Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Wang Lung I
TERRA BENDITA
Já há cerca de vinte anos, numa manhã cinzenta de Fevereiro, na cidade de Nanquim, então capital de um novo governo chinês, subi a uma água-furtada e comecei a escrever um livro. Não tinha nada planeado: nem a época, nem o lugar, nem o enredo. Mas conhecia o assunto muito bem e tivera com ele, sempre, grande familiaridade. Dedicaria toda a minha vida a escrever tal livro. Não tinha pressa. Sabia que as coisas que acontecessem, que eu visse, pensasse e sentisse no decorrer dos anos acabariam por ser escritas. Seria, assim, o produto e o resultado de um longo e continuo processo.
Quando me sentei diante da minha escrivaninha chinesa, um móvel que não passava de mero instrumento e que me era desde há muito familiar, olhei para fora, através da janela. O cenário também era familiar. Um vasto espaço de telhados e jardins verdejantes que acabavam na curva da enorme muralha da cidade. Essa muralha era tão alta que parecia alcançar a base da Montanha Vermelha. Mas, na realidade, muitos quilómetros separavam uma da outra, quilómetros de uma terra que eu conhecia palmo a palmo. Era uma larga região de plantações, como a terra onde eu nascera, e ficava a poucas horas da linha de caminho de ferro. Sabia avaliar as distâncias porque vivera cinco anos no norte da China, onde o solo é tão plano que apenas as miragens da Primavera lhe emprestam variedade e onde as areias são arrastadas em nuvens tempestuosas pelos ventos do deserto que sopram do Nordeste. Eu também vivera nesses campos, quase inteiramente em contacto com os camponeses.
Ao sentar-me, como já disse, pareceu-me que pela primeira vez na minha vida estava disponível. Experimentava uma profunda sensação de riqueza interior, que só uma existência intensamente vivida entre muitas gentes pode proporcionar ao espírito. Os meus primeiros pensamentos, como era inevitável, foram para o povo da terra. Ao examinar as minhas recordações, desde a infância até à maturidade, as figuras dessa gente foram as primeiras a surgir, na sua simplicidade, nobreza e boa índole. Vi Wang
Lung e O-lan com os filhos, na sua fazenda, lutando para viver e gozando a vida. Não tinham voz activa, apesar de eles e os da sua classe formarem quatro quintos de toda a população chinesa. Era essa gente que os grandes senhores exploravam à qual os «governos exigiam impostos. Eram aqueles que. estavam à mercê da fome e das inundações, que abandonavam os lares e partiam, vagueando pela terra estéril em busca de alimento, até poderem voltar outra vez. Nada podia persuadi-los a deixar a terra amada, além do medo de, não a abandonando, poderem morrer, perdendo-a para sempre. Era preferível ir para as cidades ricas do Sul e esmolar, embora isso lhes deprimisse o espírito, pois eram um povo independente.
Conheci também muitos outros habitantes da China. Já tinha então escrito um livro sem grande importância, East Wind, west Wind, baseado em duas pequenas histórias sobre as antigas e as novas maneiras do casamento na China. Vivendo na capital, conhecera muitos funcionários de alta e baixa categoria, e já era fácil notar as sementes de uma futura corrupção e decadência. Conheci velhos eruditos e estudantes da nova geração; conheci comerciantes, homens de negócios e soldados. Tanto uns como outros haviam, um dia, de penetrar nos meus livros. Contudo, tanto nos livros como na vida, eles dependem do povo, que constitui o alicerce de um país, a população rural, o corpo sólido da nação chinesa, no qual pulsava um coração incorruptível. Sabia que, uma vez iniciada a tarefa de escrever, uma série interminável de livros brotariam da minha pena, para poder exprimir tudo o que aprendera e sentira. Embora viesse a escrever outros livros, o próximo a sair devia ser básico; nele falaria do povo da terra chinesa.
Esse povo é fundamental, não apenas para a China, mas para todo o Mundo. A China é um país agrícola, e as gentes que formam os seus alicerces vivem do produto da terra. Talvez no meu próprio país, a América, onde a máquina é tão fundamental como o solo, o trabalhador seja tão necessário como o camponês. Talvez aquele se sinta tão ligado à máquina como este à terra. Penso muito sobre isto todas as vezes que me encontro junto de uma máquina, em qualquer grande fábrica. Vejo a imensa complexidade do aço e o pequeno operário que a controla. Poderá ele exprimir-se a si próprio através dessa máquina? Será o produto da máquina também um produto de si mesmo ? Se o é, haverá nesse produto o mesmo sentido que existe na colheita que o camponês retira da terra ? Será necessário que o homem possua a máquina antes mesmo de ter completado o processo espiritualmente, ou o mero acto de usá-la para a produção satisfaz as suas necessidades, tanto espirituais como corporais?
No que se refere à máquina não tenho resposta para tais perguntas, pois, para mim, ela continua a ser uma coisa estranha e, por mais que queira, ainda não me convenci de que o homem é o seu senhor absoluto. A máquina não lhe dá paz. Tem de vigiá-la a cada momento, acorrendo às vezes para corrigir um erro que ela fez, outras vezes para alimentá-la com óleo e água; e não pode descuidar-se, tem de tirar o produto da máquina no momento exacto, pois de contrário este pode ser destruído pela estupidez da mesma, que ignora quando o seu dever foi cumprido e terminou a sua própria criação. Não há tempo de entender a máquina, porque tem de ser observada continuamente. Quando, enfim, ela pára, o homem encontra-se mais exausto do que em paz,.
O mesmo não acontece com o homem que trabalha na terra. Embora em algumas horas ele seja forçado a trabalhar intensamente para precaver-se contra a tempestade e a desgraça; embora às vezes tenha de se apressar para semear a terra ou colher o grão maduro, mesmo assim há longas horas ao longo das quais ele cultiva vagarosamente o seu campo, planta, rega e enriquece o solo. Se se sente cansado, pára quando quer para dormir, beber, comer ou até mesmo admirar a alvorada, o pôr do Sol ou o nascer da Lua. As horas são longas mas cheias de paz. Ao fim do dia ele sente-se cansado, mas não dominado. É o seu próprio senhor, mesmo quando a terra lhe nega os seus frutos e o obriga a abandoná-la por algum tempo.
Tais são as coisas boas da terra, e os homens e as mulheres que nela vivem são uma gente boa. Os maus são poucos e esses não são verdadeiros camponeses mas sim aqueles que fogem da terra e vivem à custa dos outros, mediante qualquer processo. São os parasitas e, como tal, não passam de seres desprezíveis. Não enganam a ninguém senão a si próprios. Os bons toleram-nos por algum tempo, pois a bondade significa inevitavelmente paciência e compaixão. Contudo, a rectidão e a justiça, que também são atributos da bondade, exigem que os maus sejam expulsos.
E assim comecei a escrever o meu livro naquele dia de Fevereiro: conhecendo essa gente boa da terra e tendo no meu coração os mesmos sentimentos do coração desse povo, sentimentos que se desenvolveram com o decorrer dos anos. Não havia enredo nem plano. Tinha na minha frente apenas os homens e as mulheres com os filhos e foi sobre eles que comecei a escrever. Eram eles que me conduziam diariamente pelos caminhos que tão bem conhecia. Embora tenha dado um nome a essa família ela podia ser, com tudo o que lhe aconteceu, qualquer das centenas de milhares de outras famílias que, como ela, vivem quase as mesmas vidas desde há milhares de anos. Quando comecei a escrever, o meu pensamento estava voltado apenas para o povo chinês, pois não conhecia outros povos. Agora, depois de ter entrado em contacto com outras gentes, vejo que Wang Lung e 0-lan não são apenas chineses, mas sim criaturas humanas. Depois do livro ter sido escrito e publicado, pessoas que nada sabiam da China ou do povo chinês afirmaram ter facilmente esquecido que Wang Lung e 0-lan eram chineses. Viram, nessas personagens, apenas pessoas que lutavam para viver da melhor maneira possível.
Tal facto não se deve à minha habilidade e sim à força espiritual do povo chinês. Houve uma época em que este povo foi tachado de falso e possuidor de um orgulho pueril. A vida educou-o e o tempo civilizou-o. Nem a pobreza e a desgraça, nem a corrupção dos governos e as tiranias da guerra podem degradá-lo. Os chineses persistem e hão-de persistir sempre. Mil anos são mil anos, e o povo chinês tem vivido muitos milhares de anos. O momento presente, este século cheio de inquietação, não poderá destruir os alicerces do passado.
Contudo, nestes últimos vinte anos, muita coisa aconteceu. Houve uma guerra mundial onde a China teve o papel mais amargo de todos os tempos. Milhares de homens morreram na Europa, mas milhões morreram na China. Dos que não pereceram, cinquenta milhões foram obrigados a abandonar os seus lanes e a sua terra para escaparem à destruição. Mais de uma centena de milhar permaneceu nas suas terras, numa tentativa de sobrevivência. Actualmente, um governo caiu e outro luta pelo poder. Este também poderá vir a cair.
Pela primeira vez, após muitos anos, peguei novamente no livro para ver se estava desactualizado. De nada serviria fazer nova edição de um livro que estivesse fora da época. Se a velha China tivesse sucumbido, seja não existissem homens e mulheres como Wang Lung e 0-lan, se eles agora pertencessem à história, então seria melhor sepultá-los. Não me seria difícil tomar uma decisão, pois, embora estivesse ausente da China havia mais de dez anos, mantivera sempre velhos laços de amizade e correspondência com pessoas de lá.
Mas não há dúvida de que o povo chinês é o que sempre foi. Sobreviveu à guerra. Morreram milhares mas subsistiram centenas de milhares, que continuam a viver. Voltaram de novo à terra, tal como Wang Lung, e mais uma vez construíram as suas casas e estabeleceram as suas famílias. Quando a guerra civil começou, conseguiram manter-se, pois já estavam acostumados tanto aos soldados como aos bandidos. Os filhos de Wang Lung que eram comerciantes pagaram aos soldados para que se retirassem dos campos, pois a vida e a propriedade ainda são as coisas mais importantes que o povo possui. Os chineses não morrem por uma ideia. Vivem, querem gozar a vida e ter filhos. Isso basta para esses homens sábios do campo. O povo chinês é hoje o que foi ontem e será sempre o que tem sido até agora.
Apegados ao seu velho senso comum, os chineses nem sequer se apressam a livrar-se dos tiranos. Acreditam que o Céu e a Natureza desempenharão tal tarefa. E como sabem eles que o Céu ordenou a queda da tirania? Através do simples facto de o preço do arroz ir além do que o homem comum pode pagar. Um bom administrador conserva baixo o preço do arroz. Quando já não tem capacidade para o manter, é tempo de abandonar o cargo.
A democracia chinesa é e tem sido sempre simbolizada pela família. O conceito chinês sobre as relações do povo com o chefe do governo e seus conselheiros é o mesmo que regula as relações existentes no seio da família, entre o pai, o irmão mais velho e os outros membros. A democracia chinesa, quando tiver adquirido a sua forma final, não’repousará sobre a máquina política mas sobre os indivíduos paternalmente democratas, e o chefe será um homem paternal, permanecendo nas suas funções enquanto souber manter o respeito e a confiança do povo, pela conservação do baixo preço do arroz.
A qualidade essencial do conceito chinês de democracia pode ser encontrada na repulsa a venda de mercadorias por atacado. Quarenta gramas de melão, diz a velha história, por dez tostões. Quando o homem rico perguntou: Quanto custa cem vezes quarenta gramas?» a resposta foi:
«É ainda quarenta gramas por dez tostões.» Por que motivo havia o rico de poder comprar mais barato do que o pobre, suprindo assim todas as suas necessidades ? A China é um país naturalmente organizado contra os monopólios. Certas acumulações, tal como têm sido feitas, foram organizadas sob condições de corrupção e incentivadas pelas taxas e costumes estrangeiros. O arroz é a mercadoria básica, e todas as outras mercadorias se relacionam com esta. Podemos comparar o arroz ao aço nos Estados Unidos. Quando um governo nada mais pode fazer para reduzir o preço, está, na opinião popular, destinado a cair. O povo compreende que já é tempo de procurar outro governante.
Os governos têm sempre saído do povo e sempre deste sairão. É uma questão de tempo. O tempo tem sido indevidamente prolongado pela interferência de nações estrangeiras, mas o fim previsto chegará..
Lentamente e de uma maneira angustiante, a lição dos nossos tempos está sendo escrita deforma tão clara e simples que até os políticos do Mundo inteiro podem lê-la. Os povos serão satisfeitos. O que foi uma explosão na China, processou-se calmamente na Inglaterra, no fim da guerra.
Os povos do Mundo inteiro começaram a compreender que têm direito a viver, direito a ser livres, direito a alcançar a felicidade. As sementes plantadas há séculos na Europa, sementes trazidas da Ásia e depois levadas para o Novo Mundo, começam agora a florescer e a produzir frutos nesta eraa maior que a Humanidade já presenciou.
Muitas dessas sementes vieram da China. A ideia da soberania do povo e do dever que obriga o governo a servi-lo é tão velha como o próprio Confúcio. Por isso é justo e de esperar que tais sementes floresçam mais vivamente na China. O que está a acontecer na China não é um repentino assalto de aventureiros políticos. Os aventureiros não perdem a oportunidade em qualquer distúrbio. Mas apenas um espírito superficial vê na China de hoje um mero conflito entre duas ideologias. Nem sequer é um conflito é uma luta em que se empenham não dois, mas apenas um: este um é o povo da China, como o de todo o Mundo, que luta para ter um lugar onde possa viver. Se o comunismo serve, ele deve continuar. Mas se o comunismo também falha, então deverá ser posto de lado e a luta continuará, não contra os povos, nem entre os povos, mas pela própria vida. Os povos não querem guerras de destruição mútua. Todos eles estão a lutar, separadamente e até cegamente pelo mesmo objectivo, como as plantasfrágeis e ao mesmo tempo poderosaslutam tenazmente pela luz. É esta a lição dos nossos tempos e ela está patente para ser compreendida por aqueles que primeiro quiserem aprendê-la, por aqueles que realmente tiverem o poder de construir uma nova era. Mas esses conservarão o poder somente enquanto o povo tiver esperança de ser atendido.
E o comunismo?
A pergunta que os chineses fazem é esta: «Que espécie de homens e mulheres são os comunistas ? São eles em primeiro lugar chineses ou comunistas ?» O povo chinês acredita que existam as duas espécies. Os comunistas que se sentem primeiro chineses são aqueles que não consideram o comunismo em primeiro plano, são aquele1; que nunca abandonaram o seu torrão natal. Os comunistas que são primeiro comunistas antes de serem chineses: são os estudantes que voltaram da Rússia com uma educação francamente russa. Esses «beberam o leite Comunista no seio da Rússia Soviética».
De um modo geral, o povo chinês crê que o primeiro grupo reingressará na vida chinesa, trazendo-lhe ideias que ajudem a reviver a sua pátria. Mas não acredita na lealdade dos estudantes comunistas que voltaram da Rússia.
Perante isto podemos então afirmar que os novos governantes; deverão ser comunistas pertencentes ao primeiro grupo? O povo chinês afirma que a Natureza não quer que assim seja, pois estes comunistas são homens que entendem os camponeses e a vida do campo mas que não têm experiência de governo. Tradicionalmente, o governo chinês deve estar nas mãos, não dos camponeses, mas de filósofos e sábios. Os novos governantes devem sair mais uma vez de entre estes últimos, os quais, com a sua sabedoria, deverão escolher auxiliares que conheçam os camponeses e a vida do campo. E, desta vez, a prova será ainda o preço do arroz.
O povo chinês tem pensado sobre todas estas coisas e espera, como algumas vezes tem esperado durante centenas de anos. Espera até ao momento em que o Céu e a Natureza lhe mostrem o caminho.
Talvez se pergunte o que é que dá ao povo chinês essa indomável vitalidade. Como é que um país com uma área muito maior do que a Europa tem nutrido um povo com um senso comum tão profundo que o faz sobreviver a todos os desastres, guerras e governos ? A resposta talvez se possa encontrar na sua idade. Um povo tão vasto e vário como o da China é mais essencialmente unificado pelo tempo do que qualquer outro povo da terra. A religião e as guerras não o dividiram, como aconteceu com o povo da índia. Os chineses, por si sós, chegaram ao ponto em que compreendem que a vida em si mesma é o que o ser humano possui de mais valioso, e por isso ela deve ser estimada mais do que qualquer religião, do que qualquer ideologia, mesmo mais do que qualquer sonho, visão ou utopia. Quando um povo compreende claramente esta suprema sabedoria humana, transforma-a numa filosofia. As escolas chinesas de filosofia, tal como as religiões mais ou menos moderadamente professadas pelo povo, são tolerantes e compreensivas. Sem idealismo, os chineses compreendem que as querelas são inevitáveis entre as criaturas humanas e que os ódios devem ser descarregados. Esta catarse é por eles permitida e mesmo encorajada na vida diária. A sua antiga teoria, eminentemente profunda, inclusive à luz dos modernos padrões da ciência psicológica, é que, se durante a infância o indivíduo der livre expansão às revoltas e fúrias da sua natureza, é lícito esperar que venha a ser um adulto razoável. De um modo geral, os chineses constituem uma nação racionalmente adulta. A velha teoria, que durante séculos tem sido observada de um modo regular, produziu admirável resultado. Como nos prova a história do mundo ocidental, somente as crianças que desde cedo se sentem frustradas e recalcadas encontram a sua desforra, mais tarde, sob outras formas mais violentas, com frequência através da religião e da guerra. Quando um homem está em paz consigo mesmo, raramente desenvolve uma raiva capaz, de produzir guerras ou quaisquer outras violências.
É este espírito sadio, esta paz fundamental, que tem feito dos chineses, um povo mais pacifico do que pacifista, pois o mero pacifismo também tem a sua violência e pode não conduzir à paz. Por sobre essa pacífica alegria de viver, os chineses fundaram a sua civilização, tornando vergonhosa a destruição da vida, por quaisquer que sejam as razões, e sem dúvida vergonhosas todas as profissões destrutivas, como o militarismo. O soldado tem ocupado, inevitavelmente, o lugar mais baixo no esquema social da China.
Podemos então perguntar: «A China não tem o seu contigente de militares ?» Tem, sem dúvida, se por militares entendermos os senhores da guerra, encarados individualmente, os quais, no entanto, não têm o mesmo poder que se lhes confere no mundo ocidental. Os chineses são bastante realistas para ignorarem que, em qualquer sociedade, há certos indivíduos que se rebelam e que são, por natureza, destruidores. As condições não podem ser perfeitas para todos, por mais admirável que seja um sistema Além disso, tem sido sempre um ponto aceite da teoria chinesa o de que o povo tem o direito de se revoltar em qualquer ocasião. Sendo assim, a revolta não é impossível. A filosofia chinesa não tem tido tanto o propósito de destruir os rebeldes e de suprimir as rebeliões, como de criar condições que não facilitem o desenvolvimento de tais indivíduos e de tais revoltas. Considerando os milhares de anos da longa história chinesa e a sua vasta população, o número de rebeldes e de provocadores de motins tem sido assombrosamente pequeno, sendo isso uma prova de que o sistema social tem sido bom para quase todo o povo.
Mas essa filosofia pacífica não tende a nivelar a vida e a fazer do vulgar o admirável? A resposta mais uma vez é afirmativa, e podemos ainda dizer que é esse o ideal numa democracia. A falta de um chefe, na China, muitas vezes severamente criticada por pessoas do Ocidente, não é um sinal de fraqueza da sua civilização. É o resultado ambicionado e, na verdade, inevitável, em qualquer nação cuja democracia básica e popular ofereça, durante séculos, bons resultados, e isto a despeito dos governos, velhos e novos, que muitas vezes estiveram bem longe da democracia. O chinês não gosta de tiranos nem confia neles, onde quer que os encontre. Em parte alguma o meio termo no indivíduo humano é mais admirado. O homem ambicioso é instintivamente considerado pelo chinês como um tirano potencial. A História tem provado que esta conclusão é exacta.
É um ponto de vista discutível, o meu, de afirmar que o povo chinês continuará a ser o que tem sido. O conflito mais profundo do mundo de hoje não se trava entre governos hostis, mas entre a antiga filosofia, que ensina que a vida por si só é o maior bem do homem, e a nova filosofia de destruição, inerente à civilização ocidental. É na história que mais uma vez coloco a minha fé. Os chineses têm vivido sobre a terra há mais tempo do que qualquer outro agrupamento humano. Eles são homens e não deuses. Há alguma coisa neles que os fez resistir e os conservou viris, a despeito da idade e da decadência.
Contudo, o que é que os tem preservado, enquanto outros povos desapareciam da face da terra ? Em verdade, nada, excepto a crença que existe no povo de que a vida é boa e por tal motivo deve ser conservada e perpetuada.
Sem dúvida, não é suficiente acreditar apenas que a vida é boa. Eles também a desfrutam. Em parte alguma vi um povo desfrutar as simplicidades da vida com tanto entusiasmo como na China. Esse entusiasmo não era pueril, mas sim a própria essência do requinte. O presente é tudo aquilo que é palpável e sobre o qual não temos dúvidas. Uma vez çó isso é a verdadeira vida, não deve ser gasto estupidamente. Deve ser saboreado em cada colher de alimento, em cada momento de sono, em cada gole de vinho, na hora do pôr-do-Sol, na chuva que desce sobre a montanha, numa flor, num pássaro, no riso da criança, na companhia de um amigo, na alegria do amor. O tempo deve, acima de tudo, ser valorizado, esse precioso tempo que, quando gasto com pressa e aborrecimentos, se perde. Cada momento de paz é mais precioso do que todas as riquezas, pois apenas na paz a vida pode ser plenamente saboreada. Assim, o bem é sabedoria, pois no mal não há paz, e a bondade é sabedoria, pois não há paz no sofrimento, o homem bom goza a vida como o mau nunca o consegue; no entanto, a bondade não deve ser imposta aos outros, pois a força em. si própria traz o sofrimento.
Tenho lido muitas coisas estranhas, muitas profecias e muitos debates sobre o que devemos fazer para «salvar a China». Aqueles que não sabem o que é a China não me incomodam. O povo chinês também não se sente perturbado. Ele tem na memória o seu passado de milhares de anos.
Quem pode afirmar que os chineses estão errados? Quem pode dizer que esse povo está em erro, se ele compreendeu a vida antes de nós, antes da nossa civilização ter surgido? Se o mundo continuar nesta marcha actual, os chineses permanecerão por muito tempo, quando nós já nos tivermos destruído. Talvez eles cheguem até a salvar-nos, se permitirmos que nos salvem.
Aconteça o que acontecer, quero que este livro fique como está. Wang Lung e 0-lan e os seus filhos ainda vivem, e outros como eles estão a nascer todos os dias na terra chinesa.
Perkasie, Pennsylvania Agosto, 1949.
PEARL S. BUCK
ERA o dia do casamento de Wang Lung. Todavia, ao abrir os olhos, na obscuridade das cortinas que lhe envolviam o leito, não chegava a compreender porque esta madrugada lhe parecia diferente de todas as outras. O silêncio da casa era apenas perturbado pela tosse débil e ofegante do velho pai, cuja alcova ficava em frente da sua, no outro lado da sala do meio. A tosse do velho era o primeiro ruído que ele percebia todas as manhãs. De ordinário, Wang Lung ficava-se a escutá-la e só se levantava quando sentia que ela se aproximava e a porta do quarto paterno rangia nas dobradiças de madeira.
Naquela manhã, porém, não esperou. Levantou-se de um salto e afastou as cortinas do leito. A manhã estava sombria e avermelhada, e através da pequena abertura quadrada que servia de janela, onde tremia um papel esfarrapado, entrevia-se uma nesga do céu acobreado. Aproximou-se da abertura e arrancou o papel, ao mesmo tempo que murmurava:
Estamos na Primavera; já não preciso disto!
Envergonhava-se de sentir que era preciso ter a casa limpa naquele dia. A abertura era apertada mas suficientemente larga para lhe deixar passar a mão que pôs de fora para sentir a temperatura. Vento ligeiro e tépido soprava docemente do Leste, aragem húmida e sussurrante que pressagiava chuva. Isto era de bom augúrio. Era necessária a chuva para fecundar os campos. Por certo não choveria naquele mesmo dia, mas, se o vento continuasse, ter-se-ia água dentro em breve. Isto era bom. No dia antecedente ele dissera ao pai que, se o ardente e implacável sol persistisse, o trigo não criaria grão. Mas nesse momento poderia dizer-se que o Céu tinha escolhido aquele dia para o favorecer. A terra frutificaria.
Enquanto ajeitava as calças azuis, amarrando em torno das ancas um cinto de algodão da mesma cor, Wang Lung encaminhava-se, apressadamente, para a sala do meio. com o torso nu, esperou que se aquecesse a água para se banhar. Passou à cozinha, situada num alpendre encostado à casa, e, à sua vista, um boi escondido no ângulo vizinho da porta alongou a cabeça da profunda escuridão e mugiu tristemente. A cozinha e a casa eram construídas de tijolos, grandes ladrilhos de barro extraído dos seus próprios campos, e cobertas de palha do seu trigal. Desse barro tinha o seu avô, quando jovem, construído também a fornalha, agora calcinada e enegrecida pelo fogo de tantos anos no arranjo das refeições. Sobre esta fornalha, erguia-se um caldeirão de ferro, fundo e bojudo.
Deitou no caldeirão, até meio, água que ele tirava com uma metade de cabaça de um pote de barro que estava próximo, com toda a parcimónia, porque a água era preciosa. Seguidamente, após breve hesitação, levantou o pote e despejou toda a água no caldeirão. Nessa manhã lavaria o corpo inteiro. Desde criança, quando ainda no colo de sua mãe, que ninguém lhe vira o corpo. Mas naquele dia alguém o veria e ele devia tê-lo limpo.
Contornando a fornalha, dirigiu-se ao fundo da cozinha, escolheu, ao canto, um punhado de erva seca e de ramos, e ajeitou-os cuidadosamente na boca da fornalha, aproveitando a mais insignificante folha. Depois, com um velho fuzil e uma pederneira, produziu lume e chegou-o à palha, que começou a arder.
Era aquela a última manhã em que se precisava de acender o lume. Acendia-o todas as manhãs, desde há seis anos, após a morte de sua mãe. Acendia o lume, fervia a água e enchia uma tigela que levava ao quarto onde o pai, sentado na cama, tossia e, às apalpadelas, procurava os sapatos no chão. Desde há seis anos que, todas as manhãs, o velho esperava que o filho lhe levasse a água quente que o aliviaria do catarro matinal. Mas daí em diante pai e filho poderiam descansar: uma mulher viria para casa. Wang Lung não tornaria a precisar de erguer-se de madrugada, no Inverno como no Verão, para acender o lume. Ficaria tranquilamente na cama; também a ele lhe levariam uma tigela de água, e, se a terra fosse pródiga, teria folhas de chá para a bebida. Isto só acontecia uma vez em muitos anos. Quando a mulher já não tiver forças, haverá filhos para acender o lume, os numerosos filhos que ela terá de Wang Lung.
Wang Lung parou, apreensivo com a ideia das crianças correndo duns quartos para os outros. Sempre lhe parecera que três quartos eram de mais naquela casa semivazia desde a morte de sua mãe; sempre resistira às tentativas dos parentes, menos à vontade do que eles; seu tio, com um rebanho de filhos, tentava persuadi-los:
Vejamos, precisam dois homens de tantos quartos? Pai e filho não podem dormir juntos? Porque não há-de o calor do corpo jovem acalmar a tosse do velho?
Mas, invariavelmente, o pai respondia:
Guardo o meu leito para o meu neto. Ele aquecerá os meus velhos ossos.
Agora, viriam os netos... netos em quantidade. Seriam obrigados a pôr camas ao longo das paredes e no compartimento do meio. A casa ficaria cheia de camas.
E enquanto Wang Lung sonhava com todas as camas que viriam encher a casa agora semivazia, ia-se extinguindo o lume, e a água não tardaria a arrefecer.
Aconchegando ao corpo as vestes desabotoadas, apareceu no limiar da porta a figura do velho. Tossindo e cuspindo, tartamudeou :
Mas que se passará para que não haja ainda água quente para os meus pulmões?
Chamado à realidade, Wang Lung sentiu-se envergonhado e balbuciou atrás do forno:
Esta lenha está húmida... com o tempo chuvoso...
A tosse do velho mantinha-se, com persistência; para a acalmar, necessitava da água quente. Wang Lung deitou-a numa tigela e, após um momento, abriu uma vasilha vidrada que se encontrava no bordo da fornalha, de onde tirou uma pitada de folhas secas e engelhadas que espalhou na superfície da água. O velho abriu os olhos avarentos e pôs-se a resmungar: Porque as desperdiças? Beber chá é comer o dinheiro. É dia para issoreplicou Wang Lung com riso breve. Tome, e bom proveito.
O velho, com os dedos nodosos e engelhados, pegou na tigela resmungando e soltando pequenos grunhidos. Olhava as folhas que se desenrolavam e estendiam à superfície, sem se resignar a beber a preciosa bebida.
Está a arrefecer! disse Wang Lung.
É verdade... é verdade...disse o velho, inquieto, e, a grandes goles, pôs-se a sorver o chá escaldante, com uma satisfação animal. Parecia uma criança hipnotizada pelo alimento. Mas restava-lhe ainda presença de espírito bastante para ver que Wang Lung despejava, negligentemente, a água do caldeirão para uma funda tina de madeira. Levantou a cabeça e, encarando o filho com um ar severo, disse bruscamente:
Tanta água chegava para regar uma seara.
Wang Lung, sem responder, deitou a água até à última gota.
Mas fala! gritou o pai.
Desde o Ano Novo que não lavo todo o corpo de uma só vez...respondeu Wang Lung timidamente.
Tinha vergonha de dizer ao pai que desejava o corpo limpo para que a mulher o visse. Saiu, apressadamente, levando a tina para o quarto, cuja porta, mal ajustada, não fechava bem. O velho atravessou a sala do meio a passo miúdo, e, colando a boca à abertura, vociferou:
Isto irá mal se habituarmos a mulher deste modo: chá na água de manhã e toda esta barrela!
Isto é só um dia!respondeu Wang Lung .E acrescentou: Quando acabar, deitarei a água à terra, e assim não ficará perdida.
com esta resposta o velho calou-se e Wang Lung, desapertando o cinto, começou a despir-se. À luz que entrava, em feixe, através de um buraco, mergulhou na água fumegante uma pequena toalha, torceu-a e esfregou vigorosamente o corpo moreno e esbelto. O ar parecera-lhe quente, mas, ao sentir-se molhado, teve frio e acelerou os movimentos de vaivém até o corpo exalar uma ligeira névoa de vapor. Depois encaminhou-se para um baú que fora da sua mãe e dele tirou um asseado vestuário de algodão azul. Talvez naquele dia sentisse frio sem as suas roupas de Inverno acolchoadas, mas repugnava-lhe a ideia de as sentir no seu corpo limpo. O tecido exterior mostrava-se roto e sujo, e o forro, num estado lamentável, pardacento, saía pelos buracos. Desejava que a futura esposa, ao vê-lo pela primeira vez, o não encontrasse esfarrapado. Mais tarde, ela teria de remendá-lo e lavá-lo, mas não no primeiro dia. Sobre a blusa e as calças de algodão azul enfiou uma longa túnica do mesmo pano .. o seu único vestuário comprido, que usava somente nos dias de festa, aproximadamente dez dias em todo o ano, bem feitas as contas. Depois, com dedo ágil, desmanchou a longa trança de cabelo que lhe caía sobre as costas, e, tirando um pente de madeira da gaveta da mesinha cambada, começou a pentear-se.
O pai aproximou-se de novo, aplicou a boca à fenda da porta e resmungou:
Mas neste dia nada terei para comer? Na minha idade, pela manhã, os ossos não se aguentam enquanto não se lhes dá de comer.
Não demoro!disse Wang Lung entrançando rapidamente os cabelos e entrelaçando na ponta das madeixas um cordão negro de seda.
Após alguns momentos, despiu a longa túnica, enrolou a trança em volta da cabeça e saiu, levando a tina da água. Esquecera-se, totalmente, do almoço. Desobrigar-se-ia da tarefa diluindo farinha numa pouca de água para dar a seu pai. Quanto a ele, sentia-se incapaz de comer. Levou a tina, a custo, e, no limiar da porta, derramou a água no chão. No mesmo instante lembrou-se de que gastara no banho toda a água do caldeirão e que precisava de acender, novamente, o lume. Esta ideia encolerizou-o contra o pai.
Esta velha cabeça só pensa em comer e beber!murmurou à boca da fornalha. Mas, em voz alta, nada ousou proferir. Aquela manhã seria a última em que ele devia preparar a refeição do velho. Trouxe alguma água no balde do poço, que ficava próximo da porta, lançou-a no caldeirão e, logo que principiou a ferver, misturou-lhe a farinha e levou-a ao velho.
Teremos arroz esta noite, meu paidisse-lhe ele. Para agora, tem aqui milho.
Já temos pouco arroz no cestoreplicou o velho, sentando-se à mesa da sala do meio, enquanto mexia com os pauzinhos a grossa papa amarela.
Wang Lung replicou:
Comeremos um pouco menos na festa da Primavera. Mas o velho não o ouviu.
Engolia com grande ruído o conteúdo da tigela.
Wang Lung foi para o seu quarto, vestiu de novo a túnica azul e desamarrou a trança. Passou a mão pela testa escanhoada e pelas faces. Não seria melhor rapá-las de fresco ? Como era ainda bastante cedo, poderia passar pela Rua dos Barbeiros e fazer-se barbear antes de se encaminhar para a casa onde a mulher o esperava. Teria dinheiro suficiente?
Tirou do cinto uma bolsinha muito suja, de pano cinzento, e avaliou o dinheiro. Tinha seis moedas de prata e um punhado de moedas de cobre. Não prevenira ainda o pai de que viriam convidados cear naquela noite. Tinha convidado o primo e o tio, por causa de seu pai, e três rendeiros vizinhos. Naquela manhã projectava trazer da cidade carne de porco, um peixinho de viveiro e um punhado de castanhas. Talvez até comprasse alguns rebentos de bambu do Sul e um pedaço de vaca para meter na panela com couves da sua horta. Mas isto somente se lhe crescesse algum dinheiro depois de comprar óleo de fava e molho de soja. Mas se rapasse a cabeça, talvez não pudesse comprar a carne de vaca.
Pois seja!decidiu ele bruscamente - raparei a cabeça.
Deixou o velho, sem dizer palavra, e abalou de manhãzinha. Não obstante a avermelhada e sombria manhã, o Sol erguia-se entre as nuvens do horizonte e fazia cintilar o orvalho na cevada e no trigo já crescidos. Camponês que era antes de tudo, Wang Lung debruçou-se a examinar as espigas. Estavam ainda vazias e precisavam de chuva. Farejou o ar, na ansiosa interrogação do Céu. A chuva encontrava-se ali, carregando as nuvens sombrias arrastadas pelo vento. Compraria um pau de incenso para acender no pequeno templo da Terra Bendita. Devia fazer isso num dia como aquele.
Entre campos, seguiu caminho por uma estreita vereda...
Perto, erguiam-se os muros cinzentos da cidade. ”Para além daquela porta, através da qual ia franquear os muros, erguia-se a Casa Hwang, a grande casa onde a mulher foi escrava desde a infância. Alguém lhe tinha dito:«Antes viver só’do que desposar uma mulher que foi escrava numa grande casa.» Mas quando ele perguntou ao pai«Nunca terei mulher?»o velho respondeu: «Como os tempos vão maus, as bodas custam uma fortuna e as mulheres desejam anéis de ouro e vestidos de seda antes do casamento, os pobres só podem recorrer às escravas.»
Então, seu pai decidiu-se a ir à casa de Hwang e perguntou se ali havia uma escrava disponível.
Uma escrava que não seja nova e ainda menos bonita esclareceu ele.
A Wang Lung desagradou que ela não fosse bonita; desejava ter uma linda mulher, para que os outros homens o felicitassem. Seu pai, lendo-lhe no rosto a íntima revolta, gritou-lhe:
Que faríamos nós com uma linda mulher? Precisamos não só de quem trate do lar, mas ainda crie as crianças e trabalhe nos campos. Faria isto uma mulher bonita? Estaria sempre a pensar em vestidos! Não, nada de mulheres bonitas em nossa casa. Somos camponeses. Quem pode gabar-se de ter ouvido dizer que uma escrava bonita se manteve virgem numa casa de ricos? Todos os filhos dos patrões se serviram dela. É melhor ser o primeiro com uma mulher feia do que o centésimo com uma beldade. Supões que uma mulher bonita acharia as tuas mãos de camponês tão agradáveis como as mãos delicadas- de um filho de rico, e acharia o teu rosto, queimado pelo sol, tão belo como a pele dourada daqueles que a procuraram para seu prazer?
Wang Lung compreendeu que o pai dizia a verdade. Todavia, lutou contra si próprio antes de responder. Mas depois disse, com violência:
Pelo menos, não quero ter uma mulher marcada pelas bexigas ou com o beiço rachado!
Veremos o que se pode arranjar retorquiu o pai.
Ora a mulher não era marcada pelas bexigas nem tinha o lábio rachado. Era isto o que ele sabia, mas nada mais. Ele e o lai tinham comprado dois anéis de prata dourada e brincos também de prata, que o velho levara ao dono da mulher como garantia do casamento. Nada mais sabia a respeito da mulher que iria desposar, a não ser que nesse dia lhe era permitido ir buscá-la.
Mergulhou na fresca obscuridade da porta da cidade. Aguadeiros transportavam nos carrinhos grandes vasilhas de água; iam e vinham durante o dia inteiro, esparrinhando água sobre as pedras. Naquele túnel da porta, sob o espesso muro de barro e tijolo, havia sempre humidade e frescura, mesmo nos dias de Verão. Por isso, os vendedores costumavam ali expor os melões, fendidos em dois, sobre as pedras, para absorverem a frescura. Ainda ali não havia melões, porque não se estava na época própria, mas viam-se ao longo das paredes cestos de pequenos pêssegos verdes e rijos.
Os vendedores gritavam:
Os primeiros pêssegos da Primavera!... Os primeiros pêssegos!... Comprem, comam, limpem as tripas dos venenos do Inverno!...
Wang Lung disse para si próprio:
Se ela gostar, comprarei uma mão-cheia quando voltarmos.
Custava-lhe a acreditar que, quando voltasse a atravessar a porta da cidade, levaria uma mulher atrás de si.
Atravessada a porta, dobrou à direita, e chegou à Rua dos Barbeiros.
Àquela hora matinal, ele era um dos primeiros; apenas se viam alguns camponeses que, na noite anterior, haviam trazido os seus produtos para a cidade, a fim de poderem vender as hortaliças nos mercados, logo de manhã, e voltarem à faina diária dos campos. Enrodilhados e friorentos, tinham dormido em cima dos cestos, agora vazios a seus pés. Wang Lung evitou os camponeses, com receio de algum o conhecer, pois qualquer brincadeira lhe seria desagradável naquele dia.
Ao longo da rua, alinhados atrás das pequenas barracas, os barbeiros esperavam os clientes. Wang Lung encaminhou-se para o mais afastado, sentou-se no banco e fez sinal ao barbeiro que tagarelava com o vizinho. O barbeiro acorreu, apressou-se a tirar água quente de uma vasilha de cima do fogareiro e a vertê-la numa bacia de cobre.
Rapa-se tudo?interrogou com solicitude profissional.
A cabeça e a carareplicou Wang Lung.
E as orelhas e as narinas?...perguntou o barbeiro.
Wang Lung, receoso, orientou-se:
Quanto me custa mais este serviço?
Quatro pence respondeu o barbeiro, enquanto mergulhava na água quente uma toalha negra.
Darei dois pence retorquiu prontamente Wang Lung.
Então depilarei somente uma orelha e uma narina atalhou prontamente o barbeiro. Em que metade do rosto deseja este serviço feito?...
Assim falando, dirigiu uma piscadela de olho ao barbeiro próximo, que soltou uma gargalhada. Wang Lung compreendeu que tinha caído nas mãos de um trocista, e pressentiu-se em inferioridade, sem entender porquê, como sempre lhe acontecia perante gente da cidade, fossem barbeiros ou pessoas da mais baixa condição.
Como queira... como queira... retorquiu apressadamente.
Depois, com docilidade, permitiu que o barbeiro o ensaboasse, friccionasse e rapasse. E como, afinal, se tratava de um bom rapaz, deu-lhe uma série de hábeis maçagens nos ombros e nas costas para lhe tornar os músculos flexíveis, muito embora isto não estivesse entendido no preço combinado. À medida que rapava o alto da testa de Wang Lung, ia dizendo:
Não ficaria com mau aspecto se cortasse o cabelo rente. É moda cortar a trança.
A navalha roçou de perto o círculo de cabelo que revestia o alto da cabeça de Wang Lung.
Não posso cortá-la sem licença de meu pai!gritou ele assustado.
O barbeiro riu e respeitou-lhe o punhado de cabelos.
Terminada a tarefa e contando o dinheiro para a mão encurvada e húmida do barbeiro, Wang Lung sentiu-se, por momentos, horrorizado. Tanto dinheiro! Mas, quando descia a rua, sentiu a agradável frescura da brisa na pele barbeada e disse para si próprio:
Foi só uma vez.
Dirigiu-se ao mercado, comprou duas libras de carne de porco, vigiou o carniceiro quando a embrulhava numa folha seca de lotos, e após curta hesitação, adquiriu também seis onças de carne de vaca. Depois disto comprado, adquiriu uma porção de coalhada fresca, que tremia como geleia sobre folhas, entrou na loja de um cerieiro onde comprou dois paus de incenso. Por fim, tomado de timidez, dirigiu-se para a Casa de Hwang.
Junto do grande portão, Wang Lung sentiu-se tomado de pânico. Porque tinha vindo sozinho? Podia ter pedido ao pai... ou ao tio... ou mesmo ao seu vizinho mais próximo, Ching... a alguém, enfim, que o acompanhasse. Nunca ele pusera os pés numa casa grande. Como seria capaz de ali entrar, com a sua merenda de núpcias no braço, e dizer:
Venho buscar a minha mulher!
Ficou longo tempo junto do portão, a meditar. Ele estava hermeticamente fechado e era constituído por duas grandes portas de madeira, pintadas de negro, chapeadas com ferro, unidas uma à outra. Dois leões de pedra, ’em guarda, ladeavam-na. Não se via ninguém. Wang Lung afastou-se. Decididamente não havia ali nada a fazer.
De repente, sentiu-se fraco. Antes de mais nada iria alimentar-se. Não tinha comido... esquecera-se de almoçar. Entrou num pequeno restaurante, pôs dois pence sobre a mesa e sentou-se. rouco limpo, com um avental negro e luzidio, aproximou-se um criado.
Duas tigelas de aletria pediu Wang Lung.
Comeu-as avidamente, com a ajuda dos paus de bambu, enquanto o rapaz, junto dele, fazia girar as moedas entre o polegar e o indicador.
Que mais deseja?perguntou o rapaz com indiferença.
Wang Lung abanou a cabeça, em sinal negativo. Levantou-se e olhou em torno de si. Não havia ninguém seu conhecido na pequena sala escura e pejada de mesas. Apenas alguns homens comiam ou tomavam chá. Era um estabelecimento para gente pobre e, por contraste, Wang Lung tinha um ar de limpeza e de asseio, quase de pessoa abastada, de tal modo que um mendigo, ao passar perto, se lamentou, em súplica:
Tenha bom coração, senhor professor... dê-me uma esmola... morro de fome.
Wang Lung nunca vira um pobre pedir-lhe esmola, nem ouvira ninguém chamar-lhe «senhor professor». Sentiu-se lisonjeado e lançou na escudela do mendigo duas pequenas sapecas de cobre. O mendigo estendeu rapidamente a negra mão que, como uma garra, apanhou as moedas e as escondeu nos andrajos.
Wang Lung sentou-se de novo. O Sol subia no céu. O rapaz do restaurante impacientava-se e acabou por dizer-lhe, audaciosamente :
Se nada mais consumir, terá de pagar o aluguer do banco.
Tamanha insolência irritou Wang Lung. Esteve a ponto de levantar-se, mas, à ideia de entrar na Grande Casa de Hwang e de ali pedir a sua mulher, o suor cobriu-lhe todo o corpo como se tivesse trabalhado no campo.
Traz-me chádisse ao rapaz, com voz pouco firme.
Mal teve tempo de se voltar e o chá estava servido. Secamente o rapaz perguntou:
O dinheiro?...
Wang Lung, com horror, viu-se forçado a tirar do cinto uma nova moeda.
Isto é um roubomurmurou ele sem querer. Mas vendo entrar, nesse momento, o vizinho que convidara para as bodas, apressou-se a colocar a moeda sobre a mesa, bebeu o chá de um trago, saiu precipitadamente pela porta lateral e de novo se encontrou na rua.
É preciso acabar com isto!disse resolutamente. E, vagaroso, dirigiu-se para o portão da Casa de Hwang.
Agora, como era mais de meio-dia, as portas estavam entreabertas, e o porteiro, confortado com o almoço, passeava na soleira, vagarosamente, enquanto palitava os dentes com um pedaço de bambu. Era um homem astuto, com um sinal na face esquerda, do qual pendiam três longos cabelos negros que nunca tinham sido cortados. Quando Wang Lung apareceu, o porteiro, ao ver o cesto, julgou que ele desejava vender alguma coisa e interpelou-o com violência:
Que deseja?
com dificuldade, Wang Lung respondeu:
Sou Wang Lung, o lavrador.
Está bem. Wang Lung, o lavrador... Mas que deseja? ripostou o porteiro, que só era polido com os ricos amigos dos seus patrões.
Eu vim... eu vim... balbuciou Wang Lung.
Isso vejo eudisse o porteiro com afectada paciência, torcendo os longos cabelos do sinal.
...por causa de uma mulher ..continuou Wang Lung, alagado em suor e com uma voz que, apesar de todos os esforços, se transformava num sopro.
O porteiro desatou a rir.
Ah! És tu o noivo!gracejou ele. Disseram-me que virias hoje; mas não esperava ver-te com um cesto no braço.
São apenas alguns mantimentos disse Wang Lung, a modo de desculpa.
Esperava que o porteiro o introduzisse, mas este não se mexia. Por fim, Wang Lung interrogou, inquieto:
Devo ir sozinho?
O porteiro simulou um arrepio de horror dizendo:
O velho patrão matava-te!
Depois, vendo que Wang Lung era ingénuo de mais para o compreender, acrescentou:
O dinheiro é uma boa chave ..
Wang Lung compreendeu, finalmente, que o porteiro queria extorquir-lhe dinheiro.
Sou pobre disse ele em sua defesa. Mostra-me o que tens no cinto .
Sorriu maliciosamente quando Wang Lung, na sua ingenuidade, depôs o cesto nas pedras e, levantando a túnica, tirou do cinto a pequena bolsa e esvaziou para a mão esquerda o pouco dinheiro que lhe restava das compras: uma moeda de prata e catorze pence.
Contento-me com a prata disse o porteiro, friamente. E antes que Wang Lung respondesse, apossou-se da moeda, escondendo-a na manga, e transpôs a porta a largos passos anunciando em altos berros:
Chegou o noivo! Chegou o noivo! .
Apesar da cólera que lhe despertava o que tinha acontecido, e do horror que lhe causava o ser assim anunciada a sua vinda, Wang Lung não tinha outro recurso que não fosse seguir o porteiro. Sem olhar para qualquer dos lados, pegou no cesto e seguiu-o.
Era a primeira vez que entrava numa casa de pessoas importantes, mas apenas guardou deste acontecimento uma lembrança confusa. De rosto afogueado e de cabeça baixa, atravessou pátios infindáveis, precedido daquela voz em clamor, ouvindo risos que partiam de todos os lados. De repente, quando lhe pareceu ter atravessado uma centena de pátios, o porteiro calou-se e impeliu-o para uma pequena sala de espera. Aí ficou sozinho, enquanto o porteiro entrava na sala seguinte, de onde voltou passado um instante para lhe dizer:
A venerável senhora ordena que vás à sua presença.
Wang Lung deu um passo em frente, mas o porteiro deteve-o, gritando-lhe com indignação:
Não podes aparecer diante de uma grande senhora com um cesto no braço... um cesto de carne de porco e de coalhada. Como poderás fazer a reverência ?
É verdade... é verdade...disse Wang Lung perturbado. Não ousava, porém, separar-se do cesto, com receio de que lhe roubassem alguma coisa. Afigurava-se-lhe, sem dúvida, que toda a gente devia cobiçar tão raras iguarias como um quilo de carne de porco e um peixinho de viveiro. O porteiro compreendeu o receio de Wang Lung e gritou-lhe em tom de grande desprezo:
Numa casa como esta, tais comidas destinam-se aos cães!
Apoderando-se do cesto, colocou-o atrás da porta e empurrou Wang para diante.
Atravessaram uma longa e estreita varanda, cujo telhado se apoiava em colunas finamente esculpidas, e entraram, por fim, numa sala como Wang Lung nunca vira. Poderiam construir-se ali vinte casas como a sua, e ficariam aí perdidas, tais eram as suas dimensões e a altura do tecto. Tendo levantado a cabeça, espantado, para ver por cima de si as enormes vigas esculpidas e pintadas, tropeçou no degrau da porta e teria tombado, se o porteiro não o segurasse pelo braço, murmurando:
Cuidado .. Veremos se és tão polido que, como aqui, te deixes cair de bruços perante a veneranda senhora...
Refazendo-se, muito envergonhado, Wang Lung olhou em frente. Sobre um estrado, no meio do salão, viu uma senhora muito idosa, de corpo delgado e pequeno, vestida de cetim brilhante, cor de pérola; sobre um tamborete baixo, a seu lado, repousava um cachimbo de ópio que uma pequena lâmpada aquecia. Ela observava Wang Lung com os seus olhos negros e penetrantes, tão vivos e tão profundos como os de um macaco, naquele rosto encarquilhado. A pele da mão que segurava a extremidade do cachimbo e revestia os ossos esguios era tão lisa e amarela como o dourado de um ídolo.
Wang Lung caiu de joelhos e bateu com a fronte no chão.
Levante-odisse a velha com gravidade, ao porteiro. Estes prostramentos são desnecessários. Veio procurar a mulher?
Sim, venerável senhora respondeu o porteiro.
Porque não fala ele próprio?interrogou a senhora.
Porque é um imbecil, veneranda senhora respondeu o porteiro, torcendo os cabelos da verruga.
Esta injúria espicaçou Wang Lung, que lançou ao porteiro um olhar de ressentimento e disse:
Sou apenas um homem sem educação, grande e venerável senhora. Não sei as palavras que deva usar perante vós.
A velha senhora olhou-o atenta e gravemente; sem dúvida ia falar, mas a sua mão fechou-se sobre o cachimbo preparado que uma escrava lhe estendia e pareceu esquecer-se prontamente do seu visitante. Inclinou-se e aspirou avidamente o fumo durante um momento; os seus olhos perderam o brilho e cobriram-se de uma névoa de esquecimento. Wang Lung ficou em pé diante dela, até ao momento em que, por acaso, os olhos da fumadora encontraram o seu rosto.
Que faz aqui este homem?perguntou ela, subitamente encolerizada.
Dir-se-ia que esquecera tudo. O porteiro, impassível, ficou silencioso.
Estou à espera da mulher, ilustre senhoradisse Wang Lung, como atordoado.
A mulher?! Que mulher?...começou a velha. (Mas a jovem escrava, a seu lado, inclinou-se e segredou-lhe alguma coisa que a fez reconsiderar).Ah! Já estava esquecida... o assunto é tão insignificante... Vieste buscar a escrava chamada O-lan. Recordo-me de que a tínhamos prometido em casamento a um lavrador. És tu esse lavrador?
Sou replicou Wang Lung.
Chame já O-landisse a velha senhora à escrava.
Parecia repentinamente apressada por acabar aquela cena e ficar sozinha com o seu cachimbo de ópio, na tranquilidade do salão.
Ao fim de um instante, a escrava reapareceu, trazendo pela mão uma mulher alta, forte, de ombros largos, limpamente vestida com uma blusa e calças de algodão azul. Wang Lung lançou-lhe os olhos, para os desviar rapidamente. Era aquela a sua mulher.
Aproxima-te, escravadisse a velha, com indiferença. Este homem veio buscar-te.
A mulher aproximou-se da senhora, e ali permaneceu de cabeça inclinada e mãos juntas.
Estás pronta!
O-lan respondeu, como um eco:
Pronta!
Ouvindo-lhe a voz, pela primeira vez, Wang Lung observou-a pelas costas, porque ela estacionara à sua frente. Era uma voz bastante agradável, nem muito forte nem muito fraca, sem asperezas de mau humor. O seu cabelo era limpo e luzidio e o seu trajo asseado. com passageiro desapontamento, Wang Lung viu que os seus pés não estavam comprimidos. Mas não insistiu nesta observação porque a velha senhora disse ao porteiro:
Leve-lhe o baú até junto da porta, e que partam.
Depois dirigiu-se a Wang Lung:
Coloca-te ao seu lado enquanto falo.
E quando Wang Lung avançou ela disse:
Esta mulher tinha apenas dez anos quando entrou para a nossa casa e viveu aqui até hoje, já com vinte anos completos. Comprei-a num ano de fome, quando os pais partiram para o Sul, porque nada tinham para comer. Eles eram do norte de Chantung, e para lá regressaram. É tudo o que deles sei. Vês que ela tem corpo robusto e as maçãs do rosto salientes, próprias da sua raça. Ela saberá trabalhar para ti nos campos, tirar a água e fazer quanto desejares. Não é bonita, mas isto não te é indispensável. Só os ociosos precisam de mulheres bonitas que os distraiam. Não é maliciosa, é obediente e de bom carácter. Pelo que sei, ainda é virgem. Mesmo que não tivesse sido destinada para a cozinha, não teria bastantes atractivos para tentar os meus filhos ou os meus netos. Se teve algum namoro, só pode ter sido algum criado. Mas com tantas e lindas escravas que frequentam os pátios, duvido que mesmo isso tenha acontecido. Leva-a e trata-a bem. Embora um pouco lenta e de espírito acanhado, é uma boa escrava. Se eu não tivesse pensado adquirir merecimentos no templo para a minha vida futura, auxiliando a multiplicação das vidas no mundo, guardá-la-ia para mim por ser útil na cozinha. Mas eu caso as minhas escravas, se alguém as quer e os patrões as não pretendem.
Em seguida, falou para O-lan:
Obedece-lhe e dá-lhe muitos filhos. Virás mostrar-me o primeiro que tiveres.
Sim, veneranda senhora respondeu a mulher, com submissão.
Depois ficaram hesitantes. Wang Lung, muito embaraçado, não sabia se devia falar ou retirar-se.
Pronto, ide-vos!disse a velha com irritação.
Wang Lung inclinou-se prontamente, deu meia volta e partiu, seguido pela mulher. Acompanhava-os o porteiro com o baú ao ombro, que decidiu levar até à sala onde Wang Lung retomou o cesto que ali deixara; o porteiro recusou-se a levá-lo mais longe e desapareceu sem dizer palavra.
