços, terás de modificar algumas das fisionomias; os teus personagens não podem ser todos irmãos, isso faria rir.
Saiu do ateliê e, já no patamar, acrescentou, rindo:
— Na verdade, meu velho, deu-me grande satisfação voltar a ver-te. Agora vou passar a acreditar em milagres... Meu Deus! Estarás tu normal?
Desceu. Laurent reentrou no ateliê, vivamente perturbado. Quando o amigo lhe fizera a observação de que todas as cabeças tinham um ar familiar, voltara-se bruscamente para encobrir a palidez. Essa fatal semelhança já lhe tinha saltado à vista. Lentamente, avançou até às telas; à medida que as contemplava, uma a uma, um suor gelado molhava-lhe as costas.
— Ele tem razão — murmurou — parecem-se todas... Parecem-se com Camilo.
Recuou e sentou-se no divã, sem poder afastar os olhos das cabeças esboçadas. A primeira era um rosto de velho, com uma comprida barba branca; por debaixo da barba, o artista adivinhava o queixo magro de Camilo. A segunda representava uma jovem loura, e a jovem olhava-o com os olhos azuis da sua vítima. As três restantes figuras revelavam cada uma delas um ou outro traço do afogado. Dir-se-ia Camilo disfarçado de velho, de moça, adquirindo a caracterização que o pintor lhe queria dar, mas mantendo sempre o caráter geral da sua fisionomia. Existia ainda uma outra semelhança, terrível, entre as cabeças: pareciam sofredoras e aterrorizadas, como que esmagadas pelo mesmo sentimento de horror. Cada uma delas mostrava uma ligeira ruga do lado esquerdo da boca, que repuxava os lábios num esgar. Esta ruga, que Laurent se recordou de ter visto na face convulsa do afogado, imprimia a todas um sinal de ignóbil parentesco.
Laurent compreendeu que tinha olhado demais para Camilo na Morgue. A imagem do cadáver tinha-se-lhe gravado profundamente, e agora a sua mão, sem que disso desse conta, traçava sempre as linhas daquele rosto atroz, cuja recordação o seguia para todo o lado.
Pouco a pouco, o pintor, que se remexia no divã, julgou ver as figuras animarem-se. E surgiram-lhe cinco Camilos à sua frente, cinco Camilos que os seus próprios dedos tinham poderosamente criado e que, por aterradora singularidade, adquiriam todas as idades e todos os sexos. Levantou-se, despedaçou as telas e lançou-as para longe. Ao mesmo tempo dizia para si mesmo que morreria de pavor no seu ateliê, se ele próprio o povoasse de retratos da sua vítima.
Um súbito receio o assaltou: o de não poder desenhar uma cabeça sem que lhe saísse a do afogado. Quis saber de pronto se era senhor da sua mão. Colocou uma tela nova no cavalete; com uma ponta de carvão esboçou uma figura em poucos traços. A figura lembrava Camilo. Laurent apagou abruptamente o esboço e tentou outro. Durante uma hora debateu-se contra a fatalidade que lhe guiava os dedos. Em cada tentativa surgia a cabeça do afogado. Bem procurava dominar a vontade, evitar as linhas que tão bem conhecia; malgrado seu eram essas as linhas que traçava, obedecia aos músculos e aos nervos revoltados. Até ali esboçara com rapidez; empenhou-se então a utilizar a ponta de carvão com lentidão. O resultado foi o mesmo: Camilo, caricato e dolorido, surgia sempre na tela. O artista esboçou sucessivamente as cabeças mais diversas, cabeças de anjos, de virgens com auréolas, de guerreiros romanos com elmo, de crianças louras e rosadas, de velhos bandidos cheios de cicatrizes; o afogado renascia sempre, era sucessivamente anjo, virgem, guerreiro, criança e bandido. Então Laurent tentou a caricatura, exagerou as feições, fez monstruosos perfis, inventou cabeças grotescas e não conseguiu mais do que tornar mais horríveis os retratos flagrantes da sua vítima. Acabou por desenhar animais, cães e gatos; os cães e os gatos tinham uma vaga semelhança de Camilo.
Uma raiva surda apoderou-se de Laurent. Furou a tela com um soco, pensando com desespero no seu grande quadro. Não podia agora pensar mais nele; tinha a consciência de que doravante só desenharia a cabeça de Camilo e, como lhe dissera o amigo, as figuras que se parecessem todas entre si fariam rir. Imaginava o que teria sido a sua obra; via sobre os ombros dos personagens, homens e mulheres, a cabeça pálida e assustada do afogado; o singular espetáculo que evocava pareceu-lhe de um ridículo atroz, e exasperou-o.
Se assim fosse, não mais se atreveria a trabalhar, temendo sempre ressuscitar a sua vítima à mínima pincelada. Se queria viver sossegadamente no seu ateliê, não mais deveria pintar. O pensamento de que os seus dedos tinham a faculdade fatal e inconsciente de reproduzir constantemente o retrato de Camilo, fê-lo olhar para a mão com terror. Parecia-lhe que aquela mão já não lhe pertencia.
A crise que ameaçava a senhora Raquin declarou-se. Bruscamente, a paralisia, que há vários meses lhe subia ao longo dos membros, sempre prestes a entrevá-la, tomou-lhe a garganta e envolveu-lhe o corpo.
Uma noite, quando conversava sossegadamente com Teresa e Laurent, deteve-se no meio de uma frase, a boca escancarada: tinha a sensação de que a estrangulavam. Quando quis gritar, chamar por socorro, apenas balbuciou sons roucos. A língua tornara-se-lhe de pedra. As mãos e os pés estavam hirtos. Estava muda e imobilizada.
Teresa e Laurent levantaram-se, apavorados pelo raio que fulminara a velha capelista em menos de cinco segundos. Quando, sucumbida, fixou neles olhares suplicantes, cobriram-na de perguntas tentando saber a causa do seu sofrimento. Sem poder responder, ela continuou a fitá-los com profunda angústia.
Compreenderam então que não tinham diante de si mais do que um cadáver semivivo, que via e ouvia mas não podia falar. Esta crise desesperou-os; no fundo, pouco se preocupavam com os sofrimentos da paralítica, choravam antes por si, que viveriam daí em diante permanentemente a sós.
A partir desse dia, a vida tornou-se-lhes intolerável. Passaram serões cruéis, diante da impotente velha que não mais lhes adormecia o pavor com as doces tagarelices.
Jazia numa poltrona, como um embrulho, como um objeto e eles ficavam sós, nos dois extremos da mesa, embaraçados e inquietos. Aquele cadáver já não os separava; havia momentos em que o esqueciam, em que o confundiam com os móveis. Eram então dominados pelos terrores noturnos e a sala de jantar tornava-se, como o quarto, um local terrível onde se erguia o espectro de Camilo. Sofriam assim quatro ou cinco horas mais por dia. A partir do crepúsculo estremeciam, baixando o candeeiro para não se verem, procurando acreditar que a senhora Raquin falaria e poderia desse modo lembrar-lhes a sua presença. Se a conservavam, se não se livraram dela, era porque os seus olhos ainda viviam e sentiam por vezes algum alívio em vê-los mover-se e brilhar.
Instalavam sempre a velha paralítica sob a luz crua do candeeiro, para lhe iluminar bem o rosto e terem-na permanentemente à sua frente. Aquele rosto flácido e descorado teria sido espetáculo insustentável para outros, mas eles sentiam uma necessidade tal de companhia que repousavam nele o olhar com verdadeira alegria. Dir-se-ia a máscara desvanecida de uma morta, na qual tivessem sido colocados dois olhos com vida; só os olhos mexiam, rolando rapidamente nas órbitas; as faces e a boca estavam como que petrificadas, mantendo uma imobilidade que apavorava. Quando a senhora Raquin adormecia e baixava as pálpebras, o rosto, agora inteiramente lívido e mudo, era verdadeiramente o de um cadáver; Teresa e Laurent, deixando de sentir alguém consigo, faziam ruído até a paralítica erguer as pálpebras e os fitar. Obrigavam-na, assim, a manter-se acordada.
Consideravam-na uma distração que os arrancava aos pesadelos. Desde que estava enferma era necessário cuidar dela como de uma criança. Os cuidados que lhe prodigalizavam forçavam-nos a sacudir os pensamentos. De manhã Laurent levantava-a, transportava-a para a poltrona e, à noite, voltava a colocá-la no leito; era pesada e ele tinha de empregar toda a sua força para lhe pegar delicadamente e transportá-la. Era igualmente ele quem empurrava a poltrona. As outras tarefas eram desempenhadas por Teresa: era ela quem vestia a paralítica, quem lhe dava de comer, quem procurava compreender-lhe os mínimos desejos. Durante alguns dias a senhora Raquin conservou o uso das mãos, conseguindo escrever numa ardósia e por essa forma pedir aquilo de que tinha necessidade; mas também as mãos lhe morreram, não mais podendo erguê-las e segurar um giz; a partir daí restou-lhe apenas a linguagem do olhar, tornando-se necessário que a sobrinha adivinhasse o que ela queria. A jovem devotou-se ao ingrato papel de enfermeira, o que lhe criou uma ocupação para o corpo e para o espírito, que lhe foi benéfica.
A fim de não ficarem sós, Teresa e Laurent empurravam logo de manhã a poltrona da pobre senhora para a sala de jantar. Colocavam-na entre eles, como se lhes fosse necessária para viverem; faziam-na assistir às suas refeições, a todos os seus encontros. Fingiam não compreender, quando ela manifestava o desejo de se recolher ao quarto. Servia-lhes apenas para quebrar o encontro a sós, não lhe era dado o direito de viver à parte.
Às oito horas Laurent partia para o ateliê, Teresa descia à loja e a paralítica ficava só na sala de jantar até ao meio-dia; em seguida ao almoço ficava de novo só até às seis horas. Durante o dia muitas vezes a sobrinha subia as escadas e andava à sua volta, para se certificar de que nada lhe faltava. Os amigos da família não sabiam que elogios inventar para exaltar as virtudes de Teresa e de Laurent.
As reuniões às quintas-feiras continuavam e a elas a paralítica assistia, como antigamente. Aproximavam a poltrona da mesa; das oito às 11 horas mantinha os olhos abertos, olhando sucessivamente os convidados com penetrantes clarões. Nos primeiros dias, o velho Michaud e Grivet ficavam um pouco embaraçados diante do que restava da velha amiga; não sabiam que comportamento deviam assumir, era pequeno o pesar que sentiam e perguntavam a si próprios qual a medida conveniente de tristeza a manifestar. Deviam falar àquela face morta ou não deviam dar-lhe qualquer importância? Pouco a pouco optaram por tratar a senhora Raquin como se nada tivesse acontecido. Acabaram por simular ignorar completamente o seu estado. Conversavam com ela, faziam as perguntas e davam as respostas, riam por ela e por si, sem nunca se deixarem perturbar pela expressão rígida do seu rosto. Era um espetáculo estranho; aqueles homens pareciam falar com naturalidade para uma estátua, como as meninas falam às bonecas. A paralítica mantinha-se hirta e muda diante deles, que gracejavam, multiplicavam os gestos, tendo com ela conversações muito animadas. Michaud e Grivet congratularam-se pelo excelente procedimento. Ao agir assim, acreditavam dar provas de delicadeza; por outro lado, evitavam a si próprios as condolências de praxe. A senhora Raquin devia sentir-se lisonjeada por ser tratada como pessoa importante e, portanto, permitiam-se divertir-se na sua presença sem o menor escrúpulo.
Grivet tinha uma mania. Afirmava entenderse perfeitamente com a senhora Raquin, que bastava olhá-la para compreender o que ela desejava. Também essa era uma atenção delicada. Só que Grivet enganava-se de todas as vezes. Freqüentemente interrompia a partida de dominó, observava a paralítica cujos olhos acompanhavam calmamente o jogo e declarava que ela estava pedindo isto ou aquilo. Feita a verificação, a senhora Raquin não tinha pedido nada ou pedia algo completamente diferente. Essa circunstância não desarmava Grivet, que lançava um vitorioso "Era o que eu lhes dizia!" e recomeçava minutos depois. O caso era bem diferente quando a paralítica manifestava abertamente um desejo; Teresa, Laurent e os convidados enumeravam um após outro todos os objetos que ela podia pretender. Grivet fazia-se notar então pela falta de jeito das suas sugestões. Falava em tudo o que lhe passava pela cabeça, ao acaso, sugerindo sempre o contrário do que a senhora pretendia. O que, contudo, não o impedia de repetir:
— Leio-lhe nos olhos como num livro. Vejam, ela diz-me que tenho razão... Não é verdade, cara senhora?... Sim, sim.
Não era, aliás, coisa fácil entender as vontades da pobre velha. Apenas Teresa possuía esse dom. Comunicava-se facilmente com aquela inteligência emparedada, ainda viva mas enterrada no fundo da carne morta. Que se passaria naquela criatura miserável, que vivia apenas o suficiente para assistir à vida sem nela tomar parte? Ela via, ouvia e raciocinava sem dúvida de forma nítida e clara, mas não possuía gestos, não possuía voz para exprimir os pensamentos que lhe ocorriam. As idéias certamente a abafavam. Não poderia erguer a mão, abrir a boca, mesmo se um movimento, uma palavra, pudesse decidir os destinos do mundo. O seu espírito era como um ser vivo enterrado por engano e que despertasse de noite, na terra, dois ou três metros abaixo da superfície; grita, debate-se e passa-se sobre ele sem lhe escutar os atrozes lamentos.
