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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TERRA MORTA / Castro Soromenho
TERRA MORTA / Castro Soromenho

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

A luz amarela do candeeiro de petróleo espalhava-se sobre o pano de ramagens que cobria a mesa. A cara dos homens estava na meia sombra, por cima do quebra-luz. Eram quatro à volta da mesa. Estavam calados, com a atenção concentrada nas cartas de jogo que um deles, de costas voltadas para a porta que dava para a estrada, talhava com gestos vagarosos, aparentando serenidade. Mas era tão visível o esforço que fazia para se mostrar sereno que os companheiros trocaram rápidos olhares. Pela janela aberta para a noite que há muito se fechara sobre a vila, entrava de momento a momento o grito de alerta dos sipaios que rondavam o edifício da Adminis­tração da Circunscrição e o Paiol, um quilómetro afastado da povoação, à beira da estrada. De grito a grito, tudo ficava morto em silêncio. Ninguém ligava importância aos alertas, tão habituados estavam a ouvi-los desde o pôr do Sol a madrugada alta. Porém, como consideravam a ronda de todo inútil,-porque na Administração nada havia para roubar e no Paiol só se encontravam espingardas de carregar pela boca, ferrugentas e sem pistão, despojos das antigas guerras negras, todos se insurgiam contra o administrador Gregório Antunes que punha os sipaios a soltarem aqueles gritos monótonos sobre Camaxilo, como se a vila fosse uma praça-forte.

 

 

 

 

— Então?

— Vou dar.

Os outros empurraram o dinheiro para a frente e reti-

raram as mãos da mesa. As cartas deslizaram sobre o pano de ramagens, mas ninguém lhes tocou.

— Vou ver — disse o que bancava.

Juntou as suas duas cartas, levantou-as até aos olhos semicerrados sob sobrancelhas unidas e separou-as vaga­rosamente. Logo, os olhos pequenos e redondos como contas de vidro se abriram cheios de luz e alegria, e um estremecimento percorreu-lhe os dedos.

— Perderam, meus senhores — disse com uma voz falsamente grave, atirando as cartas abertas para a mesa.

— Perderam. São dois noves — e as suas mãos papudas estenderam-se para o dinheiro. Os olhos e a boca riam um riso babado. — Vejam, vejam...

— Não somos cegos — disse um deles, com voz dura.

— Não tenho culpa, Américo, que você esteja com pouca sorte — disse o que ganhou, descansando as mãos pequenas e papudas, como sapos, sobre as notas e os níqueis, espiando-o com olhar matreiro, idiotamente feliz.

— Não tenho culpa...

— Olhe, Silva, nunca me irrito por perder. Você está muito enganado. Estou-me nas tintas para o dinheiro. Mas ninguém pode é com esses ares que você toma. Por que é que se ri dessa maneira, secretário? Parece que nunca viu dinheiro... Isso é de garoto.

— Eu... eu? Não me estou a rir de vocês. A gente não está aqui para se esfolar. Mas é o meu feitio. O que é que querem que eu faça? Já não se pode brincar?

— Deixe-se disso, homem! — tornou Américo. — Você não pode ganhar sem ficar para aí a mostrar os dentes. Mas quando perde faz uma cara que até parece que lhe escarraram em cima.

— Nem dorme...

— Olha, olha quem fala! — disse Silva. — Vocês estão ali a ver o Vasconcelos... Ó Vaiadas, você lembra-se daquela vez...

— Não me lembro de nada — atalhou bruscamente Vaiadas.

Fez-se silêncio. Depois, Vaiadas disse:

— Secretário, para que é que você está sempre com essas coisas? Todos nós já o conhecemos... Ainda há-de vir a primeira vez que você... Bem. Guarde o seu dinheiro. — E com um riso de troça: — Você gosta mais de dinheiro que o macaco de bananas...

— Se gosta— disse Vasconcelos, em tom mordaz.

— O que é que você tem com isso? — retrucou o secretário Silva voltando-se para o Vasconcelos. — Já lhe pedi dinheiro emprestado? Diga, diga. Devo-lhe alguma coisa? Meta-se na sua vida que é bem melhor e não chateie os outros. Ganhei ou não ganhei?

— Quem é que disse que você não ganhou — falou Vaiadas, irritado com a atitude do Silva, a pretender des­carregar o azedume no Vasconcelos, que além de seu subordinado era um pobre diabo, porque não tinha cora­gem para o fazer com os outros. — Você desvia sempre os assuntos. Silva. Ninguém lhe está a pedir contas. Isso não pega, homem.

Joaquim Américo tinha-se levantado enquanto eles discutiam e fora encostar-se à janela, de costas voltadas para os companheiros. Pôs-se a tamborilar com os dedos na vidraça. Não se queria meter em discussões, porque por pouco se azedava, tudo começava a ficar vermelho à sua frente e acabava por bulhar. Havia momentos que não podia encarar com o secretário, sempre submisso e sabujo para os superiores, fanfarrão e velhaco para os que lhe estavam na dependência e se acobardavam.

— Eu não tenho culpa de ter ganho — desabafava Silva, metendo o dinheiro, notas-amarrotadas sobre moe­das, no bolso do dólman muito apertado, a desenhar-lhe os mamilos fartos e empinados como seios de menina. Vaiadas estava furioso. Doía-lhe que o secretário levasse o dinheiro, não porque tivesse perdido coisa que afligisse alguém, mas para que se não fosse de riso babado.

— Ó Joaquim, queres continuar? — propôs ele.

Sem se voltar, Américo encolheu os ombros. Depois, disse:

— Como vocês quiserem.

— AhVocê não quer... Depois digam que eu é que não quis dar a desforra. — E Jaime Silva riu, nervoso, mordiscando os lábios, com as mãos enterradas nos bolsos.

Joaquim Américo voltou-se num movimento brusco e encarou-o; depois, disse:

— Você hoje está idiota, secretário.

— Hoje, é favor... — adiantou Vaiadas, torcendo a boca num sorriso.

Vasconcelos largou uma gargalhada, depois outra, mas já forçada, o que irritou sobremaneira o Silva, que ficou muito sério a olhar para Joaquim Américo.

— Se querem jogar, é já— disse ele, carrancudo. Mas, de pronto, mudou de tom, tirou o dinheiro da algi­beira e jogou-o bruscamente para cima da mesa. E acres­centou:— Vejam. Tudo isto por causa de cento e vinte angolares... Parece que ganhei uma fortuna! Depois, sou eu que...

— Basta, Silvai Guarde o dinheiro, que ninguém lhe pediu contas.

— Mas eu dou a desforra, Américo — amedrontou-se o secretário. — Para que é que você está com essas coisas? Nós demo-nos sempre bem... Que diabo! Tenho sido sempre seu amigo, Américo. Eu quero dar a desforra.

— É justo — disse o aspirante Vasconcelos.

— Justo! Vaiadas, você acha justo? — apelou Jaime Silva. — Eu dou, quero dar a desforra ao Américo. Não preciso de dinheiro do jogo.

— Bem, bem; acabemos com isto — cortou Vaiadas.

— Há-de ser sempre a mesma coisa. A gente vem para passar o tempo, nesta porcaria de terra, e começa logo a discussão.

— Eu não jogo — declarou Vasconcelos, levantando-se.

— Só três não vale a pena — arriscou Silva. E guardou o dinheiro.

— Vale,   vale — disse   Américo,   de   súbito   interes­sado. — Eu jogo.

Abandonou a janela e veio encostar-s» à mesa. Tirou do bolso das calças uma mão cheia de notas, amarrotou-as e atirou-as para a mesa.

— Quanto é? — perguntou   Silva,   congestionado.   E olhou para Vaiadas, perplexo.

— Só numa carta — disse Américo.

— Mas quanto é?

— Tudo.

Vasconcelos sentara-se no peitoril da janela, com as pernas para dentro, a dar a dar. Olhava desdenhosamente para o Silva, de dólman desabotoado no pescoço grosso e vermelho, sempre suado. Estava a limpá-lo com um lenço de ramagens azuis e verdes, mas as mãos tremiam-lhe tanto que acabou por metê-las nos bolsos.

— Você está a brincar, Américo...—tentou ele, enca­bulado.

Levantara-se, muito apertado na farda de caqui que lhe desenhava as formas redondas e a barriga empinada e apoiou-se no rebordo da mesa. Baixo e gordo, dava pelo ombro de Joaquim Américo.

«Um porco em pé. Porco por dentro e por foral», pensou Américo.

— Parece que está com medo... — insinuou.

— Nunca tive medo. Jogo o que você quiser — regou-gou Silva.

Vasconcelos deu um salto da janela e aproximou-se deles. Ficaram os quatro de pé, à volta da mesa, com o pano de ramagens coberto de insectos atraídos pela luz onde se queimaram.

- Baralha tu. Vaiadas — pediu Américo.

Fez-se um curto silêncio, que Jaime Silva interrompeu:

— Está um calor dos diabos! — e voltou a limpar o pescoço. Passou a mão suada pela calva luzidia: — Que calor.

— Pronto! — disse Vaiadas; e colocou o baralho no meio da mesa, pondo-se a atirar ao chão os insectos de asas queimadas.

— Mas é a valer?... — perguntou Vasconcelos, em tom irónico, olhando de viés para o secretário.

— É, sim — disse Silva, com voz surda. Olhou para Vasconcelos, trémulo de rancor, os olhos frios e duros, e acrescentou: — Se quer ponha aí o seu dinheiro. O seu, hem...

Vasconcelos não respondeu, voltou-lhe as costas e afastou-se com vontade de o esbofetear. Silva nunca perdia uma oportunidade de, por qualquer modo, aludir a uns dinheiros que Vasconcelos retirara do cofre da Estação dos Correios. O secretário ganhara-lhe esses cobres ao jogo e, no dia seguinte, desconfiado, porque o aspirante nunca tinha dinheiro, devia a toda a gente, deu balanço aos valores selados. Faltavam uns centos de escudos. Vasconcelos comprometeu-se a repor o dinheiro no fim do mês, mas o secretário não aceitou, disse-lhe que «o dinheiro do Estado é sagrado» e, num gesto que espantou o aspirante, emprestou-lhe o preciso para acertar as con­tas. Vasconcelos assinou um documento de dívida, redi­gido pelo secretário, no qual se provava o destino desse dinheiro. E quando no fim do mês o quis resgatar, Silva deu-o por perdido e passou recibo. Foi então que ele percebera a armadilha. O caso não chegou ao conheci­mento dos outros funcionários. Mas Vasconcelos sabia que o Silva era homem para exibir o documento, chamar-lhe ladrão na cara em frente de toda a gente e mostrá-lo ao administrador, só para o comprometer e dar-se ares de ter sido seu protector.

— Corte, Silva — ofereceu Américo.

A mão papuda do secretário tremeu ao dividir o baralho. Vaiadas deu cartas. Com a ponta do dedo, Joaquim Américo voltou a sua carta.

— Oito! — gritou Vaiadas. Silva tinha um terno de copas.

— Quanto é? — perguntou ele, com voz abafada e os olhos azuis muito abertos, parados nas notas amachucadas.

— Conta ai. Vaiadas — pediu Américo.

«Que estupidez! Uma destas!», dizia Silva mental­mente, as mãos fechadas com desespero nos bolsos das calças, enquanto Vaiadas desamarrotava as notas e as contava.

— Você rebenta com os bolsos... — mofou Vasconcelos.

— Parvo! — regougou Silva, entre dentes, sem apartar os olhos do dinheiro.

— Mil cento e sessenta angolaresl —disse Vaiadas. — Boa bolada, sim, senhor l

— Não pode ser—espantou-se o secretário. — É o vencimento de um mês l

Os outros largaram a rir.

— Quase — disse Américo, gozando com o seu espanto. O secretário embatucou, o rosto suado vermelho como

pimentão, sentou-se à mesa e começou a contar o dinheiro. Vaiadas ficou furioso, mas não disse nada; e começou a andar, de mãos atrás das costas, de um lado para o outro do quarto. A dada altura, parou e disse, sem olhar para o Silva:

— Isso para você não é nada... —e o tom da sua voz era mordaz.

O secretário torceu-se na cadeira, mas não lhe respon­deu. Américo fez sinal a Vaiadas para que o deixasse. Ele foi sentar-se numa cadeira de braços, atrás do Silva, tirou o cachimbo do bolso do dólman desabotoado no peito nu, negro de cabelos, e começou a carregá-lo, mas os dedos tremiam-lhe tanto que desistiu.

— Isso para você não é nada... —tornou.

— Não ando cá a roubar — explodiu Jaime Silva. — Não sou chefe do Cuilo...

Vaiadas levantou-se de um salto, agarrou-o por um braço e arrancou-o da cadeira.

— Pulha Você vai-me dizer isso lá fora, já, já— E puxava-o para a porta. — Canalha! Canalha!

Gorducho e baixo. Silva ainda parecia mais pequeno ao lado de Vaiadas, muito alto e inverosimilmente magro, a tremer como vime ao vento.

— Seu pulha! Tratante! Trago-o atravessado aqui há muito tempo, aqui, aqui— e Vaiadas batia com a mão na garganta. — Mas é hoje que lhe rebento esse focinho de porco l

Américo meteu-se entre eles e afastou-os com os braços.

— Deixem-se disso — gritou.

— Não, Joaquim. Este gajo vai-me repetir o que disse. Este canalha desconfiou de mim e foi contar o dinheiro

— e agitava os braços, deitado sobre Américo, a tentar alcançar o secretário, que estava muito vermelho, o olhar incerto, com cara de medo.

— Está bem, mas deixa-o — tornou Américo, empur­rando-o para a janela, onde Vasconcelos o segurou por um braço.

Silva afastou-se, foi para trás da mesa, apertando as mãos, confuso.

— Ora... ora a minha vida... — disse em voz baixa; e ficou-se a dar à cabeça.

— Você excedeu-se, secretário — censurou Américo. -Não o quis ofender. Mas...

-Mas o quê, seu biltre! — gritou-lhe Vaiadas, atirando-se para a frente.

Vasconcelos aguentou-o pelo braço.

— Já basta, homem. Fez-se curto silêncio.

— Que chatos que vocês são — enfadou-se Américo.

— Se era para isso, o melhor... — começou Vascon­celos, mas calou-se sob o olhar duro de Joaquim Américo.

O que ele queria era vê-los engalfinhados e o Silva bem esmurrado. O secretário estava tão acabrunhado que nem o ouviu.

Carlos Vaiadas saiu para a varanda, deixando a porta aberta, e começou a andar de um lado para o outro, bufando. Silva espiava-o sempre que passava defronte da porta, de mãos nos bolsos das calças, atirando as pernas em longos passos, todo curvado, com um começo de marreca a embarracar-lhe o dólman aberto, a dar a dar. Debruçado sobre a mesa. Silva passou um vale da importância per­dida e estendeu-o a Américo.

— Amanhã pago. Não tenho aqui todo o dinheiro.

- Rasgue isso, Silva. Você paga quando quiser.

O secretário pegou no boné, encaminhou-se para a porta que dava para o quintal, porque não queria encon­trar-se com o Vaiadas, e despediu-se em geral. Mas só Américo lhe correspondeu.

Vaiadas voltou à cadeira de braços e acendeu o ca­chimbo. Ainda ouviram o secretário chamar pelo criado. Debruçado na janela, Vasconcelos viu-o subir a rua, ao lado do moleque que levava o lampião. A luz treme-luziu por entre as árvores do largo da Administração e desapareceu atrás da casa do Silva. Estava tão absorto, com os olhos abertos para a noite, seguindo o Silva com a imaginação, que não ouviu Joaquim Américo chamá-lo.

— Caramba! Que é que estás a ver?

— Ahl—fez ele, voltando-se sobressaltado. — Não estou a ver nada. O que é?

Américo foi à janela e espiou a noite negra, aberta ao longe pelo clarão das fogueiras da senzala dos sipaios e capitas, junto à cadeia, no alto da povoação.

— O gajo ia que nem uma bicha... — disse Vasconcelos esfregando as mãos. — Parecia uma bola a rebolar à frente do lampião.

— Fecha a janela. Não se pode com tanta bicharada.

— Ó Vaiadas, foi pena... — começou Vasconcelos.

— Deixa-te disso — cortou Américo. — Eu bem estava a ver o que tu querias, velhaco... — e riu alto, palmeando o ombro de Vasconcelos. E voltando-se para Vaiadas: — Este só o não trinca porque não pode...

Vaiadas ardeu em curiosidade:

— O que houve? Brigaram?

Américo sorria, trocista, para o Vasconcelos, encabu­lado, a cara a afoguear-se-lhe.

— Desembuchem, coos diabos—explodiu Vaiadas.

— Antonito, conta lá isso, meu velho...—gracejou Américo.

— Lá estás tu...

Mas Vasconcelos contou o que se passara entre a sua companheira, uma negrita que comprara ao pai por um cobertor e uma quinda de sal, e o secretário. Ele andava pela região, a recensear os populações, e o Silva não a largava com recados e presentes que ela devolvia; e os negros a espiá-la e a rirem de troça, pilheriando do branco que nem sabia respeitar a amiga do colega.

Vaiadas bufava de indignação. Levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro, sacudindo os braços.

- Eu partia-lhe a cara, em frente dos negros — berrou ele. — Esmurrava-o todo, todo— E gesticulava desorde­nadamente, os olhos em brasa. — Porcalhãol

— Mas não levou a melhor — disse Vasconcelos.— Foi preciso que uma negra lhe dissesse se não tinha vergonha de se meter com a rapariga de um branco.

— Esmurrava-lhe   o   focinho!—gritava   Vaiadas,   os braços para a frente, os perdigotos a saltarem-lhe da boca com os cantos cheios de espuma.

— O tipo foi tão ordinário — adiantou Vasconcelos — que até lhe mandou um colar de missangas para ela não me dizer nada. Mas disse-me tudo, logo que cheguei. E nem queiras saber, ia sendo o fim do mundo! Fui-me direito a ele e ouviu das boas. Olá se ouviu! Até se pôs a gaguejar, a dizer que era mentira. Mas quando lhe atirei com as missangas às ventas, nem tugiu, o cobardola. Ficou manso que nem um cordeiro. Eu devia era ter-lhe partido a cara, mas andava às turras com o administrador e o gajo ia-se aproveitar para me tramar no serviço.

Calou-se. Sabia que estava a mentir, que tivera von­tade de fazer tudo quanto acabava de dizer, e muito mais.

Mas a verdade é que se agachara ao levantar a voz para o secretário, que de pronto o ameaçara com o caso do dinheiro dos selos. «Para malandro, malandro e meio...», dissera Silva. E ele encolhera-se, fervendo em raiva. E andara toda a noite às voltas na varanda de sua casa, sonhando vinganças ferozes. A negra teve que o ir buscar e arrastá-lo para a cama. E fora um sonho cheio de pesadelos, o Silva a exibir o documento em que ele con­fessava ter desviado dinheiro do Estado, gasto em seu próprio proveito, acusando-o em frente de todos de ladrão e mentiroso, a querer aproveitar-se de intrigas de negros para o achincalhar, a ele, funcionário honesto e amigo dos seus camaradas, dele mesmo Vasconcelos, a quem emprestara o dinheiro que faltara nos cofres do Estado, tirado para a jogatina, só para que o administrador o não metesse na cadeia... Fora uma noite terrível, que António de Vasconcelos não quer lembrar, mas que lhe acaba de se destacar do fundo da memória, viva e brutal. Sente as faces afogueadas, a cabeça a escaldar. Levantou-se, abrju a janela e respirou fundo ao ar da noite. «Malandro, malandro!», dizia a si mesmo, raivoso e impotente.

— Gajos desses, só a chicote! —vociferava Vaiadas. — Que respeito nos podem ter esses selvagens quando vêem coisas dessas? É por essas que hoje se vêem negros voltarem-se contra os brancos. Quando eu vim para cá, nem levantavam os olhos. Agora é o que se vê... E qual­quer dia correm-nos à porrada. A mim, nunca, que até lhes trincava o coração .

Américo soltou uma gargalhada. Vaiadas foi às do cabo:

— É o que te digo — berrava, de braço estendido, o punho fechado, a vibrar, cojérico — trincava-os a todos, todos! — Mas caiu em si, passou a mão pelo cabelo desgrenhado, deu um jeito ao pescoço. — Está tudo mudado — rematou com desalento; e passou-se para a varanda. Vasconcelos, já calmo, fechou a janela e foi sentar-se à mesa.

— Estou farto disto... — disse ele. — Logo que chegue a transferência, nem olho para trás. Já cá estou há cinco anos e não tenho cheta. Raios partam a vida!

— Todos nós estamos fartos. Mas nos outros sítios é a mesma coisa — disse Vaiadas, com um gesto largo.

— Olha, apesar de tudo, eu prefiro isto à Metrópole. Fui lá há quatro anos e no fim de um mês já não podia com aquilo. A gente sai da terra e anos depois de andar por cá já não entendemos aquela gente. Encontrei tudo mudado. Punha-se um homem a falar com um antigo amigo e vinha logo outro avisar-nos que nos puséssemos a pau porque o tipo era da Polícia. A gente já nem sabia com quem havia de falar. Raspei-me para cá, porque ao menos aqui não há dessas coisas. Uma porcaria. Não é que eu seja político, estou-me nas tintas para a política, mas coos diabos l, um homem sempre fala no governo e não pode ser obrigado a concordar com tudo que se faz. Ou já não somos portugueses?

- Mas a gente não se pode despegar, é lá que está a família — disse Vasconcelos.

— Qual família — ripostou Vaiadas. — Não me falem em família, por amor de Deus! A família só serve para nos encravar a vida. Olha, quando cheguei à minha aldeia, não houve parente que não me viesse contar as suas desgraças. Era uma choradeira pegada, santo Deus! E não houve um só que não me pedisse dinheiro emprestado ou me propusesse sociedade numa quantidade de negócios. A minha gente só queria ver o que eu trazia nas malas. E quando souberam que eu não era rico, até bufaram de raiva. Tenho um tio, velho e mau que nem vocês queiram saber, que até pôs em dúvida que eu tivesse estado em África...

Riram às gargalhadas. Vaiadas acrescentou:

— Não acreditam que alguém venha das Áfricas, como eles dizem, sem trazer fortuna. Não fazem ideia nenhuma do que sejam estas terras. Eles dizem que das Áfricas só não vêm ricos os soldados e os degredados... Mas não é só na Província, mesmo em Lisboa, e até doutores, não fazem ideia do que isto é. A gente ouve cada uma que é de rebentar a rir. Se a gente leva dinheiro até nos recebem com foguetes, mas se vamos tesos olham-nos com raiva.

— Tudo   isso   é   miséria — disse   Vasconcelos. — Na minha terra é a mesma coisa. Lá, só se pensa em ir para o Brasil. E há lá tipos que voltaram ricos.

— Eu vi muitos chegarem ao Brasil — disse Américo. — Aquilo nem parecia gente) Quando desembarcavam no Rio ou em Santos, o povo cala na gargalhada vendo-os com as fatiotas lá da terra e aquelas botifarras cardadas que arrancam lume às pedras. Só lhes faltava o varapau. Ficavam pasmados, com o saco de chita às costas a olhar para tudo e chamavam aos gritos uns pelos outros. Iam cheios de fome e de sonhos. Era raro o que sabia ler. Fazia pena vê-los. O meu pai foi um desses homens.

— Fome há em toda a parte — interveio Vaiadas. — Eu vi em Lisboa um homem, até era um velhote, agachado no passeio da rua a comer de uma lata. O gajo tinha uma destas fomes que nem vocês queiram saber. Era de meter medo! O raio do velho comia com as mãos e olhava à volta com rancor e medo que lhe tirassem a lata. Aquilo era fome e raivai Nunca me hei-de esquecer desse velho.

— A gente que eu vi lá no Brasil — disse Américo —

não tinha raiva de nada, só tinha fome, uma fome que vinha lá de trás, lá dos seus avós.

— Era para essas terras que eu gostava de ir, Joa­quim — disse Vasconcelos.

— Julgas que aquilo é algum paraíso...

— Sempre será melhor do que isto.

— Pode dizer-se que   sou de lá — disse Américo, como se falasse para si mesmo, ao cabo de um grande silêncio.

— O quê? — perguntou Vasconcelos, que estava a fumar estendido numa cadeira de lona, já esquecido da sua referência ao Brasil, a ver Carlos Vaiadas a dispor as cartas para fazer uma paciência.

— Está a sonhar com o Brasil...—disse Vaiadas, a sorrir. E voltando-se para Joaquim Américo: — Deixa-te estar por cá, isto é terra de futuro. Aqui é que há-de ser o nosso Brasil. Quem fez aquilo ainda tem alma para fazer isto.

Américo encolheu os ombros, a boca arrepanhada num sorriso de desdém. Era sempre a mesma história: os Portugueses fizeram o Brasil...

- Fica tu — disse Vasconcelos —, já que gostas tanto disto.

— Gosto, sim; mas não se trata de gostar, a vida é que manda. Quem é que o mandou meter-se em política, mais a mais numa terra estrangeira? Eu vim para cá porque não arranjei vida na minha terra. E isto é português, coos diabosÊ e será, fiquem vocês sabendo. Ou julgas que foi por des­gostos de família que eu vim para cá... Lá porque a minha gente tem uns pedaços de terra, todos julgam que se pode viver disso. Era bom, era, mas já foi tempo. Nós éramos oito irmãos, seis raparigas e dois rapazes, e olha que um pequeno lavrador com tantos filhos é tão pobre como um cavador. Comi muito caldo com um pedaço de broa, que é que vocês julgam...

— Não julgo nada — disse Vasconcelos, como a des­culpar-se.

— Pois foi mesmo por isso que eu larguei da terra. Mas não quis ir para o Brasil. Tive um tio que andou por essas terras e até teve de fugir de um patrão que não lhe pagou o ajustado e ainda lhe queria dar porrada; e quando se foi queixar à policia disseram-lhe que fosse trabalhar para a sua terra. O que é que vocês julgam? É assim que eles nos tratam. Ao menos aqui estou em terra por­tuguesa. Isto é nosso, caramba! À minha terra é que nunca mais volto.

Vaiadas levantou-se, excitado, foi de um lado ao outro do quarto, em grandes passadas; depois, parou em frente do Américo, puxou as calças, bateu o cachimbo na palma da mão e acrescentou:

— Os meus velhotes já morreram, as raparigas que fiquem com as terras. O melhor do rendimento vai-se nas contribuições e na ganância dos grémios. No tempo da outra «Senhora» ainda se amealhavam uns cobres, mas agora... Olha, se não fosse eu mandar umas coroas às duas irmãs solteiras e à viúva que ficou com cinco filhos, rebentavam de fome. Mas ali o Américo com um bom lugar em São Paulo, não é São Paulo que me disseste?, e meter o nariz em política... Raios te partam... E para quê? O que é que tu querias ser? Ministro... —e Vaiadas soltou uma gargalhada.

— Mudemos de conversa — propôs Joaquim Américo, carrancudo.—Tu não percebes nada dessas coisas. Ou tu julgas...

— Nem quero perceber — interrompeu Vaiadas. — Nin­guém se governa com a política. Eu cá não vou nisso.

Enquanto tiver de comer para mim e parar a patroa, estou-me nas tintas para o resto. Mas fiquem vocês sabendo que se passasse fome até era capaz de deitar bombas.

— Bravo—galhofou Vasconcelos.

— A barriga é sagrada, meninos...—disse Vaiadas a rir. E noutro tom: — Eu bem sei que vocês dizem que isto é vida de porco. Quero lá saber se é ou não é. Cada um trata da sua vida. A mim nunca ninguém me deu nada.

— O homem não vive só para comer — discordou Vasconcelos. — Há problemas, muitas coisas...

— Pois comam vocês esses problemas e essas coisas e deixem o resto para mim... Ora, ora, Vasconcelos... Tu tens cada uma... A gente tem é que aceitar a vida como ela é. O resto são histórias.

— Nisso é que tu te enganas — interveio Américo. — Os homens é que fazem a vida.

— Conversa... Conversa fiada, como tu costumas dizer. Desinteressado, Américo deu aos ombros e afastou-se

para o lado da janela. Pôs-se a tamborilar na vidraça, com o olhar metido na noite.

Vaiadas olhou para o relógio e deu um salto para fora da cadeira.

— Duas   horas Caramba,   como   o tempo   passal Vamos embora, António.

Américo acompanhou-os à varanda. A noite estava fechada, sem uma estrela, húmida e quente. Para lá da luz do candeeiro, projectada através da porta, não se via um palmo.

