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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TERRA DA NEVE / Yasunari Kawabata
TERRA DA NEVE / Yasunari Kawabata

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Shimamura viaja de comboio para um balneário das regiões montanhosas do norte do Japão. Fica cativado por uma voz feminina que ressoa no comboio. A mulher, Yoko. acompanha um homem. Yukio, filho de uma professora de música que vive na vila para onde se dirige Shimamura. Este tem a intenção de se reencontrar ali com uma geisha, Komako. que conheceu numa viagem anterior, quando ela ainda não se dedicava profissionalmente a esses mesteres. Está embelezado com a delicadeza dela. mas resolve ficar unicamente pela amizade, contemplando a possibilidade de futuras visitas. O sugestivo decorrer das estações influirá nestas relaciones humanas.

Yasunari Kawabata nasceu em Osaka em 1899 e morreu em 1972. Foi o primeiro escritor japonês galardoado com o prémio Nobel de literatura, que recebeu em 1968. Terra de Neve (1935-1947) é o seu romance mais célebre, uma obra desoladora, que conseguiu agradar ao gosto ocidental e revitalizar nele a fantasia do japonês, gerada a partir da figura da geisha. De linguagem poética e estilo singularmente subtil, a sua escrita está relacionada com o género haiku da poesia japonesa. Da sua restante obra, destacam-se A Dançarina de Izu, O Mestre de Co, Chá e Amor e A Casa das Belas Adormecidas.

 

 

 

 

Um longo túnel entre as duas regiões, e eis que estamos na Terra de Neve. O horizonte tinha clareado sob as trevas da noite. O comboio afrouxou e acabou por parar junto do local onde se faz a mudança de agulha.

A jovem que estava sentada do outro lado do corredor central levantou-se e veio abrir a janela, em frente de Shimamura. O frio da neve entrou pela carruagem. Inclinada para fora o mais que podia, a jovem chamou o chefe da estação em voz alta, gritando para longe.

O homem aproximou-se, calcando a neve lentamente, com uma lanterna na mão; trazia um lenço enrolado ao pescoço que lhe chegava quase aos olhos, e as abas do gorro de pele cobriam-lhe as orelhas.

«Estará assim tanto frio?» - pensou Shimamura, que olhava para fora e não via mais nada a não ser algumas barracas erguidas junto à montanha, ao longe, onde o branco da neve desaparecia já na noite. Tratava-se, sem dúvida, das habitações dos empregados do caminho-de-ferro.

- Sou eu, chefe. Então como tem passado?

- Ah!, é a Yoko... Então já está de volta? O tempo começa a arrefecer.

- Segundo me disseram, o meu irmão arranjou aqui trabalho. Queria agradecer-lhe por se ter interessado pelo assunto.

- Vai ver, num lugar destes a solidão não vai tardar a pesar-lhe. - Sim, para dizer a verdade, ele não passa de uma criança grande. Estou certa de que posso contar com o senhor, para lhe ensinar o que for preciso.

- Ora, ora, ele desembaraça-se já muito bem, acredite. E, além disso, com esta neve toda vamos ter trabalho que nunca mais acaba. O ano passado caiu tanta que os comboios ficavam constantemente bloqueados pelas avalanchas; a gente aqui do lugar não parava de fazer comida para os passageiros.

- O senhor parece estar bem agasalhado. O meu irmão escreveu-me na última carta que ainda não tinha vestido camisola.

- Pois eu preciso de vestir quatro, em cima umas das outras, para sentir calor. Mas a gente nova quando sente frio recorre ao álcool... É tudo o que precisam para se sentirem bem ali! - e, com um grande gesto, estendeu o braço que segurava a lanterna na direcção das barracas: - ou então na cama, com uma valente constipação! Isso nunca falta!

- Mas o meu irmão também bebe? - perguntou a jovem Yoko, preocupada.

- Não, que eu saiba não.

- Vai-se já embora? - perguntou, admirada.

- É verdade. Tenho de ir ao médico... Mas não é nada de grave: uma simples ferida.

- O senhor devia ter cuidado consigo!

O homem, com o pescoço enterrado no grosso casaco, que enfiara por cima do quimono, tinha-se afastado já, enregelado e visivelmente desejoso de voltar para casa.

- E você, Yoko, não se esqueça também de ter cuidado com a sua saúde! - disse-lhe, voltando a cabeça.

Percorrendo com o olhar o cais coberto de neve, Yoko exclamou ainda:

- Oiça, chefe! O meu irmão estará ainda a trabalhar? Olhe bem por ele, por favor!

Havia muita beleza nesta voz que, alta e sonora, se ia perder como um eco sobre a neve e no meio da noite; possuía um tão comovedor encanto que, ao ouvi-la, ficava-se com o coração inundado de tristeza. A jovem continuava debruçada à janela quando o comboio recomeçou a marcha.

- Diga-lhe para vir a casa quando tiver folga! Não se esqueça! - exclamou com a sua voz tão bela, ao passar pelo homem, que continuava a caminhar ao longo da linha.

- Não me esquecerei - respondeu o homem.

, A jovem passageira puxou o vidro e apertou com as mãos as faces, vermelhas pelo frio, antes de voltar para o seu lugar.

Nesta vertente da montanha, precisamente neste local, podiam ver-se três limpa-calhas preparados para entrar em acção quando começassem a cair as pesadas camadas de neve. Além disso tinha sido instalado um sistema de alarme eléctrico, à entrada e à saída do túnel, a fim de dar sinal, sem demora, das avalanchas que iriam obstruir a linha. Um número suficiente de braços para assegurar cinco mil dias de trabalho estava ali permanentemente de atalaia: serventes prontos a intervir para desobstruírem a via, sem contar com os dois mil dias de trabalho que podiam igualmente fornecer os jovens voluntários mobilizados no corpo de sapadores-bombeiros.

«Não passa de uma estação de caminho-de-ferro que a neve não tardará a submergir... É aqui, portanto, que ele vai trabalhar, o irmão da rapariga chamada Yoko...» - assim pensava Shimamura, à medida que ia aumentando nele o interesse pela jovem. Espontaneamente, tinha pensado nela como se fosse ainda uma rapariga solteira. Isto simplesmente porque nela havia qualquer coisa que lhe dizia que não era casada. De facto, viajava na companhia de um homem, e Shimamura não dispunha, evidentemente, de nenhum meio de saber ao certo quem ele pudesse ser. À primeira vista comportavam-se como se fossem marido e mulher. No entanto, o homem parecia estar gravemente doente, e a doença tem sempre como efeito estreitar as relações entre um homem e uma mulher. Qual a mulher que, ao tratar de forma maternal alguém muito mais idoso, não dá a impressão de ser a sua esposa, desde que não seja observada muito de perto? Sim, e em qualquer circunstância. E quanto mais cuidado exigir o estado do doente, mais o par terá fatalmente o ar de um casal.

Baseando-se no sentimento geral que lhe davam as aparências, Shimamura preferiu pensar na jovem, que lhe interessava, independentemente do homem. E esse sentimento, a partir do momento em que começara a contemplá-la, estava fortemente carregado de impressões pessoais, de reacções subjectivas, intensamente acentuadas e de certo modo um tanto estranhas.

A coisa tinha-se dado três horas antes, numa altura em que Shimamura, aborrecido, olhava distraidamente para a palma da mão esquerda, brincando com os dedos, dizendo para consigo que nada mais restava a não ser essa mão, a carícia dos dedos dessa mão, para conservar uma lembrança sensível persistente, a memória ardente e sensual da mulher com quem ia encontrar-se de novo. Ela esquivava-se-lhe da lembrança, afastando-se sempre que tentava recordá-la, não deixando atrás de si nada a que ele se pudesse agarrar, nada que pudesse pelo menos reter. Na ausência de todo o seu ser restava apenas essa mão esquerda, com a lembrança viva e como que presente ainda do seu contacto, que parecia permitir a Shimamura voltar atrás. Impressionado, ao sentir subitamente esse calor vivo debaixo da sua mão, quase incomodado pela realidade estranha dessa presença, e provavelmente um pouco seduzido também, Shimamura aproximara a mão do rosto. Com o dedo estendido tinha traçado um risco rápido no vidro embaciado que fez surgir e pairar à sua frente um olho de mulher. Surpreendido, deixara escapar um grito. Mas isso não passara de um sonho dentro do seu sonho e, voltando a si, Shimamura verificou que o que via reflectido no vidro era a imagem da jovem, sentada do outro lado. Escurecera lá fora; tinham acendido as luzes no comboio, e os vidros das janelas produziam o efeito de espelhos. A humidade que ocultava o vidro tinha-o impedido até então de fruir esse fenómeno que se havia revelado ao traçar aquele risco.

Em si mesmo, o olho que Shimamura vira ganhava uma estranha beleza, e ele, aparentando uma apatia enfastiada da viagem, aproximou o rosto, como se contemplasse a paisagem da noite através da janela, e limpou a humidade de toda a superfície do vidro.

A jovem continuava inclinada para a frente, vigiando com atenção a pessoa que estava diante de si. Devido a essa espécie de tensão que o reflexo revelava nela até à altura dos ombros, Shimamura compreendeu que era a própria intensidade da sua atenção que lhe mantinha o olho fixo e punha no seu olhar esse brilho de uma dureza cruel, um olho cujas pálpebras não batiam sequer. Deitado, o homem tinha a cabeça apoiada contra a janela e as pernas estendidas, com os pés em cima do banco onde se encontrava a jovem. Viajavam em terceira classe. Do outro lado da carruagem, o casal não ocupava os lugares que se encontravam exactamente à altura do de Shimamura: estava instalado uma fila à frente, de modo que, na janela-espelho, Shimamura apenas via do homem um perfil cortado ao nível da orelha.

Quanto à jovem, colocada diagonalmente frente a frente, podia abrangê-la directamente no seu campo visual. Mas ele tinha imediatamente baixado os olhos, quando estes novos passageiros subiram para a carruagem, impressionado com a beleza da mulher e com o seu ar de frieza distante, que o intimidou. Tivera no entanto tempo de ver como os dedos exangues e cor de cinza do doente se agarravam à sua companheira. Shimamura desviara-se deles e, sem saber bem porquê, não ousara olhar na sua direcção outra vez.

O que Shimamura agora via do rosto masculino, no espelho que a janela reflectia para ele, esta expressão lassa, este ar de calmo abandono, seguro de um conforto, tinha a impressão de que isto se ligava ao olhar do homem, que tombava directamente no peito da jovem e nele descansava. Shimamura encontrava na imagem deste casal uma certa harmonia, feita de doçura e de equilíbrio entre as duas figuras igualmente frágeis. O homem repousava, com a cabeça apoiada no extremo do cachecol que lhe servia de almofada, e a outra extremidade, puxada para a cara, cobria-lhe a boca como se fosse uma máscara. Às vezes o tecido subia um pouco e tapava-lhe o nariz, ou então descaía, deixando ver o rosto, mas, antes que ele fizesse o mínimo gesto, atenta e prevenida, a mulher inclinava-se para ele e voltava a recompor tudo. À força de se repetir, sob o olhar de Shimamura, o incidente e o gesto que se seguia automaticamente acabaram por despertar-lhe uma certa impaciência. Ou então era o casaco que envolvia os pés do doente que por sua vez deslizava e caía até ao chão, imediatamente composto, dir-se-ia de modo mecânico, e colocado no lugar, com um gesto rápido da mulher. Tudo acontecia naturalmente: dir-se-ia que aqueles dois, sem qualquer preocupação de tempo ou de lugar, se dispunham a prosseguir eternamente a viagem e a mergulhar na distância infinita. Talvez fosse por isso que Shimamura, no que lhe dizia respeito, não experimentava nenhum dos sentimentos de compaixão ou tristeza que um espectáculo penoso suscita: contemplava tudo isto sem emoção, como se se tratasse de um jogo insignificante em qualquer sonho inconsistente - e esta impressão dominava-o, devido ao estranho reflexo do vidro.

Ao fundo, muito longe, desfilava a paisagem da noite, que de certo modo servia de aço móvel àquela espécie de espelho; as figuras humanas que reflectia de forma mais nítida recortavam-se nele de certo modo como as figuras em sobreimpressão de um filme. Não havia certamente nenhuma ligação entre as imagens móveis do plano de fundo e as mais acentuadas, das duas personagens; porém, tudo se mantinha dentro de uma unidade fantástica, de tal modo a imaterial transparência das figuras parecia corresponder e confundir-se com a imprecisão das trevas da paisagem que a noite envolvia, para formar um só e mesmo universo, uma espécie de mundo sobrenatural e simbólico, que já não pertencia a este. Um mundo de uma beleza inefável e pelo qual Shimamura se sentia inundado até ao coração, transtornado, quando por acaso, lá fora, ao longe, na montanha, uma luz cintilava de súbito, precisamente no meio do rosto da mulher, atingindo o máximo inexprimível desta inenarrável beleza.

No céu nocturno, sobre as montanhas, o crepúsculo tinha conservado alguns tons de púrpura e podia ainda distinguir-se lá muito ao longe, no horizonte, o recorte dos picos solitários. Mas, mais perto, o que acontecia era o perpassar constante da mesma paisagem de montanhas, completamente apagada agora e desprovida de qualquer cor. Nada que retivesse o olhar. A paisagem desfilava como onda de monotonia, tanto mais neutra, tanto mais atenuada, tanto mais tenuemente emocionante, quanto corria sob os traços da jovem, por detrás deste belo e comovente rosto, que dir-se-ia derramá-lo em roda dentro dum tom cinzento. A própria imagem deste rosto parecia, na verdade, tão pouco material que ela mesma devia ser transparente. Shimamura, procurando saber se isso realmente acontecia, julgou ver a paisagem através dela, mas as imagens passavam tão depressa que lhe foi impossível dominar essa sensação.

A luz da carruagem era pouco intensa, e aquilo que Shimamura via reflectido estava longe de possuir o relevo e a nitidez da imagem de um verdadeiro espelho. Acabou também por esquecer facilmente que contemplava uma figura reflectida num espelho, pouco a pouco dominado pelo sentimento de ver este rosto de mulher lá fora, a flutuar e como que levado pela torrente ininterrupta da paisagem gigantesca e mergulhada nas trevas.

Foi então que uma luz longínqua resplandeceu naquele rosto. No jogo dos reflexos, ao fundo do espelho, a imagem não se impunha com a consistência suficiente para eclipsar o brilho da luz, mas tão-pouco era incerta ao ponto de desaparecer debaixo dela. E Shimamura seguiu a luz que caminhava lentamente sobre o rosto sem o perturbar. Uma fria cintilação perdida na distância. E quando o seu brilho reduzido veio reacender-se sobre a pupila da mulher, quando se sobrepuseram e se confundiram o brilho do olhar e o da luz fixa na distância, foi como que um milagre de beleza expandindo-se no desconhecido, com este olho iluminado que parecia vogar sobre o oceano da noite, por entre as vagas rápidas da montanha.

Como é que Yoko se apercebeu de que estavam a fixá-la? Toda a sua atenção recaía no companheiro doente. Ainda que tivesse levantado os olhos para Shimamura, não podendo possivelmente descobrir o seu próprio reflexo no vidro, jamais poderia desconfiar daquele passageiro, que se limitava simplesmente a olhar pela janela.

Por seu lado, Shimamura nem um instante sequer pensou que podia ser incorrecto, ou mesmo inconveniente, observar deste modo a jovem, sem despegar os olhos dela, de tal modo permanecia sob o encanto simultaneamente irreal e sobrenatural do quadro que tinha sob os seus olhos, seduzido pela estranha beleza daquele rosto arrastado pela paisagem nocturna. Esquecera-se de si próprio, dominado inteiramente pela magia deste jogo, sem saber se estava ou não a sonhar.

Quando a tinha visto levantar-se durante a paragem, para falar com o chefe da estação, sem no entanto abandonar aquele ar de gravidade e de soberana nobreza, o seu primeiro sentimento levou-o a pensar menos nela própria do que em qualquer heroína pertencente ao fundo das idades, qualquer personalidade ideal do mundo da lenda.

A noite e toda a sua paisagem haviam tomado posse da janela, que tinha perdido o seu encanto de espelho quando o comboio parara. A espécie de frieza que havia em Yoko, apesar do calor que ela prodigalizava ao doente, com os seus atentos cuidados, tinha atingido e como que desencorajado Shimamura. E quando o comboio recomeçou a andar não se tinha dado ao cuidado de desembaciar o vidro da janela.

Mas qual não foi a surpresa, meia hora mais tarde, ao verificar que a jovem e o seu companheiro iam descer na mesma estação que ele! Não pôde impedir-se de se voltar para eles, para melhor se certificar de que essa estranha coincidência, apesar de tudo, não lhe dizia respeito pessoalmente. Mas, mal pôs os pés no cais, o frio brutal veio despertar-lhe a consciência, e sentiu-se envergonhado pelo comportamento grosseiro que tinha tido no comboio. Sem olhar para trás, atravessou as linhas e passou em frente da locomotiva.

Agarrado ao ombro da mulher, o doente tentava descer do lado contrário da via, quando o empregado que estava no segundo cais levantou o braço para os impedir.

Um interminável comboio de mercadorias que então surgiu da obscuridade desfilou lentamente, encobrindo-os.

Com um gorro que lhe tapava as orelhas e umas enormes botas de borracha, o carregador do yadoya(1) a pensão onde ele iria instalar-se, estava tão bem equipado contra o frio que mais parecia um bombeiro. Uma mulher, com uma romeira azul e a cabeça encapuzada, encontrava-se na sala de espera e espreitava para o lado das linhas.

Mas faria assim tanto frio? Shimamura tinha acabado de sair do comboio bem aquecido e não podia aperceber-se disso. E, como era a primeira vez que ele vinha experimentar o Inverno na região da neve, não deixou de ficar impressionado com os extravagantes trajos que as pessoas da terra usavam.

- É ja a época dos grandes frios? - perguntou ele ao homem.

- Estamos às portas do Inverno, assim se pode dizer. E quando o céu começa a limpar-se, depois da neve, então é sinal de que vai estar uma noite de frialdade. Não tenha dúvidas, pode estar certo de que esta noite vai gelar.

- Que diz você, gelar?

E, entrando com ele para um táxi, Shimamura lançou um olhar para os finos pedaços de gelo que debruavam o rebordo das abas dos telhados. No branco da neve, as entradas fundas das casas pareciam ainda mais silenciosamente profundas. Tudo tinha ar de se esconder no mutismo da terra.

- Têm razão quando dizem que o frio aqui não é o mesmo que noutra parte qualquer. Mesmo ao tacto, a reacção é diferente.

- No Inverno passado esteve mais de vinte graus abaixo de zero.

- Tiveram muita neve por cá?

- Em geral, dois ou três metros e algumas vezes mais de quatro. É o que lhe posso dizer!

- E é então agora que vai começar a nevar a sério?

- Sim, começou precisamente agora. Caíram já cerca de trinta centímetros que em parte já se derreteram.

- Se derreteram? Mas isso é possível? Então a neve pode derreter-se?

- É o que está agora a acontecer. Pode começar para aí a cair uma camada dos diabos dum dia para o outro. Sou eu que lhe digo!

Começara o mês de Dezembro.

Shimamura tinha o nariz tapado, devido a uma renitente constipação, mas, de repente, o frio desentupira-lhe as narinas e metade do cérebro; foi obrigado a assoar-se, expelindo dum só golpe e limpando tudo aquilo que lhe obstruía o nariz.

- A jovem que morava em casa da professora de Música continua a vir cá? - perguntou ele ao porteiro.

- Certamente. Era ela quem esperava na estação. Não a viu, por acaso? Trazia uma romeira azul.

- Ah, era ela? Não reparei.

- Não poderia mandá-la chamar?

- Esta noite ainda?

- Sim, esta noite.

- Sabe, é que eu ouvi dizer que o filho da professora de Música chegava no mesmo comboio que o senhor. Ela estava na estação à espera dele.

O filho da professora de Música! O doente que ele tinha contemplado no vidro durante a noite, o companheiro de viagem de Yoko, era o filho da dona da casa onde vivia precisamente a mulher com quem ele vinha encontrar-se! Shimamura sentia-se como que electrizado, e ainda que tivesse ficado pouco admirado com o extraordinário aspecto da coincidência acabou por ficar assombrado por se sentir tão pouco espantado.

Uma pergunta surgiu dentro dele, pergunta que lia tão nitidamente como se a visse escrita: o que haveria, que se iria passar entre a mulher de quem a sua mão tinha conservado uma recordação ardente e aquela cujo olho se havia iluminado com a longínqua luz que vinha da montanha? Mas podia acontecer talvez que não estivesse ainda liberto das magias do espelho nocturno e dos encantos da paisagem que se desenrolavam no exterior... A não ser que fosse necessário ver nisso uma espécie de símbolo vivo da fuga do tempo.

No hotel das termas a clientela era menos numerosa que algumas semanas antes da abertura da época de esqui. Ao voltar do banho, Shimamura achou-se numa casa onde tudo parecia dormir. Avançava pelo longo corredor, despertando a cada passo, no velho soalho, uma longínqua vibração que fazia estremecer por instantes os caixilhos das portas envidraçadas. E nada mais. Mas assim que dobrou o corredor descobriu em frente do escritório do hotel a silhueta delicada de uma mulher, de pé, no seu longo quimono, caindo em pregas frias sobre o soalho encerado, brilhante e escuro. Shimamura teve um sobressalto ao vê-la vestida com um quimono comprido. Teria ela acabado por se tornar uma gueixa? A jovem não avançou para ele e não revelou o menor sinal de o ter reconhecido. A sua silhueta imóvel e silenciosa exprimia para Shimamura uma espécie de gravidade concentrada. Aproximou-se rapidamente dela, sem dizer palavra. A jovem esboçou um sorriso, voltando para ele o rosto excessivamente empoado, à maneira das gueixas, que as lágrimas em breve vieram molhar. Sem falar, dirigiram-se para o quarto dele.

Depois do que tinha havido entre eles, Shimamura nunca mais lhe escrevera; nunca mais viera vê-la e não lhe tinha enviado os tratados técnicos sobre dança que lhe havia prometido. Ela tinha todas as razões para acreditar que ele apenas se tinha divertido com ela, que a esquecera. Portanto, Shimamura devia-lhe uma explicação, e era ele quem teria de falar em primeiro lugar. Mas enquanto iam avançando juntos, sem falar, sem mesmo trocar um olhar, Shimamura compreendera que em vez de exigir isso ela tinha o coração radiante, inteiramente feliz por tornar a vê-lo. Falar não teria servido de nada, a não ser para tornar ainda mais pesadas as suas faltas. E Shimamura, já sob o encanto, avançava num mundo que não era senão feliz serenidade. Junto da escada, estendendo o braço, colocou a mão esquerda aberta debaixo dos seus olhos.

- Foi ela que guardou de ti a melhor recordação.

- Sim? - perguntou a mulher, apertando-lhe a mão entre as suas, como se quisesse arrastar Shimamura para cima.

Fechada entre os dedos masculinos, a pressão da mão feminina só se libertou no meio do quarto, em frente do kotatsu(2). De repente a jovem corara sob a pintura e, para disfarçar a sua perturbação, com um gesto na direcção da mão de Shimamura perguntou:

- É ela que se tem lembrado de mim?

-A direita, não, esta - precisou Shimamura, estendendo-lhe a mão esquerda aberta e deslizando a direita pelo kotatsu, para a aquecer.

- Eu sei, sim - disse com um sorriso contido.

Com as duas mãos, num gesto terno, a jovem ergueu a mão de Shimamura e colocou-a junto da sua face, apoiando-a suavemente.

- Lembras-te de mim? - murmurou ela, dirigindo-se à mão, sonhadora.

- Oh, como estão frios! - exclamou Shimamura, tocando-lhe nos cabelos penteados no alto - é a primeira vez que toco numa cabeleira gelada.

- Em Tóquio ainda não há neve nesta altura? - perguntou ela.

- O que tu dizias da outra vez, sabes - disse-lhe Shimamura -, não era realmente verdade. Senão, quem se lembraria de vir enregelar em pleno fim do ano para um sítio destes?

Da outra vez... Foi na abertura da época de alpinismo, quando está afastado qualquer perigo de avalancha; quando é tão agradável correr no alto da montanha, que volta a encontrar os verdes novos e os perfumes delicados da sua Primavera; quando os tenros rebentos de akebi vão já deixar de aparecer nas mesas para enfeitar as ementas.

Demasiado diletante, com efeito, e perdendo-se numa vida de ociosidade, Shimamura tentava por vezes reencontrar-se. Do que ele então gostava era de partir só para a montanha. Sozinho. E fora assim que tinha chegado nessa noite àquelas termas, depois de uma semana passada em viagens pela Cadeia das Três Províncias. Tinha pedido, então, que lhe trouxessem uma gueixa; infelizmente, segundo o que lhe dissera a criada, inaugurava-se nesse dia uma nova estrada, e a festa organizada nessa ocasião era de tal modo importante que tinha sido necessário abrir o entreposto, que às vezes também servia de teatro; o que significava, como ele podia muito bem imaginar, que as doze ou treze gueixas da região estavam mais que ocupadas. Mas a rapariga que vivia em casa da professora de Música talvez estivesse disposta a vir, pensava ela. De vez em quando costumava também assistir às festas; no entanto, nunca ficava até ao fim. Depois de duas ou três danças voltava para casa.

E como Shimamura lhe tinha feito algumas perguntas sobre esta jovem, a criada falou ainda mais. Não se tratava de uma verdadeira gueixa; era uma rapariga que vivia em casa da professora de Música, que ensinava dança e samisen(3) Às vezes era solicitada e não se recusava a participar. Como as gueixas da região não formavam nenhuma debutante, e todas preferiam não ter de executar danças, receando não serem já suficientemente jovens..., era por isso que a sua participação era muito apreciada. A bem dizer, nunca condescendeu a vir sozinha distrair algum cliente do hotel. Mas, apesar de não ser uma profissional, não se podia no entanto dizer que trabalhasse como amadora e que fosse considerada como tal.

«Que história tão estranha!» - disse para consigo Shimamura, antes de pensar noutra coisa. Mas, cerca de uma hora depois, a criada voltou e apresentou «a rapariga que vivia em casa da professora de Música». Shimamura teve um movimento de surpresa.

A criada dispunha-se a abandonar o quarto quando a jovem a chamou pedindo-lhe que ficasse.

Que maravilhosa impressão ela produzia, com tanto esmero e frescura! Por momentos, Shimamura pensou que todo aquele corpo devia ser de uma limpeza irrepreensível até ao mais ínfimo pormenor, e chegou ao ponto de perguntar a si próprio se tanta pureza não seria ilusão do seu olhar, ainda deslumbrado com o puro e claro esplendor de Verão que mal despontava na montanha.

A jovem não trazia quimono de cauda, e no entanto havia qualquer coisa na sua forma de vestir que fazia lembrar uma gueixa. Estava vestida de maneira bastante correcta, com quimono de Verão sem forro; mas o obi que ela trazia pareceu a Shimamura demasiado sumptuoso para condizer com o quimono; talvez lhe desse mesmo uma nota um pouco triste.

A criada, ao verificar que a conversa se tinha encaminhado para o tema das montanhas, aproveitara para se retirar. Ficaram apenas os dois, mas como ela não estava muito certa quanto aos nomes dos, picos que se podiam ver pela janela, a conversa decaiu; Shimamura não tinha vontade de beber. Por fim, a jovem começou a falar-lhe do seu passado, o que fez com um à-vontade de tom e um desprendimento impressionantes.

Natural desta região da neve, tinha assinado em Tóquio um contrato como futura gueixa, e não tardou a encontrar um protector que a libertara da sua obrigação, preparando-se para estabelecê-la como professora de Dança, quando, infelizmente, passados dezoito meses, o protector morreu. Mas a partir do momento em que se estava a aproximar da existência que agora levava mostrou-se muito mais discreta. Sentia-se visivelmente pouco disposta a abrir-se sobre esta parte da sua vida, sem dúvida a mais atormentada. Confessou a Shimamura ter dezanove anos, mas ele estava mais inclinado a dar-lhe vinte e um ou vinte e dois.

Não tendo qualquer razão para duvidar da sinceridade dela, ao saber a sua idade, e ao verificar que ela parecia muito mais velha, Shimamura sentiu como que um alívio e readquiriu essa espécie de à-vontade que sentia na presença de uma autêntica gueixa. Quando a conversa veio a incidir sobre o teatro kabuki, Shimamura apercebeu-se de que ela sabia muito mais do que ele acerca dos actores dos diferentes estilos, o que lhe causou admiração. Mostrava-se bastante loquaz, falando com uma espécie de precipitação febril, como alguém que tivesse estado muito tempo privado do interlocutor desejado. A sua reserva acabou por se dissipar, deixando transparecer uma espécie de confiança, uma livre facilidade, onde sem dúvida se reconhecia a mulher que recebeu já um ensino suficiente e possui provavelmente uma certa experiência moral dos homens. Isso não impediu, no entanto, que Shimamura se sentisse de início incapaz de a colocar entre as profissionais. Deixara de ver nela a mulher cuja companhia aqueles sete dias que ele acabara de passar no alto da montanha tinham feito desejar. A jovem que ele tinha à sua frente despertava-lhe sobretudo sentimentos de amizade pura, e ele sentia-se feliz ao achá-la digna de partilhar, pelo contrário, a exaltação generosa e algo do humor sereno que ele tinha adquirido nas alturas.

Na tarde do dia seguinte, ao vir tomar o seu banho no estabelecimento termal que possuía o hotel, a jovem tinha colocado os seus objectos de toilette no corredor e entrara para conversar com Shimamura.

Mal ela se tinha sentado, Shimamura pediu-lhe que trouxesse uma gueixa.

- Pretende uma gueixa...?

- Naturalmente... Compreende muito bem o que eu quero dizer!

- Mas eu não vim aqui para ouvir um pedido desses! - protestou ela, corando intensamente.

Com um movimento brusco levantou-se para se ir colocar em frente da janela, onde ficou a contemplar as montanhas.

- Nós não temos mulheres desse género aqui - atirou-lhe ela sem se voltar.

- Não vale a pena dizer uma estupidez dessas.

- Mas é verdade!

Desta vez ela tinha-se voltado e enfrentava-o, meio sentada no rebordo da janela.

- Entre nós, as gueixas são livres, e ninguém pode obrigá-las a fazer o que não está na sua vontade. Posso afirmar-lhe que o hotel não se encarrega disso. Mas nada o impede de mandar vir uma gueixa e de se entender com ela, se tem tanta necessidade disso...

- Não, não! Irá fazer isso por mim.

- Que é que o leva a crer que eu vou aceitar isso, não me diz?

- É que a meus olhos é uma amiga e quero que continue a sê-lo. Senão ter-me-ia conduzido doutra maneira.

- E é de boa amizade conduzir-se tal como o faz? - lançou-lhe ela, com a impetuosidade natural e encantadora da infância.

Mas alguns instantes mais tarde voltava à carga, cheia de uma indignada cólera:

- Pensar que julgou possível pedir-me semelhante coisa. É muito correcto, sim senhor! Não haja dúvida!

- Não vejo nisso nenhum motivo para se zangar - afirmou Shimamura. - Acabo de passar uma semana inteira na montanha e talvez sinta em mim um pouco de vitalidade a mais. Com as ideias que tenho na cabeça não consigo sequer conversar tranquilamente consigo, neste quarto, como seria do meu agrado.

Com os olhos no chão, a jovem não articulou palavra. Shimamura, na situação em que se encontrava, sabia bem que estava a mostrar-se cínico ao fazer assim a confissão sem vergonha das suas exigências de macho, mas por outro lado pensava que a jovem devia estar suficientemente ao corrente deste género de coisas, de modo a não ficar chocada com uma tal confissão. Observou-lhe o rosto e viu nele um calor sensual que se poderia talvez imputar ao comprimento daquelas pestanas magníficas e abundantes que os seus olhos postos no chão valorizavam.

Com um leve movimento de cabeça, a jovem acrescentou, corando mais:

- Escolha a gueixa que pretende mandar vir.

- Mas não foi isso justamente o que lhe pedi que fizesse? Como poderei eu saber qual é a mais agradável, se é a primeira vez que venho aqui?

- Agradável? Que quer dizer com isso exactamente?

- Bem, uma jovem, por exemplo. A juventude engana menos quanto às aparências. E que não seja muito faladora, mas limpa e sem excessivo espírito. Se eu tiver vontade de conversar chamarei por si.

- Nunca mais voltarei.

- Vamos, não seja tonta!

- Saiba que não me voltará a ver. Por que razão teria eu de voltar?

- Pela simples razão de que eu quero que sejamos amigos. Expliquei-lhe mesmo agora que era esta a razão da minha conduta.

- Oh, por favor!

- Admitamos que condescenda consigo. Que é que acontece? Eu terei provavelmente perdido, a partir de amanhã, todo o interesse em conversar consigo; o simples facto de voltar a vê-la ser-me-ia penoso. Ainda não compreendeu que foi preciso eu voltar das montanhas para sentir de novo o desejo de falar com as pessoas? E é para poder trocar impressões consigo, é para que possamos falar os dois, que não lhe quero tocar. E não acha que será conveniente pensar um pouco em si? Tenho a impressão de que não tem sabido ser muito prudente com os turistas... que não são mais que homens de passagem.

- Sim, tem razão.

- Evidentemente. Pensei portanto em si. Será muito melhor que possa dizer, a respeito de alguém, que se recusou voltar a vê-lo. Não, decididamente é muito melhor que tome essa decisão.

- Por favor! Não quero ouvi-lo mais! - exclamou ela, voltando-se bruscamente. Mas, após um pequeno instante de reflexão, continuou: - Afinal, talvez tenha razão no que me diz.

- Trata-se de uma coisa meramente ocasional, tente compreender-me. Não é nada de extraordinário... Uma coisa sem importância, sem consequências.

- Sim, sem dúvida. É assim que pensam todos os que aqui vêm. Como no porto em que eu nasci. Afinal isto é apenas uma estância termal: os visitantes passam por aqui um dia ou dois e em seguida partem.

Inesperadamente, ela, já completamente descontraída, tinha recuperado todo o seu à-vontade de tom e de atitudes:

- Os hóspedes aqui, na sua maioria, são meros turistas. É certo que eu não passo de uma jovem, mas sei muito bem como as coisas acontecem, de tanto ouvir falar nelas. É sempre do cliente que nada nos diz, que se acha simpático sem razão aparente, do homem que não nos confessa a sua ternura, mas que, no entanto, a pressentimos bem, sim, é desse que nós guardamos a melhor lembrança. Muito tempo depois de nos ter deixado, pensamos ainda nele com prazer, segundo dizem. E se há alguém que nos escreve será ele.