Muitas vezes Laurent olhava para a senhora Raquin, os lábios cerrados, as mãos estendidas sobre os joelhos, colocando toda a vida nos olhos vivos e rápidos, e dizia para consigo:
— Quem sabe no que estará pensando... Deve passar-se um drama cruel no fundo desta morta.
Laurent enganava-se; a senhora Raquin sentia-se feliz, feliz pelos desveles e pela afeição dos seus filhos queridos. Sempre sonhara acabar daquela forma, lentamente, rodeada de dedicações e de carinhos. É certo que teria desejado conservar a fala para agradecer aos amigos que a ajudavam a morrer em paz. Mas aceitava o seu estado sem revolta. A vida sossegada e retirada que sempre levara, e o seu temperamento doce, não a deixavam sentir com demasiada rudeza os sofrimentos da mudez e da paralisia. Voltara a ser criança, passava dias sem se aborrecer, olhando à sua frente, recordando o passado. Chegou mesmo a saborear os encantos de permanecer quieta na sua poltrona, como uma criança.
Os seus olhos adquiriam cada dia uma doçura e uma luminosidade mais penetrantes. Servia-se agora dos olhos como de uma mão, de uma boca, para pedir e para agradecer.
Supria assim, de forma singular e encantadora, os órgãos que lhe faltavam. Eram belos os seus olhares, de celestial bondade, no rosto cujas carnes pendiam flácidas e rugosas. Desde que os lábios torcidos e inertes não mais podiam sorrir, era com o olhar que sorria, com adorável ternura; perpassavam-lhe clarões umedecidos pelas órbitas, de onde se desprendiam raios de aurora. Não havia nada de mais singular do que aqueles olhos que riam como lábios naquelas feições mortas; a parte inferior do rosto permanecia abatida e opaca, enquanto a parte superior se iluminava divinamente. Era sobretudo para os filhos queridos que manifestava assim todo o seu reconhecimento, todo o afeto da alma num simples olhar. Logo que pela manhã Laurent a tomava nos braços para a transportar, agradecia-lhe com amor, com olhares repletos de terna efusão.
Assim viveu durante várias semanas, aguardando a morte, julgando-se ao abrigo de qualquer nova desgraça.
Estava enganada. Uma noite, um golpe medonho abateu-se sobre ela.
Teresa e Laurent bem a colocavam entre si, em plena luz, mas ela não tinha já vida suficiente para os separar e defendê-los das suas angústias. Quando esqueciam que ela se encontrava ali, que os via e ouvia, invadia-os a loucura, davam conta da presença de Camilo e procuravam escorraça-lo. Então balbuciavam, deixavam, malgrado seu, escapar confissões, frases que acabavam por revelar tudo à senhora Raquin. Laurent foi acometido por uma espécie de crise durante a qual falou como um alucinado.
Subitamente, a paralítica compreendeu.
Uma horrorosa contração passou-lhe pelo rosto e sentiu tamanho sobressalto que Teresa julgou que iria vê-la saltar e gritar. Depois, caiu numa rigidez de ferro.
Esta espécie de choque foi tanto mais horrível quanto parecia ser um cadáver que se galvanizava. Mas a sensibilidade, por um instante desperta, desapareceu; a paralítica ficou mais abatida, mais pálida. Os olhos, habitualmente tão doces, tinham-se tornado negros e duros, como pedaços de metal.
Jamais desespero algum se abatera tão rudemente sobre um ser. A sinistra verdade queimou como um relâmpago os olhos da paralítica e penetrou nela como o demolidor impacto de um raio. Se pudesse levantar-se, soltar o grito de horror que lhe subia à garganta, amaldiçoar os assassinos do seu filho, teria sofrido menos.
Porém, depois de ter ouvido tudo, de tudo compreender, tinha de ficar imóvel e muda, conservando em si o clamor da sua dor. Tinha a sensação de que Teresa e Laurent a tinham amarrado, pregado na poltrona para a impedir de se atirar, e que tinham um prazer atroz em repetir-lhe "Matamos Camilo", depois de lhe aplicar na boca uma mordaça que lhe abafava os soluços. O pavor e a angústia percorriam-lhe furiosamente o corpo sem encontrarem saída. Fazia esforços sobre-humanos para levantar o peso que a oprimia, para soltar a garganta e dar assim livre curso à onda do seu desespero. Em vão recorria às últimas energias; sentia a língua fria contra o céu da boca, era impotente para se arrancar da morte. Uma incapacidade de cadáver mantinha-a rígida. As suas sensações assemelhavam-se às de um homem caído em letargia, a quem enterrassem e que, amordaçado pelos laços da carne, ouvia sobre a cabeça o ruído das pazadas de terra.
A raiva que se desencadeou no seu coração foi ainda mais terrível. Sentiu um desmoronamento que a prostrou. Toda a sua vida estava devastada, todas as suas ternuras e bondade, todas as suas dedicações acabavam de ser brutalmente amarfanhadas e pisadas. Tinha tido uma vida de afeto e de doçura e eis que nas derradeiras horas, quando se preparava para levar para a sepultura a crença nas calmas venturas da existência, uma voz lhe gritava que tudo é mentira e que tudo é crime. O véu que se rasgava mostrava-lhe, para além do amor e da amizade que julgara ver, um espetáculo aterrador de sangue e de vergonha.
Teria injuriado Deus, se pudesse blasfemar. Deus enganara-a durante mais de 60 anos, tratando-a como mocinha doce e boa, enchendo-lhe os olhos com quadros de tranqüila alegria. E ela ficara criança, acreditando totalmente em mil ninharias, sem ver a vida real arrastar-se na lama sangrenta das paixões. Deus era mau; devia ter-lhe dito a verdade mais cedo, ou deixá-la então partir com a sua inocência e a sua cegueira. Agora nada mais lhe restava do que morrer renegando o amor, renegando a amizade, renegando a dedicação. Para além do crime e da luxúria não existia nada.
Como era possível! Camilo morrera às mãos de Teresa e de Laurent e estes tinham concebido o crime por entre as vergonhas do adultério! Para a senhora Raquin havia um tal abismo neste pensamento que não conseguia raciocinar com clareza e minúcia. Tinha apenas uma sensação, que era a de queda horrível; parecia-lhe que tombava num buraco negro e frio. E pensava: "vou esmigalhar-me no fundo."
Depois do primeiro abalo, a monstruosidade do crime pareceu-lhe inverossímil. Receou depois enlouquecer, quando adquiriu a convicção sobre o adultério e o crime ao recordar-se de pequenas circunstâncias para as quais outrora não encontrara explicação. Teresa e Laurent eram indubitavelmente os assassinos de Camilo, Teresa que ela criara, Laurent que ela amara como mãe devotada e terna.
Isto girava-lhe na cabeça como imensa roda, com um ruído ensurdecedor. Adivinhava pormenores tão ignóbeis, dava-se conta de uma hipocrisia tão grande, assistia em pensamento a um duplo espetáculo de ironia tão atroz que desejou morrer para não mais pensar. Uma idéia única, maquinal e implacável, martelava-lhe o cérebro com o peso e a obstinação de uma mó. Repetia para si mesma: "Foram os meus filhos que mataram o meu filho" e não encontrava mais nada para exprimir o desespero.
Na brusca modificação dos seus sentimentos procurava-se a si própria desvairadamente e não se reconhecia; ficava esmagada sob o tropel brutal dos pensamentos de vingança que substituíam toda a bondade da sua vida. Quando findou a transformação, fez-se negro dentro de si; sentiu nascer na carne moribunda um novo ser, impiedoso e cruel, que gostaria de morder os assassinos do filho.
Quando sucumbiu sob o abraço tenaz da paralisia, quando compreendeu que não podia saltar à garganta de Teresa e de Laurent, que tinha vontade de estrangular, resignou-se ao silêncio e à imobilidade e grossas lágrimas tombaram lentamente dos seus olhos. Nada foi mais doloroso do que aquele desespero mudo e inabalável.
As lágrimas que corriam por aquele rosto morto, em que nem uma ruga mexia, por aquelas feições inertes e pálidas que não podiam chorar por todos os seus traços e onde apenas os olhos soluçavam, ofereciam um espetáculo pungente. Uma piedade aterrorizada invadiu Teresa.
— É preciso deitá-la — disse a Laurent, apontando para a tia.
Laurent apressou-se a empurrar a paralítica para o quarto. Curvou-se em seguida para a tomar nos braços. Nesse instante, a senhora Raquin teve a esperança que uma mola poderosa a colocasse de pé e tentou um supremo esforço. Deus não podia permitir que Laurent a apertasse contra o peito; esperava ver um raio fulminá-lo se cometesse a monstruosa impudência. Mas nenhuma mola a impulsionou e o céu não enviou nenhum trovão. Continuou abatida, passiva, como uma trouxa de roupa. Foi agarrada, erguida e transportada pelo assassino; experimentou a angústia de se sentir, mole e abandonada, entre os braços do assassino de Camilo. A cabeça rolou-lhe sobre o ombro de Laurent, que fitava de olhos escancarados pelo horror.
— Vamos, vamos, olha bem para mim murmurou ele — os teus olhos não me comerão.
Deitou-a com brutalidade em cima da cama. A paralítica perdeu os sentidos. O seu último pensamento fora de terror e de repugnância. Daí em diante teria, de manhã e à noite, de suportar o abraço imundo dos braços de Laurent.
Só uma crise de terror pudera levar os dois a falar, a fazer confissões na presença da senhora Raquin. Nem um nem outro eram cruéis; teriam evitado semelhante revelação por humanidade, se a sua segurança não lhes tivesse imposto já como lei manterem o silêncio.
Na quinta-feira seguinte ficaram singularmente inquietos. De manhã Teresa perguntou a Laurent se achava prudente deixar a paralítica na sala de jantar durante o serão. Ela sabia tudo, poderia fazer despertar suspeitas.
— Bah! — exclamou Laurent — ela não consegue mexer o dedo mínimo. Como queres tu que dê com a língua nos dentes?
— Talvez encontre um meio.
Desde aquela noite que lhe leio nos olhos um pensamento implacável — argumentou Teresa.
— Não. Tu sabes que o médico me disse que para ela estava tudo acabado. Se chegar a falar alguma vez, será no derradeiro estertor da agonia... Já não faltará muito, vamos. Será asneira sobrecarregar mais a nossa consciência impedindo-a de assistir a este serão...
Teresa estremeceu.
— Não me compreendeste — exclamou. Oh! Tens razão, basta de sangue... O que queria dizer-te era que poderíamos fechar a minha tia no quarto e fingir que está pior, que está dormindo.
— É isso — respondeu Laurent — e aquele imbecil do Michaud entraria logo no quarto para mesmo assim ver a velha amiga... Seria uma excelente maneira de nos perdermos.
Hesitou, querendo parecer tranqüilo e a ansiedade fê-lo balbuciar:
— É melhor deixar correr as coisas. Essa gente é estúpida como os gansos; certamente que não compreenderão nada dos desesperos mudos da velha. Jamais terão suspeitas, porque estão demasiado longe da verdade. Uma vez feita a experiência ficaremos tranqüilos sobre as conseqüências da nossa imprudência... Vais ver, tudo correrá bem.
À noite, quando os convidados chegaram, a senhora Raquin ocupava o lugar habitual, entre a lareira e a mesa. Laurent e Teresa fingiam bom humor, ocultando os calafrios, na angustiosa expectativa do incidente que não poderia deixar de dar-se. Tinham baixado mais o candeeiro; apenas o oleado encerado da mesa estava iluminado.
Os convivas mergulharam na conversação banal e ruidosa que precedia invariavelmente a primeira partida de dominó. Grivet e Michaud não deixaram de dirigir à paralítica as perguntas de praxe acerca da sua saúde, perguntas às quais eles próprios deram excelentes respostas, como era habitual. Posto isso, sem se preocuparem mais com a pobre velha, mergulharam deliciados no jogo.
Desde que sabia o horrível segredo, a senhora Raquin esperava febrilmente por aquele serão. Tinha reunido as últimas forças para denunciar os culpados. Até ao último momento receou não assistir; pensava que Laurent a faria desaparecer, matá-la-ia talvez, ou pelo menos a deixaria fechada no quarto. Quando viu que a deixavam ficar, quando se viu na presença dos convidados, sentiu uma alegria confortante ao pensar que ia tentar vingar o filho. Consciente de que a sua língua estava morta, tentou uma nova linguagem. Graças a uma espantosa força de vontade, conseguiu galvanizar de certo modo a mão direita, erguendo-a ligeiramente do joelho onde estava sempre estendida, inerte; em seguida conseguiu arrastá-la lentamente ao longo de um dos pés da mesa à sua frente e colocá-la sobre o oleado.
Ali, agitou fracamente os dedos como para chamar a atenção.