— Noite boa para os leões — disse Vaiadas, acendendo uma lanterna de mão. — É do calor e escuro que eles gos­tam. Agora anda lá um perto do Posto. Já matou gente numa senzala ao pé do rio. A minha mulher ficou cheia de medo, até tive que lhe arranjar trancas para as portas.

A voz perdeu-se na noite. Américo deu volta à casa e, em frente da cozinha, nos fundos do quintal, chamou pelo criado. O preto, que estava deitado ao lado do fogo, acordou sobressaltado, mas reconhecendo-lhe a voz pôs-se de pé num salto.

— A rapariga já veio?

— Vai apanhar na senzala, patrão.

Américo acendeu um cigarro, escutou os passos do negro a afastarem-se na estrada e entrou em casa. Baixou a luz do candeeiro e afundou-se numa cadeira de lona. Estava aborrecido com o que se passara ao jogo e com as atitudes grosseiras de Vaiadas. Ainda tinha nos ouvidos as suas palavras: — «O que é que querias ser? Ministro...» «Estúpido l», disse entre dentes. Mas, logo, deu de ombros. «Ele não pode compreender, coitado...», pensou.

Quando se encontrava só e desocupado, o seu espí­rito volvia-se obstinadamente para o Brasil, de onde viera por ter entrado na revolução de São Paulo contra a Ditadura. Mas o Brasil não lhe saía do sentido e sentia que o seu destino ali teria de se cumprir. Tinha como certo o seu regresso a esse país que era como a sua pátria. Menino de colo, levaram-no de uma aldeia minhota para a terra brasileira. Cresceu numa fazenda de café, no pla­nalto paulista, onde o pai fora trabalhador e acabara em capataz. A mãe morrera-lhe pouco tempo depois de che­garem à fazenda. D. Ana Bandeira, mulher do roceiro, que vivia ralada de desgostos com a vida que o marido levava, sempre a caminho da cidade, onde tinha amante com casa posta e automóvel, chamara a si o pequeno. «Tou fazendo caridade pra salvar a alma desse doido», dizia D. Ana às amigas que, de longe em longe, apa­reciam na fazenda. Ela não ia à cidade, não queria respirar o mesmo ar «dessa sem-vergonha», e refugiava-se na oração. Aquele pequeno fora um bem que lhe entrara em casa. «Foi mesmo Nossa Senhora que mandou o guri», consolava-se D. Ana. Sentia que tinha ali o garoto como uma afronta ao marido. Mas o coronel José Bandeira nunca lhe dissera nada, era como se o filho do capataz não existisse, embora o visse a cirandar na casa grande, vestido como filho de rico e apaparicado pela esposa. Acostumara-se a não lhe perguntar nada, achava tudo bem, porque não queria ouvir queixas e remoques. Por um nada, era sabido que D. Ana trazia à balha a sua vida na cidade, a amante, os grandes gastos do dinheiro da fazenda que ela herdara de seus pais e ele estava a arruinar.

Joaquim Américo andava pelos doze anos quando o coronel morreu e a viúva, depois de obrigada a vender as terras para pagar as dívidas que ele deixara, no que lhe foi o melhor da herança, se mudou para São Paulo, para viver na companhia de uma irmã. O pai de Joaquim ficara com o novo fazendeiro e achou que era «grande esmola» D. Ana levar-lhe o filho. A mulata com quem se amigara após a morte da mulher, não gostava do rapaz. Deixou a fazenda sem saudades do pai, de quem só se lembrava por causa das surras que lhe dera e dos maus tratos com que martirizara a sua mãe. Só para a mulata andava de beiço doce, sempre manso e meigo como cachorro de lamber as mãos do dono. Era um brutamontes, submisso a todos os desmandos do fazendeiro e violento para os trabalhadores. «Um grande capataz», como dissera o coronel. Homem honrado até ao sacrifício da fome. Nin­guém se gabaria de fazer mão baixa ao quer que fosse que o patrão lhe confiasse. Tudo que pertencia à fazenda era-lhe sagrado, melhor defendido do que se fosse seu. Homem de ombros direitos ao sol da plantação, era coisa que ele não podia ver sem se encolerizar. O dinheiro do patrão tinha que ser suado pelos trabalhadores. Odiado por todos e temido por muitos. «Estes portugas quando são honrados, ninguém lhes leva a palma», sentenciara o coronel Bandeira ao referir-se ao seu capataz. Cedo sua fama se tornou conhecida, em raivas de trabalhadores e nos elogios dos fazendeiros.

A chegada à cidade fora um deslumbramento para Joaquim Américo. Mas a vida na casa da irmã da sua protectora cedo começou a ser um inferno. Não se podia ouvir D. Ana, com seus ais enormes a encherem a casa e seus lamentos raivosos, nas grandes noites de insónia, por o marido ter gasto com a amante o seu dinheiro, «muito meu, o melhor que papai deixou». Por tudo e por nada começou a implicar com Américo, sempre moída de azedumes, e um dia disse-lhe aos gritos que o tinha por caridade, «por conta dos pecados desse desgraçado». Américo chorou de raiva e teve saudades da fazenda. Era menino de escola e moleque das duas irmãs. Aquilo durou quatro anos. Um dia saiu para um recado e nunca mais voltou a casa. Vagueou pelas ruas, passou fome, dormiu ao deus-dará, mas não tornou a ver D. Ana. Só de pensar nela ficava nervoso, as mãos a tremerem, o rosto em fogo, a boca cheia de palavrões. E era como se lhe ouvisse as últimas palavras: «Tá ficando besta, seu moleque? Tá pensando vai bancar doutor ou quô? Corra, se avie depressa na loja, menino. Malandro não quero na minha casa.» Aquilo fora pior que se o esbofeteassem. E tudo porque estava a estudar no seu quartito, nos fundos da casa, e não correra de pronto ao chamado da viúva, que quando não estava a rezar andando em passo silen­cioso de cá para lá no corredor, de rosário nas mãos, se punha a gritar com todo o mundo.

A verdadeira vida de Joaquim Américo começou nas ruas da grande cidade. Vendeu jornais, foi moço de tipo­grafia, aprendiz de tipógrafo e, por fim, linotipista do jornal O Rebate, que os fascistas assaltaram após o malogro da revolução. Não encontraram ninguém, todo o pessoal tinha entrado na revolução, uns estavam presos, outros andavam a monte e dois tinham caldo na luta. Furiosos, os fascistas jogaram para a rua os móveis, pilha­ram máquinas de escrever, fizeram auto-de-fé da biblioteca, escaqueiraram máquinas de compor, martelaram a rotativa, loucos de raiva por o não poderem fazer na cabeça dos tipógrafos e jornalistas. Américo andou escondido por aqui e ali, protegido pelos camaradas brasileiros. Dizia-se que a polícia fascista andava a matar os estrangeiros que tinham pegado em armas «contra o Brasil». Foram os camaradas que lhe lembraram que era estrangeiro, porque ele, menino feito homem sob o sol brasileiro, nem pensava que o fosse, que sua pátria não era aquela terra onde aprendera a falar e a viver, mas outra, desconhecida, que ficava noutro continente, a que nenhum laço o prendia, de onde seus pais tiveram de sair à procura de pão. Seu nome estava fichado na polícia e a sua origem de estran­geiro enchia de raiva os polícias fascistas. «Estão pegando esses cães estrangeiros que estão comendo nosso pão e se metendo em revolução», dizia-se por toda a parte. Ele não sabia para onde ir, com os caminhos trancados, procurado como «revolucionário perigoso», quando em verdade não fora mais que simples miliciano na luta contra os asseclas do ditador. Todos os estrangeiros antifascistas eram considerados revolucionários perigosos... Pelos caminhos da ilegalidade, os camaradas levaram-no por aqui e ali e acabou por se encontrar na Bahia, onde lhe deram fuga num cargueiro que se fez de rumo a África. Desembarcou no Lobito, sem saber o que fazer à vida, sem dinheiro nem amigos. Tinham-lhe dado uma carta de recomendação para um comerciante de Nova Lisboa, mas a cidade ficava no planalto, muito longe, e a passagem de comboio era cara. Ficou no pequeno porto, à procura de trabalho; mas todos lhe falavam na grande crise que o comércio atravessava, na falta de protecção do Governo ao colono, sem crédito bancário, um só banco de fraco capital a sugar a colónia, do peso dos impostos — um ror de queixas que punha raivas e lamentos na boca dos colo­nos. «Se isto fosse dos Ingleses andava prá frente», dis­cutiam nos botequins. E vinham exemplos do que se pas­sava nas colónias britânicas, em franco progresso, com grandes cidades modernas, terras e dinheiro do Estado para os nacionais que quisessem colonizar, protecção de toda a espécie e a certeza de que não viriam governos com leis tornadas gazuas para os cofres dos colonos. «Aquilo sim, é que é colonizar», rematavam. E ficavam mais azedos, descrentes, derrotistas. Américo ouvia-os e sentia que nada se podia esperar dessa gente amargurada, sem esperanças, impotente na sua revolta. Os colonos andavam temerosos e descrentes do critério político-administrativo que a Metrópole impunha às colónias de se governarem com os seus próprios recursos, mas negavá-lhes ao mesmo tempo as melhores possibilidades de desen­volvimento. «A pátria não é mãe, é madrasta», diziam os colonos. E muitos abandonaram Angola rumando para o Congo Belga, União Sul-Africana e colónias fran­cesas. Américo começou a pensar em ir até uma dessas colónias estrangeiras. Diziam-lhe que em Ponta Negra havia trabalho para toda a gente, na Katanga também, mas tudo ficava longe e ele estava sem recursos, a dever à pensão, desfazendo-se das roupas de vestir para os gastos diários. Foi então que o dono da pensão onde se hospedara o relacionou com o administrador de circuns­crição Gregório Antunes, que estava de passagem para Luanda. No convívio de uns dias, Américo ganhou a simpatia do velho colonial, que passava a vida a contar histórias dos tempos da Ocupação e a cobrir a terra angolana, que ele amava como se ali tivesse nascido, de heróis. Américo falava-lhe do Brasil e do seu povo em luta por uma democracia progressiva. Antunes entusias­mava-se e, a cada passo, interrompia-o exclamando: — «Grande terra, sim, senhor) E fomos nós, portugueses, que fizemos aquilo.» Mas não sabia o que era democracia progressiva, julgava tratar-se da inglesa ou americana. «Os Ingleses foram sempre democratas. O Brasil faz bem em lhes seguir o exemplo, sem esquecer, está claro, o que nos deve», dizia ele, convicto, com ar grave. Américo sorria com indulgência e falava-lhe dos homens de todo o mundo que formavam o povo brasileiro. «Pois, sim, não duvido, mas nós fomos os primeiros», retrucava-lhe o administrador. «E os negros», acrescentava Américo. Mas Gregório Antunes torcia o nariz, meneava a cabeça, punha-lhe uma mão no ombro e afirmava: —«Não, meu amigo. O senhor não conhece negros. Agora é que os vai conhecer e verá que é raça que não presta. Nem para cavar têm jeito.» E punha-se a contar, horas a fio, histó­rias dê negros, dessas «crianças grandes» que só deviam ser tratadas dando-lhes «pão com uma mão e chicote com a outra». Américo espantava-se com o que ouvia e chegou a julgar aquele homem um monstro. Mas quando ele se punha a falar na mulher e num filho mulato que tinha a estudar em Lisboa, a voz tornava-se-lhe branda, em saudosas evocações, e não poucas vezes os olhos se lhe marejavam.

Uma noite, na varanda da pensão, aberta sobre o mar, com uma lua vermelha ao longe, o céu cheio de estrelas e a terra a exalar calor húmido, Américo expôs a sua situação ao administrador, falou-lhe francamente como se deve falar a homem rude e sentimental. Antunes riu e pilheriou com a «porcaria da política que estragava a vida de um homem» e, dando-lhe palmadas no ombro, disse: — «Simpatizei consigo, sabe? Eu gosto da gente nova que sabe ouvir os velhos, que quer aprender, e o senhor é um desses. Assim é que é. Os velhos já viveram muito, aprenderam com a vida, que é a grande escola, fique sa­bendo, amigo Américo. É o que lhe digo: uma grande escola. Pois conte comigo. Vamos para Luanda e alguma coisa se há-de arranjar.» Pela sua mão, Américo entrou para o quadro administrativo, como aspirante interino. Antu­nes tratara de tudo, responsabilizara-se pela oentrega de documentos que Américo mandara vir do Brasil, e empres­tara-lhe dinheiro para ir para Camaxilo, lá nos confins da colónia, com fronteiras para o Congo Belga. «Vá tratar da sua vida e não me agradeça nada», dissera-lhe Gregório Antunes.

Tudo fora fácil para o administrador, porque o Governo andava a recrutar pessoal subalterno para servir interi­namente nas circunscrições do sertão. Os funcionários interinos não tinham direito a passagens nem licenças, era-lhes descontado no ordenado o tempo de doença e qualquer falta, e não contavam o tempo para a reforma. Certo, só tinham o ordenado, que para pouco mais dava que para comer, e a permanente ameaça de serem atira­dos para fora do serviço ao mais pequeno deslize, à menor falta de respeito aos superiores. Mas Joaquim Américo aceitara o lugar com ambas as mãos, porque não tinha recursos e o cargo só lhe serviria transitoriamente. Não queria fazer vida na colónia. O Brasil estava sempre no seu pensamento. Mas quando voltaria a São Paulo? Já se tinham passado três anos de exílio e ele continuava a inter­rogar-se: Quando? Quando?... Os amigos do outro lado do Atlântico aconselhavam-no a esperar. Ninguém sabia quando a noite fascista terminaria, mas os homens livres não desanimavam, lutavam e sofriam. O mundo estava a agitar-se e os homens que não queriam ser escravos caminhavam na noite, a passo certo, cheios de ódio e de esperança. Esses três anos de ausência tornaram doentia a sua saudade pelo Brasil. Não se adaptava à vida colo­nial e era considerado mau funcionário, sem pulso para os negros. O administrador Antunes, que um ano depois de o ter metido nos serviços administrativos fora trans­ferido para Camaxilo, admoestou-o várias vezes: — «Isto não é o Brasil, senhor aspirante, aqui o negro é negro, só negro, nada maisGente mole não serve para esta vida.»

Américo sorria-se àquela «gente mole» que o admi­nistrador dizia a cada passo, referindo-se aos funcio­nários que não sabiam, ou não queriam, arrancar o imposto ao negro que não tinha com que o pagar, empregando todos os processos, desde a prisão de suas mulheres aos castigos corporais e cadeia.

«Estamos aqui para cobrar impostos», dizia, severo, o administrador, «porque se o imposto não entra a coló­nia não progride; e nós, o senhor também, não teremos nada que fazer aqui. Percebe, senhor aspirante?»

E Gregório Antunes afastava-se, cheio de si mesmo. Américo seguia-o com os olhos, dava aos ombros e sorria maliciosamente.

 

O Sol abriu-se no alto da encosta, derramou-se na povoação e ficou a brilhar, tremeluzindo, no fundo do vale onde corre o rio.

O sipaio que veio substituir a sentinela da noite, apagou a fogueira, regou e varreu o largo e abriu as portas da Administração, começando logo a fazer a limpeza e a descompor o rapazito que o ajudava.

Um grupo de presos, guiado por um capita de chicote de cavalo-marinho em punho, desembocou no largo e parou em frente da Administração. Empertigado na sua farda de cotim sal-e-pimenta, com o cofio vermelho posto de lado, o sipaio veio à varanda, corrida a toda a vclta do edifício da Administração, olhou para os presos um por um, contando-os com os dedos, marcou-lhes a tarefa do dia e deu a cada um uma enxada.

— Serviço do Governo! — gritou-lhes o sipaio.

Logo, o capita, de pano amarelo aos quadris, camisola às riscas encarnadas e azuis, e cofio no alto da cara­pinha, fez estalar o chicote no ar, atirou um grito aos presos e obrigou-os a seguirem à sua frente. Foram capinar atrás do quintal da residência do administrador, à volta de um barracão cheio de sacos com fubá e peixe seco para as rações dos trabalhadores.

As casas dos funcionários, brancas de cal e cobertas de zinco, sombreadas por varandas corridas, ainda estavam fechadas. Mas já o pessoal doméstico andava de um lado para o outro nos grandes quintais, com a cozinha e as capoeiras ao fundo, defendidos do mato por estacaria.

As portas das pequenas moradias, uma aqui outra além, a meia encosta, davam para a estrada umas e as outras para o largo de terra batida, com um pau de ban­deira ao meio, em frente da Administração, instalada num barracão coberto de colmo, com três portas e uma janela para a varanda. Uma mangueira, carregada de frutos verdes e vermelhos, dava sombra a um banco onde, à tarde, os fun­cionários se reuniam para o cavaco.

No alto da encosta, viam-se, por entre acácias, as paredes enegrecidas da cadeia. E, atrás de árvores fron­dosas, dispersavam-se as pequenas cubatas dos sipaios e capitas, com as suas muitas mulheres a tagarelarem todo o dia, e os grandes telheiros onde se abrigavam os negros que andavam nos trabalhos públicos e outros recrutados para os serviços das minas de diamantes. Dali partia o caminho para o cemitério, um quilómetro acima e muito afastado da estrada, com muros altos a defenderem-no do matagal e dos bichos selvagens. Todas as noites, hienas iam uivar o seu choro junto desses muros que res­guardavam os talhões onde negros e brancos eram enter­rados em lugares completamente separados. Nas noites calmas, os uivos monótonos e tristes vinham até à vila.

Do alto da encosta, via-se o rio serpear no fundo do vale, formando garganta em frente do largo da Adminis­tração e, mais abaixo, sob uma ponte. Para lá do rio, numa encosta suave que, longe, ganhava chão de planície, enxergavam-se as casas dos comerciantes, rodeadas de árvores de fruto. Era a povoação-de-baixo, o bairro comer­cial de Camaxilo. Como se fosse outra vilória, a um quiló­metro e meio de distância das casas dos funcionários, indo pela estrada que contorna o vale e desaparece numa curva, onde se ergue o Paiol, para logo reaparecer na outra en­costa, a seguir à ponte sobre o rio. Caminho longo só para passeios e automóveis. Os homens que viviam na povoa-ção-de-cima, o bairro oficial, metiam a direito pelos cór­regos, passavam o rio sobre pedras e, em dez minutos, estavam na povoação-de-baixo, mesmo à porta da loja de Manuel Pancário.

Na povoação comercial, a vida começava ao nascer do Sol, nas hortas dos colonos, muito verdes na terra negra da beira-rio. Francisco Bernardo, com o chapelão de palha a ocultar-lhe a cara tisnada por sessenta anos de sol africano, uma cinta negra com muitas voltas a engros­sar-lhe o ventre, estava encostado ao seu inseparável cajado, orientando o trabalho de cava, como aprendera a fazer na terra natal, sem deixar amolengarem-se as suas negras e os filhos mulatos. Depois é que aparecia o seu compadre Alfredo Anacleto, a praguejar por tudo e por nada, andando aos saltinhos sobre tacões altos, com o chapéu amarrotado atirado para a nuca e de chibata na mão. De longe, sem tirar a beata do canto da boca, punha-se a gritar-lhe com quanta força tinha, porque o Bernardo era duro de ouvido:

— Eh, compadre! Não se vá embora sem dizer adeus à gente... — e ria alto, metendo uma mão no cós das calças, que só desciam até meia canela.

Não esperava resposta, encolhia os ombros estreitos, agitava a chibata e punha-se a descompor a sua negra:

- Raios te partam, mulher, que só apanhas couves velhas.

- É pra não estraga.

Quando os colonos se juntavam para regressar a casa, na povoação-de-cima a mulher do administrador da Circunscrição já estava no seu jardim, a cuidar das flores, o que fazia todos os dias, há dois anos. Era o seu único e agradável passatempo, desde que chegara a Camaxilo.

«Dona Jovita gosta mais de flores que do marido...», diziam as mulatas, filhas dos colonos, sempre que pas­savam em frente do jardim, o único da terra, a caminho da escola, improvisada num velho barracão que fora sede do Comando Militar e, agora, servia de arrecadação. Não tinha carteiras nem quadro, e os meninos, todos mula­tos filhos de colonos, sentavam-se em caixotes e troncos de árvore. O professor era o secretário Jaime Silva, que se prontificara a ensiná-los de graça, durante uma hora de manhã e outra à tarde, depois de fechar a Adminis­tração; mas poucas vezes dava aula de manhã. A escola durou pouco tempo. Inesperadamente, uma tarde ninguém apareceu. O secretário mandou fazer uma capoeira com as tábuas dos caixotes e queixou-se aos colegas de que os mulatos não estudavam nada e que por muito boa vontade que ele tivesse não lhes podia meter o ABC e a tabuada na cabeça.

— E as mulatinhas também não dão nada?... — per­guntou-lhe Joaquim Américo.

Silva embezerrou e nunca mais falou no caso. E esteve muito tempo sem aparecer na povoação-de-baixo. Mas o velho Anacleto, sempre que o via, ao longe, punha-se a mordiscar a ponta do bigode, andando aos saltinhos de um lado para o outro, enervado, a resmungar.

— Lá vão os velhotes — disse D. Jovita, em voz alta, sem reparar que ninguém estava ao pé dela.

E ficou-se um momento a olhar para o outro lado do vale, fazendo pala com as mãos, porque o Sol a não deixava ver bem ao longe. Depois, começou a regar as flores sem se preocupar com o robe que se lhe abrira sobre os seios nus. Com os dentes, muito brancos e certos, cortou pelo pé uma rosa vermelha que meteu nos cabelos loiros. E pôs-se a rir sem saber por que o fazia. Era assim todos os dias.

«Preciso de podar isto», disse ela a si mesma. E foi a casa buscar uma tesoura.

Um cão ganiu e veio a correr, com uma perna no ar, do quintal da casa do secretário. Parou no meio do largo, agachou-se junto ao pau da bandeira e ganiu mais alto. Cebola soltou uma gargalhada, todo satisfeito por lhe ter acertado com um pau, quando o apanhou na cozinha do patrão a lamber o fundo de uma panela.

— É pra tu não volta — disse ele, e riu alto.

Mas, pouco depois, veio debruçar-se na paliçada do quintal e chamou pelo cão:

— Ratão! Eh, Ratão.

O cachorro não se mexeu, pondo-se a lamber a perna ferida. Mas uma voz fraca veio de longe.

- Pronto! — E um negrito saiu da casa do secretário, estremunhado, com os braços cruzados sobre o peito.

— Não é tu, é cão — disse-lhe Cebola, sem se voltar. E tornou: — Eh Ratão.

O cão uivou para o negro e o negro riu-se para o cão. E o rapazito foi-se embora, a resmungar. E naquele momento odiou mais que nunca o secretário que lhe trocara o nome que sempre usara na sua senzala pelo do cão, só para se divertir à sua custa. E os sipaios e criados dos brancos imitavam o secretário, na sua chacota permanente, chamando ora pelo cão, ora pelo moleque. Quando ele vinha, era certo eles perguntarem se era cão, quando não atendia, gritavam-lhe insultos e inquiriam se era surdo.

O sipaio que viera à varanda da Administração atraído pelo barulho, arrepiou-se com o uivo e soltou uma praga. E como não tinha nada à mão para atirar ao cachorro, bateu-lhe palmas e gritou-lhe:

— Ratão, toma, toma.

Mas como o cão se não moveu, ele começou a correr ao longo da varanda, batendo com força com os pés descalços no chão batido.

— Eh Ratão. —tornou a gritar.

O cão voltou-se para ele, apontou o focinho ao céu e soltou um uivo.

O rapazito, despertado pela voz do sipaio, abriu a cancela do quintal do secretário Silva e veio a correr para o terreiro.

— Eh moleque malandro!

— Não tem malandro. Cão Ratão...

O sipaio e o Cebola largaram a rir às gargalhadas. E o negrito Ratão tornou a voltar para o quintal, os olhos cheios de lágrimas, com raiva dos homens. Mas, nesse momento, abriu-se a porta da casa do administrador e os dois negros safaram-se.

  1. Jovita, no seu robe azul, com os cabelos soltos, olhou para o largo e espreitou a estrada. A janela da casa de Joaquim Américo estava fechada. Ao ver o cão, chamou, ameigando a voz:

— Ratão, venha cá. Coitado do Ratão... — e foi direita a ele, ondulando-se no seu passo miudinho.

O cão estendeu-lhe o focinho e semicerrou os olhos húmidos.

— Pobrezito...—disse ela com voz lamentosa, e aca­rinhou-o na cabeça, debruçando-se, o robe todo aberto no peito e os cabelos caídos em madeixa sobre a cara, a brilharem ao sol.

Cebola, que estava a espreitar à esquina da casa do secretário, escancarou os olhos para os seios nus de D. Jovita.

— Puxa! — disse ele. E deu um salto para trás, com medo que D. Jovita o tivesse ouvido.

— Ratão... Coitado de ti, meu pequenino... — dizia ela, ao mesmo tempo que lhe passava a mão pelo pêlo amarelo. — Bateram-te, meu cachorrinho.

— Jovita.

Ela largou o cão, ajustou o robe, atirou o cabelo para trás com um movimento brusco de cabeça e correu para casa.

— Que diabo! Nunca estás aqui quando é preciso — disse-lhe o marido, de mau modo. — Vê lá esse café. É todos os dias a mesma coisa. Que maçada.

— Ai é! Arranja-o tu.

  1. Jovita foi ao quintal, muito nervosa, saracoteando as ancas, descompor Julião por não ter trazido o café ao «Sr. administrador». Mas o negro, que já lhe conhecia os repentes e as descomposturas, fingiu-se muito ataran­tado e apressou-se a preparar o café.

Gregório Antunes deixou-a ir sem uma palavra, mas ficou furioso. «Onde te morde sei eu», pensou ele. E quando a mulher lhe trouxe o café, bebeu-o em silêncio e de má catadura.

— Que é que tu tens, Gregório? —perguntou ela, já esquecida do que se passara.

— Nada. Não me maces.

— Credo!...

— Era bem melhor que tratasses da casa e te deixasses dessa porcaria das flores.

— E tu das negras — atirou-lhe ela, com um brilho duro nos olhos verdes.

— O que é que tu estás para aí a dizer?

— Sim, sim, com as negras — tornou ela, crescendo o corpo pequeno e roliço nas pontas dos pés. — Eu bem sinto o cheiro a catinga que trazes para casa. Porco l

— Cheiram melhor do que tu! — regougou ele, saindo num repelão para a varanda. E pôs-se a andar, sacolejando a barriga, volumosa como de mulher prenhe, de um lado para o outro, já arrependido do que dissera.

  1. Jovita deixou-se cair numa cadeira e rompeu aos soluços.

Naquele dia, Joaquim Américo, ao abrir a janela que dava para o largo, admirou-se por não ver D. Jovita no jardim. Mas não tardou cinco minutos que o seu criado lhe aparecesse, a bufar de cansado, dizendo que Gregório Antunes tinha batido na mulher.

— Você viu?

— Não viu, patrão. Julião falou.

— Vai buscar o café, rapaz. Quem te mandou à casa do senhor administrador? Você está a precisar de bofe­tadas.

— É só falar, patrão. É Julião...

— Gira!

Naquele momento D. Jovita apareceu à porta de casa, vestida de branco, com a rosa vermelha entre os cabelos, e ficou-se a olhar para a estrada, por onde vinham grupos de negros, em direcção ao largo. Joaquim Américo recolheu-se para tomar o café. Quando voltou à janela já não viu D. Jovita.

O largo estava cheio de negros, debaixo de forma, e ouvia-se o vozeirão de um sipaio a chamá-los, apartando logo os identificados, que os capitas conduziriam, sob a ameaça dos chicotes, para os serviços públicos. Eram ho­mens e mulheres a contas com os impostos, eles por relap­sos ao seu pagamento, elas por os seus companheiros terem fugido a essa obrigação, andando a monte. Logo que se apresentassem à autoridade, com o dinheiro do imposto ou a dar os braços para os trabalhos do Estado, elas regressariam aos lares. Entre esses homens, o sipaio escolhera os mais fortes e levou-os a D. Jovita.

— Manda-os à lenha e à água — recomendou ela ao sipaio, fazendo uma voz dura.

  1. Jovita falava sempre aos indígenas com secura. «Nunca se mostra os dentes aos negros, porque abusam logo», dissera-lhe um dia o marido. Mas não era pre­ciso que ele a acautelasse, porque ela detestava-os. E às negras chegava mesmo a odiá-las. «São uns bichos que cheiram mal», dizia sempre que se falava nelas. Os negros também não gostavam dela, mas tinham-lhe medo e res­peito, porque era branca e mulher do administrador, a pessoa mais importante da terra.

