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TERMINAIS / Roderick Gordon & Brian Williams
TERMINAIS / Roderick Gordon & Brian Williams

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Anteriormente, em Espirais...
Will e Drake souberam por Eddie, o ex-Limitador, que a raça Styx está entrando na Fase, um estágio em seu ciclo de vida que ocorreu apenas duas ou três vezes ao longo do milênio. Uma nova Fase implicaria a produção acelerada de um exército de Limitadores da Classe Guerreira Styx, que abriria caminho para a população da Crosta com consequências catastróficas para o país.
O pai de Drake, Parry, monta uma operação militar para destruir um depósito em que está acontecendo a Fase. Acredita-se que todas as mulheres Styx foram eliminadas e que a Fase foi evitada, até que um vídeo de segurança em um disco rígido revela que duas conseguiram escapar da rede. Uma das mulheres, Hermione, permanece na Crosta da Inglaterra, enquanto outra, Vane, viaja ao mundo interior. Cada uma delas pretende recomeçar a Fase, embora não se possa garantir de maneira nenhuma um resultado de sucesso.
Essa é boa notícia.
A má notícia é que a mitologia Styx fala de um possível segundo ciclo de reprodução, efetivamente uma proteção para a impossibilidade da Fase. Isso teria implicações ainda piores para a raça humana, uma vez que seriam desovados os Armagi, feras bem mais mortíferas, capazes de se adaptar rapidamente a diferentes ambientes e de se regenerar de ferimentos.
Enquanto Will e a equipe se reagrupam para planejar o próximo movimento, Danforth pensa em seu próprio plano para se bandear para os Styx. Mas, ao agir, provoca a morte dos pais de Chester e sepulta todos no Complexo, a fortaleza governamental de Parry no fundo de uma montanha da Escócia.
Quando a equipe enfim consegue escapar do Complexo, Parry e Eddie continuam na Crosta com integrantes da Velha Guarda e ex-Limitadores de Eddie, tendo como missão localizar e matar Hermione. Prevendo que a irmã, Vane, tentará usar a população da Nova Germânia como hospedeira da nova Fase, Drake leva Will, Elliott, Sweeney e o coronel Bismarck em uma missão ao mundo interior. Sua tarefa é lacrar com explosões nucleares a passagem dos antigos e o poro, os dois únicos meios de entrar e sair do mundo interior.
Porém, antes que os dispositivos possam ser detonados, Drake e sua equipe são surpreendidos no poro por Vane, Rebecca Um e um esquadrão de Limitadores.
O coronel Bismarck morre baleado pelos Limitadores, mas, no decorrer da luta, a ajuda aparece de onde menos se espera. Para a surpresa de Drake e dos outros, Jiggs os seguiu ao mundo interior e agora entra em ação. Ele corta a garganta de um Limitador, depois impede a fuga de um segundo, jogando-o no poro com ele. Drake é obrigado a fazer o mesmo com a gêmea Styx, mas ainda consegue detonar remotamente a bomba nuclear enquanto cai para o cinturão de gravidade zero.
Sweeney perde a vida porque está perto demais do pulso eletromagnético da explosão nuclear, e isso frita os circuitos de sua cabeça. Enquanto cai no chão, ele quebra um tubo de ensaio no bolso e, sem querer, libera um vírus letal obtido na Cidade Eterna que elimina não só cada ser humano e Styx presente no mundo interior, mas praticamente todas as outras espécies. Will e Elliott sobrevivem ao vírus porque foram vacinados contra ele, mas agora estão presos no "Jardim do Segundo Sol" do dr. Burrows, aparentemente sem ter como voltar à Crosta.
E, na superfície, em um remoto chalé no litoral de Pembrokeshire, o Velho Wilkie e sua neta Stephanie cuidam de Chester, que tenta lidar com a morte dos pais.
Embora a Fase tenha sido evitada no mundo interior, os esforços de Hermione na superfície geraram frutos, e os mortais Armagi foram desovados.
Esta última parte da série Túneis retoma a história nos minutos antes da explosão nuclear no poro, enquanto Jiggs luta pela vida...

 


 


Prólogo

A batalha terminaria com um deles morto.

Mãos agarrando pulsos, braços firmes como cabos de metal, músculos sacudindo-se do esforço extremo.

Eles lutaram e resistiram, homem e Styx, testando-se vezes sem conta, suas lâminas refletindo o sol bem acima, que diminuía cada vez mais à medida que os dois prosseguiam
em sua queda.

Os lábios do Limitador estavam repuxados para trás, e os dentes, arreganhados enquanto ele praguejava na língua Styx, mas Jiggs estava em completo silêncio.

Eles ficaram presos num combate mortal desde o primeiro instante em que Jiggs derrubou o Limitador para o vazio com ele. O Styx perdera antes seu longo fuzil com
um pontapé de Jiggs em sua mão, mas, num piscar de olhos, sacou a foice. De qualquer modo, num combate corpo a corpo, uma arma branca sempre seria de sua preferência.

Sem o elemento surpresa para ajudá-lo, Jiggs sabia que não seria fácil despachar o segundo Limitador. O primeiro foi apanhado desprevenido enquanto o golpe perfeito
com uma faca de combate cortou sua jugular. O Limitador morreu com uma careta, ainda se perguntando como o magro barbudo conseguiu aparecer do nada.

E agora Jiggs caía no abismo contra o segundo soldado Styx, numa exibição acrobática macabra. A intenção assassina dos dois uniu ambos como correntes porque nenhum
deles queria soltar a mão do outro, o que significaria a morte imediata. E assim a luta prosseguiu, ambos os adversários sabendo que não haveria intervenção de um
camarada, nem o alívio da topografia, porque havia apenas os dois e o ar acelerado.

Fisicamente, eles estavam em pé de igualdade: ambos tinham aquela força de músculos resistentes e afiados pelos anos de serviço, Jiggs nas selvas do mundo, onde
foi enviado para missões solo de reconhecimento, e o Limitador em suas longas incursões às Profundezas.

Mas, pouco a pouco, o Limitador começava a ganhar alguma vantagem. Parecia ter reservas de energia que iam muito além das de qualquer humano. Enquanto os dois se
engalfinhavam, girando em lentas espirais pelo ar, ele conseguiu prender as pernas de Jiggs nas dele, em uma tesoura. E agora que Jiggs foi apanhado nesse bloqueio
inflexível, o Limitador usava toda sua força, pressionando as costas do adversário. Jiggs sentia que sua coluna começava a se esticar - não sabia o quanto mais poderia
resistir.

E a foice curva e cruel se aproximava cada vez mais de seu pescoço.

O sol ficava cada vez mais remoto, e as sombras começavam a se fundir quando Jiggs pegou uma rajada de cor pelo canto do olho. Como o vazio tinha formato cônico,
a possibilidade de bater nas laterais aumentava quanto mais eles caíam, o que não escapou da percepção precisa de Jiggs - ele teve um vislumbre do gradiente de 45
graus coberto com um resíduo marrom-escuro de vários meses, que o dr. Burrows dissera ser uma espécie de betume de ocorrência natural.

Jiggs sabia que uma colisão com a lateral poderia ser sua salvação - ele estava perdendo e precisava arrumar algum espaço para respirar. E rapidamente.

E então eles se chocaram no declive, rolando um sobre o outro e tombando num caos, rapidamente se revestindo do pegajoso betume. Devido à acentuada redução na gravidade
naquela profundidade do vazio, eles não caíram exatamente pelo declive, mas quicaram por ele, do mesmo jeito que um seixo é carregado pelo leito de um rio.

"Isso!", pensou Jiggs enquanto o Limitador afrouxava a chave em suas pernas.

E então eles entraram em um trecho do declive coberto de árvores atrofiadas, tombando ao lado delas, os ramos batendo em seus rostos, e a luta cada vez mais confusa
à medida que se esforçavam para manter o outro em xeque.

Rolando de uma pequena escarpa, eles se viram jogados novamente no ar.

Parecia que as defesas de Jiggs vacilavam, como se seus braços estivessem cedendo. O Limitador aproveitou a oportunidade. Torcendo a parte superior do corpo, jogou
a foice no pescoço de Jiggs em um esforço feroz.

Embora Jiggs tenha conseguido se desviar, a ponta da foice o pegou na clavícula. O tecido do traje de combate rasgou, mas ele teve a felicidade de a alça da Bergen
no ombro impedir maiores danos em seu corpo.

De qualquer forma, o Limitador tirara sangue. Acreditando que a batalha tivesse virado a seu favor, de imediato partiu para um segundo golpe no pescoço do adversário.

Exatamente o que Jiggs esperava.

Ele deixou que o Limitador tivesse sua pequena vitória porque vira o que se aproximava rapidamente.

E, exatamente como pretendia Jiggs, o Limitador estava tão distraído que não viu o afloramento rochoso imenso em que estavam prestes a bater enquanto gravitavam
mais uma vez para a lateral.

Na última hora, Jiggs arqueou o corpo, controlando o voo dos dois. Ambos bateram na pedra.

Com um estalo ressonante, o crânio do Limitador absorveu o impacto em cheio. Seu corpo ficou frouxo - teria poucos segundos para se recuperar, mas Jiggs não permitiria
que isso acontecesse.

Ele cravou a faca de combate no peito do Styx, pouco abaixo da clavícula.

Desprendendo-se do Limitador sem vida, Jiggs não teve tempo de desfrutar de sua vitória. Só tinha um pensamento; sabia que já estava bem abaixo do dispositivo nuclear
que Drake e Sweeney prenderam na lateral do vazio e prepararam para a detonação remota. Sabia que tinha de abrir a maior distância possível entre si e o dispositivo.

Antes que ele explodisse.

Jiggs não se sentiu culpado por salvar a própria pele. Não havia nada que pudesse fazer por Will e os outros no alto do poro - agora ele estava longe demais para
ajudá-los.

Pegando o foguete propulsor no bolso lateral da Bergen, ele girou a válvula para ter aceleração total e, apontando para trás, disparou. Uma chama azul brotou da
extremidade da unidade de propulsão e ele partiu como fogos de artifício.

À velocidade estonteante em que viajava, ele saiu do vazio em questão de segundos e disparou para a imensa caverna além dele, interminável como o céu noturno. Embora
ainda estivesse a muitas centenas de quilômetros de distância deles, sua trajetória o levava diretamente para os corpos suspensos de água atrás dos quais bruxuleavam
luzes etéreas. Jiggs já testemunhara essa iluminação na primeira parte da jornada ao mundo interior e sabia que era produzida por triboluminescência no Cinturão
de Cristal, onde grupos de cristais do tamanho de montanhas entravam em atrito como uma espécie de máquina de moto-perpétuo. E isso também gerava o ronco que enchia
seus ouvidos. Mas, naquele exato momento, Jiggs não se importava com seu destino - só precisava se distanciar do raio da explosão.

Com o propulsor ainda em aceleração total, ele se preparou para a explosão, contando os segundos. Contou até chegar a um minuto inteiro, depois dois, em seguida
três. A essa altura ele parou, perguntando-se se Drake e a gêmea Rebecca ainda estavam se enfrentando em alguma espécie de impasse ou mesmo se eles concordaram com
uma trégua, por mais improvável que fosse. Talvez, afinal, não houvesse explosão nenhuma.

E então o dispositivo atômico foi detonado.

O barulho sacudiu cada osso de seu corpo, e ele se preparou para a primeira onda da bomba de um quiloton - a explosão de luz e o calor abrasador. Sabia que não devia
olhar, certificando-se de que a cabeça ficasse bem baixa e os olhos, protegidos pelo braço. O calor em suas costas era tão intenso que ele chegou a pensar que a
Bergen e as roupas se incendiariam.

Jiggs não teve tempo para se preocupar porque a onda de choque o alcançou. A muralha de ar comprimido parecia precisamente o bater da mão de um gigante, empurrando-o
com tal ímpeto que ele mal conseguiu respirar. Veio-lhe a lembrança da primeira vez que foi a uma montanha-russa, quando criança; a sensação de queda a uma velocidade
vertiginosa era idêntica, mas parecia que este passeio não tinha fim.

Atrevendo-se a tirar o braço da cara enquanto acelerava, ele teve um breve vislumbre da torrente de luz da explosão ricocheteando e refletindo-se nos cantos distantes
da imensa câmara à sua frente. Uma área inteira se iluminava e era tão vasta e interminável que ele teve vertigem. As massas cintilantes de água e as esferas de
cristal gargantuescas eram reveladas em toda a glória - talvez como nunca antes em seu lugar secreto nas profundezas do planeta.

E o que não fazia sentido algum, desde o instante em que foi erguido o véu da escuridão, era que ele podia jurar que a linha de esferas de cristal era extraordinariamente
regular, como se não fosse simplesmente um artefato da natureza. E também havia algo curioso no trecho de parede da caverna que ele vira rapidamente através da névoa
a uma distância extrema - parecia ser marcado por grades de linhas ou seções em relevo representando alguma coisa.

- Componha-se! - grunhiu ele para si mesmo. Devia haver uma explicação racional... os desenhos que ele notara talvez se devessem às correntes de ar superaquecidas.
Ou era isso, ou a onda de choque da explosão alterara temporariamente sua visão.

E foi uma explosão dos diabos. Ele espiou por sobre o ombro, localizando rapidamente o brilho vermelho e opaco que marcava o ponto zero. Onde antes estivera o vazio,
a pedra derretera em uma imensa rolha de silicato e lacrou completamente a entrada para o mundo interior, exatamente como Drake havia previsto.

- Meu Deus! - exclamou Jiggs, encolhendo-se enquanto uma pedra em brasa disparou a menos de três metros dele. Seguiram-se mais desses mísseis, e ele percebeu que
era um desmoronamento da explosão, como uma chuva de meteoros mínimos. Mas a principal barragem tinha acabado logo depois de começar, e ele estava bem longe dela
para não sofrer um risco sério.

Embora não houvesse "alto" ou "baixo" nesse lugar, Jiggs não precisava de seu refinado senso de orientação para dizer que a explosão o mandara para o lado errado.
Ele verificou sua posição em relação ao Cinturão de Cristal. Para ter alguma esperança de navegar de volta à superfície, precisava encontrar a boca do segundo vazio,
chamado de Jean Fumarenta, que eles usaram em sua jornada ao mundo interior. Ele tentou usar o propulsor para ajustar a rota de voo, mas tal era sua velocidade que
pouca diferença fizeram os vários minutos com o dispositivo de propulsão em aceleração total.

Mas ele não tinha alternativa senão insistir, se quisesse voltar para casa, e assim continuou usando o propulsor, o tempo todo tendo como ponto de referência sua
posição contra o local ainda reluzente da explosão.

Foi quando ele notou algo curioso. Um raio de luz verde apareceu ao longe, depois desapareceu. Jiggs se perguntava se sua visão estava novamente lhe pregando uma
peça quando, vários segundos depois, veio um segundo raio, dessa vez amarelo.

- Sinalizadores? - perguntou-se Jiggs em voz alta.

Da equipe, apenas ele, Sweeney e Drake carregavam sinalizadores de determinadas cores. O verde era um sinal para dirigir-se a um ponto de encontro de emergência,
enquanto o amarelo significava que o emissor precisava de ajuda - na realidade, era um sinal de problemas. Enviar os dois ao mesmo tempo não fazia sentido algum.

Jiggs franziu a testa, refletindo brevemente sobre a possibilidade de que algo no cadáver errante do Limitador que ele havia matado tivesse se acendido na explosão.
Mas era muito improvável que acendessem naquelas exatas cores. Não. Jiggs rapidamente concluiu que tinha de ser Drake, Sweeney ou um dos outros. Mas quem?

Ele sabia que os sinalizadores devem ter sido ativados com o calor intenso, e assim não tinha sentido mandar um contrassinal. Quem quer que fosse, tinha de estar
com problemas.

Ele não pensou duas vezes no que deveria fazer.

- Nunca deixamos ninguém para trás - disse Jiggs, já se colocando em um novo curso para cruzar com a localização do integrante, ou talvez integrantes, de sua equipe.
Havia propelente suficiente nos tanques do propulsor para o desvio, com isso ele não se preocupava. Sua principal preocupação era errar o alvo da aceleração, que
a rota de voo por fim o levasse às imensas massas suspensas de água ou para além delas, dentro do Cinturão de Cristal. Mas na tela preta interminável desse espaço
imenso, interrompida apenas pela luz abafada e bruxuleante, era o equivalente a procurar uma agulha em um palheiro à meia-noite.

Pegando seu monoscópio de intensificação de luz, ele o colocou na cabeça e ajustou para os níveis de luz ambiente. Embora Drake tenha tentado ao máximo fazê-lo adotar
uma das lentes de sua autoria, Jiggs insistiu firmemente em sua mira noturna de fabricação soviética. A eletrônica podia ser primitiva se comparada ao projeto de
Drake, mas ele a usara por duas décadas de serviço ativo e sabia consertá-la em campo se desse algum defeito.

Mas agora só o que Jiggs via por seu monoscópio era um pedaço após outro de pedra em movimento lento, lançado pela explosão. Então finalmente localizou algo que
parecia mais promissor e por alguns segundos continuou a rastreá-lo pela mira. Estava mais distante do que esperava, mas ainda assim Jiggs virou o propulsor para
encontrá-lo, rezando para que não fosse outra pedra itinerante.

Enfim se dirigiu a uma trajetória paralela, depois estreitou a distância dosando o acelerador em breves impulsos. Mais detalhes foram distinguidos pelo monoscópio,
e ele se encheu de esperanças quando viu o que parecia ser alguém da equipe, pela Bergen e o foguete propulsor na ponta de um rabicho. Com uma última explosão de
velocidade, aproximou-se o suficiente para apreender o que era a forma que vagava. Segurou a Bergen, que em certos lugares ainda pegava fogo, depois virou o corpo
para si.

- Meu Deus! É você, Drake! - exclamou.

Mas não era apenas Drake - havia mais alguém com ele, embora a segunda pessoa estivesse tão ferida que fosse quase irreconhecível.

Para começar, Jiggs se concentrou em Drake. Mesmo com um exame superficial, ele sabia que o amigo estava em péssimo estado. Trechos de sua farda foram completamente
arrancados, e a carne por baixo estava escura e calcinada. Faltava-lhe parte do cabelo, e sua cabeça estava coberta de bolhas vermelhas e inflamadas, que desciam
da coroa para a face. Jiggs procurou a pulsação no pescoço - encontrou, mas era muito fraca. Ele devia estar próximo da bomba quando foi detonada, o que explicava
por que se deslocava com tal velocidade. E provavelmente também significava que tinha sido banhado na radiação.

E então Jiggs passou à segunda pessoa, girando a cabeça para ver suas feições.

Era Rebecca Um.

Drake evidentemente empregara a mesma tática de Jiggs e a arrastara para o vazio a fim de impedir que fugisse. Depois os dois se envolveram numa luta, o que explicava
por que ela estava enrolada em uma corda presa à lateral da Bergen de Drake.

Jiggs não se incomodou em procurar a pulsação da menina. Seu corpo estava tão queimado que não havia dúvida de que a gêmea Rebecca estava morta.

- Rá! Vítima da moda! - observou ele, porque parte de seu casaco esfarelou ao toque. - É o que acontece quando se usa preto perto de uma explosão nuclear - acrescentou
ele sem qualquer resquício de solidariedade.

Ele tinha razão - a superfície não reflexiva do casaco Styx preto e fosco fizera um trabalho admirável absorvendo o pulso de calor e luz. E seu braço, enquanto Jiggs
tentava desvencilhá-lo da corda, estalou como se fosse de carvão. Ele via que, dos dois, ela levou a pior. Na realidade, ela deve ter ajudado Drake, protegendo grande
parte do corpo dele da explosão.

Rapidamente, Jiggs procurou alguma coisa útil no corpo da gêmea, mas, além de alguns objetos nos bolsos do cinto, era difícil saber o que era ela e o que eram os
restos de suas roupas incineradas. Tudo se fundiu com o calor.

Por um momento Jiggs olhou simplesmente o corpo esguio de Rebecca Um. Para alguém tão novo, ela foi responsável por muito sofrimento.

- Você não merece ter últimas palavras - rosnou ele, jogando-a sem a menor cerimônia na escuridão.

Jiggs verificava o pulso de Drake novamente quando o ouviu tentar falar alguma coisa, embora fosse pouco mais do que um murmúrio.

- Pegue leve, meu velho. Aguente aí. - Jiggs tentou reconfortá-lo, sendo obrigado a gritar devido ao barulho do Cinturão de Cristal. Soltou o kit médico do cinto,
pegando uma seringa de morfina. - Algo para a dor - disse ele a Drake enquanto pressionava a seringa contra a coxa ferida do homem.

Foi só então que Jiggs sentiu a umidade no rosto e levantou a cabeça rapidamente. Acostumara-se tanto a rolar a uma alta velocidade pelo ambiente de baixa gravidade
que esqueceu completamente que ele e Drake ainda estavam em movimento.

- Não! - Jiggs só teve tempo de gritar quando eles mergulharam em um imenso glóbulo de água. Embora Jiggs não tivesse a oportunidade de estimar seu tamanho, tinha
cerca de seis metros de diâmetro. Pelo menos, antes de eles o atingirem.

A aceleração dos dois era tal que a esfera se desintegrou em milhares de gotas menores. E então havia mais dessas megagotas suspensas de todos os lados no caminho
de Jiggs. Tossindo a água que havia aspirado, ele ao mesmo tempo tentou proteger o rosto de Drake, desviar-se das gotas maiores e ativar o propulsor, que tomara
tal banho que tinha se desligado.

Enquanto tentava proteger Drake de outra imersão, os pés de Jiggs roçaram a circunferência de uma gota do tamanho de uma casa - esta não se rompeu, balançando-se
como gelatina gigante.

- Surfe espacial! - exclamou Jiggs ao conseguir ligar o propulsor, procurando freneticamente algum espaço desocupado no ar. Precisava de um lugar seguro para parar
e administrar os primeiros socorros urgentes a Drake.

Numa área aberta de gotas menores, ele distinguiu uma forma angulosa e conhecida.

- Mas o quê...? - gritou. Não conseguia compreender o que via. Tentou usar o propulsor para alcançá-la, mas errou o alvo e teve de voltar. Enquanto disparava para
mais perto, conseguiu confirmar a primeira impressão.

Era um Short Sunderland - um hidroavião que saíra de serviço regular quase cinquenta anos atrás e ultimamente poderia ser encontrado num museu da aviação. Era uma
aeronave de porte, capaz de carregar uns bons vinte e quatro passageiros. Uma asa fora arrancada e o cockpit estava muito danificado, mas o resto da fuselagem parecia
intacto, com exceção de alguns buracos na parte da cauda.

Ainda sem acreditar no que via, Jiggs manobrou enquanto se lembrava do submarino russo na Jean Fumarenta e o que o próprio Drake dissera sobre os poros se abrirem
para a superfície de vez em quando. Assim, seria possível que um golpe do destino fosse o motivo para que aquele hidroavião também fosse sugado para o espaço interior?

Grande parte da tinta branca ainda estava na fuselagem, embora fosse manchada por trechos de ferrugem, em particular perto dos rebites. E longos filamentos de uma
espécie de alga preta tinham se ancorado em agrupamentos por todo o exterior, ondulando nas correntes de ar como fios de cabelo pretos e finos.

Alcançando o grande flutuador debaixo da asa remanescente, Jiggs se escorou nele, depois, com um impulso das pernas, guiou-se até uma porta em que estava escrito
em estêncil Saída de emergência. Puxou a maçaneta. Ela se recusou a se abrir, então ele usou a pistola para atirar na tranca e nas dobradiças. Com outro puxão, a
porta saiu numa explosão de ferrugem. Jiggs deixou que flutuasse para longe e entrou na aeronave com Drake.

Apesar de as janelas, por incrível que pareça, não estarem quebradas naquela parte do hidroavião, tudo dentro dele estava molhado - o tecido dos bancos e o carpete
se encontravam quase completamente apodrecidos e cobertos de um musgo cinzento. Em uma das filas, Jiggs viu dois esqueletos. Seus braços ossudos estavam entrelaçados,
e, pelo jeito como os crânios se tocavam, não havia dúvida de que estiveram num abraço final no momento de sua morte.

- Eu teria feito o mesmo - confidenciou-lhes Jiggs.

Mas ele não tinha tempo para examinar o que mais havia ali, então deitou Drake delicadamente no chão e preparou-se para cuidar dele. As emergências no campo de batalha
não eram novidade nenhuma para Jiggs. Tirando a Bergen de Drake e removendo o propulsor preso a sua cintura, catalogou metodicamente as áreas que precisavam de atenção.
Tendo percorrido cada braço e perna de Drake e depois seu tronco, rapidamente encontrou o ferimento no ombro.

- Não é uma queimadura. É um ferimento à bala - murmurou consigo mesmo, depois olhou para as marcas na cabeça de Drake e as áreas queimadas em seu traje de combate,
que precisavam ser cuidadosamente removidas para avaliar os danos ao tecido por baixo. - Mas este deve ser o menor de seus problemas.

Ele passou os olhos pela cabine enquanto verbalizava suas preocupações.

- Trauma grave de queimaduras de terceiro grau... Alto risco de infecção neste ambiente séptico... E, a não ser que haja algum suprimento aqui, só tenho meu kit
médico para trabalhar. - Ele arregaçou as mangas. - Eu vou, eu vou - sussurrou melancolicamente. - Ao trabalho, agora eu vou.

Drake poderia ter alguma esperança de sobreviver e, pelo menos, estava em mãos capazes. Jiggs era altamente competente em medicina de campo. Em alguns lugares a
que fora enviado - em geral no meio do nada -, ele sempre era chamado para usar suas habilidades e acabava salvando quem estivesse por perto e até a si mesmo.

Mas agora Jiggs percebeu que seu paciente parara de respirar de repente.

- Não, você não pode, meu velho. Não vai morrer agora. - Ele se curvou e fez uma respiração boca a boca em Drake. - Hoje não - disse, começando a massagear seu peito
para que o coração voltasse a bater. - Não sob meus cuidados.

 

PARTE UM

Sequelas

 

Capítulo Um

 

- Shraaac!

O pequeno crânio se abriu debaixo da bota de Will, o som oco ressoando pela rua vazia da Nova Germânia. Will não via por onde andava ao seguir pela calçada e não
notou o esqueleto diminuto estendido na sarjeta.

- Ai... Meu... Deus... Do... Céu. - Will engoliu em seco ao passar por cima do esqueleto, que era de uma criança. Embora restasse muito pouco tecido cerebral dentro
do crânio, a visão daquela caixa vazia era horripilante. O clima do mundo interior, com seu sol sempre ardendo, não podia ser mais favorável aos exércitos de moscas
vorazes, que tinham retirado a carne dos esqueletos humanos em questão de semanas. Mais precisamente, oito semanas. E a retiraram com tal eficiência que o fedor
de decomposição que antes pendia sobre a cidade morta desaparecera quase completamente.

Em toda parte, Will percebeu que havia ossos embranquecidos pelo sol, projetando-se principalmente de roupas amassadas. Como o vírus também matou todos os mamíferos
que normalmente procuravam comida entre os restos, os corpos ficaram intocados, permanecendo exatamente onde caíram.

Intocados, a não ser pelas aves carniceiras. As espécies aviárias foram poupadas pelo vírus, e, um pouco mais além na rua, Will localizou dois corvos grandes num
cabo de guerra por cima de algo ao lado de um chapéu descartado. Só se deram ao trabalho de se mexer quando ele quase pisou neles.

- Saiam da frente! - gritou Will, apontando o pé para eles. Batendo suas asas pretas e gordurosas e soltando gritos feios, eles cautelosamente partiram para o ar.

Will viu o motivo da briga entre os corvos. No asfalto, havia um globo ocular humano, tão desidratado e descolorido que parecia uma ameixa podre.

Ele não conseguiu desviar os olhos do globo ocular, que o encarava acusadoramente, o nervo ótico esfarrapado se estendendo como uma cauda, como se fosse uma nova
espécie de animal.

- Isso está tão errado - sussurrou Will, de repente dominado por todos os sinais da morte à sua volta. Claramente, as pessoas deixaram suas casas aos milhares para
se reunirem no centro da cidade, onde sucumbiram ao vírus. Devem ter torcido desesperadamente para que o governo pensasse em algo que os salvasse da doença que podia
causar a morte em apenas vinte e quatro horas.

- Ei, pateta, o que foi? - gritou Elliott. Ao ver que Will não a havia seguido para dentro da grande loja de departamentos, ela reapareceu pelo vidro espatifado
de uma das portas.

- Nós fizemos isso - conseguiu responder. - Somos os culpados por tudo isso.

- Nunca pensamos que chegaria a esse ponto. - Elliott olhava os corpos.

É claro que Will sabia que Elliott tinha razão; Sweeney deve ter quebrado por acidente o tubo de ensaio que Drake lhe dera. Nunca foi a intenção dele liberar o vírus
letal. Mas isso não fazia Will se sentir melhor a respeito do que via.

Elliott deu de ombros.

- De qualquer modo, eles estavam condenados. A maioria foi submetida à Luz Negra. Mais cedo ou mais tarde, teriam acabado como hospedeiros ou comida para a Fase.
- Ela ficou em silêncio por um momento. - Talvez seja melhor assim, Will. Talvez tenhamos feito um favor a eles.

Ele começou a andar em direção a ela, a cabeça meneava lentamente.

- É difícil acreditar nisso.

Assim que eles estavam dentro da loja, Will parou para olhar a fonte - um grande golfinho de bronze no meio de um espelho d'água circular instalado no piso de mármore.
Embora a água havia muito tempo tivesse parado de jorrar da boca do golfinho, a fonte e o piso de mármore polido davam a impressão da riqueza inacreditável de um
passado distante na crosta.

- Esta era uma loja e tanto - comentou Will.

- Aquela gente claramente pensava assim - concordou Elliott, deixando Will espiar os cadáveres no chão, alguns com sacolas apinhadas de artigos ainda presas a seus
braços esqueléticos.

- Eles deviam saber que as coisas estavam ruins, mas mesmo assim pegaram o que puderam. - Ele cutucou uma das sacolas com o cano de sua Sten, e batons e cremes faciais
caros se derramaram dela. Ele riu, embora fosse um riso vazio. - Estavam roubando até maquiagem!

- Venha cá. Você precisa ver isso! - A voz de Elliott ressoou pelo imenso salão principal.

- Minha nossa - disse Will. Havia uma imponente estátua na extremidade do salão, e em cada lado dela duas escadas subiam para outros andares da loja. A estátua,
que tinha bem uns quinze metros de altura, era de uma mulher vestida de toga, exibindo orgulhosamente uma cornucópia de frutas.

Mas o que fez Will parar foi o imenso domo de vidro escurecido que servia de teto àquele ambiente. Assombrado, ele jogou a cabeça para trás, tentando ver tudo. Sem
ninguém ali para mantê-lo limpo, a sujeira trazida pelo vento já se acumulava nas bordas do domo e invadia o vidro, mas o efeito ainda era de tirar o fôlego.

Will baixou os olhos, vendo os outros andares mais para baixo, onde podia distinguir todos os diferentes artigos em exibição.

- Este lugar é gigantesco... Parece a Harrods ou coisa assim. Por onde começamos? - perguntou.

Ele foi a um balcão e limpou a camada de poeira da superfície para ver o leque de cachimbos de espuma do mar arrumados sobre um veludo amassado. Depois se curvou
sobre o balcão, examinando as vitrines atrás dele. As portas de vidro foram arrancadas e havia ali muitas marcas de cigarro de que ele nunca ouvira falar.

- Lande Moki Superb. Sulima. - Ele leu, passando os olhos pela fila de maços antiquados. - Joltams. Pyramide.

Depois notou um cadáver arriado junto à base da vitrine, vestido num terno risca de giz, com um maço ainda agarrado na mão ressecada.

- Tsc, tsc! - Will balançou o dedo. - Sabia que essas coisas podem te matar? - Ele repreendeu o cadáver.

- Podemos arrumar tudo o que precisamos aqui. - Elliott chamou de outro balcão, onde se servia de dois guarda-chuvas, objetos essenciais naquele mundo, onde o clima
tinha dois padrões: um sol ofuscante ou tempestades ferozes que desciam repentinamente. - Will, o que acha que tem por ali? - Ela indicou uma fila de portas pela
lateral do salão com placas no alto proclamando Lebensmittelabteilung.

- Só tem um jeito de descobrir - respondeu ele, já seguindo diretamente para o par mais próximo de portas e abrindo-as.

O fedor de comida podre já era bem nojento, mas o caos de moscas agitadas pela entrada de Will e Elliott teria impedido a maioria das pessoas de entrar. Mas não
Elliott.

- Será que há alguma coisa que podemos pegar? - perguntou ela, apesar de haver moscas por toda a praça de alimentação.

Enxotando as varejeiras que abundavam em seu rosto, Will teve vislumbres dos diferentes balcões de venda de queijo, comida e carne, suas vitrines antes refrigeradas
agora uma massa putrefata contorcendo-se de vermes. E o piso de ladrilhos brancos antes imaculados não só estava manchado de sujeira, mas também tomado dos restos
de ratos mortos. Evidentemente eles pensaram ter conseguido algo bom até que o vírus também deu cabo deles.

- Ah, meu Deus, vamos sair daqui! - gritou Will, enxotando freneticamente as moscas.

- Mas tem comida enlatada por al... - gritava Elliott e apontava quando uma mosca disparou diretamente para sua boca.

- De jeito nenhum. Podemos conseguir nossos suprimentos em outro lugar - insistiu Will, enquanto ele e Elliott cambaleavam pelas portas, que se fecharam, isolando-os
do fedor e dos insetos. A não ser por aquele alojado no fundo da garganta de Elliott.

- Mosca. - Ela ofegou, apontando a própria boca. Tossia e fazia o barulho de um gato que tentava expulsar uma bola de pelos.

Ela estava tão cômica que Will teve de rir.

- É gostosa? - perguntou ele. E então, sem conseguir se conter, curvou-se numa gargalhada. Isso não divertiu nem um pouco Elliott, com o rosto vermelho de tanto
tossir.

- Não é engraçado, idiota. - Ela conseguiu falar em meio a toda aquela tosse. Depois engoliu ruidosamente e fez uma careta. - Eca. Acho que engoli.

- Bom, você disse que precisávamos de mais carne em nossa dieta - provocou Will.

E então ela também estava rindo, tossindo e jogando a coronha de seu rifle longo em Will enquanto ele recuava, fingindo ter medo do ataque.

- Ei, mulher-aranha, cuidado com isso, hein? - gritou ele, mais uma vez dando um passo de lado, conseguindo evitar o rifle.

De imediato Will se deu conta do que disse. Eles tiveram a infelicidade de conhecer Vane, uma das mulheres Styx, quando caíram numa emboscada no alto do poro.

Nem os próprios Styx sabiam o motivo, mas de alguma forma o mundo interior tinha dado energia a Vane, permitindo que ela recomeçasse a Fase. E não apenas isso; permitira
também que ela produzisse as larvas da Classe Guerreira Styx em um número fora do comum. Mas, como consequência, Vane começara a se assemelhar a um aracnídeo pavorosamente
inchado. E, dado o parentesco de Elliott, não era de admirar que ela ficasse um tanto incomodada sempre que esse assunto era levantado, a tal ponto que Will raramente
o discutia com ela.

Elliott estava imóvel, com o rifle ainda no ar e uma expressão endurecida.

- O que foi que você disse?

- Eu... Eu... Isso... Saiu sem querer - balbuciou Will. Ele deu um passo apressado para trás enquanto a expressão de Elliott se enchia de fúria.

- Mulher-aranha? - rosnou ela. - Só porque tenho sangue Styx, não significa que de repente vou me transformar em um daqueles monstros.

- Eu sei. Desculpe.

Elliott abriu um sorriso.

- Te peguei!

Apesar de aliviado por não tê-la chateado de verdade, o menino virou-se e afastou-se.

Elliott ergueu o braço diante do rosto e o mexeu numa imitação de um dos ovopositores que serpenteavam saindo da boca de Vane.

- Aonde você vai, humano suculento? - gritou ela atrás de Will. Numa gargalhada, ela o perseguiu, Will também ria, disparando por entre os balcões da loja na direção
da escada no final do salão.

Gritando e correndo juntos, eles eram as únicas duas pessoas vivas naquela loja de departamentos antes movimentada, agora contendo nada mais do que os sonhos dos
habitantes mortos da metrópole.

No patamar do primeiro lance da escada, eles pararam para avaliar o que podiam ver à sua volta, ainda rindo.

- As roupas estão por ali - disse Will, vendo os manequins, muitos derrubados pelos saqueadores. - Quer um vestido novo?

- Não nesta excursão - respondeu Elliott, tentando decifrar o guia na parede para os vários andares. - Só o essencial. Uns lençóis e toalhas novos seriam um bom
começo.

- Que tédio - murmurou Will, mas ainda assim foi atrás de Elliott, que subia a escada para o terceiro andar.

- Isso me parece promissor - anunciou a menina.

- Sim. Móveis para o lar - disse Will numa voz que, em sua memória, não diferia muito da de tia Jean.

Eles começaram a explorar os diferentes corredores, vagando por conjuntos de sofás e poltronas, todos em tecidos iguais, arrumados em volta de mesas com vasos de
flores murchas.

Elliott percebeu que em uma extremidade daquele andar foram empilhados vários tapetes persas, ou estavam pendurados nas paredes como uma espécie de bazar oriental.

- Travesseiros. - Will apontou outra área. - Acho que precisamos ir até ali.

Enquanto se virava para ver o que ele indicava, o olhar de Elliott caiu em uma mostra de móveis para sala de jantar.

- Will. - Ela o avisou numa voz que mal passava de um sussurro, levando a arma ao ombro.

Eles contornaram as figuras muito retas, sentadas em volta de uma mesa coberta de poeira. Eram quatro, vestidas em trajes de combate cor de areia, seus rifles longos
aninhados no colo. E diante de cada um deles havia delicadas xícaras de uma refinada porcelana.

- Limitadores - disse Elliott.

- Limitadores mortos - acrescentou Will, mal conseguindo se obrigar a olhar seus rostos, a pele marcada deles havia secado e estava tão repuxada que mais do que
nunca parecia um marfim antigo e rachado. - Por que, de todos os lugares do mundo, tinham de morrer justo aqui? - perguntou Will.

Elliott deu de ombros.

- Talvez estivessem de patrulha quando o vírus os pegou. Será que não foram pegos desprevenidos?

- Certo, mas olhe para eles. Um chá para Limitadores? Isso não é muito esquisito?

Mesmo nos minutos finais de sua vida, eles estiveram perfeitamente controlados, escolhendo um lugar para dar seu último suspiro juntos, bebendo em xícaras de chá
a água que dividiram de um cantil. Seus olhos estavam fechados, e pelo menos na aparência havia poucos sinais de que foram tocados pelas moscas. Talvez os insetos
tivessem a mesma falta de entusiasmo de Will para se arriscar chegando perto demais.

- Devíamos pegar seus rifles e munição extra - sugeriu Elliott, já olhando com interesse o kit no cinto deles.

- Deixe isso para outra hora. Até parece que eles vão a algum lugar, né?

Mas Elliott não se deixou dissuadir e se aproximou do primeiro Limitador para vasculhar seus bolsos.

- Deixe de ser fresco, Will.

 

- Este filme foi feito por um antigo membro do Esquadrão D que mora nos arredores da cidade - disse Parry, enquanto se virava para as imagens vacilantes projetadas
ao lado, na parede de tinta branca descascando. Com seu teto abobadado, o porão estava lotado de soldados do Regimento 22 do Serviço Aéreo Especial, o SAS. - Foi
o primeiro filme em que conseguimos pôr as mãos mostrando os Armagi.

Parry deu um passo de lado para que a plateia reunida pudesse ver com clareza a cena dos arredores de uma cidade.

- Isso aconteceu no fim de semana em Kent. Primeiro temos incêndios pelo perímetro. - A câmera mostrava uma panorâmica louca de um prédio em chamas após o outro.
- Mais provavelmente foram ateados por um grupo avançado de Limitadores para expulsar as pessoas dos prédios e as encurralar no centro da cidade... prontas para
a segunda fase. - Passaram-se vários segundos em que a câmera ainda localizava os incêndios que ardiam.

- O que estamos procurando agora? - perguntou alguém.

- Observem o espaço aéreo da cidade - respondeu Parry.

O cinegrafista foi meio lento para perceber o que acontecia. Mas era preciso olhar bem porque, embora anoitecesse e a luz diminuísse, não era fácil localizar os
múltiplos objetos que desciam no meio da cidade. As formas aladas eram quase transparentes ao caírem do céu a uma velocidade inacreditável.

- Estes são os Armagi - disse Parry. - Centenas deles.

Murmúrios correram pela plateia enquanto alguém exclamava "Santo Deus!".

- Mas por que os Styx escolheram esse local para um ataque? Que valor estratégico teria para eles? - perguntou outra pessoa do fundo do porão.

Parry se virou para os homens.

- Não há dúvida de que a cidade foi um alvo escolhido a dedo... A estação de eletricidade de Medway, que abastecia uma grande área de Kent, fica um pouco ao norte.
Graças à proximidade da estação, para fazer o trabalho corretamente e esmagar qualquer resistência, eles precisavam atingir os dois alvos ao mesmo tempo.

Como que para enfatizar o argumento de Parry, houve uma imensa explosão de luz, que lançou os prédios da cidade em um relevo nítido por uma fração de segundo.

- E lá se foi a estação de eletricidade - disse Parry. - Como vocês sabem, esse não foi um incidente isolado. Recebemos numerosos relatórios de que os Styx abriram
caminho metodicamente pela periferia de Londres enquanto seguiam para a capital, selecionando serviços públicos, eixos de comunicação... Qualquer coisa que puder
anular a infraestrutura de nosso país.

- Então, escolhemos um possível alvo e esperamos que eles apareçam - sugeriu um soldado. - Depois faremos uma caça aos patos enquanto esses desgraçados descem na
terra.

- E arrancamos o couro deles - intrometeu-se um de seus camaradas.

- Ótima ideia - disse Parry, depois respirou fundo. - Sei que todos vocês pensam que são os maiores durões que já andaram pela face da Terra. - Alguns homens riram
enquanto Parry continuava. - Mas não subestimem esses organismos... Eles foram desovados da durona mais impiedosa do mundo. E aqui está ela...

A câmera deu um zoom instável em um ponto nos arredores da cidade, onde um pequeno grupo de figuras observava o ataque.

- Aqui vocês têm alguns Limitadores, mas se concentrem em quem está no meio. - Parry curvou-se para a frente, a fim de que a sombra de sua mão estendida caísse em
duas figuras. - A mais alta da dupla provavelmente é uma das mulheres Styx que escapou de nosso ataque ao depósito. Digo uma delas porque ainda não tivemos confirmação
da morte da segunda por meu filho, e não sei se outras foram geradas.

A câmera se aproximou ainda mais, a silhueta da mulher Styx estava contra as chamas, seus membros de inseto postados acima dos ombros.

- Então, esse é o baratão? - perguntou alguém na plateia enquanto a câmera se fixava nela.

- Sim, e sabemos por Eddie que seu nome de Crosta é Hermione - respondeu Parry, indicando em seguida a figura menor ao lado dela. - E com Hermione está a gêmea Rebecca.
As duas são as chefonas da hierarquia Styx. Se tivermos um jeito de neutralizar essa dupla maldita, essa guerra pode chegar ao fim, e todos poderemos voltar para
casa.

As palavras de Parry ficaram suspensas no ar enquanto os homens pensavam em suas famílias, das quais estavam inteiramente isolados há semanas. Pelas ordens de Parry,
eles não tinham permissão para fazer qualquer contato com o mundo. Ele deixou claro que isso era necessário a fim de que a unidade operasse sem interferência dos
Styx.

A parede ao lado de Parry escureceu por um momento, depois brilhou tanto que iluminou os rostos de todos os homens no porão.

- Aqui vemos a manhã seguinte - disse Parry em voz baixa. - Vocês podem ver os resultados com seus próprios olhos. - A imagem balançava-se a cada passo que o soldado
dava ao se deslocar pela cidade agora deserta, registrando os resultados do ataque. Na luz severa do amanhecer, todos os corpos podiam ser vistos com clareza, caídos
na frente dos pouquíssimos prédios que escaparam do incêndio.

- E não me entendam mal - disse Parry. - Isso é uma guerra, uma guerra no quintal de nossa casa, e uma guerra que vamos perder se não descobrirmos quais são os pontos
fracos dos Armagi.

- Tem mais algum informe sobre as habilidades ou o posicionamento deles? - perguntou um soldado.

- Pela nossa observação, acreditamos que eles cacem aos pares, seja no ar ou em terra. E um relatório levantou a possibilidade de que talvez possuam uma audição
altamente desenvolvida, com base no fato de que o barulho de motores ou tiros os atrai como mariposas a uma chama. Por isso, agora os silenciadores são obrigatórios
em todas as armas.

O pager no cinto de Parry vibrou, e ele rapidamente o ergueu para ler a mensagem. Pareceu apressado ao falar.

- Espero ter mais a dizer a vocês sobre a fisiologia deles muito em breve, cavalheiros. Agora, se me derem licença, o capitão encerrará a reunião e responderá a
quaisquer perguntas.

Enquanto as imagens da estação de eletricidade destruída faiscavam na parede, Parry desceu pela lateral do porão, espremendo-se pelas filas de soldados sentados
que, por seus padrões, estavam extraordinariamente abatidos. Ao contrário do exército regular, as reuniões da SAS costumavam ser informais, com a presença de todas
as patentes, em geral com algum engraçadinho irreverente para melhorar o clima. Mas a gravidade da situação chocava até mesmo a elite mais experiente e mais treinada
do exército britânico.

Apesar de sua coxeadura, Parry tinha pressa, e subiu a escada de dois em dois degraus até o térreo, saindo num trote do prédio baixo. Bem à frente havia helicópteros
escondidos sob uma rede de camuflagem. Ele entrou à direita pela trilha que corria pelo centro do complexo. Decidiram dividir o regimento 22 da SAS em três unidades,
cada uma delas operando de forma autônoma a partir de locais secretos. Significava que pelo menos alguma capacidade seria preservada se o regimento fosse contaminado
com homens submetidos à Luz Negra ou se os Styx localizassem uma unidade.

Com o conhecimento que tinha dos Styx, Parry foi uma opção natural para assumir o comando de uma das novas direções. E ele escolheu aquele quartel raras vezes usado,
imerso no interior de Herefordshire, como base para a divisão. Agora, enquanto corria, não teve tempo de desfrutar as colinas ondulantes à sua volta, exceto para
se permitir um rápido olhar na direção do principal quartel da SAS em Credenhill, a onze quilômetros de distância, perguntando-se se os Styx já não teriam desferido
um ataque ali. Se assim fosse, eles teriam ficado amargamente decepcionados, porque o local era tripulado por uma equipe mínima com instruções de explodir todo o
lugar ao primeiro sinal de problemas.

Ele continuou pela trilha que cortava o meio do complexo, passando pela sala de descanso, a área de tiros e o depósito de munição até chegar a um prédio de aparência
comum, sem janelas.

Uma sentinela vigiava a entrada.

- Varredura do rosto, senhor - disse o homem, aproximando-se. Ergueu um Descontaminador em frente ao rosto de Parry e acendeu a luz roxa em seus olhos. A sentinela
sabia o que fazia, e examinava Parry atentamente, procurando algum sinal de que ele fora submetido à Luz Negra.

- E então, passei? - pressionou Parry com pressa para entrar.

- Sim, com louvor, senhor - respondeu a sentinela. Ele correu um cartão chave pelo leitor ao lado da porta, que se abriu com um tinido definitivo, permitindo a entrada
de Parry.

Além do fato de que aquela antiga base militar deixara de ser usada havia tantas décadas que agora era esquecida pela maioria, o prédio era o principal motivo para
Parry desejar tanto posicionar sua divisão ali. Abrigava uma antiga instalação de testes de guerra biológica, ideal para seus propósitos. Ele passou por uma série
de salas cheias de equipamento empoeirado, e chegou ao laboratório principal. Era separado em dois por uma divisória de vidro temperado de 7,6 centímetros, com uma
câmara de isolamento hermética de um lado.

- Você me mandou uma mensagem... Quais são as novidades? - perguntou Parry ao assistente de jaleco branco, atento ao que havia do outro lado do vidro. O assistente
abriu a boca para responder, mas Parry já havia ativado o intercomunicador na base da divisória. - Tem alguma coisa para mim, major? - perguntou ele ao oficial médico
do outro lado do vidro grosso.

O oficial médico - ou OM, como se referiam a ele - girou o corpo.

- Comandante - disse ele, reconhecendo Parry. - Que bom que pôde vir tão rapidamente, porque há algumas coisas que o senhor precisa ver.

O OM deu um passo de lado, revelando o Styx preso por várias amarras a uma bancada de aço inox. Foi descoberto nos destroços depois do ataque à estação de eletricidade
e levado de helicóptero para exame na base. Estava despido até a cintura e sua aparência - seu corpo magro e feições severas - dava a impressão de que não passava
de um Limitador.

- Ele ainda não recuperou a consciência? - perguntou Parry.

- Ainda está apagado - respondeu o OM -, embora todos os seus ferimentos tenham se curado.

- Eles o quê? - Parry se encostou na divisória de vidro para examinar a cabeça do homem. - Isso é inacreditável. Você tem razão. Nenhum vestígio de ferimento. -
Quando o homem foi trazido, seu crânio tinha sido esmagado na lateral, e, considerando a gravidade da lesão, junto com as outras que ele sofrera, era improvável
que durasse muito tempo.

- Pelo visto, a não ser que um Styx comum tenha poderes milagrosos capazes de curar lesões importantes em horas em vez de meses, o que pegamos aqui é um Armagi -
sugeriu o OM.

- Eles não têm, e ao que parece pegamos um mesmo - disse Parry, com os olhos faiscando de empolgação. Essa era a novidade que ele procurava, uma oportunidade de
avaliar o que combatiam. - Os Styx têm uma capacidade de recuperação impressionante, mas nada parecido com isso. Assim, tenho de concordar que ele deve ser um Armagi.
Descobriu mais alguma coisa incomum sobre ele?

O OM sorriu.

- Segundo meu exame externo, ele tem coração, pulmões... Todos os órgãos corporais que esperamos, nos lugares certos. As únicas anomalias que encontrei estão na
garganta, onde há uma espécie de glândula a mais, e ao lado dela há uma pequena protuberância que não consigo explicar.

Parry deduziu de imediato o que poderia ser.

- É um ovopositor. Eddie nos disse que os Armagi podem se reproduzir como as mulheres Styx e assim, provavelmente, impregnam os hospedeiros da mesma maneira.

O OM beliscou o bíceps do Armagi.

- E a densidade de sua fibra muscular é extraordinária. O homem pesa uma tonelada, por isso precisamos de quatro soldados para trazê-lo para cá. Mas tudo isso é
insignificante perto do que estou prestes a lhe mostrar. - O OM foi a uma bancada atrás da maca onde estava deitado o homem e ergueu a ponta de uma longa bandeja
de aço para que Parry visse seu conteúdo.

- Meu Deus! - exclamou Parry. Ele não sabia se ficava mais chocado com o fato de o OM ter decepado o braço do Armagi pouco abaixo do ombro ou de o Armagi ter desenvolvido
um braço inteiramente novo.

- Exatamente! O senhor me pediu provas indiscutíveis. - O OM sorriu. - Então comecei com algumas pequenas incisões em sua pele, que se curavam em segundos, e passei
à remoção de um membro inteiro. E, veja só, ele cresceu em cerca de três horas e parece estar novo em folha mais uma vez. - O OM parou para dar ênfase. - E, se pensa
que isto é impressionante, há algo mais que acabei de descobrir.

Ao lado do braço amputado na bancada havia um dispositivo em uma caixa pintada de cáqui, que o OM ativou.

- Sei que isto não é muito científico, mas encontrei este antigo kit de interrogatório no depósito. É claro que agora só serve para o museu de direitos humanos,
porque a Convenção de Genebra proíbe a tortura de prisioneiros de guerra, mas não tenho certeza se isto é válido para esses combatentes.

O OM pegou a sonda de metal conectada ao dispositivo por um cabo.

- Ajustei a carga para 200 volts - disse ele, depois a estendeu para o Armagi e tocou seu braço.

Uma pequena faísca disparou da sonda para a pele do Armagi quando ela se aproximou o bastante. O OM não parou por aí, pressionando a sonda com força no braço do
Armagi.

- Observe a ausência de reação normal a essa voltagem. - Ele tinha razão. Não houve convulsão dos músculos como deveria acontecer com um ser humano, mesmo quando
inconsciente.

Em vez disso, aconteceu uma coisa muito curiosa. Onde a sonda fazia contato, a pele ficava prateada e cristalina, como se escamas na forma de diamantes se espalhassem
pelo braço. Depois o membro inteiro ficou subitamente transparente e começou a se transformar em algo completamente diferente.

- Acreditamos que está se transformando numa asa - disse o assistente ao lado de Parry. Parry teve de concordar. O braço se achatava até o ombro e certamente era
muito semelhante a um pássaro.

O OM retirou a sonda, e o membro perdeu a transparência, voltando imediatamente à forma original.

- Eles mudam de forma e há algum envolvimento com impulsos elétricos. Como os impulsos nervosos, presumo.

- O major experimentou várias voltagens diferentes - disse o assistente, erguendo a prancheta para mostrar a Parry os pequenos desenhos que ele fez. - Conseguimos
uma asa, como o senhor começou a ver ali, e também algo parecido com uma nadadeira.

- Mar, ar e terra... Eddie nos disse que eles podem se transformar em diferentes entidades, com diferentes morfologias, para se adaptarem ao ambiente em que se encontram.

- Sim, o que vimos aqui sustenta essa alegação - confirmou o OM.

A testa de Parry estava franzida enquanto sua mente disparava.

- Então... - começou ele. - É este o calcanhar de Aquiles deles? Podemos usar a eletricidade para derrotá-los?

- Boa sugestão. Por que eu não aumento a aposta e vejo o que um pouco mais de corrente produzirá? - respondeu o OM. - Vou passar para 500 volts. - Ele se curvou
sobre o dispositivo na bancada, girou um dos controles ao máximo e estendeu a sonda para o braço do Armagi. Uma faísca ainda mais brilhante descreveu um arco quando
a sonda se aproximou da pele, e as luzes bruxulearam na sala.

- Lá vai - disse o assistente enquanto o membro mais uma vez ficava transparente. Mas, dessa feita, os dedos se fundiram, e o que antes era a mão se alongou e espessou,
com três garras de aparência cruel aparecendo na ponta.

- Não tenho ideia do que seja isso - disse o assistente, tentando desenhar freneticamente a nova configuração.

Algo chamou a atenção de Parry.

- Major, atrás de você! O braço!

O braço amputado também se transformava, assumindo precisamente a mesma forma, com as três garras de aparência mortal na extremidade. Ele ficou longo demais para
a bandeja de aço e virou pela borda, caindo na bancada como um peixe morto.

- Corte a corrente! Agora! - gritou Parry enquanto o membro amputado se contorcia ao lado da bandeja.

Na pressa, o OM deixou cair a sonda. Abaixou-se para pegá-la e tinha acabado de endireitar o corpo quando o Armagi se transformou completamente.

Num piscar de olhos, de repente tinha três pares de membros ramificando-se do tórax, como um enorme aracnídeo transparente. Os membros se debatiam, rasgando as amarras
de couro que o prendiam à maca, como se fossem lenços de papel.

O OM não teve nenhuma chance, apenas olhava a criatura com perplexidade.

Sua cabeça foi decapitada com um golpe curto do membro superior do Armagi. As três garras eram mortais como sua aparência.

Depois a coisa disparou da maca e bateu na divisória com um estrondo ressonante. Suas garras penetraram o suficiente o vidro temperado para se pendurarem na divisória.
E golpeou o vidro mais uma vez, como se soubesse que não demoraria muito para quebrá-lo.

- Queime-o! - gritou Parry a plenos pulmões.

- Queimar? - O assistente titubeou, petrificado pela imensa cabeça de aranha com olhos compostos que o fitava diretamente através do vidro.

Parry não esperou pela assistente, abrindo a tampa de um painel debaixo do intercomunicador e girando a chave ali. Depois bateu a palma da mão no botão grande ao
lado da chave.

A câmara de isolamento imediatamente se encheu de uma muralha sólida de fogo. Era um dispositivo de segurança instalado para esterilizar o ambiente, na eventualidade
de um contratempo com uma amostra biológica.

Parry e o assistente observavam o Armagi enegrecer e tombar no inferno.

- Meu Deus, ah, meu Deus. - O assistente choramingava.

- O braço decepado foi afetado... Embora a corrente fosse aplicada no corpo do Armagi - disse Parry.

O assistente mal conseguia lidar com o que acabara de testemunhar, que dirá compreender o que Parry tentava lhe dizer.

- Mas o major... - Ele ofegava.

Parry o segurou pelos ombros.

- Controle-se, homem. Se existir uma forma similar de comunicação entre os Armagi, esse espécime pode ter comprometido nossa base. Pode haver outros a caminho! -
Ele pegou o rádio no cinto. - EVACUAR!

 

Capítulo Dois

 

- Eu pareço um matuto desse jeito - disse Will, surpreendendo-se com seu reflexo numa vitrine enquanto eles se arrastavam no calor intenso, suas Bergens abarrotadas
com toda a roupa de cama e toalhas que podiam carregar.

- É - respondeu Elliott, distraída, o nariz enterrado num mapa que encontrara em um dos Limitadores.

- Ah, valeu - murmurou Will. Ele parou para ajeitar o chapéu amarelo-canário de aba mole que Elliott escolhera para ele na loja de departamentos.

- Não, quero dizer que está ótimo - disse ela. - Cumpre sua função e bloqueia o sol no seu rosto... E, de qualquer modo, quem vai ver, mesmo que você pareça um fajuto?

- Matuto - corrigiu Will rapidamente, depois passou os olhos pelos corpos na rua. - Não podemos voltar para nossa base? Esse lugar me dá arrepios, e é loucura ficar
tanto tempo fora quando está tão quente.

Elliott assentiu com solidariedade para ele e colocou o mapa diante de sua cara.

- Tudo bem, mas primeiro só quero verificar uma coisa. - Ela olhou o mapa de novo antes de apontar bem à frente. - É por aqui.

Ela partiu, não apenas sobrecarregada pela Bergen e pelo rifle longo, mas também pelos dois rifles que insistiu em tirar dos Limitadores. Por um momento, Will a
observou o modo como seus quadris gingavam enquanto andava. Ela estava crescendo tão rápido, e, com a pele bronzeada e o cabelo preto e comprido, nunca esteve tão
bonita. Da mesma forma que os Styx pareciam capazes de se adaptar a qualquer ambiente em que estivesse, Elliott florescia em seu novo lar no mundo interior.

E Will tinha a menina só para si.

Ele se permitiu abrir um sorriso presunçoso, mas depois o suor que escorria pela base de suas costas o lembrou de onde estava. Não gostava de passar mais tempo na
cidade do que o absolutamente necessário, mas sempre achava difícil não deixar Elliott fazer o que queria.

Will por acaso olhou o que parecia um hotel de luxo, a julgar pelo dossel na entrada. Abutres de aparência detestável estavam empoleirados no toldo listrado de vermelho
e branco, seus olhos cinza, pequenos e cruéis, fixos nele e em Elliott.

- Estão sem sorte, rapazes... Ainda não estou morto! - gritou Will para as aves. Enxugando a testa, ele indicou Elliott à frente. - Mas, se ela tiver alguma coisa
a ver com isso, é melhor eu ficar por perto! - acrescentou ele.

Não havia como Elliott não ter ouvido o comentário, mas ela continuava obstinadamente adiante. Logo eles se viram em uma área de aparência diferente. Não havia lojas
ali, mas construções austeras e geminadas de cinco andares, muitas parecendo escritórios ou departamentos do governo, a julgar pelas placas de bronze gravadas nas
entradas.

Will e Elliott progrediam pela rua, outra daquelas sem nada de extraordinário, e ambos ouviram uma batida. O ritmo não era constante. Eles paravam e escutavam, mas
ele não cessou. Nesse lugar sinistro, foi mais do que o suficiente para deixá-los em guarda.

Elliott apontou à frente, e Will assentiu com um simples gesto de cabeça. Ela estava certa de que o barulho vinha da lateral da rua, embora fosse difícil situar
precisamente onde estava, porque reverberava nos prédios do outro lado. Enquanto Elliott preparava o rifle em silêncio, prosseguindo com cautela pela calçada, Will
manteve distância, as mãos segurando firmemente a Sten.

Elliott chegou ao penúltimo prédio geminado, agachou-se e apontou o rifle. Descartando a Bergen, Will saiu da calçada e foi para a rua, onde usou os veículos abandonados
como cobertura, o tempo todo de olho na fachada do prédio. Percebeu com que eficiência ele e Elliott trabalhavam juntos; não havia necessidade de falarem, porque
cada um sabia, por instinto, o que outro faria em determinada situação. A primeira vez que Will testemunhou esse nível de empatia foi quando observou Elliott e Drake
em patrulha nas Profundezas. De repente pensou no amigo, que deve ter perecido quando o dispositivo nuclear explodiu, e a onda de tristeza foi tão intensa que ele
puxou o ar profundamente.

Elliott ouviu e se virou para ele, mas Will evitou seu olhar. Assumiu a posição na frente de um carro, depois se concentrou nas janelas superiores do prédio, de
onde parecia vir o barulho.

Não havia sinal de ninguém ali, mas as batidas não cessaram.

Como Will esperava que ela fizesse, Elliott agora se deslocava da calçada, andando lentamente para trás, apontando a mira para uma janela de cada vez. Will lhe dava
cobertura com a Sten quando, subitamente, ela parou e deu uma breve risada.

- Que foi? O que você está vendo? - sussurrou Will.

- Último andar, duas janelas depois - respondeu ela.

Semicerrando os olhos, Will localizou a vidraça, depois viu o movimento pela parte aberta no alto. Naquela altura, a mais leve brisa era suficiente para farfalhar
a cortina na metade inferior da janela. E era o cordão na base da cortina que se balançava repetidamente contra a vidraça abaixo. Will não teve dúvida de que era
a origem do barulho.

- Alarme falso - disse ele. - É só o vento.

Os dois relaxaram e endireitaram o corpo.

- Estamos vendo fantasmas - comentou ela enquanto ejetava a bala da agulha de seu rifle para torná-lo seguro.

- Bom, o que você esperava? - Will deu de ombros. - Este lugar pode deixar qualquer um pirado. Estão todos mortos... Os neogermanos, os Styx, até os bosquímanos
na selva. Todos eles. - Ele olhou, desconsolado, para todas as fileiras de janelas empoeiradas, depois para a Sten nas mãos. - Nem sei por que nos damos ao trabalho
de andar armados. Não sobrou um só animal que possa nos machucar. Além dos peixes, das aves e das malditas moscas, só estamos nós aqui.

Elliott gritou, mas Will não entendeu o que ela disse.

- Que foi? - Will ofegou, só agora percebendo que ela havia ido para o final da rua. Ele perdeu o chapéu ao disparar numa corrida para acompanhá-la.

Quando a alcançou na esquina, a praça imensa se abriu diante dele, em seu centro o prédio do governo construído na forma de um arco colossal. Ele vira o topo do
arco em uma expedição anterior à cidade, mas nunca havia chegado tão perto.

Nas ruas que margeavam e cruzavam a praça, havia numerosos carros e caminhões acidentados, enquanto outros foram levados para as calçadas de pedestres ou simplesmente
abandonados ali de portas abertas. E então havia veículos militares e tanques, pontilhando a base do arco, que também pareciam ter sido abandonados às pressas, suas
armas apontando para lados aleatórios.

- Qual é o problema? O que você viu? - perguntou Will.

Ela não respondeu, simplesmente apontou.

Ele seguiu seu dedo, distinguindo algo ao abrigo de uma das pernas do arco. Tinham um porte considerável, provavelmente várias dezenas de metros de altura, e, ao
proteger os olhos do sol, Will percebeu que era uma estátua.

- Só pode ser brincadeira! - soltou ele de repente. - Não pode ser o que estou pensando!

- Ah, é, sim. Olhe mais de perto. - Elliott passou a Will seu rifle para ele usar a mira.

Era uma estátua imensa de Tom Cox.

Ali estava ele, em toda sua glória, suas linhas modeladas em granito tão preto e agressivo como uma pedra gigantesca esperando para abrir um buraco em um navio.

Seu capuz estava puxado até a testa infestada de calombos, e assim a face grotesca e os olhos sem pupila estavam à plena vista. O pior era que os olhos tinham sido
entalhados em alguma forma de calcário ou uma pedra mais leve, assim parecia realmente o renegado traiçoeiro das Profundezas que ajudara os Styx.

- Tom desgraçado Cox - disse Will entredentes, lembrando-se de como o homem monstruoso o cortara no alto da pirâmide, ameaçando depois decepar seus dedos, um por
um. A estátua era um lembrete, e Will podia muito bem passar sem ele.

E Will não tinha certeza se ficava ofendido ou ria, porque a visão daquilo era simplesmente ridícula.

Elliott foi afetada da mesma maneira. Para ela, não foi nenhuma dificuldade atirar em Cox e matá-lo; enquanto esteve nas garras dele, ela sofreu indescritivelmente
até que Drake a resgatou daquele homem - se "homem" fosse a palavra certa.

- Isso é tão doente que só ela... elas podem ter pensado nisso - disse Elliott, cuspindo as palavras como se fossem veneno na boca.

Will concordou com a cabeça, porque sabia melhor do que ninguém que Elliott tinha razão: as gêmeas Rebecca foram responsáveis pela construção do monumento a Cox,
apenas para que o chanceler gordo tivesse de vê-lo, todo dia, do alto de seus aposentos oficiais, o que as divertiria.

- Se conseguirmos entender como funciona um dos tanques, podemos usar a estátua para praticar tiro ao alvo - sugeriu Will, depois passou o dedo por dentro da gola
da camisa, ensopada de suor. - E se era isso que você queria que eu visse, será que agora podemos ir para casa? - pediu ele.

- Eu não sabia que estava ali - respondeu Elliott, depois ergueu o mapa. - O estranho nisso é que os Limitadores marcaram uns locais aqui. Não é algo que eles façam...
Contraria seus procedimentos operacionais padrão. E parece haver alguma coisa importante marcada não muito longe daqui.

- Jura, quem se importa com o que os Limitadores fizeram ou por quê? - disse Will, mas não de um jeito antipático. - Eles agora são história.

Elliott fixou nele um de seus olhares.

Will deixou os ombros caírem.

- Elliott, você me convenceu a vir a esta cidade horrível para pegar suprimentos e coisas de que precisamos. E agora quer partir em uma excursão turística. Eu não
concordo com isso.

- O que aconteceu com você? Lembra quando ninguém conseguia impedir que você metesse o nariz em tudo porque ficava curioso? Você mudou muito. - Ela franziu a testa.
- O que foi, Will? Está ficando velho ou coisa assim?

Will bufou.

- Eu... Não... Estou... Ficando... Velho - enunciou ele lentamente. - É só que essa porcaria de sol está me assando vivo.

- Um pouco de sol nunca fez mal a ninguém - disse ela em voz baixa, depois se virou para correr para o lado da praça.

- Mas eu não sou um ninguém. Eu sou albino! - gritou Will para ela. - E não vou correr de novo. Preciso pegar minha Bergen primeiro!

Com o arco gigante agora a suas costas, eles desciam uma das largas avenidas que se ramificavam da praça central como raios se irradiando do eixo de uma roda.

Will notou um leve cheiro de queimado no ar, e manteve o olfato atento. Depois eles entraram em uma parte da via pública onde o vento revirava as cinzas escuras
na superfície cor de giz da rua. A cinza tornava-se cada vez mais densa, até que suas botas passaram a deixar pegadas.

Nenhum dos dois julgou necessário comentar o fato; algumas semanas antes, eles ouviram explosões e correram ao topo da pirâmide ao lado de seu acampamento. Dali,
viram uma grossa fumaça amarela subindo em massa para o céu, vinda de uma fábrica nos arredores da cidade que claramente se superaqueceu e ficou em chamas. Os incêndios
espontâneos eram comuns no mundo interior, onde o sol impiedoso incendiava trechos inteiros da selva quase diariamente. Assim, não havia motivo para acreditar que
o mesmo não poderia acontecer no meio da própria cidade, em particular se estivesse inteiramente abandonada.

Will parou perto do canteiro central no meio da avenida de seis pistas, Elliott estacando atrás dele.

- Continua até os quintos dos infernos - disse ela, tentando ver o final.

Will admirava as fachadas impressionantes dos prédios do outro lado da avenida.

- Eles fizeram muito por aqui - murmurou ele. De repente lhe ocorreu o destino funesto sofrido pela antiga metrópole próspera, construída na terra nua em menos de
setenta anos. - Sabe, aqui é igualzinho a um lugar de Londres em que meu pai costumava me levar em alguns fins de semana. Acho que era Kesington, onde fica o Museu
de Ciência e História Natural, mas estava sempre tão abarrotado de gente e de turistas - disse Will, apontando os prédios que olhava. - Será que eles também têm
museus?

Elliott deu de ombros.

- Seja o que for, alguma coisa importante estava acontecendo nesta área, segundo o mapa do Limitador. - Um prédio mais além do suposto museu de Will chamou sua atenção.
- O que acha que é aquele lugar?

Foi a vez de Will dar de ombros ao localizar o prédio numa moldura de ferro e com grandes vidraças refletindo o sol.

- Sei lá. Uma estufa gigantesca? - sugeriu.

Sem que Will e Elliott soubessem, era a estufa tropical onde Vane estivera impregnando neogermanos aos milhares antes que a peste os apanhasse. Will espiou por sobre
o ombro a fila de lojas atrás dele, seu olhar parando em uma loja coberta por tapumes com as palavras MOST - Confiserie gravadas no alto, em grandes letras douradas.
Isso não significava nada para ele, mas um modelo de uma barra gigante de chocolate, sem a embalagem, e pendurado em um suporte, sim.

- Ali deve ser uma doceria - concluiu ele, depois riu com tristeza. - Museus e chocolate... As duas coisas preferidas do meu pai. Ele teria adorado isso aqui.

- É estranho - resmungou Elliott, sem dar atenção ao que Will falava.

- Não, acho que é mesmo uma doceria - respondeu Will, já indo diretamente para lá.

- É estranho que existam tão poucos corpos neste trecho - disse ela, erguendo o rifle para usar a mira e verificar a avenida mais adiante.

 

Assim que Will chegou à loja, descobriu que a vitrine principal era protegida por tábuas de madeira pregadas, embora alguém tivesse aberto um pedaço embaixo. Ali
as tábuas tinham sido arrancadas, e o vidro, quebrado. Will se agachou para espiar o interior, mas não conseguiu ver grande coisa do que antigamente seria o balcão
de produtos.

Ao se levantar, o solado de suas botas esmagou doces derretidos de todas as cores do arco-íris, triturando-os na cinza.

- Alguém teve sorte - resmungou Will à meia-voz. Depois de semanas comendo pouco além de peixe, sua boca se encheu de água com a perspectiva de encontrar algo que
viesse embalado.

Perguntando-se se sobrara alguma coisa ali dentro, Will foi à porta da loja. Para sua surpresa, quando girou a maçaneta e empurrou, ela se abriu. Ele não parou para
pensar por que estaria destrancada ao entrar apressado e ser recebido pela visão do interior escuro da loja saída diretamente de outro século.

No balcão de madeira encerada da loja havia trufas de chocolate em bandejas de prata e suportes de pirulitos de todas as cores. Ele examinou um dos pirulitos; era
bem incomum, no sentido de que o doce girava no palito quando ele dava um peteleco com o dedo. Guardando-o no bolso, voltou a atenção às prateleiras depois do balcão,
que abrigavam numerosos potes de guloseimas de aparência maravilhosa. Bombons, leu em um dos potes, baixando a Sten no balcão, e estava prestes a trepar nele quando
por acaso olhou a parede atrás. Nas prateleiras havia o mais maravilhoso leque do que pareciam barras de chocolate, uma caixa depois de outra, o suficiente para
manter alguém abastecido por alguns anos.

- Minha mãe do céu! - Will riu, esfregando as mãos de alegria. Virando-se do balcão, andou lentamente junto das prateleiras, servindo-se das diferentes barras. Não
tinha ideia do que estava escrito nas embalagens, assim começou a abri-las para provar.

- Menta - disse consigo mesmo, provando uma barra com a imagem de um iceberg na embalagem.

Todas as barras estavam moles do calor, mas ele não deu a mínima.

- Isso é bom demais para ser verdade - disse Will ao chegar à ponta das prateleiras e seu olhar se iluminar com as caixas de garrafas empilhadas ali. Ele pegou uma
que tinha um líquido claro e bateu a tampa da garrafa na beira do balcão para abri-la. A tampa mal caíra no chão, e Will já tomava um grande gole do conteúdo borbulhante.

- Ah, isso é tão bom! - exclamou, seus olhos rolando de êxtase antes de ele prontamente secar o resto da garrafa. - Limonada! - Imediatamente pegou mais duas garrafas
e abriu as tampas. - Elliott não vai acreditar nisso. - Ele correu para a porta com seu butim.

Ao chegar à calçada, Will estacou no ato.

Havia uma pequena figura parada ali, numa espécie de traje protetor, segurando uma arma. O cano tremia, mas a arma estava apontada para Will.

Droga! Minha Sten!, pensou Will, xingando-se por tê-la deixado no balcão. Mas não teria feito muita diferença para ele agora. Levantou as mãos lentamente, ainda
segurando as garrafas, as barras de chocolate que colocara embaixo do braço caindo a seus pés.

O traje era de um branco opaco que parecia feito de algum plástico. A cabeça da figura estava inteiramente lacrada em um capacete cilíndrico de topo achatado, e
havia um filtro no pescoço do qual Will ouvia um silvo baixo. O capacete claramente era alimentado por um suprimento constante de oxigênio ou ar do cilindro pendurado
nas costas da figura.

- Quem é você? - indagou Will com a mente em disparada, perguntando-se como alguém poderia ter sobrevivido na metrópole. Ele semicerrou os olhos para a área retangular
do plástico transparente do capacete, distinguindo olhos jovens e assustados fixos nele. Era um menino. Não devia ter mais de dez anos.

Pelo menos não era um Styx, Will se consolou.

- Você... Você é só uma criança, não é? Mas o que está fazendo aqui?

A criança não respondeu, mas manteve a arma apontada para Will.

- Entende minha língua? Fique calmo. - Will tentava ao máximo manter a si mesmo calmo naquelas circunstâncias. - Não estou armado - acrescentou. De repente percebeu
que essa era uma declaração ridícula, com as garrafas de limonada ainda nas mãos.

Os braços do menino se sacudiam ao segurarem a arma.

- Olha, não consegue me entender? Não vou machucar você - disse Will novamente, exasperado.

O menino começou a gesticular loucamente com a pistola. Era uma arma de aparência estranha, uma Broomhandle Mauser, parecida com a pistola alemã da Primeira Guerra
Mundial. Era pesada para uma criança, e devia ser por isso que o menino precisava das duas mãos para mantê-la apontada para Will.

O garoto se aproximou um pouco de Will, balançando a Mauser na direção dele até que o cano estava a menos de trinta centímetros de seu rosto. Havia pânico nos olhos
do garoto, e era difícil para Will não perceber que seu dedo se apertava contra o gatilho. E isso não era bom.

Houve o mais leve som, parecido com uma rajada de vento. Depois o estalo da trava de segurança se soltando.

Elliott estava na calçada ao lado do menino. Seu rifle estava no ombro, apontado diretamente para a têmpora dele.

- Quero que baixe sua arma - ordenou ela. - Devagar e com calma.