Quando os jogadores notaram entre eles aquela mão de morta, branca e flácida, ficaram surpreendidos. Grivet imobilizou-se, com o braço no ar, no meio do movimento em que ia colocar vitoriosamente a dobra seis. Desde o ataque, a paralítica nunca tinha movido as mãos.
— Eh! Veja isto, Teresa, a senhora Raquin está agitando os dedos... Ela quer sem dúvida qualquer coisa — exclamou Michaud.
Teresa não conseguiu responder; tinha seguido, assim como Laurent, o esforço inaudito da paralítica, e olhava para a mão da tia, lívida à luz crua do candeeiro, como uma mão vigorosa que fosse falar. Ofegantes, os dois criminosos aguardavam.
— Por Deus, sim! — disse por sua vez Grivet
— ela deseja qualquer coisa... Oh! Nós entendemo-nos bem, os dois... Ela quer jogar dominó... Hem! Não é isso, cara senhora?
A senhora Raquin fez um violento sinal negativo. Estendeu um dedo, encolheu os outros com infinita dificuldade e começou penosamente a traçar letras sobre a mesa.
Mal tinha feito uns tantos traços quando Grivet exclamou de novo, triunfante:
— Percebo: diz que fiz bem em pôr o doble seis.
A paralítica lançou sobre o velho empregado um olhar terrível e recomeçou a palavra que queria escrever.
Mas a cada instante Grivet interrompia, declarando que não era necessário, que tinha compreendido e rematava com uma tolice. Michaud acabou por mandá-lo calar.
— Que diabo! Deixe a senhora Raquin falar. Fale, minha velha amiga.
E baixando os olhos sobre o oleado, como se apurasse o ouvido. Porém, os dedos da paralítica cansavam-se, tinham começado uma palavra mais de 10 vezes e essa mesmo deslizando para um lado e para o outro. Michaud e Olivier debruçaram-se, sem conseguir ler, forçando a paralítica a recomeçar sempre do princípio.
— Ah! bem — exclamou de súbito Olivier desta vez li... ela acaba de escrever o seu nome, Teresa... Vejamos: "Teresa e..." Termine, cara senhora.
Teresa quase gritou de angústia. Olhava os dedos da tia deslizarem sobre o oleado e parecia-lhe que aqueles dedos traçavam o seu nome e a confissão do seu crime em caracteres de fogo. Laurent erguera-se violentamente, perguntando a si próprio se não iria precipitar-se sobre a paralítica e partir-lhe o braço. Julgou que estava tudo perdido, sentiu sobre si o peso e o frio do castigo ao ver aquela mão reviver para revelar o assassínio de Camilo.
A senhora Raquin continuava a escrever, de forma cada vez mais hesitante.
— Está perfeito, leio muito bem — continuou Olivier passados alguns instantes e encarando os esposos.
A vossa tia escreveu os vossos nomes: "Teresa e Laurent..."
A velha senhora fez repetidos sinais afirmativos, lançando sobre os criminosos olhares esmagadores. Quis seguidamente terminar. Mas os seus dedos estavam hirtos, a suprema vontade que os galvanizava escapava-lhe; sentia a paralisia descer lentamente ao longo do braço e de novo apoderar-se do pulso. Freneticamente, traçou ainda uma palavra.
O velho Michaud leu em voz alta:
— "Teresa e Laurent têm..." Olivier inquiriu:
— O que é que eles têm, os seus queridos filhos?
Os criminosos, presos de terror louco, estiveram prestes a terminar a frase em voz alta. Contemplavam a mão vingadora com olhos fixos e perturbados quando, subitamente, esta se abateu sobre a mesa, depois de uma convulsão e, deslizando, caiu sobre o joelho da paralítica como uma massa de carne inanimada. A paralisia voltara e detivera o castigo. Michaud e Olivier voltaram a sentar-se, desapontados, enquanto Teresa e Laurent sentiam uma satisfação tão crua que julgaram desfalecer sob o fluxo brusco de sangue que lhes latejava no peito.
Grivet estava vexado por não terem acreditado em si. Pensou ser chegado o momento de reconquistar a infalibilidade completando a frase inacabada da senhora Raquin.
— É muito claro — exclamou, enquanto os outros procuravam o sentido da frase — adivinho a frase completa nos olhos da senhora. Eu não tenho necessidade que ela escreva na mesa; basta-me um dos seus olhares... Ela quis dizer: "Teresa e Laurent têm cuidado bem de mim."
Grivet sentiu-se satisfeito com a sua imaginação, porque todos foram da sua opinião. E começaram a elogiar os esposos, que tão bons se mostravam para a pobre senhora.
— Não há dúvida que a senhora Raquin quis prestar homenagem às ternas atenções que lhe prodigalizam os filhos — disse gravemente o velho Michaud. — Isso honra toda a família.
E acrescentou, pegando nas pedras de dominó:
— Vamos, continuemos. Onde estávamos?... Grivet ia colocar o doble seis, parece-me.
Grivet pôs a doble seis. A partida prosseguiu, estúpida e monótona.
A paralítica olhou para a mão, mergulhada em horroroso desespero. A sua mão acabava de a trair. Sentia-a agora pesada como chumbo; jamais a poderia levantar. O céu não queria que Camilo fosse vingado, privava a mãe do único meio de dar a conhecer aos homens o crime de que fora vítima. E a infeliz pensava que nada mais podia fazer do que juntar-se ao filho debaixo da terra. Baixou as pálpebras, sentindo-se doravante inútil, desejando estar a partir desse momento na noite do túmulo.
Há dois meses que Teresa e Laurent se debatiam nas angústias da sua união. Sofriam um pelo outro. Então o ódio começou lentamente a nascer neles e acabaram por lançar um ao outro olhares de cólera, cheios de ameaças surdas.
O ódio tinha forçosamente de chegar. Tinham-se amado como selvagens, com uma paixão quente, toda de sangue; depois, no meio dos enervamentos do crime, o amor transformou-se em terror e tinham sentido uma espécie de medo físico dos seus beijos; agora, sob o sofrimento que o casamento e a vida em comum lhes impunha, revoltavam-se e exaltavam-se.
Era um ódio atroz, com explosões terríveis. Sentiam bem que se magoavam reciprocamente; diziam para si mesmos que teriam uma existência tranqüila se não estivessem sempre frente a frente. Quando estavam juntos sentiam-se abafados por um peso enorme, que se esforçavam por afastar, por eliminar; apertavam os lábios e perpassavam-lhes pelos olhos pensamentos de violência, sentindo ânsias de se devorarem mutuamente.
No fundo, um único pensamento os consumia: a irritação contra o seu crime, o desespero de terem transtornado para sempre as suas vidas. Daí provinha toda a cólera e todo o ódio. Tinham a consciência de que o mal era incurável, que sofreriam até à morte com o assassínio de Camilo, e esta idéia de sofrimento perpétuo exasperava-os.
Sem saber quem atingir, flagelavam-se a si próprios, abominavam-se.
Não queriam reconhecer abertamente que o casamento era a punição fatal pelo crime; recusavam-se a ouvir a voz interior que lhes gritava a verdade, apresentando-lhes a história da sua vida. E, contudo, nas crises de arrebatamento que os sacudiam, cada um deles lia nitidamente no fundo da cólera, adivinhava os furores do seu ser egoísta que os lançara no crime para satisfazer os apetites e que no assassínio não encontrava mais do que uma existência desoladora e intolerável. Recordavam o passado, sabiam que a esperança ludibriada de luxúria e de felicidade calma só os conduzia aos remorsos; se tivessem podido abraçar-se em paz e viver com alegria não teriam lamentado Camilo, teriam tirado proveito do crime. Mas os seus corpos tinham-se revoltado, rejeitado a união, e interrogavam-se com terror onde os levaria o pavor e o asco. Não viam mais do que um futuro horrível de dor, um desenlace sinistro e violento. Então, como dois inimigos a quem tivessem amarrado juntos e que faziam esforços vãos para escapar ao abraço forçado, retesavam os músculos e os nervos, inteiriçavam-se sem, contudo, conseguirem libertar-se. Compreendendo que jamais escapariam ao laço, irritados pelas cordas que lhes cortavam a carne, repugnados pelo contato mútuo, sentindo a cada hora crescer o mal-estar, esquecendo que eles próprios se tinham ligado um ao outro e sem poder suportar os laços por mais um instante, censuravam-se mutuamente, tentavam sofrer menos, tratar os ferimentos que faziam um ao outro ao recriminaram-se sangrentamente, aturdindo-se com os gritos e as acusações.
Todas as noites estalava a discussão. Dir-se-ia que os criminosos buscavam ocasiões para se exasperarem, para distender os nervos inteiriçados. Miravam-se, tateavam-se com o olhar, remexendo nas feridas, deixando-as em carne viva e sentindo uma acre volúpia em provocarem gritos de dor.
Viviam assim envolvidos em irritação permanente, cansados de si próprios, não podendo suportar uma palavra, um gesto, um olhar, sem sofrer e sem delirar. Todo o seu ser se encontrava predisposto à violência; a mais ligeira impaciência, a contrariedade mais vulgar, aumentavam de forma estranha no seu organismo desequilibrado e tornavam-se imediatamente cheias de brutalidade. Um pequeno nada provocava uma tempestade que durava até ao dia seguinte. Um prato demasiado quente, uma janela aberta, um desmentido, uma simples observação, bastavam para os lançar em autênticas crises de loucura. E sempre, em dado momento da disputa, atiravam o afogado à cara um do outro. Palavra atrás de palavra chegavam a recriminar o afogamento em Saint-Ouen; nessas horas viam tudo vermelho, exaltavam-se até ao paroxismo da raiva. Eram cenas atrozes, sufocações, pancadas, gritos ignóbeis, brutalidades vergonhosas. Era depois da refeição que Teresa e Laurent habitualmente se exasperavam; fechavam-se na sala de jantar para que o ruído do seu desespero não fosse ouvido. Podiam devorar-se ali à vontade, naquela sala úmida, espécie de cova que o candeeiro iluminava com clarões amarelados. As suas vozes, no meio do silêncio e da tranqüilidade do ambiente, adquiriam dilacerante aridez. E só paravam quando a fadiga os abatia; só então podiam ter algumas horas de repouso. As discussões tornaram-se para eles uma necessidade, um meio de conseguir o sono pelo embotamento dos nervos.
A senhora Raquin ouvia-os. Estava sempre ali, na sua poltrona, as mãos pendentes sobre os joelhos, a cabeça reta, o rosto mudo. Ouvia tudo e a sua carne morta não tinha um frêmito. Os seus olhos seguiam os criminosos com uma fixidez aguda. Devia ser atroz o seu martírio. Veio assim a saber, pormenor por pormenor, os acontecimentos que tinham precedido e que se tinham seguido à morte de Camilo; pouco a pouco desceu até às vilezas e aos crimes daqueles a quem tinha chamado filhos queridos.
As discussões deixaram-na ao corrente das mínimas circunstâncias, descortinaram-lhe diante do espírito aterrorizado, um a um, os episódios da horrível aventura.
E à medida que penetrava mais no lamaçal sangrento, pedia misericórdia, julgava tocar no fundo da infâmia, e no entanto continuava a descer. Todas as noites ficava sabendo um novo pormenor. Sempre a terrível história se desenrolava à sua frente; parecia-lhe estar perdida num sonho de horror que não teria fim. A primeira vez fora brutal e esmagadora, mas sofria ainda mais pelo impacto daqueles golpes repetidos, dos pequenos fatos que os dois deixavam escapar no meio do arrebatamento e que iluminavam o crime com sinistros clarões. Uma vez por dia aquela mãe ouvia a descrição do assassínio do filho e, cada dia, essa descrição tornava-se mais horrorosa, mais esmiuçada, gritada aos seus ouvidos com mais crueldade e energia.
Por vezes Teresa sentia remorsos perante aquela máscara lívida pela qual corriam silenciosamente grossas lágrimas. Apontava para a tia, implorando com o olhar a Laurent que se calasse.
— Eh! Deixa! — exclamava Laurent brutalmente — sabes bem que ela não pode denunciar-nos... Será que sou mais feliz do que ela?... Temos o seu dinheiro, não tenho necessidade de constranger-me.
E a discussão prosseguia, áspera, ruidosa, matando de novo Camilo. Nem Teresa nem Laurent se atreviam a ceder ao pensamento de piedade que por vezes os assaltava, de fechar a paralítica no quarto durante as discussões, poupando-a assim à narrativa do crime. Receavam bater um no outro se deixasse de estar entre eles aquele cadáver meio vivo. A piedade cedia à covardia e impunham à senhora Raquin indizíveis sofrimentos porque tinham necessidade da sua presença como escudo contra as alucinações.
Todas as suas disputas eram idênticas e levavam às mesmas acusações. Assim que o nome de Camilo era pronunciado, assim que um deles acusava o outro de o ter morto, produzia-se um choque terrível.
Um dia, durante o jantar, Laurent, que procurava um pretexto para se irritar, achou que a água da garrafa estava morna; declarou que a água morna lhe causava náuseas e que queria água fresca.
— Não consegui arranjar gelo — respondeu secamente Teresa.