Então Wang Lung voltou-se para a mulher e olhou-a pela primeira vez. Ela tinha um rosto franco e leal, um nariz curto e achatado, com largas e negras narinas, uma boca larga, fendida como a de um mealheiro. Os seus pequenos olhos, de um negro amortecido, eram cheios de indefinível tristeza. Este rosto parecia mudo e incapaz de se exprimir ainda que o desejasse.
O-lan suportou pacientemente o exame de Wang Lung sem embaraço e sem o imitar, esperando apenas que chegasse ao fim. Ele viu que, efectivamente, no seu rosto não havia quaisquer atractivos... nesse rosto tostado, vulgar e resignado. Mas a sua pele escura não tinha os sinais da varíola, nem os seus lábios eram rachados. Pendiam-lhe das orelhas os brincos de prata dourada que ele lhe oferecera, e trazia nas mãos os anéis que lhe dera Voltou-se, secretamente alegre. Enfim, tinha a sua mulher.
Vá, pega no baú e no cesto disse ele com arrogância.
Ela baixou-se sem uma palavra, pegou no baú por uma extremidade, colocou-o ao ombro, e, vacilante sob o peso, tentou levantar-se. Ele, que a observava, disse-lhe bruscamente:
Eu levarei o baú. Leva o cesto.
Levantando o baú, pô-lo às costas, sem receios pelo seu belo trajo. Ela, sempre em silêncio, pegou na asa do cesto. Wang Lung pensou nos cem pátios que atravessara quando entrou, e no aspecto ridículo que teria agora de baú às costas.
Se houvesse uma porta nas traseiras...murmurou ele.
Após um instante de reflexão, como se não tivesse compreendido prontamente o que ele disse, O-lan fez um sinal afirmativo. Guiou-o para um pequeno pátio abandonado, todo coberto de ervas, que atulhavam o próprio tanque. Sob um pinheiro inclinado, abria-se uma velha porta em arcada que ela destrancou. Passaram através dela e encontraram-se na rua.
Uma ou duas vezes Wang Lung voltou-se para ver a mulher. O seu largo rosto mantinha-se inexpressivo, e seguia-o tranquilamente com os seus grandes pés, como se em toda a vida fizesse apenas isto. Sob a porta da muralha ele parou indeciso e, segurando com uma das mãos o baú em cima do ombro, com a outra procurou no cinto a moeda que lhe restava e comprou seis pequenos pêssegos verdes.
Toma isto e come, são para ti!disse num tom rude.
com a avidez de uma criança, O-lan agarrou os pêssegos e conservou-os na mão sem pronunciar palavra. Quando ele a olhou um pouco mais tarde, ao caminharem pela orla dos milheirais, ela mordia um, discretamente; mas quando O-lan se apercebeu de que ele a observava, fechou a mão para escondê-lo e deixou de mastigar.
Foram assim até ao momento em que chegaram ao campo do Ocidente, onde se erguia o templo à terra, que não excedia o ombro de um homem e era um nicho construído de tijolo cinzento e coberto de telha. O avô de Wang Lung, tomando de arrendamento os campos onde se desenvolvera a sua existência, tinha-o construído, transportando os tijolos da cidade, no seu carrinho de mão. As paredes do nicho eram rebocadas com gesso, no exterior, e num ano fértil foi contratado um artista de aldeia para pintar no gesso branco uma paisagem com montes e bambus. Mas a chuva de várias gerações tinha deslavado esta pintura, de tal forma que, presentemente, apenas se percebia um vago esboço de bambus e os montes estavam quase apagados.
Sob o tecto do templo, com ar solene, encontravam-se dois pequenos ídolos de barro, feitos com o barro dos campos em redor do templo. Estava ali o deus e a sua esposa. Vestiam-se de papel vermelho e dourado, e o deus tinha um bigode de cabelo verdadeiro, ralo e descaído. Em todos os dias de Ano Novo, o pai de Wang Lung comprava duas folhas de papel vermelho, com as quais confeccionava, cuidadosamente, novos trajos para o sagrado casal. E todos os anos a chuva e a neve, por um lado, e o Sol dardejante por outro, lhes estragavam os trajos.
Naquele momento, porém, os trajos ainda se apresentavam novos, visto que o ano apenas começava, e Wang Lung orgulhava-se daquele aspecto garboso. Tirou o cesto do braço da mulher e procurou, cuidadosamente, sob a carne de porco, os paus de incenso que tinha comprado. O seu receio de encontrá-los partidos (porque isso seria de mau agoiro) pronto se desvaneceu: não tardou que se lhe deparassem intactos. Colocou-os um ao lado do outro, nas cinzas de outros paus de incenso amontoadas perante os deuses, pois toda a vizinhança adorava aqueles pequenos ídolos. Socorrendo-se, depois, da sua pederneira, e utilizando uma folha seca, à maneira de isca, feriu fogo para acender o incenso.
Lado a lado. homem e mulher rendiam culto aos deuses dos seus campos. A mulher observava as extremidades do incenso que, de vermelhas, se tornavam cinzentas. Quando a cinza aumentou, ela inclinou-se, e com o indicador fez cair os resíduos do incenso. Depois, repentinamente, como se receasse ter procedido mal, fixou em Wang Lung os seus olhos mudos. Mas ele tinha gostado do seu gesto. Dir-se-ia que nela havia a sensação de que o incenso era propriedade de ambos e aquele instante fora de perfeita comunhão. Lado a lado, permaneceram ali em completo silêncio, enquanto o incenso se consumia e reduzia a cinzas. Finalmente, como o sol desaparecesse, Wang Lung pôs de novo o baú ao ombro e seguiram para casa.
O velho descansava na soleira da porta, a aproveitar os últimos raios do sol, e não fez o menor movimento quando Wang Lung se aproximou na companhia da mulher. Estava abaixo da sua dignidade parecer dar conta dela. Fingiu-se, pois, cheio de interesse pelas nuvens e gritou:
Aquela nuvem, acavalada na ponta esquerda do crescente da Lua, anuncia chuva. Tê-la-emos, o mais tardar, amanhã à noite.
E como visse Wang Lung tomar o cesto das mãos da mulher, gritou de novo:
Gastaste dinheiro?
Wang Lung pousou o cesto na mesa e disse em tom breve:
Teremos convidados esta noite.
Levou a mala para o quarto onde dormia, colocou-a ao lado daquela em que guardava o seu vestuário mais limpo e pôs-se a observá-la, com ar intrigado. Mas o velho apareceu à porta e disse com volubilidade:
Nunca mais se acaba de estragar dinheiro nesta casa!
No seu íntimo, havia contentamento por o filho ter feito convites, mas ele julgava-se obrigado a só formular recriminações diante da nora, para impedir que, logo de início, ela enveredasse pelo caminho da prodigalidade. Sem proferir palavra, Wang Lung levou o cesto para a cozinha e O-lan seguiu-o até ali. Tirou do cesto, um por um, os alimentos, colocou-os no rebordo da. fornalha apagada e disse à mulher:
Aqui tens carne de porco, de vaca e peixe. Haverá sete pessoas ao jantar. Sabes preparar a comida?
Não olhava para a mulher enquanto lhe falava. Não era conveniente. A mulher respondeu, muito calma:
Fui escrava de cozinha, desde que cheguei à Casa de Hwang, e havia carnes a todas as refeições.
com um abaixamento de cabeça, em sinal de aprovação, Wang Lung afastou-se, e só a tornou a ver quando chegaram os convidados: seu tio, jovial, dissimulado e faminto; seu primo, atrevido adolescente de quinze anos; e ainda os lavradores, desajeitados e chacoteando por timidez. Dois deles eram pessoas da aldeia, com os quais Wang Lung trocava sementes e trabalho, no tempo das colheitas; e o outro era Ching, o seu vizinho mais próximo, um pequeno homem taciturno que só constrangido era capaz de falar. Logo que se acomodaram na sala do meio, depois de hesitações movidas por delicadeza, Wang Lung foi à cozinha e ordenou à mulher que servisse o jantar. Sentiu-se satisfeito quando a mulher lhe disse:
Dar-lhe-ei as tigelas para colocar na mesa, pois não gosto de aparecer diante de homens.
Wang Lung sentiu-se orgulhoso por aquela mulher, que era sua, não recear a presença dele mas não querer aparecer diante de outros homens. Pegou-lhe nas tigelas, à porta da cozinha, e colocou-as sobre a mesa, na sala do meio, enquanto dizia:
Comam, meu tio e meus amigos!
E quando o tio, que gostava de lisonjear, lhe perguntou: «Não veremos a jovem casada, ligeira como uma falena?» Wang Lung respondeu com firmeza:
Não se consumou ainda a união. Não é conveniente que outros homens a vejam enquanto o casamento não se tiver realizado.
Depois insistiu para que comessem e eles comeram, com apetite, o bom jantar. Um deles fazia o elogio do molho louro que acompanhava o peixe; outro, a bem cozida carne de porco. Mas Wang Lung respondia sempre:
É coisa de pouco valor... está mal preparada...
Mas no íntimo sentia-se orgulhoso dos pratos, porque a mulher temperou as carnes com açúcar, vinagre, um pouco de vinho e óleo de soja, enriquecendo o paladar de cada alimento, a tal ponto que Wang Lung não se recordava de algum dia ter saboreado semelhantes pratos na mesa dos seus amigos.
Naquela noite, enquanto os convidados se demoravam a tomar o chá e a contar as suas facécias, a mulher teimou em ficar sempre atrás da fornalha. Mas Wang Lung acabou por despachar o último convidado e, ao entrar na cozinha, encontrou-a adormecida, perto do boi, enroscada sobre um monte de palha. Tinha palhas nos cabelos, e, quando a chamou, ela ergueu de repente o braço, ainda meio adormecida, como se quisesse defender-se de uma pancada. Ao abrir os olhos, encarou-o com o seu estranho olhar indefinível, e ele teve a sensação de estar em frente de uma criança. Tomou-a pela mão e conduziu-a até ao quarto onde naquela manhã se tinha banhado por causa dela. Acendeu uma vela vermelha, e, àquela claridade, ao ver-se sozinho com a mulher, sentiu-se, de súbito, intimidado e esforçou-se por recordar a si próprio:
Esta é a minha mulher... Tem de ser...
E começou a despir-se resolutamente. Quanto à mulher, escondeu-se atrás da cortina e, sem ruído, começou a fazer a toilette nocturna. Wang Lung disse-lhe em tom rude:
Antes de te deitares, apaga a luz.
Depois deitou-se, puxou para os ombros a grossa colcha e esforçou-se por dormir. Em vão! Tremia, com todos os seus nervos bem acordados. Mas quando, depois de muito tempo, a obscuridade se fez no quarto, sentiu a mulher deslizar a seu lado, lenta e silenciosamente; então uma alegria triunfal o invadiu e, freneticamente, o empolgou. Soltou, na escuridão, um riso abafado e apoderou-se dela.
AGORA, Wang Lung conhecia a alegria de viver. Na manhã do dia seguinte ficou-se na cama a olhar a mulher que vivia para si. O-lan levantou-se, enfiou as roupas em desalinho e, depois de abotoadas no pescoço e na cintura, procurou ajustá-las ao corpo com uma torcidela e um puxão discretos. Depois enfiou os pés nos sapatos de pano que segurou com a ajuda de atilhos de couro. A luz do pequeno buraco projectou sobre ela o seu facho e Wang Lung distinguiu-lhe confusamente o rosto. Não tinha mudado. Isto espantou Wang Lung, pois sentia que ela própria devia ter mudado durante a noite; e eis que esta mulher se levantava da cama como se tivesse passado uma noite igual a todas as outras da sua vida.
A tosse do velho fez-se ouvir, teimosa, no dealbar da manhã; e ele disse à mulher:
Em primeiro lugar, leva a meu pai uma tigela de água quente para aliviar os pulmões.
Ela perguntou, com a mesma voz do dia anterior:
Põem-se folhas de chá?
Esta pergunta tão simples perturbou Wang Lung. Gostaria de responder:«Certamente, põem-se folhas de chá. Tomas-nos por mendigos ?» Gostaria que a mulher pensasse que não se poupava o chá naquela casa. Na Casa de Hwang era evidente que não havia tigela de água sem folhas de chá e talvez nem as próprias escravas bebessem água simples. Mas ele sabia que o pai se zangaria se, no primeiro dia, a mulher lhe servisse chá em vez de água. Além disso, não eram, realmente, ricos. Eis porque respondeu, num tom de indiferença:
Chá?... Não... fá-lo-ia tossir ainda mais.
Depois, ficou-se regaladamente no quente da cama, enquanto na cozinha a mulher acendia o lume para ferver a água.
Gostaria de adormecer de novo, agora que isso lhe era permitido, mascoisa ridícula!o seu corpo, que durante tantos anos fora obrigado a levantar-se de manhã cedo, recusava-se a readormecer, embora podendo fazê-lo. Deixou-se ficar, então num gozo espiritual e carnal, a saborear a volúpia da preguiça. Pensou durante algum tempo nos seus campos, nos grãos de trigo e nos benefícios que as próximas chuvas trariam às suas colheitas e na semente de nabo branco que tencionava comprar ao vizinho Ching, se chegassem a um acordo sobre o preço. Mas aos que lhe vinham à mente todos os dias, misturava-se o pensamento novo do que iria ser agora a sua vida, e ocorreu-lhe, inesperadamente, ao recordar a noite, interrogar-se sobre se a mulher gostaria dele. Isto era uma nova surpresa.
Só tinha posto a questão de saber se gostava dela, e se sim ou não gostava dela na sua cama e na sua casa. Apesar da vulgaridade do seu rosto e da aspereza das mãos, a carne do seu corpo forte era macia e virgem. Riu, quando pensou nisto, com o riso breve e sofreado que soltara, no escuro, na noite precedente. Os jovens patrões não tinham notado mais do que aquele rosto vulgar, de escrava cozinheira. O seu corpo era belo, ossudo e, ao mesmo tempo, arredondado e macio. Desejou, de repente, que ela o amasse como marido, mas depois sentiu-se envergonhado.
Abriu-se a porta e, silenciosa como sempre, a mulher entrou com uma tigela fumegante nas mãos. Ele sentou-se na cama e tomou-a. Folhas de chá boiavam à superfície da água. Ergueu vivamente os olhos para ela, que, de súbito, se amedrontou e disse:
Eu não pus chá na água do velho... fiz como o senhor disse... Mas para o senhor...
Wang Lung compreendeu que ela o receava; ficou satisfeito com isso e, sem a deixar concluir, respondeu:
Gosto de chá... gosto muito.
E bebeu o chá a pequenos goles, ruidosos de prazer. Sentiu, no seu íntimo, esta nova alegria de triunfo que nem no coração ousava formular:
Esta minha mulher gosta bem de mim!
Pareceu-lhe que, durante os meses seguintes, não fazia outra coisa senão observar a sua mulher. Na realidade, trabalhava como de costume. Punha a enxada ao ombro e ia para as leiras amanhar os sulcos de cereais, ou jungia o boi à charrua e lavrava o campo destinado a plantar alhos e cebolas. Mas o trabalho era agora um prazer, porque quando o Sol chegava ao zénite encontrava, ao regressar a casa, a merenda pronta e sobre a mesa, limpa de pó, as tigelas e os pauzinhos postos em ordem. Até aí, tinha ele que preparar a comida, quando chegava a casa, apesar da fadiga, a não ser que o velho tivesse tido fome antes da hora e improvisasse uma pequena refeição ou cozesse uma massa de farinha, sem fermento, que se enrola à volta de uma haste de alho.
Agora tinha a comida sempre pronta e não era preciso mais do que sentar-se no banco, junto à mesa, para comer. O pavimento, de terra batida, estava varrido e havia sempre lenha para queimar. Durante a sua ausência da manhã, a mulher pegava no ancinho de bambu, num pedaço de corda, e, munida com estes instrumentos, percorria o campo, cortando aqui um bocado de mato, ali um ramo ou um punhado de folhas, e voltava ao meio-dia com o suficiente para fazer o jantar. A ele agradava muito não precisar já de comprar lenha.
De tarde, ela pegava numa enxada e num cabaz, punha-o aos ombros e ia até à estrada principal que conduzia à cidade, onde passavam mulas, burros e cavalos transportando fardos. Ali apanhava os excrementos dos animais, levava-os para casa e amontoava o estrume no pátio para fertilizar os campos. Fazia todos estes trabalhos sem dizer palavra e sem que lhos tivessem ordenado. E quando chegava a noite não descansava enquanto não dava de comer ao boi, na cozinha, e não carregava água bastante para ele mergulhar o focinho e beber quanta quisesse.
Cosia-lhes também a roupa e remendava-a com linha que ela própria fiava de um maço de algodão, conseguindo tapar os rasgões dos seus fatos de Inverno. Punha a roupa da cama ao sol, em frente da porta; descosia os colchões, lavava-lhes as capas e pendurava-as num bambu para enxugarem; desfiava o algodão que os enchia e que, desde há anos, se tinha tornado duro e cinzento, matando os insectos que se tinham multiplicado nas dobras ocultas, arejando tudo. Em cada dia, fazia um novo trabalho, de modo que, por fim, os três quartos estavam asseados e quase respiravam bem-estar. O velho já não tossia tanto e sentava-se ao sol, junto à parede da casa exposta ao Sul, a aquecer-se, sonolento e consolado.
Mas esta mulher nunca falava, a não ser nas pequenas necessidades da vida. Wang Lung, que a via andar lenta e pausadamente de um quarto para outro, com os seus grandes pés, observava-lhe, às escondidas, o rosto chato e inerte, o olhar meio tímido dos seus olhos inexpressivos e não conseguia compreendê-la. À noite tomava contacto com a macia rijeza do seu corpo. Mas de dia o vestuário, a blusa e as calças de singelo algodão azul escondiam tudo o que era do conhecimento dele, e ela tinha o ar de uma criada fiel e muda, que é só criada e nada mais. Não era conveniente que lhe perguntasse: «Porque não falas?» Devia bastar-lhe que cumprisse o seu dever.
Algumas vezes, quando trabalhava nos alqueives dos campos, perdia-se em meditações a respeito dela. Que coisas vira naquela centena de pátios? Qual fora a sua vida, aquela vida que não partilhara com ele? Não podia compreendê-la. E depois envergonhava-se da sua curiosidade e do interesse que tinha por ela. Afinal de contas, era apenas uma mulher.
Mas três quartos e duas refeições por dia não chegam para ocupar continuamente uma mulher que foi escrava numa grande casa, onde trabalhava desde o nascer até ao pôr do Sol. Um dia, em que Wang Lung estava bastante atarefado com o crescimento do trigo e o mondava com a enxada, sem parar, até lhe doerem as costas de cansaço, viu a sombra da mulher atravessar-se no sulco sobre o qual ele se curvava. Ela parou com a enxada ao ombro, e disse simplesmente:
Não há nada que fazer em casa até à noite.
E, sem mais uma palavra, tomou o sulco à esquerda dele e pôs-se a cavá-lo de uma assentada.
O Sol abrasava-os porque se estava ainda no começo do Verão, e o rosto dela inundou-se logo de suor. Wang Lung, despindo a blusa, ficara com o tronco nu, mas ela trabalhava com o leve vestido que se encharcava e se colava à pele. Ambos na mesma cadência, sem uma palavra, passavam-se as horas, e ele chegou a uma tal comunhão com ela que já nem sentia a fadiga.
Não tinha pensamento nem sentimento distintos, percebia apenas esta perfeita simpatia de ritmo com que revolviam a sua terra e a expunham ao sol, esta terra que formava a sua casa, sustentava os seus corpos e honrava os seus deuses. A terra era viscosa e escura e cortava-se facilmente com as lâminas das enxadas. Às vezes, desenterravam um pedaço de tijolo, uma lasca de madeira. Não era nada. Outrora, no decorrer dos séculos, tinham-se enterrado ali corpos de homens e mulheres, casas que ali se haviam erguido tinham desabado e voltado à terra. Assim, também a casa deles e o corpo deles voltariam algum dia à terra. Cada um por sua vez gozava, esta terra. Voltavam ao trabalho sempre juntos... e juntos arrancavam o fruto daquela terra... em silêncio e em uníssono.
Quando o Sol se pôs, Wang Lung endireitou-se vagarosamente e olhou para a mulher. O rosto dela estava húmido e sujo de terra. Era tão morena como o próprio húmus. O vestido molhado colava-se-lhe ao corpo robusto. Alisou, devagar, o último sulco. Depois a sua voz neutra e sem mais inflexões que de costume elevou-se na calma da tarde e, com a habitual indiferença, disse de repente:
Vou ser mãe.
Wang Lung ficou calado. Que poderia responder a isto?
Ela baixou-se para apanhar um pedaço de tijolo quebrado e atirou-o para longe do sulco. Dissera aquilo no mesmo tom com que diria:«Trago-lhe o chá», ou «Podemos jantar». Para ela isto parecia tão simples como aquilo! Mas ele... não saberia dizer o que sentia.
O coração inchou e parou, como se não voltasse mais a bater. Pois bem, chegara a vez deles naquela terra!
Tirou-lhe bruscamente a enxada da mão e disse-lhe com a voz presa na garganta:
Por hoje basta. Acabou o dia. Vamos dar a notícia ao velho.
Voltaram para casa, indo ela seis passos atrás dele, como é devido a uma mulher. O velho estava à porta, à espera da ceia, que ele nunca mais preparara, desde que havia mulher em casa. Já estava impaciente e gritou:
Estou demasiado velho para esperar assim pela minha comida!
Mas Wang Lung, entrando antes dele em casa, disse:
Ela já vai ser mãe.
Procurou dizer isto com ar despreocupado como se dissesse «hoje semeei o campo de oeste», mas não pôde. Embora falasse em voz baixa, para ele foi como se houvesse gritado as palavras mais alto do que desejava.
O velho pestanejou um momento, depois compreendeu e cacarejou uma risada:
Eh, eh, eh!exclamou ele, ao ver entrar a nora com que então está próxima a colheita!?
Não podia ver-lhe o rosto no escuro, mas ela respondeu ingenuamente:
Agora vou preparar a comida.
Sim... sim... a comida disse o velho, com avidez, seguindo-a até à cozinha como uma criança.
Assim como a ideia de um neto lhe fizera esquecer a comida, assim também a perspectiva da comida que iam servir-lhe fez esquecê-lo do neto. Mas Wang Lung sentou-se num banco junto da mesa, no escuro, e encostou a cabeça aos braços cruzados. Deste corpo, que era o seu, da sua carne, tinha nascido vida!
NAS proximidades do parto, Wang Lung disse à mulher: Teremos que chamar alguém para te ajudar na hora .. alguma mulher.
Mas ela abanou a cabeça negativamente. Estava tirando as tigelas após a ceia. O velho fora deitar-se e eles ficaram sozinhos no escuro, iluminados apenas pela chama vacilante de um candeeiro de lata, cheio de óleo de fava, onde se embebia uma torcida de algodão, que servia de pavio.
Não queres nenhuma mulher?perguntou ele, consternado.
Tinha começado a habituar-se a estas conversas, em que ela reduzia o seu papel a um aceno de mão ou de cabeça, ou, por acaso, a uma palavra saída, involuntariamente, da sua boca rasgada. Acabou por se acostumar àquele quase monólogo, que era a conversa deles. E continuou:
Mas será muito extravagante, apenas com dois homens em casa! Minha mãe mandava vir uma mulher da aldeia. Eu não entendo nada dessas coisas. Não há ninguém na Casa Grande... nenhuma escrava velha, tua amiga, que possa vir?
Era a primeira vez que ele se referia à casa de onde ela viera. Ela voltou-se para ele, com um ar que nunca tivera, dilatados os pequenos olhos talhados em amêndoa, o rosto animado de sombria cólera:
Não, ninguém daquela casa!gritou.
Wang Lung deixou cair o cachimbo, que estava enchendo, e fitou-a. Mas já ela tinha retomado a expressão habitual e juntava os pauzinhos, como se nada tivesse dito.
Ora esta, é extraordinário!disse espantado. Ela, porém, não respondia, e ele continuou, argumentando:Nós dois, que somos homens, não temos prática de partos. Não fica bem a meu pai entrar no teu quarto . quanto a mim, nem sequer vi parir uma vaca. As minhas mãos inábeis poderiam dar cabo da criança. Mas se alguém da Casa Grande, onde há sempre escravas que dão à luz...
Ela acabou de dispor os pauzinhos num molho bem ordenado, sobre a mesa, olhou-o, e depois de o ter encarado um instante retorquiu:
Quando voltar àquela casa será com meu filho nos braços. Vestir-lhe-ei uma túnica vermelha e umas calças com flores vermelhas. Levará, na cabeça, um chapéu com um pequeno Buda dourado cosido à frente, e nos pés sapatos de pele de tigre. Levarei também sapatos novos e uma nova túnica de cetim preto; e irei à cozinha, onde passei a minha vida, e entrarei no grande salão onde a velha fuma o seu ópio. E mostrar-me-ei a todos com o meu filho.
Nunca ouvira sua mulher dizer tantas palavras de uma só vez. Brotavam-lhe dos lábios, seguras e ininterruptas, embora lentas, e compreendeu que ela tinha projectado este aparato há muito tempo. Tinha-o projectado enquanto trabalhava no campo ao lado dele! Como era extraordinária aquela mulher! Vendo-a ocupada tão tranquilamente na sua tarefa diária, supunha que ela mal pensasse na criança. Mas em vez disso, ela havia imaginado aquele filho já nascido e todo vestido, e ela própria, a mãe, de túnica nova! Desta vez, ficou ele sem poder dizer palavra, comprimiu atentamente o tabaco entre o polegar e o indicador, formando uma bola, e, pegando no cachimbo, encheu-o.
Suponho que terás necessidade de algum dinheirodisse por fim, com rudeza aparente.
Se quiser dar-me três moedas de prata...respondeu ela, receosa.E muito dinheiro; mas fiz a conta à justa e não desperdiçarei um centavo. Farei com que o vendedor de fazendas me dê, em cada metro, um centímetro a mais.
Wang Lung vasculhou no cinto. Vendera na véspera, no mercado da cidade, carga e meia de juncos, do pântano que possuía no campo de oeste, e tinha no cinto um pouco mais do que ela desejava. Pôs sobre a mesa as três moedas de prata. Em seguida, após leve hesitação, acrescentou uma quarta moeda que guardara muito tempo para si, no desejo de tentar a sorte ao jogo, uma manhã qualquer, na casa de chá. Mas, com receio de perder, limitava-se a ver lançar os dados. Habitualmente, acabava por ir passar as horas de ócio na cidade, na barraca do contador de histórias, onde se podia ouvir uma velha história sem pagar mais que uma pequena moeda de cobre, quando o homem fazia o peditório com uma bandeja.
Olha, aqui tens mais uma moeda disse ele, enquanto acendia o cachimbo, soprando com força a torcida de papel para avivar a chama. Podes também fazer a túnica do petiz com um retalho de seda. Afinal de contas, ele é o primeiro.
Em vez de pegar logo no dinheiro, ela ficou a olhá-lo, com o rosto imóvel. Depois murmurou:
É a primeira vez que pego em moedas de prata. De súbito agarrou-as, apertando-as na mão, e correu para o quarto de dormir.
Wang Lung ficou sentado a fumar, pensando no dinheiro que pusera em cima da mesa. Aquele dinheiro saíra da terra... daquela terra que ele se esfalfava a lavrar e revolver. Tirava o seu sustento daquela terra: gota a gota, com o seu suor, arrancava dela o alimento e do alimento o dinheiro. Até aí, sempre que tirava dinheiro para o dar a alguém, era como se pegasse num pedaço da própria vida e lha desse. Mas agora, pela primeira vez, não lhe causava pena aquela dádiva. Não via o dinheiro na mão estranha de um mercador da cidade, mas transformado em alguma coisa de mais valor ainda: em roupas para cobrir o corpo do filho. E aquela sua estranha mulher, que trabalhava sem dizer nada, parecendo nada ver, fora a primeira a ver a criança assim vestida!
Não quis ninguém a seu lado, quando chegou o momento. Foi ao anoitecer, cedo ainda, mal se pusera o Sol. Estava trabalhando ao lado dele na ceifa. O trigo crescera e fora cortado, o campo inundado e semeado de arroz, que dava agora fruto. As espigas estavam maduras e gradas, após as chuvas de Verão e o quente sol do começo do Outono. Haviam passado juntos, todo o dia, a cortar os colmos, curvados, com as foices.
Tinha dificuldade em dobrar-se por causa do peso que suportava, e andava mais devagar do que ele, de modo que ceifavam desigualmente, a fileira dele mais avançada do que a sua. À medida que o Sol declinava, começou ela a ceifar cada vez mais lentamente, e ele voltou-se com um olhar de impaciência. Depois ela parou e ergueu-se, deixando cair a foice. No seu rosto corria um novo suor, o suor de uma nova agonia.
Chegou a hora disse ela. Vou para casa. Não entres no quarto enquanto eu não chamar. Mas leva-me um junco descascado de fresco e corta-o em bisel para que eu possa cortar o cordão e separar a vida da criança da minha.
Atravessou os campos em direcção a casa, como se nada fosse acontecer, e depois de a ter seguido com a vista, ele foi à margem do pântano, escolheu um junco verde e flexível, descascou-o cuidadosamente e cortou-o em bisel, com o gume da foice. E como o crepúsculo do Outono caía rapidamente, pôs a foice ao ombro e seguiu para casa. Quando ali chegou, encontrou a ceia quente sobre a mesa e o velho preparado para comer. Ela havia interrompido o seu trabalho de parto para lhes preparar a comida! Ele disse, com os seus botões, que era uma mulher como havia poucas. Depois aproximou-se da porta do seu quarto e bradou:
Aqui está o junco!
Esperou, pensando que ela lhe pediria que o levasse lá dentro. Mas ela não disse nada. Veio à porta, meteu a mão pela fresta e pegou no junco. Não disse uma palavra, mas ele ouviu-a arquejar, como um animal depois de longa corrida. O velho ergueu a cabeça por cima da tigela, para dizer:
Come, senão ficará tudo frio. E acrescentou:Não te preocupes ainda... isto vai demorar muito. Lembro-me de que quando nasceu o meu primeiro filho, amanheceu antes de estar tudo acabado. Ai de mim! Pensar que de todos os filhos que engendrei e tua mãe concebeu, um após outro... tantos, que nem já me lembro... tu foste o único que escapou! Compreendes porque uma mulher deve conceber e conceber?
Depois, como se acabasse de perceber isso, disse ainda:
Amanhã a estas horas, talvez seja avô de um menino!
De repente pôs-se a rir, parou de comer e ficou muito tempo a dar gargalhadas no escuro do quarto.
Mas Wang Lung ficou de pé, junto à porta, a escutar aqueles dolorosos arquejos de animal. Pela frincha vinha um ”bafo de sangue quente, um cheiro nauseabundo que o incomodava. Lá dentro, o arquejar da mulher tornou-se rápido e forte, como gritos abafados, mas ela não fazia grande bulha. Quando ele já não podia conter-se mais e estava prestes a entrar no quarto, ouviu um vagido débil e pungente que o fez esquecer-se de tudo.
É rapaz?gritou com insistência, sem cuidar da mulher.
Ouviu-se um novo vagido, vibrante, autoritário.É rapaz? gritou de novo. Responde ao menos a isto... é rapaz?
A voz da mulher respondeu, fraca como um eco:
É rapaz!
Ele então afastou-se e sentou-se à mesa. Como tudo fora rápido! A comida arrefecera completamente e o velho dormia no seu banco; mas como fora tudo rápido!
Sacudiu o velho pelos ombros e gritou-lhe, triunfante:
É um menino! És avô e eu sou pai!
O velho acordou logo e pôs-se a rir, como tinha feito antes de adormecer.
Sim... sim... naturalmentecacarejavaavô... sou avô... e levantou-se para se ir deitar, rindo sempre.
Wang Lung pegou na tigela de arroz frio e começou a comer. De repente, viera-lhe uma grande fome, e não podia levar a comida à boca com bastante rapidez. Ouvia no quarto a mulher, que se arrastava de um lado para o outro, e o choro incessante e pungente da criança.
Creio que não temos mais sossego nesta casa disse consigo, orgulhoso.
Quando acabou de comer à sua vontade, voltou à porta, a mulher chamou-o e ele entrou. O ambiente estava impregnado de um cheiro a sangue derramado e quente ainda, mas não havia vestígios dele senão na tina de madeira. Ela tinha deitado água na tina e empurrara-a para baixo da cama, de modo que mal podia ver-se. Tinha acendido uma vela vermelha e jazia na cama, pudicamente coberta. A seu lado, envolvido num velho par de calças dela, como era costume na região, estava o filho.
Ele aproximou-se e ficou, a princípio, incapaz de falar. O coração saltava-lhe no peito, quando se debruçou sobre o menino para o ver. Tinha uma carita redonda e engelhada, muito morena, e o cabelo era comprido, húmido e negro. Deixara de chorar e cerrava os olhos com força.
Wang olhou para a mulher e ela retribuiu-lhe o olhar. Tinha o cabelo ainda húmido do suor da agonia e os seus pequenos olhos em amêndoa orlados de violeta. A não ser isso, não tinha mudado. Mas comovia-o vê-la ali estendida. O coração fugia-lhe para aqueles dois seres e bradou, não sabendo que mais havia de dizer:
Amanhã irei comprar à cidade um arrátel de açúcar encarnado, e dissolvê-lo-ei em água quente, para beberes.
Depois, olhando novamente para a criança, saiu-lhe dos lábios esta exclamação, como se acabasse de ocorrer-lhe:
Temos de comprar um bom cesto de ovos e tingi-los de vermelho para os distribuir na aldeia. Assim todos ficarão sabendo que eu tenho um filho!
No dia seguinte ao do nascimento da criança, a mulher levantou-se como de costume e preparou a comida para eles, mas não foi ceifar com Wang Lung para os campos, de modo que ele trabalhou só até depois do meio-dia. Então, vestiu a sua túnica azul e seguiu para a cidade. Foi ao mercado e comprou cinquenta ovos, não muito frescos, mas ainda bem bons, ao preço de um penny cada um. Comprou também papel vermelho para ferver na água com os ovos e tingi-los. Depois, com estas compras no cesto, foi a uma confeitaria e ali comprou pouco mais de um arrátel de açúcar vermelho, que mandou embrulhar cuidadosamente num papel pardo. Por baixo do barbante de palha que o amarrava, o confeiteiro passou uma tira de papel vermelho, sorrindo ao fazer isso.
É para a mãe de um recém-nascido, não é verdade?
Um filho primogénito respondeu Wang Lung, orgulhosamente.
Ah, foi feliz respondeu o homem com indiferença, com os olhos postos num freguês bem vestido que acabava de entrar.
Aquelas palavras já ele as repetira muitas vezes a outros, quase diariamente as dizia a alguém, mas a Wang Lung pareciam-lhe especiais. Encantado com a cortesia do homem, inclinou-se várias vezes ao retirar-se da loja. Parecia-lhe, enquanto caminhava à luz crua do Sol, pela rua poeirenta, que não havia homem no mundo tão feliz como ele.
Esta ideia inspirou-lhe primeiro alegria, mas depois um movimento de temor. Não é bom ser muito afortunado nesta vida. O ar e a terra estão cheios de espíritos malignos que não toleram a felicidade dos mortais, especialmente dos que são pobres. Entrou bruscamente na tenda do vendedor de velas, que também vendia incenso, e ali comprou quatro paus de incenso, um para cada pessoa de sua casa, e com eles seguiu para o pequeno templo dos deuses da terra, pondo-os nas frias cinzas do incenso que ali tinha Queimado em companhia da mulher. Esperou que aqueles quatro paus ardessem bem e depois, confortado, regressou a casa. Que poder que tinham estes dois pequenos ídolos tutelares que dominavam gravemente sob o pequeno tecto!...
E então, quase sem que ele desse conta, a mulher encontrou-se a seu lado no amanho dos campos. Tinham acabado as ceifas, e malhavam o grão na eira, que era também o pátio da casa. Malhavam-no com manguais, ele e a mulher, ao mesmo tempo. E depois joeiravam-no, sacudindo-o ao vento em grandes peneiras de bambu. Recolhia-se bom grão que caía, enquanto a palha era levada pelo vento, como uma nuvem. Depois voltaram aos campos de novo para semear o trigo de Inverno, e enquanto ele jungia o boi e lavrava a terra, a mulher seguia atrás da charrua com a enxada e desfazia os torrões dos sulcos.
Ela trabalhava agora o dia inteiro e a criança ficava dormindo, no chão, em cima de uma velha coberta acolchoada. Quando chorava, a mulher interrompia o trabalho, descobria o seio e sentava-se no chão para a amamentar. O sol caía sobre ambos, o sol tardio dos fins do Outono, que conserva o ardor do Verão até que o frio do Inverno que chega o afugenta, e sob os seus raios, a mulher e a criança, tão morenas como a gleba, pareciam duas estátuas de terra. A poeira dos campos polvilhava os cabelos da mulher e a macia cabeça negra do menino.
Mas do grande seio da mulher fluía, branco como a neve, o leite que alimentava a criança, e enquanto um era sugado, do outro manava leite como de uma fonte. E ela deixava-o correr.
Havia leite de sobra para o menino, por mais insaciável que ele fosse, chegando até para muitas crianças; e, orgulhosa da sua abundância, O-lan deixava-o correr descuidada. E tinha cada vez mais. Às vezes levantava o peito e deixava o leite correr para o chão, para não sujar a roupa, e perdia-se na terra, formando, no chão, uma mancha mais escura, mole e untuosa. O menino estava gordo, sadio e absorvia a vida inesgotável que a mãe lhe dava.
Quando o Inverno chegou, estavam bem prevenidos. As colheitas tinham sido abundantes como nunca e os três pequenos compartimentos da casa estavam repletos. Das vigas do tecto de colmo pendiam réstias e réstias de alhos e cebolas secas, e ao longo das paredes da sala do meio, do quarto do velho e no próprio quarto deles, havia esteiras de junco, trançadas em forma de grandes potes, cheias de trigo e de arroz. A maior parte do grão devia ser vendida, mas Wang Lung era um homem frugal, e não gastava, como muitos aldeões, o seu dinheiro perdulàriamente no jogo ou em iguarias delicadas, de modo que não se via forçado, como eles, a vender o grão no tempo da colheita, quando o preço era baixo. Pelo contrário, armazenava-o e vendia-o quando a neve cobria a ten a, no Ano Novo, quando a gente da cidade paga os géneros por qualquer preço.
Seu tio era sempre obrigado a vender o cereal, ainda antes de amadurecido. Às vezes até, para obter algum dinheiro de contado vendia-o ainda no campo, livrando-se do incómodo da ceifa e da debulha. Mas também a mulher de seu tio era tonta, gorda e preguiçosa, reclamava continuamente gulodices, pratos disto e daquilo, e sapatos novos, comprados na cidade. A mulher de Wang Lung, pelo contrário, fazia todos os sapatos para ele, para o velho, para os seus próprios pés e para os do menino. Ele ja não poderia compreender que ela desejasse comprar sapatos!
Na arruinada e velha casa de seu tio nunca havia coisa alguma pendurada nas vigas. Mas na dele havia até um presunto que comprara ao seu vizinho Ching, quando este matara o porco, que parecia ir adoecer. O porco fora morto bem antes de emagrecer e o presunto era enorme. O-lan salgara-o bem e pendurara-o para secar. Tinham também dois frangos, da sua criação, mortos, estripados e secos, ainda com as pernas, mas cheios de sal.
Quando os ventos do Inverno, gelados e cortantes, chegaram do deserto, situado ao Noroeste, eles recolheram-se em casa, no meio desta abundância. Dentro de pouco tempo o menino quase podia estar sentado sozinho. Quando fez um mês de nascido, quando tinha de idade uma lua cheia, festejaram a data com um banquete de alegria, que significava longa vida. Wang Lung convidou aqueles que haviam comparecido ao seu casamento e deu-lhes uma dezena dos ovos vermelhos que cozera e tingira, e aos que vieram da aldeia para o felicitar deu dois ovos. E todos lhe invejavam o filho, uma grande e gorda criança, com a cara de lua cheia e as maçãs do rosto salientes como as da mãe. Desde que o Inverno chegara, o menino ficava sentado sobre a coberta acolchoada, no chão da casa, em vez de ficar fora, e abria-se a porta do sul para entrar a luz. E o sol entrava e o vento do Norte batia em vão contra as grossas paredes de barro da casa.
Dentro em pouco as folhas desprenderam-se da tamareira do terreiro como dos salgueiros e pessegueiros dos campos vizinhos. Só os maciços de bambus, espalhados a leste da casa, conservavam as suas folhas, e por mais que o vento lhes fizesse vergar as hastes, as folhas não caíam.
Mas aquele vento seco não deixava que germinasse a semente do trigo, lançada à terra, e Wang Lung esperava ansiosamente pelas chuvas. Em breve as chuvas vieram repentinamente, num dia calmo e cinzento, quando o vento cessou e o ar estava quieto e quente. Toda a família ficou em casa repleta de bem-estar, vendo cair torrencialmente a chuva, que ensopava os campos próximos do pátio e pingava das beiras do tecto de colmo. O menino, admirado, estendia as mãos para agarrar as cordas prateadas da chuva que caía, e ria, e com ele riam todos. O velho acocorou-se no chão, ao lado da criança, e disse:
Não há outra criança tão viva numa dúzia de aldeias da redondeza. Os petizes de meu irmão não percebem nada enquanto não andam.
E nos campos as sementes do trigo germinavam; e surgiam da terra, escura e molhada, pequenas hastes de um verde tenro.
Em épocas como aquela, faziam-se visitas, porque todos os lavradores compreendiam que, por sua vez, o Céu fazia o trabalho nos campos e as searas estavam sendo regadas, sem que tivessem de cansar-se a carregar baldes, suspensos das extremidades de um pau, que levavam atravessado nos ombros. Pela manhã, reuniam-se numa ou noutra casa, bebendo chá aqui e ali, indo de casa em casa, de pés descalços, através da estreita vereda que cruzava os campos, sob grandes guarda-chuvas de papel untado. As mulheres ficavam em casa, fazendo sapatos e remendando roupas, se eram económicas, e pensavam nos preparativos para a festa do Ano Novo.
Mas Wang Lung e sua mulher não eram assíduos às visitas. Naquele povoado de meia dúzia de casas pequenas e espalhadas, nenhuma havia tão cheia de conforto e abundância como a deles: e Wang Lung sabia que, se se tornasse muito íntimo dos outros, em breve lhe estariam a pedir empréstimos. O Ano Novo aproximava-se, e quem tinha, como ele, dinheiro bastante para comprar novas roupas e fazer a festa ? Ficava em casa e, enquanto a mulher remendava e cosia, ele pegava nos ancinhos de dentes de bambu, examinava-os, e se a corda estivesse quebrada, tecia uma nova, feita do cânhamo que ele mesmo cultivara, e onde havia um dente partido substituía-o, habilmente, por um novo pedaço de bambu.
E o que ele fazia com os utensílios de lavoura, fazia-o sua mulher também com os utensílios caseiros. Se um dos potes de barro estava roto, não fazia como as outras mulheres, que os deitam fora e tratam de comprar um novo. Pelo contrário, misturava argila e gesso, tapava a racha, punha o pote a secar a fogo brando e ficava como novo.
Assim, eles ficavam em casa e compraziam-se em mútua aprovação, embora a sua conversa se limitasse a frases soltas como estas:
Guardaste as sementes da cabaça grande para a nova sementeira ?
Ou então:
Vamos vender a palha de trigo e queimaremos a de feijão na cozinha.
Em raras ocasiões, Wang Lung dizia:
Este prato de aletria está bom.
E O-lan respondia-lhe declinando o elogio:
É porque os campos nos deram boa farinha, este ano.
Do produto daquele abençoado ano, tinha guardado Wang Lung, depois de todas as despesas, um punhado de moedas de prata, que não ousava meter no cinto e a ninguém confessava que as possuía, a não ser à mulher. Procuraram um lugar onde esconder o dinheiro, e por fim ocorreu à mulher fazer um buraco na parede interna do seu quarto, atrás da cama, e ali o puseram. O-lan tapou o esconderijo com um pouco de barro e ficou como se nada houvesse ali. Mas para Wang Lung e O-lan aquilo dava-lhes uma sensação secreta de riqueza e previdência. Wang Lung podia dizer que tinha mais dinheiro do que necessitava gastar, e, quando estava entre os companheiros, levantava a cabeça com mais segurança.
APROXIMAVA-SE o Ano Novo e em todas as casas da aldeia se faziam preparativos. Wang Lung foi à loja de cera da cidade e comprou folhas de papel vermelho, nas quais estavam pinceladas, a tinta dourada, as letras da felicidade e da riqueza. Colou aqueles quadrados de papel nos seus utensílios de lavoura para que lhe dessem boa sorte no novo ano. Colou-os na charrua, na canga do boi e nos dois baldes em que transportava o estrume e a água. Depois, em todas as portas da casa afixou largas tiras de papel vermelho com legendas de boa sorte e na ombreira- da porta de entrada colou uma franja de papel vermelho, primorosamente recortada em forma de flores. Comprou ainda papel vermelho para fazer roupas novas para os deuses, tarefa de que o velho se encarregava com rara perícia, apesar das suas mãos trémulas. Wang Lung levou-as e vestiu com elas os dois pequenos deuses do templo da terra, queimando diante deles um pouco de incenso, em homenagem ao Ano Novo. Comprou também para casa duas velas vermelhas para as acender, na véspera do ano, sobre a mesa, diante da gravura de um deus, que estava colada na parede do quarto central, por cima da mesa.
E Wang Lung voltou à cidade, comprou banha de porco e açúcar branco, e a mulher derreteu a banha, que ficou líquida e branca, pegou em farinha de arroz da sua colheita que eles haviam moído no seu moinho, a que atrelavam o boi, quando era preciso, e misturou a banha e o açúcar branco amassando magníficos bolos do Ano Novo, chamados «bolos de lua», iguais aos que se comiam na Casa de Hwang.
Quando Wang Lung viu os bolos alinhados sobre a mesa, prontos para irem ao forno, sentiu o coração inchar de orgulho. Não havia outra mulher na aldeia capaz de fazer o que a sua fizera: amassar bolos que só se comem na festa dos ricos. Em alguns dos bolos tinha ela incrustado rosários de pequenas bagas vermelhas de espinheiro e rodelinhas de ameixas verdes e secas, formando flores e desenhos.
Até faz pena comer isto! disse Wang Lung.
O velho farejava em torno da mesa, contente como uma criança, com as cores vivas. E disse:
Manda chamar meu irmão, teu tio, e os filhos dele... para que vejam isto!
Mas, com a prosperidade, Wang Lung tornara-se prudente. Não podia convidar-se gente faminta para vir simplesmente ver bolos. E apressou-se a dizer:
Dá azar ver bolos antes do Ano Novo.
E a mulher, com as mãos cheias de farinha e gordura, acrescentou:
Estes bolos não são para nós comermos, excepto um ou outro dos mais ordinários para os convidados provarem. Não somos bastante ricos para comer açúcar branco e toucinho. Preparei-os para a velha senhora da Casa Grande. No segundo dia do Ano Novo irei com o menino levar-lhe estes doces de presente.
Os bolos cresceram de importância, então, e Wang Lung ficou satisfeito ao pensar que naquele grande salão onde ele estivera tão tímido e tão pobre, a sua mulher entraria agora como visita, levando o seu filho, vestido de vermelho, e bolos como aqueles, feitos com a melhor farinha, com açúcar e banha.
Ao lado desta visita, todos os outros pormenores do Ano Novo careciam de importância para ele.
Quando experimentou a sua roupa nova, de algodão preto, que O-lan fizera, apenas disse consigo:
Vesti-la-ei quando os acompanhar até ao portão da Casa Grande.
Foi até com indiferença que recebeu o tio e os vizinhos no primeiro dia do Ano Novo quando vieram todos para sua casa, turbulentos pelo que haviam comido e bebido, para o felicitarem e a seu pai. Ele mesmo cuidara de esconder num cesto os bolos nfeitados para não ter que os oferecer a gente vulgar, mas quando ouviu elogiar os bolos brancos ordinários e gabar o seu sabor a banha e açúcar, lamentou muito não poder gritar:
«Ah, haviam de ver os coloridos!»
Mas conteve-se porque desejava, acima de tudo, entrar na Casa Grande orgulhosamente.
No segundo dia do Ano Novo, quando as mulheres costumam visitar-se umas às outras, tendo os homens comido e bebido à farta no dia anterior, levantaram-se de madrugada e O-lan vestiu o menino com a túnica vermelha, calçou-lhe os sapatos de pele de tigre, que ela mesma fizera, e pôs-lhe na cabeça, recentemente rapada pelo próprio Wang Lung no último dia do Ano Velho, o chapéu vermelho, sem copa, com o pequeno Buda dourado, cosido à frente, e deitou-o na cama. Wang Lung vestiu-se depressa, enquanto a mulher penteava o longo cabelo negro e espetava no rolo o prego de latão prateado que ele lhe comprara. Vestiu também a sua nova túnica preta, feita do mesmo pano da roupa nova dele, vinte e quatro pés de bom tecido para ambos e mais dois pés para completar a medida, como era costume nas lojas de fazendas. E em seguida, levando ele o menino e ela os bolos no cesto, puseram-se a caminho pela vereda, através dos campos, agora desolados pelo Inverno.
Ao chegar ao grande portão da Casa de Hwang, Wang Lung sentiu-se recompensado quando o porteiro, acudindo à campainhada de O-lan, arregalou muito os olhos diante do que via, e, torcendo os longos pêlos do sinal, exclamou:
Ah! É Wang Lung, o lavrador! Três, desta vez, em lugar de um só!Depois, vendo as roupas novas que eles vestiam e a criança, que era um menino, acrescentou:Não é preciso desejar-lhes mais felicidade este ano do que tiveram no ano passado.
Wang Lung respondeu com indiferença, como a alguém de inferior condição:
Boas colheitas... boas colheitas...e transpôs coníiadamente a entrada.
Impressionado com tudo aquilo, o porteiro disse a Wang Lung:
Queira sentar-se no meu miserável quarto, enquanto vou anunciar lá dentro sua mulher e seu filho.
Wang Lung seguiu com a vista a mulher e o filho, enquanto atravessavam o pátio para levarem presentes à dona de uma casa grande. Tudo aquilo o dignificava. Quando eles se reduziram a minúsculas sombras na longa perspectiva dos pátios que se sucediam e desapareceram numa esquina, entrou em casa do porteiro e aceitou, da esposa dele, de rosto marcado de varíola, como coisa natural, o lugar de honra à esquerda da mesa, no compartimento do meio. Agradeceu com um simples aceno de cabeça a tigela de chá que ela lhe ofereceu, colocou-a diante de si, mas não bebeu o chá, como se as folhas não fossem de muito boa qualidade para a sua pessoa.
Pareceu-lhe que o porteiro demorara muito a voltar, com a mulher e a criança. Wang Lung olhou fixamente, durante uns momentos, o rosto da mulher para ver se tudo correra bem, porque aprendera já a descobrir no seu rosto chato e impassível pequeninas mutações de que a princípio não se apercebia. Ela apresentava uma expressão de íntimo contentamento, e logo ele ficou impaciente de a ouvir contar o que acontecera no interior daqueles salões, onde ele não podia entrar, embora tivesse lá que fazer.
Por isso, fazendo ligeiros cumprimentos ao porteiro e à mulher dele, de rosto bexiguento, saiu à pressa com O-lan, pegando no menino que tinha adormecido e estava enrodilhado no seu fatinho novo.
Então?perguntou ele por cima do ombro à mulher que o seguia.
Pela primeira vez a sua lentidão o impacientava. Ela aproximou-se mais e disse-lhe baixinho:
Quer saber? Creio que naquela casa, este ano, não estão bem.
A sua voz tinha o tom de quem se escandaliza ao falar de deuses que sentem fome.
Que quer dizer isso?perguntou Wang Lung, incitando-a a explicar-se.
Mas ela não tinha pressa. As palavras eram, para ela, coisas preciosas, que se tomam uma a uma e se soltam com pena.
A velha senhora usava a mesma túnica do ano passado. Nunca vi isso dantes. As escravas também não tinham vestidos novos.
E depois de uma pausa continuou:
Não vi nenhuma escrava com um vestido novo como o meu.
Fez nova pausa e acrescentou:
Quanto ao nosso filho, não havia outra criança entre as das concubinas do próprio patrão velho que se lhe comparasse em beleza e em trajo.
Espalhou-se-lhe no rosto um leve sorriso, e Wang Lung riu alto, apertando ternamente o menino contra o peito. Como tudo lhe correu bem! Mas no meio do seu triunfo sentiu medo. Que louca imprudência estava cometendo andando assim, a descoberto, com um lindo menino, arriscando-se a que qualquer espírito maligno passasse, por acaso, pelo ar e o visse! Abriu a túnica apressadamente e escondeu a cabeça da criança no seio, dizendo em voz alta:
Que pena que o nosso filho seja uma menina, contra o nosso desejo, e além disso cheia de bexigas! Supliquemos ao Céu que ela morra!
Sim... sim...disse a mulher tão depressa quanto podia, compreendendo, vagamente, a imprudência em que haviam incorrido.
Sossegados com aquelas precauções, Wang Lung incitou mais uma vez a mulher a falar:
Descobriste como foi que eles empobreceram?
Só pude falar um instante a sós com a cozinheira, sob cujas ordens trabalhava dantes, mas ela disse-me: «Esta casa não pode
resistir toda a vida, com os cinco rapazes a gastar dinheiro no estrangeiro, como se fosse água, e mandando para casa mulheres e mais mulheres, logo que se cansam delas; com o patrão velho, que mora noutra casa, aumentando todos os anos de uma ou duas o número das concubinas, e a velha senhora consumindo diariamente ópio que chegava para encher de ouro dois sapatos.» Deveras?murmurou Wang Lung, estupefacto. Além disso, a terceira filha deve casar-se na Primavera continuou O-lane o seu dote, um resgate de príncipes, daria bem para comprar um posto oficial numa grande cidade, as suas roupas serão todas do mais fino cetim, com desenhos especiais tecidos em Soochow e Hangchow e virá de Xangai um alfaiate, com um séquito de oficiais, para que o enxoval dela não seja menos elegante que o das mulheres de outras terras.
Com quem vai casar, então, para fazerem tanta despesa? perguntou Wang Lung, chocado de admiração e de horror diante de tanto desperdício de riqueza.
Vai casar com o segundo filho de um magistrado de Xangai respondeu a mulher, acrescentando, depois de longa pausa: Devem estar empobrecendo, porque a própria senhora velha me disse que desejavam vender terras... algumas terras situadas ao sul da casa, justamente fora dos muros da cidade, onde plantavam arroz todos os anos, porque é uma terra boa e facilmente irrigada pelo fosso que cerca a muralha.
Vender as terras!repetiu Wang Lung, convencido. Então é certo que estão empobrecendo. A terra é a carne e o sangue da gente.
Ficou pensativo um instante e, de repente, assaltou-o uma ideia e bateu uma palmada nas fontes.
E eu que nem pensei nisso!exclamou ele, voltando-se para a mulher. Vamos comprar essa terra!