O menino se remexeu como se fosse ferroado, mas manteve a cabeça resolutamente virada para Will.

- Eu disse baixe a arma - tentou Elliott novamente.

O menino ainda não dava sinais de obedecer, embora seus olhos ficassem oscilando entre Will e Elliott.

- Vamos, garoto, baixe a arma - pediu Will a ele, depois falou com Elliott. - Não adianta. Parece que ele não entende nada.

- Não, não entende - concordou Elliott. - E se ele não baixar essa arma logo, terei de dar um tiro no pulso dele.

O menino claramente não gostou do que Will e Elliott falavam. Começou a sacudir a pistola na direção de Will e balançar a cabeça enquanto seu capacete formava um
pouco de vapor por dentro.

Houve outro estalo.

- Ah, nós dois entendemos vocês muito bem - disse uma voz de homem. - E você não vai mais atirar, Fräulein. - Ele estava armado com outra pistola de aparência estranha,
e a ponta do cano pressionava a nuca de Elliott. Ela revirou os olhos, furiosa por ter permitido que alguém se aproximasse dela de mansinho.

O homem também tinha um traje protetor.

- Devo sugerir que você baixe a sua arma - disse ele num inglês muito formal.

- De jeito nenhum - respondeu Elliott com frieza. - Se eu fizer isso, perdemos nossa vantagem. Neste momento, se você abrir fogo, eu posso morrer, mas meu dedo se
contrairá. A essa distância, o garoto certamente levará uma bala. Ele vai morrer, não há dúvida. Quer correr esse risco?

Houve uma pausa enquanto o homem pensava no assunto.

- E, antes que ele morra, o garoto também pode dar um tiro no seu amigo.

- Talvez sim, talvez não - disse Elliott.

Will respirou fundo.

- Se vocês não se incomodam, eu prefiro não descobrir. - O calor na calçada era opressivo, e o suor escorria por suas costas enquanto os braços começavam a se cansar
de segurar as garrafas de limonada no alto da cabeça. - Vou dizer uma coisa - disse ele, forçando um sorriso -, que tal se eu for o primeiro e baixar estas garrafas?

Ninguém respondeu nem pareceu seguir sua sugestão, todos segurando firmemente as armas. Sem mexer a cabeça, Will virou os olhos para tentar ver o homem com mais
clareza.

- Está usando esse traje por causa do vírus, não é? Mas você não parece um soldado.

- Não, eu não sou um soldado - respondeu o homem.

Will franziu a testa.

- É evidente que você é neogermano, mas como sobreviveu ao vírus? E o que está fazendo aqui?

- Eu podia lhe fazer a mesma pergunta - contra-atacou o homem.

- Viemos da superfície para impedir os Styx... Para parar sua procriação. Deu tudo errado, e um patógeno letal foi liberado. Foi um acidente - disse Will, percebendo
como isso soava mal. - E vocês, o que são exatamente? - perguntou de novo rapidamente.

- Eu era diretor de ciências do Institut für Antiquitäten - disse o homem. - Vocês chamariam de... Hum... Instituto de Antiguidades.

As orelhas de Will se eriçaram.

- Antiguidades? Então você sabe tudo sobre as pirâmides e as ruínas na selva? - arriscou-se ele.

- Tudo que tivemos permissão de saber, com os militares fungando no nosso cangote - respondeu o homem.

Elliott pigarreou.

- Será que podemos, por favor, nos prender à questão? Temos um problema aqui! - disse ela entredentes.

Will ignorou seu comentário, meio tonto do calor do sol.

- Meu pai e eu também estávamos estudando as pirâmides. Na verdade, acabamos dentro de uma delas quando estávamos fugindo dos Styx. Os desgraçados dos bosquímanos
nos deixaram entrar, mas depois nos entregaram. Como resultado, meu pai foi morto.

- Então foram vocês - sussurrou o homem. Por um segundo ele não falou, claramente refletindo sobre o que acabara de ouvir. - Então, você pode me dizer uma coisa
- disse por fim. - Qual é o nome do oficial do exército que levou vocês de helicóptero para...

- Bismarck - intrometeu-se Elliott antes que o homem tivesse a chance de terminar. - O coronel nos ajudou a fugir no helicóptero para que tomássemos a rota de volta
ao mundo exterior. Foi lá que nos encontramos com ele de novo... Na superfície. Ele era nosso amigo.

O homem ficou perturbado com isso.

- Era amigo de vocês?

Will assentiu com tristeza.

- Foi morto pelos Styx quando armaram uma emboscada para nós. Pouco antes de o vazio ser bloqueado pela explosão e o vírus, liberado.

- Eu também conhecia Bismarck. Ele podia ser militar, mas era um bom homem - contou o neogermano. Ele se afastou um passo de Elliott, mas manteve a pistola apontada
para ela. - Então vocês sabem como começou a peste. E os dois estão expostos ao ar, mas não mostram sintoma nenhum.

- Tomamos vacina contra ela - respondeu Will, fechando um olho por onde o suor escorreu.

Parece que a resposta de Will impressionou o homem, que ficou em silêncio por um segundo.

- Então... Então teríamos imunidade contra ela também se você deixasse que eu tirasse seu sangue - disse ele por fim.

- Melhor do que o espalhar por toda a calçada - respondeu Will, agora se concentrando na ponta do cano da arma do menino. - Fique à vontade.

- Tudo bem - disse o homem, e, sem estardalhaço, ele e o menino guardaram as armas. Aproximou-se do garoto e lhe falou aos sussurros enquanto examinava uma válvula
no cilindro em suas costas.

Com um suspiro de alívio, Will baixou as garrafas de limonada a seus pés. Estava espreguiçando os braços e esfregando os músculos com cãibra quando viu o olhar de
Elliott.

- Que foi?

Ela ainda não baixara a guarda, o rifle quase erguido, parado junto de sua cintura. Depois ela deu de ombros levemente e passou a arma pelo ombro, junto com as outras
que carregava.

O homem se aproximou de Will, estendendo a mão enluvada.

- Meu nome é Jürgen, e este é Karl, meu filho. - Era meio estranho conversar com o capacete cilíndrico, vendo apenas os olhos do homem por um visor de plástico transparente.

Will apresentou a si mesmo e Elliott.

- Pensávamos que não havia mais ninguém vivo - disse ele, só agora lhe ocorrendo a surpresa de que alguém tenha sobrevivido na cidade.

- Acho que somos os únicos - contou Jürgen. Ele riu ao olhar a porta atrás de Will. - E não há peste que consiga manter Karl afastado de uma Süßwarengeschäft...
Uma doceria. - Sua voz ficou séria. - Mas agora preciso que vocês venham comigo - acrescentou, dirigindo-se também a Elliott.

De imediato, ela ficou desconfiada.

- Para onde? E primeiro me diga uma coisa... Como o seu inglês é tão bom? O coronel mencionou que todos os neogermanos o aprendem na escola, mas você tem menos sotaque
do que ele.

- A fraternidade científica daqui da cidade o empregava como principal língua em seu trabalho cotidiano e na manutenção dos registros - respondeu Jürgen rapidamente.
- Começou assim porque a maioria das publicações científicas nos arquivos trazidos de seu mundo na década de 1940 estava em inglês. E a maioria dos cientistas na
época reagia contra o Terceiro Reich e de bom grado evitava o uso de sua língua natal.

- Tudo bem - disse ela, ainda não inteiramente convencida de que o homem merecia confiança. - E para onde quer nos levar?

- Ao hospital. Karl e eu temos de voltar para lá antes que nosso ar acabe e é lá que meu irmão Werner conseguirá usar os antígenos de seu sangue para nos vacinar.
Veja bem, ele era médico na unidade de doenças infecciosas do hospital - explicou. - Quando surgiram os primeiros relatos do início do surto, ele colocou prontamente
meu filho e eu na ala de quarentena. Por isso ainda estamos vivos. - Jürgen se interrompeu. - E então, vocês agora virão conosco?

- Claro, vamos - disse Will.

Eles partiram, Elliott, vigilante, seguindo alguns passos atrás de Will, que andava junto com Jürgen e Karl. No caminho, Jürgen apontou os prédios do outro lado
da avenida, que Will julgava serem museus.

- Quando a peste tomou a cidade, a concentração de pessoas era alta nesta área. Acreditamos que eles foram reunidos e trazidos até aqui para o programa de procriação.

- Imagino que por Vane - sugeriu Will. - Ela era a mulher Styx.

- Não sei nada a respeito disso - respondeu Jürgen -, mas está claro que o principal local para a procriação era aqui. - Ele girou o corpo para olhar a grande estufa,
espiando rapidamente o filho ao se virar novamente para Will. - Eu nem deixo Karl ir até lá, porque os restos humanos que ficaram são indescritíveis. E ainda nem
começamos a limpar, mas dá para ver que já começamos nas ruas... Queimando os cadáveres em piras.

- Isso explica toda essa cinza - disse Will.

- Sim, estamos fazendo todo o possível para erradicar qualquer bolsão do vírus. - Havia desânimo na voz de Jürgen. - Pode ser tarde demais para a cidade, mas nossa
esperança é de que nosso povo nos postos avançados remotos ainda esteja seguro da doença. Com o tempo, os altos níveis de luz ultravioleta do sol devem destruir
qualquer vírus de vida livre, embora Werner esteja preocupado que as espécies aviárias possam se tornar um vetor... As aves podem estar levando o vírus aos lugares
mais distantes deste mundo. Então, talvez nossa esperança seja vã.

Will ergueu a cabeça ao sol luminoso, vendo um único abutre solitário batendo as asas languidamente por ele.

- Sim, porque as aves estão comendo a carne - disse ele, depois franziu a testa. - Só espero que não o espalhem para a superfície.

- A probabilidade de uma ave fazer isso é muito remota - respondeu Jürgen, apontando uma rua transversal ao se aproximarem dela. - O hospital fica por ali.

Várias ruas adiante, Will viu duas largas carroças de mão no meio da rua. Uma tinha uma pilha alta de galões contendo gasolina ou coisa parecida... O cheiro era
forte no ar enquanto eles passavam. Na segunda carroça, havia várias camadas de corpos - esqueletos ainda com as roupas sujas e esfarrapadas - empilhados de qualquer
jeito, um por cima do outro.

Mas Will não se demorou nisso porque, no cruzamento principal a cerca de dez metros, viu o que parecia um pequeno morro se erguendo da superfície da rua. Ao chegar
mais perto, constatou que consistia inteiramente em ossos. O monte era preto como carvão e se elevava quase à altura dos prédios de cinco andares que os cercavam.
E, pontilhando os ossos, havia um fogo vermelho-vivo que ainda ardia, com filetes de fumaça cinza saindo sinuosos até se perderem no nevoeiro do sol.

Will ouviu Jürgen falar enquanto os levava para o monte.

- É assim que deve terminar - disse ele. Ninguém tinha nada a acrescentar, seguindo numa procissão solene em torno de sua base. O cheiro de corpos queimados era
tão pungente que Will cobriu o nariz e a boca, esforçando-se para não ter ânsia de vômito, enquanto Jürgen e o filho, com trajes hermeticamente fechados, estavam
inteiramente isolados daquele odor.

Will localizou um sapato que escapara do fogo, jogado de lado na rua. Não conseguiu tirar os olhos dele. Era um sapato de mulher, de couro azul escuro muito brilhante,
com uma fivela de cromo. O sapato parecia novo em folha, como se tivesse sido comprado em uma loja naquele dia e mal fora usado.

Eles continuaram e, depois de mais alguns minutos, chegaram ao hospital, um prédio branco e reluzente, muito deslocado contra as fachadas de pedra monótonas a seu
lado. Entraram pelas portas principais e percorreram seu interior sem iluminação. Agora que tinham saído do sol ofuscante, ali parecia escuro demais. Seus passos
no piso de linóleo eram o único barulho no hall de entrada, onde havia várias áreas de espera, com filas de bancos vazios dando para mesas de recepção desocupadas.

Jürgen tinha ficado em silêncio desde que viram a pira do lado de fora, mas então voltou a falar.

- Quando saímos da área de quarentena depois de alguns dias, descobrimos que as pessoas tinham vindo para a cá aos montes, procurando desesperadamente ajuda dos
médicos - disse ele a Will e Elliott com a voz rouca. - Como vocês diriam... Parecia uma lata de sardinhas. E foi assim que eles morreram... Muitos ainda de pé.
Tantos que foi uma luta para abrirmos as portas nesta área.

Junto das paredes, Will percebeu várias outras carroças do mesmo tipo daquelas encontradas perto da pira e entendeu que foram usadas para retirar os corpos, embora
agora estivessem cheias de caixas de suprimentos.

Jürgen os conduziu a uma porta que saía da área principal. Pegou uma lanterna e acendeu, e os outros o seguiram por vários lances de escada, passando por duas portas
de vaivém e entrando numa sala grande. As paredes estavam cobertas de capas de polietileno, e trechos de cabo amarelo corriam por entre a iluminação temporária que
fora instalada.

Jürgen puxou de lado uma das capas, revelando uma porta de aparência sólida, depois apertou um botão num interfone. Will ouviu o barulho distante do toque de uma
campainha.

- Só estou informando a meu irmão que voltamos - explicou Jürgen. Segundos depois, veio uma voz no interfone. - Werner - começou Jürgen, em seguida as luzes se acenderam
na sala, e ele teve um diálogo rápido com o irmão em alemão.

Elliott se colocou ao lado de Will.

- Não sei no que estamos nos metendo aqui - cochichou. - Isto pode ser uma armadilha.

Will desprezou a sugestão.

- Mas eles precisam mais de nós do que nós deles, né? - respondeu.

- Werner disse que temos que levar vocês para dentro para tirar seu sangue em condições estéreis - disse Jürgen, interrompendo a conversa deles. - Isso significa
que vocês terão que ser descontaminados e é assim que vamos fazer. Karl e eu iremos primeiro, depois será a vez de vocês. Do outro lado dessas portas, vocês encontrarão
a câmara principal de esterilização, onde lavamos nossos trajes e ficamos embaixo de lâmpadas ultravioleta antes de retirá-los. A sala seguinte é a câmara secundária,
onde tomamos banho novamente e nos vestimos para entrar na ala de quarentena.

- Mas vamos realmente poder entrar lá também? Podemos tomar um banho, mas e qualquer vírus que esteja dentro de nós? - perguntou Will.

- Meu irmão é especialista nesses procedimentos e acredita que podemos minimizar o risco - disse Jürgen. - Lembrem-se apenas de que vocês terão de deixar todas as
roupas e o equipamento em caixas lacradas na câmara principal antes de passar pelo resto do procedimento que acabei de descrever. Quando terminarem, devem vestir
os trajes hospitalares que deixarei para vocês. E deverão usar máscaras faciais para garantir que não exalarão nenhum vírus na ala.

- Entendi. Tudo bem - respondeu Will, fingindo ficar à vontade com o processo.

- Vamos avisar pelo interfone quando vocês puderem entrar - disse Jürgen, hesitando antes de virar seu capacete cilíndrico para Will e Elliott, que viram seus olhos
quando ele acrescentou: - E obrigado por nos ajudar. Nem imagina o que isto significa para nós... Para mim... Significa que Karl tem uma chance. - Depois pôs a mão
no ombro do filho, guiando o menino. Houve um silvo de ar, e a capa de polietileno em volta da sala se agitou quando ele abriu a pesada porta e entrou com o filho.

Vinte minutos depois, a voz de Jürgen apareceu no interfone, dizendo que era a vez deles. Will, ao se aproximar da porta, ouviu a batida do mecanismo puxando as
travas na pesada porta de aço, permitindo que ele a abrisse. Houve outra lufada de ar - claramente mantinham uma pressão mais alta na ala de quarentena para impedir
a entrada do ar de fora.

Embora tudo fosse feito de aço inox, o interior da primeira área de descontaminação parecia um vestiário, com armários e chuveiros dos dois lados. Will espremeu
a Bergen em um dos armários, seguida pela Sten. Começou a desabotoar a camisa, depois girou o corpo para Elliott, que estava imóvel na frente de outro armário. Ela
estava prestes a depositar sua arma ali dentro, ao lado dos outros dois rifles de Limitadores que carregava.

- Qual é o problema? - perguntou Will.

- Vamos entrar aí de mãos vazias. Sem armas... E isso me deixa muito pouco à vontade - cochichou Elliott.

- Então, fique aqui. Eu irei sozinho - sugeriu Will. - Eles só precisam tirar sangue de um de nós.

- De jeito nenhum! Temos que ficar juntos... O tempo todo - respondeu ela rapidamente, depois suspirou. - Mas não precisamos nos colocar nessa situação, para início
de conversa. Se fugirmos daqui, eles nunca conseguirão nos pegar. E podemos cuidar para que não nos descubram novamente.

- Não devemos isso a eles? Diga o que quiser, mas temos parte da culpa pelo que aconteceu. Quanto tempo eles podem viver assim, até que alguém faça uma besteira
e eles fiquem infectados? Ou fiquem sem energia, água ou coisa assim? - Como Elliott não disse nada, Will acrescentou: - Você não está muito confiante, não é? Não
acha que se Drake estivesse aqui ele tentaria ajudá-los? Não ajudaria a salvar a vida daquele garotinho?

Elliott ficou confusa.

- Sinceramente, não sei - disse ela, mordendo o lábio enquanto pensava. - Acho que sim. Mas se fizermos isso e algo der errado, foi você que pediu, e a responsabilidade
é sua.

- Tá certo - disse Will e acrescentou hesitante: - Hummm... Mas tem uma coisa...

Elliott estava desafivelando o cinto.

- O que é?

Will gesticulou para o lado dela da câmara.

- Não espie, está bem? Fique olhando para seu lado e eu farei o mesmo. Fechado?

- Hã... Sim... Fechado - confirmou Elliott, entendendo o que ele dizia.

Eles passaram pelo procedimento de descontaminação num silêncio constrangido, tirando a roupa e se lavando, depois se colocando debaixo da série de lâmpadas ultravioleta,
evitando os olhos um do outro. E o tempo todo o ar fresco era bombeado para a câmara - eles o ouviam passar pelos dutos de ventilação.

Em seguida, no exato momento em que se apagaram as luzes ultravioleta, uma voz falou com eles pelo interfone junto da entrada para a segunda câmara. "Passem à área
seguinte agora, por favor", orientou a voz.

- Primeiro as damas - disse Will, ainda evitando olhar para Elliott.

Eles tomaram outro banho nos cubículos de seus respectivos lados, enxugaram-se e vestiram as roupas e máscaras que Jürgen providenciara.

- Está vestida agora? - perguntou Will.

- Sim, tudo pronto - respondeu Elliott, e só então eles se olharam nos olhos.

Ainda meio sem graça com a situação, Will remexeu os ombros debaixo da roupa branca.

- Já faz um tempinho desde que eu tomei um banho com água quente desse jeito. Estou me coçando todo.

Ela assentiu, tentando esconder um sorriso.

- Sim, notei que você tem uma irritação nas costas.

- Humm! - exclamou Will. Os mecanismos da porta estalaram, e eles seguiram a ordem do interfone, entrando na área de quarentena.

- Como você sabe disso? Trapaceira... Você olhou, não foi? - sibilou Will a Elliott enquanto eles chegavam ao corredor do outro lado da porta. Ele sabia que sua
cara estava vermelha; o problema com sua pele leitosa era que o menor grau de constrangimento transparecia nela.

Elliott riu.

- E você é até bem musculoso, hein?

Um homem apareceu em uma porta no final do corredor e veio se aproximando deles. Jürgen, supôs Will.

- É... Bom... Você tem umas covinhas ótimas - sussurrou ele para Elliott, sorrindo com malícia.

- Covinhas? Onde? O qu...! - explodiu Elliott, mas foi obrigada a se calar porque o homem agora estava perto o suficiente para ouvir.

- Enfim, nos conhecemos em carne e osso. Eu sou Jürgen - disse o homem, fazendo a cada um deles uma mesura formal, mas sem estender a mão para outro comprimento,
talvez porque ainda estivesse preocupado em fazer contato físico, apesar da limpeza completa a que foram submetidos.

Vestido de macacão azul, Jürgen era um homem magro, não muito mais alto do que Will. O cabelo louro ainda estava molhado de seu próprio procedimento de descontaminação,
a franja comprida caindo frouxamente nos olhos azuis. Empurrou o cabelo de lado, meio constrangido.

- Espero que sua pele não esteja sensível demais depois de ser tão lavada - disse ele, cheirando as costas da própria mão. Indicou um suporte do que pareciam extintores
de incêndio perto da base da parede, mas estavam pintados de verde com caracteres em alemão. - Os chuveiros dos banhos que vocês acabaram de tomar contêm germicida,
assim como naqueles tanques. É uma precaução a mais contra o vírus, mas pode provocar uma reação cutânea.

- Sim, Elliott notou que estou com uma irritação - murmurou Will, olhando incisivamente para ela.

Esforçando-se ao máximo para não sorrir, Elliott perguntou:

- E o que vamos fazer agora?

- Werner espera por nós no laboratório. Por favor, venham por aqui - disse Jürgen, dando meia-volta.

Ao partirem pelo corredor, Karl veio correndo e jogou os braços no pai, escondendo o rosto contra ele. De cabelo claro, o menino era parecido com o pai, embora tivesse
olheiras, como se não dormisse há algum tempo. Ainda com a cara enterrada em Jürgen, ele lançava olhares ocasionais e furtivos a Will e Elliott.

- Oi - disse Will, mas o menino não respondeu.

Jürgen partiu lentamente, com o filho ainda abraçado a ele.

- Karl não fala. Na realidade, ele não disse uma só palavra desde o dia da peste. Veja bem, minha esposa, a mãe dele, não conseguiu chegar a este abrigo a tempo.
Sabemos que ela vinha para cá... Mas talvez os invasores a tenham pego para fazer mais lavagem cerebral nela. Eles tinham o hábito de fazer isso com qualquer um
que parecesse ter pressa.

- Eu sinto muito - murmurou Will.

Jürgen ainda andava lentamente, a voz embargada pelas lembranças.

- De qualquer modo, não podíamos mais esperar por ela. Não tivemos alternativa. Precisávamos fechar a porta principal... Ou teríamos sido esmagados por todas as
outras pessoas aqui.

- Você disse lavagem cerebral? Quer dizer que os Styx a submeteram à Luz Negra? - perguntou Elliott com gentileza.

- Luz Negra? - repetiu Jürgen a expressão desconhecida. - Com a luz roxa? - Ele semicerrou os olhos e fingiu proteger o rosto de uma luz forte. - Sim, todos nós
sofremos isso. As pessoas que vocês chamam de Styx percorreram a cidade, quadra por quadra, obrigando-nos a sair dos prédios. Depois nos fizeram olhar para luzes
roxas, até Karl. - Ele mexeu no cabelo do menino.

Will trocou um olhar com Elliott, que estava de cenho franzido.

- Essa não é uma boa notícia. Precisamos cuidar do que eles implantaram em vocês - disse ela, colocando em palavras exatamente o que Will pensava.

- Vocês podem fazer isso? - perguntou Jürgen. - Como? E por quê?

- Em minha Bergen, tenho um aparelho desenvolvido para neutralizar a Luz Negra - respondeu Will, referindo-se ao Descontaminador. - O que eles puseram em sua cabeça
pode ser perigoso para você ou a qualquer um que esteja em sua companhia. Eu fui programado para me atirar de qualquer lugar com altura suficiente para me matar.

- Entendo - assentiu Jürgen. - Podemos cuidar disso depois, primeiro temos que tratar de uma questão mais premente. - Ele levou Will e Elliott a uma sala apinhada
de equipamento médico. Um homem levantou os olhos do microscópio.

- Guten Tag - disse ele.

- Em inglês, Werner, você precisa falar em inglês - lembrou-lhe Jürgen.

Embora Werner tivesse os olhos azuis do irmão e as feições parecidas, era mais alto e bem mais magro, e o cabelo louro se distribuía de forma desigual pela cabeça.
Evidentemente era o mais velho dos dois.

- Tudo bem, em inglês - disse ele.

- Precisa de um pouco de nosso sangue? - perguntou Will.

- É isso mesmo. Estou tentando identificar os corpos virais, assim posso isolá-los - explicou Werner, baixando a cabeça para um microscópio. - Até agora, não tive
sucesso. - Ele se ergueu e colocou um par de luvas de látex. - Veja só, esta ala foi criada porque sempre houve o perigo de uma nova cepa bacteriana, ou vírus, entrar
em nosso mundo, vinda da superfície. E como não teríamos nenhuma resistência natural a isso, temia-se que poderia dizimar a população. Essa peste que nos atacou
foi virulenta demais para nossos médicos fazerem alguma coisa a tempo.

- Mas você sabe preparar uma vacina a partir de nosso sangue? - perguntou Will.

Werner concordou com a cabeça.

- Os antígenos em vocês implicam que eu tenho uma vacina já pronta para inocular em nós e em qualquer sobrevivente que encontrarmos. - Ele pediu a Will e Elliott
que se sentassem, depois usou seringas para extrair amostras de sangue de cada um deles. Disse-lhes que, depois que preparasse a vacina, ele ou o irmão a tomaria
primeiro, porque, se não desse certo, não poderiam ficar incapacitados os dois ao mesmo tempo.

- E isso fará de mim um... cobalto - disse Jürgen, assentindo com esperança.

- Acho que é cobaia - o corrigiu Will.

- Então você não precisaria mais de nós? - perguntou Elliott.

- Não, mas se vocês concordarem, poderiam ficar até sabermos se a vacina é viável? Talvez precisemos de mais algumas amostras - disse Werner. - Como é mesmo aquele
ditado... Melhor prevenir do que remediar.

- Tudo bem... Mas quanto tempo querem que a gente fique aqui? - perguntou Will, ansioso para sair da cidade e voltar para sua base na selva.

- No máximo, quarenta e oito horas - respondeu Werner, já colocando as amostras de sangue em uma centrífuga e começando a trabalhar.

Jürgen acompanhou Will e Elliott para fora do laboratório e por um corredor, passando por várias portas.

- Temos alguns quartos para vocês por aqui. - Ele indicou o lado direito do corredor. - São todos quartos de isolamento, alojamentos autocontidos, com sua própria
filtragem de ar, assim vocês podem retirar a máscara para comer e beber.

Eles passaram por vários desses quartos de isolamento quando Will viu algo pela janela de inspeção em uma das portas que o fez parar de repente.

- Não acredito nisso! - exclamou ele ao ver a figura empoleirada na beira de um leito, sua pele áspera e enroscada como a casca de uma árvore antiga. - É um bosquímano,
não? Como conseguiram que ele viesse para cá?

- Eu nunca tinha visto um deles vivo - disse Elliott, dando uma espiada na janelinha.

O bosquímano tinha a cabeça virada para ela, seus pequenos olhos castanhos eram os únicos traços humanos reconhecíveis, até ele abrir a boca, e ela enxergar sua
língua rosa. Parecia estar dizendo alguma coisa.

- Mas por que ele está aqui? - Will pressionou Jürgen.

- Eu fazia parte de uma pequena equipe do Instituto de Antiguidades que trabalhava com a população indígena... ou os tribais, como nos referíamos a eles... na última
década - respondeu Jürgen. - Estabelecemos contato numa expedição e os protegemos dos militares, que enfiaram na cabeça que essas criaturas eram hostis. Na realidade,
eles não têm ideia do que havia naquele setor da selva, mas, se soubessem, mais provavelmente teriam montado uma operação para capturá-los.

Jürgen respirou fundo.

- Foi lamentável que vários soldados tenham perdido a vida quando foram considerados erroneamente uma ameaça para as pirâmides. Conseguimos evitar outras mortes
falando com os tribais e fazendo-os compreender.

Will meneou a cabeça ao perceber algo.

- Então foi por isso que eles deixaram a mim e meu pai em paz.

- É verdade - confirmou Jürgen. - Quanto a este tribal, ele foi levado de forma clandestina para meu instituto várias semanas antes da peste, e eu simplesmente não
podia abandoná-lo. Não sei se ele é vulnerável ao vírus também.

- Encontramos alguns deles mortos na selva - disse Will.

- Werner pensou que poderia ser assim. A maioria dos vertebrados é suscetível. E a fisiologia dos tribais, por baixo dessas camadas epidérmicas radicalmente diferentes,
é essencialmente igual à nossa - disse Jürgen.

Elliott não parecia estar convencida.

- Eles são humanos? Não parecem.

Mas a mente de Will fervilhava de perguntas.

- Você disse que estava trabalhando com eles? No quê, exatamente?

- Nas origens de sua civilização, nas pirâmides e na cidade em ruínas - respondeu Jürgen. - O progresso foi lento porque a comunicação com eles era muito rudimentar.
Vê aqueles desenhos na mesa, na frente dele?

Will e Elliott olharam as folhas de papel cobertas de imagens, parecidas com os pictogramas entalhados no exterior das pirâmides.

- Hieróglifos? - perguntou Will.

- Sim. Desde o início, entendemos que essa era a melhor maneira de ter algum diálogo compreensível. Veja bem, a língua deles é muito básica... Muito limitada.

- Meu pai conseguia falar com eles, mas isso não nos levou a lugar nenhum. - Will lembrou-se dos instantes dentro da pirâmide.

- Por isso este tribal estava no instituto, para fazer registros. Descobrimos de que eles se comunicam usando um conjunto inteiramente diverso de sons que mal são
audíveis ao ouvido humano. É...

- Uma espécie de zumbido agudo - interrompeu-o Will.

Jürgen assentiu.

- Exatamente.

- E é ainda mais difícil ouvir porque eles se movem ao mesmo tempo... Eles farfalham. - Will caiu em silêncio enquanto olhava a meia distância. Ainda sentia amargura
pela maneira como ele e o dr. Burrows foram tratados pelos bosquímanos. - Eu ouvi quando eles nos fizeram prisioneiros... Pouco antes de nos venderem aos Styx.

Jürgen se virou para ele.

- Entenda uma coisa, os bosquímanos não eram... Não eram seus inimigos. Eles não queriam se intrometer nos conflitos alheios. Se os entregaram aos invasores, foi
porque acreditavam que tinham de fazer isso para proteger sua pirâmide. É o que fazem. É só isso que fazem. Eles protegem as pirâmides. Gerações intermináveis foram
guardiãs... As zeladoras de algo que eles não parecem realmente entender. - Jürgen foi até a janela de observação e ergueu a mão ao bosquímano, que levantou a própria
mão, embora se assemelhasse a um maço de gravetos.

Will percebeu que havia partes de sua pele espalhadas em volta de onde ele se sentava, como folhas caídas.

- O que é aquilo perto dos pés dele?

- Sua camada epidérmica. A pele grossa é uma adaptação evolutiva. Ao mesmo tempo é uma camuflagem e uma proteção contra os raios prejudiciais do sol. Mas aqui, longe
do sol, a camada externa não é necessária, e parte dela começa a secar e se soltar.

Jürgen evidentemente queria mostrar a Will e Elliott seus quartos e partiu pelo corredor, mas Will estava perdido em pensamentos e se distraiu. Elliott o pegou pelo
braço para colocá-lo em movimento.

- Gostaria de saber o que vocês aprenderam com essas pessoas - falou ele.

- Eu ficaria feliz em lhe dar um... - Jürgen se interrompeu ao ver o filho. O menino meteu alguma coisa na mão de Will e voltou a correr. Era um pirulito de cor
viva que girava no palito, como aqueles que Will vira na loja.

Jürgen sorriu.

- Foi uma honra para você. Esses pirulitos Kriesel são os preferidos de Karl. Pode comer em seu quarto, onde poderá tirar a máscara.

- E vou mesmo - disse Will, rodando o doce com o dedo e sorrindo enquanto o menino se afastava.

Embora os quartos de isolamento fossem pequenos, os leitos eram bem confortáveis, e a comida enlatada, uma variação bem-vinda dos alimentos habituais de Will e Elliott
na selva. Jürgen foi o primeiro candidato à vacina de Werner, sofrendo nada além de uma leve dor de cabeça depois de receber a injeção e seu corpo começar a produzir
antígenos contra a doença.

Após vinte e quatro horas, Werner realizou testes no sangue do irmão para determinar se ele havia adquirido imunidade contra o vírus. Embora os testes dessem positivo,
Jürgen não se arriscou para fora da ala de quarentena, ficando em vez disso na companhia de Will e Elliott, falando de sua pesquisa sobre os bosquímanos e as ruínas
que sua equipe encontrara em expedições na selva.

Werner então vacinou a si mesmo, Karl e o bosquímano. A empolgação crescente era quase palpável entre os neogermanos, mas então, na metade do segundo dia, houve
um incidente. Will foi acordado por um estrondo e vozes no corredor. Colocando a máscara, saiu às pressas do quarto e encontrou Elliott já do lado de fora, com os
dois irmãos neogermanos. Estavam perto da porta do quarto do bosquímano, olhando pela janela de observação.

- O que foi? - perguntou Will.

- Ainda não sabemos - murmurou Werner. - Precisamos entrar.

Jürgen concordou com a cabeça.

Werner forçou a porta, depois entrou rapidamente com o irmão. Foi quando Will teve o primeiro vislumbre.

O bosquímano tinha desmaiado junto da porta, bloqueando-a. O que quer que houvesse de errado com ele, deve ter acontecido quando se levantou do leito; evidentemente,
ele derrubou a mesinha quando caiu, a responsável pelo barulho. Sua respiração estava acelerada, e a pele pingava suor.

E era pele - cada última lasca da camada externa de couro feito casca de árvore tinha se descascado, e nacos se espalhavam pelo leito e pelo chão em volta da figura.

Não havia como não ver que ele agora era humano - era um homem adulto, fino e musculoso. Mas, contrastando, sua pele era muito rosada, como de um recém-nascido.
E por todo o corpo havia pontos de sangue, parecidos com escoriações, onde o desprendimento de pedaços da casca externa rígida causara hemorragias.

Jürgen e Werner pegaram, cada um deles, os braços do bosquímano e o levaram para o leito.

Will notou então que ele não tinha pelo algum. Nem sobrancelhas, a propósito.

- Mas isto já aconteceu antes? - perguntou Will. - Todas as camadas externas caírem?

- Não, não com qualquer um dos outros tribais que tivemos conosco no instituto - respondeu Jürgen enquanto o irmão tomava o pulso do bosquímano.

- A pulsação é bem forte, mas a pressão parece muito elevada - observou Werner, contando o tempo com seu relógio.

Jürgen estava preocupado.

- Deve ser uma reação à vacina.

- Não vejo por quê. Fiz alguns testes in vitro de seu sangue antecipadamente, e não havia nada que sugeris...

- Espere... Olhem! - disse Will enquanto o bosquímano se agitava, seus olhos se abrindo, grogues. - Ele está voltando a si!

O bosquímano tentou se levantar, mas Jürgen falou com ele num tom tranquilizador, insistindo que ficasse onde estava. Embora provavelmente não entendesse o que lhe
diziam, ele relaxou e encostou a cabeça no travesseiro. Seus olhos se abriam e se fechavam como se ele lutasse para continuar consciente.

Jürgen levou um copo a seus lábios, ajudando-o a beber um pouco de água.

- Ele está muito quente - disse ele.

- Talvez tenha contraído uma febre branda ou esteja apenas se desidratando - sugeriu Werner enquanto o bosquímano bebia mais um pouco de água.

Jürgen assentiu.

- Isso explicaria por que ele desmaiou. E por que agora parece estar melhorando.

O bosquímano de fato mostrava sinais de que se recuperava rapidamente; recusou mais água e afastou o copo ao tentar falar.

Will já havia escutado algumas palavras naquela língua gutural, mas em comparação a elas o zumbido agora era muito mais audível. E ficava cada vez mais audível a
cada segundo. Era como se sua caixa vocal estivesse passando por uma transformação. Muito de repente, o zumbido agudo baixou, e sons bem-definidos e feios saíram
da garganta do bosquímano.

- Meu Deus! - exclamou Will, recuando um passo tão repentino que bateu na parede.

Elliott também ficou chocada, perplexa demais para falar naquele momento.

Jürgen e Werner se viraram para os dois com um olhar inquisidor.

- O que foi? - perguntou Jürgen.

Pelas palavras que ela conseguira reconhecer, o bosquímano perguntava qual era o problema dele.

Na língua Styx.

E como Elliott, graças ao pai, era fluente na língua Styx, pôde responder ao bosquímano:

- Não se preocupe. Vamos descobrir qual é o problema - disse-lhe ela, o som sinistro de suas palavras enchendo o quarto, como se alguém rasgasse pergaminho velho.

- Mein Gott - disse Werner.

- Mein Gott mesmo - repetiu Will a meia-voz.

Elliott voltou ao inglês para falar com Will e os dois neogermanos assombrados.

- Posso entender parte do que está dizendo. Ele quer saber o que há de errado.

Apesar de estar tão fraco, o bosquímano arregalou os olhos ao ouvir Elliott falar na língua Styx. Ergueu-se do leito e, antes que alguém pudesse impedir, atirou-se
aos pés dela. Com a cara pressionada no chão, ele repetia as mesmas palavras:

- Eles voltaram.

Will ficou pasmo.

- O tempo todo, os bosquímanos falavam em Styx. Mas em um tom agudo demais, e ninguém entendia.

Ele olhou do homem reverencioso no chão para Elliott e de volta para o homem.

- Se ele sabe falar Styx, então talvez seja parte Styx, como você, não? E talvez seu sangue... Seu sangue Styx na vacina tenha provocado esta... transformação nele.
Mas como? E por quê?

 

Capítulo Três

 

Enquanto o sol começava sua descida final, longas sombras esgueiravam-se por Londres, onde as ruas ainda estavam sem energia elétrica. As pessoas se trancavam em
suas casas e se preparavam para outra noite de medo, fome e frio. Mas não sabiam se estavam se defendendo das gangues de foras da lei que atacavam às cegas, sem
que a polícia ou o exército as impedissem, ou de algo muito mais sinistro, se os boatos que circulavam pela cidade mereciam algum crédito.

Em alguns bairros, os moradores se organizaram numa milícia local, usando veículos para bloquear as ruas e portando vassouras, implementos de jardim e até frigideiras
para afugentar quem tentasse entrar em seus terrenos sem um bom motivo.

Mas no oeste de Londres havia um bastião de aparente normalidade. O shopping Westfield, o maior da Grã-Bretanha, de algum modo ainda estava conectado a uma rede
ativa, e a luz que passava por suas janelas se mostrava irresistível para aqueles apavorados demais para continuar em casa.

Ninguém pensou em desligar o sistema de som, e uma música aguda tocava ao fundo enquanto uma voz forçada e suave de DJ passava, a intervalos regulares, uma mensagem
pré-gravada sobre promoções próximas, mas desatualizadas. As lojas em si eram definitivamente território proibido, com suas grades de segurança firmemente fechadas.
Algumas ainda tinham produtos na vitrine, mas outras foram esvaziadas e o estoque removido até que, assim se esperava, as condições voltassem ao normal.

Por todos os corredores do shopping center, pessoas em sacos de dormir ou envoltas em cobertores se preparavam para a noite. Lembrava cenas da Segunda Guerra Mundial,
quando plataformas subterrâneas foram usadas como abrigos antiaéreos. Podia haver eletricidade para manter as luzes acesas, mas o aquecimento era outra questão,
e ficava amargamente frio dentro do prédio. Uma sucessão de pequenas fogueiras foi acesa e abastecida com embalagens vazias ou qualquer outra coisa que pudesse ser
encontrada para alimentar o fogo, enquanto rostos de olhos vagos fitavam as chamas fracas.

Atados em sua própria infelicidade, nenhum deles deu atenção a uma mulher que passava. Alta e elegante, ela cruzou por entre os grupos sujos de pessoas, seus saltos
altos estalando no piso encerado. Se tivessem lhe dado alguma atenção, teriam observado que ela usava um casaco de pele caro com a gola virada para cima e que dois
homens de capuz cobrindo os rostos pareciam sombras gêmeas que a seguiam em silêncio.

Uma criança, de no máximo seis anos, foi diretamente a ela e se plantou com insolência em seu caminho.

- Ei, dona rica, tem alguma coisa pra comer? - perguntou o menino.

A mulher, Hermione, encarou o garoto com uma repulsa evidente.

- O quê?

- Eu perguntei se tem alguma coisa pra comer - repetiu o menino, dessa vez apontando um dedo sujo com impaciência para a boca, como se falasse com alguém burro demais
para entendê-lo.

Os olhos com sombras negras da mulher arderam de raiva, os músculos em seu rosto fino como navalha enrijeceram de forma que ela mais parecia uma escultura do que
um ser humano.

- Sim... - rosnou ela - ...Você!

Enquanto ela terminava de falar, um dilúvio de saliva leitosa escorreu de seu lábio preto.

Sem tirar os olhos dela, o menino tombou a cabeça de lado e fez um barulho grosseiro de quem vomita, depois se afastou trôpego. Ele sabia que ainda podia ser ouvido
ao acrescentar: "Velha horrorosa e nojenta".

Hermione pôs rapidamente a mão na boca, não para enxugá-la, mas para ter certeza de que o tubo carnudo que se retorcia como uma serpente no interior de suas bochechas
não estivesse prestes a se mostrar. Ela se virou para um dos Limitadores atrás dela.

- Não sei o que há com as crianças de hoje em dia... Elas não têm respeito algum. Tome nota de que quero dar pessoalmente uma lição a esse pirralho, sim? Já marquei
uma larva com o nome dele.

O soldado Styx assentiu rapidamente para mostrar que tinha compreendido.

Enquanto pegava a música alegre que saía dos alto-falantes do shopping, ela tombou a cabeça de lado.

- Isto é Garota de Ipanema? - perguntou. Era tão animada e formava tal contraste com a cena de desespero iluminada por lâmpadas fluorescentes à sua volta que ela
não conseguiu reprimir uma gargalhada ao partir para a loja na extremidade do shopping, na frente da qual esperavam outros dois Limitadores. Assim que a viram, eles
levantaram a porta para que ela entrasse. Ela atravessou a loja vazia, seguindo diretamente para o depósito no fundo.

Rebecca Dois estava sentada numas caixas, bem perto do capitão Franz. No instante em que a menina percebeu que alguém entrava na sala, afastou-se rapidamente dele.

Hermione parou pouco além da porta, meneando a cabeça em censura.

O capitão Franz se levantou, e a expressão distante em seus olhos indicava muitas sessões com a Luz Negra. Ele recebera o casaco preto e comprido de couro de um
Limitador Styx, e, com seu cabelo louro impressionante, Hermione teria sido a primeira a admitir que era extremamente bonito. Mas o problema era que por acaso ele
era humano.

- Estamos indo. Vamos andando - disse Hermione. Marchou para uma porta no fundo do depósito e bateu. A porta se abriu imediatamente, junto de Rebecca Dois, de seu
capitão e daqueles dois Limitadores que a seguiam, e Hermione saiu de rompante para o escuro.

O único som era o bater de seus saltos na calçada, levando-os a certa velocidade por uma sucessão de ruas. Ainda não tinham chegado a seu destino quando ela acenou
para que Rebecca Dois andasse a seu lado.

- Por acaso acabei de pegar você trocando carícias com aquele neogermano? Vocês não estavam de mãos dadas, estavam? - quis saber ela.

- Er... Sim, eu estava - admitiu Rebecca Dois timidamente.

Hermione balançou a cabeça novamente enquanto andava a passo acelerado pela rua escura.

- Você nem tem catorze anos ainda. Acha que o...

Rebecca Dois tentou interrompê-la, mas Hermione não permitiu.

- Não, trate de me escutar. Sei que você vai me dizer que é uma Styx e, portanto, sua idade em anos humanos é irrelevante. E, vendo-a agora - ela lançou os olhos
para Rebecca Dois, a seu lado -, você é de fato uma jovem mulher. Mas, no fim das contas, ele não é um de nós... É um humano. E, para completar, seu pobre cerebrozinho
humano foi condicionado tantas vezes que ele ficou zumbificado.

- Eu sei de tudo isso - disse Rebecca Dois.

Hermione esperou que a menina continuasse, mas, como isso não aconteceu, prosseguiu:

- Só estou cuidando de você. Estamos no mesmo barco, sabe disso. Mesmo que ainda não tenha sido confirmado, nós duas sabemos que perdemos nossas irmãs, nossas gêmeas.
Nós duas sabemos disso no íntimo. Podemos sentir esse vazio dentro de nós, como se faltasse algo, essa dor da separação.

Elas chegaram à igreja vitoriana, e um Limitador correu à frente para abrir a grande porta de carvalho. Em seu interior, globos luminosos foram dispostos pelas paredes,
e havia muitos outros Limitadores. Um deles tinha um homem a seus pés, encolhido no chão.

- Quem é esse? - perguntou Hermione.

- O vigário. Estava escondido na sacristia quando chegamos - respondeu o Limitador. - Tentava manter as pessoas fora da igreja.

- Mas que cristão da parte dele - disse Hermione com um olhar indagativo para o homem. - Então, ele está inconsciente?

- Não, não está. - O Limitador chutou o homem, que soltou um grito curto e se encolheu ainda mais, depois irrompeu numa torrente de orações murmuradas.

- Ah, que ótimo. Sinto o impulso. - Hermione tirou o casaco de pele. Puxou a gola de sua camisola carmim para soltar as pernas de inseto que brotavam do alto da
coluna. Continuou a dar conselhos a Rebecca Dois enquanto erguia o pé e empurrava o homem apavorado com um golpe de seu salto alto. - Só estou lhe dizendo que o
que quer que você pense sentir por ele... - Ela lançou um olhar ao capitão Franz, imóvel atrás de Rebecca - ...simplesmente não é normal. Com licença por um momento.

O vigário ainda balbuciava suas orações, petrificado demais para resistir enquanto Hermione caía em cima dele. Segurando-o pelo cabelo, ela puxou sua cabeça para
trás.

- Ele é jovem - disse ela. - Que bom ter um consciente, mas submisso, só para variar.

Hermione olhou para Rebecca Dois, dando-lhe uma encarada incisiva.

- É para isto que servem todos esses sacos de carne humana. - Ela voltou a atenção ao vigário, o ovopositor balançando-se de sua boca, procurando pela dele. Foi
então que ele começou a resistir um pouco, mas teve vida curta, porque as pernas do inseto seguraram sua cabeça firmemente pelas têmporas.

A última coisa que ele disse foi "Deus me proteja", enquanto o tubo penetrava sua boca, o saco de ovos espremendo-se pela garganta, indo cada vez mais fundo. Quando
terminou, ele simplesmente rolou de lado e se encolheu mais uma vez. Um ato reflexo à obstrução de seu esôfago o fazia ter ânsia de vômito e tosse enquanto Hermione
se colocava de pé.

- Ah, que alívio. - Ela arrumou o tubo de volta na boca. Suspirou ao se virar para Rebecca, os sucos pendendo de seu queixo. - É que seu comportamento tem desagradado.
E estou lhe dizendo agora que um dia, muito em breve, você terá de deixar para trás essa sua paixão infantil.

Havia tristeza nos olhos de Rebecca Dois ao assentir.

- Não é uma decisão difícil. Temos um ótimo futuro pela frente. - Ela se curvou para perto de Rebecca Dois e baixou a voz num tom de conspiração. - Sei como é. Eu
também aprontei das minhas na Crosta com um pagão e sei que o raciocínio pode ficar confuso e atrapalhado. Mas você é uma Styx e é aí que está a sua lealdade. Não
com um garoto bonito e fraco que será imaturo demais para você muito rapidamente. Não, você logo o esquecerá.

- Agora - anunciou Hermione, andando pelo corredor. Ela subiu a escada até o altar, onde olhou em volta, como se falasse a uma congregação inexistente. - Onde estão
minhas crianças, porque quero que eles caiam sobre aquele shopping como uma praga de gafanhotos. Vamos mostrar àqueles sacos de carne que não há lugar seguro para
eles.

Ali, no altar, suas pernas de inseto se estenderam plenamente, se uniram e estalaram, depois vibraram cada vez mais rápido, até emitirem um zunido contínuo. Ao mesmo
tempo, Hermione jogou a cabeça para trás e abriu a boca, enunciando um chamado que nenhum humano podia ouvir.

De todos os lados da igreja, as janelas de repente explodiram para dentro, os cacos do vitral chovendo sobre os Limitadores.

Jorraram Armagi de todo lado, pousando atrás dos bancos e se reunindo na nave central. Feras semitransparentes, como se feitas de gelo fluido, as plumas espetadas
de suas asas cintilavam sob a luz dos globos.

Hermione encerrou o chamado, baixando a cabeça.

- Ah, meus filhos - disse ela. - Meus filhos vieram me ver.

 

Com sua eterna escolta de uma dupla de Limitadores Styx, Danforth fazia a ronda pelo andar, olhando por sobre os ombros dos operadores sentados diante de suas telas.

Um indicador vermelho começou a piscar acima de uma das mesas, e a operadora ergueu a mão mecanicamente. Danforth de imediato foi até ela. Ela vira alguma coisa
em uma varredura de frequência de rádio e pedira por sua atenção. Enquanto ele olhava a tela, repetia "interessante" várias vezes, mas ficou distraído ao ouvir um
barulho a várias mesas de distância. Virou-se bem a tempo de ver o operador, um homem de seus quarenta anos, tirar os fones de ouvido e começar a se levantar.

- Quem disse que você podia sair de seu posto? - vociferou Danforth, mas o homem não respondeu. Por um momento ficou oscilando de pé, uma expressão distante aparecendo
em seus olhos, e tombou para trás, levando a cadeira com ele.

Resmungando furiosamente, Danforth foi ver o homem. Sem perceber nenhum sinal de que ele respirava, procurou a pulsação em seu pescoço.

- Está morto - declarou Danforth sem emoção alguma, segurando o queixo do homem para virar a cabeça. - Não imagino que um de vocês gostaria de administrar RCP para
reanimá-lo, não? - perguntou, olhando de banda os guardas Limitadores que pairavam a suas costas. - Não, foi o que pensei - respondeu ele mesmo diante do silêncio
dos dois.

Danforth examinou a cara do falecido, que tinha hematomas escuros sob os olhos e estava coberto de uma camada de suor.

- Ataque cardíaco por extrema exaustão e desidratação, eu arriscaria dizer - disse enquanto indicava os lábios azulados do homem aos Limitadores. - Podem tirá-lo
daqui, por favor?

Endireitando-se, Danforth esfregou as mãos com repulsa, como se retirasse delas o suor do homem.

- O que há? - perguntou o Velho Styx, aparecendo ao lado dos dois Limitadores.

Danforth olhou a mesa do morto, uma foto de duas crianças novas brincando nas águas cerúleas de algum mar tropical. Evidentemente eram filhos dele.

- Essa gente é apenas humana - disse Danforth sem paixão alguma. - Fritamos seus pequenos e simplórios circuitos cerebrais com a Luz Negra, e eles cumprem suas tarefas
adequadamente, mas nós os levamos bem além de seus limites físicos.

- Por necessidade. Precisamos de resultados - acrescentou o Velho Styx, mas sem antagonismo. Ele tinha um respeito relutante por Danforth, que os estava auxiliando
no reino da tecnologia que, sem sua expertise, estaria fora de seu alcance.

E onde eles estavam agora, pouco ao sul de Londres, em uma subestação de comunicações do governo onde podia ser monitorado o trânsito eletrônico, isso se provava
uma verdadeira vantagem para os Styx, que continuavam a atacar alvos importantes. É claro que a maioria das formas de comunicação, como linhas terrestres, telefones
celulares, qualquer transmissão de rádio e tevê e a internet, há muito tempo foi desligada. Mas as comunicações mais especializadas usadas pelos militares ou por
um link de satélite não podiam ser bloqueadas nem sofrer interferência, e era aí que entrava Danforth.

Ele não era apenas outro autômato que recebeu a Luz Negra e fazia apenas o que lhe instruíam - sua expertise permitia aos Styx ficar um passo à frente da resistência
militar limitada que encontravam de tempos em tempos.

Danforth mostrava-se valioso, o que era uma sorte para ele, caso contrário teria sido dispensado muitas semanas antes.

E ele também deu orientações aos Styx sobre quais estações de vigilância por radar destruir ou quais manter em operação para que qualquer interferência da comunidade
internacional pudesse ser detectada precocemente. Os Styx certamente não queriam uma força-tarefa multinacional atrapalhando enquanto eles destruíam sistematicamente
o país.

- Bem, então temos um ativo limitado por aqui - disse Danforth, olhando as faces silenciosas e abatidas iluminadas pelas telas. - Muitos desses operadores não durarão
mais de um dia ou dois sem descanso e alimentação adequada.

O Velho Styx assentiu.

- Então, deixe que operadores importantes façam uma pausa. O resto, os que fazem tarefas menos qualificadas, pode trabalhar até cair.

- Muito bem - disse Danforth, embora o Velho Styx só tenha decretado a sentença de morte da maioria dos humanos presentes na sala. - Quero lhe mostrar uma coisa.
- Ele levou o Velho Styx à tela onde fora detectado um sinal. Empurrando de lado a mulher que estivera no monitor, curvou-se sobre o teclado e digitou rapidamente.
Uma lista de números rolou pela tela. - Pode não ser nada, mas alguém está usando intermitentemente equipamento analógico neste local. - Ao bater uma tecla, apareceu
um mapa com um círculo piscando. - O sinal tem origem aqui. - Danforth mandou as coordenadas para a impressora, agarrou a página assim que ela saiu e entregou-a
ao Velho Styx. - Vale a pena mandar uma patrulha para investigar, não acha?

- Sim, vamos despachar uma imediatamente - confirmou o Velho Styx.

Danforth o olhou.

- E fica muito perto de onde eu o aconselhei de que nós devíamos estar agora. É uma das principais rotas de alimentação para o Quartel-General de Comunicações do
Governo em Cheltenham. - Danforth indicou todos os operadores na sala com um gesto. - É claro que podemos detectar e situar transmissões daqui, mas o equipamento
que eles têm nessa instalação... No Doughnut, como é chamado... Não perde para nenhum outro. Sei disso, porque projetei parte dele quando o lugar foi construído.
E com esse equipamento a sua disposição, vocês podem entrar nos sinais, mesmo do tráfego por satélite, e espionar o conteúdo em seu cerne. Até mesmo em transmissões
criptografadas.

- Sim, sua recomendação foi registrada - respondeu o Velho Styx. - É algo com que teremos de lidar mais cedo ou mais tarde, de qualquer forma, e é irritante que
não tenha sido possível penetrar antes e tomá-la para nosso uso. As medidas de segurança para detectar aparelhos de Luz Negra são muito extensas, e o perímetro militar
é formidável.

- Então isso é um sim? Vamos ao ataque? - perguntou Danforth.

- Sim, muito em breve. - O Velho Styx respirou fundo. Sua voz não mostrava emoção, embora ele tenha semicerrado os olhos num grau mínimo. - Este lugar sempre esteve
no topo de sua lista, Danforth. Há algum motivo oculto para sua sugestão?

Danforth sorriu, mas foi com malícia.

- Alguns anos atrás, ofereci voluntariamente meus serviços consideráveis, e eles nem ao menos me receberam. Grande parte dessa instalação não seria o que é hoje
se não fosse por mim. Eles bem que merecem isso.

- Brilha agora como um cometa da vingança. - O Velho Styx citou Henrique VI, de Shakespeare.

- Um profeta da ruína de nossos inimigos! - disse Danforth, acrescentando o verso seguinte.

Houve um momento em que os dois homens simplesmente se olharam, reconhecendo um espírito irmão, antes que falasse o Velho Styx.

- Compreendo um homem com essa motivação. - Ele se virou para os dois Limitadores. - Vocês receberam a ordem de remover o corpo. Por que ainda não obedeceram? -
Ele deu meia-volta e se afastou.

Danforth ficou com um de seus Limitadores originais enquanto o outro cuidava do operador morto. Reprimindo um bocejo, fez uma última ronda pelo salão e partiu para
a sala sem janelas que tem sido seu lar no último mês. Embora nunca dormisse muito, de vez em quando tirava um cochilo. Sem apagar a luz e plenamente vestido, ele
foi diretamente à cama de campanha e se deitou enquanto o Limitador continuou no corredor, onde assumiu guarda.

Danforth bocejou ao rolar de lado. O Limitador à frente de seu quarto não tinha como ver o que ele fazia: colocava a mão na boca e torcia um dos molares. Com um
estalo mínimo, a coroa oca saiu.

Em certa época, quando ele era enviado ao exterior para aconselhar os serviços de inteligência de outros países sobre sua vigilância eletrônica, sempre havia o risco
de ser capturado e torturado pelo que sabia. Na época, o molar oco continha cianeto suficiente para matá-lo em segundos.

Mas se Danforth tinha um talento acima de todos os outros, era a capacidade de miniaturizar um equipamento eletrônico. E foi precisamente isso que fez a fim de encaixar
o rádio de última geração dentro do dente.

- Eu sabia que devia ter vendido a patente à Sony - disse ele baixinho enquanto ativava o rádio minúsculo, pressionando a unha.

Não precisava ver o dispositivo, operando-o apenas pelo tato. Batendo a mensagem em código Morse, o dispositivo começou a gravá-la. Era apenas uma curta mensagem,
mas quando estava pronta Danforth o pressionou um número predeterminado de vezes, e ela foi enviada numa frequência que, não por acaso, estava em um ponto cego para
o equipamento de detecção no corredor próximo.

De qualquer modo, a transmissão levaria apenas uma fração de uma fração de segundo - ou, como chamavam os militares, "um burp" - porque a mensagem era altamente
comprimida. Mesmo que um dos operadores na sala principal por acaso captasse a transmissão em sua tela, muito provavelmente teria desprezado como um defeito da varredura.

O dente foi atarraxado no lugar, e o leve sorriso nos lábios de Danforth desapareceu enquanto ele caía no sono.

 

- Humm. Você não pode fazer isso - disse Chester.

- Fazer o quê? - Stephanie estava à mesa perto da janela, recurvada sobre o tabuleiro de xadrez.

Levantando-se de sua poltrona perto do fogo, Chester colocou-se ao lado dela.

- Os peões só se movem na diagonal quando estão comendo alguma coisa - disse ele, lançando os olhos pelas várias peças que ela deixara em posições ao acaso enquanto
treinava. - Seu avô deve ter dito isso a você.

- Disse, mas isso não é totalmente idiota? - Stephanie deu um peteleco na pequena peça de xadrez com uma das unhas pintadas de um vermelho-vivo. - Os pegões parecem
um zé-ninguém, quase tão inúteis quanto os cavalos e castelos idiotas.

- Peões. - corrigiu-a Chester com gentileza. - Eles se chamam peões.

Aos poucos ele saía de sua concha depois do trauma de ver os pais morrerem no Complexo. Mas era um processo lento, e, no início, qualquer barulho repentino, como
uma porta batendo ou uma voz elevada, era demasiado para ele e podia deixá-lo aos prantos. Só o que Chester queria era se esconder debaixo das cobertas em um dos
quartos minúsculos nos altos do chalé e dormir e dormir, porque era o único jeito de escapar de sua angústia.

O problema era que, quando por fim acordava, havia alguns segundos de tranquilidade antes de ele se lembrar do que fazia ali. E então as lembranças terríveis voltavam
em uma torrente, e a dor estava com ele mais uma vez. Era mais do que Chester podia suportar, como se algo o devorasse por dentro até que só restassem a perda, o
pesar e uma paralisia incapacitante.

Depois de algumas semanas assim, ele tinha dormido tudo que pôde, então passou a simplesmente ficar deitado na cama, encarando os cantos do quarto. Sentia-se cada
vez mais perdido e solitário enquanto um vento uivava do mar, sacudindo as telhas como os tambores de um desfile distante. Sua mente não parava de repassar, vezes
sem conta, o dia fatídico em que os pais foram mortos, e ele analisava e revivia cada evento mínimo que levou ao momento da explosão, alterando-os um pouco a cada
vez ao imaginar o que podia ter feito para evitar a morte dos dois.

Eu nunca, nunca devia ter deixado minha mãe. Se tivesse ficado com a mãe na cozinha... Por que a deixou sozinha quando foi procurar Drake? Devia ter grudado nela,
sem deixar que ela saísse de vista. Não! Papai! Pare! Chester podia ter impedido que o pai andasse pelo túnel até a sua mãe, derrubando-o no chão se necessário.
Se tivesse feito isso, o pai hoje muito provavelmente estaria vivo e talvez a mãe também. A versão de Chester daquele dia tornava-se cada vez mais fantasiosa até
que estava confrontando Danforth no túnel, esvaziando um pente inteiro no traidor enquanto a Sten sacudia em suas mãos.

- Tome isso, seu BABACA fedorento! - grunhia Chester entredentes, saindo de seu devaneio ensopado de suor e com os punhos cerrados de ódio pelo homem que assassinara
seus pais. Ele jamais quis tanto machucar ou matar alguém, talvez ainda mais do que as gêmeas Rebecca e os próprios Styx. Mas, pensando bem, Martha não estava longe
do topo de sua lista de ódio pelo que o fez passar.

E mesmo que precisasse desesperadamente descer, talvez porque tivesse sede e quisesse água, Chester continuava onde estava, sem se importar com o incômodo. De qualquer
modo, o Velho Wilkie sempre mantinha vigília durante a noite numa cadeira na porta da frente, armado com sua espingarda para o caso de os Styx resolverem aparecer.
Por mais deprimido que estivesse, Chester relutava em ter seus miolos estourados pelas paredes do chalé ao topar com o homem. Seria aborrecimento demais.

E então, para sua grande surpresa, Chester descobriu que começava a desejar a companhia humana, embora de longe. Descobriu que se sentia um pouco melhor ficando
perto de Stephanie e do Velho Wilkie, embora fingisse interesse em seu livro para ter uma desculpa para não falar com nenhum dos dois.

Essa falta de comunicação com Stephanie e o Velho Wilkie tornava a vida muito difícil nos limites do chalé apertado, onde estavam completamente isolados do mundo.
Eles tiveram o mais infeliz almoço de Natal que Chester podia ter imaginado, sentados na maior parte do tempo em silêncio em volta da refeição que o Velho Wilkie
se esforçou tanto para preparar. Só o que isso fez por Chester foi invocar as lembranças de Natais passados com os pais. Incapaz de controlar as emoções, ele deu
a desculpa de uma forte dor de cabeça para sair da mesa, mesmo antes que o Velho Wilkie trouxesse a sobremesa.

- Peões, que seja - dizia agora Stephanie, balançando a cabeça, pegando a rainha do tabuleiro para admirá-la. - Essas daqui são o bicho, porque podem andar para
qualquer lado e quantos quadrados você quiser. E são muito mais poderosas do que todos os outros, inclusive o rei velho e tapado, que só sabe fugir e fazer você
perder o jogo. Quer dizer, por que não dá pra jogar só com rainhas? O jogo ficaria tipo muito melhor.

- Mas então não seria xadrez - raciocinou Chester. Ele começou a suspirar, mas transformou o suspiro em um murmúrio pensativo, como se estivesse considerando seriamente
a sugestão dela, porque não queria aborrecer a menina. Não suportava a ideia de aborrecer ninguém; ainda se sentia dilacerado e ferido demais por dentro, então evitava
confrontos desagradáveis. E vê-la tentar aprender o jogo o fez perceber quanta falta sentia de Will, seu adversário de longa data. - Você não pode mudar inteiramente
o jogo, mas há outras maneiras de jogá-lo - acrescentou ele.

Stephanie cruzou os braços e fez uma cara zangada, mas Chester sabia que não era sincera.

- Talvez você deva experimentar jogar segundo minhas regras - sugeriu ela, olhando para Chester por baixo da cabeleira ruiva, solta pela cara. Essa era uma evolução
surpreendente porque em geral ela cuidava muito da aparência, mas hoje era um de seus ditos "dias de cabelo ruim", como os chamava.

Stephanie informou ao avô e a Chester que, como só os três estavam no chalé, não ia se esforçar para lavar o cabelo toda manhã. Era "chatice" demais, disse ela,
porque carregar a água quente do fogão Aga até o segundo andar era muito trabalho e de jeito nenhum ela estava disposta a tomar banho frio. Além disso - continuou
a dizer a eles -, como estavam no fim do mundo e havia uma probabilidade zero de alguém passar ali para vê-los, que sentido tinha?

Chester não sabia se devia ficar lisonjeado por ela relaxar em sua companhia ou irritado porque ela não fazia um esforço por ele.

Stephanie devolveu as peças a cada lado do tabuleiro, mas não em suas posições de costume.

- E aí, vamos fazer o meu jogo, fingindo que todos são rainhas. A não ser, é claro, pelos dois reis chatos. - Ela olhou para Chester. - Prepare-se para levar uma
surra, Chucky Boy.

- Bom... - começou ele, olhando o livro que deixou aberto na poltrona. Não queria participar disso, mas era incapaz de pensar numa desculpa em tão pouco tempo.

- Puxe a cadeira e prepare-se para sua ruína - disse Stephanie, apontando a cadeira de frente para ela. - Sabe de uma coisa, sua cara está melhor - comentou enquanto
ele demorava para fazer o que ela pedia. - Meu hidratante está mesmo ajudando.

- Sim, obrigado por isso. - Chester tocou a testa onde as pequenas crostas se curavam. Seu eczema tinha estourado como nunca na cara toda e nas mãos. O Velho Wilkie
sugeriu que era mais provável que tenha sido incitado pelo que ele passou, mas Chester preferia dizer a si mesmo que se devia à umidade no chalé. - Agora eu estou
menos freak show - disse ele, pouco à vontade.

Stephanie sorriu.

- Você nunca f...

Ela foi interrompida quando a porta da cozinha se abriu, e o Velho Wilkie entrou, seguido de perto por alguém que parecia ser um soldado. O homem usava um blusão
impermeável da SAS e capuz, o qual agora ele jogava para trás.

- Parry! - Chester explodiu ao reconhecer a barba grisalha e as feições ásperas, correndo para ele. - Eu não sabia que você estava aqui!

- Oi, garoto, como você está? - disse Parry calorosamente, segurando a mão de Chester nas mãos. - Desculpe por ter deixado vocês aqui por tanto tempo.

- Pensamos que vocês tinham se esquecido da gente - comentou Stephanie.

Parry reconheceu a presença dela com um sorriso rápido, depois se virou novamente para Chester.

- Vim assim que tive a oportunidade. As coisas ficaram meio caóticas, para dizer o mínimo. - Enquanto Parry falava, Chester viu sua boina bege, notando a adaga alada
no distintivo. - Sim - disse o velho. - Estive ajudando o regimento. Mais importante, porém, me diga, como tem passado?

- Melhor, eu acho - respondeu Chester categoricamente.

- Ooooooh, eu devo estar um horror - resmungou Stephanie enquanto começava a arrumar o cabelo, lançando olhares para a porta por onde Parry havia entrado, para o
caso de mais alguém estar prestes a aparecer.

- Tem notícia dos outros? De Will ou Elliott? Ou Drake? - perguntou Chester. - Eles voltaram?

Parry tinha apanhado o telefone por satélite e agora o passava de uma das mãos à outra.

- Não, mas é cedo demais para deixar de ter esperanças. Quem sabe no que se meteram quando chegaram lá? Talvez tenham conseguido fazer o trabalho, mas encontraram
resistência ao voltar para casa - respondeu Parry de um jeito estudado, embora Chester tenha visto um leve franzido em seu rosto antes de Stephanie se intrometer.

- Mas como você chegou aqui, Parry? Não ouvimos sua chegada.

- De helicóptero - respondeu Parry. - É praticamente o único jeito de andar por aí ultimamente.

- Então agora está tudo limpo? Podemos ir para casa? - Ela foi rápida em perguntar.

Não havia dúvida do quanto Parry estava preocupado, porque sua testa formava vários Vs. Seus olhos encontraram o rádio no peitoril da janela.

- Exatamente o quanto vocês sabem sobre o que vem acontecendo no resto do país?

- Na verdade, nada - disse Stephanie, também se virando para olhar o rádio. - Só temos essa coisa velha. Podemos sintonizar em algumas estações, mas o sinal é tão
fraco aqui que ele sempre tipo cai. Nem mesmo posso ouvir música direit...

- Isso porque os Styx continuam a atacar a divulgação de notícias - interrompeu Parry -, interferindo nas frequências para que nada consiga passar. - Enquanto ele
respirava fundo, Chester aproveitou a oportunidade de falar:

- Então as coisas vão mal, não é?

Parry soltou uma risada sem nenhum humor.

- Mal é pouco. Ninguém confia em mais ninguém, principalmente porque estão assustados e com muita fome. As importações pararam, então há pouca comida, e de qualquer
forma a infraestrutura de transporte parou.

Parry meneou a cabeça.

- Há tumultos e saques por toda parte do país porque o que resta da força policial simplesmente desistiu. As pessoas estão escondidas em suas casas, as bases militares
erguem fortificações como se fossem feudos, e gangues de justiceiros descontam na minoria mais próxima em que conseguem colocar as mãos. É como se o país tivesse
sido jogado na Idade Média.

- Mas o que o governo está fazendo a respeito disso? - perguntou Stephanie.

- Eles não têm a mais remota ideia de como consertar as coisas - respondeu Parry. - E não adianta mandar ninguém à Europa em busca de ajuda. Estão mortos de medo
que isso se espalhe para eles, então simplesmente nos deram as costas.

- Então, nosso ataque ao depósito não adiantou muita coisa para impedir os Styx - disse Chester.

- Infelizmente não - respondeu Parry. - Quando as Rebeccas fugiram, uma gêmea continuou na Crosta com uma mulher Styx, e acreditamos que a outra desceu ao mundo
interior. Então, tudo aquilo que Eddie avisou que aconteceria está se tornando realidade.

Por mais que quisesse fugir de tudo isso, Chester não pôde deixar de fazer a pergunta inevitável.

- Você está falando da Fase?

- Nós a atrasamos com nosso assalto ao depósito, mas isso só teve o efeito de dar um empurrão, talvez até para algo ainda pior. Aqui, na superfície, enfrentamos
mais do que apenas Limitadores e humanos com Luz Negra agora. Eles também estão com os Armagi.

- E como eles são? - perguntou Stephanie.

- Parecem os Limitadores até se transformarem, depois não se parecem com nada que há nessa terra de Deus. São extremamente eficazes como máquinas de matar, em qualquer
ambiente em que operem. Sei disso porque os vi em ação. - De repente Parry parecia muito cansado. - E, quanto a como exatamente vamos lidar com eles, tenho de confessar
que no momento não temos nenhuma resposta.

Stephanie abriu a boca para falar de novo, mas Parry a impediu.

- Não sei por quanto tempo ficaremos em segurança aqui, porque os Armagi podem ter detectado meu helicóptero pelo caminho. E, além disso, nossa última informação
é de que os Styx tomaram várias instalações de radar importantes.

- Não é seguro aqui? - murmurou Chester.

- Não, então quero que todos arrumem suas coisas. Vocês vão embora comigo quando eu for.

- Vamos mesmo embora? - disse Stephanie, tentando ao máximo não parecer deliciada.

- Vamos, mas não neste exato momento. Chester, preciso que você primeiro vá a um lugar comigo. E trate de vestir roupas quentes - avisou Parry, já partindo para
a porta.

- Nós vamos sair? - Chester falou sem nenhum entusiasmo, olhando pela janela a escuridão que se adensava do lado de fora. - Eu tenho mesmo que ir?

- Sim, preciso de você comigo. - Pelo tom de Parry, Chester sabia que não tinha a alternativa de rejeitar, por mais indisposto que estivesse para se envolver em
ação novamente. - Vamos a um ponto de encontro com alguns contatos meus. E não leve armas... É melhor que você não esteja armado - acrescentou Parry, antes de bater
a bengala uma vez no chão, depois se virar para a porta de saída.

Chester seguiu o conselho de Parry e vestiu um blusão grosso e seu casaco mais quente. Ao sair do chalé, o homem falava ao telefone por satélite, mas era diferente
daquele que ele levara para dentro. Ergueu a mão para indicar que precisava terminar a conversa, virando-se um pouco para que Chester não ouvisse o que dizia.

Embora o vento frio o atingisse, Chester começou a ferver por dentro; por mais que respeitasse Parry, estava farto de tudo aquilo. Criava coragem para dizer-lhe
isso, para poder voltar para dentro, para sua ótima cama quente, quando o velho de repente encerrou a ligação.

- Precisamos ir andando - disse ele, indo pelo campo coberto de arbustos, na direção do mar. Com um gemido, Chester o seguiu.

Parry ganhava velocidade e mal usava a bengala enquanto eles se aproximaram da beira do penhasco. Ele parecia muito familiarizado com o terreno ao seguir o penhasco
até onde descia uma trilha. Toda a força do vento agora estava neles, e Chester lutava para não perder o equilíbrio na pedra. Havia uma corda grossa onde se segurar,
mas ainda era uma tarefa assustadora com apenas a lanterna fraca de Parry iluminando o caminho. E então eles chegaram à base.

- Mantenha os braços junto do corpo, e as mãos, abertas - aconselhou Parry a Chester, elevando a voz para ser ouvido com a rajada de vento. - E não faça nenhum movimento
brusco. Você não tem motivo nenhum para ficar alarmado com o que está prestes a acontecer.

- Alarmado... Mas o que está prestes a acontecer? E por que eu preciso estar aqui, aliás? - exigiu saber Chester, incapaz de disfarçar a antipatia em sua voz. Na
realidade, ele não concordara com nada disso e agora estava parado em uma praia, no escuro, no meio de uma ventania. Não estava preparado para se enrolar em outro
dos esquemas de Parry. O último resultou em todo mundo sem ar no Complexo, depois que aquele louco do Danforth explodiu tudo e matou seus pais.

- Olha, eu lamento arrastar você para isso, meu velho, depois de tudo o que você passou - disse Parry, dando um aperto no braço de Chester através do casaco acolchoado.
- Mas isto é importante, e você é importante.

Puxou Chester gentilmente ao descer a ladeira para a praia. Enquanto seus pés esmagavam os seixos, Chester tentou enxergar se havia alguém ali, seus olhos semicerrados
contra os respingos do mar. Mas não conseguia ver ninguém na praia, que desapareceu na escuridão melancólica dos dois lados dele.

Parry parou de repente depois de terem coberto metade da distância até o mar, depois prendeu a lanterna no casaco.

- Agora coloque as mãos na cabeça. Devagar - avisou a Chester. - E relaxe. Você vai ficar bem.

Chester seguiu com relutância o exemplo de Parry, parte dele se sentindo muito apreensiva, outra parte se ressentindo amargamente dessa invasão em sua vida. Em seu
luto.

- Chamando Delta Eco - anunciou de repente Parry em voz alta, depois repetiu as palavras num volume ainda maior para que fossem ouvidas junto com o barulho do vento
e o quebrar das ondas.

De algum lugar ali perto veio uma resposta severa e eficiente.

- Ianque Alfa.

De repente sombras ganharam vida em volta deles.

Chester teve um vislumbre de homens vestidos de preto ameaçando com armas antes que seus braços fossem apanhados e puxados às costas. Ele sentiu uma corda ser passada
por seus pulsos, amarrando-os firmemente, e um capuz foi colocado em sua cabeça.

Evocava tanto a brutalidade com que ele foi tratado na Colônia, quando foi sentenciado ao Banimento, que ele começou a lutar contra seus captores, torcendo o corpo
para escapar deles.

Alguém cochichou em seu ouvido.

- Calma, garoto, ou vamos apagar você. - A voz era americana, e Chester não tinha dúvida de que o homem falava sério. Deixou que seu corpo relaxasse, fechando os
olhos sob o capuz e se permitindo ser levado pelo resto da praia, depois entrando numa espécie de barco ou bote inflável. O barco era jogado pelas ondas, e veio
o barulho baixo de um motor de popa, e então ele sentiu um solavanco para a frente. Ele estava em movimento.

Cinco minutos depois, a embarcação esbarrou em alguma coisa, e Chester foi erguido por homens dos dois lados, seus pés encontrando uma superfície firme. Enquanto
era carregado por uma curta distância, dizia a si mesmo que devia ser um navio; em seguida, os dois homens o fizeram parar.