— Está bem, não beberei.
— Esta água é muito boa.
— Está quente e tem gosto de lodo. Parece que é água do rio.
Teresa repetiu:
— Água do rio...
E rompeu em soluços. Uma associação de idéias dera-se no seu espírito.
— Por que choras? — interrogou Laurent, ao mesmo tempo que, adivinhando a resposta, empalidecia.
— Choro — soluçou a jovem — choro porque tu... Bem sabes... Oh! Meu Deus! Meu Deus! Foste tu que o mataste.
— Mentes! — insurgiu-se o assassino com veemência — confessa que mentes... Se o joguei no Sena foi porque tu me empurraste para o crime.
— Eu! Eu!
— Sim, tu!... Não te faças de inocente, não me obrigues a fazer-te confessar à força a verdade. Preciso que confesses o teu crime, que aceites a tua parte no assassinato.
Isto sossega-me e alivia-me.
— Mas não fui eu quem afogou Camilo.
— Sim, mil vezes sim, foste tu!... Oh! Finges espanto e esquecimento. Espera, vou avivar-te as recordações.
Levantou-se da mesa, inclinou-se para a jovem e com o rosto transtornado gritou-lhe na cara:
— Estavas à beira da água, lembra-te, e eu disse-te em voz baixa: "vou* jogá-lo no rio." Então tu aceitaste, entraste no barco... Bem vês que o assassinaste comigo.
— Não é verdade... Eu estava louca, não sabia o que fazia, mas nunca quis matá-lo. Só tu cometeste o crime.
Os constantes desmentidos torturavam Laurent. Tal como confessava, a idéia de ter um cúmplice aliviava-o; se conseguisse, teria tentado provar a si próprio que todo o horror do crime recaía sobre Teresa. Acometiam-no desejos de bater na jovem para a fazer confessar que era ela a mais culpada.
Começou a caminhar de um lado para o outro, gritando, delirante, sob os olhares fixos da senhora Raquin.
— Ah! A miserável! A miserável! — balbuciava com voz estrangulada — quer enlouquecer-me... Eh! Não foste tu que uma noite subiste ao meu quarto como uma prostituta, que me embriagaste de carícias, para me convenceres a livrar-te do teu marido? Desagradava-te, cheirava-te a criança doente, dizias-me tu quando te vinha ver aqui... Há três anos pensava eu em tudo isto? Era eu um velhaco? Vivia tranqüilo, como um homem honesto, não fazia mal a ninguém. Seria incapaz de matar uma mosca.
— Foste tu que mataste Camilo — repetia Teresa, com desesperada obstinação que fazia Laurent perder a cabeça.
— Não, foste tu, digo-te que foste tu — replicou ele com terrível energia. — Tem cuidado, não me irrites porque isto pode acabar mal... com que então, desgraçada, não te lembras de nada! Entregaste-te a mim como uma perdida, ali, no quarto do teu marido; revelaste-me volúpias de enlouquecer. Confessa que tinhas previsto tudo isto, que odiavas Camilo e que desde há muito o querias matar. Sem dúvida que me aceitaste por amante para que eu lutasse com ele e o liquidasse.
— Não é verdade... É monstruoso o que dizes!... Não tens o direito de censurar a minha fraqueza. Tal como tu, posso dizer que antes de te conhecer era uma mulher honesta e nunca tinha feito mal a ninguém. Se te enlouqueci, tu ainda me enlouqueceste mais. Ouve, Laurent, não discutamos mais... Teria muitas coisas a censurar-te.
— Que terias tu a censurar-me?
— Não, nada... Tu não me salvaste de mim própria, aproveitaste-te dos meus abandonos, comprazeste-te em destruir a minha vida... Perdoo-te isso tudo... Mas, por misericórdia, não me acuses de ter matado Camilo. Guarda o teu crime para ti, não queiras aterrorizar-me ainda mais.
Laurent levantou a mão para bater na cara de Teresa.
— Bate-me — exclamou ela — prefiro isso, sofrerei menos.
E estendeu-lhe a face. Ele suspendeu o gesto, pegou numa cadeira e sentou-se ao lado da jovem.
— Escuta — disse-lhe com voz que se esforçava por tornar calma — é covardia querer rejeitar a tua parte no crime. Sabes perfeitamente que o cometemos juntos, sabes que és tão culpada como eu. Por que queres tu tornar o meu fardo mais pesado dizendo-te inocente? Se estivesses inocente não terias consentido em casar comigo. Recorda-te dos dois anos a seguir ao crime. Queres tentar uma prova? vou dizer tudo ao procurador e verás se não somos ambos condenados.
Estremeceram e Teresa replicou:
— Os homens talvez me condenassem, mas Camilo sabe bem que tu fizeste tudo... Ele não me atormenta à noite como atormenta a ti.
— Camilo deixa-me em paz — disse Laurent pálido e trêmulo — és tu que o vês passar nos teus pesadelos, eu ouço-te gritar.
— Não diga isso — insurgiu-se a jovem em cólera — eu nunca gritei, não vejo o espectro chegar. Oh! Compreendo, procuras afastá-lo de ti... Estou inocente, estou inocente!
Olharam-se aterrorizados, vencidos pela fadiga, receando ter evocado o cadáver do afogado. As disputas terminavam sempre da mesma forma; protestavam a sua inocência, procuravam enganar-se a si próprios para afugentarem os pesadelos. Os constantes esforços visavam rejeitar, cada um por sua vez, a responsabilidade do crime, defenderem-se como se estivessem no tribunal, fazendo pesar sobre o outro as acusações mais graves. O mais estranho era que não conseguiam iludir-se com os juramentos, ambos recordavam perfeitamente as circunstâncias do assassínio. Os olhos confessavam o que os lábios negavam. Eram as mentiras pueris, as afirmações ridículas, a disputa toda de palavras de dois miseráveis que mentiam por mentir, sem poder ocultar que mentiam. Sucessivamente assumiam o papel de acusador e, se bem que o processo a que se submetiam não chegasse a alguma conclusão, recomeçavam-no todas as noites com cruel obstinação. Sabiam que nada provariam, que não conseguiriam apagar o passado, mas tentavam sempre, voltavam sempre à carga; aguilhoados pela dor e pelo pavor, antecipadamente vencidos pela esmagadora realidade. O maior benefício que tiravam das suas disputas era o de produzir uma tempestade de palavras e de gritos cujo barulho momentaneamente os aturdia.
E enquanto duravam os arrebatamentos, enquanto se acusavam, a paralítica não despregava deles o olhar. Uma alegria ardente brilhava-lhe nos olhos quando Laurent levantava a larga mão sobre a cabeça de Teresa.
Uma nova fase se manifestou. Esgotada pelo medo, incapaz de encontrar um pensamento consolador, Teresa começou a chorar alto o afogado diante de Laurent. Deu-se nela uma brusca quebra. Demasiado tensos os seus nervos romperam-se, a sua natureza seca e violenta amoleceu. Semelhante enternecimento tivera já nos primeiros dias de casada. Esse estado de espírito voltou, como reação necessária e fatal. Depois de ter lutado com todas as suas nervosas energias contra o espectro de Camilo, depois de viver vários meses em surda irritação, revoltada contra os sofrimentos, procurando curá-los somente com a força de vontade, experimentava uma tal lassidão que se vergou e foi vencida. Então, de novo mulher, mesmo menina, já não sentindo forças para se retesar, para se manter febrilmente em pé diante dos seus terrores, lançou-se na piedade, nas lágrimas e nas lamentações, esperando encontrar aí algum alívio. Tentou tirar partido das fraquezas da carne e do espírito que a assaltavam; talvez que o afogado, que não cedera diante das suas irritações, cedesse perante as suas lágrimas. Teve, assim, remorsos por cálculo, dizendo para consigo que era certamente o melhor meio de apaziguar e de satisfazer Camilo. Como certas devotas que pensam enganar Deus e arrancar um perdão orando com os lábios e assumindo humilde atitude de penitência, assim Teresa se humilhava, batia no peito, buscava palavras de arrependimento sem ter no fundo do coração algo mais do que o medo e a covardia. Por outro lado sentia uma espécie de prazer físico em abandonar-se, em se sentir mole e abatida, em oferecer-se à dor sem resistência.
Oprimiu a senhora Raquin com o seu desespero lacrimoso. A paralítica tornou-se numa utilidade cotidiana; servia-lhe de certa maneira de genuflexório, de móvel diante do qual podia sem temor confessar os pecados e pedir perdão. Assim que sentia necessidade de chorar, de se aliviar soluçando, ajoelhava-se diante da paralítica e assim gritava, sufocava, representava apenas para si uma cena de remorsos que a aliviava ao mesmo tempo que a debilitava.
— Sou uma miserável — balbuciava — não mereço misericórdia. Enganei-a, arrastei o seu filho para a morte. Nunca me perdoará... E, contudo, se visse dentro de mim os remorsos que me dilaceram, se soubesse como sofro, talvez sentisse piedade... Não; não existe piedade para mim. Queria morrer assim aos seus pés, esmagada pela vergonha e pela dor.
Desta maneira monologava durante horas inteiras, passando do desespero para a esperança, condenando-se para em seguida se perdoar; falava com voz de criança doente, ora baixa, ora lamurienta; atirava-se no chão e levantava-se a seguir, obedecendo a todos os impulsos de humildade e de orgulho, de arrependimento e de revolta que lhe passavam pela cabeça. Por vezes chegava mesmo a esquecer que estava ajoelhada diante da senhora Raquin, continuava o monólogo como num sonho. Quando as próprias palavras a tinham já aturdido, erguia-se vacilante, atônita, e descia à loja, mais calma, sem temer romper em soluços nervosos diante dos clientes. Se novo ataque de remorsos a assaltava, apressava-se a subir e a ajoelhar-se ainda aos pés da paralítica. E a cena repetia-se 10 vezes ao dia.
Teresa nunca pensava que as suas lágrimas e a exibição do seu arrependimento causassem à tia angústias indizíveis. A verdade é que se se procurasse inventar um suplício para torturar a senhora Raquin não se teria seguramente encontrado nada mais terrível do que a comédia do remorso representada pela sobrinha.
A paralítica adivinhava o egoísmo que se ocultava sob aquelas efusões de dor. Sofria horrivelmente com os longos monólogos que era forçada a suportar a todo o instante e que colocavam sempre diante de si o assassínio de Camilo. Era-lhe impossível perdoar e rodeava-se de um pensamento implacável de vingança que a sua incapacidade mais aguçava e, contudo, durante todo o dia tinha de ouvir pedidos de perdão, preces humildes e covardes. Quisera responder; algumas frases da sobrinha faziam-lhe afluir à garganta recusas esmagadoras, mas tinha de permanecer muda deixando Teresa defender a sua causa, sem nunca a interromper. A impossibilidade em que,se encontrava de gritar e de tapar os ouvidos enchia-a de inexplicável tormento. Uma após outra, as palavras da jovem penetravam-lhe no espírito, lentas e plangentes como um canto irritante. Acreditou por momentos que os criminosos lhe infligiam o suplício por diabólica crueldade. O único meio de defesa de que podia dispor era o de fechar os olhos quando a sobrinha se lhe ajoelhava aos pés; ouvia-a, mas ao menos não a via.
Teresa acabou por se atrever a beijar a tia. Um dia, durante um acesso de arrependimento, simulou surpreender nos olhos da paralítica um pensamento de misericórdia; arrastou-se de joelhos, ergueu-se e gritou com voz desvairada: "Perdoou-me! Perdoou-me!", depois beijou a testa e as faces da pobre velha, que não pode jogar a cabeça para trás. A carne fria na qual pousou os lábios causou a Teresa violento asco. Pensou que essa sensação seria, como as lágrimas e os remorsos, um excelente meio de apaziguar os nervos; passou daí em diante a beijar a paralítica, por penitência e como alívio.
— Oh! Como é boa! — exclamava por vezes — bem vejo que as minhas lágrimas a comoveram... Os seus olhares estão cheios de piedade... Estou salva...
E cobria-a de carícias, pousava a cabeça sobre os seus joelhos, beijava-lhe as mãos, sorria-lhe com expressão feliz, cuidava dela com sinais de apaixonado afeto.
Passado algum tempo acreditava na realidade da comédia, imaginava ter obtido o perdão da senhora Raquin e só falava da felicidade que sentia por ter merecido a sua misericórdia.