De um leve salto abandonou o parapeito da janela para se instalar na esteira que se encontrava a seus pés. Parecia mergulhada no seu passado e, no entanto, Shimamura sentia-a mais próxima do que nunca. Achara na sua voz uma candura tão desconcertante, um acento de espontaneidade tão imediato, que ficara perturbado; sentia-se um pouco culpado, com o sentimento de tê-la conquistado demasiado facilmente, quase contra vontade.

No entanto, Shimamura não lhe tinha mentido. Era-lhe verdadeiramente impossível considerá-la como uma profissional e, por maior que fosse o seu desejo por uma mulher, não passava de um desejo a satisfazer, isso e nada mais do que isso. E Shimamura não queria servir-se dela para esse efeito. Pretendia apenas que a coisa não tivesse importância e não o comprometesse de nenhuma maneira. Aquela possuía a seus olhos qualquer coisa de impecável. No próprio instante em que a vira, Shimamura sentira-se incapaz de a confundir com as outras. Além disso, preocupado com o problema das férias, e não sabendo onde deveria passá-las com a família, para escapar aos calores de Verão, Shimamura tinha pensado em voltar a este lugar situado nas montanhas. Dizia para consigo que a rapariga, não sendo felizmente profissional, seria uma excelente companhia para a sua esposa. E porque não pô-la a receber lições de Dança, para estar. ocupada? Shimamura encarava a coisa seriamente. Se pretendia ter apenas relações de amizade com ela era porque tinha razão para preferir ficar à beira, em vez de mergulhar a fundo.

Mas por detrás de tudo isto agia uma espécie de encantamento, produzia-se uma soberania dominadora, bastante semelhante àquela que o havia fascinado em frente do espelho, com o seu fundo de noite, no comboio. É certo que Shimamura pressentia as complicações que uma ligação com uma jovem de condição tão equívoca podia arrastar; mas era sobretudo a uma espécie de irrealidade que ele cedia, a esta curiosa sensação de diáfana transparência que ela havia suscitado nele, tão próxima da poesia do estranho reflexo que tinha contemplado no espelho: aquele rosto comovente de feminilidade e de juventude, que flutuava diante da paisagem fugidia do crepúsculo e da noite.

No fundo, era o mesmo ar de irrealidade que respirava a paixão de Shimamura pela coreografia ocidental. Tinha nascido e crescido no bairro comercial de Tóquio, onde adquirira desde a infância um conhecimento íntimo do teatro kabuki. Apaixonara-se sobretudo pelo repertório da dança ou do drama mimado, nos seus tempos de estudante. Incapaz de se satisfazer, antes de haver esgotado completamente o tema, tinha levado os seus eruditos estudos até aos documentos mais antigos, mantendo relações amistosas com os afamados mestres das escolas tradicionais e com os artistas que representavam as novas tendências. Escrevia ensaios e críticas. Mas com tanta erudição não tardaria a sentir, com uma certa amargura - aliás bem compreensível -, a decadência de uma tradição que demasiadas gerações tinham utilizado, sem conseguir sequer aprovar as inaceitáveis tentativas de pseudo-renovadores cujas iniciativas não passavam de condescendências. Encontrava-se na situação em que lhe era necessário integrar-se de forma bastante íntima no assunto, tal como insistentemente lhe pediam as mais jovens figuras em relevo no mundo da dança, quando bruscamente o seu interesse se desviou para se fixar totalmente no ballet ocidental. Não quis voltar a ver dança japonesa; pelo contrário, dedicou-se à recolha de ensaios, documentos, fotografias e artigos: tudo o que pôde encontrar sobre a arte da dança ocidental e das diversas manifestações coreógrafas, das quais coleccionava precisamente os programas e cartazes, fazendo-os vir do estrangeiro, com todas as dificuldades e complicações que facilmente se podem imaginar. Para falar verdade, havia mais que uma simples curiosidade nesta nova paixão pelo desconhecido e longínquo: é que deste modo Shimamura gozava um prazer mais puro e deliciava-se ao máximo pelo facto de não poder assistir pessoalmente a tais espectáculos e não ver com os seus próprios olhos os bailarinos ocidentais dançarem ballet ocidental. Jamais se interessou por ver aquilo que os japoneses nesta matéria pudessem realizar. Para ele nada era mais agradável que escrever sobre ballet e debruçar-se sobre a arte coreográfica, apoiando-se exclusivamente numa pura erudição livresca. Este ballet, a que jamais assistira, tornava-se para ele uma espécie de arte ideal, um sonho de um outro mundo, o paraíso da harmonia e da perfeição supremas, o triunfo da estética pura. Ainda que a coberto de estudos e de trabalhos de investigação, aquilo que Shimamura perseguia para além das imagens e dos livros ocidentais era, na realidade, o seu sonho. Para quê arriscar-se a presenciar realizações decepcionantes, enfrentar o ballet concretizado em espectáculo, se a sua imaginação lhe oferecia o espectáculo incomparável e infinito da dança sonhada? Fruía inesgotavelmente as delícias insuperáveis à maneira do amante ideal, esse amoroso sublime e platónico que jamais encontrou o objecto da sua paixão. Mas não acabavam aqui todas as satisfações que Shimamura obtinha desta particular inclinação, porque, na verdade, o ocioso que no fundo era não deixava de sentir prazer em ter acesso ao mundo literário, ainda que não levasse verdadeiramente a sério nem os trabalhos que publicava de tempos a tempos nem o seu autor.

Dito isto, só agora, depois de tanto tempo, os seus conhecimentos pela primeira vez lhe tinham servido efectivamente para alguma coisa, uma vez que lhe permitiram, no âmbito desta conversa, ganhar alguma coisa em intimidade de sentimento com a jovem que acabava de conhecer. Mas podia também acontecer que, sem ter consciência disso, Shimamura estivesse mais inclinado a considerá-la sob o mesmo prisma que a própria dança.

Ao verificar quanto se tinha emocionado com as suas palavras irreflectidas de turista que está de passagem e no dia seguinte parte, Shimamura sentira-se um pouco envergonhado, como se tivesse

abusado da inocência dela ou brincado de maneira frívola com um coração profundo e sincero. Mas Shimamura nada deixou transparecer e continuou:

- É provável que eu torne aqui com a minha família, e nesse caso ficaremos todos amigos.

- Sim, sim, estou a perceber - disse ela, com uma voz menos aguda, esboçando um sorriso onde transparecia certa alegria fácil própria de uma gueixa. - Apesar de tudo, prefiro isso. Quando nos limitamos à amizade, as coisas tornam-se mais perduráveis.

- Então, vai procurar alguém para mim? - A esta hora?

- A esta hora.

- Mas que pretende você dizer a uma mulher em pleno dia?

- Esperar pela noite é correr o risco de ficar com alguém que os outros rejeitaram.

- Portanto, para si a nossa estância termal é como um desses locais ordinários! Pensei que lhe bastaria um primeiro contacto com a nossa aldeia para sentir a diferença - observou ela ainda com amargor e um certo ar de gravidade que revelava quanto se sentia ferida.

Sobre as dúvidas que Shimamura manifestou quando ela voltara a afirmar tão categoricamente como da primeira vez que as gueixas da terra não eram as mulheres que ele imaginava, a jovem manifestou novo movimento de cólera, mas conteve-se.

- Além do mais - disse ela -, só a gueixa pode decidir por si própria se deseja ficar até à noite. É de sua exclusiva responsabilidade ser ela própria a ter a iniciativa; mas se, pelo contrário, ficar com licença da casa à qual está ligada, cabe então a esta a responsabilidade. Eis a diferença.

- A responsabilidade? - perguntou Shimamura, admirado. Sim, no que diz respeito a eventuais consequências... Maternidade ou problemas de saúde.

Ao aperceber-se da sua pergunta idiota, Shimamura fez um sorriso amarelo. Vistas as coisas, num sítio destes, escondido na montanha, as disposições tomadas entre a gueixa e o cliente ofereciam evidentemente uma certa comodidade...

Com a sua sensibilidade egocêntrica de desocupado, Shimamura possuía talvez uma espécie de instinto que punha em acção, melhor que qualquer outro, sobre a natureza profunda dos locais onde se encontrava. Sem nunca se deixar levar muito pelas aparências, conseguia no entanto adivinhar o carácter íntimo e verdadeiro que o exterior nem sempre põe a descoberto. Em todo o caso, uma vez que voltava das montanhas, havia pensado para consigo que à aldeia em questão não faltaria encanto e conforto sob qualquer ar de rústica simplicidade, e não se havia enganado, com efeito, pois no hotel ficara a saber que se tratava de uma das aldeias mais prósperas desta rude região da neve. Antes da construção da recente linha de caminho-de-ferro, as termas eram frequentadas apenas por gente dos arredores e por razões medicinais. A casa onde morava uma gueixa, por detrás de uma tabuleta desbotada, assemelhava-se mais a uma casa de chá ou a um restaurante onde a clientela devia ser escassa, a julgar pelas portas corrediças em estilo antigo e pelo opaco dos papéis oleados, enegrecidos pela idade. A pequena mercearia e o fabricante de bolos talvez tivessem também a sua gueixa, mas o proprietário devia certamente possuir uma pequena quinta nos arredores, além da loja e da respectiva gueixa. Portanto, nenhuma gueixa ficaria escandalizada ao ver participar de vez em quando nas festas uma jovem que não fosse

gueixa contratada; tendo ainda em conta o facto de a jovem em questão morar em casa da professora de Música.

- Quantas são ao todo? - perguntou ele. - As gueixas? São umas doze ou treze.

- E qual delas me aconselha? - insistiu Shimamura, levantando-se para chamar a criada.

- Peço desculpa - disse ela -, mas se me permite retirar-me-ei.

- De maneira nenhuma - protestou Shimamura.

- Mas eu não posso ficar - suspirou ela, fazendo um esforço para não se sentir humilhada. - Vou-me embora.

No entanto, ao chegar a criada, colocou-se de novo sobre a esteira e fez como se nada tivesse acontecido. Não obstante a criada ter perguntado várias vezes quem devia mandar buscar, a jovem não condescendeu sequer em pronunciar um nome.

A gueixa que pouco depois chegou devia andar entre os dezassete e os dezoito anos. Assim que olhou para ela, Shimamura teve consciência de que o seu desejo, de maneira estranha, havia desaparecido. Tinha uns braços de uma graciosidade de adolescente, realçados ainda mais pelas covas negras das axilas, e toda a sua figura dava a entender que se tratava de uma rapariguinha simples, a quem faltava experiência. Procurando por todos os meios esconder a sua decepção, Shimamura comportou-se como convinha, apesar de não conseguir desviar o olhar da fresca folhagem que descortinava pela janela, por trás dela, na vertente da montanha. Iniciar uma conversa com aquela rapariga? Falar com aquele exemplar perfeito da gueixa das montanhas? Era pedir-lhe de mais!... Tépido, espesso, cansativo, era o silêncio que entre eles se formara.

E quando a outra, a sua primeira companhia, saiu, pensando possivelmente dar mostras de tacto e de delicadeza, a troca de palavras entre a gueixa e ele tornou-se ainda mais difícil.

Shimamura, apesar de tudo, tinha conseguido passar cerca de uma hora na companhia da gueixa. Procurando um pretexto para se desembaraçar dela, lembrou-se de que deviam ter-lhe expedido dinheiro telegraficamente de Tóquio.

- Preciso de ir ao correio antes que feche - explicou ele, e depois disto apenas restava a ambos abandonar a sala.

Mal atravessou a entrada do hotel, Shimamura sentiu-se invadido pelo encanto irresistível que a montanha e o ar perfumado pela vegetação nova exerceram sobre ele. Caminhou pela encosta, rindo como um louco, sem saber porquê, e trepando como um furioso. Ofegante e sentindo nos membros uma agradável fadiga, Shimamura parou bruscamente, deu meia volta, arregaçou o quimono e em linha recta desceu rapidamente. Seguira com o olhar o voo louco de duas borboletas doiradas que tinham surgido a seus pés e que em breve ficaram brancas, quando as viu contra o céu, voltejando, muito alto, acima da linha das cristas.

- Que lhe aconteceu? Deve sentir-se muito feliz para poder rir assim à gargalhada!

Era a voz da jovem, que se encontrava à sombra dos grandes cedros. - Abandonei tudo! - exclamou Shimamura, de novo dominado pelo desejo de rir. - Abandonei tudo!

- Oh!.

A jovem volta-se e mergulha com lentidão sob a copa das árvores. Shimamura segue-a sem dizer palavra. O bosque de cedros pertencia a um pequeno templo, e ela deixou-se cair sobre uma pedra

lisa, debaixo da boca musgosa dos animais-guardas colocados à entrada do santuário.

Aqui está sempre fresco. Mesmo em pleno Verão corre uma leve

brisa.

- As gueixas daqui parecem-se todas com aquela?

- Um pouco, julgo eu. Entre as menos jovens existem talvez duas ou três que não deixam de ser graciosas. Mas uma vez que aquela não era do seu agrado...

Tinha falado sem entusiasmo, com a cabeça baixa e o olhar fixo no chão. O verde sombrio dos cedros parecia derramar-se sobre a sua cabeça.

Shimamura, com o olhar erguido para os ramos mais altos, confiou-lhe:

- É curioso, mas não sinto já qualquer desejo. Dir-se-ia que todo o meu ardor me abandonou.

A coluna dos cedros, por detrás dos rochedos onde ela se tinha sentado, erguia-se num lançamento puro e a uma tal altura que ele teve de se inclinar para trás e encostar-se à pedra para poder segui-lo com os olhos até ao cimo das árvores. O céu mantinha-se invisível, escondido por essa tela quase negra formada pelos cedros alinhados uns junto aos outros, confundindo os ramos entre si, espalhando as agulhas verdes e densas. O silêncio e a paz subiam como um cântico. Com um sentimento estranho, Shimamura reparou que se tinha encostado à árvore mais velha, um tronco que tinha apenas ramos mortos e quebrados do lado norte, sem que ele soubesse muito bem porquê, eriçando-a em toda a altura, com um terrífico alinhamento de cotos agressivos e de lanças pontiagudas que mais pareciam uma arma feroz na mão de um deus.

- Foi um erro da minha parte - confessou ele, com um breve sorriso. - Como a tinha visto, mal acabara de chegar da minha estada no cimo das montanhas, fiquei a pensar que todas as gueixas daqui seriam iguais a si!

Quem sabe até se a impressão extraordinária de frescura e extrema pureza que ela tinha provocado nele, pensava Shimamura enquanto falava, não estaria na origem desse desejo, que tão bruscamente havia sentido, de se libertar o mais depressa possível do excesso de forças que tinha armazenado durante os oito dias de excursões solitárias pela montanha?

A jovem via fugir ao longe águas da torrente, à luz do Sol, que começava a descer. Shimamura não se sentia muito orgulhoso de si próprio.

- Ah! Já me tinha esquecido - exclamou ela de repente, com uma descontracção forçada -, trouxe-lhe o seu tabaco. Há pouco, quando pretendia voltar ao seu quarto, reparei que tinha saído, e perguntava a mim própria o que lhe teria sucedido quando pela janela o vi a trepar pela montanha, numa correria louca. Ah, como era divertido observá-lo...! E, como tinha deixado lá em baixo o seu tabaco, trouxe-o comigo.

Tirou o tabaco da manga do quimono e acendeu um fósforo para Shimamura.

- Não me mostrei muito gentil com essa infeliz rapariga.

- No fim de contas é o cliente quem decide se lhe convém que a gueixa se vá embora.

Neste calmo silêncio, o canto da torrente no seu leito de pedras chegava junto deles como uma música leve e aveludada. Mais além, sobre os flancos abruptos da montanha, cuja encosta eles viam erguer-se entre os recortes elegantes da ramagem dos cedros, a sombra ia mergulhando, pouco a pouco, nas profundidades.

- Arriscar-me-ia a sentir-me retrospectivamente frustrado quando voltasse de novo à sua presença, a não ser que ela fosse em tudo igual a si.

- Deixe, não fale mais nisso - cortou a jovem. - O que acontece é que não quer admitir o seu erro.

A sua voz parecia agora um pouco desdenhosa ao dizer isto, o que não impediu que essa nova relação, uma espécie mais terna de amizade, os estreitasse.

Para Shimamura não restava qualquer dúvida de que, desde o início, ele a havia desejado apenas a ela, mas, como sempre, procurara mil complicações, em vez de reconhecer francamente o facto sem gastar palavras; e quanto mais desgosto sentia por si próprio, mais a jovem surgia a seus olhos em toda a sua beleza. Desde o momento em que ela lhe dirigira a palavra, de pé, entre a sombra dos cedros, sentira-se invadido por uma brisa refrescante que a sua presença irradiava.

O seu nariz, delicado e arrogante, aquele leve ar de órfã que perpassava pelo seu rosto, procurava uma réstia de melancolia que em breve dissipava à flor dos lábios, ora em botão fechado ora a desabrochar num movimento ardente que tinha um encanto de vida animal e de avidez. Mesmo quando não falava, os seus lábios pareciam viver e mover-se por si próprios. Aqueles lábios, fendidos ou encrespados, ou simplesmente avermelhados, mas de modo ténue, talvez possuíssem algo de mórbido; mas a sua cor tinha todo o veludo da doçura e o brilho da saúde. A linha das pestanas, nem arqueadas nem erguidas, cortava-lhe as pálpebras num traço tão direito que pareceria divertido, quase cómico, se não fosse, como era, delicadamente contido e quase envolto pela seda curta e densa das sobrancelhas. O volume do rosto, um pouco aquilino e bastante arredondado, não tinha em si nada de extraordinário. Mas com aquela pele de porcelana delicadamente pintada de cor-de-rosa, aquele pescoço virginal e os ombros juvenis, a que faltava ainda um pouco de plenitude, produzia uma tão pura sensação de frescura que tinha todo o encanto da beleza, mesmo não sendo de modo algum uma beldade. Para uma mulher habitualmente apertada com o largo obi usado pelas gueixas, ela possuía um busto bastante desenvolvido.

- Os mosquitos começaram a aparecer - observou ela, batendo com a mão na parte inferior do quimono, para os enxotar.

Perdidos na quietude profunda do lugar, pouco mais tinham a dizer um ao outro.

Pelas dez horas, nessa mesma noite, a jovem havia chamado Shimamura, gritando o seu nome no corredor. Instantes depois viera estender-se no seu quarto, em frente da mesa, cambaleando como se tivesse sido empurrada. Num gesto cego, espalhou com o braço tudo o que se encontrava à sua frente. Encheu um copo de água e bebeu-o, sequiosa.

- Fui obrigada a sair - disse ela -, para fazer companhia a alguns excursionistas que voltaram esta noite da montanha.- são pessoas que conheci no Inverno passado, durante a época de esqui.

Os homens tinham-na convidado para ir ao hotel e com as gueixas que participavam na tumultuosa festa tinham-na obrigado a beber, para a embriagarem.

Com a cabeça vaga, desorientada, começou a falar, como se nunca mais fosse parar. Depois tomou repentinamente consciência e recuperou o domínio de si:

- Volto já - disse ela. - Não devia estar aqui. Devem andar à minha procura. Voltarei mais tarde.

E depois de dizer isto saiu do quarto, vacilando.

Uma hora mais tarde, pouco mais ou menos, Shimamura ouviu uns passos inseguros que avançavam com dificuldade pelo longo corredor: um andar titubeante que devia ziguezaguear de uma parede à outra, tropeçar e prosseguir.

- Shimamura! Shimamura! Não vejo nada - clamou ela. - Shimamura!

Era um apelo despojado de qualquer artifício, um verdadeiro grito vindo do coração, nu, tão evidente, tão declaradamente dirigido por uma mulher ao seu homem, para lá de qualquer consideração, que Shimamura ficou sobressaltado. Levantou-se rapidamente. Aquela voz pungente devia sem dúvida ecoar por todo o hotel.

Rasgou com os dedos a parede de papel, ficou apoiada na ombreira da porta, antes de se deixar cair sobre ele.

- Ah! Está aqui!

A mulher não se tinha de pé e agarrava-se a ele, avidamente.

- Não estou embriagada. Não, juro que não estou embriagada! Mas é horrível! É horrível! Se não me fizesse tão mal... Sei muito bem o que estou a fazer. Dê-me água. O que eu preciso é de água. A mistura das bebidas, é isso que faz mal. Não devia ter feito tanta mistura. É isso que sobe à cabeça e me faz mal. Oh, a minha cabeça...! O uísque que eles tinham era péssimo. Como podia eu adivinhar que era uísque barato...?

E apertava a cabeça com os punhos cerrados.

Lá fora, o bater da chuva tinha-se tornado repentinamente intenso.

Para a segurar, Shimamura foi obrigado a apertá-la contra si, de tal forma que lhe desmanchou o penteado contra a cara. Sentia que se a largasse ela cairia imediatamente no chão. E enquanto a enlaçava, Shimamura fez deslizar suavemente a mão pela gola do quimono.

Ela não correspondeu e, com os braços cruzados, impedia que a mão de Shimamura se aproximasse dos seios. Tomada subitamente de um ataque de cólera contra o seu próprio braço, que, aparentemente, não fazia o que ela queria, a jovem lançou-lhe imprecações e mordeu-o com crueldade:

- Mas afinal o que é isto? Espera que eu já te ensino, preguiçoso, incapaz!

Shimamura recuou estupefacto. No braço da mulher via a marca funda de uma dentada. Ao mesmo tempo, ela deixara de se defender e pôs-se a desenhar caracteres com a ponta do dedo: ia dizer-lhe quem eram as pessoas que amava. A princípio surgiram os nomes de cerca de vinte ou trinta actores, por fim o de Shimamura, outra vez Shimamura, repetido até ao infinito. Shimamura sentia espalhar-se pela mão um calor estranho.

Tentando apaziguá-la, repetia-lhe com ternura: - Pronto! Já passou...

Comovido, descobria nela algo de maternal. Mas eis que de súbito a dor se desencadeara novamente naquela pobre cabeça. Dobrada pelo sofrimento, acabou por ir cair no outro extremo do quarto, gemendo:

- Isto não tem remédio. Sinto-me tão mal! Quero voltar para

casa...

- Não está em condições de fazer todo esse caminho! E repare

como chove!

- Irei descalça, rastejando, mas irei. Tenho de voltar para casa.

- Não acha que é um pouco arriscado? Levá-la-ei, se é mesmo necessário que volte para casa.

O caminho que descia do hotel para a aldeia seguia a encosta abrupta da montanha.

- Não seria melhor desapertar o cinto e descansar um pouco? Estou certo de que não tardará a sentir-se um pouco melhor, e então poderá regressar a casa.

- Não, não. Sei muito bem o que é preciso fazer. Já estou habituada.

Estava meio erguida, com o busto saliente, para aspirar o ar a plenos pulmões. Mas fazia-o com esforço, e o seu sofrimento era visível. Sentia-se um pouco agoniada, confessou ela a Shimamura antes de abrir a janela que estava atrás de si. Debruçou-se depois para tentar vomitar, mas em vão. Lutava desesperadamente para não cair no chão, para não desfalecer. E cada vez que conseguia ficar um pouco aliviada era para repetir infatigavelmente: «Quero voltar para casa. Preciso de voltar para casa!» - e isto sem cessar, até às duas horas da manhã.

- Vá-se deitar! Volte para a cama, peço-lhe! - insistiu ela então.

- E que vai fazer? - perguntou Shimamura, preocupado.

- Ficar assim, até me sentir melhor, para poder voltar para casa. Quero estar em casa antes de amanhecer.

Gatinhando, arrastou-se até junto dele e empurrou-o.

- Vamos, vá-se deitar! Não se preocupe comigo e durma tranquilamente.

Shimamura voltou para a cama. Com dificuldade, a mulher inclinou-se sobre a mesa e bebeu outro copo de água.

- De pé! - ordenou ela, em frente do leito. - Levante-se quando lhe pedem!

Shimamura perguntou-lhe o que queria ela exactamente que ele fizesse.

- Que foi que eu disse? Deve simplesmente dormir.

- Não está a ser muito razoável - disse Shimamura, atraindo-a a si.

Deitando-se a seu lado, a mulher afastara dele o rosto. Momentos depois, num impulso violento, estendeu-lhe os lábios.

E quantas vezes ela repetiu então, como num delírio, querendo, talvez, exprimir-lhe todo o seu desgosto, as mesmas palavras, interminavelmente:

- Não. Oh, não!... Não disse que devíamos continuar amigos? Shimamura não poderia afirmá-lo. Mas havia na sua voz um tal acento de gravidade, um tom tão sincero e lancinante, que ele se sentiu atingido no mais profundo do seu desejo, ao ponto de pensar em manter naquele momento a sua promessa, ao ver nela a expressão tensa e a testa contraída pelo esforço desesperado que fazia para reencontrar a lucidez e readquirir o domínio de si.

- Quanto a mim - murmurou a jovem -, não me arrependerei. Jamais. Apesar disso, não sou uma mulher desse género... Uma aventura sem consequências... Que não pode durar... Como você disse.

Falava ainda um pouco sob a influência dos vapores do álcool.

- A culpa não é minha. É tua. Foste tu que jogaste e perdeste... És tu o fraco, e não eu.

Nesse instante passou por uma espécie de transe, mordendo com fúria a manga, como se lutasse ainda contra a ventura, rejeitando violentamente a felicidade.

Ficou em silêncio por longos momentos, descontraída e serena. Parecia vazia de qualquer sentimento. Depois disse, atingida subitamente por um pensamento vindo do fundo da memória:

- Para si não passo de um simples divertimento!

- De maneira nenhuma.

- Sim, no fundo, bem no fundo do coração, para si não passo de um simples divertimento. E se isso agora não é verdade sê-lo-á mais tarde.

Tinha os olhos molhados de lágrimas e voltou o rosto, para o esconder na almofada. Os soluços abrandaram e, em seguida, numa confidência terna, em que ela parecia entregar-se-lhe ainda mais, sem nada ocultar, começou a contar-lhe toda a sua vida. Parecia ter esquecido as dores de cabeça. Do que acabava de suceder não disse uma palavra.

- Oh, como o tempo passou! Ponho-me a falar e esqueço-me das horas - desculpou-se ela, com um sorriso tímido.

- Ainda é noite, mas tenho de partir antes da madrugada. As pessoas daqui levantam-se muito cedo.

Erguia-se de vez em quando, para espreitar pela janela.

- Ainda tenho tempo. Ainda faz bastante escuro para que alguém me possa ver. Além disso, chove. E esta manhã ninguém sai para ir para o campo.

Não tinha vontade de se ir embora; e, quando a manhã começou a desenhar a crista indefinida das montanhas esbatidas pela chuva e a recortar em seguida as arestas dos tectos sobre a encosta, entre as árvores, ainda ela não se tinha decidido. Por fim chegou a hora dos primeiros ruídos do hotel, quando as criadas se levantam e começam a trabalhar. Então compôs rapidamente o penteado, esquivou -se de súbito ou, melhor, eclipsou-se, depois de ter impedido energicamente Shimamura de a acompanhar à porta, como era sua intenção. Seria melhor não os verem juntos. Nesse mesmo dia, Shimamura regressa a Tóquio.

... - Sabes, o que disseste da outra vez não era realmente verdade. Senão quem estaria disposto, em pleno fim de ano, a vir gelar num sítio destes? Não, para mim, tu não foste nenhum divertimento.

A mulher ergueu a cabeça. Tinha a face um pouco rosada, junto aos olhos, na parte em que apertara contra ela a palma da mão de Shimamura, vermelha apesar da pintura que lhe cobria de branco todo o rosto. Shimamura pensa na Terra de Neve, na sua frialdade. Mas descobre nela qualquer coisa de ardente, provavelmente por causa do negro profundo dos seus cabelos.

Ela tem um sorriso doce, como se brilhasse sob uma luz deslumbrante. E, com esse sorriso, estaria a pensar sem dúvida nessa «outra vez», porque a viu enrubescer pouco a pouco - como se todo o seu corpo se abrasasse com o calor das palavras que ele lhe disse. E quando a mulher se inclinou, dobrando a cabeça com uma certa dureza, Shimamura pôde ver-lhe o pescoço avermelhado debaixo do quimono levemente afastado. E o mesmo acontecia com a nuca e tudo o que ele conseguia descobrir dessa carne perturbante e mais voluptuosa ainda sob a massa negra dos cabelos, que, por contraste, a valorizava; nesse ardente frémito de sensualidade julgou vê-la nua à sua frente. Não, os seus cabelos não têm na verdade uma tal riqueza por serem excessivamente densos, é antes a sua vitalidade, aquela consistência um pouco masculina, que lhe permite um penteado assim, impecável, estilizado, à moda antiga, e sem o mais pequeno defeito, tão liso como uma laca, armado com tal dignidade que ela mais parecia ter na cabeça uma sólida escultura de pedra negra.

Shimamura contempla, fascinado, esta soberba cabeleira. Pergunta a si próprio, neste momento, se o frio que tanto o surpreende não seria antes uma qualidade natural daqueles cabelos, em vez de uma consequência do Inverno na região da neve. Nesta altura a mulher pôs-se a contar pelos dedos qualquer coisa, e não mais parava.

- Que estás tu a contar? - perguntou. Mas ela não interrompeu o cálculo.

- Foi em vinte e três de Maio - disse por fim.

- Estavas a contar os dias? - graceja Shimamura, certo de ter adivinhado. - Julho e Agosto têm ambos trinta e um dias, não te esqueças!

- Faz hoje cento e noventa e nove dias. Exactamente cento e noventa e nove!

- Estás certa da data? Como é que te lembras de que era o dia vinte e três de Maio?

- Uma simples olhadela pelo meu diário. Está lá tudo.

- Tu tens um diário?

- É sempre divertido voltar a ler um antigo diário. Mas como não costumo esconder nada, às vezes sinto vergonha de mim própria.

- Quando começaste tu a escrever o teu diário?

- Antes de partir para Tóquio, quando fui aprender a profissão. Como não tinha dinheiro nenhum comprei um simples caderninho barato, que enchi da primeira à última página, em colunas cerradas. Precisava de um lápis bem afiado, pois as colunas estão regularmente separadas com riscos muito finos traçados à régua. Mais tarde, quando pude comprar um diário a valer, já não era a mesma coisa. Fartei-me de estragar folhas. Aliás, aconteceu o mesmo com a caligrafia. A princípio exercitava-me em papel de jornal, ao passo

que hoje escrevo directamente em rolos de bom papel, sem me preocupar.

- Tens continuado a escrever esse diário? Nunca o interrompeste?

- Não. Os melhores tempos foram quando fiz dezasseis anos e agora. Tenho o costume de me pôr a escrever antes de me deitar, quando volto para casa, e às vezes adormeço enquanto escrevo: quando volto a ler, reconheço essas passagens, descobrem-se logo... Há também os dias em que eu não tenho nada para escrever. Não é um diário regular. Aqui, na montanha, as saídas são sempre mais ou menos iguais. Que tenho eu para dizer? Mas, pelo contrário, este ano comprei um caderno com uma página para cada dia, e fiz mal. Basta que me ponha a escrever para nunca mais parar.

Se Shimamura tinha ficado surpreendido ao saber que ela mantinha um diário, mais admirado ficou ainda quando soube que anotava nele regularmente as suas leituras, a partir dos quinze ou dezasseis anos, e que actualmente possuía dez cadernos cheios.

- Apontas também no diário as críticas às leituras que fazes? - perguntou ele.

- Oh, não! Seria incapaz disso - protestou ela. - Escrevo apenas o nome do autor, as personagens e as relações entre elas. E mais nada.

- Mas para que serve um trabalho desses? Que proveito tiras tu disso?

- Nenhum. Absolutamente nenhum.

- Portanto é um trabalho em vão.

- Sim, absolutamente em vão - murmurou ela, suavemente, como se não lhe custasse dizê-lo.

E no entanto era um olhar grave que ela lançava a Shimamura! Todo aquele esforço gratuito! Qualquer coisa levava Shimamura, inconscientemente, a insistir um pouco sobre o assunto; mas enquanto se inclinava para ela, sentia a invadi-lo um sentimento de paz, um profundo repouso, como se tivesse cedido sob a voz imperceptível da neve que cai. Não, o que ela fazia não se traduzia num esforço completamente gratuito, disso tinha consciência Shimamura; a sua constância, quanto mais não fosse, tinha algo de puro; e a própria vida, a existência daquela mulher pareciam iluminar-se através desse esforço.

Apesar de falar de romances, a conversa que ela tinha com Shimamura parecia não ter qualquer ligação com o que geralmente se entende por «literatura». As únicas relações que podia ter nessa matéria com os habitantes da região limitavam-se à troca de revistas e de outras publicações femininas; quanto ao resto, teria de cultivar sozinha o seu gosto pela leitura, à sorte, e sem qualquer discernimento, sem escolha, sem a menor preocupação literária, aproveitando-se até de revistas que os clientes do hotel pudessem deixar nos seus quartos. Muitos dos autores que ela citava eram perfeitamente desconhecidos de Shimamura; e este escutava-a, um pouco como se ela lhe falasse duma literatura ao mesmo tempo estranha e remota. Ela exprimia-se com evidente entusiasmo, mas, ao mesmo tempo, como se falasse do fundo de uma viuvez insuperável, tão pungente na sua solidão consentida.- dir-se-ia um mendigo caído na mais completa indiferença, um ser onde tinha morrido de uma vez para sempre todo e qualquer desejo. Mas, ao ouvi-la, Shimamura começou a pensar que ele próprio, com todos os seus devaneios sobre o ballet ocidental, se parecia bastante com ela em certos aspectos. Também ele ia beber ao acaso e em obras estranhas, baseando em palavras estrangeiras e fotografias remotas as vagas imagens e as especulações abstractas com que se embalava. Não estava também ela agora a falar-lhe com o calor do entusiasmo de filmes ou de peças de teatro que nunca tinha visto? Sem dúvida alguma, a atenção condescendente com que ele a escutava devia ter-lhe feito bastante falta ao longo do Verão. Mas ter-se-ia ela esquecido de que uma conversa desse género, exactamente cento e noventa e nove dias antes, tinha despertado o seu interesse por Shimamura? Ei-la de novo entregue àquela conversa sem fim, ao mesmo tempo que todo o seu corpo parecia inflamar-se com aquele entusiasmo. Ao falar da cidade não exprimia nada que se parecesse com a tristeza do exílio; tudo aquilo não passava de um grande e remoto sonho, sem impaciências nem desesperos: um suave devaneio humildemente resignado. Ela própria parecia não encontrar nisso qualquer amargura, e talvez fosse essa a razão por que Shimamura se sentia tão profundamente perturbado. Ele, tão permeável, na sua emoção, ao sentimento do esforço gratuito, do trabalho em vão, sentiu nesse momento que a sua própria existência lhe surgia à mesma luz de uma vã esterilidade. Felizmente tinha diante de si o rosto móvel e expressivo da jovem, com aquele ar saudável e aquela pele rosada que ela devia ao clima duro das altitudes.