- Tire o capuz e desamarre-os - gritou outra voz americana.

Suas mãos foram libertadas, e o capuz, arrancado da cabeça. Chester piscou, tentando distinguir onde estava. Uma luz vermelha e difusa se infiltrava pelos respingos
do mar. A luz parecia vir de algum lugar no alto.

- Abra os braços, amigo - ordenou um dos homens ao lado de Chester, e ele obedeceu de imediato.

Os homens fizeram uma revista completa nele, apalpando braços e pernas e até lhe dizendo para levantar cada pé a fim de verificar o solado das botas. Depois pegaram
uma espécie de escâner, que apitava ao ser passado por todo seu corpo, concentrando-se em particular na barriga. A pouca distância, ele via que Parry passava pelo
mesmo tratamento.

- Verificação encerrada. Ele está limpo - disse um dos homens ao lado de Chester.

- Idem para este aqui - reportou quem acompanhava Parry.

- Vá para a escada - disseram a Chester enquanto ele era conduzido na direção da luz.

Ele não sabia onde estava, mas se erguia no mar como algo de tamanho considerável. Não era um navio - tinha certeza disso. As ondas maiores quebravam em anteparas
no convés, e a única estrutura que ele distinguia vagamente ao se aproximar tinha cerca de doze metros de altura.

No brilho vermelho, localizou grandes caracteres brancos na torre que assomava da escuridão enevoada diante dele.

USS Herald, Chester leu. E então a ficha caiu.

- Um submarino? - perguntou ele, incrédulo, ao subir os degraus de metal ao lado da torre de comando. - Estamos em um submarino americano?

- Sim, meu amigo, você é convidado de um dois melhores e mais assombrosos submarinos nucleares dos Estados Unidos - disse lentamente atrás dele uma voz rude.

 

- Sem muito movimento esta noite? - perguntou Eddie.

- Não. Nada entrando ou saindo - disse o homem na mira, sem levantar a cabeça.

Vários postos de observação foram montados em prédios em torno da periferia da GCHQ, a instalação governamental em geral chamada de "Doughnut" devido à estrutura
semicircular tão parecida com uma rosquinha, e Eddie agora verificava cada um deles. Aquele posto de observação foi armado no sótão de uma casa abandonada, em que
parte do telhado foi retirada para que houvesse uma visão clara da instalação do governo a várias centenas de metros, uma das poucas que os Styx ainda não se deram
ao trabalho de retirar de ação. E era um posto de observação típico, como todos os outros, guarnecido por um dos ex-Limitadores de Eddie e um membro da Velha Guarda,
que se revezavam na vigilância vinte e quatro horas por dia.

Indo em direção à abertura no telhado, Eddie olhou as luzes no Doughnut. Embora Londres parecesse estar recebendo o grosso dos ataques Styx, ele desconfiava de que
era só uma questão de tempo antes que fizessem alguma coisa com a GCHQ, que continuava a operar. A ameaça, quando chegasse, seria de fora e não da equipe da própria
instalação, porque no momento em que foram entregues aos militares os primeiros relatórios de Parry alertando da Luz Negra, o diretor da GCHQ teve a precaução de
colocar em prática as medidas de confinamento do centro. Parry e o diretor se conheciam havia várias décadas, assim o diretor não teve dúvida de que era algo que
deveria levar a sério. Ele dobrou o pessoal em todos os pontos de acesso ao Doughnut, criou um perímetro militar a mais em volta dele e, o que foi fundamental, implementou
o uso de Descontaminadores em toda equipe vinda de fora, muito antes que a maioria das outras localizações em risco fizesse o mesmo.

E agora, enquanto um membro da Velha Guarda observava a estrada por seu binóculo, com uma xícara ao seu alcance cheia da sopa fumegante de sua garrafa térmica, Eddie
deu uma última olhada demorada nele.

O Limitador, sentado no canto do sótão, saiu de seu estado de transe ao ouvir a voz de Eddie.

- Vou verificar o próximo posto - disse Eddie, olhando o relógio antes de ir para a escada que descia do sótão.

Ao pisar no primeiro degrau, ele lamentou que os dois homens fizessem parte de um jogo que exigiria sua vida. Sua localização foi entregue aos Styx de bandeja, e
os dois seriam sacrificados para manter as aparências, mas a cara de Eddie - como sempre, inexpressiva - não traía nada.

- Obrigado, vocês dois - disse ele ao descer e sair de vista.

 

PARTE DOIS

A Torre

 

Capítulo Quatro

 

O bosquímano quicava no banco ao lado de Jürgen, que conduzia o veículo militar neogermano pela selva a certa velocidade. Pesava dezoito toneladas e fora confiscado
de um complexo militar na cidade e, com sua combinação de rodas e esteiras de trator, era ideal para a trilha na selva, transformada recentemente em um rio de lama.

Havia numerosas caixas de aparelhos na traseira do veículo, os quais os irmãos neogermanos reuniram apressadamente para a expedição. Apesar disso, ainda havia muito
espaço para Will e Elliott se espalharem.

Sentados um de frente para o outro nos bancos laterais, Will chamou a atenção de Elliott.

- Ele está fazendo aquilo de novo - murmurou a ela, indicando o bosquímano no banco da frente.

Era preciso se acostumar com a nova aparência da criatura. Ela agora estava muito diferente, usando uma calça de brim azul, gorro e óculos de sol envolventes, tudo
muito necessário para protegê-lo do sol depois que perdeu sua extraordinária camada epidérmica.

Mas não era por isso que Will apontava para o bosquímano. Como fez desde o momento em que Elliott falou com ele em Styx, o homem a olhava furtiva e constantemente,
como se não conseguisse tirar os olhos dela. E sempre que Elliott retribuía um de seus olhares, ele virava a cara rápido.

E agora fazia isso de novo, espiando por sobre o ombro. Como era de se esperar, Elliott fez um gesto reconhecendo sua presença, e ele virou a cabeça rapidamente
para o para-brisa. Nenhuma vez a olhou nos olhos.

Por causa do barulho do motor, Will se curvou para Elliott, gesticulando para que ela se aproximasse e ouvisse o que ele queria dizer.

- Acho que nosso bosquímano aqui tem uma queda por você - sugeriu ele com malícia.

Elliott balançou a cabeça.

- Deixe de ser idiota, Will.

Will sorria.

- Temos que dar um nome ao seu novo namorado. Não podemos continuar chamando o sujeito de o bosquímano.

Elliott não caiu na provocação de Will, pensando em voz alta.

- Não, tenho a sensação de que ele tem certo medo de mim... Por algum motivo.

- Já sei! Woody! - explodiu Will de repente. - Isso, é assim que vamos chamá-lo... Woody... Entendeu? De madeira?

Elliott gemeu.

- Parece uma das piadas horríveis de Drake - comentou ela, sorrindo com tristeza. - Nunca pensei que sentiria tanta falta delas.

- E se as folhas de Woody voltarem a crescer, podemos mudar o nome dele para Farfalho - acrescentou Will, mas num tom monótono, porque, como Elliott, ele pensava
no amigo Drake e na improbabilidade de ter sobrevivido à explosão nuclear.

O que Elliott disse sobre Woody, quando ele acabava de ser batizado, tinha algum mérito. Ele parecia totalmente assombrado com ela e interessado apenas em Elliott,
embora tivesse voltado a olhar as árvores através de seus óculos durante o percurso pela selva densa. Nas primeiras vinte e quatro horas depois de recuperar a consciência,
Woody tentou várias vezes se jogar aos pés dela. E só dizia as mesmas palavras: "Eles voltaram."

A revelação de que Elliott era meio Styx - ou meio invasora, como eles insistiam em colocar - pegou de surpresa os irmãos neogermanos porque nem Will nem Elliott
julgaram suas origens relevantes quando contaram a Jürgen sobre a série de acontecimentos que levaram à liberação do vírus no mundo interior. Mas, ao que parecia,
os irmãos neogermanos aceitaram o fato depois de conversar mais detalhadamente com Elliott sobre o assunto e, de qualquer modo, no início do segundo dia a febre
de Woody tinha cedido completamente. Ele parou de tagarelar seu bordão em Styx e se fechou inteiramente, retraindo-se muito.

O diagnóstico de Werner era de que Woody sofria de choque devido à repentina transformação física. Numa tentativa de ajudá-lo a se readaptar, Jürgen ficou um tempo
com o bosquímano em seu quarto, tentando se comunicar com ele como fez anteriormente, usando os hieróglifos escritos à mão. Jürgen queria que ele pelo menos compreendesse
que estava imune ao vírus e podia sair da ala de quarentena sempre que quisesse.

Em seguida, eles colocaram isso à prova. Depois de muitas semanas entocados, foi uma ocasião e tanto quando os irmãos neogermanos, junto com Karl e Woody, passaram
pelas áreas de descontaminação sem os trajes. Ninguém disse nada ao sair do interior escuro do hospital para a entrada principal, seguidos por Will e Elliott. As
chuvas tinham caído e lavado grande parte das cinzas, e assim as ruas estavam mais limpas do que antes. Era quase como se a cidade tivesse voltado ao normal, exceto
pelo monte de ossos calcinados que ainda servia de testemunho ao terrível impacto da peste.

Parados sob o sol ofuscante, todos se olhavam. Depois Werner abriu os braços como um cantor de ópera prestes a soltar a voz e engoliu uma grande golfada de ar. Prendeu-o
por alguns segundos, como se o saboreasse, depois respirou lenta e dramaticamente pelo nariz. Por muitas semanas, só o que os neogermanos e o bosquímano conheceram
foi a atmosfera muito filtrada da ala de quarentena, mas agora estavam livres para ir aonde quisessem na cidade.

- Ora, até agora tudo bem. Ainda não sinto sintoma nenhum - anunciou por fim Werner, e começou a rir. - Estou brincando. Os testes mostraram que a vacina é eficaz.
Vamos ficar bem!

Jürgen também ria e abraçava o filho - só Woody continuava parado, virando a cabeça para pegar os raios de sol em sua pele nova.

Jürgen voltou-se para Will e Elliott.

- Sem vocês, talvez nunca víssemos este dia. Era só uma questão de tempo até que a energia reserva se esgotasse e ficássemos expostos.

- Tudo bem - respondeu Will, desfrutando do momento com eles. - E agora vou assaltar a doceria. Alguém se interessa?

Ao ouvir isso, os olhos de Karl se iluminaram.

Naquela noite, eles voltaram à ala de quarentena carregando várias sacolas de comida que haviam recuperado. Não precisavam se preocupar com a esterilização de nada,
agora que todos tinham imunidade. Jürgen preparou uma refeição para comemorar sua nova liberdade, e todos estavam sentados à mesa, muito satisfeitos, quando, subitamente,
Woody começou a tagarelar desvairadamente em Styx, como se finalmente tivesse lhe ocorrido que estava seguro da peste.

- Não consigo entender tudo. - Elliott fazia o máximo para compreender o que Woody dizia. - Mas acho que é sobre o povo dele... Ele acredita que talvez ainda estejam
vivos em... Não reconheço a palavra, mas talvez queira dizer pirâmides. Bem dentro delas.

- Será possível? Depois de todo esse tempo? - perguntou Jürgen ao irmão.

- Tudo é possível - respondeu Werner. - Você disse que eles moraram nas pirâmides por meses a fio. Talvez tenham notado que havia alguma coisa errada quando a fauna
da selva começou a morrer e se confinaram a tempo. - Ele olhou para Woody, que ainda tagarelava. - Tudo depende da circulação do ar dentro das pirâmides. Acho muito
improvável, mas... - Ele se interrompeu.

Jürgen refletiu por um momento.

- Não podemos simplesmente ignorar o que ele está nos dizendo. Se podemos salvar mais indígenas, precisamos agir rapidamente.

Will e Karl desfrutavam dos pirulitos Kriesel que tinham saqueado naquele mesmo dia quando Will notou o olhar de Elliott. Parecia que seu jeito simples de viver
na pirâmide não lhes seria restaurado tão cedo.

E agora estavam eles no veículo militar, embarcando em uma missão para resgatar mais bosquímanos, embora não fizessem ideia se algum deles teria sobrevivido por
tanto tempo.

- É aqui que termina a trilha principal. A partir daqui, vamos a pé - gritou Jürgen, parando o veículo em uma clareira que evidentemente servia como área de manobra.
Ao desligar o motor e sair do veículo, ele olhou brevemente na direção de onde vieram.

- E o que vamos fazer agora? Esperar que Werner e Karl nos alcancem? - perguntou Elliott.

- Não, vamos sem eles - respondeu Jürgen, contornando até a traseira do veículo e abrindo a caçamba. - Eles vão levar um tempo para chegar aqui e me informarão por
rádio quando estiverem perto. Nesse meio-tempo, podemos transferir parte do equipamento para a pirâmide.

Jürgen, Will e Elliott pegaram na traseira do veículo algumas caixas de tamanho considerável - graças à baixa gravidade carregavam muito mais do que teriam conseguido
na superfície. Equilibraram as caixas no alto da cabeça enquanto Woody os levava em procissão pela mata fechada. Ninguém realmente esperava que carregasse alguma
coisa, mas pelo menos ele usava seu conhecimento da selva para conduzi-los a uma trilha natural, de modo que não eram obrigados a abrir caminho usando os facões.

Tinham uma boa distância para cobrir, e Woody parecia decidido a chegar à pirâmide e, assim, aumentava continuamente o ritmo. O tempo todo, Jürgen insistia em que
ele fosse mais devagar. Enfim saíram da linha das árvores, e lá estava a pirâmide. Ainda molhada devido ao dilúvio recente, as gotas de água capturavam o sol e cintilavam
como milhares de diamantes mínimos.

- Nada como voltar para casa. - Will suspirou. Ele avançou um pouco mais a fim de ver a base que ele e Elliott tinham construído nos galhos da árvore próxima e sentiu
uma onda de remorsos. Na realidade, o que ele pensava era: Por mim, eu jamais teria saído deste lugar.

Embora vidas tenham sido salvas como resultado da expedição atrás de suprimentos na metrópole, parte dele desejava nunca ter deixado que Elliott o convencesse a
ir lá. Não gostava de confessar a si mesmo que havia certa verdade no que ela disse sobre ele estar ficando velho e acomodado. Will reconhecia que estava diferente
- perdera parte do gosto pela aventura. Talvez a luta constante contra os Styx tenha eliminado isso dele, mas naquele momento só o que queria era sua vida simples
na selva, com Elliott, sem nenhuma interferência externa dos neogermanos ou de bosquímanos tagarelas.

- Casa - repetiu Will ao perceber o significado da palavra e como era feliz ali com Elliott. Com a passagem dos antigos e o vazio lacrados, nem ele nem Elliott tinham
alguma expectativa séria de que um dia voltariam ao mundo exterior. Este lugar, com sua base na árvore ao lado da pirâmide, este mundo no centro do mundo, tornara-se
o melhor lar que ele conheceu em sua curta vida. E como agora isso parecia estar chegando ao fim devido à presença dessa gente nova na vida deles, seu coração disparava
com uma espécie de pânico.

Ele conquistou este tempo com ela. Fez sua parte na luta contra os Styx e queria deixar tudo para trás. Sentia-se tão distante de sua mãe na Colônia e de seu amigo
Chester. E quanto a Parry e Eddie, é claro que Will se perguntava como estariam se saindo na busca pela segunda mulher Styx. Mas não podia deixar de sentir que essa
batalha não era mais dele.

- Ei! Eu estava falando com você! - gritou Elliott, arrancando Will de seus pensamentos. - Vai ficar conosco hoje?

- Sim, desculpe... Eu estava a quilômetros daqui. - Will sorriu e correu para alcançar Elliott e Jürgen.

Ainda carregando as caixas, eles subiram a lateral da pirâmide. Pararam pouco antes da plataforma plana do topo, seguindo, em vez disso, o ressalto em volta do nível
imediatamente abaixo, até que Woody os fez parar.

- Mais uma vez aqui - disse Will, examinando o exato lugar onde ele e o dr. Burrows caíram quando os Styx cercaram a pirâmide numa tentativa de capturá-los. - Tem
uma entrada aqui - acrescentou ele para Jürgen.

- Sim, estamos cientes disso - respondeu Jürgen enquanto todos baixaram as caixas. - Os invasores não foram muito longe, foram? - Jürgen começava a inspecionar os
danos provocados pela tentativa dos Styx de abrir caminho com explosivos para dentro da pirâmide. - Interessante... - Ele passou a mão pelo que restava das pedras
com os entalhes e a alvenaria por baixo que foi exposta, de cor consideravelmente mais escura. - Vê a diferença entre os dois materiais?

Embora as pedras externas tivessem sido arrancadas pela explosão, a estrutura de suporte não parecia ter marca nenhuma.

- Sim, o material parece meio que... novo por dentro - concordou Will. - E os explosivos Styx arrancaram o que meu pai chamava de pedras móveis, mas ainda tem isso,
mostrando onde ficavam. - Ele apontava uma fila de dez quadrados visíveis na superfície que antes era lisa.

Woody soltou o que podia ter sido um palavrão na língua Styx, embora grande parte de sua linguagem parecesse exatamente isso.

- Will, ele quer que você saia do caminho - traduziu Elliott.

- Tudo bem - disse Will, irritado com a grosseria do bosquímano. Entretanto, deu um passo de lado para Woody, que foi diretamente aos quadrados. Na ponta dos pés,
começou a tocá-los, um depois de outro.

- Meu pai e eu pensávamos que havia uma combinação para entrar. Ficamos séculos mexendo os blocos para dentro e para fora em sequências diferentes para tentar decifrar
- disse Will, vendo Woody, que ainda tocava os quadrados à velocidade da luz. - Mas o que será que ele pensa que está fazendo?

- Também tentamos sequências diferentes. - Jürgen observava o bosquímano, extasiado. - Mas o nativo não está fazendo nada que possa acionar um mecanismo. Isso deve
simplesmente fazer parte de algum ritual antes da abertura da porta.

- Então, você nunca viu a pirâmide por dentro? - perguntou Will rapidamente.

Jürgen meneou a cabeça.

- Nunca. E os bosquímanos tiveram o cuidado de não deixar que olhássemos quando eles faziam isso.

Woody evidentemente terminara a longa sequência. Enquanto se afastava rapidamente do caminho, ouviu-se um barulho de algo sendo esmigalhado.

- Para trás! - avisou Will. Ele não seria apanhado novamente.

A parede abaixo dos quadrados e uma parte do piso, logo à frente de Will e dos outros, pareciam simplesmente ter desaparecido, revelando uma escada de pedra rasa
que levava às profundezas da pirâmide.

Jürgen piscou de surpresa.

- Não entendo. A alvenaria se retraiu para algum lugar?

- Se foi assim, eu não vi - disse Elliott, igualmente assombrada.

Todos continuaram onde estavam, exceto Will, que foi até a beira da abertura e olhou para baixo.

- Então, foi aqui que caímos... Naquele dia - disse ele em voz baixa.

Woody pronunciou algumas palavras e partiu de repente, descendo às pressas a escada empoeirada.

- Ele disse para irmos atrás dele - traduziu Elliott.

- Espere! - gritou Jürgen. - Diga a ele para não ter tanta pressa, sim? Se entrarmos desprevenidos, estaremos carregando um vírus conosco.

Elliott chamou Woody, que voltou por um momento nos degraus e respondeu rapidamente.

- Ele está dizendo que o que queremos está mais lá dentro - relatou Elliott.

- Então, devemos levar o equipamento conosco e entrar? - propôs Will.

Jürgen pensou na situação.

- Acho que não temos alternativa. Não sabemos se os outros tribais estão muito perto. - Ele deu de ombros. - Depois que os localizarmos, podemos armar a tenda de
descontaminação e passar por uma esterilização básica. E se isso não for possível, teremos de administrar a vacina e torcer pelo melhor.

- Então, vamos - disse Will.

Jürgen tirou uma lanterna do bolso e a acendeu para que pelo menos tivessem alguma ideia de onde colocavam os pés. Os três pegaram suas caixas e partiram pela escada,
entrando na escuridão melancólica.

- Foi aqui que meu pai e eu terminamos - disse Will, quando deram na base da escada e se viram em uma superfície plana, seus passos ecoando pelo espaço fechado.
Ele não pôde deixar de se lembrar da montanha-russa de emoções que viveu da última vez que caiu naquela mesma câmara com o pai. O pavor de Will de ser perseguido
pelos Limitadores se transformara em êxtase quando percebeu que por algum milagre ele e o dr. Burrows estavam repentinamente fora de seu alcance, mesmo que isso
tivesse vida curta, porque estavam cercados de bosquímanos nada amistosos.

E então Will se lembrou do que o dr. Burrows descobrira ali.

- Deem uma olhada no chão - disse ele aos outros. Jürgen lançou o facho da lanterna para onde apontava Will.

- Um mural - observou Elliott. - Ou só se chama assim quando é pintado num muro?

Will sorriu.

- Quem sabe não é um pisal? - Ele se virou para Jürgen. - Na realidade, é entalhado nas lajotas e depois pintado. Meu pai calculou que o povo responsável pela construção
das pirâmides... Os antigos, como ele chamava... Tinham rotas comerciais por todos os continentes. Foi assim que conseguiram compor este mapa.

Jürgen aproximou-se cautelosamente dos contornos entalhados dos continentes no piso de pedra, como se tivesse medo de danificá-los se pisasse neles.

- Sim, mas isso deve ter sido milênios atrás... E as proporções são todas perfeitas. Então, como eles poderiam ter os meios para compilar um mapa com este nível
de detalhes ou precisão?

Woody reapareceu de repente com um archote aceso, e a câmara se encheu de luz.

- E vocês precisam ver isso - disse Will, agora que as chamas iluminavam o resto do espaço. Ele levou Elliott e Jürgen à procissão de figuras grandes pintadas na
parede, o rei e a rainha em sua ostentação, cobertos de joias de ouro que poderiam ter sido usadas por um governante egípcio. - Meu pai achou isso incrível - disse,
lembrando-se de como o dr. Burrows tinha acendido um fósforo depois de outro para examinar todas as figuras.

- Aqui tem aquele símbolo do pingente de Tam de novo. - Elliott viu as três linhas convergentes na coroa do rei, depois no peitoral de um guerreiro. - Está por todo
o lugar.

Will estava prestes a responder quando Woody voltou a tagarelar rapidamente em Styx.

- Ele quer que a gente vá com ele - disse ela.

Pegando as caixas, eles seguiram o bosquímano ao final da câmara e deram num patamar onde se viram diante de mais escadas.

- Eu esperava que os outros tribais estivessem bem no fundo da pirâmide, e não lá em cima - resmungou Jürgen enquanto Woody os levava, subindo um lance de escada
depois de outro.

- Da última vez, foi para onde eles nos levaram - observou Will. - Bem nas entranhas da pirâmide.

Ao chegarem a outro patamar, Woody os conduziu para longe da escada até uma câmara circular de teto baixo, com aproximadamente nove metros de diâmetro. Ele gesticulava
para um ponto na parede curva bem na frente da entrada. Como não parecia haver outro jeito de entrar ou sair da câmara, eles deixaram as caixas perto da porta.

- Se os outros tribais estão por aí, este seria o local ideal para descontaminação - disse Jürgen. Abrindo uma das caixas, começou a retirar várias latas verdes
de agente esterilizante. - Se o pior acontecer, trouxe algumas seringas de vacina já preparadas. - Ele ergueu um pequeno estojo.

Woody tagarelava sem parar, tentando desesperadamente chamar a atenção deles.

- O que ele quer que a gente veja ali? - perguntou Will quando a luz do archote do bosquímano caiu em algo à frente dele.

Quando se aproximaram, descobriram uma pequena prateleira projetada da parede na altura da cintura. Numa inclinação de quarenta e cinco graus, havia um painel preto
embutido, que Will tocou.

- Mas para que serve isso? - perguntou.

- Descreva para mim. O que você está vendo? - perguntou Jürgen ao esvaziar rapidamente no chão o conteúdo de outra caixa e começar a prepará-los para a construção
de uma tenda de descontaminação.

- Bom, parece vidro... Vidro preto... Ou algum mineral muito polido. Tem o símbolo dos antigos entalhado, mas as bordas são ásperas, como se fossem cinzeladas. -
Will explorou com os dedos as três pontas do símbolo do tridente. - Se isto é igual aos quadrados do lado de fora e abre uma passagem, Woody precisa nos mostrar
como ativá-lo.

- Quem é Woody? - perguntou Jürgen, embora estivesse preocupado com a montagem da tenda. Agora o bosquímano começou a andar com impaciência de um lado a outro da
parede, ainda falando acelerado. - Então, definitivamente temos uma entrada? - perguntou Jürgen, do outro lado, justo quando Elliott, evitando ser atropelada por
Woody, perdeu o equilíbrio. Ela bateu a mão na lateral da câmara para se equilibrar.

Pulsos de uma luz azul e fria jorraram por vários metros em volta do ponto na parede onde ela havia tocado, revelando uma rede complexa de linhas e círculos.

- Caramba! - exclamou Will.

Todos ficaram assustados demais para falar, e o único barulho na câmara era o crepitar do archote aceso de Woody.

- Me diga que não é imaginação minha - sussurrou Will, sem se atrever a respirar.

Deixando cair a vara de alumínio da tenda que tinha acabado de encaixar, Jürgen correu e lançou a luz da lanterna pela parede ao lado de Elliott.

- Não, eu também vi - confirmou ele, estendendo a mão lentamente para tocar a parede.

Will já estava fuçando um dos blocos grandes de alvenaria diante dele.

- O que quer que fosse já passou. Não entendo. Isto é só pedra!

- Então, de onde vieram aquelas luzes? - perguntou Elliott, ainda completamente confusa.

- Eram mais faíscas - disse Jürgen, curvando-se para examinar a base da parede. - E concordo com você, Will. Não há dúvida de que é pedra. - Afastou a mão e esfregou
a poeira entre os dedos. - Mesmo que o fenômeno que acabamos de testemunhar possa ser explicado por alguma descarga eletrostática, como a alvenaria conduziria algo
assim? Eu vi... formas... desenhos.

Will se aproximou da pequena prateleira.

- Talvez isto tenha alguma coisa ver com isso. - Ele estava pressionando o painel para ver se a coisa se deslocava para algum lado quando Woody começou a falar animadamente.

- Mas o que ele está tagarelando? - perguntou Will a Elliott.

- Não consigo entender. Está falando rápido demais. - Elliott colocou a mão sobre o painel brilhante. - Me mostre como isto funciona. Ele abre uma porta? - disse
ela em Styx ao bosquímano.

Pela primeira vez, Woody a olhou bem nos olhos.

Antes que ela percebesse o que estava acontecendo, ele a segurou pelo pulso. Forçou sua mão para baixo no painel e pressionou os dedos dela no símbolo do tridente.

Houve um clarão intenso feito as faíscas de um maçarico de soldador. Elliott foi jogada para trás no chão da câmara, como se tivesse levado um choque elétrico.

- Não! - Will correu para o lado de Elliott e a ajudou a se sentar. - Você está bem?

Ela fechou os dedos num punho e os abriu.

- Estou bem. Não doeu nada - respondeu ela com certa surpresa. - Mas foi muito esquisito.

Agora Will estava furioso.

- Pode apostar! - Ele se virou para o bosquímano. - Mas o que...?

O piso da câmara se sacudiu.

Jürgen se agachou, pensando que havia mais por vir.

- Terremoto - disse ele. - São muito comuns nesta parte da...

Mas não era um terremoto, e ele entendeu quando o tremor se interrompeu.

Com um uivo de ar deslocado, o teto desapareceu, e eles foram banhados na luz do sol. Protegendo os olhos do clarão, Will tinha uma vista ininterrupta do céu claro.

- O quê? - Ele ofegou.

Antes que qualquer um deles percebesse, as paredes dos dois lados do painel se desintegraram. O estranho era que o único barulho era o farfalhar do vento em volta
deles. Seus olhos não tiveram tempo de se adaptar inteiramente à luz, mas, pelo que conseguiam enxergar, havia uma espécie de onda gigante afastando-se deles, para
longe da pirâmide e a uma velocidade absurda. Uma onda de pedra e poeira varria as árvores gigantescas da selva.

Com Karl segurando no colo cuidadosamente um estojo cheio de seringas adicionais da vacina recém-preparada, Werner dirigia o pequeno Kübelwagen pela trilha da selva.

Karl apontou algo com urgência, e Werner pisou no freio.

O menino vira que o céu acima das árvores de repente se enchera de pássaros, como se todos tentassem levantar voo ao mesmo tempo. Bandos enormes rodavam e se misturavam
a certa velocidade. E, enquanto ele olhava, esses bandos se dispersaram, dando lugar a outra coisa; não eram aves, mas muitos projéteis de tamanhos diferentes, de
contornos duros e irregulares. Como Karl percebeu tão rapidamente que acontecia algo extraordinário, Werner não foi apanhado inteiramente de surpresa quando um pedaço
considerável de alvenaria caiu em espiral e se chocou no capô, fazendo todo o veículo quicar nas molas.

Ele tinha parado inteiramente o Kübelwagen quando a raiz de uma árvore bateu no para-brisa, quebrando-o. O bombardeio continuava como uma louca tempestade de granizo,
e Werner gritou para Karl sair. Depois protegeu o menino com o próprio corpo enquanto os dois se espremiam na lateral do veículo.

Sem que nenhum deles pronunciasse uma palavra, Will, Elliott e Jürgen avançaram juntos para além de onde a parede da câmara estivera.

- Mas o que é isso? Num segundo estávamos lá dentro, no seguinte estamos aqui fora - disse por fim Will, ainda tonto do acontecimento repentino.

- Inacreditável - repetia Jürgen sem parar enquanto eles se aproximavam da beira da pirâmide e olhavam as prateleiras abaixo.

- Está totalmente diferente. Sumiram todas as pedras dos entalhes - observou Will. - É como se isto estivesse escondido por uma camada de pedra. - Ele tinha razão;
a aparência da pirâmide fora transformada em apenas alguns segundos, e a subestrutura mais escura era agora inteiramente visível.

- Inacreditável - disse Jürgen mais uma vez, sua voz estranhamente inexpressiva.

Todos se sentiam entorpecidos no esforço de encontrar uma explicação para o que acabaram de viver.

- Mas como é possível que ainda estejamos aqui... E vivos? - soltou Elliott. - Por que também não fomos varridos da pirâmide?

Nem Will, nem Jürgen responderam, ainda adaptando os olhos à luz do sol e se permitindo ter um primeiro vislumbre de outra coisa que os confundia. À medida que o
véu de poeira se retraía ao longe, eles viam que a selva fora esfolada, como se uma praga de gafanhotos devorasse tudo em seu caminho. Mas não havia nem mesmo uma
árvore arrancada - simplesmente um hectare após outro de terra nua, com uma vegetação ocasional aqui e ali.

- A selva simplesmente desapareceu. - Will protegeu os olhos, esforçando-se para enxergar mais longe. - Está vendo? Não há nada além de terra vazia até as outras
pirâmides.

Elliott riu estranhamente ao chamar a atenção de Will para a área abaixo deles, o solo revirado na base da pirâmide.

- Nosso acampamento ficava ali.

Jürgen balançava a cabeça.

- Nada disso faz sentido. Foi como se houvesse uma explosão aqui. Mas por que não sentimos nem ouvimos nad...? - Ele se calou quando seu walkie-talkie estalou, e
surgiu a voz preocupada do irmão. Jürgen ouviu por um momento, murmurando: - Ah, graças a Deus. - Ele olhou rapidamente para Will e Elliott, contando o que acabara
de ouvir. - Karl e Werner foram atingidos pelos destroços no veículo, mas os dois estão bem. - Ele voltou a falar no rádio. - Werner, pelo que posso dizer, parece
ter tido origem aqui, mas...

O rádio estalou com Werner dizendo: "Alô, alô, você está aí?", mas Jürgen afastou o aparelho da orelha.

Como faziam Will e Elliott, ele olhava ao longe, para o ponto de interseção das três pirâmides.

Alguma coisa ali fez com que a terra e a crosta fossem lançadas ao céu num jato imenso.

Ouviu-se um ronco baixo, e de repente surgiu do chão uma enorme estrutura parecida com uma agulha, arremetendo cada vez mais para o alto.

- Justo quando eu pensava que isso não podia ficar mais esquisito - disse Will em voz baixa.

 

Terra e pedras se derramavam do alto da estrutura que havia alcançado sua altura máxima, várias vezes maior que a da pirâmide onde eles estavam.

- Uma torre? - murmurou Elliott.

- Werner, hã... Depois eu falo com você - resmungou Jürgen no rádio. - Não, eu ligo. Você e Karl fiquem exatamente onde estão até que eu dê retorno. - A voz ansiosa
de Werner ainda era ouvida pelo rádio quando Jürgen simplesmente o desligou.

- Onde está o bosquímano? - perguntou Elliott ao perceber que ele não estava com o grupo.

- Lá vai ele. - Will localizou a figura solitária que andava decidida pela terra nua na direção da torre. - Acho que precisamos ir atrás de nosso amigo Woody e exigir
que nos dê algumas respostas. - Semicerrando os olhos para a torre ao longe, Will riu. - Além do mais, precisamos ver isso mais de perto!

 

Parry foi o primeiro a ser escoltado pela câmara de compressão, seguido por Chester. Depois de entrarem, foram levados à ponte, onde Chester olhou os vários terminais
guarnecidos pela tripulação. Alguns homens levantaram a cabeça de seus painéis de instrumentos para olhar Chester e Parry com curiosidade e pressa, como se soubessem
que não deviam demonstrar muito interesse. Chester estava tonto; foi arrancado de um sítio agrícola do século XVII que dependia de um gerador em um anexo para ter
eletricidade e levado a um submarino nuclear de última geração entupido de eletrônica. E pertencia, simplesmente, à maior superpotência do mundo.

Era tudo muito irreal, como se estivesse num filme. Só que num filme você não podia sentir como fedia, com tantos homens em um espaço confinado. Lembrou Chester
de quando ele e os pais pegaram um voo de longa distância a caminho de casa numas férias de verão.

Duas pessoas de terno azul-escuro apareceram de repente.

- Segurança Nacional - anunciou a jovem, mostrando um distintivo a Parry.

- Olha o passarinho - disse o homem que a acompanhava, apontando um dispositivo primeiro para Chester, depois para Parry.

- Reconhecimento facial. Eles estão se certificando de que somos quem somos - explicou Parry a Chester, enquanto o homem examinava uma tela atrás do dispositivo
e se virava para a colega.

- Positivo para os dois - disse ele.

- Eu também? - perguntou Chester a Parry. - Mas como eles sabem quem sou?

Parry estava prestes a responder quando a mulher ergueu alguma coisa. Chester reconheceu de pronto.

- É um dos Descontaminador de Danf...! - Ele ia exclamar, contendo-se antes de pronunciar o nome do homem que mais odiava no mundo. - É um Descontaminador - corrigiu-se
rapidamente.

- Sim. Nada como ter sua própria tecnologia voltada contra você, não é mesmo? - disse Parry.

- Por favor, não falem. Concentrem-se neste ponto aqui - vociferou a mulher, indicando com o dedo a lente no alto do pequeno cilindro.

- Desculpe - murmurou Chester enquanto ela jogava a luz roxa em seus olhos, depois nos de Parry.

- Eles não sofreram a Luz Preta - confirmou a mulher, digitando o resultado em seu PDA.

- Na verdade, é Luz Negra - intrometeu-se Chester antes que se desse conta do que dizia.

A mulher lhe lançou um olhar gelado enquanto outro homem se aproximava deles.

- Comandante - disse ele a Parry. A julgar por sua idade e a insígnia de patente, Chester deduziu quem era antes que ele apertasse a mão dos dois.

- É um prazer conhecê-lo, capitão - disse Parry.

- Igualmente. Peço desculpas pela recepção pouco hospitaleira. Espero que nosso esquadrão de fuzileiros navais não tenha sido rude demais com vocês - respondeu o
capitão. - Com as coisas do jeito que estão, agora esse procedimento é padrão antes que alguém tenha permissão de subir a bordo. Nem meus tripulantes estão isentos
quando voltam das docas.

- Com muita razão - concordou Parry. - A última coisa que vocês vão querer é um homem-bomba num espaço confinado como este.

O homem da Segurança Nacional claramente estava preocupado com a hora, porque não parava de olhar o relógio.

- Parece que vocês, cavalheiros, precisam ir a um lugar - disse o capitão.

- Sim, o link de comunicações está ativo, comandante - avisou o homem de terno azul.

Um dos fuzileiros ficou ali enquanto o resto da escolta se retirou. Os telefones por satélite e a bengala de Parry foram devolvidos antes que ele e Chester fossem
retirados da ponte e passassem por várias partes do submarino. O homem de terno azul da Segurança Nacional os conduziu a uma cabine surpreendentemente pequena, com
uma mesa no meio, sobre a qual três telas foram instaladas em fila, e no alto da tela do meio havia uma câmera montada. Parry disse a Chester para se sentar à mesa
enquanto ele continuou de pé, falando aos sussurros com o terno azul.

Sem ter ideia de por que estava ali ou o que estava prestes a acontecer, Chester se recostou na cadeira e meteu as mãos nos bolsos da calça jeans. Olhou de uma tela
a outra, cada uma delas mostrando o emblema da Marinha dos Estados Unidos contra um fundo azul.

Respirando fundo, ele olhou o fuzileiro estacionado junto à porta da cabine, que segurava seu fuzil de assalto de prontidão, atravessado no peito.

- AR16 - disse Chester em voz alta, reconhecendo a arma de um de seus videogames. O fuzileiro simplesmente franziu a testa para ele, e Chester se apressou em olhar
para o outro lado, assentindo consigo mesmo e resmungando: - Sim, um AR16.

Soou um sinal de um alto-falante em algum lugar no ambiente, e Parry e o terno azul rapidamente assumiram os lugares à mesa ao lado de Chester.

As telas ficaram escuras, exceto pelas palavras Status de Transmissão com uma contagem regressiva em segundos. Quando a contagem chegou a zero, o título mudou para
CRIPTOGRAFIA NÍVEL UM, e houve então um momento de estática digital enquanto blocos aleatórios de cores faiscavam nas telas. A imagem finalmente se acomodou, revelando
uma cena muito parecida àquela da cabine de Chester - uma mesa com três cadeiras à sua volta. Um homem segurando várias pastas de papéis entrou no campo de visão.

- Bob Harper - disse Parry. - É bom ver você depois de tanto tempo, seu demônio velho!

O homem se curvou para onde a câmera estava instalada no alto da tela do meio, e Chester viu que ele era careca e usava óculos de aro de metal.

- O mesmo para você, Parry - respondeu Bob, mas não com o mesmo calor humano que Chester teria esperado se eles fossem realmente velhos amigos.

Porém, Chester sabia que Bob tinha outras coisas em mente ao abrir uma das pastas e pegar vários documentos, que arrumou com muita exatidão no tampo da mesa. Ele
ergueu os olhos novamente.

- Muito bem, tudo devidamente preparado. E uma boa tarde a todos vocês - disse com mais entusiasmo do que antes. Ele semicerrou os olhos para o terno azul à direita
de Parry, depois para Chester. - E você deve ser, hã, Chester Rause.

- Rawls - corrigiu-o Parry. - Como estão as crianças, Bob?

Havia um leve hiato entre a imagem e o som, o que significava que os lábios de Bob pararam de se mexer, mas suas palavras ainda eram transmitidas.

- Bem, obrigado. Com um no MIT e o outro advogado em Wall Street, já avisei a eles que podem sustentar seu velho quando eu finalmente pendurar as chuteiras. E você
sabe que Debbie mandaria um abraço se eu pudesse ter dito a ela que íamos conversar. Quando você estiver deste lado do mar, deve ficar conosco mais uma vez, Parry.
- Bob esfregou o queixo de um jeito aflito. - Depois que tudo isso acabar.

- Sem dúvida nenhuma - disse Parry.

Por um momento, ninguém falou nada, e Bob lançou os olhos por seus documentos.

- Tivemos um dia de sol, mas gelado, aqui em Washington. Como está o tempo por aí, Parry?

- Ah, além de estarmos no meio da noite, Bob, precisa perguntar? Estamos na Inglaterra; é inevitável que chova antes do amanhecer - respondeu Parry com secura.

Mas Bob não escutava. Pelo barulho ao fundo, Chester sabia que outras pessoas entraram na sala. Um homem de constituição forte, mais novo do que Bob e de terno cinza-carvão,
entrou em quadro. Ele examinou as telas e a mesa para ter certeza de que tudo estava como deveria, depois se deslocou para permitir a passagem de outra pessoa à
cadeira do meio.

A boca de Chester se abriu, seus olhos quase saltando da cabeça.

Era verdade que no ano anterior ele passou muito tempo nos subterrâneos, mas teria sido impossível não reconhecer o homem na tela diante dele.

Uma das pessoas mais famosas do planeta e certamente a mais poderosa.

- Este é...? - tentou perguntar Chester, mas não saiu som algum de sua garganta.

Ele olhou de lado para Parry, que assentiu rapidamente.

- Bom dia, cavalheiros. - O presidente dos Estados Unidos os cumprimentou e passou os olhos pelas anotações de Bob na mesa. Quando finalmente ergueu a cabeça, correu
os olhos pelo terno azul e Parry, parando em Chester.

- Oi - disse o presidente.

 

Capítulo Cinco

 

A cara de Drake era de um branco doentio, mas as ranhuras embaixo dos olhos e em volta da boca eram vermelho-sangue. E, embora o braço do ombro ferido estivesse
numa tipoia e ele tivesse numerosos curativos nas queimaduras, nada disso o perturbava tanto quanto sua boca, que ele agora alcançava, sondando as gengivas inchadas.
Apesar da dor que o obrigava a estremecer quando as tocava, ele riu consigo mesmo.

- Um homem entra no dentista e se senta na cadeira. - Era difícil compreender o que Drake dizia porque seus dedos atrapalhavam, mas ele continuou apesar disso. -
O dentista diz: "O que posso fazer pelo senhor?". O homem responde: "Você precisa me ajudar; acho que sou uma mariposa."

Drake parou por um momento enquanto empurrava um dente no maxilar inferior e o sentia se mexer na gengiva.

- O dentista diz, "Mas, como o senhor pode ver, eu sou um dentista e o que você precisa é de um médico. Então, por que entrou aqui?" - Drake tirou a mão da boca
e examinou o sangue na ponta dos dedos. - O homem responde, "Bom, sua luz estava acesa."

Jiggs deu uma gargalhada.

- Essa é velha - disse ele, segurando o braço bom de Drake e colocando nele uma braçadeira. Usava um antigo esfigmomanômetro, um aparelho de pressão sanguínea, que
encontrou na seção médica. - Eu sempre sei quando as coisas estão no pior nível possível porque você começa a fazer piadas. - Jiggs sorriu. - Lembra aquela vez que
Parry estava fora e Sparks, Danforth e eu tivemos de atravessar a Escócia de carro por quase cem quilômetros para ir ao hospital mais próximo, na pior nevasca daquele
inverno, porque seu apêndice tinha supurado? Você tinha o quê... uns dezesseis anos? Embora sentisse uma dor horrível, passou a viagem toda contando piadas sem parar.

Drake assentiu, depois tombou a cabeça para a frente, sacudindo-a.

- E que tal uma nevasca dessas? - disse ele. Seu cabelo começou a crescer depois de ele ter raspado todo alguns meses antes para disfarçar a aparência, mas alguns
tufos eram agora lançados na superfície da mesa.

- Sangramento das gengivas... Perda de cabelo... Acho que são todos sintomas de doença crônica de radiação - disse Jiggs. Ele inflou a braçadeira no braço de Drake,
depois soltou parte do ar enquanto ouvia um estetoscópio e fazia uma leitura no medidor.

Drake não prestava nenhuma atenção ao que Jiggs fazia, olhando em vez disso a meia distância.

- As decisões que tomei no passado quase me tiraram a vida algumas vezes. Não estou culpando ninguém pelo rumo que as coisas tomaram. - Ele não procurava uma resposta
de Jiggs, e este sabia disso. - Nunca previ uma aposentadoria pescando trutas nos Cairngorms, mas...

- Tem alguma truta nos Cairngorms? - interrompeu-o Jiggs.

- Você sabe o que quero dizer - respondeu Drake. - Onde eu estava mesmo...? Mas... mas sempre imaginei que, quando meu número fosse sorteado, seria rápido. - Ele
estalou os dedos. - Pensei que levaria uma bala ou morreria numa explosão. Então, me diz uma coisa, é assim que vai rolar para mim, tranquila e dolorosamente? Desaparecer
aos poucos?

- Primeiro a parte fácil; a bala que pegou você no ombro quebrou sua clavícula, mas é uma fratura pequena. Então, não é nada grave. - Jiggs suspirou e colocou o
medidor antiquado em sua caixa de madeira. - Quanto à exposição à radiação, você terá dias bons e dias ruins. Mas vai ficar mais fraco à medida que a náusea e o
vômito ficarem mais frequentes e o sangramento interno se intensificar. Infelizmente, a partir daqui a ladeira só desce.

- Não, por favor, não me poupe do pior, sim, doutor? - disse Drake com ironia. Ele pegou um frasco antigo de comprimidos de iodeto que Jiggs encontrara entre os
suprimentos médicos. - Isso vai fazer alguma diferença?

- Vai ajudar a eliminar parte dos isótopos, mas você foi exposto a uma dose maciça de radiação ionizante. Mesmo que estivéssemos na superfície, com todas as instalações
de lá, não seria possível fazer muita coisa por você. - Jiggs balançou a cabeça. - Eu sinto muito.

- Então é assim. - Drake, resignado, respirou fundo antes de continuar. - Acho que, mais cedo ou mais tarde, todos nós somos atraídos para a grande luz, feito uma
mariposa. Só que minha grande luz por acaso era uma bomba nuclear e me fritou. - Ele começou a rir, mas o riso se transformou numa crise de tosse e Drake precisou
de um instante para voltar a falar. - Se eu soubesse que daria nisso, nunca teria cuidado muito da minha dieta. - Ele se recostou na cadeira e soltou um longo suspiro.
- Jiggs, meu velho amigo, sinceramente... Que sentido tem me carregar para a Crosta? Você pode muito bem me deixar aqui.

Jiggs deu uma olhada pela área principal do abrigo nuclear, um lugar construído no fundo da terra que Will e o dr. Burrows descobriram originalmente e em que o próprio
Drake já esteve, quando veio resgatar Will e Elliott.

- Há muito tempo - começou Jiggs - prometi a seu pai que cuidaria de você. Pretendo cumprir essa promessa.

Ele gesticulou para a cozinha, onde preparava a refeição dos dois com comida enlatada de cinquenta anos.

- E, de qualquer modo, não posso deixar você aqui. A dieta de carne enlatada deste lugar é suficiente para acabar com o mais forte de nós.

- Mas por que me levar de volta? Que diferença faz se vou bater as botas na superfície ou aqui embaixo?

Jiggs não se deixou abalar.

- Contrariando todas as probabilidades e com aqueles animais desgraçados batendo os dentes em nossos calcanhares, eu fiquei com você até agora. - Jiggs parou para
respirar. - Então, vou lhe dizer uma verdade absoluta: de jeito nenhum vou abandonar você. Nós vamos subir aquele rio juntos.

Depois de Jiggs conseguir ressuscitar Drake no Short Sunderland destroçado e estabilizá-lo o suficiente para movê-lo novamente, ele partiu para a Jean Fumarenta.
Recebia apenas os sinais mais fracos dos radiofaróis que Will e Drake deixaram em ocasiões anteriores para guiá-los, mas, combinados com seu senso de orientação
fenomenal, eles bastaram. Queimando quase a última gota do combustível dos foguetes de propulsão, Jiggs conseguiu levar Drake ao topo da Jean Fumarenta e através
do veio inclinado. Chegando lá, Drake estava tão fraco que sozinho só conseguia percorrer curtas distâncias. Porém, a baixa gravidade permitiu que Jiggs carregasse
Drake e o kit nas costas.

Mas então eles receberam uma atenção indesejada dos faróis e das aranhas-macaco, muito perceptivas quando se tratava de detectar a presa ferida. O sangue de Drake
era um ímã para eles, e ele teve de se recompor e ajudar Jiggs a afugentá-los de vez em quando.

E justo quando pensavam que tinham percorrido uma boa distância pelo veio para escapar de todos os predadores locais, Jiggs quase pisou no primeiro dispositivo antipessoal
deixado pelos Limitadores. Só o localizou porque uma aranha de tamanho mais comum tinha tecido uma teia no fio muito fino de armadilha que atravessava o caminho.
Sua presença no veio era má notícia porque significava que uma patrulha fora enviada ao abrigo nuclear e que sem dúvida nenhuma haveria outros dispositivos plantados
pelo caminho. Assim, o progresso foi torturante de tão lento, porque Jiggs era obrigado a verificar cada centímetro da passagem, procurando mais armadilhas, e quando
chegaram ao abrigo teve de realizar uma varredura completa também ali.

- Você está me ouvindo, não está? - perguntou Jiggs a Drake, que parecia ter caído em devaneios. - Vamos subir o rio juntos. Tudo bem?

- Sim, tudo bem, o que você quiser - respondeu Drake. Ergueu os olhos vagarosamente a Jiggs, e mesmo esse pequeno gesto foi um esforço. - Pelo menos poderei contar
a Parry que, pelo que sabemos, nossa missão foi um sucesso. E descobrir como ele está se saindo com a outra mulher Styx.

Jiggs assentiu enquanto Drake virava a cabeça de leve para o corredor de entrada, onde se localizava a sala de comunicações. Tanto Will como Chester usaram o antigo
telefone ali para fazer contato com a superfície.

- De jeito nenhum - disse Jiggs de imediato. - Se está pensando seriamente em usar aquele telefone lá para fazer uma chamada, pode parar agora mesmo. Se não cortaram
a linha, os Styx estarão monitorando qualquer tráfego por ela... Basta você levantar o fone e eles saberão que estamos aqui embaixo. - Sua voz ficou mais suave.
- Drake, sinceramente, não chegue perto daquilo. Você não está pensando nisso, está?

- Não, talvez não, mas não tenho mais o luxo do tempo. - Drake se levantou. - A ideia de morrer deixa qualquer um impaciente.

- Por que não tira um cochilo enquanto eu termino de consertar o barco? - sugeriu Jiggs.

- Não, quero te dar uma mãozinha. - Drake ergueu o braço bom com um sorriso. - Mesmo que seja com uma só mão. - Ele olhou os beliches. - Ainda não estou pronto para
o ferro-velho. Não enquanto ainda me restar alguma vida.

 

- Não há dúvida de que ele vai direto para lá - observou Elliott, procurando a silhueta pequena de Woody, que andava decidido para a torre. Ele não era a única coisa
que se mexia no local, uma vez que moscas e insetos de aparência bizarra zumbiam furiosamente no ar e um exército de aves se arriscava a voltar depois do tumulto.
Aquelas aves claramente viviam seu auge, vindo aos bandos até os campos do solo recém-revirado para se banquetear das larvas e minhocas expostas.

Elliott, Will e Jürgen logo foram atrás do bosquímano, mas não era tão fácil se deslocar rapidamente naquele terreno. Não só era muito acidentado, como o sol secara
os torrões de terra e eles esfarelavam e se deslocavam como areia sob seus pés.

Protegendo os olhos, Jürgen os semicerrou ao tentar ver as outras pirâmides através do ar enevoado do sol.

- É inacreditável quando se pensa que esta era uma selva densa minutos atrás.

Mas a mente de Will estava longe, porque ele tentava entender o que acabaram de testemunhar.

- Então, as pirâmides devem ter sido cobertas pelas pedras com os entalhes a certa altura depois da construção da estrutura básica - raciocinou ele em voz alta,
virando-se para Jürgen.

- Mas as pedras entalhadas mais antigas tinham pelo menos três mil anos - respondeu Jürgen.

- É verdade... - disse Will pensativamente. - Mas a teoria de meu pai era de que a cidade perdida da Atlântida, todo esse tempo, estivesse neste mundo, e talvez
ele tivesse razão. Os atlantes podem ter construído por cima das estruturas originais?

- É uma possibilidade - concordou Jürgen, dando levemente de ombros.

- E assim os bosquímanos, descendentes dos atlantes, continuaram a tradição de registrar sua cultura e sua história nas pirâmides - continuava Will.

Elliott ia adiante, como se não tivesse o menor interesse na discussão dos outros dois. Will ainda falava, mas se interrompeu quando ele e Jürgen a alcançaram. Ela
havia parado onde uma trincheira com uma profundidade de cinco metros bloqueava seu caminho.

- Incrível. Uma das árvores gigantes deve ter sido arrancada daqui - disse Jürgen enquanto todos olhavam o fundo da depressão, onde havia um emaranhado de raízes,
algumas imensas.

- Vocês dois se acham muito inteligentes, mas na verdade são tremendamente burros - comentou Elliott com amargura.

- Hein? - disse Will.

- Bom, quem liga para os atlantes agora? - vociferou ela. - Por que vocês não estão se perguntando o que pode ter arrancado uma árvore enorme num piscar de olhos
e a atirado junto do resto da selva tão longe que nem podemos ver?

Will ficou surpreso com sua explosão, mas não fez comentário nenhum ao descer no buraco, onde começou a chutar as raízes e a terra.

- Alguma espécie de feixe de tração? - respondeu Jürgen, uma vez que Will continuou em silêncio.

- Feixe de tração? - repetiu Elliott. - Onde você encontraria um desses... seja lá o que for... por aqui? Foi deixado por quem construiu as pirâmides originais?
E quem eram eles, então? - perguntou ela. - E, diga, por que essa pirâmide por baixo parece tão nova?

Ninguém respondeu, Will continuando a raspar a terra com a ponta do sapato.

- Tem alguma coisa sólida aqui embaixo - disse ele depois de um momento.

Jürgen também deslizou pela depressão e juntos eles descobriram toda uma série de conduítes ou canos grossos correndo lado a lado. As raízes cresciam entre eles,
e Will se abaixou para puxar uns punhados das menores.

- Olha só isso. - Ele espanou a terra de um dos canos. - São feitos do mesmo material da pirâmide. E também parecem novos.

- Apesar de estarem enterrados aqui pelo que devem ser muitos milênios - disse Jürgen. Ele ergueu a mão indicando a direção dos canos. - E parece que começam na
pirâmide e - girou o corpo para ficar de frente para a direção contrária - correm até a torre. - Jürgen parou por um segundo. - Será que isto também interliga as
outras duas pirâmides?

Em vez de descer até ali, Elliott contornava a trincheira no chão. Will percebeu que ela parecia muito assustada ao falar.

- Então, nenhum dos dois sabe explicar o que aconteceu lá quando toquei no painel? Não era eletricidade, nem foi uma explosão, então o que foi? E nenhum de vocês
está sentindo... o poder?

- Hein? - Will engoliu em seco, olhando para ela de baixo. - Que poder?

- Nesses canos... Na pirâmide... Em volta de nós - continuou Elliott.

Will e Jürgen se olharam.

- Elliott? - chamou-a Will, mas ela foi, num passo cada vez mais rápido, até a torre.

 

Capítulo Seis

 

- Vocês têm um problemão por aí - dizia o presidente dos Estados Unidos. - Nossas bases na Inglaterra estão em alerta total, e já iniciamos a convocação de pessoal
e ativos militares, em particular nossos caças. Não podemos ter esses Styx metendo as patas neles.

Ele pronunciou Styx como Stikes, o que fez Chester erguer as sobrancelhas por um momento, mas ele já havia aborrecido a mulher da Segurança Nacional quando tentou
corrigi-la. E este, afinal, era o presidente, então ele podia pronunciar o nome como bem quisesse.

- Implementamos monitoramento corporal completo e verificações com o Descontaminador nas chegadas em nossos aeroportos e portos e em todos que passam por nossas
fronteiras - dizia o presidente. - Depois da atrocidade no Capitólio, já estávamos atentos a homens-bomba, mas agora também procuramos por passageiros submetidos
à Luz Negra. Bob me disse que devemos a você os esquemas para o Descontaminador. Além disso, e mais importante, você deu a ele um alerta precoce sobre a atividade
dos Stikes, comandante, assim tínhamos um plano de contingência pronto para colocar em ação quando tudo isso estourou no ano passado. A América tem uma profunda
dívida para com você por isso.

Agora o presidente olhava atentamente Parry, que baixou a cabeça por um instante em resposta. Em seguida, o presidente entrelaçou os dedos e se recostou na cadeira.

- Então, o que podemos fazer por você, comandante?

- Bem, como o senhor disse, temos um problemão por aqui - começou Parry. - O Reino Unido efetivamente foi isolado pelos parceiros da OTAN. Nenhum deles quer chegar
perto por medo de que a peste se espalhe. Para resumir, senhor, estou lhe pedindo intervenção militar. Não vejo como podemos consertar as coisas aqui sem uma força
terrestre convencional assumindo o controle e eliminando os Styx.

O presidente baixou os olhos, como se estivesse prestes a dizer que era difícil, mas Parry continuou apesar disso.

- Sr. Presidente, nossos países sempre foram unidos por sua relação especial, e esta é uma hora sombria para nós... Talvez a mais sombria de nossa história. Precisamos
de sua assistência para nos ajudar a passar por isso. E, como chegamos a esta crise, bem... Quero que ouça diretamente de meu amigo Chester aqui sobre como a situação
evoluiu... Sobre como ele e Will Burrows toparam com a cidade subterrânea e como, ao fugirem dos Styx, descobriram sua trama para espalhar o vírus Dominion.

Chester nem acreditava que de repente fora incluído na conversa. Olhou para Parry, desesperado. Não podia falar com o presidente sobre tudo isso. Não se julgava
assim tão importante.

- E graças às informações que obtivemos de Chester e Will - continuou Parry -, pudemos nos antecipar à Fase. Não creio que ainda existisse um inglês para salvar
hoje se esses dois rapazes não estivessem em campo e fizessem um reconhecimento por nós.

- Ah, sim, Chester - disse o presidente, voltando os olhos para o menino. Antes que voltasse a falar, o presidente uniu os lábios numa expressão de solidariedade.
Chester o vira fazer isso na televisão depois de inundações, bombardeios e outros desastres de larga escala na América. - Sei que você recentemente sofreu um sacrifício
terrível no cumprimento do dever... A morte de sua mãe e de seu pai. Lamento muito por sua perda.

Como Chester não respondeu de imediato, porque tinha perdido a língua, o presidente ficou inquieto, como se tivesse entendido errado os fatos.

- Desculpe... Sobre seus pais... É verdade, não é? - perguntou ele, olhando rapidamente para Bob.

Chester tentou dizer "É, sim", mas, combinado com um simultâneo "hummm", o que realmente saiu mais pareceu "inham". Ele queria esmurrar a si mesmo. Ah. Meu. Deus.
O presidente dos Estados Unidos acaba de dizer que lamenta a morte dos meus pais e eu disse "inham" para ele!

O presidente fingiu procurar pela pasta certa diante dele para disfarçar o desconforto.

- Muito bem, eu li o relatório de Bob sobre a... a...

A essa altura, Bob cochichou em seu ouvido.

- Sobre a Colônia - continuou o presidente - e também este mundo germânico no centro da Terra, e tenho de admitir que achei toda essa lorota bem difícil de engolir.
Entendo que um grupo de insurgentes subterrâneos... verdadeiramente subterrâneos... tenha vindo à superfície e estejam usando suas armas biológicas e sua tecnologia
de fundo de quintal para colocar seu país de joelhos, mas o resto do que esteve acontecendo... Parece a trama de um filme vagabundo de ficção científica. Assim,
gostaria de ouvir seu lado das coisas, Chester, porque você esteve lá. Você passou por tudo isso. - Ele leu as anotações de Bob. - Convença-me de que isto é real.

A boca de Chester se abriu enquanto a cabine parecia estar oscilando, embora não tivesse nada a ver com o mar do lado de fora.

Isso que era situação difícil.

O presidente dos Estados Unidos pedia a versão dele dos acontecimentos!

Como poderia o simples Chester Rawls, de Highfield, que frequentou a escola até fugir, sequer começar a contar ao líder do mundo livre o que aconteceu?

- Chester. - Parry estimulou o menino porque ele não falava nada. - Sei que não é fácil para você, amigo, mas não precisa ter pressa.

- Mas... Mas por onde eu começo? - grasnou Chester, finalmente encontrando a língua.

- Do começo - disse o presidente. - Temos todo o tempo necessário.

Parry colocou a mão no ombro de Chester.

- Desde quando o dr. Burrows desapareceu e você e Will encontraram o túnel debaixo da casa dele.

- Tudo bem. - Chester respirou fundo e começou a contar sua história.

Sempre que Chester falhava, Parry estava pronto para se intrometer e ajudar. E, quando Chester falou dos eventos que levaram à morte dos pais no Complexo, foi tão
doloroso para ele que Parry assumiu e concluiu o relato.

- E não preciso lhe dizer qual é a situação hoje, senhor - disse Parry ao chegar ao fim.

- Muito obrigado, aos dois. É uma história e tanto - disse o presidente, depois se recostou na cadeira. - Posso lhe dizer uma coisa, Chester? Você esteve no meio
de tudo isso por mais tempo do que qualquer um... Esses Stikes... Sei que eles não gostam de nós... Mas o que os motiva? Qual é seu objetivo último? Aniquilar toda
a vida humana?

- Bem... - começou Chester.

- Acho que o que realmente estou perguntando é, podemos negociar com eles? - acrescentou o presidente.

- Hã, negociar? - Chester se surpreendeu com a pergunta, mas refletiu. - Não acredito que eles queiram todas as pessoas mortas... Só querem nos enfraquecer o bastante
para que não sejamos uma ameaça e eles possam assumir o controle da superfície. É como se pensassem que ela pertence a eles. Acho que vocês podiam tentar negociar...
Eles são abertos a acordos... Mas de maneira nenhuma podem confiar neles. Eles não nos consideram seus iguais. Vêm perturbando as coisas para nós com pestes e sabotagens
há séculos.

O presidente esfregava o queixo.

- Então, este ato atual de agressão não é por dinheiro nem uma tentativa de ter seu próprio país?

- Seu próprio país? - Chester não conseguiu reprimir o riso. - O senhor pode oferecer isso a eles, mas precisa saber... - Chester olhava diretamente o presidente
- ...precisa saber que, mesmo que eles aceitem esta oferta, irão até o senhor e irão à América algum dia. Nada se coloca no caminho quando querem alguma coisa, e
eles querem tudo.

- Muito bem, isso é indiscutível. - O presidente pegou uma das anotações de Bob e leu algumas linhas antes de erguer a cabeça novamente. - Comandante, vamos direto
ao que interessa, sim? Seus vizinhos europeus estão se recusando a ter alguma relação com vocês, mas você está pedindo a meu país para assumir um importante compromisso
militar para ajudá-los. E isso depois de todo o apoio financeiro que fomos obrigados a dar à Europa, porque seu sistema financeiro ameaçava arrastar os Estados Unidos
para uma baita depressão.

- Senhor, eu... - começou Parry.

O presidente ergueu a mão.

- Só um minuto, comandante, preciso trazer outro grupo a esta conferência. Bob, coloque na linha agora, por favor.

A tela à esquerda de Chester escureceu por um segundo e, quando voltou, trazia uma mesa oval com mais ou menos uma dúzia de pessoas à sua volta, muitas de farda.

- Oi, Dave - disse o presidente, também olhando a sua esquerda. - Agora temos contato visual. Pegou tudo que foi dito? - Obama virou-se para a câmera antes de receber
uma resposta da nova sala cheia de gente. - Comandante, eu quis que seu primeiro-ministro ouvisse nossa conversa. Não temos tempo para brincar de telefone sem fio.

Parry não se deixou abalar pela virada nos acontecimentos.

- Boa noite, senhor - disse ele ao homem no meio da cena, que tinha uma expressão irritada, antes de passar os olhos pelos outros rostos dos dois lados dele. - Vejo
que reuniu o Gabinete de Guerra.

A boca de Chester se abriu pela segunda vez - enquanto ele balbuciava sua história, o primeiro-ministro britânico estivera ouvindo e muito provavelmente o via. Ele
se perguntou quem apareceria nas telas depois disso.

O primeiro-ministro semicerrou os olhos com toda a arrogância de um diretor de escola desapontado.

- Comandante, não me agradou que você tivesse passado por cima de mim e falado diretamente com o presidente. Por que não usou os canais normais e procurou primeiro
meu gabinete?

Parry não se desculpou.

- Os canais normais? A esta altura dos acontecimentos? Por dois motivos. Primeiro, porque não sei em quem posso confiar. Não sei quem os Styx pegaram. Acredito que
o senhor mesmo tenha sido submetido à Luz...

- Tivemos todos nós uma sessão com o Descontaminador há séculos. - O primeiro-ministro o interrompeu com um gesto arrogante da cabeça. - O gabinete e toda a equipe
no Número 10 gozam de perfeita saúde há semanas.

Parry ficou cético com essa resposta.

- Não só uma sessão com o Descontaminador, certo? O senhor e seus colegas no gabinete devem ser verificados a intervalos regulares ao longo do dia.

- Não preciso que você me aconselhe sobre minhas medidas de segurança - disse o primeiro-ministro, elevando a voz para que Parry soubesse que ele não gostava de
ser contestado. - E o segundo motivo, comandante?

- Porque não podemos consertar isso sozinhos. Precisamos de intervenção externa, de uma nação que não tenha sido contaminada pelos Styx. - Parry parou de repente,
sua testa num franzido fundo. - Posso perguntar onde o senhor está agora? Essa sala me parece familiar.

- Isso não é de sua conta, mas reuni todos aqui no refúgio sagrado em Westminster. Dispensei o pessoal da segurança porque não ia sair de Londres e deixar que aqueles
sujeitos Styx pensassem que estávamos fugindo.

De repente, Parry se levantava da cadeira e gritava.

- Seu idiota completo! Não leu o comunicado que enviei meses atrás?

- Comandante, por favor - insistiu o presidente, tentando restaurar a ordem.

- Sim, calma, meu chapa - disse o primeiro-ministro, claramente divertindo-se com a irritação de Parry.

- Não, é melhor que me ouça muito bem porque isto é de suma importância. Saiam daí agora! - Parry falava com tal fervor que estava de fato cuspindo. - Em vez de
dar atenção a meu alerta, o senhor reuniu todo mundo no Parlamento, onde são alvos fáceis. O senhor caiu direitinho na mão dos Styx. Chester e meu filho souberam
que a Cidade Eterna, imensa caverna debaixo de Westminster, tem um ponto fraco no teto que os Limitadores podem decidir explorar a qualquer momento. Eles podem explodir
tudo!

- É verdade - disse Chester, mas foi sobrepujado pelo primeiro-ministro, que não se deu ao trabalho de esconder seu desprezo.

- Ah, claro, até parece que podem fazer isso! - berrou ele. - Não vimos nenhuma prova sólida da cidade perdida mítica que vocês dizem existir. Receio que vocês podem
ter viajado na coisa toda. - Imitando o sotaque escocês de Parry, o primeiro-ministro ficou evidentemente deliciado com o trocadilho que fez; como um asno zurrando,
jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada, a mesa toda se juntando a ele.

De repente, a imagem do primeiro-ministro e de seu gabinete de guerra vacilou e ficou paralisada.

O que Chester e Parry viam na tela não parecia certo - como se todos, inclusive o primeiro-ministro, repentinamente estivessem muito mais perto da câmera, como se
todos tivessem sido atirados pela mesa.

E, naquele instante capturado, nenhum deles ria mais; porém, devido ao atraso entre imagem e som, suas risadas ásperas ainda ressoaram na cabine por algum tempo.

E então não houve nada além de um silêncio sinistro.

O presidente dos Estados Unidos engoliu em seco e pigarreou enquanto a imagem paralisada se perdia numa tempestade de estática.

- Bob, podemos descobrir o que aconteceu com a transmissão?

Parry estava de volta à sua cadeira, com as mãos firmemente cerradas.

- Ah, não - sussurrou ele.

Chester nunca o vira tão pálido.

- Você não acha que...? - perguntou o menino.

- Sinceramente espero que não - respondeu Parry.

- Nenhum sinal? Nada? - dizia o presidente a Bob, que tinha dois telefones nos ouvidos ao mesmo tempo. - Bem, podemos colocar olhos no Parlamento? Temos algum drone
na área?

- Um drone? Lá? - perguntou Parry, mas sua indagação foi ignorada enquanto Bob conferenciava com o presidente, que rapidamente perdia a paciência. - Ora essa, se
temos cobertura de satélite, coloque na tela agora - disse ele, batendo na mesa.

A tela da esquerda ressuscitou com uma vista aérea de Londres, o Tâmisa no centro da imagem cintilando com a primeira luz do amanhecer.

- Sim, amplie para o quarto quadrante e melhore a definição com aprimoramento digital, sim? - disse Bob, agora usando apenas um telefone ao dar instruções.

Chester não acreditava no que um satélite espião era capaz de fazer, a imagem se ampliando em saltos sucessivos até que eram visíveis os telhados de cada prédio
junto das margens. E enquanto era aplicado o aprimoramento para a luz baixa, como solicitara Bob, a definição também aumentou, o Tâmisa aparecendo como uma serpente
prateada.

- Tower Bridge - disse Parry, reconhecendo a vista aérea.

- Faça-me um favor... Vamos acompanhar o curso do rio - informou-lhes Bob, e a vista se acelerou pelo Tâmisa, passando pelas diferentes pontes.

Em seguida a vista se estabilizou, e a câmera no satélite chegou a seu destino.

- Ah, meu Deus, não - disse o presidente.

- O que é isso? - murmurou Chester, confuso com a imagem.

Parry pôs a mão na têmpora. Estava tremendo.

Era um buraco imenso no chão.

Chester viu o que ele queria dizer. Mesmo enquanto olhava, os prédios esfarelavam e caíam nas bordas de uma fissura que se alargava cada vez mais, como que em câmera
lenta. Não havia mais Parlamento, nem Big Ben, nem a ponte de Westminster - o Tâmisa girava em uma abertura negra como carvão, e eram expostos trechos do leito do
rio.

- Eles fizeram mesmo - disse Chester, sem fôlego. - Explodiram o teto da Cidade Eterna. Exatamente como Drake achou que poderiam fazer.

Fez-se silêncio enquanto todos tentavam lidar com o que viam.

- Mas que droga. - A cabeça do presidente estava nas mãos, ocultando seu rosto. - Como vou contar isso à esposa e aos filhos de seu primeiro-ministro? Eles estão
hospedados em Camp David. Mas o que eu vou dizer a eles? - falou ele a ninguém em particular. Depois olhou incisivamente para Parry. - E seu ativo, comandante...
Seu agente duplo nas fileiras dos Stikes? Por que você não foi avisado disso?

- Senhor. - Bob o interrompeu. - Essa informação não é para divulgação.

Chester lançou um olhar a Parry, que fazia uma careta. Ele estava extremamente desconfortável.

- Agora já passamos da necessidade desses pormenores - vociferou o presidente a Bob. E então balançou a cabeça. - Voltaremos a vocês, cavalheiros - disse ele.

Chester ficou com a imagem do presidente fazendo um rápido movimento de quem corta a garganta enquanto se virava para Bob, depois a tela simplesmente foi apagada.

 

- Coitadinha, você parece acabada. Eles são muitos, não são? - disse a sra. Burrows, acariciando a cabeça de Colly. Estendida de lado enquanto os filhotes mamavam
famintos, a felina estava exausta, mas ainda fez o esforço de ronronar alto.

Alguém entrou no cômodo, e Colly levantou a cabeça com um ronronar mais brando.

- Está tudo bem, garota - disse a sra. Burrows, tentando tranquilizá-la. Como todos os Caçadores, ela era extremamente protetora de sua prole, sibilando e rosnando
para qualquer um que chegasse perto, embora a sra. Burrows tenha se provado uma exceção.

- Ficarei feliz quando tiver minha cozinha de volta - grunhiu o Primeiro Oficial, passando por cima dos brinquedos que os gatinhos deixaram espalhados pelo chão.
Era uma antiga tradição dos colonistas ajudar quando uma Caçadora tinha uma nova ninhada, embora fosse uma tarefa e tanto proporcionar os cuidados e a limpeza à
animada prole. Vários presentes de comida e velhos cobertores foram deixados na porta da frente, mas outro presente favorito eram os brinquedos de pano que as pessoas
faziam para os gatinhos. Com bigodes de fios de algodão e olhos de conta brilhantes, em geral pareciam variedades diferentes dos ratos que os felinos deveriam caçar
na vida adulta.

O Primeiro Oficial se sentou, depois gemeu com o esforço ao se curvar para a frente e pegar um brinquedo que chamara sua atenção. Não era um rato, mas um homenzinho
vestido de preto com a cara branca que tinha na mão um livro de pano minúsculo bordado com a letra C.

- Rá, um Styx, e está até segurando o Livro das Catástrofes! Alguém tem senso de humor - comentou o Primeiro Oficial, rindo. - Se apanhassem alguém fazendo isso,
teria merecido o Banimento ou até a morte pela forca.

A sra. Burrows virou-se para o Primeiro Oficial.

- Ah, é um Styx, é? Pensei que fosse você, amor - disse ela, erguendo uma sobrancelha.

O Primeiro Oficial riu, depois se conteve ao se perguntar se ela estava brincando ou não. Embora a visão da sra. Burrows fosse fortemente debilitada, na maior parte
do tempo seu olfato incrivelmente desenvolvido compensou muito enquanto ela ficava na Colônia, ajudando o Primeiro Oficial a cuidar das coisas. Mas de vez em quando
ele era lembrado de que ela não podia enxergar nada.

- Não, eu tenho certeza de que representa um Pescoço Branco - disse ele. Balançou-o por uma das pernas mastigadas. De repente um dos filhotes, percebendo o que fazia,
saltou para ele. - Epa! - exclamou o Primeiro Oficial quando o filhote arrebanhou o boneco de sua mão e correu com o troféu para debaixo da mesa. - Quase perdi dois
dedos aqui!

Colly não ronronava mais, soltava um rosnado baixo e olhava fixamente o Primeiro Oficial.

- E diga a essa maldita Caçadora que não sou uma ameaça a seus bebês, sim? - disse o Primeiro Oficial. - Afinal, antes ela era a minha Caçadora.

A sra. Burrows riu.

- Ela não fez por mal. Voltará a ser sua Caçadora assim que os níveis hormonais voltarem ao normal.

O filhote saiu de baixo da mesa e pulou de modo que suas patas dianteiras pousaram na coxa do Primeiro Oficial. Podia ter menos de dois meses, mas já era maior do
que qualquer gato doméstico da Crosta.

Balançando a cabeça, o filhote de Caçador largou o boneco de trapo Styx no colo do Primeiro Oficial.

- Ora, viu só isso? Acho que fiz um amigo. Ele quer brincar.

- Ah, esse daí. - A sra. Burrows suspirou. - Ele é o maior e o mais glutão de todos. Igualzinho ao Bartleby.

- Ele também é o pai cuspido e escarrado. Então, talvez seja melhor darmos esse nome a ele... Bartleby, em memória do pai dele - sugeriu o Primeiro Oficial, fazendo
o boneco de trapo voar para o outro lado da cozinha para o gatinho pegar. Colly rosnou novamente, dessa vez ainda mais alto. - Mas acho que a mãe não quer largar
de mão.

Houve um pesado silêncio na sala até que a sra. Burrows falou.

- E, por falar em largar de mão, quanto mais penso nisso... Eu não devia ter deixado Will partir naquela missão. Que espécie de mãe eu sou? - Ela não deu tempo ao
Primeiro Oficial para responder. - Ele já partiu há muito tempo, e tenho a sensação horrível de que algo deve ter acontecido com ele.

O Primeiro Oficial assentiu, depois gesticulou para o teto.