Vasconcelos passou pela casa de Américo, arrancou-o à leitura dos últimos jornais de Lisboa, chegados a Cama-xilo com quatro meses de velhos, e dirigiram-se para a Administração.

— O Vaiadas? — perguntou Américo.

— Foi à loja do Pancário tratar do rancho. Quer voltar para o Posto amanhã.

— Já? Desta vez não aquece o lugar. O administrador é que vai ficar admirado. Da outra vez fez aí um escarcéu dos diabos, porque ele nunca mais se ia embora.

— Anda preocupado com a mulher, que ficou doente. E aquilo de ontem irritou-o. Está fulo com o Silva.

— Olha que vale mesmo a pena... Com esse gajo o melhor é não ligar. É o que eu faço.

A porta da Administração, o sipaio Aparo informou-os de que o secretário estava doente. Eles trocaram um olhar e sorriram.

Quando o administrador Gregório Antunes entrou na Administração, fardado de branco e a cheirar a loção, Vasconcelos matraqueava a máquina de escrever e Amé­rico cobrava o imposto aos indígenas. Da porta do seu gabinete, ele atirou-lhes um «bom dia, meus senhores», e só passado um quarto de hora é que perguntou pelo secretário.

— Está doente, senhor administrador — informou Vas­concelos, indo à porta do seu gabinete.

— O que é que ele tem? E logo hoje que faz falta — disse, aborrecido. E levantando a voz: — Ó senhor Américo, mande chamar esses contratados. E o senhor telefone para o Cuango e pergunte lá a esse chefe por que é que ainda não mandou o dinheiro do imposto. É preciso estar sempre a lembrar a mesma coisa. E depois faça uma nota para o Lubalo, por causa dos voluntários para o serviço militar.

Vasconcelos ia para o telefone quando ele o reteve. - Estão a( uns negros que precisam de ser tratados. Tome a chave da farmácia e despache-os depressa, que há muito que fazer.

Gregório Antunes pôs o capacete, atravessou a secre­taria e dirigiu-se para o alto da povoação, onde se estava a construir a sua futura residência. Os aspirantes ainda o ouviram gritar uma ordem ao sipaio.

— O tipo hoje vem assanhado... — disse Vasconcelos, que não conseguia ligar com o Cuango, mais de duzentos quilómetros no caminho para Malanje.

— Se calhar o Azevedo não está lá — observou Américo.

— Quem inventou este telefone precisava que lhe dessem com ele na cabeça! Só liga quando não   é preciso.

Mas ao cabo de meia hora, conseguiu a ligação e berrou letra por letra o recado do administrador. Quando pousou o auscultador, atirou-se para cima de uma cadeira, extenuado. Na varanda, Joaquim Américo prosseguia à chamada dos indígenas contratados para os trabalhos da Companhia de Diamantes do Nordeste.

— Sipaio, faltam cinco homens.

O sipaio, que os tinha contado na véspera, à noite, e não dera pela falta, abriu muito os olhos e ficou ata­rantado.

— Nosso aspirante...

— Onde é que estão os homens? - Dormiu tudo, nosso aspirante.

— Onde é que estão é o que eu quero saber.

— Vai na senzala, nosso...

— Não vai nada! Ficaste a dormir e deixaste-os fugir, é o que é.

— Não ficou não.

Nesse momento, apareceu o administrador e parou, com um pé no degrau da varanda.

— Fugiram cinco homens, dos contratados.

— Quem tomou conta dessa gente?

— O sipaio Canivete.

— Aparo! — gritou o administrador.

E logo que o outro sipaio apareceu, vindo a correr das traseiras da Administração, ainda a limpar aos calções da farda as mãos sujas de pirão, Gregório Antunes gritou-lhe:

— Onde é que você anda, seu burro? Cinquenta palmatoadas no Canivete, ouviste? Já! Estes cachorros hão-de aprender a fazer o serviço. — E voltando-se para o   aspirante   recomendou-lhe: — Mande   prender esses homens que fugiram. Se não os encontrarem, tragam as mulheres e o soba. Que cambada!

Os contratados para a Companhia de Diamantes do Nordeste, que ali aguardavam uma leva de trabalhadores do Posto do Lubalo para seguirem para as minas, foram capinar a estrada, vigiados de perto pelos capitas, para não ganharem os caminhos cruzados das florestas, onde se costumam esconder dos brancos e dos sipaios.

O administrador não queria ver negros de corpo ao alto, para não se amodorrarem todo o dia à volta das fogueiras do acampamento, voltando-se em saudades para a aldeia e para as mulheres que deixaram a amanhar as terras e a esperarem o seu regresso, ao cabo de um ano de trabalho duro nas minas.

Gregório Antunes sabia que a saudade arrasta o negro para o passado, convida-o a fugir à nova vida que lhe é imposta e lhe desagrada. Ele só queria negros sem saudades, a viverem firmes no presente, para não virem a estranhar o futuro...

À tarde, o chefe de posto Vaiadas entrou na Adminis­tração, a cantarolar. Américo mostrou-lhe, sem uma pala­vra, um envelope com o dinheiro que o Silva lhe mandara momentos antes.

— CarambaEstás alto! Hoje pagas a cervejinha — disse Vaiadas, dando-lhe   uma   palmada   nas costas. — E o tipo?

— Em casa, doente — informou Vasconcelos, piscando o olho. E os três largaram a rir.

— Preciso de falar ao administrador. Onde está?

— Nas obras novas. Se queres vai lá, porque ele já não volta.

Mas Vaiadas não foi. Já tinha desistido de regressar ao Posto do Cuilo no dia seguinte.

— O Pancário tem lá uma cerveja que é uma mara­vilha— disse ele, e deu um estalo com a língua.

— Já sei que enquanto houver cerveja não sais de cá... —brincou Vasconcelos.

-Vou depois de amanhã. A patroa anda adoentada. Tenho de ir sem falta.

Mas Carlos Vaiadas só regressou ao Cuilo oito dias depois.

 

Um canto arrastado e monótono veio de longe, trazido pelas brisas da madrugada da planície, e pairou, alongado pelo eco, sobre a vila de Camaxilo. O sipaio, que estava acocorado em frente da fogueira, de guarda à Adminis­tração, voltou a cabeça para as bandas da planície e ficou-se, enlevado, a ouvir a música triste que vinha dos ermos. Eram os negros das senzalas que marchavam, a caminho da vila, com cargas de cera às costas, a cantar as suas velhas canções de mercadores errantes.

O canto tornou-se harmonioso e mais triste, quando a caravana começou a descer a encosta, no caminho longo para a povoação-de-baixo. O sipaio Caluis estendeu o pescoço e ficou, de olhos semicerrados, a escutar. Um sorriso iluminou-lhe o carão duro, todo vincado, com grandes olhos tristes e mortiços de fumador de liamba. E começou a cantar baixinho, num lamento, acompanhando a cantiga que vinha dos longes. Era uma canção da sua terra, que muitas vezes cantara quando, vergado ao peso da carga de bolas e mantas de borracha, vinha da aldeia negociar com os brancos de Camaxilo.

Nesse tempo, Camaxilo era uma grande terra, o centro comercial mais importante de toda a Lunda, com mais de cinquenta lojas e uma centena de comerciantes brancos. E nas terras ao redor e por sertões dentro, no Cuilo, Luremo, Lubalo e outras de que só os velhos se lembram, eram em grande número as feitorias comerciais dos brancos, mula­tos e negros ambaquistas, aviados das grandes casas comerciais de Malanje e Luanda. Tempos de fortuna, em que os negros das senzalas tinham todos os panos que queriam, montes de fios de missangas, pipos de aguar­dente e latinhas de pólvora. Os brancos bebiam champa­nhe e jogavam forte ao bacará. E os sobas faziam batuques que duravam quinze dias e quinze noites, embebedando-se com vinho misturado com água açucarada e aguardente de batata-doce. Esse foi o tempo em que a borracha valia ouro de lei e os brancos corriam para o Leste com as suas pacotilhas, pagando impostos aos sobas para pode­rem negociar com os seus filhos e transitarem por suas terras cruzadas de trilhos. Era o tempo de Braz Vicesse e do seu bando de quimbundos armados que iam até aos confins da região que borda os Grandes Lagos, em jor­nadas comerciais que duravam mais de um ano, trazendo caravanas com marfim e borracha e rebanhos de escravos, o ouro branco e o ouro negro da África antiga, que levavam para as praias de Benguela. E fora o teatro das façanhas dos negreiros árabes que varavam com os seus gritos de guerra os sertões do Norte, arrebanhando negros para os vender como escravos.

Agora, o sipaio Caluis, que já tem cabelos brancos e muitos filhos que suas três mulheres arranjaram nos braços de homens novos, está a ouvir a canção da sua aldeia e a recordá-la, quando ali houve duas lojas de mula­tos, aviados do branco José Aparício, o «seu Jusa» dos negros, que se matou quando a borracha passou a valer tanto como um punhado de areia e os credores lhe leva­ram quanto tinha em casa. Nesse dia, ele enforcou-se na sua loja.

José Aparício foi o seu primeiro patrão, quando ele fugiu da aldeia com medo do soba e veio para Camaxilo. Serviu-o com dedicação de cachorro, porque ele pagara

ao soba, que o veio reclamar, duas garrafas de vinho do Porto. O branco deu-lhe de comer durante anos e ensi­nou-lhe a pesar borracha no balcão bem afreguesado da sua loja, a maior da terra. E só o deixou quando um dia fora apanhado com o gargalo da garrafa de aguardente na boca. Estava a beber de olhos fechados e não viu o patrão aproximar-se e deitar-lhe a mão ao braço. Largou a garrafa que se partiu a seus pés, o que aumentou a fúria do branco, e quis fugir, mas a porta estava fechada e o chicote de «seu Jusa» meteu-o a um canto. Quando se encontrou na rua, sem saber como, pingava sangue de todo o corpo e tinha os beiços e o nariz tão inchados que mal podia respirar. Mas não ficou a odiar o branco. «Seu Jusa é branco bom. Vinho é que fais gente maluco», dissera ele ao patrão, quando lhe foi dizer adeus, porque ia para Malanje. Aparício deu-lhe um cobertor velho e uma caneca de sal. E Caluis nunca mais esqueceu o seu branco.

Em Malanje, Caluis assentou praça e correu todas as terras do distrito e foi uma vez até Luanda. Aprendeu a engraxar as botas do seu tenente e a tocar corneta na parada do quartel. E quando, anos depois, voltou a Cama­xilo, com os botões da farda de caqui a luzirem que nem ouro, o que o trazia vaidoso e cheio de importância, já os brancos da borracha se tinham ido embora e «seu Jusa» estava a dormir no cemitério velho, adiante da povoação-de-baixo. Caluis teve pena de encontrar a terra mudada. Muitas casas já tinham caído. Os brancos levaram as chapas de zinco das suas coberturas e deixaram às negras os móveis velhos, como a título de recompensa por lhes terem tirado os filhos mulatos... Mas os móveis também já não existiam, porque os negros das senzalas, com quem elas depois se amigaram, queimaram-nos nas fogueiras dos terreiros. Da passagem dos brancos na tf rra da borracha, ficaram somente as laranjeiras e os limoeiros nos quintais abandonados que o capim invadiu.

No dia em que o negro Caluis chegou à sua terra, só encontrou três brancos em Camaxilo, o Alfredo Anacleto, Francisco Bernardo e José Calado, com as suas lojas ao pé do rio e os filhos mulatos, que ele deixara garotitos a traquinarem pelas ruas há muito desaparecidas, tudo mato. Foi por eles que soube que «seu Jusa» se tinha enforcado e ficara todo um dia pendurado na corda amarrada na trave do tecto da loja, onde Francisco Bernardo o fora encontrar com os olhos esbugalhados e a boca cheia de moscas.

A terra estava morta. Os negros das senzalas vinham uma vez por outra à vila vender cera e produtos pobres e levavam sal e um pedaço de pano para as mulheres tapa­rem o sexo. Os homens voltaram a usar peles e panos feitos de cascas de árvore.

Foi nessa época que se construíram as primeiras casas da povoação alta. Numa, instalou-se o Comando Militar, e nas outras as praças europeias e africanas. E pela pri­meira vez os negros da terra ouviram tocar a sentido, quando a bandeira do ocupador subia no mastro de cinco metros do terreiro onde o tenente plantou a man­gueira, a cuja sombra os brancos de hoje se reúnem à tarde, depois de fechadas as portas da Administração. E começou a ocupação militar da região. Os três comer­ciantes que conheciam a terra da borracha a palmo e a maneira de viver do indígena, fecharam as lojas para se alistarem como guias da coluna militar, da qual Caluis era cornetéiro, que viera pacificar os indígenas... e exigir-lhes o pagamento do imposto de vassalagem. Então, muitas coisas se passaram na terra morta de Camaxilo.

Os comerciantes levaram os soldados por todos os cami­nhos que desembocavam nas aldeias e apontaram ao seu comandante os chefes rebeldes... E Caluis mostrou ao seu tenente o soba velho da sua senzala, o seu pai, e prendeu-lhe as mãos atrás das costas e trouxe-o amarrado pela cinta e tocado a chicote para a vila. O soba morreu dias depois na prisão, de tristeza diziam os brancos, com o feitiço do Caluis afirmavam os negros.

Agora, o velho negro está a viajar pelo seu passado, dentro da toada que vem de longe. São os homens da sua aldeia que estão a cantar à entrada da vila, mas ele não os conhece, é gente nova, nascida depois de ter abandonado Camaxilo e que só via de longe em longe.

Caluis aprendera muitas coisas com os brancos e já não sabe falar com os homens de sua terra. Mas muitos lembram-se de o terem visto na aldeia, quando fora com o tenente prender o soba rebelde que não queria pagar o «imposto de palhota», das palhotas que eram suas e que os soldados incendiaram, depois de terem possuído à força as mulheres dos homens que fugiram para os matagais, soltando uivos de raiva e de pavor. Depois disso, Caluis só lá voltara uma vez, mas já como sipaio, lugar que lhe deram quando teve baixa na tropa, por saber falar português e ter prestado bons serviços aos «brancos do Governo». Da sua antiga aldeia, lembra-se muito bem que só havia o chão e duas velhas árvores, a sombrearem o terreiro dos batuques. A gente era quase toda nova. A maioria dos velhos tinha morrido nas guerras que os sobas sustentaram contra os brancos e soldados negros de Malanje, do Golungo e de Ambaca. Dessa vez, Caluis sentara-se ao pé do fogo a conversar com os homens novos da sua terra, que nasceram depois das guerras.

Mas a dada altura apareceu-lhe uma velha, que já era velha no seu tempo de soldado, e mal o viu começou a insultá-lo desbragadamente, como só uma velha cheia de ira o sabe fazer. Gritou para quem a quis ouvir que fora ele quem trouxera os soldados à sua terra e matara o soba velho na cadeia de Camaxilo. Os homens novos afastaram-se, e cuspiram várias vezes para o chão. E o velho Caluis nunca mais voltou à aldeia.

Tempos depois, quando passou ao largo da sua antiga senzala, a caminho do Posto do Cuilo, ouviu os patrícios cantarem ao som dos atabaques do batuque uma canção em que se falava do traidor Caluis, que matou o soba e entregou as mulheres da sua terra aos soldados brancos e negros estrangeiros. Ele parou a ouvir a canção, que terminava com gritos de ameaça, e, logo, percebeu que era a ele que se referiam. Sentiu crescer-lhe uma grande raiva à gente da sua terra e nunca mais pôde dormir sem pensar em feitiços.

Era essa canção que os negros começaram a cantar, na descida para a vila, já com o sol a estender-se encosta a baixo. Ao ouvi-la, o sipaio teve um sobressalto e, com os olhos muito abertos, pôs-se a olhar para todos os lados. Bagas de suor tremeram-lhe na testa enrugada. O vento rumorejou entre as folhas da mangueira e avivou as chamas da fogueira. De um salto, o velho pôs-se em pé, com o coração a bater-lhe apressadamente. Agarrou-se ao cano da espingarda e soltou um alerta, num grito que o sacudiu todo e reboou no vale.

Ao deixarem a planície para entrar na estrada que desce para o vale, os negros calaram-se. Eles sabiam que o administrador não queria ouvir cantigas dentro da vila. Só «siô Américo» gostava de negros a cantarem, mas ele era aspirante e quem mandava em todos os negros e brancos era o administrador. Junto ao Paiol, na curva da estrada, com um capita armado a rondar, os negros dividiram-se em pequenos grupos e começaram a descer para a povoação comercial, caminhando dentro do vale, ainda cheio da neblina que subia do rio. Daqui e dali, saíram-lhes ao caminho os camboladores dos comerciantes, negros espertalhões treinados pelos brancos nas manhas do negócio de permuta, com promessas de bom paga­mento e de melhor tingo, que é a gratificação que o comer­ciante dá ao vendedor indígena. Mas os homens nus das senzalas, que os conheciam de outros negócios em que foram enganados, não os quiseram acompanhar sem primeiro discutirem demoradamente sobre o valor da mercadoria e os preços do branco, queixando-se muito dos maus negócios que os camboladores os induziram a fazer. Puseram as cargas no chão, acocoraram-se em círculo e discutiram durante muito tempo. Mas antes de começarem a falar, correram com insultos os negros do Anacleto e Bernardo, perguntando-lhes se não sabiam que eles eram do Xá-Mucuari e do Xanvuri. Mas os empre­gados desses comerciantes não voltaram logo para as casas dos patrões, porque já sabiam que eles se iam pôr aos gritos, a insultar todo o mundo. Os camboladores gabaram muito, com grandes gestos e exclamações, as fazendas dos seus brancos e o vinho fino, que era rascante como aguardente de batata-doce, que receberam havia poucos dias, mas que em verdade já tinha três meses de loja e não havia negro «calcinhas» que lhe pegasse. Mas quem levou a palma, como das outras vezes, foi o empre­gado de Manuel Pancário, que tinha a loja mais bem for­necida de Camaxilo e, por isso, estava-lhe nas mãos quase todo o comércio da região. Vinham negros com mais de um mês de viagem vender-lhe os seus produtos. Casas como a dele, só se encontravam em Saurimo e Malanje, a mais de trezentos quilómetros.

De novo com as cargas às costas, os negros encami­nharam-se para a povoação dos comerciantes. Logo que avistaram o zinco dos telhados a rebrilharem ao sol, tomaram os trilhos que iam até às lojas.

Às portas das quatro casas que formavam a povoação-de-baixo, estavam há muito os comerciantes à espera dos mercadores negros, encostados às ombreiras, em mangas de camisa, a barba de muitos dias por fazer, inquietos com a demora e com a sorte que a cada um caberia naquele dia de negócio prometedor, porque eram muitos os negros que vinham a caminho.

— Vem gente como formigas! — disse Anacleto ao compadre, em voz alta.

Mas o velho Bernardo, embora as casas estivessem uma em frente da outra, só com a rua estreita a separá-las, não o ouviu bem.

— É para cá, não é? — perguntou ele, levando as mãos abertas aos cantos da boca desdentada, para que as palavras se não perdessem.

— Não. São muitos! — gritou-lhe Anacleto. Francisco Bernardo abanou a cabeça e apontou para o seu ouvido. E o outro gritou com mais força:

— Muitos!

Bernardo esticou o pescoço e abriu as mãos atrás das orelhas. Mas o Anacleto preferiu atravessar a rua e ir falar-lhe nos degraus da varanda.

— Estava a dizer-lhe que vem muita gente.

— Ah! Estou a ficar surdo. E para onde vão?

— Ora, para onde há-de ser, compadre. — E apontou para as bandas da casa de Manuel Pancário. — A vida está para ele.

— É a fazenda. Tem muita.

E o Bernardo pôs-se a pitar o cachimbo de grande pipo de latão, igual aos dos negros velhos.

— E ainda veio ontem, compadre! — disse Anacleto, referindo-se ao Pancário. — E a gente anda por cá há mais de cinquenta anos! — e abanou as mãos.

— Sorte, compadre. Para tudo é preciso sorte. A gente também se podia ter agarrado bem com a borracha. Bons tempos!

— Foram, foram... Mas o que é que ficou? Os filhos — e Anacleto fez um gesto vago. — Os filhos e um pedaço de terra com umas batatas. Terra que nem é nossa. Ando cá com a ideia de não tirar mais licença de comércio. Para quê? Não temos fazenda. Em Malanje é tudo gente nova. Se a gente lhes pede crédito, queixam-se com a crise... e nada.

Calaram-se. De dentro das casas chegavam-lhes pala­vras soltas e gargalhadas das filhas mulatas.

— A gente precisava de lá ir — disse, por fim, Alfredo Anacleto.

— Vá o compadre que está mais novo. Eu já não saio daqui. Já lá não vou há quarenta anos. — O velho tirou o boné, coçou a calva, e acrescentou: — Já nem sei onde fica Malanje... O que é que a gente vai lá fazer? Eles querem é gente nova. Veja lá se o Pancário não trouxe um bom fornecimento de fazendas. Pois trouxe.

— Pois é. Eles só querem fiar aos novos. Têm medo. Veja lá o que se deu com o Matias. Esticou de repente lá no Lubalo e quando chegou o tipo de Saurimo nem a cor da fazenda viu! O Cardoso é que mandou a notícia e, depois, disse que os negros roubaram tudo! Mas cá para mim, compadre, ninguém me tira da cabeça que foi o Cardoso quem se abotoou com tudo.

— Deviam levantar-lhe um processo.

- Para quê? Também levantaram um processo ao José Firmino? E olhe que ele ficou com tudo do Castão. Até dizem que foi ele que o mandou matar.

- Ele morreu foi de uma biliosa. Lá que o Firmino ficasse com as fazendas... mas matar, não! Não era homem para isso. O Castão é que veio para cá com degredo por morte de homem.

— Mas era um bom sujeito, compadre. Era capaz de dar a camisa a qualquer. Ali o Calado comeu muito tempo à custa dele.

— Mas matou lá na terra dele.

Os velhos calaram-se. Francisco Bernardo ajeitou-se melhor na cadeira de lona, onde passava os dias deitado, a fumar o seu cachimbo, e pôs os pés na guarde da varanda, esmagando algumas flores vermelhas, que lar­garam um cheiro forte, da trepadeira que ocultava uma parte da casa. Da outra rua, onde estavam as outras casas comerciais, vinha-lhes a algazarra dos negros, que depois de permutarem a cera traziam para a rua os panos de cores garridas, mostrando-os uns aos outros entre dichotes e grandes gargalhadas, em alusão às mulheres a quem os destinavam.

— A gente ainda vai arribar — disse Anacleto, pondo-se a bater com uma chibatinha nas botas descambadas, que há muitos anos tinham sido pretas.

Francisco Bernardo abanou a cabeça, descrente.

— Eu fecho a loja pró ano. Não pago mais licen­ças— disse   ele, tão baixo   como   se falasse   para si mesmo.

— E os filhos, compadre? O que é que a gente lhes vai deixar?

— Que se amanhem! Foi o que eu fiz. Eu também comecei cedo, lá na terra. E aos dezoito anos já andava por cá.

— Os filhos é que é o diabo. Se não fossem as raparigas... Que os rapazes sempre se arranjam. Agora as mulheres o que é que vão fazer se a gente morre sem as arrumar? Olhe a minha Anita... Uma desgraçada...

— Você teve notícias?

— O Rocha viu-a em Malanje. É aquilo que sabe... Vida desgraçada. E anda a gente... Raios partam a vida.

— O que é que a gente há-de fazer, quando elas são de força? — disse o outro a querer consolá-lo. — Você não viu a minha Maria... Não lhe faltava nada, que nesse tempo eu ainda tinha bom dinheiro. Passou aí um gajo qualquer, um cara de fuinha, e lá se foi. Nem disse adeus à mãe! Agora anda lá por Benguela. Eu nem quero saber. Que nunca me apareça, porque racho-a! Cabra! Não vale a pena a gente sacrificar-se. Para quê, Anacleto?

— Isso é só falar, Bernardo. Então eu não sei que o compadre pergunta sempre por ela ao Rocha... E no outro dia não lhe mandou um vestido que a sua companheira comprou à mulher do administrador... A gente não pode esquecer   os   filhos,   Chico   Bernardo,   são   do   nosso sangue...

— Pai! — gritou da varanda de Anacleto uma mulata alta e gorda, vestida de preto. — Vêm aí, pai.

Alfredo Anacleto correu aos saltinhos para casa e foi pôr-se à porta da loja. Viu passar três negros com cargas às costas, que tomaram a direcção da loja do Calado. Ainda esperou um momento, mas ao ver outro negro, que reconheceu ser da aldeia do Xá-Mucuari, encaminhar-se para a loja do Pancário, entrou em casa, bufando, e desembestou contra a filha que o chamara.

— Tu não viste que era gente do Xá-Mucuari? Era melhor que ficasses a tomar conta das panelas. Sempre a meter as ventas onde não é chamada-Pai... não vi. Não, papá...

— Qual papal Vá para a cozinha! Papá... papá... — e voltou, mordendo o bigode e a dar a dar aos braços, para a varanda do Bernardo. Sentou-se nos degraus, calado.

— Então?...

-Nada! — respondeu, ainda mal humorado. Depois, um tudo-nada mais sereno: — Foram três para o Calado e o resto para o Pancárip. É gente do Xá-Mucuari e do Xanvuri.

Francisco Bernardo cuspiu para a frente e levantou as mãos, sacudindo-as sobre a cabeça repetidas vezes.

— Esse cão nunca mais morre! — gritou Anacleto, nos bicos dos pés, vermelho de cólera.

Mas só passado um grande bocado é que o Bernardo falou:

— Nós ainda iremos primeiro. Negro velho nunca mais morre. Esse Xá-Mucuari...

— Lá vêm mais dois — deu conta Anacleto, voltando a sentar-se nos degraus.

Os negros vinham a subir a estrada, com peles de corça à cinta, e logo que viram os velhos meteram ao mato, para o lado da casa do Pancário.

— É que são mesmo do Xá-Mucuari — disse Ber­nardo, que se erguera para os ver por entre a trepa­deira. — Esses cães bem nos viram.

Os velhos colonos conheciam quase todos os indígenas e não havia negro velho de quem não soubessem o nome e de muitos conheciam toda a vida, conversada noutros tempos ao seu balcão, depois de fazerem o negócio. Era gente do tempo das guerras e de antes das guerras, da época do escravo e do marfim, e, depois, da borracha.

Muitos tinham vindo com as suas cargas de borracha e com pontas de marfim velho às lojas do Bernardo e do Anacleto, e levavam tudo que queriam por conta de futu­ros negócios. Mesmo quando não queriam fiados, o comer­ciante andava à sua volta até tentá-los, porque assim ficariam comprometidos a negociar só com ele. Todos sabiam que o negro pagava sempre, tarde embora, mas sempre; e, se morresse, não haveria parente que negasse a dívida, tomando-a como sua.

Nesse tempo a gente do Xá-Mucuari vendia-lhes tudo, porque o seu soba era grande amigo do Bernardo e Anacleto, que vieram para a Lunda muito antes dos brancos da borracha, e o ajudaram na guerra contra o soba Xá-Cungo. Os homens do Xá-Mucuari só iam nego­ciar às outras lojas, quando na casa do Bernardo e do Anacleto acabavam as fazendas. Mas antes de o fazerem, desculpavam-se junto deles, em atenção à amizade que o seu soba lhes tinha. Mas tudo isso se passou há muitos anos, antes do comércio da borracha. Então, Xá-Mucuari vendia-lhes marfim que mandava trocar por escravos ao Bula-Matári. Depois é que vieram os brancos à procura da borracha. Bernardo e Anacleto também se entregaram a esse comércio e chegaram a enriquecer. Mas o jogo e as mulatas que vinham de Malanje, porque o dinheiro em Camaxilo era a rodos, levaram-lhes o melhor. O resto perderam-no em maus negócios e na concorrência aos colegas, em que se chegara a pagar ao negro mais dinheiro do que valia a borracha! Os indígenas aproveitavam-se dessas lutas entre os comerciantes e exploravam-nos o mais que podiam, saltando de loja em loja atrás dos cam-boladores, exigindo-lhes tingos avultados. Só a gente do Xá-Mucuari se mantinha fiel aos dois comerciantes que ajudaram o seu soba a fazer a guerra ao Xá-Cungo, em que ganharam, a título de recompensa, toda a borracha do chefe vencido e a amizade de Xá-Mucuari. O soba ficara com os escravos e a caveira do chefe morto às suas mãos.