Era demasiado para a paralítica. Julgou morrer. com os beijos da sobrinha sentia a mesma sensação acre de repugnância e de raiva que a enchia de manhã e à noite, quando Laurent lhe pegava para a erguer ou para a deitar. Estava obrigada a suportar as carícias imundas da miserável que traíra e matara o seu filho; nem mesmo com a mão podia afastar os beijos que aquela mulher lhe deixava no rosto. Durante longas horas sentia aqueles beijos que a queimavam. Estava transformada em boneca dos criminosos de Camilo, boneca que vestiam, que viravam para um lado e para o outro, de que se serviam consoante as suas necessidades e os seus caprichos. Quedava-se entre as suas mãos, como se só tivesse farelo nas entranhas e, no entanto, essas entranhas viviam, revoltadas e dilaceradas, ao mínimo contato de Teresa e de Laurent. O que a exasperava sobretudo era o absurdo atroz da jovem ao pretender ler-lhe pensamentos de misericórdia no olhar, quando esse olhar quereria poder fulminar a criminosa. Muitas vezes fez esforços supremos para soltar um grito de protesto, concentrou todo o ódio nos olhos. Mas Teresa, que tirava proveito em repetir a si própria 20 vezes por dia que estava perdoada, redobrava de carícias sem nada mais querer compreender. Era preciso que a paralítica aceitasse os agradecimentos e as efusões que o coração repelia. A partir daí viveu cheia de irritação amarga e impotente, diante da sobrinha submissa que inventava ternuras para a recompensar daquilo a que a chamava a sua celeste bondade.
Se Laurent estava presente quando a mulher se ajoelhava diante da senhora Raquin, levantava-a com brutalidade, dizendo:
— Chega de comédia. Vês-me a chorar, vêsme prosternado, a mim?... Fazes tudo isso para me perturbar.
Os remorsos de Teresa agitavam-no estranhamente. Sofria ainda mais desde que a cúmplice se arrastava à sua volta, os olhos vermelhos de lágrimas, os lábios suplicantes.
A visão daquele vivo pesar duplicava-lhe os terrores, aumentava-lhe o mal-estar. Era como que uma censura constante a caminhar pela casa. Depois, receava que o arrependimento levasse um dia a mulher a revelar tudo.
Teria preferido que ela continuasse tensa e ameaçadora, defendendo-se com empenho das acusações que lhe fazia. Mas ela mudara de tática, reconhecia agora voluntariamente a sua participação no crime, acusava-se a si própria; fazia-se de fraca e receosa, daí partindo para implorar a redenção com ardente humildade. A atitude irritava Laurent.
As disputas eram, cada noite, mais opressivas e sinistras.
— Escuta — dizia Teresa ao marido — somos grandes culpados, temos de nos arrepender se queremos desfrutar de alguma tranqüilidade.,. Repara que desde que choro estou mais calma. Imita-me. Vamos dizer juntos que somos punidos justamente por ter cometido um crime horrível.
— Bah! — respondia Laurent com brusquidão — diz o que quiseres. Sei que és diabolicamente hábil e hipócrita. Chora, se isso te pode distrair. Mas peço-te que não me atordoes a cabeça com as tuas lágrimas.
— Ah! Tu és mau, rejeitas o remorso. No entanto és covarde, apanhaste Camilo à traição.
— Queres dizer que sou o único culpado?
— Não, não digo isso. Sou culpada, mais culpada do que tu. Devia ter salvo o meu marido das tuas mãos. Oh! Conheço todo o horror do meu pecado, mas procuro fazer perdoar-me e conseguirei, Laurent, enquanto que tu continuarás a levar uma vida triste... Nem mesmo tens coração para evitar à minha pobre tia o espetáculo das tuas ignóbeis cóleras, jamais lhe dirigiste uma palavra de pena.
E beijava a senhora Raquin, que fechava os olhos. Andava à sua volta, ajeitando a almofada da cabeça, prodigalizando-lhe mil atenções. Laurent estava exasperado.
— Eh! Deixa-a! Não vês que a tua vista e os teus cuidados lhe são odiosos? Se ela pudesse levantar a mão esbofeteava-te.
As palavras arrastadas e queixosas da mulher, as suas atitudes resignadas faziam-no pouco a pouco cair em cega cólera. Bem via qual era a sua tática; queria desligar-se de si; pôr-se de parte, afundar-se nos lamentos a fim de se furtar aos abraços do afogado. Por momentos dizia para si mesmo que talvez ela tivesse tomado o bom caminho, que as lágrimas lhe afastariam os terrores e estremecia à idéia de ser o único a sofrer, o único a ter medo. Quisera também ele arrepender-se, pelo menos representar a comédia do remorso, para experimentar; mas não encontrava os soluços e as palavras necessárias, e lançava-se na violência, sacudia Teresa para a irritar e arrastá-la consigo na loucura furiosa. A jovem quedava-se, respondendo com submissões lacrimosas aos seus ataques de cólera, tanto mais humilde e arrependida quanto mais rude ele se mostrava. Laurent atingia o auge da raiva.
Pelo cúmulo da irritação, Teresa acabava sempre por fazer o panegírico de Camilo, por descrever as qualidades da sua vítima.
— Ele era bom e foi preciso sermos muito cruéis para aniquilar aquele excelente coração que nunca teve um mau pensamento.
— Era bom, sim, eu sei — escarnecia Laurent
— tu queres dizer que era estúpido, não é verdade? Já esqueceste, então? Dizias que à mínima palavra sua te irritavas, que não podia abrir a boca sem deixar escapar uma tolice.
— Não troces... Só te faltava insultar o homem que assassinaste... Não conheces nada do coração das mulheres, Laurent; Camilo amava-me e eu o amava.
— Tu o amavas, ah! Na verdade, aí está uma coisa bem achada... Foi sem dúvida por amares o teu marido que me tomaste para amante... Lembro-me de um dia em que te arrastavas sobre o meu peito dizendo-me que Camilo te causava repugnância assim que os teus dedos lhe mergulhavam na carne como se fosse barro... Oh! Eu sei porque me amaste, eu sei. Querias braços mais vigorosos do que os daquele infeliz.
— Amava-o como irmã. Era o filho da minha benfeitora, possuía todas as delicadezas das naturezas frágeis, mostrava-se nobre e generoso. E nós o matamos, meu Deus! Meu Deus!
Chorava, desfalecia. A senhora Raquin lançava-lhe olhares penetrantes, indignada por ouvir elogios de Camilo em semelhante boca.
Laurent, nada podendo fazer contra aquela torrente de lágrimas, andava de um lado para o outro febrilmente, procurando um meio eficaz para abafar os remorsos de Teresa.
Tudo o que de bem ouvia dizer acerca da sua vítima acabava por lhe provocar penetrante ansiedade; deixava-se por vezes arrastar pelo tom dilacerante da mulher e acreditava realmente nas virtudes de Camilo, redobrando assim os seus terrores. O que porém o deixava fora de si era a comparação que a viúva do afogado nunca deixava de fazer entre o primeiro e o segundo marido, com vantagens para o primeiro.
— Ora bem, sim! — exclamava — ele era melhor do que tu; preferia que estivesse vivo e que tu estivesses no seu lugar debaixo da terra.
Laurent encolhia os ombros, a princípio.
— Podes dizer o que quiseres — continuava Teresa, animando-se — talvez não o tenha amado em vida, mas agora me lembro e amo-o... e a ti odeio-te. vê tu. Tu, tu és um assassino.
— Cala-te! — vociferava Laurent.
— E ele, ele foi uma vítima, um homem honesto que um patife matou. Oh! Não me metes medo... Sabes bem que és um miserável, um homem brutal, sem coração, sem alma.
Como queres tu que te ame, agora que te vejo coberto do sangue de Camilo?... Camilo tinha todas as ternuras para mim e eu matar-te-ia, ouves, matar-te-ia se isso pudesse ressuscitar Camilo e devolver-me o seu amor.
— Cala-te, miserável!
— Por que hei de calar-me? Digo a verdade. Resgataria o perdão com o preço do teu sangue. Ah! Quanto choro e sofro! Foi por minha culpa que este celerado assassinou o meu marido... Tenho de ir uma noite beijar a terra onde ele descansa. Serão essas as minhas derradeiras volúpias.
Desvairado, furioso pelas cenas atrozes que Teresa lhe desenrolava diante dos olhos, Laurent precipitava-se e lançava-a por terra, imobilizava-a debaixo do joelho, o punho levantado.
— É isso — gritava Teresa — bate-me, mata-me... Nunca Camilo me levantou a mão, mas tu, tu és um monstro.
E Laurent, espicaçado por estas palavras, sacudia-a com raiva, batia-lhe, martirizava-lhe o corpo com o punho fechado. Por duas vezes pouco faltou para a estrangular.
Teresa abandonava-se aos golpes; gozava uma volúpia acre em ser sovada; oferecia-se e provocava o marido para que lhe batesse mais. Era aquilo ainda um remédio contra os padecimentos da sua vida; dormia melhor à noite quando era sovada. A senhora Raquin gozava viva delícia quando Laurent arrastava a sobrinha pelo chão, moendo-lhe o corpo a pontapés.
A existência do assassino era horrível desde o dia em que Teresa tivera a infernal invenção de sentir remorsos e de lamentar Camilo em voz alta. A partir desse momento, o miserável vivia permanentemente com a sua vítima; a cada instante ouvia a mulher elogiar e lamentar o primeiro marido. A circunstância mais insignificante tornava-se um pretexto:
Camilo fazia isto, Camilo fazia aquilo, Camilo tinha esta qualidade, Camilo gostava daquela maneira. Sempre Camilo, sempre frases entristecidas que lamentavam amorte de Camilo. Teresa empregava toda a sua maldade para tornar mais cruel a tortura que infligia a Laurent para ela própria se proteger. Descia aos mais íntimos pormenores, contou os mil nadas da juventude com suspiros de pena, misturando desta forma a recordação do afogado com os acontecimentos cotidianos. O cadáver, que já assombrava a casa, foi introduzido abertamente. Sentava-se nas cadeiras, à mesa, estendia-se na cama, servia-se dos móveis, dos objetos espalhados pela casa.
Laurent não podia tocar num garfo, numa escova, fosse no que fosse, sem que Teresa lhe fizesse sentir que Camilo lhe tocara antes dele. Constantemente empurrado contra o homem que matara, o criminoso acabou por sentir algo bizarro que por pouco não o enlouqueceu; à força de ser comparado com Camilo, de se servir dos objetos de que Camilo se servira, imaginou que era Camilo, que se identificava com a sua vítima. O cérebro estalava-lhe e então atirava-se à mulher para a fazer calar, para não ouvir mais as palavras que o lançavam no delírio: todas as disputas terminavam em luta.
Chegou a hora em que a senhora Raquin, para escapar aos sofrimentos que suportava, teve a idéia de se deixar morrer de fome. A sua coragem estava no limite, não podia suportar por mais tempo o martírio que constituía para si a permanente presença dos criminosos, e sonhava procurar na morte o supremo alívio. Cada dia que passava tornava as suas angústias mais vivas, quando Teresa a beijava, quando Laurent a tomava nos braços e a carregava como uma criança. Decidiu livrar-se daquelas carícias e daqueles abraços que tamanha repugnância lhe causavam. Uma vez que já não tinha vida bastante para vingar o filho, preferia morrer completamente e deixar entre as mãos dos assassinos apenas um cadáver que nada sentiria e do qual fariam o que bem quisessem.
Durante dois dias recusou qualquer alimento, empregando as últimas forças a cerrar os dentes, rejeitando tudo o que lhe conseguiam meter na boca. Teresa estava desesperada; perguntava a si própria onde iria chorar e arrepender-se quando a tia deixasse de estar 'ali. Fez-lhe intermináveis discursos para provar-lhe que tinha de viver; chorou, zangou-se mesmo, voltando à antiga cólera e abriu os maxilares da paralítica como quem abre à força a boca de um animal. A senhora Raquin resistia; era uma luta odiosa.
Laurent permanecia perfeitamente neutro e indiferente. Admirava-se da raiva que Teresa aplicava para impedir o suicídio da paralítica. Agora que a presença da velha senhora lhes era inútil, desejava a sua morte. Não a teria matado, mas já que desejava morrer, não via necessidade de lhe recusar os meios para o conseguir.
— Eh! Deixa-a — dizia para a mulher — será um alívio... Talvez sejamos mais felizes quando ela já não estiver aqui.
Esta frase, repetida várias vezes à sua frente, provocou à senhora Raquin uma estranha emoção. Receou que a esperança de Laurent se realizasse, que depois da sua morte ambos tivessem horas calmas e felizes.
Disse para si mesma que era covarde em deixar-se morrer, que não tinha o direito de desaparecer antes de assistir ao desenlace da sinistra aventura.
Só então poderia descer à escuridão, para dizer a Camilo: "Estás vingado." A idéia do suicídio tornou-se-lhe subitamente pesada ao pensar no desconhecimento com que entraria no túmulo; ali, rodeada do frio e do silêncio da terra, dormiria eternamente atormentada pela incerteza do castigo dos seus carrascos. Para dormir em paz o sono da morte tinha de adormecer com a alegria viva da vingança, tinha de levar um sonho de ódio satisfeito, um sonho que teria durante a eternidade. Tomou os alimentos que a sobrinha lhe apresentava, consentiu uma vez mais em viver.
Via, aliás, que o desfecho não podia estar longe. Em cada dia a situação entre o casal tornava-se mais tensa, mais insustentável. A explosão que tudo destruiria estava iminente. Teresa e Laurent tornavam-se a cada momento mais ameaçadores um para o outro. Não era já apenas à noite que sofriam com a intimidade; todos os seus dias se passavam no meio de ansiedades, de crises dilacerantes. Tudo se lhes transformava em terror e em sofrimento. Viviam num inferno, martirizando-se, tornando amargo e cruel o que faziam e o que diziam, com ânsias de se lançarem no fundo do abismo que sentiam debaixo dos pés, tombando por sua vez.