- Mas tudo está se desintegrando lá. Ele pode ter voltado e se escondido em algum lugar... Num lugar seguro. Afinal, Drake e os outros estavam com ele. Eles cuidarão
de Will e talvez nenhum deles consiga nos passar nenhuma mensagem por causa do confinamento.

Sob o governo da sra. Burrows e do Primeiro Oficial, a Colônia se isolou da superfície porque a escala dos problemas na Crosta era muita e havia um medo constante
e incômodo de que os Styx por fim voltassem a concentrar sua atenção na Colônia e reestabelecessem seu governo. Já houve confinamentos no passado, mas foram impostos
pelos Styx, o mais recente quando Will fugiu com Cal depois que não conseguiram libertar Chester do Cárcere. Mas esse novo confinamento não era para castigar o povo
da Colônia, e sim para protegê-los. E a boa notícia era que, apesar de ficarem sem os carregamentos de frutas frescas, a alimentação deles era mais uma vez quase
autossuficiente. Os campos de porcini replantados começaram a produzir safras, e o programa de criação de animais também estava bem encaminhado.

- Preste atenção... Logo ele vai aparecer. Vai ficar tudo bem. - O Primeiro Oficial tentou tranquilizar a sra. Burrows. O gatinho reapareceu com o brinquedo, pulou
de novo com as patas em sua perna, e o Primeiro Oficial coçou o queixo na cabeça larga. O filhote soltou um miado, apreciando. Num instante, Colly se levantou com
as costas arqueadas.

- Acho melhor você deixar o filhote Bartleby em paz antes que ela avance em você - aconselhou a sra. Burrows.

- Perfeitamente - disse o Primeiro Oficial com um suspiro, levantando-se devagar da cadeira com as palmas da mão erguidas, como se se rendesse. - Longe de mim incomodar.
É só a minha casa e a minha cozi...

- Tem alguma coisa muito errada - soltou de repente a sra. Burrows, virando a cabeça para a parede sem enfeites. - Aconteceu alguma coisa!

- O quê... Com a parede?

Os olhos da sra. Burrows giraram para cima de tal modo que só aparecia a parte branca.

- Água... Tanta que você nem acreditaria... E vem para nosso lado.

- Onde... A que distância? - perguntou o Primeiro Oficial com urgência.

A sra. Burrows estremeceu, seus olhos se endireitando.

- No ponto mais afastado da Colônia... Naquele lado. - Ela apontou a parede.

O Primeiro Oficial já corria para a porta.

- Deve estar vindo pelo Labirinto! - gritou. - Deve ter havido um desmoronamento em algum lugar. - Ele parou na porta, o filhote Bartleby olhando com curiosidade.
- Meu Deus... Se foi no Labirinto, talvez a brecha seja na Cidade Eterna! Lembra-se do que Eddie disse a Drake sobre a fratura no teto? Será que é isso?

Já na rua, a sra. Burrows e o Primeiro Oficial encarregaram a primeira pessoa que viram de dar o alarme. Bem avançada em seus setenta anos e sem dar sinais de que
pararia de fazer o trabalho que tinha por meio século, Ruby Withers carregava sua escada e tirava o pó dos globos luminosos no alto dos postes de rua. O Primeiro
Oficial rapidamente lhe disse para ir ao templo mais próximo e soar o alarme, tocando o sino.

Ruby entendeu rapidamente. Cada colonista vivia com três principais temores: a Revelação (quando o povo da Crosta saberia da cidade e a invadiria), um grande incêndio
e por fim ser apanhado numa inundação.

Em minutos, o sino tocava no templo mais próximo e levava um segundo para repicar em um bairro vizinho, depois em outro, até que havia badaladas e gritos por toda
a Colônia.

No início as pessoas ficaram confusas, porque não havia risco aparente, e até o Primeiro Oficial se permitiu ter esperança de que a sra. Burrows estivesse enganada
e fosse um alarme falso. Mas quando chegaram à beira da Caverna Sul, a água já descia o trilho no meio do túnel íngreme que levava ao Quartel.

- Começou - disse a sra. Burrows.

O Primeiro Oficial correu rapidamente pelo túnel íngreme e entrou na primeira passagem que se ramificava dele. Na extremidade desta havia uma pesada porta de ferro,
uma das muitas que levavam da Colônia ao Labirinto. Foi soldada e, embora houvesse um pequeno filete de água em sua base, não havia sinal de problemas.

Até o Primeiro Oficial limpar a vigia de vidro na porta e tentar enxergar o outro lado com a lanterna.

- Ah, não - disse ele.

Ninguém precisava dizer à sra. Burrows que ele vira o nível da água subindo rapidamente do outro lado. Seu supersentido a avisava de que todos os portais para o
Labirinto sofriam uma pressão cada vez maior à medida que milhares de galões de água eram despejados em seus túneis.

Outros colonistas apareciam a cada segundo. Até os novos governadores se envolveram; o Primeiro Oficial viu o Machadinha usando seu corpo considerável para puxar
uma carroça carregada de blocos de pedra enquanto Squeaky e a Banguela Mulligan empurravam de trás.

Embora muitos artesãos habilidosos - pedreiros, engenheiros e outros especialistas que mantinham as cavernas e instalações públicas da Colônia - tivessem sido eliminados
pelos Styx em seu programa de procriação, aqueles que restaram foram rapidamente mobilizados. E as carroças de pedra e equipamento trazidas dos pátios de construção
da Colônia continuavam chegando.

Sabendo que uma rachadura de grande proporção levaria à inundação de sua cidade subterrânea por milhares de galões de água e muito provavelmente a tornaria inabitável,
os colonistas trabalhavam incansavelmente para reforçar e escorar os portais do Labirinto, construindo muros de sustentação. E onde os portais foram considerados
fortes o suficiente para suportar o peso da água, os colonistas calafetaram as juntas pelas bordas das portas de metal, tentando conter qualquer vazamento.

A sra. Burrows estava presente para dar as informações de que era capaz, embora isso lhe fosse cada vez mais difícil, com o volume imenso de água enchendo completamente
a rede do Labirinto, impedindo que suas sondas olfativas penetrassem ali.

E tinham se passado quase vinte e quatro horas quando os colonistas fizeram um intervalo em seus esforços. Cansados, ensopados e cobertos de terra, todos se reuniram
no trilho principal, onde o fluxo de água continuava, mas não parecia se agravar.

- Essa água toda não pode vir de outro lugar se não do Tâmisa, não é? - perguntou a sra. Burrows ao Primeiro Oficial.

- Infelizmente é isso mesmo - respondeu ele. - Eles explodiram o dossel sobre a Cidade Eterna. Exatamente como Drake disse que um dia podiam fazer.

A sra. Burrows meneou a cabeça.

- Mas, se chegaram a esse ponto, o que mais os Styx estão fazendo? Temos de descobrir o que está acontecendo na Crosta - disse ela. - Talvez precisem de nossa ajuda.

- Não sei... - O Primeiro Oficial colocou sua pesada bota num dos pequenos filetes de água, vendo-o encontrar um novo curso na terra úmida. - Já temos problemas
suficientes por aqui. A última coisa que queremos é abrir um portal e ter os Pescoços Brancos em cima de nós mais uma vez.

 

Eles andavam em silêncio, Will de vez em quando lançando olhares para Elliott, perguntando-se qual era o problema, por que ela não parecia estar em seu juízo perfeito.
Embora estivesse acostumado como a franqueza da amiga, o comportamento de Elliott para com Jürgen era estranho, e Will não sabia o motivo.

Só quando chegaram mais perto da torre é que puderam avaliar a escala da construção que apontava para o céu luminoso. O exterior era inteiramente liso e cinza, com
um ou outro trecho marcado pela terra. Era difícil olhar a estrutura em disco no alto devido à intensidade do sol, mas, quando chegaram perto o suficiente, pelo
menos ela proporcionava alguma sombra.

E ali estava Woody, parado feito uma sentinela junto à base da torre, onde o chão era tomado de pilhas de pedra e rochedos espatifados. Will atribuiu isso ao fato
de que a torre tinha rompido do chão, trazendo os estratos de uma profundidade maior da crosta.

Woody observava Elliott atentamente enquanto o grupo se aproximava dele. Agora não parecia ter nenhum pudor em olhá-la nos olhos. Na realidade, desde o evento inexplicável
na pirâmide, o homem diminuto, com seus óculos de sol e chapéu idiota, passara por uma transformação, deixando de ser um membro de aparência excêntrica, mas inofensiva,
do grupo e sendo agora alguém verdadeiramente sombrio, a tal ponto que Will e Jürgen tinham realmente medo dele.

Mas era evidente que Elliott não tinha essas reservas, porque foi diretamente ao bosquímano. Ele deu um passo de lado, revelando atrás dele outro dos símbolos com
os três raios divergentes.

Não havia nenhum outro traço que Will pudesse ver no exterior curvo da torre - só os três raios gravados na parede perfeitamente lisa e sem marcas.

- Parece o painel que você tocou na pirâmide - observou ele.

Parecia haver alguma compreensão tácita entre Woody e Elliott - os olhos do bosquímano estavam fixos nas três marcas, e Elliott estendia a mão para elas.

- Não, não faça isso! De jeito nenhum! - gritou Will de imediato, investindo contra Elliott a fim de segurá-la e afastá-la do símbolo. - Não vou deixar você fazer
isso!

Elliott reagiu com calma.

- Está tudo bem, Will. Não há perigo para nenhum de nós. É sério.

Ele a soltou, deixando que os braços caíssem flácidos junto do corpo.

- Só pense na última vez que você fez isso.

Ela balançou a cabeça.

- Não vai acontecer de novo.

A voz de Will se elevou com sua frustração.

- Ah, claro, e você realmente sabe, não é? Baseada no quê? Estamos no meio de algo que não entendemos e quem sabe como a coisa vai se desenrolar se você colocar
a mão nisso? Desta vez você pode ficar muito machucada. - Ele olhou feio para Woody. - Pergunte a ele o que é essa torre e para que está aqui, por favor?

Elliott falou em Styx com o bosquímano, e ele respondeu, sua expressão inescrutável. Ela fez outra pergunta, e mais uma vez ele respondeu na língua áspera dos Styx.

- Ele não sabe mais do que nós - disse Elliott a Will.

- Não é essa a impressão que ele me dá - argumentou ele.

Elliott suspirou, exasperada.

- Olha, eu tentei lhe perguntar. Só o que ele diz é que isto devia ser assim. Ele usa uma palavra que não reconheço, mas acho que deve significar destino, sorte
ou algo parecido. Talvez seja Styx arcaico. - Ela se abaixou para colocar o rifle no chão, junto de seus pés, depois se ergueu. - Não está sentindo, Will? Está em
volta de nós.

Will meneou a cabeça.

- Você não para de dizer isso. Sentindo o quê, exatamente?

- Tem alguma coisa aqui e é, sei lá, muito maior do que nós - respondeu Elliott.

Will e Jürgen se olharam. Um bando esfarrapado de abutres beliscava a terra revirada, e um trio dos maiores, com a terrível aparência de almofadas estouradas, lutava
por um pedaço saboroso. Soltavam gritos ásperos e estridentes enquanto brigavam, mas de certo modo isso combinava com o momento.

- Não, não sinto nada de diferente. - Will olhou o alto da torre com um uma apreensão evidente. - Olha, quero descobrir do que isso se trata como qualquer um, mas
precisamos ter cuidado. Não temos a mais remota ideia de por que essa torre está aqui, assim precisamos dar um passo de cada vez.

- Desculpe, Will. Ninguém me diz o que fazer - declarou Elliott categoricamente. - Esta decisão é minha.

Will suspirou, sem saber o que mais poderia dizer para convencê-la. Ele deixou claras suas reservas e, além de imobilizá-la fisicamente, não havia mais nada que
ele pudesse fazer. Assim, ficou de boca fechada enquanto Elliott o olhava pela última vez e se deslocava para o símbolo. Porém, caso ela fosse jogada para trás de
novo, ele estaria posicionado para pegá-la.

Elliott estendeu a mão lentamente e colocou os dedos nas três marcas.

Ela recuou enquanto uma abertura circular com um diâmetro de três metros de repente se abriu na torre à esquerda do símbolo. Não houve barulho algum, exceto algumas
pedras soltas se espalhando pelo chão dentro da nova abertura.

Will continuou onde estava, mas Jürgen de imediato passou por Elliott e examinou a entrada.

- A camada externa tem vários centímetros de espessura. Não consigo ver para onde foi a porta ou o painel. Como... Para onde se retraiu?

- Aconteceu o mesmo com aquele alçapão na pirâmide - observou Will. Seu tom era tal que Elliott o olhou rapidamente. Apesar de tudo que estava acontecendo, ele ficou
decepcionado com a amiga. Ela não lhe dera ouvidos.

Jürgen não tinha consciência disso e continuou sua investigação, batendo em vários pontos da abertura, os nós dos dedos mal produzindo som algum.

- Não sei dizer de que material é... Não parece pedra nem metal.

- Viu só... Não houve nenhum perigo para nós, não é? O que foi que eu te disse? - falou Elliott a Will, arriscando um sorriso para ele enquanto pegava o rifle no
chão.

Will não correspondeu, fingindo em vez disso olhar o interior da abertura. Depois gesticulou para ela.

- E agora? Entramos? E se ela se fechar de novo e ficarmos presos ali?

Elliott o olhou inexpressivamente.

- Meu Deus, nos últimos tempos você parece um gato assustado! O que aconteceu com o grande explorador? Talvez você esteja mesmo ficando velho!

- Eu não estou ficando velho - respondeu Will. De pronto, passou acelerado por Jürgen, que o olhou com certa surpresa enquanto ele entrava na torre sem pensar duas
vezes.

 

Capítulo Sete

 

Chester e Parry foram devolvidos à praia pelos fuzileiros navais em um de seus botes infláveis de alta velocidade. Depois de tudo o que aconteceu e da empolgação
de estar em um submarino, era estranho pisar novamente na praia ventosa.

- E aí, acha que podemos desistir deles? Dos americanos? - perguntou Chester ao partirem para o penhasco.

- Parece que sim - respondeu Parry com uma expressão amarga. - Não estou surpreso que o presidente tenha nos largado feito uma batata quente... Mesmo que ele enviasse
suas forças, não sobrou ninguém no governo deste país.

Pelo que pareciam horas, eles ficaram na cabine do submarino, esperando para descobrir se a conferência retornaria. Mas, apesar das muitas tentativas de falar com
a Casa Branca, o homem de terno azul que os acompanhava não conseguiu confirmação de que teriam outra audiência com o presidente. Por fim, o capitão do submarino
entrou na cabine, dizendo ter ordens para partir, e assim Chester e Parry foram escoltados de volta à praia.

- Todos os problemas... Todas as mortes... Parecem tão distantes - refletiu Chester enquanto o sol subia lentamente pelo horizonte remoto do mar e os penhascos brilhavam
um pouco com a luz rosada do novo dia. Embora sua mente ainda voltasse ao que ele testemunhara em Londres, algo dos últimos momentos da conferência importunava Chester.
- Parry, o presidente falou alguma coisa sobre uma agente duplo nas fileiras Styx... É verdade? Você conseguiu colocar alguém lá? - arriscou-se ele por fim quando
os dois chegavam à trilha costeira no alto do penhasco.

Parry murmurou.

- Não, não foi nada. - Mas Chester percebeu que o velho evitava seus olhos e aumentava o ritmo da caminhada quando eles se viraram para o interior na direção do
chalé, atravessando as moitas de arbusto.

Parry só voltou a falar quando estavam no último trecho a ser percorrido.

- Obrigado por vir comigo, Chester - disse ele. - Foi pedir muito depois da tragédia com seus pais. Lamento que você tenha se envolvido em tudo novamente.

- Está tudo bem - falou o menino. - Acho que me fez bem sair um pouco. Parece que me enfiei um pouco demais na depressão. - Ele sorriu para Parry com afeto, satisfeito
que sua presença fosse apreciada. - Mas não sei se o ajudei muito.

- Ajudou, imensuravelmente. O presidente deve ter lido mil relatórios sobre o que está acontecendo em nosso país, a ponto de se encher deles. Mas você deu a nossos
problemas um caráter humano, e vi que isso o afetou e começou a pender a balança a nosso favor. Talvez tenha sido por isso que os Styx tenham agido na ocasião que
escolheram.

- Sim, como eles sabiam que deviam explodir o teto da caverna naquele exato momento? - perguntou Chester enquanto o fato lhe ocorria.

- Os Styx tinham algum agente infiltrado... Deve ter sido bem fácil, porque ignoraram minha recomendação de fazer verificações regulares com o Descontaminador. Então,
alguém da equipe do primeiro-ministro deu a dica a eles.

Chester concordou com a cabeça.

- Chegamos - disse Parry enquanto eles saíam dos arbustos e o chalé entrava em seu campo de visão. Chester não conseguia ver nenhuma luz dentro da casa, mas isso
era esperado. O Velho Wilkie era ainda mais caxias quando se tratava de bloquear as janelas à noite.

Quando Parry abriu a porta da frente, o Velho Wilkie estava em sua posição de costume na cadeira, no corredor, a espingarda no colo, bem desperto. Eles entraram
na sala principal, onde as brasas ainda cintilavam na lareira. Stephanie também estava acordada, enrolada num cobertor para se manter aquecida.

- Vocês voltaram! Já faz séculos que saíram! - disse ela animadamente, depois franziu a testa. - Mas aonde foram, afinal?

- Você não acreditaria no que nós... - começou Chester, depois se reprimiu. - Tudo bem se eu contar a ela? - perguntou a Parry.

Parry assentiu.

- Pode contar... Ela deve saber. E vou informar o Velho Wilkie na cozinha. - Olhou o relógio. - Espero que todos tenham feito as malas porque não temos muito tempo
para a retirada. - Ele e o Velho Wilkie foram à porta na frente da lareira e entraram na cozinha.

Quando ficaram a sós, Stephanie falou:

- Anda logo, quero saber de tudo. - Ela tocou o braço de Chester, depois se retraiu. - Você está encharcado! Está chovendo tanto assim lá fora?

- Ah, isso foi na volta do submarino - respondeu Chester -, onde conversamos com presidente dos Estados Unidos e o primeiro-ministro... Bom, o primeiro-ministro
por pouco tempo, até que aconteceu uma coisa terr...

- Tá de sacanagem comigo? - Stephanie o olhava com um sorriso pairando nos lábios. Ele notou então que ela fizera um esforço com o cabelo e também se maquiara um
pouco, e estava muito bonita. - Sabe como é... Eu não ligo se você estiver brincando comigo - disse ela. - Você parece o velho Chester de novo. Eu sentia falta disso.
Sentia falta de você.

Antes que Chester tivesse tempo de responder, ela o pegou pelo braço e o levou ao sofá. Conseguira sintonizar em uma emissora de rádio estrangeira, e eles ficaram
sentados ali com a música ao fundo enquanto ela escutava a história de sua saída com Parry. Ela não acreditou quando ele contou o que aconteceu em Westminster, com
a abertura imensa no chão que engoliu os prédios.

À medida que a rádio perdia o sinal e a música parava, Chester percebeu como sua voz estava rouca.

- Depois de contar a história da minha vida ao presidente, acho que nunca falei tanto a vida toda! - Ele riu. - Bem que podia beber alguma coisa.

Ele partiu para a porta da cozinha, que estava entreaberta. Embora Parry falasse em voz baixa, o chalé era tão silencioso que Chester não teve grande dificuldade
para ouvir o que ele dizia. Parry parecia tão sério que Chester se conteve e não entrou direto, pensando que devia primeiro anunciar sua presença.

Ouviu o ronco grave da voz do Velho Wilkie, ao que Parry retorquiu de imediato: "Não, como ele pode saber? Não depois de tudo terminar daquele jeito catastrófico
no Complexo."

- Qual é o problema, Chester? Por que você parou aí? - cochichou Stephanie do sofá.

Mas Chester não respondeu, porque algo o incomodava.

Ele se aproximou um pouco mais da porta para ouvir também o lado da conversa do Velho Wilkie.

- Ainda bem que você não me contou antes... Teria me colocado numa situação muito estranha com o garoto. - Houve uma pausa, e o Velho Wilkie continuou. - Sei que
o papel da infiltração foi fundamental, mas Danforth é descontrolado demais para o bem dele e o nosso.

- Danforth? - sussurrou Chester, balançando a cabeça, enquanto as palavras do presidente lhe voltavam: seu agente duplo nas fileiras Styx.

A realidade caiu sobre Chester com a força de um projétil. Nunca, nem em um milhão de anos, ele teria imaginado o que Danforth ia fazer. Pelo mais breve momento,
Chester não sabia se desmoronava e caía em prantos ou se gritava com toda a fúria que se acumulara dentro dele.

A fúria venceu. Cego por uma névoa vermelha, ele empurrou a porta com tanta força que ela quase saiu das dobradiças. A suas costas, Stephanie soltou um gritinho.

Boquiabertos com a entrada abrupta de Chester, Parry e o Velho Wilkie estavam à mesa, segurando seus copos e com uma garrafa de uísque entre os dois.

- Então meus pais morreram por causa do plano imbecil de Danforth! - disse Chester, com a voz tremendo de cólera. - É verdade, Parry?

Pela primeira vez, Parry ficou totalmente perdido. Gaguejou alguma coisa enquanto se levantava.

- Chester - começou ele. - Sei que isso parece...

- Não! Chega de mentiras! - gritou-lhe Chester. - Você sabia o que Danforth estava aprontando... Sabia exatamente o que ele fazia - berrou. - Mas não se deu ao trabalho
de me contar, não foi? Eles eram só os meus pais!

Parry deu um passo na direção de Chester. O menino pegou a espingarda do Velho Wilkie na mesa e puxou o ferrolho, destravando-a. Chester não chegou a apontar a arma
para Parry e o Velho Wilkie, mas a segurava como se pretendesse fazer isso.

O tom de Parry era de conciliação.

- Sei como isso parece, mas você precisa se acalmar, amigo, para poder ouvir a hist...

- O quê? Ouvir mais mentiras sobre aquele traidor? - Chester o interrompeu. - Se Danforth estava do nosso lado, por que mexeu nos sistemas do Complexo e nos deixou
quase sem ar? Nem mesmo pudemos pedir ajuda porque ele ferrou com o equipamento.

Parry meneou a cabeça.

- Ele só foi meticuloso... Queria ser convincente e também não queria que nós ficássemos zanzando no Complexo, caso os Styx descobrissem sua localização. - Parry
voltou a balançar a cabeça. - Olhe, Chester, ele não achou que Jeff tentaria algu...

- Não se atreva a pronunciar o nome do meu pai! Você não é digno disso! - gritou Chester. - E você não veio até aqui porque estava preocupado conosco, não é, Parry?
- gritou ele. - Ah, não, você veio porque foi conveniente para seu encontro com os americanos. Você não dá a mínima para mim nem para nenhum de nós.

- Chester? - disse Stephanie enquanto Chester voltava à sala principal. Ele se sentiu vulnerável com a menina atrás dele, consciente de que ela era bem capaz de
desarmá-lo se quisesse.

- Não, fique longe de mim você também - disse ele a Stephanie, andando de lado, de costas para a lareira, indo para a outra porta.

Parry e o Velho Wilkie seguiam Chester, que entrou no hall, onde parou por um momento.

- Não posso ficar nesse lugar - disse ele. - Vou embora.

- Por favor, não seja tão precipitado, Chester - implorou-lhe Parry.

- Mas para onde você vai? - perguntou Stephanie numa voz fraca e assustada.

Chester ainda estava fora de si de cólera ao abrir a porta da frente e sair de rompante.

- Não pode ir embora desse jeito. Vamos conversar, depois você decide o que vai fazer - disse Parry, a frieza voltando a sua voz enquanto ele e os outros se juntavam
ao menino do lado de fora.

- Por que você não espera um minuto... E ouve o que Parry tem a dizer? - pediu Stephanie. Ela estava parada ali com lágrimas nos olhos, o cobertor ainda envolvendo
os ombros.

Chester tinha se afastado, mas parou repentinamente e girou o corpo.

- Não! Estou te avisando... Nenhum de vocês tente me impedir!

- Você não sabe o que está fazendo, Chester. Está fora de si - disse Parry, dando vários passos até o garoto e estendendo a mão.

- Para trás! - exclamou Chester, levantando a espingarda.

O Velho Wilkie aproximava-se de mansinho a seu lado.

Parry avançou outro passo.

- Eu não sabia de nada antes, mas vou explicar o que Danforth tentava fazer e como isso é importante para nós no plano geral.

Ao ouvir o nome de Danforth, Chester gritou:

- Não estou nem aí para nada disso. E não quero nem mesmo ouvir o nome desse traidor maldito de novo.

- Danforth fez o impossível e conseguiu se infiltrar entre os Styx. Ele arriscou o próprio pescoço... Está arriscando a própria vida porque trabalha para nós. O
que está fazendo é fundamental para nosso serviço de inteligência - argumentou Parry.

- Tá, sei, ele não é muito competente nisso, é? Nem te avisou de que nosso primeiro-ministro estava prestes a ser sugado por um buraco, avisou? - argumentou Chester.

- Nem sempre ele é capaz de conseguir que as mensagens sej... - começou Parry, mas foi interrompido quando Chester voltou a gritar, porque de repente percebeu o
quanto o Velho Wilkie tinha se deslocado para seu lado.

- Não, não faça isso! Tentando me pegar de lados diferentes, não é? - ele acusou o Velho Wilkie e Parry. Chester apontou a espingarda para o céu e disparou um tiro
sobre a cabeça do Velho Wilkie. O disparo ecoou pelo entorno.

O Velho Wilkie manteve as mãos levantadas para mostrar que estava desarmado.

- Eu não estava tentando nada - disse ele.

- Até parece que eu acredito. Não se mexa nem mais um centímetro! Nenhum de vocês! - ameaçou Chester.

- Gostaria que você não tivesse feito isso - disse Parry a meia-voz.

- Por quê...? Porque seus soldadinhos virão correndo? - falou Chester.

- Não, porque vai ressoar por quilômetros. Os Armagi podem captar o barulho - respondeu Parry.

- Ah, tá legal. Não tem nada perto daqui. Você só está tentando me assustar. - Chester zombou dele. - Bom, eu não dou mais a mínima. Os Armagi que vão par...

Num minuto o Velho Wilkie estava ali, de mãos ainda erguidas, no seguinte era atirado pelo ar. Ele caiu entre Chester e Parry, de cara para baixo, imóvel.

- Vovô! - gritou Stephanie.

O Velho Wilkie gemeu.

Onde o Velho Wilkie estivera de pé, algo quase transparente refratava o sol de inverno. Tinha a altura de um homem e tocou a grama coberta de geada sem fazer barulho
nenhum.

O Armagi tinha cortado o Velho Wilkie com a beira de suas asas de morcego e agora as recolhia atrás das costas. Pelo modo como reagiam à luz, podiam ser feitas de
vidro.

Um dos telefones por satélite de Parry começou a tocar. Chester imaginou que fosse a equipe da SAS próxima esperando com o helicóptero e que eles teriam ouvido o
tiro. Mas certamente Parry não ia atender. Em vez disso, mal mexendo os lábios, murmurou a Chester:

- Você é o único armado aqui, meu amigo.

Mas Chester não reagiu, paralisado de choque.

A não ser pelos olhos compostos pretos, era difícil distinguir as feições do Armagi em sua cabeça bicuda, porque os órgãos internos de transparência variável eram
visíveis por dentro de seu crânio. Um fluido parecia correr pelas veias ou artérias e algo com uma tonalidade verde e suja pulsava no alto do crânio. Mas, enquanto
Parry falava, o Armagi virou a cabeça em sua direção e depois partiu para ele.

- Chester... CHESTER! - gritou Stephanie.

Chester enfim reagiu. Apontando a espingarda para o Armagi, ele apertou o gatilho. Mas ao girar a arma Chester disparou prematuramente, soltando a segunda bala antes
que estivesse apontada para o alvo.

O tiro não atingiu o Armagi no tórax, como Chester pretendia, pegando no que se aproximava de seu ombro. Uma miríade de fragmentos cintilantes se espalhou no ar,
como gelo levado pelo vento.

Apesar da potência do impacto, ele continuou ereto, com um pé em garra se prendendo ao chão, o outro postado no ar. Em seguida o Armagi se virou para Chester.

- Aimeudeus - disse ele. - Tô ferrado. - Ele lançou um olhar para Stephanie. - Fuja! - gritou ele. - Eu vou mantê-lo ocupado.

Dessa vez, não havia dúvida de que o Armagi vinha para ele.

Chester jogou a espingarda no Armagi, mas ele aparou a arma com um golpe habilidoso de seu braço incólume. A criatura podia estar ferida, mas ainda era uma forte
ameaça.

Chester nem se deu ao trabalho de correr.

Fechou os olhos, caindo de joelhos, esperando.

Naquele breve momento, pensou nos pais.

- Mamãe, papai, logo estarei com vocês - sussurrou ele, tentando controlar o medo. Mas não conseguiu e, a plenos pulmões, gritou: - Socorro!

Ouviu-se um silvo.

Ele abriu os olhos.

Parry ainda estava ali, abraçando Stephanie.

O Armagi se dobrou para o chão, com algo se projetando de sua nuca.

Chester se virou para olhar atrás dele.

- Martha! Não acredito nisso!

Ela saiu dos arbustos e estava de pé ali, o cabelo ruivo desgrenhado como sempre, as roupas volumosas igualmente sujas.

- Olá, queridinho. - Ela se aproximou dele e acariciou seu rosto.

Chester não conseguia falar.

- Onde... Como o... Como...?

- Meu menino maravilhoso, você só precisava pedir socorro - disse ela, olhando-o com adoração, tirando a franja de sua testa. - Você sabia que eu viria, não sabia?

Chester olhou da besta na mão dela para o Armagi imóvel.

- Você o matou?

Ele teve de olhar duas vezes para entender o que estava ali agora. Em vez da criatura, estendida e de cara para baixo, era um Styx nu.

- Não, ele não está morto... Só está atordoado - respondeu Martha. - Tem um lugar atrás da cabeça, e, se você conseguir meter um projétil em sua espinha, um único
tiro fará o trabalho. Habilidade e sorte - acrescentou ela, evidentemente muito satisfeita consigo mesma.

Ainda sem acreditar nos próprios olhos, Chester se arriscou a se aproximar um pouco e olhar melhor o Styx.

- Mas... Mas... Ele mudou... - gaguejou ele. - Como ele fez isso?

Martha também se aproximou do Styx prostrado e passou os olhos por ele.

- Só assim consigo que um homem pelado se jogue a meus pés - disse ela com certa nostalgia. Depois pegou o braço de Chester e tentou afastá-lo. - Cuidado... Não
chegue perto demais.

- Mas ele não está morto? - perguntou o Chester. - É o que parece.

Martha balançou a cabeça.

- Morto, não, não com essas coisas. O único jeito de ter certeza é queimar cada pedaço dele, unha do pé e tudo.

- Sim, eles se regeneram - disse Parry, aproximando-se um passo.

Como se tivesse se esquecido completamente onde estava, Chester agora olhava para Parry, levando um tempo para focalizar nele.

- Não, você não! Fique longe de mim! - rosnou Chester.

- Garoto, você precisa entend... - começou a falar Parry, mas não conseguiu concluir porque Stephanie gritou mais uma vez, apontando para as árvores de um bosque
próximo.

Um segundo Armagi pousou no chão a cerca de seis metros. Parecia procurar a outra criatura.

- Sua besta? - disse Chester a Martha, lembrando-se de que ela acabara de atirar.

- Não serve de nada - respondeu Martha. - Não posso recarregar com pressa. Só estou com uma das mãos boa depois que o farol me pegou.

O Armagi se aproximava dela e de Chester, mas ela ficou inteiramente calma.

- Martha... O que vamos fazer? - perguntou Chester freneticamente. Ele acreditava que estavam fora de perigo, mas não podia estar mais enganado.

- Posso ter perdido a mão para o farol, mas... - Marta se interrompeu para assoviar.

Chester pensou que estava enxergando mal. De todos os lados, objetos brancos convergiram para o Armagi. Ao se lançarem, foram tão rápidos quanto a criatura. Podiam
ser um pouco menores do que o Armagi, mas ele não teve nenhuma chance. Como que apanhado no meio de um tornado, o Armagi foi despedaçado, as partes do corpo caindo
no chão a toda volta.

- ...isso não quer dizer que eu não a tenha capturado e domesticado - concluiu Martha.

- Domesticado? - perguntou Chester, sem entender realmente o que ela dizia.

- Sim, eu domestiquei o farol - contou Martha com orgulho.

Enquanto o tornado cessava, Chester se viu olhando não apenas um farol, mas todo um bando deles. Pairavam no ar acima dos restos do Armagi, suas escamas brancas
e brilhantes refletindo a luz.

- Anjos. - Chester riu, lembrando-se do que o dr. Burrows tinha dito sobre eles. - Mas são tantos... Não é um só!

- Sim, sete. - Martha assoviou e acenou com a mão saudável. Em menos de um piscar de olhos, os faróis tinham voado pelo ar para cercar Martha e Chester, suas asas
emitindo um leve zumbido ao pararem em roda, os halos brilhando suavemente. Havia algo de muito repulsivo neles, entretanto, também tinham certa beleza.

- Eles são incríveis. - Chester riu.

- São meus protetores. E agora são também seus protetores. - Martha afagou a cabeça de Chester com amor. - Com eles, ficaremos em segurança onde quer que estejamos.

- Mas não entendo. Como você sabia onde eu estava? - perguntou o menino.

Martha apontou os faróis.

- Depois que você lhes dá um cheiro, eles podem rastrear como sabujos... Até por centenas de quilômetros. É assim que sempre encontro você, onde quer que esteja.

- Humm, Chester - disse Parry. Ele ainda protegia Stephanie com um braço em volta da menina enquanto os dois ficavam boquiabertos para o espetáculo de Martha e seus
faróis. - Você não está pensando seriamente em ir embora com essa mulher, está? Não depois do que ela o fez passar.

Chester pegou a espingarda, depois se voltou para Martha e, para deixar bem claro, passou o braço pelo dela.

- Sim, estou. Quando estávamos em Norfolk, ela só estava cuidando de mim... Agora eu entendo isso. Ela realmente se importa comigo, e isso é mais do que você pode
fazer um dia. Veja só o que você fez com meus pais.

A cara coberta de sujeira de Martha, com todas as suas veias rompidas, era a imagem da felicidade ao ouvir Chester.

- Sim, eu só estava cuidando de você. Sabia que você tinha passado pela Luz Negra e tentava mandar recados aos Styx. Eu sabia disso.

- Então, isto é um adeus - disse Chester a Parry.

- Talvez você queira ver seu amigo - sugeriu Martha enquanto o Velho Wilkie gemia e começava a se mexer. De imediato Stephanie correu até ele, mas Parry continuou
onde estava, balançando a cabeça, incrédulo.

- Chester, pelo menos leve isto com você, caso precise entrar em contato. - Ele tirou o telefone por satélite do bolso e o estendeu.

Chester não disse uma palavra, mas Parry jogou o aparelho, e ele o pegou.

- Está totalmente carregado - disse Parry. - Ligue e escute as mensagens de vez em quando, sim? Promete que vai fazer isso?

Colocando o telefone no bolso, Chester ainda não respondeu enquanto, de braços dados, ele e Martha viraram-se para o mar e se afastaram, os sete faróis girando em
volta deles como um carrossel.

 

Capítulo Oito

 

A pequena lancha disparava pelo canal subterrâneo, deslizando pela superfície do rio, e a principal preocupação de Jiggs era que o casco aguentasse toda a jornada.
Precisou de consertos grandes para remendar os danos que os Limitadores tinham infligido na lancha e em qualquer coisa que ainda flutuasse antes de afundar as embarcações
destroçadas no leito do porto. E Jiggs não tinha material à disposição para consertar a lancha - um pouco de resina de validade vencida e chapas velhas de fibra
de vidro -, mas acabou conseguindo.

E ele também estava muito preocupado com Drake, encolhido no fundo do barco. Embora, depois de muito resmungar, Drake por fim concordasse em se enrolar em um poncho
retirado do depósito do intendente, a água do rio que se espalhava no ar era amargamente fria, e o próprio Jiggs havia perdido grande parte da sensibilidade das
mãos e do rosto.

Jiggs ainda se preocupava com o amigo e desejava que houvesse um jeito de parar e ver como ele estava quando sentiu a velocidade da lancha cair. Desacelerava como
se tivesse encontrado resistência no rio.

E encontrou. Através de seu monoscópio russo, Jiggs pegou um vislumbre de um cabo de aço estendido pelo canal. Estava posicionado com perspicácia, numa altura suficiente
para deixar passar qualquer destroço de embarcação, mas perfeita para pegar uma lancha de passagem.

O cabo chegou a seu ponto de ruptura e se partiu, e o barulho metálico podia ser um efeito sonoro de desenho animado. Seria engraçado se as consequências não fossem
tão medonhas.

Jiggs gritou "LÁ VEM!" a plenos pulmões enquanto as pontas soltas do cabo açoitavam os dois lados do canal. Drake não pareceu ouvir o alerta debaixo de seu poncho.

Com instintos afiados por incontáveis missões em áreas onde dispositivos antipessoais eram um risco cotidiano, Jiggs reagiu numa fração de segundo. Acelerando ao
máximo, puxou o motor de popa, conduzindo a lancha para o meio do canal, o mais distante possível das laterais.

Ele rezava para que os sapadores Styx pretendessem pegar qualquer um que viajasse na direção contrária - descendo ao abrigo no fundo, e não subindo dele. Fazia um
mundo de diferença o local onde os explosivos foram plantados. Fazia toda diferença para a possibilidade de ele e Drake escaparem com vida.

Enquanto os explosivos eram detonados, Jiggs estava agachado e tentava proteger a cabeça. Uma onda jogou a lancha rio acima, e o túnel atrás deles ficou denso de
fumaça e de uma cascata de pedras em queda.

Jiggs entendeu naquele momento que a armadilha fora colocada para barcos que iam na direção contrária.

- Obrigado, meu Deus - gritou ele. Ainda pronunciava sua gratidão quando disparos da explosão ecoavam de um lado a outro do túnel. Depois, ao seguir uma curva no
canal, ouvia apenas o motor de popa e o rio correndo novamente.

Drake se mexeu, sua cabeça espiando feito uma tartaruga de baixo do poncho.

- Quer alguma coisa? - perguntou ele. - Você me cutucou.

- Não, não fui eu, está tudo bem. Descanse um pouco - respondeu Jiggs, esforçando-se para não rir.

Depois de outras três horas, eles interromperam a jornada e pararam em uma das estações ao longo do caminho. Ali, Jiggs reabasteceu o combustível com os tanques
enferrujados no cais, enquanto Drake tinha um descanso dos constantes borrifos gelados do rio acelerado.

Eles voltaram a viajar e, muitas horas depois, enfim pararam no porto comprido que ficava abaixo do campo de pouso abandonado. Jiggs atracou a lancha e ajudou Drake
a subir ao cais. Depois de uma troca de roupas e uma bebida quente, ele saiu para investigar.

- Desarmei as armadilhas - disse Jiggs a Drake quando por fim voltou. - Havia três no caminho para a saída.

Drake assentiu.

- Estou surpreso que tenham deixado o rio desprotegido. No lugar deles, eu teria plantado uma ali, para ter certeza.

Jiggs se limitou a assentir, com um leve sorriso brincando nos lábios.

- Sim, eu também - concordou. - Estranho isso. - Depois ajudou Drake a se levantar, e eles partiram.

 

O interior da torre lembrava a Will uma catedral moderna que ele visitou uma vez com o pai. Podia ser o reverberar de seus passos pelo espaço grande ou talvez porque
o interior, com suas paredes e teto simples, todo do material cinza da pirâmide exposta, dava a impressão de solenidade e majestade.

De poder.

Will começava a pensar que havia alguma coisa certa no que Elliott estivera dizendo. Talvez ele agora também o sentisse.

E, para aumentar essa sensação, havia duas colunas grandes bem em frente à entrada. Ao avançar para elas pelo chão empoeirado, Will teve a impressão de que se aproximava
de um altar. Seus olhos percorreram as letras pontiagudas e peculiares inscritas nas duas colunas de mais de seis metros de altura.

- Essa escrita faz sentido para alguém? - perguntou ele.

- Não, não a reconheço - respondeu Jürgen. - Essas letras não têm nenhuma característica da escrita ou dos hieróglifos que estive estudando.

- E para você? - perguntou Will a Elliott com frieza. Ele ainda não a havia perdoado por ela ter ignorado seu conselho antes que eles entrassem na torre.

Quando Elliott meneou a cabeça, Will apontou os dois cilindros.

- Não tem sinal de porta nenhuma, mas você não acha que essas coisas são elevadores, acha? - Ele riu porque a construção, que fora arremessada do solo, tinha de
ter milênios de idade, e essa parecia uma pergunta estranha a fazer.

- Isso faria sentido, em vista da altura da estrutura - sugeriu Jürgen, mas ele já partia para o bosquímano, que estava perto do que parecia uma escada circular
começando no lado esquerdo das colunas e subindo por trás delas.

- Por que não pergunta a Woody que lugar é esse?... Pergunte a ele no que estamos nos metendo aqui. - Will incitou Elliott.

De imediato, Elliott começou a falar em Styx com o bosquímano. Depois de algum diálogo, ela se virou para Will.

- Ele disse que não sabe, e eu acredito nele. Ele ainda usa aquela mesma palavra... Destino.

- Bom, só tem um jeito de descobrir - disse Will. - Vamos!

Com Woody à frente, todos partiram rapidamente pela escada circular.

- São idênticas às outras dentro da pirâmide - observou Elliott.

- Sim, as dimensões são muito estranhas. Quase como se não fossem construídas para seres humanos - observou Jürgen; todos estavam com dificuldade para subir os degraus.
Para percorrê-los com certa velocidade, o truque era tentar dois de cada vez, embora isso significasse dar passadas estranhamente longas. Depois de um tempo, o ato
se tornava automático, e eles só tropeçavam quando perdiam o ritmo.

Woody continuava a levar todos eles para cima, e os degraus pareciam seguir para sempre em torno das colunas centrais. Enfim, eles chegaram a um nível, com outra
abertura circular. Estavam todos sem fôlego, mas explodindo de curiosidade ao entrarem ali.

- Imagino que estamos na estrutura mais larga do topo. - Jürgen ofegava.

- É, mas não tem nada aqui. Então, para que tudo isso? - perguntou Will.

Ninguém pôde lhe dar uma resposta. Eles deram uma volta completa pelo espaço, terminando no local de onde partiram. Estava inteiramente vazio - apenas a parede externa
curva, com quatro blocos como consoles, do mesmo material cinza, erguendo-se do chão a intervalos regulares em volta do poço central.

Jürgen explorou a parede externa com algumas pancadas.

- É fria - disse ele.

Elliott se aproximara de um dos blocos no chão e parecia estar a ponto de tocá-lo, mas se conteve. Estava ruborizada, embora Will não soubesse se isso se devia simplesmente
a sua recuperação da subida rápida pela escada ou se algo mais a incomodava.

- Está tudo bem? - perguntou ele.

- Claro. Sim - murmurou ela, já se dirigindo a Woody na entrada.

Dando de ombros, Will ia fazer o mesmo quando parou de repente.

- Espere aí - disse ele.

- O que foi? - perguntou Jürgen.

Will examinava as próprias mãos, em seguida olhou o teto.

- Não tem nenhuma janela, nem luz aqui - falou. - Então, como pode ser que não estejamos na mais completa escuridão?

Jürgen também ergueu a mão e a mexia para examiná-la de ângulos diferentes.

- Tem toda razão. - Ele demonstrava uma perplexidade ainda maior ao baixar as mãos para o chão. De repente se colocou de joelhos para limpar a poeira de uma área
do piso.

- O que está fazendo? - perguntou-lhe Will.

Jürgen se levantou.

- A luz parece ser omnidirecional... Não tem sombras discerníveis. - Ele ergueu a mão estendida com a palma paralela ao chão. - Observe que a parte de baixo de minha
mão é iluminada, embora o chão esteja coberto de poeira e não exista nenhuma origem óbvia da luz aqui embaixo. Nem em lugar nenhum, aliás. Você tem razão, Will,
isso é extraordinário.

Jürgen não havia terminado.

- E a não ser que seja algum tipo de proeza da engenharia e a luz de fora seja canalizada para dentro, deve haver uma fonte de energia para fazer isso.

- É, disso nós sabemos. Também abriu a porta para nós lá embaixo e explodiu a antiga pirâmide e ergueu toda essa torre do chão - falou Will rapidamente.

Jürgen concordou com a cabeça com certa timidez enquanto Will percebia como Woody estava impaciente.

- Vamos ao andar seguinte ver o que encontramos lá - sugeriu ele, ainda olhando com cautela o bosquímano. Will não confiava mais nele.

- Bem, agora não temos mais para onde ir. Acho que estamos bem no topo da torre - observou Jürgen quando eles chegaram ao que restava da escada e deram numa grande
área circular, dessa vez sem nenhuma obstrução no meio das colunas gêmeas.

Em vez disso, bem no centro viram um pódio circular de cerca de 6 metros de diâmetro, em que havia um alto console central, em bloco, cercado por blocos menores.

Mais uma vez, as paredes, o piso e o teto eram do mesmo material do resto da torre, e a mesma luz uniforme iluminava todo o espaço.

- Quem construiu isso gostava das coisas simples - comentou Will.

Jürgen dava a volta pela parede enquanto Will chegava ao pódio central para examinar os diferentes blocos, passando a mão por eles.

- E tudo isso parece pedra, como no andar lá embaixo, como em toda parte.

Elliott e Woody foram diretamente ao console mais alto no meio do pódio. Os dois o olharam, bem no topo. Os dois pareciam perturbados.

Will soltou o ar incisivamente.

- Sei que tem alguma coisa errada. Se você não me disser o que é, juro que nunca mais volto a falar com você - ameaçou.

- Está faltando alguma coisa aqui - disse ela.

- Como assim? - perguntou Will, ficando ainda mais desconcertado com a atitude da amiga. - Está faltando o quê? E como você pode saber disso?

- Eu não sei como sei. - Elliott ofegava. - Parece um sonho, quando acontece uma coisa horrível... A pior em que você pode pensar... E você acorda com aquela sensação
estranha de medo, mas não consegue se lembrar exatamente do porquê. - Ao olhar nos olhos de Will, ele percebeu que uma lágrima escorria pela pele suja de seu rosto.
- Eu queria poder explicar, mas alguma coisa não parece certa. Está faltando uma coisa que deveria estar aqui.

- Então, o que mais você pode sentir? - ele a desafiou, tentando manter a voz calma.

Ela foi até um dos consoles menores.

- Bem, eu também sei que se fizer isso... - Ela abriu os dedos e colocou a palma da mão no alto do console.

A parede circular em volta do espaço de repente ganhou vida com imagens brilhantes. Jürgen tomou tal susto que deu rapidamente um passo para trás e perdeu o equilíbrio,
acabando sobre os joelhos.

Imagens diferentes da superfície da Terra - aparentemente do ponto de vista do espaço - cobriam cada centímetro da parede externa.

- Como...? - Will ofegou. Através de trechos finos de uma camada de nuvens, ele olhava as imagens múltiplas de continentes e oceanos. As visões diferentes se moviam,
passando pelas paredes, sobrepondo-se pelo caminho.

- E eu sei que se fizer isso - disse Elliott, passando um único dedo pelo console, cuja superfície agora brilhava com linhas e estranhos símbolos azuis - posso aproximar
mais.

Jürgen murmurava alguma coisa, ainda no chão, boquiaberto ao ver as diferentes cenas.

- E também sei que se fizer isso... - continuou Elliott; ela deslizou o dedo no painel, e uma imagem girou pelas paredes e parou onde todos podiam vê-la exatamente
na frente de Jürgen - ...é onde eu tenho que estar.

Os olhos de Will disparavam entre a imagem e Elliott.

- Eu também - disse ele baixinho. - Porque essa é a Inglaterra.

Elliott tirou a mão do console, e as imagens de repente sumiram, tudo voltando a como estava antes.

Exceto por Woody, ajoelhado e tagarelando consigo mesmo, com as mãos unidas, como se rezasse.

Elliott virou-se para Will, sacudindo os ombros, começando a chorar.

- Will, estou com medo - conseguiu dizer. Ela estendeu os braços para ele e tentou dar um passo em sua direção, mas quase caiu. - O que está havendo? Por favor,
pode me abraçar? - pediu ela. - Por favor.

 

Capítulo Nove

 

Ao andar pela trilha do penhasco com Martha, Chester pensou ter apanhado o barulho de rotores de helicóptero entre o vento.

- Já vai tarde - disse ele à meia-voz, porque provavelmente era Parry indo embora.

Agora que tinha Chester de volta, havia um enorme sorriso permanentemente esticando a cara suja de Martha.

- Arrumei um bom lugar para nós irmos, queridinho - disse ela. - Vamos ficar bem quentinhos lá.

- Ótimo - respondeu Chester com uma alegria forçada. Ele ainda estava com tanta raiva que mal conseguia pensar em mais nada.

- E aposto que você também vai querer comer alguma coisa - acrescentou Martha.

- Hummm - começou Chester, hesitante. - Só um detalhe antes disso.

Martha o olhou.

- Sim, meu amor?

- Sobre minha comida... De agora em diante, quero saber exatamente o que tem nela. Tudo bem?

- É claro, meu docinho - disse Martha - E sobre aquela vez. Eu...

- Não, por favor, não me diga. Não quero saber. Não quero saber - repetia Chester, cobrindo as orelhas com as mãos.

- Rá, tudo bem. - Martha riu. - Só o que vou dizer é a necessidade faz o homem - acrescentou ela enquanto eles continuavam em seu caminho. - A necessidade faz o
homem, queridinho.

Feliz por ter tirado esse peso das costas, Chester se perguntava se eles não estariam meio expostos numa trilha que evidentemente era muito usada e em particular
em plena luz do dia.

Martha adivinhou o que ele pensava e acariciou seu ombro afetuosamente com o que restava da mão ferida.

- Vamos ficar a salvo aonde vamos, amor... Não se preocupe. - Ela afastou os cotos dos dedos, jogando a mão para o céu. - Minhas pequenas fadas protetoras ali em
cima sempre cuidam de mim. Elas nunca dormem... Não por muito tempo. Vão me dizer se alguém chegar perto.

- Então, você pegou aquele primeiro farol em Norfolk - perguntou Chester, curioso para saber o que aconteceu.

- Sim... Depois de lutarmos muito, ela foi levada por mim a entrar na água - respondeu Martha. - Eu a prendi lá, mas não matei.

- Ela? - Chester fez eco.

- Sim, eu a alimentei e a mantive em cativeiro e, para minha surpresa, ela teve petizes.

A testa de Chester se franziu.

- Petizes? O que é isso?

- Você sabe... bebês - respondeu Martha. - Por isso eu consegui dominá-la. Ela estava com a cria, e isso a deixou lenta. Os petizes nasceram em saquinhos, e deles
saíram pequenos faróis, como fadinhas. Menores até do que as aves mineradoras que você pegava na Colônia.

- E eles não atacaram você nem nada?

- Não, por causa da mãe deles. Eu a mantive amarrada e fiquei alimentando os petizes com roedores que pegava em armadilhas enquanto minha mão e minhas costelas se
curavam. - Martha esfregou o peito rotundo para enfatizar como foi doloroso para ela. - E, quando chegou a hora de seguir andando, não tive coragem de matá-los.
Então eu a soltei, mas ela ficou comigo, e como você vê, ainda está comigo e cuida de mim.

- Um verdadeiro anjo da guarda. - Chester riu.

Martha concordou com a cabeça.

- Imagino que antigamente eles tenham vivido aqui na superfície, porque em questão de semanas se acostumaram com a gravidade. Dá para ver como estão rápidos agora.

- Então, talvez o dr. Burrows tivesse razão - disse Chester. - Eles antigamente estiveram aqui em cima, e talvez seja por isso que temos aquelas histórias sobre
criaturas míticas. Até a ideia dos anjos.

À menção do dr. Burrows, Martha parou de sorrir.

- Mas, queridinho, você passou por maus bocados, não foi? Eu te disse para não confiar no povo da Crosta. Eles nunca serão seus amigos. Aquele homem lá atrás fez
mal a sua família, não foi? Por que ele fez isso?

Chester não se sentia preparado para falar nesse assunto naquele momento.

- Parry? Não foi exatamente ele, mas ele participou. Olha, Martha, vou contar tudo a você mais tarde, mas minha mãe e meu pai foram apanhados em uma esp...

Ele se abaixou quando dois faróis cruzaram bem na frente deles, em direções contrárias.

- Meu Deus, eles são rápidos. - Ele só viu o mais breve clarão de branco se cruzando com branco antes que os dois desaparecessem.

- Shhhh! - disse Martha. - Recarregue isto para mim, sim? - pediu ela, mantendo a voz baixa enquanto lhe passava a besta.

Chester a pegou. Ela se separou de sua besta de aparência antiga em Norfolk, e essa substituta sem dúvida nenhuma era de fabricação da Crosta, de material mais leve,
tornando-a mais adequada para o uso com uma só mão. E Martha fez algumas modificações, que incluíam algumas tiras de estopa enlameada em volta e uma pintura desajeitada
para servir de camuflagem.

- Claro - confirmou Chester. Ele preparou a arma e pegou uma flecha na aljava no ombro de Martha. Ao colocá-la na besta, percebeu que a seta estava suja de sangue
e que havia pequenos pedaços de carne presos na ponta.

Martha olhava para trás deles.

- Que foi? - cochichou ele.

- Vê como estão voando baixo e para os lados? - disse ela. Chester distinguia apenas os riscos borrados dos faróis disparando sobre as árvores à esquerda da trilha
e, do outro lado, pela parte do penhasco protegida do vento. Era como se perseguissem uma presa. - Está vendo, minhas fadas me avisam quando alguém se aproxima -
continuou Martha. - Vamos entrar ali e esperar por elas.

Eles se encaminharam para as árvores, e Martha ergueu a besta. Em pouco tempo Chester viu se mexendo a cabeça de alguém que subia a trilha, num trecho um tanto inclinado.
Ele se virou para Martha.

- Parece uma pessoa só. Os faróis vão atacá-lo?

- Eles não fazem nada sem que eu mande - cochichou Martha. - Você conhece aquela pessoa, não é? Ela não estava com você? - perguntou ela, apontando com o queixo.

Chester se virou para olhar, e seu coração parou.

Onde a trilha subia de uma leve depressão, uma única figura entrou em plena vista e andava decididamente.

- É a Steph! - exclamou ele. - Mas o que ela está fazendo aqui, tão longe?

Martha logo ficou desconfiada.

- Pode ser alguma armadilha que estão montando para você. Mas, se for, ela está sozinha. Eu sei disso pelo modo como minhas fadas a estão seguindo.

Stephanie não tinha consciência nenhuma dos animais mortais que circulavam pouco acima dela e abaixo da beira do penhasco a uma curta distância.

Ela quase chegava aonde Martha e Chester se escondiam quando Martha saiu, apontando a besta para a menina.

- O que você quer? - gritou Martha com a voz fria e ameaçadora.

Stephanie quase morreu de susto.

- Ah, oi, Chester está com você? - perguntou ela com a voz trêmula. - Ah, você está - disse ela quando Chester saiu das árvores. Com o casaco quente, o gorro de
lã e com a mochila nas costas, ela parecia ir para a escola.

- O que está fazendo aqui? - quis saber Chester. - Por que não foi de helicóptero com aquele canalha mentiroso e seu avô?

Nervosa, Stephanie mordeu o lábio.

- Eles foram embora, não foram? Pensei ter ouvido um helicóptero - disse Chester.

Stephanie concordou com a cabeça.

- Então, o que você ainda está fazendo aqui? - repetiu ele.

- Hummm... Não podia deixar você ir embora pensando que eu sabia sobre Danforth e o que aconteceu com seus pais, porque não sabia. Juro que eu não sabia de nada
disso. Ninguém me contou.

- Tudo bem, mas você não está respondendo a minha pergunta - disse Chester com urgência. - O que está fazendo aqui?

A voz de Stephanie era muito baixa com o barulho do vento e as ondas se quebrando ao pé do penhasco.

- Hummm, vim porque fiquei muito preocupada com você... E você foi embora antes que eu pudesse falar. Então, enquanto Parry ajudava o vovô... Ele ficou muito machucado...
Eu escapuli. Peguei o que pude de suas coisas, porque pensei que você fosse querer. - Ela girou um pouco para que visse a Bergen estufada em suas costas, depois
olhou sem jeito para o chão. - Eu... Humm... Eu estava pensando se talvez pudesse ir com você, Chester. Se a gente podia ficar junto.

Ficou claro para Chester que ela estava sem graça e teria falado mais se Martha não estivesse presente. E ele não sabia como responder. Estava tão consumido de cólera
que ficou entorpecido para todo o resto. A verdade era que no momento em que o primeiro Armagi fez sua entrada, parte dele não se importou realmente se viveria ou
morreria.

Mas agora não se tratava dele. Durante as semanas no chalé, Stephanie não mostrou nada além de gentileza e afeto por ele, e Chester a rejeitara. Ele gostava muito
de Stephanie, e agora tinha muito medo por ela; Martha era incrivelmente possessiva, e isso a tornava imprevisível. E, Chester não tinha dúvida nenhuma, homicida.

Quando o seguiu, a menina na realidade colocou a cabeça na boca do leão.

- Não tem lugar para você aqui - rosnou Martha. Chester a viu retesar o braço e estabilizar a mira, apontando a arma para um disparo no peito de Stephanie. - Não
precisamos de ninguém para nos atrasar - acrescentou, erguendo os olhos e evidentemente considerando se devia instruir seus faróis a dilacerar Stephanie como alternativa
a usar uma flecha nela.

- Espere um momento - falou Chester de pronto e se aproximou de Martha. Não foi por acaso que ele colocou a mão no ombro redondo da mulher e o apertou ao cochichar
em seu ouvido.

Escutando, Martha coçou o queixo com os cotos do dedo.

- É isso mesmo? - disse ela por fim, virando-se para ele.

- Com toda certeza - respondeu ele.

Martha lançou um olhar penetrante nos olhos de Chester.

- E é só isso? - perguntou ela.

- Claro que sim - confirmou Chester, abrindo seu sorriso mais doce e mais encantador.

Martha baixou a besta e assoviou para os faróis.

- Venha cá, garotinha, junte-se a nós - falou a Stephanie, sorrindo com todos os seus dentes pretos à mostra.

Chester soltou em silêncio um enorme suspiro de alívio.

 

- Espero que um gole disso não seja inadequado - disse Jürgen, oferecendo a Will o frasco de bebida que tirara da mochila.

Pegando-o do neogermano, Will cheirou o gargalo do frasco e torceu o nariz, enojado.

- Ah, não, acho que não - disse ele, devolvendo-o rapidamente. - O que é, aliás?

- Schnapps - respondeu Jürgen, prestes a oferecê-lo a Elliott, mas pensando melhor e se contendo.

Eles decidiram voltar à base da torre, no mínimo devido ao estado de Elliott. Will nunca a vira tão abalada, e foi obrigado a ajudá-la a descer a escada circular.
Os dois se sentaram juntos em um dos rochedos quebrados, e a cabeça de Elliott se enterrou no ombro de Will. Tinha parado de chorar, embora ele ainda a ouvisse puxar
o ar involuntariamente, como se as lágrimas estivessem prestes a voltar.

Jürgen olhou o bosquímano, que estava recurvado sobre o chão a mais ou menos três metros dos outros, depois se encostou à torre e tomou outro gole maior do frasco.
Engoliu com ruído e respirou também ruidosamente.

- Esta coisa é o mago da alegria para equilibrar os nervos de uma pessoa - observou Jürgen depois de um momento.

- Mago da alegria? - repetiu Will, perguntando-se por que, de repente, o linguajar do neogermano ficou tão esquisito.

Jürgen sorriu.

- Desculpe, deve ser algo que peguei nos livros em inglês que temos na biblioteca da cidade. As histórias de Jeeves e Wooster de algum modo chegaram em um helicóptero
quando os primeiros colonos foram para lá.

O rádio de Jürgen de repente estalou, e ele se esticou para procurá-lo no bolso. Ao falar com o irmão em alemão, ele gesticulava com o frasco.

Embora Will não entendesse o que era discutido, em pouco tempo o lado de Jürgen na conversa ficou cada vez mais tenso.

Will aproveitou a oportunidade para falar com Elliott.

- Está se sentindo melhor agora? - perguntou-lhe ele com brandura.

Ela assentiu, mas ainda não mostrou a cara.

- Foi demais para você... Para todos nós. Você teve um forte choque... É só isso. - Ele tentou racionalizar com ela.

Ela assentiu mais uma vez, ao mesmo tempo estremecendo, apesar do calor.

- Você nem precisa voltar lá dentro - disse Will. - Não, talvez tenha sido melhor assim. Podemos ir embora deste lugar... Eu e você... E nunca mais voltar aqui.

Jürgen terminara sua conversa pelo rádio. Estava furioso.

- Qual é o problema? Werner e Karl vão se encontrar conosco? - perguntou-lhe Will.

- Vão, mas meu irmão disse que eu devo ter entendido mal o que encontramos. Ele chegou ao ponto de me acusar de beber demais quando descrevi tudo o que vimos. Meu
próprio irmão não acredita em mim. - Jürgen estava prestes a tomar outro gole do frasco, mas em vez disso sacudiu a cabeça, como se lhe ocorresse alguma coisa. -
Do que nós estamos falando, Will? - Ele ficou em silêncio por vários segundos e continuou. - Se admitirmos que esta pirâmide nova e exposta e a torre estão ligadas,
e todos os sinais apontam para isso...

- E os ancestrais de Woody construíram as pirâmides milhares de anos atrás... - intrometeu-se Will.

- ...Então acabamos de ver uma exibição de tecnologia que pode ser anterior a nós, Homo sapiens, como espécie, datando... Bem, quem sabe quanto tempo? E a grande
pergunta é como pode estar aqui. E talvez a resposta certa nem seja terrestre.

- Não seja terrestre? - repetiu Will, franzindo a testa. - Mas os antigos do meu pai devem ter estado por aqui na época, porque eles tiveram essas visões do planeta.

- Como você chegou a essa conclusão? - desafiou-o Jürgen imediatamente.

- Porque eles desenharam seus mapas dentro da pirâmide a partir deles. Por isso eram tão precisos - respondeu Will. - O que significa que a tecnologia estava em
uso na época.

- Talvez - disse Jürgen, erguendo o frasco, quando lhe ocorreu uma coisa. - Por falar nessas visões... Elas eram do espaço... Mas a partir do quê, exatamente? -
perguntou ele, sua voz estranhamente monótona. - E de quando? Quer dizer, de que época?

Will não teve a oportunidade de examinar as cenas em detalhes enquanto circulavam pelas paredes, mas, devido ao tamanho e ao aparecimento de Londres nas imagens,
não lhe ocorreu que não fossem atuais. Ele estava prestes a comentar isso quando Elliott se mexeu.

- São de agora - disse ela com a voz pouco audível porque a cara ainda estava enterrada em Will.

- Então são atuais? Quer dizer que eram imagens ao vivo? Como sabe disso? - perguntou-lhe Will com gentileza.

- Eu simplesmente sei - respondeu ela.

Jürgen olhava os campos de terra que aos poucos ficavam cinzentos sob o calor feroz do sol, mas agora virou a cabeça para Will.

- É evidente que a tecnologia... Toda a tecnologia que vimos até agora... Parece ter uma forma de empatia com sua amiga. Tirando Elliott, nenhum de nós tem controle
sobre ela. E o motivo para isso tem de ser o fato de ela ter o sangue dos invasores.

- Quer dizer os Styx - disse Will, estreitando o braço em volta de Elliott para reconfortá-la. Ele teria preferido que ela não ouvisse nada disso. Mas ele também
sentia que seria irracional pedir ao agora ligeiramente embriagado neogermano para fechar a matraca, porque ele podia levar a mal.

E, além disso, a mente de Will também zunia com todas as possibilidades.

- Sim, os Styx. - Jürgen avançou um único passo, como se estivesse se equilibrando. - Então, Will, isso quer dizer que os Styx... Ou seus predecessores... Eram...
- Sua voz parecia desistir. Ele pigarreou. - Estamos falando de...?

Will olhou nos olhos do homem, esperando pela próxima palavra.

- Falando de...? - sussurrou Jürgen um pouco.

Ali, na sombra da torre, com apenas o canto das aves e um ou outro trecho das orações murmuradas de Woody chegando a eles, nem Will nem Jürgen sentiam-se preparado
para pronunciar a palavra.

Era grotesca demais, bizarra demais, e como teria ligação com a evolução dos humanos?

E com a história do mundo?

As implicações eram grandes demais para que as considerassem.

Will estreitou o braço em Elliott mais uma vez.

- Alienígenas? - disse ele.

 

Capítulo Dez

 

Com Stephanie seguindo os dois a certa distância, Chester e Martha andavam animadamente por um caminho cercado entre dois campos.

- Estamos quase em casa, meu docinho - arrulhou Martha, e Chester localizou uma pequena casa de fazenda mais à frente.

Em seguida, quando por acaso olhava para um lado, por cima da cerca, ele parou de pronto porque algo chamou sua atenção.

- Meu Deus! Mas o que pode ter feito isso? - Ele ofegou, retraindo-se ao ver carcaças de ovelhas espalhadas pelo lugar. Elas foram evisceradas, seus corpos, brutalmente
dilacerados, e todos os órgãos, espalhados pelo chão. - Armagi?

- Não, foram meus faróis - respondeu Martha com orgulho. Ela não reduziu o passo ao seguir para a casa. - Eles precisam comer... Igual a nós.

- Não tão igual a nós - sussurrou Chester. Permanecendo onde estava, ele ainda olhava enquanto Martha, mais além no caminho, soltava dois assovios baixos e gesticulava.
Podia estar dirigindo cães pastores se não fossem as criaturas esquisitas e estranhamente maravilhosas das profundezas da Terra.

Os faróis dispararam por cima da cabeça de Chester com tal velocidade que foi impossível vê-los com clareza, como fumaça ou névoa apanhada em um vento forte. Martha
assoviou mais uma vez e estalou os dedos na direção do campo.

- Ah, lá estão eles - disse Chester consigo mesmo, quando vários faróis apareceram sobre o campo, como se tivessem acabado de se materializar em pleno ar. Pairavam
a algumas dezenas de metros e pela primeira vez ficaram em um só lugar por tempo suficiente para que ele distinguisse seus corpos alongados e as asas brancas que
batiam no ar.

- O que estão fazendo? - murmurou Chester, depois percebeu um pequeno rebanho de ovelhas pastando bem abaixo dos faróis. As ovelhas olharam vagamente na direção
de Martha, talvez se perguntando o que fazia aquela maluca que soltava barulhos idiotas e agitava os braços.

Não tinham ideia do que estava prestes a se abater sobre elas. Com outro assovio de Martha, os faróis simplesmente mergulharam para o chão, como uma armadilha. Chester
teve um vislumbre da mais próxima das fadas de Martha, sua boca escancarada, exibindo fileiras cruéis de ferrões irregulares. Com as asas brancas como marfim estendidas,
cada farol caiu sobre o animal que tinha escolhido e o prendeu no chão, tornando quase impossível distinguir qualquer um deles contra a relva coberta de geada. E
também era impossível ver o que eles faziam com as pobres ovelhas abaixo, algo pelo qual Chester ficou muito agradecido.

- Isso é asqueroso - resmungou ele, olhando outra vez as ovelhas mutiladas mais perto no campo enquanto Stephanie se colocava a seu lado.

- Sim, um nojo. - Ela se encostou numa estaca da cerca. - Mas estou muito feliz por ter conseguido alcançar você, Chester. - Stephanie sorriu. - Não pensei que voltaria
a te ver.

Onde o farol mais próximo se alimentava de uma ovelha, houve um barulho de carne sendo rasgada. O farol bateu as asas uma vez, depois se aquietou novamente e continuou
a se banquetear, jogando de lado algo brilhando de sangue, que veio a cair na relva congelada. Chester fez uma careta ao ver que era o coração da ovelha. Ele ainda
batia.

Como não mostrou reação nenhuma, Stephanie evidentemente não percebeu.

- E obrigada por ter lidado com a Martha lá atrás. Eu não sabia que ela era assim.

Chester estava inteiramente preocupado com o espetáculo no campo, mas agora lançou um olhar a Martha para ver se ela o observava com Stephanie, ao mesmo tempo dando
um passo apressado de lado, afastando-se da menina.

- Mas o que você, tipo, disse a ela? - perguntou Stephanie.

- Agora não! - respondeu Chester num murmúrio agressivo, intencionalmente sem olhar para Stephanie. - Fique longe de mim enquanto ela estiver por perto. Ela é ciumenta
e pode muito bem te matar.

- Oh - disse Stephanie, e Chester de imediato partiu para Martha, indo para a casa. Stephanie continuou onde estava por um ou dois segundos, um tanto perplexa, depois
também seguiu o caminho.

Era uma construção rural básica de tijolos aparentes, mas depois da noite que ele teve no submarino e a revelação sobre Danforth, Chester ficou agradecido por sair
do frio e entrar em um lugar em que pudesse se sentar em silêncio por um tempo. Sem tirar o casaco, ele se jogou no sofá da sala, ainda segurando a espingarda vazia
e observando Martha acender a lareira. Ela se agitou ali até haver um rugido quente aquecendo a sala. Stephanie, seguindo o aviso de Chester, decidiu cautelosamente
se sentar do outro lado da sala, onde ficou folheando uma revista velha que encontrou.

- Então não tinha ninguém neste lugar quando você chegou aqui? - perguntou Chester.

- Estava tudo trancado - respondeu Martha, avançando para a porta. - Está com fome?

- Pode apostar que sim. Qual é o cardápio?

- Ovelha - respondeu Martha. - É única coisa que tem em abundância por aqui.

- E você quer dizer só ovelha? - Chester sentou-se mais reto no sofá.

- Sim, só ovelha. Mais nada. Eu prometo. - Martha lhe abriu um sorriso torto.

- Tu-do-bem - disse Chester enquanto bocejava, e Martha disparou para a cozinha.

Assim que ela se foi, Stephanie pigarreou para chamar a atenção de Chester. Quando ele se virou, ela fez uma carranca de o-que-foi-isso, mas ele se limitou a balançar
a cabeça.

Eles ouviram Martha fazendo estardalhaço na cozinha no final do corredor.

- Ela está ocupada lá dentro... Não pode nos ouvir - cochichou Stephanie.

- Não conte com isso - cochichou Chester. - Não vale a pena arriscar.

Com um dar de ombros, Stephanie voltou para a revista, e Chester cochilou no sofá até que Martha finalmente reapareceu com tigelas de comida fumegante, que eles
consumiram à mesa, em completo silêncio.

Bem, um silêncio quase completo. Chester ficou impressionado com o forte contraste entre as duas companhias de jantar: Martha, comportando-se à mesa da maneira típica
da maioria dos colonistas, de vez em quando resmungava consigo mesma ao chupar o fluido de sua colher e mastigar de boca escancarada. O barulho era pavoroso, como
se ela quisesse ser o mais repugnante possível.

E então havia Stephanie, na outra ponta da mesa, incrivelmente atraente, suas maneiras impecáveis ao usar elegantemente o garfo.

A única coisa que as duas tinham em comum era o cabelo avermelhado - tirando isso, podiam ser de espécies completamente diferentes.

Meu Deus, estou começando a ficar parecido com Will, pensou Chester consigo mesmo. E com isso começou a pensar no amigo, na esperança de que ele e Elliott tivessem
sobrevivido à sua missão e estivessem a salvo em algum lugar. Chester se lembrou das vezes que eles estavam reunidos - embora de maneira nenhuma tenha sido fácil,
pelo menos eles dividiram o fardo e suportaram tudo juntos. Um vazio doloroso dentro dele o lembrava do quanto sentia falta do companheirismo dos dois.

- Está tudo bem aí, queridinho? - perguntou Martha ao perceber que ele parara de comer. Chester podia ver pedaços de cordeiro presos nos espaços entre os dentes
podres de Martha.

Assentindo, voltou a sua tigela, trocando um sorriso secreto com Stephanie enquanto a cabeça de Martha baixou e ela meteu colheradas do cozido na boca.

Mas, apesar da presença de Stephanie, Chester se sentia muito sozinho.

Ele suspirou ao terminar a tigela de comida, que na realidade estava muito apetitosa. Quando Martha também terminou, Stephanie se ofereceu para tirar a mesa. Martha
não permitiu; empilhou cuidadosamente as tigelas, foi à porta da frente e simplesmente as jogou do lado de fora, onde caíram com estrondo no pátio pavimentado.

- Pronto... Tudo acabado. - Ela esfregou as mãos.

- Estava ótimo, Martha. Obrigado - disse Chester, um tanto surpreso com o que ela fez, mas não a ponto de comentar seu jeito muito peculiar de cuidar da casa.

- Sim, obrigada - disse Stephanie.

Martha, que nem uma vez olhou para o lado da menina, durante ou depois da refeição, contemplava Chester, abobada, com seu sorriso escancarado de sempre.

- É melhor eu pegar um pouco mais de madeira para mantermos o fogo abastecido - disse Martha. - Quero que fique agradável e aconchegante para você aqui.

Chester assentiu sua gratidão e, quando Martha saiu, foi à janela onde poderia vê-la e se encostou ao peitoril. Embora estivesse a uns dez metros de distância, ela
estava consciente da presença dele e ficava olhando e dando um ou outro adeusinho para Chester.

Chester fingiu coçar o nariz para esconder o fato de que falava.

- Fique do outro lado da sala - disse ele a Stephanie. - Você não sabe o quanto Martha esteve perto de te matar. Mas o que você estava pensando quando resolveu me
seguir? Qualquer coisa pode tirar Martha do sério. Ela pode virar uma doida de pedra.

- Não entendo... Então, por que você veio embora com ela? - perguntou Stephanie.

- Porque não ligo. Eu não ligo, e de qualquer modo é melhor do que ficar com Parry e suas malditas mentiras.

- Na época ele não sabia o que Danforth estava planejando - argumentou Stephanie.

- Mas soube depois e foi covarde demais para me contar. É isso que me magoa. - Embora estivesse cheio de fúria, Chester conseguiu sorrir para Martha quando ela acenou
para ele outra vez. - É melhor a gente parar de falar agora. Ela pode ficar desconfiada.

- Primeiro me conta o que você disse ela - exigiu saber Stephanie.

Chester suspirou.

- Tive de inventar alguma coisa rápido. Não foi fácil dizer aquilo, mas eu falei que ela era minha mãe, agora que minha mãe de verdade morreu. E também disse que
você e eu só somos amigos porque você me lembra muito a minha irmã. - Ele respirou fundo. - Sabia que ela morreu atropelada por algum idiota em um carro roubado
quando era criança?

- Não sabia disso - disse Stephanie em voz baixa. - É verdade? Eu te lembro a sua irmã?

- Não - respondeu Chester. - Você não é nada parecida com ela. Ela era tímida, meio atarracada e baixinha. Mas eu tinha de dar a Martha um bom motivo, ou ela teria
suposto que você era minha namorada, e isso teria sido a hora de dormir para você.

- Então, eu sou sua namorada? - perguntou Stephanie depois de um momento, procurando ver os olhos de Chester.

Chester reprimiu um leve sorriso, no mínimo porque Martha voltava para a casa com uma braçada de lenha.

- Acho que é. Se nós dois vivermos o suficiente para que isso signifique alguma coisa.

 

Werner ficou longe o suficiente do Kübelwagen para que Karl não o ouvisse resmungar e xingar depois de ter encerrado a conversa com o irmão pelo rádio.