Todavia olhava-a agora de forma diferente. Tinha compreendido, não sem surpresa, que o seu próprio comportamento perante ela não era nem mais fácil nem mais livre, agora, que ela era uma gueixa...

Na primeira noite, quando enterrara de forma cruel os dentes no braço parcialmente entorpecido, subitamente enfurecida por ele se demorar tanto a obedecer-lhe, estava completamente embriagada «Preguiçoso, incapaz, espera que já te ensino!» - exclamara então, E mais tarde, não podendo já resistir àquele combate contra si própria, contra a sua embriaguez, acabara por ceder, esgotada: «Não me arrependerei jamais... Mas não sou uma mulher desse género...!»

- É o comboio da meia-noite para Tóquio - disse ela.

Dir-se-ia que ela tinha notado a sua hesitação e que falava para o afastar. Com o apito do comboio, Shimamura viu-a levantar-se de um salto e dirigir-se para junto das persianas fechadas, abrir a janela e debruçar-se com o corpo todo sobre a varanda. Com um ruído que se extinguia como um gemido do vento nocturno, o comboio desaparecia ao longe. Um ar gelado invadira o quarto.

- Mas é uma loucura! - disse Shimamura, vindo por sua vez à janela.

A noite continuava imóvel, estática, sem o sobressalto da mais leve brisa, e a paisagem revestia-se de uma austera severidade. Vindo do chão, um rumor surdo parecia responder ao ranger do gelo que comprimia a neve por toda a parte à superfície. Não havia luar. As estrelas, pelo contrário, eram tão numerosas que pareciam irreais, tão cintilantes e tão próximas que se julgava vê-las cair e precipitar-se no vazio. O céu reduzia-se atrás delas, cada vez mais profundo e mais distante, ao longe, na fonte tenebrosa da noite. Os cumes das altas montanhas, confundidas numa única linha de cristas, erguiam para o céu estrelado a sua massa imponente, dando relevo a um horizonte negro e monstruoso. Mas no conjunto de toda a paisagem reinava uma harmonia única, feita de serenidade pura e de tranquilidade magnífica.

Como sentira a aproximação de Shimamura, ela curvou-se um pouco, apoiando os seios no parapeito da janela. Mas não era uma atitude de abandono, pelo contrário: frente à noite, a jovem ostentava o ar mais decidido e firme que se possa imaginar. «Sempre a mesma couraça que é necessário trespassar» - disse para si Shimamura.

As montanhas, por mais negras que fossem, resplandeciam agora com o brilho da neve; e para Shimamura adquiriam naquele momento um ar estranhamente diáfano, de uma desolação sem nome: o equilíbrio harmonioso entre o céu e a linha obscura das alturas tinha-se quebrado.

- Vais apanhar frio! Estás gelada - disse Shimamura, pousando a mão no pescoço da jovem e procurando trazê-la para dentro.

Mas ela agarrou-se ao parapeito.

- Vou voltar para minha casa - afirmou obstinadamente, ainda que a sua voz se mostrasse perturbada. :; - Muito bem. Então volta para dentro.

- Queria ficar assim, um pouco mais...

- Vou descer para tomar um banho - decidiu Shimamura. - - Não, não, fique aqui comigo...

- Sim, se fechares a janela.

- Só mais um pouco... Gostava tanto de ficar assim mais uns momentos!

O pequeno bosque do santuário ocultava metade da aldeia. As luzes da estação (a menos de dez minutos de táxi) cintilavam ao longe, como se o frio as fizesse crepitar.

Os cabelos da mulher, a janela, as mangas do quimono: tudo o que Shimamura tocava estava gelado, mas gelado como se o frio viesse das coisas, um frio como ele nunca conhecera antes. Parecia até irradiar da esteira que se encontrava a seus pés. Shimamura desceu para tomar o banho.

- Espere por mim! Vou consigo - disse ela. E seguiu-o humildemente.

Em baixo, enquanto punha em ordem a roupa que Shimamura tinha negligentemente deixado no chão, em frente da porta, entrou alguém. Era outro cliente do hotel. Um homem. Ao inclinar-se profundamente diante de Shimamura, a mulher encobriu o rosto.

- Oh! Desculpai-me! - disse o recém-chegado, com ar de quem se vai retirar.

- Não tem importância - apressou-se a responder Shimamura. - Passaremos para a divisão ao lado.

Pegou na roupa e caminhou em direcção ao outro compartimento, reservado às mulheres, e ela acompanhou-o como se fossem marido e mulher. Sem olhar para ela, Shimamura mergulhou na água quente. Sentia-se dominado por um riso louco, ao pensar que ela se encontrava ali com ele. Rapidamente, meteu a cabeça debaixo do yuguchi (4) e bochechou ruidosamente.

Tornaram a encontrar-se no quarto. Erguendo um pouco a cabeça sobre a almofada, com um gesto do dedo mínimo na orelha, ela fez descair uma mecha do seu penteado.

- Sinto-me muito triste - exclamou, e não disse mais nada.

Shimamura julgou, por instantes, que ela tinha os olhos semi-cerrados, mas percebeu depois que a linha espessa das pestanas lhe causara essa ilusão.

Nervosa, tensa, a jovem não dormiu um só instante, toda a noite.

O leve ruído que ela fazia ao atar o obi teria talvez despertado Shimamura.

- Desculpe. Não queria acordá-lo - disse. - Está ainda escuro. Repare bem, consegue ver-me.

Acendeu a luz.

- Não me vê, pois não? Não pode ver-me!

- Não. Ainda é de noite.

- De maneira nenhuma. Observe um pouco melhor. Além! Consegue ver-me? E agora? - disse ela, abrindo a grande janela. - Não. Não pode ver-me. Vou-me embora.

Shimamura, apanhado pelo frio da manhã, cuja intensidade voltava a surpreendê-lo, ergueu-se um pouco sobre a almofada. O céu estava ainda da cor da noite, mas ao longe, nas montanhas, era já manhã.

- Tudo correrá bem. Os camponeses pouco têm que fazer nesta época. Não haverá ninguém nas ruas tão cedo. A não ser, talvez, que alguém parta em excursão para a montanha... Que acha?

Ela falava sem esperar resposta, indo e vindo pelo quarto, arrastando atrás de si a ponta do obi, meio atado.

No comboio das cinco horas não viera nenhum cliente para o hotel. Ninguém se levantaria tão cedo.

O nó do obi estava feito, mas ela agitava-se ainda no quarto, levantando-se, tornando a ajoelhar-se no chão, erguendo-se depois, sem deixar de espreitar constantemente para o lado da janela. Mostrava-se extremamente enervada e ao mesmo tempo angustiada e impaciente, como o animal nocturno que receia a aproximação da manhã. Parecia possuída e agitada por algum misterioso e rude instinto, sob o domínio de um encantamento mágico.

A claridade no quarto era agora suficiente para que Shimamura lhe visse o brilho das faces, de um vermelho tão vivo e brilhante que o deixou fascinado.

- Tens a cara em fogo. E pensar que está tanto frio!

- O frio nada tem a ver com isto: fui eu que tirei a pintura da cara. Basta enfiar-me na cama para ficar logo quente; quente até à ponta dos pés.

Ajoelhada em frente do espelho, junto da cama, olhou para fora e observou de novo que já era dia e que ia voltar para casa.

Shimamura lançou um olhar à jovem, mas, num gesto brusco, deixou cair a cabeça sobre a almofada: toda aquela brancura existente na profundidade do espelho era a neve, e, no meio dela, ardia o rosto vermelho da mulher. A beleza deste contraste era de uma pureza inefável, de uma intensidade quase insustentável, de tal modo excitante e expressiva.

Shimamura perguntou a si próprio se o Sol teria já nascido, pois a neve tomara de súbito um esplendor ainda mais brilhante no espelho: dir-se-ia um incêndio no gelo. O próprio negro dos cabelos da jovem, em contraluz, parecia menos profundo, secretamente habitado por um jogo de sombras de tom avermelhado.

Para evitar a obstrução causada pela neve, o escoamento das águas dos banhos fazia-se através de uma vala aberta ao longo das paredes do hotel. Em frente da entrada, a água formava uma grande poça que se assemelhava a um charco minúsculo. Sobre as lajes que levavam à porta ia beber um enorme cão negro. Uma fila de esquis, provavelmente retirados dalguma arrecadação, para serem expostos ao ar, parecia estar à espera de futuros clientes; subia deles um leve cheiro a bolor, como que adocicado pelo vapor que vinha da água quente. Os blocos de neve caídos dos ramos dos cedros, em cima do tecto dos banhos(5) deixavam neles manchas informes, quase movediças, quase tépidas. O traçado da rua, antes do fim do ano, terá desaparecido, completamente submerso pela neve.

Para vir às festas, ela deverá calçar umas botas altas de borracha, vestir as deselegantes «calças montanhesas» por cima do quimono, a pesada romeira e ainda um véu para proteger o rosto. Quanto à neve, terá então pelo menos dez pés de altura e durante todo o Inverno. Tinha-lho dito a jovem, e Shimamura ia pensando nisso ao descer para a aldeia, por esse caminho que ela tinha espreitado, nessa mesma manhã, ao nascer do dia, da janela do seu quarto no hotel.

Algumas toalhas secavam num fio estendido à beira do caminho. Por cima via-se desdobrar-se o panorama das montanhas e, ao longe, os picos nevados que brilhavam docemente na luz. Nos jardins, a espiga verde dos alhos bravos não estava ainda completamente sepultada pela neve.

Os garotos da aldeia faziam esqui através dos campos.

Quando o caminho chegou junto das casas, Shimamura sentiu algo parecido com o gotejar duma chuva miúda, e viu os pequenos flocos luzidios que debruavam os beirais: um bordado cintilante.

- Já que estás aí - exclamou uma voz atrás dele -, não te importas de limpar também o nosso?

Era uma mulher que voltava do banho, com a toalha enrolada na cabeça, e que erguia o olhar encadeado pelo sol, que se dirigia ao homem que retirava a neve de um telhado. «Alguma criada - pensou Shimamura - que deve ter chegado adiantada à aldeia, para a época de esqui». A entrada próxima era a de um café(6): uma velha moradia com o telhado abaulado e uma janela com a pintura a estalar, do longo tempo que ficara exposta às intempéries.

Os tectos das casas, na maioria feitos de tabuinhas, apresentavam idênticos alinhamentos de pedras, paralelamente à rua: grandes pedras redondas e polidas, brancas de neve ao lado da sombra, e que luziam ao sol do outro lado, tão negras como ardósias, com um brilho que se devia mais à contextura mineral gasta pelos gelos, pelos ventos e pela chuva do que propriamente à humidade que corria.

Os beirais, que chegavam quase ao chão, exprimiam por si sós, e talvez ainda melhor que as pedras dos telhados, a própria alma das regiões do Norte.

Os garotos brincavam no regato, divertindo-se a quebrar o gelo e a atirá-lo em seguida para o meio da rua, deslumbrados provavelmente com os mil reflexos que ele fazia ao sol ao quebrar-se. Shimamura ficou por instantes a contemplá-los, mergulhado na luz, mal acreditando que o gelo fosse tão espesso.

Encostada a um muro de pedra, uma rapariguinha de doze ou treze anos tricotava, afastada das outras. Shimamura reparou que, saindo do tecido grosseiro das suas largas «calças de montanhês», ela tinha os pés nus metidos nas geta e que a pele estava vermelha e gretada pelo frio. A seu lado, em cima de um monte de lenha, estava sentada, com todo o juízo, uma miúda que podia ter uns dois anos e que pacientemente lhe segurava a meada com as duas mãozitas. A lã tinha uma cor cinzenta e terna, e o fio ia adquirindo uma cor mais viva e mais quente, à medida que ia passando dos braços da miúda mais pequena para as mãos da mais velha.

Sete ou oito casas mais abaixo ouviu a plaina do marceneiro, que trabalhava numa oficina onde se fabricavam esquis. Do outro lado da rua estavam cinco ou seis gueixas a tagarelar à sombra do grande beirado. «Komako deve estar entre elas, estou certo» - pensou Shimamura, que naquela manhã tinha sabido o nome da jovem, através de uma criada do hotel. Com efeito, Komako encontrava-se ali e tinha-o também reconhecido ao longe: a expressão infinitamente grave que lhe marcava o rosto não permitia que se confundisse com as outras. «Vai corar até às orelhas, pensou Shimamura, avançando, vai corar terrivelmente, se não conseguir disfarçar, como se nada fosse...» E mal o havia pensado, já ele a via corar até debaixo do queixo.

Teria sido melhor para ela voltar a cara para o lado, mas em vez disso parecia seguir contra a sua vontade os passos de Shimamura, apesar de ter os olhos no chão, num penoso sentimento de embaraço.

Shimamura sentiu igualmente subir ao rosto um calor inesperado. Apressou o passo para se afastar dali, e Komako seguiu imediatamente atrás dele.

- Não devia ter feito isto... Para mim é muito desagradável que passe por aqui a esta hora.

- Desagradável porquê? Não achas que pode acontecer o mesmo comigo, quando dou com vocês alinhadas de forma que parecem querer barrar-me a passagem? Foi essa precisamente a razão que me levou a continuar o meu caminho. É sempre assim?

- Sem dúvida, à tarde...

- Corar dessa maneira e correr depois atrás de mim, devo dizer que isso me parece ainda muito mais incómodo.

- Não fale assim! Isso não altera nada.

Dissera-o claramente, sem no entanto deixar de corar pela segunda vez. E, parando, abraçou o tronco de um diospireiro que se encontrava à beira do caminho.

- Pensei que podia convidá-lo para vir a minha casa; foi por isso que vim atrás de si.

- A tua casa é perto daqui?

- Sim, muito perto.

- Aceito, se me deixares ler o teu diário.

- Tenciono queimá-lo antes de morrer : - A propósito, não há uma pessoa doente em tua casa?

- Como é que sabe?

- Vieste esperá-lo à estação, ontem, e trazias uma romeira azul-marinha. Fizemos a viagem juntos e quase em frente um do outro. A jovem que o acompanhava cuidava dele com tal doçura, com tanto carinho... É mulher dele ou é alguém daqui que foi buscá-lo? Ou é de Tóquio? Os seus cuidados... tratava dele como uma mãe, e isso causou-me uma profunda impressão.

- Porque não me disse nada ontem à noite? Porquê tanta discrição? - perguntou Komako, com uma emoção repentina.

- É mulher dele?

Komako estava tão preocupada com a sua própria pergunta que não lhe respondeu.

- Mas porque não falou nisso ontem? Que carácter estranho, o seu!

Esta maneira brusca de falar, por parte de uma mulher, não agradava muito a Shimamura. Aparentemente, nada havia que a justificasse, nem as circunstâncias nem o facto que as provocara. Seria um traço da natureza profunda de Komako que neste momento a traía? No entanto, Shimamura admitia para si próprio que a pergunta que havia formulado o interessava muito particularmente: nessa manhã, a imagem de Komako no gelo, o vermelho das suas faces destacando-se na neve, tinham-no evidentemente feito pensar na imagem da jovem do comboio, no seu reflexo no vidro da carruagem... Na verdade, porque não falara no assunto?

Entretanto tinham continuado a andar.

- Pouco importa que ele seja um doente; ninguém vem nunca ao meu quarto - disse Komako, metendo-se por um caminho ladeado por um pequeno muro.

À direita havia um pequeno terreno coberto de neve; à esquerda, uma fila de diospireiros em frente do muro divisório. Junto da casa parecia existir um jardim e, no pequeno tanque de lótus, onde o gelo havia sido quebrado e retirado para as margens, deslizavam grandes peixes vermelhos. A casa parecia velha. Havia grandes placas de neve em cima do telhado empenado, com vigas tão tortas que faziam ziguezaguear o alpendre.

Na entrada, de terra batida, sentia-se um frio imóvel; e Shimamura foi conduzido junto de uma escada de mão, antes de os seus olhos se habituarem àquela repentina obscuridade. Uma autêntica escada de mão que dava para um verdadeiro celeiro.

- Era o quarto de cultura dos bichos-da-seda - explicou Komako. - Ficou admirado?

- Tens tido muita sorte em não partires o pescoço quando voltas para casa embriagada!

- Já caí uma vez. Mas, geralmente, quando bebo de mais deito-me no kotatsu, em baixo, e acabo por adormecer.

Enquanto falava estendera a mão para o kotatsu, a fim de ver se ele tinha calor suficiente, e desceu em seguida à procura de lume. Shimamura examinou com curiosidade o quarto, verificando que não havia senão uma única janela, muito pequena. No entanto notou que o papel da janela era novo e deixava entrar a radiosa luz do Sol. As paredes tinham sido cuidadosamente atapetadas com papel de arroz, o que dava ao quarto o aspecto de um velho cofrezinho de papel. O tecto, tosco, não era forrado, e a sua inclinação, que vinha até ao nível da janela, provocava uma sombria impressão de solidão. Instintivamente, Shimamura perguntou a si próprio o que poderia haver para lá da parede daquela cela erguida no ar, e teve a desagradável sensação de se encontrar sobre uma varanda fechada, suspensa no vazio. Tanto o soalho como os tabiques, por mais velhos que fossem, mostravam um impecável asseio.

Por momentos ficou a pensar, divertido, com a ideia de a luz penetrar o corpo vivo de Komako, naquele quarto onde antes se criavam bichos-da-seda, a mesma luz que atravessava o corpo translúcido das industriosas larvas.

A cobertura do kotatsu era feita do mesmo tecido de algodão às riscas que serve para fazer as «calças de montanhês». A cómoda, com gavetas, era um belo móvel, de boa madeira, bem pintado e polido; devia ser uma recordação dos anos passados em Tóquio. Mas o outro móvel, um toucador ordinário, contrastava pela sua vulgaridade, enquanto a caixa de costura, de um vermelho magnífico, produzia a nota profunda e ardente que é o encanto das lacas de alta qualidade. Junto à parede, várias filas de pequenas caixas empilhadas, encobertas por uma delicada cortina de lã fina, pareciam servir de estante.

O quimono de sair, que ela trazia na noite anterior, estava pendurado na parede, aberto sobre o vermelho-vivo da camisa interior.

Com destreza, Komako subiu a escada com a provisão de combustível.

- Fui buscá-lo ao quarto do doente. Mas pode ficar descansado, pois, segundo se diz, o fogo devora todos os micróbios.

Inclinou-se para atear as brasas, e de tal modo que o seu penteado, cuidadosamente armado, ia roçando pelo kotatsu.

- É uma tuberculose intestinal que consome o filho da professora de Música - explicou Komako. - Voltou para morrer em casa.

Para falar verdade, ele não tinha nascido aqui. A casa era da mãe, que tinha continuado a ensinar Dança na região da costa, na altura em que deixara de ser gueixa; mas, por volta dos quarenta anos, tinha tido um ataque, e foi para se tratar que voltara às termas. O filho, que desde criança tinha paixão pela mecânica, ficou como aprendiz em casa de um relojoeiro. Mais tarde fora para Tóquio, com o fim de frequentar um curso nocturno, trabalhando durante o dia, mas o excesso de trabalho arruinara-lhe a saúde. Tinha só vinte e cinco anos.

Komako dera estas explicações a Shimamura, sem qualquer reticência. Mas em relação à jovem que acompanhava o doente não dissera uma palavra. Assim como não dera qualquer explicação da sua presença naquela casa. Ao ouvi-la, Shimamura, apesar de tudo, não deixara de ter uma sensação desagradável. Parecia-lhe que Komako, do alto da sua varanda, erguida no ar, lançava uma emissão aos quatro cantos do mundo. Ao voltar à entrada, Shimamura conseguiu descobrir pelo canto do olho a claridade vaga de um objecto que não tinha notado ao passar: o estojo do samisen, cujas proporções o impressionaram. A caixa pareceu-lhe muito maior e muito mais comprida do que o normal, e Shimamura dificilmente podia imaginar Komako embaraçada com tal objecto quando se dirigia às festas onde reclamavam a sua presença. Nesse momento, alguém fez deslizar a negra porta que dava para dentro.

- Não se importa que eu passe aqui por cima, Komako? - perguntou a voz comovedora, tão clara, tão bela de timbre e que deixava transparecer uma espécie de tristeza: a voz de Yoko, inesquecível para Shimamura desde que a ouvira na noite, chamando pelo chefe da estação, quando o comboio parou, ao sair do túnel. E escutou, esperando a resposta que lhe faria eco.

- De maneira nenhuma. Pode passar à vontade.

E Yoko, num passo ligeiro, saltou sobre o estojo do samisen e dirigiu-se à porta da entrada, levando um bacio de vidro. Lançara um olhar rápido e vivo a Shimamura, afastando-se em seguida, silenciosamente, sobre a terra batida. Shimamura não podia duvidar de que ela fosse uma rapariga dessa região: bastava olhar para a forma como vestia o hakama (7) das montanhas, ou lembrar-se do tom familiar com que se dirigira ao homem do apeadeiro; mas o requintado desenho que lhe enfeitava o obi, meio visível por cima do grosso calção aberto, dava distinção ao grosseiro riscado castanho e negro, bem como às mangas compridas do quimono de lã, que assim recebiam um encanto mais voluptuoso. O próprio hakama, aberto abaixo do joelho e enfolando pesadamente nas ancas, dava uma impressão de suavidade, de doçura e possuía uma espécie de leveza, apesar da espessura do tecido e da aspereza natural do algodão ordinário.

Mesmo depois de ter abandonado aquela casa, Shimamura continuou dominado por esse olhar penetrante que lhe deixara como que uma queimadura em plena testa. Era ainda a pura, inefável, beleza dessa luz distante e fria, a magia desse ponto cintilante que tinha caminhado através do rosto da mulher, sob o qual corria a noite, na janela da carruagem, esse brilho que tinha vindo, num momento determinado, eliminar de forma sobrenatural o seu olhar, encanto maravilhoso e secreto a que o coração de Shimamura tinha respondido, na noite anterior, batendo mais forte, e a que vinha juntar-se agora a magia resplandecente da neve nessa manhã, a imensa extensão branca onde se destacava, vivo e brilhante, o vermelho das faces de Komako.

Acelerou o passo. Não porque tivesse pernas nervosas; pelo contrário, tinha músculos bastante fortes. Mas sentia uma espécie de regozijo, um novo entusiasmo, sem que soubesse muito bem porquê, ao ver aquelas montanhas tão amadas. E, com essa disposição profundamente sonhadora, era-lhe fácil esquecer que o mundo dos humanos intervinha no jogo dos reflexos flutuantes e das imagens estranhas que o seduziam. Não, a janela da carruagem, da qual a noite tinha feito uma espécie de espelho, o verdadeiro espelho inundado de branco pela neve, nem um nem outro passavam de objectos feitos pela mão do homem: eram qualquer coisa que participava da própria natureza, por um lado, e de um mundo diferente e longínquo, pelo outro. Aliás, um universo excitante, a que pertencia também o quarto que acabava de abandonar.

Invadido por este sentimento, Shimamura estremeceu, sentindo a necessidade de voltar às coisas do mundo positivo. Dirigiu-se a uma massagista cega que encontrou no alto da ladeira, para lhe perguntar se ela podia dar-lhe massagens.

- Vejamos que horas são - disse a mulher enquanto fazia deslizar a bengala por baixo do braço, para tirar do obi o relógio de bolso que ela abriu, tacteando o quadrante com os dedos da mão esquerda. - São duas e trinta e cinco. Tenho uma marcação para as três e meia. É um pouco para lá da estação, mas se eu chegar um pouco mais tarde, julgo que não terá importância.

- É realmente espantoso como pode ler as horas - elogiou Shimamura.

- O relógio não tem vidro, basta-me tocar nos ponteiros.

- E os números?

- Também não são necessários - disse ela, tirando novamente o relógio e abrindo a caixa.

Era um relógio de prata, um pouco maior que um relógio de mulher. E com os três dedos colocados como pontos de referência sobre o doze, o seis e o três:

- Posso dizer-lhe a hora com toda a exactidão - explicou ela -, e se me enganar nunca é mais de um minuto atrasado ou adiantado; de qualquer modo nunca mais de dois minutos.

- E a ladeira do caminho não é para si um pouco difícil? - perguntou Shimamura, preocupado.

- Quando chove, a minha filha vai buscar-me à aldeia e traz-me para aqui; à noite, trabalho apenas na aldeia. Nunca venho cá acima.

E isto passou a ser motivo de chalaça para as criadas do hotel: dizem que é o meu marido que não quer deixar-me sair.

- Já tem filhos crescidos?

- A minha filha mais velha tem doze anos.

E, assim falando, chegaram ao quarto de Shimamura, e a conversa acabou quando a cega começou a massajá-lo. No silêncio, ouviu-se a música longínqua dum samisen.

- Deixe-me ver se descubro quem está a tocar! - disse a cega, escutando com atenção.

- Consegue reconhecer sempre a gueixa que está a tocar?

Às vezes sim; outras, não. O seu corpo é o de uma pessoa que não está habituada a trabalhar. Não sente agora os músculos flexíveis

e descontraídos?

- Não haverá nenhuma contracção em qualquer parte?

- Sim, uma pequena crispação na base da nuca. Mas o senhor está perfeitamente em forma, nem muito gordo nem muito magro. Não bebe, pois não?

- Porquê? Também consegue descobrir isso?

- Tenho três fregueses habituais que têm exactamente o seu

tónus fisiológico.

- Ora! É uma qualidade que não tem nada de excepcional.

- Talvez. Mas, se não bebe, priva-se de uma grande satisfação: é um enorme prazer a gente poder esquecer tudo!

- E o seu marido, bebe?

- Mais do que o necessário.

- Voltando à nossa tocadora de samisen, seja ela quem for, é uma executante lamentável.

- Sim, é bastante má.

- Você também sabe tocar?

- Toquei quando era nova, desde os oito até aos dezanove anos. Mas há quinze anos que sou casada, e nunca mais toquei.

Ao ouvi-la dizer a idade que tinha, Shimamura pensou para consigo se os cegos não pareciam sempre mais novos do que eram na verdade. Mas continuou a falar:

- Quem aprendeu a tocar muito cedo, nunca mais se esquece.

- Com a profissão que exerço, já não tenho as mãos que tinha; mas sempre tive bom ouvido e custa-me ouvi-las tocar. Mas penso também que a maneira como tocava quando era jovem já não me satisfaria.

Por momentos ficou à escuta.

- Deve ser Fumi, pertence à Izutsuya. Reconhecemos mais facilmente as que tocam muito bem e as que tocam muito mal.

- Conhece algumas que toquem verdadeiramente bem?

- Komako é excelente. Jovem, sem dúvida, mas em pouco tempo aperfeiçoou-se muito.

- Komako?

- Estou a ver que a conhece! Sim, acho-a esplêndida. Mas também não deve esquecer que nós, aqui na montanha, não somos muito exigentes.

- Conhecemo-nos tão pouco e já estamos a falar como se assim não fosse - afirmou Shimamura. - Ontem viajei também com o filho da professora de Música.

- Está melhor? - Acho que não.

- Coitado, há tanto tempo que estava doente em Tóquio. Diz-se que foi para poder pagar parte das despesas com os remédios que, no Verão passado, Komako decidiu tornar-se gueixa profissional. Pergunto a mim própria se isso lhe teria servido para alguma coisa!...

- Como? Komako?

- Eram apenas noivos. Mas penso que nos devemos sentir mais tranquilos quando fazemos tudo o que podemos. Pelo menos nada temos a reprovar-nos depois.

- Komako estava noiva dele?

- É o que se diz, e nada mais posso adiantar. Mas é geralmente assim que essas coisas se sabem.

Haverá coisa mais banal do que ouvir a massagista dumas termas tagarelar sobre as gueixas da região? Mas foi precisamente por receber as notícias por um meio tão vulgar que elas surpreenderam Shimamura e lhe pareceram tanto mais extraordinárias quanto inverosímeis. Ora vejamos: Komako torna-se gueixa para acudir ao noivo. Que diabo! Parece tudo demasiado de acordo com o repertório usado no mais vulgar melodrama! Shimamura não estava disposto a acreditar nisso. E, mesmo encarando a coisa segundo a sua própria moral, sentia-se mais inclinado a rejeitá-la. Convinha-lhe muito mais que fosse a mulher a usar o seu direito de se vender como gueixa. Em suma, Shimamura estava muito interessado em tirar a limpo toda aquela história e em saber mais pormenores. Mas, entretanto, a massagista tinha acabado.

Continuando a pensar no assunto, não largava aquela ideia do «trabalho em vão» que já havia tido a propósito do diário de Komako. Pois se Komako tivesse sido, na verdade, noiva daquele homem, se Yoko era o seu novo amor, se ele próprio iria morrer em breve, não seria tudo isso absolutamente em vão? Como pensar de outro modo, quando Komako ia ao ponto de se vender para manter até fim os seus compromissos e poder pagar as despesas com o doente? E tudo em pura perda. Tudo completamente em vão.

Shimamura falar-lhe-ia nisso quando se encontrassem de novo. Dir-lhe-ia como encarava as coisas. Tentaria convencê-la. Mas, ao mesmo tempo, nada o impedia de pensar que aquele novo fragmento da vida dela que acabava de conhecer a tornava ainda mais transparente e mais pura.

A suspeita de que fosse mentira, o sentimento de que tudo aquilo era vão e sem sentido, era algo de tão vago, de tão perturbante, que ele próprio se punha a desconfiar, como se debaixo de tudo isso existisse algum perigo inconfessável. A massagista cega já se tinha ido embora há muito tempo, mas Shimamura continuava ainda a pensar no assunto e acabou por sentir-se gelado até ao vazio do estômago. Mas o que é um facto é que também tinham deixado as janelas abertas de par em par.

O fundo do vale, mergulhado na sombra muito cedo, tinha revestido já as tonalidades da noite. Erguidas fora da zona sombria, as montanhas, ao longe, brilhando à luz do Poente, pareciam muito mais próximas, com o relevo acentuado pelas sombras mais profundas, mais obscuras e pela sua brancura um pouco fosforescente sob o céu avermelhado. Mais perto, o bosque de cedros à beira da torrente, sob a pista de esqui, espalhava a sua mancha negra à volta do santuário.

Shimamura sentia-se cada vez mais desolado, miserável, oprimido, vencido pela inutilidade e pelo vazio absurdo. E quando Komako entrou no quarto foi como um raio de luz ardente na sua noite.

Havia no hotel uma reunião para definir o programa local da época de Inverno e tinha sido convidada para a festa que se lhe seguiria, afirmou ela deslizando, com um gesto rápido, as mãos pelo kotatsu. Um instante depois aflorava delicadamente a face de Shimamura:

- Como está pálido esta noite!... É estranho!... ; E com os dois dedos beliscou-lhe a bochecha, puxando a pele macia, como se lhe retirasse uma máscara.

- Vejamos, não seja absurdo! Está a incomodar-se por pouca

coisa...

Shimamura pensou que ela estivesse já um pouco embriagada.

Mas quando voltou, terminada a festa, foi para se deixar cair em frente do espelho, com um ar que parecia quase uma caricatura da embriaguez.

- Não entendo nada. Absolutamente nada... Ai! a minha cabeça, a minha pobre cabeça! Sinto-me mal, terrivelmente mal... Preciso de beber. Dê-me um copo de água.

Apertava as têmporas entre as mãos, rolando com a cabeça, sem se importar sequer com o alto e artístico penteado. Erguendo-se em seguida, recompôs-se com pequenos gestos afectados, passando pelo rosto o creme de limpeza, para retirar a espessa camada de pó branco. Tinha as faces em fogo. No entanto, Komako parecia encantada consigo própria, com grande espanto de Shimamura, incapaz de acreditar que a embriaguez pudesse dissipar-se tão rapidamente. E viu-a estremecer de frio.

Calma, e sem emoção, confessou-lhe que tinha estado à beira de uma depressão nervosa durante o mês de Agosto.

- Julguei que ficava doida! Entregava-me a ideias tristes, sem mesmo saber porquê. Era terrível. Não conseguia dormir e só me recompunha quando precisava de sair. Tinha toda a espécie de devaneios.

Perdi o apetite. Podia ficar a tagarelar, sentada no mesmo sítio, horas e horas, à torreira do sol.

- Quando é que começaste a sair como gueixa?

- Em Junho. Houve uma altura em que eu pensei ir morar para Hamamatsu.

- Algum casamento?

Ela confirmou. O homem queria à força casar com ela, mas não conseguia gostar dele, por mais que quisesse. A sua decisão tinha-lhe trazido muitas preocupações.

- Se não gostavas dele, porque é que havias de ficar preocupada?

- Isso é fácil de dizer... As coisas não são assim tão simples.

- Portanto, o casamento em si tem os seus encantos!

- Não seja pateta! Uma mulher pode muito bem desejar possuir uma casa sua, onde tenha tudo em ordem e bem limpo. Shimamura resmungou qualquer coisa.

- Parece-me que a sua conversa não é particularmente agradável!

- Entre ti e esse homem de Hamamatsu houve alguma coisa? A resposta saiu espontaneamente:

- Se tivesse havido qualquer coisa, acha que teria hesitado? Não. Mas ele afirmava que não me deixaria casar com outra pessoa enquanto aqui vivesse. E dizia que faria tudo para o impedir.

- No entanto, vivendo ele em Hamamatsu, estava muito longe para poder fazer qualquer coisa. Porque te inquietavas tanto?

Conscientemente deliciada com o doce calor do seu próprio corpo, Komako estirou-se voluptuosamente, longamente, fazendo uma pausa, e quando respondeu fê-lo num tom completamente anódino:

- É que eu pensava que ia ter uma criança - disse ela, orgulhosa. - Acha isso ridículo?

E cerrando os punhos sobre a gola do quimono, Komako enrodilhou-se como um bebé que quer dormir. Uma vez mais Shimamura deixou-se enganar pela riqueza sedosa das suas pestanas ao julgar que ela tinha ainda os olhos semicerrados.

De manhã, quando Shimamura acordou, viu Komako, com os cotovelos apoiados no kotatsu, a fazer rabiscos na capa de uma velha revista.