Ficaram a olhar um para o outro, ele encantado, ela estupefacta.
Mas a terra... a terra... gaguejou ela.
Vou comprá-la gritou ele num tom imperioso. Vou comprar terra da Casa Grande de Hwang!
Fica muito longe de nós disse ela, consternada. Teremos que andar quase uma manhã inteira para lá chegar.
Quero comprá-la repetiu ele, obstinadamente, como teria repetido, em pequeno, um pedido a sua mãe, se ela o tivesse contrariado.
Sempre é bom comprar terras disse O-lan, em tom conciliador. Vale mais que esconder o dinheiro numa parede de barro. Mas porque não comprar antes um pedaço dos terrenos de seu tio? Ele está morto por vender aquele pedaço junto do campo de oeste, que já temos.
Não quero aquela terra de meu tio disse Wang Lung peremptoriamente. Durante vinte anos tem arrancado dela colheitas sobre colheitas, sem nunca ter tido o cuidado de lhe deitar um punhado de estrume ou bolo de feijão. O solo é pura argila. Não, quero comprar o terreno de Hwang.
Ele dizia o «terreno de Hwang» com a mesma indiferença com que teria dito o «terreno de Ching»... Ching, o lavrador seu vizinho. Estava disposto a ser mais do que um igual, para aquela gente sem juízo e perdulária da Casa Grande. Iria procurá-los com o dinheiro na mão e dir-lhes-ia:
«Tenho dinheiro. Qual o preço do terreno que desejam vender ?»
Já se ouvia a si mesmo dizer, diante do próprio patrão velho ou do seu administrador:
«Considere-me um comprador como qualquer outro. Qual é o preço certo? Tenho o dinheiro na mão.»
E sua mulher, que fora escrava nas cozinhas daquela orgulhosa família, seria a mulher de um homem a quem pertencia um pedaço da terra que, durante gerações, fizera grande a Casa de Hwang. Dir-se-ia que lhe adivinhara o pensamento, porque, repentinamente, cessou a sua oposição e disse:
Pois bem, compremo-la. Afinal, a terra de arroz é boa, está perto do fosso, e poderemos ter água todos os anos. É um bom negócio.
De novo, o ligeiro sorriso espalhou-se-lhe no rosto, o sorriso que nunca iluminava a melancolia dos seus pequenos olhos negros. E depois de longa pausa acrescentou:
No ano passado, por esta época, eu era escrava naquela casa.
E caminharam silenciosos, na plenitude daquele pensamento.
AQUELE pedaço de terra, agora propriedade de Wang Lung, modificou-lhe profundamente a vida. A princípio, depois que tirara o dinheiro da parede e o levara à Casa Grande, e depois que tivera a honra de falar ao patrão velho, de igual para igual, teve uma depressão de espírito que era quase um arrependimento. Quando pensava no buraco da parede agora vazio, e dantes cheio de dinheiro que ele não precisava de gastar, desejava tornar a ter o dinheiro. Afinal de contas, aquele terreno requeria muitas horas de trabalho e, como dissera O-lan, ficava longe, mais de um li, que é um terço de milha. Sem contar que o acto da compra não fora tão glorioso como ele imaginara. Seguira muito cedo para a Casa Grande e o patrão velho estava ainda a dormir. E embora já fosse meio-dia quando disse ao porteiro, em voz alta«Vá dizer à Veneranda Excelência que tenho um negócio importante a tratar com ele... que se trata de dinheiro!» o homem respondeu-lhe categoricamente:«Por dinheiro algum ousaria eu acordar o velho tigre. Está dormindo com a nova concubina Flor de Pessegueiro, que comprou há três dias. Arriscaria a minha vida se o acordasse». E acrescentou, com certa malícia, puxando os cabelos do sinal:
Não pense que o dinheiro o fará acordar. Já nasceu com dinheiro na mão.
Afinal o negócio teve de ser combinado com o administrador do patrão velho, um patife untuoso a cujas mãos se pegava uma boa parte do dinheiro que por elas passava. E assim parecia às vezes a Wang Lung que, afinal, o dinheiro valia mais do que a terra. Podia-se, pelo menos, ver a prata brilhar.
Mas enfim a terra era sua! Foi inspeccioná-la num dia nublado do segundo mês do ano novo. Ninguém sabia ainda que o terreno era dele, e foi vê-lo sozinho. Era um grande quadrilátero de negra terra argilosa, que se estendia ao lado do fosso que cercava a muralha da cidade. Mediu cuidadosamente o terreno: trezentos passos de comprimento por cento e vinte de largura. Quatro marcos assinalavam ainda os limites, quatro marcos com uma grande marca da Casa de Hwang. Era preciso mudar aquilo. Mais tarde substituiria neles o sinete dos Hwang pelo seu próprio nome. Agora, ainda não, porque não lhe agradava mostrar àquela gente que estava bastante rico para comprar terras da Casa Grande, mas mais tarde, quando fosse mais rico e ninguém se importasse com o que ele faria. Contemplando aquele grande pedaço de terra, pensava:
Para os da Casa Grande isto nada significa, esta leira de terra, mas para mim representa muito.
Depois ocorreu súbita mudança nos seus pensamentos, e sentiu-se desprezível por ligar tanta importância a um pedacinho de terra. Lembrou-se de que, quando, orgulhosamente, entregara o seu dinheiro ao administrador, este o recebera com indiferença, dizendo:
Isto dará, ao menos, para pagar alguns dias de ópio para a velha senhora.
E a enorme diferença que havia entre a Casa Grande e ele pareceu-lhe tão intransponível como o fosso cheio de água que estava diante dele, e tão alta como aquela muralha que se erguia direita e altiva à sua frente. Animado de um propósito raivoso, jurou que encheria aquele buraco de dinheiro, muitas e muitas vezes, até que tivesse comprado tantas terras da Casa de Hwang que aquela sua não lhe parecesse maior do que uma polegada.
E assim aquele pedaço de terreno tornou-se para Wang Lung um marco e um símbolo.
Chegou a Primavera com os seus ventos impetuosos e as suas nuvens de chuva, e aos dias ociosos do Inverno sucederam, para Wang Lung, os longos dias de trabalho violento. O velho tomava conta do menino e a mulher trabalhava com o homem desde a madrugada até que o crepúsculo emsombrava os campos. Quando Wang Lung percebeu um dia que ela estava grávida de novo, o seu primeiro pensamento foi de irritação, porque durante a colheita ela não poderia trabalhar. Irritado de fadiga, gritou-lhe:
com que então escolheste esta ocasião para criar de novo, hem?
Ela respondeu resolutamente:
Agora não será nada. Só da primeira vez é duro.
Tirando isto, nada mais se falou a respeito da segunda criança, desde que Wang Lung notara que o corpo de sua mulher engrossava, até ao dia de Outono em que ela largou de manhã a enxada e seguiu penosamente para casa. Nesse dia ele nem sequer regressou para merendar, pois o céu estava carregado de nuvens tempestuosas e o arroz estava maduro e pronto para ser enfeixado. Mais tarde, antes do pôr do Sol, ela voltou para o Lado dele, o ventre esvaziado, exausta, mas silenciosa e intrépida.
Wang Lung sentiu desejos de lhe dizer:
Por hoje já fizeste muito. Vai e deita-te.
Mas a dor do seu próprio corpo exausto tornou-o cruel, e pensando que sofrera tanto com o seu trabalho daquele dia como ela com o parto, limitou-se a perguntar, entre dois golpes de foice:
É menino ou menina?
Ela respondeu calmamente:
É outro menino.
Nada mais disseram um ao outro, mas ele estava contente, e o incessante baixar-se e curvar-se pareceu-lhe menos árduo. Trabalharam até que a Lua surgiu por cima de um monte de nuvens purpúreas, e, terminando o campo, regressaram a casa.
Depois que Wang Lung lavou com água fria o corpo queimado do sol, enxaguou a boca com chá e ceou, foi ver o seu segundo filho. O-lan havia-se deitado depois de fazer a comida, e a criança repousava a seu lado: um menino gordo, manso, sadio, mas não tão grande como o primeiro. Wang Lung contemplou-o e depois voltou para o compartimento do meio bem satisfeito. Outro filho, e outro e mais outro, cada ano... mas não se podiam comprar todos os anos ovos vermelhos; bastava tê-lo feito com o primeiro. Filhos todos os anos; a casa estava habitada pela boa sorte... aquela mulher só lhe trouxera felicidade. Gritou ao pai:
Agora, meu velho, com outro neto, teremos de pôr o maior na tua cama.
O velho estava encantado. Há muito tempo que desejava ter aquele menino de noite, na sua cama, para aquecer o seu velho corpo gelado ao contacto vivificante de sangue novo e de ossos novos, mas a criança não queria largar a mãe. Agora, porém, tendo entrado no quarto com seus passos incertos e vacilantes de criancinha, e visto o novo menino ao lado de sua mãe, pareceu compreender, com olhar sério, que outro tomara o seu lugar, e deixou-se levar, sem protestos, para a cama do avô.
E de novo foram fartas as colheitas. Wang Lung juntou dinheiro com a venda dos seus produtos, dinheiro que escondeu, novamente, na parede. Mas o arroz que colheu no terreno dos Hwang rendeu-lhe o dobro do que o do seu arrozal. O solo daquele campo era húmido e rico, e o arroz crescia nele como o joio onde não é desejado. E toda a gente sabia agora que Wang Lung era dono daquele campo e na aldeia já se cogitava em escolhê-lo para chefe.
Por esse tempo, o tio de Wang Lung começou a tornar-se o embaraço que, desde o começo, Wang Lung previra. Esse tio era o irmão mais novo do pai de Wang Lung, e o seu parentesco dava-lhe o direito de ser sustentado por Wang Lung, se não tivesse o suficiente para se manter e à sua família. Enquanto Wang Lung e seu pai eram pobres e mal nutridos, o tio ainda se esforçava para arrancar da sua terra o necessário para se alimentar a si mesmo, a seus sete filhos e à mulher. Mas uma vez alimentados, ninguém mais trabalhava. A mulher não se mexia nem para varrer o chão da sua choça, e as crianças nem se davam ao trabalho de lavar a cara. Era uma vergonha ver as raparigas, já crescidas e até em idade de casar, correr pelas ruas da aldeia, de cabelos despenteados, chegando, às vezes, a conversar com homens. Tendo encontrado assim um dia a mais velha das suas primas, Wang Lung sentiu-se tão encolerizado com a vergonha causada à sua família que ousou ir ter com a mulher de seu tio e dizer-lhe:
Agora, quem quererá casar com uma rapariga como minha prima, a quem um homem qualquer pode falar? Há três anos que está em idade de casar e continua a correr por todo o lado. Vi hoje um vagabundo na rua da aldeia pôr-lhe a mão sobre o braço, e ela, em vez de se zangar, respondeu-lhe com um riso descarado.
A única parte do corpo que a mulher do tio mexia de bom grado era a língua e dela se serviu então para censurar Wang Lung.
Muito bem! E quem pagará o dote e a boda e os honorários da intermediária? É muito fácil falar aos que têm tanto que não sabem o que lhe hão-de fazer e ainda podem comprar novos terrenos às grandes famílias com as suas economias, mas teu tio é um infeliz e sempre foi assim. Tem pouca sorte e a culpa não é dele. O céu assim o quer. Onde os outros colhem bom grão, a ele perde-se a semente no solo e nada cresce a não ser o joio, e isso, embora rebente o espinhaço!
Começou a chorar, ruidosamente, lágrimas fingidas e acabou por se enfurecer. Desatou o rolo que usava na nuca e pôs-se a arrancar os cabelos desgrenhados sobre a cara, gritando como uma possessa:
Ah! É uma coisa que tu não conheces, ter má sorte! Enquanto os campos dos outros produzem bom arroz e bom trigo, os nossos produzem joio; enquanto as casas dos outros duram cem anos, a própria terra treme debaixo da nossa de modo que as paredes rebentam; enquanto as outras mulheres geram homens, eu, embora anseie por um menino, dou à luz uma menina... Oh! A má sina!
Guinchou tanto que os vizinhos saíram correndo de suas casas para ver e ouvir o que se passava. Wang Lung, não obstante, manteve-se firme, decidido a dizer tudo quanto queria.
De qualquer forma disse ele embora não me caiba dar conselhos ao irmão de meu pai, dir-lhe-ei isto: que é melhor casar uma rapariga enquanto é virgem. Já alguma vez se ouviu dizer que uma cadela possa andar pelas ruas, e não venha a ter uma ninhada ?
Tendo falado assim francamente, seguiu para casa, deixando a mulher do seu tio a vociferar. Projectava, naquele ano, comprar mais terras à Casa de Wang. Mais terras, ano após ano, à medida das suas posses. Sonhava aumentar mais um quarto na sua casa, e indignava-o ver que, enquanto ele e os filhos se convertiam numa família rica, aquela geração degenerada de suas primas se perderia por ali, usando o seu nome.
No dia seguinte, o tio apareceu no campo onde Wang Lung trabalhava. O-lan não estava lá porque, decorridas dez luas desde o nascimento do segundo filho, aproximava-se uma terceira maternidade, e como, desta vez, não passasse muito bem, deixou alguns dias de vir aos campos, de modo que Wang Lung trabalhava sozinho. O tio aproximou-se dele, cabisbaixo, seguindo ao longo de um sulco. As suas roupas em vez de estarem abotoadas, como devia ser, estavam enroladas e presas, muito mal, com o cinto, de modo que, se um pé-de-vento o apanhasse, arriscava-se a ficar, de repente, completamente nu. Chegou-se ao pé de Wang Lung e ficou calado, enquanto ele continuava a sachar uma nesga de terra ao lado dos feijoeiros, que estava cultivando.
Por fim, Wang Lung disse-lhe maliciosamente e sem levantar a vista:
Peço-lhe perdão, meu tio, por não interromper o meu trabalho. Estes feijoeiros, para darem rendimento, devem ser sachados, como sabe, duas ou três vezes. Os seus já estão prontos, sem dúvida. Eu sou muito vagaroso... um pobre lavrador... não acabo nunca a minha tarefa bastante cedo para poder descansar.
O tio compreendeu perfeitamente a malícia de Wang Lung, mas respondeu-lhe num tom adocicado:
Sou um homem de pouca sorte. Este ano, de vinte sementes de feijão, só uma germinou e tão mirrada que nem vale a pena meter-lhe a enxada. Teremos de comprar feijão este ano se quisermos comer.
E suspirou profundamente.
Wang Lung couraçou o coração. Sabia que o tio lhe vinha pedir qualquer coisa. Meteu a enxada no solo, num movimento prolongado e firme, desfazendo, com grande cuidado, os mais pequenos torrões na terra frouxa, já bem trabalhada. Os feijoeiros erguiam-se ao sol bem alinhados, projectando os seus pés pequenas franjas de sombra. Por fim, o tio começou a falar:
A mulher contou-me o interesse que demonstraste pela minha desprezível escrava mais velha. É tudo verdade o que disseste. És sábio para a tua idade. Ela devia casar-se. Tem já quinze anos e dentro de três ou quatro anos poderá conceber. Aterroriza-me constantemente a ideia de que ela possa conceber de algum vadio, que envergonhe o meu e o nosso nome. Imagina que isso acontecia na nossa respeitável família, a mim, o irmão de teu pai.
Wang Lung enterrou a enxada com mais força no solo. Apetecia-lhe falar francamente. Gostaria de dizer:
«Porque é que a não reprime? Porque a não conserva decentemente em casa e a não obriga a varrer, lavar, cozinhar e costurar para a família?»
Mas coisas como estas não podiam ser ditas a gente de uma geração mais velha. Guardou, pois, silêncio, cavando mais perto de uma plantazinha, e esperou.
Se eu tivesse tido a feliz sorte continuou o tio, melancolicamente de casar com uma mulher como a de teu pai, capaz de trabalhar e gerar filhos ao mesmo tempo, como a tua, em vez da mulher que tenho, que só cria banhas e só gerou filhas e um preguiçoso, como o bom do meu filho, que pela sua preguiça vale menos do que uma mulher, poderia estar agora rico como tu. Então seria para mim um prazer dividir os meus bens contigo. Procuraria casar bem as tuas filhas e colocaria teu filho como aprendiz na loja de um mercador, pagando, de bom grado, a importância da caução... Teria prazer em consertar a tua casa e sustentar-vos-ia, a ti, a teu pai e a teus filhos, com o melhor que tivesse, porque somos do mesmo sangue.
Wang Lung respondeu secamente:
O senhor sabe que não sou rico. Tenho agora cinco bocas a sustentar, meu pai está velho, não trabalha mas come, e ao que me consta outra boca está para nascer em minha casa, neste instante.
O tio respondeu agastado:
És rico... és rico! Compraste o terreno da Casa Grande, só os deuses sabem por que preço... Haverá outro homem na aldeia que pudesse fazer o mesmo?
Ouvindo isto, Wang Lung enfureceu-se. Arremessou a enxada ao chão, e, de repente, explodiu, fulminando o tio com um olhar:
Se tenho algum dinheiro é porque trabalho e minha mulher trabalha também e não ficamos, como muitos, sentados ociosamente às mesas de jogo, ou mexericando à soleira das portas sempre sujas, enquanto os campos se enchem de ervas daninhas e os filhos pedem esmola!
O sangue afluiu ao rosto amarelo do tio, que avançou para o sobrinho e lhe deu duas fortes bofetadas, gritando:
Isto é para não falares dessa forma à geração de teu pai! Dar-se-á o caso de não teres religião nem moral, para faltares até este ponto aos teus deveres filiais? Nunca ouviste dizer que os sagrados mandamentos proíbem que os mais moços censurem os velhos ?
Wang Lung permaneceu silencioso e imóvel, consciente da sua falta, mas encolerizado até ao fundo do coração contra aquele homem que era seu tio.
Irei repetir o que disseste à aldeia inteira!berrava o tio com voz vibrante e colérica. Ontem falaste dos meus e gritaste bem alto nas ruas que minha filha já não é virgem. Hoje repreendes-me a mim que, se teu pai morrer, deves considerar-me como tal! Mas ainda que as minhas filhas não fossem virgens, não consentiria que falassem assim de nenhuma delas!
E repetia sem cessar:
Contarei a toda a gente da aldeia... contarei a todos... até que Wang Lung acabou por perguntar, de má vontade:
Que quer de mim?
Feria-lhe o orgulho saber que aquele assunto poderia ser discutido na aldeia. Era, afinal de contas, uma questão de família.
O tio mudou imediatamente. A sua indignação dissipou-se. Sorriu e pôs a mão no braço de Wang Lung, dizendo com suavidade :
Oh! Bem te conheço... és um bom rapaz... Um excelente rapaz. Teu velho tio conhece-te... És meu filho. Filho, põe algum dinheiro nesta pobre e velha mão... Vamos, dez moedas, ou mesmo nove, e assim poderei encetar negociações com uma casamenteira, a respeito dessa escrava minha filha. Ah! Tens razão! Já é tempo... é tempo de mais!
Suspirou e erguia piedosamente os olhos para o céu.
Wang Lung pegou de novo na enxada e voltou a abandoná-la.
Venha a minha casa disse ele secamente. Não ando com dinheiro no bolso, como um príncipe.
E seguiu à frente, mudo de amargura, a pensar que uma parte daquele dinheiro com que tencionava comprar mais terras iria parar às mãos do tio, de onde escorregaria para a mesa do jogo, antes de anoitecer.
Entrou bruscamente em casa, afastando da sua frente os dois petizes que brincavam, completamente nus, à torreira do sol, à porta da casa. Seu tio, com simulada benevolência, chamou os pequenos e deu a cada um deles uma moeda de cobre que tirou do fundo da sua roupa esfarrapada. Apertou contra si os dois corpinhos gordos e reluzentes, e metendo o nariz nos seus tenros pescocinhos, com uma fingida afeição, aspirou a carne queimada do sol.
Ah! Vocês são dois homenzinhos disse, abraçando um em cada braço.
Mas Wang Lung não parou. Entrou no quarto em que dormia com a mulher e o último filho. Estava muito escuro, para quem vinha da claridade de fora, e, a não ser a réstea de luz do buraco, nada mais se via. Mas o cheiro de sangue quente, de que se lembrava tão bem, encheu-lhe as narinas e exclamou interessado:
Quê... Já nasceu?
A voz da mulher, mais fraca do que nunca, respondeu-lhe da cama:
Está tudo pronto, mais uma vez. Mas agora foi uma escrava... nem vale a pena falar mais nisso.
Wang Lung ficou calado. Teve o pressentimento de uma desgraça. Uma filha! Foi uma filha que causara todo este enredo em casa de seu tio. E eis que nascera uma filha em sua casa também.
Sem responder, foi à parede e, tacteando a rugosidade que assinalava o esconderijo, removeu o torrão de barro. Remexeu lá dentro o pequeno monte de dinheiro e contou nove moedas.
Para que tiras esse dinheiro?perguntou, de repente, a mulher na escuridão.
Vejo-me forçado a emprestá-lo a meu tio replicou ele, com brevidade.
A mulher nada respondeu a princípio, mas depois disse, com a sua voz habitualmente melancólica:
É melhor não dizer «emprestar». Não se empresta para aquela casa. Dá-se apenas.
Ah, bem sei respondeu Wang Lung, com amargura. Retalha-me a carne dar-lhe este dinheiro, sem outra razão que não seja a de sermos do mesmo sangue.
Saindo, em seguida, para a soleira, entregou o dinheiro a seu tio e voltou rapidamente para o campo, pondo-se a trabalhar como se quisesse arrancar a terra dos seus fundamentos. Nesse momento só pensava no dinheiro: imaginava vê-lo atirar com indiferença para uma mesa de jogo, onde o arrebataria qualquer mão ociosa . o seu dinheiro, o dinheiro que ele tão penosamente tinha amealhado com o produto dos seus campos, para comprar ainda mais terras.
Era já noite quando, amainada a sua cólera, se ergueu e se lembrou da casa e da comida. Pensou, então, na nova boca que viera naquele dia para sua casa e entristeceu-se, por ver que começavam a nascer-lhe filhas, estas filhas que não pertencem a seus pais, mas que nascem e se criam para outras famílias. Nem mesmo se lembrara, na sua cólera contra o tio, de parar e ver a cara daquela nova criaturinha.
Conservou-se apoiado à enxada e sentiu-se invadido pelo desalento. Passar-se-ia agora nova colheita antes que pudesse comprar aquele terreno, um pedaço ao lado do que já lhe pertencia, e na sua casa havia nova boca.
Através do céu pálido e nacarado do entardecer, voou um bando de corvos, de um negro luzidio. Revolutearam em torno dele, grasnando barulhentamente. Viu-os desaparecer, como uma nuvem, nas árvores que cercavam a casa. Correu-lhes no encalço gritando e agitando a enxada. Voaram, de novo, um a um, descrevendo círculos por cima da sua cabeça, zombando dele com seus gritos, e perderam-se, por fim, no céu enegrecido.
Wang Lung soltou um grande suspiro. Era um mau agouro.
PARECIA que os deuses se tinham tornado hostis. As chuvas, que deviam ter caído no princípio do Verão, não caíram, e, dia após dia, o céu esplendia límpida e cruamente. Os deuses ficavam indiferentes à sorte da terra árida e sedenta. De manhã até ao crepúsculo não se via uma nuvem e, à noite, as estrelas de oiro cintilavam no firmamento, no seu esplendor cruel.
Os campos, embora Wang Lung os cultivasse desesperadamente, secavam e fendiam. E as tenras hastes do trigo, que haviam brotado corajosamente à chegada da Primavera e se preparavam para encher as espigas, quando sentiram que nada lhes vinha do solo ou do céu, deixaram de crescer e ficaram primeiro inertes, sob o sol, para afinal mirrarem e amarelecerem, dando uma colheita estéril. As novas leiras de arroz que Wang Lung semeara formavam na terra escura quadrados de jade. Desde que dera o trigo por perdido, carregava diariamente água para elas, em pesados baldes de madeira, pendentes de um bambu, que atravessava nos ombros. Acabou por cavar-se um sulco na sua carne e formou-se-lhe um calo tão grande como uma tigela. E as chuvas não vinham.
Por fim, a água do tanque secou, formando no fundo um lameiro, e até a água do poço baixou tanto que O-lan lhe disse:
Se queremos dar de beber aos meninos e que o velho tenha a sua água quente, não se podem regar as plantas.
Wang Lung respondeu-lhe com uma cólera que se quebrou num soluço:
Sim, mas se as plantas morrem de sede, morrerão eles de fome!
Era verdade: todas aquelas vidas dependiam da terra.
Somente o pedaço de terra junto ao fosso produziu colheita, e isto porque no fim, vendo que o Verão passava sem chuvas, Wang Lung abandonou todos os outros campos e dedicou-se inteiramente àquele, carregando água do fosso para regar a terra insaciável. Naquele ano, pela primeira vez, vendeu o grão logo após a colheita e, ao sentir o dinheiro nas mãos, apertou-o triunfalmente com força. Apesar dos deuses e da seca, conseguiria, dizia ele, fazer o que tinha pensado. Tinha estafado o seu corpo e vertido o seu suor para obter aquele punhado de dinheiro, mas empregá-lo-ia no que preferisse. E correu à Casa de Hwang a encontrar-se com o administrador das terras, a quem disse sem cerimónias:
Tenho com que comprar o terreno contíguo ao meu, junto do fosso.
Wang Lung ouvira dizer que aquele ano fora de quase miséria para a Casa de Hwang. A velha senhora não tivera ração de ópio completa por muitos dias, e parecia um tigre velho esfaimado; de sorte que todos os dias mandava chamar o administrador e amaldiçoava-o, batia-lhe com o leque na cara e gritava-lhe:«Não haverá já nenhum palmo de terra?» a ponto de deixar o homem quase louco.
Ele até já lhe tinha dado as moedas que habitualmente guardava para si, das transacções da família, tanto ela o atormentava. E, como se tudo isso não bastasse, o patrão velho arranjara outra concubina, uma escrava filha de outra escrava que havia sido sua na mocidade, mas que estava agora casada com um escravo da casa, porque o seu interesse por ela desaparecera antes que a houvesse recebido em seu quarto como concubina. A filha da escrava, que não tinha mais que dezasseis anos, provocara-lhe novos desejos, pois, à medida que ia envelhecendo e ficando com o corpo pesado e enfermo, parecia desejar, cada vez mais, mulheres esbeltas e jovens, quase crianças, sem nunca se aplacar a sua concupiscência. Era a velha com o ópio e ele com sua sensualidade, e seria inútil procurar fazê-lo compreender que não havia dinheiro para os brincos de jade das favoritas, nem ouro para as suas belas mãos. Ele, que durante toda a sua vida só tivera o trabalho de estender a mão e enchê-la tantas vezes quantas quisesse, não podia compreender as palavras «não há dinheiro».
Vendo seus pais assim, os jovens senhores encolhiam os ombros e diziam que ainda teriam bastante dinheiro para gastar a vida inteira.
Somente estavam de acordo numa coisa: em censurar o administrador, pela sua má administração das propriedades, de tal forma que este homem, outrora obeso e untuoso, de vida fácil e bolsa cheia, se tornara inquieto e desabrido e emagrecera tanto que a pele pendia sobre ele como um velho trajo.
O céu também não quisera enviar chuvas sobre os campos da Casa de Hwang, e lá, também, não tinha havido colheitas, de modo que, quando Wang Lung chegou à presença do administrador, gritando: «tenho dinheiro», foi como se alguém dissesse a um faminto: «tenho alimento».
O administrador agarrou-se a isso. Da outra vez, estiveram conversando e bebendo chá; mas agora, os dois homens trocaram breves palavras, e, com mais rapidez ainda, o dinheiro transitou de uma para outra mão, os papéis foram assinados e selados e a terra passou a ser de Wang Lung.
Mais uma vez Wang Lung não lamentou a entrega do dinheiro que era a sua carne e o seu sangue. com ele adquiria o objecto dos seus mais caros desejos. Tinha agora um vasto campo de boa terra, porque o novo campo era duas vezes maior que o primeiro. Para ele, porém, mais do que a fertilidade do seu negro humo valia o facto de ter pertencido, outrora, à família de um príncipe. E desta vez não contou a ninguém, nem mesmo à sua O-lan, o que tinha feito.
Os meses passavam e as chuvas não vinham. Ao aproximar-se o Outono, nuvens pequenas e ligeiras acumularam-se no céu, e na rua da aldeia viam-se grupos de homens, ociosos e sôfregos, rostos voltados para o firmamento, examinando atentamente cada nuvem e discutindo entre si se viria chuva. Mas antes que pudesse formar-se uma cerração promissora, levantou-se do noroeste um vento rijo, o vento agreste do longínquo deserto, e dispersou as nuvens do céu como se varre com uma vassoura o pó do chão. E o céu continuava límpido e vazio e o Sol majestoso erguia-se todas as manhãs, seguia o seu curso e punha-se, solitário, em cada tarde. E a Lua cheia brilhava como um sol de menor brilho.
Wang Lung retirou dos seus campos escassa colheita de feijões duros e do plantio de milho, semeado desesperadamente quando os canteiros do arroz haviam amarelecido e morrido, antes mesmo de ser transplantado para o arrozal inundado, colheu pequenas e mirradas maçarocas de grãos espalhados aqui e ali. Nem um feijão se perdeu na debulha. Pôs os dois garotos a peneirar a poeira da eira, entre os dedos, depois de ele e a mulher terem malhado as hastes de feijão, e debulhou o milho sobre o pavimento do quarto do velho, vigiando atentamente os grãos que rebolavam para mais longe. Quando ia recolher os cascabulhos, para servirem de lenha, a mulher exclamou:
Não... não os desperdices queimando-os. Lembro-me de que, quando era pequena, em Shantung, em anos como este, até os cascabulhos moíamos para comer. É melhor do que erva.
Quando terminou estas palavras todos ficaram calados, até mesmo as crianças. Havia um sinistro presságio na estranha serenidade daqueles dias em que a terra os abandonava. Só para a petiza não havia receios. Tinha à sua disposição os dois robustos seios da mãe, que, até aí, chegavam bem para satisfazê-la. Mas O-lan, ao amamentá-la, murmurava:
Mama, pobre inocente... mama, eu ainda encontro com que possa alimentar-me.
Então, para cúmulo da desgraça, O-lan engravidou de novo e o leite secou-se. E todo o casebre foi alarmado pela gritaria da criança, constantemente a chorar com fome.
Se alguém tivesse perguntado a Wang Lung como se alimentavam durante o Outono, teria respondido:
Não sei... um pouquinho de comida, uma vez por outra.
Mas ninguém lhe perguntava isso. Em toda a região ninguém perguntava aos outros: «Como te alimentas?» Mas só perguntavam a si mesmos: «Como hei-de alimentar-me hoje?» E os pais diziam:«Como nos havemos de alimentar a nós e a nossos filhos?»
Wang Lung cuidara do boi enquanto lhe fora possível. Dava-lhe um punhado de palha e umas hastes secas de feijão, enquanto houve; depois, ia colher folhas às árvores, até que o Inverno chegou e elas desapareceram. Então, como não havia terra para cavar, visto que a semente, se a semeasse, secava na terra, e além disso já tinham comido toda a colheita, deixou andar o boi pelo campo para se alimentar por si mesmo com o filho mais velho sentado no lombo o dia inteiro, pegando na corda que lhe passava pelas narinas, para que o não roubassem. Mas por fim nem isso se atrevia a fazer, com receio de que os homens da aldeia, até mesmo os seus vizinhos, pudessem atacar o garoto e roubar-lhe o boi para o matarem e comerem. O animal ficou, daí em diante, preso à porta e acabou por ficar magro como um esqueleto.
Mas chegou o dia em que não havia mais arroz nem trigo, restando apenas alguns feijões e uma magra provisão de milho; o boi mugia de fome e o velho disse:
Vamos comer o boi. Mas Wang Lung protestou, porque para ele aquilo era o mesmo que dizer:
Vamos comer um homem.
O boi era o seu companheiro nos campos e ele seguia-o, abençoando-o ou injuriando-o, conforme a disposição do momento. Conhecia-o desde criança, quando o haviam comprado, ainda bezerrinho. E disse:
Como quer que a gente coma o boi? Como havemos, depois, de lavrar a terra?
Mas o velho respondeu com toda a calma:
Sim, mas é preciso escolher entre a tua vida ou a do bicho, entre a vida dele e a de teus filhos. Pode comprar-se um boi mais facilmente do que a própria vida.
Mas Wang Lung não quis matá-lo nesse dia. Passou-se o dia
seguinte e mais outro. As crianças gritavam com fome, sem que fosse possível acalmá-las. O-lan olhava para Wang Lung com ar suplicante. Ele viu, por fim, que era preciso sacrificá-lo e disse então, asperamente:
Matem-no, pois. Eu é que não posso fazê-lo.
Foi para o seu quarto e deitou-se, tapando a cabeça com a colcha, para não ouvir os mugidos do boi quando o matassem. Então O-lan saiu às escondidas, levando uma grande faca da cozinha, e vibrou um profundo golpe no cachaço do animal, ferindo-o mortalmente. Pegou numa tigela e recolheu o sangue para cozer, num bolo; esfolou o boi e esquartejou o grande cadáver. Wang Lung só saiu do quarto quando todo o trabalho estava concluído e a carne cozinhada e posta na mesa. Mas quando tentou comer a carne do seu boi, o estômago revoltou-se-lhe e não pôde tragá-la, limitando-se a beber um pouco de caldo. O-lan disse-lhe:
Um boi é um boi, e este estava envelhecendo. Come, que algum dia terás outro boi e melhor do que este.
Um pouco reconfortado, Wang Lung comeu um pedaço, depois outro, e todos comeram. Mas o boi acabou por ser consumido e até partiram os ossos para lhes tirar o tutano. Dele nada mais restava, dentro em pouco, do que o couro, seco e duro, estendido sobre o cavalete de bambu que O-lan fizera para o pôr a secar.
A princípio houve hostilidade na aldeia contra Wang Lung, porque supunham que ele tinha dinheiro escondido e mantimentos de reserva. Seu tio, que foi dos primeiros a sentir a miséria, veio importuná-lo a casa, e na verdade o nosso homem, a mulher e os seus sete filhos nada tinham que comer. Wang Lung deitou de má vontade, na aba da túnica de seu tio, um montinho de feijões e um precioso pedaço de milho, dizendo-lhe com firmeza:
É tudo quanto posso dar-lhe. Mesmo que não tivesse filhos, devia cuidar, primeiro que tudo, de meu velho pai.
Quando seu tio voltou segunda vez, Wang Lung exclamou:
Nem a piedade filial me permitirá alimentar os meus!
E deixou partir o tio de mãos vazias.
Desde aquele dia, seu tio voltou-se contra ele, como um cão espancado, e andava por todas as casas da aldeia a abocanhá-lo:
O bom do meu sobrinho tem dinheiro e mantimentos, mas não dá nada, nem mesmo a mim e a meus filhos, que somos da mesma carne e dos mesmos ossos. Não há outro remédio, para nós, senão morrer de fome.
E quando, família após família, consumiu as suas provisões na pequena aldeia e gastou a sua última moeda nos míseros mercados da cidade, e os ventos do Inverno desceram do deserto, frios como uma faca de aço, secos e estéreis, os campónios desesperaram por terem fome e verim as suas mulheres esqueléticas e os filhos em pranto. Quando o tio de Wang Lung, tiritando pelas ruas como um cão faminto, cochichou, com os seus lábios famélicos«Há alguém que tem víveres... há alguém cujos filhos estão ainda gordos»os homens armaram-se de paus e foram, uma noite, a casa de Wang Lung. Bateram-lhe à porta. Quando ele a abriu aos brados dos vizinhos, eles caíram-lhe em cima e, afastando-o da entrada, puseram fora as crianças aterrorizadas, rebuscaram todos os cantos e examinaram todas as paredes para descobrir onde havia alimentos escondidos. Depois, quando descobriram a miserável provisão de alguns feijões secos e uma tigela de milho, soltaram um grande uivo de desespero e desapontamento, e apoderaram-se dos móveis, da mesa, dos bancos e da cama onde estava deitado o velho chorando de pavor.
Então O-lan adiantou-se e falou. A sua voz, apagada e lenta, dominou a vozearia dos homens:
Isso não... isso não! Não chegou ainda o momento de levar de nossa casa a mesa, os bancos e a cama. Tiraram toda a nossa comida. Mas em suas casas ainda não venderam as mesas e os bancos. Deixem os nossos. Estamos nas mesmas condições. Não temos um feijão ou um grão de milho a mais que vós... ou antes, não tendes agora menos do que nós, porque roubastes todas as nossas provisões. O castigo do Céu cairá sobre vós se levardes mais alguma coisa. Agora sairemos juntos à procura de erva para comer e de cascas de árvores, vós para vossos filhos e nós para os nossos três e para o quarto que nascerá em breve.
Apertou a mão contra o ventre túmido, enquanto falava, e os homens envergonharam-se e saíram um a um, pois não eram maus, a não ser quando tinham fome.
Um deles demorou-se mais, aquele que se chamava Ching, um homenzinho amarelo e taciturno, cujo rosto simiesco era agora pálido e mirrado. De boa vontade teria proferido alguma palavra de desculpa, porque era um homem honesto e só o choro do filho o levara àquele extremo. Mas levava oculto no seio um punhado de feijões furtados por ele quando foi encontrada a provisão, e temia ter de os restituir se falasse. Por isso olhou apenas para Wang Lung com um olhar silencioso e pasmado, e saiu.
Wang Lung ficou ali no terreiro, onde, ano após ano, havia malhado as suas boas colheitas e que estava agora há tantos meses vazio e inútil. Não havia mais nada em casa para dar de comer ao pai e aos filhos... nem uma migalha para dar à mulher que, além da nutrição do próprio corpo, tinha que sustentar outro ser, aquele ser que, com a avidez cruel das vidas novas, sugaria o próprio sangue e a própria carne de sua mãe.
Um pânico imenso se apossou dele por instantes. Depois, como um vinho generoso, correu-lhe pelas veias uma ideia reconfortante. E disse consigo:
-Eles não podem roubar-me a terra. A fadiga do meu corpo
e o produto dos campos pu-los, assim, em segurança. Se eu tivesse dinheiro, ter-mo-iam roubado. Se tivesse comprado géneros com o dinheiro, levar-mos-iam. Ficou-me a terra – e esta é minha!
SENTADO na soleira da porta, Wang Lung pensava consigo que chegara o momento de tomar qualquer resolução. Não podiam permanecer ali naquela casa vazia, à espera da morte. com o seu corpo emagrecido, à volta do qual diariamente apertava o cinto frouxo, estava energicamente decidido a viver. Revoltava-se contra a ideia de sentir-se arrebatado por uma estúpida fatalidade, no próprio momento em que atingia a plena maturidade da vida. Havia agora nele tanta cólera que nem sempre podia expressá-la. Às vezes, apoderava-se dele como um frenesi, e saía para a eira vazia, onde levantava os punhos para o céu que brilhava por cima dele, eternamente límpido e azul, frio e sem nuvens.
Oh! Velho do céu, tu és mau!gritava ele, temeràriamente.
E se por um instante receava pela sua blasfémia, logo voltava a gritar indignado:
Que poderia acontecer-me de pior do que me acontece!
Um dia, arrastando penosamente os pés, pela extrema debilidade da fome, foi ao templo da terra, e, deliberadamente, cuspiu no rosto do pequeno e imperturbável deus que ali estava no trono com a sua deusa. Já não ofereciam pedaços de incenso àqueles ídolos havia muitas luas, e os seus trajos de papel estavam deteriorados, deixando à mostra, através dos rasgões, os corpos de barro. Mas eles permaneciam indiferentes. Wang Lung rangeu os dentes para eles, voltou para casa suspirando e deitou-se na cama.
Uns e outros, só raramente se levantavam da cama. Para quê? E um sono entrecortado substituía, pelo menos por algum tempo, o alimento que não tinham. Haviam comido os cascabulhos secos, arrancavam as cascas das árvores, e em toda a região o povo comia a erva que o Inverno poupava nas colinas desnudas. Não se via um só animal em parte alguma. Podia-se andar dias e dias sem avistar um bo, um burro ou qualquer outra espécie de quadrúpede ou ave.
Os ventres vazios das crianças estavam bojudos de ar e nem uma só aparecia a brincar nas ruas da aldeia. Quando muito, os dois meninos de Wang Lung chegavam até à porta e sentavam ao sol, ao cruel sol que não abrandava nunca o seu impiedoso fulgor. A não ser as barrigas inchadas, o corpo deles, outrora rechonchudo, era agora anguloso e ossudo, mostrando ossinhos pontiagudos como as avezitas. A pequena ainda não andava só, embora já tivesse idade para isso, e ficava no chão horas esquecidas, enrolada numa colcha velha. A princípio, enchia a casa com o seu choro persistente e colérico, mas acabara por calar-se, sugando, frouxamente, tudo quanto lhe punham na boca, sem elevar nunca a voz. O seu pequeno rosto cadavérico, com os lábios roxos e pendentes como os de uma velha desdentada, voltava-se para todos, interrogativamente, e os olhos, fundos e negros, olhavam com uma insistência aflitiva.
A obstinação daquele pequeno ser cativou de certo modo a afeição do pai, que, se ela fosse gordinha e alegre como os outros haviam sido na sua idade, não lhe ligaria importância, por ser uma filha. Às vezes, olhando para ela, dizia carinhosamente!
Coitadinha!... coitadinha!...
E uma vez em que ela esboçou um fraco sorriso, mostrando as gengivas sem dentes, ele desatou a chorar e pegou com a sua mão magra e calosa a mãozinha que levantou, agarrada ao indicador, pelos minúsculos dedinhos. Desde então tirava-a muitas vezes da cama, toda nua, e, agasalhando-a contra o peito com o escasso calor da sua túnica, sentava-se com ela à porta de casa a contemplar os campos áridos e desolados.
Quanto ao velho, passava melhor que os outros, porque, se havia alguma coisa para comer, davam-lhe a ele, mesmo que as crianças ficassem sem nada. Wang Lung dizia, com orgulho, que ninguém poderia acusá-lo, à hora da morte, de ter abandonado o pai. Ainda que tivesse de lhe dar da própria carne para o sustentar, o velho teria que comer. Ele dormia noite e dia, comia o que lhe davam e ainda tinha forças para andar de um lado para o outro ou aquecer-se ao sol. Andava mais bem humorado que os outros e, um dia, com voz trémula e cansada, semelhante a uma brisa que sussurrasse entre os bambus partidos, disse:
Conheci dias piores... bem piores. Uma vez, vi homens e mulheres comerem crianças.
Nunca se há-de ver tal coisa em minha casa!disse Wang Lung, no paroxismo do horror.
Certo dia, o seu vizinho Ching, que não era agora mais do que a sombra de um ser humano, chegou à sua porta e soltou dos lábios, secos e negros como a terra, estas palavras em voz baixa:
Na cidade comem-se os cachorros e, por toda a parte, cavalos e aves de toda a espécie. Aqui, depois dos animais que lavraram os nossos campos, comemos ervas e a casca das árvores. Que nos resta agora para comer?
Wang Lung meneou a cabeça sem esperança. No seu colo jazia o corpinho leve e esquelético da filha, o seu olhar poisou no pequenino rosto ossudo e nos olhos vivos e tristes que o fitavam sem cessar pela abertura da túnica. Quando os seus olhos se cruzavam com os dela, passava pelo rosto da criança um sorriso fugitivo que lhe cortava o coração.
Ching aproximou dele o rosto e murmurou:
Na aldeia come-se carne humana. Fala-se de que teu tio e a mulher também a comem. De outro modo, como viveriam com força bastante para passear por aí... eles, que, como é sabido, nada tinham?
Vang Lung afastou-se desta espécie de caveira que Ching aproximara dele para lhe falar. Era-lhe intolerável ter tão perto de si os olhos deste homem. Invadido por um súbito terror, incompreensível, Wang Lung levantou-se rapidamente como para afastar um perigo iminente.
Vamos deixar esta terra!disse em voz alta. Iremos para o Sul! Por toda esta região há gente que morre de fome. O céu, por mais desumano que seja, não há-de querer exterminar todos os filhos de Han.
O vizinho olhou-o com indulgência e disse tristemente:
Ah! Tu és moço! Eu sou mais velho do que tu, minha mulher também é velha e não temos mais ninguém senão uma filha. Podemos morrer.
És mais feliz do que eu retrucou Wang Lung. Tenho o meu velho pai, estas três boquinhas e outra prestes a nascer. Precisamos de partir antes que esqueçamos todos os sentimentos humanos e nos devoremos como cães selvagens.
De súbito, percebeu que estava dizendo uma grande verdade. Chamou O-lan, que passava todo o dia deitada na cama, sem falar, agora que não havia comida para preparar nem combustível para o lume.
Vem cá mulher, iremos para o Sul!
Havia na voz dele um entusiasmo que ninguém lhe conhecia há várias luas. As crianças levantaram os olhos, o velho saiu com passos miúdos lá do quarto, O-lan levantou-se a custo da cama e chegou à ombreira para dizer:
É uma boa resolução. Pelo menos, morre-se caminhando.
A criança que trazia no ventre pendia-lhe dos magros flancos como um fruto nodoso, e no seu rosto, inteiramente descarnado, os ossos pontiagudos sobressaíam sob a pele, como seixos salientes.
Mas espera até amanhãdisse ela.Até lá, darei à luz a criança. Digo isto porque sinto os seus movimentos...
Amanhã, então!respondeu Wang Lung.
Depois, olhou para o rosto da mulher e um sentimento de piedade por ela, maior do que qualquer outro já sentido por si mesmo, comoveu-o. Aquela mísera criatura ainda tinha forças para dar vida a outra!
Como poderás andar, pobre criatura?murmurou ele.
E disse, contrariado, ao seu vizinho Ching, que ainda estava encostado à parede junto da porta:
Se ainda te resta algum alimento, em nome das almas boas dá-me um punhado para salvar a vida à mãe dos meus filhos, e eu perdoar-te-ei o roubo que te vi cometer na minha casa.
Ching olhou-o, envergonhado, e respondeu humildemente:
Nunca mais pude pensar em ti sem remorsos desde aquela hora Foi esse cachorro do teu tio quem me atiçou, dizendo que tinhas boas provisões armazenadas. Por este céu cruel te juro que só tenho um punhadinho de feijões vermelhos e secos escondidos debaixo da soleira da minha porta. Fui eu e minha mulher que ali os escondemos para que quando chegasse a nossa última hora, à nossa filha e a nós, pudéssemos morrer com um pouco de comida nos estômagos. Mas vou dar-te metade. E amanhã partam para o Sul, se puderem. Eu fico. Eu e a minha gente. Sou mais velho do que tu e não tenho filhos. Não importa, pois, que viva ou morra.
Saiu, para voltar pouco depois, trazendo amarrado num lenço de algodão dois punhados de feijõezinhos vermelhos, sujos de terra. As crianças aproximaram-se ao ver comida e até os olhos do velho cintilaram, mas Wang Lung, pela primeira vez, afastou todos e levou a comida à mulher, que estava deitada. Ela comeu um pouco, feijão por feijão, sem vontade, somente porque sabia que a hora do parto estava próxima e que, se não se alimentasse um pouco, morreria com as dores.
Wang Lung guardou na mão os feijões que sobraram. Meteu-os na boca e mastigou-os, formando uma pasta mole. Depois, colando a sua boca aos lábios da filha, passou-lhe aquele alimento; e, ao ver que os seus làbiozinhos se moviam, ele próprio se sentiu alimentado.
Wang Lung passou aquela noite no quarto do meio. Os dois meninos estavam no quarto do velho, e, no terceiro quarto, O-lan dava à luz, sozinha. Ficou ali sentado, como durante o nascimento do seu primogénito, à escuta. Até ao último momento, ela recusava-se sempre a tê-lo junto de si. Queria dar à luz, sozinha, agachada sobre a velha tina que guardava para essas ocasiões, arrastando-se depois pelo quarto para apagar qualquer vestígio do acontecimento, ocultando, como os animais, as manchas do nascimento das suas crias.
Ele aguardava, cheio de impaciência, o débil e fino grito que já conhecia tão bem. Rapaz ou rapariga, isso agora não o interessava... era apenas mais outra boca que precisava de alimentar.
Seria um bem, se não vivesse...murmurou ele.
Em seguida, ouviu um vagido fraco... tão fraquinho! quebrar, por instantes, o silêncio.
Não há compaixão alguma nestes tempos!concluiu ele, amargamente. E continuou à escuta.
Não ouviu mais nenhum vagido e o silêncio pesou, impenetrável, sobre toda a casa. Havia muitos dias que o silêncio reinava em toda a parte... o silêncio da inércia, o silêncio daqueles que, em suas casas, aguardam a hora da morte. Foi este silêncio que encheu a casa, de repente. Wang Lung não pôde mais suportá-lo. Tinha medo. Levantou-se e foi à porta do quarto onde estava O-lan, e chamou-a pela fresta. O som da sua própria voz restituiu-lhe um pouco de coragem.
Estás bem?perguntou à mulher.
Ficou à escuta. Teria morrido enquanto estivera ali sentado? Mas percebeu um ligeiro rumor. Ela movia-se lá dentro e por fim respondeu, num suspiro:
Entra!
Ele entrou, então. Ela estava deitada sobre a cama, e o seu corpo mal avultava sob a coberta. Estava só.
Onde está a criança?perguntou ele.
Ela fez um gesto com a mão e ele viu no pavimento o corpo da criança.
Morta!exclamou ele.
Morta!ciciou ela.
Wang Lung debruçou-se para examinar o minúsculo cadáver... um punhado de ossos e de pele... uma menina. Esteve quase para dizer«mas eu ouvi-a chorar... estava viva...» porém olhou para o rosto da mulher. Os seus olhos estavam fechados, a sua pele tinha uma cor cinérea e os ossos despontavam sob a pele... um pobre rosto mudo que acabava de sofrer as maiores dores; e não teve coragem de falar. Ele, afinal, durante aqueles meses, tivera apenas que arrastar o próprio corpo. Que sofrimento a miséria devia ter infligido a esta mulher, com aquele pequeno ser faminto a consumir-lhe as entranhas, na ânsia desesperada de viver!
Calou-se, mas levou a criança morta para o outro quarto e deitou-a no chão de terra batida. Procurou, depois, um pedaço de esteira rota, na qual a enrolou. A cabecinha redonda oscilava para um e outro lado e ele viu duas equimoses negras no pescoço; mas acabou a sua fúnebre tarefa. Em seguida, pegou no cadáver enrolado na esteira e, afastando-se de casa quanto lho permitiam as forças, depôs a sua carga na cova de uma velha sepultura. Esse túmulo erguia-se entre muitos outros, derruídos e abandonados, numa colina próxima do campo do ocidente de Wang Lung. Mal depusera o fardo no chão, apareceu atrás dele um cão faminto a rondar, e tão faminto que, embora apanhasse uma pedra e lha atirasse aos magros flancos, produzindo um som surdo, o animal apenas se afastou alguns passos. Por fim, Wang Lung sentiu que as pernas lhe fraquejavam e afastou-se dali, cobrindo o rosto com as mãos.
Foi melhor assim...murmurou.
E pela primeira vez sentiu que um desespero total se apoderava de si.
Na manhã seguinte, quando o Sol se ergueu, imutável naquele céu de esmalte azul, pareceu-lhe um sonho ter podido pensar em deixar a sua casa com aquelas crianças sem forças, aquela mulher enfraquecida e aquele velho. Como poderiam eles arrastar os seus corpos a mais de cem milhas, mesmo que fosse para saciar-se? E quem sabia se no Sul havia também que comer? Este céu de bronze parecia estender-se ao infinito! Talvez tivessem que gastar as derradeiras forças para encontrar apenas gente mais faminta e, ainda por cima, estranha para eles. Valia muito mais ficarem ali e morrerem na sua cama. Sentou-se, acabrunhado, na soleira da porta e fixou, com um olhar vago, os campos secos e endurecidos, onde já não havia a mínima partícula que pudesse servir de alimento ou de combustível.
Não tinha dinheiro. Havia muito que a última moeda se fora. Mas nem mesmo o dinheiro serviria agora de nada, pois não havia alimentos para comprar. Ouvira dizer, em tempos, que na cidade havia homens ricos que açambarcavam géneros para si mesmos e para os vender aos muito ricos. Mas nem isso lhe causava raiva. Sentia-se incapaz, naquele dia, de caminhar até à cidade, ainda que soubesse ter lá comida de graça. Já nem sentia fome.
As violentas contracções do estômago que sentira a princípio tinham passado e acontecia-lhe ir buscar um pouco de terra a um dos seus campos para a dar a comer às crianças, sem que ele mesmo a desejasse comer. Durante muitos dias, aquela terra, misturada com água, fora o alimento de todos. Terra de misericórdia, lhe chamavam, por causa das suas leves qualidades nutritivas, que não chegavam para manter a vida. Mas preparada como papa, acalmava, por algum tempo, a fome das crianças e sempre era alguma coisa a cair dentro daqueles ventres dilatados e vazios.
Ele teve a perseverança de não tocar nos feijões que O-lan ainda conservava na mão, e sentia um vago conforto em ouvir mastigá-los, um por um, com longos intervalos.
Naquele instante, enquanto estava sentado à soleira da porta, renunciando a qualquer esperança e pensando, com um prazer alucinado, em deitar-se na cama e ali adormecer com o sono da morte, viu uns homens que atravessavam os campos e se dirigiam para ele. Continuou sentado enquanto se aproximavam, e reconheceu que um deles era seu tio, acompanhado de três desconhecidos.
Não te tenho visto há muitos diasexclamou o tio, em voz alta e afectando bom humor.
E quando estava mais próximo disse, no mesmo tom de voz, elevado:
Que boa aparência tens! E o teu pai, meu irmão mais velho, está bem?
Wang Lung olhou para o tio. O homem estava magro, é verdade, mas não cadavérico, como era de esperar. Wang Lung sentiu no corpo trémulo um resto de força vital concentrar-se numa cólera furiosa contra aquele homem, seu tio.
Como o senhor comeu... como o senhor comeu!murmurou entre dentes.
Não pensou um só instante naqueles desconhecidos nem em regras de cortesia. Viu apenas que seu tio ainda tinha os ossos cobertos de carne. O tio esgazeou os olhos e levantou as mãos ao céu.
Comida!exclamou ele. Se visses a minha casa! Nem mesmo um pardal poderia encontrar ali uma migalha. Lembras-te de minha mulher? como era forte? como tinha uma pele gorda e lustrosa? Pois agora parece um vestido pendurado num pau... está reduzida a ossos que estalam debaixo da pele. Dos nossos filhos, só restam quatro... os três pequenos... morreram... morreram... e quanto a mim, estou o que vês!
Pegou na ponta de uma das mangas da túnica, e, cuidadosamente, limpou os cantos dos olhos.
O senhor comeu!repetiu Wang Lung, sombriamente.
Não fiz outra coisa senão pensar em ti e no teu pai, que é meu irmão replicou o tio com vivacidade e vou dar-te a prova. Logo que pude, pedi emprestado um pouco de comida a estes bons homens, prometendo-lhes que, depois de restauradas as minhas forças, os auxiliaria na compra de terrenos, em volta da nossa aldeia. E pensei, em primeiro lugar, na tua boa terra, em. ti, filho de meu irmão. Eles vieram para comprar as tuas terras e dar-te dinheiro... alimento... vida!