Como se não bastasse eles terem suportado uma tempestade de pedras e metade da selva parecer cair em volta deles, Werner não conseguia acreditar no que disse o irmão.
Alguma coisa sobre uma torre nova em que Jürgen teve visões da Terra a partir do espaço. Será que o irmão enlouqueceu completamente, ou ele esteve bebendo? "Gott
im Himmel", cuspiu Werner, chutando um naco de pedra na trilha, depois desejando não ter feito isso ao descobrir que era mais pesada do que previra.

Mancando pela distância restante até o veículo, ele preparou Karl, e os dois partiram a pé. A trilha, agora coberta de destroços, era intransitável no Kübelwagen
de rodas pequenas. Assim, as alternativas eram pegar o veículo militar que Jürgen havia deixado e tentar abrir caminho à força pela trilha de volta à cidade, ou
caminhar até onde estava Jürgen.

E Werner estava ao mesmo tempo preocupado com o irmão e curioso sobre o que o antropólogo em geral sensato estivera tagarelando no rádio. Mas em volta dele havia
a prova de que algo importante tinha acontecido, e Werner queria chegar ao fundo disso por si mesmo.

Porém, a jornada se mostrou um desafio muito maior do que ele esperava; depois que ele e Karl deixaram a trilha principal e entraram na selva, não era o ocasional
pedaço de alvenaria que atrapalhava o progresso dos dois, mas a quantidade substancial de folhagem amassada que se espalhava por todo lado.

Toda a vegetação arrancada e retalhada ainda se acomodava, e de vez quando caíam galhos inteiros ou emaranhados de raízes que ficaram suspensos nas árvores gigantes.
Assim, não só ele e Karl andavam com dificuldade sobre os destroços entre as árvores da floresta que não foram afetadas, como também eram obrigados a ficar atentos
a qualquer coisa que pudesse cair em cima deles.

Ao percorrerem a selva, a quantidade de vegetação removida aumentava até que eles tentavam contornar grandes montanhas dela. E então, enfim, as árvores rarearam,
e eles deram numa área imensa de terra nua.

Karl olhou indagativo para Werner.

- Eu sei... É inacreditável - disse o tio. - Veja só isso.

E foi o que eles fizeram por um momento, vendo a nova forma da pirâmide e a visão inacreditável da torre ao longe.

- Talvez, afinal, meu irmão não tenha perdido o juízo - disse Werner à meia-voz, e eles partiram pelos campos de terra ressecada pelo sol nessa nova paisagem.

Junto à base da torre, Jürgen procurava por eles e, ao vê-los de longe, correu para encontrá-los.

Elliott, ainda meio abalada, tinha ido à câmara de entrada da torre acompanhada de sua nova sombra, Woody. No momento em que voltou a entrar na torre, ela sofreu
uma mudança acentuada e parecia muito mais à vontade. Também aceitou a sugestão de Will de se deitar com a cabeça apoiada no casaco enrolado e logo estava dormindo.

Jürgen finalmente voltou com o irmão e o filho. Vendo Elliott em sono profundo, gesticulou para Will que pretendia levar os dois para cima, e eles passaram na ponta
dos pés.

Will se viu sobrando. Sem querer ficar longe demais de Elliott, caso ela acordasse, passou o tempo fazendo um exame exaustivo das paredes da câmara de entrada, batendo
nelas para ver se descobria alguma coisa. Depois voltou a atenção para as duas grandes colunas, tentando entender o que eram e também vendo se podia gerar alguma
alteração ao tocar sua superfície, como Elliott parecia capaz de fazer. Quase tinha terminado de explorar cada centímetro das colunas que podia alcançar quando uma
voz atrás dele lhe deu um susto.

- Deixe comigo - disse Elliott. Esfregando os olhos, ela não parecia estar inteiramente acordada ao avançar um passo e passar a mão na coluna na frente dele.

Não havia nada que revelasse que aquela área em particular escolhida por ela era diferente do resto da superfície cinza e opaca, mas sob a ponta de seus dedos um
desenho do tridente emitia um brilho azul. À direita do símbolo, uma porta se abriu silenciosamente no cilindro, revelando uma câmara tomada de uma luz cremosa.

Will ficou sem fala. Podia estar realizando uma estranha dança nova enquanto, movendo-se pé ante pé, retesou os braços de frustração e tentou dar de ombros ao mesmo
tempo.

- Não entendo - soltou ele por fim, virando-se para Elliott. - Por que é que só você consegue fazer essa coisa funcionar?

- Não sei. - Ela massageou o ombro para aliviar os músculos depois de dormir no chão duro. Agora estava muito mais relaxada. O descanso parecia tê-la ajudado a se
livrar do choque do que aconteceu no alto da torre. Mas agora era Will que começava a ficar cada vez mais nervoso.

- Mas o que faz você diferente do resto de nós? É porque é metade Styx? - sugeriu ele, depois semicerrou os olhos, desconfiado. - Ou tem alguma coisa que não está
me contando? Por que Woody e seus companheiros não se apaixonaram pela gêmea Rebecca... Ou por Vane... Ou por qualquer um dos outros Styx, aliás, quando eles apareceram
neste mundo?

- Quem sabe meu sangue provocou alguma mudança nele? - disse Elliott com a testa franzida. - Ou talvez seja porque Woody e todos os outros bosquímanos guardaram
distância. Ele me disse que achavam que os Styx eram como os neogermanos... Só outro monte de gente se intrometendo na terra deles. - Ela se calou por um momento,
aprofundando o franzido na testa ao tocar a coluna duas vezes, fechando e abrindo a porta novamente. - E como eu sei dessas coisas... Bom, já te falei, é como uma
lembrança de um sonho. Parece muito real, mas ao mesmo tempo você sabe que não pode ser, porque na verdade não aconteceu.

- Valeu... Isso deixa tudo claro como... - disse Will, arqueando uma das sobrancelhas e sorrindo - ...lama.

- Sei que parece loucura. - Elliott olhou os próprios pés e esfregou a testa. - Sinto que parece haver mais por aqui, embora não saiba exatamente o que é.

- É? Mas você deve ter alguma ideia do que seja - rebateu Will.

Ela riu da estranheza de tudo aquilo.

- Eu não sei o que sei, até precisar saber.

- Pode repetir isso? - Will riu, mas meneava a cabeça, confuso. Virou-se para a coluna onde a porta continuava aberta. - Mas talvez devamos descobrir o que Jürgen
e o irmão estão fazendo lá em cima. E isso se eu puder ir de elevador e não tiver de subir aquilo tudo como o resto dos humanos inferiores.

Elliott lhe deu um soco leve no peito, rindo.

- Vamos, humano inferior - disse ela.

Previsivelmente, Woody não ia ficar de fora e também entrou de mansinho no elevador.

Elliott tocou um painel simples, deslizando a mão para cima dele, e a porta imediatamente se fechou.

Will olhava à volta e murmurava.

- Seguro como uma casa.

- O quê? - disse Elliott.

- Não, nada... Só estou me lembrando do quanto Chester odiava elevadores - explicou Will. - Depois daquele duvidoso na Colônia.

- Espero que ele esteja bem, onde quer que esteja - disse Elliott.

- Eu também, mas qual é... Woody e eu estamos aqui esperando... Por que você não apertou o botão para subir?

- Já fiz disso.

A porta se abriu, revelando Jürgen e Werner tendo o que parecia uma discussão acalorada enquanto Karl escutava, os olhos arregalados de preocupação. Os irmãos neogermanos
de imediato se calaram, com uma expressão muito cômica, vendo Elliott sair do elevador com Will e o bosquímano, um de cada lado dela.

- Ah, oi - disse Werner.

- Elliott. - Jürgen se antecipou antes que o irmão pudesse dizer mais alguma coisa. - Acho que é pedir muito, mas você poderia provar a esses dois - disse ele, apontando
Werner e Karl - que eu não tive alucinações aqui em cima? Pode nos dar uma demonstração do que você pode fazer no andar de cima?

Will ficou ofendido por Elliott.

- Ela não é um mico de circo, sabia? - explodiu ele, repetindo uma expressão que ouviu o dr. Burrows usar uma vez. - Não acho justo que vocês t...

- Tudo bem. - Elliott o interrompeu, indo para o lance de escada que levava ao nível superior da torre. Assim que ela estava no alto, foi diretamente ao pequeno
console e recolocou a mão em sua superfície.

Todos olharam num silêncio assombrado e viram a parede circular novamente se encher de múltiplas imagens da Terra, os mares azuis, as nuvens finas na atmosfera e
o verde acastanhado das massas de terra.

Will novamente ficou hipnotizado.

- Não entendo. Estas imagens devem ser feitas de algum lugar flutuando em volta da Terra, como um satélite, ou satélites... Mas por que só foram descobertas agora?
Especialmente porque devem ter sido feitas há um tempão. - Ele raciocinava em voz alta, virando-se para os neogermanos. Contudo, eles pareciam estar estupefatos
demais para dizer alguma coisa.

Karl tinha segurado a mão do pai enquanto os dois olhavam assombrados, e Werner ria e balançava a cabeça, dizendo sem parar "Como isto é possível?", ao verem as
imagens do mundo em que nenhum deles jamais esteve.

Depois Werner parou.

- Mas isto é realmente de agora?

Will estava de pé ao lado de Elliott enquanto ela tocava diferentes áreas do console, as linhas e símbolos azuis reluzindo quando a ponta de seus dedos dançava sobre
eles.

- Claro que sim - respondeu ela.

- Então, pode me mostrar a Alemanha, por favor? - pediu Werner.

Elliott passava os dedos no console, mas agora se curvou para Will.

- Vai ter de me ajudar a encontrar essa.

Will percebeu então que evidentemente ela não estaria familiarizada com a topografia do mundo - por que estaria, quando passou quase toda a vida na Colônia e nas
Profundezas?

- Ali - disse Will, apontando. - Feche naquela área onde o sol está se pondo.

Toda a Europa central agora enchia as paredes, embora a oeste uma sombra escura avançasse pelo continente com o cair da noite.

- E agora dê um zoom nessa área... - ele a orientou, apontando parte da parede. - Mais para a esquerda.

- Olha, Jürgen, é o Ruhr! - disse Werner numa voz empolgada. - E lá está Colônia... E Essen, onde nossos pais foram criados. Não é inacreditável?

Não era tão fácil ver o rio e o vale que o cercava porque o anoitecer cobria a área, embora as várias cidades e vilarejos ao longo do rio cintilassem com todas as
muitas luzes acesas.

- Tudo bem, agora podemos ir para o oeste, para a Inglaterra? Gostaria de dar outra olhada lá. - Will de novo apontava para que Elliott soubesse para onde ele queria
que ela transferisse o foco. A parede bruxuleou, depois se aquietou quando apareceu a França, suas cidades iridescentes contra o céu do anoitecer.

- Agora suba - orientou Will, e Elliott moveu a imagem pelo canal da Mancha, depois parou. - Lá está de novo! - exclamou ele, animado, calando-se por um momento.
- Mas por que está tão escuro?

Não parecia haver nada de errado na última vez que viram a Inglaterra, mas tinha sido à luz do dia. A imagem que se revelava agora tinha uma diferença alarmante.
Não havia o banho de luzes que se esperava encontrar em Londres, ou mesmo em qualquer das grandes cidades do sudeste.

- Isso não está certo. - Will tentava encontrar uma explicação para a escuridão. - Amplie um pouco mais, por favor?

Elliott obedeceu, e assim eles puderam ver algumas áreas na capital iluminadas, embora fossem poucas e bem-espaçadas. E várias regiões irradiavam um tipo diferente
de luz, com um tom avermelhado.

- Não. Aquilo é fogo? - perguntou Will, com a voz fraca. - O que está acontecendo lá? - Ele olhou para Elliott. - A não ser que haja algum corte de energia enorme
em todo o Reino Unido, está tudo terrivelmente errado.

- Então, talvez meu pai e Parry não tenham evitado a Fase e... - começou Elliott.

- E os Styx já fizeram isso com a Inglaterra - terminou Will por ela, incapaz de tirar os olhos da escuridão sinistra por toda Londres.

Elliott tirou a mão do console, e a imagem se extinguiu imediatamente.

- Não só eles - disse ela. - Talvez sejam os Armagi.

Cerrando o punho contra a palma da mão, Will se encheu de maus pressentimentos.

- Tenho de descobrir um jeito de voltar - disse ele. - Se já não for tarde demais.

 

Em plena luz do dia, Drake e Jiggs infiltraram-se no campo de pouso abandonado até encontrarem a construção modular onde os homens da segurança costumavam ficar.
A porta estava destrancada e não havia ninguém ali dentro, nem nenhum sinal de um veículo.

Jiggs tentou acender a luz, ligando e desligando o interruptor.

- Não tem eletricidade. Alguém se esqueceu de pagar a conta - comentou.

Drake foi diretamente ao telefone numa das mesas.

- Também está mudo. - Ao recolocar o fone, ele notou um pouco de chá inacabado em um copo de isopor. - Costumava ter segurança vinte e quatro horas neste lugar,
mas tem mofo crescendo nessa bebida. Parece que ninguém vem aqui... - ele fez uma careta ao ver o mofo no copo - ...há semanas. Por que será? - Por um momento Drake
contemplou as faixas de luz que passavam pelas venezianas, onde a poeira dançava lentamente. - De qualquer modo, a prioridade é entrar em contato com meu pai ou
com Eddie. Vamos pensar no jeito mais rápido de fazer isso sem nos comprometer.

Ali, na cabine, eles fizeram uma verificação do equipamento, colocando cada item no chão. O problema era que muitos itens que Drake tinha com ele ou carregava na
Bergen ficaram muito queimados com a explosão nuclear.

- Isto está totalmente acabado. Os circuitos foram torrados. - Drake jogou seu telefone por satélite para Jiggs, que também tentou fazê-lo funcionar. - Assim, temos
algumas armas e munição, dois propulsores vazios, minha lente, um rastreador e alguns faróis.

- E meu rádio de ondas curtas surrado, que não nos levaria a lugar nenhum - acrescentou Jiggs, colocando-o no alto da pilha. Quando ele começou a guardar o equipamento,
Drake arriou numa cadeira junto a uma das mesas.

- Temos de chegar à casa mais próxima com telefone e deixar um recado no servidor remoto - disse Drake. - Não temos ideia do destino de Parry, mas só consigo pensar
nesse jeito de entrar em contato com ele e descobrir como foi a operação aqui na superfície.

- Concordo, mas se não tivermos sorte e encontrarmos um veículo, vamos do jeito lento... A pé - respondeu Jiggs, colocando a Bergen nos ombros.

- Que seja. - Drake levantou-se, cansado.

Embora ainda fosse inverno, o sol brilhava forte no céu claro enquanto eles passavam por uma abertura na cerca do campo de pouso e seguiam para um terreno tomado
pelo mato perto da estrada mais próxima.

- Calor nessa época do ano - comentou Jiggs, abrindo outro botão da camisa.

Drake tentou pegar os raios de sol na cara.

- É glorioso. Engraçado como não nos damos conta de muita coisa - disse ele dolorosamente, permitindo que os olhos se fechassem por um momento. - Fiquei debaixo
do sol da manhã exatamente assim umas mil vezes, mas esta é a primeira que realmente o sinto.

Eles passaram por uma cerca viva e desceram a margem de relva, vendo-se em uma estrada pequena. Suas botas bateram no asfalto, e eles andaram com a maior rapidez
de que Drake era capaz, nenhum dos dois observando os galhos e os destroços espalhados por todo lado. A estrada não deveria estar em tão más condições, a não ser
que houvesse uma tempestade de vento recente, e nenhum deles via nenhuma outra prova disso.

Drake apontou uma área arborizada.

- Foi ali que escondi o Range Rover quando deixei Will e o velho doutor. - Ele riu consigo mesmo. - Não faz tanto tempo assim, mas agora parece uma vida inteira.

- Espere aí - interrompeu-o Jiggs, fazendo os dois pararem. - Vê o veículo ali na frente? - Ele abriu o coldre, mas não sacou a pistola.

- Entendi - disse Drake.

Eles avançaram lentamente para o carro, sem pressa nenhuma porque o veículo fora deixado torto no meio da estrada, impossibilitando que qualquer coisa passasse.

- Alguém parou com pressa - observou Drake, orientando Jiggs para as marcas de derrapada. - O que houve aqui?

Mas Jiggs já se dirigia à porta do motorista, olhando-a atentamente.

- Isso é estranho. - O painel da porta foi empurrado como se sofresse uma pancada forte de lado, e a janela estava quebrada, seus cacos se espalhando pelo asfalto.
- A chave ainda está na ignição e tem sangue seco no banco - disse Jiggs ao meter a cabeça para dentro do carro.

- Aqui também, onde alguém foi arrastado. - Drake se afastou lentamente do carro, seguindo as manchas escuras de sangue. - Mas não tem nenhum sinal de corpo, só
alguns pertences pessoais. - Ele pegou uma carteira e um celular numa vala de drenagem ao lado da estrada.

- Não entendo - disse Jiggs, tentando compreender o que aconteceu. - Alguma coisa bate no carro... Com força... Depois o motorista é arrancado pela janela? - Ele
se agachou para examinar os pedaços de uma roupa rasgada que ficaram presas nas bordas quebradas da janela e todo o sangue no exterior da própria porta.

Drake experimentava o celular para ver se funcionava.

- É claro! Sem sinal, embora possa ser a bateria arriada. - Depois abriu a carteira que tinha encontrado. - O motorista era daqui - ele começava a dizer, mas largou
a carteira abruptamente e começou a oscilar.

Percebendo que havia algo errado, Jiggs o ajudou a ir para o carro.

- Desculpe - disse Drake. - As pernas me falharam de repente.

Jiggs o olhou com preocupação, o brilho do suor recente no rosto e o modo como Drake tremia ao se encostar no carro.

- É melhor você entrar, e vamos pegar o rumo do vilarejo mais próximo - sugeriu ele. - Preciso te levar ao hospital.

O carro deu a partida sem nenhum problema, e eles saíram pela estrada. Dirigiam havia mais de cinco minutos quando os pneus cantaram com uma freada brusca perto
de uma ponte pequena e corcunda, onde a estrada era bloqueada por um grupo de cerca de vinte homens. Alguns portavam espingardas e rifles de pequeno calibre, enquanto
outros tinham picaretas e até forcados.

- Essa não... Estamos prestes a ser massacrados por um bando de linchadores? - disse Jiggs.

- Acho que estamos em Norfolk - respondeu Drake.

Um homem corpulento de casaco de tweed se destacou do grupo.

- Os dois cavalheiros poderiam, por favor, sair do carro? - perguntou ele. - E, para o bem de todos, desligue esse motor!

Drake começou a tossir - tão áspero que era doloroso ouvi-lo. Jiggs se curvou para fora da janela quebrada, mas deixou o motor ligado.

- Por quê? E qual é a história aqui?

- Desligue o motor e saia do carro, depois diremos a você - respondeu com impaciência o homem corpulento. Drake continuava a tossir, e o homem olhou sua cabeça e
todos os curativos nas queimaduras. - Seu amigo... Ele não parece em boa forma.

- Não está - disse Jiggs, examinando o líder corpulento. Imaginou que o homem devia ter uns sessenta anos enquanto vários outros pareciam ainda mais velhos. Mas
havia alguns jovens no grupo que claramente gostavam de estar armados. Jiggs viu isso pelo modo como seguravam suas armas e imediatamente se preocupou com dedos
nervosos em gatilhos.

- Tudo bem, vou sair - concordou Jiggs, desligando a ignição e abrindo lentamente a porta.

Depois, com seu fuzil de assalto erguido na mão, foi para a estrada. Virou-se para Drake, que parecia ter se recuperado da crise de tosse. Mas ao sair pela porta
traseira do carro e finalmente erguer a cabeça, em cada mão Drake tinha uma pistola Beretta. Tentando ignorar a dor do ombro ferido, apontava uma pistola para o
líder corpulento enquanto movia a outra para o resto do grupo.

- Quem são vocês? - perguntou Drake. - Porque parece que acabei de entrar no cenário de O homem de palha. E jamais gostei de como esse filme termina.

- Muito engraçado - respondeu o corpulento. - Somos só o pessoal desta área, tentando ao máximo continuar vivos. E cada segundo de papinho furado por aqui torna
isso menos provável. Então, sugiro que todos nós baixemos as armas - ordenou ele, lançando um olhar aos outros homens a sua volta, que aquiesceram de imediato. -
E você deve fazer o mesmo - disse ele a Drake. - Depois venham comigo a um lugar menos exposto do que aqui.

Pegando o olhar de Drake, Jiggs assentiu para ele. Drake baixou as pistolas e então, com o líder corpulento andando entre os dois, saíram da estrada, subindo um
campo ligeiramente inclinado.

- Vocês dois são soldados? Tivemos alguns sujeitos do exército por aqui - perguntou o homem, seus olhos voando de Drake a Jiggs. O homem, que ofegava do esforço
quando eles chegaram no topo, virou-se para Drake. - E qual é o seu problema? Sua respiração é tão ruim quanto a minha. Asma?

- Não, doença de radiação. - Drake perdeu o ar, o peito inchando quando ele teve outro acesso de tosse. Foi necessário um momento para se recuperar até que perguntasse:
- Você precisa nos contar o que vem acontecendo recentemente. - Ele franziu a testa. - Quero dizer, por que todas essas armas? E por que as redes de celular não
estão funcionando?

- Você não sabe mesmo? - perguntou o homem, assombrado.

- Suponha que não sabemos de nada - respondeu Drake.

O homem puxou o ar, com dificuldade, antes de falar.

- A televisão e os jornais contaram que eram ataques terroristas quando aconteceu pela primeira vez, depois se transformou em alguma coisa muito pior. - O homem
olhou com curiosidade para Drake, como se de repente desconfiasse dele. - Então, você não sabe como isso levou ao colapso de... de tudo? - Ele procurava pelas palavras
certas. - Vocês dois estavam escondidos num buraco ou coisa assim?

- Você não está muito longe da verdade - disse-lhe Drake ao passo que o corpulento os conduzia a um grupo de árvores.

- Se vocês perderam toda a diversão enquanto o país entrava no buraco, talvez queiram ver isso. - Ele apontou a ladeira, onde vários dos mais novos continuavam com
o carro. Eles ergueram o capô, e outro estendeu um cabo de um tambor. - Imaginamos que eles são muito sensíveis às vibrações que os motores produzem. Isso os atrai
a quilômetros de distância.

- Atrai quem? - perguntou rapidamente Jiggs.

- As feras de vidro... É muito provável que vocês vejam com os próprios olhos logo, logo.

- Feras de vidro? - repetiu Drake com a voz rouca.

- Sinceramente, não sabemos o que são. Tem um grupo delas perto do antigo campo de pouso em West Raynham... Se vocês seguissem de carro para muito perto, teriam
muita sorte de ir tão longe. Mas como você trouxe o carro para nossa área, elas não vão demorar a aparecer, e não podemos tê-las por perto, ou seremos invadidos
como os outros vilarejos.

- Mas você disse feras de vidro... O que exatamente quis dizer? - pressionou-o Jiggs.

- É difícil descrever - respondeu o homem. - Elas descem do céu e às vezes vêm pela água, mas essas parecem diferentes - respondeu ele. - Como chegam, não importa;
são igualmente selvagens, e a maior parte de nossa gente, pelo que posso me lembrar, foi apanhada por elas.

Drake e Jiggs trocaram um olhar.

- Armagi? - disse Drake.

- Então você sabe alguma coisa sobre esses bichos? - perguntou o corpulento.

Drake meneava a cabeça.

- Não muito, mas tínhamos uma leve ideia de que isso poderia acontecer.

- Agora é melhor sumir de vista - disse o corpulento, e Drake e Jiggs seguiram seu exemplo quando, resmungando muito, ele se abaixou no chão. Uma vez ali, estalou
os dedos, e outro homem do grupo imediatamente se aproximou com um saco contendo alguns telescópios muito sofisticados em pequenos tripés e os entregou. Drake ergueu
as sobrancelhas para a mira, e o corpulento explicou: - Temos alguns twitchers dedicados em nosso vilarejo... Sabe o quê, observadores de aves... Então, não nos
faltam instrumentos de observação.

Ouvindo um motor do carro sendo ligado, o líder corpulento explicou:

- Deixamos o motor ligado colocando um peso no acelerador... Nada barulhento demais, mas se eles estiverem no rastro, vai trazê-los rapidamente, feito camundongos
ao queijo. As feras de vidro sempre parecem andar em duplas e, se não as pararmos aqui, vão continuar procurando até encontrarem alguém.

Os homens na estrada rapidamente se afastavam dali.

- Aponte sua mira para o carro, depois fique de olho em volta. Não queremos perder a grande entrada - disse o corpulento, rindo. - Bem diferente de observar passarinhos
no Blakeney Point.

E então, enquanto eles esperavam, numa voz baixa e amargurada, ele contou a Drake e Jiggs o que esteve acontecendo na superfície; a polícia e o exército, que pareciam
ter batido em retirada, e todos os serviços públicos - eletricidade, combustíveis, telecomunicações -, que simplesmente pararam.

- Sabe de uma coisa, vocês dois me lembram umas pessoas curiosas que passaram pelo vilarejo algum tempo atrás - disse o homem de repente. - Eles também não pareciam
saber onde estavam. E me vieram à lembrança porque os dois estavam cobertos de lama e davam a impressão de terem saído do rio Wensum, como vocês.

Drake ergueu uma das sobrancelhas.

- Como eram essas pessoas?

- Eles entraram na minha loja num dia de manhã antes de abrir. Na época, eu disse a minha mulher que tinha a sensação de alguma coisa fora do normal... E não demorou
muito para que começassem todas essas coisas esquisitas e o país fosse para o ralo.

- Pode descrevê-los? - perguntou Drake.

O líder corpulento pensou por um segundo.

- Havia um garoto de cara meio maluca, de cabelo comprido branco como a neve e um homem mais velho, também com cabelo muito comprido, que parecia ser o pai del...

- O mais velho usava óculos? - Drake o interrompeu com um grande sorriso se espalhando pela cara. - Que loja mesmo você disse que tem?

O corpulento fez uma cara infeliz.

- Tinha. Infelizmente, fui obrigado a fechar porque não recebia mais mercadoria nenhuma, mas era a loja do vilarejo... Sabe como é, uma loja de conveniência com
comida, jornais e...

Drake começou a rir.

- Então, você vendia chocolate. Por acaso o mais velho dos dois se entupiu de chocolate naquela manhã? Ele fez isso? Porque o doutor sempre adorou chocolate.

- É isso mesmo! - soltou o corpulento. - Ele comprou várias barras, e eu vi que as devorava na calçada.

- Will e o dr. Burrows - disse Drake a Jiggs, que parecia confuso - quando saíram pela primeira vez do abrigo nuclear.

O corpulento também ficou muito confuso.

- Mas como você...

- Shhhh... - sibilou alguém atrás deles. - A primeira fera pousou.

Enquanto os outros dois falavam, Jiggs estava concentrado no carro e tinha localizado o Armagi descendo das árvores e pousando perto do carro.

E Drake viu o segundo disparando do rio que corria sob a ponte.

- Meu Deus... Ali! É um Armagi! - sussurrou Drake com horror. - Adaptado à vida na água.

- E o outro evidentemente é capaz de voar - acrescentou Jiggs.

- Eles podem alterar a si mesmos - disse o corpulento. - Mas veja só isso.

Os dois Armagi se aproximaram do carro, um com as asas dobradas às costas, o outro parecendo cristal líquido, porque a água nele refletia a luz do sol. Houve um
momento em que se viraram um para o outro por cima do teto do veículo, como se estivessem se comunicando.

- E cabum! - murmurou o corpulento.

O integrante do grupo escondido no campo aplicou uma corrente nos fios que corriam até o tanque de combustível do carro. A explosão ergueu o veículo do chão, e os
dois Armagi foram despedaçados pela imensa bola de fogo.

O mais estranho foi que pelo mais breve instante Drake e Jiggs tiveram um vislumbre não das feras transparentes contra as chamas, mas da silhueta distinta de dois
homens.

O líder corpulento já estava de pé e dizia a eles para se levantarem.

- Vamos descer depois para verificar se algo escapou do fogo. Nós incineramos cada pedacinho dessas feras que conseguimos encontrar.

- Por que fazem isso? - perguntou Jiggs. - Parece muito conclusivo. Eles devem estar mortos.

- É o que você pensa - disse o corpulento. - Mas eles podem voltar à vida. Já vimos acontecer.

Drake franzia a testa pensando em alguma coisa.

- Se não podemos usar um veículo com motor a combustão, como vamos conseguir alcançar Parry? Não posso andar, não do jeito que estou.

A mesma ideia tinha ocorrido a Jiggs.

- E se mantivermos a rotação do motor baixa? Ou quem sabe podemos isolar o motor de algum jeito... Colocá-lo à prova de som...?

O corpulento abriu um largo sorriso e interrompeu a conversa.

- Se conseguirem me convencer de que isto é bem importante, tenho uma ideia melhor para vocês. Não é a última palavra em viagens, mas os levará aonde querem ir.

 

Capítulo Onze

 

Nos dois dias em que estavam na fazenda, Chester, Martha e Stephanie já haviam se acomodado a uma rotina, embora estranha. Martha e Stephanie raras vezes se relacionavam,
enquanto Chester estava incrivelmente inquieto e pouco à vontade, zanzando pelo lugar como um urso de ressaca. Quando não estava em seu aposento - o quarto principal
que Martha insistira que fosse dele, enquanto Stephanie era relegada ao que devia ser um dos quartos apertados das crianças -, ele saía para dar longas caminhadas.

Stephanie observava-o sair sem dizer nada a ninguém, seus passos pesados ao andar pelos campos. Martha em geral corria atrás do menino numa tentativa de acompanhá-lo
aonde quer que fosse. Mas ela nunca ia muito longe, porque tinha dificuldade de segui-lo com suas pernas curtas.

E o tempo todo Chester e Stephanie guardavam distância sempre que se viam no mesmo ambiente. Mesmo quando Martha estava longe e não podia ouvir, Chester não parecia
ter vontade de conversar.

No entanto, Stephanie não suportava mais aquele silêncio. Era o início do terceiro dia, e eles tinham acabado de tomar o café da manhã. Não foi uma refeição muitos
atraente - mais uma vez foram obrigados a comer os cereais com água, pois não tinham como conseguir leite. Martha foi ao pátio para jogar fora as tigelas sujas quando
Stephanie decidiu falar com Chester.

- Você ainda está muito chateado, né? - disse ela em voz baixa.

- Ah, só um pouco - respondeu Chester. Com uma expressão ácida, ele tirou cuidadosamente um floco de milho encharcado caído na camisa e deu-lhe um peteleco.

- Lamento que você esteja assim. Não posso fingir que sei como se sente - disse Stephanie com sinceridade porque as últimas notícias que o Velho Wilkie recebera
eram de que os pais e irmãos dela conseguiram escapar para o exterior e estavam sãos e salvos. Chester perdeu tudo. - Só queria poder fazer alguma coisa para ajudar
você.

- Não há nada que você possa fazer, mas, mesmo assim, obrigado - disse ele, a cabeça se virando subitamente ao ouvir o estrondo da louça se espatifando no calçamento
de pedra do pátio. - Sabe de uma coisa, se Parry tivesse sido franco comigo sobre isso assim que descobriu, talvez eu não me sentisse desse jeito. Mas agora não
posso perdoá-lo de jeito nenhum.

- Quem sabe ele ia lhe contar depois daquela reunião a que você foi? - sugeriu Stephanie.

- Bom, ele não contou, né? - rebateu Chester. - E, se tivesse contado, teria sido só porque o presidente dos Estados Unidos se meteu no assunto. - Chester bufou
de raiva. - Não, não consigo esquecer o fato de que meus pais morreram porque aquele nojento do Danforth bolou um esquema idiota e pirou sozinho. Se é que foi realmente
isso.

- Mas Parry disse que não sabia que Danforth ia fazer isso. Então, você não acredita nele?

- Quem pode saber com essa gente? Esse pessoal do exército fica numa pressa tão grande de salvar vidas que acaba matando todo mundo - disse Chester. - Danos colaterais
e necessidade militar prática, meu amigo - acrescentou, mexendo a cabeça com altivez e fazendo uma imitação passável de Parry, com sotaque escocês e tudo. - Às vezes
Drake também era meio assim, mas com Will e Elliott era diferente... Sempre éramos sinceros um com o outro. Nunca teríamos decepcionado o outro desse jeito. Nunca.

- Eu também nunca vou decepcionar você, Chester - disse Stephanie, mas ele não pareceu registrar porque começava a espumar de raiva.

- Quer dizer, por que o imbecil do Danforth não podia simplesmente ter fingido para os Styx que tinha feito sujeira conosco? Não precisava ir até o fim. - Chester
se colocou de pé num salto e andou furiosamente pela sala. - Ainda me pergunto se ele realmente gostou de matar meus pais! Aquele desgraçado nojento! - cuspiu ele.

Chester era um homem crescido e grande, e sua agressividade intimidava. Stephanie começou a pensar que não foi uma boa ideia tentar conversar.

De repente ele parou de andar e falou.

- Maldito assassino de merda. - Com um palavrão, mirou um chute em uma das cadeiras que cercavam a mesa. Um sorriso alarmante se espalhou por seu rosto quando a
perna se quebrou e caiu no piso frio. Depois ele partiu para valer contra a cadeira, chutando-a e esmurrando sem parar, até não passar de madeira lascada onde antes
ficava de pé. Ofegante do esforço, ele gritou: - E que porcaria eu ainda estou fazendo aqui? Neste fim de mundo desgraçado?

Martha tinha entrado e mirava a cadeira quebrada. Chester não deu por sua presença ao passar aos empurrões para o hall. Ali ele pegou um par de luvas e um chapéu
ao lado da porta e saiu de rompante.

- Mas o que foi isso? - perguntou Martha, semicerrando os olhos para Stephanie. - Espero que você não o tenha aborrecido.

- Sinceramente, não sei o que deu nele. Eu não disse uma palavra. De repente ele começou a falar dos pais e de Danforth e de... - Stephanie não terminou porque Martha
foi rapidamente à janela.

- Mas por que ele não falou disso comigo? - queixou-se ela.

Ele voltou no início da noite, depois de uma ausência de muitas horas, chegando bem a tempo para o jantar. Seu rosto era inexpressivo, e ninguém se atreveu a lhe
falar enquanto ele assumia o lugar à mesa. Pelo cheiro, era fácil saber o que iam comer - era o de sempre - guisado de cordeiro. Martha abriu a porta com o cotovelo
ao trazer para dentro, largando a comida sem o menor jeito na mesa.

Ela se sentou na cadeira de sempre, e Chester simplesmente encarou a comida.

- Hã, Martha - disse ele.

- Sim, meu queridinho?

Usando ambas as mãos, ele ergueu a tigela de plástico, como se a convidasse a fazer um comentário. Na tigela estava escrito CÃO em grandes caracteres inconfundíveis
e, embora antigamente possa ter sido de uma cor vermelha-viva, estava tão gasta e o plástico tão arranhado pelos anos de limpeza que sua cor desbotara e as bordas
começaram a se esfarelar. Já Stephanie não se deu tão mal assim, com a tigela lascada de plástico que recebera.

- Estamos ficando sem pratos. Não sobrou muita coisa nos armários - disse Martha a pretexto de explicação, mergulhando a colher na tigela, que era um prato esmaltado
amassado, provavelmente também usado pelos animais de estimação dos donos da casa.

Chester baixou cuidadosamente a tigela de cachorro na mesa.

- Não suporto mais - disse ele com a voz rouca.

- O quê... Meu guisado? - perguntou Martha.

- Não, não, me sentir assim - murmurou ele. Sua cabeça estava baixa, e Stephanie não tinha certeza se ele chorava ou não, mas pensou ter visto uma lágrima caindo
na tigela dele.

- Ah, meu pobre queridinho! - Martha correu a Chester e o abraçou com força. - O que foi? O que posso fazer para melhorar as coisas para você?

É claro que Stephanie sabia como a depressão de Chester foi grave durante as semanas no chalé, mas essa exibição de vulnerabilidade a chocou. Ele estava mais frágil
e mais perturbado do que ela imaginava.

- Pode me dizer o que fazer? - perguntou Martha, quase suplicante. Seus olhos também transbordavam.

Chester fungou.

- Você disse que seus faróis podem localizar qualquer um para você?

- Sim, é isso mesmo - respondeu Martha. - Eles podem. Assim como sempre conseguiram me levar a você, aonde quer que fosse. Se você tiver algum objeto com um vestígio
de cheiro, minhas fadas procurarão sem parar, até por centenas de quilômetros, e só vão sossegar quando tiverem sucesso.

- O Descontaminador - murmurou Chester. Mal podia ser ouvido.

- O que foi que você disse, queridinho? - perguntou Martha.

Os ombros de Chester se ergueram num soluço.

- Tenho um Descontaminador dele em minha Bergen. Tem o cheiro dele.

- Seja o que for, sei que minhas fadas podem usar. Vou mandá-las procurar.

Era evidente para Stephanie que Martha não entendia verdadeiramente o que ele pedia, mas naquele momento ela estava disposta a concordar com qualquer coisa que aliviasse
sua dor.

- Obrigado - disse Chester com a voz rouca. Martha ainda o abraçava, e ele pôs a mão no braço da mulher e o apertou devolvendo o carinho. Ele levantou a cabeça,
e Stephanie viu que seus olhos brilhavam de lágrimas. Mas também viu a firmeza com que ele cerrava a boca. Ele olhou fixamente nos olhos de Martha. - Estou desesperado
para encontrá-lo. Pode realmente localizá-lo por mim... Localizar Danforth? Fará isso por mim?

- Você sabe que farei - respondeu Martha com as lágrimas escorrendo pelo rosto. - Só precisa pedir - disse ela, repetindo essas palavras sem parar.

 

Nas vinte e quatro horas seguintes, o grupo de neogermanos pairou em volta de Elliott, como se tivesse esperanças de que ela fizesse um de seus milagres de novo.

Ela não fez, e eles evidentemente estavam cansados de esperar quando, de súbito, Werner anunciou que todos deviam voltar à cidade para armazenar suprimentos e pegar
algum equipamento de que precisassem. Era verdade que a comida ficava escassa, mas a prioridade de Jürgen claramente era a pesquisa: ele queimava todos os seus fusíveis
ao planejar uma completa avaliação científica da torre e da pirâmide, além de uma expedição às outras duas pirâmides para ver as mudanças ali.

Will não participou em nada das discussões, mas ouviu com interesse as ideias lançadas por Werner e Jürgen de como podiam usar o equipamento sísmico na torre para
detectar até a menor vibração, caso houvesse algo mecânico operando. Eles também debateram o uso de um aparelho de raios X portátil em suas paredes e como podiam
medir o nível de qualquer atividade elétrica na torre.

O último tema de sua pauta era filmar as visões do espaço, como se referiam a elas, na vez seguinte em que Elliott operasse o console para ver a Terra. Foi então
que Will realmente captou a decepção que emanava dos dois neogermanos, porque Elliott não revelava mais nenhum segredo da torre, se é que havia realmente algum.
De novo estava muito rabugenta e pouco comunicativa, dormindo na maior parte do tempo, embora os dois irmãos não tivessem a coragem de tentar obrigá-la a fazer algo
que ela não quisesse.

Mas quando Werner fez a sugestão de que todos se preparassem para voltar à cidade, Elliott reagiu com firmeza. No início balançou a cabeça e disse que não iria e,
quando Werner conversou com ela e tentou convencê-la, ela desatou a gritar, declarando que de maneira nenhuma sairia da torre. O bosquímano ficou de pé ao lado dela,
sua linguagem corporal cada vez mais beligerante, como se estivesse se preparando para pegar qualquer um que tentasse coagir Elliott.

Werner não perdeu a calma, mas se recusou a aceitar uma resposta negativa, dizendo que não estava sequer preparado para deixar também Woody para trás.

- E se descobrirmos uma arma aqui? - propôs ele. - Temos a responsabilidade... todos nós... de garantir que não seja mal utilizada, em particular pelos tribais,
que podem saber mais do que ele está nos dizendo.

Nada do que foi dito teve qualquer efeito em Elliott, que simplesmente foi para seu saco de dormir e entrou nele, puxando-o até a cabeça. Werner então pediu a Will
que tentasse argumentar com ela, mas ela também não quis falar com o amigo. E quando Will ergueu a voz de frustração porque ela não parava de se esconder, o bosquímano
avançou, parando sobre a figura de Elliott, embrulhada no saco de dormir.

- Woody, o que acha que está fazendo? Trate de não se meter nisso! - gritou Will para ele.

O bosquímano se recusou terminantemente a se mexer, e Will perdeu a paciência.

- Isso não tem nada a ver com você! - gritou para Woody. - Sai daí... Some, miolo de graveto.

O bosquímano tagarelou alguma coisa para ele, com uma expressão desagradável.

- Você não deve ofender Woody. Ele entende mais do que você pensa - disse Elliott, a voz abafada no saco de dormir.

- Ah. - Will sentiu-se muito pequeno. Como Elliott se enclausurava de novo e Will sabia que não ia chegar a lugar nenhum com a menina, ele fez uma contraproposta
a Werner. Sugeriu continuar ali, cuidando dela, e também ficaria de olho em Woody. Havia comida suficiente para sustentar três pessoas por vários dias, e Will prometeu
que atualizaria os dois regularmente pelo rádio, ligando para eles assim que acontecesse algo incomum.

Para não sequestrar Elliott e obrigá-la a ir com eles, Werner não teve alternativa senão aceitar essa sugestão. Assim, no espaço de uma hora, ele, Jürgen e Karl
se prepararam e marcharam pela planície desmatada na direção do veículo militar de esteira.

Will ficou solitário depois que eles saíram, porque, quando não estava dormindo, Elliott evitava qualquer contato com ele, andando sem rumo pela torre. Mas nem uma
vez ela pôs os pés para fora, como se não suportasse sair dali, embora Will às vezes a pegasse perto da entrada. Nesses momentos, ela parecia olhar os campos de
terra ressecada como se esperasse o aparecimento de alguém no horizonte.

A incessante relutância de Elliott a ter algum convívio com Will o fez se perguntar o que mudou tão radicalmente na amizade dos dois. Ele não tinha ilusões; o estilo
de vida despreocupado que tanto significou para ele nas semanas antes da explosão nuclear se fora para sempre. Quando o feixe de tração, como chamava Jürgen, descascou
a antiga pirâmide, também eliminou qualquer vestígio da base na árvore próxima que antes era o lar dos dois. Era emblemático para Will, porque ele sabia que jamais
poderiam voltar àqueles dias tranquilos, em particular com a presença dos neogermanos e do sempre vigilante bosquímano.

Will soltou um longo suspiro. Havia uma inevitabilidade inescapável em sua vida, como se um poder superior pretendesse atrapalhar assim que ele descobria algo próximo
da felicidade e do contentamento. Mas por que precisava ser assim? Por que coisas boas não duravam para sempre?

E agora, deitado em seu saco de dormir na câmara de entrada da torre, ele fitava desanimado as paredes e as colunas gêmeas que abrigavam os elevadores. Parte dele
desejava jamais ter voltado à pirâmide e descoberto a torre, enquanto outra ardia de curiosidade sobre quem as construiu e que verdadeiro propósito teria. Havia
algo de tão contemporâneo, tão incrivelmente moderno no interior, embora não fosse nada desse tipo, porque estava oculto neste mundo provavelmente desde tempos imemoriais.

Como que para enfatizar isso, os murmúrios sussurrados e repetitivos do bosquímano, como uma espécie de encantamento religioso transmitido ao longo dos séculos,
vagaram até Will. Woody acendeu uma fogueira logo depois da entrada, onde cozinhava alguns bichos que pegara nos novos campos, e de vez em quando o vento soprava
a fumaça para dentro da torre.

- Não adianta. Não consigo dormir - anunciou Will, lançando um olhar para onde Elliott estava enroscada. O bosquímano se ocupava com sua comida, e, assim, Will saiu
em silêncio do saco de dormir e foi se sentar ao lado de Elliott.

- Não sei qual é o problema... Mas queria que você pelo menos falasse comigo e desabafasse. - A voz de Will ficou rouca com toda a emoção, e ele engoliu em seco
várias vezes antes de conseguir continuar. - Sabe, eu nunca me senti tão sozinho. Não tenho mais ninguém. Minha mãe está a milhares de quilômetros e papai morreu,
e todos os outros, como Chester e... - Will não conseguia pensar em mais ninguém para colocar na lista e rapidamente continuou. - Bem, não tenho ninguém. Ninguém,
só você. Então, por favor, me diga qual é o problema porque...

Um grito distante teve eco pela torre.

- Hein? - Will de repente ficou muito preocupado, porque parecia ter sido Elliott. Ele se curvou e empurrou o saco de dormir. Algo chocalhou ali dentro. O que Elliott
enfiou naquele saco era duro e não se parecia em nada com um corpo humano.

O bosquímano também ouviu o grito. Abandonou a comida e veio para dentro, subindo diretamente a escada.

- Mas que porcaria! - exclamou Will ao pegar o casaco e a Sten. Estava irritado consigo mesmo porque deve ter cochilado por tempo suficiente para Elliott enganar
o bosquímano e a ele próprio. Embora fosse o único a merecer a culpa, Will jogou sua irritação no bosquímano. - Woody, seu idiota! Por que você deixou que ela nos
enganasse desse jeito?

Sabendo que o elevador não funcionaria para ele, Will disparou escada acima, com Woody em seus calcanhares.

- Elliott! - gritou Will ao chegar ao primeiro nível. Ela não respondeu, mas pela arcada ele a viu de pé, imóvel. Olhava fixamente um determinado ponto na parede
externa, sem piscar.

- Por que você gritou? E por que está aqui sozinha? - perguntou ele ao se colocar a seu lado. Assim que conseguiu ver seu rosto, ficou alarmado com a transformação
que ocorrera: a expressão de Elliott era assombrada e ansiosa e havia sombras escuras, feito hematomas, sob seus olhos. Ele baixou a voz ao voltar a falar. - Elliott,
preciso saber o que há com você. Concordamos que você e eu ficaríamos juntos porque não sabemos o qu...

- Tem alguma coisa errada - interrompeu-o ela.

- O quê... Aqui? - Will se aproximou da parede que ela ainda olhava fixamente e deu ele mesmo uma olhada rápida. Não parecia haver nada de diferente ali, assim,
se virou para ela. - O que quer dizer com isso? O que está errado? E por que você escapuliu para cá? - perguntou com gentileza, tentando pegar sua mão.

Ela se afastou dele, indo ao mais próximo dos quatro consoles em torno do poço central.

- Muito tempo atrás - começou Elliott -, alguma coisa foi tirada daqui.

- Quer dizer, do nível seguinte? - Will apontou o andar acima ao se lembrar do que ela disse lá.

Ela assentiu lentamente.

- Não era para ficar longe por tanto tempo, mas aconteceu alguma coisa e ele se perdeu. Tenho de pegar de volta. Está no lugar errado. Estamos todos no lugar errado.

Will esfregou o queixo, perguntando-se o quanto se atreveria a interrogá-la em seu atual estado. Ela parecia fora de si, como se estivesse nas garras de um pesadelo
terrível e ainda não tivesse acordado inteiramente. Mas ele precisava descobrir do que ela falava, o que a perturbava tanto.

- Tudo bem... Então, essa coisa não está no lugar certo, mas como vamos consertar isso?

Elliott colocou a mão na beira do console, ainda falando como se não tivesse ouvido a pergunta dele.

- Preciso encontrá-lo. - Ela voltou seu olhar para Will. - E preciso trazê-lo de volta.

Will deu de ombros.

- Tudo bem. Vamos fazer isso juntos. Onde está? Perto daqui?

Sem nem mesmo olhar o que fazia, ela estendeu o braço e tocou o alto do console. Houve uma explosão de luz na parede atrás de Will, que se acomodou em um quadrado
prateado cintilante.

Ele precisou de alguns segundos para se recompor depois da surpresa.

- O que é isso? Não é outra vista aérea. O que você fez?

- Vai me levar para perto de onde está o objeto. - Embora ela tivesse retirado a mão do console, o quadrado prateado e grande permaneceu ali. - Vou procurá-lo na
Crosta.

Enquanto absorvia o que ela acabara de dizer, Will meneava a cabeça.

- Quer dizer que existe um jeito de chegar à superfície? Mas como, exatamente?

Elliott limitou-se a olhá-lo com uma expressão vaga, assim ele avançou para o quadrado bruxuleante. Tinha cerca de meio metro quadrado, e, embora a superfície parecesse
sofrer um fluxo constante, as bordas não variavam em nada.

- Não chegue perto demais - avisou Elliott.

Parecia vagamente reflexivo - ele podia ver a si mesmo e Elliott ali.

- Espelho, espelho meu - murmurou Will, hipnotizado pelo quadrado. Isso o obrigou a se concentrar no que devia fazer. - Então, o que é, isto nos transportará por
mágica para algum lugar?

- Sim - respondeu Elliott.

Will refletiu por um momento.

- Tudo bem, então, vamos fazer um teste? - sugeriu ele, em dúvida. Procurou em seu casaco até encontrar um objeto com massa adequada. - Ele nunca vai me perdoar
por isso. - Will estendeu a antiga bússola de bronze do dr. Burrows.

Ele se preparou e calmamente jogou a bússola no quadrado prateado. Quando estava aproximadamente a trinta centímetros da superfície do quadrado, sua trajetória se
alterou, como se alguma coisa o tivesse atingido. A bússola foi puxada a tal velocidade para dentro do quadrado que, no tempo que Will levou para piscar, simplesmente
sumiu. E não havia ruído nenhum que sugerisse ter atingido uma superfície, como a parede por trás, ou caído no chão abaixo.

- Caramba! - sussurrou ele. - Sumiu num segundo!

Ele se virou para Elliott. Os olhos dela brilhavam - o olhar assombrado quase desaparecera.

- Isso quer dizer que você vai comigo? Vai, por favor? - pediu ela.

Ele respirou fundo.

- Você está mesmo me dizendo que se andarmos para dentro deste quadrado, estaremos instantaneamente em Londres? Para onde foi a bússola de meu pai? Feito mágica?

- É isso mesmo. E não é mágica.

- E você tem certeza absoluta de que sairá em Londres? Não no espaço sideral ou em outro lugar qualquer?

- Londres... Tenho certeza absoluta. É para lá que preciso ir.

Will puxou o ar, sua mente agitada pelas possibilidades.

- Então, se você tiver razão e não formos pulverizados ou coisa assim, vou poder te ajudar e poderia também descobrir o que aconteceu lá na superfície? - Ele riu
com o caráter improvável de tudo aquilo. - Nós dois vamos sair deste mundo?

Ela assentiu.

Mas ele pensou numa coisa.

- Não podemos ir. E não posso deixar que você vá também... Por causa do vírus. Vamos levá-lo conosco. Vamos matar todo mundo!

- Eu preciso... - começou Elliott.

Will não se deixou abalar.

- Não, você não pode. Lembra o que Werner disse... O vírus está em toda parte aqui porque as aves estão disseminando. - A essa altura seus olhos caíram no bosquímano.
Will apontou o dedo para o alto, como o pai costumava fazer quando tinha uma inspiração. - Peraí um minutinho... Tive uma ideia.

- Teve?

- É isso aí, eu sou o cara! - proclamou Will, estufando o peito e fazendo uma espécie de dança da vitória, porque estava muito satisfeito consigo mesmo.

Essa expressão era incompreensível para Elliott.

- Você é o cara? Que cara?

- É, eu sou mesmo. Eu sou o cara! - Will tinha um sorriso enorme. - O que vamos fazer é mandar Woody à pirâmide para pegar todo o equipamento de descontaminação
que trouxemos para cá... Sabe qual, quando Jürgen teve medo de encontrarmos um monte de colegas do Woody e passar a doença para eles.

- E armamos o equipamento na frente disso - disse ela, apontando o quadrado prateado ao entender.

- Isso aí, e vamos tomar cada precaução possível antes de entrarmos no seu espelho. E você fará Woody compreender que ele deve ficar aqui e não tentar nos seguir.
- Will ainda achava tudo isso meio difícil de acreditar. - E se esse quadrado é realmente o que você pensa, posso chegar em casa tipo num estalar de dedos. E posso
ir para lá, ajudar Chester, Parry e...

- Acredito que podemos de fato ajudá-los se não for tarde demais - disse ela. - Porque o que tenho de fazer é ligado a este sangue em mim, ao sangue do meu pai.
Sei que de algum modo está relacionado com os Styx. - Ela se interrompeu. - E à Fase.

Will simplesmente assentiu.

 

Capítulo Doze

 

- Esta? - perguntou a sra. Burrows, aproximando-se de uma porta na escada de pedra gasta.

O Primeiro Oficial franziu a testa ao se colocar ao lado dela e refletiu.

- Acho que me lembro de que estava bloqueada. Vamos tentar mais acima - sugeriu ele.

Depois de outra curta escada claustrofóbica, havia outro patamar com uma porta de batente de ferro idêntica e madeira antiga corroída por carunchos. Mas, quando
o Primeiro Oficial girou a maçaneta e tentou abri-la, nada aconteceu.

- Chegue para o lado, por favor - disse ele com certa autoridade à sra. Burrows, flexionando os braços e levando um momento para se preparar. Depois recuou e, como
um rinoceronte em pleno ataque, jogou-se na porta com toda força.

Ouviu-se o barulho de madeira lascada, e a porta se abriu, mas apenas para bater em uma sólida parede de tijolos. A alvenaria aplicada de qualquer jeito no rejunte
dos tijolos tinha a aparência de creme dental, sugerindo que a parede foi construída do outro lado.

- Humpf - disse o Primeiro Oficial, decepcionado. - Fique mais para trás, por favor - disse à sra. Burrows.

- Pare de bancar o policial comigo, sim? - resmungou ela, um tanto irritada.

Ele não deu atenção a isso, mais uma vez recuando ao máximo no patamar mínimo, depois lançando o volumoso corpo contra a parede. Fez isso pela segunda vez. E por
uma terceira.

- Perdeu seu jeitinho, querido? - perguntou a sra. Burrows com um sorriso.

Mas então, na quarta tentativa, a parede de repente cedeu. Depois de arrancar os tijolos para aumentar a abertura, o Primeiro Oficial descobriu uma camada de reboco
nova, que quebrou como se fosse de papel.

- A porcaria do material de construção moderno - resmungou ele enquanto entrava numa sala, acompanhado da sra. Burrows.

- Onde estamos? O que você está vendo? - perguntou a sra. Burrows.

O Primeiro Oficial descreveu o que havia ali - como evidentemente o lugar estava no meio de uma ampla reforma. Todas as superfícies tinham reboco recente e, a julgar
pelos cabos nas paredes e pendurados no teto, era óbvio que a instalação elétrica estava sendo refeita.

- Então, alguém andou fazendo umas melhorias - disse a sra. Burrows, indo diretamente à janela. Ainda havia luz do lado de fora, embora estivesse chovendo muito
e o céu fosse tão nublado que tudo ficasse opaco e cinza. Ela farejou. - Este lugar me é familiar - disse ela.

- Gladstone Street. - O Primeiro Oficial a ajudou.

A sra. Burrows assentiu e farejou mais uma vez.

- Só outro dia de chuva em Highfield. - Ao se postar junto da janela, sua mão tocou algo preso ao caixilho novo da vidraça. - O que é isso?

O Primeiro Oficial tirou a fotografia antiga e desgastada que um dos pedreiros deve ter encontrado e grudado ali.

- É um daguerreótipo de uma velha senhora usando óculos grossos, com alguns gatos.

- Chamam de fotografia neste século - disse a sra. Burrows, acrescentando rapidamente: - Esta senhora... Ela tem cabelo branco... Com cachos eriçados, de aparência
estranha?

O Primeiro Oficial trouxe a fotografia para ver mais de perto.

- De fato tem - confirmou.

A sra. Burrows assentiu.

- Ah, sei por que este lugar me é tão familiar. Aposto que é a sra. Tantrumi. Ela morava em um dos abrigos por aqui e é provável que seja esta casa, porque os Styx
evidentemente tinham um jeito rápido de alcançá-la se a quisessem.

- Sra. Tantrumi? - perguntou o Primeiro Oficial.

- Sim, ela era agente Styx. E foi graças a essa bruxa velha que fui apanhada no Highfield Common e sofri toda aquela Luz Negra. - O tom da sra. Burrows era amargurado.
Depois algo lhe veio à mente. - E, sabe de uma coisa, o globo luminoso que levou meu marido, Roger, a descobrir a Colônia foi encontrado embaixo desta casa. Foi
aqui que tudo começou! - Ela olhou com ternura para o Primeiro Oficial. - Se não fosse por isso, você e eu nunca teríamos nos conhecido.

O Primeiro Oficial assentiu, querendo se concentrar no trabalho que tinha pela frente.

- E agora? Vamos sair e investigar o qu...

- Não - disse a sra. Burrows abruptamente, sua cabeça se voltando num átimo para a janela. - Meu Deus, não! Rápido, volte por aquela porta!

- Por que, o que foi? - perguntou o Primeiro Oficial, bastante confuso com o que ela evidentemente captou com seu supersentido.

- Não sobrou ninguém vivo em Highfield... Mas há coisas aí fora cujo cheiro eu nunca senti. - A sra. Burrows empurrava o Primeiro Oficial pela porta. - E, se uma
dessas coisas chegar à Colônia, será o fim de todos nós.

 

- Acha que estamos fazendo isso direito? - gritou Elliott de dentro do túnel de descontaminação. Ela e Will passaram horas no alto da torre encaixando as peças de
alumínio em diferentes configurações, até que por fim a camada dupla e externa de borracha verde-escura deslizasse para seu lugar.

- Não sei... Acho que sim... Parece que está mais ou menos certo. Teria sido muito mais fácil se viesse com manual de instruções. - Ela se juntou a ele, e os dois
recuaram para ver a longa estrutura em formato de tenda. - Tudo bem - disse ele, indo até as caixas. - Agora vamos equipar essa coisa.

Eles passaram a instalar o chuveiro e uma série de luzes ultravioleta. Tinham uma ideia geral do que fazer porque viram como era a câmara de descontaminação do hospital
dos neogermanos, assim só podiam tentar reproduzi-la nesta versão portátil.

- Montei uma coisa assim num túnel anos atrás - disse Will enquanto conectava uma bateria de chumbo-ácido parecida com a de um carro para fornecer energia à pequena
série de lâmpadas ultravioleta.

A tarefa de Elliott era igualmente complexa, porque ela tentava entender como instalar o chuveiro usando os muitos metros de tubulação e uma bomba manual.

Por fim, eles pensaram estar prontos para um teste.

- Ligue o interruptor - gritou Will de dentro da tenda e foi banhado na luz do painel ultravioleta enquanto Elliott obedecia. - Está tudo bem... Desligue! - Ele
avançou pela tenda até chegar ao primeiro compartimento. - Tá legal, agora experimente a bomba.

Ela começou a trabalhar na bomba manual, imprimindo toda sua força. Olhava, hipnotizada, o pulso de fluido germicida azul pela tubulação quando teve consciência
dos gritos de Will.

- Pare! Pare! Já chega! - A cara dele apareceu na abertura da tenda, seu rosto e o cabelo branco pingando fluido azul. - Eu sabia que isso ia acontecer - falou aos
cuspes, mas parecia muito satisfeito. - Bom, parece que está tudo funcionando. - Ele olhou para Elliott. - Então, vamos acabar logo com isso?

Ela assentiu vigorosamente.

Desde o início, Will sabia que não havia como Elliott se acovardar e, apesar de suas reservas, não havia nada sobre a Terra - ou dentro dela - que o impedisse também.
Estava louco para descobrir se o quadrado prateado faria o que Elliott alegava.

- Tá bom, se você pegar um desses trajes biológicos, pode muito bem começar a descontaminação. - Ele girou para o bosquímano, ainda falando com Elliott. - E você
acha que pode conseguir a ajuda de Woody? Senão, não haverá ninguém do lado de fora da tenda para me processar quando eu passar.

- Não se preocupe com ele... Só escolha o kit que vamos levar - respondeu ela, já partindo para onde dispuseram os dois trajes de plástico branco, idênticos àqueles
que Jürgen e Karl usavam quando eles se conheceram na cidade.

Enquanto Will verificava todo o equipamento nas Bergens dos dois, Elliott deu instruções na língua Styx a Woody, que ficou do lado de fora da tenda. Ela estava na
seção do chuveiro do túnel, sendo completamente ensopada em germicida, borrifado do alto por um sifão. Parte do fluido escorregou para seu olho, ardendo tanto que
ela teve de sair de baixo do chuveiro e lavar com água de um cantil antes de poder continuar.

- Espero que estejamos fazendo isso direito! - gritou ela de mau humor para Will.

- É, sinceramente espero mesma coisa - gritou Will em resposta. Balançando a cabeça, ele soltou uma gargalhada sem humor nenhum. - Ou seremos responsáveis pela morte
de vários milhões de pessoas na superfície.

Sua cabeça ficou tonta com o pensamento. A mera declaração trazia as implicações - o menor dos erros que permitisse um único vírus minúsculo ser carregado para o
mundo exterior seria mais desastroso do que podiam expressar as palavras.

Elliott sentia-se da mesma maneira. Ainda piscando o olho, ela não se mexeu por um momento.

- Então... Acha que devo passar pelo banho de novo?

Will olhou os tanques plásticos ao lado de Woody.

- Pode ser uma ótima ideia. Temos baldes dessa gosma azul.

Depois que Elliott tomou um banho pela segunda vez, Will deslizou as Bergens e seu equipamento para a entrada, e Elliott os ensopou com germicida.

Arrastando todo o kit, Elliott avançou pela tenda, onde ficou sob as luzes ultravioleta que Woody acendeu. Tendo vestido o traje plástico - uma tarefa e tanto, porque
o germicida que a recobria tornava-a escorregadia -, ela finalmente colocou o capacete cilíndrico. Certificando-se de que estivesse corretamente encaixado no lacre
à volta do pescoço, ela fechou as duas travas, depois abriu a válvula do pequeno cilindro de ar. Pendurou-o nas costas por uma alça. Depois gritou para Will que
estava pronta.

- Minha vez - disse ele a Woody, pouco à vontade porque o bosquímano não se esforçou para evitar seus olhos enquanto ele tirava toda a roupa. - Elliott, estou indo.
Não olhe! - gritou ele, entrando com seu traje biológico debaixo do braço. Ele também passou pelo chuveiro duas vezes e, enfim, colocou-se abaixo das luzes, onde
Elliott estava de costas, de braços cruzados, resmungado com impaciência.

Quando estava vestido, Will juntou-se a ela na ponta do túnel, e eles ficaram lado a lado, prontos para entrar no espelho bruxuleante bem no final da tenda.

- Ainda está ali? - perguntou Will, nervoso.

Elliott abriu alguns centímetros do zíper da porta a fim de olhar.

- Sim - respondeu ela.

- E você tem certeza disso? - Ele pegou a Bergen e enganchou a Sten no ombro, depois ficou indeciso. - Me diga pela última vez... Isso vai mesmo nos transferir até
a superfície? Como uma bugiganga do Jornada nas estrelas? Como você sabe que não vamos simplesmente pegar fogo ou coisa assim?

Ela franziu o cenho ao ouvir a menção a Jornada nas estrelas.

- Vai funcionar - respondeu ela simplesmente.

- Ah, tá, você não sabe como, você simplesmente sabe - resmungou Will.

Sem dizer mais nada, Elliott abriu as abas da porta, e eles ficaram de frente para o portal cintilante, pingando germicida do equipamento e dos trajes.

- Vamos nessa - disse Will em voz baixa. Ele pegou a mão dela e a apertou enquanto ambos saíam do túnel, andando para o portal. - Parece frio - comentou.

Ainda nem tinham entrado no quadrado quando uma força se apoderou dos dois, puxando-os com tal potência que não poderiam ter resistido, mesmo que quisessem.

Por menos de um segundo, só o que ouviram foi o sopro de ar. Apesar dos trajes que sentiam em sua pele, parecia uma rajada súbita de vento.

E eles sabiam que não estavam mais no mundo interior.

 

PARTE TRÊS

Bishops Wood

 

Capítulo Treze

 

Eles tombaram por vários metros em algo duro. Um solavanco fez com que deixassem cair as Bergens e as armas.

Estava preto como breu e um frio de amargar.

Will de imediato estendeu a mão, procurando por Elliott, e a encontrou no chão ao lado dele.

- Você está bem? - perguntou ele.

- Sim. - Elliott apontou para o capacete. - É seguro tirar isso agora?

- Acho que sim. Vamos ter que tirar, mais cedo ou mais tarde, porque o ar vai se esgotar. E, se fizemos errado a descontaminação, então... - Ele se interrompeu.
Soltou o lacre em volta do pescoço e retirou o capacete plástico. Elliott seguiu seu exemplo, e os dois respiraram fundo pela primeira vez, puxando o ar gelado da
noite para os pulmões.

- Brrrrr. - Os dentes de Elliott já começavam a bater.

De repente os dois se deram conta de que estavam despreparados para as baixas temperaturas, depois do clima tropical no mundo interior. E o problema era exacerbado
porque não só seus trajes de plástico fino conferiam pouca proteção contra o frio, como os dois ainda estavam molhados do processo de descontaminação.

- Não trouxemos nenhuma roupa adequada - percebeu Elliott.

- Não pensamos muito bem nisso - concordou Will.

Suas vozes pareciam pequenas, e não havia eco. Onde quer que tenham chegado, sem dúvida nenhuma estavam ao ar livre.

- Pelo menos ainda estamos vivos! Conseguimos! - declarou Will, entendendo que tinham sobrevivido à jornada pelo portal cintilante.

Elliott estava mais desanimada, como se não esperasse nada menos do que isso.

- Sim, tudo bem, mas onde estamos exatamente? - Colocando-se de pé, ela usou a mira do rifle para dar uma olhada em volta. - Árvores? Só o que consigo ver são árvores.
E estou muito enjoada. - Ela soltou um gemido, voltando a se sentar no chão com a mão na barriga.

Will abria a Bergen e a vasculhava, mas parou o que fazia quando também teve uma crise de náusea.

- Eu também. Do nada me sinto péssimo. - Ele baixou a cabeça e a levantou rapidamente, arrotando alto ao mesmo tempo. - Ah, isso resolveu. - Ele se virou para Elliott
no escuro. - Experimente.

- O quê? Arrotar?

- É, vai nessa. Deve ser uma bolha de ar, por causa da mudança na pressão ou coisa assim.

- Bom... Tudo bem. - Houve uma pausa enquanto ela puxava o ar e prendia a respiração, depois o soltou num arroto potente, muito mais alto que o de Will, reverberando
pelas árvores. - Está mesmo melhor - disse ela.

- Uma verdadeira dama. - Will riu, voltando a procurar na Bergen a lente de intensificação de luz de Drake. Era redundante no mundo interior, com sua constante luz
do dia, mas ele ainda a carregava para todo lado por força do hábito.

- Não uso isto há algum tempo. Espero que ainda funcione - disse ele, prendendo a tira em volta da cabeça e baixando a lente sobre o olho. Enquanto ligava a chave
na caixinha pendurada por um fio na unidade, só o que viu foi a tempestade de neve laranja de sempre antes que a visão se acomodasse. - Sim, árvores... Também estou
vendo. - Ele olhou em volta. - E tem um riacho por ali? - perguntou, indicando onde a urtiga e os arbustos se separavam e alguma coisa brilhava na pouca luz da lua
que penetrava na grossa camada de nuvens.

Mas Elliott estava ocupada espiando por sua mira na direção contrária, avaliando a curta ladeira ao lado deles e tentando distinguir o que havia no alto.

- Onde será que estamos? - perguntou ela.

- Não é nada parecido com Londres. Devemos estar em algum lugar no interior. E precisamos sair disso antes de morrermos congelados - acrescentou ele, batendo os
pés no chão numa tentativa de se manter aquecido.

Foi então que Elliott viu o asfalto congelado de uma estrada subindo pela ladeira.

- Que tal ali em cima? - sugeriu ela a Will.

Pegando o equipamento, eles subiram pela estrada, mas Will parou de repente.

- Só um minuto. - Ele voltou ao ponto de origem e ficou olhando o terreno por um ou dois segundos, abaixando-se para pegar uma coisa. - Eu esperava mesmo que isto
estivesse aqui. - Ele ergueu a bússola do pai.

Mas também notou outra coisa sobre o ponto por onde passaram.

- Ei, precisa ver isso! Fizemos um anel das fadas. - Ele riu. A sua volta havia um círculo perfeito, com quase dois metros de diâmetro. Não só a relva comprida foi
cortada pela força que transportou os dois para lá. A área bem no meio do círculo também foi cavada a tal ponto que se podia ver a terra congelada. - Acha que é
assim que são feitos os anéis de fadas? - sugeriu ele com pouca seriedade.

Mas Elliott já estava no alto da ladeira, onde se agachou atrás de uma grade baixa de metal. Tocou o alto da cabeça em um sinal de comigo, que imediatamente avisou
Will para ficar atento. Ela encontrara alguma coisa. E enquanto Will subia a ladeira atrás dela, com a Sten preparada, Elliott cortou o ar em outro sinal, indicando
que ele devia se abaixar.

Os dois estavam no acostamento de uma rua larga que fazia uma curva à direita. Seguia um leve declive à esquerda, e havia construções do outro lado dessa parte da
rua.

- Então, não estamos no campo - cochichou Will enquanto os dois olhavam o panorama diante deles. - Afinal, fomos trazidos a Londres.

- Sim, deduzi isso sozinha - cochichou ela em resposta.

- Mas que casonas, hein - disse Will. Ele sabia, pelo tamanho, que ele e Elliott deveriam estar em uma das áreas mais ricas da cidade.

Ela esticou o pescoço para a esquerda, tentando ver o que havia mais além na rua.

- Não tem luz em lugar nenhum - cochichou ela. Elliott não tinha muita experiência nas cidades da Crosta e acrescentou: - Isto não é comum, é?

Will não respondeu de pronto, ouvindo o regougo distante de uma raposa.

- Não, sem dúvida nenhuma tem alguma coisa errada. - Quase bem à frente deles havia uma transversal ladeada por outras mansões. - Vamos dar uma olhada por ali -
sugeriu ele, depois olhou o céu. - Não sei se é cedo ou tarde, mas não quero ser apanhado ao ar livre quando a luz chegar.

- É - disse Elliott. - Me dê cobertura. - Ela correu meio agachada para a esquina da outra rua, depois montou guarda enquanto Will fazia o mesmo. Eles se meteram
contra uma parede, olhando os veículos abandonados pela rua, em cuja volta se espalhavam lixo e até algumas peças de roupa.

O olhar de Will caiu numa placa.

- Bishopswood Road? - sussurrou ele, tentando pensar se já havia ouvido isso antes.

- Significa alguma coisa para você?

Will meneou a cabeça.

- Não, mas, pelo código postal, estamos no norte de Londres, mas não tão ao norte como Highfield.

- Teve fogo aceso naquela ali. - Elliott apontou a casa do outro lado, onde pesadas sombras de fumaça manchavam a fachada georgiana branca.

- E a casa seguinte... Vê alguma coisa ali? - perguntou Will, semicerrando os olhos, tentando enxergar através da lente.

- Como queremos um lugar seguro para ficar, que tal essa bem atrás de nós? - sugeriu Elliott. - É cercada por um bom muro alto.

Will levou um momento para considerar a casa, notando que os portões pareciam firmemente fechados.

- Claro. Vamos olhar mais de perto.

Depois do muro, eles atravessaram a entrada pavimentada, olhando cada janela à procura de sinais de vida. Will experimentou a porta da frente, mas estava trancada,
e assim eles foram de mansinho até os fundos, passando no caminho por um jardim de inverno grande.

Deram numa porta dos fundos com painéis de vidro na metade superior e se achataram contra a parede de cada lado dela. Will experimentou a maçaneta, mas, outra vez,
estava trancada.

- E então... Vamos quebrar o vidro para entrar? - sugeriu ele. - E o barulho?

Ela não respondeu de pronto, e os dois ouviram a raposa que ainda regougava ao longe e o vento frio e amargo que batia nos galhos nus das árvores do jardim.

- Estou congelando, droga - grunhiu Will. - É típico, não é? Fiquei reclamando do sol e do calor por semanas e agora tenho isso. - Ele olhou o céu. - A escuridão
completa e um clima de freezer.

- Vamos lá... Quebre isso. - Elliott se decidia. - Não podemos ficar aqui fora.

- Quebrar e entrar... Lá vou eu de novo - resmungou Will. Ele jogou a coronha de metal de sua Sten contra a vidraça, fazendo uma careta enquanto os cacos caíam ruidosamente
no chão por dentro da casa. Estendendo a mão pelo buraco, abriu a tranca do lado de dentro da porta. - Pronto. Vamos entrar.

O corredor era revestido de madeira escura e tinha vários lustres. Will e Elliott se separaram e percorreram metodicamente o primeiro andar, depois se encontraram
ao pé da escada e fizeram o mesmo com os quartos do andar seguinte. Will meneou a cabeça.

- Mas isto é que é casa de ricos e famosos. Só vi lugares assim nos programas de televisão da minha mãe.

Eles escolheram o maior dos quartos e começaram a procurar roupas quentes. Will abriu uma porta no canto, descobrindo que havia um closet com lindas prateleiras
de cedro apinhadas até o alto de roupas masculinas. Ele chamou Elliott, e eles se serviram do que estava à mão, vestindo suéteres por baixo de outra camada, tentando
se aquecer.

Pelo restante da noite, revezaram-se na vigilância da porta, enquanto o outro dormia.

Will teve razão em querer procurar abrigo, porque não demorou muito para amanhecer. Desligando a lente, acordou Elliott com uma leve sacudida. Ela havia afundado
na suntuosa cama king-size, puxando um cobertor até a cabeça. Os dois desceram na ponta dos pés, a luz do exterior permitindo que vissem como o interior era extravagante.

- Não é nada parecida com a sua casa - observou Elliott, parada no piso de mármore polido do corredor enquanto Will entrava no grande jardim de inverno, que tinha
um piano de cauda, cercado por algumas palmeiras de aparência sedenta em grandes vasos de cerâmica.

- Pode apostar. - Ele riu. - Para que lado fica a cozinha?

Eles a encontraram - um cômodo de aparência incrivelmente cara com ladrilhos brancos para todo lado e eletrodomésticos igualmente brancos. E, no primeiro armário
que olharam, deram com pacotes de biscoitos de chocolate.

Will não perdeu tempo e abriu a embalagem de um deles, passando um punhado a Elliott.

- Está meio mole, mas, nossa senhora, prove esse chocolate! - murmurou Will de boca cheia. Ele se colocou de frente para as duas pias abaixo da janela, olhando o
jardim, e continuou a mastigar o pacote todo. Will mal chegou a perceber quando Elliott saiu para explorar a casa.

Mas um barulho a suas costas o fez girar o corpo.

Um homem de uns cinquenta anos, barba grisalha e cabelo embaraçado estava parado ali com uma pistola apontada para a cabeça de Will.

- O que está fazendo na minha casa? - exigiu saber em um rosnado.

Com farelos caindo da boca, Will tentou responder.

- Vi que você quebrou uma de minhas janelas. Quem é você? Uma droga de saqueador? - A voz do homem era grave de raiva. - Alguma ralé do Archway que veio aqui me
roubar?

Will conseguiu engolir o que tinha na boca.

- Não, não sou saqueador.

- Se não sair de minha propriedade, Deus me livre... Vou meter uma bala em você - ameaçou o homem, recuando um passo como se desse a Will a opção de sair sem estardalhaço.

Will suspirou.

- Por que eu sempre caio onde aparece alguém com uma arma apontada para mim? - perguntou ele, cansado.

- O quê? - bradou o homem, surpreso por Will levar a situação com tanta frieza.

E Will levava mesmo com frieza. Depois do que passara nos últimos anos, era preciso mais do que isso para abalá-lo. Em especial porque percebeu uma coisa.