- Foi-me impossível voltar para casa - disse-lhe ela. - Acordei quando a criada chegou com o fogo. Já era de dia. O sol brilhava através da porta. Ontem bebi de mais e dormi como uma pedra.,

- Que horas são? - Já são oito horas.

- É melhor irmos tomar um banho - exclamou Shimamura, saltando da cama.

- Eu, não: podiam ver-me à entrada...

Ela era toda humildade, tanto pela atitude, como pelo timbre da sua voz.

Ao voltar do banho, Shimamura encontrou-a a arrumar o quarto, com todo o esmero, trazendo um lenço elegantemente atado nos cabelos. Limpou minuciosamente os pés da mesa e as pegas do hibachi (8), e em seguida, com mão ligeira e destra, avivou o fogo das brasas.

Fumando indolentemente, Shimamura instalara-se confortavel-mente, com os pés em cima do kotatsu. A cinza do cigarro tinha caído no chão. Komako pegou num pano para a limpar e trouxe-lhe o cinzeiro. Shimamura deu uma gargalhada jovial. Komako riu também.

- Se tivesses um marido - disse-lhe -, andavas sempre atrás dele, a ralhar por tudo e por nada.

- Oh, que ideia! Mas ele podia muito bem rir-se de mim ao ver-me dobrar até mesmo a roupa suja! Não posso impedir-me de o fazer: é a minha maneira de ser!

- Basta olhar para a gaveta da cómoda de uma mulher para se ficar a conhecê-la bem.

Estavam a tomar o pequeno-almoço. O sol entrava alegremente no quarto.

Que dia esplêndido! - exclamou ela. - Devia ter ido para casa e exercitar-me um pouco no samisen. O som é completamente diferente com o tempo assim.

Ergueu o olhar para o céu, que tinha a pureza de um cristal. Ao longe, nas montanhas, a neve tinha uma tonalidade cremosa e terna e parecia coberta por uma musselina de fumo.

Shimamura, depois do que lhe tinha dito a massagista, não hesitou em propor-lhe que viesse estudar samisen no seu quarto. Komako telefonou imediatamente para casa, pedindo que lhe mandassem as músicas, o instrumento e outro fato.

«Portanto - pensou Shimamura indolentemente -, a velha casa que visitara durante a tarde tinha, apesar de tudo, telefone...» E no seu espírito voltava a ver os olhos, o olhar da outra, a jovem Yoko.

É aquela rapariga quem te vai trazer o que pediste? Possivelmente. E o filho da casa é teu noivo? Agora! Mas quando é que ouviu falar nisso? Ontem.

- Que homem tão estranho... Se o sabe desde ontem, porque não me disse ainda nada?

As palavras eram quase as mesmas de ontem, mas o tom já não tinha nada de agressivo, pelo contrário: a sua voz tinha uma inflexão serena e era acompanhada de um sorriso aberto.

- Se eu me sentisse menos dominado pelo respeito, acharia mais fácil abordar este género de coisas - afirmou Shimamura.

- Pois eu gostaria de conhecer o fundo do seu pensamento. É por isso que não gosto das pessoas de Tóquio!

- Por favor, não mudemos de assunto. Já reparaste que ainda não respondeste à minha pergunta?

- Não estava a pretender esquivar-me. Acreditou no que lhe disseram?

- Sim, acreditei.

- Isso é também uma mentira. Na verdade, não acreditou, pois não?

- Para falar verdade, não acreditei em tudo. No entanto, a história diz que tu te fizeste gueixa para poderes pagar as despesas com os tratamentos.

- Isso parece um romance barato. Mas não é verdade. Nunca fui noiva dele, apesar de as pessoas, segundo parece, julgarem isso. Também não me tornei gueixa para poder ajudar quem quer que fosse. Mas como devo muito à mãe dele, é natural que faça aquilo que posso.

- Tudo isso continua a ser estranho.

- De forma alguma. Vou contar-lhe tudo, sem mistérios. Parece ter havido, sem dúvida, uma época em que a mãe pensou que o nosso casamento seria uma boa ideia. Mas isso nunca passou de uma ideia, e ele nunca disse uma palavra sobre o assunto. Tanto eu como ele tínhamos mais ou menos a certeza de que ela pensava nisso, e a coisa ficou por aí. Nada mais se passou. É esta a história.

- Em suma, uma amizade de infância.

- Exactamente. E ainda por cima vivíamos separados. No entanto, foi ele a única pessoa que me acompanhou à estação quando me enviaram a Tóquio para fazer a aprendizagem de gueixa. Escrevi isso na página inicial do meu primeiro diário.

- Mas se a vida não vos tivesse separado, aposto que hoje estaríeis casados.

- Não tenho a certeza de que isso tivesse acontecido.

- Não. Parece-me que seria certo.

- Para ele, no entanto, isso deve ser completamente indiferente. Dentro em pouco estará morto.

- Mas não achas que é um erro passares as noites fora de casa?

- O erro está em fazer tal pergunta. Aliás, como poderá um moribundo impedir-me de fazer o que me apetece?

Shimamura não encontrou nada para lhe responder. Mas por que razão Komako continuava a não fazer a mais pequena referência a Yoko? Yoko, que ele vira no comboio cuidando carinhosamente do doente; essa Yoko que se comportava com ele como se fosse a sua mãe... Quais seriam portanto os seus sentimentos em relação ao homem que viera acompanhar àquela terra, se era ela quem iria trazer a Komako o quimono e o instrumento, a Komako, à qual certos laços a ligavam, sem que ele soubesse exactamente quais.

E, como lhe acontecia frequentemente, Shimamura perdeu-se em vagas congeminações.

- Komako! Komako!

Grave, profunda, e no entanto clara, era a voz tão bela de Yoko

que se ouvia.

- Obrigada, muito obrigada! - disse Komako, passando imediatamente à sala de entrada do apartamento.

- Trouxe tudo sozinha? Mas era um peso enorme!

Sem esperar, Yoko voltou para casa.

E quando Komako, num gesto, fez vibrar o instrumento para verificar os acordes, a corda mais fina partiu-se imediatamente. Ao vê-la mudar a corda e afiná-la, Shimamura pôde apreciar a segurança da sua mão e reconhecer a boa executante que ela era. Komako tinha aberto, sobre o kotatsu, um enorme maço de músicas: recolhas de cantos em edição corrente e, ao lado, duas dezenas de livros do antigo método Kineya Yashichi e algumas partituras modernas para aprender sem mestre, o que Shimamura examinou com curiosidade.

- Estudas Música com estas coisas(9)?

- Como queria que fizesse? Não há aqui ninguém que me possa ensinar a iocax samisen.

- Então a professora de Música em casa de quem vives?

- Está paralisada.

- Mas não te pode dar alguns conselhos?

- Não, ela não consegue falar. Apenas move um pouco a mão esquerda, e é com ela que corrige as suas alunas de Dança; por outro lado, custa-lhe muito ouvir tocar samisen, sabendo que o não pode fazer.

- Mas tu consegues aperfeiçoar-te com estes métodos escritos?

- Leio muito bem música.

- Meu Deus! O editor destas obras ficaria encantado se soubesse que uma verdadeira gueixa - e não uma diletante da profissão - estuda as suas composições aqui, na montanha.

- Em Tóquio devia tornar-me bailarina e pratiquei bastante a dança: lições, aprendizagem geral, tudo isso. Mas, pelo contrário, aprendi a tocar o samisen muito acessoriamente; e se eu chegasse a esquecer esses rudimentos não haveria ninguém que me pudesse ensinar de novo. É essa a razão por que tenho estas partituras.

- E o canto?

- Não gosto muito de cantar. Aprendi algumas canções tradicionais, evidentemente, enquanto dançava, e canto-as sofrivelmente; mas quanto às novidades tenho de me limitar ao que oiço na rádio e nunca me sinto segura com estas imitações. Tenho a certeza de que se rirá das minhas interpretações pessoais! Além disso, quando canto para alguém que conheço bem, falta-me sempre a voz. É muito melhor quando estou na presença de estranhos: mais firme e mais ampla.

Fez uma pequena pausa, baixando o olhar um tanto confundida, ergueu-se em seguida, expectante, parecendo dizer-lhe que estava pronta a ouvi-lo cantar a ele o que quisesse.

Isso causou grande embaraço a Shimamura, que, infelizmente, nada tinha de cantor. Homem de teatro e de dança, conhecia toda a música Nagauta e sabia de cor todo o repertório dos teatros de Tóquio. Mas nunca aprendera a cantar e sempre pensara que a salmodia das «poesias longas» pertencia muito mais à declamação ritmada do teatro, e convinha muito mais ao jogo de actores do que à arte mais íntima do divertimento oferecido pela gueixa.

- Com que então a fazer-se caro? - gracejou Komako, cujo lábio

esboçou um movimento encantador, ao mesmo tempo que colocava

sobre o joelho o samisen e, com o olhar grave, transformada noutra

pessoa, não teve mais olhos senão para a partitura colocada à sua

frente. - Desde o Outono que ando a preparar esta música - afirmou.

E foi uma canção de Kanjinchô que ela se pôs a tocar.

Instantaneamente, Shimamura sentiu-se como que electrizado,

percorrido por um grande arrepio que lhe pôs todo o corpo como

pele de galinha. Parecia que as primeiras notas cavavam um vazio

nas suas entranhas, vazio esse onde vinha repercutir-se, nítido e puro, o som do samisen. Havia nele mais que admiração: era uma estupefacção que o havia derrubado como um golpe bem ajustado. Levado por um sentimento que estava perto da pura veneração, submerso, afogado num mar de mágoas, comovido, perdendo o pé, incapaz de resistir, só podia deixar-se levar por aquela força que o arrastava, entregando-se sem defesa, com alegria, ao bel-prazer de Komako. Podia fazer dele o que quisesse.

Mas como podia ser? Ela, afinal, não passava de uma gueixa da montanha, uma mulher que não tinha ainda vinte anos: não era possível que tivesse um tal talento! A sala onde se encontravam não era grande, mas Komako tocava de forma tão compenetrada como se estivesse num grande palco. Todo ele fascinado pelo encanto da poesia da montanha, Shimamura abandonou-se ao seu sonho. Komako continuava a salmodiar num tom propositadamente monocórdico, pormenorizando tal passagem com uma aplicação que a tornava mais lenta, escamoteando outra cujas dificuldades de execução lhe pareciam enfadonhas, mas entregando-se, pouco a pouco, a um evidente fascínio, seduzida por uma espécie de embriaguez mágica. E o seu canto animado precipitou Shimamura numa espécie de vertigem, de que se defendia, não sabendo até onde poderia levá-lo aquela música, exteriorizando um ar distante, indiferente, com a cabeça apoiada na mão.

Descobriu por fim a liberdade de pensar quando o canto acabou. «Ama-me. Esta mulher está apaixonada por mim». Mas esta ideia irritou-o.

Komako tinha mergulhado o olhar no céu puro, por cima da neve. «A ressonância é completamente diferente quando o tempo está assim». A riqueza de sonoridades, o seu poder harmónico eram, de facto, como ela o dera a entender. E que diferença, também, pelo conjunto que formava, naquela solidão íntima, longe das complicações da cidade, longe dos artifícios de cena, sem as paredes de um teatro, sem público, no esplendor desta clara manhã de Inverno, nesta transparência de cristal, onde o cristal da música parecia soltar o seu canto vibrante e puro, até aos picos nevados das montanhas, lá longe, no horizonte!

Entregue a si própria, cultivando sozinha a música neste canto perdido das montanhas, Komako não estaria penetrada, enriquecida no seu ser, com todos os recursos mágicos, as potências secretas e as virtudes desta natureza, com a qual comungava talvez mesmo sem o saber? A natureza grandiosa e selvagem dos vales profundos. Não encontraria ela, na sua própria solidão, a força triunfal de uma vontade selvagem e que lhe permitia dominar até as próprias mágoas? Porque, mesmo tendo em consideração os rudimentos de base que ela teria podido adquirir, partir apenas da partitura escrita para conseguir executar aquela música difícil, tê-la trabalhado daquele modo e poder por fim tocá-la de memória, isso representava incontestavelmente um imenso triunfo de vontade.

Trabalho perdido, essa maneira de viver. Energia esbanjada. Esforço vão. Shimamura pensava assim, sem deixar de ouvir no fundo de si próprio o longo apelo mudo que a sua simpatia reclamava do fundo daquela desolação. E, no entanto, essa maneira que ela tinha de viver, o seu próprio ser não se achavam menos santificados, pensava Shimamura, imensamente dignificados, através do samisen.

Sensível sobretudo à emoção musical e nada conhecendo das subtilezas da técnica pura, não seria também Shimamura o ouvinte ideal para Komako?

De qualquer modo, Komako estava a tocar a sua terceira peça, o Miyakadori. E Shimamura, sem dúvida sob o efeito acariciante daquela música voluptuosa e terna, Shimamura, em quem a corrente eléctrica se havia acalmado para deixar correr nele um estranho calor, Shimamura, penetrado por um sentimento profundo de intimidade física, ergueu os olhos para Komako e contemplou o seu rosto.

Aquele nariz pequeno erguido, com aquele ar órfão que tinha geralmente, parecia hoje satisfeito devido às belas cores vivas e ardentes das faces. «Também estou aqui!», parecia dizer. Na orla carnuda dos lábios, deliciosamente fechados num delicado botão em flor, via-se dançar um raio de luz; e quando se entreabriam para deixar sair o canto era apenas um instante, e logo voltavam a fechar-se em botão. O seu sedutor movimento, tenso apenas para se libertar de novo com mais abandono e encanto, era a própria expressão do seu corpo, por momentos rígido para melhor reencontrar a lasciva feminilidade da sua bela juventude. O brilho do seu olhar, inocentemente húmido e brilhante, era mais juvenil ainda; os seus olhos continuavam a ser os de uma rapariguinha, quase uma criança, com o vigor da pele natural de jovem da montanha, tão cândida sob o delicado rosto cuidado da gueixa citadina. O tom da sua pele fazia lembrar o brilho duma cebola fresca descascada ou, melhor ainda, dum bolbo de lírio, mas com um tom rosado que lhe descia até à curva do decote. Um perfume de limpeza dominava tudo.

Firme numa posição que lhe dava um ar mais juvenil do que nunca, Komako executava agora, lendo a sua música, um fragmento que por enquanto não sabia perfeitamente de cor. Quando acabou, num gesto tão eloquente como silencioso, colocou o arco entre as cordas.

Em seguida, a sua atitude readquiriu a encantadora flexibilidade, com aquele nada de abandono que lhe dava tanta sedução.

Shimamura procurava em vão qualquer coisa para dizer, mas Komako, aparentemente, não demonstrou grande interesse em conhecer a opinião dele sobre a sua maneira de tocar. Mostrava-se francamente satisfeita consigo própria, sem que houvesse nisso falsa modéstia.

- És capaz de conhecer qual a gueixa que está a tocar, quando ouves um samisen?

- Não é difícil: aqui não há mais de umas vinte gueixas. Mas, apesar de tudo, isso depende um pouco da música executada: certas árias, de acordo com a natureza do próprio estilo, revelarão melhor do que outras a personalidade da intérprete.

Komako divertiu-se então fazendo deslizar o instrumento, segurando-o com as pernas.

- É assim que pegamos nele quando somos crianças - explicou ela, inclinando-se para o samisen, como se fosse ainda menina.

«Ne-ne-gros cabelos...», cantarolou, voz áspera e hesitante, imitando uma criança.

- Essa é a primeira canção que tu aprendeste?

- Sim, sim - disse ela no mesmo tom, imitando, decerto com perfeição, a criança que tinha sido, na idade em que não podia ainda pegar correctamente no instrumento de três cordas...

Quando passava a noite em casa de Shimamura, Komako já não procurava ir-se embora de madrugada. Uma voz infantil não tardava a chamar por ela: «Komako! Komako!», chilreando: era a neta dos proprietários, quase um bebé (ainda não devia ter dois anos), com a qual Komako se distraía tão alegremente no kotatsu e com quem tomava banho, ao meio-dia.

Nessa manhã, enquanto a penteava no quarto, depois do banho, Komako ia tagarelando:

- Sempre que vê uma gueixa põe-se a chamar «Komako», na sua vozinha tão engraçada, e quando vê nalguma gravura uma mulher com o penteado tradicional é também uma Komako. As crianças nunca se enganam: sabem quem gosta delas! «Vem depressa, Kimi, anda, vamos brincar para casa de Komako».

Estava pronta para partir e afastou-se do kotatsu; mas, indolente, deteve-se à janela, olhando para fora.

- Estes malditos de Tóquio! Já a fazerem esqui a esta hora! Virado ao Sul, o quarto dava sobre os campos de neve da vertente norte.

Permanecendo no kotatsu, Shimamura voltou a cabeça para ver: pistas de neve colocadas sobre a encosta, e cinco ou seis silhuetas em trajo de esqui, deslizando, em ziguezague, de uma pista para a outra, pela ligeira inclinação dos campos em socalcos, nos quais se distinguiam os muros divisórios, de tal modo a camada de neve era fina. Pareciam bonecos um pouco grotescos.

- Será domingo hoje? Parecem estudantes - observou. - Às vezes penso se aquilo é, de facto, divertido...

- De qualquer modo, não são principiantes - comentou Komako, como se falasse consigo própria. - Os nossos turistas mostram

sempre um ar de surpresa quando uma gueixa lhes dá os bons-dias nas colinas de esqui: tisnada pela neve, não a reconheceriam. À noite vêem-nos sempre empoadas de branco.

- Também usas as calças e o blusão de esqui?

- Não. Uso simplesmente o nosso grosso hakama. Como é aborrecida a época do esqui! Os clientes que nos vêem à noite no hotel querem voltar a encontrar-nos na manhã seguinte para fazer esqui. Creio bem que este Inverno passarei sem isso... Bem. Vou-me embora. Vens, Kimi? Com o frio que faz, bem pode acontecer que neve esta noite. Aqui faz sempre frio na noite anterior.

Shimamura tinha vindo à janela e viu Komako descer, guiando os passos da pequena Kimi pelo caminho em declive abrupto, sob os campos de neve.

Nuvens amontoavam-se no céu e, por detrás das montanhas, já mergulhadas na sombra, outras montanhas se erguiam, ainda nimbadas de luz. Incessantes jogos de luz e de sombra desenhavam uma paisagem que parecia gelada, e a sombra tinha já envolvido as colinas reservadas aos esquiadores. As agulhas de gelo que caíam dos beirais gotejavam, mas Shimamura, baixando os olhos, verificou que havia gotas geladas sobre os crisântemos mirrados pelo frio, precisamente debaixo da sua janela.

A noite não trouxe neve. Uma tempestade de granizo transformou-se numa chuva longa e fria.

Na véspera de partir, Shimamura tinha mandado chamar Komako para passar a noite. Era uma noite clara, de luar, com um frio penetrante. Mas pelas onze horas Komako insistiu em dar um passeio e puxou-o energicamente para fora do kotatsu.

O caminho era duro sob o gelo, e a aldeia dormia sob o céu frio. Komako puxara o quimono e fizera uma prega que apertou no obi. A Lua era como uma lâmina cravada num bloco de gelo e tinha o brilho azul do aço.

- Vamos até à estação - propôs Komako, com um entusiasmo que não admitia réplica.

- Mas isso é uma loucura! Andar cerca de dois quilómetros só por andar!

- Como vai partir dentro em pouco para Tóquio, julgo que podemos muito bem ir ver a estação - replicou obstinadamente.

Puseram-se a caminho, e Shimamura sentiu que o frio o atravessava da cabeça aos pés.

Mal regressou ao quarto, Komako, desesperada, deixou-se cair para cima da cadeira, sem uma palavra, com a cabeça inclinada profundamente e os braços metidos no kotatsu. Insolitamente, recusou-se a acompanhar Shimamura aos banhos.

Quando este voltou, deu com ela triste e abatida, sentada ao lado da cama, que tinha sido colocada de modo que os pés do colchão ficassem no interior do kotatsu. Não pronunciou uma palavra.

- Que aconteceu?

- Vou voltar para casa.

- Mas isso é um capricho ridículo!

- Deite-se. Ficarei um momento sentada aqui.

- Mas porque queres voltar para casa?

- Já não quero voltar. Ficarei assim até de manhã. - Vamos, não sejas tão complicada!

- Não sou complicada. Não sou de modo algum complicada, senhor.

- Então?...

- Sinto-me indisposta. Shimamura deu uma gargalhada.

- É esse o drama? Então podes dormir descansada!

- Não, não quero.

- Mas que ideia a de saíres para ir passear até à outra ponta da

aldeia!

- Bem, vou-me embora. Volto para casa.

- Que eu saiba, não há nenhuma razão para te ires embora!

- Oh! Não posso dizer que as coisas sejam fáceis para mim! Vai voltar para Tóquio, não é? Isso vai ser difícil para mim! - deixou ela escapar, com a cabeça profundamente inclinada sobre o kotatsu.

«Seria o desgosto de se sentir arrastada, demasiado ligada a ele, que não passava de um simples turista? Ou, pelo contrário, seria pior reprimir a confissão nesse instante tão delicado? Fosse como fosse, continuava ali!», pensou Shimamura, que permanecia também silencioso.

- Por favor, volte para Tóquio! ;

- Para te ser franco, tenho ideia de partir amanhã.

- Como? Oh, não...! Não vai partir, não há razão para se ir embora, pois não?

Komako tivera um sobressalto, como alguém que acorda bruscamente, com um espanto um pouco turvo no olhar.

- Ficar aqui por mais tempo pouco adianta. Que posso fazer por ti?

Komako lançou sobre ele um longo olhar e explodiu com brus-quidão:

- Não deve dizer uma coisa dessas! Não! Que razão tem para me

dizer isso?

Erguera-se nervosamente e lançara-lhe os braços à volta do pescoço.

- Não está certo dizer uma coisa dessas! Vamos, levante-se! Por favor, levante-se!

Palavras incoerentes agitavam-se nos seus lábios, enquanto se deitava ao lado dele, esquecendo completamente, na sua emoção, o inconveniente natural a que tinha feito alusão momentos antes. Um pouco depois abriu os olhos, oferecendo-lhe um olhar húmido e ardente.

Prendendo maquinalmente os cabelos que tinha espalhado por cima da cama disse:

- Realmente, é preciso que você se vá embora amanhã. Disse-o com uma voz calma e num tom sereno.

Shimamura, que tinha de tomar o comboio das três horas, estava a mudar de roupa, no dia seguinte, ao princípio da tarde, quando o hoteleiro chamou Komako à porta e lhe falou no corredor.

«... Vejamos!... Tudo isso deve andar à volta de umas onze horas.»

Era a voz de Komako. Compreendeu que se tratava dos seus honorários de gueixa, que na realidade deviam somar dezasseis ou dezassete horas, o que o hoteleiro, provavelmente, achava excessivo. Em todo o caso, o assunto ficou arrumado, estabelecendo-se uma única tarifa horária: «Partida às cinco horas», ou «partida à meia-noite», sem os extras habituais pagos por uma noite inteira.

Levando uma romeira e um véu branco que lhe cobria o rosto, Komako acompanhou-o à estação.

Depois de comprar os presentes que queria levar para Tóquio, tinha ainda vinte minutos à sua frente. Passeando com Komako na pequena praça em frente da estação, Shimamura começou a pensar, enquanto o contemplava, na exiguidade desse pequeno valezinho, apertado entre a massa dos montes cobertos de neve. Parecia uma bolsa de sombra, um buraco solitário no seio das solidões montanhosas! E os cabelos de Komako, de um negro tão intenso, produziam-lhe um efeito comovente e um pouco triste.

O Sol lançava um brilho pálido, ao fundo, sobre uma das encostas da cadeia, do lado onde se perdiam, ao longe, as águas da torrente.

- A neve não se derreteu muito desde que cheguei - verificou Shimamura, com o olhar perdido nas montanhas.

- Sim! Basta nevar dois dias apenas para termos logo dois metros de altura! Depois voltará a nevar e em breve aqueles candeeiros que vê ali ficarão submersos. Nessa altura virei passear para aqui, pensando em si, e encontrar-me-ão pendurada num dos fios!

- Realmente, terás tanta neve como isso?

- Diz-se que na escola da aldeia vizinha, que fica à beira do caminho-de-ferro, os garotos saem todos nus dos dormitórios e mergulham na neve, invisíveis, como se nadassem debaixo de água. Repare, está ali um limpa-neve!

- Gostava de ver a neve assim tão profunda! - confessou Shimamura -, mas creio que já não deve haver nenhum quarto no hotel. Além disso a linha corre o risco de ficar cortada pelas avalanchas.

- Parece não haver para si problemas de dinheiro? Pôde sempre gastar assim tanto? - perguntou ela, detendo-se para lhe fixar o rosto. - Porque não deixa crescer o bigode?

- Já pensei nisso - disse Shimamura, passando a mão pela sombra azulada da barba, feita de fresco e cuja mancha, ao longo do lábio, acentuava a doçura das faces.

«Será isto - pensou para consigo - o que Komako acha sedutor?» E gracejou:

- Tu, quando tiras a camada de pó do rosto também parece que acabaste de fazer a barba!

- Oiça!... São os corvos(10)! Como são lúgubres!... Onde estarão eles? Brrr... que frio!

Encolheu os ombros, arrepiada, com o olhar perscrutando o céu.

- Não seria melhor irmo-nos aquecer à lareira da sala de espera? - propôs Shimamura, ao mesmo tempo que distinguiam uma silhueta metida num grosso hakama e que vinha a correr pela avenida que ligava a estrada transversal à estação.

- Komako! Yukio... Komako! - gritava Yoko, ofegante, agarrando-se a ela como uma criança aterrada à sua mãe. - Komako! Depressa, depressa! Venha já para casa! Yukio está a morrer! Depressa!

Komako fechara os olhos sob o choque daquele corpo que se lançara sobre ela, pendurado aos seus ombros e que devia talvez tê-la magoado. O seu rosto estava lívido. No entanto, com uma frieza surpreendente, Komako sacudiu a cabeça, dizendo:

- Não posso voltar para casa. É impossível! Estou com um cliente. Shimamura ficou estupefacto.

- Mas não é indispensável ficares aqui até o comboio partir - protestou.

- Mas vai deixar-me... E quem sabe quando voltarei a vê-lo! - Voltarei, voltarei decerto. Prometo.

Yoko, sem nada compreender deste diálogo, interrompeu, explicando febrilmente:

- Telefonei há pouco para o hotel. Disseram-me que estava na estação. E corri para aqui, sem parar. Yukio exige a sua presença.

Chama por si - insistiu ela, agarrando-se a Komako, que a repeliu com um gesto impaciente.

- Por favor, deixe-me em paz.

Mas foi ela, no entanto, que cambaleou, subitamente acometida por violentos soluços que conseguiu dominar cerrando os lábios. Os seus olhos estavam cheios de lágrimas; e as faces ficaram arrepiadas, duras como mármore.

Yoko, imóvel e tensa, fixava Komako com intensidade, e o seu rosto, parado como uma máscara, revestia-se de uma solenidade tão plena que era impossível dizer se se tratava de estupefacção, angústia ou cólera. Um rosto que Shimamura achou de uma pureza, de uma simplicidade, extraordinária.

Sem a mínima mudança de expressão, Yoko rodou sobre si própria e agarrou-se avidamente a Shimamura:

- Peço-lhe que me desculpe, mas, por favor, deixe-a voltar para casa! - suplicou-lhe ela, numa voz sufocada e quase pungente.

- Deixe-a voltar para casa!

- Com certeza! - gritou Shimamura. - Komako! É preciso voltar para casa, já. Que idiotice!

- Que tem a ver com isto? - lançou Komako, desviando violentamente Yoko, que continuava agarrada ao braço de Shimamura.

Havia um táxi na estação, diante do cais, e Shimamura procurou chamar a atenção do condutor, fazendo-lhe sinal, mas Yoko apertava-lhe o braço com tanta força que ele sentia os dedos entorpecidos.

- O táxi vai levá-la - disse ele a Yoko. - Vá à frente, quer? Começam já a olhar para nós.

Yoko tinha aquiescido com um movimento de cabeça, sem uma palavra, e afastava-se com uma rapidez inacreditável, deixando Shimamura atónito, perguntando a si próprio porque é que ela era sempre assim tão séria, tão razoável, ao mesmo tempo que se lastimava por pensar deste modo em tais circunstâncias.

Parecia-lhe que continuava a ouvir essa voz de uma beleza perturbadora até à tristeza e que lhe soava como um eco vivo das montanhas distantes, cobertas de neve.

- Que está a fazer? Onde vai? - perguntou Komako, retendo Shimamura, que mandara parar o táxi e se havia aproximado.

- Não, não! Não quero! É inútil! Não irei para casa! Revoltado, Shimamura sentiu de repente como que uma aversão

física por ela.

- Desconheço o que pode haver entre os três - afirmou -, no entanto esse homem pode estar a morrer neste momento. Não veio ela chamar-te porque ele exigia a tua presença? Porque ele te queria ver? Portanto sê amável e vai. Pensa que se não fores poderás sentir remorsos para o resto da tua vida! Esse homem pode morrer enquanto estás aqui... Vai, não sejas teimosa. Esquece e perdoa.

- Esquece e perdoa?! Porque diz uma coisa dessas? Nada compreendeu de toda esta história. Absolutamente nada!

- É possível. Mas quando tu partiste para Tóquio, foi ele a única pessoa a acompanhar-te à estação. Não foi o que me disseste? E achas que fazes bem em recusares um último adeus àquele cujo nome está escrito na página inicial do primeiro caderno do teu diário, como ontem me disseste? Para ele, agora, trata-se das últimas linhas do seu diário!

- Sim, mas não quero vê-lo. Não quero ver um homem morrer.

Seria que o seu coração estava seco e frio, ou tratava-se de um excesso de paixão? Entre estas duas explicações, Shimamura não sabia qual escolher.

- De hoje em diante não poderei mais continuar com o meu diário. Só me resta queimá-lo - disse ela num murmúrio, como se falasse para si própria. Em seguida, com o rosto afogueado disse: - É um homem de bom coração, não é? Uma pessoa profundamente boa e simples? Se é realmente assim, não me importarei de lhe entregar o meu diário. Não, não sorria... Estou certa de que tem um coração leal, generoso e sem reservas.

Shimamura sentiu-se comover, mas evitou definir a emoção a que cedia. Não duvidou um instante da sua rectidão exemplar, da sua inalterável riqueza de coração: ele próprio, a seus olhos, surgia como a honra personificada e não podia ser senão o homem mais honesto do mundo. Tinha esquecido o esforço que fizera ao tentar persuadir Komako. Que ela voltasse ou não para casa, pouco lhe importava. Komako, por seu lado, nada mais disse.

Um empregado do hotel veio avisá-los de que podiam entrar no

cais.

Nos seus tristes e sombrios trajes de Inverno, havia quatro ou

cinco aldeãos à espera do comboio.

- Não quero acompanhá-lo até ao cais. Adeus!

E Komako ficou ali, olhando pelo vidro da janela fechada da sala de espera. Vista através do vidro do compartimento, tinha algo de um fruto extraordinariamente exótico, exposto de modo inexplicável na montra ordinária dalguma miserável loja da região. E quando o comboio se pôs em movimento, no espaço de um breve instante, um reflexo veio cair sobre a janela da sala de espera: o rosto de Komako surgiu então como um clarão, para logo desaparecer. E o vermelho das suas faces, já irreal, tinha tido o mesmo brilho daquela manhã em que o seu rosto sobressaía no meio da neve, deslumbrante, reflectido no espelho do seu quarto. Para Shimamura, era de novo a cor que anunciava um adeus ao mundo real.

O comboio ergueu-se sobre o flanco norte da cadeia e mergulhou num longo túnel. E quando saiu dele dir-se-ia que a luz do Sol, invernosa, tinha já sido engolida pelo ventre tenebroso da terra. As próprias carruagens, velhas e ferrugentas, pareciam ter deixado no túnel a sua libré brilhante, feita de geada e de neve. Desceu então por um vale, onde as sombras mal tingidas do crepúsculo enchiam já os precipícios, deixando entrever os altos cumes, uns em cima dos outros. Nesta vertente não havia ainda vestígios de neve.

A linha corria ao longo de um rio, e em breve atingiu a planície. Perfilando a sua estranha arquitectura de torres, de flechas e de ameias, sobre a linha dos cumes, a montanha expunha graciosamente as belas colinas, encrespando-se até aos últimos contrafortes, onde a Lua apresentava o seu rosto de fim de dia. Era um ponto de atracção, o único, e nada mais em toda aquela aflitiva monotonia da planície deserta. E sobre o céu harmoniosamente dourado veio sobressair distintamente, inteira, a silhueta grandiosa da montanha, envolvida numa púrpura profunda. A Lua, que havia já perdido toda a insipidez do seu brilho diurno, continuava no entanto pálida, e nada tinha ainda desse esplendor palpitante que lhe dá a transparência das altas noites de Inverno. Todo o céu estava imóvel; nem sequer um voo de ave. Nem da direita nem da esquerda, nada parecia quebrar a doce linha do horizonte das montanhas longínquas, até às últimas e minúsculas ondulações que vinham estirar-se suavemente até junto do rio, perto do qual o olhar se chocava com surpresa no quadrado branco de um edifício: decerto uma central eléctrica. Era o último volume que lhe trazia tudo o que ainda restava de dia na paisagem baça, recortada tão melancolicamente no caixilho da janela daquele comboio de Inverno. Pouco a pouco, o aquecimento embaciou os vidros da janela, à medida que se distinguia lá fora a paisagem da planície correndo; e o jogo do espelho recomeçou, como tudo eternamente recomeça, reflectindo desta vez silhuetas vagas de passageiros na sua semitransparência. O comboio, com as suas três ou quatro carruagens usadas e de outras eras, em nada se parecia com os rápidos das grandes linhas centrais: ia-se nele como num comboio de um outro país, completamente estranho. A sua iluminação era amarela e baça.

Entregue completamente aos devaneios da sua imaginação nebulosa, Shimamura via-se a viajar no irreal, levado pelo grande Vazio eterno, fora do tempo e do espaço, por algum veículo sobrenatural. Por cima do ritmo monotonamente batido pelo ruído das rodas, pouco a pouco começou a ouvir a voz daquela que acabara de deixar. Soltas e bruscas, as suas palavras significavam pelo menos que ela estava bem viva, intensa e real na sua deslumbrante vitalidade; e, porque sofria ao ouvi-la, Shimamura soube que a não tinha esquecido. Mas para o homem que se afastava agora dela, para o Shimamura actual, essa voz esfumava-se já na distância do afastamento, incapaz de suscitar nele mais que um acréscimo da tristeza inerente às viagens.