Acabando de dizer isto, o tio recuou e cruzou os braços, agitando majestosamente as suas roupas esfarrapadas e sujas.
Wang Lung não se mexeu. Ficou sentado e nem se deu ao trabalho de saudar os visitantes. Mas levantou a cabeça para os ver e notou que eram, de facto, pessoas da cidade, vestidas com longas túnicas de seda, sujas. As suas mãos estavam cuidadas e as unhas compridas. Tinham o aspecto de quem comia; e o sangue corria-lhes rapidamente nas veias. Repentinamente, sentiu imenso ódio por eles. Aqueles homens da cidade, que haviam bebido e comido, estavam ali ao lado dele, cujos filhos morriam de fome e comiam a própria terra dos campos: ali estavam eles, unidos, para abusar do seu desespero arrancando-lhe a terra. Lançou-lhes um olhar sombrio com os seus olhos profundamente cavados, a brilhar no rosto ossudo e escaveirado.
Não quero vender a minha terra!disse ele.
O tio deu um passo em frente. Naquele momento, o mais novo dos dois filhos de Wang Lung veio gatinhando até à porta. Desde que enfraquecera, naqueles últimos dias, o pequeno voltara a andar de gatas como fazia quando era mais novo.
É o teu filho?gritou o tio o gorducho a quem. dei, no Verão passado, uma moeda de cobre?
Todos olharam para a criança e Wang Lung, que durante todo aquele tempo se contivera, começou a chorar silenciosamente. Os soluços apertavam-lhe dolorosamente a garganta e as lágrimas rolavam-lhe pelas faces.
Qual é o vosso preço?murmurou, por fim.
Tinha que alimentar aquelas três crianças... as crianças e o velho. Ele e a mulher podiam cavar buracos no chão e deitar-se neles para dormir. Mas tinham que pensar nos outros.
Um dos homens da cidade tomou a palavra, um homem que tinha um olho vasado, e disse, num tom hipócrita:
Meu pobre homem, dar-lhe-emos, em atenção a este menino famélico, um preço melhor do que poderia esperar nestes tempos, em qualquer parte. Dar-lhe-emos... (Fez uma pausa, e continuou com voz rouca): dar-lhe-emos uma centena de pence por acre.
Wang Lung teve um sorriso amargo e exclamou:
Isso equivalia a dar-lhe as minhas terras de presente. Olhe eu pago vinte vezes mais quando compro terras!
Ah! mas não quando se compram a gente que morre de fome disse o segundo homem da cidade.
Era um sujeito pequeno e vivo, com um nariz em cutelo, mas a sua voz brotava inesperadamente volumosa e áspera.
Wang Lung fitou os três homens. Aqueles indivíduos estavam seguros de que o tinham nas mãos! Que não daria um homem para evitar que seus filhos e seu velho pai morressem de fome?
Sentiu o abatimento metamorfosear-se numa cólera louca como jamais sentira até então. Avançou, num salto, para aqueles homens, como um mastim que salta sobre o inimigo.
Nunca venderei a minha terra!bradou ele. Torrão a torrão, irei buscá-la para a dar a comer a meus filhos, e quando morrerem enterrá-los-ei na minha terra, e eu, minha mulher e meu velho pai, morreremos na terra que nos deu a vida!
Desatou em soluços, e a sua cólera desapareceu tão depressa como um sopro; continuava a tremer e a soluçar. Os homens ali ficaram com um sorriso leve, o tio de Wang entre eles, impassível. Era uma insensatez o que Wang Lung dissera e aguardavam que a cólera lhe passasse.
Inesperadamente, surgiu O-lan à porta e disse-lhes num tom calmo e monótono, como se todos os dias acontecessem coisas daquelas.
Não venderemos, de certo, as terras, pois quando regressarmos do Sul não teremos de onde tirar o alimento para nós. Venderemos a mesa, as duas camas, com a roupa, os quatro bancos e até mesmo o caldeirão da cozinha. Mas não venderemos os ancinhos, nem a enxada, nem o arado, nem a terra.
Havia na sua voz uma serenidade que se impunha mais do que a cólera de Wang Lung, e seu tio perguntou, duvidoso:
Vão, deveras, para o Sul?
Por fim, o zarolho segredou qualquer coisa aos outros; e, depois de cochicharem entre si, disse em voz alta:
São coisas miseráveis que só servem para combustível. Duas moedas de prata por tudo. É pegar ou largar.
E voltou as costas com desprezo. Mas O-lan respondeu tranquilamente :
É menos do que o valor de uma das camas, mas se tem o dinheiro aí, dê-mo depressa e leve os trastes.
O zarolho remexeu no cinto e deixou-lhe cair as moedas na mão estendida. Os três homens entraram em casa e dividiram entre si a mesa, os bancos e a cama do quarto de Wang Lung com a roupa e pegaram no caldeirão que estava na chaminé. Mas quando entraram no quarto do velho, o tio de Wang Lung ficou de fora. Não queria que seu irmão mais velho o visse, nem desejava estar ali quando arrancassem o velho do leito, para o deitarem no chão. Quando tudo acabou e na casa só ficaram os dois ancinhos, as duas enxadas e o arado, a um canto do quarto do meio, O-lan disse ao marido:
Vamos agora, enquanto temos as duas moedas de prata, porque acabaremos por ter que vender as vigas da nossa casa e não teremos, ao menos, um buraco onde nos metermos, quando voltarmos.
E Wang Lung respondeu tristemente:
Vamos!
Seguiu com a vista os vultos dos três homens que minguavam à medida que se afastavam através dos campos, e murmurou por várias vezes:
Pelo menos, fica-me a terra .. fica-me a terra...
NADA mais restava fazer senão fechar bem a porta e aplicar-lhe o cadeado de ferro. Levavam no corpo toda a roupa que possuíam. O-lan pôs na mão de cada filho uma tigela para e um par de pauzinhos. Os pequenos agarraram-nos avidamente arroz e levavam-nos bem apertados nas mãos, como uma promessa dos alimentos que haviam de vir. E assim partiram através dos campos. A patética caravana andava tão lentamente que parecia nunca mais chegar aos muros da cidade. Wang Lung levava ao colo a menina, mas vendo que o velho cambaleava, deu a menina a O-lan e, agachando-se ao pé do pai, levantou-o e pô-lo às costas, vacilando sob a carcassa do velho, seca e leve como uma pena. Passaram em completo silêncio diante do templozinho onde se abrigavam os dois pequenos deuses indiferentes, que nunca se aperceberam do que acontecia. Wang Lung suava de fraqueza, apesar do vento frio e penetrante. Esse vento não parava de lhes soprar no rosto e fustigá-los, a ponto de as crianças se queixarem de estar transidas. Mas Wang Lung encorajava-as dizendo:
Vocês já são dois homens grandes e estão viajando para o Sul. Ali faz calor e come-se todos os dias... arroz branquinho para todos nós, e poderão comer... poderão comer à vontade.
Por fim, descansando continuamente, alcançaram a porta das muralhas, e onde outrora Wang Lung encontrara deleitosa sombra, soprava agora, fazendo-o bater os dentes, uma rajada de vento que passava no túnel furiosamente, como uma corrente de água gelada entre falésias. Os pés enterravam-se-lhe numa lama espessa e fria que se eriçava em agulhas de gelo. Os pequenos não podiam andar e O-lan sucumbia com o peso da filha e do seu próprio corpo. Wang Lung, cambaleando, transpôs a muralha com o velho às costas. Depois de o ter posto no chão, voltou atrás, e, levando cada criança de sua vez, transportou-as para o outro lado do muro. Quando terminou este serviço o suor pingava-lhe do corpo como chuva, levando-lhe toda a energia, de modo que teve de encostar-se longo tempo à muralha húmida, de olhos fechados e ofegante, enquanto à sua volta a família esperava tiritando.
Chegaram defronte do portão da Casa Grande, que estava hermeticamente fechado, com as suas portas de ferro erguendo-se a toda a altura e os leões de pedra cinzenta de cada lado, roídos pelo vento. Nos degraus da entrada jaziam acocorados alguns vultos sujos de homens e mulheres que olhavam famintos para o portão fechado e trancado. Quando Wang Lung passou com o seu miserável cortejo, um deles gritou com voz angustiada:
O coração destes ricos é duro como o coração dos deuses. Ainda têm arroz para comer e do arroz que não comem ainda fazem álcool, enquanto nós estoiramos com fome.
E outro murmurou:
Oh! Se estas minhas mãos tivessem força por um instante, lançaria fogo aos portões e às salas e pátios, ainda que eu morresse no incêndio. Mil maldições sobre os pais que geraram os filhos de Hwang!
Mas Wang Lung nada disse e prosseguiram silenciosamente, na sua marcha para o Sul.
Quando atravessaram a cidade e saíram pelo lado sul, trajecto que fizeram tão lentamente que a tarde descia e era quase noite, encontraram uma multidão que seguia para o Sul. Wang Lung dispunha-se a procurar um canto da muralha onde pudesse dormir, melhor ou pior, com a família, quando se viu, de súbito, envolvido com os seus pela multidão e perguntou a um homem que o empurrava:
Para onde vai toda essa gente?
O homem respondeu:
Somos famintos e vamos apanhar o carro de fogo que nos conduzirá para o Sul. Sai além daquela casa e há carros para gente como nós, por um preço menor que uma moeda de prata.
Carros de fogo! Wang Lung ouvira falar deles. Na casa de chá tinha ele ouvido alguns homens referirem-se a esses veículos acorrentados uns aos outros e puxados, não por homens ou animais, mas por uma máquina que vomitava fogo e água, como um dragão. Prometera muitas vezes a si mesmo que num dia feriado iria vê-los, mas, com uma coisa e outra a fazer nos campos, nunca tivera tempo, porque morava ao norte da cidade. E depois, é preciso desconfiar sempre daquilo que se não conhece ou que não se compreende. Não convém a um homem saber mais do que é preciso para a sua vida quotidiana.
No entanto, voltou-se para a mulher e perguntou:
Vamos também no tal carro de fogo?
Afastaram um pouco o velho e as crianças da multidão que avançava e entreolharam-se inquietos e assustados. Naquele instante de espera, o velho caiu no chão e as crianças deitaram-se na areia, indiferentes ao perigo de serem pisadas. O-lan levava ainda a menina ao colo, mas a cabeça da criança pendia do seu braço e os olhos fechados davam-lhe tal aparência de morte que Wang Lung, esquecendo tudo o mais, gritou:
Então a pequena escrava já está morta? O-lan meneou a cabeça negativamente.
Ainda não. Respira ainda. Mas morrerá esta noite, e nós também, se não ...
E como se não pudesse dizer mais uma palavra voltou para ele o largo rosto lívido e descarnado. Wang Lung não respondeu mas pensava consigo mesmo que outro dia de marcha como aquele os mataria a todos antes do anoitecer. com um tom que procurava tornar alegre, disse:
A pé, meus filhos. E ajudem o avô a levantar-se. Vamos tomar o carro de fogo e ele nos conduzirá para o Sul, sem nos fatigarmos.
Mas talvez não tivessem feito um movimento se não surgissem das trevas, com um estrondo de trovão e um silvo semelhante à voz de um dragão, dois grandes olhos de fogo. Todos então se puseram a gritar e a correr. Impelidos para a frente na confusão e empurrados para cá e para lá. Wang Lung e os seus, agarrados desesperadamente uns aos outros, foram arrastados para a escuridão por uma portinhola aberta, e, sem saberem como, encontraram-se num quarto como uma caixa, que os guinchos e os gritos de inúmeras vozes enchiam. E então aquela coisa misteriosa para a qual tinham subido, com um ronco incessante, pôs-se a correr na escuridão, levando-os nas entranhas.
Wang Lung deu as duas moedas de prata para pagar cem milhas de viagem, e o empregado que lhe recebeu o dinheiro deu-lhe de troco um punhado de sapecas de cobre; e na primeira estação, quando um vendedor meteu pela janela da carruagem o seu tabuleiro de comidas, ele empregou algumas destas moedas em quatro pãezinhos e numa tigela de arroz-doce para a menina.
Tinham agora mais, de uma só vez, do que haviam comido durante muitos dias; e, embora estivessem famintos, quando sentiram a comida na boca perderam o apetite e foi necessária a persuasão para a fazerem engolir às crianças. Mas o velho chupava perseverantemente o seu pão, entre as gengivas desdentadas.
É preciso comertagarelava ele, muito familiarizado com todas as pessoas apinhadas à sua volta, enquanto o carro de fogo rolava roncando e balouçando. Não me importo de que o meu estúpido estômago se tenha tornado preguiçoso, depois de tantos dias sem trabalho. Tem que alimentar-se. Não estou para me deixar morrer, só porque ele não quer trabalhar.
E os homens riam com as graçolas deste velhote sorridente e encarquilhado, cujos ralos cabelos brancos se espalhavam pelo queixo.
Mas Wang Lung não gastou em comida todas as suas sapecas. Guardou as que pôde para comprar esteiras com que pudesse construir um abrigo para os seus, quando chegassem ao Sul. Havia no carro de fogo homens e mulheres que tinham estado no Sul em anos anteriores e outros que iam todos os anos para as ricas cidades do Sul trabalhar e mendigar, ganhando assim a vida. Wang Lung, quando se acostumou à novidade deste veículo e ao vertiginoso espectáculo da paisagem que se desenrolava através das janelas, pôs-se a escutar o que aqueles homens diziam. Falavam com a confiança do saber que se dirige a ignorantes:
Primeiro, deve comprar seis esteiras disse um, cujos lábios grossos pendiam como os de um camelo. Custa duas sapecas cada uma, se for esperto e não se deixar enganar como um campónio imbecil. Nesse caso custar-lhe-á três, o que é de mais, como eu bem sei. A mim não me enganam os homens das cidades do Sul, mesmo que sejam ricos.
Abanou a cabeça e olhou em redor, à espera de aplausos. Wang Lung escutava-o com avidez.
E depois?perguntou.
Estava agachado ao fundo da carruagem que era, afinal, apenas um compartimento de madeira, sem qualquer móvel onde alguém pudesse sentar-se e cheio de fendas por onde entravam o vento e a poeira, em turbilhão.
Depois replicou o homem, com mais autoridade ainda, elevando a voz para dominar o barulho das rodas de ferro, que roncavam por baixo dele, depois juntam as esteiras para fazer uma cabana e vão pedir esmola, tendo o cuidado de se lambuzarem de lama e de porcaria, para se tornarem dignos de lástima o mais possível.
Mas Wang Lung nunca havia pedido esmola a ninguém, em toda a sua vida, e não lhe agradava a perspectiva de ter de a pedir aos estranhos do Sul.
É preciso mendigar?inquiriu ele.
Ah! Decerto disse o homem de boca de camelo, mas só depois de estar satisfeita a tua fome. Essa gente do Sul tem tanto arroz que todas as manhãs podes ir a uma cozinha pública e, com uma moeda de cobre, comprar tanto arroz quanto caiba na tua barriga>Em seguida, podes mendigar confortàvelmente e comprar bolo de fava, couve e alho.
Wang Lung afastou-se um pouco dos outros, voltou-se para a parede e, às escondidas, com a mão metida no cinto, contou as moedas que ainda tinha. Havia bastante para comprar seis esteiras e um pouco de arroz para cada um dos seus; e ainda sobravam três moedas. Verificou, com prazer, que poderiam encetar nova vida. Mas a perspectiva de pegar numa tigela e pedir esmola a quem passava repugnava-lhe ainda. Estaria muito bem para o velho, para as crianças e mesmo para a mulher, mas ele tinha os dois braços válidos.
Não há lá trabalho em que ocupar os braços?perguntou de repente ao homem, voltando-se para ele.
Ora, trabalho!disse o homem com desprezo, cuspindo no chão. Pode puxar um riksha(1) amarelo, se quiser, suando o próprio sangue quando corre, para sentir depois esse mesmo suor
(1) Carrinho com duas rodas e dois varais, puxado por homens. (N. do T.)
como uma túnica de gelo nas costas, quando estiver parado à espera de um freguês. Eu prefiro pedir esmola!
E soltou uma praga violenta, de modo que Wang Lung não quis fazer-lhe mais perguntas.
Mas algum proveito tirara do que o homem disse, porque, quando o carro de fogo chegou ao seu destino e desembarcaram em terra estranha, Wang Lung já tinha formado o seu plano. Deixou o velho e as crianças junto do grande muro cinzento de uma casa que havia ali perto, encarregou a mulher de os vigiar, e foi comprar as esteiras, perguntando a um e a outro onde ficava o mercado. A princípio mal podia compreender o que lhe diziam, tão rápido e sacudido era o falar daquela gente do Sul, e muitas vezes, quando não entendiam as perguntas que lhes faziam, impacientavam-se tanto que aprendeu a não se dirigir ao primeiro que aparecia, mas a escolher as pessoas de aspecto agradável, porque aqueles sulistas tinham um temperamento exaltado e agastavam-se facilmente.
Encontrou, por fim, o mercador de esteiras, no extremo da cidade, e depondo sobre o balcão as moedas, como quem sabe o preço das mercadorias, levou o seu rolo de esteiras. Quando voltou ao lugar onde havia deixado os seus, as crianças receberam-no com gritos de alívio, e ele compreendeu que estavam amedrontadas naqueles sítios desconhecidos. Só o velho olhava para tudo com prazer e admiração, e murmurou para Wang Lung:
Vê como estão gordos estes meridionais, e como a pele deles é branca e lustrosa. Comem carne de porco todos os dias, sem dúvida.
Mas ninguém reparava em Wang Lung e na sua família. Homens iam e vinham pela grande estrada calcetada de pedras macias que conduzia à cidade, atarefados e atentos, sem desviarem os olhos para os mendigos. De vez em quando passava uma caravana de jumentos, cujos pequenos cascos produziam um ruído seco sobre as pedras, carregados de cestos, com tijolos para a construção de casas, e de grandes sacos com cereais que balouçavam atravessados no lombo. Atrás de cada caravana, montado no último animal, seguia o arreeiro com um grande chicote que fazia estalar com um estrépido assustador, por cima dos animais, gritando-lhes ao mesmo tempo. Quando passavam diante de Wang Lung, os arreeiros lançavam-lhe um olhar altivo e desdenhoso. Nem um príncipe olharia com mais desdém do que aqueles arreeiros, vestidos com grossas roupas de trabalho, ao passarem diante do pequeno grupo, parado e de boca aberta na berma da estrada. E todos sentiam um maligno prazer, ao verem pelo aspecto de Wang Lung e da família que eram estrangeiros, em estalar os chicotes ao passar por eles e fazê-los saltar de susto, para se rirem depois às gargalhadas. Wang Lung indignou-se umas duas ou três vezes quando isso aconteceu e tratou de procurar um sítio onde pudesse armar a sua cabana.
Havia já outras cabanas ao longo do muro que ficava atrás deles, mas ninguém sabia o que estava para além desse muro, nem havia meio de sabê-lo. Era um muro cinzento e muito alto que se estendia até muito longe, e as pequenas cabanas de esteiras prendiam-se-lhe na base, como moscas no dorso de um cachorro. Wang Lung, tomando o modelo das cabanas, começou a fazer a sua, mas as esteiras duras e desajeitadas, feitas de ripas de junco, não tomavam a forma devida. Começava a desesperar-se quando O-lan lhe disse, de repente:
Eu sei fazer isso. Aprendi quando era pequena.
Pôs a menina no chão, ajustou as esteiras como devia ser, formando um tecto arredondado, baixo, mas de altura suficiente para um homem sentado não tocar com a cabeça nele, e, sobre as pontas das esteiras que tocavam o chão, assentou tijolos que encontrou por ali e mandou as crianças apanhar mais. Quando acabou o serviço, entraram todos na cabana, e de uma esteira que poupara fizeram uma espécie de soalho sobre o qual se sentaram. Estavam abrigados.
Vendo-se instalados assim, quase lhes parecia impossível terem deixado a sua casa e a sua terra e estarem, agora, afastados cem milhas. Para percorrerem esta distância a pé teriam gasto semanas de caminhada, e possivelmente alguns deles teriam morrido antes de chegar ao termo.
Depois, o sentimento geral de abundância naquela rica terra, onde ninguém parecia ter fome, confortava-os; e quando Wang Lung disse:«Vamos à procura de cozinhas públicas»todos se levantaram quase alegres e saíram. Agora, porém, os garotos, enquanto caminhavam, iam tamborilando com os pauzinhos nas tigelas, regozijando-se porque em breve teriam alguma coisa para lhes deitar dentro. Não tardaram em saber porque as cabanas eram construídas ao longo daquela parede. A pequena distância, para além do seu extremo norte, havia uma rua, e por aquela rua passava muita gente levando tigelas, tachos e púcaros de lata, todos vazios. Toda aquela gente seguia para as cozinhas dos pobres, situadas no fim da rua, não longe dali, de modo que Wang Lung e a família misturaram-se com os outros e com eles chegaram, por fim, a dois grandes alpendres de esteiras onde a multidão se engolfava pela extremidade aberta.
Ao fundo de cada alpendre havia fornalhas de barro, enormes, como Wang Lung nunca vira, e sobre elas aqueciam caldeirões de ferro tão grandes como pequenos tanques. E quando levantavam as grandes tampas de madeira via-se o bom arroz branco a ferver em cachão, desprendendo nuvens de vapor perfumado. Quando aspiraram o cheiro daquele arroz, que era para o seu olfacto o mais suave do mundo, toda aquela gente esfomeada avançou em massa. Uns discutiam, as mães vociferavam, coléricas e receosas de que seus filhos fossem esmagados, as criancinhas choravam, e os cozinheiros, que destapavam os caldeirões, berravam:
Eh, gente! Calma! Chega para todos! Cada um por sua vez!
Mas nada conseguia deter a multidão de famintos, homens e mulheres, que lutavam como animais ferozes para serem servidos em primeiro lugar. Wang Lung, arrastado com eles, não podia fazer mais do que agarrar-se a seu pai e aos dois filhos, e, quando a avalancha o arrastou até ao pé do grande caldeirão, estendeu a sua tigela; depois de cheia, entregou o dinheiro e empregou todos os esforços para se manter ali firme e não ser arrastado, antes de conseguir o que queria.
Depois, quando voltaram novamente para a rua, pararam a comer o arroz, e Wang Lung, já satisfeito, deixara um pedacito na tigela. Disse então:
Levarei este resto para comer em casa, de tarde.
Mas um homem que estava ali perto, com um uniforme azul e vermelho, espécie de guarda do lugar, disse-lhe asperamente:
Não, não pode levar nada, a não ser o que tem na barriga.
Admirado, Wang Lung perguntou:
Mas se eu o paguei com o meu dinheiro, que tem o senhor que ver se eu levo o arroz dentro de mim ou fora?
O homem respondeu então:
Tivemos de tomar esta medida porque há gente cujo coração é tão duro que vinha comprar este arroz, que é dado aos pobres (por uma moeda não arranjariam em qualquer parte esta porção) e levava-o para o dar de comer aos porcos, como varredura. O arroz é para homens e não para porcos.
Wang Lung ouviu isto, espantado, e exclamou:
Haverá homens assim tão duros?E acrescentou:Porque se dá assim arroz aos pobres, e quem o dá?
O homem respondeu:
Os ricos e a nobreza da cidade. Uns fazem-no para contarem uma boa acção e alcançarem benefícios no céu, salvando vidas, e outros fazem-no por ostentação, para que se diga bem deles.
Qualquer que seja o motivo, é uma boa acção disse Wang Lung e alguns devem praticá-la por terem bom coração.
Vendo que o homem não lhe respondia, acrescentou em defesa própria:
Pelo menos, haverá alguns neste caso.
Mas o homem, cansado de falar com ele, voltou-lhe as costas e afastou-se a cantarolar uma canção em voga. As crianças rodearam então Wang Lung, que as conduziu à choupana que tinham construído. Ali se deitaram e dormiram até à manhã seguinte, pois era a primeira vez, desde o Verão, que se haviam enchido de comida. O sono apoderou-se totalmente deles.
No dia seguinte, era a preciso arranjar mais dinheiro, porque haviam gasto a última sapeca a comprar arroz, de manhã. Wang Lung olhou para O-lan, sem saber o que havia de fazer. Mas não era com o desespero com que olhara para ela em presença dos seus campos estéreis e desolados. Aqui, entre esta gente bem alimentada que perconia as ruas, com os mercados fornecidos de carne e de legumes, com peixes a nadar nos viveiros do mercado, não era possível decerto que um homem e os filhos morressem de fome. Não era como na sua região, onde nem mesmo com a prata podia comprar alimentos, porque não havia nenhuns. E O-lan respondeu-lhe tranquilamente, como se fora aquela a vida que sempre conhecera:
Eu e os petizes podemos pedir esmola. O velho também. Seus cabelos grisalhos talvez comovam muitos que a mim não dariam nada.
Chamou os dois pequenos que, crianças como eram, andavam na rua a ver o que se passava, não pensando em mais nada a não ser que tinham de novo comida e estavam num lugar desconhecido, dizendo-lhes:
Cada um vai buscar a sua tigela, pega-lhe assim e grita desta maneira...
Pegou numa tigela vazia e estendeu-a, dizendo lastimosamente :
Tenha compaixão, meu bom senhor... tenha compaixão, minha boa senhora! Tenha caridade... pratique uma boa acção para ser recompensada no céu! Uma moedinha... a sapeca de cobre que me der... vai matar a fome a uma criança faminta!
Os pequenos esgazearam os olhos admirados, e Wang Lung também. Onde aprendera ela a pedinchar daquela forma? Que haveria ainda mais, naquela mulher, de desconhecido para ele? Ela respondeu ao seu olhar dizendo:
Assim é que eu pedia esmola quando era pequena, e assim consegui alimentar-me. Foi num ano como este que me venderam como escrava.
O velho, que estivera dormindo, acordou então, e deram-lhe uma tigela. Saíram os quatro para a estrada, a mendigar. A mulher começou a lamuriar a sua melopeia, estendendo a tigela a quem passava. Pusera sobre o seio nu a menina adormecida, com a cabeça a bambolear ao ritmo da sua marcha, enquanto ela corria para um lado e para outro de tigela estendida na mão. Apontava para a menina, ao pedir, e lamuriava bem alto:
Se me não dá uma esmola, meu bom senhor... minha boa senhora... esta criança morre... estamos famintos... estamos famintos!...
E, de facto, a criança parecia morta, com a cabeça balançando para um lado e para outro, e muita gente dava-lhe de má vontade uma sapeca de cobre.
Mas os garotos, depois de algum tempo, começaram a considerar a mendicidade como brincadeira, e o mais velho chacoteava sorrateiramente quando pedia. Percebendo isto, a mãe arrastou-os para a cabana e deu-lhes um par de bofetadas, ralhando indignada:
Ah, então é assim? Dizem que estão mortos de fome e ao mesmo tempo riem! Seus idiotas! Morram de fome então!
E bateu-lhes mais, até ficar com as mãos a doerem e os garotos debulhados em pranto. Mandou-os de novo pedir esmola, dizendo-lhes:
Agora estão em condições de esmolar? E apanham mais se voltam a rir!
Quanto a Wang Lung, vagueou pelas ruas e, perguntando aqui e além, acabou por descobrir um lugar onde havia rikshas para alugar. Entrou e alugou um por um dia, pelo preço de meia moeda de prata, a pagar à noite, e saiu de novo para a rua puxando o carrinho.
Parecia-lhe que toda a gente devia tomá-lo por um louco ao vê-lo puxar aquela carripana de madeira que balouçava sobre duas rodas. Sentia-se tão embaraçado entre os varais como um boi jungido pela primeira vez ao arado, e mal podia andar; mas precisava de correr, se queria ganhar a vida, pois aqui e ali, por toda a parte, nas ruas daquela cidade, corriam homens puxando outros, em carrinhos como aquele. Dirigiu-se a uma estreita rua lateral, onde em vez de lojas somente havia portas fechadas de casas particulares, e ali andou de uma banda para a outra, durante algum tempo, para se habituar. Estava já descoroçoado e pensava que melhor seria pedir esmola, quando se abriu uma porta e um velho de óculos, vestido como um letrado, saiu e o chamou.
Wang Lung começou a explicar-lhe que era demasiado novato no ofício, mas o velho era surdo, pois não ouviu nada do que ele lhe disse e acenou-lhe tranquilamente para que baixasse os varais a fim de ele poder subir. Wang Lung obedeceu, não sabendo como esquivar-se e sentindo-se desconcertado pela surdez do velho e pela sua aparência senhorial. Logo que se sentou, o velho disse:
Leve-me ao templo de Confúcio.
E ficou inflexível e calmo; e a sua calma era tão imponente que não admitia réplica; Wang Lung pôs-se a caminho, como via os outros fazerem, embora não tivesse a menor ideia do sítio em que ficava o templo de Confúcio.
Mas à medida que avançava ia-se informando e, como tinha de passar por ruas apinhadas de gente, com vendedores que iam e vinham com os seus cabazes, mulheres que se dirigiam ao mercado, carruagens puxadas por cavalos e muitos outros veículos como o que ele conduzia, numa tal barafunda, não havia possibilidade de correr. Andava, pois, tão depressa quanto podia, constantemente incomodado pelo balancear da carga que rebocava. Estava acostumado a conduzir cargas às costas, mas não a arrastá-las, e ainda não se avistavam as paredes do templo já tinha os braços doridos e as mãos cheias de bolhas, pois os varais roçavam em partes que a enxada não calejara.
Quando Wang Lung chegou às portas do templo, abaixou o carrinho e o velho letrado desceu: procurando nas profundezas das suas roupas internas, tirou uma moedinha de prata, que deu a Wang Lung, dizendo:
Aqui tem; não costumo pagar mais do que isto, e é inútil protestar.
E dito isto voltou as costas e entrou no templo.
Wang Lung não pensou em protestar, pois era a primeira vez que via uma moeda como aquela e não sabia quanto valia. Avistou perto uma venda de arroz, que era ao mesmo tempo casa de câmbio; ali entrou recebendo em troca da moeda de prata vinte e seis pence. Wang Lung maravilhou-se da facilidade com que se ganhava dinheiro no Sul. Mas outro condutor de riksha que estava perto, inclinou-se para o ver contar o dinheiro e disse-lhe:
Só vinte e seis? Que percurso fizeste com o velho?
Quando Wang lho disse, o homem exclamou:
Que avarento! Deu-te somente metade do que devia. Que preço tinhas combinado?
Não combinei preço respondeu Wang Lung. Ele disse-me: «Vamos», e eu parti.
O homem lançou um olhar de piedade a Wang Lung e disse para os assistentes:
Vejam este bronco saloio de rabicho! Alguém diz-lhe «siga», e ele vai, sem perguntar, este grandíssimo idiota, o preço da corrida! Fica sabendo, grande tolo, que só os estrangeiros brancos podem ser servidos sem ajuste. Têm um génio dos diabos, mas quando dizem: «siga!» podes ir confiado porque são tão estúpidos que não sabem o preço de nada, e deixam correr o dinheiro das algibeiras como água.
E os que ali estavam escutando puseram-se a rir.
Wang Lung não disse nada. Sentia-se, na verdade, muito humilde e ignorante entre a multidão da cidade, e levou o seu carro, sem responder uma palavra sequer.
Seja como for, isto chega para dar de comer amanhã a meus filhos disse ele consigo, obstinadamente; mas então lembrou-se de que tinha de pagar o aluguer do veículo naquela noite e não possuía ainda metade da quantia necessária.
Teve outro passageiro durante a manhã e com este combinou preço. À tarde mais dois o chamaram. Mas à noite, quando contou todo o dinheiro que tinha na mão, viu que ficava apenas com um penny, depois de pagar o aluguer do riksha. Voltou para a cabana todo amargurado, dizendo consigo que por um trabalho muito maior que o de um dia de ceifa ganhara apenas um penny de cobre. Então, a lembrança da terra acudiu-lhe de pronto. Não se lembrara dela durante aquele estranho dia, mas agora, a ideia de que ela ainda lá estava, bem longe, é certo, mas que o esperava a ele e aos seus, deu-lhe tranquilidade. E assim chegou à cabana.
Ao entrar, viu que O-lan obtivera com o peditório do dia quarenta sapecas, ou seja, menos que cinco pence; e, dos garotos, o mais velho recolhera oito e o pequeno treze sapecas. Tudo junto dava para pagar o arroz do dia seguinte. Mas quando quiseram juntar o dinheiro do mais novo ao dos outros, ele chorou tanto que tiveram de lho deixar ficar, e nessa noite ele dormiu com o dinheiro que recebera apertado na mão. Só na manhã seguinte consentiu em largá-lo para pagar a sua própria ração de arroz.
O velho é que não tinha arranjado nada. Passara o dia inteiro sentado à beira do caminho, obedientemente, mas sem mendigar. Dormia, acordava, observava com admiração o trânsito movimentado e, quando se cansou disto, voltou a adormecer. Como pertencia à velha geração, não podia ser repreendido. Quando reparou que tinha as mãos vazias, limitou-se a dizer:
Lavrei a terra, semeei o grão e fiz a colheita, e assim enchi de arroz a minha tigela. Além disso, gerei um filho que por sua vez gerou filhos.
E com uma confiança ingénua de criança, acreditava que não lhe faltaria comida, pois tinha um filho e netos.
ACALMADA a violência da fome, vendo Wang Lung que os filhos tinham diariamente alguma coisa para comer, que o seu trabalho e o peditório de O-lan davam o bastante para pagar a ração quotidiana de arroz, a estranheza da sua nova existência desapareceu e começou a compreender o que era aquela cidade, à margem da qual vivia. Correndo o dia inteiro pelas ruas, aprendeu a conhecer a cidade à sua maneira, e descobriu alguns dos segredos que ela lhe reservava. Aprendeu que, de manhã, a gente que conduzia no seu carro, se eram mulheres, iam ao mercado e, se eram homens, iam às escolas e às casas de negócio. Mas não tinha forma de saber o que eram essas escolas; sabia apenas que eram designadas por nomes como «Grande Escola do Saber Ocidental», ou «Grande Escola da China», pois nunca lhes transpunha os umbrais, certo de que, se o fizesse, alguém viria logo perguntar-lhe o que fazia ali e o poria fora. Não sabia melhor o que eram as casas de negócio a que conduzia os homens, visto que os passageiros lhe pagavam sem lhe dar explicações.
E de noite sabia que levava homens a grandes casas de chá e a centros de prazer, o prazer que se exibe e espalha até nas ruas, em sonoridades de música, e a casas onde se joga com fichas de marfim e de bambu, em mesas de madeira, bem como onde o prazer se esconde e se oculta por detrás de paredes silenciosas. Mas nenhum desses prazeres Wang Lung conhecia por experiência própria, pois os seus pés só transpunham o limiar da sua choupana e o seu percurso acabava sempre numa porta. Vivia naquela opulenta cidade tão estrangeiro como um rato em casa rica, alimentando-se dos restos que se lançam fora e escondendo-se aqui e ali, sem nunca tomar parte na verdadeira’vida da casa. O mesmo sucedia à mulher e aos filhos. Embora cem milhas sejam menos do que mil e a estrada terrestre esteja menos afastada que a estrada marítima, Wang Lung, sua mulher e filhos eram como estrangeiros naquela cidade do Sul. No entanto, era verdade que as pessoas que andavam pelas ruas tinham cabelos e olhos negros como Wang Lung e toda a sua família e todos os que haviam nascido na sua terra, como era verdade também que, embora com dificuldade, qualquer deles podia compreender a língua destes meridionais.
Mas a província de An-hoei não é a de Kiangsu. Em An-hoei, onde Wang Lung nascera, a pronúncia é lenta e gutural.
E na cidade de Kiangsu, onde agora moravam, o povo falava destacando as sílabas com os lábios e a ponta da língua. E ao passo que os campos de Wang Lung produziam lenta e facilmente duas colheitas por ano, de trigo, de arroz, de um pouco de milho, feijão e alho, aqui, nas fazendas que rodeavam a cidade, os homens estimulavam continuamente as suas terras com o estrume fétido de excrementos humanos, para as forçar a produzir este ou aquele legume, além do arroz.
Na região de Wang Lang, bastava a um homem ter um bolo de farinha de trigo, enrolado à volta de uma haste de alho, para fazer uma boa refeição e não precisava de mais nada. Mas aqui as pessoas regalavam-se com almôndegas de carne de porco, rebentos de bambu, castanhas guisadas com miúdos de pato e de frango, e uma variedade enorme de legumes, de modo que quando um homem de bem, ao passar por alguém, sentia o cheiro do alho que ele tinha comido no dia anterior, levantava o nariz com desprezo e gritava:«Como cheira mal este nordista de rabicho!» Nas lojas, os mercadores de panos, quando percebiam o cheiro a alho, subiam os preços do algodão azul, como os subiriam para os estrangeiros.
Por isso a aldeola de cabanas colada ao muro nunca se integrou na cidade, nem no campo que se estendia para além. Um dia, Wang Lung ouviu um rapaz discursando ao povo, numa esquina do templo de Confúcio, onde qualquer pessoa que tivesse coragem de falar em público podia fazê-lo, e quando o rapaz afirmou que a China devia fazer uma revolução e sublevar-se contra os odiados estrangeiros, ele teve medo e esgueirou-se, convencido de que era um dos estrangeiros contra os quais o rapaz falava com tanta veemência. Noutro dia, ouviu outro jovem falando a cidade estava cheia de jovens oradores à esquina de uma rua, e quando ele disse que o povo da China devia unir-se e educar-se, não ocorreu a Wang Lung que aquilo pudesse dizer-lhe respeito.
Foi só em certa ocasião, quando vagueava pela rua do mercado de seda, à espera de um passageiro, que reconheceu que havia gente mais estrangeira do que ele naquela cidade. Aconteceu-lhe nesse dia passar diante da porta de uma loja, de onde às vezes saíam senhoras, que ali iam comprar sedas, entre as quais encontrava muitas vezes uma freguesa que lhe pagava melhor. Naquele dia, porém, saiu precipitadamente da loja uma pessoa como ele nunca tinha visto. Não sabia se era homem ou mulher, mas era alta e vestia uma túnica apertada, de um tecido áspero e duro, tendo em volta do pescoço uma pele de animal.
Quando ele passou, a tal pessoa, homem ou mulher, fez-lhe sinal para baixar os varais do carrinho. Obedeceu, e quando os levantou de novo, surpreendido com o que via, o estranho ordenou-lhe, numa linguagem ininteligível, que o conduzisse à rua das Pontes. Começou a correr velozmente, quase sem saber o que fazia, e ao passar junto de um companheiro que conhecia casualmente, perguntou-lhe:
Repara para o meu freguês... Que é isto que estou transportando ?
O homem respondeu-lhe:
Uma estrangeira... uma mulher da América... Tens sorte... vai pagar-te bem.
Mas Wang Lung corria tão depressa quanto lhe era possível, com medo da estranha criatura que levava, e, quando alcançou a rua das Pontes, estava exausto e alagado de suor.
Aquela mulher desceu então, e disse-lhe na mesma linguagem incorrecta:
Não havia necessidade de correr dessa maneira.
E meteu-lhe na mão duas moedas de prata, o dobro do preço habitual.
Então Wang Lung compreendeu que aquela mulher era, na verdade, estrangeira, mais estrangeira do que ele naquela cidade e que, afinal de contas, há pessoas de cabelos pretos e olhos pretos, e outras de cabelos louros e olhos azuis; e, depois disto, sentiu-se menos estrangeiro naquela cidade.
Quando à noite regressou à sua cabana, com o dinheiro ainda intacto, contou a história a O-lan e ela disse-lhe:
Já as conheço. Peço-lhes sempre esmola porque são as únicas que preferem deitar prata, em vez de cobre, na minha tigela.
Mas nem Wang Lung nem a mulher percebiam que, se os estrangeiros lhes davam prata, não era por bondade mas por ignorância, por não saberem que é mais correcto dar cobre aos mendigos do que prata.
No entanto, graças a esta aventura, Wang Lung aprendeu o que os jovens discursadores ainda lhe não tinham ensinado: que ele era da sua raça, que tinha cabelos e olhos pretos como eles.
Agarrados às abas da grande cidade, voluptuosa e opulenta, Parecia-lhes que, pelo menos, nunca lhes faltaria comida. Wang Lung e sua família tinham vindo de uma região onde se morria de fome, porque os víveres faltavam e a terra não podia frutificar sob um céu inclemente. Mesmo com dinheiro, nada podia comprar-se onde nada havia que comprar.
Ali, naquela cidade, havia comida por toda a parte. Nas ruas calcetadas do mercado de peixe alinhavam-se grandes canastras de enormes peixes prateados, pescados na noite anterior, no rio piscoso; e havia também aquários com peixinhos reluzentes, apanhados à rede, nos viveiros; montes de caranguejos amarelos, trepando uns sobre os outros com as tenazes, num frenético assombro; e sinuosas enguias para as mesas requintadas. No mercado de cereais havia cestos tão grandes que um homem podia meter-se neles e submergir-se entre os grãos, e só quem visse poderia sabê-lo; arroz branco e arroz pardo, trigo amarelo-escuro e amarelo-claro, feijão vermelho e favas verdes, milho cor de canário e gergelim cinzento. Nos mercados de carne, porcos inteiros, pendurados pelo pescoço, abertos de cima abaixo, com a pele macia, mas grossa e branca, mostravam a carne vermelha e as mantas de saboroso toucinho. No mercado de patos pendiam dos tectos e das portas, alinhando-se em filas compactas, patos dourados lentamente, num espeto, sobre as brasas, brancos patos salgados e réstias de miúdos. O mesmo se via nas lojas em que se vendiam gansos, faisões e toda a espécie de aves.
Quanto a legumes, havia de tudo que a mão do homem pode arrancar do solo: brilhantes rábanos brancos e vermelhos; ocas raízes de loto e de taro, verdes couves e aipo, olhos de favas, morenas castanhas e molhos de fragrantes agriões. Nas ruas dos mercadores daquela cidade não faltava nada que o apetite humano pudesse desejar. E, andando de um lado para o outro, viam-se os vendedores de doces, frutas, castanhas, de quentes filhós de batata doce, fritas em azeite doce, pequenas almôndegas de carne de porco, delicadamente temperadas, envoltas em farinha, e bolos de açúcar feitos com sêmola de arroz. As crianças da cidade corriam ao encontro dos vendedores para comprar aquelas gulodices, com as mãos cheias de moedas de cobre, e comiam-nas ficando com a cara lambuzada de açúcar e de azeite.
Sim, bem podia dizer-se que naquela cidade ninguém morreria de fome.
Porém, todas as manhãs, um pouco depois de nascer o Sol, Wang Lung e os seus saíam da cabana com as tigelas e os pauzinhos, formavam um pequeno grupo na longa procissão de gente que saía das suas cabanas, a tiritar de frio com as roupas demasiado ligeiras para a neblina húmida do rio, e dirigiam-se curvados, sob o sopro glacial do vento da manhã, para as cozinhas públicas, onde, por um penny, podia comprar-se uma tigelinha de papas de arroz. E por mais que Wang Lung corresse abaixo e acima, puxando o riksha, e O-lan mendigasse, nunca podiam ganhar o bastante para cozinhar arroz todos os dias na sua própria cabana. Se lhes sobrava um penny, depois de pagarem o arroz nas cozinhas dos pobres, compravam um pouco de couve. Mas a couve saía-lhes cara, qualquer que fosse o preço, porque os dois garotos tinham que arranjar lenha para a cozer sobre as duas pedras que O-lan dispusera, à maneira de fornalha; e essa lenha tinham de arrancá-la aos punhados, como podiam, dos carros dos camponeses que conduziam feixes de junco e de mato para os mercados de lenha da cidade. Às vezes, as crianças eram surpreendidas e esbofeteadas duramente, e, certa noite, o mais velho, mais tímido que o outro e que se envergonhava mais com o que fazia, voltou com um olho inchado e negro de um sopapo que lhe dera um lavrador. O mais moço, porém, tornara-se hábil e até com mais jeito para o roubo do que para a mendicidade.
Isto não tinha importância para O-lan. Se os garotos não eram capazes de pedir esmola sem rir e brincar, que roubassem, então, para encherem a barriga. Mas Wang Lung, embora não soubesse que responder-lhe, sentia ferver o sangue perante os latrocínios dos filhos, e não repreendia o mais velho por ser inábil no negócio. Aquela vida à sombra da grande muralha não era a que Wang Lung desejava. A sua terra lá estava à espera dele.
Uma noite em que regressou tarde, viu na sopa de couve um grande naco de carne de porco. Era a primeira vez que tinham carne para comer desde que haviam matado o boi, e Wang Lung arregalou os olhos.
Com certeza pediste esmola hoje a algum estrangeiro disse ele a O-lan.
Mas ela, como de costume, não disse nada. Então, o mais moço dos dois garotos, demasiado criança para saber calar-se e orgulhoso com a sua proeza, declarou:
Fui eu que a arranjei... essa carne fui eu que a trouxe. Enquanto o homem do talho se voltou, depois de a ter cortado de um pedaço grande, em cima do balcão, meti-me por baixo do braço de uma velha, que viera comprá-la, agarrei-a e escapuli-me para um beco, onde me escondi num tonel vazio que havia atrás de uma porta, à espera do mano.
Pois eu não comerei dessa carne!exclamou Wang Lung, colérico. Devemos comer a carne que pudermos comprar ou mendigar, mas não carne roubada. Podemos ser mendigos, mas ladrões, nunca!
com o polegar e o indicador tirou a carne da panela e atirou-a ao chão, sem fazer caso do berreiro do garoto.
O-lan aproximou-se então, e, com o seu ar resignado, apanhou a carne, lavou-a num pouco de água e deitou-a de novo na panela, a ferver.
Carne é carnedisse ela, tranquilamente.
Wang Lung não disse nada nesse momento, mas estava indignado e horrorizado por ver que seus filhos se estavam tornando ladrões naquela cidade. E embora não proferisse palavra, quando O-lan repartiu com os pauzinhos a carne tenra e bem cozida e deu grandes pedaços dela ao velho e às crianças, encheu a boca à menina, e comeu também, ele recusou-se a tocar-lhe, contentando-se com a couve que comprara. Mas depois da refeição levou o filho mais novo para um sítio onde sua mãe não pudesse ouvi-lo, e ali, atrás de uma casa, meteu-lhe a cabeça debaixo do braço e bateu-lhe a valer, sem fazer caso dos seus berros.
Toma, toma, toma!gritava ele. Isto é para não seres ladrão!
Mas a si mesmo dizia, quando deixou a criança voltar choramingando para casa:
Precisamos absolutamente de voltar para a nossa terra.
SOB a opulência daquela cidade, Wang Lung viveu, dias e dias, nos alicerces de miséria sobre os quais ela assentava, apesar
dos víveres que abarrotavam os mercados e das ruas de armazéns de seda, em cujas portas flutuavam ao vento bandeirolas coloridas de seda preta, vermelha e alaranjada, anunciando as mercadorias; apesar dos ricaços, vestidos de cetim e de veludo, de pele macia coberta de trajos de seda e de mãos finas e perfumadas como flores de ociosa beleza; apesar de tudo o que contribuía para realçar o esplendor da cidade, não havia, entretanto, naquele sítio em que morava Wang Lung, alimento bastante para saciar a sua fome selvagem, nem roupas suficientes para lhe cobrir os ossos.
Havia homens que trabalhavam o dia inteiro a fazer pães e bolos para as mesas dos ricos e crianças que os auxiliavam, de manhã à noite, e se deitavam, engorduradas e sujas, sobre duas enxergas estendidas no chão, para voltarem aos fornos no dia seguinte, vacilantes de cansaço, sem ganharem o bastante para poderem comprar um pedaço daqueles pães de luxo que fabricavam para os outros. Homens e mulheres trabalhavam no corte e confecção de pesados abafos para o Inverno, de macios e leves tecidos para a Primavera e de espessos brocados de seda que se convertiam em sumptuosas roupas para os que comiam aquela abundância dos mercados, mas para si arranjavam um retalho grosseiro de algodão azul, cosendo-o à pressa para cobrir a nudez. Wang Lung, vivendo no meio daqueles que trabalham para regalo dos outros, ouvia frequentemente coisas estranhas, a que prestava pouca atenção. Era verdade que os mais velhos, homens e mulheres, pouco falavam. Homens de barbas grisalhas puxavam rikshas, vagonetas de carvão e lenha para os fornos e palácios, forçando os músculos que se retesavam como cordas, ao puxarem ou empurrarem pesadas carroças de mercadoria pelas ruas calcetadas e comiam frugalmente o seu escasso alimento, dormiam poucas horas em cada noite e calavam-se. Os seus rostos eram como os de O-lan, inexpressivos e mudos. Ninguém sabia o que eles pensavam. Se diziam alguma coisa era a respeito de comida ou de dinheiio. Raramente a palavra prata lhes acudia aos lábios, porque era raro terem prata nas suas mãos.
Os seus rostos em repouso pareciam crispados pela cólera, mas não era de cólera. Eram os anos de esforço violento, sob fardos demasiado pesados para eles, que lhes tinham arreganhado os lábios superiores, dando-lhes esta aparência de ricto colérico, em que os dentes ficavam a descoberto, e lhes tinham cavado fundos sulcos em torno dos olhos e da boca. Eles próprios não faziam ideia do seu aspecto físico. Um deles, certa vez, vendo-se reflectido num espelho que passava sobre uma carroça de mudanças, gritara:
Como é feio aquele tipo!
Quando os outros desataram às gargalhadas, sorriu, vexado, sem saber por que motivo eles riam, olhando rapidamente em redor para ver se tinha ofendido alguém.
Nas pequenas choças em que viviam, em torno da choça de Wang Lung, amontoadas, as mulheres remendavam trapos para cobrir as crianças que davam à luz incessantemente, furtavam alguma couve nas hortas vizinhas, roubavam punhados de arroz nos mercados de cereais e todo o ano respigavam ervas nas colinas. Na época das colheitas, seguiam os ceifeiros como galinhas, com os olhos vivos e penetrantes à espreita dos grãos e espigas que caíam no chão. E por aquelas choças era um desfilar contínuo de crianças; nasciam, morriam, outras tornavam a nascer e tornavam a morrer, a ponto de nem o pai nem a mãe saberem quantas tinham nascido ou morrido, e mal sabiam até quantas estavam vivas, pois só viam nelas bocas a alimentar.
Aqueles homens, aquelas mulheres e aquelas crianças entravam e saíam dos mercados e das lojas de panos, andavam pelos campos que cercavam a cidade, os homens trabalhando nisto ou naquilo, em troca de umas escassas moedas, e as mulheres e as crianças furtando, esmolando, pilhando. E Wang Lung, a mulher e os filhos, viviam entre eles.
Os velhos aceitavam aquela vida. Mas os adolescentes, chegados à idade em que a infância já passou e a velhice ainda vem longe, enchiam-se de descontentamento. Os jovens trocavam palavras de indignação e de cólera. Mais tarde, quando homens feitos e casados, os encargos de uma família sempre aumentada enchiam-lhes o coração de desânimo; a cólera dissipada da sua juventude concentrava-se num feroz desespero e numa revolta demasiado profunda para se diluir em palavras, porque durante toda a sua vida trabalhavam mais duramente que animais, para ganhar apenas um punhado de restos para encher a barriga. Ouvindo uma daquelas conversas, certa tarde, Wang Lung soube, pela primeira vez, o que se passava do outro lado da grande muralha contra a qual se agarravam as fileiras de choças.
Era ao morrer de um daqueles longos dias do fim do Inverno, quando já se pode crer no retorno da Primavera. O chão em volta das choupanas ainda estava enlameado pela neve fundida, e a água entrava dentro delas de modo que cada família tivera de sairÉ à procura de tijolos, para dormir em cima deles. Mas apesar do desconforto da terra molhada, havia no ar, naquela noite, certa suavidade que tornava Wang Lung excessivamente inquieto.! Não podendo dormir logo, como era seu costume, depois da ceia! foi até à esquina da rua e ali ficou, ociosamente.
Era naquele sítio que seu velho pai costumava ficar, de cócoras, apoiado à parede, e ali estava nesse momento com a tigela’ de comida na mão, pois a turbulência e a gritaria dos garotos na’ cabana não o deixavam cear tranquilo. O velho segurava na mão a ponta de uma tira de pano que O-lan rasgara do próprio cinto e com ela amparava os passos cambaleantes da neta sem a deixar cair. Assim passava ele os dias a cuidar da menina, que já não queria agora ficar ao colo da mãe, quando esta pedia esmola. Além disso, O-lan estava grávida de novo e a custo suportava o peso da pequena, já crescida, no seu colo.
Wang Lung ficou observando a menina que cambaleava, caía e tornava a levantar-se, e o velho que segurava as pontas da tira de pano. E enquanto ali estava sentiu no rosto a carícia da brisa vespertina, que lhe despertava na alma uma infinita saudade dos seus campos.
Num dia assimdisse ele ao pai, em voz alta é que os campos devem ser lavrados e o trigo semeado.
Ah!respondeu o velho, tranquilamente sei o que estás pensando. Quatro vezes na minha vida tive de fazer o que fizemos este ano: abandonar os campos e saber que não ficavam neles sementes para novas colheitas.
Mas o senhor sempre voltou, meu pai.
É que a terra ficava, meu filho disse o velho com simplicidade.
Pois bem, eles também regressariam, se não fosse naquele ano, ao menos no seguinte dizia consigo Wang Lung. Enquanto houvesse terra! E a lembrança de que ela lá estava esperando por ele, fértil com as chuvas da Primavera, enchia-o de esperança. Voltou para a choça e disse rudemente à mulher:
Se tivesse alguma coisa para vender, vendê-la-ia e voltaria para a nossa terra. Se não fosse o velho, faríamos o trajecto a pé, embora morrêssemos de fome. Mas como poderiam, ele e a pequenina, palmilhar uma centena de milhas? E tu, com a tua carga?
O-lan estava lavando as tigelas de arroz, acocorada, e, depois de as empilhar num canto da choupana, levantou os olhos para ele, e respondeu-lhe com lentidão:
Não há nada para vender a não ser a menina.
Wang Lung ficou atónito. Depois exclamou com veemência:
Não, não venderei a minha filha!
Eu também fui vendida respondeu ela, muito lentamente. Fui vendida a uma casa grande, para meus pais poderem voltar à sua terra.
E por isso terias coragem de vender a criança?
Se se tratasse só de mim, preferia matá-la a vendê-la... Escrava de escravas fui eu! Mas a morte de uma criança não produz nada. Sim, venderia essa pequena por tua causa... para que pudesses voltar para o teu campo.
Nunca o consentiria disse Wang Lung com vigor nem que tivesse de passar toda a minha vida nesta miséria.
Mas quando tornou a sair, aquele pensamento, que nunca lhe teria ocorrido espontaneamente, começou a tentá-lo, contra sua vontade. Olhou para a pequenita, que sapateava obstinadamente na ponta da laçada que o avô segurava. Tinha crescido bastante, graças ao alimento que lhe davam diariamente, e, embora não soubesse ainda falar, estava robusta quanto podia sê-lo uma criança com a qual não tinham grandes cuidados. Os seus lábios, que pareciam dantes os de uma velha, eram agora , vermelhos e sorridentes, e, como outrora, alegrava-se e sorria quando via o pai a olhar para ela.