Mas, agora, nem um só homem de Xá-Mucuari, nem mesmo a gente que nasceu depois das guerras com os brancos, passa à sua porta. E quando os seus homens são de todo obrigados a fazê-lo, por imposição dos capitas e sipaios que os acompanham, por andarem a capinar a estrada, viram a cara para o lado e cospem para o chão. Os colonos enfurecem-se e gritam-lhes insultos. Eles não lhes dão troco, com medo ao chicote do sipaio, porque o negro não pode levantar a voz para um branco. Fechavam-se num mutismo raivoso e mentalmente co­briam-nos de insultos. Mas, à noite, à volta das fogueiras da senzala soltavam as suas grandes gargalhadas, vendo um deles a arremedar os colonos. Só o soba Xá-Mucuari ficava muito sério, com os olhos duros e a boca torcida.

O soba Xá-Mucuari nunca lhes perdoou por terem guiado a coluna militar à sua aldeia, apontando o seu velho pai ao tenente que a comandava, que o levou preso para Camaxilo, onde o envenenaram. E ele, que já era então o soba, porque o pai estava muito velho, só não foi amarrado para a cadeia porque fugira, enquanto esses dois brancos, a quem franqueara sempre a sua aldeia, cobrando-lhes menos impostos que aos outros comer­ciantes, surdo aos conselhos do pai que lhe dizia que os brancos nunca podiam ser amigos dos negros, assistiam ao saque da soldadesca e se riam aos gritos das mulheres perseguidas pelo cio de brancos e negros estrangeiros. Mais tarde, Xá-Mucuari soube, quando andava a monte, que Francisco Bernardo arrastara uma das suas mulheres para o capinzal e a forçara a entregar-se-lhe.

O soba lunda andou a monte muitos anos, comeu raízes das terras ardentes do Cuilo, de onde os indígenas emigraram aos milhares, fugindo à frente dos soldados, e bebeu água podre dos charcos. Andou sempre longe das senzalas da borda dos rios, porque nesses tempos de morte e traição nem nos próprios negros podia confiar. Muitos se aproveitaram dessas oportunidades para se vingarem dos castigos que os sobas lhes aplicaram. Abandonado e só, Xá-Mucuari voltou às suas terras muito tempo após os soldados se terem ido embora e os brancos que vieram depois para cobrar os impostos não quererem saber das coisas antigas, perdoando a todos os sobas que viessem pagar o tributo. Pouca gente ele encontrou na aldeia. Das suas mulheres, soa muata-muàri — a primeira mulher— o esperou. Fora a única que os soldados não quiseram debochar, porque os seus seios há muito tinham caído, murchos como mamões sorvados, e a barriga caía-lhe às pregas. Ela, que era bastante mais velha do que ele, mal o reconheceu, tão avelhentado estava. A velha contou-lhe a história triste do seu povo e tudo o que fize­ram os soldados que os colonos de Camaxilo trouxeram à aldeia.

O seu povo andava disperso. Muitos dos seus melho­res homens tinham emigrado e outros viviam em aldeias distantes, com novos sobas e outras ambições. O velho esteve muitos dias a praguejar contra o povo infiel; depois, mandara tocar os tambores, convidando toda a gente a regressar à aldeia. Mas os homens já tinham criado interesses noutras terras e riram-se das suas amea­ças. Mandaram-lhe dizer que em vez de tocar os tambores a chamá-los dançasse com a sua música, porque eles nunca mais voltariam à terra que ele abandonara com medo dos brancos. E Xá-Mucuari foi chorar o seu povo perdido junto dos túmulos dos velhos sobas, mais felizes do que ele, porque morreram sem conhecer os brancos e os negros que vieram de longe fazer a guerra dos brancos contra seus irmãos de raça. Desde esse dia, o velho só saía da aldeia uma vez por ano, quando para lá se dirigia o funcionário que ia recensear a sua gente para efeitos do pagamento do imposto. Ele não queria enxergar nem a sombra do estrangeiro. Escondia-se na floresta e só regressava à senzala depois do branco estar longe das suas terras. Para as autoridades, Xá-Mucuari estava sempre doente ou em viagem. Quando o mandavam chamar, para dar contas à autoridade das ordens não cumpridas pelos seus homens, mandava um escravo velho, que se prontificava a apanhar todas as palmatoadas, como se fosse ele mesmo. Esse escravo passou a ser para as auto­ridades o próprio soba Xá-Mucuari, porque era com o seu nome que se lhes apresentava. Ele não queria ver os bran­cos nem os novos sobas de nomeação dos militares e, depois, dos civis, a quem de pronto começaram a pagar os impostos, que foram a causa de muitas revoltas. Atri­buía a esses sobas, alguns seus antigos escravos, todas as desgraças do seu povo, outrora forte e rico e, agora, dividido em muitos pequenos grupos, cada um com o seu soba da confiança dos brancos do Governo, sem possi­bilidade de se reunirem para guerrear o estrangeiro. Odiava todos os que se tinham vendido aos brancos para serem sobas, entregando-lhes quantos homens eles queriam para os trabalhos públicos, para as minas de diamantes que se acabavam de descobrir e para o exército, e todo o dinheiro do imposto. Alguns até levavam à casa do branco as suas próprias mulheres e mostravam-se muito agradados se eles se deitavam com elas.

O destino dos negros tinha mudado. O branco passou a ser o dono da terra. Os comerciantes nunca mais paga­ram aos sobas impostos para comerciarem com os seus filhos e andavam por toda a parte como se a terra lhes per­tencesse, como se tivessem ali nascido e os negros fossem os estrangeiros. E estavam sempre a ameaçá-los com quei­xas aos brancos do Governo. Eles eram os donos de tudo. Um soba antigo valia, agora, tanto como um dos seus escravos.

Foi nesse tempo que os sipaios apareceram nas sen­zalas, de farda e espingarda, a falarem sempre em nome das autoridades. «É branco do Governo que manda», diziam eles, invadindo as cubatas, prendendo quem quer que fosse para ir trabalhar para os brancos, e fazendo mão baixa do que mais lhes agradava. E para os filhos dos sobas não irem capinar as estradas, tinham de se fazer amigos dos sipaios e presenteá-los a cada passo.

— A Lunda está desgraçada— diziam os negros velhos que fizeram as guerras.

E, eles e o Xá-Mucuari, fumavam liamba para esque­cerem a sua humilhação e viverem em sonho o seu des­tino perdido...

Todo esse mundo de coisas brotava do passado de Xá-Mucuari, quando os seus homens se punham a rir troçando dos dois colonos. O velho ensimesmava-se, o carão fechado, os olhos a brilharem de cólera. E, nessas noites, era sabido que ele se embebedava com vinho de palmeira e fumo de liamba.

O Sol passou por cima do vale, rolou no céu alto da planície e foi cair nos longes, resvés à terra, afogueando o horizonte de nuvens acasteladas. Os dois velhos colo­nos ainda estavam a conversar com as portas das lojas abertas de par em par, às moscas, mostrando as prate­leiras vazias.

Hoje é um dia grande para o Pancário — disse Bernardo.

— São todos — e Anacleto enrolou um cigarro. Depois, acrescentou: — O sino deve estar a tocar.

A noite enegrecia no vale e as povoações ficavam cheias de sombra. E, logo, o sino da Administração começou a tocar para os negros largarem o serviço e os comerciantes fecharem as portas.

Anacleto foi para casa e Bernardo levantou-se da cadeira de lona, onde passava os dias de boné na cabeça calva, por causa dos moscas, arrastou-se nos chinelos ao longo da varanda e chamou por um dos filhos para o ajudar a fechar a loja.

— Diz à tua mãe que mande o café — recomendou ele ao filho, logo que trancaram as portas da loja vazia. E voltou para a cadeira, sentando-se com um suspiro fundo.

Um canto veio de longe, do alto de Camaxilo, ganhou a noite negra do vale, onde o eco o levou para a povoação-de-baixo, perdendo-se nos céus distantes da planície, com os seus castelos de nuvens invadidos por labaredas de sol.

Eram os negros contratados para os trabalhos das minas de diamantes que estavam a cantar no acampa­mento, longe da povoação alta.

Joaquim Américo vira-os atravessar, havia pouco, o largo, quando abandonava a Administração, depois de passar um dia a ouvir queixas de negros contra negros. Parado no largo,içou-se a ouvi-los.

— Parece canto fúnebre — disse ele a Vasconcelos, que estava sentado no banco debaixo da mangueira,— E se fôssemos lá abaixo?

— Só se for até ao rio — impôs Vasconcelos, espreguiçando-se.

— Estou farto de ouvir os velhos contarem histórias antigas. Já é tarde.

E começaram a descer a estrada.

Com a testa encostada à vidraça da janela, atrás das cortinas, D. Jovita seguiu-os com os olhos tocados de melancolia. E quando eles desapareceram na curva da estrada, ela continuou a olhar, mas já não via o que estava à sua frente, alheada, a alma debruçada sobre os caminhos do sonho. Fechara-se a noite no vale.

Um pensamento rápido e cru como relâmpago, assal­tou D. Jovita, que se viu nos braços de Joaquim Américo. Mas de pronto despertou. O sangue subiu-lhe à cara, latejaram-lhe as fontes, e o peito começou a arfar-Lhe. «Que asneira!», pensou, tapando o rosto com as mãos, envergonhada de si mesma, e desviou-se da janela. Mas, logo, a mesma ideia, mas não tão crua, a tomou; porém, desta vez não lhe trouxe vergonha. Na sombra da noite que caía, ficou-se a olhar sem ver, perdida em pen­samentos vagos e suaves. E só despertou ao ouvir a voz do marido, que estava na casa de jantar, a pedir-lhe que lhe levasse os cigarros, esquecidos sobre a banquinha do quarto de dormir.

De longe, os criados dos comerciantes viram os fun­cionários, nas suas fardas de caqui, e correram a avisar os patrões. Logo, as portas das lojas do Pancário e Calado se fecharam e os negros foram empurrados com as cargas para os grandes quintais, onde os camboladores os não largariam durante toda a noite, não fosse algum mudar de opinião e de loja no dia seguinte. Mas, mesmo assim, os comerciantes estavam inquietos, que os negros mudam de ideias como o vento de rumo.

Os homens do Xá-Mucuari não queriam arredar pé da loja do Pancário e começaram a barafustar com a demora do negócio. Um velho foi à rua espiar para a loja do Caindo, para onde tinha ido toda a gente do soba Xanvuri. Estavam ali desde a manhã e queriam vender toda a cera para, ao romper da madrugada, regressarem às senzalas. Mas as instruções que, recentemente, o administrador mar dará afixar nas portas das lojas eram terminantes, todos tinham de cumprir o horário. E Manuel Pancário tinha medo às multas e não queria sarilhos com as auto­ridades. Os negros, logo que se lhes disse que eram ordens dos brancos do Governo, deitaram mãos às cargas e correram para o quintal da casa do comerciante.

Mas fora rebate falso. Os funcionários não vieram à povoação. Um negro «calcinhas» fora espiar e vira-os na ponte, encostados às guardas, a conversar. Manuel Pan­cário pôs um servente a vigiar a estrada e foi atender o velho que espiara a casa do Calado, fazendo-o entrar pela porta do quintal.

— São ordens do Governo — disse o comerciante.— Cada dia é uma ordem, só para chatear a gente.

O negro velho viu que ele estava a pesar as suas bulas de cera muito depressa e a cortar os panos no escuro, propositadamente afastado da luz do gasómetro de car­bureto que estava sobre o balcão, e não quis fazer o negó­cio. Pancário barafustou, que ele não estava ali para roubar ninguém, que toda a gente sabia que era um branco sério. O velho concordou com tudo quanto ele disse e pediu-lhe para não se zangar, porque era amigo dos brancos, que os conhecia há muitos anos e sabia que não roubavam os negros. Mas foi levando as bolas de cera, para as ven­der no dia seguinte, dizendo-lhe que o branco não estava a ver bem com aquela luz e a balança já estava cansada...

 

Na manhã cheia de sol, o mulato João vinha a subir a rua, de mãos afundadas nos bolsos das calças, a camisa aberta no peito. Com um jeito malandro cuspiu a ponta do cigarro e começou a assobiar uma modinha dos «cal­cinhas» de Luanda. Passou ao largo da loja de Manuel Pancário, cheia de negros encostados ao balcão e aco­corados na varanda ao lado de cargas de cera, e enca­minhou-se para a casa do pai. Um rafeiro saiu-lhe à frente e ele levou-o aos pulos dando estalos com os dedos. Saltaram para a varanda, o cão correu sobre uma galinha e ele entrou a gingar na loja. Viu o pai atrás do balcão, de costas voltadas para a porta, a arrumar as prateleiras. Sem se voltar, o comerciante perguntou:

— Então, rapaz?

— Foram todos pró seu Manei.

José Calado voltou-se para o filho, espalmou as mãos no balcão e disse-lhe, sacudindo as palavras:

— Nem pareces meu filhoEntão tu deixas os homens irem para lá?

Mas mal tinha acabado de falar e já um peso de quilo vinha no ar. Passou-lhe rente à cabeça e fez um buraco na parede de adobe.

- Puxa— e o mulato saltou para a varanda.

— Seu vadio! Bem se vê que és atravessado! —e fez menção de saltar o balcão, como esquecido da sua perna manca.

— O senhor é que fez —atirou-lhe o filho, já na rua.

— Espera que eu te digo, malandro!—e José Calado arrastou-se,   manca-que-manca,   ao longo do   balcão.

— Espera, espera, malandro!

O mulato ia a safar-se para o mato, quando ouviu a voz da mãe.

— Você panhou eles, Jão?

— Não panhou, mamãe. Ficou no seu Manei. Pai tá com raiva. Me quer machucar. Não pode pegar eles, não.

O comerciante, ao ouvir a negra, voltou a arrumar as prateleiras, onde a fazenda escasseava e os rolos de tabaco para o gentio formavam pilhas.

— Deixa — disse a negra ao filho.—Tem doce de ginguba na cozinha.

Saiu da porta para o mulato poder passar e, de mãos nas ancas largas e redondas, deixou-se ficar na varanda, a espiar para a casa do Pancário, trinta metros abaixo.

— Eh meu gente! — disse ela abrindo os olhos, a iluminarem-lhe a cara bolachuda, ao ver muitos negros na loja do vizinho.

José Calado veio à porta, a arrastar a perna inchada.

— Eia, que veio .mais gente! — admirou-se ele, me­tendo os dedos de unhas negras nos cabelos revoltos, caídos   sobre   a   testa   estreita.

— Tem gente que não caba mais!—e a negra Fran-cisca olhou para o seu branco. — Você tá ficando pra trás.

— Diz isso ao teu filho. — E o Calado mancou para dentro da loja, mal humorado.

Francisca é que não arredava pé da varanda, seguindo o movimento dos mercadores negros.

— Cera não falta, não... — comentou ela. — Sorte não tem.

Um velho viu-a de longe, da varanda do Pancário, e

acenou-lhe um adeus.

— É Capolo, mesmo ele— E Francisca ficou muito satisfeita por ter reconhecido o antigo soldado que conhe­cera na sua terra, quando era lavadeira e amásia do sar­gento da Companhia de Infantaria de Malanje.

— Jão! — chamou   ela. — Minino,   chega,   chega! — E pôs-se a acenar ao velho com as duas mãos muito abertas

-Que tem? — perguntou o mulato, vindo a correr do quintal, a limpar à camisa as mãos sujas de doce. - É Capolo tá lá. Pega ele, Jão.

— Não vai vir, não, mamãe.

-Pega ele, pega, minino. É amigo do antigo...

João foi ao encontro do antigo soldado, que se pôs a rir para ele com os dentes podres. Estava acocorado ao pé das suas bolas de cera, de dorso nu e de pano aos quadris.

— Mamãe chama — disse o mulato.

O velho riu-se e indicou-lhe com os olhos as bolas de cera.

Depois, disse-lhe na língua da terra que iria ver nhã Francisca logo que fizesse o negócio. Aproximaram-se vários negros, a olharem desconfiados para o mulato, que falava ao velho com um ar importante, estendendo a cada palavra o beiço grosso e coberto de ranugem. -Tem pano bom — aliciava o mulato.

O negro velho percebia bem o português, mas já se tinha esquecido de o falar, por isso lhe respondia na sua língua, voltando a assegurar-lhe que iria ver a mãe, mas depois de permutar a cera. E ria-se, com a boca muito aberta e fedorenta. E os outros, que tinham feito círculo à volta deles, também se puseram a rir. Então, o mulato enfureceu-se, abriu caminho aos empurrões e virou-lhes as costas. A sua atitude fez o velho soltar uma risada, logo abafada pelas gargalhadas dos companheiros. João voltou-se de repente para eles, o cenho carregado, e fez-Lhes um manguito.

— Negros! Servages!—gritou-lhes, repetindo várias vezes o gesto.

E todos os negros que estavam na varanda e na rua se puseram a rir às gargalhadas, embora não percebessem o significado do gesto do mulato. Só o antigo soldado o conhecia e, por isso, ria de outra maneira.

O fulo Mariano veio à porta da loja para ver do que se tratava.

— Que tem, Jão? — perguntou ele.

Mas o mulato nem se voltou, aproximando-se de casa.

— Você tá cambolar — gritou-lhe Mariano.

— Só se é tua rapariga l

Francisca largou a rir às gargalhadas, toda dobrada para a frente, as mãos nas ancas.

— Tu é mêmo meu fio — disse a negra, a chorar de tanto rir.

— Logo pego tu — ameaçou Mariano.

— Pega é gaita, seu negro.

— Espera só.

Mas Mariano entrou na loja, acudindo ao chamado de Manuel Pancário.

— Corta — mandou o comerciante, fazendo rolar sobre o balcão uma bola de cera.

Com um golpe de catana, Mariano abriu a bola ao meio e espetou a lâmina nas calotas, várias vezes, aqui e ali.

— Tá boa, patrão — e pôs a cera na balança.

O dono da cera riu alto, sem tirar os olhos da balança, todo satisfeito porque a sua bola estava limpa. E o fulo continuou a cortar as bolas, verificando cuidadosamente se a cera não trazia terra, pedacitos de madeira ou qualquer porcaria que lhe aumentasse o peso.

Pancário, com a cara chupada e verde a pingar suor, de mangas arregaçadas, olhava discretamente para as mãos dos negros que estavam encostados ao balcão, não fosse algum fazer mão baixa a qualquer ninharia, e ia pesando a cera, pondo-se nos bicos dos pés sempre que queria verificar o fiel da balança. Os negros riam-se todas as vezes que o viam crescer na ponta dos pés. Mas mesmo assim, ele ficava abaixo, aquém da cabeça dos negros.

Verificada a pesagem, dois quilos certos, o comerciante desmarcou a balança e disse alto para o filho:

— Um quilo e oitocentas. É para o Capinda.

Ao ouvir o seu nome, o negro confirmou, abrindo-se num riso:

— Euál

— O mulato deixou de roer a ponta da caneta e fez o registo com os seus números muito redondos e o nome em letra cheia.

— Não te enganes, rapaz — recomendou Pancárior o que sempre fazia depois de instruir o filho sobre o peso.

— Tá certo. — E o mulato descansou a caneta no frasco da tinta e começou a enrolar um cigarro.

Capinda afastou-se da balança para dar lugar a outro vendedor e foi encostar-se ao balcão, a olhar para as peças de fazenda que estavam nas prateleiras, umas em cima das outras, até ao tecto. Esperou que o Lucano ultimasse o seu negócio, para escolher a fazenda que queria, apon­tando esta e aquela a José, que lhas ia mostrando sem tirar as peças da prateleira.

Antes do ambaquista passar a peça escolhida ao patrão, o negro Lucano quis apalpar a fazenda e mirou-a por todos os lados. Depois, mostrou-a ao companheiro do lado, pediu-lhe conselho, voltou a apalpá-la e foi vê-la melhor contra a luz.

— É boa. Tua mulher vai gostar — disse o ambaquista José, desdobrando mais a peça e convidando-o a ver bem, porque depois da fazenda cortada tinha de ficar com ela. O comprador decidiu-se, mas já a olhar para outra peça:

— Eu já, usa.

— Três panos, patrão —e José passou a fazenda ao Pancário.

Voltado bem de frente para Lucano, o comerciante começou a medir os panos, a braças, os braços bem aber­tos. O negro riu-se, satisfeito. Mas os braços de Pancário baixaram um pouco ao largar uma ponta para medir a segunda braça, recuando a mão. Ao cabo de seis bra­çadas, com a fazenda a tapar-lhe o corpo, atirou os três panos unidos, com menos um palmo em cada braça, para cima do balcão. O negro foi ver a fazenda ao sol e voltou pedindo a José que a trocasse por uma outra amarela, que tinha visto no fundo da loja. Mas o amba­quista começou logo a censurá-lo, porque o que queria não era sério, que o tinha avisado para ver bem, que o pano escolhido era muito bonito, encarnado, como anti­gamente só os sobas podiam usar. Lucano riu-se muito com a alusão ao tempo em que só os grandes chefes indí­genas podiam vestir de encarnado, concordou que o pano era bom e foi dobrá-lo para um canto do balcão. Depois pediu o tingo. Pancário, sem deixar de pesar a cera, queixou-se de que o sal estava muito caro, as agu­lhas também, e que tinham vindo poucos fósforos de Malanje. Mas o negro insistiu, já habituado à choradeira do branco. E ele deu-lhe uma caneca de sal, uma caixa de fósforos e uma agulha espetada num novelo de linha.

Mas foi-lhe dizendo, muito alto para que os outros ouvis­sem, que o tingo ia acabar, os brancos de Malanje e das outras terras já o não davam, tudo encarecia e ele não estava ali para perder. A uma, todos protestaram, que sempre se deu tingo e que os brancos ganhavam muito. Depois puseram-se a elogiar o «branco bom», que não era como os outros que não lhes davam fósforos e enchiam mal a caneca do sal.

— Está bem, está bem. Tragam mais cera e há tingo. E de todos os lados se ouviu:

— EuáEuá /Euá f...

Depois foi a vez de Capinda, que já tinha desistido dos panos, ambicionando um casaco usado. Pancário mandou-o entrar para o balcão e fez sinal a Mariano para o trazer debaixo de olho, e deixou-o escolher à vontade num fardo de roupa velha. O negro vestiu todos casacos, mirou-se por todas as bandas e acabouoescolher uma casaca, cujas bandas de seda o mpressionaram muito. Já com a casaca vestida, perguntou ao José o preço. Pancário respondeu-lhe:

— Quarenta angolares.

Capinda achou muito caro e pediu abatimento. O comer-iante não cedeu e propôs-lhe um casaco aos quadradi­nhos brancos e pretos por trinta angolares. Mas o negro não largou mais a casaca, sem tirar os olhos das bandas. E, logo, foi à rua mostrá-la aos companheiros. Despiu-a a pedido do seu soba, que a mirou por todos os lados, apalpou-a, esfregou a seda na cara e voltou-a do avesso, dizendo-lhe que a pusesse assim porque ficava mais bonito. E ele assim a vestiu por cima do pano. Segundos depois, estava de novo na loja para comprar umas calças. Mariano e José largaram a rir, ao vê-lo com a casaca vestida pelo avesso. Disseram-lhe que não era assim que se usava, mas só depois de argumentarem com o voto do branco é que o Capinda se convenceu.

— Os servages não sabe nada — disse José ainda a rir. Como as calças custavam vinte angolares, as mais

baratas, e Capinda só tinha quinze, o ambaquista não lhas quis vender. Mas ele não largava o balcão, onde pusera todo o seu dinheiro.

— Dá fiado, mas recebe os quinze — autorizou Pan-cário.   E voltando-se   para   o filho: — Cinco angolares fiados ao Capinda.

José atirou-lhe umas calças e guardou o dinheiro. O mulato foi buscar à gaveta o livro dos fiados e, depois de longa busca, informou:

— Ele tá devendo doze angolar.

— Tira-lhe as calças, José — mandou o comerciante. — E passou uma descompostura em forma ao ambaquista e a Mariano, porque não estavam atentos às dividas.

Capinda andava na rua com as calças vestidas, muito largas e com umas poucas de dobras, todo pimpão, mostrando-as a toda a gente. Era a primeira vez que vestia calças e estava muito contente por lhe ter descoberto os bolsos.

Os negros soltaram grandes gargalhadas, quando José lhe tirou as calças, puxando-as pelas pernas.

Nesse momento, apareceu à porta da loja um sobeta, muito alto e magro, com a barbicha branca espetada, de panos caídos até aos pés e um chapéu armado de oficial de marinha, com os doirados ainda vivos, empunhando uma lança. De todos os lados romperam exclamações. E não houve um só negro que não invejasse o chapéu que o sobeta acabara de comprar. Logo, o soba Cape-remera saiu de entre os seus homens, arrastou pelo chão o cobertor de papa que trazia pendurado nos ombros e entrou na loja a reclamar um chapéu igual. Mas como não havia outro, trouxe um guarda-sol, que abriu mal pôs pé na rua, olhando muito satisfeito e vaidoso para todos os lados. Mas não fez sucesso, porque sombreiros daqueles havia muitos, ao passo que chapéus com dourados era raro aparecerem. Só a gente da sua comitiva se mostrou contente, para o lisonjear.

A atenção dos negros desviou-se para a loja, onde Manuel Pancário estava a gritar, insultando toda a gente. E, logo, um negro veio a correr para a varanda e atrás dele dois bocados de cera, que foram cair na rua. Todos perceberam do que se tratava. O homem tinha tentado vender uma bola de cera com porcarias, mas Mariano dera logo com a coisa e avisara o patrão. E toda a gente começou a rir.

— Cambuta   (pessoa baixa) tem olhos de bambi! — disse um velho referindo-se a Pancário.

E estrelejaram mais gargalhadas. O próprio negro que trouxera cera misturada com terra, começou a rir.

Só os homens do soba Caperemera não quiseram per­mutar a cera. Exigiram dinheiro, porque ainda não tinham pago os impostos. Pancário ficou contrariado, porque só gostava de negócio de permuta, mas não deixou de lhes comprar a cera. Só os pesos é que passaram a ter setecentos e cinquenta gramas por quilo e não lhes quis dar o tingo.

Os negros protestaram, porque tingo dava-se sempre, mas Pancário foi-lhes dizendo:

— Dinheiro é dinheiro; pano é outra coisa.

Eles ficaram aborrecidos, mas acabaram por concordar, depois da interferência do ambaquista em favor do seu patrão, que de facto dinheiro era dinheiro...

Quando o sino tocou na povoação alta, os mercadores negros estavam aviados e muitos já iam a caminho das senzalas, a passo estugado. Queriam chegar cedo para mostrar as compras às mulheres e aos amigos.

Só os homens de Caperemera é que não saíram de Camaxilo. Foram para o acampamento, na senzala dos sipaios, com o seu soba. Acocoraram-se à volta das foguei­ras, que os moleques ficaram a guardar, e entregaram todo o dinheiro a Caperemera. O soba meteu trinta angolares em cada caderneta do imposto indígena e guardou-as na sua bolsa de couro, para no dia seguinte ir à Administração. Dormiu toda a noite com a cabeça em cima da bolsa, embora um dos seus homens ficasse de guarda, porque aquela não era a sua terra e negros ladrões encontram-se sempre nas povoações onde há brancos.

Fechada a loja e feitos os apuros do negócio, Manuel Pancário foi sentar-se numa cadeira de palha, na varanda, porque já não sentia os pés, de tão doridos que estavam. Todo o dia sem se sentar, o olho vigilante na balança e nas mãos dos negros. Estava derreado.

— Bem bom! — disse ele a si mesmo, a pensar nos apuros do dia. — Isto vai bem... — e abriu a boca num riso largo.

O cansaço trouxe-lhe sono. Levantou-se e deu uns passos na varanda, porque não queria dormir. Mas voltou a recostar-se na cadeira, os pés dormentes, ombros dori­dos, e, segundos depois, cabeceava, ouvindo ao longe, confusamente, alguém falar em tom de zanga.

José Calado descompunha o filho:

— Vadio) Eu todo o dia aqui na loja e você na vadia­gem. Mas espera, espera! — e pôs-se a saltar numa perna, gemendo quando a outra, trôpega e chagada, tocava o solo, em direcção ao filho.

— Não pega ele — gritou a negra Francisca, que veio a correr, rebolando-se toda, do fundo da varanda.

Calado encostou-se a arfar à ombreira da porta da loja.

— És de má raçaSangue de negro— gritou para o filho,   que se   pusera   ao   largo,   a olhar para   longe, como se alguma coisa o interessasse para as bandas da planície.

— É seu sangue — retrucou-lhe a companheira, pondo as mãos nas ancas. — Igualinho   mêmo.   Você é que fez ele.

— Cala-te.

— Cala nada. Não deixo pegar ele, não. É meu fio.