Quem sabe se Yukio não teria já neste momento-dado o último suspiro? E quem sabe se Komako, que tinha as suas razões para não querer voltar para casa, não o teria feito ainda a tempo?

Na sua carruagem, os passageiros eram tão escassos que Shimamura se sentiu pouco à vontade. A seu lado via apenas um homem que aparentava ter 50 anos, em frente do qual, inclinada para nada perder do que ele dizia, respondendo-lhe com um ardor jovial, estava uma jovem camponesa. A mulher trazia um xaile negro apertado nos ombros rijos e cheios; as suas faces tinham uma carnação de um vermelho magnificamente selvagem. «Um casal que partia para uma longa viagem» - pensou Shimamura.

Mas quando o comboio parou - podiam ver-se da estação as altas chaminés das fábricas de fiação -, o homem levantou-se precipitadamente e tirou da rede o cesto de vime, que lançou para o cais, através da porta da carruagem.

- Até mais ver! - exclamou ele, saindo apressado. - Talvez nos encontremos um dia destes!

Shimamura quase chorou. O incidente tinha-o apanhado desprevenido, dilacerando-o, ao lançá-lo para o ponto mais sensível da sua consciência: acabava de dizer adeus a Komako e encontrava-se no comboio que o levava a casa.

Um simples encontro de acaso, no comboio. Era a eventualidade em que não havia pensado um só instante. O homem podia ser um caixeiro-viajante.

Na véspera de deixar Tóquio para uma nova estada nas montanhas, nos primeiros dias de Outono, Shimamura tinha ouvido a mulher recomendar-lhe que não deixasse o fato pendurado na parede ou nos porta-quimonos: «É nesta época que as borboletas nocturnas põem os ovos» - dissera-lhe.

Com efeito, havia no hotel borboletas nocturnas; pousadas na lanterna que decorava o forro do beiral, contou seis ou sete, enormes e dum amarelo cor de milho; na sala de entrada viu uma mais pequena, mas com um abdómen tão cheio e tão pesado que as asas pareciam ridículas. Ainda não tinham retirado das janelas o pano mosquiteiro do Verão. Ao aproximar-se, Shimamura observou ainda uma borboleta sobre um dos caixilhos, imóvel, como se tivesse sido apanhada no visco. As antenas erguidas pareciam finas lãs, tinham a cor da casca do cedro, e as asas, quase diáfanas, dum verde muito pálido, eram longas como dedos de mulher. A cortina de montanhas, como pano de fundo, ostentava já os ricos tons do Outono, sob o sol-poente, os ruivos e os ferrugens, perante os quais, para Shimamura, essa única mancha de um verde tímido tomava paradoxalmente o próprio tom da morte. O verde ganhou um pouco de intensidade quando as asas duplas se uniram de cada lado do corpo, vibrando no vento de Outono, como finas folhas de papel.

Shimamura, que não sabia se o insecto estava morto, arranhou com o dedo a fina rede de tela, mas o insecto não se moveu. Quando bateu na rede, com uma pequena pancada seca, a borboleta caiu como uma folha morta, numa queda lenta e leve, esvoaçando e subindo antes de tocar no chão.

Em frente, diante das filas de cedros, miríades de libélulas dançavam no vento, levadas como penachos de dente-de-leão.

e as águas ao brotarem da torrente pareciam surgir das ramagens mais altas dos cedros.

Quanto ao tapete de flores prateadas que o Outono tinha colocado sobre as vertentes da montanha, jamais ele poderia alguma vez cansar o olhar ao vê-lo.

Quando voltou do banho notou à entrada uma dessas russas brancas vendedeiras ambulantes. «Estas mulheres, até aqui, em plena montanha, as encontramos!» - pensou, admirado, ao aproximar-se.

Uma mulher de quarenta anos, sem dúvida; um rosto enrugado e coberto de pó, mas a pele fina, de um branco acetinado e puro, no pescoço descoberto, nos braços e nas mãos.

- Donde vem? - perguntou-lhe Shimamura.

- Donde venho? Donde venho? - repetiu ela com embaraço, não sabendo aparentemente o que responder.

E começou a remexer na mercadoria: os mais vulgares artigos japoneses, cosméticos, travessas para o cabelo e alfinetes de carrapito sem valor.

O seu vestido, que mais parecia um lençol sujo que trazia enrolado ao corpo, em nada fazia lembrar um trajo ocidental; dir-se-ia, pelo contrário, que havia adquirido qualquer coisa de japonês. Nem sequer trazia calçado estrangeiro.

Aproximando-se de Shimamura para observar a partida da russa, a mulher do hoteleiro voltou para dentro com ele. Em frente da lareira, de costas, uma mulher fazia as suas despedidas e partia levando na mão a cauda do seu longo e negro quimono de cerimónia. Shimamura tinha-a reconhecido: era uma gueixa que se lembrava de ter visto na companhia de Komako numa fotografia publicitária, uma e outra com esquis e trazendo por cima do quimono de noite o grosso hakama da montanha. Não parecia já muito jovem, e as suas formas, dissimuladas, davam-lhe um ar de certa compostura e simpatia.

O hoteleiro, enquanto aquecia ao calor da braseira os grandes pastéis de massa de forma oblonga, voltou-se para Shimamura:

- Quer comer um? Foi para festejar o termo do seu contrato que a gueixa que acabou de sair os trouxe.

- Então ela vai abandonar a profissão?

- Sim.

- Deve ser uma mulher elegante, não?

- Toda a gente gostava dela. Hoje é a sua despedida.

Shimamura deu grandes dentadas no bolo depois de o haver soprado. A côdea, dura e acidulada, estalou-lhe na boca, deixando-lhe um cheiro a mofo.

Da janela via-se brilhar, à luz do Poente, o belo vermelho dos dióspiros, já maduros; pareciam o clarão de um incêndio que vinha reflectir-se no bambu do jizaikaji (11) pendurado por cima da lareira.

- Mas que grandes molhos elas trazem! - exclamou Shimamura, vendo descer pelo caminho abrupto algumas mulheres velhas que traziam às costas feixes duas vezes maiores do que elas e dos quais pendiam pesadas pontas de plumas rijas.

- São as canas da região - disse o hoteleiro -, a kaya.

- A kaya verdadeira?

- Sim. Durante a exposição das termas, a direcção dos caminhos-de-ferro tinha feito a reconstituição de um albergue rústico, e a respectiva casa de chá foi forrada com a kaya das nossas montanhas. Houve alguém de Tóquio que a comprou tal como estava.

- kkaya verdadeira? - repetiu, atónito, Shimamura, a meia-voz. - É então a kaya que dá este tom prateado às encostas das montanhas? Ia jurar que eram flores...

Na verdade, a primeira coisa que o tinha impressionado quando desceu do comboio fora esse esplêndido manto branco de prata, brilhando ao sol no alto das montanhas, e tão intensamente que parecia que as ondas da luz outonal brotavam da própria terra. Uma alegria radiante nascia daquela magnificência, e alguma coisa nele havia secretamente desabrochado: uma voz de boas-vindas dizia-lhe: «Eis-me aqui finalmente!»

E no entanto os longos caules enfeixados que via agora tão perto dele pareciam-lhe bem diferentes. Custava-lhe acreditar que se tratava dessas maravilhosas plantas que formavam na terra um mágico tapete. Estavam apertadas em molhos enormes, debaixo dos quais desapareciam as carregadoras, e as suas extremidades arrastavam-se pelas pedras do áspero caminho varrendo-o, indiferentemente, com o longo penacho das suas rijas plumas.

Quando voltou para os seus aposentos morria o dia. Mas na sala de entrada havia ainda uma vaga luz que o deixava ver, sobre a laca negra de uma abóbada, a borboleta de abdómen inchado a pôr a sua enfiada de ovos. Ouviu os insectos indo de encontro à lanterna, debaixo do alpendre. O pôr do Sol não tinha conseguido interromper o permanente canto dos mil insectos de Outono.

Komako chegou ligeiramente atrasada.

Fez uma pausa à entrada, com o olhar fixo em Shimamura:

- Já não tem nada que fazer aqui! Porque voltou a um sítio destes?

- Para te ver de novo.

- Não é isso o que está a pensar. Os homens de Tóquio estão sempre a mentir; é por isso que os acho insuportáveis. - Mas depois de se acomodar acrescentou com voz mais terna:

- Nunca mais acompanharei ninguém à estação. Nem posso dizer o mal que me fez vê-lo partir!

- Desta vez não me irei embora sem te avisar.

- Não é isso. O que eu queria dizer é que não irei consigo à estação.

- E ele, que lhe aconteceu?

- Morreu, evidentemente.

- Enquanto estavas comigo?

- Isso não está em questão. O que eu não sabia era que uma partida pudesse destroçar-me a tal ponto.

Silencioso, Shimamura abanou a cabeça.

- E no dia 14 de Fevereiro onde estava? Esperei por si; mas sei agora a importância que podemos dar às suas promessas...

O 14 de Fevereiro é o dia da «caça às aves», uma festa de crianças realizada especialmente para exprimir a alma desta Terra de Neve. Dez dias antes da festa, as crianças da aldeia começam a bater na neve com as suas galochas de palha até torná-la dura e densa, o bastante para a cortar em cubos de dois côvados, de que se servirão para construir um Palácio de Neve com mais de dez pés de altura por dezoito de largura. Como a grande festa do Ano Novo se celebra no vale, nos primeiros dias de Fevereiro, as portas exteriores das casas estão ainda enfeitadas com tranças de palha, e no dia 14 as crianças fazem com elas uma grande fogueira em frente do seu Palácio de Neve. Gritando e empurrando-se, formam uma roda em cima do telhado, cantando a canção da caça às aves, ao clarão vermelho da fogueira; e, em seguida, à luz das velas, acabam a noite dentro do seu Palácio. Tornam a fazer a roda em cima do telhado e a cantar quando desponta o dia, e é assim que acaba, na manhã de 15 de Fevereiro, a festa da caça às aves.

Como a festa coincide com o momento em que há mais neve, Shimamura tinha prometido a Komako voltar nessa data para assistir.

- Em Fevereiro fui de férias a minha casa. Voltei propositadamente aqui, convencida de que se encontrava cá. Se tivesse sabido, ficaria pelo menos a tratar dela!

- Mas há alguém doente?

- A professora de Música encontrava-se na costa, com uma pneumonia. Em minha casa recebi um telegrama seu, que muito me impressionou, e parti para cuidar dela.

- E restabeleceu-se.

- Não.

- Sinto-me desolado! - exclamou Shimamura, sem precisar se exprimia com isso as suas condolências ou o seu desgosto por ter faltado à palavra.

Komako fez uma ligeira inclinação de cabeça ao ouvir estas palavras. Servindo-se do seu lenço, limpou a mesa:

- Isto está infestado de insectos - observou.

Com efeito, o seu gesto fez cair no chão uma nuvem de minúsculos bichinhos alados. À volta da lâmpada voltejavam inúmeras borboletas nocturnas. O resguardo metálico da janela estava literalmente atapetado de borboletas de todas as espécies, que tinham o ar de nadar sobre os pálidos raios da Lua.

- O meu estômago! - queixou-se ela, colocando as mãos debaixo do obi e deixando cair a cabeça sobre o joelho de Shimamura. - Dói-me o estômago.

Insectos ainda mais frágeis e mais minúsculos que os mais pequenos mosquitos vinham prender-se na maquilhagem do seu pescoço. Shimamura viu morrer alguns debaixo dos seus olhos.

Notou então que ela tinha a linha dos ombros mais arredondada, a nuca mais cheia, que no ano anterior. Pensou que devia estar a fazer 21 anos. Sentiu no joelho um calor um pouco húmido.

- Vá dar uma vista de olhos ao «Quarto das Camélias», Komako, disseram-me na recepção do hotel os empregados, com ar de estarem muito satisfeitos consigo próprios. Não gosto muito destas atitudes. Tinha ido despedir-me de Kikuyú e tencionava fazer uma pequena sesta quando vieram dizer-me que tinham telefonado do hotel a chamar por mim. Sentia-me com pouco entusiasmo para vir aqui: ontem à noite foi a festa de despedida de Kikuyú e bebi de mais. Na recepção puseram-se a rir e não quiseram dizer-me de quem se tratava. Então subo e venho dar consigo! Já lá vai um ano... Pertencerá a esse género de homens que se vê apenas uma vez por ano?

- Deram-me um dos bolos que ela tinha trazido.

- A si?

Komako erguera-se, mostrando uma das faces vermelha no sítio

em que tinha repousado sobre o joelho de Shimamura. Vista assim tinha um ar quase infantil.

Kikuyú, a antiga gueixa, tinha-lhe feito um relato no comboio, contou-lhe ela, até à segunda estação.

- Que tristeza! Dávamo-nos tão bem antes, e entre nós tudo se resolvia amigavelmente. Mas agora as coisas mudaram de tal forma que todas nos tornamos cada vez mais egoístas. Chegam as novas, e já ninguém se entende. Kikuyú vai fazer-me muita falta. Nada se fazia aqui sem ela. E, de todas nós, era ela quem ganhava mais.

O seu patrão tinha até muita estima por ela. Mas o contrato acabou, e Kikuyú teve de voltar para a sua terra.

- E ela voltou para se casar, ou vai abrir algum albergue ou restaurante por conta própria? - perguntou Shimamura.

- Toda a sua história é bem triste! Para começar, falhou no casamento, e foi então que veio para aqui - pôs-se a contar Komako, detendo-se no entanto para ajuizar até que ponto podia ir, sem indiscrição, nas suas confidências. Por momentos, os seus olhos passearam pelo luar, sobre os campos em socalco no flanco da montanha. - Lembra-se da casa nova que se encontra a meia encosta, no caminho? - perguntou.

- Sim, um restaurante, não é? Se não me engano, chamado Kiku-mura.

- Sim, é esse precisamente. Destinava-se a Kikuyú, que, no último momento, mudou de opinião. Falou-se muito no caso nessa altura. Tinha então um protector que mandara construir o restaurante para ela; mas quando tudo estava pronto e só faltava instalar-se lá, Kikuyú acabou com tudo! Tinha começado a amar alguém e queria casar-se; mas o homem partiu de repente e deixou-a. Será sempre assim que as coisas acontecem quando perdemos a cabeça por alguém?... Em suma, Kikuyú já não podia voltar para o seu primeiro protector e ficar com o restaurante que tinha tão categoricamente recusado. Depois de tudo o que acabava de lhe acontecer, sentia vergonha de continuar aqui. Não lhe restava mais nada senão ir-se embora, ir para outro sítio, recomeçar, partir outra vez do zero. Pobre Kikuyú! Faz-me tanta pena quando penso nisso!... E depois havia outras pessoas na sua vida, ainda que eu não saiba as coisas em pormenor...

- Homens? Mas quantos poderia haver? Cinco, ou ainda mais?

- Isso pergunto eu - confessou Komako, com um pequeno riso irritado, desviando-se um pouco. - Kikuyú tinha as suas fraquezas... Era a própria fraqueza personificada.

- Uma natureza assim, quem sabe, talvez ela não pudesse nada contra isso...

- Não digo que não, mas não podemos perder a cabeça por cada homem a quem agradamos - disse Komako, pensativa, com os olhos fixos no soalho, penteando distraidamente uma mecha de cabelo, antes de colocar o pente de adorno no alto do carrapito. - De qualquer modo, a sua partida não foi para mim uma coisa fácil!

- E que aconteceu ao restaurante?

- Dirige-o a mulher de quem o mandou construir.

- Muito bem, sim senhor: a mulher legítima substitui a amante na orientação do restaurante...

- Mas poderia ser de outra maneira?... Estava tudo pronto para a inauguração; foi necessário que a mulher viesse instalar-se ali com os filhos.

- E a casa que ela habitava?

- Ocupa-se dela a avó, segundo parece. O homem é um agricultor que gosta muito de se divertir. É um indivíduo muito interessante.

- Faço ideia. E já é velho?

- Pelo contrário. Pode no máximo ter trinta e um ou trinta e dois anos.

- Portanto tinha uma amante mais velha que a mulher...

- Oh, não!, tanto uma como outra têm vinte e seis anos.

- E a esposa, não quis mudar o nome do restaurante? Segundo penso, o Kiku da palavra Kikumura deve vir de Kikuyú...

- Sim, mas com a publicidade já feita, era demasiado tarde para isso.

Ao ver Shimamura levantar a gola do quimono, Komako foi fechar a janela.

- Kikuyú nada ignorava a seu respeito. Foi ela quem me anunciou hoje a sua presença aqui.

- Sim. Encontrei-a na recepção, quando veio fazer as suas despedidas.

- Ela disse-lhe alguma coisa? - Absolutamente nada.

- É capaz de adivinhar o que sinto? - disse Komako, abrindo a janela que tinha acabado de fechar pouco antes e debruçando-se como se fosse atirar-se dela abaixo.

Após um momento de silêncio, Shimamura observou que as estrelas da região não eram de forma alguma como as estrelas do céu de Tóquio:

- Dir-se-ia que quase flutuam à superfície do céu.

- Mas esta noite não; há demasiado luar - retorquiu Komako, acrescentando momentos depois: - Foi terrível a neve que caiu este Inverno!

- Sim, faço ideia, porque a certa altura o comboio não podia avançar.

- Acabou por se tornar insuportável. As estradas ficaram fechadas até Maio, um mês mais tarde do que o costume. Lembra-se daquela casa junto das pistas de esqui que estava transformada numa loja? Uma avalancha atingiu-a no primeiro andar. As pessoas que se encontravam no rés-do-chão a princípio julgaram que se tratava de uma invasão de ratos esfaimados que se haviam precipitado para a cozinha, de tal modo lhes parecia estranho o ruído que ouviam. Mas não havia ratos, e quando subiram ao primeiro andar verificaram que a neve tinha invadido tudo, levando à sua frente portas e janelas. Felizmente tratava-se de uma derrocada superficial, e não de uma grande avalancha -, mas a rádio falou muito no assunto, e os esquiadores ganharam medo. Daí em diante pouca gente esquiava. Eu decidi nunca mais fazer esqui e ofereci os meus antes do fim do ano. Pouco a pouco fui perdendo o medo e ainda voltei a esquiar umas duas ou três vezes. Acha que mudei muito?

- Que fizeste depois da morte da professora de Música?

- Que lhe podem interessar os problemas dos outros? Voltei aqui e esperei por si em Fevereiro.

- Uma vez que te encontravas junto à costa, porque não me escreveste uma carta?

- Oh! Não podia, não podia escrever-lhe o género de carta que a sua esposa pudesse ler. Sou incapaz de me dominar, assim como sou incapaz de me pôr a mentir, sob pretexto de que alguém possa ouvir-me.

Perante uma tal avalancha de palavras, Shimamura limitou-se a uma simples inclinação de cabeça. As palavras tinham brotado da boca dela como uma verdadeira torrente.

- Fazia melhor se apagasse a luz - disse ela por fim. - Não me parece indispensável que esteja rodeado por esta nuvem de insectos...

A Lua brilhava por trás dela, tão clara que orlava de sombras nítidas as suas orelhas, despejando luz pelo quarto dentro, vidrando as esteiras com uma água verde e friorenta.

- Não, é melhor eu voltar para casa.

- Pelo que vejo, não mudaste muito...

E Shimamura, erguendo a cabeça, encontrou-lhe uma certa estranheza. Perscrutou aquele rosto delicadamente aquilino.

- Dizem-me sempre que não mudei nada desde que cheguei aqui pela primeira vez. Isso não impede que nessa altura tivesse apenas dezasseis anos! E se a vida é sempre a mesma, não há dúvida que os anos vão passando.

A sua carnação ardente deixava adivinhar uma infância camponesa, mas sobre a pintura delicada de gueixa o luar fazia jogar reflexos nacarados.

- Disseram-lhe que eu tinha mudado de casa?

- Não! Então deixaste o celeiro dos bichos-da-seda? Depois da morte da professora de Música? Moras agora numa verdadeira casa de gueixas?

- Uma casa de gueixas? Sim, se o entender. A loja vende apenas tabaco e doces, e eu sou a única gueixa que eles têm. Mas desta vez tenho um contrato verdadeiro: se quero ler à noite, acendo uma vela, para que o patrão não pense que estou a gastar luz.

Shimamura rebentou de riso e pousou as mãos nos ombros de Komako.

- É que existe um contador... E não posso gastar muita electricidade(12).

- Estou a compreender!

- Mas são de uma extrema gentileza para comigo, sabe? Tão simpáticos que as vezes até me custa a acreditar que fui contratada por eles como gueixa. Se há uma criança que chora, logo a mãe a leva para fora de casa para que os gritos não me incomodem. É verdade que o meu quarto não é nada de extraordinário, no entanto não tenho razão de queixa quanto ao resto. Quando entro tarde encontro tudo preparado para mim; só o que me aborrece é verificar que a cama não está bem feita e que os lençóis não estão puxados como deve ser. Mas são pessoas tão simpáticas! Como é que eu podia fazer a cama sozinha?

- Palavra de honra! Se algum dia tiveres uma casa tua hás-de passar a vida a arrumá-la!

- Toda a gente diz isso. Moram lá quatro crianças ainda pequenas, que põem tudo em desordem. Passo a vida a arrumar as coisas no seu devido lugar, mesmo sabendo que, mal volto costas, tudo fica na mesma. Mas que quer? Não consigo modificar-me. Preciso que tudo esteja sempre limpo e em ordem à minha volta, tanto quanto possível. É como uma necessidade, está a compreender?

- Sim, compreendo.

- Mas que é que compreende, não me diz? - exclamou ela, de repente, de novo com aquele tom insistente e tenso na voz. - Tudo seria fácil se me compreendesse! Mas vejo bem que é incapaz disso! Isso é ainda mentira! Muito dinheiro e nenhum coração, é o que é! Não compreende nada e não pode saber nada... - Abrandou a voz para acrescentar: - Sinto-me bastante só. Mas sou uma idiota. Acho melhor que parta amanhã para Tóquio!

- É fácil dizer isso de mim! - retorquiu Shimamura. - Mas que ideia essa de quereres que te explique exactamente os meus sentimentos!

- Onde está o mal? - exclamou Komako num tom desolado. - É realmente triste que não seja capaz de o fazer.

Com os olhos fechados, Komako devia repetir para si: Conhecer-me-á ele? Tomar-me-á por aquilo que sou exactamente? E sem dúvida devia ter concluído pela afirmativa, porque disse em seguida:

- Volte ao menos uma vez por ano! Jure que voltará aqui todos os anos enquanto eu cá estiver! Por favor, jure!

E acrescentou que tinha feito um contrato por quatro anos.

- Nunca pensei tornar-me gueixa quando voltei para casa - confessou. - Até tinha dado os meus esquis antes de partir. Mas a única coisa que consegui, segundo julgo, foi ter deixado de fumar.

- Lembro-me de que dantes fumavas muito.

- Os cigarros que me dão vou-os metendo na manga do quimono, e à noite, quando volto para casa, tenho um fornecimento inteiro.

- Quatro anos ainda é bastante tempo! - lembrou, Shimamura.

- Passarão depressa.

Ela aproximara-se, e Shimamura, tomando-a nos braços, admirou-se:

- Como estás quente!

- Estou sempre assim.

- Julgo que quando começar a anoitecer a temperatura vai refrescar um pouco.

- Há cinco anos, quando aqui cheguei, perguntei a mim própria como conseguiria viver num sítio destes... sobretudo antes da abertura do caminho-de-ferro. E no entanto dois anos passaram já desde que veio aqui pela primeira vez.

Com efeito, Shimamura, no período de dois anos, tinha voltado por três vezes, encontrado em cada uma delas novas modificações na vida de Komako.

Lá fora, os kutusuwamushi (13) começaram com a sua ruidosa algazarra.(13) - Se ao menos eles fizessem menos barulho! - disse Komako, voltando-se para Shimamura.

As borboletas que se encontravam na rede da janela voaram ao primeiro sopro do vento norte.

Shimamura sabia muito bem: quando Komako tinha os olhos baixos, a espessura das suas pestanas levava a crer que ela os tinha semicerrados. Surpreendeu-se no entanto a olhá-los mais de perto, para melhor se certificar.

Komako exclamou então:

- Estou mais gorda desde que deixei de fumar. Shimamura já tinha reparado: tinha a cintura mais larga. Passava muito tempo sem se verem e no entanto Shimamura tinha reencontrado imediatamente, com a sua presença, intacto e com todos os pormenores, esse mundo íntimo e familiar que logo se dissipava tão misteriosamente, mal se afastava dela, mundo esse que nunca conseguia evocar.

Com as mãos em concha sobre os seios, Komako disse:

- Tenho um maior que o outro.

- Deve ser alguma mania dele: está sempre do mesmo lado! - gracejou Shimamura.

- Você é repugnante ao dizer coisas dessas! - exclamou Komako, enquanto Shimamura lhe ia dizendo que a achava muito bem e que continuava a ser a mesma.

- Para a próxima vez o que tens a fazer é dizer-lhe que não seja ciumento - replicou.

- Que não seja ciumento? Acha realmente que lhe deva dizer uma coisa dessas? - continuou Komako, inclinando docemente o rosto para o seio.

Apesar de o quarto ficar no primeiro andar, parecia que se encontravam dentro de um verdadeiro sapal, onde se podiam distinguir dois ou três virtuoses itinerantes, flautistas particularmente potentes e de largo fôlego, que se revezavam continuamente.

Komako entregou-se a confidências, calma e com voz suave, depois de voltar do banho. Entrou em pormenores tão íntimos como o do seu primeiro exame médico feito na região e para o qual - julgando que as coisas se passavam como na escola onde aprendera para gueixa - apresentara o peito nu para o auscultarem. O médico tinha desatado à gargalhada à sua frente, e ela ficara num mar de lágrimas. Coisas deste género, que Shimamura não deixava de completar com perguntas.

- Posso confiar com segurança nos períodos: são rigorosamente um mês menos dois dias, de cada vez.

- O que, penso eu, não te obriga a faltar a nenhuma festa!

- São coisas que sabe compreender, não é?

Komako banhava-se diariamente na nascente, famosa pelo efeito penetrante e prolongado do calor da água; andava pelo menos quatro quilómetros a pé, todos os dias, quer se dirigisse às antigas, quer às novas termas; além disso, raras eram as festas que se prolongavam até tarde, naquela região da montanha. Tudo isso lhe dava um corpo são e vigoroso, ainda que começasse a perder um pouco a linha que o trajo profissional dá frequentemente às gueixas: a estreiteza das ancas sempre apertadas, compensada por um ventre ligeiramente proeminente. Havia em tudo isso algo de comovente para Shimamura, impressionado com a ideia de que aquela mulher o pudesse obrigar a vir de tão longe para a ver.

- Às vezes pergunto a mim própria se poderei vir a ter filhos - desabafa ela na sua frente; ou então interrogava-se se ser fiel a um só homem não seria o mesmo que ser casada.

E Shimamura ouviu-a falar, pela primeira vez, desse «único homem» que tinha havido na sua vida. Conhecera-o quando tinha 16 anos, precisou ela, o que levou Shimamura a pensar imediatamente que compreendia agora a pouca resistência que ela lhe tinha oferecido: essa espécie de imprudência que tanto o intrigava a partir de então.

Nem física nem sentimentalmente se sentia atraída por esse homem, explicou, e provavelmente toda a história não teria outra origem além do facto de ela ter uma ligação junto à costa, pouco depois do falecimento do homem que lhe tinha pago a dívida.

- No entanto, se isso dura há mais de cinco anos, é porque se trata de algo mais que uma simples ligação - observou Shimamura. - Mais parece um contrato...

- Por duas vezes poderia tê-lo deixado. Primeiro quando vim trabalhar para aqui como gueixa; depois quando mudei de casa, após a morte da professora de Música. Mas nunca tive forças para tal. Falta-me firmeza.

Esse homem morava junto à costa e, segundo ela dizia, era-lhe impossível mantê-la perto dele. Por essa razão tinha-a mandado com a professora de Música, quando esta decidira voltar para as montanhas.

- Não sem generosidade - acrescentou Komako. - Sempre se comportou comigo da forma mais amável, e sinto-me verdadeiramente desolada por não poder amá-lo, por não poder pertencer-lhe de corpo e alma.

Acrescentou ainda que era muito mais velho que ela, e só muito raramente vinha vê-la.

- Tenho pensado muitas vezes que me seria mais fácil romper se tivesse de dar um mau passo. Sinceramente, tenho pensado nisso muitas vezes.

- Mas isso nunca acontecerá!

- Porque não sou capaz. Não tenho a vontade necessária e amo demasiado o meu corpo. Se quisesse podia reduzir para metade os quatro anos do contrato, mas para isso é preciso que eu decida, e não sou capaz. Pense no dinheiro que eu podia ganhar se quisesse! Mas para mim basta-me que o homem com quem contratei não perca dinheiro ao fim dos quatro anos. Reembolso do capital e lucros, impostos e despesas com a minha manutenção, calculei mais ou menos o montante mensal de tudo isso, e não faço qualquer esforço para ganhar mais. Se a festa não vale o incómodo, volto para casa; no hotel continuam a chamar-me, mas só me incomodam se se tratar de algum antigo cliente que me solicite especialmente. Se tivesse gostos mais extravagantes ser-me-ia fácil fazer muito mais, mas na realidade trabalho apenas quando me apetece. E isso basta-me, pois ao fim de um ano já consegui reembolsar metade da quantia. E tenho ainda as minhas despesas pessoais, que se elevam a trinta ienes ou mais por mês. Com cem ienes por mês tenho tudo o que preciso - acrescentou, explicando que mesmo no mês anterior, o mais fraco do ano, a menos solicitada das suas colegas tinha ganho apesar de tudo sessenta ienes, ao passo que ela, com noventa entrevistas, tinha ganho mais que todas as outras gueixas.

Como recebia um montante fixo por cada entrevista, o seu lucro pessoal aumentava proporcionalmente mais que o do seu patrão com o número de festas em que tomava parte. Podia, portanto, andar de uma festa para outra, conforme lhe apetecesse. Das gueixas daquelas termas, nunca nenhuma fora obrigada a renovar o seu contrato, por ficar devedora.

No dia seguinte, Komako levantara-se cedo.

- Fui acordada por um sonho que tive: andava a pôr em ordem a casa da mulher que ensina a arte das flores.

Tinha empurrado para junto da janela o seu toucador, e no espelho deste reflectia-se a folhagem vermelha da montanha, à clara luz do sol outonal.

Desta vez foi a voz de Yoko que veio chamar Komako à porta: aquela voz que apertava o coração de quem a ouvia; não, o quimono de dia trouxe-o a neta do homem que havia contratado Komako.

- Que aconteceu à outra rapariga? - perguntou Shimamura. Komako lançou-lhe um olhar penetrante.

- Passa o tempo no cemitério, lá em baixo, junto à pista de esqui. Repare: vê-se daqui um campo de trigo-mourisco, flores brancas; o cemitério é à esquerda.

Depois de Komako se ir embora, Shimamura foi dar um passeio pela aldeia.

Vestida com um grosso hakama novo, de flanela flamante, de um vermelho-alaranjado, uma miúda atirava uma bola contra uma parede branca, à sombra de um grande beirado. Shimamura registou, deliciado, este pequeno quadro que, a seus olhos, era a pura imagem do Outono.

As casas, construídas todas elas no estilo do antigo regime, deviam pertencer sem dúvida ao tempo em que os senhores feudais das províncias passavam por aquela estrada do Norte. Beirados que quase tocavam no chão, profundas galerias exteriores, janelas baixas e compridas cobertas de papel, um côvado ou mais de altura, cortinas de junco desenroladas debaixo dos beirais. Um pequeno muro de terra erguida estava coroado de altas e delicadas gramíneas de Outono, graciosamente curvadas sob o peso das flores, e ao longo dos caules viam-se as lanças das folhas, finas e ousadas como um jacto de água.

Shimamura viu Yoko em cima de uma esteira de palha, à beira da estrada, batendo feijões secos à luz do Sol. Saindo das vagens secas, os feijões saltavam em frente de Yoko, como gotas de luz.

Não devia tê-lo visto, pois tinha na cabeça um lenço que lhe ocultava o rosto. De joelhos, com o busto erguido e as pernas ligeiramente afastadas, vestindo o grosso hakama dos montanheses, acompanhava cantando o bater nas vagens espalhadas à sua frente: o canto da sua voz, tão clara e tão profunda, que penetrava Shimamura de tristeza, essa voz misteriosamente evocadora que perturbava, como se viesse não se sabe donde.

A menina e o crial, a borboleta e O gafanhoto, a cigarra e o ralo Encantam as montanhas.

Que voo imenso o que se ergue do cedro no vento da tarde!, como diz o poeta. Dos ramos dos cedros que Shimamura podia ver da janela, novos batalhões de libélulas se evadiam, rodopiando e dançando ao aproximar-se a noite num crescente frenesi que parecia tomado de febre e de velocidade.

Folheando o guia das montanhas da região, que tinha tido tempo de comprar em Tóquio enquanto esperava a partida do comboio, Shimamura ficou a saber que existia um caminho, junto a um dos cumes da cadeia, que serpenteava entre lagos e pântanos, num local magnífico, e que essa região húmida possuía uma flora alpestre de uma riqueza excepcional. No Verão, as libélulas vermelhas voltejavam aí em paz, majestosas, e vinham pousar-nos no chapéu, na manga ou nas hastes dos óculos, tão diferentes das libélulas atormentadas e furtivas que voam junto das cidades como o pode ser uma leve nuvem de um charco estagnado.

O turbilhão das que via à sua frente, pelo contrário, era como um ballet de loucas, uma dança de possessas: parecia que, numa espécie de raiva, queriam impedir as sombras de abraçar a pouco e pouco o bosque de cedros, lutando desesperadamente contra a noite que caía, na hora do poente.

O Sol tinha mergulhado por detrás das altas cristas, iluminando pela última vez a cascata de folhagem rubra que descia pelas vertentes da montanha.

«O homem é bem frágil, não concorda? - dizia-lhe nessa manhã Komako. - Parecia que estavam completamente em pasta: o crânio, os ossos, tudo ficara esmagado. Um urso podia cair de muito mais alto, que nada lhe aconteceria.»