A idéia de separação era bem-vinda para ambos. Cada um por seu lado já tinha sonhado fugir, ter algum repouso, longe da passagem da Ponte Nova, cuja umidade e imundície pareciam feitas para as suas vidas desoladas. Mas não se atreviam, não conseguiam salvar-se. Não se dilacerarem mutuamente, não ficarem ali para sofrer e fazer sofrer, parecia-lhes impossível. Estavam aferrados ao ódio e à crueldade. Uma espécie de repulsão e de atração afastava-os e puxava-os ao mesmo tempo; tinham a sensação estranha de duas pessoas que, depois de discutirem, querem separar-se mas que no entanto continuam a encontrar-se para se crivarem de novas injúrias.
Além disso, opunham-se à sua fuga obstáculos materiais: não sabiam o que fazer da paralítica nem o que dizer aos convidados das quintas-feiras. Se fugissem talvez se suspeitasse de qualquer coisa; imaginavam então que seriam perseguidos e guilhotinados. E ficavam por covardia, ficavam e arrastavam-se miseravelmente no horror da sua existência.
Quando Laurent não estava, durante a manhã e a tarde, Teresa andava entre a sala de jantar e a loja, inquieta e perturbada, sem saber como preencher o vazio que cada dia cavava mais em si. Sentia-se ociosa quando não estava a lamentar-se aos pés da tia ou a ser espancada e injuriada pelo marido. Ao ver-se só na loja assaltava-a o acabrunhamento e olhava com ar vazio as pessoas que atravessavam a galeria suja e negra, entristecia-se por morrer no fundo daquela fossa sombria, cheirando a cemitério. Recorreu a Suzana para passar dias inteiros consigo, esperando que a presença da pobre criatura, doce .e pálida, a acalmaria.
Suzana aceitou a oferta com satisfação; gostava de Teresa com uma espécie de amizade respeitosa; há muito tempo que tinha o desejo de trabalhar com ela, enquanto Olivier estava na repartição. Levou o bordado e ocupou, atrás do balcão, o lugar da senhora Raquin.
A partir desse dia Teresa desligou-se um pouco da tia. Subia menos vezes para lhe chorar sobre os joelhos e beijar-lhe o rosto morto. Tinha outra ocupação. Esforçava-se por escutar com interesse as tagarelices pausadas de Suzana, que falava da sua casa, das banalidades da sua vida monótona. Isso fazia com que se esquecesse de si própria; surpreendia-se por vezes a interessar-se por tolices e então sorria amargamente.
Pouco a pouco perdeu toda a clientela da loja. Desde que a tia estava imobilizada na poltrona, deixava a loja apodrecer, abandonava os artigos ao pó e à umidade.
Cheirava a mofo, as aranhas desciam do teto e o chão quase nunca era varrido. O que aliás afastou os clientes foi a estranha maneira com que Teresa os recebia por vezes. Quando estava em cima, espancada por Laurent ou sacudida por uma crise de pavor, e a campainha da porta tilintava imperiosamente, tinha de descer, sem quase ter tempo para compor os cabelos ou limpar as lágrimas; servia com brusquidão a clientela e não raro nem isso acontecia, respondendo do alto da escada que não tinha o artigo pretendido. Estes modos pouco simpáticos não eram de molde a atrair as pessoas. As modestas operárias do bairro, habituadas às amabilidades dengosas da senhora Raquin, afastaram-se diante das rudezas e dos olhares enlouquecidos de Teresa. Quando esta passou a estar acompanhada de Suzana, o abandono foi completo: as duas mulheres, para não serem perturbadas nas suas conversas, arranjaram maneira de despachar as derradeiras clientes que ainda apareciam. A partir de então o comércio de capelista deixou de contribuir para as necessidades da casa; foi preciso entrar no capital dos 40 e tal mil francos.
Teresa tinha dias em que saía durante tardes inteiras. Ninguém sabia aonde ia. Não havia dúvida que pedira companhia a Suzana não apenas para não estar só mas também para tomar conta da loja durante as suas ausências. À noite, quando voltava, estafada, com olheiras de cansaço, encontrava a pequena mulher de Olivier atrás do balcão, deprimida, sorrindo vagamente, na mesma postura em que a tinha deixado cinco horas antes.
Cerca de cinco meses depois do casamento, Teresa foi tomada de pânico. Teve a certeza de estar grávida. O pensamento de ter um filho de Laurent parecia-lhe monstruoso, sem que soubesse explicar a razão. Tinha vagamente medo de dar à luz um afogado. Parecia-lhe sentir nas entranhas o frio de um cadáver desfeito e mole.
Quis livrar-se a todo o custo daquela criança que a gelava e que não podia continuar a gerar. Não disse nada ao marido e, um dia, depois de o ter cruelmente provocado e de ele erguer um pé, apresentou-lhe o ventre. Deixou que ele batesse à vontade. No dia seguinte abortava.
Por seu lado, Laurent levava uma existência horrorosa. Os dias pareciam-lhe insuportavelmente longos; cada um deles trazia as mesmas angústias, os mesmos pesados dissabores, que oprimiam a horas fixas com monotonia e regularidade esmagadoras. Arrastava-se pela vida, em cada noite aterrorizado pela lembrança do dia e pela espera do dia seguinte. Sabia que os seus dias seriam sempre iguais, que todos lhe trariam idênticos sofrimentos. E via as semanas, os meses e os anos que o esperavam, sombrios e implacáveis, chegando em fila, caindo-lhe em cima e sufocando-o lentamente. Quando não há esperança no futuro, o presente adquire uma amargura ignóbil.
Laurent já não sentia revolta, perdia a energia, abandonava-se ao vazio que se apoderava do seu ser. A ociosidade matava-o. De manhã saía, sem saber aonde ir, enojado só de pensar em fazer o que fizera na véspera e forçado, malgrado seu, a fazê-lo de novo. Dirigia-se ao ateliê por hábito, por mania. O local, de paredes cinzentas, donde não se avistava mais do que um quadrado deserto de céu, enchia-o de uma tristeza muda. Deitava-se no divã, de braços pendentes e o pensamento oprimido.
Não se atrevia a tocar num pincel. Tinha feito novas tentativas e sempre o rosto de Camilo surgia sobre a tela a escarnecer. Para não enlouquecer, acabou por atirar a caixa de tintas para um canto e ficar na mais completa ociosidade. Esta preguiça forçada pesava-lhe extraordinariamente.
À tarde interrogava-se angustiosamente para saber o que havia de fazer. Ficava durante meia hora no passeio da Rua Mazarino consultando-se, hesitando sobre as distrações a ter. Afastava a idéia de subir de novo ao ateliê e decidia-se sempre por descer a Rua Guéguénaud e dali caminhar ao longo do cais. E até à noite seguia em frente, como um idiota, acometido de frêmitos bruscos sempre que olhava para o Sena. Quer estivesse no ateliê, quer andasse pelas ruas, o acabrunhamento era o mesmo. No dia seguinte recomeçava, passava a manhã estendido no divã e de tarde arrastava-se ao longo do cais. Fazia aquilo há meses e poderia ter que fazê-lo durante anos.
Laurent lembrava-se por vezes de que matara Camilo para passar a não fazer nada, e ficava espantado, agora que nada fazia, por suportar tais padecimentos. Quisera obrigar-se a ser feliz. Argumentava consigo próprio que fazia mal em sofrer, agora que alcançara a suprema felicidade que consiste em cruzar os braços, e que era um imbecil por não gozar em paz essa felicidade. Mas as suas razões caíam perante os fatos. Tinha de confessar, no fundo, que a ociosidade tornava as suas angústias mais cruéis ao deixar-lhe todas as horas da vida para pensar nos seus desesperos e ao aprofundar a agrura incurável. A preguiça, a existência de animal com que sonhara, era o seu castigo. Por momentos desejava ardentemente uma ocupação que o arrancasse aos pensamentos. Depois abandonava-se, caía sob o peso da fatalidade surda que lhe amarrava os membros para mais seguramente o esmagar.
A verdade era que apenas experimentava algum alívio quando batia em Teresa, à noite. Isso fazia-o sair da sua dor entorpecida.
O padecimento mais agudo, sofrimento físico e moral, era o causado pela dentada de Camilo no pescoço. Em certos momentos imaginava que a cicatriz lhe cobria todo o corpo. Se chegava a esquecer o passado, a picada ardente que julgava sentir lembrava à carne e ao espírito o crime. Não podia pôr-se diante de um espelho sem ver realizado o fenômeno que tantas vezes notara e que sempre o aterrorizava: sob efeitos da emoção, o sangue afluía-lhe ao pescoço, avermelhava a cicatriz e esta começava a roer-lhe a pele. Esta espécie de ferimento vivo despertando, avermelhando e mordendo-lhe à menor perturbação, horrorizava-o e torturava-o. Acabou por crer que os dentes do afogado tinham mergulhado ali um verme que o devorava. O local onde se encontrava a cicatriz parecia-lhe já não pertencer ao corpo; era como carne estranha que ali tivesse sido colocada, como carne envenenada que apodrecia os seus próprios músculos. Transportava assim para toda a parte a recordação viva e devoradora do seu crime. Teresa, quando a espancava, procurava arranhá-lo ali; conseguia-o por vezes e as suas unhas faziam-no uivar de dor. Habitualmente ela fingia soluçar ao ver a dentada, para a tornar ainda mais insuportável para Laurent. Toda a vingança que ela extraía das suas brutalidades era martirizá-lo por meio daquela dentada.
Sentira já tentações, ao barbear-se, de cortar o pescoço para fazer desaparecer os sinais dos dentes do afogado. Diante do espelho, quando erguia o queixo e via a mancha avermelhada debaixo da espuma branca do sabão, acometiam-no súbitas raivas e aproximava vivamente a navalha, quase a cortar a carne. Porém, o frio da navalha fazia-o voltar a si; tinha um desfalecimento, era obrigado a sentar-se e esperar que a covardia dominada lhe permitisse acabar de fazer a barba.
À noite só saía do entorpecimento para entrar em cóleras cegas e fúteis. Quando estava cansado de discutir e de bater em Teresa, dava pontapés nas paredes como as crianças, procurava qualquer coisa para partir. Isso aliviava-o. Sentia particularmente ódio ao gato tigrado François que, assim que entrava na sala, ia refugiar-se sobre os joelhos da paralítica. Se Laurent não o matara ainda fora porque, na verdade, não se atrevia a apanhá-lo. Ô gato fitava-o com enormes olhos redondos de diabólica fixidez. Eram aqueles olhos, sempre abertos sobre si, que o exasperavam; perguntava a si próprio o que lhe queriam aqueles olhos que não se despregavam dele; acabou por sentir verdadeiro pavor, imaginando coisas absurdas. À mesa, fosse em que momento fosse, no meio de uma discussão ou de um longo silêncio se voltava subitamente a cabeça apercebia-se dos olhares de François examinando-o com ar denso e implacável. Empalidecia, perdia a cabeça, quase chegava a gritar para o gato: "Eh! Fala, diz-me finalmente o que queres de mim." Quando conseguia pisar-lhe uma pata ou a cauda fazia-o com uma espécie de medonha satisfação e o miado do pobre animal deixava-lhe um vago terror, como se tivesse ouvido o grito de dor de uma pessoa. Laurent, em rigor, tinha medo de François.
Depois sobretudo que este vivia sobre os joelhos da paralítica, como no interior de uma fortaleza inexpugnável da qual podia impunemente dirigir os olhos verdes sobre o inimigo, o assassino de Camilo estabelecia uma vaga semelhança entre o animal irritado e a paralítica. Dizia para si mesmo que o gato, assim como a senhora Raquin, sabia do crime e denunciá-lo-ia se algum dia falasse.
Finalmente, uma noite, François olhou tão fixamente para Laurent que este, no auge da irritação, decidiu que tinha de acabar com ele. Abriu completamente a janela da sala de jantar e pegou no gato pela pele do pescoço. A senhora Raquin compreendeu; duas grossas lágrimas correram-lhe pelas faces. O animal começou a miar, a contorcer-se, procurando voltar-se para morder a mão de Laurent. Este porém segurava-o com firmeza; fê-lo dar duas ou três voltas e projetou-o com toda a força contra o enorme muro negro fronteiriço. François espalmou-se ali e caiu sobre o envidraçamento da passagem. Durante toda a noite o miserável bicho se arrastou pela goteira, com a espinha quebrada, soltando miados roucos. Nessa noite a senhora Raquin chorou François quase tanto como chorara Camilo; Teresa teve uma crise de nervos atroz. Os lamentos do gato eram sinistros, na sombra, debaixo das janelas.
Não tardou que Laurent se sentisse de novo inquieto. Assustavam-no certas modificações que notou no comportamento da mulher.