— O que ele é sei eu... Um vadiola.

— Tá minino. Não pode pôr ele na loja, não.

— E eu? Eu sou algum negro?

— Seu serviço.

— Para encher você de panos, não?

— Tem pano, tem? Onde tá pano? Tem tempo deu minha pano. Ôia branco, tá podre — e mostra-lhe os velhos panos que a cobriam. — Veio como quê! Minha missanga? Onde tá missanga você falou? Não deu, não. É só fala, fala, faial...

— Vai-te embora, mulher!

— Vai nada. Só trabaiá, pano não tem.

José Calado é que se foi embora, mancando e tor­cendo as mãos com desespero.

— Minino — chamou   a   negra — tem   doce.   Chega. Deixa esse, deixa ele, Jão.

Quando o mulato se aproximou da varanda, ela disse-Lhe, metendo-lhe os dedos no cabelo:

— Tu é fio de branco. Eu pariu você na casa dele. Não é um calquer, não.

O mulato não foi comer doce. Deu volta à casa, sentiu que o pai estava na loja trancada e meteu-se no capinzal que ocultava as traseiras da casa de Alfredo Anacleto. Ia ter com os filhos dos colonos, mulatos desocupados como ele, para irem até ao rio.

Encarrapitado na paliçada do quintal do colono, João chamou, em voz baixa, pelo Eugênio Anacleto. Mas foi a Maria, irmã de Eugênio, uma mulatinha de treze anos, quem lhe apareceu, vestida de encarnado, a saia muito curta, descalça. Fez-lhe sinal para que não falasse e foi ter com ele, espiando a cada passo para a porta da casa. Encostou-se à paliçada e levantou os olhos verdes e tristes para o rapaz. Ele meteu-lhe os dedos no cabelo, todo aos caracóis, e espreitou-lhe os seios a apontarem, muito tesos, nus dentro do vestido.

— Salta — convidou ela, com a voz mais meiga que ele tinha ouvido.

Era sempre com uma voz macia e langue que ela lhe falava, pondo-o tonto.

E foram, olhando para todos os lados, para trás da cozinha. Escurecia. João passou-lhe um braço pela cin­tura e puxou-a para o peito.

— Não me pega, Joãozinho — disse-lhe olhando-o nos olhos, mas não se mexeu.

— Machuco você, linda — e ele apertou-a muito.

— Não machuca, não. Me deixa... — e encostou-se mais.

E quando ele, todo a tremer, lhe procurou a boca, ela estendeu-lhe os lábios e fechou os olhos. Mas quando lhe sentiu as mãos nas coxas, sob o vestido, apertou muito as pernas e empurrou-o.

— Isso não.

Não se pôde libertar dos braços do rapaz, que eram como ferros nas suas costas. Estavam boca com boca.

— Me deixa... me deixa... — E Maria anichou-se toda nos braços dele.

— Ai lindai Linda...

Dobrou-a pela cintura, sentindo-lhe o ventre duro colado ao seu sexo, e meteu-lhe os lábios na boca.

— Maria! — gritaram de casa.

Ela desprendeu-se, passou as mãos pelo cabelo, ajeitou o vestido e foi a correr. João escapuliu-se pelas traseiras.

— Onde é que tu andas? —perguntou-lhe o pai.

— Foi só mijar ali, papá.

— Vem para casa. Não é preciso ir tão longe. Acende o candeeiro.

E o velho Anacleto encostou-se ao pilar da varanda, aberta ao vale, e ficou a olhar para a noite que vinha sobre Camaxilo.

 

A mão de D. Jovita ficou a dizer adeus até que o auto­móvel dobrou a curva da estrada e desapareceu deixando atrás uma nuvem de poeira. Amélia, sua criada de quarto, acenava-lhe com ambas as mãos, a boca toda aberta num riso contente que lhe brilhava nos olhos agarotados. Mas não fora para ela, em especial, que a mulher do administrador dissera adeus, mas para toda a gente, ou talvez para alguém que não pudesse distinguir aos olhos dos outros.

— D. Jovita vai satisfeitíssima — disse Joaquim Amé­rico.

— Coitada, passa a vida metida neste buraco, sem ter nenhuma senhora para conversar. Vida estúpida a nossa, quanto mais a dela — comentou António de Vasconcelos, fazendo um gesto de enfado.

— Há muito pior do que isto — disse o secretário. Estavam os três parados no meio da estrada, de onde o carro do administrador largara, rumo ao Posto do Luremo.

— Mulher minha não a metia neste buraco — disse Vasconcelos, espiando a negrinha Amélia, especada na varanda.

Mas a moça furtou-se ao seu olhar, porque não queria nada com aquele branco que só dava um angolar às mulhe­res que se deitavam com ele, e entrou em casa.

— Isto é terra só para homens duros como os velhos lá debaixo — tornou Vasconcelos. — A gente aqui bruta­liza-se, estiola-se.

Jaime Silva não concordava:

— Isso é asneira. Quando eu me casar, a minha mulher irá para onde eu for, nem que seja para o Cuangar. Era o que faltava... Só os parvos é que se casam para andar sem a mulher.

Joaquim Américo percebeu que o secretário queria implicar e, travando o braço de Vasconcelos, disse:

— Vamos trabalhar.

Jaime Silva foi atrás deles. A porta da Administração, pôs-se a gritar com os sipaios, dando ordens para a esquerda e para a direita, com um espalhafato que ata­rantava os negros e fazia sorrir de troça os funcionários.

— Está-me cá a parecer que não me vou embora sem andar ao murro com este gajo — resmungou Vascon­celos.

— Não lhe ligues importância, que ainda é o melhor. Não vês como o tipo fica inchado quando substitui o administrador? Coitado...

Silva entrou na Secretaria, vindo das obras da futura residência do administrador, e deixou-se cair numa cadeira, todo suado, molengão, a cara abolachada vermelha até as orelhas, e as gorduras do cachaço a luzirem de sebo e suor.

— Que calor — disse, abrindo o dólman sobre o peito nu. E voltando-se para Vasconcelos: — Essas guias estão prontas?

António de Vasconcelos entregou-lhe os contratos e as guias dos trabalhadores para a Companhia de Dia­mantes do Nordeste e foi à varanda atender a uma queixa de um indfgena que o seu soba castigara com chicotadas que lhe lanharam as costas e o peito, pondo-o numa chaga. Dobrado sobre a secretária. Silva verificou as guias e os contratos, lendo nome por nome, número por número, esclarecendo-se com um sipaio se os nomes dos sobas a quem aquela gente pertencia estavam certos, tudo tão minuciosamente, a arrastar o tempo com uma paciência que só de pescador de cana, sempre à espera de topar erro ou falta para se poder pegar com o Vascon­celos. Mas tudo estava em ordem e sem uma única letra de máquina pisada, o que era sempre motivo para indispor o secretário. «Nas pequenas coisas é que se conhe­cem os bons funcionários», dizia ele a cada passo. Depois de tudo visto e revisto, é que se pôs a assinar a papelada, metendo o selo branco por cima da assinatura bem visível na letra miudinha e redonda.

— Destes ficamos livres — disse ele. E juntou os papéis, chamando com um berro pelo sipaio.

Levantou-se e foi até à janela, aberta para o largo, um magote de negros tangados à volta da mangueira. Ao ver o sipaio, parado no limiar da porta, ordenou:

— Venha essa gente da Companhia. — E voltando-se para Joaquim Américo: — Faça o favor de despachar esse pessoal. Ali o Vasconcelos que o ajude.

— E os homens que faltam?

— Vão com os do Lubalo, se os apanharem. São cinco, não é? O administrador não quer voltar a ver cá essa gente. Estão aqui há mais de quinze dias a comer à custa da Companhia e não tarda que venha por aí uma recla­mação. Com essa gente não quero sarilhos.

— Você também tem medo de tudo...

— Pois sim. Eu bem os tenho visto, a esses que dizem que não têm medo. Ainda não vi um valente que se tivesse metido com a Companhia e que aquecesse muito tempo o lugar. E aqueles que mais falam são os piores, agacham-se logo. Ai não l

— Os que se agacham.

— Bem sei, bem sei... Américo. O que eu vejo é que é de cócoras que se ganha a vida.

Américo abriu os braços e espreguiçou-se, bocejou e disse:

— Deve ser isso... — e riu para dentro, lembrando-se de muitas atitudes ridículas e humilhantes do Silva para com os seus superiores.

— É o que se tem visto em toda a parte. E quem se não abaixar vai para o olho da rua, que há muita gente que quer o lugar. Tenho visto muita coisa...

Américo encolheu os ombros e foi até a porta. Os negros, negros de todos os postos da Circunscrição e de todas as aldeias, com peles à volta da cintura e o dorso nu, um ar de espanto nos olhos, formaram no largo, em frente da Administração.

— Estão todos? — inquiriu ele.

E, sem esperar resposta, ajudado pelo Vasconcelos, começou a fazer a chamada, gritando os nomes. À porta do armazém, no topo da Administração, dois sipaios dis­tribuíam a cada contratado um pano branco, uma camisola às riscas e um cobertor de algodão, e forneciam-nos de alimentação, fubá de mandioca e peixe seco, para mais de um mês de jornada a pé, por carreiros de gentio. E iam-lhes dizendo por sua conta, como aprenderam com o secretário:

— Mata-bicho da Companhia.

Os contratados respondiam com um (sim) entre dentes e voltavam para a forma, porque a isso eram obrigados, pois a sua vontade era largar o pano, cami­sola, cobertor e alimentos e regressarem às senzalas com a pele a tapar-lhes o sexo, a liberdade no coração e as per­nas livres para os levar para muito longe, onde nunca ouvissem falar em trabalhos nas minas. Mas os brancos do Governo estavam ali, com as suas ordens terminantes e ameaças prontas a concretizarem-se em castigos, se alguém tivesse a veleidade de não querer aceitar o tra­balho imposto ou sonhasse discutir o salário de tutela. E eles não tinham outro jeito senão irem direitos ao Nor­deste, para muito longe das suas aldeias, das mulheres e filhos, onde ficariam um ano a abrirem as minas, cavando terras ribeirinhas e abrindo poços em chão de cascalho. E aquilo era de sol a sol, picareta abaixo, picareta acima, ferindo-se no cascalho que lhes saltava em lascas para as pernas, lanhando-as como se fossem navalhas.

Nenhum daqueles homens conhecia por experiência própria o trabalho nas minas de diamantes, mas nas suas aldeias viam a toda a hora os que lá estiveram, de pernas ulceradas estendidas ao sol, meses e meses inutilizados, gastando com o curandeiro os parcos vinténs que ganha­ram e desfazendo-se dos panos e bugigangas adquiridas nos armazéns da Companhia. E contavam histórias horrí­veis dos duros trabalhos e dos brancos desse Nordeste que se tornara o inferno dos homens do sertão. Já se viam dobrados pela cintura, a picareta ou a enxada nas mãos a criarem calos, o que só as mulheres da sua terra tinham, cava que cava, os braços doridos, os rins cheios de picadas e um zumbido de endoidecer na cabeça oca. Depois, o sino tocava e todos regressavam sob forma ao acampamento policiado. E dormiam sobre esteiras sonos pesados que só o sino da madrugada despertava, chaman­do-os para o serviço. Nos primeiros tempos aquele tra­balho nas minas, muitas vezes dentro de água, era-lhes duríssimo e sempre penoso, e como não sabiam defender-se das lascas de cascalho que saltavam para as canelas ao embate da picareta, em que pegavam pela primeira vez, aprendiam logo o caminho para o Posto de Socorros.

Mas ninguém se demorava muito tempo nesse lugar. Os enfermeiros enfeixavam-lhes as canelas num abrir e fechar de olhos e ei-los de regresso às minas, onde o capataz branco os metia nos seus lugares à força de ber­ros, ou a bofetão se não lhe obedeciam a correr, não fosse algum engenheiro aparecer naquele momento e desembestar por ele deixar os negros mandriar. Muitos capatazes, e até alguns engenheiros, tinham sido despe­didos por os negros darem pouco rendimento. Todos que­riam mostrar trabalho, para consolidar as suas posições e terem como certo o contrato renovado e boas gratifica­ções. Quase todos os europeus tinham mulher e filhos a sustentar e muitos não podiam esquecer o tempo em que andaram desempregados, na Metrópole, passando miséria. E nenhum queria perder o lugar por causa dos negros. De resto, a Companhia pagava bem, ordenados como não havia iguais em toda a colónia, para que os empregados zelassem pelos seus interesses, que dependiam do tra­balho dos negros. Tudo tinha, pois, de andar em ordem, os negros afjnadinhos, e a correr, que era a única maneira de lhes quebrar a resistência passiva, para que as minas dessem franco rendimento. Andavam todos à porfia em apresentar trabalho adiantado, com mira no aumento de ordenado, porque a Companhia era generosa... com os empregados diligentes, gente ordeira e trabalhadora, selec­cionada em Lisboa, depois de copiosas informações sobre a sua vida profissional e particular. Quem tivesse entrado em greves e se desse ao luxo de ter ideias políticas, não servia. E se algum, por artes do diabo, esca­passe pelas malhas da informação, era certo que não aqueceria muito tempo o lugar.

Todos os negros sabiam que aquele que pusesse o pé dentro da zona mineira, onde só havia autoridades administrativas e empregados da Companhia de Dia­mantes, só se podia livrar do trabalho depois de um ano de internato, sob disciplina mais dura que a militar, sem licenças de qualquer natureza, a não ser por doença grave, cujo tempo era descontado nos salários, caso os braços não pudessem de todo voltar a manejar a picareta, até se cumprir todo o tempo do contrato. Licença só de morte. Com um mês de trabalho nas minas, os negros esta­vam aptos a dar bom rendimento, uma vez que o capataz os soubesse puxar. E também já estavam habituados à comida das cozinhas da Companhia, nos primeiros dias rejeitada por ser servida fria e sem os condimentos que só as suas mulheres sabiam preparar o seu gosto. Bolas de pirão e nacos de carne cozida, com abundância e do melhor, mas tudo frio e tão sem gosto que só a fome os obrigava a comer. Custou-lhes mais a habituarem-se à alimentação que ao trabalho nas minas. «São resis­tentes como bois e comem tudo o que se lhes dá!», diziam os brancos, satisfeitos por eles se sujeitarem ao novo regime. Depois vinham os dias de hospital, que o trabalho dentro de água sob o sol ardente não perdoa, com febres de inchar a língua e escancarar a boca de lábios crestados, a cabeça a zumbir que nem colmeia e o peito e as costas varados de pontadas. Outros torciam-se com dores nas pernas e braços partidos debaixo de vagonetas. Mas tudo se consertava e raros eram aqueles que não acabavam o contrato com a picareta nas mãos. Todos odiavam o hos­pital, odiavam-no até à cólera ou ao desânimo. O hospital era um mundo que eles desconheciam, cheio de hostili­dade, onde os torturavam de todas as maneiras, sobretudo quando os picavam com injecções, coisa que os apavorava. Depois, ali não eram permitidos braseiros, a cujo calor estavam habituados a dormir desde que nasceram, nem havia mulheres para os acompanhar, nem curandeiros com as suas mezinhas, nem feiticeiros com as suas rezas. Aquilo era-lhes insuportável, incomodava-os tanto como a própria doença. Ali, era tudo à europeia. Grandes salas conr janelas rasgadas ao alto, muitas camas alinhadas, tudo limpo e a cheirar a desinfectante, cheiros que os entonteciam e agoniavam nos primeiros dias e de que nunca mais se esqueciam. Ninguém podia gemer nem cuspir no chão. Era proibido fumar e falar alto. «Isto não é sen­zala» — diziam os vigilantes a toda a hora. Os enfermeiros, brancos, mulatos e negros, todos de batas brancas, anda­vam de um lado para o outro, distribuindo remédios e ralhando por tudo e por nada. Os negros viam-nos como se fossem carcereiros dentro daquele hospital que consi­deravam pior que uma prisão. Tudo era a horas celas. Só o sofrimento era permanente. Remédios e comida a horas marcadas, e tudo coisas de que não gostavam. Caldos e leite, quando o que eles queriam era carne ou peixe seco e pirão, seu alimento de sempre. Os doen­tes passavam o tempo a gemer baixinho com dores e sau­dades da senzala. E sempre descrentes da ciência do Euro­peu, mesmo quando os punha bons. Todas as mortes eram atribuídas ao doutor branco e todas as curas aos milagres dos seus deuses. Ao trabalho nas minas, à comida fria, à pancada dos capatazes e até aos purgantes que eram obrigados a engolir os que trabalhavam no posto de escolha de diamantes, para defecarem antes de sair desse lugar guardados por cem olhos, não fosse algum levar no buxo uma pedrita valiosa para depois a vender fora da zona ao traficante de «feijão branco» — a tudo, tudo, eles se acostumavam, menos ao hospital. Todavia, o hospital era modelar, com grandes enfermarias e salas de operações, bons médicos e enfermeiros e toda a sorte de medicamentos, não faltando absolutamente nada, uma fortuna gasta em drogas vindas de todo o mundo, que nem no Hospital Central de Luanda se encontravam. O director da Companhia mostrava a toda a gente o hospital dos indígenas, melhor que o dos europeus, e dizia, vaidoso: — «É o melhor da colónia. Custou milha­res de contos. Hospitais como o nosso, só na África do Sul.»

Ali, cuidava-se da saúde do negro como em parte nenhuma. Um contratado valia dinheiro, estava a render durante um ano e devia os impostos que a Companhia tinha pago ao Estado por antecipação aos seus salários. Além disso, não havia negro que não devesse nos arma­zéns, que eram, como as minas, propriedade da Compa­nhia, porque na zona mineira, região primeiramente vara da pelos pioneiros em suas jornadas comerciais, antes da descoberta dos jazigos diamantfferos, ninguém podia negociar com o gentio, além da Companhia. Há muito tempo que os comerciantes estavam proibidos de entrar no país dos diamantes, porque a Companhia suspeitava de toda a gente, vendo em cada mercador um ladrão.

Muito aprenderam os homens que foram trabalhar no Nordeste. Ficavam a saber muitas coisas e ganhavam uma grande experiência, mas que só lhes servia para pas­sar a vida a lamentarem-se e a contar histórias. As canções dos seus batuques estavam cheias de histórias passadas nas minas. E alguns homens dançavam reproduzindo as fainas da abertura dos jazigos diamantfferos e cantavam cantigas gritadas com tamanha violência e raiva que até os velhos guerreiros de todas as guerras com os brancos se enchiam de espanto. E era ver como os seus olhos cansados do fumo da liamba se acendiam de cólera e os cantos da boca se enchiam de espuma.

Quando Joaquim Américo acabou de fazer a chamada, o secretário veio à varanda e, na presença dos trabalhadores, designou os capitas que os acompanhariam à sede da Companhia. Recomendou-lhes severidade para os que desobedecessem às suas ordens e ameaçou os próprios capitas com castigos, palmatoadas e cadeia, se deixassem fugir um só homem que fosse. Depois, voltou-se para os contratados e disse-lhes:

— Cada homem vai ganhar um angolar por dia e comida. Quem quiser pode levar a sua mulher.

Mas ninguém quis. Elas ficariam a tomar conta da casa e dos filhos e a trabalhar nas lavras.

O sipaio Caluis traduziu para a língua da terra a infor­mação do secretário. Ninguém disse palavra. Depois, o secretário encarregou o intérprete de lhes dizer que se não esquecessem de mandar dinheiro aos parentes pobres e doentes, que não podiam ir trabalhar para as minas, para poderem pagar os impostos. Os negros riram-se, disseram que esses seus parentes andavam com sorte por serem doentes e não irem para o Nordeste, e que havia muita cera na região, não faltavam colmeias nas árvores das florestas, que dava para toda a gente arranjar o dinheiro do imposto sem ter de ir ganhá-lo fora da sua terra. Enquanto os mais velhos falavam, afirmando que se ia perder muita cera por falta de braços, desviados para os trabalhos das minas, o pessoal trocava, uns encobertos pelos outros, as peles pelos panos, vestiam a camisola, dobravam o cobertor e punham-no a tiracolo, como viram fazer aos soldados.

Caluis ouviu tudo quanto eles quiseram dizer e infor­mou o secretário, desinteressado da algaraviada dos negros:

— Tudo tá contente, nosso secretário. Vai no trabalho com força. Vai manda dinheiro do imposto.

— Bem, bem. É isso que se quer. Agora, toca a andar.

Os capitas fizeram estalar no ar e no solo os compri­dos chicotes de cavalo-marinho, gritaram ordens e a malta começou a descer a estrada, cada um com o seu moleque. Os rapazitos tomavam conta dos balaios e sacos de peixe e farinha de mandioca, que transportariam durante a longa viagem através as matas e campinas do Caluango, as montanhas de Carumbo e planícies de Capaia e Cassai. Na berma da estrada, as mulheres disseram-lhes o último adeus. Alguns rasgaram os panos e os cobertores ao meio para lhes dar uma parte. E encheram-nas de recomenda­ções para o soba, a família e os amigos. Outros despedi­ram-se para sempre, a maior parte, por se lhes ter metido na cabeça a ideia de que morreriam nas minas. Poucos levavam o propósito de fugir durante a viagem e ganharem as florestas, para mais tarde se passarem para o Congo Belga.

Longe, fora da vila, planície em fora, os negros con­tratados levantaram o seu canto triste ao céu sem sol, as primeiras sombras da noite a descerem sobre Camaxilo e as fogueiras das senzalas a abrirem-se em labaredas.

Vasconcelos e Américo, a caminho da povoação-de-baixo, ouviram o canto triste e distante. As vozes perdiam-se ao longe quando eles chegaram à ponte, cruzandb-se com o sipaio Canivete e um grupo de mulhe­res, quase todas com os filhos bifurcados nas ancas, e dois velhos sobas embrulhados em cobertores de papa, amparados a lanças de cabos mais altos do que eles.

— Que gente é essa? — perguntou Vasconcelos.

— É muié dos home fugiu. Tem soba — e o sipaio apontou para os dois velhos.

E continuaram o seu caminho.

No largo da Administração, o sipaio bateu com a coronha da espingarda no chão e perfilou-se em frente do secretário, que estava deitado numa cadeira de lona, na varanda da sua casa.

— Que é? — perguntou Jaime Silva, levantando-se.— São as mulheres dos homens que fugiram?

— Sim, siô, nosso secretário.

Silva pôs-se a olhar para as mulheres, uma por uma. Ao verem o branco, os negritos romperam a chorar, muito agarrados às mães, mas elas de pronto afundaram-lhes a cara nos seios caldos, calando-os. Uma velha riu-se mos­trando a boca desdentada, mas o sipaio mandou-a calar.

Estavam cansadas de três dias de viagem. No grupo destacava-se uma rapariga, só com o sexo tapado por um pedaço de pano, que logo chamou a atenção do Silva. Os olhos humedeceram-se-lhe e brilharam ao contemplar-Lhe os seios rijos e as ancas largas. Surpreendida, a rapa­riga baixou os olhos. A companheira que estava ao lado, com uma grande barriga de prenhez, disse-lhe qualquer coisa em voz baixa que a fez levar a mão à boca para o Silva a não ver rir.

— Põe essa gente na prisão — ordenou o secretário.

— Os soba quer panhar os home — informou o sipaio.

— Amanhã conversamos. Girai

Nessa noite, o secretário não quis ir jogar a casa de Joaquim Américo. Mandou-lhe dizer que estava com dores de cabeça. Após o jantar, passeou sozinho no largo, iluminado por uma grande lua amarela, a fumar os seus cigarros de enrolar, finos como palitos, uns atrás dos outros. Depois de se apagar a luz na casa do Américo, que era quem se deitava mais tarde em Camaxilo, ele chamou o sipaio de guarda à Administração e mandou buscar a mulher de seios rijos e ancas largas, que o Canivete trou­xera de uma aldeia distante. E foi para casa, à espera.

O miado de uma onça veio de longe, dos fundos do vale, e acordou um cão no quintal da casa do adminis­trador, que se pôs a ladrar, a medo.

— Entra— gritou Silva ao ouvir passos na varanda. A porta fechou-se atrás da mulher, parada no meio

do quarto iluminado pela luz bruxuleante duma vela, de cabeça baixa, os braços cruzados sobre o peito. Silva mirou-a por todos os lados, a boca a aguar-se-lhe, o lábio inferior a tremer, e estendeu-lhe as mãos papudas e moles. Ao sentir-se tocada, todo o corpo lhe estremeceu e os olhos escancararam-se-lhe de medo. Jaime Silva soltou uma risada nervosa.

— Um bichinho... — disse ele, dando-lhe uma pal­mada na nádega.

Assustada, ela deu um salto e refugiou-se num canto, encolhendo-se toda, com os braços por cima da cabeça. O secretário despiu o dólman, o dorso nu a escorrer suor, e foi direito à mulher.

— Anda cá, minha bichinha — e agarrou-a por um braço, puxando-a.

Mas ela reagiu, pés fincados no chão, o busto retesado encostado à parede, com os olhos desmedidamente abertos e alucinados. Uma cólera súbita fez estremecer o Silva. Deu-lhe um safanão e gritou-lhe:

— Cabra selvagem.

A mulher rompeu a chorar, mas não cedeu.

— Cebola! — chamou   o   secretário,   entreabrindo   a porta para o quintal.

O negro veio a estremunhar. Ao ver a rapariga enro­dilhada ao canto, como bicho acossado, pôs-se a rir.

— Diz a essa negra que eu não como gente.

— É servaje, patrão.

Cebola falou-lhe na sua língua. Mas só passado um bocado é que ela respondeu com palavras entrecortadas, sem levantar a cabeça.

— Tá cum medo. Inda não foi cum branco — e Cebola soltou uma risada. — É servaje, patrão.

— Ensina-a.

O negro voltou a falar-lhe, cada palavra um gesto, lembrando-lhe quem era aquele branco que mandava em toda a gente e de quem ela só podia esperar favores, se não continuasse ali feita parva, a tremer com medo do seu patrão, como se ele fosse um bicho. Ela ouviu-o sem dizer palavra, mas foi serenando pouco a pouco e acabou por olhar de lado para o Silva. E quando o Cebola a segurou por um pulso, levantou-se e ficou de olhos baixos em frente do secretário. Depois, disse ao Cebola que se podia ir embora. Mal o criado desapareceu atrás da porta, abandonou-se à mão que a conduziu ao quarto de dormir, às escuras. E deixou-se possuir, de olhos fechados, mãos mortas, sem um estremecimento, nauseada com o cheiro azedo do suor do primeiro homem branco a quem abriu o corpo.

Minutos depois, a mulher apareceu ao sipaio Aparo, que estava acocorado defronte da fogueira, a dois passos da Administração. Vinha com um sorriso de troça, mas não lhe disse nada. O sipaio levou-a para trás da casa, e quando ela julgava que ia conduzi-la à cadeia, sentiu-se presa por um braço. Ele falou-lhe em voz baixa, a olhar para todos os lados, inquieto. E ela acenou-lhe com a cabeça, os dentes muito brancos a brilharem na boca toda aberta num riso que lhe iluminava os olhos. Foram deitar-se debaixo de uma árvore, no chão xadrezado pelas sombras das folhas recortadas pelo luar. Ela abraçou-o pelo tronco, de lado, passou-lhe uma perna por cima e abriu-se-lhe toda, soltando grunhidos de gozo.

Agora, sim, tinha nos braços um macho da sua raça, que sabia esfregar o nariz no dela, muitas vezes e com força, e dizer-lhe palavras bonitas que a entonteciam, demorando-se a abraçá-la suavemente até o seu corpo se render num suave cansaço. Não era como o branco, a tremer em cima dela como se estivesse com maleitas, a meter-lhe a língua na boca, fungando como os gatos, a apertar-lhe os seios com força como se lhe quisesse tirar leite, e a carregar violentamente para baixo, tudo muito depressa para logo saltar da cama e mandá-la embora — «giragira l» — sem lhe dar nada.

Quando caíram cada um para seu lado. Cebola dobrou a esquina da casa da Administração, onde estivera todo o tempo a espiá-los, e disse:

— Tu tá malandro, sipaio. Vai no branco — e foi-se aproximando.

Ela olhou-o com indiferença, sem perceber o que ele dissera, porque não conhecia uma só palavra portuguesa, e não se mexeu. O sipaio pôs-se em pé, com os calções na mão, dólman aberto, olhando à volta, cheio de medo. E começou a falar ao Cebola na língua da terra, a pedir-Lhe que nada dissesse ao secretário, invocando a amizade que os unia. Mas o outro estava renitente, a dizer-lhe que não com a cabeça. A mulher olhava-os cheia de curiosi­dade, porque só agora compreendia o que se passava.