Komako referia-se a um acidente recente ocorrido na montanha, indicando com o dedo o local, lá em cima, entre os rochedos, onde «eles tinham ido desta para melhor». E, neste momento, Shimamura pensava que, se o homem tivesse a pele dura e o pêlo espesso do urso, o seu universo seria bem diferente: não era graças ao tecido subtil da sua pele, através da sua delicadeza e doçura, que o homem amava? E esta ideia barroca fez-lhe nascer, enquanto perdia o olhar pela montanha do entardecer, o desejo bem sentimental da carícia de uma pele humana.

«A menina e o cricri, a borboleta...»

Ainda essa canção... Era o que ele ouvia, mal interpretada e acompanhada ao samisen pela gueixa, enquanto tomava, bastante cedo, a refeição da noite.

O guia que tinha ido consultar, apesar de fornecer apenas informações práticas como a duração das excursões, os itinerários a seguir, as marcações e os preços dos hotéis, etc, tinha pelo menos o mérito de, quanto ao resto, deixar trabalhar a imaginação... Ele próprio voltava das montanhas, na estação em que os primeiros rebentos furam as últimas crostas de neve, quando conheceu pela primeira vez Komako; e eis que hoje, na época das corridas de Outono, sentia de novo o apelo dessas alturas, escaladas, ainda há pouco. Ocioso, podia passar o tempo onde bem lhe apetecesse: mas a montanha tinha as suas preferências, porque o alpinismo lhe parecia ser o exemplo do próprio esforço gratuito, muito mais sedutor por isso. Sempre esse mesmo encanto da irrealidade.

Longe de Komako, pensava nela sem cessar. Sabendo-a tão próxima, o seu movimento de desejo, aspirando a uma pele, ao contacto de uma delicada e transparente pele humana, participava mais do sonho do que do desejo físico, tornava-se uma nostalgia próxima da que despertava nele a magia dos altos cumes. Dever-se-ia ao próprio excesso do seu sentimento de segurança? Ao facto de o seu corpo lhe ser agora demasiado íntimo, demasiado familiar? Komako tinha passado com ele a noite anterior, e agora, sozinho no seu quarto, só podia esperar por ela. Tinha a certeza de que viria, sem que fosse preciso chamá-la. Por momentos, Shimamura ficou a ouvir o vozear de um grupo de crianças da escola que andavam em excursão. Depois sentiu o sono a aproximar-se e foi deitar-se cedo.

Durante a noite ouviu o ruído de uma bátega repentina e breve, tão habitual na época.

De manhã, quando abriu os olhos, foi para ver Komako, impecável, sentada em frente da mesinha baixa, com uma revista à frente dos olhos. Trazia vestido um sóbrio quimono de dia.

- Já acordou? - perguntou ela numa voz ténue e voltando-se docemente para ele.

- Mas que fazes tu aí?

O olhar de Shimamura percorreu o quarto, com avidez. Teria

Komako chegado durante a noite sem ele notar? Tirou o relógio debaixo da almofada: seis horas e meia.

- Com que então madrugadora!

- Nem por isso. A criada já veio acender o fogo.

Com efeito, do fervedouro subiu um leve vapor semelhante à

bruma da manhã. Komako veio sentar-se à cabeceira da cama e, tal como a perfeita mulher do interior, disse-lhe gentilmente que já eram horas de se levantar.

Shimamura espreguiçou-se, bocejou e apertou na sua a mão pousada no seu joelho, acariciando os dedos delgados, endurecidos pelo samisen.

- Tenho sono! Ainda agora nasceu o Sol! - protestou Shimamura.

- Dormiu bem sozinho? : - Muito bem.

- Afinal não deixou crescer o bigode...

- Ah! É verdade! Agora me lembro de que tu gostavas que eu o deixasse crescer.

- Não tem importância. Já sabia que não o faria. Anda sempre barbeado de fresco, com uma pele tão doce e azulada.

- E tu tens também o ar de quem se acabou de barbear, quando tiras toda essa pintura da cara...

- Não acha que tem a cara um pouco mais cheia? Parecia mesmo um bebé a dormir, com essas bochechas, a pele branca e sem bigode.

- Muito pequerruchinho e gentil?

- Tanto, não direi...

- Ouve cá, estiveste a olhar para mim quando dormia? Não sei bem se deva admitir que olhem para mim enquanto durmo...

Komako baixou o rosto, esboçando um sorriso que se fundiu como uma chama a brilhar no braseiro. Os seus dedos cheios de energia fecharam-se sobre a mão de Shimamura.

- Estava escondida no armário grande! A criada não deu por nada.

- Mas quando? Estiveste assim muito tempo?

- Mesmo agora, essa é boa! A criada entrou para trazer o lume e saiu logo.

Komako, que ria à gargalhada com a brincadeira, corou de repente até às orelhas. Para disfarçar a sua confusão fingiu sentir-se afogueada e começou a abanar-se com a ponta da coberta.

- Vamos, levante-se!

- Está muito frio! - exclamou Shimamura, puxando os cobertores. - Já toda a gente se levantou no hotel?

- Como posso eu saber? Entrei pelas traseiras.

- Pelas traseiras?

- Sim. Subi directamente pelo bosque de cedros.

- Há algum caminho por aí?

- Não, mas é muito mais perto. Shimamura ergueu para ela um olhar intrigado.

- Ninguém sabe que estou aqui - explicou Komako. - Ouvi barulho na cozinha, mas a porta de entrada deve estar ainda fechada a esta hora.

- Tens o ar de uma ave madrugadora!

- Não consegui dormir.

- Ouviste como choveu?

- Choveu durante a noite? Agora compreendo porque estava a relva tão molhada: não era apenas do orvalho... Bem, vou voltar para casa. Durma tranquilo!

Shimamura ergueu-se da cama num salto sem largar a mão de Komako e arrastou-a até à janela, debruçando-se para descobrir por onde ela tinha vindo. A meia encosta, entre a relva crescida e as silvas, havia uma moita espessa de bambus anões cujos rebentos cresciam em todos os sentidos. Junto da janela, nos canteiros de um quintal, havia carreiras de nabiças, batatas-doces, alhos-bravos e batateiras. Um bocado de horta mal cuidado que, no entanto, brilhava com os primeiros raios do sol, oferecendo pela primeira vez a Shimamura os tons delicados dos diferentes verdes, que pareciam pintados de novo no fresco da manhã.

Ao passar pela galeria, quando se dirigia aos banhos, deu com o porteiro, que lançava comida aos peixes vermelhos do tanque.

- Nota-se que está mais frio - disse-lhe o homem - Estão a comer sem grande apetite.

Shimamura ficou por momentos a contemplar os bichos-da-seda, secos e encarquilhados, que ele estava a dar aos peixes e que, flutuando na água, pareciam sinais estranhos. ;

Tomou banho e voltou para o quarto, onde Komako o aguardava, fresca e nítida como uma imagem.

- Gostava tanto de ter um sítio assim calmo para costurar! Claro que o quarto já estava arrumado, e o generoso sol matinal

inundava-o a jorros até às extremidades das esteiras, já um pouco gastas.

- Gostas de costurar?

- Está a ofender-me com uma pergunta dessas! Na minha família era eu quem fazia os trabalhos mais pesados; e agora, ao olhar para trás, mais me convenço de que esses anos da minha juventude foram os piores para mim.

Falara numa voz neutra, um pouco como se falasse para si, e só se mostrou um pouco mais animada quando lhe disse:

- A criada viu-me. Ficou muito admirada e depois perguntou-me quando tinha chegado. Foi muito aborrecido! Mas quê? Não podia estar sempre a esconder-me no armário! Mas agora tenho de voltar para casa. Já perdi tempo de mais, com tanta coisa para fazer. Como não conseguia dormir, decidi lavar a cabeça, e quando o faço tenho de me levantar bem cedo se quiser ter os cabelos secos para poder ir ao cabeleireiro. Preciso de me despachar, senão nunca mais estou pronta para a entrevista que tenho ao almoço. Também me pediram que viesse cá, mas não podia: avisaram-me demasiado tarde e já estava comprometida. Também não poderei vir ter consigo esta noite: é sábado e tenho muito que fazer.

Mas depois de dizer isto não dava mostras de se querer ir embora. Acabaria por não lavar a cabeça.

Pegando no braço de Shimamura, arrastou-o para o jardim das traseiras e, ao passar pela galeria, agarrou nas sandálias e nos tabi pintados que tinha deixado à entrada.

A moita de bambus-anões pela qual Komako havia aberto um caminho para subir eriçava à frente deles uma barreira intransponível, e foram obrigados a descer pelo caminho do jardim, orientando-se pelo ruído que vinha da torrente. Acabaram por atingir a alta ribanceira, no bosque de castanheiros. Por entre as árvores ouviam-se vozes de crianças. No chão e meio escondidas entre a erva havia imensas castanhas. Com o salto, Komako fez estalar alguns ouriços, dos quais retirou castanhas verdadeiramente minúsculas.

Na frente deles, sobre a encosta abrupta da outra vertente, balançavam-se os penachos prateados da kaya, duma brancura resplandecente, na luz da manhã. Majestoso desabrochar de rara magnificência, tão frágil, no entanto, e tão efémero como a admirável pureza, a transparência singular daquele luminoso céu de Outono.

- Vamos até à outra margem? - propôs Shimamura. - Talvez pudéssemos visitar o túmulo do teu noivo.

Komako, rápida como uma chicotada, baixara-se e erguera-se, enquanto Shimamura recebia em pleno rosto um punhado de castanhas verdes. Este não teve tempo de evitar o golpe e ficou com a testa arranhada.

- Está a divertir-se comigo? - gritou ela imediatamente. E depois disse: - Por que razão pretende ir ao cemitério?

- Não percebo porque te zangaste assim... - respondeu Shimamura.

- Não foi um gesto de raiva; o que aconteceu é que eu não posso suportar as pessoas que fazem tudo o que lhes passa pela cabeça, sem pensarem nos outros um só momento. Para mim trata-se de algo muito sério.

- Mas quem diz o contrário? - acrescentou ainda timidamente Shimamura.

- Então porque lhe chamou meu noivo? Não lhe expliquei já muito bem que isso não é verdade? Mas, naturalmente, esqueceu-se de tudo!

Não, na verdade Shimamura nada tinha esquecido e pôde mesmo afirmar, sem mentir, que esse homem, Yukio, pesava um pouco nas suas recordações. Um facto era certo, Komako não suportava que se falasse de Yukio. Ela podia não ter sido noiva dele, mas a verdade é que se tornara gueixa para pagar parte das despesas com os medicamentos. Que o seu gesto tivesse sido perfeitamente «sério», era uma evidência que Shimamura não podia recusar.

Ele próprio não tinha qualquer movimento de irritação, mesmo quando ela lhe atirou à cara as castanhas; e Komako, após um longo olhar de espanto, sentiu que a sua resistência a abandonava. Enfiou o braço no de Shimamura, dizendo-lhe:

- Você é um homem de coração simples e recto. Uma pessoa por natureza boa... Mas há qualquer coisa que o entristece.

- Os garotos estão a espreitar-nos do alto das árvores - disse Shimamura.

- Que tem isso? Vocês, as pessoas de Tóquio, complicam sempre tudo. A vossa vida é só barulho e balbúrdia, uma agitação que destrói os vossos sentimentos.

- Tudo se desfaz em pedaços - respondeu pensativamente Shimamura.

- E o mesmo acontece com a vida, que não espera muito tempo - concluiu Komako. - Sempre vamos ao cemitério?

- Não sei...

- Vê, no fundo já não tem muita vontade de lá ir!

- Complicaste a coisa de tal modo...

- Eu não fui uma única vez ao cemitério. Nem uma vez sequer. Acontece às vezes pensar que faço mal, pelo menos agora que a professora de Música também lá está. Mas acho que é um pouco tarde para começar. Pareceria demasiada hipocrisia.

- Não serás tu muito mais complicada do que eu?

- Em quê, não me diz? Perante os vivos, não consigo nunca uma total e perfeita sinceridade, é verdade; mas agora que ele morreu quero pelo menos mostrar-me honesta e usar de franqueza para com ele.

Caminhando, tinham atravessado o bosque de cedros, onde o silêncio parecia correr em longas gotas frescas e suaves. Avançaram ao longo da via férrea, sob a pista de esqui, e dali chegaram depressa ao cemitério: algumas dezenas de velhos túmulos, gastos pela intempérie, dispersos sobre um outeiro deserto como uma pequena ilha nua no meio do mar das plantações de arroz, com uma única estátua meio destruída de Jizô, guardião da infância. Nem uma só flor.

Imprevisivelmente, por detrás da moita que tinha crescido aos pés de Jizô, surgiram a cabeça e os ombros de Yoko. Voltando para eles o rosto, como sempre imóvel e solene, qual máscara, Yoko lançou sobre eles o seu intenso olhar; Shimamura esboçou um breve e maquinal aceno de cabeça, mas conteve-se. Foi Komako quem falou.

- Não acha que é um pouco cedo de mais, Yoko? Eu pensava ir ao cabeleireiro e...

Uma tempestade negra lançou-se sobre eles, quase os deitando por terra e engolindo a frase de Komako. Era um comboio de mercadorias que surgira de repente e desfilava fazendo um ruído enorme, mesmo junto deles.

- Yoko! Yoko! - gritou um jovem que se recortava na porta aberta dum vagão negro, agitando o seu boné no ar.

- Saichirô! - exclamou a voz de Yoko, respondendo-lhe. - Saichirô!

Tinha tido o mesmo timbre comovente e amplo, essa voz que nos penetrava de tristeza, por ser de uma beleza tão pungente, como se chamasse, sem esperança, por algum passageiro fora do seu alcance, num navio ao largo, o mesmo timbre da noite, na neve, quando chamara do comboio o chefe da estação, na paragem antes do túnel.

Os vagões desfilaram, e a sua negra cortina, afastada bruscamente, deu lugar às cores claras e frescas do trigo-mourisco, do outro lado da linha: um campo de flores brancas de grandes hastes vermelhas que apenas exprimia calma e serenidade.

O aparecimento de Yoko viera lançar Shimamura e Komako numa tal surpresa que nem um nem outro tinham notado a aproximação do comboio de mercadorias, mas a sua passagem ruidosa permitira-lhes, por seu lado, recompor-se dessa primeira surpresa. E agora não era já o ruído decrescente do comboio: era a voz de Yoko, a sua vibração, como a do mais puro amor, que lhes ficava no ouvido.

- Era o meu irmão - disse ela, seguindo com o olhar o comboio que se afastava. - Penso se não seria melhor ir até à estação...

- Mas o comboio não pára! - respondeu-lhe Komako, rindo.

- Sim, é possível...

- Quero que saiba que não vim aqui para ver o túmulo de Yukio!

Yoko anuiu com um breve sinal de cabeça, pareceu hesitar por instantes e ajoelhou-se em frente do túmulo.

Komako, de pé, observava.

Shimamura tinha desviado o olhar, contemplando a estátua de Jizô, que oferecia um triplo rosto alongado e quatro braços em cima dos que tinha cruzados sobre o peito.

- Tenho de me ir embora, preciso de arranjar o cabelo - disse ainda Komako a Yoko, antes de se afastar por uma elevação de terra entre os arrozais.

Era um uso secular da região da neve pôr o arroz a secar suspendendo os feixes voltados para baixo das varas de bambu ou das de madeira, dispostas em espaldar entre duas árvores. Em plena colheita, os espaldares estão tão carregados e tão apertados que formam por toda a parte verdadeiras paredes de arroz verde.

Pelo caminho que Komako e Shimamura seguiam para regressar à aldeia, os camponeses ceifavam e penduravam as suas colheitas. Com o gesto eficazmente apoiado num harmonioso mover de ancas, uma rapariga vestida com o grosso hakama apertava e entregava uma paveia ao homem que se encontrava mais acima e que afastava as espigas com um só movimento, para as pendurar numa alta vara. Quase automáticos, à força do hábito, os seus movimentos coordenavam-se e encadeavam-se na perfeição.

Komako agarrou num feixe e lançou-o delicadamente nos seus braços, como se avaliasse o peso de uma jóia.

- Veja como eles têm as espigas cheias! - exclamou. - E como elas são agradáveis de tocar! Completamente diferentes das do ano passado!

Ao sentir aquele prazer, Komako tinha fechado os olhos. Um bando de pardais passou quase rente a ela.

Mais longe, junto ao caminho, uma velha tabuleta continuava pregada numa parede. «Transplantação de arroz. Tarifa usada: trabalhadores da época: 90 sen diários, alimentação incluída. Mulheres: menos 40 por cento».

Nos altos espaldares havia também arroz a secar, em frente da casa de Yoko, no campo ligeiramente inclinado que a separava da estrada. Uma longa fila fazia uma cortina entre os dióspiros, em frente de um muro branco que cercava o jardim até à entrada da casa vizinha; uma outra fila, em ângulo recto, seguia a orla do canteiro em frente do jardim, com uma serventia ao canto, feita para a passagem. Pareciam as instalações de um pequeno teatro improvisado, mas em vez das esteiras penduradas havia tabiques feitos de arroz já maduro.

O taro, no prado, com as suas espigas fortes e folhas duras, mantinha-se ainda cheio de vigor; mas as dálias e as rosas estavam murchas. O tanque dos lótus, com os seus peixes vermelhos, encontrava-se escondido por detrás da tela feita pelos espaldares de arroz, que por sua vez ocultavam igualmente o celeiro dos bichos-da-seda onde Komako tinha habitado.

Pela serventia aberta entre as espigas suspensas passou Yoko, inclinando a cabeça com um gesto seco e impaciente.

- Yoko vive sozinha? - informou-se Shimamura, seguindo sempre com o olhar a silhueta curvada.

- Suponho que não! - replicou Komako, num tom um tanto ácido. - É tão desagradável! Por hoje dispensarei o cabeleireiro. Interessa-se pelo que não lhe diz respeito e acabámos por perturbar a visita dela ao cemitério.

- Continuas a ser complicada!... É assim tão horrível termos ido

ao cemitério e darmos com Yoko lá?

- Não faz a menor ideia do que isso representa para mim...

Voltarei mais tarde, se tiver tempo, para lavar os cabelos. Será talvez

muito tarde, mas voltarei de qualquer modo.

Às três horas da manhã, Shimamura foi arrancado do sono pelo bater da porta, segundo lhe pareceu, e imediatamente recebeu no peito o peso de Komako.

- Tinha dito que vinha e aqui estou. Não é verdade? Tinha dito que vinha e vim. É ou não verdade?

A respiração ofegante erguia-lhe não só o peito como também o ventre.

- Estás completamente embriagada.

- Não é verdade que disse? Disse que vinha e vim. Aqui estou.

- Disseste, sim. Não se fala mais nisso.

- Não bebi uma gota sequer. Absolutamente nada. Dói-me a cabeça...

- Como conseguiste subir a encosta?

- Não faço a mínima ideia.

Quase o esmagava, sobretudo depois de ter rolado as costas, deixando-se cair com todo o seu peso. Shimamura, ainda meio adormecido, tentou confusamente esquivar-se, erguendo-se, mas não conseguiu e caiu ao comprido, batendo com a cabeça em qualquer coisa extraordinariamente quente.

- Mas tu estás a arder!

- Sim, veja se se queima! Isso é uma almofada de brasas.

- Quem sabe, quem sabe, pode muito bem ser! - disse Shimamura, fechando os olhos e sentindo um ardor a invadi-lo, envolvendo-lhe a cabeça, como um incêndio repentino de intensa vitalidade.

Ao ouvir-lhe a respiração rápida voltou a si com um vago sentimento de remorso. Tinha a impressão de estar ali, sem se mexer, à espera de uma vingança que ela devia exercer, sem saber qual.

- Disse e cumpri. Aqui estou! - exclamou Komako, com um intenso e perceptível esforço de concentração. - E agora vou para casa, lavar os cabelos.

Rastejou até junto da mesa e bebeu avidamente um grande copo de água.

- Não te posso deixar ir embora assim - protestou Shimamura.

- Não, não, vou-me embora. Estão à minha espera. Que fiz eu à minha toalha?

Shimamura levantou-se e acendeu a luz.

- Não! Não acenda por favor! - E escondeu o rosto com as mãos, curvando-se sobre as esteiras.

Trazia um quimono com desenhos de cores muito vivas, transformado em camisa de noite e apertado pelo obi muito estreito de um vestido de trazer por casa. A ponta, de tecido negro, chegado ao pescoço, ocultava o quimono interior. Sob o efeito do álcool, a sua pele brilhava até à planta dos pés nus, que ela procurava esconder com uma graça sedutora e quase provocante. Os objectos de toilette para o banho tinha-os Komako simplesmente atirado para o chão. A toalha, o sabonete, os pentes juncavam o soalho desde a porta.

- Corte-me isso. Tenho uma tesoura.

- Que queres tu que eu corte?

- Isto! - disse ela com o dedo em cima das fitas que seguravam

O alto carrapito à japonesa. - Quis cortá-lo, mas não consegui: os dedos não me obedecem. Então pensei que era uma coisa que talvez me pudesse fazer.

Cuidadosamente, Shimamura afastou os cabelos e cortou as fitas uma a uma, enquanto Komako agitava a cabeça para fazer cair a sua cabeleira solta pelas costas. A Shimamura pareceu-lhe que ela havia readquirido um pouco de calma.

- Que horas são?

- Três horas.

- Não me diga! Cuidado, não me corte os cabelos!

- Ainda há mais laços para cortar? Nunca vi tanto laço na minha vida! - exclamou Shimamura, continuando a sua tarefa.

O rolo de cabelos postiços que lhe mantinha o carrapito escaldava do lado onde assentava na cabeça.

- Já são realmente três horas? - perguntou, admirada. - E eu que lhes tinha prometido estar com elas no banho! Naturalmente adormeci quando passei por casa. Elas tinham vindo chamar-me e agora devem ir perguntar onde estarei metida.

- Estão à tua espera?

- Sim, nos banhos públicos. São três. Havia seis reuniões esta noite, mas eu só fui a quatro. Na próxima semana vamos ter muito que fazer, com todos os turistas que vêm ver os áceres. Obrigada, muitíssimo obrigada.

Komako tinha erguido o peito, para pentear os seus longos cabelos caídos, e esboçou um risinho irritado:

- Acha piada a tudo isto, não?

E, readquirindo o domínio de si, inclinou-se e apanhou o rolo postiço.

- Tenho de me ir embora - disse. - Não é delicado fazê-las esperar. Não voltarei esta noite.

- Achas que está bastante claro para encontrares o caminho?

- Sim! Sim!

Mas, apesar disso, ela não deixou de tropeçar nas pregas do quimono, ao sair.

Por duas vezes, naquele mesmo dia, Komako tinha escolhido horas insólitas para o visitar: às sete da manhã e, agora, às três horas. «Esta história não me parece nada normal» - disse para consigo Shimamura.

Os visitantes não tardariam a chegar para apreciar o espectáculo da folhagem de Outono. A entrada do hotel estava decorada em sua honra com ramos de áceres.

O porteiro, que tinha presidido ditatorialmente a tal operação, gostava de se chamar a si próprio ave de arribação. Tal como os seus colegas, trabalhava da Primavera ao Outono nas estâncias da montanha, até ao momento em que as pessoas vinham assistir à festa das folhagens; após isso regressava à costa e aí passava o Inverno. Pouco lhe importava voltar ou não ao mesmo sítio, e o orgulho que lhe advinha de contactar com a clientela elegante das estâncias luxuosas da beira-mar levava-o a desprezar, na sua arrogância, a recepção oferecida pelo hotel aos seus clientes. Na estação tomava ares ambíguos de mendigo hesitante e punha-se a andar à volta dos recém-chegados, esfregando as mãos com visível embaraço.

- Nunca provou isto? - perguntou ele a Shimamura, que voltava do passeio, mostrando-lhe um akebi que se parecia bastante com uma romã. - Se gostar posso trazer-lhe mais da montanha.

Shimamura viu-o pendurar o akebi, tal como estava, sob um ramo de ácer que decorava a entrada. Estes ramos tinham sido cortados de fresco e eram tão compridos que estendiam a folhagem, de um vivo escarlate, até à ponta do beirado. As suas folhas pareciam envernizadas e eram de uma largura surpreendente. Toda a entrada estava como que iluminada por uma brasa ardente.

Shimamura tinha ainda na mão a frescura penetrante do akebi quando descobriu Yoko na recepção, instalada em frente da lareira. Em frente dela, a mulher do hoteleiro aquecia saké, num caldeiro de cobre, enquanto falava com a rapariga, que abanava a cabeça num movimento rápido, para responder ao que lhe diziam. O seu quimono de seda, simples e de tom sóbrio, tinha sido lavado e passado há pouco.

- Aquela jovem trabalha aqui? - perguntou Shimamura ao porteiro, com aparente indiferença.

- Sim, meu caro senhor. Com todos vós aqui somos obrigados a fazer extras.

- Tal como o senhor, não é?

- Justamente. Mas ela, sendo uma rapariga da região, é uma pessoa excepcionalmente considerada. Uma menina, se assim posso dizê-lo.

No entanto, Yoko, segundo todas as evidências, continuava empregada no escritório, e não aparecia em frente dos clientes. À medida que ia chegando mais gente ao hotel tinha-se podido notar o crescimento de vozes das mulheres ao serviço, mas Shimamura não tinha no entanto reparado ainda no timbre claro e tão penetrante de Yoko. E quando a criada que lhe arrumava o quarto o informou de que Yoko tinha por costume cantar durante o banho, antes de se deitar, Shimamura foi obrigado a reconhecer, ainda, que até isso lhe passara despercebido.

A partir do momento em que soube da presença de Yoko no hotel, Shimamura sentia-se um pouco incomodado, sem saber porquê. Havia nele qualquer coisa de estranho que o impedia de chamar Komako. Sentia como que um vazio. A existência de Komako não lhe parecia menos bela, mas completamente vã e deserta, apesar de pensar que era a ele que Komako oferecia todo o seu amor. Um vazio. E aquele esforço dela, aquele impulso para a vida, faziam mal a Shimamura, atingiam-no profundamente. Sentia piedade dela, como sentia piedade de si próprio.

Por mais inocente que fosse, e Shimamura não tinha disso a menor dúvida, os olhos de Yoko possuíam uma luz capaz de iluminar até ao mais íntimo tudo isso; e, sem que ele soubesse exactamente como ou porquê, sentia-se igualmente atraído para ela.

Komako tinha vindo demasiadas vezes para que ele precisasse de chamá-la. No dia em que Shimamura descera ao vale para ir admirar as folhas dos áceres tinha passado de automóvel em frente da casa dela. Adivinhando que devia ser ele, ao ouvir o barulho do motor, Komako correu para o ver. «Mas - disse-lhe depois ela, censurando-o - nem sequer voltou a cabeça! Que frieza! Que indiferença, realmente!»

Pelo seu lado, Komako, jamais se privava de dar um salto até junto dele, quer vindo ao hotel quer indo aos banhos. Quando devia assistir a alguma festa, chegava sempre pelo menos uma hora mais cedo e ficava nos seus aposentos, até que uma criada subisse a chamar por ela. Ou, então, conseguia ainda escapar-se por alguns momentos, no decorrer da recepção, retocava rapidamente a pintura em frente do espelho e ia-se embora: «Tenho de voltar - dizia ela. - Trabalho, trabalho e mais trabalho».

Era quase um hábito para ela deixar qualquer coisa nos aposentos de Shimamura: o seu ahori, por exemplo, o estojo do arco do samisen, uma coisa ou outra.

- Que vida a minha! Ao entrar ontem à noite em casa, nem consegui arranjar água quente para o chá. Procurando na cozinha acabei por lançar mão aos restos do pequeno-almoço. E estavam frios... frios. Esta manhã não me foram chamar e acordei às dez e meia, eu que tanto gostaria de lhe vir dar os bons-dias às sete horas!

Era este o género de coisas que ela tinha para lhe dizer, ou então falava-lhe do hotel onde tinha estado em primeiro lugar, depois do outro e do outro, contando-lhe, uma após outra, as diferentes entrevistas que tinha tido durante o dia e à noite. E isto sempre sem parar.

- Voltarei mais tarde - dizia ela, uma vez mais, depois de ter sorvido um copo de água, antes de tornar a partir. - A menos que isso seja impossível. Trinta clientes, para os quais nós não somos mais que três ao todo. Terei muito que fazer, provavelmente.

Mas, passado pouco tempo, já estava de volta.

- Que maçada! Eles são trinta e nós somos apenas três. E ainda por cima, porque uma é muito velha, porque a outra é a mais nova de todas as gueixas daqui, tudo me cai em cima. Que avarentos! Um grupo de excursionistas, ou qualquer coisa desse género... Para trinta clientes são pelo menos precisas seis gueixas. Mas espera. Volto lá, bebo um copo e descobrirei a maneira de os ensinar a viver.

E assim iam as coisas, dia após dia. Escapar e esconder-se era tudo o que Komako podia desejar fazer, se porventura ela procurasse saber onde isso poderia levá-la. Mas parecia cada vez mais sedutora, nessa auréola invisível de desespero e perdição.

- Este soalho do corredor range sempre quando passo. Tenho de caminhar mais suavemente e com precaução, mas ouvem-me sempre, e as raparigas da cozinha perguntam-me quando eu passo: «Então, Komako, sempre no Quarto das Camélias?» Nunca me passou pela cabeça que um dia tivesse de me preocupar tanto com a minha reputação!

- Esta aldeia é pequena de mais!

- Tinha de ser fatalmente um belo assunto para comadrices. Toda a gente está ao corrente.

- Isso é mau, muito mau! Não podes continuar assim.

- Nos lugarejos miseráveis como este, uma pessoa começa a ter má reputação e já não se salva! - argumentou ela, mas olhando-o com um sorriso cheio de doçura. - Que importância pode ter isso? Com a minha profissão encontra-se trabalho seja onde for.

Esta franqueza de tom, esta espontaneidade total, o passo dado imediatamente ao primeiro impulso, eis o que não podia compreender o ocioso Shimamura, o homem que herdara a sua fortuna.

- Será sempre assim, para onde quer que vá. Não há nada a fazer! Talvez, mas Shimamura não deixava por isso de pretender descobrir a mulher autêntica sob a capa de indiferença que ela exibia.

- Mas de que me poderei queixar? - acrescentou Komako. - Só as mulheres sabem amar, no fim de contas.

Um leve rubor tingiu-lhe o rosto, e ela inclinou a cabeça, pondo os olhos no chão.

A gola rígida do seu quimono, afastada do pescoço, permitia aos olhos de Shimamura mergulharem no branco das suas costas, descobertas até aos ombros. Beleza um pouco melancólica desta pele pintada, que se adivinha fremente de vida sob a camada branca de pó e que, de certo modo, fazia pensar num tecido de lã ou talvez no pêlo de um animal.

- Neste mundo, tal como ele é... - pronunciou Shimamura, sentindo-se arrepiado pelo próprio vazio das suas palavras.

Komako foi mais longe e disse muito simplesmente: - Acontece sempre assim - depois, erguendo a fronte: - Não sabia? - perguntou, olhando para Shimamura.

O vermelho sedoso do seu quimono interior reajustou-se de novo ao corpo com este movimento e deixou de ver-se.

Shimamura tinha trazido Valéry e Alain, bem como alguns ensaios franceses sobre bailado, publicados na época gloriosa dos Ballets Russos. Ia publicar isso à sua custa, numa edição de luxo de pequena tiragem: um livro que muito provavelmente nada adiantaria ao bailado japonês, mas que se alguma vez aparecesse não deixaria de trazer uma certa compensação e um certo reconforto ao próprio Shimamura. Saboreava antecipadamente o irónico prazer que encontraria ao rir-se de si próprio, com esta ideia; e quem sabe se seria mesmo só por este prazer que ele havia tecido um mundo tão denso de sonhos desiludidos, o seu universozinho deliciosamente melancólico. Nada, absolutamente nada, o impedia, na realidade; não tinha razão alguma, estando em viagem, de se precipitar fosse no que fosse.

A agonia e a morte dos insectos, por exemplo, ocupava parte do seu ócio. E todos os dias, com o frio cada vez maior do Outono, novos cadáveres vinham tombar sobre o soalho: com as asas tolhidas, os insectos caíam primeiro de costas, sem poderem mais voltar-se, agitavam-se e morriam. Até uma abelha, incapaz de voar, caminhou ainda e voltou a cair, um pouco mais ainda, depois tornou a cair, já morta. «É um fim agradável, calmo» - pensou -, «este que a mudança de estação provoca». Mas, ao observá-las mais de perto, via as suas patas e antenas agitarem-se num esforço patético, num último combate pela vida. E que imensa arena, para estes mortos minúsculos, as oito esteiras do seu quarto!

Ao pegar nalgum insecto morto, para o lançar fora, acontecia-lhe por vezes pensar de fugida nos filhos, que tinha deixado em Tóquio. Na rede metálica da janela havia borboletas nocturnas, imóveis há muito, e que por sua vez acabavam também por cair como folhas mortas. Havia-as também pousadas na parede, que de repente deslizavam para virem cair no chão. A riqueza sumptuosa, a beleza prodigalizada nestas vidas efémeras, mergulhava Shimamura em longas meditações contemplativas, com um insecto na palma da mão.

Chegou o momento em que foram retiradas as redes das janelas, e de dia para dia o canto sumido baixou de tom e as estridências agudas tornaram-se cada vez mais raras, assim como os diversos zumbidos e o roçar sedoso daquele frágil mundo alado.

A pouco e pouco os tons ruivos da ferrugem e o castanho grave do burel iam dominando pela encosta da montanha, e nos poentes rápidos os cumes resplandeciam apenas com os tons cinzentos e frios da pedra.

O hotel continuava cheio de visitantes, que tinham acorrido para ver o espectáculo dos bosques de áceres.

- Creio que conseguirei voltar mais tarde. Há uma festa com os habitantes da aldeia.

Era o que tinha dito Komako, ao deixá-lo, e Shimamura podia agora ouvir o rumor que vinha do salão de banquetes, com o timbre agudo das vozes femininas. A festa estava no auge, a julgar pelo ruído, quando Shimamura teve a surpresa de ouvir, como um murmurinho junto de si, uma voz clara que perguntava: «Posso entrar?» Teve um sobressalto. Era Yoko.

- Komako pediu-me que lhe trouxesse isto.

Estendera o braço com a mensagem, como se não passasse de

um simples moço de recados. Mas, no último momento, lembrando os seus deveres de delicadeza, caiu precipitadamente de joelhos, para lhe entregar a carta. Enquanto Shimamura desdobrava o papel dobrado em quatro, já Yoko tinha desaparecido. Ele nem sequer teve tempo de abrir a boca.

«Uma festa brilhante e ruidosa. Bebe-se.»

Era tudo o que a mensagem continha, escrita à pressa num guardanapo de papel e por uma mão que traía a embriaguez.