«Talvez pudesse fazê-lo pensou ele se ela não tivesse repousado no meu peito e sorrido assim para mim.»
Então, pensou de novo na sua terra e exclamou arrebatadamente :
Não voltarei a vê-la! Por muito que se trabalhe e se mendigue, o dinheiro nunca chegará para mais do que para o pão de cada dia.
Então, do escuro, respondeu-lhe uma voz grave e forte: «Não és o único, camarada. Há milhares como tu, nesta cidade». O homem aproximou-se, fumando um curto cachimbo de bambu, e Wang Lung reconheceu o pai de uma família que morava na segunda choça à direita da sua.
Raramente o viam à luz do Sol, porque dormia de dia e trabalhava à noite, puxando pesados carros de mercadorias, grandes de mais para passarem pelas ruas quando o trânsito era maior. Mas algumas vezes Wang Lung vira-o voltar para casa, ao amanhecer, derreado e exausto, com os largos ombros musculosos caídos de fadiga. Wang Lung cruzava-se com ele de Manhãzinha, quando ia buscar o seu riksha, e algumas vezes ao anoitecer, antes do trabalho nocturno, o homem saía e ficava a conversar alguns momentos com os que se dispunham a voltar às suas choças, para dormir.
E nunca mais acabará?perguntou Wang Lung amargamente.
O homem tirou três fumaças do cachimbo e cuspiu no chão, dizendo:
Sim, camarada, isto há-de acabar um dia. Quando os ricos são demasiado ricos, há recursos, e quando os pobres são demasiado pobres, há recursos. No Inverno passado vendemos duas filhas e pudemos resistir a ele. Este ano, se a criança que minha mulher der à luz for rapariga, vendê-la-emos também. Só conservei uma escrava: a primeira. As outras, é melhor vendê-las que matá-las, embora haja quem prefira matá-las ao nascer. É este um dos recursos quando os pobres são muito pobres. Quando os ricos são muito ricos há também um recurso, e se não me engano esse recurso não tardará a chegar.
Meneou a cabeça e apontou com o cabo do cachimbo para a parede, atrás deles.
Já viste o que há do outro lado desta parede?
Wang Lung, de olhos arregalados, acenou que não. O homem continuou:
Levei lá uma das minhas escravas para a vender e vi muita coisa. Não acreditarias se te dissesse quanto dinheiro entra e sai daquela casa. Basta que diga isto: até os criados comem com pauzinhos de marfim de cabos de prata e as escravas usam jade e pérolas nas orelhas. Vi pérolas pregadas nos sapatos e quando qualquer deles tem uma mancha de barro ou uma esfoladela, que para mim ou para ti nada seria, deitam-nos fora, com pérolas e tudo!
O homem chupou o cachimbo com mais força e Wang Lung escutava, de boca aberta. Então, do outro lado da parede acontecia isso!?
Há um recurso quando os ricos são demasiado ricos repetiu o homem.
Ficou em silêncio alguns instantes e depois, como se nada tivesse dito, acrescentou indiferente: bom, tenho que ir trabalhare perdeu-se no escuro.
Mas Wang Lung não pôde dormir naquela noite, pensando na prata, no ouro e nas pérolas que abundavam do outro lado daquela parede contra a qual o seu corpo repousava, vestido com a roupa que usava de dia, porque não havia colcha para o cobrir e apenas uma esteira sobre tijolos, por baixo dele. Veio-lhe então de novo a tentação de vender a criança.
Talvez fosse melhor vendê-la a uma casa rica, para que pudesse comer manjares delicados e usar jóias, se tiver a sorte de se tornar bonita e agradar a um senhor.
Mas, mau grado seu, replicou a si próprio: bom, ainda que a vendesse, ela não vale tanto em ouro e rubis como pesa. Se desse o bastante para nos fazer voltar à nossa terra, como havia de arranjar o necessário para comprar de novo um boi, uma mesa, uma cama e uns bancos? Hei-de vender a minha filha para morrermos de fome lá, em vez de morrermos aqui? Nem sequer temos sementes para semear.
E não lograva compreender a que recurso se referia o seu vizinho, quando dizia:
Há um recurso quando os ricos são demasiado ricos.
A Primavera pôs em efervescência a aldeola de cabanas. A turba dos mendigos podia ir agora para as colinas e para os campos, em busca de tenras plantas verdes, dentes-de-leão e bolsas-de-pastor que lançavam timidamente as suas folhas novas, e já não era necessário furtar legumes aqui e ali. Um enxame de mulheres e de crianças maltrapilhas saía todos os dias das cabanas, munido de pedaços de lata, de pedras cortantes ou facas já velhas, e cestos de bambu trançado ou de ripas e varinhas de junco, e procurava nos campos e caminhos os alimentos que podia obter sem pedir nem pagar. Todos os dias O-lan saía com este enxame; O-lan e os dois garotos.
Mas os homens tinham de trabalhar, e Wang Lung trabalhava como dantes, embora os dias fossem mais longos e mais quentes, com chuvas inesperadas que enchiam todos de aspirações e de descontentamentos. No Inverno tinham trabalhado em silêncio, suportando estòicamente a neve e a geada, cujo frio penetrava nas suas sandálias de palha, regressando, à noite, para as suas cabanas e comendo, sem dizerem palavra, os alimentos que o labor do dia e as esmolas haviam produzido, caindo num sono pesado, homens, mulheres e crianças, promiscuamente, para suprir um pouco a insuficiência da alimentação, demasiado pobre e demasiado escassa para os aquecer. Assim acontecia na cabana de Wang Lung e ele sabia bem que devia acontecer o mesmo em todas as outras.
Mas com a chegada da Primavera, as palavras começaram a brotar dos seus corações e a subir-lhes aos lábios. Ao anoitecer, nos longos crepúsculos, agrupavam-se em frente das choças para conversar, e Wang Lung conheceu alguns daqueles homens que viviam perto de si e que durante o Inverno não chegara a conhecer. Se O-lan fosse mulher para ditos, já ele saberia, por exemplo, que um daqueles homens batia na mulher, que aqueloutro tinha lepra que lhe roía as faces e que outro deles era chefe de uma quadrilha de ladrões. Mas além das simples perguntas e respostas que fazia ou dava, nada mais dizia. Wang Lung conservava-se timidamente à beira do grupo, escutando a conversa.
A maior parte daqueles homens esfarrapados nada mais tinham além daquilo que ganhavam no trabalho diário e nas esmolas; e Wang Lung notava sempre que não era, na verdade, igual a eles. Era dono de uma terra e a sua terra esperava-o. Eles só pensavam como poderiam comer no dia seguinte um pedaço de peixe, ou descansar um bocado, ou até como poderiam arriscar ao jogo alguma coisa, um penny ou dois, visto que os seus dias eram igualmente maus e cheios de privações e um homem, embora desesperado, deve divertir-se, às vezes.
Mas Wang Lung pensava nas suas terras com o coração atormentado de esperanças impossíveis, imaginando como poderia regressar para lá. Ele não pertencia àquela escumalha que se agarrava às paredes da casa de um ricaço nem tão-pouco pertencia à casa do ricaço. Pertencia à sua terra e não podia saborear verdadeiramente a alegria de viver enquanto não sentisse a terra sob os pés, seguisse atrás de um arado, na Primavera, e levasse uma foice na mão durante as ceifas. Escutava, portanto, afastado dos outros, porque ocultava no seu coração a consciência de possuir aquela terra, a boa terra de trigo de seus pais, e a faixa de arrozal que comprara à Casa Grande.
Aqueles homens falavam sempre e continuamente de dinheiro: de quanto haviam pago por um metro de pano, por um peixe do tamanho de um dedo ou do que podiam ganhar por dia, e sempre, finalmente, do que fariam se tivessem o dinheiro que o homem de além-muro tinha nos seus cofres. Todos os dias a conversa acabava assim:
Se eu tivesse à minha disposição o ouro que ele possui e o dinheiro que traz diariamente no cinto, e as pérolas que as suas concubinas usam e os rubis com que se enfeita sua mulher...
E escutando o que eles fariam se possuíssem todas aquelas riquezas, Wang Lung só os ouvia falar de comer e de dormir desmesuradamente. Comeriam guloseimas que nunca tinham provado, jogariam nesta ou naquela casa de chá, e comprariam belas mulheres para o seu prazer. E, ’sobretudo, nenhum deles trabalharia mais, como não trabalhava o rico que vivia do lado de lá do muro.
Então Wang Lung exclamou, de repente:
Se eu tivesse o ouro, a prata e as jóias, compraria terra, boa terra de onde tirasse farta colheita!
Ouvindo isto, voltaram-se todos para ele, e encheram-no de sarcasmos:
Aqui está este bronco saloio de rabicho que nada entende da vida da cidade e do que se pode fazer com dinheiro. Continuaria trabalhando como um escravo, atrás de um boi ou de um jumento!
E cada um deles sentia que era mais digno de ter riquezas do que Wang Lung, porque sabia melhor como gastá-las.
Mas aquelas troças não modificaram a opinião de Wang Lung. Limitou-se a dizer consigo, em vez de o dizer em voz alta, para os outros ouvirem:
Apesar de tudo, converteria o ouro, a prata e as jóias em boas terras férteis.
E com este pensamento tornava-se cada dia mais impaciente por voltar à sua terra.
Obcecado constantemente por aquela ideia, Wang Lung via, como em sonho, as coisas que aconteciam em torno de si quotidianamente, na cidade. Aceitava tudo quanto havia de estranho sem perguntar o porquê e contentava-se com saber qual era o acontecimento do dia. Havia, por exemplo, uns papéis que certos homens distribuíam aqui e ali, e algumas vezes lhe davam também.
Ora Wang Lung nunca aprendera, nem na juventude nem mais tarde, o significado das letras traçadas no papel e não podia, portanto, decifrar aqueles sinais negros dos papéis afixados nas portas da cidade, nas paredes, vendidos aos punhados ou distribuídos gratuitamente. Duas vezes lhe haviam dado papéis daqueles.
Da primeira vez foi um estrangeiro da raça daquela mulher que ele transportara de má vontade, certo dia, no seu ríksha, mas a pessoa que lho deu era muito alta e tão delgada como uma árvore desfolhada pelos ventos agrestes do inverno. Tinha olhos de um azul glacial, o rosto peludo, e, quando deu o papel a Wang Lung, este viu que as suas mãos eram também cabeludas e avermelhadas. ”Tinha, além disso, um grande nariz que emergia das bochechas, como uma proa entre os flancos de um junco. Wang Lung, embora receoso de receber alguma coisa da sua mão, tinha mais receio ainda de recusar, vendo os estranhos olhos do homem e o seu terrível nariz. Aceitou, pois, o que lhe oferecia, e quando teve coragem de olhar para aquilo, depois do forasteiro se afastar, viu no papel o retrato de um homem de pele branca pendurado numa cruz de madeira. O homem estava nu, apenas com um pedaço de pano em torno dos rins e, segundo parecia, estava morto, porque a sua cabeça pendia sobre o ombro e tinha os olhos fechados, num rosto com barbas. Wang Lung olhava para o retrato do homem com horror, mas com crescente interesse.. Havia letras por baixo, mas ele não as podia decifrar.
Ao regressar à noite, levou o retrato para casa e mostrou-o ao velho. Mas ele também não sabia ler, e então puseram-se todos, Wang Lung, o velho e os pequenos, a discutir o possível significado daquilo. Os dois rapazotes gritavam, ao mesmo tempo com deleite e terror:
Olha como o sangue lhe corre!
E o velho disse:
com certeza era um homem muito ruim para estar assim dependurado.
Mas Wang Lung sentia-se receoso diante da imagem e perguntava a si próprio porque lha dera o estrangeiro. Quem sabe se seria um irmão do estrangeiro que fora assim tratado e por isso os outros irmãos procuravam vingar-se ?! Evitou, pois, desde então, a rua onde encontrara o homem e ao fim de alguns dias, quando já tinha esquecido o papel, O-lan pegou nele e coseu-o, com outros pedaços de papel, à sola de um sapato, para a reforçar.
De outra vez que um desses papéis chegou às mãos de Wang Lung, foi-lhe dado por um homem da cidade, um rapaz bem vestido, que falava muito alto enquanto ia distribuindo folhas de papel para um lado e para o outro, entre os grupos de curiosos que se formavam em redor de tudo quanto de novo e estranho ocorria na rua. Aquele papel tinha também uma figura de sangue e de morte, mas desta vez o morto não tinha a pele branca, nem barbas: era um homem semelhante a Wang Lung, um homem comum, amarelo, pequeno, de olhos e cabelos pretos, e vestido de um tecido azul esfarrapado. Sobre o morto via-se outro homem, forte e obeso, que lhe vibrava facadas com uma longa faca. Era um quadro horrível. Wang Lung contemplava-o desejando compreender as letras inscritas por baixo. Voltando-se para o homem que estava a seu lado, disse-lhe:
Conheces suficientemente as letras para poderes dizer-me o significado desta imagem horrível?
Mas o homem respondeu:
Cala a boca e escuta o jovem letrado; ele explica-nos tudo. Wang Lung, pôs-se a escutar e ouviu o que nunca tinha ouvido antes.
Esse homem morto é cada um de vós proclamava o jovem letrado e o assassino que vos apunhala quando já estais mortos e sem que o saibais, são os ricos e os capitalistas, que ainda depois de vos verem mortos vos apunhalariam de bom grado. Se sois pobres e oprimidos é porque os ricos se apoderam de tudo.
Ora Wang Lung sabia muito bem que até então tinha considerado o céu como responsável da sua pobreza, porque não chovia a tempo, ou, se chovia, não continuava a chover, como se a chuva fosse um mau hábito. Quando havia chuva e sol, em proporções suficientes para que a semente germinasse na terra e a espiga se enchesse de grãos; ele não se considerava pobre.
Por isso agora escutava com interesse, para saber o que tinham que ver os ricos com aquilo, com o facto de não chover no devido tempo. Por fim, quando o rapaz acabou de falar, sem ter dito nada sobre aquele assunto que tanto interessava Wang Lung, este atreveu-se a perguntar:
Senhor, há algum meio para que o rico que nos oprime faça chover, quando não chove, tornando possível o meu trabalho na terra?
Ao ouvir isto, o rapaz virou-se para ele com desdém e replicou:
É preciso que o senhor seja bem ignorante para usar ainda esse longo rabicho! Ninguém pode fazer chover quando quer, mas que tem isso que ver com o problema social? Se os ricos partilhassem connosco o que possuem, chovesse ou não todos teríamos dinheiro e comida.
Uma grande aclamação se elevou da multidão dos que escutavam, mas Wang Lung afastou-se descontente. Sim, mas havia a terra. O dinheiro e os alimentos comem-se e desaparecem: se não houver sol e chuva em proporções suficientes, haverá fome de novo. Não obstante, aceitou de bom grado o papel que o jovem lhe deu, porque se lembrou de que O-lan nunca tinha papel suficiente para as solas dos sapatos. Por isso, quando chegou, a casa deu-lho, dizendo:
Toma, aí tens reforços para as solas dos sapatos.
E trabalhou como dantes. Mas os homens das choças com quem ele costumava falar ao anoitecer quase todos escutavam ’avidamente o que o rapaz dizia, mais avidamente ainda porque sabiam que por detrás daquele muro morava um homem rico e parecia-lhes fraco obstáculo o muro de tijolos que havia entre eles e as suas riquezas, pois podiam destruí-lo e abatê-lo aos golpes de um possante varapau, como o que usavam para carregar todos os dias nos ombros os seus pesados fardos.
Ao descontentamento da Primavera juntava-se agora o novo descontentamento que o rapaz, e outros como ele suscitavam no espírito dos habitantes das choças, com o sentimento da injustiça que representava a posse por outrem destes bens que eles não possuíam. E como pensavam dia a dia em todas aquelas coisas e tratavam delas ao crepúsculo, e principalmente porque o seu labor diário nunca lhes trazia aumento de salário, levantou-se nos corações dos jovens e dos fortes uma onda tão irresistível como a cheia de um rio, engrossado pelas neves do Inverno: a onda transbordante do desejo selvagem.
Wang Lung via aquilo, ouvia as conversas e sentia a raiva deles com estranha inquietação, mas nada mais desejava do que sentir de novo a sua terra debaixo dos pés.
Naquela cidade, onde alguma coisa ocorria sempre de novo, Wang Lung viu um facto estranho que não compreendeu. Um dia em que puxava o seu nksha, vazio, por uma rua, à busca de um freguês, viu um homem ser preso inesperadamente por um pequeno grupo de soldados armados que lhe brandiram golpes no rosto, quando ele protestou. E enquanto Wang Lung via aquilo, assombrado, foram mais dois homens presos, um após outro; ele percebeu que todos os que eram presos eram homens do povo, trabalhadores. Pouco depois, enquanto ele continuava atónito, foi preso outro homem; e esse era um dos que moravam numa choça vizinha da sua, junto ao muro.
Então Wang Lung percebeu, de repente, passado o seu estupor, que todos aqueles homens presos ignoravam, como ele, o motivo por que os prendiam tão violentamente, e com receio de que lhe sucedesse o mesmo, meteu rapidamente o riksha numa rua lateral, onde o deixou, e enfiou, como uma flecha, pela porta de uma tenda de água quente e ali se escondeu, agachado atrás dos grandes caldeirões, até que os soldados passassem. Então perguntou ao tendeiro o que significava aquilo e o homem, que era velho e se fanava no meio do vapor que subia continuamente dos caldeirões de cobre, respondeu com indiferença:
Deve ser uma nova guerra, em qualquer parte. Eu pergunto a mim próprio para que servem todas essas lutas da direita e da esquerda. Mas tem sido assim desde o meu tempo de rapaz e assim será depois da minha morte; é o que eu sei.
Pois bem, mas porque prenderam o meu vizinho, que é tão inocente como eu, que nunca ouviu falar dessa nova guerra? perguntou Wang Lung, deveras consternado.
E o velho bateu com as tampas dos caldeirões e respondeu:
Aqueles soldados vão combater em qualquer sítio e precisam de carregadores para lhes levarem as camas, as munições e as espingardas; é por isso que obrigam os trabalhadores como vocês a acompanhá-los. Mas de onde é você? O que se passou não é novidade aqui.
Mas então...insistiu Wang Lung, avidament e o salário... e o regresso?...
Ora o velho era muito velho e não punha as suas esperanças em nada, nem se interessava por outra coisa além dos seus caldeirões. Por isso respondeu descuidadamente:
Ordenado não há. Quanto a comida, dois pedaços de pão seco por dia e um gole de água do charco. Alcançado o ponto de chegada, podem voltar para casa, se ainda tiverem pernas para isso.
Bem, mas a família...disse Wang Lung, espantado.
Ora, que se importam eles com isso?disse o velho desdenhosamente, levantando uma das tampas de madeira do caldeirão mais próximo para ver se a água já estava a ferver.
Uma nuvem de vapor envolveu-o e o seu rosto enrugado quase desapareceu, quando se debruçou sobre o caldeirão. Não obstante, tinha bom coração, porque, quando reapareceu do meio da nuvem de vapor, viu, o que Wang Lung não podia ver do sítio em que estava agachado, que os soldados tinham voltado para trás, rebuscando as ruas de onde já tinham fugido todos os trabalhadores válidos.
Agache-se ainda mais disse ele a Wang Lung porque voltaram outra vez.
E Wang Lung acocorou-se atrás dos caldeirões, enquanto os soldados passavam como um furacão sobre a calçada, dirigindo-se para Oeste. Quando cessou o ruído das suas botas de couro, Wang Lung saltou para fora, e, puxando o seu riksha, correu com ele vazio para a cabana.
O-lan tinha acabado de chegar para cozer um punhado de ervas que colhera à beira da estrada e ele contou-lhe, em palavras entrecortadas e gaguejantes, o que se tinha passado e como estivera prestes a ser preso. Enquanto falava, nova onda de horror se apossou dele, o horror de ser arrastado para os campos de batalha, ficando o seu velho pai e toda a sua família ao abandono, morrendo de fome, e ele morreria no campo de batalha, sem nunca mais voltar à sua terra. Olhou para O-lan com um olhar desvairado e disse-lhe:
Agora sim, estou, na verdade, tentado a vender a pequena escrava e voltar para o Norte, para a minha terra.
Mas ela, depois de o ouvir, ficou pensativa e respondeu com a simplicidade e serenidade habituais:
Espera alguns dias. Contam-se coisas estranhas.
Contudo, ele não voltou a sair à luz do dia. Mandou o filho mais velho levar o riksha ao lugar onde o alugara e esperou que a noite chegasse. Dirigiu-se então para os armazéns e, por metade do que ganhava dantes, passou a noite toda a puxar as grandes carretas carregadas de caixotes. Cada carreta era puxada por doze homens, arquejantes e contorcidos. Os caixotes estavam cheios de seda, de algodão, de tabaco cheiroso, tão aromático que o seu aroma atravessava a madeira. Havia também grandes barricas de óleo e de vinho. Toda a noite, pelas ruas escuras, Wang Lung puxava desesperadamente pelas cordas, com o tronco desnudo e ressumante de suor e os pés descalços, escorregando nas pedras da calçada, viscosas pela humidade da noite. À frente deles, para lhes mostrar o caminho, corria um rapazito, levando um archote aceso, a cuja luz os rostos e os corpos dos homens luziam como as pedras húmidas. Wang Lung voltava para casa antes da aurora, exausto e tão derreado que se deitava sem comer. Mas durante o dia, enquanto os soldados faziam buscas pelas ruas, ele dormia escondido no fundo da choça, atrás de um monte de palha que O-lan ajuntara para lhe fazer um esconderijo.
Onde se travavam as batalhas e quais eram os combatentes, Wang Lung não sabia. Mas, com o avançar da Primavera, a cidade encheu-se de agitação e de pânico. Todos os dias apareciam carruagens de cavalos que transportavam homens ricos com as suas roupas e colchões de cetim, as suas belas mulheres e as suas jóias, para a margem do rio, onde tomavam os barcos que os levavam para outras paragens. Outros dirigiam-se para aquela casa onde chegavam e de onde partiam os carros de fogo. Wang Lung nunca transitava de dia pelas ruas, mas os filhos voltavam, de olhos arregalados e brilhantes, gritando:
Vimos este e aquele, um homem tão gordo, avantajado como um deus no seu templo, com o corpo coberto de muitos metros de seda amarela. No polegar tinha um grande anel de ouro com uma pedra verde como um pedaço de vidro, e a pele estava luzidia de óleo e de muita comida.
Ou então era o mais velho que contava:
Vimos caixas e mais caixas, e quando perguntei o que havia nelas, disseram-me: «Estão cheias de ouro e prata, mas os ricos não podem levar tudo quanto possuem e algum dia também teremos o nosso quinhão.» Que queria o homem dizer com isto, meu pai?
E o garoto abria os olhos com ansiedade.
Mas quando Wang Lung respondia brevemente:«Como queres que eu saiba o que diz qualquer desses sujeitos ociosos da cidade?»o garoto replicava entusiasmado:
Oh! Desejaria ir agora mesmo buscar o que ele diz que é nosso. Gostaria de provar um bolo. Nunca comi um bolo desses, bem doces, com sementes de gergelim por cima.
O velho despertou da sua sonolência ao ouvir isto e disse com voz trémula:
Quando tivermos boas colheitas poderemos comer tais bolos, na festa do Outono. Quando o gergelim tiver sido debulhado e antes de ser vendido, reservaremos um pouco para fazer desses bolos.
E Wang Lung lembrou-se dos bolos que O-lan fizera uma vez na festa do Ano Novo, bolos de farinha de arroz, com banha e açúcar. A boca encheu-se-lhe de água e a saudade do passado pungiu-lhe o coração.
Se ao menos estivéssemos na nossa terra...murmurou ele.
Pareceu-lhe então, de repente, que não poderia ficar, nem mais um dia, naquela miserável choupana, tão estreita que não lhe permitia estender-se ao comprido atrás do monte de palha; nem poderia suportar outra noite com o corpo vergado sob a corda que lhe cortava a carne, puxando a carreta sobre a calçada.
Comsiderava agora cada pedra da calçada um inimigo pessoal e conhecia os sulcos que podiam evitar uma pedra e poupar assim algumas energias. Havia ocasiões, nas noites mais escuras, especialmente quando chovia e as ruas ficavam mais molhadas que de costume, em que todo o ódio do seu coração explodia contra aquelas pedras pontiagudas que lhe magoavam os pés, que pareciam agarrar-se às rodas da sua carga inumana, para lhe tolher a marcha.
Ah! A bela terra!exclamou, de súbito, e desatou a chorar de tal maneira que as crianças ficaram assustadas e o velho, vendo a consternação do filho, contraiu o rosto de barba grisalha num esgar, como a criança que vê a mãe chorar.
E foi mais uma vez O-lan quem falou, naquele seu tom monótono e igual:
Espera ainda um pouco e havemos de ver alguma coisa. Fala-se nisso agora, por toda a parte.
Do fundo da choupana, onde estava escondido, Wang Lung ouvia, horas e horas, o tropel dos soldados que marchavam para o combate. Levantando às vezes, ligeiramente, a esteira que o separava deles, espreitava pela fenda e via-lhes os pés passar indefinidamente, com botas de couro e grevas, marchando uns atrás dos outros, aos pares, pelotão sobre pelotão, milhares sobre milhares. De noite, quando ia atrelado à carreta, via-os passar, via aqueles rostos emergirem, num momento, da escuridão, à chama bruxuleante da tocha que ia à frente, e não ousava indagar coisa alguma a respeito deles. Puxava ferozmente a carga, comia à pressa a tigela de arroz e dormia de dia um sono agitado, escondido por detrás do monte de palha, na sua cabana. Ninguém conversava naqueles dias. A cidade estremecia de medo e cada qual tratava de fazer à pressa o que tinha a fazer e todos corriam para casa, fechando-se por dentro.
Já não havia conversas ociosas ao crepúsculo, ao pé das choupanas. Nos mercados, os balcões anteriormente cobertos de comida estavam agora vazios. As lojas de seda recolheram as bandeiras multicolores e fecharam as portas das suas grandes montras, com grossas trancas solidamente ajustadas, de maneira que, quando se passava à tarde pela cidade, tinha-se a impressão de que todos dormiam.
Por toda a parte constava que o inimigo se ia aproximando, e aqueles que possuíam alguma coisa andavam atemorizados. Mas Wang Lung não tinha medo, nem tão pouco os moradores das choupanas. Aliás, não sabiam quem era o inimigo e não tinham nada que perder, visto que as suas próprias vidas não representavam grande coisa. Se o inimigo se aproximava, que o deixassem aproximar-se, pois nada poderia ser pior para eles o que a sua situação actual. Mas cada qual seguia o seu caminho e ninguém falava publicamente.
Depois, os gerentes das casas de comércio disseram aos estivadores, que carregavam as caixas para a margem do rio, que eles não precisavam de voltar, pois naqueles dias ninguém aparecia nas lojas para vender ou comprar. E por isso Wang Lung ficou na sua choupana, dia e noite, desocupado. A princípio alegrou-se, porque lhe parecia que todo o descanso era insuficiente para o seu corpo, e dormia pesadamente um sono de morte. Mas, não trabalhando, nada ganhava, e em poucos dias se sumiu o dinheiro que tinha amealhado e de novo pensou desesperadamente no que havia de fazer. Para cúmulo da infelicidade, as cozinhas públicas fecharam as portas, porque aqueles que assim proviam às necessidades dos pobres se encerravam em casa, e já não havia comida nem trabalho, nem sequer o recurso da esmola, visto que não passava gente pelas ruas a quem se pedisse.
Então Wang Lung tomou a pequena nos braços, sentou-se com ela à porta da choça e disse-lhe com doçura:
Minha tolinha, gostarias de ir para uma casa grande onde há de comer e de beber e onde terás roupa que te cubra todo o corpo?
A pequena sorriu, sem compreender, e levantou a mãozinha para tocar, espantada, nos olhos que a fitavam. Wang Lung comoveu-se e perguntou à mulher:
Dize-me: batiam-te na Casa Grande?
Ela respondeu, surda e sombriamente:
Batiam-me todos os dias.
Perguntou-lhe ainda:
Mas era com um cinto de pano, com um bambu ou um chicote ?
E ela respondeu, com a mesma voz amortecida:
Era com uma correia de couro que servira de cabresto a uma mula e ficava sempre pendurada numa parede da cozinha.
Bem sabia Wang Lung que O-lan compreendia o que ele estava pensando, mas agarrou-se a uma última esperança e disse:
Esta nossa filha já é uma linda mocinha. Dize-me: batiam também nas escravas bonitas?
Ela respondeu com indiferença, como se a pergunta lhe não interessasse:
Sim, batiam-lhes ou entregavam-nas a um homem, conforme o capricho do momento. E não só a um homem, mas a todos aqueles que as desejassem naquela noite. Os jovens patrões disputavam e brigavam entre si, por causa desta ou daquela escrava, dizendo: «Se é para ti esta noite, amanhã será para mim.» E quando se fartavam de uma escrava, deixavam-na para os criados, que por sua vez a disputavam entre si. E isto ainda que a escrava fosse criança... se era bonita.
Então Wang Lung, suspirando, apertou a criança contra o peito e disse-lhe repetidas vezes, a meia voz:
Ah! Pobre tolinha! Pobre tolinha!
Mas no seu íntimo chorava perdidamente, como um homem que se vê arrastado por uma vaga impetuosa e não tem tempo para reflectir. Não há outro meio - não há outro caminho...
Nesse momento, ouviu-se um estrondo, como se os céus se partissem, e todos se deitaram no chão, instintivamente, escondendo o rosto, porque parecia que aquele horrendo barulho ia agarrá-los e desfazê-los. Wang Lung cobriu o rosto da pequena com a mão, não sabendo que coisa horrorosa, ia surgir após aquele estrondo mortífero, enquanto o velho lhe dizia ao ouvido:
Isto é que eu nunca ouvi, desde que me entendo!
Os dois garotos gritavam apavorados. Mas quando se fez novamente silêncio, tão rapidamente como havia cessado, O-lan levantou a cabeça e disse:
Acaba agora de acontecer aquilo de que tinha ouvido falar. O inimigo arrombou as portas da cidade. E antes que alguém pudesse responder-lhe, ouviu-se na cidade um brado, um bramido crescente de vozes humanas, fraco a princípio como o vento de uma tormenta que se aproxima, mas depois avolumando-se num alarido cada vez mais forte, mais reboante, que encheu as ruas.
Wang Lung estava ainda sentado, com o tronco erecto, no chão da sua choça, e a sua carne estremeceu com um pavor estranho, que lhe eriçou os cabelos. Ficaram a olhar uns para os outros, à espera não sabiam de quê. Mas só se ouvia o barulho de uma multidão de seres humanos que uivava.
Então ouviram do outro lado do muro, e não longe deles, o ruído de uma grande porta que rangia nos gonzos e estalava ao ser arrombada; e, de repente, o homem que conversara uma vez com Wang Lung, ao crepúsculo, fumando um curto cachimbo de bambu, meteu a cabeça pela abertura da choça e gritou:
Quê! Vocês ainda estão sentados? Chegou a hora... as portas dos ricos estão abertas para nós!
Como por artes mágicas, O-lan desapareceu, escapando-se por baixo do braço do homem, enquanto ele falava.
Wang Lung ergueu-se lentamente, meio atordoado: pôs a filhita no chão e saiu. Diante dos grandes portões de ferro da casa do homem rico comprimia-se uma multidão clamorosa de gente do povo, que avançava soltando aquele sinistro e tigrino urro que ele ouvira, erguendo-se das ruas e avolumando-se. Wang Lung compreendeu que diante das portas de todos os ricos se comprimia agora aquela multidão ululante de homens e mulheres, que depois de terem sido oprimidos e terem passado fome se sentiam momentaneamente livres para fazerem o que entendessem . As grandes portas tinham sido arrombadas e o povo avançava tão compactamente que os pés se atropelavam e os corpos se apertavam estreitamente, formando uma só massa, um só corpo. Outro grupo, que chegava correndo, colheu Wang Lung e impeliu-o para a. multidão, de modo que, contra sua vontade, viu-se forçado a ir para a frente com eles, embora não soubesse o que queria, tão aturdido ficara com o que se passava.
Assim foi arrastado pela populaça e transpôs os umbrais das grandes portas, mal tocando com os pés no solo pela pressão do povo, que rugia sem cessar, como feras furiosas.
Levado pela onda atravessou pátios e mais pátios, até chegar aos pontos mais interiores, sem encontrar nenhuma das pessoas que viviam na casa. Dir-se-ia um palácio morto há muito tempo, se não fossem os lírios temporãos que floriam entre as pedras do jardim e as flores rubras das árvores primaveris que haviam desabrochado sobre os ramos nus. Mas nos quartos havia comida sobre as mesas e nas cozinhas ardia ainda o lume. Aquela multidão conhecia bem a morada dos ricos, pois passou pelos pátios da frente, onde viviam criados e escravas e ficavam as cozinhas, para os pátios interiores, onde os senhores e senhoras tinham as suas camas faustosas, as suas arcas de laca negra, vermelha ou dourada, arcas cheias de roupas de seda e onde havia mesas e cadeiras esculpidas e, nas paredes, papéis pintados. Sobre estes tesouros se lançou a multidão, agarrando o que podia, e disputando uns aos outros o que aparecia em cada arca ou armário que se abria, de modo que trajos, roupas de cama, cortinas, pratos, passavam de mão em mão, arrebatando uma O que outra agarrava, sem que houvesse tempo para ver o que Se tinha agarrado.
Somente Wang Lung, naquela confusão, nada roubou. Nunca na sua vida se apoderara do que lhe não pertencia e não o podia fazer agora. Ficou, portanto, no meio da populaça, a princípio empurrado para aqui e para ali, mas depois recobrou ânimo e empregou todos os esforços para se ver livre da balbúrdia. Conseguiu, finalmente, chegar ao extremo da multidão e ali ficou, movendo-se levemente, como os pequenos remoinhos à beira de um lago; mas agora podia ver onde se encontrava.
Estava ao fundo de um dos pátios interiores onde viviam as mulheres do rico. A porta de trás estava aberta de par em par, aquela porta que os ricos conservam há séculos para se safarem em tais circunstâncias e que se chama a «porta da paz». Fora por aquela porta, sem dúvida, que os habitantes da casa tinham fugido, todos, escondendo-se aqui e ali, pelas ruas, e ouvindo o alarido lá dentro de sua casa. Apenas um homem, devido talvez à sua obesidade ou porque, tendo bebido, dormia profundamente, não conseguira fugir e Wang Lung deu com ele num quarto vazio de onde a gentalha acabava de refluir após uma breve incursão. Aquele homem, que se refugiara num esconderijo, não havia sido descoberto, e agora, julgando-se sozinho, tratava de se escapar. E foi assim que Wang Lung, procurando afastar-se dos outros, acabou por ficar só, e veio encontrá-lo.
Era um sujeito obeso, nem velho nem novo, que estivera deitado, sem dúvida com uma linda mulher, porque se lhe via o corpo nu através da abertura da túnica de cetim violeta, em que se enrolava.
Os amarelentos refegos da sua carne caíam-lhe em pregas sobre o peito gordo e sobre o ventre; e, enterrados nas bochechas, os olhos eram pequenos e fundos como os de um porco. Quando viu Wang Lung pôs-se todo a tremer, grunhindo como se lhe estivessem arrancando o couro com uma faca, de modo que Wang Lung, desarmado, como de costume, ficou a olhá-lo espantado, com vontade de rir do espectáculo. Mas o homem gordo caiu de joelhos, batendo com a cabeça nos tijolos do chão e gritando:
Poupe-me a vida... não me mate. Dar-lhe-ei dinheiro... muito dinheiro...
A palavra «dinheiro» lançou de súbito uma fulgurante claridade no espírito de Wang Lung. Dinheiro! Sim, era isso de que ele precisava! E de novo lhe soou claramente aos ouvidos, como uma voz que lhe dizia: «Dinheiro... a criança salva... a terra!»
E de súbito gritou, com uma voz tão dura que ele mesmo desconheceu que fosse sua:
Então, dê-me o dinheiro!
O homem gordo levantou-se, soluçando e falando atabalhoadamente. Rebuscou no bolso da sua túnica e dele saíram as suas mãos amareladas cheias de ouro, que despejou na túnica que Wang Lung lhe estendera. E de novo Wang Lung gritou, com aquela estranha voz que parecia de outro homem:
Dê-me mais!
E de novo as mãos do homem se estenderam despejando ouro, enquanto balbuciava:
Agora já não tenho mais. Só me resta a minha miserável vida.
E caiu a chorar, correndo-lhe as lágrimas como óleo pelas bochechas pendentes. Wang Lung, vendo-o a tremer e a chorar, sentiu, de súbito, uma repugnância por ele, como jamais sentira por alguém; e enquanto a sua aversão crescia, gritou-lhe:
Foge da minha vista, senão mato-te, verme gorducho!
Wang Lung disse aquilo, apesar de ter tão bom coração que nem podia matar um boi. O homem deitou a correr como um cachorro e desapareceu.
Wang Lung ficou então só, com o dinheiro. Não se demorou a contá-lo. Meteu-o no peito e saiu pela «porta da paz», que estava aberta, indo pelas ruas escuras para a sua cabana. Apertava contra o peito o ouro que ainda conservava o calor do corpo do outro homem, e repetia consigo mesmo:
Voltaremos para a nossa terra... amanhã voltaremos para a nossa terra!
Ao fim de alguns dias, Wang Lung já tinha a impressão de que nunca abandonara a sua terra, como de facto, no seu coração, nunca a deixara. com três moedas de ouro comprou boas sementes do Sul, belos grãos de trigo, de arroz e de milho; e, como alarde de riqueza, adquiriu sementes que nunca tinha cultivado: lotos e aipo para o lameiro, e grandes rábanos vermelhos, desses que, recheados de carne de porco, servem para banquetes, além de pequenos feijões, encarnados e bem cheirosos.
com cinco moedas de ouro comprou um boi a um lavrador que encontraram a lavrar o campo, ainda antes de chegarem à sua terra. Viu o homem a lavrar e parou; todos pararam, o velho, as crianças e a mulher, apesar de estarem ansiosos por chegar a casa, e examinaram o boi. Wang Lung ficou admirado com o grande e robusto cachaço do animal e com o vigor com que arrancava a canga de madeira. Interpelou o homem:
Esse boi não vale nada! Por quanto mo queres vender em prata ou ouro, visto que estou sem animal e, como preciso de um, vejo-me obrigado a contentar-me com o primeiro que me apareça?
O lavrador respondeu:
Antes venderia minha mulher do que este boi, que não tem mais que três anos e está em pleno vigor.
E continuou a lavrar, sem fazer caso de Wang Lung, a quem esclareceu que, de todos os bois do mundo, era aquele o único que lhe convinha. Perguntou a O-lan e a seu pai:
Que tal aquele boi?
O velho olhou-o atentamente e disse: Parece um animal bem castrado. E O-lan acrescentou:
Tem um ano mais do que o homem diz.
Mas Wang Lung não respondeu. O boi agradava-lhe pelo vigoroso movimento das espáduas, por ter a pele lisa e amarela, e grandes olhos negros. com aquele boi poderia lavrar os seus campos e cultivá-los. com aquele boi, atrelado ao moinho, poderia moer o grão. Dirigiu-se ao lavrador e disse-lhe:
Vou dar-te dinheiro que chegue para comprares outro boi e que ainda sobre. Mas este boi será meu.
Por fim, depois de muito discutir e regatear, com simuladas desistências, o lavrador cedeu o animal por uma vez e meia o preço de um boi naquela região. Mas o dinheiro de nada valia para Wang Lung quando olhava para aquele boi, e entregou-o ao lavrador, seguindo-o com a vista enquanto ele libertava o boi da canga. Wang Lung conduziu o animal com uma corda que lhe passara pelas ventas, entusiasmado com aquela aquisição.
Quando chegaram a casa, encontraram a porta arrancada; o tecto de palha desaparecera, bem como as enxadas e os ancinhos que haviam deixado, de maneira que só restavam as vigas nuas e as paredes de barro, e estas mesmas deterioradas pelas neves tardias e pelas chuvas do Inverno e do início da Primavera. Mas, passado o primeiro espanto, nada daquilo tinha importância para Wang Lung. Foi à cidade e comprou um novo arado de madeira rija, duas enxadas, dois ancinhos e esteiras para cobrir o tecto até que tivessem palha da colheita.
Depois, ao anoitecer, postou-se na soleira da sua casa a olhar para a terra, a sua terra desterroada e fresca após os gelos hibernais, e pronta para o plantio. Estava-se em plena Primavera e no lameiro coaxavam as rãs monotonamente. Os bambus que havia junto à casa balouçavam docemente à leve brisa da tarde; e no crepúsculo esfumava-se a franja das árvores na orla de campo próximo. Eram pessegueiros em flor, de um suave matiz rosado, e salgueiros que ostentavam ridentes folhas novas. E da terra em repouso e expectante erguia-se uma névoa diáfana, prateada pelo luar, que se prendia ao tronco das árvores.
A princípio e durante muito tempo, parecia a Wang Lung que todo o seu desejo seria viver sozinho na sua terra, sem ver mais ninguém. Não visitava qualquer casa da aldeia; e quando os vizinhos, os que haviam escapado à fome hibernal, vinham vê-lo, recebia-os com azedume.
Qual de vocês arrancou a minha porta ? Quem tem a minha enxada e o meu ancinho? Quem foi que queimou no seu fogão a palha do meu telhado?
Era assim que gritava ao vê-los, eles abanavam as cabeças, protestando a sua inocência. Um deles disse-lhe:
Foi teu tio.
E outro:
Não. com os bandidos e os ladrões que assolaram a região, nestes terríveis tempos de fome e de guerra, como se pode saber se foi este ou aquele que fez isso? A fome faz de qualquer um ladrão.
Então Ching, seu vizinho, saiu de sua casa, arrastando-se quase, para ver Wang Lung, e disse-lhe:
Durante o Inverno, um bando de ladrões instalou-se em tua casa e pilhou quanto pôde, na aldeia e na cidade. Dizem que teu tio teve mais relações com eles do que convinha a um homem honrado. Mas pode lá saber-se a verdade, em tempos como estes! Eu não ousaria acusar ninguém.
Ching não era mais do que uma sombra do que fora: só tinha a pele sobre os ossos e os cabelos embranquecidos, embora tivesse apenas quarenta e cinco anos. Wang Lung ficou algum tempo a olhá-lo, e depois, cheio de compaixão, disse-lhe de repente:
Passaste pior do que nós. com que te alimentaste?
O homem murmurou num suspiro:
Que havia eu de comer? Tudo o que encontrávamos: restos da rua como cães, quando pedíamos esmola na cidade. Comíamos os cães que apareciam mortos e, uma vez, antes de morrer, minha mulher preparou uma sopa com uma Carne que não ousei perguntar de que era, pois sabia felizmente que ela não tinha coragem para matar ninguém, e, se comemos aquilo, foi, sem dúvida, porque o tinha encontrado. Depois morreu, porque tinha menos resistência do que eu para suportar tanto, e vendi a minha filha a um soldado, para não a ver consumir-se e não morrer eu também.
Fez uma pausa, e depois continuou:
Se tivesse algumas sementes faria novas sementeiras, mas não tenho nenhuma.
Vem cá!exclamou Wang Lung rispidamente; e puxando-o pela mão para casa, fê-lo levantar a aba da túnica esfarrapada, deu-lhe algumas sementes da provisão que comprara no Sul : trigo, arroz, couves, e disse-lhe:
Amanhã irei com o meu boi lavrar a tua terra.
Então Ching desatou a chorar e Wang Lung, enxugando também os olhos, exclamou, como se estivesse zangado:
Pensas que me esqueci daquele punhado de feijões que tu me deste?
Mas Ching não pôde responder, e afastou-se chorando e soluçando sem parar.
Foi uma alegria para Wang Lung saber que seu tio já não estava na aldeia e ninguém sabia onde se encontrava. Uns diziam que tinha ido para a cidade, outros que tinha partido para uma região distante, com a mulher e o filho. O certo era que a casa dele na aldeia estava desabitada. As filhassoubc-o Wang Lung com indignaçãotinham sido vendidas; primeiro a mais bonita, por bom preço, e até mesmo a outra, que tinha o rosto marcado de varíola, fora vendida por um grande punhado de pence a um soldado que passara para o campo de batalha.
Wang Lung dedicou-se então com toda a alma ao amanho da terra, e lastimava ter que perder tempo em casa para comer e dormir. Preferia levar para o campo o bolo de massa e alho e comer lá, de pé, enquanto pensava e fazia projectos: «Aqui semearei feijões e ali os canteiros de arroz novo.» Se o cansaço o vencia durante o dia, deitava-se num sulco e ali adormecia, com o bom calor da sua terra a aquecer-lhe o corpo.
O-lan não ficava ociosa em casa. com as suas próprias mãos amarrou as esteiras nas vigas; trouxe barro dos campos, misturou-o com água e remendou as paredes da casa; reconstruiu a fornalha e tapou os buracos que a chuva fizera no chão.
Depois, foi um dia à cidade com Wang Lung e compraram camas, uma mesa, seis bancos e um grande caldeirão de ferro. Compraram ainda, por luxo, um bule de barro vermelho, com uma flor negra desenhada a tinta, e um jogo de seis xícaras. Por fim, entraram numa loja de incenso e compraram a gravura de um deus da abundância, para dependurarem na parede, por cima da mesa, na sala do meio. Adquiriram também dois castiçais de estanho, um incensório e duas grossas velas de sebo de vaca, com um junco fino no meio, servindo de pavio.
Quando voltavam para casa com as compras, Wang Lung lembrou-se dos dois pequenos deuses do templo da terra, e de caminho entrou lá e deteve-se a contemplá-los. Fazia dó vê-los. A chuva tinha-lhes destruído as feições e o barro dos seus corpos via-se pelos rasgões dos seus trajos de papel. Ninguém tinha feito caso deles naquele ano terrível; e Wang Lung ficou a olhá-los, com horror e satisfação, dizendo em voz alta, como quem ralha com uma criança:
Isto acontece aos deuses que fazem mal aos homens!
Todavia, quando a casa voltou a ser como dantes, quando viu os castiçais de estanho brilharem à luz vermelha das velas, O bule e as xícaras sobre a mesa, as camas no seu lugar, com novas roupas, e um pedaço novo de papel tapando o buraco do quarto em que dormia, e outra porta metida nos gonzos de madeira, Wang Lung teve medo da sua felicidade. O-lan estava grávida, mais uma vez; os outros filhos, bronzeados, brincavam como cachorros à porta de casa, e, encostado à parede do sul, o avô sentava-se e sorria, enquanto dormitava. Nos campos, o arroz despontava, tão verde como jade, e os feijões novos erguiam do chão as suas cabeças encapuçadas. Se fossem parcos no alimento, ainda teriam dinheiro bastante para se alimentarem até à colheita.
Levantando os olhos para o céu azul onde deslizavam brancas nuvens, sentindo, sobre os campos lavrados, como sobre a própria carne, o sol e a chuva na proporção devida, Wang Lung murmurou involuntariamente:
Preciso queimar um pau de incenso diante dos dois deuses do pequeno templo. Afinal de contas, eles têm poder sobre a terra.
UMA noite em que Wang Lung estava deitado com a mulher, notou que ela tinha entre os seios uma coisa dura, do tamanho de um punho de homem, e perguntou-lhe:
Que é isso que tens aí?
Deitou a mão e encontrou-lhe um embrulho envolto num pano, contendo qualquer coisa dura, mas que se movia entre os seus dedos. Ela recuou violentamente a princípio, mas depois, quando ele agarrou o embrulho para lho tirar à força, ela cedeu e disse:
Aí tem. Veja, se quiser, já que insiste.
E partindo o cordão que o amarrava ao pescoço, entregou o embrulho a Wang Lung, que arrancou o farrapo que o envolvia. Caiu-lhe então, de súbito, na mão uma chuva de jóias. Wangf Lung mirava-as, estupefacto. Nunca pensara que pudesse ver tantas pedras preciosas reunidas: umas vermelhas como o miolo das melancias, outras douradas como trigo, ou verdes como folhas novas na Primavera, límpidas e transparentes como a água das nascentes. Wang Lung não lhes sabia os nomes, pois nunca, em sua vida, vira jóias como aquelas, nem ouvira designá-las. Mas tendo-as ali entre os dedos, na concha da sua forte mão morena, compreendeu, pelo brilho e pelas cintilações que despediam, na penumbra do quarto, que tinha ali uma fortuna. E agarrava-a, imóvel, ébrio de cor e de forma, silencioso. E nem ele nem a mulher afastavam os olhos dela. Por fim, segredou a O-lan, com a respiração abafada:
Onde... onde as...
E ela respondeu, também baixinho:
Na casa do homem rico. Devia ser o tesouro de uma favorita. Vi um ladrilho solto na parede e deslizei para lá discretamente, para que mais ninguém desse conta do achado e exigisse uma parte. Retirei o ladrilho, agarrei aquilo que brilhava e escondi-o na manga.
Mas como sabias? murmurou Wang Lung novamente, cheio de admiração.
Ela respondeu com aquele sorriso que nunca lhe brilhava nos olhos:
Não sabe que vivi em casa de um homem rico? Os ricos vivem sempre amedrontados. Vi, outrora, num ano mau, uns ladrões invadirem a Casa Grande, e as escravas, as concubinas e até a velha patroa correrem de um lado para outro para ocultar cada qual o seu tesouro em lugar secreto, de antemão preparado. Por isso sabia o que significava um tijolo solto.
Ficaram de novo em silêncio, olhando as maravilhosas pedras. Depois de muito tempo, Wang Lung respirou profundamente e disse, resoluto:
Ora não se deve conservar um tesouro assim. Deve ser vendido e transformado em coisa segura .. em terras, porque nada é mais seguro. Se alguém viesse a saber que possuíamos isto, seríamos assassinados e um ladrão levaria as jóias. Tenho que convertê-las em terras hoje mesmo, ou não poderei dormir esta noite.
Enrolou, de novo, as jóias no trapo, atando-o fortemente com o cordão, e quando abria a túnica para as esconder no peito reparou, por acaso, no rosto da mulher. Estava sentada, com as pernas cruzadas sobre a cama, e a sua fisionomia opaca e sempre inexpressiva esboçava o gesto de entreabrir os lábios projectando o rosto para a frente.
Então que há?perguntou Wang Lung espantado.
Quer vendê-las todas? murmurou com voz rouca. E porque não ? respondeu ele, atónito. Que iríamos
fazer com jóias como estas, numa casa de barro ?
Desejaria poder guardar duas para mimdisse ela, com a desesperada ansiedade de quem não espera nada. E ele sentiu-se comovido, como se visse algum dos filhos desejoso de um brinquedo ou de uma gulodice.
Está bem, está bem!disse ele, com espanto.
Se pudesse ficar com duas ... continuou ela, com humildade apenas duas das pequeninas... duas pèrolazinhas brancas...
Pérolas!repetiu ele boquiaberto.
Guardá-las-ia... não as usariaacrescentou ela.Era só para guardar.
Baixou os olhos e pôs-se a torcer uma ponta da coberta, da qual se soltara um fio, e aguardou pacientemente, como se não esperasse resposta.
Então Wang Lung, sem compreender, olhou um instante para aquela sombria e dedicada criatura, que havia trabalhado toda a sua vida em serviços pelos quais não recebia remuneração alguma e que na Casa Grande tinha visto outras mulheres usar jóias que ela nem sequer tivera na mão.
Poderia tê-las na mão de vez em quandoacrescentou O-lan, como se falasse consigo própria.
Wang Lung sentiu-se possuído de um sentimento incompreensível e, tirando as jóias do peito, desenrolou-as e entregou-lhas em silêncio. O-lan procurou entre as cores mais vivas, remexendo delicadamente as pedras finas com a sua mão grosseira e morena, até que encontrou as duas polidas pérolas brancas. Pô-las de parte, e atando novamente o embrulho entregou-o a Wang Lung. Depois, rasgou um pedaço da fímbria da túnica, enrolou nele as pérolas e escondeu-as entre os seios. Estava consolada. Mas Wang Lung olhava-a com espanto, mal compreendendo aquilo, de modo que, naquele dia e nos seguintes, detinha-se às vezes a olhar para ela, dizendo com os seus botões: «Muito bem, muito bem! Esta minha mulher ainda é capaz de ter escondidas entre os seios aquelas duas pérolas.»
Mas nunca a viu tirá-las ou olhar para elas e nunca mais a elas se referiram. Quanto às outras jóias, depois de longas meditações, decidiu-se a ir à Casa Grande e ver se havia mais terras para vender. Dirigiu-se, pois, para lá, mas desta vez não encontrou o guarda ao portão, torcendo os compridos cabelos do seu sinal, desdenhando responder aos que não podiam entrar na Casa de Hwang sem lhe pedir licença. Agora estavam fechadas as grandes portas e Wang Lung bateu com ambos os punhos, mas ninguém veio abrir. Uns homens que passavam na rua olharam e gritaram-lhe :
Sim, podes bater à vontade. Se o patrão velho estiver acordado, poderá vir, e se houver alguma cachorra de uma escrava perdida por aí, talvez abra, se estiver disposta a isso.
Por fim ele ouviu um leve rumor de passos que se aproximavam da porta, passos lentos mas hesitantes que se detinham e avançavam a intervalos; depois ouviu o cauteloso retirar da tranca de ferro que fechava a porta, o rangido desta e uma voz de cana rachada que perguntava:
Quem é?
Então Wang Lung respondeu bem alto, embora estivesse embaraçado:
Sou eu, Wang Lung!
A voz respondeu, com impertinência:
Wang Lung? Quem é esse maldito?
Wang Lung percebeu, pela qualidade da imprecação, que se tratava do próprio patrão velho, porque empregava uma injúria que se costuma dirigir aos servos e às escravas. Wang Lung respondeu, pois, com mais humildade:
Senhor e amo, não vim aqui para molestá-lo, mas para
tratar de um pequeno negócio com o administrador de Vossa Senhoria.
O velho senhor respondeu, então, sem abrir mais a fresta por onde assomavam os seus lábios:
Diabos o levem! Aquele cachorro deixou-me há uns poucos de meses, e já cá não está.
Depois desta resposta, Wang Lung não sabia o que fazer. Era-lhe impossível falar na compra das terras directamente ao velho senhor, sem um intermediário, e, não obstante, as jóias pendiam do seu peito, ardentes como brasas, fazendo-o desejar ver-se livre delas- e, mais do que isto, possuir novas terras. Tinha semente bastante para toda a terra que já possuía e desejava a boa terra da Casa de Hwang.
Vim cá por causa de um dinheirinhodisse ele, hesitante.
Imediatamente o velho cerrou a porta, dizendo em tom mais alto:
Não há dinheiro nesta casa. Aquele ladrão, aquele bandido do administrador... por ele maldita seja sua mãe e a mãe de sua mãe!... Levou tudo o que era meu! Nenhuma dívida pode ser paga.