Aparo lastimou-se, iria apanhar pancada de criar bicho, talvez mesmo perder o lugar, ir para a cadeia e capinar as estradas. Mas o Cebola continuava a dizer que não com a cabeça.

Estiveram calados um momento. A rapariga olhava ora para um, ora para o outro. Então, o sipaio teve uma ideia e ficou tão alvoroçado que deixou cair os calções no chão. Meteu as mãos nas algibeiras do dólman, mas como não encontrou o que nervosamente procurava, apanhou os calções, revistando-lhe os bolsos; e foi com um suspiro de alívio que encontrou um pano amarrado com muitos nós, que desfez, retirando de cada um uma nota e moedas. Juntou todo o dinheiro e entregou-o, sem uma palavra, ao Cebola, que o recebeu de mão aberta e a abanar a cabeça. O sipaio jurou que não tinha mais, que eram cinco angolares, que estava muito bem pago, porque nem os brancos davam tanto dinheiro às mulheres com quem se deitavam. Então, Cebola guardou os cinco angolares.

A mulher assistiu a tudo sem dizer palavra; mas quando viu o sipaio dar o dinheiro, cuspiu para o chão e voltou-Lhe a cara. Depois, pediu-lhe um angolar, mas ele estendeu-lhe as mãos vazias e prometeu dar-lhe sal no dia seguinte. Ela tornou a cuspir para o chão e pôs-se a olhar para o criado do secretário.

Ficaram os três a falar, sentados debaixo da árvore. Cebola, depois de dizer que o seu patrão dera ordem para a mulher ficar no acampamento dos sipaios e não ir capinar a estrada, pôs-se a arremedar o Silva a falar. Os outros largaram a rir. Entusiasmado, ele levantou-se e imitou o patrão a andar, com a barriga espetada e o pescoço metido nos ombros. E a mulher riu tanto que as lágrimas lhe saltaram dos olhos. Logo, o sipaio referiu-se a uma história que o mulato Eugênio contava a respeito do secretário e de uma das filhas do velho Bernardo, que lhe dera na cara quando, na escola, ele lhe apalpou as nádegas. Cebola não acreditou, disse que tudo era mentira, que o seu patrão era branco e que ninguém lhe punha a mão na cara.

— Mulato não pega branco, não — disse ele. E levan­tou-se para ir levar a mulher à senzala dos sipaios.

Aparo seguiu-os com os olhos e ouviu as suas risadas ao longe. Depois, viu-os desaparecer no capinzal da beira da estrada e, apercebendo-se do que iam fazer, enfu­receu-se, porque era com o seu dinheiro que o Cebola se ia deitar com ela. Disse, em voz alta, um palavrão e levantou-se de um salto, dirigindo-se para a varanda da Administração, onde começou a gritar os seus alertas, longos e monótonos.

Como não encontrou o que nervosamente procurava, apanhou os calções, revistando-lhe os bolsos; e foi com um suspiro de alívio que encontrou um pano amarrado com muitos nós, que desfez, retirando de cada um uma nota e moedas. Juntou todo o dinheiro e entregou-o, sem uma palavra, ao Cebola, que o recebeu de mão aberta e a abanar a cabeça. O sipaio jurou que não tinha mais, que eram cinco angolares, que estava muito bem pago, porque nem os brancos davam tanto dinheiro às mulheres com quem se deitavam. Então, Cebola guardou os cinco angolares.

A mulher assistiu a tudo sem dizer palavra; mas quando viu o sipaio dar o dinheiro, cuspiu para o chão e voltou-lhe a cara. Depois, pediu-lhe um angolar. mas ele estendeu-lhe as mãos vazias e prometeu dar-lhe sal no dia seguinte. Ela tornou a cuspir para o chão e pôs-se a olhar para o criado do secretário.

Ficaram os três a falar, sentados debaixo da árvore. Cebola, depois de dizer que o seu patrão dera ordem para a mulher ficar no acampamento dos sipaios e não ir capinar a estrada, pôs-se a arremedar o Silva a falar. Os outros largaram a rir. Entusiasmado, ele levantou-se e imitou o patrão a andar, com a barriga espetada e o pescoço metido nos ombros. E a mulher riu tanto que as lágrimas lhe saltaram dos olhos. Logo. o sipaio referiu-se a uma história que o mulato Eugênio contava a respeito do secretário e de uma das filhas do velho Bernardo, que lhe dera na cara quando, na escola, ele lhe apalpou as nádegas. Cebola não acreditou, disse que tudo era mentira, que o seu patrão era branco e que ninguém lhe punha a mão na cara.

— Mulato não pega branco, não — disse ele. E levan­tou-se para ir levar a mulher à senzala dos sipaios.

Aparo seguiu-os com os olhos e ouviu as suas risadas ao longe. Depois, viu-os desaparecer no capinzal da beira da estrada e, apercebendo-se do que iam fazer, enfu­receu-se, porque era com o seu dinheiro que o Cebola se ia deitar com ela. Disse, em voz alta, um palavrão e levantou-se de um salto, dirigindo-se para a varanda da Administração, onde começou a gritar os seus alertas, longos e monótonos.

 

0 sol caía a prumo nas costas dos negros, homens e mulheres, dobrados pela cintura, cava que cava, com as enxadas de dois cabos curtos, abrindo uma picada através do capinzal. Os braços cansados começavam a dar pouco rendimento e as bocas secas e sujas de poeira pediam água. De vez em quando, aqui e ali, os mais fracos endireitavam o dorso e deitavam as mãos aos rins doridos, fazendo caretas. Mas, logo, os gritos dos capitas os atiravam para a frente, partidos pelo meio, e as enxadas subiam e desciam, a rebrilharem ao sol.

Já se via uma comprida faixa de terra nua e vermelha no lugar do antigo carreiro que o capim invadira. Mas ainda ficavam longe os muros brancos e altos do cemi­tério. E o secretário queria que o caminho ficasse aberto, a terra batida a maço, as valetas fundas por causa das grandes chuvas que nào tardariam, tudo pronto antes que o administrador, ausente há oito dias, regressasse do Luremo.

Todos sabiam que era preciso trabalhar depressa e bem, porque, agora como sempre. Silva queria provar ao administrador que era um seu substituto à altura, no que Gregório Antunes não acreditava e o dizia na cara dos subordinados, frisando que «um administrador era um administrador e um secretário um secretário». Jaime Silva embatucava, mas concordava que, de facto, «era preciso ter-se muita prática e estudos para ser um bom administrador». Depois punha-se a falar no seu caso pessoal, sempre às voltas com os regulamentos, porque «quem não sabe leis não é gente». Antunes apoiava-o com a cabeça. Os outros riam-se à socapa e ficavam à espera de ouvir o Silva dizer: — «Sempre é preciso ter uma boa cabeça para se meterem lá dentro todas essas leis! o que eu gostava era de ter a sua cabeça, senhor administrador!» Gregório Antunes abria-se num sorriso, e recomendava-lhe: — «Compre livros, secretário, e estude, estude muito, que também lá chegará.» Os aspirantes trocavam olhares furtivos e riam-se para dentro.

Mas, agora, Antunes ia ver serviço limpo, como ele próprio há muito tempo não fazia, a viver mais da fama de bom administrador do que de obras, sempre a dizer que era dos antigos que aprenderam a trabalhar com os mili­tares, gente que nunca se furtara aos trabalhos duros em regiões de negros que acabavam de perder a última guerra, mas que mantinham vivo o espírito de rebeldia, alimen­tando «ferozes desejos de vingança».

Para provar que não era um novato, Jaime Silva man­dara, logo que o automóvel do administrador saiu da vila, os capitas arrebanharem gente nas senzalas ao redor, marcou-lhes a tarefa, prometendo pagar o trabalho com carne que os caçadores da Circunscrição haviam de trazer. Para que ninguém molengasse, pôs atrás de cada grupo de trabalhadores capitas de chicote em punho. E ele mesmo andava numa roda viva, gritando aos trabalha­dores exaustos que estavam a mandriar e que se não andassem mais depressa, em vez de carne lhes daria bordoada. De pronto, os chicotes dos capitas estalavam no ar, obrigavam a malta a ir para a frente, em arrancos que a breve trecho se quebravam, perdendo-se alguns braços que de todo ficavam vencidos, não valendo de nada as chicotadas nos corpos prostrados sobre a terra revolvida. Logo, vinham outros homens das senzalas para substituírem os estropiados, e o trabalho prosseguia num ritmo acelerado, como no tempo em que se abriam picadas para as tropas da Ocupação.

Do antigo carreiro que dera acesso ao cemitério, já nem sinais existiam. Há mais de três anos que ninguém por ali passava, desde o enterro do mulato Ambrósio, que viera do Lubalo para Camaxilo com a cabeça aberta a machadadas por um negro que surpreendera a roubar-lhe a loja. Os negros não transitavam por ali, mesmo quando eram mandados, de longe em longe, fazer a limpeza das campas. Aquele era o caminho dos mortos e eles não queriam cruzá-lo por ser de mau agoiro.

Para lá do capinzal que se levantava acima de um homem, no alto da povoação e a seguir à senzala dos sipaios, só havia o cemitério e o silêncio do cemitério, sem coveiro nem guarda. Ao redor era o matagal bravio com fojos de onças e pássaros a cantarem no alto das árvores de flores vermelhas e amarelas. Ali, raras vezes se dava corpo à sepultura, porque os negros que morriam nas senzalas eram enterradas à beira dos caminhos, nas margens dos rios ou nas florestas, conforme os ritos da tribo. E os que faleciam na vila, a família vinha buscá-los para lhes fazer os funerais à moda da terra, cantando-os nos batuques dos mortos. Um ou outro, sem família nem amigos, é que era enterrado no cemitério, cabendo aos presos a tarefa de abrir o coval. E ninguém mais voltava lá. Só as hienas, noite calada, se aproximavam dos seus altos muros para chorarem a sua fome de cadáveres. Pela noite em fora, as brisas traziam até à vila seus uivos sel­vagens e tristes.

Agora, o cemitério vai ter uma estrada, larga e com valetas, para durar muitos anos, porque o secretário Jaime Silva não quer que digam (ninguém diz coisa alguma, mas ele anda convencido de que toda a gente tem os olhos postos na sua pessoa) que não faz nada na ausência do administrador.

Mas não ficavam por ali os trabalhos «muito urgentes» do secretário. Grupos de presos andavam desde o romper do dia ao pôr do Sol a derrubar uma mata, nas bandas do rio, para se fazer uma plantação de mandioca que desse para alimentar os presos.

Com doze dias de trabalho, ficou pronta a estrada para o cemitério. Os trabalhadores aprontavam-se para regressar às senzalas sem a carne prometida, porque os caçadores bateram matos e campinas sem encontrarem um só antílope. Foram esperar ordens no largo da Administração.

Diz lá a essa gente que pode ir descansar nas senzalas — recomendou o Silva ao sipaio. — Diz também que o branco está contente com o trabalho que eles fize­ram, e se os caçadores tivessem trazido carne todos leva­riam um bocado para casa.

O sipaio traduziu as ordens do secretário e os negros soltaram gritos festivos por se verem livres de trabalhos e regressarem às aldeias, mesmo sem a carne prometida. Debandaram, entre gritos, alegres e palradores como escolares ao toque da sineta para o recreio.

O sipaio foi tocar o sino do meio-dia para o pessoal suspender os trabalhos e ir comer. Nesse momento, ouviu-se ao longe, no alto da vila, uma cantoria de negros. Um homem vinha a correr, estrada a baixo, gritando que se aproximava gente do Lubalo.

Vai calar essa negralhada — mandou Silva.

Um sipaio largou a correr na direcção em que os negros cantavam, a gritar de longe que se calassem. Mas ao ver uma tipóia, voltou para a Administração.

Tem chefe Lubalo — disse ele metendo a cabeça pela porta da Secretaria.

Jaime Silva e os aspirantes foram para a varanda esperar o colega.

O canto dos negros ganhou uma nota alta e terminou bruscamente, porque os capitas gritavam de todos os lados que se calassem. As ordens eram terminantes: cantigas só nos batuques das senzalas. Ali moravam os brancos, os senhores, e os negros não podiam levantar a voz, porque isso incomodava-os.

Os machileiros pararam defronte da varanda. Alberto Sobral foi direito aos colegas, de mãos estendidas e um sorriso aberto sob o bigode loiro de pontas retorcidas para a frente.

Silva deu-lhe uma palmada nas costas largas e estrei­tou-se num abraço, enquanto ele dava as mãos a Vas­concelos e Américo.

Há quase um ano que não vinhas cá — disse Silva, com as mãos nos ombros do amigo, muito satisfeito de o ver. — Vamos entrar.

Ouve cá, ó Silva, tu também já aprendeste com o administrador a proibir as cantigas dos negros? Tem juízo, homem...

O secretário riu-se, mas não gostou que ele tivesse falado na presença dos capitas que estavam na varanda.

Que diabo — tornou o chefe do Posto do Lubalo. — Olha que é a única coisa que eles ainda podem fazer sem pagar imposto... — E Alberto Sobral riu o seu riso aberto, de homem que anda sempre satisfeito, o que dis­punha bem toda a gente. Voltando-se para Vasconcelos, disse-lhe: — Já te fazia no litoral.

— É o que vês... Continuo à espera. Todos se agarram à casaca dos padrinhos para não virem para cá e nós é que nos marimbamos.

Os negros do Lubalo encheram o largo e a rua, fazendo um barulho dos diabos. Calaram-se a um berro do Sobral.

— Trouxeste muita gente para a Companhia — comen­tou Silva, a olhar da janela da Secretaria para o largo.

— Nada menos do que trezentas «cabeças de alca­trão». Eu cá sou assim: tudo ou nada! Mas deu-me um trabalhão dos diabos! Cá o nosso administrador é que julga que os negros nascem como formigas...

Um sipaio do Lubalo, responsável pelos trabalhadores, perfilou-se à porta da Administração, à espera de ordens.

— Que queres que se faça a essa gente? — perguntou Sobral ao Silva.

— Amanhã despacharemos todo o pessoal. A Compa­nhia está com falta de braços e de Saurimo estão a aper­tar com os administradores.

Sobral despachou o sipaio com ordem de recolher com os trabalhadores ao acampamento. Depois, voltou-se para os colegas e desabafou:

— Nós passámos à categoria de moleques da Compa­nhia. Caramba! Isto tudo mete nojo e raivai A Companhia está a desgraçar as populações da Lunda. Lá do Posto, já se me foram embora mais de quinhentos homens, num só ano!

— Para onde? — interessou-se Joaquim Américo.

— Para onde havia de ser? Está-se mesmo a ver que foram para o Nordeste.

— Para a boca do lobo... — disse Silva.

— Deixa-te de te fazeres ingénuo, menino... — retru­cou-lhe   Sobral. — Os   negros   não são tão  estúpidos como nós os fazemos. Eles já perceberam que estando ao pé das minas não são contratados e trabalham como voluntários os dias que quiserem.

— É essa a política da Companhia — disse Vasconce­los. — Está a atrair massas de negros para dentro de casa, para mais tarde se livrar do pessoal contratado. E ninguém quer ver que as circunscrições se estão a despovoar.

— Qual não vêem! — ripostou Américo. — Histórias... É jogo feito. É a política do imposto indígena, pago pela Companhia à boca do cofre do Estado. O resto são his­tórias.

— Isso é claro como água. O Chitato era a circuns­crição menos povoada e agora está cheia que nem um ovo. E os recenseamentos no resto da Lunda são cada ano mais baixos.

— Há regiões em que os comerciantes têm de fechar as lojas por falta de quem compre e venda — afirmou Vasconcelos.

— Mas a Companhia aumenta o número dos seus armazéns de venda... — disse Américo, irónico. — Ou tu julgas que estão lá só para explorar os diamantes? Aquilo anda   afinadinho.   Exploram-se diamantes,   comércio e negros. É limpinho...

O secretário deixara-os e fora encostar-se à janela, a olhar para o largo, onde dois negros velhos estavam acocorados um em frente do outro, a fazerem montinhos de dinheiro consoante o número de impostos que vinham pagar. Já ali estavam há um ror de tempo, sem consegui­rem acertar as contas, apesar de as terem feito muitas vezes na aldeia. Depois de longa conversa, os velhos chegaram à conclusão que tinham perdido dinheiro e resolveram voltar à senzala para averiguar o caso. Silva seguia-lhes os movimentos, sem interesse nenhum, à espera que os colegas acabassem com aquela conversa sobre a Companhia, na qual não queria meter o bedelho, que tudo se vem a saber e ele não estava para sarilhos.

— Ó Silva, quando é que o administrador vem? — quis saber o chefe do Lubalo.

O secretário deu aos ombros, sem se voltar; depois disse:

— Não me parece que venha antes de uns quinze dias.

— Então vou-me embora amanhã. Mas faz-me trans­torno não falar com ele.

— Fica — disse   Joaquim   Américo. — Descansa   uns dias.

— Não posso. Tenho muito que fazer e a patroa anda adoentada.omiúdo pinta a manta com ela quando me vê pelas costas. Está um rapagão I

E Alberto Sobral começou a contar as graças e partidas do filho, que com os seus doze anos já catrapiscava as negrinhas.

Silva aproximou-se para ouvir e riu muito com as graças do menino, dando palmadas nas coxas.

— E se fôssemos até lá abaixo? — propôs Sobral.— Preciso de ver o que há nessas lojecas.

— Fubá e cera — informou Vasconcelos. — O que ó que tu querias que esses cafusos tivessem? Champanhe, não?...

— Já o beberam como nós não bebemos água, no tempo da borracha.

Saíram para a varanda.

— Esperem um pouco — pediu Alberto Sobral. E cha­mou pelo sipaio: — Rapaz, aperta estes atacadores — e estendeu-lhe a bota afta, enlameada até à   curva da perna.

— Cabou, nosso chefe — disse o sipaio, ajoelhado aos pés de Sobral.

— Toma o mata-bicho — e deu-lhe um cachação, sol­tando uma risada.

O sipaio riu um riso amarelo e pôs-se a coçar a nuca. Mas quando o chefe lhe atirou uma nota de angolar, «para um copo de vinho», passou-lhe a dor e os olhos iluminaram-se-lhe de alegria.

Meteram à estrada.osol vermelho descia para a pla­nície, muito além das casas dos colonos.

—oPancário terá alguma coisa para a gente petis­car? — perguntou Sobral.

— Este tipo só vem cá por causa dos petiscos...— disse Vasconcelos passando-lhe um braço pelo ombro.

— Olha, menino, ainda é o melhor que se leva desta vida — respondeu-lhe enquanto retorcia o bigode. — Ao jogo é que nem o mais pintado me leva o arame. Até mete raiva ver vocês largarem a nota à batota. Não posso com isso.

Estrada a baixo. Sobral foi a pilheriar com o Silva, dando-lhe pancadinhas ns barriga empinada sob o dólman aberto, o cós das calças uma mão travessa abaixo do umbigo.

— Essa barriguinha, ó Silva, dá que pensar... — e ria a bandeiras despregadas.

Depois, meteu-se com os outros e por pouco não pôs o secretário a bulhar com o Vasconcelos. Américo teve de intervir. Sobral estoirava de riso, todo atirado para a frente, os olhos cheios de lágrimas.

Fechava-se a noite quando se puseram a caminho da povoação alta. Estavam bêbados e Sobral só se aguen­tava em pé porque ia de braço dado ao Silva e Vasconcelos. Américo adiantara-se-lhes, muito direito, com uma ponta da camisa a aparecer na braguilha, a cantarolar. De momento a momento. Sobral parava e punha-se a arengar, esfor­çando-se por se desprender dos colegas. Então, os três queriam falar ao mesmo tempo e não se entendiam, recomeçando a marcha, tem-te não caias, falazando e rindo às gargalhadas. Sobre a ponte. Sobral declarou que não ia para diante, sentou-se nas tábuas e começou a cantar um fado com voz roufenha. Silva queria tapar-lhe a boca, ao que Vasconcelos se opôs. Trocaram insultos e só não brigaram porque o Américo voltara a trás e entre-pôs-se-lhes.

Sobral vomitou a farda e tombou de borco. Quando Joaquim Américo o quis ajudar, levantou-se, enfurecido, e começou a insultá-lo:

— Revolucionário de merda! Larga-me!

Aos bordos, avançou de braços abertos para o Silva, a tartamudear:

— Ó pá, prende aquele gajo.

Américo ria a bom rir. Sobral agarrou-se ao Silva e, num transporte de ternura, beijava-o sujando-lhe a cara com os bigodes empastados pelos vómitos.

Vasconcelos abandonou-os e meteu a corta-mato. Américo foi em seu encalço e tentou trazê-lo para a estrada; mas ele jurou que só voltaria para «rebentar as ventas ao Silva». Prosseguiram o caminho.

Quando o secretário e Sobral chegaram ao largo da Administração, com a mangueira ao meio recortada pelo luar, viram os colegas na estrada, em frente da casa do Vasconcelos. Américo cantava, a plenos pulmões, Os Barqueiros do Volga. A sua voz cheia e triste enchia a noite branca de luar.

— Espera que eu já te digo — regougou Jaime Silva, travando o braço do Sobral.

Pararam em frente da Administração e o secretário mandou o sipaio de ronda gritar alertas seguidos. Seus gritos abafaram a canção e cresceram na voz do eco, vale em fora. Silva ria às gargalhadas, batendo nas coxas.

— Grita! grita! Negro, grita mais! — dizia ele entre gargalhadas.

Sobre os degraus da varanda da Administração, Sobral vomitava, aos arrancos. Alarmados pelos gritos do sipaio, os capitas vieram a correr do acampamento. O secretário mandou-os formar no largo, deu-lhes voz- de marcha e obrigou-os a dar umas poucas de voltas à Administração. Depois, mandou calar toda a gente, insultou o sipaio e dirigiu-se para casa, aos bordos. Sobral foi levado pelos capitas, em braços, e entregue aos cuidados do criado do secretário.

 

0 secretário Silva ficou com as cartas na mão, o pescoço estendido para a porta, à escuta.

— É um automóvel — disse Vasconcelos.

E ele e Joaquim Américo precipitaram-se para a varanda. Silva encostou-se â ombreira da porta. Um negro veio espiar à esquina da casa. Escutaram, em silêncio. A noite trouxe-lhes dos campos um rumor distante.

— Não é — disse Joaquim Américo. — É um batuque.

— Sim, é um batuque, muito longe — confirmou Vas­concelos.

Entraram em casa e voltaram a sentar-se à mesa.

— Dá outra vez — propôs Vasconcelos a Américo.

— E eu que tinha um jogo tão bom — lamentou-se Silva mostrando-lhes um valete e um sete de oiros.

E ficou-se a olhar para as cartas, movendo a cabeça, aborrecido. Mordeu os lábios e, num gesto brusco, lançou-as para cima da mesa.

— Baralha tu — pediu ele a Vasconcelos.

Nesse momento, o negro António abriu a porta que dava para o quintal e disse, com um ar apatetado, os olhor fechados à luz do candeeiro:

— Tem camião, patrão.

Os funcionários correram para a varanda.

— Vem no Malange, siô — informou Cebola, que aca­bava de chegar, ofegante da corrida em que viera desde a casa do secretário.

— Não ouço nada — impacientou-se Silva, abrindo as mãos atrás das orelhas.

— Tem, nosso secretário — teimou António, a apontar para a frente, na noite negra.

— É um batuque — disse por fim Joaquim Américo, e fez menção de entrar em casa.

— Não tem batuque, siô. Camião.

As brisas da noite da planície trouxeram para o alto da povoação um rumor confuso para os europeus, mas distinto aos ouvidos apurados dos negros do sertão.

— Camião I Camião I — gritou um capita que vinha a correr estrada a baixo.

— Parece de facto um batuque, mas, ouvindo bem, não é — disse Silva, apontando na direcção de onde vinha o som.

— Vem a subir — informou Vasconcelos, que tinha ido escutar ao meio da estrada.

Acendeu-se uma luz na casa do administrador. E, logo, a voz de Gregório Antunes cresceu na noite chamando por Julião.

— Lá vem ela! — gritou Silva.

Ao longe, na planície ondulada, uma luz ziguezagueou no negrume e desapareceu, para reaparecer logo a seguir.

As brisas dos campos adormecidos de além-rio ati­ravam para Camaxilo o barulho de um motor. Os negros, que se tinham reunido no meio da estrada, riram-se ao ouvir os brancos, que só agora diferenciavam o barulho da camioneta do de um batuque. E começaram a arre­medar os patrões. Estavam tão entretidos que só deram pela aproximação de Vasconcelos quando o Cebola recebeu em cheio na cara o peso da sua mão.

— Toma, cachorro! É para não te rires dos brancos.

E preparava-se para esbofetear os outros, mas eles perceberam-lhe a intenção e fugiram, aos gritos.

Um vulto destacou-se na janela cheia de luz da casa do administrador.

— Lá está ele — preveniu Jaime Silva. E, servindo-se das mãos como porta-voz, gritou: — Senhor administrador, é uma camioneta de Malanjel

Mas ninguém lhe respondeu.

Joaquim Américo gritou ao criado que fosse à povoa-ção-de-baixo ver quem vinha na camioneta. António saiu de trás de uma árvore, à beira da estrada, e queixou-se:

— Patrão, tem muito noite.

— Vai com o Cebola e levem o lampião — recomendou Silva.

«Quem será?», interrogou-se Vasconcelos. E disse em voz alta:

— Deve ser a camioneta do Rocha.

— Qual Rocha?

— O Rocha Aborto.ooutro já não está em Malanje, foi para o Sul.

De lampião na mão, António e Cebola meteram-se ao vale, soltando de momento a momento prolongados assobios e gritos estridentes.

— Tem onça — disse Cebola.

— Não tem, não — protestou António, chegando-se mais ao companheiro. E repetiu, como para se encorajar: — Não tem, não.

— Vão cheios de medo — comentou Américo, vendo a luz sumir-se no vale.

— Se te parece... Ainda ontem uma onça foi à capoeira do Calado.

— Miaram toda a noite — exagerou o secretário.

— Uma luz, como pequena bola a rolar na noite da   planície,   atravessou   uma   rua   da   povoação   dos colonos.

— Lá vai o Pancário. — E Silva apontou para a luzinha, agora parada, logo esconde-esconde, até que se perdeu de todo.

A noite encheu-se do barulho da camioneta. A luz dos faróis alongou-se na estrada e, logo, abriu-se em leque na curva que ganha a rua onde estão as lojas do Calado e Pancário.

Gritos agudos e palavras soltas aos berros, vinham de ali e de além. Eram os negros da senzala dos sipaios e os criados dos europeus que vinham a descer para a vila. Um alerta do guarda da Administração cresceu e alongou-se sobre os gritos dos negros. Mas, logo, o vozeirão do admi­nistrador lhe impôs silêncio. Ouviu-se o bater da coronha no chão de barro batido da varanda. Antunes chamou o sipaio com um berro que se ouviu na casa do aspirante Américo.

— O tipo está bravo — disse Vasconcelos. Momentos depois, Jaime Silva e os aspirantes viram

o sipaio passar, de arma ao ombro, na estrada.

— Eh sipaio, onde vais?

— Correio, nosso secretário.

E o cipaio desapareceu na noite.

Os faróis da camioneta projectaram-se na parede da casa de Manuel Pancário.omotor roncou com toda a força e, de repente, parou. Apagaram-se as luzes. Os negros aquietaram-se na estrada, à espera. E o grande silêncio da noite voltou a Camaxilo.

— Venham para dentro — propôs Américo. — Não se pode ter a porta aberta com tanta bicharada.

Sentaram-se os três em frente da mesa e puseram-se a sacudir com as mãos os insectos que vieram da noite morrer na chama do candeeiro e enegreciam o pano de ramagens e as cartas do jogo. Mas não voltaram a jogar. Ficaram impacientes à espera do correio e de saber quem viera de Malanje. De fora, chegavam-lhes as falas e risos dos negros, que mal os viram pelas costas voltaram a barulhar.

— O calor está a apertar. Não tardam aí as chuvas — disse Silva, que não se cansava de passar o lenço pela cara e pescoço suados.

— Era uma grande coisa se neste correio viesse a minha transferência — disse Vasconcelos, que há meses não pensava noutra coisa.

— Vamos tomar café — ofereceu Américo. Levantou-se e foi à porta, mas, lembrando-se de que

os criados estavam para a povoação-de-baixo, tornou a sentar-se, fincando os cotovelos na mesa.

Vasconcelos pôs-se a ler, por ler, os títulos das obras que Américo tinha numa estante de! caixotes, a um canto da sala.