Dez minutos mais tarde, a própria Komako apareceu:

- Yoko trouxe-lhe alguma coisa?

-Sim.

- Realmente? - perguntou Komako, com um brilho de alegre malícia no olhar. - Se soubesse como me sinto bem! Que maravilhoso saké! Disse-lhe que ia mandar vir outra coisa e consegui esquivar-me. Mas o porteiro viu-me. É-me completamente indiferente que o soalho ranja ou não. Podem murmurar o que quiserem. Mas que coisa! Mal chego aqui, começo logo a sentir-me embriagada. Que coisa! Vou voltar ao trabalho.

- Vermelha e deliciosa até à ponta dos pés! - exclamou Shimamura.

- O dever chama-me. O trabalho. Ela disse-lhe alguma coisa? Que ciúme horrível! Nem faz ideia como é terrível este ciúme!

- Mas por que razão?

- Um dia destes, ainda alguém acabará por morrer.

- Ela está empregada aqui?

- É a que nos serve o saké; depois fica a observar-nos com aquela electricidade no olhar, aqueles olhos, tenho a certeza de que você gosta deles...

- Pensa sem dúvida que é uma vergonha para ti.

- Foi também por isso que lha enviei com esse bilhete. Água!, dê-me um copo de água por favor! Você falou de vergonha, que quis dizer com isso? Mas, antes de responder, tente também seduzi-la!

Voltou-se para se ir colocar em frente do espelho, com as mãos pesadamente apoiadas no toucador.

- Estarei realmente embriagada?

Um instante depois, afastando com o pé o longo quimono, Komako saiu.

A festa tinha chegado ao fim. O hotel voltara a ficar silencioso. Shimamura ia ouvindo distraidamente um vago tumulto, vindo da recepção. Komako devia ter sido arrastada para uma outra festa por algum convidado, concluiu ele. Mas foi exactamente nessa altura que Yoko tornou a aparecer, trazendo outro bilhete.

«Decidi não ir a Sampúkan. Vou daqui para o Salão das Ameixas. Passarei talvez à volta.»

Shimamura esboçou um sorriso um pouco forçado, sentindo-se incomodado com a presença de Yoko.

- Muitíssimo obrigado - disse-lhe ele. - Pelo que vejo, está aqui a ajudar ao serviço!

O olhar cintilante pousou sobre Shimamura, tão intenso e tão belo que ele tinha a impressão de se sentir trespassado. Ficou cada vez mais incomodado.

Ver na sua frente essa jovem que tão profundamente o comovera em cada um dos encontros era para Shimamura quase um mal-estar, uma inquietação indefinida. Com aquela gravidade que nunca a abandonava, parecia que se encontrava no âmago mais secreto e mais patético de uma tragédia grandiosa.

- Parece que não a deixam descansar.

- Eu não sirvo para grande coisa.

- É estranho que a encontre com tanta frequência, não acha? A primeira vez foi quando você acompanhava aquele jovem que voltava a casa, e falou com o chefe da estação acerca do seu irmão, lembra-se?

- Sim.

- Ouvi dizer que tem o costume de cantar no banho, antes de se deitar.

- Como é que sabe? Acusam-me de ser tão mal-educada?

O esplendor desta voz magnífica tinha qualquer coisa de extraordinário.

- Parece-me que já a conheço muito bem. - Ah!, sim? Através de Komako, não?

- Komako? Não, ela não me diz nada. Parece que foge de falar a seu respeito.

- Estou a compreender - disse Yoko, que se voltou, exclamando: - Komako é uma pessoa muito delicada e não tem sido feliz. Seja amável com ela.

A sua maneira de falar era nervosa e a voz tremia-lhe um pouco quando acabou de dizer isto.

- Mas que posso eu fazer por ela? Absolutamente nada - declarou Shimamura ao vê-la a tremer, sentindo-a tensa e vibrante.

Afastou os olhos antes de ver o brilho que iria fulgurar naquele rosto demasiado grave.

- O melhor que tenho a fazer é voltar rapidamente a Tóquio - disse com um sorriso.

- Conto também ir para Tóquio.

- Quando?

- Um destes dias. Quando calhar.

- Poderei tornar a vê-la em Tóquio, quando regressar?

- Naturalmente.

Aturdido pela intensa gravidade que Yoko tinha posto no diálogo, sentindo contudo na sua voz algo que exprimia que isso não passava de uma coisa banal, Shimamura apressou-se a acrescentar:

- Se a sua família não vir inconveniente.

- Não tenho outra família senão o meu irmão que trabalha no caminho-de-ferro - respondeu ela. - Faço o que quero.

- Tem alguma coisa em vista em Tóquio?

- Não.

- Mas discutiu o assunto com Komako, não?

- Komako? Não estou em muitas boas relações com ela. Não lhe falei em nada.

Foi um olhar húmido que ela lhe lançou e, quem sabe, talvez o sinal de que estava prestes a ceder. Shimamura, seduzido, descobria nela uma beleza misteriosa e inquietante. Mas imediatamente foi invadido de ternura por Komako. Partir com esta rapariga estranha para Tóquio, como se a raptasse, não seria, de certa maneira, uma forma de penitência para Shimamura, uma espécie de punição que infligiria a si próprio, para se desculpar, para pedir um imenso perdão a Komako?

- Partir sozinha com um homem não lhe causaria medo?

- Porquê?

- Não seria um pouco arriscado chegar a Tóquio sem saber ao menos aonde ir habitar e o que poderá lá fazer?

- Uma mulher consegue sempre desenvencilhar-se - disse Yoko, com aquela voz onde cantava uma melodia de estranho entusiasmo. Erguendo os olhos e mergulhando-os nos de Shimamura, perguntou-lhe: - Não quer tomar-me ao seu serviço?

- O quê? Contratá-la como criada?

- Sim. Mas não quero fazer o serviço doméstico.

- Quando esteve em Tóquio da outra vez que fazia?

- Trabalhava como enfermeira.

- Empregada num hospital, ou como aluna de alguma escola de Enfermagem?

- Pensava simplesmente que a profissão me agradaria. Shimamura sorriu. Eis talvez o que explicava o facto de levar tão

a sério o encargo de cuidar do filho da professora de Música, durante a viagem de comboio.

- Continua a estar interessada em trabalhar como enfermeira? - perguntou Shimamura, inquieto.

- Agora já não.

- No entanto é preciso que se decida por qualquer coisa. Não podemos ficar assim, sem saber o que queremos fazer. Não se vive na indecisão.

- Na indecisão? Mas eu não sou nada indecisa. Isso nada significa!

E Yoko ria com gosto, como para melhor repelir a acusação de Shimamura.

Um riso alto e claro, como a sua própria voz, que parecia sempre envolta de longínquos infinitos, saída da solidão. Um riso que nada tinha de surdo ou de pesado, mas que voltou ao silêncio, depois de ter batido em vão à porta do coração de Shimamura.

- Não vejo qual seja o motivo do riso.

- Vejo eu, porque houve apenas um homem que eu poderia realmente tratar - explicou ela, deixando Shimamura de novo aturdido. - E nunca mais poderei - acrescentou num tom grave.

- Compreendo - disse vagamente Shimamura, apanhado de surpresa. - Diz-se que passa os dias no cemitério.

- É verdade.

- Não haverá na sua vida mais ninguém de quem possa cuidar? Algum túmulo que possa visitar?

- Nunca. Ninguém.

- Mas então como pode deixar o cemitério e abandonar o túmulo para ir para Tóquio?

- Sinto-me desolada. Mas, por favor, leve-me consigo.

- Komako diz que você é terrivelmente ciumenta. O jovem não era seu noivo?

- Yukio? Não é verdade. É mentira. Não é verdade!

- Mas porque não gosta de Komako?

- Komako... - começou ela a dizer como se estivesse a falar para outra pessoa que se encontrasse na sala, mas com o olhar ardente fixo em Shimamura. - Seja bom para Komako!

- Não há nada que eu possa fazer por ela.

Com lágrimas nos olhos, Yoko esmagou uma pequena borboleta que se encontrava sobre a esteira, engolindo um soluço.

- Komako julga que acabarei por enlouquecer! - lançou-lhe, ao abandonar o quarto.

Só, Shimamura sentiu-se transtornado. Depois ergueu-se e abriu a janela para deitar fora a borboleta morta. Com o olhar, surpreendeu Komako completamente ébria, que se entretinha num jogo de sociedade com um cliente. Inclinada para a frente, prestes a perder o equilíbrio, parecia querer a todo o custo ganhar a partida. O céu estava completamente encoberto. Shimamura desceu para tomar banho.

Era, a meia-voz, terna e maternalmente, que ela falava à criança para a despir e lhe dar banho. A voz de uma jovem mãe, com inflexões acariciadoras e doces, que nada perderam da sua doçura quando começou a cantar:

Lá longe, tu vês, lá longe

três cedros e três pereiras.

Estás a ver? São seis ao todo.

Debaixo há ninhos de corvos

e em cima ninhos de pardais.

Cantarão algo de novo?

Hakamairi

Itchô, itchô, itchô ya(14).

Não passava de uma dessas cantigas de roda que as meninas cantam jogando com a bola, mas Yoko tinha dado um tal ritmo à sequência absurda, tinha-a dotado de tal vivacidade, que Shimamura chegou a pensar se não seria num sonho que ele vira a outra Yoko, aquela a quem tinha falado no seu quarto.

Yoko continuou a tagarelar afectuosamente com a criança, tornando a vesti-la, e, uma levando a outra, abandonaram o banho, onde Shimamura julgou ouvir vibrar ainda por longos momentos o som desta voz, qual eco prolongado de uma melodia de flauta.

No negro e polido soalho da velha galeria havia um estojo de samisen, deixado por alguma gueixa: um pequeno esquife que a Shimamura pareceu encarnar o próprio fim deste Outono mergulhado no silêncio mais profundo da noite. Shimamura inclinara-se para decifrar o nome da proprietária quando surgiu Komako, que vinha do local onde se ouvia um ruído de loiças.

- Que faz aí?

- Teria a dona passado a noite aqui? - inquiriu Shimamura.

- Quem? Ela? Não seja idiota! Acaso imagina que os levamos atrás de nós para toda a parte? Deixamo-los no hotel, onde ficam por vezes dias e dias.

Rira ao dizer isto, mas, quase imediatamente, fechou os olhos, e o seu rosto crispou-se dolorosamente.. - Não se importa de me levar a casa?

- Que necessidade tens de voltar?

- Naturalmente, preciso de me ir embora. Elas foram para outras festas, já partiram. Nada terão a dizer se eu me demorar pouco tempo aqui, aonde vim trabalhar. Mas o falatório vai recomeçar se elas tiverem a ideia de passar por minha casa, quando forem para o banho, e não virem lá ninguém.

Por mais embriagada que estivesse, Komako não deixou de descer cuidadosamente o caminho para a aldeia.

- Pobre Yoko, conseguiu fazê-la chorar! - censurou.

- Essa rapariga parecia-me um pouco transtornada.

- Com que então diverte-se com esse género de observações!

- Mas foste tu mesma que lhas fizeste! Foi ao lembrar-se disso que ela se desfez em lágrimas. E, segundo me parece, chorava mais por ressentimento do que por desgosto.

- Ah, bem, então antes assim!

- Aliás, passados dez minutos, já ela estava no banho, a cantar, com uma voz deliciosa.

- Ela sempre gostou de cantar no banho.

- Yoko recomendou-me com a maior gravidade que me mostrasse amável contigo.

- Que parvoíce da sua parte! Além de mais, que necessidade tem de me contar isso?

- E porque não? És tu que te zangas sempre, quando se fala de Yoko.

- Não estará a interessar-se de mais por ela?

- Só faltava isso! Não lhe disse nada que te leve a pensar uma coisa dessas.

- Estou a falar a sério - insistiu Komako. - Sempre que a vejo, sinto como que um pesado fardo em cima dos ombros de que não posso desfazer-me. Seja como for, sinto as coisas assim. E se realmente está interessado nela é melhor pensar primeiro: compreende o que quero dizer?

E ao afirmar isto Komako tinha colocado a mão no ombro dele, inclinando-se. Mas em seguida disse bruscamente:

- Não, não! Não é isso!... Se ela algum dia cair nos braços de alguém como você, talvez consiga não endoidecer. Não está interessado em aliviar-me deste fardo?

- Mas não estarás a exagerar um bocadinho?

- Imagina que estou ébria, que falo à toa, mas não é o caso. Se eu a soubesse em boas mãos, seria para mim um alívio; assim já poderia entregar-me a uma vida vegetativa, aqui, entre as montanhas! Que maravilhosa sensação de repouso.

- E isso chega!

- Oh! Deixe-me em paz!

E partiu correndo para a porta da casa onde morava e que se encontrava fechada.

- Provavelmente pensaram que já não voltavas hoje.

- Não tem importância. Eu sei abrir a porta.

E enquanto Komako fazia um certo esforço para a puxar da corrediça, a velha porta gemeu com o estalar da madeira seca. - Venha aos meus aposentos.

- Parece que não sabes as horas que são...

- Não faz mal, estão todos a dormir. Shimamura ficou hesitante.

- Se não quer entrar, voltarei consigo para o hotel...

- Não é preciso incomodares-te, voltarei bem sozinho.

- Mas ainda não viu os meus aposentos.

Entraram e penetraram num quarto onde dormiam, em cima de pequenos colchões, espalhados por toda a parte, os membros da família inteira: silhuetas enroladas em velhos e gastos lençóis feitos de algodão grosso e ordinário. E sob o candeeiro, velho e desbotado, via-se o pai, a mãe e cinco ou seis crianças, não tendo o maior mais de dezasseis anos. Apesar da impressão de sórdida pobreza que esta cena provocava, sentia-se como que um impulso de intensa vitalidade, impacientemente contida. Recuando perante o calor da respiração dos que dormiam, Shimamura quis alcançar a porta que Komako lhe fechou na cara, suavemente, antes de avançar para o fundo do quarto, sem sequer pretender atenuar o ruído dos seus passos. Shimamura deslizou furtivamente atrás dela, caminhando com precaução, rente aos colchões e às cabeças das crianças que dormiam. Uma angústia estranha contraía-lhe a garganta.

- Espere, vou adiante para acender a luz.

- Será melhor, sim. Obrigado.

Komako subiu então por uma escada mergulhada no escuro.

Shimamura, olhando à sua volta, conseguiu reconhecer a loja de doces, logo a seguir ao dormitório familiar.

Nas quatro divisões extremamente simples do primeiro andar, as esteiras estavam já bastante gastas.

- Confesso que é um bocado grande para uma pessoa só - disse Komako.

Tinham retirado as paredes divisórias, e, bastante longe das portas de corrediça de papel amarelo que davam para a galeria, a cama de Komako parecia minúscula e solitária. No quarto do fundo estavam empilhados móveis gastos e velhos objectos que só podiam pertencer à família que dormia em baixo. Contra a parede, suspensos dos cabides, estavam alinhados os quimonos de sair de Komako. Para Shimamura, todo o conjunto fazia lembrar a toca de um texugo ou de uma raposa.

Komako, que acabara de sentar-se em cima do pequeno leito, ofereceu a Shimamura a sua única almofada. Depois, inclinando-se um pouco para o espelho:

- Mas estou escarlate! Terei bebido assim tanto? Começou a procurar qualquer coisa por cima do armário.

- Tome. É o meu diário.

- Parece um volume famoso - disse Shimamura, avaliando o peso do maço de cadernos.

Komako abrira um pequeno cofre de cartão pintado, completamente cheio de cigarros.

- Como costumo escondê-los na manga do quimono ou no obi, quando mos oferecem, estão um bocado amarrotados, mas intactos. Em compensação tenho-os de todas as marcas; um sortido completo.

Mas enquanto dizia isto, Komako agitava o cofre, de forma a permitir a Shimamura escolher o tabaco de que gostava.

- Desculpe, mas não tenho fósforos. Já não me sirvo disto desde que deixei de fumar.

- Obrigado, não tem importância. E como vai a costura?

- Procuro costurar um pouco, mas os turistas que vieram por causa dos áceres não me deixam muito tempo livre!

Enquanto falava inclinou-se para o lado, a fim de afastar o trabalho que tinha ficado em frente do armário.

O móvel de madeira fina e o estojo de costura, sumptuosamente laçado de vermelhão, que ela devia conservar dos tempos de Tóquio, encontravam-se aqui tal como haviam estado no celeiro, tão parecido com um velho cofre de papel. Mas neste apartamento, nestes miseráveis quartos de um primeiro andar demasiado rústico, destoavam lamentavelmente.

Shimamura reparou no cordão pendurado do tecto, por cima da almofada.

- É para apagar a luz quando estou deitada - explicou Komako, puxando-o para que ele visse.

Por mais perfeita que estivesse no seu papel de dona de casa, cheia de gentilezas e de atenções, Komako não conseguia no entanto ocultar o seu embaraço.

- A forma insólita como estás aqui instalada faz-me lembrar a raposa das antigas lendas: o teu luxo, no meio de tanta pobreza, parece fantástico.

- É precisamente assim.

- E esperas passar quatro anos neste antro?

- Um ano está quase acabado, e os outros passarão depressa.

Shimamura sentia-se cada vez menos à vontade. Que mais podia ainda dizer? Parecia-lhe ouvir a respiração daquela família a dormir em baixo. Ergueu-se para terminar a visita.

Komako, que não tinha fechado completamente a porta atrás de si, lançou um olhar para o céu.

- Tenho a impressão de que vai nevar - disse. - É o fim das folhas dos áceres.

Ficou à porta da casa, recitando na noite versos tirados de uma peça de Kabuki:

Como estamos em plena montanha,

a neve começa a cair, mas há ainda os áceres.

Shimamura desejou-lhe boa noite.

- Espere um momento. Vou acompanhá-lo até ao hotel. Mas só até à porta. Desta vez não entro.

No entanto, quando chegaram entrou com ele.

- Deite-se - disse-lhe, desaparecendo, para só voltar pouco depois, trazendo dois copos cheios de saquê. - Só um trago! - exclamou ao entrar. - Vamos beber apenas um trago cada um.

- Mas eles não estão a dormir? Onde encontraste o saquê?

- Sei onde costumam guardá-lo.

Komako havia já bebido, sem dúvida, quando foi buscar o álcool ao barril. A embriaguez de há pouco tinha de novo tomado posse dela e, com os olhos quase fechados, via o líquido correr-lhe pela mão.

- Não tem graça nenhuma bebermos às escuras!

Dócil, Shimamura pegou no copo que ela lhe estendia e bebeu.

Não era costume embriagar-se com tão pouco saquê; provavelmente tinha apanhado frio durante o caminho. Agora era ele que começava a sentir-se mal. A cabeça andava-lhe à roda e apetecia-lhe vomitar. Tremia de frio e estava pálido.

Fechando os olhos, deixou-se cair ao comprido, pela cama fora. Inquieta, Komako apertou-o nos seus braços, e o calor do seu corpo deu a Shimamura uma sensação infantil de reconforto.

Komako segurava-o entre os seus braços, com o ar tímido e hesitante que pode ter uma mulher que nunca teve filhos para pegar num bebé. Sustinha-lhe a cabeça e inclinava-se sobre ele, como sobre uma criança que está a adormecer.

- És boa e delicada comigo.

- Eu? Porquê? Que fiz eu? Que sou eu?

- Boa e delicada.

- Não está certo divertir-se comigo - disse, recuando um pouco e com o olhar ausente; e pôs-se a embalá-lo docemente, acompanhando o movimento com frases curtas e soltas, que pronunciava esboçando um sorriso que era apenas para si própria. - Não sou boa nem delicada. Aqui, não é fácil sabê-lo. Volte para casa, é melhor. Gostava tanto de mudar de quimono quando venho vê-lo, mas os que eu tenho já estão tão usados! Este que trago vestido é emprestado. Vê? Não, eu não sou assim como diz!

Shimamura não respondeu.

- Mas porque é que me acha delicada? - perguntou de novo, com uma voz um pouco alterada. - Quando o vi pela primeira vez, disse para mim própria que nunca tinha encontrado ninguém tão antipático. Os outros nunca me falaram; nunca dizem as coisas que me disse. Detestei-o. Sim. detestei-o!

Shimamura fez que sim com a cabeça.

- Compreende - continuou ela - porque é que nunca fiz até agora a mais pequena alusão a isso? Quando uma mulher chega ao ponto de dizer coisas destas, é porque já foi tão longe quanto podia, acredite.

- Fizeste muito bem em dizê-lo.

- Acha que sim?

O silêncio envolveu-os a ambos: ela, aparentemente mergulhada nos seus pensamentos; Shimamura, saboreando o calor vivo do seu corpo, que se tornava sensível com a presença feminina.

- Uma mulher excelente!

- O quê?

- Uma mulher excelente.

- Diz cada uma!

Voltara a cabeça para evitar a impressão que lhe fazia o queixo de Shimamura em cima do ombro.

Mas bruscamente, sem que ele soubesse porquê, Komako apoiou-se nos cotovelos e exclamou, com ar zangado e voz trémula:

- Com que então uma mulher excelente! Que quer dizer com isso? Sim, que quer dizer com isso?

Shimamura fixou-a sem lhe responder.

- Confesse: foi por causa disso que voltou! Sim, continua a divertir-se comigo, não há dúvida!

Os olhos dela brilhavam quando o encarou. Estava vermelha de cólera e os ombros tremiam-lhe. Mas o furor desapareceu tão depressa como tinha vindo, e pelo seu rosto exangue começaram a correr as lágrimas.

- Detesto-o! Sim, detesto-o.

Rolando sobre si própria, Komako deixara o divã e sentara-se no chão, voltando-lhe as costas.

Shimamura recebeu como que um soco em pleno peito, ao compreender o seu erro. Estendido, sem uma palavra, fechou os olhos, incapaz de se mexer.

- Sinto o coração rebentar - confessou, a meia-voz, enrodilhada sobre si, com a cabeça nos joelhos e a soluçar.

E, quando acabou de chorar todas as lágrimas, continuou assim, picando nervosamente a esteira com a ponta de um alfinete prateado que tinha tirado do carrapito. Passado certo tempo abandonou o quarto.

Shimamura não se sentia com forças para segui-la. Ela tinha toda a razão para se sentir ferida.

Mas Komako não tardou a voltar, caminhando sem ruído, descalça, pelo corredor.

- Não quer vir tomar banho? - perguntou atrás da porta, numa vozinha tímida e aguda.

- Se tu quiseres.

- Peço desculpa - disse ela ainda. - Acho que procedi mal.

E, como não entrasse, Shimamura agarrou na toalha e dirigiu-se para o corredor. Ela precedeu-o, caminhando à sua frente, de cabeça baixa, como uma criminosa à frente do polícia.

O calor do banho, ao penetrá-la, restituiu-lhe, de forma surpreendente, o bom humor, um humor pleno de encanto, tão vivo e tão cheio de entusiasmo que eles, ao voltarem, não mais pensaram em dormir.

No dia seguinte, Shimamura foi acordado por uma voz que recitava um texto de Nô, e ficou uns momentos a ouvir, deitado. Komako, em frente do espelho, voltou-se e sorriu.

- São os hóspedes do Salão das Ameixas. Lembra-se de me terem chamado para assistir à primeira festa?

- São amadores de Nô em viagem?

- Sim.

- Está a nevar?

- Sim.

Komako levantou-se para ir abrir a janela.

- É o fim das folhas dos áceres - anunciou.

A janela recortava-se sobre um céu uniformemente cinzento, donde caíam, como peónias brancas, grandes flocos que pareciam vir na direcção deles, num silêncio harmonioso e calmo que tinha qualquer coisa de sobrenatural. Shimamura deixava-se invadir por esta imagem, ele próprio vazio, como só se pode estar depois de uma noite sem dormir.

Os amadores de Nô tocavam também em tamboris.

Esta manhã de neve trazia-lhe à memória os últimos dias do ano anterior, e os seus olhos dirigiram-se para o espelho. A queda das brancas e frias peónias, mais espumosas, desenhava nele uma auréola que dançava à volta da silhueta de Komako, que, de quimono entreaberto, tinha uma toalha à volta do pescoço.

Uma vez mais, Shimamura sentiu-se maravilhado ao ver aquela pele fresca e saudável, branca e límpida, que fazia lembrar de forma irresistível a pureza duma barrela ao ar livre. Não, não era uma ilusão da sua parte pensar que ela pudesse ser uma mulher para se ofender gravemente com as suas frivolidades, e essa evidência penetrou-o de uma tristeza acabrunhante.

A montanha, que tinha parecido mergulhar uma vez mais no longínquo, à medida que se extinguiam os tons fúlvios do Outono, readquirira de repente vida e brilho sob a neve.

Os cedros, envolvidos por um fino véu branco, erguiam-se do solo coberto de neve, deixando-se confundir numa massa sombria, para sobressaírem individualmente em silhuetas recortadas com a maior nitidez.

É na neve que o fio é fiado e na neve que ele se vai tecendo. É a neve que lava e branqueia o tecido. Todo o fabrico começa e acaba na neve. «Os panos de chijimi existem porque a neve existe: pode dizer-se que a neve é a mãe do chijimi», como alguém afirmou em tempos.

As mãos das mulheres, nesta Terra de Neve, passam os meses nevados do Inverno a fiar, a tecer, a transformar em tecidos leves o cânhamo colhido nos campos em declive da montanha. E Shimamura, que sabia apreciar este tecido, que se tinha tornado raro, ia procurá-lo nas velhas lojas de Tóquio para com ele mandar fazer os seus quimonos de Verão. As suas relações no mundo da dança permitiram-lhe descobrir uma certa loja que tinha a especialidade dos antigos trajos do teatro Nô, e havia combinado com o proprietário que seria ele, Shimamura, o primeiro a ser prevenido, sempre que uma peça de verdadeiro chijimi lhe viesse parar às mãos.

Conta-se que em tempos passados, nas feiras de chijimi, realizadas depois de as neves derreterem, pela Primavera, quando na região se tinham já retirado as janelas duplas de Inverno, as pessoas chegavam de toda a parte para comprar esse tecido famoso, até mesmo os ricos mercadores de cidades tão importantes como Edo, Nagoia ou Osaca, e que por tradição tinham os seus lugares marcados nos hotéis. Naturalmente, a juventude da região descia dos altos vales com o produto dos últimos seis meses de trabalho; e era numa atmosfera de festa que entravam em concorrência com as exposições dos vendedores, tabuleiros de todas as espécies, feirantes, espectáculos, em frente dos quais rapazes e raparigas se acotovelavam, em multidão. Os tecidos expostos traziam uma etiqueta de papel com o nome e a morada daquele que os tinha fabricado, pois havia um concurso para recompensar o melhor trabalho. Era também ocasião de procurar um bom partido. As raparigas, que aprendiam a tecer desde a infância, realizavam as suas obras-primas entre os catorze e os vinte e quatro anos. Mas, com a idade, iam perdendo essa agilidade dos gestos que dava qualidade aos tecidos de chijimi. Assim, a emulação era viva entre essas raparigas, que trabalhavam com tanto ardor como amor durante os meses em que a neve as mantinha prisioneiras, isto é, depois do décimo mês, altura em que começavam a fiar, até à segunda lua, com a qual devia ter findado o branqueamento sobre os campos, prados e jardins, ainda cobertos de neve.

Alguns dos quimonos de Shimamura eram feitos com o pano tecido por essas mãos femininas, provavelmente em meados do século passado, e ele próprio tinha conservado o hábito de os enviar «para branquear na neve». Apesar de isso não ser uma prova fácil para esses trajos antigos, que tantos corpos tinham já vestido, bastava-lhe pensar no trabalho das raparigas da montanha para sentir a necessidade absoluta de os mandar branquear, como aconselhava a tradição autêntica, na Terra de Neve, onde o tecido nascera e onde tinham vivido as virginais tecedeiras. Só de pensar nesse cânhamo branco espalhado sobre a neve e confundindo-se com ela, para se tornar cor-de-rosa à luz do Sol nascente, Shimamura experimentava de tal forma o sentimento de uma purificação que não só estava convencido de que os seus quimonos tinham deixadoJá os miasmas e as manchas do Verão, como ele próprio se sentia também completamente lavado. Não havia nisso, provavelmente, nada, a não ser um sentimentalismo mal fundado da sua parte, dado que uma lavandaria especializada de Tóquio se encarregava de tudo, e ele não estava certo de que os quimonos fossem realmente lavados «na neve», à maneira antiga.

Esta lavagem «na neve» estava garantida por especialistas, de geração em geração: os próprios tecelões já não se ocupavam disso. Fazia-se o branqueamento depois de se fiar o chijimi branco, em peças inteiras, enquanto o tecido de cores era tratado nos próprios teares, à medida que se ia fabricando. A melhor época para tal recaía nos meses da primeira e da segunda lua. Prados e jardins, nesta época cobertos de neve, transformavam-se por toda a parte em locais de branqueamento.

Começava-se por mergulhar o fio ou o tecido durante toda a noite em água de cinzas. Na manhã seguinte era passado por água, bem escorrido, estendido a secar ao ar livre e por fim exposto o resto do dia sobre a neve. Esta operação era feita durante dias seguidos. No final - Shimamura tinha lido isso recentemente -, quando o tecido atingia a brancura imaculada e recebia a carícia do sol vermelho da manhã, o espectáculo ultrapassava toda e qualquer descrição. «Todos os habitantes das províncias meridionais - acrescentava o antigo autor - deviam vê-lo». E quando a brancura alcançava a perfeição, a Primavera chegava também: era o próprio sinal da Primavera na Terra de Neve.

A estância termal era por assim dizer contígua à própria região do chijimi, a jusante da torrente, onde o lago começa a espraiar-se um pouco. De facto, encontrava-se tão perto que Shimamura quase podia avistá-lo da sua janela. E, ao longo do vale, os povoados onde se realizava a feira do chijimi tinham agora a sua estação à beira da linha de caminho-de-ferro. Na era industrial, continuava a ser uma região famosa pelos seus têxteis.

Não tendo vindo à Terra de Neve nem em pleno Verão, quando trazia os seus quimonos de cânhamo, nem no coração do Inverno, quando são tecidos os panos de chijimi de que tanto gostava, Shimamura não tinha abordado o assunto ao conversar com Komako. Que poderia ela dizer que ele não soubesse já? Ele próprio não era de modo algum o género de pessoa que toma a iniciativa de partir em busca de vestígios do antigo artesanato popular.

Mas quando ouviu a voz de Yoko no banho, dando alma a uma canção infantil, pôs-se a pensar que se a rapariga tivesse nascido em tempos idos provavelmente teria cantado aquela mesma canção, inclinada sobre o trabalho, atirando a lançadeira entre o movimento duplo dos aparelhos do tear. A sua voz parecia seguir o próprio ritmo da tecedeira, tal como a sua imaginação os apresentava.

A fibra desse cânhamo das montanhas, mais delicada ainda que a seda animal, não podia de forma alguma ser tratada, ao que parece, senão na humidade cúmplice da neve; por isso, o Inverno das longas noites, na Terra de Neve, representava a estação perfeita para os diversos trabalhos do tecelão. E os conhecedores dos velhos tempos não deixavam de explicar, como um efeito harmonioso de princípios permutáveis entre a luz e a noite, a notável frescura daqueles panos tecidos no frio do Inverno e que se perpetuava durante o calor do Verão mais tórrido. Sim, também Komako resultava, ela própria, do jogo dos mesmos princípios: Komako que se havia ligado a ele tão profundamente, com toda a frescura da alma e o calor mais comovente do seu ser.

E, no entanto, todo o amor da mulher da Terra de Neve se desvaneceria com ela, não deixando neste mundo nem mesmo um sinal tão seguro como um tecido de chijimi! E, se o tecido é o mais frágil dos produtos de artesanato, um bom chijimi, quando tratado convenientemente, pode no entanto conservar a sua qualidade e a vivacidade das suas cores pelo menos durante meio século, e só se gasta completamente muito tempo depois. Assim pensava Shima-mura, meditando distraidamente na inconstância das intimidades entre os humanos, a sua efémera duração, que nem mesmo conhecia o tempo de existência de um bocado de tecido, quando foi de repente assaltado pela imagem de Komako mãe: Komako, que havia dado à luz filhos de um outro pai que não ele! Estupefacto e transtornado, lançava à sua volta um olhar perdido. Tudo aquilo era resultado da fadiga, evidentemente...

Dado que ia prolongando a sua estada, podia perguntar-se se Shimamura não teria esquecido já a mulher e os filhos. Mas se ficava, não era porque não pudesse ou não quisesse deixar Komako: era simplesmente porque se habituara a esperar as suas visitas frequentes. Shimamura sabia muito bem isso, assim como sabia também que, quanto mais se oferecia às solicitações de um assalto contínuo, mais se interrogava sobre a proveniência das suas próprias faltas, o facto de se encontrar fora de casa, que o impedia de viver como ela, com intensidade e plenitude. Continuava ali, por assim dizer, a contemplar a sua própria frieza, absolutamente incapaz de compreender como conseguira ela perder-se, dar-lhe tudo de si própria, sem nada receber em troca. E, no fundo do seu coração, ouvia agora Komako, como um ruído silencioso como a neve, caindo muda no seu tapete de neve, como um eco que se esvai por tanto ser reenviado entre paredes vazias. Sabia agora que não podia continuar indefinidamente a acariciar-se a si próprio e a deixar-se acariciar pela sorte.

Debruçado sobre o fogo que lhe tinham colocado no quarto, por causa das primeiras neves, Shimamura pensava que devia ser pouco provável voltar ali alguma vez mais.

A chaleira antiga que lhe tinha emprestado o hoteleiro, precioso objecto manufacturado em Tóquio e artisticamente cinzelado em prata, com motivos de flores e de aves, cantava docemente como uma brisa entre os pinheiros; conseguia mesmo reconhecer nela dois sopros diferentes, ou seja: o roçar do vento que atravessa os ramos e o ruído vindo de longe. E dentro deste, mais débil ainda, o tilintar longínquo e dificilmente perceptível de um sino. Ouvi-lo-ia ou não? Shimamura aproximou o ouvido para escutar. E muito, muito longe, lá em baixo, onde soava o sino, teve a súbita visão de dois pés que dançavam: os pés de Komako, que dançavam ao ritmo das longínquas badaladas do sino. Shimamura afastou o ouvido. Partiu. A sua hora tinha chegado.

Foi então que pensou em visitar a região de chijimi, com a ideia de que essa excursão pudesse facilitar-lhe o rompimento com as termas.