- Então você vai atirar em mim com esta pistola de ar vagabunda, é? E depois? Porque não vai me machucar muito e, quando você a carregar de novo e colocar mais chumbinho,
eu terei cortado você ao meio com minha Sten. - Ele se virou de leve para permitir que o homem visse a submetralhadora pendurada no ombro.

- Isto é uma Sten? - disse o homem, agora bem menos confiante.

Houve um estalo de Elliott fazendo sua entrada, deslizando o ferrolho do rifle com o cano cutucando a nuca do homem.

- Precisa de alguma ajuda aqui, Will?

- Não, estamos bem. Eu e o barbudo aí só estamos conversando, não é?

O homem baixou lentamente a pistola de ar comprimido, mas olhou Will e depois Elliott com certa indignação.

- Se vocês querem roubar minhas roupas, não podem pegar algo além de meus melhores ternos? Esses dois são Savile Row feitos sob medida e são muito caros.

Will não tinha prestado muita atenção no que eles escolheram no armário, mas agora examinava o paletó cinza que vestia e o terno azul trespassado que Elliott escolhera,
com as mangas e as pernas da calça enroladas para caber melhor. Os dois usavam ternos elegantes.

- Desculpe - disse Will. - Não estamos aqui para roubar você, mas estávamos congelando. Era de madrugada quando chegamos e precisávamos de roupas e de um lugar quente.

- Por quê? De onde vocês vieram? - indagou o homem. - Porque não ouço veículo nenhum vindo para cá há semanas.

Will assentiu.

- É uma longa história.

O olhar do homem passou por Will até o jardim pela janela.

- Bom, se vocês não pretendem voltar para lá enquanto tem luz... O que seria um jeito muito rápido de se matarem... Sugiro que os dois venham comigo.

O homem não esperou por uma resposta, passando diretamente por Elliott e saindo da cozinha em direção a um cômodo na frente da casa. Ali, foi até uma tapeçaria pesada
na parede atrás de uma grande mesa de jantar e ergueu um canto, revelando uma porta oculta.

- Bem-vindos à minha toca - disse ele.

Depois que Will e Elliott desceram a escada, o homem fechou a grossa porta de metal, passando o ferrolho no alto e em sua base. Acendendo a lanterna, acompanhou-os
por um corredor, apontando suas várias portas.

- Cinema, adega e este é um banheiro. Já não tenho eletricidade nem gás há um mês, mas parece que o sistema de água ainda funciona.

Ele parou ao lado de uma porta sólida e bateu a palma da mão ali.

- E este é quarto do pânico.

- É o quê? - perguntou Elliott de imediato.

- É uma sala segura onde você pode se trancar em caso de emergência. Instalei para minha família depois que houve um assalto a mão armada na casa de um vizinho.
- O homem ficou em silêncio por um momento enquanto uma sombra passava por seu rosto. - Estou contando isso a vocês porque, junto com a linha telefônica direta à
delegacia de polícia, eu tinha total acesso ao sistema de câmeras de vigilância da casa. E, antes que a energia se acabasse pela última vez, consegui ver o que acontecia
na rua...

- E o que você viu? - perguntou Will.

O homem balançou a cabeça.

- Havia coisas... Não consigo descrever direito... Andando pela rua, mas não foi tanto o que eu vi, mas o que ouvi naquela noite. Os gritos e os pedidos de socorro.
- Ele baixou os olhos para os pés. - Foi horrível.

O homem pareceu se recompor e continuou pelo corredor.

- De qualquer modo, tenho uns depósitos, onde guardei toda a comida, e é aqui que estive vivendo - disse ele, jogando a luz da lanterna nas portas duplas antes de
abri-las. - A sala de jogos.

- Legal - cochichou Will ao entrarem. Iluminada por um lampião de parafina que sibilava numa mesa no meio, a sala tinha o tamanho aproximado de uma quadra de basquete.

- Foi um presente para meus filhos - disse o homem.

Numa extremidade da sala havia uma mesa de pingue-pongue e uma televisão grande com alguns video games. A outra metade da sala era menos atravancada, com uma cama
empurrada no canto e várias caixas contendo roupas e livros.

- Demais. Então isto sempre esteve aqui? - perguntou Will.

O homem meneou a cabeça.

- Fiz com que cavassem o porão quando minha família ainda morava aqui. - Ele apontou os dutos de ventilação no teto. - Embora não haja eletricidade para os ventiladores,
o ar fresco ainda passa por eles. - O homem indicou o teto com as mãos. - Como podem ver, agora mesmo estamos bem embaixo do jardim. - Depois olhou a sala. - Quando
ouvi toda a gritaria na rua, tenho vergonha de admitir que desci correndo para cá. E estive escondido aqui desde então.

- Eu não culpo você - disse Will.

O homem deu uma olhada no rádio ao lado da cama desarrumada.

- Pensei em esperar por algumas notícias antes de me arriscar lá fora, mas tudo que peguei foram estações europeias, e parece que eles não têm a menor ideia do que
está havendo aqui, no Reino Unido. - Ele tirou as roupas de duas cadeiras para Will e Elliott, depois se acomodou na beira da cama e continuou a falar.

O homem se chamava David e era evidente que estava agradecido por ter alguma companhia. Disse que morava sozinho na casa porque a esposa o deixou, levando os filhos.

- Eles foram embora há seis meses, e acho que não saio de casa desde então. Mas quando eu...

- O que é isso? - interrompeu-o Will. Partiu pela sala e viu um mapa que parecia antigo em uma moldura na parede. - Bishops Wood - disse ele, semicerrando os olhos
para o nome escrito numa área de mata. Como a legenda trazia Bifhops, com um f em vez de s, Will sabia, pelo que lhe dissera o dr. Burrows, que devia ter vários
séculos de idade. - Isso é interessante. Estamos na Bishopswood Road, não é?

- Sim, o nome surgiu de uma floresta ancestral. Quando os construtores usaram a escavadeira hidráulica para abrir o porão, encontraram alguns pedaços de madeira
muito antigos e muito apodrecidos, e os engenheiros tiveram de verificar se não estávamos destruindo nada de importância arqueológica. - David se virou para apontar
a parede bem atrás dele. - Veja bem, nesta direção, do outro lado da rua principal, fica o parque onde eles acreditavam que ficava a Bishops Wood original.

- Foi lá que estivemos na noite passada - disse Will a Elliott. - Então, havia uma floresta ancestral ali? - perguntou a David.

Ele assentiu.

- O sujeito da National Heritage disse que era uma espécie de sítio druídico datando de muito tempo atrás. - Ele fez uma careta. - E ainda por cima um cruzamento
entre duas linhas de ley, se você acredita nisso tudo.

- Acho que estou começando a acreditar - disse Will, provocando um olhar de Elliott.

David esfregou as mãos.

- Bom, não sei quanto a vocês, mas o frio está começando a me pegar. Em geral eu me enrolo em alguns cobertores à noite para me aquecer, mas uns goles frequentes
de alguma coisa quente também dão algum alívio. Alguém se interessa?

Quando David foi preparar um chá para os dois em um dos outros cômodos, ela se virou para Will.

- O que é essa história de linhas de ley? O que são?

- Meu pai pensava que essas teorias eram um monte de asneira. As linhas supostamente ficam onde a energia da Terra é canalizada ou coisa assim - respondeu Will.
- Tinha um livro que dizia que em geral aconteciam rituais nesses lugares, e alguns monumentos antigos, como Stonehenge, foram construídos onde corriam essas linhas.

Ela balançou a cabeça.

- Não entendo. O que elas são, exatamente?

Will respirou fundo.

- Parece muito excêntrico, mas o livro dizia que marcavam o lugar em que o povo neolítico pensava que a energia natural fluía pela terra. Energia mágica, se preferir
chamar assim. - Ele sorriu. - Se passamos pelo cruzamento que David mencionou, talvez eles tivessem razão. Quem sabe essas linhas de ley são mesmo uma fonte do poder,
e ele vem de sua torre no centro do mundo?

David voltou equilibrando três canecas de chá fumegante numa bandeja, e eles beberam, apreciando.

- Então, me diga... Estou morrendo vontade de saber como vocês vieram parar aqui - perguntou ele.

Will rapidamente lhe contou sobre os Styx e a Colônia, deixando de fora qualquer coisa sobre o mundo interior e a Nova Germânia porque teria sido demais para o homem
digerir.

- Então, vocês subiram à superfície aqui pertinho - disse David. - Considerando o que aconteceu por aqui, acho que estou disposto a acreditar em tudo. Mas para onde
vão agora?

Will passou a palavra a Elliott com um gesto.

- Pergunte a ela... É ela que tem o plano.

 

Capítulo Quatorze

 

A luz desaparecia rapidamente quando eles foram ao jardim. Will e Elliott usavam outras roupas de David - calças de veludo cotelê e sobretudos grossos por cima dos
suéteres -, dessa vez, tomadas com as bênçãos dele.

Os dois esperaram pelo cair da noite, depois se despediram de David e deixaram o porão pela porta da sala de jantar. Um cheiro de queimado permeava o ar fresco enquanto
eles andavam para os fundos da casa. Will olhou o gramado por onde seguiam, pensando que era estranho que David estivesse logo abaixo, escondido em sua versão moderna
de uma caverna, na esperança de que tudo de algum jeito voltasse ao normal. Will se perguntou quantos outros faziam o mesmo por todo o país.

- Só um segundo - disse Will, cavando fundo em um dos bolsos laterais da Bergen. Ele sorriu ao encontrar o que procurava e, como se estivesse prestes a fazer um
truque de mágica, mostrou, com um floreio, uma caixa preta e pequena.

- Isto é o que eu estou pens...? - perguntou Elliott, olhando a caixa do tamanho de um baralho onde se pendurava uma antena de fio.

- Claro que sim - interrompeu-a ele. - Eu tinha esquecido completamente que ainda tinha alguns radiofaróis, até que peguei a lente de Drake. - Will ergueu o dispositivo
eletrônico. - Este era um sobressalente para o caso de precisarmos de outros para marcar a rota para o mundo interior. - Ele encontrou o interruptor minúsculo ao
lado da antena e mexeu. - Pronto - disse ele. - Está ativado.

Elliott franziu a testa para o radiofarol.

- Acha que essa é uma boa ideia?

Will deu de ombros.

- Além de irmos a pé à casa de campo de Parry na Escócia... o que pode ser uma completa perda de tempo, porque ele provavelmente nem voltou para lá... não temos
como informar a ele ou a Eddie que voltamos à Crosta, temos? - Will jogou o transmissor por uma curta distância para cima e o apanhou. - Mas nunca se sabe... Eles
podem captar o sinal emitido por isso. E, se acontecer, o radiofarol os trará diretamente a nós.

Elliott assentiu.

- Acho que não temos nada a perder... A não ser que os Styx também possam rastrear o sinal.

- Acho que devemos correr esse risco - disse Will, sem acreditar nem um pouco que houvesse algum.

 

Apitava um alarme insistente pelo andar. Como uma bala, Danforth foi à tela onde o indicador piscava. Silenciando o alarme, ele empurrava de lado quem ocupava a
estação para ver a tela direito quando o Velho Styx entrou na sala.

- O que foi isso? - exigiu saber.

- Um VLF... Um sinal de frequência muito baixa - respondeu Danforth com certa surpresa, olhando a longa onda serpenteando pelo fundo da grade na tela. - Mas, segundo
os sensores, não tem nenhuma subcodificação.

- E isto significa o quê? - disse o Velho Styx.

- Não transporta nenhuma informação. É apenas uma espécie de marcador. - Ele indicou a tela seguinte na mesa. - E acaba de vir de Londres.

- Alguma ideia de quem possa ser? - disse o Velho Styx. - É de origem militar?

- Eu não saltaria necessariamente a essa conclusão. Não é uma frequência que eles usem... É tão baixa que está arranhando bem a base do espectro.

A verdade era que Danforth sabia muito bem o que devia ser, porque desenvolveu a tecnologia VLF usada nas várias missões ao mundo interior, em particular a última
para lacrá-lo. E não podia contar ao Velho Styx por que ficou tão interessado nessa nova revelação; significava que alguém tinha voltado da última missão. Era o
primeiríssimo sinal de sobreviventes.

Se Danforth previsse que um dos radiofaróis apareceria na superfície desse jeito, teria limitado a amplitude dos detectores ou programado um ponto cego para escondê-los.
Ele só desejava não ter sido tão meticuloso quando supervisionou a instalação do sistema de detecção para os Styx, mas queria provar seu valor a eles.

- Vai fazer algo a respeito disso? - perguntou ele ao Velho Styx.

- Sabemos onde está... Podemos despachar alguns Armagi ao local para dar uma olhada, mas não é prioridade neste momento - disse o Velho Styx, entrelaçando os dedos
brancos e compridos na frente do peito. - Porque tenho algumas novidades agradáveis para você.

 

Danforth esperou que ele continuasse.

- Decidimos dar início à ofensiva ao GCHQ. Iremos ainda hoje, mais tarde. E sei que você gostaria de ir também.

- Isso é maravilhoso. Obrigado. - Danforth assentiu, embora fosse um dos últimos lugares na Terra em que quisesse estar.

 

Drake estava recostado na cerca que ladeava o campo, escorando-se com o braço saudável enquanto era tomado por um enjoo violento.

Jiggs o olhava com preocupação; a náusea claramente se intensificava, exatamente como ele esperava.

- Nosso amigo grandalhão de Norfolk teve razão em nos providenciar um transporte antiquado - resmungou Drake sem olhar para cima. - Mas isso é que ser jogado de
volta à Idade Média.

- Eles cumprem o serviço - respondeu Jiggs.

Drake gemeu.

- É claro, mas ser sacudido por esse bicho desgraçado não está me ajudando nem um pouco.

- Não dê ouvidos a isso. Ele não fala sério, meu chapa - sussurrou Jiggs para o cavalo de Drake ao acariciar seu pescoço. Jiggs segurava as rédeas tanto de sua montaria
quanto a do amigo enquanto esperava que Drake se recuperasse. - Na verdade, ele acha que você é um cavalo maravilhoso. Só está fora de si por um momento - acrescentou
ele num tom de conspiração ao cavalo.

- Se está falando de mim pelas costas a esse refugiado de uma fábrica de cola, eu não v... - Drake parou quando a cólica no estômago o fez se recurvar de novo.

Jiggs meneou a cabeça com tristeza, desejando poder fazer mais pelo amigo. Eles passaram bem longe das estradas principais e de qualquer área construída, o que não
era o ideal, porque uma boa dose de antieméticos de uma farmácia ou de um hospital teria melhorado a condição de Drake.

Embora não precisasse realmente consultá-lo graças a seu senso de orientação excepcional, Jiggs tirou um mapa do bolso e verificou novamente a rota pelo interior
que pretendia tomar até a casa de Parry na Escócia. Em circunstâncias normais, naturalmente eles teriam se dirigido para Londres porque seria um bom lugar para procurar
saber do paradeiro de Parry. Mas, se as coisas estavam tão ruins no sul como deram a entender o homem corpulento e os moradores, não era um lugar em que Jiggs quisesse
se meter, não com Drake naquelas condições. Assim, decidiram que a casa de campo de Parry era o melhor destino; mesmo que Parry não estivesse lá, deveria haver um
ou dois telefones por satélite escondidos na casa.

Jiggs guardava o mapa quando ouviu um estalo fraco perto dali.

- Ei, o que é isso? - perguntou ele, franzindo o cenho. Escutou atentamente e quando o estalo soou de novo alguns segundos depois, ele percebeu que devia vir da
Bergen amarrada no dorso de seu cavalo.

Drake se arrastava de volta e encontrou Jiggs no meio dos cavalos, com a Bergen entre os pés, olhando um rastreador.

- Isto acaba de acordar - disse Jiggs, erguendo o dispositivo para que Drake visse o ponteiro, que mostrava flutuações mínimas na extremidade inferior da escala
e emitia um surto ocasional de estalos, como um grilo sonolento.

- Qual é a direção do sinal? - perguntou Drake com a voz fraca. - Deve ser um eco de um dos radiofaróis subterrâneos.

- É o que me surpreende. Não creio que seja isso. - Jiggs girou noventa graus para o lado de onde eles vieram, mantendo o rastreador diante de si. - Na realidade,
tem origem no sul.

- No sul? - repetiu Drake.

Jiggs deslocou o rastreador em pequenos movimentos até que o sinal ficou mais forte e produziu um tique-taque constante, com o ponteiro permanecendo extraordinariamente
firme.

- Não há dúvida da direção. E, pela posição, eu apostaria que a origem é Londres.

- Ora essa, como você sabe? - Drake se entusiasmou visivelmente. - Mas o único motivo para alguém ter ativado o radiofarol na superfície é querer chamar atenção...
A nossa, porque, quem mais pode ter a tecnologia para localizar um sinal VLF, ou mesmo estar à procura de transmissões nessa extremidade da escala?

- E nenhum dos radiofaróis ficou na superfície, não é? Todos foram levados para o mundo interior. Então, como esse encontrou o caminho de volta? - disse Jiggs, prevendo
a segunda questão que Drake estava prestes a abordar.

- Eddie e eu conseguimos localizar e resgatar Chester de Martha graças ao radiofarol dele, mas desta vez não é o de Chester. Assim, tem de ser de alguém de nossa
equipe - concluiu Drake. - Alguém conseguiu voltar para casa, mesmo depois das explosões nucleares.

- Will? - sugeriu Jiggs.

Drake deu de ombros.

- Ou Elliott, ou Sweeney... Ou, se nossa missão foi um fiasco retumbante, não poderiam ser os Styx? - Ele se impeliu para montar no cavalo. - Só há um jeito de descobrir.
Vamos para Londres.

- Sente-se capaz disso? Seria mais sensato ficarmos com o plano original e irmos para a casa do seu pai.

- Nem pensar. - Drake estendeu a mão para acariciar a crina do cavalo. - Só queria que esta coisa tivesse uma suspensão melhor.

 

- Então, me diga - sussurrou Will -, agora já pulamos um total de quatro cercas e passamos por três quintais, mas para onde estamos indo? Você sabe mesmo?

Desde que saíram da casa de David, Elliott os levava colina acima pelos jardins dos vizinhos para evitar a rua. Sem hesitação nenhuma, ela agora levantava o braço
e apontava.

- Sim, para ali.

- Algum motivo em particular para você querer este caminho? Porque não estamos muito seguros aqui fora, sabe disso.

Elliott ia responder, mas ele colocou gentilmente o dedo em seus lábios.

- Não se preocupe... Não precisa me responder. Lembre que sou apenas um humano inferior, estou aqui para fazer sua vontade.

- Ah, cala essa boca, Will. - Ela se esquivou de suas mãos, mas sorriu.

Ela foi à frente, e ele a seguiu sem questionar. Os dois treparem pela cerca seguinte e caíram em silêncio do outro lado.

Essa casa era imensa, mesmo se comparada à de David, mas Will notou algo ao examiná-la pela lente.

- Asilo - observou ele ao ver um único andador na varanda. Estava na frente do jardim de inverno que corria por todo o fundo da propriedade, em que muitas poltronas
foram colocadas de frente para o jardim.

- Tínhamos alguns em Highfield para os idosos, mas por que esse andador ficou do lado de fora? - perguntou-se Will e, examinando mais detalhadamente os fundos do
prédio, viu que havia vários outros andadores na varanda e no gramado, porém caídos. E algumas vidraças do jardim de inverno estavam quebradas.

- Para onde será que eles foram? Os velhos? - murmurou ele consigo mesmo; Elliott estava mais à frente e fora de alcance enquanto eles continuavam em movimento,
repetindo o processo de trepar pelas cercas e atravessar um jardim depois de outro.

Eles tinham acabado de pousar em outro gramado quando Will parou de repente.

- Nossa! - Ele perdeu o fôlego, ajustando a lente sobre o olho enquanto a lua rompia as nuvens e banhava a cena com uma luz etérea. - Nos-sa - disse de novo para
os animais de topiaria que pontilhavam o jardim. Havia um frango e uma águia de frente um para o outro, mas era impossível ver o que seriam as outras criaturas porque
os arbustos não eram aparados havia algum tempo. Will e Elliott andaram entre eles, conscientes das janelas escuras da casa; parecia que eram observados.

Will começou a se interessar.

- O jardim é muito legal, mas dá só uma olhada nisso. - O telhado se erguia a um ponto agudo, com beirais ornamentados, entalhados em madeira escura. E todas as
janelas eram estreitas e estilizadas.

- É só uma casa - respondeu Elliott.

- É, mas parece de conto de fadas. Meu pai teria dado qualquer coisa para morar num lugar assim - disse Will. - Um ótimo exemplo da arquitetura gótica - acrescentou,
muito parecido com o dr. Burrows.

Como todas as outras casas, esta parecia desocupada, mas era impossível ter certeza. Elliott se voltou para o edifício e o olhou com atenção antes de partir para
ele. Will correu para alcançá-la, segurando seu braço.

- Humm, acho que não devemos entrar - disse ele -, se é o que você está pensando.

Elliott apontou a casa com a mão.

- Por que não? Ouvimos o que disse David, mas você não acha que nós mesmos temos de descobrir o que aconteceu? Afinal, ainda temos um longo caminho pela frente e
precisamos saber o que estamos enfrentando.

- Precisamos? Nós? - Will tentou dizer enquanto Elliott de repente partia a toda velocidade para a casa. Com um grunhido de exasperação, correu atrás dela.

Encontraram a porta da frente aberta. Por um momento, quando olhou o primeiro andar, Elliott pareceu tomada pela hesitação, e Will pensou que ela mudava de ideia.
Mas ela soltou a trava de segurança do rifle e partiu para dentro.

Eles entraram juntos, com as armas preparadas. Não havia hall de entrada, mas uma sala grande que parecia se estender pela maior parte do andar térreo. Will viu
um piano de cauda magnífico à frente de muitas prateleiras de livros, depois seu olhar parou na parede mais distante.

- Olha só ali - disse. Armários com portas de vidro se estendiam pela parede. Por um momento, ele se esqueceu de onde estava, incapaz de resistir a um exame mais
atento dos artefatos arqueológicos protegidos pelos armários. Fragmentos de potes vitrificados, ferramentas e joias estavam à mostra. - Romano - observou ele, espiando
o primeiro armário e partindo para o segundo. - Grego, acho... É... E estes vasos podem ser etruscos. Incrível - murmurava ele sem parar.

- É, incrível - disse ela, mas com pouco entusiasmo. Estava evidente que um apaixonado por história morou ali, mas isso não era hora de ficar refletindo sobre o
assunto.

Em particular porque, enquanto Will ia de um armário a outro, vendo ansiosamente os diferentes objetos, Elliott encontrou algo inquietante. Não tinha notado antes,
mas vários móveis foram derrubados em direção ao interior da sala, e seu apurado senso de perigo entrou em alerta quando ela localizou um rastro escuro no piso de
madeira encerado. Examinando com mais atenção, descobriu que o rastro era de terra e possivelmente sangue, traçando uma rota da porta de entrada à escada.

- Vou subir para dar uma olhada lá em cima - informou ela a Will, apontando o piso superior.

- Encontro você daqui a pouco - disse ele.

Ela subiu a escada, achando no caminho um sapato abandonado e uma dentadura. No alto da escada, havia um patamar largo que levava a um corredor igualmente largo.
A luz da lua entrava por grandes janelas panorâmicas em cada ponta, permitindo que ela enxergasse por onde seguia o rastro escuro.

Ela meteu a cabeça em cada cômodo ao se deslocar pelo corredor, descobrindo que estavam vazios e as camas, arrumadas. Mas então, pela metade do corredor, o rastro
escuro subia por uma pequena escada de madeira entalhada ao andar seguinte, que ela supôs ser o sótão. Apontando o rifle à frente, subiu a escada.

Porém, ao chegar no alto, seu pé ficou preso em alguma coisa, e ela tropeçou. Tentando impedir a própria queda, seu dedo torceu contra o gatilho, e o rifle disparou.

O tiro ressoou ensurdecedor pelo salão.

- Merda! - exclamou Elliott, rapidamente se endireitando.

Estava frio. As claraboias no teto inclinado de cada lado dela estavam quebradas, e o sótão se encontrava exposto ao clima.

E isso explicava por que ela não havia sentido o cheiro dos muitos cadáveres em vários estados de decomposição.

Ela fora derrubada por um dos corpos estendidos pelo alto da escada, mas havia outros em toda parte.

Alguns estavam semidevorados, outros cheios de vida - larvas Styx escavando dentro deles.

- Mer... - dizia ela de novo antes de engolir as próprias palavras ao perceber a confusão em que havia se metido.

Evidentemente os Armagi trouxeram os ocupantes das casas àquele lugar para se reproduzir. Alguns infelizes foram impregnados, enquanto outros serviam de alimento.
E muitas vítimas eram idosas, como ela podia ver pelo cabelo grisalho fino e as feições envelhecidas. Isso explicava por que o asilo estava vazio.

Um gemido terrível surgiu a uma curta distância dali. Ela girou para a área do teto mais próximo.

Um dos Armagi mais novos - uma criatura parecida com um lagarto, com cerca de um metro e vinte do nariz à cauda - estava preso ao teto. Sua cabeça balançava para
ela.

A cabeça de uma criança humana.

Suas narinas inflaram, e a língua bifurcada lançava-se na direção de Elliott.

A criatura gemeu de novo, e mais um lagarto respondeu o chamado, em seguida outro. O barulho de seu rifle os assustou. Ela via isso em seus olhos brilhantes.

Eles estavam por todo lado, cerca de vinte, mas de maneira nenhuma ela ficaria ali para contar. E todos subiam pelas vigas do telhado, observando-a por suas pupilas
em fenda, as bocas molhadas de sangue.

Além dos lagartos, ela teve vislumbres de objetos grandes metidos pelos cantos do telhado. Pareciam casulos de mariposas ou borboletas, mas numa escala gigantesca.

Então ela ouviu Will chamando seu nome, mas permaneceu completamente imóvel.

O lagarto mais perto dela a farejava, mas parou de gemer. Porém, alguns outros continuaram em um padrão aleatório, como galinhas quando são perturbadas. Era claro
que os jovens Armagi ainda estavam muito alarmados com seu aparecimento.

O lagarto farejou Elliott mais uma vez. Ela se preparou, se perguntando se a criatura estava prestes a usar nela suas fileiras de dentes finos.

E então aconteceu uma coisa extraordinária. O Armagi pareceu simplesmente perder o interesse, correndo ao cume do telhado com um ruído de tac-tac dos pés em garra
cravando-se na superfície.

Elliott continuou imóvel, não se permitindo nem mesmo respirar.

A voz em pânico de Will surgiu novamente do andar de baixo. Elliott ouviu uma porta bater - isso pareceu agitar os lagartos mais uma vez, fazendo-os correr para
todo lado. Depois outra porta bateu no andar de baixo. Will procurava por ela. É claro que procurava - ele ouviu o disparo do rifle.

E a qualquer momento ele subiria a escada e entraria no sótão.

Elliott precisava fazer alguma coisa.

Ela recuou um passo, depois outro, erguendo o pé sobre o cadáver ensanguentado. Agora estava na escada de madeira. Girou o corpo e se lançou para baixo, esbarrando
diretamente em Will ao pé da escada.

- Pelo amor de Deus! - exclamou ele. - Onde você estava... O que aconteceu?

- Cale a boca. - Ela o empurrou para trás. Continuou até que ele estava contra a parede do corredor, onde seu ombro derrubou uma pintura no chão.

Enquanto a tela caía com estrondo no piso de madeira, Elliott se apertou com força nele, de modo que Will ficou espremido entre seu corpo e a parede.

- Isto não é hora nem lugar pa... - disse ele com um riso nervoso.

- Idiota - rebateu Elliott, ouvindo a agitação no andar acima.

Ela ficou petrificada de medo que eles viessem num enxame pela escada de madeira. Mais do que isso, porém, ela sabia - com uma certeza quase absoluta - que os chamados
dos lagartos assustados eram uma convocação aos Armagi adultos. Ela sabia disso porque os gemidos dos lagartos a atingiram profundamente, algo que julgou impossível
de ignorar, como se as criaturas jovens fossem seus próprios filhos, seus próprios bebês, pedindo sua ajuda.

- Acho que posso salvar você - disse ela a Will. Agora Elliott chorava, sua respiração era curta.

- Você pode o quê? - perguntou ele.

- Os Armagi estão vindo. Eles vão te pegar - rebateu ela.

- Eu? Bom, vamos dar o fora daqui - gritou ele.

- Você não conseguiria escapar deles. - Ela ofegava.

- E você? Por que também não você?

- Não sei. Vou ficar bem. - Ela procurou pela cintura de Will. - Onde está sua faca? Passe logo ela para mim! Rápido!

Will alcançou a bainha no cinto e a sacou.

Elliott arrancou a faca da mão dele e tirou a luva. Segurou a faca na palma da mão e pressionou firme, cortando a mão aberta.

- O que... Por quê? - Will engasgou, vendo que o corte foi fundo. Ela estendeu a mão para o rosto dele, passando seu sangue em Will, sujando suas bochechas.

- Mas o quê...? - gritou ele.

- Fique quieto - sussurrou ela com urgência. - Eu posso ouvi-los.

E Will também podia. A não ser que fosse o vento, ele tinha certeza de que havia um zunido. Algo estava mesmo vindo.

Ela continuou a abrir e fechar a mão para produzir mais sangue, espalhando por todo o corpo de Will, pelos braços e pelas coxas.

- Se eu conseguir enganá-los a pensar... - dizia ela quando eles ouviram um baque alto de cima. Alguma coisa tinha pousado no telhado.

- É ele? - perguntou Will. Sem saber o que fazia, tentou se afastar de Elliott, procurando se desvencilhar dela e da parede.

- Não, pelo amor de Deus, fique parado. - Ela cerrou os dentes ao correr a ponta da faca mais uma vez pela palma da mão. Mais sangue fluiu dali, e ela passou a mão
pela cabeça dele, sujando todo seu cabelo branco.

- Fique inteiramente parado - chiou ela mais uma vez.

Houve dois estrondos, o chão sob seus pés vibrando a cada impacto.

Dois Armagi entraram voando pelas janelas de cada lado do corredor.

Will e Elliott mal se atreveram a respirar, que dirá se mexer.

Eles ouviam e sentiam cada impacto dos pés em garra de grifo dos Armagi, as criaturas temíveis avançando pelo corredor dos dois lados. E, pela lente, Will distinguia
melhor sua aparência à medida que se aproximava, as plumas transparentes cintilando ao luar, os músculos dos braços e das pernas deslizando entre si como placas
de gelo polido.

Um deles foi diretamente à escada de madeira, o outro se aproximava de Will e Elliott. Ela estava de costas para o que vinha pelo corredor e não conseguia ver.

Mas Will via.

O piso de tábua corrida rangia sob o peso do Armagi que vinha para eles e parou bem atrás de Elliott. Com a estatura de um homem alto, tinha olhos compostos de um
inseto, e agora eles estavam pousados em Will e Elliott.

Sua cabeça era transparente e, através dela, podia-se ver a parede do corredor, mas no interior do crânio eram bombeados fluidos, e alguma coisa pulsava como um
coração preto e mínimo bem no alto do exoesqueleto.

Will via o Armagi com muita clareza através da lente. Tinha o bico de uma ave. Porém, enquanto ele dava outro passo para Elliott, Will viu que não era um bico maciço,
porque tinha se aberto em quatro mandíbulas de inseto.

O corpo de Elliott enrijeceu contra o de Will enquanto o Armagi inclinava a cabeça e raspava o par superior de mandíbulas pelo alto do ombro de Elliott. Ao mesmo
tempo, puxava o ar, farejando.

Depois ficou parado por um momento, como se tivesse apanhado um cheiro.

Will não conseguia respirar - não se atrevia a isso.

O Armagi se afastou dele e de Elliott, dando um quarto de volta. Tinha um pequeno par de varetas transparentes na nuca - eram do diâmetro de agulhas de tricô. Will
observou quando começaram a bater, cada vez mais rápido, até que se moviam a tal velocidade que se tornaram um borrão. Vibravam juntas, mas ele não conseguia ouvir
nada. Ele se perguntou se Elliott poderia ouvir. Depois percebeu que não eram diferentes das pernas de inseto que brotavam do mesmo ponto da coluna das mulheres
Styx.

Mas Will não podia pensar nisso agora. Por um momento atreveu-se a acreditar que ele e Elliott escapariam com vida. Ou, se Elliott pensasse que não havia perigo
para ela, ele talvez conseguisse escapar.

Mas então o Armagi girou novamente para os dois, sua cabeça se virando num movimento repentino que lembrava o dos répteis.

Ele farejou Elliott de novo. Em seguida, por um tempo mais longo, ficou postado ali, observando os dois.

Will não sabia se o plano de Elliott estava dando certo e se a criatura estava confusa ou se estava prestes a atacá-los e dilacerar a ambos. Era como tentar adivinhar
as emoções de uma estátua pesada que estava prestes a desabar e esmagá-los.

Will sentia o coração de Elliott martelando contra o dele e o sangue dela escorrendo por seu rosto. O olho da lente estava protegido, mas o outro, não, e parte do
sangue escorrera para lá. Ele teve uma vontade desesperada de piscar, mas não podia.

E então, com outro estalo alto, o Armagi disparou escada acima e desapareceu ali.

Só então Will se atreveu a soltar a respiração.

- Eles se foram - sussurrou, mal sendo audível, piscando algumas vezes.

Elliott não disse nada por um momento, depois respondeu no mesmo volume baixo.

- Temos que sair. Agora.

Ela se afastou dele, e, juntos, os dois foram na ponta dos pés pelo corredor, descendo a escada e passando pela porta da frente. Agora ao ar livre, treparam pelo
muro baixo da frente da casa e continuaram por várias outras entradas até chegarem a um jardim de grama alta, onde podiam se esconder e recuperar o fôlego.

Will viu Elliott tentar mexer a mão, estremecendo de dor. De um bolso do casaco, ele pegou um dos lenços de David de que tinha se servido e, delicadamente, enfaixou
a palma da mão dela. Depois a segurou em seus braços.

Por fim, quando Will começou a relaxar, falou:

- Bom, isso foi louco. - Essa simples declaração soprou por seus lábios, seu alívio tão grande que ele teve vontade de rir. Mas não o fez. - Pelo menos agora a gente
sabe como são os Armagi.

Elliott murmurou alguma coisa, mas Will não entendeu.

- E não entendo como você sabia o que fazer lá... O truque com seu sangue - acrescentou.

Ela continuou em silêncio.

- Mas obrigado - disse ele.

 

Enquanto Drake estava deitado no chão, de olhos fechados, Jiggs olhava a rodovia distante pelo binóculo.

- Tem dois caminhões no acostamento... Depois temos um transporte militar e alguns carros em uma pequena pilha... Mas nada se mexe.

Os cavalos pastavam, e um deles bufou alto. Drake fez o mesmo e falou:

- Então, se trocarmos os cavalos por um carro, podemos chegar lá em menos de uma hora. Isso se aqueles Armagi irritantes não tiverem um fraco pelos motores.

O cavalo bufou de novo.

- Já chega mesmo - concordou Jiggs. - Se você achar que isso é demais, podemos abandonar a ideia de ir a Londres. Não sei que diabos vamos fazer quando chegarmos
à periferia. Com Armagi pra todo lado? Vai realmente abrir caminho à força até o centro? E para quê?

- Para encontrar alguém com um telefone por satélite ou algum militar entocado?

- Se sobrou realmente alguém - argumentou Jiggs.

- Deve ter sobrado... - Drake gemeu ao se sentar. Um dos curativos na cabeça ficara frouxo e batia na brisa. Ele o puxou, examinando as manchas com repulsa. - Isso
não está melhorando nada.

- É uma queimadura de radiação. Leva tempo para se curar - disse Jiggs.

- Se a coisa não melhora, isso não adianta de nada. - Drake virou-se para Jiggs quando algo lhe ocorreu. - Acabamos de sair de Cambridgeshire e estamos em Essex...
Não é isso?

Jiggs assentiu.

- Tenho uma sugestão. Lembra-se daquele trem subterrâneo secreto em que meu pai nos levou, que passava por dentro de Londres? Aquele que o governo construiu durante
a Guerra Fria para eles poderem salvar a própria pele se a Rússia atacasse?

- Sim, claro que me lembro. Ia até a Torre BT. Eu estava no trem com você - disse Jiggs com um sorriso irônico.

- Ah, sim, esqueci. O homem invisível. Então, me diga, qual é a distância aproximada da estação a partir daqui?

- Oitenta quilômetros. Mas não tem eletricidade, então o trem não vai andar.

- É claro que não, mas e se estivermos montados nos cavalinhos e corrermos por ali, depois usarmos o túnel? Podemos percorrer todo ele a pé - propôs Drake. - Certamente
é melhor do que ser bombardeado por Armagi quando chegarmos aos subúrbios.

Sem dizer mais nada, eles voltaram a montar nos cavalos e partiram para a estação secreta sob a represa.

 

- Está tão silencioso - disse Will enquanto eles continuaram escondidos nos limites tomados de mato na frente da casa. - Isto é Londres. Em geral haveria carros,
vozes...

Mais pelo choque do que por qualquer outra coisa, ele falava numa tentativa de preencher o silêncio, mas se interrompeu ao perceber que não tinha nada a acrescentar.
Então começou a limpar o sangue de Elliott do rosto com a manga da camisa.

Levou algum tempo até que ela falasse, mas agora Elliott pigarreava.

- Não faça isso - disse ela.

Ele a olhou através da lente, mas não perguntou por quê.

- Você não teria acreditado no que havia naquela sala - disse ela numa voz monótona. - Lagartos Styx como aquele no depósito que mordeu o pai de Chester. Larvas...
Em corpos, e a maioria dos corpos era dos velhos da outra casa. Eles foram levados para lá. E aqueles casulos grandes. Havia Armagi dentro deles, esperando para
eclodir. - Ela estremeceu. - Mas os corpos eram simplesmente horríveis... Eram muitos e estavam meio devorados... Simplesmente horrível.

Will assentiu.

Ela ajeitou o curativo do lenço que ele colocara em sua mão ferida.

- E o estranho é que eu de alguma forma sabia no que estava entrando. Tive um pressentimento do que ia descobrir naquela casa... Lá em cima...

- Você teve? Mas não entendo. Por que, então, chegamos perto dela?

- Eu precisava. Era como se eles estivessem chamando por mim. - Ela tentou explicar, mal terminando a frase quando deixou escapar: - Oh, Will, você devia estar com
Stephanie, e não comigo. Eu não sou igual a você. Sou outra coisa. Sou um monstro, e não é bom que você esteja comigo... Eu sou perigosa.

Will engoliu em seco, pouco à vontade.

- Stephanie... O quê? - Ele conseguiu soltar.

Elliott balançava a cabeça lentamente.

- Eu vi que você gostou dela - disse ela, depois baixou a voz. - E sei que vocês dois ficaram algum tempo juntos quando estivemos presos no Complexo.

Atingido por essa bomba, Will ficou sem fala por um momento, depois balbuciou.

- Não, eu não... Acho que ela queria... Mas nada...

Elliott se curvou para ele, o ombro tocando seu braço.

- Está tudo bem.

- Não, não está.

- Está, sim. Na verdade, está tudo bem. Porque não posso lhe dizer quanto tempo temos juntos. E você não deve ficar sozinho - disse ela, sua voz mal sendo audível.

- Não acredito nisso! - protestou Will, ficando muito aborrecido.

- Não fale tão alto - avisou ela. Olhou o telhado da casa gótica, visível pela rua. - Os Armagi ainda estão lá, e não queremos que eles venham nos procurar. - Ela
se levantou. - Eu não devia ter trazido você comigo. Se pudesse, levaria você de volta.

Will balbuciava de indignação.

- O qu... O que quer dizer... Está falando como se tomasse conta de mim ou coisa assim!

Jogando a cabeça para trás, Elliott olhou o céu noturno.

- E estou - disse ela simplesmente. - De todos vocês. Porque eu posso dar um fim a tudo isso. - Ela baixou os olhos a Will. - E agora sei que posso proteger você
dos Armagi. Posso fazer isso. - Ela estendeu a mão ferida como se a considerasse. - Mas não posso fazer nada contra os Limitadores, nem por mim, nem por você. Assim,
temos de seguir devagar e ter o maior cuidado possível e só nos deslocarmos à noite. E precisamos de um lugar seguro antes do amanhecer.

 

Ouviu-se um estalo abafado quando a tranca explodiu na porta de ferro. Na realidade, o barulho da porta se abrindo nas dobradiças e batendo na parede ao lado foi
mais alto e mais perceptível.

- Muito bem-feito - disse Jiggs, e ele e Drake rapidamente foram aonde o pequeno explosivo plástico tinha sido detonado. Os dois pararam para olhar a escada de concreto
esfarelado no espaço à margem do reservatório, onde a porta aberta agora esperava por eles.

- Podemos entrar - disse Drake, e eles desceram a escada úmida. Depois de vários lances, deram numa estação de trem. Percorreram a plataforma com a luz das lanternas,
encontrando abandonados grandes tambores de cabos, sacos de areia apodrecidos e peças de metal enferrujado, e viram o trem em que andaram em sua jornada anterior
até a Torre BT.

- É estranho estar aqui de novo sem Elliott, Will e o resto da equipe - disse Drake. - E nenhum sinal daquele cara da Velha Guarda que cuida do lugar. Parry disse
que ele efetivamente mora aqui embaixo.

- Talvez tenhamos chegado na hora do chá - brincou Jiggs. - Vamos por aqui. - Eles passaram à extremidade da plataforma.

- Nas entranhas do inferno - sussurrou Drake e, por um momento, os dois ficaram parados, olhando a escuridão funesta à frente da locomotiva. A alvenaria em volta
do túnel estava manchada de cal e erupções, e o ar fedia a água estagnada.

- Parece que passei a minha vida toda entrando em lugares escuros onde eu não queria - disse Drake, cansado. - Imagino que não haja motivo para que isso mude.

Jiggs bateu o pé como se tivesse energia suficiente para os dois.

- Vamos lá, Drake, ânimo, meu velho. Não dizem que há uma luz no fim do túnel?

- Não acredite nisso. Eles não sabem do que estão falando.

 

Capítulo Quinze

 

Martha explodia de empolgação ao voltar para a casa da fazenda.

- Venha comigo, meu queridinho, venha comigo - berrou ela, acenando para Chester. Stephanie notou que as mãos de Martha estavam encardidas e sujas de sangue; o que
sem dúvida significava que outra ovelha encontrara seu fim e ia para a panela. - Tenho uma novidade para você!

Ela passou os braços em volta de Chester e o apertou enquanto ele a olhava impassivelmente.

- Bom, você tem? - perguntou ele.

- Sim, eu tenho! - exclamou Martha. - Parece que uma de minhas fadas pegou o rastro de seu homem abominável.

- Danforth? Tem certeza? - Toda a atitude de Chester se transformou. - Você realmente o pegou por mim?

- Sim, minha fada pode nos levar a ele - respondeu ela.

- Ah, sua mulher maravilhosa - gritou Chester, só agora correspondendo ao abraço de Martha. Ele apertou o rosto contra o dela. - Eu poderia devorar você!

Cuidado com o que diz, pensou Stephanie ironicamente consigo mesma. Ela também pode devorar você! Stephanie já soubera da tendência de Martha por carne humana, mas
não havia pensado muito nisso até conhecer a mulher. Agora ela via que Martha era bem capaz disso.

- Então, onde está? Onde está Danforth? - perguntou Chester.

- Não posso lhe dizer a que distância está, mas minha fada pode nos mostrar.

- Como isso funciona? - O tom de Chester foi um tanto ríspido, como se de repente começasse a duvidar do que ela lhe contava. - Suas fadas falam com você ou coisa
assim?

Martha assentiu.

- De certo modo, sim, elas falam. Veja só, eu aprendi a entender os sinais que trocam entre si... Elas também fazem para mim. E uma fada acabou de voar de volta
a mim enquanto a outra ficou montando guarda do abominável para nós.

Chester aparentou satisfação com a resposta, e Stephanie balançou a cabeça enquanto os dois continuavam num abraço apertado, soltando murmúrios. Ambos estavam desequilibrados
ao próprio modo: Martha porque perdeu o filho e foi submetida a anos de isolamento, Chester devido ao que passou nas mãos dos Styx, culminando com a morte dos pais.
Duas pessoas, ambas profundamente feridas, unidas pela perda. Mas Stephanie não se enganava e sabia que a relação dos dois era muito delicada, como dois pratos girando
em varetas lado a lado. A qualquer momento, qualquer um dos pratos - ou mesmo ambos - podia cair e se espatifar.

Finalmente relaxando seu abraço na mulher rotunda, Chester ficou a distância de um braço.

- Então, precisamos ir.

Martha hesitou.

- Por que não peço a minhas fadas para fazer o trabalho para nós e matar o abominável? Assim não precisamos ir a lugar nenhum.

Não, não. Não. Stephanie torcia para Chester não concordar. Ela considerou seriamente fugir para se livrar daquela situação incrivelmente bizarra, mas Chester disse
para esquecer essa opção. Não só devido ao risco representado pelos Armagi - ele disse que não seria capaz de impedir que Martha mandasse os faróis pegarem Stephanie
no momento em que ela saísse.

Chester não respondeu à sugestão de Martha. Na realidade, parecia ameaçador.

- Por que não dizemos a elas para acabar com ele, queridinho? - perguntou-lhe Martha mais uma vez. - Assim, não haverá necessidade de sairmos daqui, onde estamos
felizes e em segurança.

- De jeito nenhum! Aquele nojento é meu. E você, trate de dizer a seus faróis para não tocarem em nenhum fio de cabelo daquela cabeça louca. Na verdade, quero que
o protejam... E que o mantenham a salvo para mim - grunhiu Chester com os olhos faiscando. - Ele é meu!

- Claro, queridinho, está tudo bem, está tudo bem - paparicou Martha, afagando seu cabelo na têmpora. - É claro, farei isso por você. Qualquer coisa.

De repente Chester soltou Martha e se afastou. Ficou imóvel por um momento, com os lábios apertados, imerso em pensamentos.

- Se não sabemos a que distância Danforth está, vamos precisar de um transporte... Algo com alguma potência. Espere aqui - disse ele, indo ao hall e pegando o casaco
no gancho. Depois escancarou a porta da frente e saiu da casa de rompante.

De maneira nenhuma Stephanie podia segui-lo, assim ficou em sua poltrona de sempre, segurando em volta do corpo o antigo edredom que pegou no quarto, simplesmente
olhando pela janela. Até parece que havia mais alguma coisa para fazer ali - nem uma revista nova e, na maior parte dos dias, nem mesmo uma emissora de rádio para
ouvir. Passaram-se várias horas, e ela resvalara em seu estupor habitual - o único jeito de conseguir atravessar o dia - quando ouviu o ronco de um motor do lado
de fora.

Stephanie e Martha, armada com sua besta, de imediato foram à janela, olhando para ver quem era. Chester saiu do veículo, um jipe tomado de lama. Gesticulou para
elas saírem.

- Encontrei este quatro por quatro numa fazenda vizinha outro dia, quando estava dando uma olhada, e pensei que podia ser útil. Tinha uns galões de óleo diesel na
fazenda também, então coloquei na traseira, assim como alguma comida enlatada para não termos mais de comer gororoba de ovelha - disse ele, olhando a traseira do
veículo. Depois, enquanto contornava à frente, bateu decisivamente no capô. - Venham logo, vocês duas! Arrumem suas coisas. Vamos pegar a estrada!

- Não gosto disso. Não vou andar numa dessas geringonças - disse Martha. Ela tinha uma desconfiança profunda de qualquer coisa mais complicada do que sua besta.
- Aliás, quem vai conduzir?

- Conduzir? Você quer dizer dirigir? Eu vou, porque o imbecil do Parry me ensinou. - Chester foi até Martha. - Vamos... Você disse que faria qualquer coisa por mim.
Bom, estou pedindo agora. - Ela parecia indecisa, mas Chester estava decidido a ter sua vontade feita. - Você sabe que quer me ajudar... Sabe que vai me ajudar,
mamãe. - Ele plantou um beijo grande e barulhento em seus lábios descascados.

- Oh! Oh! Oh! - Martha palpitava, sem fôlego. De imediato ficou ruborizada, gingando os ombros como uma garotinha. - Ah, tudo bem, meu queridinho.

 

- Se não houver nenhum animal desgarrado nos dando falsos positivos, parece que a festa ficou mais animada - anunciou Parry.

Dois de seus homens tinham erguido as mãos simultaneamente enquanto os sensores térmicos que monitoravam nos laptops registraram sinais. No último andar do prédio
de apartamentos havia um total de uma dúzia desses homens, alguns retirados da SAS e outros da Velha Guarda de Parry, todos olhando os computadores em vários móveis
que desencavaram de andares desertos abaixo dali. Em volta dos homens, havia a aparelhagem do sistema de refrigeração de ar do prédio e os motores dos elevadores,
que, é claro, não estavam em operação havia vários meses devido à falta de energia elétrica.

Outro homem num laptop ergueu a mão naquele momento.

- Para o noroeste também, chefe. Sinal forte.

- Sim, parece que estamos em ação - concordou Eddie, olhando nos olhos de Parry. - E é o que esperávamos: os sensores estão captando Limitadores se posicionando
no entorno da instalação para pegar qualquer um que tente fugir dela. - Ele voltou a atenção a uma tela próxima que mostrava uma imagem ao vivo do GCHQ, o órgão
de comunicações e sinais do governo. Ficava a cerca de quinhentos metros de onde eles estavam agora, a imagem sendo captada por uma das câmeras posicionadas no alto
do prédio. - Assim, as tropas da linha de frente, os Armagi, estarão na vanguarda do ataque, com meus antigos camaradas, os Limitadores, agindo como esquadrão de
limpeza - acrescentou ele.

- Esquadrão de limpeza? Nunca pensei que ouviria a elite Styx sendo descrita desse jeito. - Parry sorriu, mas seus olhos contavam outra história. Aproximando-se
de Eddie, ele baixou a voz. - Ambos sacrificamos homens demais nas últimas semanas para preservar o disfarce de Danforth com os Styx. Quero que você saiba que o
comportamento altruísta de seus ex-Limitadores não passará em branco.

Fiel a si mesmo, a resposta de Eddie não tinha emoção alguma.

- Obrigado, mas eles sabiam o que estava em jogo quando se juntaram a mim. Quanto ao que está prestes a acontecer, outros Limitadores podem morrer e, embora eles
ainda obedeçam cegamente à hierarquia Styx, prefiro pensar que podemos poupar o máximo de vidas possível. Eles só estão seguindo o que dita a classe dominante.

- E os Armagi? - perguntou Parry.

- São uma questão inteiramente diferente - respondeu Eddie. - Não tenho escrúpulos com sua destruição porque não os considero gente. São puramente ferramentas biológicas,
máquinas de matar, produzidos como resultado da Fase, e não têm lugar útil nesta terra.

Parry concordou com a cabeça, voltando-se para os homens na sala para lhes falar.

- Escutem. Agora todos vocês se conectem às câmeras. Quero que vigiem as abordagens. Danforth deve aparecer com alguns alvos Styx de alto valor. Não tirem os olhos
dele porque o Velho Styx e até Hermione e a gêmea Rebecca podem estar por perto. Também é prioridade extrair Danforth vivo. Ele já correu riscos demais para nos
levar a esse ponto. E quero que ele saia dessa inteiro.

O Limitador dirigiu para o estacionamento subterrâneo e reduziu a velocidade. O veículo mal tinha parado quando o Velho Styx saiu dele, seguido por Danforth.

- Por que demorou tanto? - vociferou Hermione para eles, saindo do banco traseiro do Bentley preto que já esperava ali. Partindo na direção de uma porta, ela gritou:
- Vamos, Rebecca, trate de andar! E, pelo amor de Deus, só você virá conosco. Não traga seu mico adestrado.

Enquanto Rebecca Dois saía do banco da frente, Danforth notou que o Velho Styx olhava incisivamente para ela. Ou, para ser mais preciso, olhava incisivamente para
o jovem oficial neogermano e louro ao volante do Bentley.

- Ela ainda insiste nesta união profana? - disse o Velho Styx a Hermione ao alcançá-la.

- Está na hora de acabarmos com isso - respondeu Hermione, a voz baixa e fria. Andou a passos pesados pela porta do estacionamento e entrou no corredor escuro com
piso de concreto cheio de poças de água. - Não é bom ter passageiros - acrescentou ela, meneando a cabeça, suas pernas de inseto estalando onde se projetavam de
trás da gola do grosso casaco de peles.

Danforth não podia ter certeza porque, em deferência à autoridade deles, andava vários passos atrás de Hermione e do Velho Styx, mas pensou que a cabeça da mulher
Styx se virou um pouco para ele enquanto pronunciava essas palavras. Pelo Velho Styx, ele sabia que o companheiro humano da gêmea Rebecca era visto com desagrado,
mas teve a forte sensação de que Hermione também falava dele. A Styx era imprevisível, e ele se sentia incrivelmente inseguro. Por instinto, ele passou a língua
sobre o dente falso que continha o rádio em miniatura, desejando ter uma oportunidade de mandar uma transmissão.

Eles passaram por vários outros corredores sem iluminação até subirem uma curta escada até uma porta. Ao saírem sob a luz do dia, chegando à calçada, Danforth viu
precisamente onde estavam.

- Aí está - sussurrou Hermione. - Um dois últimos bastiões do ridículo sistema de defesa deste país prestes a cair no nosso colo como uma ameixa madura.

- O GCHQ - disse Danforth entre os dentes. Todos ficaram ao lado da rua, que passava por vários cruzamentos e descia para o prédio em formato de rosca em cuja criação
e equipagem Danforth fora tão fundamental.

Ele apontou a cerca alta e visível ao longe.

- Você está ciente de que o limite mais externo estará fortemente monitorado? - Ele lançou os olhos pela rua. - Embora seja improvável que exista eletricidade no
resto da cidade, o GCHQ tem seu próprio fornecimento geotérmico, assim seus sistemas estarão funcionando a todo vapor.

Danforth rapidamente viu quantos Limitadores conseguia enxergar pela rua - no máximo três ou quatro, todos junto das portas.

- E vocês não me consultaram sobre qualquer ataque planejado, o quanto sabem sobre a capacidade de defesa do GCHQ? Haverá numerosas... e quero dizer numerosas mesmo...
unidades de resposta, armadas e altamente treinadas, prontas para contra-atacar qualquer brecha. Essa capacidade terá sido aumentada devido ao...

Hermione jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada áspera.

- Mas que humanozinho engraçado! - zombou ela. - Acha que nos importamos com uma coisa dessas? - Voltou a atenção à instalação à frente. - E quem disse que vamos
passar pelo perímetro? Observe isto.

O Velho Styx e a gêmea Rebecca se afastaram enquanto ela baixava o casaco dos ombros. Seus membros de insetos se estenderam plenamente e se uniram, começando a vibrar.

Quando Danforth teve seu primeiro vislumbre, supôs que o vento tinha aberto uma passagem pelas nuvens no céu. Rapidamente ficou evidente que o que ele via não tinha
nada a ver com as condições climáticas, mas algo muito aterrador.

Em um turbilhão, os Armagi pululavam no alto, suas formas refratando o azul esverdeado do céu. Eles começaram a convergir e então a descer, um redemoinho sólido,
como um jato de água de cabeça para baixo, diretamente para a abertura no meio do GCHQ.

- O que será que seus companheiros sacos de carne farão contra isso - Hermione abriu um sorriso irônico -, pelos minutos que ainda têm de vida? - De repente ela
girou para o Velho Styx. - Agora podemos nos livrar desse tolo. Não precisamos mais dele, e acho sua presença tediosa.

O Velho Styx ergueu a mão, e dois Limitadores apareceram do nada, um de cada lado de Danforth. Depois o Velho Styx voltou seus olhos frios para Danforth.

- É verdade. Nunca precisamos de você e não podemos permitir que fique conosco. Não há nenhum espaço para humanos.

- Temos um acordo - respondeu Danforth, mantendo a voz tranquila. - Vai traí-lo?

- Se você tivesse nos entregado de bandeja as cabeças de Drake, Elliott e do menino Burrows, estaríamos mais convencidos de seu comprometimento. Mas você não o fez.

- Entretanto, estão todos mortos - insistiu Danforth.

O Velho Styx lhe lançou um olhar cético.

- Mas vocês não sabem deles desde que eu o procurei, não é? - observou Danforth.

- Isso pode estar correto, embora ainda não tenhamos nenhuma notícia de nosso grupo enviado ao mundo interior, o que não é de surpreender. E nossas equipes subsequentes
despachadas para encontrá-los também não se reportaram a nós - disse o Velho Styx. - O que nos faz desconfiar de que nem tudo é o que parece.

- Se aconteceu alguma coisa com eles, não tem nada a ver comigo - argumentou Danforth. - Está cometendo um grave erro. - Embora por fora ele continuasse calmo, sua
mente disparava. No alto de sua lista estava como podia retirar o dente e mandar uma transmissão de SOS com os Limitadores observando cada movimento que fazia.

- Levem-no daqui e acabem com ele - ordenou o Velho Styx, depois baixou o tom. - E, já que vão fazer isso, livrem-se também daquele neogermano. Cuidem para que os
corpos fiquem fora de vista. - Ele baixou a voz para garantir que Rebecca Dois não ouvisse sua ordem, mas de qualquer modo ela estava atenta demais ao dilúvio dos
Armagi.

Enquanto os Limitadores começavam a empurrar Danforth pela rua, na direção contrária à do GCHQ, ele conseguiu ter outro vislumbre da cascata contínua de Armagi do
céu.

- Ande - rosnou o Limitador, batendo em seus rins com a coronha do rifle.

Apesar da dor, Danforth se permitiu abrir um leve sorriso. Naquele exato momento, a mulher Styx tinha a impressão de que alcançaria uma vitória importante. Mas estava
prestes a ter um desagradável despertar. Se tudo saísse de acordo com os planos, pelo menos ele ajudou a desferir um golpe forte contra os Styx antes de perder a
própria vida. E ele ainda não havia desistido inteiramente da esperança; se o momento lhe fosse vantajoso e o ataque acontecesse antes que morresse, podia criar
distração suficiente para sua fuga.

Não. Ele suspirou. Isso era esperar demais, com esses dois soldados letais no caso. Eles também eram bem treinados para isso. Nada além de uma intervenção armada
os desviaria de sua missão. Ele estava morto. Danforth aceitou isso.

Fingiu cambalear.

- Mais rápido - repreendeu um dos Limitadores. - Pare de embromar.

O soldado tinha razão. Danforth tentava ganhar tempo. Olhou os telhados dos prédios a sua volta e se perguntou se Parry teria uma câmera apontada para ele. Achou
improvável - estava longe demais do Doughnut.

Ao passarem pela entrada para o estacionamento subterrâneo, um dos Limitadores se afastou. O outro soldado ainda empurrava Danforth pela rua principal, levando-o
a uma esquina e pegando uma transversal.

Ali o Limitador o jogou na parede do prédio, com tanta força que ele caiu na calçada.

- Fique abaixado - rosnou o Limitador, sacando uma foice da bainha de seu cinto.

Danforth olhou do aço opaco da lâmina para os galhos sem folhas nas árvores que pontilhavam a rua, depois para o céu.

Então era ali que seria seu fim? Em uma rua muito comum de uma cidade ordinária da Inglaterra. Era uma ironia, considerando os lugares em que ele esteve na vida.

Danforth e o Limitador viraram-se para o final da rua enquanto outro Limitador finalmente aparecia, empurrando o capitão Franz.

- De pé - rosnou o Limitador da foice para Danforth.

Danforth sabia que, quando o jovem neogermano chegasse, os dois seriam executados, como havia instruído o Velho Styx.

- O que está havendo? - perguntou o capitão Franz, tentando endireitar o quepe de motorista enquanto o Limitador o empurrava de novo nas costas. - Onde está minha
Rebecca?

O capitão Franz parou na frente de Danforth.

- Ela não poderá ajudá-lo agora - disse-lhe Danforth.

O neogermano tinha aquela expressão ligeiramente confusa proveniente de sessões demasiadas com a Luz Negra.

- Tragam Rebecca! Agora! - ordenou o capitão Franz aos Limitadores. - Tudo isso é um erro.

Danforth respirou fundo antes de falar.

- Poupe-se disso. Não chegará a lugar nenhum - disse ele ao neogermano. - Esses dois arremedos ridículos de soldados não pensam por si mesmos. - Ele sorriu com acidez
para o Limitador mais próximo, que tinha a foice preparada a seu lado. - Vocês não passam de robôs. Conheci muitos soldados profissionais em minha época, e vocês
não chegam aos pés deles.

Danforth ficou em silêncio por um segundo, tentando avaliar que efeito teve sua zombaria, mas era impossível interpretar a expressão do Limitador. Os olhos afundados
na cara marcada simplesmente o observavam.

- Qual é o problema? Precisa que sua Madame Inseto lhe diga o que fazer?

O Limitador da foice golpeou-o na cara. Danforth caiu na calçada, e, embora seus óculos tivessem se quebrado e houvesse clarões nos olhos, ele nem acreditava em
sua sorte. O Limitado não tinha usado a foice.

Pelo menos, ainda não.

- Você quebrou meu dente - disse Danforth, adotando um tom queixoso, mas alegre por dentro. Colocou a mão na boca e desprendeu o falso molar, mostrando-o na palma
da mão.

- De pé - rosnou o Limitador da foice.

Embora estivesse escorregadio de sangue e saliva, Danforth conseguira apertar o polegar no rádio para ativá-lo quando o Limitador o atacou novamente.

O rádio saiu voando.

Maldição!, pensou Danforth.

O Limitador apontou a lâmina para ele.

- Homenzinho, você ganhou o direito de morrer primeiro.

O soldado Styx segurou Danforth pelas lapelas e o puxou de pé com uma só mão, posicionando a foice na outra.

O capitão Franz resmungava alguma coisa incompreensível em alemão. Podia ser uma oração.

A mão do Limitador partiu com a lâmina em direção a Danforth.

Aconteceu com tal rapidez que foi como se o Limitador tivesse simplesmente desaparecido.

Danforth, trôpego, levantou-se e, semicerrando os olhos injetados, encontrou o olhar ainda mais perplexo do capitão Franz.

- Para onde ele foi? - murmurou ele.

E então os dois viram o Limitador.

Estava estendido do outro lado da rua, sem a cabeça; o corpo fora mutilado.

Apesar das provocações em contrário de Danforth, os Limitadores eram profissionais competentes, e, mesmo com a morte do camarada, o outro soldado não se deixou abalar.
Não ia esperar por nenhuma explicação para reagir. Agindo por puro instinto, precipitou-se para Danforth e o agarrou.

Talvez estivesse pensando em usar Danforth como escudo em vez de matá-lo naquele momento, mas o farol ainda assim atacou, arrancando boa parte da cara e do pescoço
do Limitador. Sua cabeça tombou de lado, jorrando uma fonte vermelha da jugular cortada. Depois ele simplesmente se dobrou no chão aos pés de Danforth.

- Was war das? - exclamou o capitão Franz, boquiaberto para o céu, embora o farol não pudesse ser visto.

- Não tenho a menor ideia. - Danforth recuperava os óculos. Faltava uma lente, mas a outra ainda estava na armação, apesar de rachada. - E não vou ficar aqui para
descobrir.

Veio um grito da esquina.

- Johan! O que está fazendo aqui? - Rebecca Dois vinha correndo pela rua principal, mas agora parou numa derrapada ao ver seu amado neogermano.

- Oh, Rebecca - respondeu o neogermano, parecendo em choque ao estender a mão vacilante para ela.

- Pensei que havia alguma coisa errada... Eu senti - disse ela.

Danforth não estava com humor para sentimentalismo nenhum.

Para um homem pequeno, ele até sabia se cuidar. Lançando o braço em volta do pescoço do capitão Franz de modo a pegá-lo numa chave, Danforth apertou a foice do Limitador
em seu pescoço. Pensando que podia ser útil, ele havia apanhado a arma quando recuperou os óculos.

- Parada aí! - ordenou Danforth a Rebecca Dois.

- Tudo bem... mas, por favor, não o machuque - implorou-lhe ela, depois viu o sangue do Limitador no rosto do capitão Franz. Ela fez menção de dar um passo. - Mas
o que houve com você, Johan? Está sangrando.

- Estou avisando! Afaste-se! - disse Danforth.

- O que esse homem fez com você? - perguntou ela, lançando um olhar furioso a Danforth.

- O sangue não é meu - respondeu o capitão Franz antes que Danforth aumentasse a gravata para impedir que o neogermano falasse mais alguma coisa.

- Você matou esses Limitadores. - Rebecca Dois acusou Danforth, mas nem ela parecia muito segura de si ao distinguir o corpo sem cabeça do soldado na rua e seus
outros ferimentos letais.

- Seus homens tinham ordens de executar a nós dois - disse-lhe Danforth.

- Por quê? - exclamou ela.

- Isso não é meio óbvio? Nós dois somos humanos supérfluos - respondeu Danforth. - Agora quero que fale baixo porque você vai comigo.

- Não vou, não - retorquiu Rebecca Dois.

- Se quiser seu namorado vivo, vai sim - ameaçou Danforth. Ele travou a ponta da foice no pescoço do capitão Franz.

- Não, não! Não o machuque, por favor - implorou Rebecca Dois. - Farei o que você quiser.

- E, antes de irmos, preciso que encontre uma coisa para mim - disse Danforth. Ele olhou o meio da rua. - Parece um dente.

- Um dente? - Rebecca Dois tinha acabado de perguntar quando o chão sob seus pés se sacudiu e houve um estrondo de abalar o crânio. A gêmea Rebecca foi arrancada
do chão pela explosão, uma nuvem imensa de poeira ondulando pela rua na direção dela.

- Mas que droga! - xingou Danforth, olhando Rebecca Dois, onde havia caído. - Parece, então, que somos só você e eu, lourinho - sussurrou ele no ouvido do capitão
Franz.

- Nein, Rebecca, nein, nein - murmurava o neogermano.

- Não fique todo afobado; duvido que ela esteja morta - disse Danforth, empurrando o capitão Franz para a rua, onde localizara o rádio em miniatura. Depois de pegá-lo,
Danforth olhou outra vez para Rebecca Dois. - Que pena que não posso levá-la comigo. Ela teria sido um objeto interessante para interrogatório - comentou com pesar.

O capitão Franz também a olhava com tristeza.

- Nein, nein, nein - ainda murmurava ele enquanto Danforth o arrastava rapidamente para longe dali.

- E então ela explode - disse Parry enquanto as imagens das câmeras bruxuleavam com a explosão. A visão do que restava do GCHQ foi coberta por um manto de fumaça
e poeira se acomodando. A detonação foi cronometrada para o momento em que o fluxo de Armagi completasse sua entrada aérea e estivesse dentro da instalação, procurando
em vão alguém para matar.

- E então, nenhuma baixa de nosso lado? - perguntou Eddie.

- Sinceramente, espero que não. Foi evacuado semanas atrás, exceto, é claro, pela equipe mínima necessária para manter a aparência de que operava como sempre - respondeu
Parry. - E eles devem ter escapado pelos túneis de evacuação subterrâneos... Há vários del...

- Senhor! - Um dos soldados que tripulava o laptop o interrompeu. - Acabamos de receber um sinal de Danforth. Ele pede para ser extraído. E diz que tem um refém.

- Todos vocês, preparem seu kit! Vamos sair agora! - ordenou Parry ao se aproximar do soldado. - Tudo bem, onde Danforth disse que estava?

Hermione e o Velho Styx tiveram sorte. Estavam espremidos bem na lateral da rua quando houve a explosão, mas os dois ainda foram jogados no chão.

Hermione ria, enquanto o ar começava a clarear, e via o pouco que restava do GCHQ. O Doughnut foi reduzido a uma pilha de entulho, as poucas partes ainda de pé envolvidas
em chamas.

- Então, eles plantaram explosivos e esperaram que nós aparecêssemos, depois explodiram o lugar todo... É o melhor que esses saquinhos de carne podem inventar? -
disse ela.

- Eles nos pouparam o esforço da demolição - disse o Velho Styx, olhando o que restava.

Hermione parara de rir e estalou a língua ao perceber quanta poeira se acumulara em seu casaco.

- Embora seja doloroso perder alguns de meus filhos, eles são Armagi e agora tem um monte deles. - Ela dava tapas no casaco, usando os membros humanos da frente
e os de inseto às costas. - Não é igual a quando eles retiraram minhas Guerreiras. Os humanos só pioram as coisas para eles mesmos quando mudam o jogo.

- Sim, e não entenderam bem que qualquer coisa que tentem agora é inútil - concordou o Velho Styx, assentindo. - É tarde demais para eles.

Mas Hermione não ouvia. Parou de espanar o casaco e havia tristeza em seus olhos.

- Mas eu nunca, jamais perdoarei Will Burrows e os outros por massacrarem minha Classe Guerreira... meus verdadeiros filhos... no depósito - disse ela numa voz baixa
e ardorosa.

O Velho Styx pensava em questões mais prementes. Agora que a fumaça e a poeira clareavam, ele olhava a rua à volta, e um franzido apareceu no rosto normalmente inexpressivo.

- Mas para onde foi Rebecca? - perguntou ele.

 

Capítulo Dezesseis

 

- Epa! Lá vamos nós de novo - disse Chester, ligando os limpadores de para-brisa enquanto pedaços de Armagi e o fluido que jorrava de suas veias se espalhavam pelo
vidro pela enésima vez.

Ele vinha dirigindo como um louco, sem tirar o pé do acelerador mesmo quando a rodovia se enchia de obstáculos. Em várias ocasiões, de tanto correr, chocou-se contra
veículos descartados pelo caminho, quase perdendo o controle do quatro por quatro enquanto ziguezagueava pela estrada. E sempre que havia uma colisão, ele ria, embora
Martha ficasse petrificada, sentada ao lado dele, desesperadamente agarrada ao cinto de segurança. E Stephanie não se permitia ter nem um momento de descanso, porque,
se estavam prestes a sofrer um acidente, ela queria estar preparada para isso.

Os três tiveram uma pausa bem-vinda da jornada quando pararam para esquentar uma lata de comida. Mas, antes que comessem, Martha vagou pelo entorno. Stephanie a
viu no alto de um pequeno morro, onde parecia simplesmente olhar o céu. Quando Martha finalmente voltou, disse a Chester que soube pelos faróis que o "abominável"
estava em movimento, mas eles ainda seguiam seu rumo e chegariam a ele. E ela disse que um farol continuaria com ele o tempo todo para acompanhar seus movimentos.

Apesar do que ela disse a Chester, Stephanie não tinha ideia de como Martha podia ouvir isso daquelas criaturas grandes com jeito de mariposa que raras vezes pareciam
parar de zunir pelo lugar. Chester não parecia muito interessado nessa notícia, em vez disso ficando com uma lata inteira de feijões cozidos com salsichas, enquanto
Stephanie teve de dividir a segunda lata com Martha.

E então, depois de Chester ter completado o tanque com diesel, eles partiram novamente. Pela primeira vez o trecho da estrada à frente era relativamente limpo, assim
não importava que Chester continuasse com o pé embaixo.

Mas depois que outros pedaços de Armagi apareceram sobre eles, Martha ficou esticando o pescoço para perscrutar o céu pelo para-brisa.

- Elas estão ficando cansadas - disse ela por fim.

Chester não respondeu, balançando a cabeça de um lado a outro como se ouvisse uma música que só ele podia escutar. E não fez nenhum esforço para reduzir a velocidade.

- Sabe, queridinho, elas não podem ficar assim o dia todo. - Martha tentou mais uma vez. - Precisam descansar, como nós.

Chester mexeu nos controles do ar-condicionado, aumentando e virando a ventilação para que a brisa soprasse em cheio em seu rosto e em seu cabelo.

- Está ficando meio quente aqui - disse ele.

O que Chester não disse era que a combinação de ar abafado do veículo com a falta de higiene de Martha era particularmente desagradável. Quando abriu a janela na
traseira, Stephanie ouviu protestos de Chester e de Martha porque eles disseram que era perigoso demais. E qualquer benefício do ar-condicionado era mínimo onde
ela estava sentada. Assim, em vez disso, ela pegou seu frasco de perfume na nécessaire dentro da Bergen e abriu a tampa para cheirar de vez em quando, dando a si
mesma o alívio momentâneo do cheiro. Chegou ao ponto de pingar algumas gotas em seu cachecol, mas isso despertou tais olhares severos de Martha que ela não se atreveu
a repetir o gesto.

- Se não reduzirmos e seguirmos com mais calma, uma de minhas fadas será morta por aqueles Armagi - disse Martha. Não houve resposta de Chester, que balançava a
cabeça de novo, a boca franzida como se assoviasse em silêncio.

- Precisamos mesmo ir mais devagar, queridinho - murmurou Martha, agora bem desesperada.

Stephanie tinha acabado de tirar a tampa do perfume de novo e dava uma farejada quando Chester gritou para Martha.

- Dá pra calar a boca?

Stephanie ficou tão chocada com a reação dele que quase deixou o perfume cair. Descobriu que estava tomada de um impulso quase irreprimível de dar um murro na nuca
de Chester. Ele estava sendo muito egoísta, arrastando a todos em sua busca insana por vingança, sem a menor consideração por ninguém. Nem mesmo por mim, disse Stephanie
a si mesma.

De repente ela estava farta de tudo. Talvez fosse a atmosfera abafada e muito desagradável no carro, ou possivelmente seu cansaço, mas ela não se importava mais.

- Pare o carro. Eu quero sair! - gritou ela bem no ouvido de Chester. Ela mal pronunciou uma palavra por toda a viagem, e sua explosão foi uma surpresa.

- O quê? - Chester ofegou, o quatro por quatro fazendo curvas alucinadas na estrada.

- Vi uma placa de um posto de gasolina mais à frente - respondeu Stephanie. - Me deixe lá.

Chester não esperou tanto tempo, parando no acostamento. Ele e Martha se viraram para Stephanie no banco de trás, e ela não disse nada, simplesmente pegou sua nécessaire
e saiu. Ao se afastar do carro, Chester correu atrás dela.

- Mas qual é o problema com você? - perguntou ele.

Stephanie parou imediatamente.

- Qual é o problema comigo?! E quanto a você? - Ela balançou a cabeça. - Tudo bem, vou soletrar para você. Você está sendo um grande babaca, e eu não aguento mais.

Ele fez um gesto para os campos abertos dos dois lados da rodovia.

- Mas estamos no meio do nada. Você vai morrer.

- Até parece que você liga - vociferou ela. - De qualquer forma, prefiro me arriscar aqui fora a ficar naquele carro fedido.

- Tanto faz - ele cuspiu, virando-se e voltando a passos firmes para o carro. - Faça o que quiser.

- Você vai matar a todos nós se continuar dirigindo desse jeito - gritou Stephanie para ele. Ela bufou para mostrar seu desdém. - Você é muito hipócrita! Aposto
que sua irmã foi atropelada por um idiota como você, que dirigia rápido demais.

Chester ficou paralisado, mas continuou de costas para ela. Não sabia o que responder. A observação de Stephanie o atingiu bem no fundo; naquele momento, algo penetrou
sua raiva e o desejo devorador de vingança.

Stephanie não havia acabado.

- E mais idiota ainda, você não viu que só tem Armagi quando chegamos perto das cidades? Então, se perdermos os faróis agora, como vamos conseguir quando, tipo,
chegarmos a Londres, porque parece que é pra lá que estamos indo? - Ela deu de ombros. - Deve estar cheio de Armagi. Então, sem as fadas de Martha, vamos todos morrer.

- Preciso dizer que ela tem razão, queridinho - declarou de repente uma voz. Martha se aproximara para ouvir. - Precisamos deixar que minhas fadas tenham uma pausa
e comam um pouco. E você precisa conduzir mais devagar.