— Já conheces tudo isso.   Lá dentro —e Américo apontou para o seu quarto de dormir, ao lado, com uma cortina de chita vermelha a servir de porta— é que estão os melhores. Podes escolher à vontade, mas não tires os que estão na prateleira de cima — apressou-se a recomendar, porque não queria que o Silva lhes pusesse os olhos, visto serem livros considerados oficialmente subversivos.

Bateram à porta.

— Entre, gritou Américo.

Um sipaio abriu a porta e ficou, de arma ao ombro, na varanda.

— Nosso administrador chama nosso aspirante Amé­rico— tartamudeou ele, metendo a cabeça pela porta.

— Está bem. Vou já. — E voltando-se para os cole­gas: — É para abrir a mala do correio.

Logo que ele saiu, Vasconcelos tirou um livro da estante, afundou-se numa cadeira de braços e começou a ler, sem interesse. Silva olhou-o de lado e, para passar o tempo, pôs-se a fazer paciências com as cartas. Pouco depois, chegaram os negros que tinham ido à povoação dos colonos.

— Tem   branco — disse António,   parado  no   limiar da sala.

— Que branco? — perguntou Vasconcelos levantando os olhos do livro.

— Branco do Governo.

— Onde está? — apressou-se Silva, já de pé. — Onde está? — E encaminhou-se para a porta.

— No seu Manei. Vai vir.

Américo apareceu sem eles darem por isso, sobra­çando um pacote.

— Chegou a tua transferência — anunciou ele com ar jovial, e atirou para cima da mesa o pacote de corres­pondência.— Vem para cá um tal Albano Sampaio. Vocês conhecem-no?

— Veio alguma coisa para mim? — perguntou Silva. Américo disse-lhe que não com um movimento de

cabeça.

— É o tipo que está   lá em   baixo.   Não;   não o conheço — informou Vasconcelos,   a folhear com   ner­vosismo   o Boletim Oficial, à procura da transferência.

— Ahl é isso...—sussurrou Américo, recordando-se de que o sipaio dissera qualquer coisa a esse respeito, sem que ninguém lhe desse atenção, tão enfronhados estavam Gregório Antunes e a mulher na leitura das cartas da família, que chegavam de longe em longe àquele canto do mundo, em geral na sacola de um escuteiro. Ele quisera interrogá-lo, mas reservou-se para o fazer à saída. Só não o fez porque D. Jovita acompanhara-o até à porta e, ao despedir-se, apertara-lhe a mão demoradamente, olhando-o com uma luz tão quente nos belos olhos verdes que, surpreendido e perturbado, se esqueceu de tudo. Fora a correr que descera a estrada, caminho de casa, sem se lembrar sequer de acender a luz da lanterna na noite negra. E ainda não estava em si.

— Cá   está — gritou   Vasconcelos,   com   o Boletim Oficial aberto sob os olhos a brilharem de alegria. E leu alto, mais para sua satisfação que para os companheiros ouvirem, a notícia da sua transferência para Luanda.

— Parabéns — disse Jaime Silva, rindo-se para Vas­concelos.

— Vou já nesta camioneta. — E Vasconcelos pôs-se a andar de um lado para o outro, alvoroçado.

Fez-se um grande silêncio. Dos fundos da rua vinham vozes de negros, desgarradas. Silva lia o Boletim, todo debruçado para a mesa, a careca a luzir.

— Caramba, há cinco anos metido neste buraco! — rompeu Vasconcelos, parando em frente de Américo, que estava meio deitado na cadeira de lona, de olhos semi-cerrados. — A gente já nem sabe o que é viver... E para quê? Ainda se o ordenado desse para fazer algumas economias...   Olha,   Joaquim, vou-me   embora   com menos dinheiro do que trouxe há cinco anos. Foi o que eu ganhei em vir para este eu do mundo. Dívidas é o que eu arranjei.

Américo a tudo dizia que sim com um ligeiro mover de cabeça, mas não lhe estava a dar atenção. O seu pensamento andava longe, junto de D. Jovita.

— Não vale a pena — insistiu Vasconcelos, debru-

çando-se para pôr as mãos nos ombros de Américo, que estremeceu todo.

O que foi? Tens alguma coisa?

Nada — respondeu Américo abrindo muito os olhos. Levantou-se, foi à varanda e desceu ao quintal.

Ouviram-no pedir café ao António e berrar a um negro da senzala que estava na cozinha a conversar com os criados.

Vem aí a camioneta — gritou Américo, vindo a correr dos fundos do quintal.

Silva e Vasconcelos precipitaram-se para a varanda, onde ele se lhes foi juntar. E ficaram parados, voltados para o vale, a verem a luz dos faróis abrir a noite da estrada.

Há mais de três meses que não vinha cá nenhuma camioneta — disse Vasconcelos.

Os colegas não lhe prestaram atenção. Silva tocou no braço de Américo e apontou para a casa do adminis­trador, admirado de àquela hora ainda se ver a janela iluminada. Não se enxergava nenhum vulto por trás dos vidros, mas Joaquim Américo viu D. Jovita a ler uma carta, sentada na cadeira de braços onde a encontrara na sala de jantar, toda debruçada para a frente, os cabelos loiros soltos sobre a testa, o robe aberto no peito, a mostrar-lhe o rego dos seios soltos. Só quando o motor da camio­neta roncou forte na subida da encosta e os negros da senzala dos sipaios vieram a correr e a gritar ao seu encon­tro, é que ele despertou.

Aí vêm elesl — disse, procurando na varanda os companheiros.

Eh Américo! — gritou Vasconcelos, da estrada. Regressaram à varanda, depois de mandar calar os

negros que desembocaram na estrada, contentíssimos com a aproximação da camioneta.

O secretário cuspiu para o chão, enojado com o cheiro da catinga dos negros que se aglomeravam, mais e mais, como formigas, em frente da casa de Américo.

As luzes dos faróis estenderam-se na estrada ver­melha. Um cão ladrou no largo da Administração. Apagou-se a luz na janela de D. Jovita. O alerta do sipaio subiu acima do barulho da camioneta, mas não se ouviu ecoar no vale, porque os negros romperam aos gritos e a bater as palmas quando a luz dos faróis se projectou sobre eles.

De súbito, a luz crua de um farolim varreu de ponta a ponta a casa do Américo e foi cair sobre os funcio­nários, que se voltaram de costas para a estrada com as mãos nos olhos.

Brincadeiras do Rocha — disse o secretário.

A camioneta parou defronte da casa, os negros sol­tavam, gritos agudos e umas mulheres, que tinham che­gado à estrada ao mesmo tempo que a camioneta, puse-ran-se a bater palmas cadenciadas, rindo alto, porque era sempre uma festa a chegada do «camião do branco».

Rocha saiu da cabina, muito baixo e magro, dentro do fato largo de ganga, e dirigiu-se aos funcionários, com um sorriso aberto. Atrás, vinha um aspirante admi­nistrativo, fardado de caqui, alto e forte, de capacete atirado para a nuca e uma ponta de cigarro no canto da boca.

Vivam!—saudou Rocha.

Aspirante Albano Sampaio — apresentou-se o outro.

Entrem, entrem — convidou Joaquim Américo. Sampaio cuspiu a ponta do cigarro e sacudiu com

um lenço a poeira dos canos das botas altas, o que fez sorrir os colegas, e entrou na sala com pouco à-vontade. Não conhecia nenhum deles e vinha indisposto com o Rocha.

Vamos tomar café — convidou   Américo. António trouxe o café, que espalhou por toda a sala

um cheiro forte, excitante.

O colega vem-me substituir — disse Vasconcelos.

Sim. Atiraram-me para cá — e o aspirante Sampaio fez um gesto de enfado. — Mas não há-de ser por muito tempo... Isto fica no fim do mundol E que tal é isto?

Como o resto — respondeu-lhe Américo. — É mato.

Mas mato do eu do mundo! E que caminho! Nunca mais cá   chegávamos...   Cada   buraco   na   estrada   do Cuango que é de meter medo!

Já esteve pior — informou o secretário. — Há falta de negros para as arranjar. Vão todos para as minas e para o algodão. O senhor não viu os campos de algodão?

Vi no Cuango e mais lá pra baixo. Mas no Quela é que eles estão bonitos. E as estradas lá estão boas. O administrador é um tipo novo, com genica, e não quer saber de histórias: põe as mulheres na estrada. Estão um brinquinho.

Rocha ofereceu cigarros. Informou:

Está tudo em flor. Este ano vai haver algodão em barda.

Mas este ano os indígenas não faráo como o ano passado — afirmou Silva.

O que é que eles fizeram?

Não queriam vender pela tabela. Alguns até chega­ram a queimá-lo. Aquilo esteve feio. Mas o administrador espetou com eles na Companhia do Açúcar e o imposto entrou nos cofres do Estado. — E Silva piscava muito os olhos, a esfregar as mãos.

No caso deles, eu faria pior — disse Américo.

Eu metia era na ordem toda essa negralhada! — vociferou o secretário. — O que é que querem mais?

Há negros que ganham duzentos angolares por ano, só em algodão!

E você acha muito? — tornou Américo. — Um ano de trabalho por duzentos angolares, sem direito a mais nada? E se chove antes da apanha? Ganham a ponta de um corno, não é? Mas não lhes perdoam os impostos. Deixe-se disso. Silva. A gente até devia ter vergonha de...

Todos os agricultores têm os seus prejuízos — ata­lhou Silva. — Para mim, o que não está certo é essa por­caria das percentagens aos colegas que trabalham na região do algodão. Parece que os outros não são gente. E é que não fazem mais nada, porque só querem algodão, algodão, algodão!

Vasconcelos piscou o olho a Américo. Todos sabiam que o Silva mexera meio mundo para ser colocado numa circunscrição de algodão, por causa das percentagens sobre a sua venda nos mercados recentemente criados sob a fiscalização das autoridades administrativas, directa­mente interessadas nessa cultura; mas os lugares eram poucos e muitos os «meninos bonitos» do Governador-Geral e do Bispo.

Lá para baixo, em Cassangue e noutros sítios, anda tudo doido com o algodão. Ver aquilo agora e como eu vi   há dois anos... — comentou   Rocha, que há meia dúzia de anos fazia ao volante da camioneta o caminho de Malanje e Camaxilo, a transportar funcionários, correio e cargas para os comerciantes. — Há dois anos — conti­nuou — a chuva levou todo o algodão e foi uma miséria como nunca se viu. O administrador do Quela, um tal Xavier, pôs toda a gente a trabalhar nas plantações, até mulheres grávidas. Eu vi uma que pariu ali mesmo, em cima da terra. Nesse ano os indígenas não fizeram lavras.ogajo só queria algodão. Homens, mulheres e crianças só trabalhavam nas terras de algodão. Não havia dinheiro que lhe chegasse para a batota.

— Eu trabalhei com esse tipo, no Congo — disse Vasconcelos. — Uma vez até jogou umas barricas de cimento da Circunscrição.

— Pois lá no Quela foi o diabo I — tornou Rocha. — Os negros não tinham que comer e do algodão nem lhe viram a cor. Foi um ano de chuvas como nunca vi. Eu vi-os chegar, aos bandos, a Malanje. Até metiam dó. Muitos morreram de fome pelo caminho.

Américo voltou a oferecer café. A conversa mudou de rumo. Rocha, afundado numa grande cadeira de braços, vendo-se-lhe só a cabeça, grande, redonda, sempre a oscilar, deu-lhes as novidades de Malanje, falou mal de toda a gente, como era seu velho hábito, queixou-se de perseguições, citou casos de abuso de autoridade e insurgiu-se contra o aumento das contri­buições e a criação do imposto de residência para brancos e negros.

Sampaio olhava-o de lado e, por vezes, ria-se com um sorriso torcido que disfarçava passando a mão pelo rosto comprido, de um branco encarniçado, com olhos azuis muito vivos e brilhantes.

— Ó Rocha, você trouxe livros? —perguntou Jaime Silva.

O outro fez que sim com a cabeça. E voltou a oferecer cigarros, que ninguém aceitou.

— O colega de onde veio? — perguntou Vasconcelos a Sampaio.

— Estava em Cabinda. Pedi a minha transferência para Moçâmedes e atiraram-me para aqui. Devo isto a um malandro com quem servi, o administrador Oliveira. Vocês conhecem-no?

Eles não conheciam o administrador Oliveira, a não ser de nome, pelo Boletim Oficial.

— É muito antigo na colónia. É conhecido pelo «Pica-Chouriços», porque foi guarda-fiscal na Metrópole — informou Sampaio.

— Já sei quem é — recordou-se Silva. — Esteve em Camabatela. É um tipo duro.

— Um malandro, é o que ele é I — regougou o Sampaio. — Meteu-se-lhe na cabeça, a essa grande besta, que eu me andava a fazer com a mulher, um estafermo de uma velha gaiteira, e tramou-me com o Governador. Espeta­ram-me aqui. Pulha I — E ficou-se a morder o lábio inferior, de olhos acesos de ira.

— Isto de mulheres é um sarilho... —disse Silva.

Conversaram até tarde. Sampaio foi ganhando con­fiança e acabou por aborrecê-los com perguntas sobre a vida da terra e o fornecimento de trabalhadores para a Companhia de Diamantes do Nordeste, de que lhe tinham dito as piores coisas, a ponto de lhe afirmarem que os funcionários administrativos na Lunda não passavam de moleques da Companhia.

— Moleques serão esses que o dizem — agastou-se o secretário. — Bem vê...

— O quê? — atalhou bruscamente Américo, olhando-o com dureza.

Estiveram um momento calados. O zumbido de um mosquito passou entre eles.

— Disseram-me em Malanje que o nosso adminis­trador é todo puxado à disciplina...

— É boa pessoa — apressou-se o secretário — e amigo dos seus funcionários. — Tem lá as suas coisas, mas daí não vem mal a ninguém. E D. Jovita é uma senhora, uma autêntica senhora — sublinhou, muito grave.

Vasconcelos e Américo estavam pasmados com o que ouviam, porque não havia ninguém que não soubesse que o secretário e o administrador se detestavam. E todos viam que D. Jovita falava ao Silva quase por favor, sempre com desdém. Mais do que ninguém, ela não lhe perdoava a história da escola e a sua vida debochada com as negras.

— Já chegou o novo Governador-Geral? — perguntou Vasconcelos, voltando-se para Sampaio.

— Chegou depois de eu sair de Luanda.

— Que dizem?

— Nada. Ninguém o conhece. É um coronel que nunca esteve   nas   colónias.   Mais   um... — e   encolheu   os ombros. — Vem encher-se.

—Vou-me chegando — disse Silva. — Já são horas.— E abalou.

Ouviram os seus passos perderem-se na estrada.

— Não tem boa pinta...—arriscou Sampaio.

— Falso como Judas — não se conteve Vasconcelos. Mas mudou logo de assunto: — Consta que vão aumentar os vencimentos. O que há?

— Vão aumentar mas é para baixo... — E Sampaio sorriu a piscar os olhos. — O que vamos é pagar um novo imposto, nós os funcionários. Chamam-lhe de «salvação pública», mas toda a gente diz que é o imposto dos gafa­nhotos. A gente é que tem de pagar os estragos dos gafanhotos. Toda a gente diz que é com o nosso rico dinheiro que o Governo vai auxiliar os colonos.

— Os gafanhotos   comeram tudo de Malanje para baixo — informou Rocha. — E lá para o Sul foi uma des­graça. Colonos com mais de cinquenta anos de trabalho, ficaram de um dia para o outro sem nada. Uma desgraça!

— Lá está você a exagerar...

— Exagerar! Antes fosse. Vocês é que estão metidos neste buraco e não sabem nada do que se passa por esta colónia fora... Só miséria e porcarias. Em Nova Lisboa, há colonos que comem por esmola do Município. Vi eu, ninguém mo disse. — E Rocha pôs-se de pé.—Vi-os à porta da Câmara, como mendigos — e estendeu a mão com o gesto de pedir esmola.

— Abriram um crédito para lhes acudir — disse Vas­concelos.— Conheço   um   agricultor do Amboim   que recebeu auxílio.

— Os que precisavam menos e tiveram bons padri­nhos, sim, receberam. Eu também conheço alguns. Mas os que trabalham a terra com a enxada, como os colonos da Huíla, nem a cor de uma macuta viram. Eu estive lá e sei a fome que eles rapam. Olhe, Vasconcelos, no Lubango até há brancas que se entregam aos negros das senzalas por comida I Vocês cá não sabem nada. Isto mudou muito, amigos.

Vasconcelos e Sampaio despediram-se. Saíram para a noite sem lua, a orientarem-se pela luz do lampião, que um negro fazia oscilar estrada a baixo. Iam calados. Dentro do capinzal das margens da estrada, os grilos cantavam e os vaga-lumes rebrilhavam como faúlhas. Um cão latiu na povoação dos colonos.

— É já ali o nosso palácio... — disse Vasconcelos, em tom de chacota.

Abandonaram a estrada para tomarem um pequeno atalho que os levou à porta de um casebre de paredes de adobe, coberto com ferrugentas chapas de zinco, aqui e ali remendadas com colmo.

— Mas isto está a cair aos bocados! — admirou-se Sampaio, vendo de relance a parede da frente com um grande lombo e a varanda prestes a cair num dos cantos.

— Está assim há muito tempo. Quando chove é preciso tapar os buracos de zinco com capim, senão toma-se banho.

— Aqui vive-se pior que os negros no litoral.

— Isto tudo é do tempo dos comandos militares. Esta é a pior.

Entraram na casa, de chão de terra batida e tectos de esteira, dois palmos acima da cabeça. Vasconcelos tirou o lampião das mãos do criado e percorreu as três depen­dências que formavam a casa, com meia dúzia de trastes velhos e desirmanados. Caixotes a servirem de mesinhas de cama e de cadeiras. A um canto, um balde-chuveiro e uma bacia de cara em cima de um tronco de árvore. A cama de ferro estava a outro canto. Sobre uma mesa, os pratos do jantar ainda estavam sujos.ocriado entrou para armar a cama de campanha destinada ao novo aspirante.

— É uma pocilga, como lhe disse, colega. Não tem nada que preste. Pior do que qualquer casa de «calcinhas» de Luanda. Mas a gente acaba por se acostumar. Nos Postos ainda é pior. Aqui é tudo assim. A gente vive como os bichos.

— Rocha, você dorme aqui — ofereceu Joaquim Amé­rico.

— Obrigado. Vou ficar lá em baixo. Nem era para vir cá, hoje. Vim só para me ver livre desse bêbado.ogajo queria ficar à força na casa do Pancário.

Américo franziu o sobrolho e ficou à espera.

— Vocês nem sabem que espécie de tipo vão cá ter...

— Você está picado...

Rocha levantou-se, deu volta à mesa, acendeu um cigarro e disse:

— Aporrinhou-me durante toda a viagem. Filho da puta!

O aspirante largou uma gargalhada.

— Você é o diabo, Rocha...

— Olhe, Américo, eu só conto uma, porque são tantas que dava para uma noite de conversa. Você sabe que eu costumo parar a camioneta e passo um bocado a ler. Dizem que é uma mania, mas eu é que sei da minha vida. O volante cansa, coos diabos I Pois o gajo não deu para embirrar? Queria à força que eu viesse todo o tempo amarrado ao volante. Forte besta.

Américo largou a rir da indignação do Rocha. Ele conhe­cia-lhe as manias e estava a ver como a cena se passara na estrada: o Rocha deitado de barriga para o ar, lendo os livros que trazia encomendados, à sombra de uma árvore, sem ligar nenhuma ao tempo e ao passageiro, tanto lhe fazendo chegar de dia ou de noite, hoje ou amanhã. Nesses momentos, era deixá-lo, porque por mais que se lhe falasse não atendia a nada. E se via que o queriam picar, era capaz de ficar todo o dia com a camioneta parada na margem da estrada, sem ter que fazer e sem dar palavra, a fumar cigarro sobre cigarro. Mas, de um momento para o outro, arrancava, sem uma explicação, para andar um quilómetro ou cem.

— Hoje, à tarde — tornou   Rocha — parei a «Mari­quinhas» antes de chegar a Caungula e demorei-me um bocado a acabar de ler um livro que me pediu o tenente da Companhia. Eram só umas dez páginas. Havia de o entregar sem acabar? Pois o tipo não armou um barulho dos diabos I Pôs-se a berrar que ali não era sala de leitura, que o Estado tinha pago a sua passagem e que queria ir jantar a Camaxilo. Tive de me pôr ao alto. Que figurão!

— Você é levado dos diabos, Rocha...

— Nem você calcula o escarcéu que ele fez I Como se a camioneta fosse dele) Sempre há cada um... Também o amolei, porque só pus a «Mariquinhas» a andar quando me deu na vontade. Foi por isso que chegámos tão tarde. Ainda estive para dormir na estrada. E só o não fiz porque trazia o correio para vocês.

Acendeu o cigarro que se apagara enquanto falava, todo ele gestos largos e a grande cabeça a baloiçar sobre o pescoço comprido e estreito.

Você não viu como ele estava bêbado? Pois veio toda a viagem a encharcar-se com conhaque. É uma esponjai Até lhe chamam o Dr. Whisky, por causa das carraspanas que apanha. E malcriado como o raio que o parta.

Américo deu uma gargalhada. Rocha também acabou por rir.

Vou-me por aí abaixo — disse ele.

Da varanda, Américo viu a camioneta rolar na estrada, meter-se na curva e desaparecer sem barulho na pequena descida para o rio. Logo, o motor roncou forte na subida da ponte para a povoação dos colonos e as luzes dos faróis iluminaram por um momento as casas baixas e bran­cas. Depois, o barulho e as luzes desapareceram e o grande silêncio da noite quente voltou a fechar-se sobre a vila.

Américo acendeu um cigarro, deu duas fumaças e, num gesto brusco, atirou-o para longe. Fechou a porta e foi deitar-se, fatigado e aborrecido. Ia a pegar no sono, quando um cão ladrou na estrada. «Maldito cachorro», resmungou, voltando-se para o lado da parede. Mas o sono não voltou. No quarto escuro e silencioso, ficou a pensar no que se passara com D. Jovita, à porta da sua casa, enquanto o marido, muito gordo no pijama às riscas, a barriga atirada para a frente que nem mulher prenhe, lia na sala de jantar, espapaçado num cadeirão de verga.

O tempo começou a correr sem ele dar por isso.

O que se passara com D. Jovita levou-o a recordar o seu encontro com o administardor Antunes, no Lobito, e quanto ele fizera para lhe arranjar o ganha-pão, mal o conhecendo, num gesto de solidariedade que jamais esqueceria. «Seria uma pulhicel», disse em voz alta, a rematar um pensamento sobre a mulher do administrador. Acendeu a vela e pegou num livro, para não pensar na mulher de Gregório Antunes. Leu duas páginas sem guardar uma só palavra. Irritado, atirou o livro para o meio do quarto, assoprou a vela e voltou-se para a parede, de olhos fechados. E fez por pensar noutras coisas, na trans­ferência de Vasconcelos, companheiro de uns poucos de anos naquele canto da Lunda, na chegada do Sampaio e na fúria do Rocha. Sorriu ao recordar as manias do moto­rista, fazendo sala de leitura debaixo das árvores, ao longo desses trezentos quilómetros de Malanje a Camaxilo, por estrada esburacada que a sua «Mariquinhas» vencia aos roncos, empanando-se aqui e além, a bater latas. «Que telhudo», disse a meia voz. Depois, o pensa­mento foi-se-lhe para o Silva e suas velhacariazinhas, com aquela história ignóbil de se armar em benfeitor dos filhos dos colonos, ensinando «essas pobres crianças a ler», tudo para se poder meter com as mulatinhas. Recor­dou a fúria de D. Jovita, que se não cansara de o elogiar, chegando a pedir ao marido que o louvasse para exemplo aos outros funcionários, «uns egoístas que passam a vida a beber e a jogar». Depois, zásl rebentara o escândalo, cresceram cóleras, Silva deixou de aparecer, e Gregório Antunes sempre a falar à mulher, mordaz e irónico, no louvor aos «sacrifícios do secretário», que ele sempre recusara suportando-lhe os maus modos. «Grande exem­plo, não há dúvida...», dizia, chocarreiro. D. Jovita embuchava e fervia em ira, as faces afogueadas, os olhos duros. Era como se o Silva lhe tivesse roubado uma cer­teza... Mas, logo, os lábios começavam-lhe a tremer e os olhos verdes enchiam-se-lhe de lágrimas.

O secretário e as suas velhacarias esfumaram-se no cérebro de Américo e D. Jovita de novo tornou-lhe o pensamento. Bruscamente, sentou-se na cama, às escuras, os 3és sobre uma pele de leopardo, todo inclinado para a frente, com os olhos apertados. O seu pensamento entrava no passado e carregava-se de recordações que, ligadas agora ao que se acabava de passar, o faziam com­preender certas atitudes de D. Jovita, numa insistência velada que vinha desde a ceia do Natal, para a qual o administrador convidara os funcionários, «a família admi­nistrativa», como ele dissera aos brindes. Recorda-se de que nessa noite se passara qualquer coisa que lhe resultara muito desagradável. D. Jovita, enquanto o marido, já tocado pelas bebidas, contava ao Silva e Vasconcelos as suas façanhas na guerra do Sul de Angola, dissera-lhe algumas palavras com duplo sentido, lançando-lhe rápi­dos olhares e um que outro sorriso imperceptível. Ame a sua perplexidade, parecera-lhe que ela o animara com um sorriso e, logo, ele dissera qualquer coisa de que já se não lembrava, sem dúvida uma inconveniência. Tinha bebido e estaria bastante perturbado, porque as suas palavras fizeram corar D. Jovita. Ela olhara-o nos olhos, muito séria, os lábios arrepanhados; depo;s, voltara-lhe a cara e durante o resto da ceia não se lhe dirigira. No dia seguinte, lembra-se de ter recordado a cena e enfurecera-se tanto consigo mesmo que passara o dia a injuriar-se: — «Sou uma bestai bestai bestai» Andara aborrecido durante vários dias, evitando passar no largo da Administração quando D. Jovita estava na varanda da sua casa. Agora, via que não se enganara, o álcool não lhe tinha tirado todo o juízo, fora ela que o provocara e continuava a insistir. «Mas para o que lhe havia de dar...», murmurou, aborrecido. E tornou a deitar-se, cobrindo a cabeça com o lençol. Deu voltas sobre voltas na cama impregnada de suor, sem conseguir deixar de pensar na mulher do Antunes. De momento a momento, bocejava e soltava pragas. Por fim acabou por voltar a sentar-se na borda da cama, acendeu a vela e fumou um cigarro. «Que chatice! Mas que chatice...», dizia a meia voz. Estava cansado e a cabeça pesava-lhe. O suor escorria-lhe por todo o corpo. Apagou a vela e deixou-se ficar sentado, com os cotovelos fincados nos joelhos e a cara afundada nas mãos. Um grilo cricrilava no quarto de banho, ao lado. Sem se mover, ficou-se a ouvi-lo cantar em cima do forro da esteira. Quando se calou, por um momento, fez por escutar os rumores da casa adormecida. Eram corri-dinhas de ratos nas esteiras do tecto e chão de barro batido dos três quartos seguidos que formavam a casa; o salalé a roer a madeira velha das vigas, portas e móveis toscos; o zumbido de um mosquito e uma borboleta tonta e cega a bater nas vidraças da janela que dava para as bandas da Administração, por onde entrava um luar tardio, amarelo e melancólico.

De longe em longe, cruzavam-se sobre a vila os gritos dos sipaios que atalaiavam os caminhos da Administração e do Paiol. Desgarrados pelo boqueirão do vale, subiam até à vila os gritos dos chacais esfaimados, a que os cães, em loucas corridas pelos quintais, respondiam com uivos prolongados.

Lentamente, rumores e gritos distantes se foram con­fundindo no seu cérebro cansado e um torpor tomou-lhe o corpo. Deitou-se sem se cobrir e caiu num sono pesado.

 

0 vozeirão de Gregório Antunes entrou na Secretaria e arrancou o Silva da sua banca de trabalho.

— Vou já, senhor administrador. — E saiu a correr para a varanda. À porta, ia esbarrando com o Antunes.

— Homem, você não vê onde põe as patas I

Silva desfez-se em desculpas, que não vira, que não sabia que o senhor administrador estava ali, que foi por vir depressa...

— Tome isto e despache já um sipaio — disse o admi­nistrador, agitando um papel em frente dos olhos pasmados do secretário. — E se não os encontrarem, que tragam o soba e a família dessa canalha. — E já nos degraus da varanda, recomendou: — Quero cá essa gente amanhã.

— Sim, senhor administrador. Eu mesmo...