Teresa tornou-se sombria, taciturna. Já não prodigalizava à senhora Raquin as efusões de arrependimento, os beijos reconhecidos. Retomara diante da paralítica os ares de crueldade fria, de indiferença egoísta. Dir-se-ia que, tentando o remorso sem que a tivesse aliviado, se voltara para outro remédio. A sua tristeza resultava sem dúvida da impossibilidade de acalmar a sua vida. Olhou a paralítica com uma espécie de desdém, como coisa inútil que já nem de consolação servisse. Dava-lhe as atenções estritamente necessárias para não a deixar morrer de fome.
A partir daí, muda, acabrunhada, arrastou-se pela casa. Multiplicava as saídas, chegava a ausentar-se quatro a cinco vezes por semana.
Essas alterações surpreenderam e alarmaram Laurent. Acreditou que os remorsos, adquirindo nova forma em Teresa, se manifestavam agora pelo tédio sombrio que notava nela. Ocorreu-lhe que tinha fora um confidente, que preparava a sua traição. Por duas vezes a seguiu e a perdeu nas ruas. Começou a espiá-la; um pensamento fixo apoderara-se dele: Teresa ia fazer revelações, esgotada pelo sofrimento e ele tinha de a amordaçar, de reter-lhe as confissões na garganta.
Uma manhã, em vez de subir ao ateliê, Laurent instalou-se numa taberna a uma esquina da Rua Génégaud, diante da passagem. Dali começou a observar as pessoas que surgiam no passeio da Rua Mazarino. Espreitava Teresa. Na véspera, a jovem dissera que sairia cedo e não voltaria certamente antes da noite.
Laurent esperou uma longa meia hora. Sabia que a mulher ia sempre pela Rua Mazarino; chegou por momentos a recear que lhe escapasse, seguindo pela Rua do Sena. Teve a idéia de entrar na galeria e de se ocultar no próprio corredor ao lado da casa.
Quando começava a impacientar-se viu Teresa sair vivamente da passagem.
Estava vestida com roupas claras e ele, pela primeira vez, reparou que se vestia como uma mulher da rua, com um vestido de cauda comprida; bamboleava-se pelo passeio provocantemente, olhando para os homens, levantando a frente do vestido que mostrava as pernas, as botinas de cordões e as meias brancas. Subiu a Rua Mazarino. Laurent seguiu-a.
O tempo estava ameno e a jovem caminhava lentamente com a cabeça um pouco inclinada e os cabelos caídos sobre as costas. Os homens voltavam-se para trás depois de se cruzarem com ela. Seguiu pela Rua da Escola de Medicina. Laurent ficou aterrorizado; sabia que em algum lugar ali perto havia um posto policial; disse para si mesmo que não podia haver dúvida, que a mulher ia seguramente denunciá-lo. Prometeu lançar-se sobre ela se entrasse na delegacia e suplicar-lhe, bater-lhe, forçá-la a calar-se. A uma esquina ela olhou para um agente da polícia que passava e Laurent temeu vê-la abordar aquele polícia; ocultou-se no vão de uma porta, tomado do súbito receio de ser detido, se se mostrasse.
O percurso foi para ele uma verdadeira agonia; enquanto a mulher se exibia ao sol pelo passeio, arrastando as saias, displicente e impudica, ele caminhava atrás, pálido e trêmulo, repetindo que estava tudo acabado, que não poderia salvar-se e que seria guilhotinado. Cada passo que a via dar parecia-lhe um passo mais para o castigo.
O medo emprestava-lhe uma espécie de cega convicção, os mínimos movimentos da jovem contribuíam para essa certeza. Seguia-a, ia para onde ela ia, da mesma forma como se caminha para o suplício.
Bruscamente, ao desembocar na antiga praça de Saint-Michel, Teresa dirigiu-se para um café que então se situava à esquina com a Rua Monsieur-le-Prince. Sentou-se no meio de um grupo de mulheres e de estudantes, a uma das mesas sobre o passeio. Familiarmente, apertou a mão de todos. Depois pediu um absinto.
Perfeitamente à vontade, conversava com um jovem louro que sem dúvida a esperava há algum tempo. Chegaram duas mulheres que se inclinaram para a mesa e a trataram por tu com voz rouca. À sua volta as mulheres fumavam cigarros, os homens beijavam-nas em plena rua, diante dos transeuntes que nem sequer voltavam a cabeça. As palavras grosseiras e as gargalhadas chegavam aos ouvidos de Laurent, que estava imóvel, do outro lado da praça, no vão de um portal.
Quando Teresa acabou de beber o absinto, levantou-se, tomou o braço do jovem louro e desceu a Rua de La Harpe. Laurent seguiu-os até à Rua de Saint-André-des-Arts.
Ali viu-os entrar numa casa de aluguel de aposentos mobilados. Ficou no meio da calçada, de olhos levantados a olhar para a fachada da casa. A mulher apareceu momentaneamente a uma janela aberta do segundo andar. Julgou depois distinguir as mãos do jovem louro a deslizar em volta da cintura de Teresa. A janela fechou-se com um ruído seco.
Laurent compreendeu. Sem esperar mais partiu tranqüilamente, sereno, satisfeito.
— Bah! — dizia para si mesmo enquanto se encaminhava para o cais — sendo assim tem uma ocupação, não pensa em fazer mal... É diabolicamente mais esperta do que eu.
Espantava-se agora por não ter sido ele a pensar primeiro em lançar-se no vício. Podia aí encontrar remédio contra o terror. Não tinha pensado nisso porque a sua carne estava morta, e porque não sentia o mínimo apetite de devassidão. A infidelidade da mulher deixava-o completamente frio; não sentia nenhuma revolta no sangue e nos nervos ao pensar que estava nos braços de outro homem. Pelo contrário, era-lhe agradável; parecia-lhe que tinha seguido a mulher de um camarada e ria da boa peça que a mulher pregava ao marido. Teresa tornara-se-lhe estranha a tal ponto que não a sentia mais viver no seu peito; tê-la-ia vendido e dado 100 vezes para obter uma hora de calma.
Caminhou sem destino, gozando a reação súbita e feliz que acabava de o fazer passar do pavor para a paz. Quase agradecia à mulher por ir com um amante, quando ele julgava que se dirigia para uma delegacia. A aventura tivera um desfecho totalmente imprevisto que o surpreendera agradavelmente.
O que via de mais claro em todo o incidente era que tremera inutilmente, e que devia por sua vez experimentar o vício para ver se este lhe dava alívio, atordoando-lhe os pensamentos.
À noite, ao voltar à loja, Laurent decidiu que pediria alguns milhares de francos à mulher e que empregaria os grandes meios para os obter. Pensava que o vício custa caro a um homem, invejava vagamente a sorte das mulheres que podem vender-se. Esperou pacientemente por Teresa, que ainda não chegara.
Quando a mulher chegou fez-se amável e não falou da espionagem que fizera de manhã. Ela estava meio embriagada; das suas roupas em desalinho escapava o aroma acre do tabaco e da bebida, característico dos botequins. Extenuada, o rosto aqui e ali com manchas lívidas, ela cambaleava, sob o peso da vergonhosa fadiga do dia.
O jantar foi silencioso. Teresa não comeu. À sobremesa, Laurent pôs os cotovelos em cima da mesa e pediu-lhe sem rodeios 5.000 francos.
— Não — respondeu Teresa secamente — se eu te deixasse livre, arruinavas-me... Ignoras a nossa posição? Caminhamos diretamente para a miséria.
— É possível — volveu ele tranqüilamente para mim dá no mesmo, quero o dinheiro.
— Não, mil vezes não!... Largaste o emprego, o negócio da capelista não anda nada bem e não é com o rendimento do meu dote que podemos viver.
Cada dia reduzo o capital para te alimentar e dar-te os francos por mês que me arrancaste. Não terás mais nada, entendes? É inútil.
— Reflete, não recuses assim. Digo-te que quero 5.000 francos e tê-los-ei, vais dar-me de qualquer maneira.
A tranqüila obstinação de Laurent irritou Teresa e acabou de a embriagar.
— Ah! Eu sei, queres acabar como começaste... Há quatro anos que te mantemos. Só vieste a esta casa para comer e beber e, desde então, estás às nossas custas.
O cavalheiro não faz nada, o cavalheiro arranjou-se de maneira a viver à minha custa, de braços cruzados... Não, não terás nada, nem um sou... Queres que te diga, muito bem! És um...
E disse o nome. Laurent começou a rir sacudindo os ombros. Limitou-se a responder:
— Aprendes bonitas palavras no mundo em que vives agora.
Foi a única alusão que se permitiu fazer aos amores de Teresa. Esta ergueu vivamente a cabeça e atirou-lhe em tom azedo:
— Em todo o caso não vivo com assassinos. Laurent tornou-se muito pálido. Ficou um instante silencioso com os olhos fixos na mulher; depois, com voz trêmula:
— Escuta, minha filha, não nos zanguemos; não adianta nada, nem para ti nem para mim. Já não tenho coragem. Seria prudente entendermo-nos, se não queremos que aconteça o pior... Pedi-te 5.000 francos porque preciso deles; posso mesmo dizer-te que conto empregá-los para assegurar a nossa tranqüilidade.
Depois de um estranho sorriso, prosseguiu:
— Vamos, pensa, dá-me a tua última palavra.
— Está tudo pensado — respondeu a jovem
— já te disse, não terás um sou.
O marido levantou-se violentamente. Ela teve medo de ser espancada; fez-se pequena, decidida a não ceder à sova. Mas Laurent nem sequer se aproximou, contentando-se em dizer-lhe friamente que estava cansado da vida e que ia contar a história do crime ao comissário da polícia do bairro.
— Levas-me a esse extremo, tornas-me a vida insuportável. Prefiro acabar tudo... Seremos julgados e condenados os dois. E pronto!
— Julgas que me metes medo? — gritou Teresa — estou tão cansada como tu. Sou eu quem vai ao comissário da polícia, se tu não fores. Ah! Estou pronta a acompanhar-te para o cadafalso, não tenho a tua covardia... Vamos, vem comigo ao comissário.
Levantara-se e dirigia-se já para a escada.
— É isto mesmo — balbuciou Laurent vamos juntos.
Quando desceram à loja olharam-se, inquietos, apavorados. Parecia-lhes que acabavam de os pregar ao chão. Os escassos segundos que tinham levado descendo a escada de madeira bastaram para lhes mostrar, num relâmpago, as conseqüências de uma confissão. Viram simultaneamente os gendarmes, a prisão, o tribunal criminal, a guilhotina, tudo isto repentinamente e com clareza. E, no fundo do seu ser sentiram o desfalecimento, a tentação de se ajoelhar cada um diante do outro e suplicar-lhe que ficasse, que nada revelasse. O medo e o enleio conservou-os imóveis e silenciosos durante dois ou três minutos. Foi Teresa quem primeiro se decidiu a falar e a ceder:
— No fim sou tola em te negar o dinheiro disse — acabarás por o comer um dia ou outro. Vem a dar no mesmo, se te der já.
A partir do momento em que Laurent se viu com o ouro no bolso passou a embriagar-se, a conviver com as prostitutas, arrastou-se no meio de uma vida ruidosa e desvairada.
Dormia fora de casa e durante o dia, vivia de noite, procurando emoções fortes, ansiando por fugir à realidade. Mas só conseguiu sucumbir ainda mais. Quando havia ruído à sua volta, ouvia o enorme e terrível silêncio que havia dentro de si; quando uma amante o beijava, quando esvaziava o copo, apenas encontrava uma pesada tristeza no fundo da saciedade. Não tinha sido feito para a luxúria e para os excessos gastronômicos; o seu ser, enregelado, como que interiormente rígido, enervava-se com os beijos e com os festins. Enojado, não conseguia excitar a imaginação, os sentidos e o estômago. Sofria ainda um pouco mais ao obrigar-se à libertinagem e era tudo. Depois, quando regressava, quando via a senhora Raquin e Teresa, a lassidão provocava-lhe crises terríveis de terror; jurava então não voltar a sair, ficar no sofrimento para se habituar a ele e vencê-lo.
Por seu lado, Teresa saía cada vez menos. Durante um mês viveu como Laurent, nos passeios, nos cafés. Entrava por instantes, à noite, dava de comer à senhora Raquin, deitava-a e saía de novo até ao dia seguinte. Ela e o marido estiveram uma ocasião quatro dias sem se verem.
Depois acometeu-a profunda repugnância, sentiu que o vício não lhe dava mais resultado do que a comédia do remorso. Arrastara-se em vão por todas as hospedarias do Bairro Latino, levava inutilmente uma vida suja e turbulenta. Tinha os nervos arrasados; a devassidão, os prazeres físicos já não a abalavam suficientemente para lhe proporcionarem o esquecimento. Estava como os ébrios cujo céu da boca, queimado pelo álcool, fica insensível ao fogo das mais fortes bebidas. Ficava inerte na luxúria, nada mais encontrava junto dos amantes do que tédio e lassidão. Então deixou-os, dizendo para si mesma que lhe eram inúteis. Foi invadida por um desleixo desesperado e ficava em casa, com uma saia enxovalhada, os cabelos em desalinho, a cara e as mãos sujas. Procurava esquecer-se na imundície.