- É dirigir, Martha. Você dirige um carro. - Chester se virou para Stephanie e pigarreou. - Sim, talvez eu esteja exagerando, imagino que todos nós podemos descansar
um pouco. Quantos quilômetros até esse posto de gasolina que você viu? - perguntou ele.

Stephanie não respondeu.

- Vamos lá. Coloque suas coisas no carro. Londres não fica muito longe, e você adora Londres - argumentou ele numa tentativa de consolo enquanto abria um sorriso
inocente.

Stephanie resmungou.

- Ah, tá, então, o que vamos fazer quando chegarmos lá? Eu simplesmente sei que vai ser, tipo, o lugar mais horroroso da Terra. Eu sei disso.

- Mas ainda é Londres, com todas as lojas que você adora. E deve haver um monte de coisa aberta - disse Chester, mantendo o sorriso. Evidentemente ele fazia um esforço
imenso para ser agradável com ela, mas Stephanie podia ver a luz do desequilíbrio ainda presente nos olhos dele. - Volte para o carro, por favor, Stepho?

- Stepho? Ninguém me chama de Stepho - disse Stephanie em voz baixa. Porém, contrariando seu senso crítico, ela partiu para o veículo, arrastando os pés e perguntando
a si mesma que droga estava fazendo.

 

- E nós que achamos ruim da última vez que viemos aqui - sussurrou Drake. Ele e Jiggs tinham se esgueirado até as janelas e erguiam a cabeça o suficiente para ver
Londres.

Com numerosas paradas pelo caminho para permitir que Drake se recuperasse, eles andaram por toda a extensão do túnel ferroviário, de Essex ao centro de Londres.
Quando finalmente chegaram à plataforma abaixo da Torre BT, imediatamente subiram a escada ao andar de onde haviam observado os resultados dos primeiros esforços
dos Styx para criar caos na capital. Mas isso foi vários meses antes, e agora era imensuravelmente pior.

- Não tem energia em lugar nenhum. Então, toda a rede deve estar desligada - disse Drake. - Eu estava torcendo pra gente conseguir acionar uma das antenas da torre
e mandar um sinal a Parry.

- Veja, por ali, naquele prédio de escritórios - disse Jiggs de repente, semicerrando os olhos através da escuridão enquanto a noite baixava. - É fácil deixar passar
com essa luz, mas você consegue distinguir o que está no telhado?

- Meu Deus. - Drake viu as muitas formas cristalinas dos Armagi reunidos no terraço. - Quantos são?

- Na verdade, o lugar todo está abarrotado deles. Estão por todo lado - acrescentou Jiggs ao ver mais nos outros telhados.

- Foi longe demais. - Drake arriou no chão. - Como vamos nos livrar disso um dia?

Jiggs olhou o rastreador antes de responder.

- O radiofarol definitivamente se deslocou desde que fomos para o subsolo. - Como Drake simplesmente ficou deitado ali, Jiggs se preocupou. - Sei que a caminhada
pelo túnel deve ter parecido várias maratonas para você. Como está se aguentando, meu velho?

- Acabado, doente feito um cachorro, tudo dói... Devo continuar? - murmurou Drake. - E, o pior de tudo, esta perna parece estar pegando fogo. - Ele a tocou pouco
acima do joelho e fez uma careta.

- Vou dar uma espiada. - Jiggs engatinhou até ele. Começando pelo tornozelo, enrolou as calças de combate de Drake até poder ver o curativo abaixo da coxa, que ele
tirou lentamente. Drake se retraiu um pouco. - Infelizmente, a queimadura aqui está muito infeccionada.

Drake assentiu estoicamente.

- Eu estava me perguntando que cheiro era esse.

Jiggs deu um tapinha na Bergen, onde guardava o kit médico.

- Vamos nos afastar das janelas, e vou trocar todos os seus curativos.

- Tudo bem, mas primeiro quero verificar uma coisa. - Drake puxou a perna da calça para baixo, depois se arrastou de barriga pelo piso de carpete antigo até chegar
a uma parte da janela do outro lado da torre. - Lembra aquele posto de controle do exército na Charlotte Street? - disse ele a Jiggs. Depois, grunhindo com o esforço,
ele se ergueu para enxergar a vista abaixo.

- Você tem esperanças de que tenham deixado um rádio - adivinhou Jiggs. - Você sabe que ali é mais do que um simples posto de controle. Dei uma volta da última vez
e não notei equipamento nenhum de comunicação, mas havia uma munição pesada naquele caminhão de abastecimento - disse ele, apontando o caminhão de aparência sólida
ao lado do toldo cáqui.

Apesar do desconforto, Drake sorriu com ironia.

- Você conseguiu xeretar por ali, bem debaixo do nariz deles?

Jiggs assentiu.

- Moleza. A gente podia mesmo pegar mais munição, se eles deixaram alguma coisa quando fugiram para as colinas.

Drake franzia a testa e ainda examinava o cenário abaixo.

- Hummm... Sim, isso seria ótimo... Mas... Não devíamos almejar um pouco mais alto?

Jiggs ficou intrigado.

- Por quê? O que está pensando?

Drake apontou ao lado do caminhão a que Jiggs se referiu.

- Se não estou enganado, tem um Challenger 2 novinho em folha estacionado ali, doido para ser apanhado.

Jiggs concordou com a cabeça enquanto contemplava o mais recente modelo de tanque do exército britânico.

- Ora, isso que seria andar pela cidade com muito estilo. - Ele riu.

- Não seria mesmo?

 

Alguns prédios eram lojas, tão danificados pelo fogo que era impossível saber o que vendiam.

Em outros prédios, cortinas batiam nas janelas superiores com o vento que soprava pela rua. Quando soprava mais forte, o papel e o lixo espalhados pelas calçadas
e pelo asfalto dançavam e rodopiavam.

- Este lugar não mudou muito - disse Will enquanto eles andavam cautelosamente, Elliott o protegendo em cada centímetro do caminho.

- Cuidado! - sussurrou ela de repente e ficou petrificada.

Da porta de um pub, um dos jovens lagartos Styx correu para fora. Olhou para eles.

Ouviu-se um deslizar e os estalos de mandíbulas abrindo-se e se fechando.

Antes que eles se dessem conta, outros lagartos estavam ao ar livre, saindo de janelas do mesmo prédio de esquina, disparando por sua fachada de estuque.

O sangue que Elliott espalhara em Will parecia fazer efeito porque, depois do interesse inicial, nenhum lagarto prestou muita atenção neles. Enquanto todos os lagartos
voltavam para dentro do prédio, houve um estrondo de vidro quebrado. Pelo mais breve instante, Will pôde imaginar que era o que sempre acontecia no pub e um barman
tinha errado o balcão com sua cerveja.

Mas então Elliott o cutucou de novo, e ele teve o vislumbre dos casulos pendurados nas falsas vigas rústicas que atravessavam o teto do pub - casulos de aparência
fibrosa em que cresciam Armagi.

Mais adiante, ao percorrerem a avenida larga e cheia de lojas, o céu mostrava os primeiros sinais cinzentos e frios do amanhecer. De algum lugar ao longe, houve
um grito terrível.

- Brrrr. Isso é medonho - disse Will, também falando por Elliott. O escuro, o frio e a mera desolação estavam afetando os dois.

Elliott olhava o cinema do outro lado da rua.

- Precisamos encontrar um lugar para nos abrigar. Que tal ali?

- Claro. - Will de imediato foi até Elliott. Na entrada do cinema multiplex, viu o cartaz de um filme que deve ter sido lançado quando os Armagi começaram a se espalhar.
Descrevia uma turba de zumbis que avançavam com caras verde-claras e bocas sujas de vermelho.

- Agora não é tão legal, né? - disse ele, apontando o cartaz. - As pessoas queriam sangue e conseguiram muito dele.

Elliott não respondeu ao subirem a escada rolante parada até o saguão com balcões de pipoca e sorvete; depois ela o levou a uma das salas menores, com suas filas
de cadeiras e a tela em branco.

- Isto vai servir até escurecer de novo - disse ela, largando-se pesadamente em uma das cadeiras.

- Você está bem? - Will ficou preocupado porque ela parecia esgotada. Ele sabia que dificultava a vida para ela, atrasando-a quando estava com uma pressa desesperada
de chegar aonde precisava. E a mão dela estava um desastre depois de abrir repetidas vezes o corte para espremer mais sangue nele. Ele se perguntou se isso não a
estaria deixando fraca.

- Que barulho é esse? - perguntou Will de repente ao ouvir ruídos acima deles.

- Estamos embaixo de um ninho. Como naquela casa em que entramos. - Sem se erguer ou mexer a cabeça, recostada no assento da cadeira, seus olhos foram para o teto.
- Os Armagi estão se reproduzindo ali.

- Ah, que ótimo. Então, por que você escolheu parar justo neste lugar?

Elliott abriu um bocejo enorme.

- Melhor ficar debaixo do nariz deles... É mais seguro.

Will se lembrou do que ela disse sobre ser atraída até o ninho encontrado por acaso no sótão.

- É, mas para quem... Para você, ou para mim?

Ele não teve resposta nenhuma porque Elliott adormecera na cadeira.

 

- Você não a conhece. Ela não é má pessoa. - O capitão Franz tragava com prazer o cigarro que segurava na mão livre enquanto a outra estava algemada ao pé da mesa.

Parry e Danforth o estavam interrogando, e a expressão de Parry não era nada amistosa.

- Está brincando, né, amigo? A gêmea Rebecca não é má depois de tudo o que ela e a irmã fizeram? Depois de todas as vidas que foram arruinadas pelos Styx, a morte
e a destruição provocadas pelos Armagi, assolando nosso país? Não é má pessoa? Não pode estar falando sério. Porque, se estiver, você é mais burro do que parece
- gritou Parry para o oficial neogermano.

- Ela não é nada parecida com os outros - insistiu o capitão Franz.

Danforth pegara um de seus descontaminadores na mesa onde havia deixado e ligava e desligava repetidamente a luz roxa.

- Talvez nosso amigo aqui seja defeituoso, por isso não consegui desprogramá-lo - sugeriu ele com sarcasmo.

O capitão Franz ficou indignado.

- Sei o que estou dizendo. E contei a vocês o máximo de que consigo me lembrar e, sim, eu testemunhei coisas terríveis. Talvez eu estivesse andando nas nuvens, por
causa da Luz Negra, mas também vi seu lado bom. Ela teve de corresponder ao que esperavam dela. Só está seguindo ordens.

- Bah! - Parry explodiu. - Essa piada velha. Eu só estava seguindo ordens. Não, sua garotinha Styx é cruel e motivada como qualquer um deles.

- Você entendeu muito mal minha Rebecca - disse o capitão Franz, inconformado. - De qualquer modo, ela é mais do que uma garota. Os Styx amadurecem mais rápido do
que os...

Parry ergueu a mão.

- Pelo amor de Deus, homem, já ouvi o bastante. - Ele notou que Eddie e um de seus homens esperavam na entrada da tenda.

- Fique aqui - disse Parry ao capitão Franz, sem nenhuma necessidade, depois se levantou da cadeira, jogando mais peso do que o habitual em sua bengala, devido ao
cansaço. Danforth o acompanhou aonde os dois homens esperavam.

- O bonitão é todo seu. Veja se consegue arrancar alguma coisa útil dele - falou Parry em voz baixa a Eddie, espiando por sobre o ombro o neogermano louro que contemplava
a ponta acesa do cigarro.

- Então, ele não disse nada que prestasse? - perguntou Eddie.

- Não, a não ser que você esteja interessado na moda feminina ou na predileção dos Styx por carros de luxo - intrometeu-se Danforth.

Parry balançou a cabeça.

- Ele não lembra com clareza nenhuma onde esteve, e todos os lugares que apontou para nós são antigos. Os Styx há muito tempo os esvaziaram. Ele também está completamente
iludido com a gêmea Rebecca. Não sei quanto disso se deve a danos neurológicos por Luz Negra em excesso ou se vem de sua paixão por ela.

- A paixão é genuína? - perguntou Eddie.

- Parece - respondeu Parry, as sobrancelhas grisalhas erguendo-se de incredulidade.

- Então, você quer que eu use métodos mais radicais nele - propôs Eddie.

Parry concordou com a cabeça.

- Mas não o maltrate demais porque ele pode vir a calhar se precisarmos de alguma influência sobre a gêmea Rebecca. - Parry e Danforth saíram da tenda.

Danforth parou com surpresa ao perceber a fila de helicópteros pretos no campo ao lado de seu acampamento temporário.

- Quando foi que eles apareceram?

- Enquanto estávamos com o capitão Franz - respondeu Parry. - Cinco dos mais recentes helicópteros armados Sikorsky UH-60 americanos. Uma generosa oferta de paz
de meu amigo Bob. Os americanos estiveram deslocando mais de sua frota para nosso lado do Atlântico, e estes nos foram entregues diretamente de um de seus transportadores.

- Não os ouvi chegar - disse Danforth.

Parry esfregou as mãos, cheio de expectativa.

- Esse é justamente o objetivo. Eles são última palavra em voo furtivo, com motores altamente amortecidos e descarga filtrada, assim o rastro de calor é mínimo.
Imagino que Bob só tenha sido tão generoso porque quer ver se os Armagi conseguem ouvi-los.

Os olhos de Danforth faiscaram de interesse.

- Talvez eu possa sugerir um uso para eles agora mesmo. - Eles viram um soldado saindo de uma das muitas barracas com um pequeno dispositivo nas mãos. - Se meu aprendiz
ali construiu para mim o escâner que pedi para localizar o sinal daquele radiofarol VLF que captei antes, talvez a gente descubra quem está na outra ponta.

Parry ficou pensativo por um momento.

- Sim, se for alguém de nossa equipe voltando do mundo interior, então, talvez... mas só talvez... tenha algo que possa nos ajudar. - Ele olhou as nuvens agourentas
que se acumulavam no céu. - Neste momento, eu me contentaria até com um pequeno milagre.

 

Capítulo Dezessete

 

Elliott parecia não hesitar quando se tratava de escolher para que lado precisavam ir, embora houvesse uma ou outra ocasião em que ela simplesmente parava, como
se ouvisse uma voz que Will não podia escutar. Depois ela partia de novo, sempre o mantendo à direita, enquanto os dois iam cuidadosamente de uma porta a outra pela
rua, procurando Limitadores ou Armagi na escuridão à frente.

- Reconheço isso - disse Will quando eles chegaram à Euston Road e começavam a atravessá-la usando os veículos como cobertura. E então, mais tarde, ao continuarem
em seu ritmo aflitivamente lento de anda e para, deram num lugar que incitou um dilúvio de lembranças nele.

- Russell Square - disse ele a Elliott ao entrarem na praça. Eles viram algo que os fez parar de pronto. Bem à frente, no meio da rua, estava a seção traseira de
um avião de passageiros. Pelo modo como um pedaço da fuselagem caiu no trânsito, por cima de muitos carros retorcidos e calcinados, aconteceu quando os problemas
estavam apenas no início e as pessoas tentavam sair de Londres com a maior rapidez possível. Tentariam sair até mesmo do país se conseguissem encontrar uma passagem
de avião.

Will olhou a pintura queimada e descascando do leme azul e branco e só rompeu o estupor quando foi cutucado por Elliott. Eles atravessaram a praça na diagonal, passando
onde antes ficava uma área com gramado e bancos em que pessoas costumavam comer sanduíches. Agora estava muito diferente; o incêndio provocado pelo combustível de
avião queimou cada centímetro do terreno, e as árvores foram reduzidas a estacas pretas e severas de carvão.

No canto mais distante da praça havia mais partes do avião, por quais eles contornaram antes de entrarem numa rua adjacente. Foi quando Elliott sofreu uma mudança.
Ela pareceu jogar a cautela aos ventos, arrancando à frente de Will sem tomar o cuidado habitual de protegê-lo. Ele não reclamou, acompanhando-a, bastante aliviado
por não se deslocarem mais num ritmo de lesma.

Avançando mais pela rua, Will entendeu por que a área era tão familiar - ele fez essa mesma rota em várias ocasiões com o dr. Burrows, e o prédio grande que Will
via era onde o pai o levava com frequência nos fins de semana. E havia mesmo nas grades vários cartazes anunciando as últimas exposições e confirmando que Will tinha
razão.

Ele deu um tapinha no ombro de Elliott.

- Então era para cá que vínhamos o tempo todo? - perguntou ele, ao que ela assentiu. - Sabia que este é o British Museum? - Ele estava todo animado, apontando a
ala de três andares recuada seis metros atrás das grades.

Ela olhava fixamente o prédio, mas agora voltou a atenção às grades, segurando-as como se pensasse em escalar.

- Como entramos aqui? - perguntou ela.

- Vamos dar a volta até a frente - respondeu ele.

Ela começou a correr, e Will teve trabalho para acompanhá-la.

- Espere um minuto - disse ele quando chegavam à esquina. - Por que essa pressa toda? E tem certeza de que é aqui que precisa estar?

- É aqui - respondeu ela de pronto.

Will a levou aos portões principais. Embora estivessem fechados, havia uma entrada menor para pedestres ao lado que permitiria que eles entrassem na área do museu.
Apesar de tudo estar numa escuridão de breu, Will tinha a lente de Drake sobre um olho, conferindo à cena a nitidez da luz do dia.

Seguindo Elliott para o átrio, a forte ligação com seu passado o animou. Este museu, com sua impressionante fachada de templo grego, era algo que conhecia muito
bem e que lhe era muito caro.

Por um momento Will foi transportado para uma época mais feliz e mais segura. Muitas de suas primeiras lembranças eram de excursões a museus, em particular a esse,
embora o dr. Burrows tivesse sua própria programação para cada visita e preparasse pouca coisa ou nada para o filho, raras vezes parando para lhe explicar alguma
exposição. Mas, à medida que ficava mais velho e mais independente, Will deixava o pai seguir e fazia suas próprias coisas, só se encontrando novamente com o dr.
Burrows na entrada quando era hora de voltarem a Highfield.

Com o vento soprando e todo o lixo no átrio do museu sendo batido numa animação caótica, o prédio parecia desolado. Não era mais o lugar de suas lembranças, explodindo
de turistas nas manhãs ensolaradas de domingo, com o guincho constante dos táxis de Londres encostando para deixar ou pegar as pessoas.

- Parecem as luzes da Colônia - disse Elliott abruptamente, apontando os postes que pontilhavam o terreno. Tirando o fato de que não havia os globos luminosos cintilantes
no alto dos postes de ferro, tinha razão; Will via a semelhança. Ele estava a ponto de concordar com ela quando Elliott parou, mantendo a cabeça numa posição de
quem ouvia mais uma vez a voz inaudível.

Ela disparou para o meio das três portas da entrada principal. Ao chegar lá, empurrou e sacudiu a porta com tanta força que o barulho reverberou por todo o átrio.
Era uma perda de tempo, porque estava firmemente trancada. Depois ela tentou as outras portas de vidro, fazendo idêntico barulho.

- Ei! - chiou Will. - Você está tentando chamar atenção para nós ou coisa assim?

Ele via que ela estava muito ansiosa para entrar, seus olhos disparando de um lado a outro da entrada como se não conseguisse acreditar que uma das portas não estivesse
aberta.

- Tem certeza de que é aí mesmo que você quer ir? - perguntou ele.

- Vamos ter de invadir - balbuciou ela, chutando o painel de vidro da base da porta. - Ou abrir caminho com uma explosão.

- Pare com isso. Pelo amor de Deus, se acalme, Elliott. - Ele a sacudiu pelo braço. - Não podemos fazer isso. Vamos tentar por ali. - Ele apontou a ala lateral do
museu, na extremidade do átrio.

Ela correu para onde Will indicou, um prédio situado para dentro da fachada do museu, mas construído da mesma pedra Portland clara.

Alguém usou um carro para arrombar as portas, abandonando-o na escada depois de entrar. Will e Elliott subiram por ele para chegar à porta pintada de preto, que
estava entreaberta e pendurada por uma única dobradiça.

Um pouco mais para o interior, pedaços sujos de papelão tinham sido colocados no piso de mármore, e havia alguns cobertores velhos numa pilha. A julgar pelas embalagens
de doces e pacotes de comida vazios, alguém andou morando ali, embora não houvesse sinal de que ainda estivesse presente.

Will tratou de fechar a porta depois de eles entrarem. Nunca esteve nesta parte do museu e deduziu rapidamente, pelas placas nas portas, que era da seção administrativa.
Depois alcançou Elliott, que já ia para as galerias públicas. Quer ela estivesse ou não seguindo o que a impelia a entrar, eles não precisavam empregar um trabalho
de detetive para descobrir o caminho devido aos arranhões no chão e ao rastro de objetos abandonados, inclusive outras embalagens de doces e latas de bebida vazias.

Eles passaram por algumas portas que Will percebeu, pela madeira lascada em volta das fechaduras, terem sido forçadas e entraram nas galerias da Grécia e Roma antigas.
Will via pelo caminho os objetos minoicos e micenos nos mostruários, muitos velhos amigos dele.

E então eles se viram no quadrângulo do museu o espaço grande que antigamente dava para o céu aberto, mas que agora era encerrado por um moderno telhado de vidro
em mosaico. No meio do quadrângulo ficava um prédio circular chamado Sala de Leitura. As botas dos dois faziam eco pelo espaço imenso.

Will percebeu que Elliott não fazia o menor esforço para ver o que havia a sua volta.

- Acho que estamos bem seguros aqui - disse Will, mais para garantir a si mesmo do que tentar argumentar com ela. - E quem esteve aqui parece ter ido embora. Acho
que um museu não é o primeiro lugar em que se pensa quando se procura comida - comentou. Seu estômago tinha outras ideias, roncando alto enquanto ele se perguntava
se todos os suprimentos de guloseimas e Coca-Cola teriam sido saqueados pelos invasores no carro.

Elliott parou abruptamente, com a cabeça tombada de lado, como se escutasse mais uma vez.

- Para onde agora? - sussurrou Will.

Erguendo a mão, ela o silenciou e fechou os olhos.

- Bom, você pode escolher África, Oriente Médio ou Eur... - começou ele, tentando impressioná-la com seu conhecimento dos vários departamentos, quando ela começou
a falar, atropelando a voz dele.

- Não... Lá em cima - falou Elliott devagar, piscando ao abrir os olhos e avançando até que entrou em seu campo de visão a passarela que se estendia entre a Sala
de Leitura e a parede dos fundos do quadrângulo.

- Ótima escolha - disse Will. - Por ali chegamos à galeria da Mesopotâmia e do Antigo Egito.

- Só me diga como subir lá - cortou Elliott.

Will ergueu os dedos e com eles imitou um andar.

- Escada. Do outro lado disto. Você sobe... Girando e girando - respondeu ele de um jeito sarcástico e ríspido, dando alguns passos furiosos para a frente a fim
de apontar onde começava a escada circular ao lado da Sala de Leitura. Mas o fato de que estava irritado com Elliott passou totalmente despercebido por ela, que
disparou para a escada e subiu com pressa, sem dizer uma palavra.

Resmungando, Will foi atrás dela. Quando finalmente chegou à passarela no alto, atravessou-a e entrou na primeira sala de exposição. Elliott não estava ali, então
ele foi para a sala adjacente. Arfando de subir tanta escada, Will chamou por ela, sua voz parecendo mínima na rede de salas interligadas.

- Estou aqui - murmurou Elliott.

Ele correu os olhos pelo ambiente até localizá-la bem no meio da sala em que estava, tão imóvel que ele simplesmente não viu. Ela estava de olhos fechados.

- Ah, você está aí! - Will riu. - Esta sala é mesmo uma ótima escolha. Quando eu era criança, costumava vir para cá ver as múmias porque... - Ele se interrompeu,
aproximando-se de uma de um mostruário retangular. Estava em um esquife de tampa aberta, de madeira rudemente entalhada. Will apertou a cabeça no vidro para ver
a múmia tão familiar a ele, de todas as visitas que fez durante anos. O corpo pequeno estava enroscado numa posição fetal num leito de areia no fundo do esquife.
- Porque era muito legal - concluiu, baixando os olhos para a pele ressecada e a carne rachada da cara da múmia, seus dentes marrons aparecendo pela bochecha rompida.

- Está aqui - disse Elliott em voz baixa.

- O quê? - Will correu para o canto. Ela estava ao lado de um imenso sarcófago de pedra, sua superfície coberta de hieróglifos.

- Como assim, está aqui? Não pode ser. Não teria sobrado nada aí.

Tendo retirado a Bergen e a colocado junto do rifle no chão, Elliott passava as mãos pela tampa do sarcófago.

- Não, está bem aqui - repetiu. - Eu sinto.

- Ah, que ótimo. - Will soltou o ar, cansado. - É claro que você escolheria o sarcófago mais descomunal do lugar todo.

As mãos de Elliott foram parar em um painel que mostrava duas serpentes entrelaçadas no meio da tampa volumosa.

- Bem aqui - sussurrou, passando os dedos sobre as serpentes. Ela parecia estar num pânico desesperado ao tentar enganchar os dedos sob a tampa para levantá-la.
Era inútil; Will sabia que ela não teria a menor chance, simplesmente pelo peso.

- Tudo bem, espere um pouco. - Ele baixou a Bergen e a Sten no chão ao lado do equipamento de Elliott. - Precisamos encontrar uma alavanca qualquer. Um pedaço de
metal vai servir.

Elliott se recusava a sair do lado do sarcófago, assim Will procurou em volta ele mesmo. Por fim descobriu um kit de incêndio no corredor, onde havia alguns baldes
e uma mangueira enrolada. Ao lado havia um machado em uma caixa com frente de acrílico. Ele a quebrou com um chute e retornou com o machado. Servia para colocar
a ponta por baixo da pedra desgastada da tampa, mas não teria utilidade nenhuma para erguê-la.

- Não adianta - murmurou ele enquanto seus olhos caíam no grande ídolo de pedra, uma imensa cabeça de faraó entalhada na pedra, de cerca de três metros de altura,
ao lado do sarcófago. Ele contornou a cabeça para examiná-la de diferentes ângulos, depois verificou com muita atenção que distância tinha do sarcófago. Por fim,
foi atrás da cabeça, descobrindo quanto espaço havia entre ela e a parede.

- Será que... - falou ele em voz baixa, erguendo a lente do olho para ver a cabeça à luz da lua, que entrava por uma janela no alto da parede.

Depois assentiu consigo mesmo.

- Elliott, preciso de você aqui. Se conseguirmos virar isto, calculo que cairá no seu sarcófago e talvez o quebre.

Ele precisou de algum tempo para convencê-la a deixar o sarcófago e acompanhá-lo à parte de trás da cabeça do faraó. Depois ela pareceu entender o objetivo. Ele
tentava lhe dizer onde queria que ela ficasse quando de repente Elliott pôs a mão na própria nuca.

- Qual é o problema? - perguntou Will.

- Não sei... Só senti uma dor muito forte aqui. Agora passou.

Como Elliott parecia estar bem, Will explicou novamente sua ideia e depois, com os dois de costas para a parede e os pés escorados contra o faraó, ambos escalaram
até se colocarem mais ou menos um metro e meio acima do chão.

- Três... Dois... Um. - Ele fez a contagem regressiva, e os dois empurraram com toda força. A cabeça do faraó balançou um pouco. - Aí está! Se mexeu! - exclamou
Will, entusiasmado. - Elliott, isso pode dar certo mesmo!

Por um momento ele virou a cabeça para olhar pela janela, seus olhos se demorando na lua.

- Howard Carter, se estiver aí em cima vendo isso, quero que saiba que lamento muito - murmurou ele. - Tudo bem. - Dirigiu-se a Elliott. - Vamos pegar ritmo até
que este busto caía. Só espero que vá para o lado certo, ou seremos esmagados como... Como coisas esmagadas.

Will repetia sem parar, "Empurre... Empurre... Empurre...", enquanto o faraó se balançava de um lado a outro, e então, com um último "EMPURRE", o busto perdeu o
equilíbrio e tombou para a frente. Will e Elliott pularam para o lado quando o faraó caiu bem no alto do sarcófago com um baque de abalar o chão.

Os dois deram a volta para olhar e viram o sarcófago também tombar no que parecia câmera lenta. Sua tampa imensa deslizou para o chão, espatifando o mostruário de
vidro antes que finalmente viesse a parar.

- O que foi que eu fiz? - disse Will ao ver os danos na cabeça do faraó, na tampa do sarcófago, quebrada ao meio, e na múmia no mostruário de vidro.

Mas Elliott não estava nem um pouco preocupada com isso. Agachou-se perto da tampa quebrada para pegar uma coisa entre os cacos. A tampa não era maciça - por dentro,
havia um objeto.

Ela se levantou com ele. Era uma espécie de bastão de quase sessenta centímetros.

- Meu Deus! - exclamou Will. - É igualzinho à torre!

E era mesmo; com a mesma seção na ponta, podia ser um modelo da torre do mundo interior. Também parecia ser do mesmo material, sua superfície lisa e cinza.

E, quando a pele nua da mão de Elliott entrou em contato com ele, uma faixa em volta do bastão emitiu uma intensa luz azul. Era idêntica à luz que eles testemunharam
na torre e na pirâmide.

- Ah, então as baterias ainda estão boas - sussurrou Will, tentando não rir da estranheza de tudo aquilo.

- Foi isso que vim procurar - murmurou ela, levantando-se e erguendo o objeto diante de si com reverência.

- Mas o que é isso? Uma espécie de arma... Uma clava? - perguntou Will, depois algo lhe ocorreu. - Espero que não se transforme de repente em outra torre, né?

- É um cetro e preciso levá-lo de volta. - Elliott tinha os olhos fixos nele.

À menção da palavra, Will deu de ombros levemente.

- Tudo bem, então é um cetro, posso ver? - Ele avançou um passo, de mão estendida, mas Elliott afastou o objeto.

- Não, não pode - disse ela de um jeito incisivo. - Você não deve tocá-lo.

- Tá legal, tanto faz. - Ele deu de ombros de novo, indo examinar as partes quebradas da tampa do sarcófago onde esteve escondido o cetro. Havia um canal circular
cavado bem no meio da pedra grossa da tampa que, evidentemente, agora estava vazio. - Então este seu cetro devia estar escondido ali há séculos sem ninguém ter a
mais remota ideia. - Ele pensava em voz alta. - E é claro que todas essas relíquias foram trazidas para a Inglaterra por colecionadores vitorianos tipo há um ou
dois séculos. Então este sarcófago deve ter estado no Egito por todos os séculos antes disso. Foi lá que seu cetro se perdeu?

Mas Elliott já pegava o rifle e a Bergen e saía da sala.

- Ei, você, da varinha de condão! Para onde vai agora? - gritou Will ao ouvir a porta bater após ela sair.

Pegando a Bergen e a Sten, ele correu pela passarela e a alcançou vários degraus abaixo quando ouviu um tiro martelar tão alto que as janelas chocalharam. Os dois
ficaram petrificados.

 

- Isso foi perto - gritou Elliott. - E é de uma arma automática.

- Pode ser o exército? - sugeriu Will.

Vinha de fora do museu, e Elliott tinha razão - foi muito perto. Eles desceram correndo a escada circular até que podiam ver através da entrada principal.

Houve outro disparo e um estrondo imenso.

- Um tanque! - gritou Will. - Que diabos!

Tinha disparado pela escada da fachada e partia diretamente para as portas, atropelando-as e triturando metal e vidro.

Parou ali, com metade para dentro do prédio e metade para fora. O tiro automático veio de novo - o volume ensurdecedor nos confins do museu enquanto o átrio atrás
do tanque era crivado de balas.

A escotilha se abriu, e alguém saiu dela.

Elliott foi a primeira a reconhecer quem era pela mira do rifle.

- Drake! - gritou ela.

- Elliott? - gritou ele em resposta.

Will e Elliott desceram a escada correndo. Drake tinha saído do tanque.

- Captamos o sinal de seu radiofarol - disse enquanto Elliott jogava os braços envolta dele e o abraçava com força. - Mas nem acreditei que seriam realmente vocês
dois! - acrescentou. Balançando a cabeça, Drake sorriu para Will. - E como conseguiram voltar para cá?

- Isso vai precisar de alguma explicação - disse Will, depois se interrompeu ao perceber a aparência do amigo. - Drake, o que houve com você?

Elliott também deu um passo para trás, viu a palidez mortal de Drake e não só que seu braço estava numa tipoia, mas que a cabeça e as mãos estavam cobertas de curativos.

- Foi a explosão no poro. A radiação me pegou.

- Ah, não - disse Elliott muito baixo.

Nessa hora a metralhadora disparou de novo. Ao parar, ouviu-se um grito urgente de dentro do tanque.

- Quem está aí? - perguntou Elliott.

- Jiggs - disse Drake. - Os Armagi estão se reunindo lá fora, então precisamos dar no pé.

Jiggs gritava tanto que sua voz ficou rouca.

- Mas, que droga, entrem logo!

- Precisamos ir! - exclamou, já voltando para dentro do tanque.

A metralhadora abriu fogo de novo, abafando o que Elliott dizia: "Preciso proteger isto." Simplesmente jogando o rifle de lado, ela meteu o cetro dentro do casaco
e fechou o braço sobre ele. Drake mal acreditou ao vê-la descartar sua arma daquele jeito. Mas não era hora de pedir explicações.

- Eles estão de uma ponta a outra! Não consigo dar conta de todos! - Jiggs disparou mais uma vez nos Armagi.

- Meu Deus, andem logo, vocês dois! - gritou Drake, acenando freneticamente para eles da torre.

Elliott o alcançou, e Drake a pegou pela mão.

- Não! Não tem espaço! Largue a Bergen! - gritou ele. Ela jogou a mochila de lado, e ele a puxou para a escotilha.

Já no alto do tanque, Will tirou a Bergen para passá-la a Drake.

- Deixe essa porcaria também! - gritou Drake.

Agora a arma disparava continuamente.

- De jeito nenhum! - insistiu Will. - Todas as minhas coisas estão aqui!

Drake ficou furioso, mas pegou a Bergen da mão do menino e estava jogando para dentro do tanque quando Jiggs gritou: "Brecha! Estão passando!"

Houve um estrondo dos painéis de vidro bem acima do tanque, e as portas dos dois lados implodiram.

Embora tivesse perdido um ou dois segundos ao se proteger da chuva de cacos de vidro, Will ainda podia ter conseguido se a torre, naquele instante, não tivesse rodado.
Quando recuou um passo, surpreso, ele escorregou e caiu de joelhos.

- Drake! - gritou Will, desesperado, estendendo a mão para o amigo, que fazia o mesmo da escotilha.

Não era apenas vidro que caía à volta de Will, mas objetos mais pesados.

Armagi.

Algo quase rasgou o braço de Will quando o pegou com suas garras e puxou.

A última coisa que Drake viu antes de fechar a escotilha foi o menino sendo levado da traseira do tanque por dois Armagi enquanto outros pousavam dentro do museu.

- Não, não, não, não. - Elliott gemia e lutava com Drake dentro do tanque que já se deslocava. - Não podemos deixá-lo! Precisamos voltar!

- Lamento, ele se foi. - Drake tentava meter algum senso em sua cabeça abalada. - Eles são muitos.

- Drake, eu preciso de você no L94 - disse Jiggs, que agora estava pilotando em vez de operar a metralhadora do tanque. Enquanto passavam pelos portões e pela rua
na frente do museu, ouviram-se baques surdos dos Armagi batendo no casco.

Jiggs xingava em voz baixa. Não porque houvesse qualquer possibilidade remota de que os Armagi penetrassem a blindagem Chobham do tanque, duas vezes mais forte do
que aço, mas porque ele tinha imensa dificuldade de enxergar para onde ia. O mero número de Armagi pelo caminho impossibilitava isto. E ao prosseguir, tentando deduzir
onde ficava a estrada, o Challenger se chocava com veículos abandonados.

- Se eu conseguir enxergar alguma coisa, vou entrar à esquerda na Southampton Road - anunciou sem fôlego. - Depois para o norte. Precisamos pensar em como...

De repente Elliott parou de chorar.

- Não! Vá para a direita! - ordenou ela.

- Para a direita? Mas você não sabe... - Drake começara a falar quando ela tirou o cetro de dentro do casaco. Por um momento Drake e Jiggs ficaram em silêncio, maravilhados
com a luz azul que enchia o tanque.

- Acho que precisamos tirar esses benditos Armagi da nossa cola - disse Drake -, depois encontrar um lugar tranquilo para colocar tudo em dia.

- Que tal os salões de chá da Fortnum's? - ironizou Jiggs, mal-humorado.

 

Puxado do tanque, Will caiu estatelado de costas. Bateu no chão com força e ficou completamente sem fôlego. Só pôde ficar deitado ali, tentando obrigar os pulmões
a funcionar de novo.

Quando finalmente conseguiu recuperar o fôlego e puxou algum ar, o potente motor do tanque acelerou e uma nuvem de fumaça quente da descarga rodopiou em volta dele.

Foi o pior barulho do mundo porque ele sabia muito bem o que significava. Drake e Elliott não podiam fazer nada por ele.

Os dois iam embora.

Sem ele.

O tanque partia, pesado, e ele tentou ao máximo focalizar em sua vizinhança imediata. Não estava com a lente de Drake, assim o problema não era seus olhos se adaptarem
à luz da lua, mas seus sentidos, que estavam muito embaralhados. Formas se deslocavam em volta dele, muitas formas.

Na calma relativa depois que o barulho do motor do tanque se retirava ao longe, ele ouviu os Armagi se aproximando, seus pés pisando em vidro quebrado.

Por um ou dois segundos, enquanto ele estava de costas, nada aconteceu. Mas assim que tentou erguer a cabeça, algo golpeou sua boca. A pancada foi tão violenta que
ele ouviu o estalo de um de seus dentes se quebrando.

Will não tinha ilusões de que a situação não era desesperadora. Por um instante desejou que o tanque tivesse dado a ré por cima dele e o matado, afinal não viria
ajuda nenhuma. Não agora, com ele no meio de todas aquelas feras, que não parariam por nada - ele não podia implorar por sua vida como faria com um ser humano.

Will olhou rapidamente as figuras. Viu os olhos escuros inumanos contra a transparência de seus corpos. Viu as bordas serreadas de suas asas como muitas adagas de
vidro.

Ele ia morrer.

E sabia que provavelmente era a última coisa que devia fazer, mas tentou se sentar.

Um deles de repente atacou seu peito, com tal intensidade que ele de novo foi jogado no piso de mármore.

Depois outro golpe. Um chute na cabeça de alguma coisa pontuda. Desta vez Will teve o vislumbre da coisa vindo para ele - parecia a perna de uma ave imensa.

Havia sangue em seus olhos. Só o que conseguia escutar era o bater de tambor da própria pulsação.

Vou desmaiar, pensou ele. Mas isto é bom.

E então houve outra coisa. Outro som.

Ouviu enquanto o manto escuro da inconsciência caía sobre ele.

Era uma buzina de carro.

E então ele desmaiou.

 

- Eles estão colados na gente - disse Jiggs. A Kingsway estava razoavelmente livre de veículos, assim ele não se conteve, quase levando o tanque a seu limite de
velocidade de cinquenta e seis quilômetros por hora. Mesmo assim, os Armagi ainda os seguiam obstinadamente, voando em volta como um enxame de vespas furiosas.

Na estação de comando, Drake parecia exausto ao ver pelo periscópio traseiro as criaturas que os perseguiam.

- Temos de achar um jeito de nos livrarmos deles - murmurou.

- Lembra a manobra do caranguejo fantasma? - perguntou Jiggs.

- Mais ou menos... Mas era chamada assim mesmo?

Jiggs virou o tanque para a Aldwych.

- Não tenho certeza, mas você sabe o que quero dizer. Tem de haver um prédio adequado por aqui.

- Por que não dá a volta por esta quadra até vermos alguma coisa? - disse Drake.

Jiggs seguiu sua sugestão e contornou a Bush House e os outros prédios no meio da Strand e assim, em minutos, eles tinham voltado para a Aldwych pelo lado leste.

- E, Elliott, vamos precisar de uma cortina de fumaça, como dizem. Dê uma olhada e veja se consegue encontrar os controles das...

- Granadas de fumaça L8. Devem ficar perto do controle de elevação - interrompeu Jiggs. - Senão, há outro jeito de fazer isso, queimando o diesel nos canos da descarga.

- Como sabe disso? - perguntou Drake.

- Uma vez dei um passeio num desses.

- Tudo bem, acho que encontrei - disse ela, apontando uma série de chaves numeradas.

- Ative - ordenou Jiggs. Ligou a chave mestra no painel e esperou.

- Jiggs, peguei um provável candidato para nós - anunciou de repente Drake. - Vê aquele restaurante bem na esquina da Kingsway? Se conseguir escapar das árvores
e bater à direita, talvez possamos derrubar as colunas principais.

- Parece promissor - respondeu Jiggs.

- O que estão tentando fazer? - perguntou Elliott a Drake com preocupação.

- Ele está tentando nos enterrar - disse Jiggs.

- É um truque antigo. Criar alguma confusão com fumaça, depois, se acertarmos o prédio certo e tudo sair como queremos, vamos ficar debaixo dos destroços. - Drake
virou-se para Jiggs. - Vamos tentar na próxima volta.

Enquanto mais uma vez contornavam os prédios na ilha no meio da Aldwych e o restaurante novamente entrava em seu campo de visão, Drake deu a ordem para Elliott disparar
as granadas. Elas ricochetearam dos dois lados do prédio, explodindo e espalhando uma nuvem grossa e cinza pela rua.

- Agora, segurem-se - avisou Jiggs, acelerando o Challenger diretamente para o prédio da esquina. - E me desejem sorte, porque tenho visibilidade zero.

Segundos depois houve um enorme estrondo, e o tanque reduziu até uma parada súbita, jogando todos para a frente. Mas Jiggs pisou no acelerador de novo, e o tanque
avançou um pouco, antes de ele desligar o motor.

Agora se ouvia apenas um rangido e o barulho dos destroços batendo no casco do lado de fora.

Do assento do piloto, Jiggs olhou por sobre o ombro, mostrando o polegar para cima.

- Agora fique em absoluto silêncio - disse Drake a Elliott.

A manobra foi um sucesso. O tanque penetrara a frente do restaurante, derrubando várias colunas de sustentação, e uma parte do andar de cima desabou em cima dele,
cobrindo-o completamente. À medida que o vento soprava a fumaça, o tanque ficou quase inteiramente escondido, e os Armagi não tinham para onde voltar sua atenção.

- O que você acha? - sussurrou Jiggs depois de algum tempo.

- Deu certo? - perguntou Elliott.

- Não dá para ver nada pelo periscópio, mas acho que sim. Imagino que só vamos saber que não deu se os Armagi chamarem os Limitadores para jogar explosivos em nós
- respondeu Drake. - Só espero que tenha ar suficiente para todos nesta lata de sardinha. - Ele balançou a cabeça e olhou a cabine. - Nunca morri de amores por tanques...
Detesto espaços pequenos. - Ele se virou para Elliott. - Tudo bem, então, qual é a história da varinha brilhante nesse seu casaco?

 

PARTE QUATRO

Caos

 

Capítulo Dezoito

 

Com o motor roncando, o tanque trovejou pela Fleet Street; às vezes batia nos carros pelo caminho para afastá-los, às vezes simplesmente passava por cima deles.
Assim que Jiggs dera a ré e saíra de baixo do entulho, Drake entregara a posição de comandante a Elliott. Ela sabia exatamente onde queria que fossem e agora monitorava
o caminho à frente usando o periscópio.

Drake sofria muito com a doença da radiação e acolheu a oportunidade de descansar, embora fizesse o máximo para acompanhar o que acontecia.

- É você quem manda de novo, como nos velhos tempos. - Ele riu enquanto a menina dava orientações a Jiggs no compartimento do piloto na frente do tanque.

Elliott lhe abriu um sorriso, depois gritou para Jiggs ao chegarem a um cruzamento.

- Direto em frente. Continue.

- Ludgate Hill - anunciou Jiggs, o tom do motor se alterando ao subir a leve ladeira.

- Ali! Lá em cima! - gritou Elliott, apontando.

Olhando pelo periscópio, Jiggs levou um momento para responder.

- A catedral de St. Paul? Está brincando?

- Não, é isso mesmo! Continue em frente! - gritou ela. - Preciso entrar... Pode passar pelas portas?

- Entrar? O que você quiser. - Jiggs riu. - Já detonei uma instituição britânica hoje, por que não outra?

- Depois de entrarmos, quero que você pare - acrescentou Elliott.

Drake balançou a cabeça.

- Se fizermos isso, os Armagi vão cair em cima de nós de novo rapidinho. Então, use o mesmo MO... Dê meia-volta e mantenha-os ao largo com a L94.

- Entendi. Segurem-se bem! - gritou ele ao atingirem dois postes de pedra na margem da área de pedestre da frente da catedral, arrancando-os como tocos de árvore
podres. Depois fez uma curva abrupta com o tanque, e no processo chocou-se contra a estátua na frente da St. Paul. - Epa! Acho que acabei de bater na rainha Vitória!
- Ele pôs o tanque em marcha a ré e pisou fundo no acelerador.

Drake e Elliott se seguravam, e Jiggs, avaliando aonde ia pelo periscópio reverso, apontou diretamente para as portas duplas de madeira no alto da escada. Infelizmente
havia duas imensas colunas de pedra, sem espaço suficiente entre elas. Com um estrondo grave e ressonante, o tanque ficou preso entre as colunas e parou repentinamente.

- Meu Deus, está pilotando esta coisa ou o quê? - Drake parecia bastante abalado por ter sido tão sacudido.

- Faço o melhor que posso - rebateu Jiggs. - Considerando que tem duas porcarias de colunas no caminho - acrescentou ele em voz baixa, dando a ré para arremeter
novamente escada acima.

Desta vez, teve mais sucesso. Com um forte estrondo, uma das colunas tombou, e o tanque, embora fosse erguido por uma lateral pelo que restava da coluna espatifada,
ainda partiu com impulso suficiente para as portas altas de carvalho. Houve um esmagar alto, e as duas portas foram arrancadas das dobradiças.

- Chegamos, gente - disse Jiggs, pisando nos freios.

- Me lembre de não deixar você dirigir de novo - disse-lhe Drake antes de se virar para Elliott. - Tudo bem, estamos muito expostos aqui, à luz do dia. Vamos fazer
o que você precisa, depois saímos com a maior rapidez possível. E espero que isto não seja uma brincadeira doida.

Drake seguiu Elliott, que subia pela escotilha da torre e pulava do tanque. Depois de verificar o interior da catedral, vendo que não havia nenhum Styx, eles correram
pela nave central. Ao chegar à área debaixo do imenso domo da St. Paul e à Galeria dos Suspiros, Drake continuou por algum tempo na direção do altar até perceber
que estava sozinho. Virou-se e encontrou Elliott parada bem abaixo do domo.

- É aqui - disse ela, fechando os olhos.

Drake franziu a testa.

- O que é? Não entendi. O que pode ter aqui que vai ser de alguma ajuda a todos nós? - exigiu saber ele, o desespero evidente em sua voz.

- Sinceramente, não sei. - Elliott abriu os olhos e segurou o cetro diante de si.

Drake retornou até ela.

- Mas isto é uma catedral... O que está procurando aqui? E por que justo aqui? O que há de tão especial nesse lugar?

- Eu sinceramente ainda não sei - confessou Elliott. - Will achava que tinha alguma coisa a ver com as linhas de ley... E pode ser por isso que aqui sempre foi um
lugar sagrado.

A essa altura, Drake estava perdido.

- Linhas de ley? Lugar sagrado! Mas que besteira New Age é essa? Sei que precisamos muito de um milagre, Elliott, mas isso é tão lou...

Ele não terminou a frase porque Elliott, como as mãos segurando o cetro, deu meia-volta no bastão.

- O que é isso? - sussurrou Drake enquanto ele e Elliott notaram o fenômeno mais bizarro possível. Era como se a luz neles e no chão à sua volta tivesse sofrido
alguma alteração no espectro.

Esse efeito ficava mais pronunciado a cada segundo até que eles descobriram estar exatamente no meio de um hemisfério de luz azul trêmula, de cerca de doze metros
de diâmetro. A beira do hemisfério refluía e se alterava como uma camada de óleo na água.

De repente, um vento forte varreu o interior da catedral, com intensidade suficiente para que os bancos fossem arrastados no chão e os hinários batessem no ar como
aves perturbadas levantando voo.

Ao vento, de imediato se seguiu um estalo imensamente alto e o barulho de uma rachadura, como se toda a estrutura do prédio sofresse forte tensão.

- Abaixe-se! - gritou Drake, olhando acima deles.

Em menos de um piscar de olhos, o domo da St. Paul alçou voo.

E, com a mesma rapidez, sumiu completamente de vista.

- O que você fez? - Drake tinha o primeiro vislumbre do céu azul. Ele avançou para Elliott, pronto para protegê-la dos pedaços de alvenaria e madeira que caíam no
chão a sua volta, mas era desnecessário. Nada realmente caía dentro do círculo azul onde eles se encontravam.

Drake ainda olhava para o alto, completamente perplexo.

- Para onde ele foi? - murmurou, balançando a cabeça em completa incredulidade. Era como se um gigante simplesmente tivesse apanhado o topo de um ovo cozido com
uma colher.

Elliott se limitou a dar de ombros.

- Vimos uma coisa assim na pirâmide.

Ainda balançando a cabeça, Drake tentava entender.

- Bom, você me pegou. - Depois ele riu. - Contrariando as expectativas, este prédio sobreviveu à Blitz, e nós acabamos com ele agora! - Ele voltou a atenção à bolha
azul reluzente à volta. - E o que é esse show de luz?

Elliott deu de ombros de novo, sem explicação alguma. Em vez disso, olhava em volta como se estivesse decepcionada, como se esperasse mais.

O L94 no tanque começava a martelar os degraus da frente, e Drake foi trazido de volta à gravidade da situação de seu grupo.

- Tudo bem, já chega - decidiu ele. - Somos alvos fáceis aqui. É hora de irmos.

Como que para provar seu argumento, algo entrou voando pelo telhado aberto. O primeiro Armagi desceu e felizmente não atacou logo, dando a Drake tempo de esvaziar
o pente de seu fuzil de assalto nele. Voavam pedaços da criatura como nacos de gelo, caindo no chão.

Vários outros Armagi desceram ao chão da catedral, mas, enquanto Drake trocava o pente, não pareciam estar atacando.

Ele preparou o fuzil, observando que eles continuavam imóveis.

- Qual é o problema deles? Por que não estão vindo para cima de mim? - Nenhum Armagi fizera movimento nenhum, como se não quisessem entrar no círculo de luz azul.

Drake e Elliott se olharam, mudos por um momento.

Cada vez mais Armagi pousavam dentro da catedral, mas ainda não avançavam.

- Sei que você está a salvo deles, mas eu não estou. O que está havendo? - perguntou Drake.

- Talvez seja por causa desta luz - sugeriu Elliott.

Drake deu de ombros, olhando a entrada da catedral.

- Aposto que não vai nos manter a salvo dos Limitadores. O tanque é o único jeito de sairmos daqui, mas como posso alcançá-lo agora? Não posso correr através deles
todos. - Drake olhava os Armagi parados. De repente ele se sentou, como se toda sua energia o houvesse abandonado.

Ela percebeu o esforço que Drake fazia e a gravidade da doença de radiação. De imediato foi a ele.

- Salve-se, se puder - pediu-lhe Drake. - Olhe para mim. Seja como for, estou acabado.

 

- Mas o que foi isso, pelo amor de Deus? - gritou Parry pelo fone enquanto seu helicóptero liderava a formação sobre Londres.

Ele e todos a bordo estavam hipnotizados pelo que parecia um tornado contra o céu da manhã. Parecia começar como um jato escuro acima do nível dos telhados e se
alargava em um ciclone negro girando em direção às nuvens.

- Alguma explosão? - sugeriu o piloto.

- Nunca vi um padrão de explosão como esse na minha vida - respondeu Parry enquanto começavam a cair destroços em volta deles. - Alguém tem alguma ideia brilhante
do que está acontecendo?

- Não posso ajudá-lo com isso, mas na hora parece ter havido a mãe de todos os picos de energia - contou Danforth, observando o mostrador de LED do dispositivo que
usava para localizar o sinal do radiofarol.

- Meu Deus! - O piloto exclamou quando um pedaço grande de telhado de chumbo despencou a uma desconfortável distância; ele desviou o helicóptero pouco depois. Os
destroços em queda não eram muito densos, mas um golpe direto de um dos pedaços mais substanciais de pedra ou madeira teria sido suficiente para derrubar um helicóptero.

- Todos ainda estão conosco? - Parry se virou para ver se os outros helicópteros não foram danificados.

Eddie observava os escombros espalhando-se pelas ruas abaixo, parte deles batendo nos prédios.

- Mas o que pode ter causado isso? - perguntou-se ele em voz alta.

- Acho que estamos prestes a descobrir. - Parry apontou o que ainda restava do estranho fenômeno à frente. - Não está diretamente em nossa posição, Danforth?

- Você pode ter razão - respondeu ele. - O radiofarol agora já está estacionário há algum tempo e parece estar no epicentro desta coisa. - Ele olhou novamente o
mostrador de LED. - E estamos quase em cima dele... Em mil metros... Quinhentos metros... E na mosca!

- Meu bom Senhor! - disparou Parry quando o helicóptero sobrevoou bem acima da catedral de St. Paul e eles viram o enorme buraco onde deveria estar o domo.

- É um de nossos tanques na escada - observou o piloto.

- Eu vi. E alguém está derrubando Armagi usando a metralhadora do tanque - disse Parry. - Muito bem... Quem estiver lá embaixo, está do nosso lado, e tenho certeza
de que ficará agradecido por alguma ajuda. - Ele falou pelo rádio com os outros helicópteros: - Quero equipes de dois atiradores descendo no alto do prédio em volta
daqui, e que seja rápido.

 

- Não! O que está fazendo? - exclamou Drake, fraco, quando Elliott começou a cortar o próprio braço.

- Feche os olhos e fique parado - disse ela, levando o braço até seu rosto. - Vou cobri-lo com meu sangue. Deu certo com Will, então não vejo por que não daria certo
com você.

Drake obedeceu, e ela começou a passar o sangue por todo seu corpo.

- Esta situação é um pouco diferente, sabe... Vamos ficar com esses camarões superalimentados até o pescoço depois que sairmos do anel de luz. Não estamos exatamente
evitando um ou outro pela rua - disse ele.

- Sei disso - respondeu ela.

Drake ficou em silêncio por um momento antes de voltar a falar.

- Você foi uma boa amiga. Sempre esteve presente para me ajudar nas Profundezas quando precisei de você.

- Não fique todo melodramático comigo e me deixe terminar de passar meu sangue em você. - Ela o repreendeu, rindo.

Eles foram à beira da bolha azul e tinham acabado de se preparar para sair quando o motor do tanque foi ligado. Partiu de ré para eles, esmagando bancos em suas
esteiras. O motor parou de novo, e Jiggs abriu alguns centímetros da escotilha, espiando para fora.

- Achei que ia precisar de uma carona - disse ele, olhando em volta.

Os Armagi na catedral estavam quase completamente imóveis, embora de vez em quando um deles abrisse e fechasse as asas como um passarinho que descansa.

- Em boa hora - disse Drake, e, com Elliott escorando, eles saíram da borda cintilante de luz azul.

- Ei, isso é muito doido - murmurou Drake.

Elliott estava em silêncio, vigiando os Armagi, que acompanhavam cada movimento deles.

Ao chegarem ao tanque, Elliott e Drake pararam por um momento. Um dos Armagi não conseguira sair do caminho a tempo e ficou preso embaixo do tanque, sua cabeça esmagada
pela esteira. Era estranhíssimo de olhar, porque o Armagi se transformava continuamente no corpo fino e longo de um Styx e voltava a ser um Armagi, sem parar. Tentava
se regenerar, mas o ponto atrás da cabeça que Martha havia identificado estava sob pressão da esteira do tanque, e ele ficou preso em algum lugar entre as duas formas.

- Legal - murmurou Drake com sarcasmo. - Ora você vê um monstro, ora vê outro.

- Vamos - incitou Elliott, escorando-o ao contornarem a criatura mudando de forma e subirem no tanque.

Depois que os dois estavam a salvo em seu interior, com a escotilha trancada, Jiggs olhou para Elliott e para o sangue que cobria Drake.

- Então o truque da máscara realmente funciona. Seu sangue os engana.

Sem esperar que qualquer um deles falasse, ele tombou a cabeça para os controles da metralhadora.

- Não quero preocupar nenhum dos dois sem necessidade, mas precisam saber que estamos quase sem munição. E estamos fazendo uma barulheira do diabo aqui, então precisamos
dar no pé antes que algum Limitador decida participar da festa.

 

Parry e seus homens estavam no alto de um prédio de escritórios que dava para a St. Paul. De trás do parapeito, bem na beira do telhado, eles viram o Challenger
dar a ré para dentro da catedral e sair de vista. E agora chegava um imenso número de Armagi, mas parando no pátio da catedral, como se esperassem por alguma coisa,
como se aguardassem uma ordem.

Parry estava prestes a consultar Eddie sobre a situação e particularmente sobre o comportamento dos Armagi quando tocou seu telefone por satélite.

- Oi, Parry, sou eu, Bob - disse o interlocutor.

- Bob, não pode esperar? Estou meio atolado agora.

- Não pode - respondeu Bob.

Parry franziu a testa.

- Tudo bem... Fale.

Houve um leve atraso antes de Bob voltar a falar.

- É só uma ligação de cortesia. Achei que você devia saber que estamos prestes a mandar um míssil nuclear até aí.

- O quê! Aqui? - Parry agarrava o telefone com tanta força que o estojo de plástico estalou. Ele acenou freneticamente para Danforth e Eddie ligarem os fones de
ouvido para escutarem também.

- Sim, senhor. Um de nossos submarinos no Atlântico recebeu a sequência de disparo e está esperando pela ordem final do presidente. Isso quer dizer que vocês têm
cerca de quinze minutos para cair fora daí.

- Posso perguntar por que estão fazendo isso?

- Claro, embora eu prefira que você veja uma coisa em vez de eu tentar dar alguma explicação. Estou infringindo cada regra do manual, mas vou lhe dar um link seguro
para ver. Tem alguma tela perto de você?

Danforth passou ao laptop mais próximo, onde trabalhava um dos homens de Parry, e digitou o endereço enquanto Bob soltava o vídeo. Uma imagem aérea entrou na tela.
Claramente era de um drone voando a certa atitude.

- Tudo bem, recebido - confirmou Parry. - O que quer me mostrar?

- Espere - disse Bob.

O curso do drone se alterou, e Parry viu a necessidade de urgência. Por um trecho do Tâmisa, em volta do Canary Wharf, um número imenso de Armagi se reunira e se
deslocava em densas colunas pelo chão. Enquanto Parry olhava o vídeo, a luz que se refletia dessas colunas de criaturas as fazia parecer riachos de prata derretida
ao chegarem à margem do rio e deslizarem para o Tâmisa.

- É a mesma história por todo o rio, da Canvey Island até o estuário. Um trânsito de massa em andamento - disse Bob. - E estamos rastreando seus movimentos desde
que eles entram na água, e eles estão migrando para o mar. Nossa melhor conjectura é de que isso é uma força de invasão a caminho do resto do mundo.

- A cela se abre, e todos os vírus novos são derramados - lembrou-se Parry.

- O que disse? - perguntou Bob, sem entender.

- Algo que meu filho costumava dizer sobre os Styx. Então, Bob, concordo que não há dúvida de que os Armagi estão em movimento, mas essa ameaça é tão grande? - Parry
tentava ver se havia algum motivo para evitar o ataque do míssil. - Quer dizer, porque não são os Armagi aéreos? Desse jeito eles se espalhariam bem mais rápido.

- Para um ataque furtivo, imagino. É mais difícil detectá-los na água. Ou talvez eles conservem energia nadando e possam cobrir distâncias maiores. Digamos, até
os Estados Unidos, por exemplo? É o que sugere um de nossos consultores científicos. Mas sua conjectura é tão boa quanto a minha.

- E exatamente quem aprovou esse ataque? - A voz de Parry era inflexível. - Com que autoridade isso está sendo feito, porque espero que não seja a boa e velha América
bancando a polícia do mundo mais uma vez por conta própria.

- Hã, Parry, não sei o que mais isso significa, mas na verdade são ataques, no plural... Há uma série de ataques nucleares programados. E, basicamente, todas as
nações do mundo endossaram a ação - respondeu Bob. - O Senado americano e o Pentágono... A Rússia, todos os Estados árabes... E há consenso unânime do Conselho Militar
Europeu e por todo o Oriente e a Ásia Central, exceto pelo... er... Cazaquistão, que parece não conseguir tomar uma decisão. Assim, efetivamente temos total e incondicional
consentimento global para um ataque preliminar a Londres, seguido por uma sequência ligando os pontos pelo Tâmisa, o litoral sul e as águas internacionais.

- Do jeito que você fala, parece muito clínico - disse Parry. - É do meu país que está falando.

- Desculpe, mas, como nós, o mundo não quer que a contaminação se espalhe para além da Inglat...

- Você tem que me arrumar mais tempo. - Parry o interrompeu incisivamente. - Pode adiar o ataque?

- E por que eu faria isso?

- Darei a você o endereço de outro link de satélite, e vamos colocar uma câmera na posição onde estou. Acreditamos que parte de nosso pessoal voltou do mundo interior
e está acontecendo algo muito estranho. Podemos estar perto de conseguir novas informações que possam nos ajudar - disse Parry.

Bob não se convenceu.

- Você não tem nada que eu possa usar a essa altura.

- Ainda não. Mas você verá pelo vídeo que os Armagi estão se reunindo aqui em grande número, mas não se mexem. Parece que alguma coisa os atrai para a cá e... Quem
sabe... Este último evento pode virar a mesa.

- Olha, verei o que posso fazer - disse Bob, hesitante. - Mas preciso de alguma coisa concreta de você para ontem.

- Entendido. Bob, vou deixar você com um de meus homens por um momento, mas continue na linha. - Parry passou o telefone por satélite ao soldado que estava ao laptop.
Imediatamente foi se juntar a Eddie e Danforth no parapeito. - Até parece que já não temos problemas suficientes.

 

Drake estava estendido no chão da cabine com uma lona enrolada servindo de travesseiro. Tinha os olhos fechados, e seu rosto era tão esgotado e pálido que ele parecia
mais morto do que vivo.

- Queria poder fazer mais alguma coisa por ele - sussurrou Jiggs a Elliott enquanto eles olhavam para Drake com preocupação.

- Por favor, não fale de mim como se eu não estivesse aqui. - Drake ainda estava de olhos fechados, mas conseguiu abrir um sorriso irônico.

- Não sabia que você ainda estava conosco, meu velho. - Jiggs riu.

- Dois peixes num tanque - murmurou Drake. - Um pergunta ao outro: 'Como se dirige essa coisa?'

- É tão ruim assim? - Jiggs gemeu, trocando olhares com Elliott. Os dois conheciam Drake muito bem: quanto pior a situação, pior a piada.

- Acho que sim - murmurou Drake. - Agora, podemos ligar esta coisa e dar o fora daqui? Talvez arrombarmos uma porta nova do outro lado do prédio, porque sem dúvida
haverá mais camarões na nossa frente agora.

- Não! - explodiu Elliott com tal veemência que Drake abriu os olhos. - Eu não posso ir. Ainda não.

 

Abaixado contra o parapeito na beira do telhado, Parry usava o binóculo para tentar ver dentro da catedral, onde o tanque dera ré.

- Precisamos saber quem está naquele Challenger e o que estão fazendo ali. Porque, seja lá o que pretendem, estão agindo como um ímã para os Armagi.

Eddie concordou com a cabeça.

- Não há dúvida de que parecem ter se desviado de sua rota original para o Tâmisa e, em vez disso, vêm aos montes para cá.

Danforth verificava mais uma vez o sinal do farol e sua direção.

- Talvez seja algo óbvio de dizer, mas aposto no tanque para o sinal VLF... É de onde se origina.

Parry voltou sua atenção ao que restava do telhado em domo da catedral, pensando em voz alta.

- Essa não foi uma explosão convencional. Alguma coisa muito estranha aconteceu aqui, e só rezo para que tenhamos dado em algo que possamos usar para sair desse
sufoco ou pelo menos ganhar algum espaço para respirar. - Ele se calou por um segundo e acrescentou: - Mas estamos ficando sem tempo. Precisamos mandar alguém fazer
um reconhecimento dentro do prédio.

Danforth pigarreou.

- Eu irei. Pode botar alguma comunicação para funcionar com quem está no Challenger. Sou a escolha lógica para fazer isso.

- É improvável que você consiga passar tendo de lutar com essa turma toda - disse Parry, olhando a horda cada vez maior de Armagi.

- Do jeito que as coisas estão, não creio que faça muita diferença se eu ficar aqui ou tentar minha sorte lá embaixo. Continuando assim, a probabilidade de sairmos
disso não é muito promissora - disse Danforth.

Parry fez uma careta e lançou um olhar pela silhueta de Londres.

- Acho que tem razão... Os helicópteros estão longe demais. Mesmo que eu dê a ordem para que voltem agora, duvido que algum de nós consiga escapar do raio da explosão.

- Então, por que não me deixa descer ali e fazer um reconhecimento do lugar? - perguntou Danforth.

- Não vou discutir com você. - Parry olhou o relógio. - Leve dois de meus melhores homens... Não levem muita coisa para não atrair atenção demais. Vocês podem usar
a passarela subterrânea e se aproximar o máximo possível da catedral, depois terão de improvisar. - Por um momento, todos se concentraram em um ponto a mais ou menos
seis metros da entrada da catedral, onde uma placa de transporte de Londres marcava o lance de escada que levava ao subsolo.

Danforth correu para reunir algum equipamento em uma bolsa carteiro e, minutos depois, juntou-se a dois soldados da SAS dirigindo-se para a rua atrás do prédio de
escritórios. Os três verificaram a área próxima, procurando por Armagi, mas não havia nenhum por perto. As criaturas pareciam se concentrar bem em volta da catedral,
o que, por enquanto, facilitava a vida, mas causaria problemas a Danforth à medida que se aproximasse.

Com um soldado posicionado atrás e um à sua frente, Danforth começou a dar a volta pela parede do prédio, os três espremidos nela, deslocando-se no maior silêncio
possível.

Quando chegaram à esquina, a entrada para a passarela subterrânea ficava a uma curta distância e, pressupondo que nenhum Armagi tenha descido ali, levaria os três
rapidamente ao pátio da catedral. Danforth procurava não pensar nos últimos seis metros que precisaria cobrir em meio à multidão de criaturas. Não tinha ilusões
de que todo esse exercício cheirava a uma missão suicida desesperada.

Ele estava quase na esquina quando ouviu um grito de trás.

- Danforth!

Danforth e os dois soldados se viraram.

Chester estava parado ali, sua espingarda apontada diretamente para Danforth. Martha estava ao lado do menino, com a besta também apontada para Danforth, enquanto
Stephanie colocava-se vários passos atrás, parecendo muito assustada.

- Chester, esta não é uma boa hora - respondeu Danforth, mantendo a voz baixa.

- Eu estava querendo falar com você - rosnou o menino - sobre o que você fez com meus pais. - Ele avançou para Danforth, sem mostrar medo, apesar de os dois soldados
terem os fuzis de assalto apontados para ele.

- Quer que sejam eliminados? - perguntou um dos soldados a Danforth.

- Eliminar a nós? - disse Chester, o lábio se torcendo cruelmente.

- Espere. - Danforth meneou a cabeça. - Chester, nós realmente não temos tempo para isso. Os Estados Unidos estão preparando um ataque nuclear sobre nós, aqui, em
Londres. Precisamos i...

- Eliminar a nós? - repetiu Chester. Ele virou a cabeça para Martha e lhe deu um breve aceno.

Com um risco de luz branca, os faróis atacaram os dois soldados, erguendo-os no ar e jogando os dois contra a parede. Eles escorregaram para a calçada, seus corpos
retorcidos e quebrados.

Danforth levou as mãos ao alto.

- Isto foi desnecessário - disse ele, a voz tranquila apesar do que acabara de acontecer. - E vejo que vocês estão usando os faróis. Eu estava me perguntando o que
me salvou daqueles Limitadores quando o GCHQ foi atacado.

- Você é o próximo, Danforth! - disse Chester. Seus olhos estavam ensandecidos; o rosto, contorcido de sua fome de vingança.

- Não! - exclamou Stephanie, sem conseguir desviar os olhos dos dois mortos. - O que está fazendo? Você não precisa...

Ela não sabia o que pensar da cruzada de Chester contra Danforth, mas matar dois homens que por acaso estavam no caminho era mais do que podia suportar. O irmão
mais velho de Stephanie tinha entrado para o exército nos meses antes de começarem todos os problemas, e ela não conseguia deixar de imaginar o irmão arriado ali,
seu sangue escorrendo pela parede. Stephanie tinha a respiração curta e era tomada de ondas de náusea.

- Isso precisa parar - disse ela.

Martha simplesmente a ignorou, com a besta ainda erguida.

Chester se aproximou mais de Danforth, apontando o cano da espingarda para ele.

- Estava dizendo alguma coisa sobre nos eliminar, seu monstro? Como você eliminou minha mãe e meu pai?

Danforth ainda tinha as mãos erguidas, mas nem uma vez estremeceu enquanto Chester brandia a arma para ele.

- Chester, se eu estava errado ou certo em fazer o que fiz... Em alguns minutos isso será irrelevante. Por que você não ouve o que estou lhe dizendo? Seremos alvo
de um ataque nuclear!

- Não dou a mínima. - A voz de Chester era um ronco grave.

Mas Stephanie se importava. Não tinha motivos para não acreditar em Danforth - a urgência em sua voz parecia bem autêntica e certamente não parecia que ele ainda
estava mancomunado com os Styx, senão ele estaria fugindo e se escondendo dos Armagi. E, além de tudo isso, ela se importava muito com os dois soldados mortos.

Ela fez a única coisa em que conseguiu pensar.

Tirou a imensa faca de caça do cinto de Martha e, agarrando o cabelo sujo da mulher, puxou sua cabeça para trás com a lâmina em seu pescoço.

Enquanto Martha praguejava, Stephanie tentou chamar a atenção do menino.

- Chester! Você foi longe demais. Não vai machucar mais ninguém.

- Fique fora disso! - berrou ele, sem nem mesmo se virar para olhar a menina. - Quero curtir este momento. O momento em que mato este traidor nojento.

- Não, Chester, você não vai fazer isso. - Stephanie tentava manter a voz tranquila, apesar do coração aos saltos. - Deixe que ele vá ou vou enterrar esta faca em
Martha.

Só agora Chester desviou os olhos de Danforth a fim de olhar rapidamente para trás. Mas seu olhar insano e fixo voltou a Danforth quase imediatamente, e ele desatou
a rir. Era uma gargalhada alta e perturbadora e sacudia todo seu corpo.

- Vai fundo, Stepho - disse ele. - Pode matá-la. Faça o pior que puder.

- Chester? - perguntou Martha em voz baixa. - Você não está falando s...

- Ah, cala essa boca, velha fedorenta! - Chester a interrompeu.

- Chester - Martha engoliu em seco. - Sou eu... É sua mãe que está falando.

A sede de sangue de Chester estava no auge. Ele não raciocinava ao falar.

- Tá brincando? Minha mãe? Você é tão parecida com ela quanto um balde de lesmas mortas.

Chester voltou a falar com Danforth num sussurro furioso, o cano da espingarda encostado na têmpora do homem.

Stephanie sentiu o corpo de Martha ficar tenso.

- Lamento que sinta isso, queridinho.

Martha apertou o gatilho.

A flecha da besta pegou Chester nas costas. Ele não gritou de dor nem de surpresa, mas um espasmo involuntário o fez jogar os braços de lado.

Danforth conseguiu pegar a espingarda, tirando-a da mão do menino que se dobrava no chão.

- Ufa. Graças a Deus - sussurrou Danforth, não porque estivesse a salvo de Chester, mas porque, se a arma fosse disparada, os Armagi apareceriam aos bandos. - Preciso
ir. Você tem tudo sob controle aqui? - disse ele a Stephanie, falando com tal rapidez que as palavras eram quase incompreensíveis. Ele não esperou por uma resposta
e correu para a esquina, saindo de vista.

Stephanie engoliu em seco.

Estava na mesma posição, com a faca apertada no pescoço de Martha.

- Chester - sussurrou ela, tentando lidar com que acabou de acontecer e olhando o menino imóvel. O sangue sumiu de sua cabeça, sua visão se turvou, e ela achou que
ia desmaiar.

E então Stephanie sentiu uma perturbação no ar e teve vislumbres dos faróis se aproximando do alto. Martha deixou cair a besta depois de dar o disparo, mas ainda
tinha as armas mais letais à sua disposição; suas "fadas" fariam qualquer coisa para protegê-la.

Imediatamente Stephanie recuperou os sentidos. Percebeu a péssima situação em que se encontrava. Não vou morrer aqui, disse a si mesma.

- Andando! - vociferou Stephanie para Martha, empurrando depressa a mulher pela calçada com ela. E quando Stephanie sentiu as costas contra a parede, puxou Martha
o mais próximo que pôde, cuidando para ficar metida atrás da mulher corpulenta e suas roupas, que pareciam uma barraca.

Stephanie sabia que por ora podia estar a salvo dos faróis, mas não tinha ideia de aonde iria a partir dali. Perguntou-se sobre a porta de onde saíram Danforth e
os soldados, mas não conseguia divisar nada daquela posição.

Martha chorava baixinho. Stephanie sentia seu corpo se sacudindo contra o dela.

- Está tudo bem, garotinha - disse Martha depois de um momento numa voz patética. - Não culpo você. Ele não era um bom menino. Nada parecido com meu doce Nathaniel.
Nada.

Stephanie e Martha olharam Chester, que jazia de cara para baixo, a flecha se projetando de suas costas.

- Ele está mesmo morto, não é? - perguntou Stephanie.

Martha deu de ombros e respondeu.

- Não precisa ter medo de mim. Não culpo você por nada. Você e eu fomos enganadas por ele.

Stephanie pensou na questão. Se o que Danforth disse era verdade - e isso era um risco, considerando o passado dele -, não importava muito se os faróis a matassem,
porque todo mundo ia morrer em breve de qualquer modo, dos mísseis americanos.

- Tudo bem - disse Stephanie por fim, retirando a faca do pescoço de Martha e soltando a mulher. - Desculpe ter feito isso com você, mas...

Martha deu vários passos para a beira da calçada.

Ela não se virou, mas estendeu a mão lentamente, com os dedos estropiados no ar, e soltou um assovio triste e deprimido.

Lá vem, pensou Stephanie, preparando-se. Vou ter o mesmo fim daqueles soldados mortos.

E os faróis vieram, mas, em vez atacar Stephanie, reuniram-se em volta de Martha, cercando-a com suas asas que riscavam o ar.

Era difícil contar quantos estavam ali, mas Stephanie pensou que eram todos, todos os sete.

E então, antes que ela percebesse o que estava acontecendo, os pés de Martha foram erguidos da calçada.

Ela foi alçada no ar e levada pelas fadas.

E se alçou cada vez mais para o céu, a cabeça arriada contra o peito. Depois os faróis a levaram por sobre os prédios, como uma versão gótica de Mary Poppins em
um pesadelo.

Stephanie quase sorriu ao pensar nisso.

Martha Poppins.

Vamos soltar um farol.

Ela sabia que Chester teria achado isso engraçado. O pobre e confuso Chester, que passou por tanta coisa e perdeu tanto, foi destruído por isso.

Ela descobriu que olhava fixamente seu corpo sem vida, mas não conseguia chegar perto dele. Sentira-se atraída por ele, por sua imprudência, e talvez no fundo acreditasse
que podia ajudá-lo. Salvá-lo de si mesmo. Mas agora não sentia nada por ele.