Shimamura ignorava qual era a aldeia a jusante que de preferência teria de escolher para ponto de paragem; e, como os tecidos modernos não lhe interessavam absolutamente nada, desceu na estação que lhe pareceu isolada, sem vida, tal como ele desejava. Em seguida caminhou um bom bocado antes de conseguir chegar ao que lhe pareceu ser a artéria principal de um povoado que outrora devia ter sido centro de reabastecimento de caravanas.

De cada lado havia beirais sustentados por pilares que se prolongavam bastante, fornecendo deste modo uma dupla passagem coberta, onde se podia caminhar quando a neve demasiado alta obstruía a rua. Assemelhavam-se bastante aos alpendres descobertos sobre os quais os velhos mercadores de Edo expunham as suas mercadorias. Debaixo dos beirados alinhados e contínuos de cada casa, as passagens cobertas estendiam-se em comprimento de um e outro lado da rua. Para desobstruir do peso enorme da neve os tectos dessas casas, que se tocavam nos extremos, o que havia a fazer era deixá-la cair na rua ou, mais exactamente, lançar a neve sobre uma muralha de gelo que não deixava de se acumular e de subir, à medida que o Inverno ia decorrendo e na qual se cavavam transversalmente trincheiras e túneis para permitirem às pessoas passarem de um lado para o outro.

A aldeia em que habitava Komako, na estância termal, não era do mesmo tipo, apesar de ser também do estilo montanhês e portanto da Terra de Neve: as casas eram construídas separadamente, e à sua volta havia terreno livre. Shimamura, que via pela primeira vez este sistema de galerias cobertas ao longo de uma rua, como se fossem uma couraça contra a neve, sentiu curiosidade de andar por dentro delas. No interior havia pouca luz debaixo dos longos beirais e notou que a madeira dos pilares que as sustinham começava a corroer na base. Embrenhado no escuro, do lado das casas sombrias, ia imaginando a longa noite dos compridos Invernos, onde, durante séculos e séculos, tinham vivido os antepassados dos actuais habitantes.

Via as raparigas, geração após geração, a trabalhar o tear, tecendo infinitamente na sua prisão de neve; e concluía que a vida que elas tinham vivido estava longe de ter o brilho e a branca claridade dos tecidos de chijimi, tão puros e frescos na sua brancura, que elas haviam tecido com mãos diligentes. No velho livro que Shimamura tinha lido, depois de uma alusão a um poema chinês, o autor fazia realçar com toda a crueza das leis económicas que o fabrico dos tecidos de chijimi, levando em conta a enorme soma de trabalho que cada peça exigia, nunca poderia ser rendível. Limitava-se a ser um artesanato familiar, e nunca nenhum produtor podia alguma vez permitir-se empregar operárias vindas de fora.

Todas essas mãos anónimas de outrora tinham já desaparecido, depois do seu diligente labor, e delas não restava hoje senão a sua obra: esse raro chijimi que faz as delícias de alguns conhecedores refinados, como Shimamura, pela frescura deliciosa que dá à pele nos calores de Verão. E este pensamento, por mais vulgar que fosse, comoveu-o como a mais profunda descoberta. O trabalho no qual um coração pôs todo o seu amor, aonde e quando levará a sua mensagem, a quem irá transmitir a coragem de um mesmo esforço e o impulso de uma mesma inspiração?

Sobre o traçado do caminho de cavalos, que outras eras tinham conhecido, a rua principal da aldeia, em linha recta, perdia-se entre as casas cada vez mais espaçadas, para provavelmente ir ligar-se à aldeia de Komako e às suas termas. Também aqui, sobre os telhados de tabuinhas, pesavam os alinhamentos de pedra que ela bem conhecia.

Ao reparar que os pilares que sustinham os beirados projectavam no chão um pouco de sombra, Shimamura deu conta de que a tarde se aproximava. Não tendo mais nada a ver aqui, apanhou um comboio para descer numa outra estação, onde encontrou uma aldeia idêntica à primeira. Deu um passeio semelhante, mas deteve-se, sentindo frio, para se restaurar, com um prato de aletria, numa modesta venda à beira dum rio, que devia ser provavelmente a torrente que descia da estância termal. Sobre a ponte, afastando-se, viu uma fila de cabeças rapadas que caminhavam a duas e três: eram monjas budistas, todas calçadas de igual, com sandálias de palha, algumas levando pendurado pelas costas o chapéu redondo e pontiagudo, feito também de palha. Deviam voltar de algum peditório e dirigiam-se para o convento, tal como um bando de corvos ao descer sobre o ninho.

- Uma verdadeira procissão! - observou Shimamura. A mulher da venda respondeu-lhe:

- O convento delas fica no alto da encosta. Devem ser as últimas saídas que fazem. Assim que chega a neve, não poderão mais descer.

Sobre a montanha, já sombria pelo crepúsculo, por cima da ponte, as primeiras neves tinham pousado a sua brancura.

Quando as folhas começam a cair com os ventos duros e frios, na Terra de Neve, os dias não são mais que uma pintura de tonalidade cinzenta, nebulosa e gelada. Sente-se que a neve anda no ar. O círculo das montanhas em redor surge agora branco, com as primeiras neves, que a gente da região chama o «chapéu dos cumes». Por toda a costa norte, o mar de Outono muge e brama, e o mesmo fazem as montanhas, no centro do país, deixando ouvir um suspiro enorme, semelhante ao rolar longínquo do trovão, a que as pessoas chamam «o rumor do fundo». O chapéu dos cumes e o rumor do fundo, segundo o que havia lido Shimamura no velho livro, anunciam e precedem de perto a época das grandes neves. Tendo visto os primeiros flocos, na manhã em que fora despertado pelo canto de Nô, Shimamura interrogava-se agora se os bramidos anunciadores se teriam já feito ouvir, este ano, sobre a costa e na montanha. Teria apurado os sentidos durante todo o tempo em que tivera como única companhia uma mulher, Komako? Bastava-lhe agora pensar nesses ecos, para logo escutar esse rumor surdo dentro dos ouvidos.

- O convento deve estar bloqueado durante todo o Inverno. Quantas são as monjas?

- São muitas - disse a mulher.

- Em que se ocupam para passar o tempo enquanto ficam prisioneiras da neve? Não acha que se podia sugerir-lhes que tecessem chijimi? A mulher limitou-se a sorrir à pergunta do forasteiro.! Voltando à estação, Shimamura esperou pelo comboio cerca de duas horas. O tímido sol de Inverno já se havia posto, e o céu nocturno tinha uma limpidez tal que parecia que tinham puxado o lustro às estrelas, brilhantes como nunca. Shimamura sentiu os pés gelados.

De regresso às termas, já não sabia porque as tinha abandonado nem porque havia partido. Tomando o mesmo caminho, o táxi levou-o à aldeia, que atravessou, e uma luz brilhante surgiu quando passou pelo bosque de cedros. Nessa altura, Shimamura sentiu de súbito uma sensação de calor e de segurança. Kikumura: o Restaurante Kikumura, com três ou quatro gueixas que conversavam em frente da porta. Shimamura mal teve tempo de pensar que Komako devia estar entre estas, e já não via nada a não ser ela.

O motorista tinha travado. Também este devia estar ao corrente das histórias entre eles.

Shimamura voltou-se para olhar pelo vidro de trás. Via o rodado do carro marcado na neve, brilhando sobre a luz das estrelas, fugindo para se ir perder lá ao longe, nos confins mais distantes.

O carro tinha chegado junto de Komako. Num gesto brusco, a mulher fecha os olhos e atira-se para o taxi, que continua a rolar lentamente, subindo a encosta com Komako agarrada ao fecho da porta e apoiada no estribo.

Parecia a Shimamura que ela se havia atirado ao carro num salto de fera, num impulso que podia parecer inconsciente ou pueril, mas que o deixou sem surpresa, com o sentimento de um profundo reconforto, a sensação de uma carícia penetrante e ardente. Não se tinha chocado nem pelo perigo nem pela anomalia de um acto tão inesperado. Quando Komako erguera o braço por cima da porta para se manter segura, a manga do quimono descaíra até ao cotovelo, deixando a descoberto o vermelho intenso do quimono interior, que cintilou sobre o vidro fechado antes de lançar o seu calor radiante no próprio coração de Shimamura, transido de frio.

Em seguida, o rosto de Komako colou-se de encontro ao vidro.

- Aonde foi? Diga-me aonde foi! - gritou ela, através do vidro fechado.

- Toma cuidado! Podes cair! - disse-lhe Shimamura, em resposta.

Ambos sabiam perfeitamente que se tratava dum jogo. Um terno jogo.

Tendo conseguido abrir a porta Komako acabara por deixar-se cair sobre o assento, na precisa altura em que o táxi parava, junto ao caminho que subia pela montanha.

- Aonde foi? Diga? :

-Oh!

- Mas diga! ;

- Nada de especial... Foi um simples passeio.

Shimamura notou, com certa surpresa, que ela tinha tido um gesto típico da gueixa, ao pegar na ponta do quimono.

O motorista esperava, sem nada dizer, e Shimamura devia reconhecer que havia uma certa excentricidade em ficar ali, sem descerem, dentro de um táxi, que não podia levá-los mais longe.

- Vamos sair! - disse Komako, pegando-lhe na mão. - Brr! Que frio! Tem os dedos gelados! Porque não me levou consigo?

- Achas que devia tê-lo feito?

- Que indivíduo tão estranho!

E ria alegremente, caminhando sobre as lajes de pedra que formavam o caminho, feito em escadas abruptas.

- Vi-o partir... Passava das duas horas... Ou já perto das três, provavelmente, não foi?

- Foi, sim.

- Precipitei-me para fora de casa, à espera do carro, e corri ao seu encontro. Mas nem sequer olhou para o lado onde eu estava.

- Não olhei?

- Não. Nem sequer um simples olhar para trás. Porquê?

A sua insistência deixou Shimamura um tanto surpreendido.

- Nem sequer suspeitou de que o visse partir?

- De modo algum.

- Era o que eu pensava! - e rindo sempre, no seu foro íntimo sorridente e feliz, apertava-se contra ele. - Mas porque não me teria levado consigo! Deixou-me aqui, para voltar completamente gelado. Não gosto nada disto.

De repente soou o sinal de alarme, no ritmo acelerado da sirene local. Voltaram-se ambos para ver. «Fogo! Fogo!»

- Um incêndio!

- Algo está a arder lá em baixo!

Uma girândola de chispas e de fagulhas erguia-se no céu, ao fundo, do lado da aldeia.

Komako deixou escapar duas ou três exclamações e apertou a mão de Shimamura.

Via uma língua de chamas explodir na coluna de fumo espesso e abater-se depois, lambendo os tectos vizinhos.

- Onde será? - perguntou Shimamura. - Dir-se-ia que é precisamente ao lado da casa da professora de Música...

- Não pode ser.

- Então onde é?

- É um pouco mais acima, para os lados da estação.

Uma coluna de chamas ergueu-se de repente, muito acima dos telhados.

- É no armazém dos casulos! Veja, é no armazém! O armazém está a arder!

E, com o rosto escondido contra o ombro de Shimamura, Komako repetiu várias vezes ainda: «É o armazém! O armazém está a arder! O armazém está a arder!»

Em baixo, o braseiro era cada vez maior; mas da colina onde se encontravam, crepitando sob o imenso céu estrelado, o incêndio não parecia mais trágico do que uma inocente fogueira festiva. No entanto, mesmo dali, conseguiam aperceber-se do sentimento de pânico que o fogo provocava, ao ponto de lhes parecer ouvir o próprio rugido das chamas devoradoras. Shimamura apertou o braço à volta dos ombros de Komako.

- Não é preciso teres medo - disse ele, desajeitadamente, tentando consolá-la.

- Oh, não! Oh, não! Oh, não! - repetiu, sacudindo a cabeça, antes de rebentar em soluços.

Contra a palma da mão de Shimamura, o seu rosto parecia ainda mais delicado do que habitualmente, e a pequena testa obstinada tremia.

Tinha sido o espectáculo do incêndio o que a levara a desfazer-se em lágrimas, e Shimamura não se inquietava por saber qual podia ter sido a causa do seu desespero, além daquele. Mas Komako deixou de chorar tão depressa como começara a soluçar e, sacudindo o braço de Shimamura, exclamou:

- Havia esta noite uma sessão de cinema no armazém! Devia estar cheio de gente... Deve haver feridos... mortos... gente queimada!

Apertando o passo subiram em direcção do hotel, onde ouviram clamores: os clientes empilhavam-se nas varandas do primeiro e do segundo andar, iluminadas pelas portas dos quartos, deixadas entreabertas. Ao fundo do jardim, recortando-se sobre a esteira de luz que caía do alto, ou, quem sabe, das estrelas, a silhueta sombria dos crisântemos destruídos e murchos recortava-se na sombra. No espaço de um segundo, Shimamura chegou mesmo a pensar que se tratava do clarão do incêndio. Por detrás da sebe surgiram as sombras de três ou quatro pessoas. Entre aqueles que se precipitaram para as escadas reconheceram o porteiro.

- É no armazém dos casulos? - perguntou Komako, quando passaram por eles.

- Sim, é verdade!

- Há feridos? Diga-me se há feridos! - exclamou Komako, numa voz angustiada.

- Estão a tentar evacuar toda a gente. Foi a película que se incendiou e, no espaço de um segundo, estava tudo a arder. Foi o que me comunicaram pelo telefone. Vejam lá! - disse ele, estendendo os braços, sem deixar de correr - Dizem que estão a lançar as crianças, uma a uma, pela galeria!

- Que vamos nós fazer? - perguntou Komako, que se tinha posto a seguir os que desciam correndo, levando Shimamura no encalço.

Ultrapassada pelos mais apressados, tinha também começado a correr.

Ao fundo das escadas a sua angústia aumentou. Por cima dos telhados apenas se distinguia a alta coluna das chamas, enquanto o alarme soava cada vez mais próximo e mais insistente.

- Tenha cautela que isso escorrega! Está gelado! - exclamou Komako, parando por momentos, para se voltar na direcção de Shimamura. - Não se preocupe comigo. Deixe lá! Não tem necessidade de vir mais longe. Eu é que preciso de lá estar, porque pode haver feridos, gente da aldeia...

Com efeito, Shimamura não tinha nenhuma razão para prosseguir. A primeira excitação tinha-o abandonado. Baixando os olhos verificou que a linha de caminho-de-ferro se encontrava mesmo a seus pés.

- Oh, a Via Láctea...! Como está esplêndida! - exclamou Komako continuando a correr à sua frente, com o olhar erguido para o céu.

A Via Láctea... e ao contemplá-la também Shimamura teve a impressão de nadar dentro dela, de tal modo a sua fosforescência lhe parecia próxima. Era como se ela o tivesse aspirado para junto de si. Teria sido sob a impressão desta imensidade esplendorosa, deslumbrante, que o poeta Bashô a descrevera como um arco de paz sobre o mar enfurecido? Justamente por cima dele, a Via Láctea inclinava a sua abóbada, estreitando a terra nocturna num abraço límpido, indecifrável, sem inquietação. Imagem pura e próxima de uma terrível volúpia, sob a qual, por breves instantes, Shimamura viu representada a sua própria silhueta, recortada numa sombra tão múltipla como as estrelas, de tal modo inumeravelmente repetida, que havia lá no alto partículas de prata na luz leitosa e até no reflexo cintilante das nuvens, das quais cada gota ínfima e irradiante de luz se confundia com a sua infinidade, de tal modo o céu era claro, de uma limpidez e de uma transparência inconcebíveis. Shimamura não podia afastar do seu olhar este manto sem fim, este céu infinitamente ténue, subtilmente tecido no infinito.

- Espera por mim! - gritou Shimamura para Komako, que caminhava à sua frente.

- Venha depressa! - exclamou ela, sem deixar de correr na direcção da encosta da montanha, atrás da qual caía a cortina luminosa da Via Láctea.

Sob o clarão sensível das estrelas sobre a neve, Shimamura quase julgou ver, de tal modo ela caminhava depressa, o forro vermelho do seu quimono interior, arregaçado tal como o outro e que a corrida fazia esvoaçar.

Atrás dela, Shimamura começou a correr tão depressa quanto podia, para a alcançar. Komako abrandou um pouco e pegou-lhe na mão, deixando cair o longo quimono.

- Então sempre vem?

- Sim.

- Sempre essa curiosidade! - disse ela, puxando a ponta do quimono, que se arrastava pela neve. - Volte para trás, senão as pessoas ainda acabam por falar...

- Só um pouco mais adiante.

- Faz mal. Censurar-me-ão depois, por tê-lo trazido para ver o incêndio.

Ele concordou com um movimento de cabeça e ficou imóvel, mas ela deixou a mão levemente pousada no seu braço, avançando sempre.

- Espere por mim em qualquer parte. Não me devo demorar. Irei depois encontrar-me consigo. Onde quer esperar?

- Diz tu.

- Vejamos. Talvez um pouco mais longe daqui... Mas, sacudindo violentamente a cabeça, acrescentou:

- Não, não quero que fique. Já não quero!

E lançou-se tão violentamente nos seus braços que Shimamura foi obrigado a recuar um passo ou dois. À beira do caminho, atrás dele, numa zona mais baixa, distinguiu uma fileira de alhos-bravos, acima da neve.

E foi uma torrente de palavras que caiu sobre Shimamura.

- Tinha alguma necessidade de me dizer uma coisa dessas? Sim, porque me disse uma coisa tão detestável? Uma excelente mulher! Agora que vai partir... Escusava de me ter dito isso!

Shimamura via de novo Komako sobre a esteira, espetando com desespero e raiva o soalho com o alfinete de cabelo, de prata brilhante.

- Isso faz-me chorar. Mal entrei em casa, desatei a chorar. Tenho medo da separação. Por favor, vá-se embora! Jamais esquecerei que me fez chorar.

Ao pensar que um mal-entendido, uma simples falta de atenção, tivesse podido feri-la e feito sofrer no mais fundo da sua alma, no mais íntimo da sua feminilidade, Shimamura sentiu então, mais intensamente ainda, o horror da separação.

De longe, vindo do local do incêndio, chegou até eles um clamor da multidão. Um violento sobressalto fez estremecer as línguas de fogo, coroadas depois por uma girândola de fagulhas que se lançou contra o céu.

- Olhe! Arde cada vez mais!

A explosão das chamas fê-los interromper a conversa, e precipitaram-se na direcção do incêndio.

Komako parecia voar, mal assentando os pés no chão coberto de neve. De aparência frágil, era um desses seres bastante resistentes, reconhecia Shimamura, ele próprio estimulado pelo simples facto de a ver correr, mas ficando para trás, apesar de ter um corpo vigoroso. Felizmente, também Komako se cansou depressa e deixou de correr, para esperar por ele, lançando-se nos seus braços.

- Tenho os olhos a chorar - disse ela, respirando ofegante. - É por causa do frio.

Shimamura sentia também os olhos molhados, irritados com o frio, mas tinha a cara a arder. Pestanejou, procurando reprimir toda aquela água que se iria transformar em lágrimas e, com os olhos semicerrados, recebeu de novo o cintilar da Via Láctea.

- Tem sempre este brilho todas as noites?

- A Via Láctea? É, maravilhosa, não é? Geralmente não brilha com tanta intensidade. Nem todas as noites são assim tão claras.

O arco resplandecente que mergulhava na sua direcção parecia inundar de luz a cabeça de Komako.

A linha do seu nariz, ligeiramente aquilino, não parecia a Shimamura tão acentuada como de costume, e a cor tão intensa dos seus lábios desaparecera-lhe do rosto. Seria possível que aquela maravilhosa claridade que se estendia pelo céu fosse tão sombria? Shimamura não podia acreditar. E a noite? Poderia ser mais tenebrosa do que aquela vez, ao luar, quando a intensidade deslumbrante do caminho estrelado brilhava muito mais do que a mais radiosa lua cheia? Tinha no entanto de admitir que o cintilar exuberante da Via Láctea não projectava nenhuma sombra, sobre o chão, e a sua luz fantasmática dava ao rosto de Komako o estranho aspecto de uma máscara antiga, sob a qual transparecia claramente um elemento de feminilidade. Erguendo de novo o olhar, sob a imensa abóbada de luz, Shimamura sentiu de novo esse abraço do céu resplandecente, estreitando a terra.

Como uma aurora infinita, a Via Láctea inundava-a completa-mente, antes de se perder nos últimos confins do mundo. E essa serenidade fria percorria-o como um arrepio, como uma onda voluptuosa, que o deixou ao mesmo tempo surpreendido e maravilhado.

- Se partir - disse-lhe Komako, continuando a andar -, tornarei a encontrar o meu caminho.

E enquanto caminhava ia ajeitando o penteado desfeito. Ao fim de alguns passos voltou-se para dizer:

- Que vai fazer? Tenciona mesmo ficar aqui? Imóvel, Shimamura contemplava-a:

- Quer esperar por mim? Voltaremos depois para os seus aposentos...

Despediu-se com um pequeno gesto da mão esquerda e começou a correr. A sua pequena silhueta foi desaparecendo na sombra, como se fosse absorvida pela montanha.

Seguindo-a com os olhos, Shimamura conseguiu ainda ver o rendilhado dos cumes rasgando o véu sumptuoso da Via Láctea cujo puro cintilar descobriu no mais alto da abóbada, em pleno céu, abandonando os montes às suas pesadas trevas.

O perfil de Komako apagara-se por detrás das casas da rua principal, e Shimamura dispôs-se a segui-la.

Avançando em vigorosas passadas, cuja cadência era marcada por um grito gutural, he-ho! he-ho!, vinham uns homens puxando uma bomba de incêndio, seguidos por uma multidão compacta a que se juntou Shimamura, ao chegar à praça.

Em seguida aproximou-se uma outra bomba, e Shimamura afastou-se para a deixar passar, continuando a caminhar atrás dela. Era um velho aparelho manual, um utensílio grotesco, puxado por uma multidão de homens, atrelado a uma longa corda, com uma outra multidão de homens, de cada lado, para o manejarem. No meio desta multidão, a bomba parecia minúscula.

Komako tinha-se também afastado, para deixar passar a bomba, e quando descobriu Shimamura foi a correr juntar-se a ele por entre a multidão. As pessoas iam-se afastando para deixar avançar o engenho, voltando a juntar-se de novo à multidão, como se fossem aspiradas por ele. Shimamura e Komako eram arrastados pela multidão que corria para o incêndio e acabaram por se perder nela.

- Afinal acabou por vir! Sempre curioso, não é verdade?

- Pois claro! Mas que bomba tão ridícula e miserável! Um engenho daqueles deve ter, pelo menos, cem anos.

- É natural. Mas tenha cuidado, senão ainda cai.

- Realmente, isto parece um ringue de patinagem.

- E ainda não sentiu o vento gelado que faz correr a neve rasante durante noites inteiras! Isso é que devia ver! Mas evidentemente não se arriscaria a tanto! Os coelhos e os faisões chegam a entrar nas casas, ao fugir à tempestade.

Komako falava num tom animado, com uma espécie de impaciência, e a sua voz parecia ter adquirido a cadência desse grito ritmado que se ouvia à frente deles e do espezinhar da multidão apressada que seguia atrás, essa balbúrdia na qual Shimamura se sentia também integrado.

Ouviam agora o crepitar do fogo, e as labaredas elevavam-se à sua frente. Komako agarrou-se ao braço de Shimamura. As casas baixas e negras que ladeavam a rua tão depressa surgiam iluminadas pelo clarão do fogo, como voltavam a desaparecer na escuridão da noite, parecendo respirar. A água das bombas corria abundantemente sobre a calçada. E, à sua frente, surgiu um muro compacto e intransponível, feito pela multidão. Do fumo acre vinha um cheiro de seda queimada.

Uma teia de gritos cobria a multidão, repetindo as novidades de grupo para grupo. Sim, o fogo desencadeara-se na máquina de projectar; as crianças tinham sido lançadas, uma a uma, do alto da galeria; mas não havia nenhum ferido; não, não, felizmente o armazém não continha nem casulos nem reservas de arroz. Apesar destas vozes gritantes, um grande e anormal silêncio reinava agora sobre o cenário dramático do incêndio diante do qual todos ficavam hipnotizados, como se a violência das chamas calasse as vozes, abafasse os corações e fizesse desaparecer os termos de comparação. Ninguém tinha mais forças a não ser as que advinham do facto de assistirem ao terrível rugir do fogo e de ouvirem o ruído das bombas manuais.

De vez em quando um retardatário chegava a correr da aldeia, gritando pelo nome de algum familiar. Respondiam-lhe daqui ou dali, e as vozes interpelavam-se e trocavam exclamações felizes e libertas de inquietações. Apenas estas vozes testemunhavam algo de vivo e presente. A sirene tinha-se também calado.

Shimamura, receando ser notado, afastara-se de Komako, para deslizar por detrás de um grupo de crianças que foi obrigado a recuar, devido ao calor que vinha do braseiro. As crianças espezinharam a neve fundente, deixando à sua frente um magma lamacento de neve e de água, amassado por mil marcas de pés.

Tinham recuado até ao campo que se estendia junto do armazém de casulos, e o grosso da multidão, vindo da rua, amontoara-se na mesma direcção.

O incêndio devia ter começado pela entrada do edifício, onde o tecto e as paredes estavam inteiramente consumidos, devorados pelas chamas até ao meio do armazém, enquanto as vigas de apoio e os barrotes continuavam a arder. Todo o edifício, semelhante a um grande celeiro, era feito de madeira: vigas, tabiques, pavimento e tecto; o interior incandescente ainda não estava obscurecido pelo fumo. O que restava do tecto, inundado pelo jacto das bombas, parecia ter deixado de arder, mas o fogo continuava a resistir e a propagar-se, explodindo bruscamente aqui e ali, em grandes labaredas, sobre as quais se encontravam imediatamente os jactos de água das três bombas em acção. Com a pressa, acontecia por vezes algum deles não acertar no tecto, e a água, suspensa, parecia formar por breves instantes um repuxo hesitante, antes de se volatilizar para voltar a cair em finas e invisíveis gotas do lado oposto. No interior das labaredas, a água fazia subir em torvelinho uma coluna de fumo negro, à volta de um novelo de faúlhas em brasa.

Erguidas no ar, as faúlhas conduziram o olhar de Shimamura em direcção à Via Láctea, por instantes ofuscada pelo fumo, reaparecendo ainda mais transbordante, mais profunda, mais magnificamente luminosa e abobadada do outro lado, onde as gotas iluminadas do jacto das bombas, quando este não atingia o objectivo e se volatilizava no espaço, pareciam confundir-se com ela.

Komako tinha-se juntado a Shimamura, sem este saber quando a sua mão procurara a dele, e ele voltou-se para ela sem nada dizer. Komako contemplava o fogo, cujo clarão movediço dava ainda mais vida ao seu rosto, levemente avermelhado e intensamente crispado. Shimamura sentiu-se profundamente comovido. Komako tinha o carrapito um pouco desmanchado, e o pescoço descoberto agitava-se precipitadamente, ao respirar. Os dedos de Shimamura tremiam de impaciência, de tal modo era intenso o desejo de lhe tocar; mas as suas mãos estavam húmidas. A mão de Komako estava, na verdade, ainda muito mais quente. E, sem saber porquê, Shimamura teve o sentimento de uma separação próxima entre ambos. Sentiu que qualquer coisa lhes impunha essa separação.

Ao longo das pilhas de tábuas e dos barrotes junto da entrada, as chamas tinham de repente readquirido o seu furor, atraindo imediatamente o jacto de uma bomba, que se evaporou em pesadas nuvens sibilantes enquanto o vigamento abatia.

A multidão soltou um grito enorme, quando todos os olhares viram cair, no imenso braseiro, o corpo de uma mulher.

A galeria interior, construída sobretudo para que o armazém pudesse servir também de sala de espectáculos, não atingia a altura normal de um andar, e o corpo que tinha caído nem levara uma fracção de segundo para se precipitar no solo; mas toda a gente o tinha visto. Todos os olhos haviam registado a queda, com todos os pormenores, como se o tempo tivesse sido suspenso pelo movimento insólito desenhado por esse corpo estranhamente inerte, semelhante a um fantoche, suspenso no espaço. Sabia-se que a infeliz estava inconsciente. E a sua queda foi acabar sem ruído entre a fogueira que se tinha reavivado à entrada e no átrio, continuando viva nas traseiras do edifício. No interior, a água tinha dissolvido tudo, e o corpo, ao cair no chão, não levantara nem cinza nem poeira.

O jacto arqueado de uma das bombas inclinou-se para vir inundar a fogueira e os escombros num determinado ponto, onde apareceu subitamente o corpo de uma mulher que parecia surgir da água. Assim se desenrolara o drama. O corpo tinha ficado horizontal ao cair no vazio, e Shimamura tinha tido um movimento de recuo, sem no entanto sentir nenhum pavor. Via tudo isso como uma fantasmagoria; a rigidez natural do corpo que se tinha desvanecido no vazio adquirira uma leveza inacreditável, uma inverosímil doçura, de tal modo a ausência de resistência viva, que fazia dela um fantoche, abolia para ele a diferença entre a vida e a morte... Se Shimamura tivesse vibrado teria sido apenas pelo receio de qualquer desordem fatal, o receio de que a cabeça, o joelho, uma anca viessem de repente romper essa harmonia, essa linha ideal... Mas, até no solo, o corpo tinha mantido a mesma posição.

Komako soltou um grito lancinante, escondendo o rosto entre as mãos. Shimamura, com o olhar fixo, contemplava a forma inerte.

Em que altura teria ele sabido que se tratava de Yoko? O grito de horror, soltado pela multidão, e o grito de Komako pareciam-lhe ter sido simultâneos, e, nesse próprio instante, via o frémito dum espasmo na perna de Yoko, inanimada no chão.

O berro terrível de Komako varou-o de um lado ao outro, e o frémito da perna de Yoko provocou-lhe um arrepio ao longo da espinha, até aos dedos dos pés. Sentia o coração dilacerado por uma indescritível angústia.

A perna mal se movia, apenas o suficiente para que se tivesse a certeza de estar a vê-la. Mas o espasmo ainda não tinha acabado, e já o olhar de Shimamura subia ao longo do quimono vermelho, até ao rosto.

Com o quimono erguido um pouco acima do joelho, Yoko tinha caído de costas e jazia, sem sentidos, completamente inerte, com excepção do movimento espasmódico da perna. Mas sem que soubesse bem porquê, esta imobilidade não despertou em Shimamura nenhuma imagem da morte: contemplava-a mais como um estado de metamorfose, uma fase de transição, uma forma de vida física.

Em cima da cabeça de Yoko ardiam ainda algumas traves da galeria que abatera. Sobre o seu soberbo olhar, esse olhar que trespassava as pessoas de um lado ao outro, as pálpebras tinham-se fechado. O queixo salientava-se, prolongando a linha do pescoço. E os reflexos vermelhos do incêndio vinham dançar sobre a palidez do seu rosto.

Um novo sentimento invadiu o coração de Shimamura, ao lembrar-se da luz maravilhosa, perdida lá longe, na montanha, e que tinha vindo brilhar sobre os traços comoventes de Yoko, no vidro crepuscular da janela, quando ele voltava para se encontrar com Komako. Os anos durante os quais a tinha conhecido, os meses que acabara de passar com ela, parecia-os ver igualmente iluminados pelo cintilar longínquo dessa lâmpada solitária. Uma angústia sem nome, o peso de uma tristeza infinita dominavam-no completamente.

Komako afastara-se dele lançando-se sobre o fogo, no momento em que tinha soltado o grito lancinante, cobrindo o rosto, enquanto o clamor horrorizado da multidão parecia ecoar ainda. O longo quimono de gueixa flutuava atrás dela, e Komako corria, cambaleando entre as poças de água e o amontoado de vigas meio calcinadas, que lhe dificultavam o andar.

Voltou por fim, trazendo Yoko nos braços. O esforço vincava-lhe os traços, contraindo-lhe desesperadamente todo o rosto, sob o qual, inexpressivo e quase sereno, balançava o rosto de Yoko, tão branco e inanimado como no momento em que a alma se desprende do corpo.

Ninguém poderia saber se Komako suportava o peso do seu holocausto ou o do seu castigo. Avançava sem sequer se dar conta que ia abrindo uma passagem entre os escombros.

A multidão, até ali aterrada, abriu-se e fechou-se sobre ela, recuperando as suas mil vozes.

- Para trás! Afastai-vos!

Era a voz de Komako que Shimamura ouvia.

- Vai ficar louca! Louca! Louca! - ouviu ainda, depois do grito de Komako.

Mas quando quis avançar para a voz quase delirante, os homens que se tinham precipitado para lhe tirarem dos braços Yoko inerte, os homens que se apertavam à volta dela, repeliram-na tão violentamente que perdeu o equilíbrio e cambaleou. Deu um passo para se recompor e, no instante em que se inclinava para trás, a Via Láctea, numa espécie de extraordinário frémito, fundiu-se nele.

 

 

                                                                  Yasunari Kawabata

 

 

 

NOTAS

  1. Albergue à japonesa, por oposição aos hotéis de estilo internacional. (N. T.)
  2. Meio de aquecimento correntemente usado no Japão. Trata-se de uma grande escalfeta, coberta com uma espessa almofada, uma espécie de móvel no qual as pessoas se instalam para porem as mãos sobre a tampa, ao calor de um fogo de brasas. (N. T.)
  3. Instrumento musical de três cordas, tradicionalmente tocado pelas gueixas. (N. T.)
  4. A fonte por onde corre permanentemente a água da nascente termal e que enche o grande tanque. (N. T.)
  5. Banhos públicos, alimentados pela mesma nascente termal para a qual foram instalados os hotéis. (N. T.)
  6. No sentido japonês deve entender-se pejorativamente como uma taberna, onde as mulheres fazem companhia aos clientes. (N. T.)
  7. Calças montanhesas. (N. T.)
  8. Pequena escalfeta (de loiça ou de madeira), utilizada para as mãos. (N. T.)
  9. A notação da música japonesa clássica é muito complicada. (N. T.)
  10. Ouvir os corvos: presságio de morte. (N. T.)
  11. Fornalha quadrada para a lareira, onde arde um fogo vivo. (N. T.)
  12. Nas pequenas casas de aldeia, na montanha, era raro existir um contador: pagava-se a corrente proporcionalmente ao número de lâmpadas utilizadas. (N. T.)
  13. Género de grandes gafanhotos (Mecopoda elongata). (N. T.)
  14. Harmonia que imita o canto das aves e que literalmente significa: «Cem metros em direcção ao cemitério, mais cem, mais cem e chegámos». (N. T.)

 

                                                                 

 

 

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