Não... não...exclamou Wang Lung, precipitadamente. Venho trazer dinheiro e não reclamar uma dívida.
Então, uma voz que Wang Lung não tinha ouvido até ali deu um grito agudo, e uma cabeça de mulher surgiu entre os batentes da porta.
Isso é uma coisa que há muito tempo eu não ouvia!disse ela vivamente; e Wang Lung viu um rosto bonito, atrevido, fortemente pintado, que o olhava. Entra continuou com desembaraço, entreabrindo a porta para deixar passar Wang Lung, que ficou atónito no pátio, enquanto ela fechava a porta novamente, com cuidado.
O patrão velho tossia e olhava, envolto numa suja túnica de cetim cinzento, da qual pendia uma guarnição de pele traçada. Devia ter sido um rico trajo, como podia ainda avaliar-se, pois o cetim era espesso e macio, embora coberto de manchas e de lama, e amarfanhado como se tivesse servido de roupa de dormir.
Wang Lung encarava o patrão velho, curioso, ainda meio atemorizado, porque toda a vida tivera receio da gente da Casa Grande, e parecia-lhe impossível que o velho senhor, de quem tanto ouvira falar, fosse aquele tipo envelhecido, que não era mais imponente que seu velho pai, e até mesmo menos, porque seu pai era um velho limpo e agradável, e o velho senhor, que fora gordo, estava agora magro, a pele flácida caindo-lhe em refegos, sujo e barbudo, a mão amarelenta e trémula, com que afagava o queixo e puxava os beiços desbotados e pendentes.
A mulher era bastante bela. Tinha um rosto duro e anguloso, ao qual um grande nariz aquilino dava mais uma espécie de nobreza de abutre, com os olhos negros vivos e brilhantes e a pele deslavada, esticada sobre os ossos. Os lábios e as faces, muito vermelhos, tinham uma expressão dura. O cabelo negro e lustroso era liso como um espelho, mas, pela sua maneira de falar, percebia-se que não era da família do velho, mas uma escrava, de voz aguda e língua afiada. Além daquela mulher e do velho, não havia mais ninguém no pátio, outrora cheio de um vaivém contínuo de homens, mulheres e crianças, que se ocupavam dos serviços da casa:
Tratemos do dinheiro disse a mulher, com vivacidade.
Mas Wang Lung hesitava. A presença do velho senhor impedia-o de falar, o que a mulher compreendeu logo, antes de ser expresso por palavras, e disse ao velho, asperamente:
Agora vá-se embora.
O ancião, sem dizer palavra, afastou-se com passos vacilantes, tossindo e fazendo dar estalos nos calcanhares com os velhos sapatos de veludo. Ao ficar só com a mulher, Wang Lung não sabia que fazer nem que dizer. Causava-lhe estupefacção o silêncio que reinava em toda a casa. Olhou para o outro pátio e também lá não viu ninguém. Havia montões de restos e de lixo, palha espalhada, rama de bambu, agulhas secas de pinheiro e flores murchas, como se há muito tempo ninguém pegasse numa vassoura para o limpar.
Vamos ver, cabeça de pau!disse a mulher com excessiva rispidez, e Wang Lung estremeceu ao ouvir aquela voz inesperadamente agreste Que negócio é o teu? Se tens dinheiro, mostra-mo.
Nãodisse Wang Lung com prudênciaeu não disse que trazia dinheiro... venho propor um negócio...
Negócio significa dinheiro replicou a mulher dinheiro que vem ou dinheiro que sai, e desta casa não pode sair dinheiro algum.
Está bem, mas não posso tratar com uma mulher objectou Wang Lung timidamente.
Não sabia que pensar da situação em que se encontrava e olhava em redor com espanto.
E porque não?inquiriu a mulher com ira. E depois gritou-lhe bruscamente:Não ouviu dizer, seu imbecil, que não há aqui mais ninguém?
Wang Lung lançou-lhe um olhar intimidado, incrédulo, e a mulher gritou-lhe de novo:
Só eu e o patrão velho... não há mais ninguém!
Onde estão, pois?perguntou Wang Lung, demasiado atónito para pronunciar palavras coerentes.
Ora, a velha patroa morreu replicou a mulher. Não ouviste dizer na cidade que os bandidos assaltaram a casa e levaram o que quiseram, em bens e em escravas? Penduraram o patrão velho pelos polegares e bateram-lhe, amarraram a patroa numa cadeira e amordaçaram-na, fugindo depois. Mas eu fiquei. Escondi-me num reservatório de água, meio despejado, debaixo da tampa de madeira. Quando saí de lá, já eles tinham desaparecido e a velha estava morta na cadeira, não porque lhe tivessem feito alguma coisa, mas de medo. O seu corpo era um caniço podre, por causa do ópio que ela fumava, e não pôde suportar o embate.
E os criados e as escravas?balbuciou Wang Lung. E o porteiro?
Oh! Essesrespondeu ela negligentemente tinham abalado muito antes... todos os que tinham pés que os levassem, porque desde meados do Inverno que não havia comida nem dinheiro. Na verdade e a sua voz baixou, num sussurro havia muitos criados entre os bandidos. Eu própria vi aquele cachorro do porteiro... servindo de guia ao bando, embora voltasse o rosto na presença do patrão velho; reconheci os três longos cabelos do seu sinal. Além desse, havia outros da casa, pois quem senão eles podia saber onde estavam guardadas as jóias e as ricas provisões de coisas que não eram para vender? Tenho razões para crer que o próprio administrador andasse metido nisso, embora considerasse impróprio da sua dignidade aparecer publicamente no negócio, visto ser ainda parente afastado da família.
A mulher calou-se e o silêncio dos pátios pesava como um silêncio de túmulo. Depois ela acrescentou:
Mas a catástrofe não foi inesperada. Já em vida do patrão velho e de seu pai podia prever-se a decadência desta casa. Na última geração, os amos deixaram de ver a terra: recebiam o dinheiro que os administradores lhes davam e gastavam-no como água. Nas actuais gerações, deixaram mesmo de sentir a atracção da terra, e, pedaço a pedaço, a terra começou a ir-se também.
Onde estão os jovens senhores?perguntou Wang Lung, olhando ainda em redor, tão impossível lhe parecia dar crédito àquelas coisas.
Espalhados por aí respondeu a mulher, com indiferença. Felizes foram as duas filhas que casaram antes de ocorrer esta desgraça. O filho mais velho, quando soube do que acontecera a seu pai e a sua mãe, mandou um mensageiro buscar o patrão velho, seu pai, mas eu persuadi-o a não ir. Disse-lhe: «Quem ficará na casa? Não é próprio que fique eu, que sou apenas uma frágil mulher.»
Franziu pudicamente os lábios vermelhos e delgados ao pronunciar estas palavras, e baixou os olhos insolentes. Depois de uma curta pausa, continuou:
Além disso, tenho sido a fiel escrava do meu senhor durante muitos anos, e não tenho outra casa.
Wang Lung olhou para ela fixamente e desviou logo os olhos. Começava a perceber o que significava aquilo: uma mulher que se agarrava a um velho moribundo, na mira de lhe extorquir os últimos cobres. E falou-lhe com desprezo:
Visto que és apenas uma escrava, como posso tratar um negócio contigo?
Ao que ela respondeu:
Ele fará tudo o que eu lhe disser.
Wang Lung meditou nesta resposta. Afinal de contas, ali havia terras. Outros as comprariam, por intermédio daquela mulher, se ele o não fizesse.
Que terra ainda resta?perguntou-lhe involuntariamente, e ela percebeu logo qual era a sua intenção.
Se veio para comprar terras apressou-se a dizer há terras para vender. Ele tem cem jeiras a Oeste, e ao Sul duzentas, que quer vender. Não é tudo pegado, mas as courelas são grandes. Podem ser vendidas até à última jeira.
Disse isto tão prontamente que Wang Lung percebeu que ela conhecia tudo o que ainda restava ao velho, até ao último palmo de terra. Todavia, conservava-se incrédulo e repugnava-lhe tratar do negócio com ela.
Não é provável que o patrão velho possa vender todas as terras da família sem consentimento dos filhosobjectou ele.
Mas a mulher replicou-lhe com vivacidade:
Quanto a isso, os filhos disseram-lhe que vendesse tudo o que pudesse. A terra fica numa região onde nenhum dos filhos quer viver, porque está infestada de bandidos, nestes dias de penúria. Todos disseram: «Não podemos viver num lugar assim. É melhor vender a terra e repartir o dinheiro.»
Mas a quem devo entregar o dinheiro?perguntou Wang Lung, ainda incrédulo.
Ao patrão velho, a quem havia de ser?replicou a mulher com astúcia.
Mas Wang Lung sabia que as mãos do velho senhor se abririam nas dela. Por isso, não quis falar mais com ela e retirou-se dizendo:
Noutro dia... noutro dia...
E foi-se encaminhando para a porta. Ela acompanhou-o e, quando ele já estava na rua, gritou-lhe:
Amanhã à mesma hora... Amanhã ou logo à tarde... todas as horas são boas!
Ele seguiu pela rua sem dar resposta, deveras intrigado e sentindo necessidade de reflectir sobre o que ouvira. Entrou na pequena casa de chá frequentada pelos escravos, pediu uma infusão e, quando o criado a colocou com desembaraço diante dele, pegando insolentemente na moeda e observando-a, Wang Lung pôs-se a pensar. E quanto mais pensava mais incrível e monstruoso lhe parecia que a nobre e rica família, que durante toda a sua vida, durante a vida de seu pai, de seu avô, tinha sido poderosa e uma glória da cidade, estivesse agora arruinada e dispersa.
Isto resultou de terem abandonado a terra reflectiu ele, cheio de pesar, pensando nos dois filhos, que cresciam como dois rebentos de bambu na Primavera, e decidiu que naquele mesmo dia os faria abandonar as brincadeiras ao sol, e pô-los-ia a trabalhar nos campos, para que começassem cedo a sentir nos ossos e no sangue o contacto do solo sob os pés e a pressão da dura enxada nas mãos.
Sim, mas tinha ali as jóias, ardentes e pesadas contra o seu corpo, enchendo-o de contínuo receio. Parecia-lhe que podiam vê-las cintilar através das suas roupas, e alguém exclamaria:
Eis aqui um pobre que traz consigo o tesouro de um imperador :
E não podia ficar tranquilo enquanto as não trocasse por terra. Esperou, portanto, que o dono da casa estivesse desocupado e chamou-o, dizendo-lhe:
Venha beber uma xícara à minha custa e conte-me as novidades da cidade, pois estive ausente todo o Inverno.
O homem estava sempre disposto a conversas deste género, especialmente se bebia o próprio chá à custa de outrem, e sentou-se depressa à mesa de Wang Lung. Era um sujeito baixo, com cara de fuinha e o olho esquerdo estrábico. O seu fato tinha uma camada de gordura negra que o couraçava à frente da blusa e das calças, pois, além de chá, vendia comida, que ele próprio cozinhava. Costumava repetir: «Há um provérbio que diz: um bom cozinheiro nunca tem a roupa limpa»e considerava, portanto, a sua imundície como justa e necessária. Sentou-se e começou imediatamente:
Pois bem, à parte a gente que morreu de fome, o que não é novidade, o maior acontecimento foi o assalto à Casa de Hwang.
Era justamente o que Wang Lung esperava ouvir. E o homem continuava a contar-lhe o caso com verdadeiro prazer, descrevendo como as poucas escravas que tinham ficado na casa foram levadas, e como as concubinas que não fugiram tinham sido arrebatadas e violadas, sendo algumas raptadas, de modo que ninguém queria viver naquela casa.
Ninguémconcluiu o homem a não ser o patrão velho, que está agora nas mãos de uma escrava chamada Cuckoo, que se manteve, graças às suas habilidades, durante muitos anos na alcova dele, enquanto outras entravam e saíam.
Então é essa mulher quem manda?perguntou Wang Lung, que escutava atentamente.
Agora ela faz o que quer. Por isso, deita a mão a tudo quanto pode e engole o que pode ser engolido. Qualquer dia, sem dúvida, quando os jovens patrões tiverem regulado os seus negócios noutros lugares, voltarão e então ela não poderá enganá-los com a sua lamúria de serva fiel e dedicada que deve ser recompensada, e expulsá-la-ão. Mas já tem a vida assegurada, ainda que viva cem anos.
E a terra? perguntou Wang Lung, por fim, tremendo de ansiedade.
A terra?disse o homem, sem interesse, pois para ele a terra não significava coisa alguma.
Está à venda?inquiriu Wang Lung com impaciência.
Ah, sim, a terra!respondeu o homem, indiferente.
E como naquele momento entrasse um freguês, levantou-se e disse, enquanto se afastava:
Ouvi dizer que está à venda, excepto o terreno onde enterram os membros da família há seis gerações.
E seguiu o seu caminho. Wang Lung levantou-se também, depois de saber o que queria, e saiu. Foi bater de novo à grande porta e a mulher veio abrir-lha. Mas ele, antes de entrar, perguntou-lhe :
Diga-me primeiro uma coisa: o velho senhor estará disposto a pôr o seu próprio selo na escritura de venda?
A mulher respondeu com veemência, de olhos fitos nele:
Está sim... ele está... Juro-o pela minha vida!
Então Wang Lung perguntou-lhe simplesmente:
Quer vender a terra por ouro, por prata ou por jóias?
Os olhos dela faiscavam, enquanto respondia:
Vendê-la-ei por jóias!
Wang Lung tinha agora mais terras do que um homem podia lavrar com um boi, e mais colheitas do que as que um homem podia recolher no seu celeiro. Comprou um burro, construiu mais outro quarto anexo à sua casa e disse ao seu vizinho Ching:
Vende-me o pedacinho de terra que possuis, abandona a tua casa e vem para a minha, ajudar-me a cultivar a minha terra.
Ching assim fez, bem satisfeito. As chuvas caíram na estação devida, o arroz cresceu bem, e quando o trigo foi ceifado e atado em pesados feixes, os dois homens plantaram arroz novo nos campos alagados. Naquele ano, Wang Lung plantou mais arroz do que fizera em toda a sua vida, pois as chuvas foram copiosas e as terras, que dantes eram secas, estavam agora boas para a cultura do arroz. Mas quando chegou a época da colheita, Wang Lung e Ching sozinhos não chegavam, de modo que Wang Lung contratou outros dois homens que viviam na aldeia, para ajudarem a fazê-la.
Quando trabalhava na terra que comprara à Casa de Hwang, lembrava-se também dos preguiçosos filhos do patrão velho, da decaída Casa Grande, e obrigava severamente os dois filhos, todas as manhãs, a ir com ele para os campos, punha-os a fazer serviços apropriados à sua idade, tais como guiar o burro e o boi, e, embora lhes não pudesse exigir grande trabalho, fazia-os, ao menos, sentir o calor do Sol sobre o corpo e a fadiga de andar acima e abaixo ao longo dos sulcos.
Não permitia que O-lan trabalhasse nos campos, pois já não era um pobretão mas sim um homem que podia contratar jornaleiros, se quisesse, e a terra nunca dera colheitas como as daquele ano. Foi obrigado a construir ainda outro quarto na casa, para recolher as colheitas, sem o que não teriam espaço para andar dentro dela. Comprou três porcos e um bando de aves de galinheiro, que se alimentavam com os grãos caídos na colheita.
O-lan, entretanto, trabalhava em casa, fazendo roupas novas e sapatos novos para todos, cobertas de ramagens estofadas com quente algodão novo, para cada cama. E quando tudo estava pronto, ficaram providos, como nunca, de roupas e de cobertas. Depois meteu-se na cama para dar à luz, mais uma vez. Conquanto pudesse contratar alguém para a ajudar, preferiu ficar sozinha.
Desta vez o parto foi demorado, e quando Wang Lung voltou de tarde para casa, encontrou o velho sentado à porta, a rir, dizendo-lhe:
Desta vez é um ovo com duas gemas!
E quando Wang Lung entrou no quarto do fundo, viu O-lan deitada com duas crianças recém-nascidas, um menino e uma menina, tão parecidos como dois grãos de arroz. Riu às gargalhadas com aquele belo quadro, e atreveu-se a dizer uma graça:
Então era para isso que andavas com duas jóias no seio!
E voltou a rir do que tinha dito. O-lan, vendo-o tão alegre, teve um sorriso lento e doloroso.
Wang Lung não tinha, naquele momento, nenhum motivo de tristeza, a não ser a que lhe causava a filha mais velha, que não falava nem fazia as travessuras próprias da sua idade, e apenas tinha um sorriso infantil quando percebia que o pai a fitava. Fosse por causa do horrível primeiro ano da sua vida, por causa da fome ou por qualquer outra coisa, o caso é que passavam os meses e Wang Lung ’esperava ouvir, em vão, as primeiras palavras dos seus lábios, ao menos o «da-da», como as crianças pronunciam o doce nome de pai. Mas nenhum som saía deles; somente o sorriso suave e inexpressivo. Quando olhava para ela, Wang Lung murmurava:
Minha tolinha... minha pobre tolinha...
E, no seu íntimo, censurava-se:
Se eu tivesse vendido este pobre ratinho e descobrissem que ela é assim, tê-la-iam matado!
E como para se penitenciar, tinha muito cuidado com ela, levando-a consigo para o campo, algumas vezes. A pequena seguia-o, em silêncio, sorrindo quando ele lhe falava e brincava com ela.
Naquela região, em que Wang Lung vivera toda a vida, e seu pai e o pai de seu pai, trabalhando a terra, havia secas de cinco em cinco anos, ou, se os deuses se mostravam benignos, de sete em sete, de oito em oito e até mesmo de dez em dez. Isto acontecia porque as chuvas eram excessivas ou faltavam por completo, ou porque o rio do Norte, devido às chuvas e às neves das montanhas distantes, engrossava e invadia os campos, transpondo os diques que havia séculos os homens tinham construído para o conter.
De cada vez que isso acontecia, os homens fugiam da região, para voltarem depois. Wang Lung, porém, dedicou-se a assegurar os seus bens de maneira que, nos maus anos que viessem, não precisasse de abandonar a sua terra e pudesse viver nela com o produto dos bons anos, até ao ano seguinte.
Meteu mãos à obra e os deuses ajudaram-no. Durante sete anos houve colheitas, e em cada ano Wang Lung e os seus criados colhiam mais do que precisavam para comer. Contratava todos os anos novos jornaleiros para os seus campos, e chegou a ter seis criados. Construiu nova casa atrás da primeira, com uma grande sala ao fundo de um pátio e, de cada lado do pátio, dois quartinhos contíguos ao salão. A casa foi coberta de telhas, mas as paredes eram ainda feitas de terra batida, tirada dos campos. Mandou caiá-las e ficaram brancas e limpas. Wang Lung e a família mudaram-se para essa casa e os trabalhadores, com Ching por chefe, instalaram-se na casa velha, em frente.
Wang Lung tinha já provas suficientes da honradez e lealdade de Ching e fê-lo capataz, pagando-lhe bem: duas moedas de prata por mês, além da comida. Mas, apesar de Wang Lung insistir para que Ching comesse o mais fartamente possível, o homem não engordava e continuava sempre raquítico, magro e definhado, de aspecto sombrio. Contudo, nem por isso era menos zeloso no trabalho, lidando em silêncio de manhã à noite, falando, com a sua débil voz, só quando era necessário, mas preferindo nada ter que dizer e poder ficar calado. Passava horas e horas com a enxada na mão; e de manhã e à tardinha carregava para os campos os baldes de água ou de esterco para os despejar nas leiras de legumes.
Mas Wang Lung sabia que, se algum dos jornaleiros dormisse de mais, em cada dia, à sombra das tamareiras, ou comesse mais do que o seu quinhão de papa de favas ou se mandasse vir, secretamente, a mulher ou os filhos, na época das colheitas, para furtarem punhados dos cereais que estavam sendo malhados com manguais, no fim do ano, quando patrão e criados se banqueteavam depois da colheita, Ching lhe diria ao ouvido:
Fulano e sicrano não devem voltar no ano que vem.
Parecia que o punhado de ervilhas e de sementes que passara da mão de um para a do outro os tornara como irmãos; somente Wang Lung, que era mais moço, ocupava o lugar de mais velho, e Ching nunca esquecia completamente que era assalariado e vivia em casa alheia.
No fim do quinto ano, Wang Lung trabalhava pouco no campo, porque as suas terras eram já tantas que despendia todo o tempo a vender no mercado os seus produtos e a dirigir os trabalhadores. Via-se deveras embaraçado pelo seu desconhecimento dos livros e do significado dos caracteres traçados sobre o papel com tinta e um pincel de pêlo de camelo. Além disso, quando ia a uma loja de cereais e se tratava de ler o contrato da venda do seu trigo e do seu arroz, era uma vergonha para ele ter de confessar humildemente aos altivos negociantes da cidade:
Senhor, faça favor de ler para eu ouvir, porque sou muito ignorante.
E quando devia firmar o contrato, era uma vergonha para ele ver outro homem, até mesmo um vulgar empregado, erguer as sobrancelhas depreciativamente e, com o pincel molhado na tinta, desenhar rapidamente os caracteres do nome dele, Wang Lung. Maior era a vergonha quando o bonifrates perguntava, por brincadeira:
Qual é a letra? A do dragão Lung, ou a do surdo Lung?
E Wang Lung tinha que responder, humildemente:
Faça como entender, pois sou demasiado ignorante para saber como se escreve o meu nome.
Foi num dia assim, na época da colheita, depois de ter ouvido as zombarias dos empregados do armazém de cereais, que estavam na folga do meio-dia e davam fé de tudo o que se passava, um bando de gaiatos pouco mais velhos que seus filhos, que, ao regressar a casa, furioso, quando atravessava as suas terras, disse consigo mesmo:
Ora esta, nenhum daqueles imbecis da cidade tem um palmo de terra, mas julgam-se com direito a rir-se estupidamente de mim porque não sei decifrar aquelas garatujas de pincel.
Mas depois, quando a cólera se lhe foi acalmando, reflectiu:
Na verdade, é uma vergonha para mim não saber ler nem escrever. Vou tirar meu filho mais velho da lavoura e mandá-lo a uma escola da cidade para aprender, e, quando eu for aos armazéns de cereais, ele lerá e escreverá por mim, acabando assim com aquelas risadas de troça, sem respeito por mim, que sou um proprietário de terras.
A ideia pareceu-lhe boa e no mesmo dia chamou o filho mais velho, agora um rapagão desempenado, de doze anos, que se parecia com a mãe, no rosto largo e chato e nas mãos e pés grandes, mas que tinha do pai a vivacidade do olhar. Quando o rapaz apareceu, disse-lhe:
De hoje em diante, não voltarás a trabalhar no campo, porque tenho necessidade de um letrado na família para ler os contratos e escrever o meu nome, de modo que eu não volte a ser humilhado na cidade.
O rapaz corou e os seus olhos cintilaram.
Meu pai respondeu ele era isso mesmo que eu desejava, há já dois anos, mas não ousava pedir-lhe.
Quando o mais novo soube disso, foi ter com o pai, choramingando e lastimando-se, coisa que fazia com frequência, pois desde que começou a falar era um garoto barulhento e falador, sempre disposto a clamar que o seu quinhão era menor que o dos outros. E disse-lhe:
Ora esta! Eu também não quero trabalhar no campo, pois não é justo que meu irmão fique sentado tranquilamente numa cadeira a aprender coisas, e eu ande a labutar como um labrego, eu que sou filho como ele!
Wang Lung, que não podia suportar as suas lamúrias, dispôs-se a conceder-lhe o que queria, como fazia sempre que as lamúrias dele se tornavam intoleráveis, e apressou-se a responder-lhe :
Está bem, está bem. Irão os dois; e se o Céu, em seus maus desígnios, levar um de vocês, ficará o outro com conhecimentos bastantes para se ocupar dos meus negócios.
Enviou então O-lan à cidade, a comprar pano para fazer uma túnica comprida para cada um. Ele mesmo foi a uma papelaria comprar papel, pincéis e dois paus de tinta, mas como não entendia nada daquelas coisas, e tinha vergonha de confessá-lo, ficava indeciso diante do que o homem lhe mostrava para comprar. Mas afinal ficou tudo pronto e combinado para mandar os filhos a uma pequena escola, perto das portas da cidade, dirigida por um velho professor que, anos antes, tentara prestar provas nos exames oficiais, mas ficara reprovado. Tinha colocado na sala principal da sua casa bancos e mesas, e mediante uma pequena soma, paga em cada dia festivo do ano, ensinava os clássicos aos rapazes, batendo-lhes com o seu enorme leque fechado, quando eram preguiçosos ou não sabiam repetir-lhe as páginas que folheavam de manhã à noite.
Só nas tardes quentes da Primavera e do Verão tinham os alunos alguma folga, porque nessas tardes o velho cabeceava e adormecia, depois de comer ao meio-dia e o pequeno e obscuro salão enchia-se com o barulho do seu ressonar. Os rapazes, então, cochichavam e brincavam, faziam caricaturas maliciosas que mostravam uns aos outros, riam à socapa quando viam uma mosca zumbir à volta da boca aberta do professor e apostavam uns com os outros se o insecto entraria ou não na caverna da boca do velho. Mas quando o professor abria os olhos (e não se sabia nunca quando os abriria, pois os abria tão rápida e imprevistamente como se não tivesse dormido) e os surpreendia, levantava-se e batia com o leque na cabeça de um ou outro. Ao ouvirem os estalos do pesado leque e os gritos dos alunos, os vizinhos diziam:
Afinal, ele é um bom professor.
Foi por isso que Wang Lung escolheu esse colégio para seus filhos. Ali eles aprenderiam decerto.
No dia em que os levou ao colégio, pela primeira vez, foi andando à frente deles, porque não convém que pai e filhos caminhem lado a lado. Levava um lenço azul cheio de ovos frescos, que deu de presente ao velho professor, quando chegou. Wang Lung sentiu-se possuído de um respeitoso temor à vista dos grandes óculos de latão do professor, da sua longa túnica, negra e flutuante, e do seu enorme leque, que usava até mesmo no Inverno, e inclinou-se diante dele dizendo:
Senhor, aqui estão os meus dois indignos filhos. Se é possível meter-lhes alguma coisa no espesso crânio de bronze, nem que seja à força de pancada, e se quiser contentar-me, bata-lhes para que aprendam.
Os dois garotos, que estavam de pé, observavam os alunos, sentados nos bancos, os quais, por sua vez, miravam os novos colegas.
Voltando para casa sozinho, depois de ter deixado os dois rapazes, Wang Lung sentia o coração inchado de orgulho. Parecia-lhe que entre todos os rapazes que estavam na aula nenhum havia que se comparasse aos seus dois rapagões, pela estatura, pela robustez e pelo brilho bronzeado das faces. Quando transpôs a porta da cidade, encontrou um vizinho que vinha da aldeia e respondeu à pergunta que ele lhe fizera:
Venho do colégio de meus filhos.
Diante da surpresa do homem, respondeu com aparente indiferença:
Agora já não preciso deles no campo e mais vale que aprendam as letras.
Mas ao continuar o seu caminho disse consigo:
Não me causaria surpresa se o mais velho, com todo esse estudo, viesse a ser perfeito!
Daquele dia em diante, os rapazes deixaram de ser chamados mais velho e mais moço, sendo-lhes dados nomes apropriados pelo velho professor, o qual, depois de inteirar-se da ocupação de Wang Lung, escolheu dois nomes para os filhos: para o mais velho, Nung En; e para o segundo, Nung Wen. A primeira palavra de ambos os nomes significava «aquele cuja riqueza provém da terra».
ASSIM Wang Lung foi consolidando a fortuna de sua casa. Quando chegou o sétimo ano, o grande rio do Norte, engrossado pelas chuvas excessivas e pelas neves das montanhas onde nascia, saiu do leito e inundou as terras daquela região, varrendo tudo. Mas Wang Lung não tinha receio. Não teve receio, nem mesmo quando dois quintos da sua terra se converteram num lago em que um homem mergulhava até aos ombros, e mais ainda.
Durante todo o fim da Primavera e o começo do Verão, a água subiu e acabou por se estender como um grande mar, ameno e tranquilo, que reflectia as nuvens e a Lua, os salgueiros e os bambus, cujos troncos estavam submersos. Aqui e ali, uma casa de barro, abandonada pelos moradores, surgia por alguns dias do seio das águas até se desfazer e desmoronar lentamente, volvendo à água e à terra. E assim sucedia com todas as casas que não eram, como a de Wang Lung, construídas sobre uma colina; e essas colinas emergiam como ilhas. Os homens iam à cidade e voltavam, em barcos, ou em jangadas, e, como sempre, havia quem morresse de fome.
Mas Wang Lung não tinha receio. Os armazéns de cereais deviam-lhe dinheiro, tinha os celeiros ainda cheios das colheitas dos últimos dois anos e a sua casa estava num cabeço, de modo que a água não chegava lá. Por isso nada tinha que temer.
Como grande parte da terra não podia ser semeada, andava desocupado como nunca andara em toda a sua vida, e, porque andava ocioso e bem alimentado, depois de tratar dos seus negócios e de dormir quanto podia, enchia-se de impaciência. Demais, tinha ali os criados que contratava sempre por ano, e tolo seria se trabalhasse quando via aquela gente comer o seu arroz, sem quase ter que fazer, à espera que as águas baixassem. Assim, depois de os mandar reparar o telhado de colmo da casa velha e ajuntar as telhas da casa nova que tinham saído do seu lugar, e depois de lhes dar ordem para consertarem as enxadas, os ancinhos e os arados, darem de comer ao gado, comprarem patos para criar um bando deles na água e torcerem cânhamo para fazerem cordas (todas essas coisas que ele mesmo fazia outrora, quando lavrava a sua terra sozinho), ficou sem ocupação e não sabia que havia de fazer.
Ora um homem não pode ficar sentado o dia inteiro a contemplar um lago que cobre as suas terras, nem comer mais do que lhe é possível de cada vez, nem dormir quando já não tem sono. Andava pela casa, impaciente, achando-a silenciosa, demasiado silenciosa para o seu sangue impetuoso. O velho estava já muito débil, meio cego e quase completamente surdo, e nada havia que conversar com ele, a não ser perguntar-lhe se estava com calor, se queria comer ou beber chá. E Wang Lung ficava despeitado por ver que o velho não se apercebia da riqueza dele e resmungava sempre que encontrava folhas de chá na sua xícara:
Um pouco de água é bastante. Chá é dinheiro.
Mas não havia meio de explicar coisa alguma ao velho, porque a esquecia imediatamente e vivia recluso no seu próprio mundo interior, sonhando muitas vezes que ainda era jovem e estava em pleno vigor. Pouco percebia do que se passava à sua volta.
A filha mais velha, que ainda não falava, passava horas e horas sentada ao pé do avô, retorcendo um pedacinho de pano, dobrando-o e tornando a dobrá-lo, sorrindo; e aqueles dois seres nada tinham que dizer a um homem vigoroso e sadio. Wang Lung, depois de servir uma xícara de chá ao pai e de acariciar a face da filha, recebendo o seu doce e inexpressivo sorriso, que tão depressa e tristemente lhe desaparecia do rosto, deixando vazios os olhos escuros e sem brilho, nada mais tinha que fazer. Sempre se afastava dela depois de um momento de silêncio que testemunhava a tristeza que lhe causava a filha, e ocupava-se dos dois filhos mais pequenos, o menino e a menina gémeos, que corriam alegremente à porta da casa.
Mas um homem não pode satisfazer-se com as travessuras das criancinhas, que, depois de rirem e brincarem um momento com o pai, voltavam aos seus jogos; e Wang Lung via-se só e cheio de desassossego. Foi então que olhou para O-lan, sua esposa, como um homem olha uma mulher cujo corpo conhece perfeitamente até à saciedade e que viveu a seu lado tão intimamente que não há nada que não conheça a seu respeito, nem nada de novo que possa esperar dela.
Pareceu-lhe que a olhava pela primeira vez na vida, e pela primeira vez notou que era uma mulher que não podia satisfazer a fantasia de qualquer homem: era uma criatura vulgar e apagada, que sofria em silêncio, sem se preocupar com a sua aparência exterior. Notou, pela primeira vez, que tinha o cabelo áspero, pardo e seco, um rosto largo e chato de pele grosseira, feições irregulares, sem nenhuma espécie de beleza ou encanto. As sobrancelhas mal desenhadas e ralas, os lábios muito grossos, os pés e as mãos grandes, sendo estas espalmadas como patas de ganso. E ao vê-la assim, com novos olhos, gritou-lhe:
- Quem quer que te visse tomar-te-ia pela mulher de um pobretana e não pela de um proprietário que tem trabalhadores para lavrar as suas terras!
Era a primeira vez que lhe falava da maneira como ela se apresentava, e ela respondeu-lhe com um olhar lento e doloroso. Estava sentada num banco, cosendo com uma grande agulha a sola de um sapato, e interrompeu a tarefa, com a agulha no ar e a boca aberta, mostrando os dentes enegrecidos. Então, como se tivesse compreendido que ele tinha olhado para ela como um homem para uma mulher, um rubor intenso avermelhou-lhe as salientes maçãs do rosto e murmurou:
Desde que dei à luz os dois gémeos, não tenho andado bem. Tenho fogo nas entranhas.
Ele compreendeu que, na sua simplicidade, ela supunha que ele a acusava de há mais de sete anos não conceber. E respondeu, com mais aspereza do que pretendia:
O que quero dizer é se não podes comprar um pouco de óleo para o cabelo, como as outras mulheres, e fazer para ti uma nova túnica de pano preto. Esses sapatos que usas não são próprios da mulher de um proprietário como és agora.
Ela, porém, não respondeu; limitou-se a olhar para ele humildemente, embaraçada, e a esconder os pés, um por cima do outro, debaixo do banco em que estava sentada. No fundo, ele envergonhava-se de repreender aquela criatura, que durante tantos anos o seguira, fiel como um cão, e lembrava-se de que, quando era pobre e ele mesmo amanhava os seus campos, ela saltava da cama, logo depois de dar à luz, e ia auxiliá-lo nas colheitas; mas, apesar disso, não podia conter a irritação que fervilhava dentro de si e continuou dizendo, impiedosamente, contra a sua íntima vontade:
Tornei-me rico à custa de trabalho e gostaria que minha mulher não parecesse tão rude. E esses teus pés...
Deteve-se. Ela parecia-lhe completamente hedionda, e mais hediondo que tudo aqueles enormes pés, dentro daqueles largos chinelos de pano. Olhou-os com tal repugnância que ela os escondeu ainda mais debaixo do banco. Por fim, disse num suspiro:
Minha mãe não me apertou os pés, porque me venderam muito nova ainda... Mas vou ligar os pés da pequenita... os pés da menina mais nova...
Wang Lung, porém, saiu indignado, porque se envergonhava de a ter censurado e se enraivecia porque ela não se mostrara zangada, por sua vez, e apenas amedrontada. Vestiu a túnica preta nova, resmungando:
Bem, irei para a casa de chá, a ver se ouço alguma coisa de novo. Em minha casa não há nada, a não ser idiotas, um velho caduco e duas crianças.
O seu mau humor aumentou à medida que caminhava para a cidade, porque se lembrou, de repente, de que não teria podido comprar aquelas novas courelas em toda a sua vida se O-lan não tivesse trazido o punhado de jóias da casa do homem rico e se não lhas tivesse dado quando lhas pediu. Quando se lembrou disso, ficou mais enraivecido e, como para responder às censuras do seu coração, disse indignado:
Sim, mas ela não soube o que fez. Agarrou as jóias por prazer, como uma criança agarra um punhado de doces vermelhos e verdes; tê-las-ia bem escondidas até hoje, no seio, se eu não tivesse dado por elas.
Então perguntou a si próprio se ela ainda teria entre os peitos as duas pérolas. Mas o que dantes lhe parecia uma simples extravagância, em que às vezes gostava de pensar, causava-lhe agora repugnância, porque os peitos dela se tinham tornado, depois de tantos filhos, flácidos e pendentes e haviam perdido a beleza. Guardar pérolas entre eles era uma loucura e um desperdício.
Mas tudo isso não teria tido importância se Wang Lung fosse ainda um homem pobre ou se a água lhe não tivesse inundado os campps. Ele tinha, porém, dinheiro. Havia prata escondida nas paredes da sua casa, havia um saco com prata enterrado debaixo de um tijolo do pavimento da sua casa nova, havia prata enrolada num pano, num baú do seu quarto de dormir, prata metida dentro do colchão da sua cama e o seu cinto estava cheio de prata. Não lhe faltava dinheiro. E agora, em vez de sair dele como sangue que mana de uma ferida, o dinheiro que trazia no cinto queimava-lhe os dedos quando lhe tocava. Sentia ânsia de gastá-lo nisto ou naquilo, e começou a ser pródigo e a pensar no que poderia fazer para gozar um pouco a vida.
Nada lhe parecia tão bom como outrora. A casa de chá em que costumava entrar, timidamente, quando se sentia um vulgar camponês, parecia-lhe agora suja e sórdida. Noutros tempos, ninguém o conhecia ali e os criados tratavam-no com insolência, mas agora os fregueses acotovelavam-se quando ele entrava e podia ouvir um homem cochichar ao vizinho:
É o tal Wang, da aldeia de Wang, o que comprou as terras da Casa de Hwang, naquele Inverno em que o patrão velho morreu, por ocasião da grande fome. Ele está rico, actualmente.
Wang Lung, ouvindo isto, sentava-se com afectada indiferença, mas o coração inchava-lhe de orgulho pelo que era agora. Naquele dia em que repreendera a mulher, até mesmo as deferências que recebeu não lhe agradaram, e sentou-se a beber o chá, sombriamente, sentindo que nem tudo era tão bom na sua vida, como julgara. E de pronto, perguntou a si próprio:
Porque hei-de estar bebendo chá agora nesta bodega, cujo proprietário é um fuinha zarolho, que ganha menos do que os jornaleiros da minha terra, eu que possuo terras e tenho filhos estudantes?
Levantou-se depressa, atirou o dinheiro para cima da mesa e saiu antes que alguém lhe dirigisse a palavra. Vagueou pelas ruas da cidade, sem saber o que desejava. Quando passou pela barraca do contador de histórias, deteve-se por algum tempo, sentado na ponta de um banco cheio de gente, a escutar a história dos tempos dos Três Reinos, quando os soldados eram valentes e astutos. Mas estava ainda enervado e não podia entregar-se ao encanto da narração como os outros. O som do pequeno gongo de latão, que o homem fazia- vibrar, fatigava-o, pelo que se levantou e saiu.
Ora havia na cidade uma grande casa de chá, recentemente aberta por um homem do Sul, entendido nesse ramo de negócio. Wang Lung já tinha passado em frente dela, a pensar, cheio de horror, no dinheiro que ali se gastava em jogo, em diversões e em mulheres. Mas agora, impelido pela inquietação da ociosidade e desejando subtrair-se ao rebate da sua consciência, quando se lembrava de que fora injusto para com sua mulher, entrou naquele lugar. O seu desassossego impelia-o a ver e a ouvir alguma coisa de novo. Assim transpôs os umbrais da nova casa de chá, entrando no amplo e resplandecente salão cheio de mesas, aberto sobre a rua. Entrou com bastante ousadia de porte, tentando ser mais ousado ainda porque o seu coração era tímido e se lembrava de que, ainda há poucos anos, era um pobretão que nunca tinha mais de uma ou duas moedas de prata e trabalhara até puxando riksha nas ruas de uma cidade do Sul.
A princípio, dentro da grande casa de chá, não disse palavra. Pagou o chá, bebeu-o sossegadamente, olhando em redor, cheio de admiração. Era uma enorme sala, de tecto dourado, de cujas paredes pendiam painéis de seda branca, em que havia pintados retratos de mulheres. Wang Lung olhava para aquelas mulheres discreta e atentamente. Pareciam-lhe figuras de sonho, porque nunca vira semelhantes na terra. No primeiro dia, olhou-as, bebeu rapidamente o chá e saiu.
Mas todos os dias, enquanto as águas lhe cobriam as terras, Wang Lung voltava à casa de chá. Sentava-se isolado, pagava, bebia o chá e ficava a olhar para os retratos das mulheres bonitas.
Cada dia se demorava mais, visto não ter nada que fazer nas suas terras nem em casa. Assim teria podido continuar indefinidamente, porque, apesar da prata escondida em vários sítios, tinha ainda o aspecto de um campónio e era o único homem naquela luxuosa casa de chá que usava roupas de algodão em vez de seda, e conservava o rabicho, coisa que nenhum homem da cidade já usava. Mas uma tarde, em que bebia e contemplava os retratos, sentado a. uma mesa do fundo da sala, alguém desceu por uma pequena escada apoiada à parede atrás de si e que conduzia ao andar superior.
Essa casa de chá era o único edifício da cidade com dois pavimentos, excepto o Pagode Ocidental, que tinha cinco, situado fora da Porta de Oeste. Mas o pagode ia estreitando para cima, ao passo que o primeiro andar da casa de chá era tão largo como o rés-do-chão. De noite, ouviam-se vozes agudas das canções das mulheres e gargalhadas sonoras que se escapavam pelas janelas superiores, misturadas com doces harpejos de alaúdes, tangidos delicadamente por mãos de raparigas. Ouvia-se a música na rua, especialmente depois da meia-noite, mas, no lugar em que Wang Lung costumava sentar-se, a algazarra e a vozearia de muitos homens bebendo chá e o seco estalido dos dados e dos dominós abafavam todos os outros ruídos.
Foi por isso que Wang Lung, naquela noite, não ouviu, por detrás de si, os passos de uma mulher que descia a escadinha; e como não esperasse que alguém o conhecesse ali, sobressaltou-se violentamente quando lhe tocaram no ombro. Ao erguer os olhos, viu diante de si um delicado e formoso rosto de mulher, e reconheceu Cuckoo, a mulher em cujas mãos derramara as jóias no dia em que comprara as terras, e cujos dedos haviam sustentado firmemente a mão trémula do patrão velho, ajudando-o a estampar bem o seu sinete sobre a escritura de venda. Ela riu ao vê-lo, e o seu riso parecia um ranger de matraca.
Quê!? É Wang, o lavrador?disse ela, demorando-se maliciosamente na palavra «lavrador». Quem havia de pensar encontrar-te aqui?
Pareceu então a Wang Lung que deveria mostrar a todo o custo àquela mulher que ele era mais que um simples camponês. Riu também e disse bem alto:
Não é tão bom o meu dinheiro como o dos outros homens? E não é dinheiro que me falta agora: fiz fortuna.
Cuckoo parou ao ouvir isto. Os seus pequenos olhos em amêndoa brilhavam como os de uma serpente e a sua voz tornou-se untuosa como óleo correndo de um vaso:
E quem não ouviu falar disso? E onde pode melhor um homem gastar o dinheiro que lhe sobra que num lugar como este, onde acorrem ricos e elegantes para se divertirem em festas e prazeres? Não há vinho como o nosso... Já o experimentaste, Wang Lung?
Até agora só tenho bebido chá respondeu Wang Lung, meio envergonhado. Não toquei em vinho nem em dados.
Chá!exclamou ela com uma gargalhada estridente. Mas se temos vinho de osso de tigre, vinho de madrugada e vinho de arroz, fragrante, para que tomas chá?
E como Wang Lung baixasse a cabeça, continuou em voz suave e insinuante:
Suponho também que ainda não puseste a vista em mais nada, não é verdade ? Em nenhuma linda mãozinha... em nenhuma face perfumada...
Wang Lung baixou a cabeça ainda mais e o sangue subiu-lhe ao rosto, pensando que todos o olhavam com zombaria, e apuravam o ouvido ao que a mulher dizia. Mas quando teve’coragem de olhar de esguelha em torno de si, viu que ninguém lhe prestava atenção e o barulho dos dados continuava a ouvir-se. Muito embaraçado, respondeu:
Não... ainda não... tomei somente chá...
Então a mulher riu de novo e, apontando para os painéis de seda pintada, disse:
Ali estão os seus retratos. Escolhe uma que queiras ver, põe o dinheiro na minha mão e eu a trarei à tua presença.
Aquelas!disse Wang Lung, maravilhado Pensava que eram retratos de mulheres de sonho, de deusas da montanha de Kwen Lwen, como as que descrevem os contadores de histórias!
E são mesmo mulheres de sonho - ajuntou Cuckoo, com escarninho bom humormas de sonho que um pouco de prata pode converter em realidade.
E afastou-se, fazendo sinais e piscando os olhos aos criados, e mostrando-lhes Wang Lung como se lhes dissesse:
Ali está um camponês casca-grossa!
Mas Wang Lung ficou sentado a contemplar as pinturas, agora com novo interesse. com que então, subindo aquela escadinha, nos quartos de cima havia mulheres como aquelas, em carne e osso, e os homens subiam para ir ter com elas... outros que não ele, sem dúvida, mas outros homens! Ah! Se ele não fosse o que era, um bom trabalhador, um bom chefe de família... Que retrato escolheria? Imaginava isso, como uma criança imagina às vezes que poderia fazer determinada coisa. Que retrato escolheria?... Olhou para todos os rostos, um a um, atentamente, com tanto interesse como se fossem reais. Até aí, todos lhe tinham parecido igualmente belos, porque não se tratava ainda de fazer uma escolha. Mas agora viu nitidamente que havia uns mais bonitos do que outros, e escolheu entre todos os três mais formosos, e dos três um ainda mais belo, o retrato de uma mulher pequena e franzina, com o corpo esbelto como um bambu e uma expressão astuta como a de um gatinho. Aquela mulher tinha numa das mãos, delicada como uma folha de feto, a haste de uma flor de loto.
Wang Lung contemplava-a e sentiu que lhe circulava nas veias um calor comparável ao do vinho.
Ela é como a flor de marmeleiro disse, de súbito, em voz alta.
Ao ouvir a sua própria voz, alarmou-se e ficou envergonhado. Levantou-se depressa, deixou o dinheiro sobre a mesa e saiu. Cá fora tinha caído a noite e ele voltou para casa.
O luar cobria os campos e as águas como uma névoa prateada, e nas suas veias o sangue corria misterioso, acelerado, escaldante.
SE as águas se tivessem retirado então das suas terras, deixando húmidas e fumegantes ao sol, de modo que ao fim de alguns dias de calor estival pudessem ser lavradas, gradadas e semeadas, Wang Lung talvez nunca mais voltasse à grande casa de chá Se um dos filhos tivesse adoecido, ou se o velho chegasse de súbito ao termo dos seus dias, Wang Lung, absorvido pelo acontecimento imprevisto, talvez tivesse esquecido o rosto gracioso do painel e o corpo da mulher, esbelto como um bambu.
Mas, a não ser a leve brisa do Verão que se levanta ao crepúsculo, tudo continuava na mesma: as águas permaneciam plácidas e tranquilas, o velho sonolento, e os dois rapazes na escola, de manhã à noite. Wang Lung sentia-se inquieto em casa e evitava o olhar de O-lan, que o fitava dolorosamente, enquanto andava na sua lida e ele se deixava cair numa cadeira, para se levantar depois sem beber o chá que ela lhe tinha servido, nem fumar o cachimbo que tinha acendido. Ao fim de um longo dia mais longo que qualquer outro, no sétimo mês, Wang Lun estava em pé à porta de sua casa, à hora em que o crepúsculo descia, embalado pelo suave murmúrio da brisa do lago, quando de súbito, sem dizer palavra, se voltou bruscamente, entrou no quarto e vestiu a sua túnica nova, aquela que O-lan lhe fizera para os dias de festa, e que era preta e tão brilhante que parecia de seda. Sem dizer nada a ninguém, dirigiu-se, pelas estreitas veredas à beira da água, através dos campos, até à nova casa de chá.
Ali tudo estava iluminado, e sob a luz brilhante dos candeeiros de petróleo, que se compram nas cidades estrangeiras do litoral estavam sentados homens que bebiam e conversavam, com as suas túnicas abertas para gozarem a frescura da noite. Por toda a parte se agitavam leques, e as sonoras gargalhadas, como uma música, ouviam-se na rua. Toda a alegria que Wang Lung jamais conseguira, trabalhando nas suas terras, estava ali contida, entre as paredes daquela casa, onde os homens iam para se divertir e não para trabalhar.
Wang Lung hesitou, à entrada, e parou a observar a claridade intensa que jorrava pelas portas abertas. E talvez acabasse por se ir embora sem entrar, porque ainda era acanhado e tímido, no fundo, apesar da revolta do seu sangue, que se agitava como se fosse rebentar-lhe as veias, se não tivesse surgido das sombras que contornavam a claridade uma mulher que estava encostada negligentemente à ombreira da porta. Reconheceu Cuckoo. Ela adiantou-se quando viu o vulto de um homem, pois o seu serviço era arranjar fregueses para as mulheres da casa; mas quando descobriu quem era, encolheu os ombros e disse:
Ah! Afinal de contas é o lavrador!
Wang Lung sentiu-se ferido pela seca indiferença do tom da sua voz, e a súbita raiva deu-lhe coragem, que de outra forma não teria, para dizer:
Ora essa! Não poderei entrar aqui e fazer o que os outros fazem ?
Ela encolheu os ombros e respondeu a rir:
Se tiveres o dinheiro que os outros têm, decerto que sim.
Ele quis mostrar-lhe que era bastante rico e generoso para fazer o que lhe aprouvesse. Meteu a mão no cinto e trouxe-a cheia de prata, perguntando-lhe:
Chega ou não chega?
Ela olhou para o punhado de moedas e retorquiu sem mais detença:
Entra e dize qual é a que desejas.
Wang Lung, sem saber o que dizia, balbuciou:
Palavra! Nem eu mesmo sei o que quero.
Mas o desejo dominou-o e sussurrou:
Aquela pequena... a de queixo afilado e carinha branca e rosada como uma flor de marmeleiro, que tem um botão de loto na mão.
A mulher assentiu com a cabeça e, fazendo-lhe um sinal, abriu caminho por entre as mesas cheias de gente, seguida, a distância, por Wang Lung. A princípio, pareceu-lhe que todos erguiam a cabeça e o observavam, mas quando tomou coragem para olhar, verificou que ninguém lhe prestava atenção, a não ser um ou dois fregueses que exclamaram:
Não será cedo de mais para ir ter com as mulheres?
E outro:
Olha aquele rapagão, que apressado!
Mas nesse momento já eles estavam a subir a escadinha, coisa que Wang Lung fez com dificuldade, porque era a primeira vez que subia escadas numa casa. Ao chegar lá acima, viu que era a mesma coisa que uma casa térrea, parecendo-lhe apenas muito alta, quando passou diante de uma janela e olhou para o céu. A mulher conduziu-o por um corredor escuro e abafado, gritando à medida que avançava:
Chegou o primeiro homem da noite!
Ao longo do corredor, abriam-se portas bruscamente e aqui e ali apareciam cabeças de mulheres em manchas de luz, como flores que emergem dos seus cálices, ao Sol. Mas Cuckoo dizia-lhes, malèvolamente:
Não, não és tu... nem tu... ninguém pediu nenhuma de vocês! Este é para a anãzinha de Soochow, de carinha cor-de-rosa... para Lotus!
Um rumor indistinto e trocista ondulou pelo corredor, e uma rapariga, corada como uma romã, exclamou, num vozeirão:
E Lotus poderá suportar esse sujeito?... Ele fede a campo e a alho!
Wang Lung ouviu isto perfeitamente, e embora aquelas palavras lhe doessem como uma estocada, desdenhou responder, porque receava parecer o que realmente era: um campónio. Mas continuou resoluto o seu caminho, ao lembrar-se da boa prata que levava no cinto. Por fim, a mulher bateu rudemente com a palma da mão numa porta fechada e entrou sem esperar. Ali, sobre uma cama, coberta com uma colcha vermelha de ramagens, estava sentada uma esbelta rapariga.
Se alguém lhe contasse que havia mãozinhas como aquelas, ele não teria acreditado: mãos tão pequenas, ossos tão finos e dedos tão afilados, com unhas compridas, tintas da cor intensa e rosada dos lotos em botão. E se alguém lhe dissesse que poderia haver pés como aqueles, pequeninos pés metidos em sapatos de cetim cor-de-rosa, não maiores do que o dedo médio de um homem, balouçando infantilmente à beira da cama... se alguém lho dissesse, não o teria acreditado.
Sentou-se empertigado na cama, ao lado dela, contemplando-a. Viu que era tal qual o retrato pintado e tê-la-ia reconhecido, se a tivesse encontrado. Porém, mais do que tudo, as suas mãos eram iguais às mãos pintadas, delicadas, belas e brancas como o leite. As duas mãos entrelaçadas assentavam sobre a seda rósea do seu vestido, e ele não podia imaginar que se lhes pudesse tocar.
Olhou para ela como tinha olhado para a pintura e viu o tronco, esbelto como um bambu, cingido por um casaco curto e ajustado; viu o pequeno rosto esperto emergindo, em toda a sua pintada beleza, da alta gola orlada de peles brancas; viu os olhos arredondados, em forma de damasco, e compreendeu então o que queriam dizer os contadores de histórias, quando cantavam os olhos de damasco das belas damas de outrora. Para ele, aquela mulher não era de carne e osso, mas um retrato pintado.
Ela ergueu então a mãozita delicada, colocou-lha sobre o ombro e fê-la deslizar lentamente, ao longo do seu braço. Nunca tinha sentido uma carícia tão suave, tão doce como aquela, e, se não tivesse visto, acreditaria que ela não lhe tinha tocado; mas olhou e viu a mãozinha descendo pelo braço, e foi como se um fogo o queimasse, através da manga, na carne viva. Observou-a até que a viu alcançar a extremidade da manga, onde se deteve, em estudada hesitação, antes de pousar no pulso e cair na concavidade da sua mão áspera e negra. Wang Lung começou a tremer, sem saber como recebê-la.
Ouviu então uma risada viva, rápida, tilintante como o sino de prata de um pagode repicando ao vento. E uma vòzinha semelhante à risada exclamou:
Oh! Como és ignorante, meu grandalhão! Queres ficar aqui toda a noite a contemplar-me?
Ao ouvir isto, Wang Lung apertou-lhe a mão entre as suas, mas cuidadosamente, porque era frágil como uma folha seca, escaldante e magra, e exclamou num tom suplicante, sem saber o que dizia:
Não sei nada... ensina-me!
E ela ensinou-lhe.
Wang Lung estava agora doente, da maior doença que um homem pode ter. Sofrera trabalhando ao sol, sofrera os açoites dos ventos gelados e secos do áspero deserto, sofrera fome quando os campos não produziam, sofrera o desespero de trabalhar sem esperanças, nas ruas de uma cidade do Sul. Mas nenhum desses males o fizera sofrer como sofria agora, sob a leve mão daquela rapariga.
Ia diariamente à casa de chá. Todas as tardes esperava até que ela o quisesse receber e todas as noites ela o recebia. E todas as noites ele era o mesmo boçal que não sabia nada, trémulo diante da porta, sentando-se empertigado ao lado dela à espera do sinal do seu sorriso, e depois, febril, cheio de uma fome doentia, seguia, servilmente, pouco a pouco, a revelação dela, até ao momento supremo em que, como uma flor em estado de ser colhida, ela se oferecia para que ele a possuísse totalmente.