E então ela percebeu que talvez estivesse igual a ele.

Destruída.

 

Capítulo Dezenove

 

Os Armagi ocupavam toda a praça na frente da catedral - eram tantos que só havia espaço para ficar de pé. Esperavam em silêncio, seus olhos compostos voltados para
as portas quebradas da entrada. Um Bentley preto subia suavemente a ladeira de Ludgate Circus, e eles se afastaram para deixá-lo passar. A buzina do carro soou com
insistência ao parar.

- Tem algo acontecendo na frente - reportou Jiggs. Ele usava seu periscópio para tentar ver através da porta da catedral, mas a massa de Armagi dificultava isso.
- Acho que uma limusine acabou de parar - disse ele sem acreditar.

- Tem uma chance para adivinhar quem é - disse Drake enquanto Elliott olhava pelo periscópio, mas não conseguia ver muita coisa também.

- Quer que eu cuspa umas ervilhas grandes neles? - propôs Jiggs, apontando os controles de mira do canhão de 120 mm do tanque. - Não garanto que vou chegar muito
perto, mas vale a pena tentar.

Eles ouviram a buzina do carro novamente.

- Não se incomode. Eles não valem o esforço - disse Drake. - Só se mostrarão se houver alguma coisa que queiram.

- Cuidado... Muito cuidado. - Parry olhava as portas do Bentley se abrindo. - Olhe para eles... Não têm a menor ideia de que estamos aqui em cima. Ficaram confiantes
demais - sussurrou. Ele estava se coçando para dar a seus homens a ordem de abrir fogo, mas em vez disso continuou a avaliar a situação. - Temos a casa cheia...
O Velho Styx, a gêmea Rebecca, a mulher Styx e...

 

Hermione arrastou alguém da traseira do carro. A cara do homem estava inchada e cheia de hematomas e os olhos mal se abriam.

- Faça um esforço, sim? - zombou Hermione enquanto ele se encostava no carro, sua cabeça tombando como de um bêbado.

- Meu Deus! É Will! - sussurrou Parry. - Então pelo menos alguns conseguiram voltar. Mas ele levou uma surra e tanto. Só espero que não tenha trazido nenhum daqueles
supervírus do mundo interior, se foi liberado. Isso me criaria uma encrenca com os ianques.

- Essa eu ouvi - disse Bob, indignado, pelo fone de Parry. - Que supervírus?

- Se você vai ficar ouvindo, fique de boca fechada - disse-lhe Parry. - Agora quero todas as estações se reportando a mim.

O fone de Parry estalou.

- Alvo confirmado na mulher Styx - disse o primeiro dos soldados. Depois, um por um, os outros atiradores nos telhados em volta da catedral começaram a informar
Parry.

- Tudo bem, mas tirem o dedo do gatilho - avisou ele quando todos terminaram. - Ainda não tomaremos nenhuma ação... Repito... Nenhuma ação - informou-lhes pelo rádio.
- Tenham o alvo bem na mira e esperem minhas ordens.

- Parry. - Eddie chamou a atenção dele. Dois Limitadores apareceram do nada. Apanharam Will enquanto Hermione o empurrava para longe, arrastando-o para a catedral.

- Eles vão desfilar com Will. Isso significa que deve haver outros da equipe no tanque. Vão usar o menino para fazer uma troca, não vão? - perguntou Parry, baixando
o binóculo para olhar para Eddie.

O ex-Limitador assentiu.

- Era o que eu faria.

Exibindo-se em volta do carro, Hermione gritava para a catedral.

- Olá, olá! Venham brincar!

Dentro do tanque, todos ouviram sua voz e estavam se olhando.

- Escutem isso. É a Insetona, não é? - disse Jiggs. - Eles querem negociar. Acertou na mosca, Drake.

- Sei que vocês estão aí - chamou Hermione. - Estivemos rastreando o sinal de rádio que vocês, muito prestativamente, estão emitindo.

Os olhos de Elliott percorreram o chão do tanque até caírem na Bergen de Will.

- Mas que idiota eu sou! Foi assim que nos encontraram com tanta rapidez. Esqueci que o radiofarol ainda estava ligado.

Ainda olhando pelo periscópio do tanque, de repente Jiggs soltou um uivo curto.

- Isso! Tenho aquela mulher Styx na mira... Aquela que fugiu antes de chegarmos ao depósito. Vamos lá, Drake... Se eu rolar esse troço um pouco para a frente, podemos
fazer o que não conseguimos da última vez e acabar com ela.

Drake conseguira se colocar de pé para assumir o lugar de Elliott no assento de comando. Antes que pudesse dizer alguma coisa, Jiggs xingou.

- Nada disso, eu a perdi. Era uma oportunidade de ouro. - Jiggs ainda olhava pelo periscópio enquanto puxava o ar rispidamente.

- Ah, não - murmurou Drake.

- Que foi? - perguntou Elliott. Houve um silêncio agourento enquanto ela esperava que um deles respondesse. - Me digam o que é! - explodiu Elliott, sem conseguir
aguentar o suspense por mais tempo.

Drake tirou a cara do periscópio e simplesmente a olhou.

- Acho que são más notícias.

Elliott empurrou Drake de lado para ver. Will era escorado por um dos Limitadores, ao passo que o outro olhava o tanque por cima da cabeça dos Armagi.

- O que fizeram com ele? - disse ela.

- Deixem de timidez. Podem se juntar a mim aqui? - gritou Hermione. - Will está morrendo de vontade de te ver.

Elliott perdeu Will de vista porque os Limitadores o levaram para longe.

- Eles o estão levando - disse ela a Drake. - Temos de descobrir o que quer a Styx.

- Não seja maluca - disse Drake. - De jeito nenhum vou deixar que você coloque o pé para fora deste tanque, que dirá sair da catedral.

- Eles estão com Will lá fora! - gritou Elliott para ele. Ela não conseguiu conter o choro, mas respirou fundo e tentou recuperar o autocontrole. - A Styx pode estar
disposta a negociar. Eles sempre querem fazer acordos.

- Claro, e sempre os traem. Não, se alguém tiver de sair, deve ser eu - argumentou Drake. - Não tenho muito tempo mesmo. Se eles acabarem comigo, será puramente
uma diferença de tempo.

- Não, você não entende - disse ela, examinando o cetro reluzente, depois olhando fixamente nos olhos de Drake. Ela começava a entender o objeto. - Eu preciso sair.
É o único jeito de parar com esta loucura. Acredito realmente que posso parar com isso.

De repente Jiggs se sentou reto.

- Escutem só - disse ele, indicando um alto-falante perto de sua cabeça e se curvando para aumentar o volume. - Está sendo enviado ao rádio de ondas curtas do tanque.

O sinal de rádio não era forte e havia falhas ocasionais, mas a mensagem era bem clara: "... falando com os ocupantes do Challenger dentro da catedral de St. Paul.
Não sei quem são vocês, mas vocês têm um dos meus radiofaróis VLF. Saibam que o comandante recebeu confirmação de que os militares americanos pretendem atacar Londres
e o Sudeste com armas nucleares em questão de minutos. Se está em seu poder influenciar a situação, vocês precisam agir, e agir agora."

- Esse é Danforth - disse Drake, franzindo a testa para Jiggs.

"Vocês não poderão responder a esta mensagem. É apenas de transmissão de um local próximo. Repito, estou falando com os ocupantes do Challenger..."

- Mas de que lado ele está agora? - Drake refletia. - Ele não pulou para o barco dos Styx?

- Se é assim, ele está tentando nos levar a sair - raciocinou Jiggs.

- Mas não está, não é? Ele não está nos dizendo para fazer nada além de ajudar, se pudermos. Não está dizendo para sairmos do tanque para que os Styx nos peguem.
Disse que vem por aí um ataque nuclear. Por que ele faria isso?

A mente de Drake trabalhava a toda.

- E a referência ao "comandante" está na mensagem porque ele acredita que há alguém neste tanque que conhece Parry. Ele está se dirigindo a nós.

- E Parry tem ligações desse nível no Pentágono - completou Jiggs.

Drake respirou fundo.

- Tudo bem, parece que o relógio está correndo, e não temos nada a perder... Nenhum de nós.

- Você quer dizer que estamos correndo contra o tempo - corrigiu Jiggs.

- Tanto faz. E não me importo realmente de estragar este bronzeado maravilhoso com mais radiação. Já tive mais do que minha parte por este ano. - Drake pôs a mão
na trava da escotilha principal. Virou-se para Elliott, fixando seus olhos nela. - Você falou sério quando disse que ia sair? Está preparada para se encontrar com
eles?

Ela assentiu sombriamente.

- Tenho de sair... Não só por causa de Will, mas porque preciso acabar com isso.

- Tudo bem, eu e você vamos nos juntar ao baile - disse ele a Elliott.

Os Limitadores tinham carregado Will de volta ao Bentley. Eles o jogaram no capô, virando-o de costas. Will movia-se entorpecido e tentava falar, mas não saía som
algum.

- Deixe-o aí. A partir daqui, eu assumo - disse Hermione aos Limitadores. Ela estendeu um dos seus membros de inseto, prendendo Will no capô com suas pinças contra
o peito dele, embora Will não estivesse em condições de ir a lugar algum.

Assim que Drake e Elliott pularam para fora do tanque, os Armagi recuaram a fim de abrir uma passagem pela nave central até a entrada. Mantendo-se muito grudados,
os dois andaram lentamente, os Armagi guardando distância. Dessa vez havia mais do que o sangue de Elliott protegendo Drake.

E, enquanto os dois saíam da catedral e chegavam ao topo da escada, os Armagi do pátio também se separaram, formando um corredor até o carro. Drake e Elliott podiam
ver quem esperava por eles no Bentley... E viram Will esparramado no capô.

- Meu filho. - Parry via Drake sair da catedral e chegar à luz do dia. - Ele está vivo!

- E minha filha também. - Eddie localizava Elliott ao lado dele.

- Ele não parece nada bem. - Parry aumentou a ampliação do binóculo para ver o filho com mais clareza.

- Eles não deveriam saber que Will está praticamente morto? Então, por que estão se colocando na linha de fogo desse jeito? - disse Eddie. - A não ser que saibam
que a situação é desesperadora.

- Danforth deve ter conseguido - disse Parry. Mudando para uma frequência separada no rádio do fone, perguntou: - Você conseguiu, então? Onde você está?

Danforth estava na metade da escada de entrada da passarela subterrânea, espremido na parede, com o transmissor de rádio ainda nas mãos. Só o que podia ver da calçada
eram os membros inferiores dos numerosos Armagi reunidos ali.

- Não consegui atravessar todo o caminho - respondeu ele a Parry. - Mas fiz o que pude. Tentei enviar uma mensagem ao receptor de ondas curtas do tanque, e rezo
para que eles tenham ouvido.

- Acho que ouviram. Meu filho e Elliott apareceram do lado de fora da catedral alguns segundos atrás. - Parry olhou o relógio. - Mantenha contato. Não temos muito
tempo.

- Ah, meus dois alegres renegados - disse Hermione a Drake e Elliott. - Eu supunha que tinha de ser vocês, pelos relatórios que recebi do British Museum. Meus rapazes
- ela gesticulou para o mar de Armagi - me fizeram uma descrição sua.

Drake e Elliott desceram lentamente ao pé da escada da catedral.

- Você não precisa desta arma - disse Hermione a Drake. - Largue-a agora, ou o menino terá a garganta cortada. - Ela apertou a garra no peito de Will, e ele gemeu
alto.

Drake deu de ombros e largou a Beretta. Ela caiu com um estrondo na calçada, o único barulho em todo o lugar.

- Ótimo. Agora, não sejam acanhados. Venham se divertir também - ordenou Hermione aos dois.

Com os dois Limitadores agora de cada lado, o Velho Styx e Rebecca Dois estavam ao lado do Bentley. Não diziam nada - a mulher Styx claramente assumia o show.

- Muito bem, assim está bom. Parem aí - ordenou Hermione a Drake e Elliott. - Há mais alguém no tanque com vocês?

- Sobre o que você quer conversar? - perguntou-lhe Drake.

- Responda primeiro - insistiu a Styx, depois quase de imediato deixou para lá. - Não, vejo que eram só vocês dois. - Drake e Elliott giraram e viram o Limitador
na entrada da catedral, atrás deles. Evidentemente ele verificou o interior do tanque.

Se Elliott e Drake estivessem em uma situação menos desesperadora, teriam se maravilhado com a capacidade de Jiggs de se camuflar completamente em qualquer situação
em que se encontrasse. Naquele instante, não havia tempo para se prender a isso.

- Diga o que você quer - repetiu Drake.

- Não quero nada, e você não está em condições de pedir nada, não é? Só pensei que sua vaquinha mestiça gostaria de um lugar na primeira fila enquanto eu consumo
minha união com o namorado dela aqui.

- Deixe Will ir embora - ordenou Drake.

- Ah, eu pretendo fazer isso - falou Hermione. - Com duas sacudidas de um rabo de cachorrinho. - Era difícil entender o que ela dizia enquanto a ponta do tubo carnudo
se projetava de sua boca e se torcia com vigor. Ela se atirou para cima de Will, o tubo se estendeu plenamente entre seus lábios e se meteu na boca do garoto.

Drake e Elliott observaram apavorados os músculos do ovopositor se contraírem e um grande saco de ovos rapidamente ser espremido para baixo. Will se contorcia e
sufocava, tentando resistir, mas estava acabado.

Os ovos foram depositados bem no fundo dele.

- Isto é por assassinar todos os meus bebês no depósito - disse Hermione ao endireitar o corpo e limpar com as costas do pulso os fluidos pendurados nas meadas grudentas
de seus lábios negros. - Ah, eu estava guardando este casulo para um dia memorável como este. Só o melhor e mais guloso Armagi servirá para o malvado Billy Burrows.
Os queridinhos dentro dele são tão vorazes que devorarão suas entranhas antes que vocês consigam dizer... Comam seu coração.

Elliott estava pálida de choque, mas Drake se sacudia de raiva.

- Fizemos o que você pediu. Saímos do tanque e viemos para cá - rosnou ele, avançando. - Você podia ter poupado Will desse sofrimento. Deus me livre, vou dilacerar
você com minhas próprias mãos, sua abominação!

Hermione soltou uma gargalhada desagradável.

- Minha nossa, vocês, sacos de carne, são tão petulantes e tão te-di-o-sos.

Com uma chicotada de seus membros de inseto, ela produziu um som de quem estala os dedos.

Dois tiros soaram quase ao mesmo tempo, seus disparos ecoando dos prédios.

As balas o pegaram em pleno movimento, e Drake caiu sobre um dos joelhos. Ele colocou a mão no peito, o sangue vertia de dois ferimentos.

- Drake! - Elliott estava ao lado dele num instante, ajudando-o a se deitar na calçada.

 

- Ele foi atingido - disse Parry, quase sem respirar ao falar. - Meu filho caiu.

Houve um estalo no rádio, mas ninguém disse nada, esperando pelas ordens de Parry.

Eddie estendeu a mão para ele, segurando seu braço por um momento.

- Eu lamento, Parry, mas... - sussurrou ele.

- Ah, sim. - Parry lutava para recuperar o foco. - Todas as posições... Suspender fogo. - Ele observava Elliott se ajoelhar ao lado de seu filho mortalmente ferido,
uma figura pequena entre todos os Armagi.

- Por isso eles estão tão relaxados - disse Eddie. - Têm homens posicionados nos prédios a toda a volta. Aqueles tiros não foram de nenhum dos Limitadores no chão.

- Tem razão. - Parry não perdeu tempo em se dirigir novamente a seus homens pelo rádio. - Alguém pegou a localização daqueles atiradores Styx? Verifiquem todas as
janelas naquela direção e olhem atentamente... Eles devem ter várias equipes ao redor do lugar, talvez até nos andares abaixo de vocês. A uma ordem minha, quero
que sejam eliminados. Entendido? Quero cada um deles abatido.

Eddie olhou nos olhos de Parry e assentiu uma vez. Um tinha perdido o filho, o outro provavelmente perderia a filha.

E então mais uma vez eles voltaram a atenção para a praça da catedral.

A situação era tão tensa que ninguém no telhado com Parry percebeu o capitão Franz escapulindo e descendo às pressas até a rua.

 

- Seu idiota - disse Elliott com ternura, aninhando a cabeça de Drake no colo. - Você sabia o que ia acontecer. Então, para que fez isso? - perguntou ela, as lágrimas
escorrendo pelo rosto.

Drake fez uma careta ao ser tomado pela dor.

- Para ganhar tempo para você fazer... - sussurrou ele - fazer o que vai fazer. Faça agora, minha amiga, e faça isso por mim... Por todos nós.

- Mas eu não... - começou a falar ela, mas se conteve ao ver o quanto ele estava perto da morte.

Drake agora sufocava.

- Não consigo pensar numa piada - disse ele.

Ele soltou o último suspiro.

Elliott baixou com cuidado sua cabeça na calçada e se levantou, a determinação estampada na cara.

E ninguém percebeu enquanto ela aproveitava a oportunidade que Drake lhe dera, passando a mão por baixo do casaco até a base das costas. Nem Hermione nem nenhum
dos outros Styx sabiam o que estava metido em seu cinto. Mas Elliott sabia o que tinha ali; podia sentir, sentia o cetro, como se ele desejasse que ela o pegasse,
que o usasse.

Ela começou a se dirigir para Hermione.

Hermione olhou-a com desprezo.

- Só preciso cuidar desta vaquinha mestiça, depois teremos acabado aqui. É bom amarrar umas pontas soltas, e já não era sem tempo. - Hermione virou-se para Rebecca
Dois e o Velho Styx. - Vocês conseguem pensar em algum motivo por que precisamos dela viva?

Nem Rebecca Dois nem o Velho Styx disse nada.

- Muito bem, então boa noite e tenha doces sonhos, Bebê do Ralo - anunciou Hermione.

Ela ergueu um membro de inseto, pronta para lançá-lo de novo.

- Sua irmã teve a pior morte que você pode imaginar - disse Elliott de repente a Hermione com um sorriso frio. - Vane ficou coberta de bubões por todo o corpo. Nem
imagina a dor quando eles explodiram em pus e sangue, mas o que acabou com ela foi o fluido nos pulmões. Das lesões. Ela deve ter se afogado neles.

Elliott lançou um olhar ao Velho Styx.

- Cada um de seus homens no mundo interior teve o mesmo destino. Veja bem, há um vírus lá embaixo e ainda está lá, espalhado pelas aves.

- Pode ser - disse Hermione, suas palavras entrecortadas de raiva. - Mas, quem se importa? Este mundo está quase em nossas mãos de novo.

Elliott a ignorou, falando em vez disso com Rebecca Dois.

- E deixe-me contar sobre sua irmã - disse ela. - Ela foi queimada até torrar pela explosão nuclear. Jiggs a encontrou, mas, quando tentou examiná-la, um dos braços
simplesmente se quebrou. Ela virou carvão.

Rebecca Dois não disse nada, desviando os olhos enquanto Elliott dava outro passo para Hermione.

- E você... O que é tão errado nisso tudo é que este mundo sempre esteve em suas mãos. Não havia necessidade de nada disso.

- Do que está falando? - rosnou Hermione.

- Você não se lembra... nenhum Styx se lembra... mas, muitos milhões de anos atrás, nossos ancestrais vieram para este sistema solar em uma nave imensa.

Hermione bufou com desdém.

- Nave? Que nave?

- A nave em que você está... Nós estamos... Que todos estão pisando agora mesmo.

- O que... Você quer dizer a Terra? - Hermione elevou a voz, incrédula.

- É isso mesmo - confirmou Elliott. - Todo esse tempo atrás, parte da atmosfera vazou do centro e viemos para a Crosta a fim de consertar as coisas. Mas nunca voltamos
e, sem ninguém para conduzir a nave, ela ficou em órbita em volta do Sol. Nunca foi para ficarmos aqui.

- É uma historinha muito criativa... Tentando ganhar algum tempo, não é? - Não escapou a Hermione que Elliott incluía a si mesma nas referências aos Styx. - E você
evidentemente pensa que agora é uma de nós? É meio tarde para trocar de time.

Ignorando a observação, Elliott apontou a massa de fileiras de Armagi à volta.

- No começo, éramos mais parecidos com isso... E os Styx e humanos trabalhavam e viviam juntos na nave, porque nós o trouxemos conosco na jornada.

- Sinceramente, eu não preciso ouvir mais nada dessa baboseira - disse Hermione, batendo o membro de inseto, como fizera antes.

O barulho, como um único estalo de castanhola, reverberou pelo lugar. Porém, para assombro de Hermione, nenhum dos Limitadores disparou um tiro. Elliott ainda estava
de pé ali.

A menina sorriu da confusão de Hermione.

- Só começamos a parecer humanos depois de nossa última Fase... Para nos assemelhar à espécie que criamos para nos servir. Que ironia, não?

Hermione estalou o membro de novo e depois mais uma vez, ficando cada vez mais colérica.

O que ela não via era os atiradores Limitadores sendo alvejados. Parry dera a ordem, e seus homens nos telhados conseguiram tirar de ação três equipes de Limitadores
antes que eles tivessem a chance de disparar um tiro que fosse em Elliott.

Hermione parou de estalar o membro e franziu o cenho.

- Algum problema? - perguntou-lhe Elliott.

- Você! O problema é você! - guinchou Hermione, girando para o Velho Styx e os dois Limitadores na estrada da catedral. - E vocês - gritou ela. - Façam as honras,
por favor, e deem um tiro nesta vaquinha cansativa de uma vez por todas! Ela está me matando de tédio.

O Velho Styx pegou uma pistola ao mesmo tempo que os dois Limitadores sacaram seus rifles longos.

Houve sons como os de sussurros distantes.

O Velho Styx foi jogado para a frente no chão com um belo buraco na nuca. Rebecca Dois, ao lado dele, recuou num salto, surpreendida.

E os dois Limitadores da escada da catedral também foram derrubados pelos tiros potentes dos homens de Parry.

- Droga - resmungou Hermione, como se aquelas mortes fossem um incômodo tão grande quanto quebrar uma unha.

Elliott conhecia muito bem o barulho de um rifle com silenciador. Percebeu que não estava sozinha, que tinha amigos por ali.

Ela ergueu a mão, apelando.

- Não atirem nela! - apontou para Hermione. - Deixem esta para mim!

- Volte para o carro, sua tonta! Não fique parada aí! - gritou Hermione para Rebecca Dois, que não deu sinais de que ia a algum lugar. Hermione fechou a cara para
ela e se virou para Elliott. - Pelo menos posso confiar que os Armagi farão o que eu disser.

Ela começou a bater os membros de inseto numa velocidade cada vez maior.

Nem um único Armagi moveu um músculo que fosse. Ficaram simplesmente parados em seu rebanho, olhando.

- Mas qual é o problema deles? - queixou-se Hermione.

- Você ainda não entendeu, não é? - disse Elliott. - Eles não vão me atacar, porque sou igual a você. Tenho seu sangue nas veias. Sou tão Styx quanto você.

- Se quiser fazer alguma coisa direito, precisa fazer você mesma - resmungou Hermione.

A Styx partiu para cima de Elliott.

Mas a menina não ficou parada.

Foi ao encontro de Hermione.

Enquanto se aproximavam, Hermione atacou os olhos de Elliott com os membros de inseto, mas recebeu mais do que isso em troca.

Elliott gritou, a pele se rasgando entre seus ombros.

E, da base de seu pescoço, um par de membros de inseto se abriu em toda sua extensão. Como algo recém-nascido, eram pontilhados de sangue. E também eram castanhos
e bem mais claros do que as pernas pretas e reluzentes de Hermione.

Mas eram igualmente fortes.

O novo par de membros de Elliott pegou os de Hermione em suas pinças, fazendo a Styx parar, contendo-a sem esforço algum.

Hermione ficou sem fala.

- Parry - disse Bob pelo fone. - Dois minutos para o impacto.

- Vocês já lançaram? Não estão vendo o vídeo? - trovejou Parry. - Precisam abortar.

- Claro, estamos vendo e partilhando com os governos de todos os outros países do mundo - respondeu Bob. - Mas a situação não mudou. Nossos drones mostram que os
Armagi ainda se deslocam para o mar.

- Verei o que posso fazer - disse Parry.

- O que está fazendo aqui? - perguntou Danforth com desconfiança ao capitão Franz enquanto o neogermano aparecia a seu lado, sem fôlego e muito nervoso. Embora preferisse
estar em qualquer outro lugar, e não na passarela subterrânea, Danforth continuou ali para o caso de poder fazer mais alguma coisa para ajudar. Ele na realidade
não via por si mesmo como os eventos se desenrolavam do lado de fora da catedral, mas pegava a maior parte do que precisava saber no canal principal do fone de ouvido.
Só que ninguém o avisara de que o capitão Franz se juntaria a ele.

O neogermano recuperou o fôlego e estava prestes a responder quando Parry contactou Danforth. Ele ouviu o que era dito por um momento, depois se virou para o neogermano.

- Isto vai ser divertido - sussurrou ele com uma expressão nada entusiasmada. - Porque vou para lá agora. - Danforth apontou para a multidão de Armagi que podia
ver no alto da escada. - Ficaria muito agradecido se você segurasse isso para mim, embora eu não saiba se conseguirei voltar. - Entregou ao homem seu rádio de ondas
curtas e o outro dispositivo que usava.

Ele se preparou, depois subiu a escada, na última hora acelerando muito o passo. Ao sair da passarela, gritava:

- Com licença! Com licença! - Agia como se tentasse passar por uma multidão na Oxford Street, e não por uma turba de criaturas temíveis.

Elliott e Hermione ainda estavam imobilizadas, uma mantendo a outra em xeque com os membros de inseto.

- Deixem-no passar - gritou Elliott assim que ouviu Danforth.

Mas Danforth não queria passar e olhava à volta, com cautela. Um dos Armagi em que ele esbarrou abriu suas peças bucais e as bateu, com os olhos inumanos fixos nele.

- Ah, olá - disse-lhe Danforth, recuando rapidamente um passo. Depois, apressado, subiu na grade perto da entrada da passarela para ver por cima das cabeças de todos
os outros Armagi.

- Hummm... Desculpe pela intromissão - disse ele a Elliott. - Mas Parry quer que você saiba que só temos alguns minutos antes que caia o primeiro míssil aqui.

Enquanto Danforth saía das vistas, Will gemeu alto. Ainda estava prostrado no capô do Bentley, mas evidentemente sentia uma dor terrível ao colocar a mão na barriga
e tentar rolar.

Hermione riu.

- Meus queridinhos estão se alimentando, seu namorado está morrendo e nem você pode fazer alguma coisa a respeito disso, não há como impedir nossa disseminação.
Mandei os Armagi para longe, e parece que você está prestes a ser pulverizada por seus amigos americanos. - Ela riu novamente, em alto e bom som. - Não sobrará ninguém
para se lembrar do enxame Armagi. Você chegou tarde demais.

- Está enganada a respeito disso - disse Elliott.

Ainda prendendo Hermione, Elliott tirou o cetro da base das costas, onde o mantinha de prontidão.

- O que está fazendo? - perguntou Hermione.

Segurando o cetro com as mãos, Elliott não respondeu e, como fez antes, torceu na metade do bastão.

A luz azul se acendeu, depois ficou vermelha. Mas não foi só isso. Enquanto Elliott o estendia, o cetro sofria uma transformação, crescendo rapidamente. Numa ponta,
apareceram três dentes, tudo do mesmo material cinza e liso.

- Mas o que é isso? - perguntou Hermione.

- Isto - disse Elliott, erguendo o tridente - dará um fim a sua loucura.

- Elliott, se você vai fazer alguma coisa, precisa fazer agora! - A voz de Parry trovejou do telhado por um megafone.

- Entendido! - gritou ela em resposta.

Ainda segurando Hermione com os membros de inseto, Elliott ergueu o tridente.

- Hora de todos nós irmos para casa.

Ela baixou o tridente, batendo a base da haste com força no calçamento.

A luz vermelha tomou sua visão. Vinha de dentro da catedral, onde o hemisfério azul mudara de cor, depois explodiu pelo teto arruinado, até que todo o céu ficou
vermelho-sangue. Por vários segundos, tudo foi banhado de uma luz rosada, como se acontecesse o maior pôr do sol da história, mas muito antes do fim do dia.

E então, como que afetado por um terremoto, o chão começou a tremer. Quer estivessem nos telhados ou no chão, todos em volta da catedral sentiram isso.

O tremor cedeu com a mesma rapidez com que começou.

Houve um segundo em que todos soltaram um suspiro de alívio por ter acabado e ninguém ter se ferido.

Depois veio um barulho, como de um milhão de toneladas de peixes batendo no chão, e os Armagi - cada um deles - se desintegraram.

Eles nem tiveram tempo de voltar a sua forma humana. Todo o lugar foi tomado de pedaços oleosos de seus corpos transparentes enquanto eles escorriam pela rua e pelo
pátio de entrada da catedral.

- Parry, mas o que foi isso, pelo amor de Deus? - A voz ansiosa de Bob apareceu pelo rádio. - Vi aquela luz vermelha daqui. E também experimentamos o mesmo evento
sísmico. Não me diga que seu pessoal foi responsável por isso.

- Francamente, Bob, não faço a menor ideia do que aconteceu - respondeu Parry. - Mas olhe os Armagi. Imagino que seja a hora de suspender o ataque dos mísseis.

Bob não respondeu.

O capitão Franz meteu a cabeça para fora da entrada da passarela.

Logo adiante, Rebecca Dois viu seu oficial neogermano e chamou por ele. Ele disparou freneticamente para ela, escorregando e caindo várias vezes no mar de pedaços
oleosos de corpos de Armagi.

- Ah, que ótimo, era só o que me faltava - resmungou Hermione, mas estava mais atenta ao tridente de Elliott.

Danforth de repente apareceu ao lado deles, de pistola em punho.

- Vou ficar de olho na Insetona para você - ofereceu ele a Elliott.

- Obrigada - disse a garota, soltando a mulher Styx, depois estendendo os novos membros de inseto no ar. - Já estava me dando cãibra.

- O que é isso? - perguntou Hermione a Elliott, ainda olhando fixamente o tridente. - Alguma arma?

Elliott o ergueu.

- As coisas estão começando a lhe voltar agora? Está começando a lembrar? Porque tudo começou... E terminará com isto. - Ela ergueu o tridente para olhá-lo por um
momento, depois balançou a cabeça. - Estávamos presos aqui, na superfície, quando isto nos foi tirado. Quem sabe como aconteceu... Talvez os humanos tenham se rebelado
contra nós ou coisa assim. - Ela deu de ombros. - E, sem nós ali para controlar, nossa nave jamais continuou sua jornada. Por bilhões de anos nós... nós, os Styx,
simplesmente esquecemos quem éramos.

- Eu não me sinto... - disse Hermione, cambaleando um pouco, mas Elliott a deixou, correndo para o lado de Will.

Jiggs havia saído de mansinho de onde se escondia e cuidava de Will. Rasgou a camisa do menino e examinou seu abdome e o peito. Depois, procurando em sua maleta
médica, rapidamente administrou uma ampola de morfina.

- Isso vai ajudar com a dor - disse ele.

- Como ele está? - perguntou Elliott.

Jiggs deu de ombros.

- Precisamos abri-lo e retirar as larvas Styx. - Ele olhou em volta o que restava dos Armagi. - Não podemos correr o risco de que não estejam mais vivos e, mesmo
se estiverem mortos, precisamos descobrir que estrago já causaram.

- Preciso de um minuto com ele - disse Elliott.

- Eu... - começou Jiggs, sem estar disposto a deixar o menino.

- Só me dê um minuto - insistiu Elliott.

Havia algo nela que fez Jiggs obedecer sem questionar.

Elliott abraçou Will, sacudindo-o pelos ombros.

- Will, você precisa acordar.

Ele tossiu com força, o sangue e a espuma dos pulmões pontilhando o preto do capô do Bentley.

- Vamos lá, Will, por favor. Não tenho muito tempo - implorou ela, sacudindo-o de novo.

E então seus olhos se abriram um pouco.

- Meu Deus, como dói. - Ele gemeu, seu rosto tenso da dor.

- Eu sei.

- Elliott, é você - disse ele ao distinguir quem o segurava. - O que houve? - Conseguiu focalizá-la e teve o vislumbre de uma de suas pernas de inseto contorcendo-se
sobre seu ombro. - Isso é novo - disse e riu quando a morfina começou a fazer efeito. - Ei, você está fantasiada?

E embora a visão de Will estivesse borrada e ele não enxergasse com clareza, sua pergunta não era assim tão despropositada.

Se o dr. Burrows estivesse ali, também teria algo a dizer sobre a aparência de Elliott: o tridente, o brilho carmim que ele emitia e o membro de inseto posicionado
atrás dela que Will confundiu com um rabo.

Como se isso já não fosse bastante simbólico, também havia o fato de os Styx terem sua origem no centro da Terra, onde um sol pequeno, mas feroz, jamais deixava
de arder. Reunindo tudo isso, seria mais do que provável que o dr. Burrows fosse levado a tagarelar sobre a imagem do diabo no subconsciente humano.

Mas o dr. Burrows não estava ali.

E seu filho não tinha condições de pensar racionalmente.

- É Halloween? - perguntou Will, rindo escandalosamente enquanto a morfina fazia seu truque.

- Não, não é Halloween - respondeu Elliott com paciência. - E você precisa me ouvir. Quero que se lembre do que vou lhe dizer. Concentre-se, Will, porque não tenho
muito tempo.

Parry terminou de falar com Bob e se virou para Eddie.

- Eles suspenderam o ataque por ora. Todas as imagens dos drones indicam que o enxame Armagi acabou - informou Parry a todos pelo rádio, e surgiu uma gritaria dos
telhados a toda volta. Mas, enquanto desligava o rádio, Parry encarava Eddie.

- Qual é o problema?

- Não sei - respondeu Eddie. Ele tinha a mão erguida à frente, com os dedos abertos.

Parry via que era como se Eddie ficasse borrado, vibrando, como um pedaço de filme que sai dos dentes da roda, mas continua correndo por um projetor. E, no telhado
à volta, Parry via o mesmo acontecer com os homens de Eddie.

E com Rebecca Dois.

E com Hermione.

E com Elliott.

Mas Elliott estava preparada para isso.

Olhando para cima, viu Stephanie sair da passarela subterrânea, com a faca de Martha ainda na mão.

- Acho que alguém veio ver você - disse ela a Will, mas não num tom vingativo.

- Não. Fique. Por favor. - Fraco, Will tentava segurar Elliott.

- Não posso. De qualquer modo, você não ia me querer assim - disse Elliott, seus membros de inseto se retorcendo atrás dela.

- Eu não ligo. E eu... - Will perdeu o rumo, mal estando consciente quando suas mãos escorregaram de Elliott.

- Adeus, Will - disse ela baixinho, curvando-se para lhe dar um beijo na testa. Depois se virou do Bentley e deu alguns passos pelo calçamento. Olhava o alto do
prédio, onde estavam seu pai e Parry.

- Pai! - gritou ela a plenos pulmões.

- Tome. - Danforth lhe estendeu seus fones.

Ela os pegou e rapidamente colocou.

- Pai, está me ouvindo?

- Elliott. - Ele a reconheceu, acenando da beira do telhado.

- Desculpe. Era tudo ou nada - falou ela, olhando para ele. - Se eu não tivesse ativado a reinvocação, tudo teria se acabado do mesmo jeito, não só para nós, mas
para o resto do planeta também. - Ela balançou a cabeça com uma expressão triste. - Não havia mais nada que eu pudesse fazer.

- Bem, você fez, Elliott. Você os deteve. - Eddie transbordava de orgulho pela filha. Houve uma pausa antes de ele perguntar: - Reinvocação?

Elliott nunca respondeu.

Ela, o pai e cada Styx na superfície da Terra começaram a se desvanecer numa névoa vermelha.

Estavam simplesmente desaparecendo no ar.

- Rebecca! - gritou o capitão Franz, desesperado, de trás do Bentley. Sentindo que alguma coisa acontecia com ela, a gêmea Styx saiu do carro e de imediato começou
a sumir. O neogermano se atirou onde estivera Rebecca Dois, tentando agarrá-la enquanto o borrão vermelho desbotava. Mas, embora se esforçasse muito, ele podia muito
bem estar tentando apanhar fumaça. Como não havia nada que o detivesse, ele caiu de cara, deslizando na massa oleosa deixada pelos Armagi e ficou ali, chorando incontrolavelmente.

E, além de seu choro, não havia nada senão o silêncio assombrado por toda a catedral.

 

Capítulo Vinte

 

Ao voltar a si, Will descobriu que estava deitado na cama. Uma cama de verdade, com colchão e travesseiro, e a sensação de lençóis engomados em sua pele. E havia
dor, muita, principalmente na barriga e no peito.

Ele soltou um gemido, não devido ao que sentia, mas porque precisava saber que estava realmente acordado. Depois gemeu de novo, dessa vez mais alto, e conseguiu
abrir os olhos. Teve um vislumbre do sol entrando por uma janela e ao mesmo tempo a consciência de alguém sentado ao lado dele numa cadeira. Quem quer que fosse,
segurava sua mão. Falavam com ele, mas ele não conseguia ouvir o que diziam.

- Elliott? - perguntou Will, tentando enxergar.

E então imaginou distinguir o contorno escuro de uma segunda pessoa atrás da primeira.

- Chester... É você, Chester?

- Sou eu, Steph - veio a resposta e depois de um momento: - E... Não, Chester não está aqui.

Will levou alguns segundos para processar isso. Depois conseguiu abrir os olhos mais uma vez e focalizar nela. Seu cabelo ruivo estava limpo e perfeito, e ela sorria.
Stephanie irradiava beleza, exatamente como no dia em que ele a conheceu na casa de campo de Parry. Parecia a Will que isso fazia muito tempo.

- Ah, oi. - Ele fingiu tossir para ter uma desculpa para afastar a mão dela. - Onde está Elliott? - perguntou ele, rouco. Sua boca tinha uma secura persistente,
por isso buscou a jarra e o copo de plástico na mesa ao lado da cama.

- Água? - Ela se antecipou. - Eu pego um pouco para você. Você deve estar, tipo, com muita sede.

Ele tentou se sentar para pegar o copo dela, mas a dor que apunhalava seu abdome o impediu.

- Não, não deve tentar se mexer.

Com a ajuda de Stephanie, Will bebeu a água com avidez.

- Onde estou? - perguntou ele entre um gole e outro.

- No hospital. Eles estão funcionando de novo. Até trouxeram a eletricidade de volta, mas não tinha quando fizeram sua operação aqui.

- Operação? - repetiu ele, a água descendo pelo caminho errado e fazendo-o tossir, dessa vez para valer. - Por quê? O que fizeram comigo?

E tudo começou a lhe voltar. Ele se lembrou dos Armagi e de Hermione, então - mas só muito vagamente - o que aconteceu no capô do Bentley preto.

- Olha, tenho de dizer a Parry que você acordou. Tudo bem? - disse Stephanie. Ela parecia ter pressa de sair do quarto.

Não foi Parry que apareceu alguns minutos depois, mas outra pessoa. Will tomou um belo susto porque não ouviu ninguém entrar e de repente se deparou com um homem
parado ao pé de sua cama.

- Como está se sentindo, Will? - perguntou Jiggs.

- Quem é você? - Will semicerrou os olhos para a figura desconhecida com sua barba desgrenhada e roupas de aparência suja. - Você não é médico, é? Onde está Parry?

- Ele virá aqui logo. E não, não sou médico. - Jiggs riu. - Esqueci que você e eu não nos conhecemos, não formalmente. Eu sou Jiggs. Você pode ter me visto antes,
mas teria sido só por um momento... Na beira do poro, no mundo interior.

Will não respondeu.

- Engraçado... Conheço-o muito bem, mas você não me conhece. Fui naquela missão para lacrar o mundo interior, com você, Drake, Sweeney e o resto da equipe, e estou
falando agora da hora em que peguei dois Limitadores de emboscada - contou Jiggs, tentando ajudar Will a despertar. - Não se lembra de nada? Eu peguei o primeiro
Limitador com um... - Jiggs fez movimentos como quem corta um pescoço - ...e carreguei o segundo para dentro do poro comigo.

Will semicerrava os olhos para o homem indefinido, com seus olhos atentos e inquietos.

- Ah, sim, Jiggs. É claro. Você é o homem invisível - disse ele. - Olá.

Eles trocaram um aperto de mãos, o que foi um tanto peculiar depois de tudo que passaram na mesma época, mas não exatamente juntos.

- Falei com Parry, e ele está a caminho - disse Jiggs. - Está tendo um trabalhão agora mesmo. Sabe, ele ocupa o cargo de primeiro-ministro no governo de emergência
até que consigam colocar as coisas de volta nos trilhos.

Will olhava pela janela, sentindo-se meio desligado de tudo.

- Está me voltando mais... mais do que aconteceu no fim - disse ele em voz baixa. - Ela se foi, não é?

- Sim, Elliott e todos os Styx... Eles meio que desapareceram - confirmou Jiggs.

- Ela me disse que ia embora. E, a não ser que eu estivesse sonhando, Elliott tinha... - Will não sabia como colocar, então tentou indicar um par de pernas de inseto,
apontando para a própria nuca.

- Tinha sim. Quando ela estava no tanque com Drake e comigo, reclamou de dor no pescoço. Mas nunca me ocorreu que... - Jiggs se interrompeu.

- E Drake? - perguntou Will de repente. - Ouvi a voz dele depois que aquela Styx me arrastou para fora do carro e depois... Teve um tiroteio?

Jiggs assentiu.

- Aquilo foi o fim de Drakey, lamento dizer. Mas ele sofreu tanta radiação da bomba no poro, que não teria muito tempo de qualquer modo.

Balançando a cabeça lentamente, Will ficou sem falar por um segundo.

- E Chester? - perguntou ele com muita relutância, porque pensava já saber a resposta. Caso contrário, o amigo estaria ali, a seu lado também.

Jiggs se remexeu, inquieto, ao responder.

- Não, ele também não conseguiu. Infelizmente entrou em rota de colisão com Danforth. Veja bem, a morte dos pais de Chester não foi intencional e foi uma grande
infelicidade. Mas Danforth não era um traidor. Longe disso. Em sua cabeça avoada, superinteligente e superlouca, ele entendia que estávamos dando com os burros n'água
e bolou um plano para se infiltrar entre os Styx. E deu certo até certo ponto.

Will ficou em silêncio por um instante.

- Então Danforth o matou?

- Não, por incrível que pareça, foi Martha.

- Martha! - disse Will, surpreso.

- Sim. Ela apareceu com um bando de faróis como seu esquadrão pessoal de escolta. Parece que Chester e Martha partiram juntos, mas depois houve uma briga. Precisa
perguntar sobre isso a Danforth ou Stephanie... Os dois estavam lá quando aconteceu.

- Isso é horrível. Coitado do Chester. - Will mal conseguia se obrigar a pensar na perda do amigo. - Foi por minha causa que ele entrou nisso tudo, antes de tudo
- acrescentou Will, quase aos sussurros.

- Não faça isso consigo mesmo - disse Jiggs com firmeza. - Não pode se castigar por ele. Do jeito que as coisas se saíram com os Styx, nenhum de nós estava a salvo.
Ninguém sabe exatamente quantas baixas este país sofreu, mas o número chega a milhões.

Um helicóptero de duas hélices passou trovejando pelo prédio, tão perto que as janelas vibraram. Jiggs ficou agradecido pela oportunidade de mudar de assunto ao
se virar para ver o grande sortimento de caixas amarradas com cordas abaixo da aeronave.

- Que bom... Parece que chegaram mais suprimentos médicos para nós. Agora os americanos estão aqui em peso e dão duro para ajudar - disse ele. - Considerando que
eles estavam a segundos de explodir a todos nós com um ataque nuclear, acho que é o mínimo que podem fazer.

- Ataque nuclear? Sério? - Will lhe fez eco. - Perdi muita coisa - continuou. - Depois que os Armagi me pegaram.

- Só o esperado. Eles não iam exatamente tratar você com luvas. Além disso, Hermione precisava de você quando empurrou aquelas larvas de Armagi por sua goela.

- Então eu tive mesmo essas coisas dentro de mim? - Will estremeceu, olhando a barriga.

- Sim, fui o primeiro a chegar à cena. Não tive alternativa, senão... - Jiggs hesitou.

- Por favor. Eu quero saber. - Will insistiu com ele.

Jiggs ainda hesitava.

- Talvez seja insensível de minha parte contar mais a você. Tem certeza de que quer todos os detalhes sórdidos?

- Não se preocupe. - Will tentava sorrir, mas conseguiu algo mais parecido com uma careta. - Depois do que tive de passar nos últimos anos, acho que não há muita
coisa que possa me afetar agora.

- Tá legal. Bom, julguei necessária uma medida urgente depois que a Insetona impregnou você na frente da St. Paul. E eu era a pessoa mais próxima com treinamento
médico.

- Eu estava muito engasgado, né? - sussurrou Will, colocando a mão no pescoço.

- Estava mesmo. E, depois que as larvas foram depositadas dentro de você, seu corpo começou rapidamente a parar de funcionar, então eu o enchi de morfina. A regra
de ouro em qualquer trauma importante como esse é medicar imediatamente contra o choque.

- Acho que lembro um pouco... Começou a doer pra caramba, e Elliott também estava comigo, não estava?

Jiggs assentiu.

- Por um tempo. Mas, então, tivemos de operar você ali mesmo, numa barraca no pátio da catedral. Não teve jeito, tivemos de agir rapidamente, porque não sabíamos
se as larvas tinham eclodido ou não do saco de ovos, ou mesmo se ainda estavam dentro de você.

Jiggs estendeu a mão ao lado de Will para enfatizar a questão que estava prestes a abordar.

- Veja só, parece que houve uma linha divisória entre os Styx, que desaparecem num passe de mágica, e os Armagi, que se degradaram em uma massa podre fedendo a peixe.

Will fez uma careta.

- De qualquer forma, abri você rapidinho e descobri que todas as larvas tinham morrido, mas não antes de começarem a se alimentar. Assim, localizei e removi cada
uma delas, estancando o sangramento e costurando você o melhor que pude. Depois você foi evacuado para cá num helicóptero, onde um médico o abriu de novo. Olha só,
as larvas mortas tinham se degradado dentro de você, deixando não só matéria orgânica como também outros compostos... Enzimas, eu acho... Que precisavam ser completamente
eliminados, porque não sabíamos que efeito poderiam ter.

- Então, agora eu estou bem?

- O médico acredita que sim. Mas você ainda não está totalmente fora de perigo. Sempre há o risco de infecção, e é por isso que você está entupido de antibióticos,
e ele deixou um dreno no lugar.

Jiggs apontou para os tubos de plástico transparente pendurados ao lado do colchão de Will.

- Estão saindo de mim? Posso ver? - perguntou o menino, espiando a sua frente.

Jiggs soltou um assovio.

- Tem certeza de que quer fazer isso?

Will assentiu.

- Tudo bem. - Jiggs ergueu o lençol de lado. Puxou um pequeno retângulo do material parecido com atadura que cobria o corpo de Will. Do esterno do garoto até a cintura,
havia uma enorme incisão, costurada por monstruosas suturas pretas que davam a impressão de que, se fossem cortadas, ele simplesmente se abriria todo. E havia também
os tubos que saíam da incisão.

- Ai. - Will não esperava que fosse tão traumático.

- Sim, e peço desculpas pela incisão não ter sido mais limpa, mas na hora eu só tinha meu velho canivete.

Will olhou para ele, mas o homem sorria.

- Só estou brincando. - Jiggs riu. - Você terá uma bela cicatriz aí para mostrar às garotas qu... - Ele se conteve ao perceber como Will devia estar se sentindo
com relação a Elliott.

Jiggs recolocou o curativo, depois cobriu Will com o lençol.

- Na verdade, meu velho, você é uma raridade, porque, pelo que sabemos, ninguém mais foi impregnado pelos Styx e sobreviveu.

- E por que isso não faz com que eu me sinta melhor?

 

Capítulo Vinte e Um

 

- Lá está ela! Matem a vagabunda! - gritou Hermione, tentando se levantar ao mesmo tempo que batia uma das pinças na direção de Elliott.

Graças à combinação do sol constante e do solo incrivelmente fértil do interior do mundo, a terra exposta nos campos em volta da torre não ficou assim por muito
tempo. Estava coberta de uma camada verde de relva, com novos brotos e pequenos ramos se abrindo. E, pontilhando tudo isso, como muitas estacas pretas, os Styx de
repente apareceram quando foram transportados da superfície.

- Peguem-na! - gritou Hermione. A maioria dos Styx estava inteiramente desorientada e no mesmo estado em que ela se encontrava, caídos de quatro ao se materializarem
em um borrão de carmim. Mas os resistentes e endurecidos Limitadores não levaram mais de alguns segundos para se recomporem. Muitos já tinham os rifles nos ombros.

Eles abriram fogo, os tiros pegando na torre em volta de Elliott. Ela estava bem consciente de que Eddie e seus ex-Limitadores também estariam em algum lugar no
campo. Eles estavam em número muito menor do que os outros Styx e eram alvos visíveis.

Ao baixar o tridente no chão na frente da catedral de St. Paul, Elliott não só frustrou o plano de Hermione de mandar os Armagi para o resto do mundo, como também
decretou a sentença de morte de seu pai. Elliott disse a si mesma que não teve alternativa. E, se ele estivesse naquela planície verdejante, não havia absolutamente
nada que ela pudesse fazer por ele agora - nem mesmo estava com seu rifle.

Mas não foi apenas essa sentença de morte que Elliott assinou. Hermione e Rebecca Dois, junto com cada membro da raça Styx, caminhariam todos para a morte em questão
de dias. Nenhum deles foi inoculado contra o supervírus que ainda estava presente no mundo interior.

Forçando a vista ao tentar encontrar o pai, Elliott continuou na entrada da torre, parada ali numa pose de pastora, o tridente descansando no chão a seu lado.

Embora não demonstrasse medo enquanto os tiros começaram a cair a sua volta, não ia abusar da sorte, não enquanto ainda tinha uma tarefa a concluir.

- Matem aquela mestiça! - gemeu Hermione de novo, caindo ao tentar correr para a menina.

Elliott meramente deu à Styx um leve aceno de cabeça, depois recuou um passo para a torre. A porta se fechou num silvo, e a pilha de pedras que Will pensou que fosse
uma salvaguarda contra precisamente isso foi imediatamente pulverizada.

Elliott partiu para o elevador, parando por um momento para olhar a entrada da câmara. Depois que ela e Will se foram, o bosquímano evidentemente ficou um tempo
na torre, a julgar pelos restos de todas as fogueiras que acendeu ali dentro. Havia pequenas pilhas de raízes queimadas ao lado das quais Elliott podia ver as cascas
de gafanhotos e alguns crânios de aves. E parte do equipamento dos irmãos neogermanos ainda estava empilhada contra as paredes, mas não havia nada que mostrasse
que eles próprios estiveram ali recentemente.

O elevador a levou para o alto da torre, mas ela teve de subir a escada para chegar ao último piso. De imediato foi ao pódio no meio do espaço e subiu nele, avançando
para o maior painel no centro. Respirando fundo rapidamente, ela estendeu o tridente com o braço esticado, diretamente sobre ele.

Ao baixar o tridente e a ponta da base fazer contato com o painel, ela viu ondas concêntricas se espalhando para fora de sua superfície lisa e muito sólida. O efeito
era idêntico ao que acontece quando uma pedra bate na água parada. Elliott piscou, sem acreditar em seus olhos, mas no instante seguinte aconteceu algo ainda mais
estranho. Ela foi obrigada a soltar o tridente, porque ele era puxado para o painel e absorvido na estrutura da própria torre. Um segundo depois, só as pontas do
tridente continuaram, depois também mergulharam sob a superfície do painel. Elliott tocou-o, sentindo onde o tridente desaparecera e como a superfície estava inteiramente
sólida mais uma vez.

Por um tempo, ela ficou ali, olhando o painel e o resto do andar à sua volta, mas nada parecia estar diferente.

Na primeira vez que Elliott esteve ali, ela disse a Will que havia algo errado, que faltava alguma coisa. Agora que o cetro finalmente estava de volta a seu lugar,
todo o cansaço acumulado a atingiu. Ela tentou dar um passo, mas as pernas vergavam, e ela arriou contra o painel, agarrando-se nele para se apoiar.

Elliott concluíra a busca que no início não compreendia e que não teve alternativa senão completar. Desde o momento em que iniciou a cadeia de acontecimentos, depois
de tocar o símbolo do tridente na pirâmide, o sangue que ela partilhava com os ancestrais dos Styx a levou a isto. Ela ficou sob o feitiço de um padrão de comportamento
genético que eliminou seu livre-arbítrio, como se ela fosse um robô seguindo sua programação.

Uma programação para encontrar e restaurar o tridente a seu lugar de direito.

Embora nada parecesse ter mudado dentro da torre, houve uma alteração do lado de fora, e Elliott tinha muita consciência dela. No imenso vazio no fundo do manto
do planeta - não só no cinturão de gravidade zero que ela e os amigos percorreram, mas em vários outros - os cinturões de cristal ganharam vida. As esferas ali giravam
cada vez mais velozes e emitiam uma luz intensa, muito mais forte do que a triboluminescência que o dr. Burrows identificara corretamente.

E elas também começaram a gerar uma enorme quantidade de energia.

Pois essas esferas eram a fonte de propulsão que colocou a Terra na órbita do Sol.

Por fim, depois de tanto tempo, elas foram ativadas novamente.

O interior das cavidades em volta das esferas brilhava com grades de luz azul em padrões que só uma pessoa no mundo todo - Jiggs - tinha percebido depois da explosão
nuclear no poro.

Mas, como se gigantes adormecidos tivessem despertado de seu sono profundo, nenhum humano podia fazer nada para impedir o imenso poder das esferas.

E agora este poder estava sendo colocado em uso.

 

Capítulo Vinte e Dois

 

Havia períodos de intensa atividade no hospital, enquanto frotas de veículos chegavam com sobreviventes, cuja maioria - uma das enfermeiras contara a Will - recebia
tratamento contra desnutrição ou exposição. Ele os ouvia sendo trazidos em macas pelo corredor a cada hora do dia e teve vislumbres dos soldados que pareciam cuidar
de tudo.

Ao passo que se recuperava de sua cirurgia, Will ficou muito feliz em permanecer deitado na cama, descansando. Mas, durante uma das tréguas em que houve um completo
silêncio no lugar, ele olhava distraidamente o teto até que foi despertado de seu torpor. A porta de seu quarto se abriu alguns centímetros, como se uma brisa tivesse
varrido o corredor. Ele ficou olhando para o caso de alguém estar prestes a aparecer de visita.

- Jiggs... É você? - perguntou ele, indagando-se se seria o homem com a capacidade de se tornar quase invisível.

Mas não havia ninguém ali, e Will murmurou.

- Estou pirando. - Sentia-se um tolo.

E então aconteceu uma coisa muito estranha.

Com um arranhar no piso, uma cabeça de felino espiou sobre os pés de Will, na ponta da cama.

- Bartleby! - exclamou Will, acreditando mesmo estar vendo um fantasma. O Caçador o farejou inquisitivamente, depois baixou o focinho e começou a andar pelo quarto.
O animal claramente detectava todo tipo de cheiro novo e interessante da Crosta, que ele nunca encontrou na vida.

- Não exatamente - disse a sra. Burrows ao entrar no quarto com o Primeiro Oficial a reboque. - Mas é um de seus filhotes.

- Filhote? Ele é enorme! - disse Will, radiante para a mãe. Estava deliciado ao vê-la depois do que parecia muito tempo.

- E como está meu filho? - A sra. Burrows se aproximou de Will e lhe deu um abraço. - Jiggs disse que você está se recuperando bem depois da cirurgia.

- Sim, soubemos que você estava batalhando pela vida aqui em cima - disse o Primeiro Oficial, pegando a mão de Will em seu punho de presunto e sacudindo-a.

O Bartleby Filhote, ou simplesmente Bartleby, como o chamava o Primeiro Oficial porque era mais fácil, imediatamente foi a Will e subiu na cama. O Caçador evidentemente
queria brincar, porque rolou de costas e começou a bater em Will com as patas imensas.

- Meu Deus, podia mesmo ser Bartleby - disse Will. - Ele é idêntico. - O felino tinha notado os tubos transparentes que se projetavam de baixo do lençol de Will
e mascava um deles. - Não, isso não! - disse Will de pronto ao felino, tentando empurrá-lo.

A sra. Burrows tirou o filhote da cama e começou a conversar com Will, contando que ela e o Primeiro Oficial ficaram o tempo todo em Highfield, onde muitos colonistas
ajudavam na operação de limpeza e para onde muitos já decidiram se mudar.

- A ironia disso... De um jeito indireto... É que as profecias escritas no Livro das Catástrofes se realizaram - a sra. Burrows disse a Will. - Os colonistas tomaram
de novo a superfície para si. Há uma cidade vazia esperando por aqueles que querem vir para a Crosta. Porque não sobrou ninguém vivo em Highfield.

- Ninguém mesmo? Morreu todo mundo? - perguntou Will numa voz baixa.

Houve uma batida na porta, e Parry entrou.

- Você parece melhor, meu amigo - disse ele, antes de perguntar à sra. Burrows e ao Primeiro Oficial se eles se importariam de lhe dar algum tempo para falar com
Will a sós.

- Armaram uma cantina improvisada no primeiro andar - sugeriu Parry. - Se perguntarem na recepção, dirão onde fica.

- Não se preocupe, acho que posso encontrar - respondeu a sra. Burrows, tocando o nariz e piscando para Will. Ela e o Primeiro Oficial saíram, deixando Bartleby
dormindo na cama de Will, com as pernas para cima.

- Jiggs me disse que agora você é o primeiro-ministro - disse Will, abrindo um sorriso para Parry. - Isso quer dizer que tenho que chamá-lo de senhor ou coisa assim?

Parry ergueu as sobrancelhas.

- Claro que não... E quando foi que você me mostrou algum respeito? - Ele deu de ombros. - Além disso, sou primeiro-ministro até que encontrem alguém do antigo gabinete
para assumir o trabalho.

Parry olhou pela janela enquanto outro helicóptero pousava.

- A ajuda de emergência da comunidade internacional está começando a chegar, agora que o risco foi eliminado.

- Mas foi mesmo? É verdade que não sobrou nem um único Styx na Crosta, ou alguém que tenha sangue Styx, como Elliott?

A expressão de Parry se entristeceu, e por um segundo ele virou a cara.

- Sim, é verdade. Não sobrou nenhum, assim, suponho que no fim vencemos, mas perdemos algumas boas pessoas no processo. Elliott, é claro, mas também Eddie e sua
equipe. - Parry suspirou. - E também o que aconteceu com Chester...

- E Drake... Eu sinto muito por Drake. - Will falou em voz baixa ao perceber que precisava dizer alguma coisa sobre o filho de Parry. Ele também ainda não se sentia
forte para pensar na perda do amigo.

- Obrigado. - Parry assentiu, depois o olhou fixamente. - Will, infelizmente não estou aqui para ver como você está. Também preciso de informações. Ainda existem
alguns buracos, e preciso ouvir sua versão dos acontecimentos.

- Isso parece oficial.

- Receio que seja, e vou precisar de uma declaração completa sua no devido tempo. Deve entender que há uma investigação internacional em curso, no mínimo porque
várias nações do mundo estão nos acusando de testes atômicos subterrâneos não autorizados. Estão sugerindo que isso seria a causa do tremor sentido em todo o mundo
e também seria a origem dos Armagi, aparentemente uma espécie mutante criada pela radiação elevada. Bom, isso é o que os franceses pensam. - Parry riu, depois ergueu
uma das sobrancelhas, indagativo. - E os ianques não sabem se entregam a nós medalhas de honra do Congresso... Ou nos condenam por algum crime internacional contra
a humanidade. Você também está na lista, Will, das duas coisas.

Will teve de rir, constrangido.

A expressão de Parry ficou séria.

- Você passou mais tempo com Elliott do que qualquer outro - disse ele. - Preciso que me conte tudo de que consegue se lembrar sobre ela e o que houve perto do fim.

- Claro, mas minha memória está falhando um pouco depois que os Armagi me pegaram e fui levado para a St. Paul. E por que Elliott é tão importante nessa história?

- Porque alguns de nós estão apavorados com as implicações, se alguma força alienígena assumiu o controle de todo nosso destino.

Enquanto Bartleby ronronava a seus pés, Will contou o que aconteceu com Elliott durante o tempo que eles ficaram juntos no centro do mundo, sobre a descoberta da
pirâmide e depois o aparecimento da torre. Parry não interrompeu nem uma vez, e Will contou que ele e Elliott foram transportados de volta à superfície, depois descobriram
o cetro em um sarcófago egípcio.

- Então, você não pode lançar nenhuma luz exatamente no que estava levando Elliott a fazer tudo isso? - perguntou Parry. - Porque parece que ela sabia muito bem
o que fazer em cada passo.

Will balançou a cabeça.

- Ela própria não sabia. Talvez meu pai tivesse chamado isso de memória racial. - Will tocou a testa. - Alguma coisa bem aqui no fundo, graças a seu sangue Styx...
Algo que foi despertado pela torre ou pela pirâmide, eu acho. Não sei mais como explicar.

Parry e Will conversaram por mais algum tempo até que a sra. Burrows e o Primeiro Oficial voltaram ao quarto. Depois, enquanto Parry se levantava para ir embora,
Bartleby foi acordado. De imediato andou até a janela, onde, com as patas no peitoril, parecia estar olhando o horizonte.

- Gatinho bobo - disse a sra. Burrows carinhosamente. - No que está tão interessado?

Gemendo do desconforto, Will tentava se levantar para se despedir direito de Parry quando algo também atraiu seus olhos para a janela.

- O que foi? - perguntou o Primeiro Oficial.

- Não sei - murmurou Will, semicerrando os olhos. - Mas... Mas é minha imaginação, ou o sol parece menor do que o de costume?

Rindo ao ouvir o comentário de Will, Parry estava prestes a sair, com a mão na maçaneta da porta, quando seu telefone por satélite tocou. Parry parou para atender
e olhou para Will.

- Ligação da América - contou.

- Ele parece menor, sabia? - murmurou Will, ainda hipnotizado pelo círculo claro no céu. Bartleby não saía da janela, como se a intuição animal também lhe dissesse
alguma coisa.

- Sim, Bob, o que posso fazer por você? - perguntou Parry.

- É isso! - explodiu Will. - Foi o que ela me disse! A última coisa que Elliott me disse foi que íamos todos para casa... Que ela precisava começar uma espécie de
Reinvocação.

- Como assim, ir para casa? Para casa, onde? - perguntou a sra. Burrows.

- A NASA está dizendo o quê?! - berrou Parry ao telefone.

- Elliott disse que ia começar uma reinvocação para deter os Styx e os Armagi - contou Will. - Ela não sabia para onde íamos, mas disse que isso podia acontecer.
O planeta todo, ou a nave espacial, ou como quiser chamar, começaria a se deslocar.

- Tudo isso parece meio maluco, Will - disse a sra. Burrows. - Como pode acreditar em toda essa teoria do planeta como nave espacial?

- Você não rejeitaria a ideia com tanta rapidez se tivesse visto o que vi no centro do mundo. E, não, não é tão maluca se você pensar bem. Por que acha que os humanos
sempre procuram os subterrâneos ao primeiro sinal de problemas? Porque é onde nos sentimos seguros. Por que acha que Sir Gabriel Martineau e todos os colonistas
construíram uma cidade subterrânea com os Styx? - Will fez essa pergunta à mãe e ao Primeiro Oficial. - Porque é nosso instinto natural. Porque foi do centro do
mundo que todos nós viemos e talvez por todos aqueles milhares de anos só estivemos tentando voltar para casa.

Parry não tinha encerrado seu telefonema com Bob, mas colocou a mão sobre o microfone ao correr até a janela. Bartleby ainda tinha as patas no peitoril e olhou com
certa curiosidade para Parry.

Depois de um momento, Parry se virou para Will, lívido.

- A última informação posicional da NASA é de que a Terra começou a se desviar de sua órbita. A NASA diz que isso não tem precedentes. Eles acreditam que começamos
a nos afastar do Sol.

- Eu te falei. - Will esforçou-se para se sentar. - Mãe, pode descobrir o que fizeram com minhas roupas? E pode encontrar um médico para fazer alguma coisa com esses
tubos, porque não posso ir muito longe com eles dentro de mim.

- Por quê? Aonde você vai? - perguntou a sra. Burrows.

Will olhou a vista mais uma vez pela janela.

- Você precisa levar todos os colonistas para os subterrâneos de novo, e eu vou voltar para lá com você. Porque não acho que nenhum de nós deva ficar por aqui na
superfície por mais tempo ainda.

- Bob... Desculpe deixar você esperando desse jeito - disse Parry. - Sim, você tem razão. Parece que temos outro problema aqui. E é tremendamente grave.

 

Capítulo Vinte e Três

 

Uma semana se passou, depois uma segunda, e a torre não permitia que Elliott saísse. Embora houvesse o risco de que os Limitadores ainda estivessem vivos e esperando
por ela, Elliott experimentava a porta todo dia, mas, até agora, em vão.

E não havia muito na torre que lhe permitisse operá-la, com exceção do elevador. Elliott até experimentou o transportador do penúltimo andar, pensando que podia
voltar à Crosta. Estava incrivelmente preocupada com Will, e não tinha como descobrir se ele sobreviveu à impregnação de Hermione. Mas, por mais que tentasse, as
superfícies do console continuavam cinza e sem vida, sem o menor sinal das luzes azuis. E o dispositivo de observação remota não respondia a ela.

Por desespero, ela também tentou tudo o que pôde para extrair o cetro de novo, mas o painel não o cedia.

Ela supôs que a torre, e o que fizesse parte dela, obedecia a algum programa que restringia o que podia ser feito em seu interior, mas não tinha meios de saber quanto
tempo teria pela frente. Era como se o programa, depois de ativado, seguisse seu curso.

E enquanto ela passava as horas na torre, perguntou-se o que foi feito dos neogermanos e do bosquímano. Talvez, quando os Styx começaram a se materializar do nada,
eles tivessem fugido. Ela não conseguia imaginar Woody indo para muito longe da torre na sua ausência, então supôs que os Limitadores o teriam apanhado logo.

E os três neogermanos talvez nem estivessem perto da torre quando começou o influxo em massa de Styx. Talvez estivessem em segurança e longe, na cidade. Porém, essa
teria sido a primeira escala dos Limitadores, assim ela não pensou que eles teriam muita chance, a não ser que tivessem pulado no barco e fugido para um dos postos
avançados remotos de que ela os ouvira falar.

E Elliott começou a pensar na torre como uma criatura viva, um sexto sentido lhe dizendo que certas operações estavam acontecendo dentro dela. Mas, se a torre possuía
alguma forma de senciência, Elliott se perguntou se teria alguma consideração por ela, porque podia muito bem ter morrido de fome ou sede se não fosse pelos suprimentos
deixados pelos neogermanos na câmara de entrada. Elliott descia ali durante o dia, acendia o fogo e preparava as refeições, embora devesse dizer que nunca sentia
muita fome. Será que era por isso, ela se perguntou, que a torre sentia que podia trancá-la ali dentro? Porque talvez ela na realidade não precisasse de sustento
enquanto estivesse encerrada em suas paredes?

E então, um dia, quando Elliott colocou a mão na parede perto da porta, a torre de repente a libertou.

O painel se abriu, deslizando, e ela saiu para os campos agora até os joelhos de brotos e de uma relva verdejante. Não havia se afastado muito quando deu com o corpo
de um Limitador, quase tropeçando nele, estendido na vegetação recente. Embora o Limitador tivesse sido destruído pelas aves, estava prostrado com o rifle de lado,
como se esperasse para lhe fazer uma emboscada.

Elliott continuou andando pelos campos, ciente de que poderia tropeçar com o corpo do pai.

E ali, em todos aqueles campos exuberantes, ela se sentiu muito sozinha, aprisionada no meio do mundo, com os bandos de aves para lhe fazer companhia.

Como suas únicas companheiras de jornada.

Porque Elliott estava consciente demais de que o planeta voltava para casa. Ela usou a palavra "reinvocação", e era exatamente isso; tendo deixado de chegar a seu
destino, a nave era invocada a retornar para seu lugar de direito. De volta para casa.

Mas onde ficava essa casa e que seres estariam ali para recebê-la quando ela chegasse, Elliott nem mesmo podia começar a imaginar.

Mas agora tinha uma opção.

Ela - e o mundo - estavam a caminho.

 

Epílogo

- Vamos. Suba aqui, Bart Filhote. - Will deu um tapinha na cama a seu lado. Além da excursão ocasional ao lado de fora para pegar um ou dois ratos, o jovem Caçador
era a companhia quase constante de Will desde que sua mãe o levou de volta à Colônia para sua convalescença.

Era tudo muito adequado, porque Will era tratado no mesmo cômodo em que a sra. Burrows tivera sua recuperação milagrosa depois que os Styx a abandonaram para morrer,
em seguida à exposição excessiva à Luz Negra. A sala de estar na casa do Primeiro Oficial estava exatamente como na época de sua estada, a mobília empurrada de lado
para abrir espaço para uma cama. E foi precisamente ali que Will passou as últimas duas semanas, cochilando na cama e na maior parte do tempo sozinho, exceto por
uma ou outra visita de um médico.

Verdade seja dita, Will vivia seu melhor momento na vida.

Seguro no conhecimento de que a ameaça dos Styx foi eliminada de uma vez por todas, ele desfrutava da oportunidade de vadiar o dia todo, dormindo o máximo que precisava
em sua cama quente e macia.

E ele certamente era muito mimado - a mãe do Primeiro Oficial e sua irmã, Eliza, foram solicitadas a cuidar dele durante o dia, quando o Primeiro Oficial e a sra.
Burrows estavam ocupados com os problemas da Colônia.

A Colônia na realidade tornou-se de novo um lugar muito movimentado. Parry e sua unidade SAS se mudaram para lá, junto com um contingente de sobreviventes da Crosta,
de Londres e do Sudeste. Pelo menos havia muito espaço para esse influxo de novos moradores, porque a impiedosa colheita de colonistas pelos Styx para a Fase deixou
todas as ruas vazias.

Will descobriu que não sentia falta da Crosta, embora soubesse que havia muito debate lá em cima sobre como a atmosfera podia ser afetada à medida que o planeta
continuava a se afastar inexoravelmente do sol. O ar do planeta seria perdido conforme ele saísse cada vez mais de sua órbita e, por fim, deixasse o sistema solar,
ou havia alguma forma de campo para mantê-lo intacto? E as temperaturas na superfície cairiam até que só fossem de alguns graus acima do zero absoluto, a temperatura
do espaço sideral?

A vida humana e toda a vida se tornariam inviáveis nessas condições.

Mas Will não remoeu esses temores por muito tempo - ele estava muito feliz por se esconder em sua cama em seu quarto escuro e esperar que a próxima refeição lhe
fosse trazida. Sentia que teve mais do que sua parcela de desgraças nas mãos dos Styx, e agora cabia a outra pessoa resolver os problemas. Assim, ele ficou muito
satisfeito em ocupar os dias com coisas banais e insignificantes, para variar, que incluíam brincar com o filhote imenso.

- Ah, ande logo, Bart! - disse ele de mau humor, batendo na cama a seu lado com mais força.

Para sua grande surpresa, o felino semicerrou os olhos e começou a se afastar do quarto, rosnando para ele. Depois, com um último rosnado alto, Bartleby partiu,
disparou pelo corredor e foi para a cozinha.

- Vira-lata idiota - resmungou Will num tom decepcionado, cruzando os braços, ofendido.

Ouvindo a comoção, a sra. Burrows veio investigar.

- O que deu naquele gato?

- Não tenho a menor ideia. Alguma coisa o abalou. Ele não é nada parecido com Bartleby... Disso eu tenho certeza.

Por um momento a sra. Burrows continuou na porta, olhando o filho com seus olhos cegos. Ela farejou, depois disse:

- O jantar está quase pronto. Imagino que esteja com fome.

- Claro que estou, mãe.

No início foi um tanto estranho fazer parte da nova vida de sua mãe na Colônia, sua aparente alegria doméstica com o Primeiro Oficial. Mas, de certo modo, Will acreditava
que ele tinha todo o direito de estar ali; estava compensando o tempo perdido, porque nunca conheceu nada parecido quando eles moraram juntos em Highfield. Por todos
aqueles anos, a sra. Burrows esteve muito longe de ser uma mãe perfeita, ocupando seus dias com a amada televisão e nada mais. E, claro, não preparava refeições
para ele!

- Adivinha o que vamos comer? - Ela sorria ao passar pela pequena rotina com o filho.

- Hummm... Por acaso não é guisado de porcini? - respondeu Will, fazendo o jogo e agindo como se fosse uma novidade surpreendente, quando os cogumelos grandes eram
praticamente a única coisa que os colonistas comiam, todo santo dia.

A sra. Burrows pigarreou.

- Eliza me disse que Stephanie virá de novo para ver você hoje - disse ela sem rodeios, porque sabia que Will ainda sentia muita falta de Elliott. - Não faria nenhum
mal a você deixar a pobre menina entrar e conversar com ela.

- Talvez... - respondeu Will com indiferença. - Quando eu me sentir melhor.

A sra. Burrows não ia pressionar; estava saindo do quarto quando Will falou.

- Se esse gato não for voltar, pode fechar a porta, por favor, mãe?

- Você realmente adora o escuro agora, não é?

Ele pediu para que retirassem o globo luminoso do suporte no meio do teto porque, mesmo coberto, mantinha-o acordado. É claro que não fazia diferença para a sra.
Burrows se havia luz ou não, e cada colonista foi criado para viver com a iluminação constante, mesmo durante períodos de sono, porque os globos ardiam incessantemente.

- Sim. Eu gosto. - Enquanto ela fechava a porta, Will soltou um longo suspiro, saboreando a escuridão de breu no cômodo.

Ah, a maravilhosa escuridão de chocolate, pensou ele consigo mesmo, permitindo que ela o cobrisse, agora que estava sozinho.

No silêncio da casa, trechos da conversa da mãe com o Primeiro Oficial eram transportados pelo corredor, vindos da cozinha. Ela falava do estranho comportamento
do Caçador, depois houve um grande estrondo quando ela deixou cair alguma coisa e xingou em voz alta. Parecia uma panela, assim provavelmente o jantar deles foi
para o ralo. A sra. Burrows evidentemente ainda tinha muito a aprender quando se tratava da vida doméstica.

Houve o ronco baixo da voz do Primeiro Oficial - Will não distinguia as palavras, mas ele parecia preocupado. Depois Will ouviu a mãe anunciar, com muita clareza,
porque ela estava à porta da cozinha, dando para o corredor.

- Eu sei que você vai pensar que estou louca, mas é o que estou dizendo... Eu sinto cheiro de Styx. É fraco, mas está nesta casa!

A gargalhada alta do Primeiro Oficial encheu a construção.

- Você está louca - disse ele com afeto.

- É bem verdade, parceiro. Ela está louca. - Will fez eco num sussurro, rindo consigo mesmo.

Ele parou de rir quando a ficha caiu.

A reação de Bartleby a ele.

Seu desejo repentino de ficar no escuro.

O supersentido da mãe, que raras vezes se equivocava.

Will colocou a mão na barriga, apalpando-a com cautela. Jiggs disse que as larvas Styx podem ter deixado alguma coisa: compostos... enzimas...

Will se sentou lentamente.

Será que ele estava se transformando de algum jeito?

Transformando-se em outra coisa?

Transformando-se num Styx?

Ele ficou imóvel por um momento, depois balançou a cabeça.

- Mas será que isto não acaba nunca?

 

 

                                                   Roderick Gordon & Brian Williams         

 

 

 

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