Logo que os dois criminosos voltaram assim a encontrar-se frente a frente, saturados, tendo um e outro esgotado todos os meios de se salvarem, compreenderam que não teriam já forças para lutar. A devassidão não os quisera e acabava de os remeter para as suas angústias. Estavam de novo na casa sombria e úmida da passagem, doravante como prisioneiros porque muitas vezes tinham tentado a salvação e jamais tinham conseguido quebrar o laço sangrento que os unia. Nem sequer pensaram mais em tentar a tarefa impossível. Sentiram-se impelidos, esmagados e ligados pelas circunstâncias, a tal ponto que tomaram consciência de que seria ridícula qualquer revolta. Retomaram a vida em comum mas o ódio transformou-se em raiva furiosa.
As disputas noturnas recomeçaram. As pancadas e os gritos, aliás, duravam todo o dia. Ao ódio juntou-se a desconfiança e a desconfiança acabou por enlouquecê-los.
Sentiram medo um do outro. A cena que se seguira ao pedido dos 5.000 francos teve lugar a breve trecho de manhã e à noite. A idéia fixa de ambos era a de que o outro o queria denunciar. Não saíam daquilo. Quando um dizia uma palavra, fazia um gesto, o outro imaginava que a intenção era ir ao comissário da polícia. Então espancavam-se ou imploravam misericórdia. Na cólera que os envolvia gritavam que iam correndo revelar tudo e apavoravam-se de morte; arrepiavam-se, humilhavam-se, prometiam por entre lágrimas amargas guardar silêncio. Sofriam horrivelmente mas não sentiam coragem para se libertar pousando um ferro em brasa sobre a chaga. Se ameaçavam mutuamente confessar o crime era unicamente para se aterrorizarem e tirarem dali a idéia, porque nunca seriam capazes de falar e de buscar a paz na punição.
Por mais de 20 vezes foram até à porta da esquadra, um atrás do outro. Ora era Laurent que queria confessar o crime, ora era Teresa que corria a denunciar-se. E encontravam-se sempre na rua e sempre se decidiam a esperar mais uma vez, depois de terem trocado insultos e súplicas ardentes.
Cada crise deixava-os mais desconfiados e mais assustados.
Olhavam-se de manhã à noite. Laurent não saía de casa e Teresa não o deixava nunca sair só. As suas suspeitas e o terror da confissão voltaram a juntá-los, a uni-los numa intimidade atroz. Nunca, desde o casamento, tinham vivido tão estreitamente ligados um ao outro, e jamais tinham sofrido tanto. Mas não obstante as angústias que impunham a si próprios, não se perdiam de vista, preferiam suportar as dores mais pungentes a separarem-se durante uma hora. Se Teresa descia à loja, Laurent seguia-a, temendo que ela falasse com uma cliente; se Laurent ficava à porta, vendo as pessoas que cruzavam a passagem, Teresa colocava-se a seu lado, para se certificar de que ele não falava a ninguém.
À quinta-feira, quando os convidados estavam lá, os criminosos lançavam mutuamente olhares suplicantes, cada um ouvia com terror o que o outro dizia, à espera de uma confissão do cúmplice e dando às frases começadas sentidos comprometedores.
Tal estado de guerra não podia continuar.
Teresa e Laurent, cada um por seu lado, chegaram a pensar em libertar-se por meio de um novo crime das conseqüências do primeiro. Era absolutamente necessário que um deles desaparecesse para que o outro desfrutasse de algum repouso.
Esta reflexão ocorreu-lhes ao mesmo tempo; ambos sentiram a necessidade urgente de separação, ambos ansiaram pela separação eterna. O assassínio que lhes surgiu no pensamento pareceu-lhes natural, fatal, forçadamente trazido pela morte de Camilo. Nem mesmo o discutiram, aceitando o projeto como o único meio de salvação.
Laurent resolveu que mataria Teresa porque Teresa o incomodava, porque podia entregá-lo com uma palavra e porque lhe causava insuportáveis padecimentos; Teresa decidiu que mataria Laurent pelos mesmos motivos.
A firme resolução do assassínio acalmou-os um pouco. Tomaram as suas disposições; aliás, agiam febrilmente, sem muita prudência; apenas vagamente pensavam nas conseqüências prováveis de novo crime, não cuidando de assegurar a fuga e a impunidade. Sentiam invencivelmente a necessidade de matar, obedeciam a essa necessidade como feras furiosas. Não seriam denunciados pelo primeiro crime, que tinham dissimulado com tanta habilidade, e arriscavam-se à guilhotina cometendo o segundo, que nem mesmo pensavam em ocultar.
Havia ali uma contradição de conduta de que nem se apercebiam. Diziam simplesmente para si mesmos que conseguiriam fugir, que iriam viver no estrangeiro depois de se apossarem de todo o dinheiro. Decorridos 15 ou 20 dias, Teresa levantara os escassos milhares de francos que restavam do seu dote e fechara-os numa gaveta que Laurent conhecia. Nem por um momento se preocuparam com o que aconteceria à senhora Raquin.
Laurent tinha encontrado, algumas semanas antes, um antigo camarada de colégio e que era preparador no laboratório de um químico célebre que se debruçava bastante sobre toxicologia. O colega proporcionara-lhe uma visita ao laboratório, mostrando-lhe os aparelhos e indicando-lhe os nomes das drogas. Uma noite, depois de se decidir ao crime, vendo Teresa beber um copo de água açucarada, Laurent lembrou-se de ter visto no laboratório um pequeno frasco de arenito contendo ácido prússico. Recordando o que lhe dissera o jovem preparador sobre os efeitos terríveis daquele veneno, que é fulminante e deixa poucos vestígios, pensou ser aquele o veneno que lhe convinha.
Um dia conseguiu escapar de casa, visitou o amigo e aproveitando uma ocasião em que este estava de costas, roubou o pequeno frasco de arenito.
Nesse mesmo dia, aproveitando a ausência de Laurent, Teresa mandou afiar uma grande faca de cozinha com a qual partia o açúcar, e que estava cheia de mossas. Feito isto escondeu a faca num canto do aparador.
Na quinta-feira seguinte, o serão em casa dos Raquin — como os convidados continuavam a chamar o lar dos seus anfitriões — decorreu com particular alegria.
Prolongou-se até às 11 e meia. Ao se retirar, Grivet declarou que nunca tinha passado horas mais agradáveis.
Suzana, que estava grávida, falou durante todo o tempo com Teresa acerca das suas dores e das suas alegrias. Teresa parecia ouvi-la com grande interesse; com os olhos fixos e os lábios cerrados, inclinava por vezes a cabeça; as pálpebras, baixando-se, cobriam-lhe de sombra todo o rosto.
Laurent por seu lado, prestava permanentemente atenção às narrativas do velho Michaud e de Olivier.
Estes nunca estavam calados e Grivet mal conseguia meter uma palavra entre duas frases do pai e do filho. Tinha aliás por eles um certo respeito; achava que falavam, bem. Como a conversa naquela noite tivesse substituído o jogo, declarou ingenuamente que as histórias do antigo comissário da polícia o divertiam quase tanto como uma partida de dominó.
Ao cabo de quase quatro anos que passavam as quintas-feiras em casa dos Raquin, os Michaud e Grivet nem uma só vez se tinham saturado daqueles serões monótonos que se sucediam com enervante regularidade. Jamais tinham suspeitado por um instante do drama que se representava naquela casa, tão calma e doce desde que entravam.
Habitualmente Olivier, como gracejo de polícia, dizia que a sala de jantar cheirava a homem honesto. Para não ficar atrás, Grivet chamava-lhe o Templo da Paz. Nos últimos tempos Teresa tivera de explicar, por duas ou três vezes, as contusões que se lhe viam no rosto, dizendo aos convidados que tinha caído. Nenhum deles, aliás, sonharia tratarem-se de marcas dos punhos de Laurent; estavam convencidos de que os seus anfitriões eram um casal modelo, todo doçura e amor.
A paralítica não tinha voltado a tentar revelar-lhes as infâmias que se ocultavam por detrás da tranqüilidade morna dos serões de quinta-feira. Perante as dilacerações dos criminosos adivinhava a crise que devia estalar de um dia para o outro, provocada pela sucessão fatídica dos acontecimentos, e acabou por compreender que os fatos não precisariam da sua intervenção.
A partir de então apagou-se, deixou atuar as conseqüências do assassínio de Camilo, que deviam por sua vez matar os assassinos. Pediu somente ao céu que a deixasse viver para assistir ao desfecho violento que previa; o seu derradeiro desejo era o de saciar os olhos com o espetáculo dos supremos sofrimentos que aniquilariam Teresa e Laurent.
Naquela noite Grivet instalou-se a seu lado e falou muito, fazendo as perguntas e dando as respostas, como habitualmente. Mas nem um olhar obteve em troca. Quando soaram as 11 e meia, os convidados levantaram-se prontamente.
— Está-se tão bem em vossa casa que nunca se pensa em partir — exclamou Grivet.
— O fato é que nunca adormeci aqui, eu que normalmente me deito às nove horas — apoiou Michaud.
Olivier entendeu dever ser igualmente amável:
— Como vêem — disse, mostrando os dentes amarelecidos — cheira a gente honesta esta sala: é por isso que se está tão bem.
Aborrecido por ter sido ultrapassado, Grivet pôs-se a declamar, com um gesto enfático:
— Esta sala é o Templo da Paz. Entretanto, Suzana atava as fitas do chapéu e dizia para Teresa:
— Virei amanhã às nove horas.
— Não — apressou-se a jovem a responder
— venha só à tarde... Sairei com certeza durante a manhã.
A sua voz era estranha, perturbada. Acompanhou os convidados até à passagem. Laurent desceu também, com um candeeiro na mão.
Quando ficaram sós, soltaram ambos um suspiro de alívio; uma impaciência surda devia tê-los devorado durante toda a noite. Desde a véspera estavam mais sombrios, mais inquietos diante um do outro.
Evitaram olhar-se e subiram silenciosamente. As mãos de ambos tinham ligeiros tremores convulsivos e Laurent viu-se obrigado a pousar o candeeiro em cima da mesa para evitar deixá-lo cair.
Antes de deitarem a senhora Raquin, tinham o hábito de arrumar a sala de jantar, de preparar um copo de água com açúcar para a noite, caminhando assim de um lado para o outro diante da pobre paralítica até tudo estar em ordem.
Ao subirem, naquela noite, sentaram-se por instantes, os olhos vagos, os lábios pálidos.
— Ora bem! Não nos deitamos? — perguntou ao cabo de um silêncio Laurent, que parecia emergir em sobressalto de um sonho.
— Sim, sim, deitamo-nos — respondeu Teresa estremecendo, como se tivesse sentido um frio intenso.
Ergueu-se e pegou na garrafa.
— Deixa — exclamou o marido, com voz que se esforçava por fazer soar com naturalidade eu preparo o copo de água com açúcar... Trata da tua tia.
Tirou a garrafa das mãos da mulher e encheu um copo de água. Virando-se um pouco, despejou em seguida o pequeno frasco de arenito e introduziu um pedaço de açúcar.
Enquanto isso, Teresa abaixara-se diante do bufê; pegara na faca de cozinha e procurava fazê-la deslizar para uma das grandes algibeiras que lhe pendiam da cintura.
Nesse momento, a sensação estranha que previne da aproximação de um perigo, fez ambos voltarem a cabeça num movimento instintivo. Olharam-se. Teresa viu o frasco nas mãos de Laurent e este apercebeu-se do reflexo branco da faca que brilhava por entre as pregas da saia de Teresa. Examinaram-se, assim, durante alguns segundos, mudos e frios, o marido junto da mesa, a mulher curvada diante do bufê. compreendiam. Cada um deles ficou gelado por encontrar o seu próprio pensamento no pensamento do cúmplice. Ao lerem mutuamente o seu secreto desígnio, nos rostos conturbados, tiveram piedade e horror.
Sentindo que o desenlace estava próximo, a senhora Raquin olhava-os fixa e penetrantemente.
E bruscamente Teresa e Laurent romperam em soluços. Uma crise suprema venceu-os, lançando-os nos braços um do outro, frágeis como crianças.
Ambos tiveram a sensação de que algo de doce e de terno lhes despertava no peito. Choraram, sem falar, pensando na vida enlameada que tinham levado e que continuariam a ter, se fossem suficientemente covardes para continuarem a viver. Então, sob a recordação do passado, sentiram-se tão cansados e repugnantes de si próprios que experimentaram uma necessidade imensa de repouso, de vazio. Trocaram um derradeiro olhar, um olhar de agradecimento à vista da faca e do copo de veneno.
Teresa pegou no copo, bebeu metade e estendeu-o a Laurent que o esvaziou de um trago. Foi um relâmpago. Tombaram um sobre o outro, fulminados, encontrando finalmente a consolação na morte. A boca da mulher foi de encontro ao pescoço do marido, na cicatriz que tinham deixado os dentes de Camilo.
Os cadáveres ficaram toda a noite no chão da sala de jantar contorcidos, espojados, sob os clarões amarelados da luz que o candeeiro projetava sobre eles.
E durante quase 12 horas, até ao meio-dia seguinte, hirta e muda, a senhora Raquin contemplava-os a seus pés, sem conseguir afastar os olhos, esmagando-os com olhares pesados.
Emile Zóla
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