Contudo, nunca pôde possuí-la inteiramente e era isso que o tornava febril e insaciado, mesmo quando ela se abandonava ao seu desejo. Quando O-lan fora para sua casa, trouxera saúde para a sua carne: desejava-a vigorosamente como um animal a sua fêmea, e depois de a possuir ficava satisfeito, não pensava mais nela, e ia trabalhar contente. Mas agora não encontrava a mesma satisfação no seu amor por aquela criatura e ela não lhe dava saúde. De noite, quando se fartava dele, punha-o fora do quarto petulantemente, empurrando-o com as pequeninas mãos, cujo vigor sentia de repente nos ombros, e, depois de lhe atirar o dinheiro para o colo, saía tão faminto como entrara. Era como se um homem morto de sede bebesse água salgada do mar que, apesar de ser Agua, seca o sangue nas veias e aumenta a sede cada vez mais, até que por fim morre, enlouquecido pela sede insuportável. Ia procurá-la todos os dias e o seu desejo aumentava constantemente, pois voltava sempre insatisfeito.
Durante aquele Verão ardente, Wang Lung amou aquela mulher. Nada sabia a seu respeito, de onde viera e quem era. Quando estavam juntos, ele mal falava e quase não prestava atenção à constante tagarelice dela, viva e entrecortada de risadas, como a de uma criança. Apenas contemplava o seu rosto, as suas mãos, as atitudes do seu corpo, a expressão dos seus olhos grandes e langorosos; bebia-a com o olhar. Nunca se saciava, e voltava para casa, ao amanhecer, aturdido e insatisfeito.
Os dias eram infindáveis. Negava-se agora a dormir na própria cama, alegando o calor do quarto. Estendia uma esteira debaixo dos bambus e ali dormia inquietamente, ficando horas e horas acordado a contemplar as sombras esguias das folhas de bambu, com o coração cheio de um pesar doce e doloroso, que não podia compreender.
E se alguém lhe falava, a mulher ou os filhos, ou se Ching chegava e lhe dizia:«Em breve as águas baixarão. Que havemos de preparar para semear?» ele gritava:
Para que me incomodas?
E a todo o momento o coração parecia querer rebentar-lhe, porque não podia ficar saciado daquela mulher.
Enquanto os dias assim decorriam e ele só vivia à espera que chegasse a noite, não olhava para o rosto preocupado de O-lan e dos filhos, que paravam de brincar quando ele se aproximava, nem para seu velho pai, que o examinava e lhe perguntava:
Que doença é essa que te faz tão mal-humorado e te torna a pele amarela como a oca?
E quando chegava a noite, Lotus fazia dele o que queria. Uma vez, ela pôs-se a rir do seu rabicho, embora ele passasse grande parte do dia a pentear-se e a fazer a trança, e disse-lhe :
Os homens do Sul já não usam rabos de macaco.
Ele saiu, sem dizer palavra, e mandou cortá-lo. Até aí nem com risadas, nem com zombarias, ninguém tinha sido capaz de o convencer a fazer aquilo. Quando O-lan viu o que ele tinha feito, exclamou aterrorizada:
Cortou a sua vida! Mas ele gritou-lhe:
Querias então que parecesse sempre um imbecil, à moda antiga? Todos os rapazes da cidade usam o cabelo cortado.
Contudo, no seu íntimo, estava receoso do que fizera; mas teria cortado até a própria vida, se Lotus lho tivesse ordenado ou desejado, porque ela possuía todos os encantos que jamais pudera imaginar numa mulher. Ele, que dantes lavava raramente o seu corpo sadio e moreno, achando que o honesto suor do seu trabalho era suficiente para o lavar nos dias comuns, cuidava-o agora como se fosse outro homem e lavava-o diariamente, a ponto de sua mulher lhe dizer, preocupada:
Acabarás por matar-te com tanta barrela!
Comprou sabonetes cheirosos no bazar, sabonetes estrangeiros, vermelhos e perfumados, para esfregar o corpo, e por coisa alguma deste mundo comeria cabeças de alho, coisa de que tanto gostava dantes, pois não queria tresandar a alho diante dela. Ninguém em sua casa sabia como explicar tudo aquilo.
Também comprou panos novos para roupas.
O-lan tinha-lhe feito sempre a roupa, deixando-a larga e comprida para que tivesse boa medida, cosendo-a com linha grossa e pontos miúdos para que resistisse; mas agora ele desdenhava a sua maneira de cortar e coser. Pegou na fazenda e levou-a a um alfaiate da cidade, para que lhe fizesse uma túnica como as dos homens -de lá, de brilhante seda cinzenta, cortada à medida do seu corpo e ajustada, sem pano de mais, uma jaleca de cetim preto, sem mangas, para vestir sobre a túnica. Comprou os sapatos mais finos que tivera em toda a sua vida, não fabricados por sua mulher. Eram de veludo preto, como aqueles que o patrão velho usava e lhe batiam nos calcanhares.
Mas envergonhava-se de usar aquelas roupas assim de repente, diante de O-lan e dos filhos. Deixava-as na casa de chá, enroladas em oleado, nas mãos de um empregado com quem travara conhecimento e que, mediante uma gorjeta, consentia que ele fosse vestir-se às escondidas, num quarto do fundo, antes de subir a escada. Comprou ainda um anel de prata dourada para meter no dedo, e como o cabelo lhe tivesse crescido no sítio em que o rapara à frente, alisava-o com óleo perfumado de marca estrangeira, que comprou num pequeno frasco, por uma moeda de prata.
O-lan olhava-o atónita, sem saber que pensar de tudo aquilo, e um dia, depois de o ter fixado durante muito tempo, enquanto comiam arroz, ao meio-dia, disse pausadamente:
Há alguma coisa em si que me faz lembrar aqueles senhores da Casa Grande.
Wang Lung soltou uma gargalhada e respondeu:
Querias então que parecesse sempre um labrego, quando temos bastante dinheiro para gastar?
Mas no íntimo sentiu-se muito lisonjeado e naquele dia mostrou-se mais amável para ela do que era há muito tempo.
Agora o dinheiro, a boa prata, corria das suas mãos a jorros. Não tinha apenas que pagar as horas que passava com Lotus, mas que satisfazer também os seus caprichos. Ela tinha tanto jeito para pedir! Às vezes, suspirava e murmurava como se o coração lhe desfalecesse quase de desejo:
Ah, pobre de mim! Pobre de mim!
E quando ele, que já tinha aprendido a falar na presença dela, lhe segredava: «Que tens, meu amorzinho ?»ela respondia:
Não tenho alegria hoje porque Jade Negro, que mora no quarto em frente, tem um amante que lhe deu um alfinete de ouro para o cabelo, e eu só possuo um de prata, já velhíssimo!
Então, como se a sua vida dependesse disso, Wang Lung murmurava-lhe, enquanto lhe apartava a onda negra e macia do cabelo, para ter o prazer de lhe ver as orelhinhas de largos lóbulos:
Eu comprarei também um alfinete de ouro para o teu cabelo, minha jóia!
Ela tinha-lhe ensinado todos estes nomes de carinho, como quem ensina palavras novas a uma criança. Ensinara-o a dizer-lhos e ele gostava de balbuciá-los e nunca se cansava de repeti-los, ele, cuja linguagem se havia limitado sempre a falar de sementeiras e de colheitas, de sol e de chuva.
Assim, a prata foi saindo da parede e do saco; e O-lan, que noutros tempos lhe teria perguntado, sem dúvida, com desembaraço, «para que tiras o dinheiro da parede?»agora não dizia nada; limitava-se a olhar para ele desoladamente, sabendo muito bem que estava vivendo uma vida à parte da sua e até à parte da terra, mas não sabia que vida era. Desde aquele dia em que ele vira claramente que os seus cabelos e o seu corpo não eram bonitos, e os seus pés eram demasiado grandes, ela tinha medo dele e não ousava perguntar-lhe o que quer que fosse, porque ele se mostrava sempre aborrecido com ela.
Certo dia, quando Wang Lung regressava a casa, através dos campos, encontrou-a a lavar roupa no tanque. Ficou ali um momento calado e depois disse-lhe, com rudeza, porque, no seu íntimo, estava envergonhado e não queria reconhecê-lo:
Onde estão aquelas pérolas que tinhas?
Ajoelhada na borda do tanque, ela levantou os olhos da roupa que batia contra uma pedra lisa e plana e respondeu, timidamente:
As pérolas? Tenho-as aqui.
E ele, sem a fixar, olhando-lhe para as mãos molhadas e enrugadas, resmungou:
Não faz sentido guardar pérolas para nada. Então ela disse, pausadamente:
Pensei que talvez algum dia pudesse mandar engastá-las em uns brincos...
E receando que ele fizesse troça, continuou:
Poderia dá-los à nossa filha mais nova, quando se casasse. Wang Lung, com o coração endurecido, retorquiu:
Que história é essa tua de usares pérolas em cima de uma pele tão preta como a terra? As pérolas são para as mulheres brancas! E depois de um instante de silêncio, gritou subitamente:Dá-me as pérolas!... Preciso delas!
Lentamente, O-lan meteu a mão molhada no seio e tirou o embrulhinho, entregando-o a Wang Lung, a quem ficou observando, enquanto o abria. As pérolas surgiram na mão de Wang Lung, irisando-se à luz do Sol, com reflexos suaves, e ele sorria-lhes. O-lan voltou a bater a roupa e quando as lágrimas começaram a correr lenta e pesadamente pelo rosto, não levantou a mão para as enxugar; continuou a bater, mais vigorosamente, com o pau, a roupa estendida sobre a pedra.
As coisas podiam ter continuado assim, até que o dinheiro se acabasse, se o tio de Wang Lung não tivesse regressado inesperadamente, sem explicar de onde vinha nem o que tinha feito. Apareceu à porta como se tivesse caído das nuvens, com a roupa em farrapos, sem botões, atada pela cintura, e a cara de sempre, apenas um pouco mais enrugada e curtida pelo sol e pelo vento. Sorriu amplamente para toda a família, reunida em torno da mesa, para a refeição matinal. Wang Lung ficou boquiaberto, pois tinha-se esquecido já de que seu tio vivia, e julgava ver diante de si uma alma do outro mundo. Seu pai pestanejou e examinou o recém-chegado, sem o reconhecer, até que ele exclamou:
Ora muito bem, meu irmão maior, teu filho e seus filhos e minha sobrinha!
Então Wang Lung levantou-se intimamente consternado, mas aparentando cortesia nas maneiras e na voz:
Como está, meu tio? Já comeu?
Não respondeu o tio com desembaraço mas comerei convosco.
Sentou-se logo à mesa, puxou para si uma tigela e pauzinhos, e serviu-se fartamente de arroz, peixe seco, cenouras salgadas e feijões. Comeu como quem está muito faminto e não disse palavra enquanto não engoliu três tigelas da fina papa de arroz, trincando sofregamente as espinhas de peixe e os feijões. Terminado o repasto, disse simplesmente, como quem proclama um direito:
Agora vou dormir, porque há três noites que não durmo.
Wang Lung, aturdido e entendendo que não podia fazer outra coisa, conduziu-o ao quarto de seu pai. O tio abriu a cama, apalpou o bom tecido de fresco algodão dos alvos lençóis, mirou a madeira da cama e da mesa, a cadeira que Wang Lung comprara para seu pai, e disse:
Muito bem. Tinha ouvido dizer que estavas rico, mas não imaginava que fosse tanto.
E deitou-se na cama, cobrindo-se com a colcha, apesar do calor que fazia; e servindo-se de tudo como se estivesse em sua casa, ferrou a dormir sem dizer mais nada. Wang Lung voltou para a sala de jantar desanimado, pois tinha a certeza de que seu tio já se não ia embora desde que sabia que ele estava em condições de sustentá-lo. Wang Lung pensou nisso e pensou também na mulher de seu tio, com fundados receios, porque previa que viriam instalar-se ambos em sua casa, e não podia evitá-lo. Aconteceu justamente o que ele receava. Já passava do meio-dia quando o tio se espreguiçou em cima da cama, bocejando em voz alta, três vezes, saiu do quarto, aconchegando a roupa ao corpo, e disse a Wang Lung:
Agora vou chamar minha mulher e meu filho. Somos três bocas, mas nesta grande casa que é a tua não se dá pela falta do que comermos, nem das pobres roupas que usarmos.
Wang Lung respondeu-lhe apenas com um olhar taciturno, pois seria uma vergonha, para quem tem meios de sobra, expulsar de sua casa o irmão de seu pai. Sabia que, se fizesse isso, lhe serviria de opróbrio na aldeia, onde agora era respeitado pela sua prosperidade, e por isso não ousou dizer nada. Ordenou, pois, aos trabalhadores que se instalassem todos na casa velha, de modo a deixarem livres os quartos da frente, e para eles entrou, naquela mesma noite, seu tio, com a mulher e o filho. Wang Lung estava sumamente encolerizado, principalmente por ter que recalcar o seu rancor e de responder aos seus parentes com sorrisos e dispensar-lhes bom acolhimento. Contudo, quando viu a cara bochechuda e plácida da mulher de seu tio. quase rebentava de raiva, e quando deu com a cara insolente e cínica do filho, mal pôde conter o ímpeto de esbofeteá-lo! Durante três dias, andou tão indignado que não foi à cidade.
Depois, quando já se tinha resignado à nova situação e O-lan lhe disse:«Acaba com essa raiva, pois não há outro remédio senão suportá-los» e ele mesmo viu que seu tio, a mulher e o filho se mostravam suficientemente corteses para se garantirem casa e comida, os pensamentos de Wang Lung voltaram-se com mais violência do que nunca para Lotus, e disse consigo:
Quando a casa de um homem está cheia de cães selvagens, deve ele buscar a paz noutra parte.
E toda a febre e toda a angústia de outrora arderam novamente dentro dele, que sentia ainda o mesmo amor insaciado.
Ora o que O-lan, na sua ingenuidade, não conseguira ver, nem o velho, pelos achaques da idade, nem Ching, por causa da sua amizade, viu imediatamente a mulher do tio, que exclamou com o riso a bailar-lhe nos olhos:
Ah! Ah! Wang Lung está tratando de colher uma flor em qualquer parte.
E quando O-lan olhou para ela, humildemente, sem compreender, disse de novo, rindo:
É preciso abrir o melão de meio a meio para que possas ver as sementes, hem? Pois olha, com franqueza, o teu homem está louco por outra mulher!
Wang Lung ouviu esta conversa da mulher de seu tio porque estava no quarto, deitado na cama, sonolento e cansado, naquela manhã, depois de uma noite de amor, e ela estava no pátio, em frente da janela. Despertou imediatamente e pôs-se a ouvi-la admirado da sagacidade da mulher. com uma voz rouca que corria como azeite da sua garganta gorda, ela continuou:
Ora, conheço muito bem os homens! Quando um deles começa a pôr pomadas no cabelo, a comprar roupas novas e sei] apressa a usar sapatos de veludo, então não pode haver dúvida: há outra mulher de permeio.
O-lan emitiu algumas palavras entrecortadas que ele não pôde compreender, e a mulher de seu tio prosseguiu:
Não se deve pensar, minha pobre tola, que uma mulher chegue para um homem, e se ela é trabalhadeira e se estragou a trabalhar para ele, menos ainda lhe chega. A imaginação desse homem leva-o para outra parte com mais rapidez, e tu, pobre inocente, nunca pudeste encher a imaginação de um homem, sendo para ele como um boi de trabalho. E não deves queixar-te se agora, que tem dinheiro, comprar outra mulher e a trouxer para casa, pois todos os homens são assim, e o mesmo faria o mandrião do meu velho marido, mas o pobre diabo nunca teve dinheiro nem para comer.
Disse isto e muito mais. Wang Lung, porém, da sua cama, só ouviu aquilo, porque logo o seu pensamento se detivera. De súbito, viu então como poderia satisfazer a sua fome e a sede da mulher que amava. Comprá-la-ia e trá-la-ia para sua casa, faria dela sua mulher, de modo que nenhum outro homem a possuísse, e assim poderia saciar o seu amor. Levantou-se imediatamente e saiu, fazendo um sinal discreto à mulher de seu tio. Quando ela foi ao seu encontro, fora da porta, debaixo da tamareira, onde ninguém podia ouvir a sua conversa, disse-lhe:
Ouvi tudo o que disseste no pátio e dou-te razão. A minha mulher já não me satisfaz. E porque não hei-de ter outra, agora que possuo terra suficiente para sustentar todos?
Ela respondeu com solicitude:
E porque não, na verdade? Todos os homens ricos têm várias. Só os pobres se vêem reduzidos a beber por um único vaso. Falou assim, porque adivinhava o que ele ia dizer:
Mas quem se há-de encarregar desse negócio como intermediário? Um homem não pode dirigir-se a uma mulher e dizer-lhe: «Vem para minha casa.»
Ao que ela respondeu, imediatamente:
Deixe o negócio por minha conta. Diga-me só quem é a mulher, que eu arranjarei tudo.
Então Wang Lung respondeu, contrariado e timidamente, porque nunca lhe pronunciara o nome em voz alta diante de ninguém:
É uma chamada Lotus.
Parecia-lhe que toda a gente devia saber quem era Lotus, esquecendo-se de que nem ele mesmo, duas luas antes, sabia da sua existência. Mostrou-se impaciente, pois, quando a mulher de seu tio perguntou:
E onde vive?
Ora essa!respondeu com aspereza. Onde queria que vivesse senão na grande casa de chá da rua principal da cidade?
Na chamada «Casa das Flores»?
Em qual havia de ser?retorquiu Wang Lung.
Ela ficou a pensar um instante, puxando o lábio inferior, e disse por fim:
Não conheço ali ninguém, mas hei-de achar um meio. Quem guarda essa mulher?
E quando ele lhe disse que era Cuckoo, que fora escrava na casa grande, ela continuou, rindo:
Ah! É ela? Foi a isso que se dedicou depois que o patrão velho morreu, certa noite, na cama dela? Ora essa! Ela só dava para isso.
Soltou de novo uma casquinada de riso: «Ah... Ah... Ah...» e acrescentou com desembaraço:
Então é ela!? Nesse caso a coisa é simples. Tudo se arranja. Ela! ? Seria capaz de remover montanhas se lhe metessem dinheiro na palma da mão.
Ouvindo isto, Wang Lung sentiu a boca seca e a voz saiu-lhe quase imperceptível:
Dinheiro! Prata e ouro! Tudo o que for preciso, ainda que tenha de vender as minhas terras!
Então, por uma estranha e contraditória febre amorosa, Wang Lung não quis voltar à grande casa de chá enquanto o negócio não se concluísse. A si mesmo dizia:
Se ela não vier para minha casa e for só minha, corto o pescoço se voltar a procurá-la!
Mas ao pensar nas palavras: «Se ela não vier»o coração parava-lhe de angústia, de modo que atormentava constantemente a mulher de seu tio:
Que não seja por causa de dinheiro que nos fechem a porta! E de novo repetia:
Disseste a Cuckoo que tenho ouro e prata à discrição? E tornava a insistir:
Dize-lhe que não terá de fazer trabalho de espécie alguma em minha casa; trajará somente roupas de seda e comerá barbatanas de tubarão todos os dias, se quiser.
Tanto lho repetiu que a gorda mulher acabou por se impacientar e lhe gritou, rolando os olhos nas órbitas:
Basta! Basta! Pensa que sou alguma tola, ou que esta é a primeira vez que ajunto um homem e uma mulher? Deixe-me em paz que eu trato disso. Já lho disse muitas vezes.
Wang Lung não tinha outra ocupação que não fosse roer as unhas e tornar a casa digna de receber Lotus. Desorientava O-lan, encarregando-a de fazer muitos serviços ao mesmo tempo: varrer, lavar, mudar de sítio mesas e cadeiras, a ponto de a pobre mulher se aterrorizar, pois bem sabia, embora ele não desse explicações, o que estava para acontecer-lhe.
Wang Lung não tolerava dormir com O-lan e achou que, com duas mulheres em casa devia haver mais quartos e outro pátio, e um lugar onde pudesse estar a sós com o seu amor. Assim, enquanto esperava que a mulher de seu tio ultimasse o negócio, mandou chamar os trabalhadores e ordenou-lhes que construíssem outro pátio atrás da sala do meio, e em redor do pátio três quartos, um grande e dois pequenos, um de cada lado. Os trabalhadores olharam-no com assombro, mas não ousaram replicar, e, sem lhes dar explicações, dirigiu ele próprio os serviços, para não ter que falar a respeito do que fazia, nem mesmo com Ching. Os criados trouxeram barro dos campos e levantaram as paredes. Wang Lung mandou vir da cidade telhas para o telhado.
Depois de construídos os quartos e de batida e alisada a terra do chão, mandou trazer ladrilhos que os homens ajuntaram uns aos outros, ligando-os com cal, de modo que os três quartos para Lotus ficaram bem ladrilhados. Wang Lung comprou pano vermelho para fazer as cortinas das portas, uma nova mesa e duas cadeiras lavradas para as colocar de cada lado e dois painéis em que estavam pintadas montanhas e água, para os pendurar na parede, por detrás da mesa. Comprou uma compoteira redonda de laca vermelha, com tampa, dentro da qual pôs bolos de gergelim e doces de manteiga, colocando-a sobre a mesa. Comprou ainda uma cama esculpida, alta e larga, bastante grande para um quarto relativamente pequeno, e cortinas de ramagens para lhe pôr em volta. Mas, como tinha vergonha de solicitar para tudo isso o auxílio de O-lan, foi a mulher de seu tio, que vinha todas as noites, quem colocou os cortinados da cama e fez tudo o mais que os homens não têm jeito para arranjar.
Depois de tudo pronto, decorreu uma lua e o negócio ainda não estava concluído, de modo que Wang Lung passava o tempo sozinho, no novo pátio que mandara construir para Lotus. Resolveu fazer um tanquezinho no centro do pátio. Mandou chamar um trabalhador que cavou o solo e fez um tanque de três pés de lado, revestido de pequenas lousas. Wang Lung foi à cidade e adquiriu cinco peixinhos dourados para o tanque. Feito isto, não lhe ocorreu nada mais para fazer e de novo esperou impaciente e febril.
Durante todo esse tempo, não dizia nada a ninguém. Apenas repreendia as crianças, se tinham o nariz sujo, ou berrava com O-lan por «não pentear o cabelo há três dias», de modo que uma manhã O-lan rompeu a chorar alto como nunca tinha feito, nem mesmo quando estavam famintos. Wang Lung falou-lhe com rudeza:
Que é isso, mulher? Não posso dizer que penteies esse rabo de cavalo que usas como cabelo sem que faças tamanho escarcéu ?
Ela, porém, limitou-se a repetir entre gemidos:
Dei-te filhos... Dei-te filhos...
Wang Lung calou-se, e, embaraçado, deixou-a sozinha, porque se sentia envergonhado diante dela. É verdade que, perante a lei, não tinha queixa alguma de sua mulher, porque ela lhe dera três robustos filhos, que estavam vivos, e nenhuma desculpa havia para ele, a não ser o seu desejo.
As coisas continuaram assim até ao dia em que a mulher de seu tio lhe disse:
O negócio está feito. A mulher que o dono da casa de chá tem como intermediária fará a coisa por cem moedas de prata, de contado, e a rapariga virá em troca de uns brincos de jade, um anel de jade, um anel de ouro, dois vestidos de cetim, dois de seda, uma dúzia de pares de sapatos e duas colchas de seda para a sua cama.
De tudo isto Wang Lung só ouviu a primeira parte: «O negócio está feito». E exclamou:
Está feito... está feito.
Correu ao quarto e trouxe o dinheiro que despejou nas mãos dela, às escondidas, porque não queria que ninguém visse que o rendimento das boas colheitas de tantos anos se sumia assim, e disse-lhe:
Podes ficar com dez moedas de prata.
Fingindo que recusava o presente, ela recuou o corpanzil e, movendo a cabeça, exclamou a meia voz:
Não, não quero. Somos da mesma família, és meu filho e eu sou tua mãe. Fiz isto por ti e não por dinheiro.
Mas Wang Lung viu que apesar da recusa tinha a mão estendida, e despejou nela o dinheiro, prodigamente.
Depois, comprou carne de vaca e de porco, peixes raros, rebentos de bambu e castanhas, ninhos de andorinhas do Sul para fazer sopa, barbatanas de tubarão secas, todas as gulodices que pôde imaginar, e pôs-se à espera... se podia chamar-se espera aquela impaciência ardente e tumultuosa que o consumia.
Num dia quente e radiante da oitava lua, que é o final do Verão, Lotus chegou a casa dele. De longe, Wang Lung viu-a chegar. Vinha num palanquim de bambu, fechado, conduzido aos ombros de homens, e ele viu o palanquim ondular, serpenteando pelos caminhos estreitos. Atrás, vinha Cuckoo. Então, por um instante, teve receio e disse consigo:
Quem vou eu meter em minha casa?
E meio atordoado correu para o quarto onde dormira tantos anos com sua mulher. Fechou a porta e ali, na obscuridade do quarto, esperou, confuso, até que ouviu a mulher de seu tio chamá-lo em voz alta, porque alguém o esperava à porta.
Então, envergonhado como se nunca tivesse visto a rapariga diante de si, saiu vagarosamente, inclinando a cabeça sobre as roupas finas, olhando de soslaio. Cuckoo chamou-o alegremente:
Muito bem, sempre pensei que faríamos um negócio como este!
E dirigindo-se ao palanquim que os homens haviam deposto no chão, levantou a cortina e, fazendo estalar a língua, disse:
Sai, minha Flor de Lótus, aqui está a tua casa e o teu senhor.
Wang Lung estava num suplício, porque via no rosto dos carregadores sorrisos irónicos, e pensou:
Ora! Estes sujeitos são uns vadios da cidade, gente desprezível e sem cotação.
Indignou-se consigo mesmo por sentir a cara vermelha e escaldante e por isso resolveu calar-se.
Então a cortina levantou-se e Wang Lung viu, sentada no interior escuro da cadeirinha, pintada e fresca como um lírio, a jovem Lotus. Esqueceu tudo, até mesmo a sua cólera contra os maliciosos vadios da cidade, tudo menos que a tinha comprado para si e que ela vinha viver com ele para sempre. Ficou entorpecido, mas trémulo, vendo-a erguer-se, grácil como uma flor que ondula ao sopro do zéfiro. Depois, como ele a fitava absorto, Lotus tomou a mão de Cuckoo e desceu do palanquim, de cabeça inclinada e olhos baixos, caminhando a passos incertos e vacilantes, apoiada ao braço de Cuckoo. Passou diante dele sem lhe dizer palavra e perguntou a Cuckoo, com uma voz langorosa:
Onde é o meu quarto?
Então a mulher de seu tio veio ampará-la do outro lado, e ambas a conduziram pelo pátio para os novos quartos que Wang Lung mandara construir.
Mas ninguém da casa de Wang Lung a viu passar, porque ele mandara os criados e Ching trabalhar naquele dia para um campo afastado. O-lan tinha saído com os dois gémeos sem dizer para onde ia, os dois rapazes estavam na escola, o velho dormia encostado à parede sem ver e sem ouvir nada, e a tolinha não percebia quem entrava ou saía e só conhecia os rostos do pai e da mãe. Logo que Lotus entrou no quarto, Cuckoo cerrou as cortinas sobre ela.
Após alguns momentos, a mulher do tio de Wang Lung voltou, com um risinho malicioso, esfregando as mãos, como se quisesse sacudir alguma coisa.
Esta mulher pintada e perfumada disse ela rindo tresanda como se fosse uma coisa ruim. Depois acrescentou com maior malícia:Não é tão nova como aparenta, meu sobrinho! Estou mesmo em dizer que, se não estivesse à beira da idade em que os homens deixarão de olhar para ela, nem brincos de jade, nem anéis de ouro, nem vestidos de cetim e seda a teriam decidido a vir para casa de um lavrador, mesmo que fosse um lavrador rico.
Mas vendo que Wang Lung se indignara ao ouvir linguagem tão franca, apressou-se a acrescentar:
Lá bonita é ela. Nunca vi outra mais bela e será deliciosa para ti como o arroz das oito pedras preciosas que servem nos banquetes, depois dos anos que passaste com a ossuda escrava da Casa de Hwang.
Wang Lung não respondeu. Passeava, de um lado para o outro, pela casa, apurando o ouvido sem poder estar tranquilo. Por fim, não se conteve: levantou a cortina vermelha, atravessou o pátio que mandara construir para Lotus, e entrou na penumbra do quarto onde ela estava. Ficou junto dela todo o dia, até à noite.
Durante todo esse tempo, O-lan conservou-se fora de casa. De madrugada, pegou numa enxada, chamou os filhos e saiu levando um pouco de comida fria, enrolada numa folha de couve; mas ainda não tinha regressado. Ao cair da noite, entrou em casa silenciosa, suja de terra e cansada, seguida pelos filhos, calados. Sem dizer palavra, foi para a cozinha, preparou a ceia e pô-la sobre a mesa como de costume, chamou o velho, meteu-lhe na mão os pauzinhos, deu de comer à tolinha e comeu alguma coisa com os filhos. Depois de deitar as crianças, como Wang Lung continuava sentado à mesa, a sonhar, levantou-se para se deitar e foi para o quarto, onde dormiu sozinha na sua cama.
Então Wang Lung pôde saciar, noite e dia, o seu amor. Passava os dias no quarto onde Lotus jazia indolente sobre a cama, sentado ao lado dela a contemplar-lhe os gestos. Lotus nunca saía nos dias de calor dos princípios do Outono, ficando no quarto, onde Cuckoo lhe lavava o esbelto corpo com água morna, lhe friccionava a pele com óleo e perfumes e lhe untava o cabelo, pois havia exigido obstinadamente que Cuckoo ficasse junto de si como criada, pagando-lhe prodigamente, de maneira que a mulher estava bem satisfeita por servir uma só em vez de muitas. Ela e Lotus, sua patroa, viviam à parte dos outros, no novo pátio que Wang Lung mandara construir.
Todo o dia a rapariga ficava deitada na fresca penumbra do quarto, mordiscando bolos e compotas, com um trajo leve de seda verde, um casaquinho apertado na cintura, e umas calças largas. E assim Wang Lung a encontrava quando vinha vê-la e saciar a sua paixão.
Ao pôr do Sol, Lotus, com encantadora petulância, mandava-o sair. Cuckoo banhava-a e perfumava-a de novo, vestindo-lhe roupas frescas, de macia seda branca sobre a pele e, por cima, seda cor de pêssego, as sedas que Wang Lung lhe dera. Cuckoo calçava-lhe os pés com sapatinhos bordados e depois Lotus ia para o pátio e entretinha-se a ver o tanquezinho onde nadavam os cinco peixes vermelhos, enquanto Wang Lung a contemplava maravilhado. Ali passeava, com os seus passinhos miúdos, e para Wang Lung nada havia tão maravilhosamente belo no mundo, como os seus pèzinhos pontiagudos e as suas mãos finas e afiladas.
E saboreava sozinho o banquete do seu amor, satisfeito e feliz.
ERA de esperar que a vinda de Lotus e da sua criada Cuckoo para casa de Wang Lung não se realizasse sem choque e sem discórdia, pois não poderá haver paz debaixo do tecto que abriga mais de uma mulher. Mas Wang Lung não previra isso e embora percebesse, pela expressão sombria de O-lan e pela ammonia de Cuckoo, que nem tudo caminhava bem, não fazia caso disso, nem dava atenção a ninguém, enquanto durou o primeiro fogo da sua paixão.
Quando o dia sucedeu à noite e a noite ao dia, Wang Lung viu bem que não sonhava, que o Sol nascia todas as manhãs e essa mulher estava ali, que as luas se sucediam e ele tinha sempre Lotus ao alcance da sua mão, submissa ao seu prazer. A sua sede de amor acalmou-se um pouco e pôde então ver coisas de que nunca se tinha apercebido.
Descobriu primeiro que havia animosidade entre O-lan e Cuckoo. Foi para ele um espanto. Esperava que O-lan detestasse Lotus, porque ouvira falar muitas vezes de situações semelhantes, em que mulheres se enforcavam em uma viga quando o marido trazia nova mulher para casa, e outras que brigavam e procuravam tornar insuportável a vida do marido, para se vingarem do que tinha feito. Sentia-se satisfeito por O-lan ser tímida, pois ao menos dispensava-se de o injuriar. Mas não previra que, enquanto se calava a respeito de Lotus, a sua cólera se voltasse para Cuckoo.
Ora Wang Lung só tinha pensado em Lotus, quando esta lhe pedira:
Deixa que eu conserve esta mulher como criada, pois estou sozinha no mundo. Meu pai e minha mãe morreram quando eu ainda nem falava, o meu tio vendeu-me logo que me viu bonita para a vida que tenho levado, e não tenho ninguém.
Acompanhou o pedido com as suas lágrimas, sempre fáceis, que brilhavam nos cantos dos seus belos olhos; e Wang Lung nada podia negar-lhe quando a via assim. Era verdade que ela não tinha quem a servisse e ficava sozinha em casa, pois não era de esperar que O-lan a servisse, visto que lhe não falava nem tão-pouco parecia dar conta da sua presença. Restava a mulher de seu tio, mas repugnava a Wang Lung ter aquela mulher a intrometer-se, a bisbilhotar junto de Lotus, somente para ela ter com quem falar. Cuckoo era, pois, a mais conveniente para o caso, tanto mais que ele não conhecia mulher alguma que aceitasse aquela incumbência.
Mas O-lan, quando viu Cuckoo, encheu-se de uma cólera tão profunda e tão sombria como Wang Lung nunca lhe conhecera e de que a não supunha capaz. Cuckoo estava bem desejosa de se tornar amiga de O-lan, visto que era paga por Wang Lung, mas, apesar disso, não esquecia que, na Casa Grande, era a favorita do senhor, enquanto O-lan era apenas uma escrava de cozinha entre muitas outras. Não obstante, quando viu O-lan pela primeira vez, dirigiu-se-lhe em tom cordial:
Muito bem, minha velha amiga, estamos novamente juntas na mesma casa. Agora és a patroa e primeira esposa... minha mãe, como se diz. Como as coisas mudam!
Mas O-lan limitou-se a olhá-la fixamente e quando compreendeu quem ela era e que papel desempenhava, não disse nada; depôs o jarro da água que levava e dirigiu-se à sala do meio, onde Wang Lung permanecia nos intervalos do seu amor. E disse-lhe francamente:
Que faz esta escrava em nossa casa?
Wang Lung olhou para um lado e para outro. Gostaria de responder, num tom autoritário de senhor: «Ora esta, estou em minha casa, onde podem entrar todos aqueles que eu entender. E com que direito me fazes semelhante pergunta?» Mas não pôde fazê-lo, porque a presença de O-lan lhe causava vergonha. Essa vergonha enchia-o de raiva, porque, quando reflectia, não achava de que ter vergonha, pois não fazia mais do que os outros homens que tinham dinheiro para gastar.
Contudo, não podia falar e limitava-se a olhar para a direita e para a esquerda, fingindo ter perdido o cachimbo entre as roupas e rebuscando no cinto. Mas O-lan permanecia ali, obstinada, firme nos sólidos pés, à espera de resposta. Vendo que ele não respondia, perguntou de novo, claramente, com as mesmas palavras:
Que faz esta escrava em nossa casa?
Então Wang Lung, vendo que ela queria uma resposta, disse hesitante:
Que tens com isso? - E O-lan retrucou:
Durante toda a minha juventude, suportei os orgulhosos desplantes dela, na Casa Grande. Entrava na cozinha cem vezes, durante o dia, gritando: «Vamos! Depressa, chá para o patrão... comida imediatamente para o patrão...» e achava sempre tudo demasiado quente, demasiado frio, mal cozido, ou que eu era demasiado feia, demasiado lenta, e mais isto e mais aquilo...
Wang Lung não respondia, porque não sabia que dizer. O-lan esperou, e, como ele não respondesse, caíram-lhe lentamente dos olhos lágrimas ardentes e amargas, dos olhos que ela piscava para não chorar. Por fim, enxugou-os com a ponta do avental azul, dizendo:
E fazer-me sofrer um vexame em minha própria casa... E não tenho mãe a casa de quem me acolha, nem para onde ir!
Como Wang Lung permanecesse calado, sem nada lhe responder, sentado a fumar o seu cachimbo, O-lan fixou-o triste e amarguradamente, com aqueles seus olhos estranhos e mudos, como os de um animal que não pode falar, e depois saiu vacilante, procurando a porta às apalpadelas, porque as lágrimas a cegavam. Wang Lung viu-a afastar-se, satisfeito por ficar só, mas sempre envergonhado e encolerizado por se envergonhar. Disse então, em voz alta, resmungando exaltado, como se discutisse com alguém:
Ora, os outros homens são assim. Eu tenho sido até muito bom para ela. Há homens piores do que eu.
E concluiu que O-lan devia suportar aquilo.
Mas O-lan não dera a coisa por terminada, embora continuasse entregue, em silêncio, às suas ocupações. De manhã, aquecia água para o velho e fazia chá para Wang Lung, se ele não estava nos aposentos de Lotus; mas, quando Cuckoo vinha buscar água quente para a patroa, a caldeira estava vazia e as suas veementes reclamações ficavam sem resposta por parte de O-lan. Então Cuckoo só tinha o remédio de aquecer ela própria a água para Lotus, se a queria servir, mas, como eram horas de preparar a comida da manhã, a caldeira não estava disponível para aquecer água. O-lan, continuava a cozinhar, indiferente, sem atender os protestos violentos de Cuckoo:
Terá a minha pobre senhora de ficar morta de sede na cama, à espera de água quente?
Mas O-lan não a ouvia; continuava impassível a encher a fornalha de ervas e palhas que poupava com tanto cuidado e tão habilmente como nos velhos tempos, em que uma simples folha valia bastante para alimentar o lume debaixo da panela. Cuckoo foi então queixar-se a Wang Lung, que se enfureceu por ver que a sua apaixonada tinha que sofrer semelhantes coisas e foi ter com O-lan para a repreender, gritando-lhe:
Não podes deitar na caldeira um pouco mais de água, todas as manhãs?
Mas O-lan respondeu-lhe, com um rosto mais sombrio do que nunca:
Não sou, pelo menos, escrava de escravas, nesta casa. Não podendo conter mais a cólera, ele agarrou O-lan pelos ombros, sacudiu-a com força e disse-lhe:
Não sejas tão estúpida. Não é para a criada, mas sim para a senhora.
O-lan sofreu calma aquela violência, e, fitando-o disse simplesmente:
E foi a essa mulher que deu as minhas duas pérolas!
Ele deixou então cair as mãos e emudeceu. A cólera dissipara-se-lhe e, cheio de vergonha, retirou-se e foi dizer a Cuckoo:
Construiremos outra fornalha e farei outra cozinha. A minha primeira mulher não conhece os requintes de que a outra precisa para o seu corpo de flor... e que também poderás compartilhar. Cozinharás então o que quiseres.
Deu ordem, então, aos criados para construírem um pequeno compartimento com uma fornalha, e comprou um bom caldeirão. Cuckoo estava satisfeita, porque Wang Lung dissera:
Poderás cozinhar o que quiseres.
Wang Lung convenceu-se de que, afinal, as coisas estavam resolvidas satisfatoriamente, reinando a paz entre as suas mulheres. Poderia saborear tranquilamente o seu amor. De novo lhe parecia que nunca se cansaria de Lotus nem do seu modo de amuar-se com ele, cerrando as pálpebras, como pétalas de lírio, sobre os grandes olhos, nem da maneira sorridente de olhar quando fitava nele as suas brilhantes pupilas.
Mas afinal de contas a nova cozinha veio a ser um espinho no seu corpo, porque Cuckoo ia à cidade todos os dias e comprava alimentos caros, importados das cidades do Sul. Havia comida de que nunca ouvira falar: nozes exóticas, tâmaras cristalizadas, curiosos bolos de farinha de arroz com nozes e açúcar vermelho, peixes marítimos com chifres e muitas coisas mais. Tudo isso custava mais dinheiro do que lhe agradava gastar, embora Cuckoo o convencesse de que não era tanto assim. Contudo, não se atrevia a dizer-lhe: «Estás-me comendo vivo», com receio de ofendê-la e de a indispor consigo, o que desagradaria a Lotus, de modo que não tinha outro remédio senão meter a mão no cinto, deveras contrariado.
Era todos os dias o mesmo espinho, e, como não tinha com quem desabafar, o espinho entrava cada vez mais fundo, e o seu entusiasmo por Lotus foi arrefecendo cada vez mais.
Mas ainda havia outro pequeno espinho que brotava do primeiro: era que a mulher de seu tio, que apreciava os bons manjares, corria para os aposentos de Lotus, à hora das refeições, tornando-se ali muito familiar. A Wang Lung desagradava que, entre as pessoas da casa, logo aquela mulher tivesse sido a escolhida para íntima de Lotus. As três mulheres alimentavam-se bem nos aposentos, falavam sem parar, cochichando e rindo. Lotus tinha grande simpatia pela mulher do tio e todas três se sentiam felizes quando estavam juntas, o que desagradava a Wang Lung. Mas não podia evitá-lo, porque quando disse delicadamente a Lotus, para a lisonjear:
Lotus, minha flor, não desperdices as tuas gentilezas com uma velha porca gorda como essa. Preciso das tuas carícias para o meu coração. Ela é uma criatura falsa e desleal e não me agrada que esteja junto de ti, de manhã à noite ela zangou-se e respondeu irritada, fazendo beicinho e levantando a cabeça de cima do ombro dele:
Não tenho ninguém senão tu, não tenho amigos. Estou acostumada a viver em casas alegres e na tua só há a tua primeira mulher que me odeia e teus filhos que são um flagelo para mim. Não tenho ninguém!
E usou das suas armas contra ele. Não permitiu que entrasse no seu quarto naquela noite, e lamentou-se, dizendo:
Tu não gostas de mim, porque, se gostasses, havias de querer que eu fosse feliz.
Então Wang Lung, humilde e enternecido, capitulou. Pediu-lhe desculpa e acrescentou:
Far-se-á simplesmente e sempre a tua vontade.
Ela concedeu-lhe um perdão magnânimo e ele nunca mais se atreveu a contrariá-la fosse no que fosse. Quando ia ter com ela, se a encontrava conversando, bebendo chá ou comendo doce com a mulher de seu tio, tinha que esperar até que se lembrasse dele. Wang Lung afastava-se, furioso por ver que ela não lhe ligava importância quando estava em companhia daquela mulher, e o seu amor, sem que ele mesmo o percebesse, esfriou mais.
Causava-lhe indignação, além disso, que a mulher de seu tio comesse os finos manjares que comprava para Lotus e se tornasse mais gorda e mais oleosa do que nunca. Mas não podia dizer nada, porque a mulher de seu tio, que era astuta, se mostrava cortês para com ele, lisonjeando-o com boas palavras, e se levantava quando ele entrava no aposento.
Assim, o seu amor por Lotus não era já tão absoluto e perfeito como o fora quando ele se lhe entregava inteiramente de corpo e alma. Estava crivado de pequenos rancores, mais vivos ainda porque tinha que resignar-se a sofrê-los sem ao menos poder descarregar a bílis sobre O-lan, agora que as suas vidas estavam separadas.
E então, como um campo de espinhos que brotasse de uma só raiz, as preocupações de Wang Lung multiplicaram-se e estenderam-se por toda a parte.
Um dia, seu pai, que parecia nunca dar conta de nada, tão entorpecido o traziam os anos, despertou subitamente da sua sonolência ao sol, e com passos trôpegos, apoiado a uma bengala de cabeça de dragão, que Wang Lung lhe oferecera no dia do seu septuagésimo aniversário, dirigiu-se para a porta onde pendia uma cortina vermelha, entre a sala principal e o pátio em que Lotus passeava. O velho nunca reparara naquela porta, nem mesmo quando se construiu o pátio; parecia não ter notado ainda a presença de mais alguém na casa, e Wang Lung nunca lhe dissera: «tenho outra mulher», porque o velho estava tão surdo que não conseguia ouvir nada que fosse inesperado para ele.
Mas naquele dia viu, por acaso, aquela porta, dirigiu-se para ela e afastou a cortina. Era precisamente àquela hora da tarde em que Wang Lung passeava com Lotus no pátio. Estavam parados, ao lado um do outro, junto do tanque, olhando os peixes; mas era Lotus, sobretudo, que Wang Lung contemplava. Quando o velho viu o filho ao lado de uma delgada moça pintada, gritou, com a sua voz aguda, de cana rachada:
Temos uma meretriz em casa!
E não se calava. Wang Lung, receando que Lotus se encolerizasse porque aquela criaturinha guinchava, esganiçava-se e batia as mãos violentamente, quando se enfurecia foi ao encontro do velho e conduziu-o para o pátio exterior, procurando serená-lo, dizendo-lhe:
Acalme-se, meu pai. Não é uma meretriz, mas a minha segunda mulher que temos em casa.
Mas o velho não queria calar-se, tivesse ouvido ou não o que Wang Lung lhe dizia. E continuava a gritar, cada vez com mais força:
Há aqui uma meretriz!
Vendo Wang Lung a seu lado, disse-lhe de súbito:
Eu tive uma só mulher, meu pai teve uma só mulher, e nós lavrávamos a terra.
Depois de algum tempo, tornou a gritar:
Afirmo-te que é uma meretriz!
Foi assim que o velho despertou do seu sono intermitente, por uma espécie de ódio manhoso contra Lotus. Ia às vezes à porta do pátio dela e gritava, de súbito, para dentro:
Meretriz!
Ou então abria a cortina e cuspia furiosamente sobre os mosaicos do pátio, apanhava pedrinhas e deitava-as, com o seu braço fraco, no pequeno tanque, para assustar os peixes. E era com estas pequenas diabruras de garoto mau que ele exprimia o seu rancor.
Isto era também um motivo de distúrbios em casa de Wang Lung, porque ele tinha vergonha de repreender seu pai e temia ao mesmo tempo a cólera de Lotus, pois verificava que a rapariga tinha um génio exaltado que se inflamava facilmente. A preocupação de evitar que seu pai a encolerizasse acabou por fatigá-lo, e contribuía também para fazer do seu amor um pesado fardo.
Certo dia ouviu um grito estridente no pátio interior. Correu para la, porque reconheceu a voz de Lotus, e viu os dois filhos mais novos, o menino e a menina gémeos, que tinham levado consigo para o pátio interior a irmã mais velha, a tolinha. Ora os outros quatro filhos andavam muito intrigados com aquela mulher que morava no pátio interior. Os dois mais velhos, embora só falassem dela um com o outro e em segredo, sabiam muito bem porque ela estava ali e quais as relações que mantinha com seu pai, pois já tinham idade para compreender isso. Mas os dois mais novos não deixavam de a espreitar, trocando comentários, e de apurar o nariz ao perfume que ela usava, metendo os dedos nas tigelas de comida, que Cuckoo trazia dos seus aposentos, depois das refeições.
Lotus queixou-se muitas vezes a Wang Lung de que os filhos a incomodavam e desejava que se encontrasse um meio de os aferrolhar longe dali, para que não fossem importuná-la. Mas Wang Lung não queria fazer isso e respondia-lhe em ar de graça:
Ora, parecem-se comigo. Gostam de ver uma cara bonita.
E limitou-se a proibi-los de entrar nos pátios interiores. Os pequenos, quando o viam, abstinham-se de entrar, mas, quando podiam, entravam lá às ocultas. A filha mais velha é que não compreendia nada. Ficava sentada ao sol, encostada à parede do pátio exterior, sorrindo e brincando com a ponta do seu vestido, que retorcia.
Naquele dia, porém, depois dos irmãos mais velhos irem para a escola, os dois gémeos combinaram que a tolinha havia também de ver a dona do pátio interior. Pegaram-lhe na mão e levaram-na para o pátio. Ela apareceu diante de Lotus, que nunca a tinha visto e ficou perplexa a olhá-la. Mas quando a tolinha viu brilhar a seda do vestido de Lotus e reluzir o jade das suas orelhas, sentiu-se possuída de estranha alegria e estendeu as mãos para agarrar as cores vivas, rindo alto, com um sorriso inexpressivo, que não passava de um ruído. Lotus, assustada, pôs-se a gritar, de modo que Wang Lung acorreu e encontrou-a, trémula de cólera, sapateando com os seus pés minúsculos e ameaçando com o dedo a pobre menina sorridente. Ao vê-lo exclamou:
Não ficarei mais nesta casa se essa criatura se aproximar novamente de mim. Não me tinham prevenido de que teria de aturar idiotas, pois se o tivesse sabido não viria para aqui... Como são asquerosos os teus filhos!E empurrou o menino que estava mais perto dela, de boca aberta, agarrado à mão da irmã gémea.
Então uma justa cólera despertou no coração de Wang Lung, que amava os filhos, e replicou com rudeza:
Não consinto que se diga mal dos meus filhos, nem mesmo da minha pobre tolinha. Não consinto que ninguém o faça, e muito menos tu, cujo ventre nunca gerou filhos!
E reunindo os filhos, disse-lhes:
Agora vão-se embora, meus filhos, e não voltem mais aos aposentos desta mulher, que não gosta de vocês, e portanto também não gosta do vosso pai.
E à filha mais velha disse, com toda a doçura:
E tu, minha pobre tolinha, volta para o teu lugar ao sol. Ela sorriu-lhe e ele, pegando-lhe na mão, levou-a para fora. O que mais lhe doía era que Lotus ousasse ofender aquela sua filha e chamar-lhe idiota. E um sentimento mais vivo de piedade pela filha despertou tanto no seu coração que passou dois dias sem ir ter com Lotus. Brincava com os filhos e foi à cidade comprar uma roda de açúcar de cevada para a pobre tolinha, sentindo-se consolado pelo prazer infantil que lhe causava aquele doce pegajoso.
Quando voltou a estar com Lotus, nenhum dos dois se referiu ao facto da sua ausência de dois dias, mas ela esforçou-se por agradar-lhe, pois, quando ele chegou, a mulher do tio estava tomando chá e Lotus desculpou-se dizendo-lhe:
Agora que o meu senhor veio visitar-me devo obedecer-lhe, porque isso me causa prazer.
E ficou de pé até que a mulher se retirou. Depois aproximou-se de Wang Lung, pegou-lhe na mão e levou-a ao rosto, acariciando-a. Mas ele, embora a amasse de novo, não a amava tanto como antes, e não voltou a amá-la da mesma forma.
Chegara o fim do Verão. O céu da madrugada mostrava-se claro, frio e azul como a água do mar, e o vento puro do Outono soprava sobre a terra. Wang Lung pareceu despertar do seu sono. Foi à porta de casa e contemplou os campos. Viu que as aguas tinham baixado e a terra luzia sob o sol ardente e o vento frio e seco.
Uma voz gritou então dentro dele; uma voz mais profunda do que o amor, que era o grito da sua terra. Ela dominava todas as outras vozes da sua vida. Ao ouvi-la, despojou-se da sua longa túnica, descalçou os sapatos de veludo e as meias brancas, arregaçou as calças até aos joelhos, sentiu-se activo e forte, e bradou:
Onde está a enxada e onde está o arado? Onde está a semente para semear o trigo? Vamos, Ching, meu amigo... vamos... chama os trabalhadores... Vamos todos para o campo!
ASSIM como regressara da cidade do Sul curado do seu desalento e retemperado pelas agruras que lá sofrera, agora também Wang Lung estava curado do seu mal de amor, graças à boa e escura terra dos seus campos. Sentia com delícia, nos pés, a terra húmida e aspirava o cheiro da terra que se evolava dos sulcos, lavrados para semear o trigo. Deu ordens aos trabalhadores e fizeram um árduo dia de trabalho, lavrando aqui e ali. Ele mesmo andava atrás dos bois, fazendo estalar o chicote sobre os seus lombos, vendo a profunda ondulação da terra ir surgindo à medida que o arado rasgava o solo. Depois chamou Ching e entregou-lhe as rédeas, passando a empunhar uma enxada e a desfazer os torrões, que se reduziam a um fino pó argiloso, macio como açúcar preto e ainda escurecido pela humidade da terra de cima. Fazia isto pelo puro gozo que lhe proporcionava e não por necessidade. E quando se fatigou, deitou-se em cima da sua terra e adormeceu. E a saúde da terra infiltrou-se-lhe na carne, e ficou curado do seu mal.
Quando o Sol resplandecente se ocultou num céu sem nuvens, chegou a noite e ele entrou em casa com o corpo dorido e cansado, mas triunfante, e afastou a cortina da porta que conduzia ao pátio interior, onde Lotus passeava vestida de seda. Ao vê-lo todo sujo de terra, gritou escandalizada e estremeceu quando ele se aproximou.
Mas ele riu e agarrou com as suas mãos sujas de terra as mãozinhas dela, delicadas e finas. Voltou a rir e disse:
Agora estás vendo que o teu senhor não passa de um lavrador. Tu não és mais do que a mulher de um lavrador.
Ao que ela respondeu, com vivacidade:
Podes ser o que quiseres. Eu é que não sou mulher de um lavrador!
Ele riu de novo e afastou-se dela com desembaraço.
Comeu o arroz à hora da ceia, tal como estava, ainda sujo de terra, e foi a custo que se banhou antes de se deitar. Enquanto se lavava, ria ainda, porque não estava a lavar-se por causa de uma mulher. E ria por se sentir livre.
Wang Lung teve a ilusão de que voltara de uma longa viagem e de que tinha, de súbito, imensas coisas a fazer. A terra reclamava lavoura e sementeiras, e todos os dias ele trabalhava nela, enquanto a sua pele, empalidecida por um Verão de amor, voltava a tornar-se morena com o sol, e as suas mãos, que tinham perdido as rudes calosidades na ociosidade do amor, endureciam novamente a manejar a enxada e a rabiça do arado.
Quando regressava ao meio-dia e à noite, comia com apetite a comida que O-lan lhe preparava: bom arroz, couve, favas e excelente alho, enrolado em bolos de massa. Se Lotus tapava o narizinho quando ele chegava, protestando contra o seu hálito, ele ria, sem fazer caso, e deitava-lhe o bafo no rosto; e ela tinha que resignar-se a deixá-lo comer o que lhe apetecia. E agora que estava de novo cheio de saúde e livre da exacerbação do seu amor, podia ir ter com ela, saciar-se e tratar de outras coisas.
Aquelas duas mulheres ocuparam, pois, os lugares que lhes competia: em sua casa, Lotus era o seu brinquedo, o seu divertimento, que satisfazia o seu desejo de beleza, de delicadeza e de alegria, diante da sua simples animalidade; O-lan era a sua companheira de trabalho e a mãe que lhe tinha dado os filhos; governava a casa e fazia a comida para ele, para o velho e para as crianças. Era motivo de orgulho para Wang Lung saber que no povoado os homens falavam, com inveja, da sua segunda mulher. Era como se falassem de uma jóia rara ou de um brinquedo caro, perfeitamente inútil, mas que era sinal e símbolo de um homem que já não tinha de se preocupar apenas com a comida e o vestuário e podia gastar dinheiro, divertindo-se como bem entendesse.
Entre as pessoas da aldeia, o mais solícito em celebrar-lhe as riquezas era seu tio, porque naquela época estava como um cachorro que adula e deseja receber favores. Dizia ele:
O meu sobrinho sustenta, para seu prazer, uma beldade, como nenhum de nós, homens comuns, jamais viu.
Dizia também:
Ele frequenta essa mulher que usa trajos de seda e de cetim, como uma dama de casa grande. Não a vi ainda, mas minha mulher tem-me contado.
Ou ainda:
Meu sobrinho, o filho de meu irmão, está fazendo uma grande casa e seus filhos serão filhos de um homem rico, não precisarão de trabalhar durante toda a sua vida.
Os homens da aldeia olhavam, pois, Wang Lung cada vez com mais respeito e já não se dirigiam a ele como a um igual, mas como a alguém que vive em casa grande. Pediam-lhe dinheiro emprestado e aconselhavam-se com ele quando tratavam de casar filhos e filhas; e se se desavinham por causa dos limites de um campo, Wang Lung era solicitado para árbitro e a sua decisão era aceite, qualquer que ela fosse.
Wang Lung estivera até então muito absorvido pelo seu amor, mas agora encontrava-se saciado e ocupava-se de muita coisa. As chuvas vieram na época oportuna, o trigo germinou e cresceu o ano passou. Ao aproximar-se o Inverno, Wang Lung levou as suas colheitas ao mercado, pois sempre as guardava até à alta dos preços. Desta vez foi consigo o filho mais velho.
O orgulho que é dado a um homem que vê o seu primogénito ler em voz alta as letras escritas no papel, manejar pincel e tinta para escrever o que há-de ser lido pelos outros, esse orgulho sentia-o Wang Lung. Ao ver aquela façanha, emproou-se e não se riu quando os escribas, que haviam zombado dele outrora, exclamaram:
Tem boa letra o rapaz, e é muito vivo!
Não, Wang Lung não queria mostrar que achava extraordinário ter um filho assim. Apesar disso, quando o rapaz, ao ler, disse com ar doutoral: «Aqui está uma letra que tem o radical madeira em vez de ter o radical água»o coração de Wang Lung estava a ponto de rebentar de orgulho; para disfarçar, voltou-se, tossindo e cuspindo no chão. E enquanto um murmúrio de surpresa corria entre os escribas, perante o saber de seu filho, exclamou simplesmente :
Muda-o, então! Não assinaremos um documento que não esteja bem escrito.
E observou, cheio de orgulho, como seu filho tomava o pincel e mudava o sinal errado.
Quando Nung En terminou e escreveu o nome de seu pai na escritura da venda do grão e no recibo do dinheiro, regressaram os dois juntos a casa, pai e filho. E o pai dizia, no íntimo do seu coração, que seu filho agora era um homem, e tinha de fazer por ele o que devia: escolher-lhe uma esposa e tratar casamento para ele, de modo que o rapaz não precisasse de ir mendigar esposa numa casa grande como ele fizera e aceitar o que mais ninguém queria, porque seu filho era filho de um homem rico, de um proprietário de terras.
Wang Lung pôs-se então à procura de uma donzela que pudesse ser esposa de Nung En. A tarefa não era fácil, porque ele não queria uma mulher comum e vulgar. Falou a respeito disso com Ching, certa noite, quando ficaram sós, na sala do meio, combinando o que precisavam de comprar para a sementeira da Primavera e fazendo o balanço das sementes que tinham de reserva. Falou sem grande esperança de obter auxílio, porque sabia que Ching era demasiado simplório, mas sabia também que ele lhe era dedicado como um bom cão a seu dono, e sentia alívio em revelar o seu pensamento a um homem como aquele.
Ching conservava-se respeitosamente de pé, enquanto Wang Lung falava sentado à mesa, pois apesar da insistência deste, agora que o patrão era rico, não queria sentar-se diante dele como diante de um igual. Ouvia-o atentamente, enquanto falava de seu filho e da esposa que buscava; e, quando Wang Lung acabou, Ching suspirou e disse, em sua voz hesitante, que era pouco mais que um murmúrio:
Ah! Se minha filha estivesse aqui e fosse sã, dar-vo-la-ia de bom grado, sem retribuição, e ainda lhe ficaria agradecido, mas não sei onde ela pára, nem mesmo se está morta ou viva.
Wang Lung agradeceu-lhe, mas não revelou o que lhe ia no coração: que precisava para seu filho de uma mulher de posição mais elevada que a filha de Ching, que, embora bom homem, não passava de um vulgar lavrador assalariado.
Wang Lung não aceitou conselhos estranhos; limitava-se a escutar, na casa de chá, as conversas em que se faziam referências a raparigas ou a homens ricos da cidade que tinham filhas casadouras. Mas não disse nada à mulher de seu tio, ocultando-lhe as suas intenções. Aproveitara os seus serviços quando teve necessidade de uma mulher da casa de chá. Era a pessoa indicada para negócios daquela natureza. Mas no caso de seu filho não queria a intervenção da mulher de seu tio, que não podia conhecer pessoa digna do seu primogénito.
O ano terminou com a neve e o frio do Inverno. Chegaram as festas do Ano Novo, comeu-se e bebeu-se, e vieram homens, tanto do campo como da cidade, felicitar Wang Lung, dizendo-lhe:
Muito bem, não podemos desejar-te fortuna maior do que já possuis: filhos em casa, mulheres, dinheiro e terras.
E Wang Lung, vestido com uma túnica de seda, tendo a seu lado os filhos bem trajados, a mesa cheia de doces, de sementes de melancia e de avelãs, e todas as portas de casa com votos de feliz ano novo e prosperidade vindoura inscritos em papel vermelho, considerou que realmente a sua fortuna era boa.
Mas chegou a Primavera, os salgueiros cobriram-se de um ligeiro manto verde, os pessegueiros encheram-se de flores róseas, e Wang Lung não tinha encontrado ainda a esposa que procurava para seu filho.
A Primavera trouxe os longos dias tépidos e perfumados pelas ameixeiras e cerejeiras em flor. Os salgueiros acabaram de cobrir-se de folhas, as árvores estavam verdes, a terra húmida e fumegante prenhe de frutos, e o filho mais velho de Wang Lung mudou de repente, deixando de ser uma criança. Tornou-se melancólico, exaltado, negava-se a comer isto e aquilo o aborrecendo-se de estudar. Wang Lung alarmou-se, não sabendo como explicar aquela mudança, e pensou em chamar o médico.
Não havia meio de corrigir o rapaz. Se o pai lhe dizia com carinho:«Come desta carne, deste bom arroz» ficava carrancudo e melancólico. E à menor censura que Wang Lung lhe fizesse, começava a chorar e saía. Wang Lung estava atónito de surpresa e não sabia que fazer, de modo que seguia o rapaz e dizia-lhe, o mais delicadamente possível:
Sou teu pai, dize-me o que sentes no coração.
Mas o rapaz nada respondia. Apenas chorava e abanava a cabeça violentamente.
Além disso, criou aversão ao velho professor. De manhã, não queria levantar-se da cama para ir à escola e Wang Lung via-se forçado a ralhar com ele e até a bater-lhe. Então saía, carrancudo, passava dias inteiros vagueando pelas ruas da cidade, e Wang Lung só o sabia à noite, quando Nung Wen dizia, com inveja:
O mano não foi hoje à escola.
Wang Lung enfurecia-se então contra Nung En e gritava-lhe:
Pensas que hei-de gastar o meu dinheiro para nada?
E na sua cólera atirou-se ao rapaz com uma vara de bambu e bateu-lhe tanto que O-lan ouviu o barulho e veio correndo da cozinha para se interpor entre pai e filho, de modo que as pancadas choviam sobre ela, apesar dos esforços de Wang Lung para bater só no rapaz. Mas o mais curioso era que enquanto à menor repreensão o rapaz começava a chorar, suportava as pancadas sem gritar, pálido e insensível como uma estátua. E Wang Lung não sabia como justificar aquilo, embora reflectisse noite e dia.
Uma noite, após a ceia, estava meditando sobre o caso, por ter batido no filho, que não queria ir à escola, quando O-lan entrou na sala. Entrou silenciosa e parou diante de Wang Lung, que percebeu que ela desejava dizer-lhe alguma coisa. Disse-lhe, pois:
Fala. De que se trata, mãe dos meus filhos?
E ela respondeu:
É inútil bater no rapaz como tem feito. Vi acontecer o mesmo aos meninos da Casa Grande. Ficavam tristes e, quando isso acontecia, o patrão velho arranjava-lhes escravas, se eles as não tinham arranjado por si mesmos. E tudo passava facilmente.
Mas não quero que isso aconteça respondeu Wang Lung decidido. Quando eu era rapaz não tinha dessas melancolias, desses choros, dessas raivas, nem tinha escravas tão-pouco!
O-lan deixou-o falar e depois acrescentou, pausadamente:
Eu também só vi acontecer isso com os jovens senhores. O senhor trabalhava no campo. Ele, porém, vive como um jovem senhor, ocioso, dentro de casa.
Wang Lung ficou surpreendido, e depois de ponderar um pouco viu que era verdade o que ela dizia. Era certo que no seu tempo de rapaz não tinha vagar para melancolias, pois precisava de levantar-se de madrugada para jungir o boi, sair com o arado e a enxada, e, na época das colheitas, estafava-se com trabalho. Se chorasse, podia chorar, pois ninguém o ouvia, e não podia fazer gazeta, como seu filho, à escola, porque depois não teria nada que comer. Assim se via forçado a trabalhar. Lembrou-se de tudo isto e disse consigo:
«Mas meu filho não é assim. É mais delicado do que eu era. Seu pai é rico e o meu era pobre. Não tem necessidade de trabalhar, porque há quem trabalhe nas minhas terras. Aliás, não se pode pôr um estudante como meu filho à rabiça de um arado.
No íntimo sentia-se orgulhoso por ter um filho assim e disse a O-lan:
Está bem, se ele é como um jovem senhor, o negócio é outro. Mas não quero comprar-lhe uma escrava. Arranjar-lhe-emos uma noiva e trataremos de casá-lo o mais breve possível. É o que há a fazer.
Levantou-se e dirigiu-se aos aposentos de Lotus, como era seu costume.
LOTUS, vendo Wang Lung distraído e pensando em outras coisas que não na sua beleza, ficou amuada e disse: Se eu tivesse previsto que em menos de um ano poderias olhar para mim sem me ver, teria ficado na casa de chá.
Falava com a cabeça voltada, olhando de soslaio para Wang Lung, que se pôs a rir e lhe pegou na mão, aproximando-a do rosto, para lhe aspirar o perfume.
Sim, um homem não pode passar toda a vida a pensar na jóia que pregou na sua túnica, mas se a perdesse ficaria bastante desolado. Tenho pensado, nestes últimos dias, em meu filho mais velho. O sangue ferve-lhe nas veias. Precisa casar-se e não encontro noiva para ele. Não quero que se case com nenhuma das filhas dos lavradores da aldeia. Não ficaria bem, atendendo a que ambos usamos o mesmo nome de Wang. Por outro lado, não conheço ninguém na cidade a quem possa dizer: «Eu tenho um filho e tu tens uma filha»; e repugna-me valer-me de uma casamenteira profissional, que poderá muito bem combinar o casamento com alguém que tenha uma filha aleijada ou idiota.
Lotus, desde que Nung En se tornara um mancebo alto e elegante, olhava-o com simpatia e, achando graça ao que Wang lhe dissera, replicou, pensativa:
Quando eu estava na casa de chá, aparecia lá a visitar-me um homem que me falava muitas vezes de sua filha, porque, dizia ele, era como eu, pequena e delicada, embora fosse ainda criança. E repetia-me: «Sinto-me muito perturbado por gostar de ti, como se fosses minha filha. Pareces-te muito com ela e isso perturba-me, porque não seria legítimo...»Por esse motivo, embora me preferisse, escolhia uma companheira minha, alta e corada, chamada Flor de Romã.
Que espécie de homem era ele?perguntou Wang Lung.
Um homem bom e generoso, incapaz de fazer promessas que não cumprisse. Todas nós gostávamos muito dele, porque não era rabugento, e se alguma de nós estava indisposta, não protestava como fazem muitos que se julgam enganados, e dizia sempre cortesmente, como um príncipe poderoso ou algum potentado de uma casa nobre e ilustre:«Está bem, toma o teu dinheiro e descansa, criança, até que o amor floresça de novo.» Falava-nos com muita delicadeza.
E Lotus ficava pensativa. Mas Wang Lung não gostava de a ver a pensar na sua antiga vida e perguntou-lhe logo, para a chamar à realidade:
Qual era, então, o ramo de negócios dele?
Isso não sei, mas creio que era proprietário de um armazém de cereais. Hei-de perguntar a Cuckoo, que sabe tudo o que diz respeito a homens de dinheiro.
Batendo as palmas, Cuckoo veio da cozinha, com as faces e o nariz vermelhos do lume, e Lotus perguntou-lhe:
Quem era aquele homem alto, gordo e simpático que ia visitar-me e depois passou a visitar Flor de Romã, porque, embora gostasse mais de mim, se incomodava por eu me parecer com a filha?
E Cuckoo respondeu logo:
Ah! Era Liu, o comerciante de cereais. Ah! Era um bom homem! Sempre que me via, dava-me uma boa gorjeta.
Onde é o armazém dele?perguntou Wang Lung, com negligência, porque não acreditava que daquela tagarelice de mulheres pudesse sair alguma coisa.
Na rua da Ponte da Pedra respondeu Cuckoo.
Ainda ela não tinha dito estas palavras e já Wang Lung batia as mãos de contente, dizendo:
É o armazém onde vendo os meus cereais! É bom presságio e certamente isso pode realizar-se.
Pela primeira vez o seu interesse despertou, porque lhe parecia uma felicidade casar o filho com a filha do homem que lhe comprava os cereais.
Quando havia algum negócio a realizar, Cuckoo farejava o dinheiro que poderia dar-lhe como um rato fareja o sebo. Limpou as mãos ao avental e disse solicitamente:
Estou pronta a servi-lo, meu senhor.
Wang Lung estava indeciso e duvidoso, olhando para o rosto da astuta mulher, mas Lotus disse alegremente:
É verdade! Cuckoo pode procurar o negociante Liu. Ele conhece-a bem e o negócio poderá arranjar-se, porque Cuckoo não é tola, e, se for bem sucedida, receberá a sua comissão de intermediária.
Ora se consigo!disse Cuckoo com entusiasmo, rindo, ao pensar na boa prata que ia ganhar; e desatando o avental, disse com solicitude:Irei agora mesmo. A carne já está pronta para guisar e as hortaliças já estão escolhidas e lavadas.
Mas Wang Lung não tinha reflectido suficientemente sobre o assunto, nem queria decidi-lo tão depressa. Por isso respondeu:
Não, ainda não decidi nada. Preciso de pensar no negócio durante alguns dias. Direi depois o que penso.
As mulheres estavam, impacientes: Cuckoo por causa do dinheiro e Lotus porque aquilo era uma novidade, e ela precisava de novidades que a divertissem. Wang Lung, porém, saiu, dizendo:
Não. Trata-se de meu filho e quero esperar.
E talvez tivesse esperado muitos dias, pensando numa coisa e noutra, se o rapaz não tivesse entrado uma certa madrugada em casa, com o rosto escaldante e vermelho, o andar vacilante e o hálito fétido da embriaguez. Wang Lung ouviu-o tropeçar no pátio e correu para ver quem era. O rapaz sentiu-se mal e vomitou diante dele, pois não tinha o costume de beber outra coisa senão o fraco vinho de arroz fermentado que fabricavam em casa. Depois, caiu no chão e ali ficou, em cima do vómito, como um cão.
Wang Lung assustou-se e chamou O-lan. Levantaram o rapaz e O-lan lavou-o e deitou-o na cama. O rapaz adormeceu profundamente, ficando como morto, sem responder às perguntas do pai.
Então Wang Lung entrou no quarto em que dormiam juntos os dois rapazes. O mais moço, bocejando e espreguiçando-se, embrulhava os livros num pedaço de pano, para levá-los para a escola. Wang Lung perguntou-lhe:
Teu irmão não dormiu contigo a noite passada?
O rapaz respondeu, de má vontade:
Não.
Havia um certo temor no seu olhar, e Wang Lung, percebendo isso, gritou-lhe com aspereza:
Onde foi ele?
E como Nung Wen não quisesse responder, agarrou-o pelo pescoço e sacudiu-o com força, gritando:
Hás-de dizer-me tudo, patife!
O rapaz teve medo e desatou a chorar e a gritar, dizendo entre soluços:
O mano pediu-me que não lhe contasse nada e disse-me que, se o fizesse, me beliscaria e me queimaria com uma agulha em brasa. Mas, se me calasse, me daria uns cobres...
Wang Lung, fora de si, ao ouvir isto rugiu:
Contar-me o quê? Merecias que eu te estrangulasse!
O rapaz olhou em torno de si e disse, desesperadamente, vendo que seu pai o esganaria, se não lhe respondesse:
Esteve fora de casa três noites seguidas, mas não sei o que foi fazer. Só sei que saiu com o filho de seu tio, nosso primo.
Wang Lung tirou então a mão do pescoço do rapaz, empurrou-o para um lado e correu para os aposentos de seu tio. Encontrou ali o sobrinho, com o rosto vermelho e escaldante por ter bebido muito vinho, como seu filho, mas com o andar mais firme, porque era mais velho e estava acostumado a beber. Wang Lung berrou-lhe:
Aonde levaste meu filho?
O rapaz disse, em tom de mofa, a Wang Lung:
Ah! Seu filho, meu primo, não precisa de que o levem. Sabe ir sozinho.
Mas Wang Lung repetiu a pergunta, e desta vez parecia capaz de matar o filho de seu tio, aquele insolente patife. Gritou-lhe, então, em voz terrível:
Onde esteve meu filho esta noite?
O rapaz, já amedrontado com o timbre da sua voz, baixou os olhos arrogantes e respondeu contrariado e de mau modo:
Esteve com uma rapariga que mora no pátio que pertencia à Casa Grande.
Ao ouvir isto, Wang Lung soltou um suspiro, porque a tal mulher era muito conhecida da maior parte dos homens e só a frequentavam pobres e miseráveis, porque já não era nova e não fazia pagar caro as suas carícias. Sem esperar pela refeição, Wang Lung saiu de casa e atravessou os campos. Desta vez não reparou nas searas que cresciam nos seus terrenos, nem viu se estavam adiantadas, por causa do desgosto que seu filho.lhe dera. Caminhava de olhar fixo e absorto. Entrou na cidade pela porta da muralha e dirigiu-se à casa que outrora fora grande.
Os pesados batentes estavam agora abertos de par em par, pois ninguém se dava ao trabalho de os fazer girar nos fortes gonzos de ferro, para que se pudesse entrar e sair à vontade. Wang Lung entrou. Nos pátios e salas via-se gente ordinária, que alugava os aposentos, uma família para cada quarto. Estava tudo imundo. Os velhos pinheiros tinham sido abatidos e os que restavam definhavam. Os tanques estavam cheios de lixo.
Mas ele não viu nada disso. Parou no pátio da primeira habitação e gritou:
Onde mora a mulher chamada Yang, uma prostituta?
Sentada num tamborete de três pés, remendando a sola de um sapato, estava uma mulher que levantou a cabeça, apontou para uma porta lateral que dava para o pátio, e continuou a coser como se já muitas vezes lhe tivessem feito a mesma pergunta.
Wang Lung aproximou-se da porta e bateu. Uma voz irritada respondeu:
Não recebo ninguém, vai-te embora. Já fiz o meu serviço desta noite e preciso dormir.
Mas ele bateu de novo, e a voz gritou:
Quem é?
Ele não respondeu, mas bateu novamente, porque estava decidido a entrar. Por fim ouviu um arrastar de chinelas e uma mulher abriu a porta, uma mulher não muito nova, de rosto taciturno e fatigado, lábios grossos e pendentes, com uma espessa camada de alvaiade e vermelhão na boca e nas faces, pois não lavara o rosto. Olhou para ele e disse, secamente:
Não posso atender ninguém antes de anoitecer. Poderás vir de noite, à hora que quiseres. Agora preciso de dormir.
Mas Wang Lung interrompeu rudemente o seu discurso, porque o aspecto daquela mulher lhe dava náuseas e a ideia de que seu filho ia ter com ela se lhe tornava intolerável.
Não é por mim que venho... Não preciso de criaturas como tu. É por causa de meu filho.
Sentiu, de súbito, na garganta um aperto de choro por seu filho. Então a mulher perguntou:
Está bem, mas que fez o teu filho?
Wang Lung respondeu com voz trémula:
Esteve aqui esta noite.
Estiveram aqui muitos rapazes esta noite e não sei qual era o teu.
Então Wang Lung continuou em tom suplicante:
Não te lembras de um rapaz muito alto para a idade, ainda adolescente?
A mulher, lembrando-se, respondeu:
Eram dois. Um deles era um jovem de nariz arrebitado e com cara de saber de tudo, o chapéu descaído sobre a orelha. O outro, como dizes, um rapagão alto, desejoso de parecer um homem!
Wang Lung disse:
Sim, sim... é ele... é meu filho!
E que tenho eu com o teu filho?perguntou a mulher.
Então Wang Lung respondeu, claramente:
Eis o que quero: se ele voltar cá, manda-o embora... dize-lhe que só recebes homens... dize-lhe o que entenderes... e por cada vez que o recusares dar-te-ei o dobro do que receberias...
A mulher teve um riso indiferente e depois, com súbito bom humor, retorquiu:
Quem não aceitaria ganhar dinheiro sem trabalhar? Eu, está claro que aceito. Aliás, é verdade que prefiro os homens aos rapazinhos sem experiência.
Acenou com a cabeça e olhou de esguelha para Wang Lung, que sentiu de novo náuseas ao ver aquele rosto grosseiro e se apressou a dizer-lhe:
Está combinado, então.
Voltou-se apressadamente e seguiu para casa. No caminho cuspiu várias vezes, enojado com a lembrança daquela mulher.
Naquele mesmo dia, disse a Cuckoo:
Faça-se o que disseste. Vai a casa do mercador de cereais e arranja o negócio. Que o dote seja bom, mas não exagerado, se a moça convier e as coisas puderem arranjar-se.
Depois de dizer isto voltou para o quarto e sentou-se à cabeceira do filho adormecido. Ficou pensativo ao vê-lo tão belo e tão jovem, com o rosto calmo e repousado pelo sono: e quando se lembrou da prostituta de rosto cansado e pintado, dos seus lábios grossos, sentiu o coração sublevar-se de asco e de cólera e ficou a resmungar baixinho.
Entretanto, entrou O-lan, que se aproximou do rapaz para o contemplar. Vendo-o coberto de suor, foi buscar água morna e lavou-o suavemente, como costumavam fazer aos jovens senhores na Casa Grande, quando eles tinham bebido de mais. Então Wang Lung, vendo que nem mesmo a água morna conseguia despertar o filho, levantou-se e dirigiu-se cheio de cólera para o quarto de seu tio. Esqueceu-se de que ele era irmão de seu pai, para se lembrar apenas de que aquele homem era pai do preguiçoso, do insolente rapaz que lhe tinha corrompido o filho. Foi entrando e gritando:
Dei guarida a um ninho de ingratas serpentes e elas agora mordem-me!
O tio, que estava sentado com os cotovelos sobre a mesa, almoçando, pois nunca se levantava antes do meio-dia, já que não tinha qualquer trabalho a fazer, ergueu os olhos ao ouvir isto e disse indolentemente:
-Que há?
Então Wang Lung contou-lhe, meio sufocado, o que acontecera; mas o tio pôs-se a rir e disse:
Ora essa, queres evitar que teu filho se torne um homem? Queres evitar que um cão jovem se acerque de uma cadela perdida ?
Ao ouvir aquela risada, Wang Lung recordou-se, num momento, de tudo quanto sofrera por causa daquele tio: como, tempos atrás, ele tentara forçá-lo a vender as terras e como viviam ali todos os três à sua custa, comendo, bebendo e mandriando, como a mulher de seu tio comia os petiscos caros que Cuckoo comprava para Lotus, e como agora o filho de seu tio tinha pervertido o seu próprio filho. Apertou a língua entre os dentes e disse:
Fora de minha casa, imediatamente, tu e os teus! De hoje em diante, não haverá mais arroz para lhes encher a barriga!
Prefiro deitar fogo à minha casa a abrigá-los por mais tempo, já que não sabem ser agradecidos pela ociosidade em que os mantenho!
O tio não vacilou. Continuou a comer, de uma tigela e de outra, perante Wang Lung, apoplético. Ao ver que seu tio não fazia caso, avançou para ele com o punho erguido. Então o tio voltou-se e disse:
Põe-me fora, se te atreves!
E como Wang Lung, sem compreender, gaguejasse enfurecido: «Então... o quê... então o quê?...»o tio abriu a túnica e mostrou-lhe o que trazia no forro.
Wang Lung parou, por fim, mudo e estarrecido de surpresa, ao ver uma barba postiça de cabelos vermelhos e uma tira de pano também vermelho. A cólera abandonou-o como água que se escoa, e pôs-se a tremer, porque tinha ficado sem pinga de sangue.
Aquelas coisas, a barba e o pano vermelho, eram o sinal e o símbolo de uma quadrilha de ladrões, que viviam e roubavam para as bandas do Noroeste, onde haviam queimado muitas casas e raptado muitas mulheres. Tinham prendido com cordas aos umbrais das casas muitos lavradores honestos, que no dia seguinte eram encontrados loucos e furiosos, se ainda viviam, ou tostados como carne assada, quando mortos. Os olhos de Wang Lung pareciam querer saltar das órbitas. Deu meia volta e saiu sem dizer palavra. Quando se retirou, percebeu que seu tio ria à socapa inclinando-se novamente sobre a tigela de arroz.
Wang Lung via-se agora embaraçado como jamais sonhara. Seu tio entrava e saía como dantes, com um sorriso chocarreiro sob os ralos e escassos pêlos da sua barba grisalha, e sempre negligentemente embrulhado nas roupas que o cinto segurava. Wang Lung sentia suores frios quando o via, mas não ousava dizer-lhe senão palavras corteses, com medo do que o tio poderia fazer-lhe. Era certo que, durante todos aqueles anos de prosperidade e especialmente durante os anos em que não havia colheitas ou eram fracas, e outros homens morriam de fome com seus filhos, os bandidos nunca tinham assaltado a sua casa ou as suas terras, embora muitas vezes os tivesse temido, assegurando-se todas as noites de que as portas estavam bem trancadas. Antes da época da sua paixão, tinha trajado sempre modestamente, evitando alardear riquezas; e quando ouvia contar histórias de roubos à gente do povo, voltava para casa e dormia com sono inquieto, apurando o ouvido aos rumores nocturnos.
Mas os ladrões nunca foram a sua casa e ele tornou-se descuidado e valente, acreditando que estava protegido pelo céu e era um homem afortunado por desígnio do destino. Descuidou-se de tudo, até mesmo do incenso para os deuses, já que se portavam bem com ele, sem necessidade de oferendas, e nunca mais pensou senão nos seus negócios e na sua terra. Agora, de repente, compreendia porque tinha sido poupado e porque o seria, enquanto sustentasse os três membros da família de seu tio. Quando pensava nisso tinha suores frios, e não se atrevia a contar a ninguém o que seu tio ocultava no seio.
Mas não voltou a dizer ao tio que abandonasse a casa e à mulher deste chegou a dizer, com a maior insistência que lhe foi possível:
Come o que quiseres nos aposentos da segunda esposa e aqui tens algum dinheiro para gastar.
E ao filho de seu tio disse, embora as palavras se lhe afogassem na garganta:
Aqui tens um pouco de dinheiro, pois os rapazes gostam de divertir-se.
Mas vigiou o filho e não o deixou sair de casa depois de anoitecer, embora o rapaz se encolerizasse e batesse nos irmãos mais novos para desabafar a raiva. E assim Wang Lung se viu cercado de desgostos.
A princípio não podia trabalhar, pensando em todas aquelas coisas que lhe ocorriam, num desgosto e noutro, dizendo consigo: «Poderia expulsar meu tio e mudar-me para a cidade, onde todas as noites se fecham as portas por causa dos ladrões.» Mas depois lembrava-se de que precisava de ir trabalhar diariamente para o campo, e quem saberia o que lhe podia acontecer enquanto trabalhasse indefeso, ainda que fosse nas suas terras? Além disso, como era possível viver encerrado numa cidade e numa casa da cidade? Ele morreria se o arrancassem da sua terra. Depois, seguramente, viria um ano mau, e então nem a cidade poderia livrar-se dos ladrões, como tinha acontecido quando fora assaltada a Casa Grande.
Poderia também ir à cidade, ir a casa do magistrado e dizer-lhe:
Meu tio é um dos Barbas Vermelhas.
Mas se fizesse isso, quem o acreditaria, quem acreditaria num homem que dissesse tal coisa do irmão de seu próprio pai ? O mais provável era darem-lhe uma sova de pau pelo seu procedimento desnaturado, em vez de incomodarem seu tio. E afinal teria que recear pela própria vida, porque os ladrões, se soubessem do caso, matá-lo-iam por vingança.
Então, como se não bastassem tantas inquietações, Cuckoo voltou de casa do negociante de cereais com a notícia de que, embora a combinação de casamento tivesse corrido bem, o negociante Liu queria que se limitassem, por enquanto, à troca dos papéis, porque a pequena só tinha catorze anos e era preciso esperar ainda três anos. Wang Lung ficou desapontado com a
perspectiva de suportar mais três anos as cóleras, a ociosidade e a indolência do filho, que em cada dez dias ia apenas duas vezes à escola. Naquela noite, à hora da refeição, Wang Lung disse a O-lan:
Sabes? Vamos arranjar casamento para aqueles pequenos o mais cedo possível, para que se casem logo que mostrem vontade disso, porque não quero sofrer mais três vezes o que tenho sofrido.
Na manhã seguinte, depois de uma noite mal dormida, despiu a sua longa túnica, descalçou os sapatos e, como costumava fazer quando os negócios de sua casa se complicavam, pegou na enxada e foi para o campo. Ao sair, passou pelo pátio exterior onde estava sentada, a sorrir, a filha mais velha, torcendo entre os dedos um pedacinho de pano e tornando a alisá-lo. Pensou:
«Afinal de contas, ainda é esta pobre tolinha que me dá mais consolo que todos os outros filhos juntos.»
Durante muitos dias foi lavrar para o campo. E mais uma vez a boa terra exerceu a sua acção salutar. O Sol derramou sobre ele os seus raios benéficos e os ventos cálidos do Verão envolveram-no de paz. E para completar a cura e desenraizar a incessante preocupação que o atormentava, surgiu, certo dia, vinda do Sul, uma nuvenzinha ligeira. A princípio, ficou suspensa no horizonte, pequena e leve como um vapor, sem se mover para cá ou para lá, como as nuvens impelidas pelo vento, e depois abriu-se em leque, no céu.
Os homens da aldeia observavam-na atentamente e discutiam, apreensivos, pois receavam que fosse uma nuvem de gafanhotos que viesse do Sul e lhes devorasse as colheitas. Wang Lung estava também entre eles, de atalaia.
A certa altura viram cair a seus pés um objecto, arrastado pelo vento. Um dos homens baixou-se rapidamente para o apanhar. Era um gafanhoto morto, mais leve que as hostes vivas que o seguiam. Wang Lung esqueceu então tudo o que o preocupava: mulheres, filhos e tio esqueceu tudo, e correndo entre os assustados campónios, gritou-lhes:
Coragem! Para defendermos a nossa boa terra temos de lutar contra esses inimigos enviados pelo céu.
Mas alguns homens meneavam a cabeça, já descoroçoados, dizendo:
Não, não... É tudo inútil. O céu decretou que este ano havemos de morrer de fome. Para que havemos de nos esgotar numa tarefa inútil, se no fim teremos de morrer de fome?
E as mulheres correram à cidade a fim de comprarem incenso para oferecer aos deuses da terra, no pequeno templo. Outras iam ao templo da cidade onde estavam os deuses do céu, e assim a terra e o céu eram venerados.
Mas os gafanhotos espalhavam-se cada vez mais no ar, sobre os campos.
Então Wang Lung, ajudado por Ching, reuniu os seus trabalhadores e alguns dos lavradores mais moços. Largaram fogo a certos campos, queimaram o bom trigo, que estava quase maduro para a ceifa, e abriram amplos fossos que encheram de água do poço, trabalhando noite e dia. O-lan levava-lhes comida e o mesmo faziam as mulheres dos outros homens. E eles comiam mesmo de pé, com uma voracidade selvagem, porque trabalhavam dia e noite.
Depois o céu enegreceu e o ar encheu-se do zumbido grave e contínuo de milhões de asas que se entrechocavam. Os gafanhotos abateram sobre a terra voando sobre um campo sem lhe tocarem para caírem sobre outro, deixando-o nu como no Inverno. Os camponeses suspiravam e diziam:
Os céus assim o querem!
Mas Wang Lung, furioso, atacava os gafanhotos com um pau, esmagava-os debaixo dos pés, enquanto os seus criados os perseguiam com os manguais. Os gafanhotos caíam nas fogueiras que tinham acendido e nos fossos que haviam aberto, e muitos milhões deles morreram, mas, em comparação com os que restavam, isso não era nada.
Não obstante, Wang Lung foi recompensado dos seus esforços: os seus melhores campos foram poupados e quando a nuvem passou e puderam descansar, ainda tinha trigo para colher e as searas de arroz não tinham sofrido dano algum. Estava satisfeito. Muita gente comeu então os gafanhotos assados, mas Wang Lung não quis tocar-lhes, porque, para ele, eram seres imundos pelo prejuízo que haviam causado aos campos. Não disse nada, porém, quando O-lan os fritava em azeite e os trabalhadores os comiam, ou quando as crianças os partiam delicadamente e os provavam, assustadas com os seus grandes olhos. Ele é que os não comeu.
Contudo, algum bem lhe fizeram os gafanhotos. Durante sete dias só pensou na sua terra e sentiu-se aliviado das suas preocupações e angústias. Calmamente, dizia consigo:
Está bem, todos os homens têm os seus desgostos e eu tenho de suportar os meus como puder. Meu tio é mais velho do que eu e há-de morrer um dia. Quanto a meu filho, os três anos hão-de passar de qualquer forma e eu não terei que suicidar-me.
Colheu o seu trigo, vieram as chuvas, o arroz verdejou nos arrozais inundados e o sol no Verão aqueceu de novo a terra.
UM dia, depois que Wang Lung dissera consigo que a paz voltara ja sua casa, seu filho mais velho foi ter com ele, quando regressava do campo, ao entardecer.
Pai, se tenho de continuar a estudar, aquele pobre velho da cidade não tem mais nada a ensinar-me.
Wang Lung tinha tirado do caldeirão da cozinha uma bacia e água a ferver. Molhou uma toalha, espremeu-a e aplicou-a, lúmida, no rosto, dizendo:
Bem, e então?
O rapaz hesitou um instante e prosseguiu:
É que, já que tenho de estudar, gostaria de ir para uma cidade do Sul e entrar numa grande escola, onde pudesse aprender o que preciso de aprender.
Wang Lung esfregou os olhos e as orelhas com a toalha, e, com o rosto a fumegar, respondeu asperamente ao filho, porque estava cansado de trabalhar no campo:
Que tolice é essa? Digo-te que não podes ir e é inútil insistires, porque não irás. Já sabes o suficiente para estes lugares. E mergulhou de novo a toalha na água quente, espremendo-a em seguida.
Mas o rapaz ficou ali, olhando o pai com ódio. Murmurou qualquer coisa e Wang Lung encolerizou-se por não ter comprendido e gritou-lhe:
Dize bem claro o que tens a dizer!
Então o rapaz enfureceu-se ao ouvir a voz de seu pai e disse:
Está muito bem! Pois direi mesmo. Estou decidido a seguir para o Sul. Não quero ficar nesta estúpida casa onde sou vigiado como uma criança, nem nesta mesquinha cidade que não é maior do que uma aldeia! Quero viajar, aprender alguma coisa e ver as terras!
Wang Lung olhou para o filho e para si próprio. O filho usava uma comprida túnica de fino pano cinzento-prateado, leve e fresca, própria para o Verão; nos seus lábios despontavam os primeiros pêlos negros da puberdade, a sua pele era macia e dourada, e as mãos, que assomavam das largas mangas, eram delicadas e finas como as de uma mulher. Depois, Wang Lung olhou para si próprio; estava sujo de terra, vestido apenas com umas calças de algodão azul, e de torso nu. Mais parecia o criado de seu filho. Este pensamento fê-lo desdenhar a elegância e o refinamento daquele rapagão, e exclamou com veemência brutal e colérica:
Agora vai para o campo, esfrega o corpo com um pouco de terra para que não te tomem por uma mulher, e trabalha para ganhares o arroz que comes!
Wang Lung esqueceu-se de que outrora se orgulhava dos conhecimentos do filho, da sua inteligência para as letras, e saiu como um furacão, batendo com os pés descalços e cuspindo grosseiramente nos ladrilhos, porque a distinção de seu filho o exasperava naquele momento. O rapaz seguiu-o com um olhar rancoroso, mas Wang Lung não voltou a cabeça e nada viu.
Naquela noite, quando entrou nos aposentos de Lotus, que estava estendida na cama, enquanto Cuckoo a abanava, ela disse-lhe indolentemente, como se falasse de uma coisa sem importância, simplesmente por falar:
O teu filho mais velho está ansioso por viajar.
Então Wang Lung, lembrando-se do aborrecimento que tinha tido com o filho, respondeu secamente:
E depois, que te importa isso? Não quero que ande por estes aposentos, na idade em que está.
Mas Lotus apressou-se a responder:
Não... não... Foi Cuckoo quem me disse.
E Cuckoo apressou-se a acrescentar:
Isso está-se metendo pelos olhos. O rapaz é demasiado crescido para viver assim, sem fazer nada, a aborrecer-se.
Logrado com este subterfúgio, Wang Lung pensou apenas na cena com o filho e exclamou:
Não, não o deixarei partir. Não quero gastar mais dinheiro estupidamente.
E não quis falar mais no assunto. Lotus compreendeu que ele estava azedado pela cólera e mandou Cuckoo embora para o suportar sozinha.
Durante muitos dias não se falou mais no assunto. O rapaz parecia novamente satisfeito e, embora não quisesse voltar à escola, Wang Lung não insistia, pois já tinha quase dezoito anos e era desenvolto e ossudo como sua mãe. Wang Lung, quando voltava do trabalho, encontrava-o a ler no quarto, e pensava com íntima satisfação:
«Foi um capricho da juventude. O rapaz não sabe o que quer. Faltam somente três anos... que poderão reduzir-se a dois ou mesmo a um, com um pouco mais de dinheiro... Um dia destes, «terminada a colheita, quando se houver plantado o trigo de Inverno e cultivado os feijões, tratarei disso.»
Depois, Wang Lung esqueceu-se do filho, pois as colheitas que tinham escapado dos gafanhotos foram boas e com elas Wang Lung recuperou o que tinha gasto com Lotus. O ouro e a prata eram novamente, para ele, coisas preciosas; admirava-se, por vezes, de ter podido gastá-los tão prodigamente com uma mulher. No entanto, havia momentos em que ela o emocionava suavemente, embora com menos intensidade do que a princípio, e sentia-se orgulhoso de a ter em casa, se bem que visse que a mulher de seu tio dissera a verdade: que não era tão nova como parecia. Também nunca lhe dera um filho, mas isso não preocupava Wang Lung, porque já tinha filhos e filhas; bastava-lhe conservá-la pelo prazer que lhe dava.
Lotus tornara-se até mais bela com a maturidade, porque se algum defeito tinha dantes era a sua gracilidade de avezita, que lhe tornava demasiado angulosas as linhas do rosto e demasiado fundas as concavidades das fontes. Mas agora, graças aos alimentos que Cuckoo lhe preparava e à sua vida ociosa, adquirira contornos suavemente arredondados, encheram-se-lhe as faces e as fontes, e com os seus grandes olhos e a boca pequena dava a impressão de um gatinho rechonchudo. Dormia e comia, e assim criava aquela carne tenra e macia. Se já não era um botão de loto, também não era uma flor plenamente aberta; se não era nova, também não parecia velha; a juventude e a velhice estavam igualmente longe dela.
Com a sua vida novamente plácida, e o rapaz satisfeito, Wang Lung ter-se-ia considerado feliz, se uma noite, em que tinha ficado sozinho, contando pelos dedos o que podia vender de trigo e de arroz, O-lan não tivesse entrado silenciosamente no quarto. com o decorrer dos anos, ela tinha-se tornado fraca e descarnada, com as maçãs do rosto salientes, como rochedos, e os olhos fundos. Se lhe perguntavam como estava, respondia somente:
Tenho fogo nas entranhas.
Durante os últimos três anos, o seu ventre tinha tomado um volume de gravidez, mas o parto não se produzia. Levantava-se ao amanhecer, fazia o seu trabalho, e Wang Lung olhava para ela apenas como quem olha para uma mesa, para uma cadeira, para uma árvore do pátio, com menos interesse do que olharia para um dos bois que baixasse a cabeça ou para um porco que não quisesse comer. Fazia o seu serviço sozinha, falando com a mulher do tio só quando era necessário e não dizendo nunca uma palavra a Cuckoo. Nem uma só vez entrou nos aposentos de Lotus nas raras ocasiões em que esta saía deles para passear um pouco pela casa, O-lan metia-se no quarto e ali ficava até que alguém lhe dissesse:
Já se foi.
E sem se lamentar fazia a cozinha, lavava no tanque, até no Inverno, quando o frio era tão intenso que se precisava quebrar o gelo. Mas Wang Lung nunca se lembrara de lhe dizer:
Ora, porque não tomas uma criada, com o dinheiro que me sobra, ou não compras uma escrava?
Não via que houvesse necessidade disso, embora ele assalariasse trabalhadores para os campos, para tratar dos bois, dos jumentos e dos porcos que possuía e, no Verão, quando o rio transbordava, para os patos e gansos que criava nas águas.
Naquela noite, porém, enquanto estava sentado sozinho, com as velas vermelhas acesas nos castiçais de estanho, O-lan aproximou-se dele, olhou para todos os lados e disse, por fim:
Preciso de lhe falar.
Ele olhou-a surpreendido e disse:
Pois bem, fala.
Contemplou-lhe as faces cavadas, pensando que não tinha traço algum de beleza e há muitos anos a não desejava.
Então ela disse-lhe, numa voz baixa e rouca:
O filho mais velho frequenta demasiado o segundo pátio. Quando o senhor está ausente vai para lá.
A princípio, Wang Lung não compreendeu o que ela dizia. Inclinou-se para a frente, de boca aberta, e perguntou: Que dizes, mulher?
Ela fez um sinal com a boca franzida para o quarto do filho e depois para os aposentos de Lotus. Mas Wang Lung olhava-a violento e incrédulo.
Tu sonhas!disse, por fim.
Ela abanou a cabeça ao ouvir isto, e falando com dificuldade, continuou:
Está bem, meu senhor, pois venha um dia a casa inesperadamente.
E, depois de uma pausa, acrescentou:
É melhor mandá-lo para fora, ainda que seja para o Sul.
Aproximou-se da mesa, pegou na tigela de chá e despejou o chá frio no chão de ladrilho; depois tornou a enchê-la com chá quente da chaleira, e, tal como tinha vindo, assim voltou lenta e silenciosa, deixando Wang Lung boquiaberto.
«Ora, o que esta mulher tem são ciúmes!»pensou Wang Lung.
E decidiu não fazer caso daquilo nem preocupar-se, agora que o rapaz estava satisfeito e lia tranquilamente no seu quarto o dia inteiro. Levantou-se da cadeira a rir, zombando dos mesquinhos pensamentos das mulheres. Mas naquela noite, quando se foi deitar com Lotus, notou que ela se lamentava, protestava irritada e o afastava, dizendo:
Está muito calor e tu cheiras mal. Bem podias lavar-te antes de vires deitar-te a meu lado.
Sentou-se na cama, afastou o cabelo do rosto, com um gesto impaciente, e, quando Wang Lung quis atraí-la para si, encolheu os ombros e recusou-se a ceder às suas solicitações; ele aquietou-se e lembrou-se de que havia algumas noites que cedia de má vontade ao seu amor. Atribuíra tudo a um passageiro capricho e ao calor do fim do Verão que a enervava, mas agora as palavras de O-lan vieram-lhe ao pensamento e, levantando-se com modo brusco, exclamou:
Ah, sim? pois fica só, e que me cortem o pescoço se me importo!
Saiu do quarto e, na sala do meio da sua própria casa, juntou duas cadeiras e deitou-se sobre elas. Mas, como não podia conciliar o sono, logo se levantou; saindo a porta, pôs-se a passear para cima e para baixo, entre os bambus que cresciam junto à parede de sua casa. A brisa da noite refrescava-lhe o corpo escaldante e sentia-se no vento a frescura do Outono que se aproximava.
Então lembrou-se de que Lotus sabia do desejo que seu filho tinha de partir. Como soubera disso? Recordou que ultimamente seu filho já não falava em partir e parecia satisfeito. Mas porque estava satisfeito? Wang Lung disse consigo, ferozmente:
Tratarei de saber disto, eu mesmo!
E esperou que viesse a madrugada, que já purpureava a névoa sobre os campos.
Quando amanheceu e o Sol mostrou o seu disco de ouro no horizonte, Wang Lung entrou em casa e comeu. Depois saiu para vigiar os trabalhadores, como era seu costume na época das colheitas e das sementeiras. Andou muito tempo de um lado para o outro e por fim gritou bem alto, para que o ouvissem de casa:
Agora vou ao campo, junto do fosso da cidade, e não voltarei tão cedo.
E dirigiu-se para a cidade. Mas quando chegou a meio do caminho, à altura do pequeno templo, sentou-se à beira da estrada, numa pequena eminência coberta de erva, que era uma antiga sepultura agora abandonada, colheu uma erva e torceu-a entre os dedos, meditando.
Tinha diante de si os dois pequenos deuses, e ao seu espírito aflorou ideia de que eles o olhavam severamente porque, dantes os temia e agora não: como tinha enriquecido e prosperado, não precisava dos deuses, de modo que só raramente os visitava. Mas, no fundo, pensava insistentemente:
Devo regressar?
E então lembrou-se, de súbito, de que Lotus o repelira na noite precedente. Ficou cheio de cólera por tudo quanto havia feito por ela, dizendo:
Bem sei que não continuaria muitos anos na casa de chá, e na minha é bem alimentada e ricamente vestida.
Impelido pela cólera, levantou-se e regressou a casa por outro caminho. Entrou às escondidas, parou junto da cortina que fechava a entrada do segundo pátio, e ali ficou um instante a escutar. Ouviu o murmúrio de uma voz de homem: era a voz de seu filho.
Explodiu então em Wang Lung uma cólera como jamais sentira, embora à medida que a sua prosperidade aumentava e se tornava rico perdesse a sua primitiva timidez e se deixasse empolgar por pequenos acessos de ira, mostrando-se orgulhoso, até mesmo na cidade. Mas desta vez era a cólera de um homem contra outro homem que intenta roubar-lhe a mulher amada; e quando Wang Lung se lembrou de que aquele outro homem era o próprio filho, sentiu náuseas.
Cerrou os dentes, foi ao canavial escolher um bambu delgado e flexível, cortou-lhe os ramos deixando alguns da ponta, os mais finos, duros como cordas, e arrancou-lhe as folhas. Depois, tornou a entrar sem fazer ruído e correu a cortina com rapidez. Ali no pátio estava seu filho, em pé, junto de Lotus sentada num pequeno tamborete, à beira da piscina, com o seu vestido de seda cor de pêssego, que Wang Lung nunca lhe havia visto à luz do dia.
Conversavam ambos. A mulher ria prazenteiramente e olhava o jovem pelo canto dos olhos, a cabeça voltada para o outro lado, e não viram nem ouviram Wang Lung, que os contemplava, com o rosto lívido, os lábios arreganhados num ricto que descobria os dentes, e as mãos crispadas no bambu. Os dois cúmplices não o sentiram, nem teriam percebido a sua presença, se Cuckoo não houvesse entrado naquele instante e dado um grito que os fez voltarem-se rapidamente e descobrir Wang Lung.
Este deu então um salto para a frente e caiu sobre o filho, batendo-lhe com o bambu; embora o rapaz fosse mais alto, ele estava na plenitude das suas forças e era mais robusto porque trabalhava no campo. Bateu tanto no rapaz, que o sangue correu. Quando Lotus, dando gritos, quis deter-lhe o braço, repeliu-a num safanão; como ela persistisse, bateu-lhe também com o bambu fazendo-a fugir, e continuou batendo no filho até que este se agachou pedindo perdão e cobriu com as mãos o rosto lacerado.
Então Wang Lung deteve-se. Tinha a respiração sibilante, os lábios entreabertos, estava alagado em suor e sentia-se fraco e esgotado como durante uma enfermidade. Atirou o bambu, ofegante, e disse ao rapaz:
Agora vai para o teu quarto e não te atrevas a sair de lá até que me livre de ti, se não queres que te mate!
O rapaz levantou-se e saiu, sem dizer palavra.
Wang Lung sentou-se no tamborete em que Lotus estava sentada, escondeu a cabeça entre as mãos e fechou os olhos, com a respiração arquejante. Ninguém se aproximou dele e ficou assim, sozinho, até que se acalmou e a cólera se dissipou.
Então, com infinito cansaço, levantou-se e foi ao quarto onde estava Lotus, estendida na cama, a soluçar alto. Aproximou-se dela e, agarrando-a pelos ombros, fê-la virar-se. Ela fitou-o, soluçando, e Wang Lung viu-lhe no rosto um vergão inchado e violáceo da pancada que lhe dera. E disse-lhe tristemente:
Não deixaste então de ser uma meretriz, a ponto de tentares prostituir o meu próprio filho?
Ela pôs-se a chorar com mais força, ao ouvir isto, e respondeu:
Não, não é verdade! O rapaz sentia-se só e entrou no pátio, mas podes perguntar a Cuckoo se ele esteve alguma vez mais perto da minha cama do que quando o viste no pátio!
Lançou-lhe um olhar tímido e desolado; pegando-lhe na mão, levou-a ao rosto banhado de lágrimas e choramingou:
Olha o que fizeste à tua Lotus! Só há um homem para mim no mundo: és tu. Se ele é teu filho, para mim é apenas o teu filho e nada mais!
Ergueu os olhos para ele, os seus lindos olhos banhados de lágrimas transparentes; Wang Lung suspirou, porque a beleza daquela mulher era mais forte do que ele e amava-a mesmo contra sua vontade. Pareceu-lhe, de repente, que lhe seria insuportável saber o que se tinha passado entre os dois cúmplices e preferia nunca saber, porque era melhor que não o soubesse. Suspirou de novo, e saiu. Ao passar em frente do quarto do filho, gritou-lhe, sem entrar:
Agora, põe as tuas coisas na mala e amanhã partirás para o Sul, onde farás o que te aprouver; e não voltes enquanto não te mandar buscar!
Continuou o caminho e passou diante de O-lan, que estava costurando umas roupas; mas ela não disse nada, nem deu mostras de ter ouvido os gritos e as pancadas. Wang Lung seguiu em direcção aos seus campos, sob o sol ardente do meio-dia, cansado como se tivesse trabalhado o dia inteiro.
QUANDO o filho mais velho partiu para o Sul, pareceu a Wang Lung que a casa fora purgada de um excesso de inquietação, e sentiu alívio. Disse consigo que era melhor para o rapaz ter partido e agora já poderia ocupar-se dos outros filhos, ver o que valiam, pois, com as suas atribulações pessoais e as exigências da terra, que era preciso semear e ceifar no devido tempo, mal prestava atenção a seus filhos, com excepção do mais velho. Decidiu, além disso, tirar da escola o segundo filho e iniciá-lo no comércio, sem esperar que chegasse à puberdade e se tornasse uma calamidade em casa, como acontecera com o outro.
Ora, o segundo filho de Wang Lung era tão diferente do primeiro como podem sê-lo dois irmãos. Ao passo que o primogénito era alto, ossudo e corado como os homens do Norte e como sua mãe, o outro era de pequena estatura, delgado, de pele amarela, e tinha qualquer coisa que lembrava a Wang Lung o seu próprio pai: o olhar astuto, sagaz, zombeteiro, e certa propensão para a malícia quando se proporcionava a ocasião. E Wang Lung disse consigo:
«Este rapaz dá um bom comerciante. Vou tirá-lo da escola e ver se pode entrar como marçano no armazém de cereais. Seria conveniente que eu tivesse um filho no lugar onde vendo as minhas colheitas; poderia fiscalizar a balança e incliná-la um pouco a meu favor.»
De modo que, certo dia, disse a Cuckoo:
Vai dizer ao pai da noiva de meu filho que preciso de falar com ele. Podemos tomar um copo de vinho juntos, já que ele e eu teremos que derramar o nosso sangue na mesma tigela.
Cuckoo foi e voltou dizendo:
Ele estará contigo quando quiseres. Podes ir a casa dele beber vinho hoje à tarde, a não ser que prefiras que ele venha aqui, o que fará de bom grado.
Mas Wang Lung não desejava que o comerciante fosse a sua casa porque temia ver-se obrigado a fazer preparativos especiais. Assim, levantou-se cuidadosamente, pôs a túnica de seda e seguiu através dos campos. Foi primeiro à rua das Pontes, como lhe havia indicado Cuckoo, e parou diante de uma grande porta, onde estava escrito o nome de Liu. Não que pudesse lê-lo, mas deu com a porta contando, pois sabia que era a segunda à direita da ponte. Além disso, perguntou a um homem que passava e a letra era, com efeito, a de Liu. Era uma porta respeitável, construída simplesmente de madeira; bateu nela com a palma da mão.
A porta abriu-se imediatamente, apareceu uma criada enxugando as mãos ao avental, e perguntou-lhe quem era. Quando disse o seu nome, ela fitou-o, conduziu-o ao primeiro pátio, onde habitavam os homens, introduziu-o numa sala, pediu-lhe que» se sentasse e fitou-o de novo, compreendendo que era o pai do noivo da filha da casa. Depois foi prevenir o patrão.
Wang Lung olhou à sua volta atentamente, levantou-se para apalpar o tecido das tapeçarias e examinar a madeira da mesa, sentindo-se contente por ver que naquela casa havia conforto, mas não uma extrema opulência. Ele não queria uma nora rica, para que não fosse orgulhosa e desobediente, cheia de caprichos e dada a afastar dos pais o coração de seu marido. Feita a inspecção, Wang Lung sentou-se de novo e esperou.
De repente, ouviram-se passos pesados e um homem corpulento, de certa idade, entrou na sala. Wang Lung levantou-se e inclinou-se; ambos se cumprimentaram de novo, mirando-se à socapa, com mútua satisfação, e respeitando-se um ao outro pelo que tinham de dignos e prósperos. Em seguida sentaram-se e beberam vinho quente, que a criada lhes serviu, e falaram com vagar disto e daquilo, de colheitas, de preços e do que valeria o arroz naquele ano, se a colheita fosse boa. Por fim, Wang Lung disse:
Pois bem. Vim por causa de um negócio, mas se for outro o vosso desejo, falemos de outros assuntos. Se tendes, porém, necessidade de um auxiliar no vosso grande armazém, tenho o meu segundo filho, que é muito sagaz; mas se não tendes necessidade dele, falemos de outras coisas.
Então o comerciante disse prazenteiramente:<