— Qual você! — cortou bruscamente. — Mande mas é o sipaio prender esses cães.

Com o capacete puxado para os olhos, uma varinha de bambu na mão, Gregório Antunes atravessou o largo, sacolejando a barriga, e entrou em casa a chamar pela mulher, em voz alta.

O secretário, em pé defronte de Américo, rubro de raiva, passou os olhos pelo papel e, logo, atirou um berro chamando pelo sipaio.

— Veja, Américo, mais cinco homens que fugiram das minas, e logo com os impostos pagos pela Companhia! Isto só a chicote! São do Xá-Mucuari, hem! Veja, veja...

Joaquim   Américo   encolheu   os   ombros.   Que   lhe importava que fugissem cinco homens deste ou daquele soba, ou cem, ou mil, ou toda a população I Estava farto daquela caça ao negro que se evadia das minas sem querer saber do salário vencido, do qual só recebera metade, porque o restante destinava-se a ser-lhe entregue pela autoridade administrativa da sua terra, depois de cumprido o contrato.

O sipaio Caluis enquadrou-se na porta, com o cofio vermelho posto à banda.

Chama o Aparo — mandou o secretário.

O negro velho ficou atarantado, a olhar para todos os lados, sem saber o que fazer, porque fora o próprio secre­tário quem, na véspera, mandara o sipaio Aparo em dili­gência aos sobados das bandas do Lubalo.

Anda, homem!

Aparo foi...

Espera, espera! — disse, lembrando-se naquele ins­tante das ordens que dera. — Já podias ter dito isso. Que besta! Não está aí o... o... Não, não está. Aqui nunca há ninguém I

Hesitou um momento, olhou duas vezes para o velho sipaio, foi até ao fundo da sala, deu de ombros e decidiu:

Pega na espingarda e vai já à senzala do Xá-Mucuari prender estes homens. — E leu-lhe compassadamente, os nomes dos cinco evadidos. — Agora diz tu.

O sipaio repetiu os nomes, mas como se enganou num. Silva emendou-o e obrigou-o a dizer três vezes seguidas o nome que errara e mais uma os outros.

Se não estiverem lá, prende o soba e as mulheres deles. Mas olha que não é esse soba que costuma cá vir, é mesmo o Xá-Mucuari, o velho, o antigo, ouviste bem?

Si siô, nosso secretário. Conhece ele.

Toca a andar.

Caluis saiu para a varanda a coçar a cabeça, a testa franzida e o lábio inferior pendido. Queixou-se a um capita, acocorado na varanda, dos seus pés roídos de mata-canhas, que já não aguentavam viagens pelo mato. Mas, em verdade, o que mais o inquietava era ter de se encontrar frente a frente com o velho soba, o último grande soba de Camaxilo, de olhar duro e um ódio antigo, que lhe andava sempre nas palavras e nos gestos, a todos que serviam os brancos.

Quando o sipaio, de arma ao ombro, foi pedir cartu­chos a Joaquim Américo, o secretário recomendou-lhe que se fizesse acompanhar por um capita. A boca des­dentada do velho abriu-se num grande riso. Não iria só e isso bastava para lhe tirar o medo de enfrentar o velho soba e o seu povo.

Da janela, os funcionários viram-no atravessar o largo, com o capita ao lado, de chicote à cinta, e meter-se à estrada.

Querem que se trabalhe a   correr com sipaios como este... — queixou-se o secretário, dirigindo-se ao Américo.

Mas ele encolheu os ombros e foi sentar-se à secre­tária, inclinando-se a rascunhar no livro dos impostos.

Você não se interessa mesmo nada, nada, por isto, Américo.

Não — disse sem levantar os olhos do livro. — Isto é para mim...

Calou-se, empurrou o livro para o lado e pôs-se a enrolar um cigarro.

Vasconcelos e Sampaio entraram na Secretaria, a falar em voz alta, muito alegres.

Cá estamos de volta — disse Sampaio, sentando-se na ponta de uma mesa.

Vasconcelos já vinha pronto para a viagem, com a farda de campo muito engomada e as botas altas a luzirem. A alegria iluminava-lhe a cara trigueira, barbeada, o cabelo com brilhantina, a cheirar a água-de-colónia.

— CarambaI   Nunca te vi tão pinocal... — brincou Américo.

— Menino, hoje é dia de festa...

Silva estendeu a guia de trânsito a Vasconcelos, levan­tando-se da secretária com um sorriso, todo amável.

— Agora não há nada que lhe barre o caminho...— disse ele, a sorrir.

Vasconcelos limitou-se a um «obrigado» formal e meteu a guia na algibeira.

— A que horas vão, António? — quis saber Joaquim Américo. — Eu vou lá abaixo ao bota-fora.

— Não vás. O Rocha vem cá acima com a camioneta. Eu é que vou agora falar com o Pancário e dizer adeus aos velhos.

Do seu gabinete, Gregório Antunes chamou pelo Silva.

— Vamos lá — disse ele a Sampaio, sobraçando uma pasta cheia de papéis.

E ambos entraram no gabinete do administrador, pobremente mobilado, com um cofre de madeira a um canto e em cima o busto da República, e pendurados nas paredes escudos e lanças — trofeus das últimas «guerras negras».

Gregório Antunes demorou-se, sem levantar os olhos da secretária, a cobrir um monte de papelada com a sua assinatura garrafal, seguida de três pontos a formarem triângulo. Depois, empurrou os papéis para a frente, olhou demoradamente para o novo aspirante e estendeu-lhe a mão.

— Leve isto e volte quando eu o chamar — disse ao secretário.

Logo que o Silva os deixou, Antunes voltou-se para o Sampaio e disse-lhe:

— Tenho as piores informações a seu respeito, mas quero dizer-lhe que é como se não soubesse nada. Para mim, o procedimento de cada um é que marca. Pode retirar-se. Chame o senhor secretário.

— Veja lá o que é que ele sabe fazer, Silva — reco­mendou o administrador. — Fica com o serviço do Vascon­celos e o Américo que lhe passe o correio.

— Tinha pensado na farmácia...

— Não. Este tem de andar debaixo de olho. O Américo está calhado com os curativos, e já que gosta tanto dos negros que os trate.

Rabiscou a assinatura numa guia de trânsito para um indígena, atirou com a caneta e levantou-se. Já entre portas, recomendou:

— Veja-me lá esses negros do Xá-Mucuari.

E, sem atender às informações do Silva, abandonou a Administração, caminho das obras, no alto da povoação.

— Não faça caso, colega — dizia Américo a Sam­paio. — Ele é assim, brusco, mas boa pessoa.

— Galego, é o que ele él Calaram-se à entrada do Silva.

— Estou farto disto! — disse o secretário atirando a guia para cima da mesa do Américo. — Fala à gente com sete pedras na mão, como se fôssemos negros! E nem ouve! Parece que toda a gente lhe deve a cabeçal Isto assim não pode continuar.

Encostado ao balcão, na loja sem fregueses, António Vasconcelos e Manuel Pancário falavam a meia voz. Na varanda, perto da porta, sentado num banco, com as pernas cruzadas, o velho Anacleto dava chibatadas numa das suas botas cambadas, chapeadas com pele por curtir. Mas todo ele era ouvidos para o que se dizia na loja.

Está bem, senhor Vasconcelos...oque é que se lhe há-de fazer... Mas veja se manda logo.

Homem! Já lhe disse que é logo que chegue a Luanda. É só fazer o empréstimo à Caixa de Previdência e a nota vem por aí a cima.

Não é desconfiar, senhor Vasconcelos, isso não! Mas é que ainda é um bocado bom, quase três quilos dele...   E o negócio, senhor Vasconcelos, está ruim. Há dias que a gente não faz nada, nada! O senhor sabe...

Pois é logo que chegue lá, amigo Pancário. Chego e mando.

Está bem, senhor Vasconcelos. — E o comerciante torceu a boca num sorriso amarelo, pondo a nu os dentes esverdeados.

Vasconcelos despediu-se com um abraço. À saída, quase ia esbarrando com o velho colono.

Ora   viva, senhor Anacleto. — E estendeu-lhe a mão, prazenteiro. — A prole, boa Ia agora por sua casa para lhe dizer adeus.

Muito obrigado, muito obrigado, senhor Vasconcelos. Mas a gente logo ainda se vê. Sempre chegou o dia, senhor Vasconcelos...

É verdade. Agora é que eu vou até ao mar. Já não podia mais com isto. — E foi descendo para a rua.

O aspirante parou na estrada, ao pé do Rocha, que estava a vistoriar a camioneta.

Então, Rocha, sempre largamos hoje?

Pois. Saímos com o fresco da tardinha e jantamos

em Caungula, com o tenente. Depois vamos a caçar por aí fora.

Vasconcelos deixou-o a barafustar com o ajudante e encaminhou-se para a povoação alta.

Manuel Pancário veio encostar-se à ombreira da porta, sem dizer palavra, com o rosto sombrio, a olhar para a rua. Anacleto espiou-o e pôs-se a roer a ponta da boquilha de cana, enervado. Como o companheiro nada dissesse, não se pôde conter mais e desabafou:

Homem, você foi nissoI Até mete raivai

oque é que a gente há-de fazer... — lamentou-se Pancário.

O velho deu um salto no banco, muito vermelho, os bigodes a tremerem, e regougou:

O que é que se há-de fazer? I Essa é boa I — E bran­dia a chibata. — Essa é boa I

Começou a andar aos saltinhos na varanda, resmun­gando:

Que cambada I Corja I

A gente não pode fazer n..da, eles é que mandam, amigo Anacleto...

O velho estacou e olhou para ele com dureza.

Qual manda I — gritou a tremer. — A lei é que manda. Ou isto é alguma Falperra?

Um acesso de tosse não o deixou continuar. Apoiou-se ao pilar da varanda, todo dobrado para a frente, a respiração a farfalhar e a cabeça como a andar-lhe à roda. Pancário bateu-lhe nas costas e isso aliviou-o. Can­sado, sentou-se no banco e começou a fazer um cigarro, mas as mãos tremiam-lhe tanto que teve de parar por um instante.

Com   essa   bronquite tão   assanhada,   você não devia fumar.

— Pois é, Pancário. — E encolheu um ombro, dando cuspo à mortalha.

Passado um momento, o colono voltou à carga, mas mais calmo:

— Anda um homem uma vida a trabalhar para o dinheiro ficar nas mãos desses... desses... Eu nem sei como lhes chame.

— Lá isso é, amigo Anacleto. E ele que custa tanto a ganhar...

O velho meteu as mãos no cós das calças, atirou uma fumaça para a cara verde de bílis do Pancário e exclamou:

— Dinheiro é sangue! Mas eles sabem a quem as fazem... Olhe, Pancário, comigo a coisa fiava mais fino. Eu já meti um tenente no tribunal, e aquilo foi limpinho, largou ali   o bago que não foi   brincadeira. Ai   nãol E olhe que me estive nas tintas para as ameaças. É que a mim; ouça bem, ainda há-de nascer quem me meta medo! — E cortou o ar com um golpe de chibata.

Manuel Pancário entrou na loja e foi para trás da balança arrumar os pesos.ovelho ficou à porta, de costas para a rua, a desentupir a boquilha. Depois, foi encos­tar-se ao balcão e, sereno, disse:

— Eu não tenho nada com a sua vida, amigo Pan­cário, mas quando vejo essas coisas, sobe-me uma coisa cá por dentro — e a mão aberta deslizou-lhe do estômago à garganta. — Olhe, Pancário, nem sei o que sinto.

— Este é de pagar. Eles ganham pouco...

— Pouco I Mais de um conto por mês para não faze­rem nada! E acha você pouco? Cá para mim, eles não valem o que comem. É o que lhe digo. Os antigos, esses sim, Pancário, trabalhavam, abriram essas estradas todas e a negralhada andava na linha. Agora estes, é o que o amigo vê, são como esse secretário fraldiqueiro, que até se mete com as negras dos colegas. Até é uma vergonha ser branco como a gente I

— Pois, pois... Mas eles é que "mandam...

— Irra! — E o velho atirou   um murro ao balcão.— E você a dar-lhe!

Mas caiu em si, tossicou, correu os dedos nervosos pelo bigode e foi saindo com um «até logo». Pancário seguiu-o com os olhos a rirem de malícia. «É danado por dinheiro...», disse ele a si mesmo, a boca arrepanhada num sorriso mole.

À tarde. Rocha levou a camioneta à povoação-de-cima e parou-a no largo da Administração, para receber a bagagem do Vasconcelos e largar rumo a   Malanje.

À porta da Secretaria, os funcionários formaram grupo, de conversa com o Rocha. Na varanda da sua casa, D. Jovita, num vestido vermelho, sem meias, uma rosa-chá nos cabelos, estava ao lado do marido, a fumar debruçado na balaustrada. Às furtadelas, ela olhava para Américo, mas só uma vez os seus olhares se cruzaram. Logo, virou-se de maneira a não o encarar, propositadamente. E começou a falar, muito animada, toda gestos, com o marido.

— Vamos embora — disse Rocha dirigindo-se para a camioneta.

António de Vasconcelos foi despedir-se do adminis­trador e da mulher. Gregório Antunes abriu-lhe os braços e teve palavras amigas e oferecimentos. O secretário esticou o pescoço e ficou com os olhos em espanto.

Comovido, Vasconcelos abraçou Joaquim Américo e estendeu a mão ao secretário, sem interesse. Mas Jaime Silva tornou-lhe o braço, pôs-se de costas para os outros e entregou-lhe um papel.

— É o recibo.   Encontrei-o ontem, ao arrumar uns papéis — disse ele.

Uma onda de sangue alastrou no rosto de Vasconcelos. Amarrotou o papel e meteu-o no bolso, encaminhando-se para a camioneta, sem uma palavra.

— Ainda por cimal Vá lá a gente fazer bem... — res­mungou o secretário, tão baixo que só ele se ouviu.

A camioneta rodou na estrada levantando uma nuvem de pó. Ao entrar na curva para descer para o vale, gritos estridentes de negros saudaram os viajantes. Os funcio­nários separaram-se e cada um foi para sua casa.

  1. Jovita acompanhou com os olhos os passos de Joaquim Américo, cabisbaixo, a caminho da sua casita. Ao chegar à varanda, ele voltou-se para o vale, a encher-se de sombras. Lá em baixo, a povoação estava toda envolvida pelas cores afogueadas do poente.

A camioneta entrou na estrada da planície, com as primeiras sombras da noite a descerem para a terra longe.

 

O homem ergueu-se acima do capinzal, levou as mãos à boca e soltou um grito que cresceu na manhã cheia de sol e varou a aldeia, no alto da colina. Rápido, abaixou-se e largou a correr, com os braços a abrirem caminho no capinzal.

— Agarra! — gritou o sipaio Caluis, saltando da estrada para o capim.

Num salto, o capita filou o homem pela garganta e atirou-o ao chão. De olhos esbugalhados, ele olhava para o capita com rancor e medo, fazendo esforços para se livrar do joelho que lhe premia o estômago e das mãos apertadas à volta do pescoço.

Quando Caluis se abeirou, o homem rouquejava, a espumar pelos cantos da boca; mas ainda tentava liber­tar-se num esforço que lhe esgotou as forças. O sipaio atirou-lhe uma coronhada ao peito, que o fez dar um urro. Os braços tombaram-lhe para o capim e a boca encheu-se de espuma ensanguentada.

— Morreu! — apavorou-se o capita, largando-o. E começou a tremer.

— Malandro I —gritou o sipaio dando-lhe um pontapé na cara.

— Deixa I — E o capita puxou o velho Caluis por um braço.

Estiveram calados um momento a olhar para o homem. O capita abanava a cabeça, a recriminar o que o companheiro fizera. E pensou no administrador e nas contas que tinham que lhe dar por aquela morte.

O homem soltou um débil gemido e entreabriu os olhos, fechando-os logo. O capita, muito admirado, baixou-se, apalpou-lhe o peito e abanou-lhe a cabeça. Depois, começou a levantar e a baixar-lhe os braços, arrancando-lhe gemidos que foram subindo de tom até se transformarem num grito de dor. Com os olhos a bri­lharem de alegria, o capita deu uma gargalhada.

Está vivol — disse ele largando-lhe os braços.

Cão não morre I — regougou o sipaio;   e cuspiu acintosamente para a frente.

O homem abriu os olhos, baços e inexpressivos, levantou um tudo-nada a cabeça, sem dar conta do velho e do capita. Esteve assim um momento; depois, esforçou-se por se levantar, apoiando-se nas palmas das mãos, mas as forças não lhe obedeceram. A cabeça tombou-lhe para o lado, as pálpebras tremeram e que­daram-se cerradas e o rosto negro tornou-se castanho. A respiração alterou-se-lhe e ficou numa farfalheira.

Os dois homens trocaram um rápido olhar e, sem uma palavra, amarraram-lhe as mãos e os pés. E dispunham-se a abandoná-lo, quando Caluis se pôs a olhar para todos os lados, inquieto, como se farejasse perigo. Baixou-se e apanhou uma mão cheia de capim, com que foi amor­daçar o preso.

Voltaram para a estrada, hesitaram um momento sobre o caminho a tomar e resolveram seguir a corta-mato.

Caminhavam em silêncio, atentos a todos os rumores, com passos cautelosos para não serem surpreendidos, porque o soba Xá-Mucuari não era homem que deixasse os seus caminhos abertos a qualquer viajante que se quisesse aproximar da aldeia sem o prevenir. Os próprios capitas que demandavam a sua aldeia costumavam gritar de longe, e só depois de atendidos pelo aparecimento de um dos seus homens ou por um brado, é que se abeiravam das palhotas.

O grito do homem do capinzal sobressaltara os negros da aldeia, que saíram das cubatas, acaçapadas à volta de um grande terreiro, e se puseram a olhar para todos os lados. Velhos trôpegos arrastaram-se para espiar na soleira das palhotas. As mulheres que estavam a pilar mandioca suspenderam o trabalho e ficaram a olhar, desconfiadas, para os homens que farejavam o ar. No alpendre, erguido no meio do terreiro, Xá-Mucuari ficou com o cachimbo na mão, voltado para a boca do caminho das bandas de onde tinha vindo o grito. Os três velhos que estavam ao seu lado, amodorrados à volta do braseiro, abriram as mãos em forma de concha atrás das orelhas, escutaram um momento, mas logo voltaram aos seus cachimbos e à conversa monótona.

No grande silêncio que caiu na aldeia, ouviu-se o canto de um pássaro no alto da án/ore que sombreava a cubata do soba.

Ao redor da senzala, no capinzal que cobria com gran­des manchas amarelas e verdes a colina que desce suavemente para o chão largo da savana, com caminhos de gentio e a estrada para Camaxilo, não se ouvia vivalma. E do outro lado, do matagal que se estendia até à beira do rio onde o povo bebe, só de longe em longe se faziam ouvir os gritos desgarrados dos barquei­ros e pescadores.

— Não é nada — disse um velho, em voz alta, no alpendre.

De novo se encheu a aldeia com o bate que bate dos pilões das mulheres e palavras soltas gritadas ros grupos que, à porta das palhotas, comentavam o que se passara. Depois, os homens dispersaram-se pelo terreiro e não ligaram mais importância ao grito que viera do capinzal. E os velhos, crentes de que fora um viajante de outro povo que gritara de susto por algum bicho corrido de medo à sua aproximação, ou por brincadeira, que os homens novos tinham perdido o respeito aos sobas desde que os brancos vieram mandar na sua terra, estavam de conversa pegada, rindo alto. Só Xá-Mucuari se mantinha desconfiado. O grito ficara-lhe no ouvido e tinha a impres­são de que conhecia a voz, ouvira-a não se lembrava quando nem onde. Apertou o cachimbo na boca crispada e não tirava os olhos do caminho do capinzal. Depois, fez sinal a um homem que estava cerca do alpendre e mandou-o, falando-lhe a meia voz, vigiar o atalho. Outros meteram-se aos trilhos para o rio, pelo matagal.

O soba apanhou com os dedos uma brasa que pôs no cachimbo, atirou uma fumaça que lhe envolveu a cabeça, e ficou-se a ouvir os velhos a conversar. Falavam dos brancos que vieram comprar borracha à sua terra e que, depois de lhes terem dado as suas filhas e muito dinheiro a ganhar, fizeram a guerra mal chegaram os bran­cos e negros fardados. Um deles relembrou o branco Amaral, que o soba Caungula matou depois de ter assaltado a casa do Sorrilha, apanhado pelos seus homens no mato, quando ia a fugir. Crivaram-no de facadas e esquarte­jaram-no, levando a cabeça espetada num pau, para que o «soba grande» visse bem que eles não tinham medo e que «o leite que mamaram era bom», leite de mulheres que ainda se não tinham «estragado» dormindo com o branco.

De repente, um silvo passou por cima da aldeia.

Vinha do lado do matagal. Os negros correram a esconder-se no capim, porque aquele silvo era o aviso combinado de há muito da aproximação da autoridade de Camaxilo. Xá-Mucuari e os velhos não se mexeram. Era tarde para fugirem, porque o aviso fora dado à boca da aldeia e já não podiam correr para o capinzal.

Com as mãos amarradas atrás das costas e uma corda à cinta, apareceu á entrada da povoação um homem da aldeia, seguido por Caluis e o capita. Atraves­saram o terreiro e pararam defronte do alpendre. Os velhos e o soba continuaram a conversar, como se os não tivessem visto.

— Soba! — gritou o sipaio.

Xá-Mucuari voltou-se com um movimento brusco que fez cair o pano que trazia aos ombros. O seu olhar duro cruzou-se com o de Caluis, mas não abriu a boca. Depois, fez sinal a um dos velhos para que o atendesse e virou-lhe as costas.

O sipaio rompeu aos gritos, a exigir que o soba lhe entregasse os cinco homens que tinham fugido das minas. O velho abriu muito os olhos e escancarou a boca, num pasmo fingido que encheu de raiva o sipaio, porque era sempre assim que eles faziam quando se lhes pergun­tava pelos homens que fugiam das minas e eles acoi­tavam.

Aos berros, Caluis disse os nomes dos cinco homens, que durante o caminho viera a recordar. O velho negou que eles tivessem voltado à aldeia, que nunca mais nin­guém os tinha visto desde que o sipaio Canivete viera buscar a última leva de trabalhadores para o Nordeste. Então, o sipaio virou-se para o soba, que continuava de costas para eles, e começou a insultá-lo como enco­bridor de malandros. E exigiu-lhe, em nome do administrador, que lhe entregasse imediatamente os cinco homens ou as suas mulheres.

— Vai buscá-losl — gritou-lhe o soba, sem se voltar. Os velhos que estavam no alpendre riram um riso de

troça escondido na concha das mãos.

A mando do sipaio, especado em frente do alpendre, as mãos firmes no cano da espingarda, o capita passou revista às cubatas, empurrando para o terreiro os velhos e os doentes que estavam escondidos. De uma palhoça isolada no fundo da aldeia, trouxe à sua frente, a pontapés, um leproso, nu e chaguento, que se pôs aos guinchos, com as mãos sobre os olhos, cego pela luz do Sol. Indigna­dos, os velhos barafustaram, porque nem os brancos pro­cediam daquela maneira. Caluis zangou-se com o capita, depois de dar razão aos velhos, louvou os brancos do Governo e mandou-os calar.

— Podes ir dizer ao branco que os homens não estão cá — disse um dos velhos que estava no alpendre, dirigindo-se ao Caluis.

O sipaio voltou a berrar o nome dos fugitivos e que os queria ver já ali, à sua frente. O velho protestou, indignado, porque o que ele estava a fazer não era justo, o capita entrara em todas as casas e vira muito bem que os homens não estavam lá, nem tão-pouco as suas mulheres, que no dia anterior tinham ido às senzalas vizinhas em visita aos parentes. Aconselhou-o a que voltasse à Admi­nistração para o branco ver melhor se esses homens não eram de outro sobado. Mas o sipaio teimou que eram dali, que fora isso que lhe dissera o secretário e que tudo estava escrito no livro da Administração. O velho meneou a cabeça, guardou um momento de silêncio, como con­centrado; depois, lembrou-lhe que talvez fossem os brancos do Nordeste que tivessem trocado os nomes, porque esses não eram brancos do Governo e podiam ter-se enganado.osipaio vacilou um momento, olhou desconfiado para o velho, mas fez finca-pé, afirmou que os brancos das minas também se não enganavam, porque quem escrevia os nomes eram também brancos do Governo.

Discutiram durante muito tempo, sem chegar a acordo. Por fim, Caluis exigiu que o soba o acompanhasse a a Camaxilo. O velho falou com o Xá-Mucuari, a meia voz. Depois, pediu ao sipaio que esperasse um pouco, enquanto ia chamar um homem que estava no rio. Foi até meio caminho, gritou para o largo e regressou ao terreiro. Minutos depois, apareceu um velho pescador, que Caluis reconheceu, vira-o muitas vezes em Camaxilo.

— Podes levá-lo — disse o velho dirigindo-se ao sipaio.

— Aquele é que vai — disse o sipaio apontando para o Xá-Mucuari.

Os velhos saíram do alpendre e juntaram-se ao pes­cador, elevando as suas vozes de indignação, porque o soba que costumava ir à Administração era aquele homem que acabava de chegar. O velho Xá-Mucuari nunca tinha tratado com os brancos, toda a gente o sabia, mesmo os brancos do Governo. Mas Caluis teimou que havia de levar o verdadeiro soba, porque eram essas as ordens que o secretário lhe dera.

Nessa altura, Xá-Mucuari saiu do alpendre pelo lado oposto onde estava o sipaio, que correu para ele julgando que ia a fugir.osoba voltou-se a tempo de se desviar da coronhada que lhe vinha direita às costas e deitou a mão à espingarda. Os velhos começaram a gritar e lança­ram-se sobre o capita, manietando-o. O leproso, que tinha ficado acocorado no terreiro, levantou-se e desa­pareceu no matagal, a gritar que queriam matar o soba.

Os homens que estavam escondidos no capinzal correram para a aldeia, enchendo-a de gritos. Mas quando chegaram ao terreiro, só tiveram tempo de ver o sipaio cambalear e soltar um urro, as mãos na garganta, e cair de borco. Dobrado para a frente, nu, com a faca vermelha de sangue na mão, o soba tinha os olhos muito abertos fixos na cara do sipaio.

Os velhos, apavorados com o que se passava, larga­ram o capita, que se aproveitou da confusão para fugir, e correram para o soba. Um deles, apressou-se a apanhar o pano e a pele de leopardo que lhe tinham caído na luta, afastando com um pontapé um cão que abocanhava a pele. Xá-Mucuari endireitou-se e olhou à sua volta, com um riso de triunfo. Só então reparou que estava nu. Atirou a faca para longe, enrolou a pele nos quadris e, de cabeça levantada, atravessou o terreiro e desapareceu no matagal.

O povo juntou-se à volta do corpo do sipaio, deitado de costas, com os olhos desmedidamente abertos, o sangue a gorgolejar na garganta.

— Está vivol — disse um deles.

Um esguicho de sangue muito vermelho saiu da garganta do velho sipaio e alastrou no peito da farda. As pálpebras tremeram-lhe e quedaram-se semiabertas sobre o branco dos olhos. Um dos homens baixou-se e estendeu um braço que o tocou ao de leve, recuando logo.

— Morreu — disseram várias vozes.

Nesse momento, um gemido entreabriu os lábios do Caluis. Um rapaz que estava a olhar para o sipaio estremeceu e lançou-se numa correria, como se tivesse visto alma do outro mundo. Um sussurro cresceu na mul­tidão, que recuou para o lado do alpendre.

— Não morreu — disse um velho, que se baixara sobre a cabeça do sipaio.

Um estremecimento percorreu o corpo do velho Caluis, que tentou ainda soerguer-se, mas as mãos que espalmara no solo foram-se fechando, os dedos a agar­rarem-se à terra, e a cabeça tombou-lhe para o lado. Os olhos rolaram nas órbitas fundas e quedaram-se, bran­cos, com duas lágrimas a tremeluzirem ao sol que caía a prumo no terreiro cheio de gente.

Uma velha desdentada empurrou o homem que estava ao pé do morto e debruçou-se sobre os seus olhos brancos. Deitou-lhe as mãos à cabeça e sacudia-a. Aos berros, perguntava ao morto o que fizera do seu filho, quando o levou da senzala com os soldados. O povo acercou-se. A velha tonta abanava o cadáver, tentando levantá-lo, e gritava pelo filho. Quando um homem a puxou pelos braços, arregalou os olhos e pôs-se a rir às gargalhadas. Depois, ficou muito séria a olhar para ele, como se o estivesse a reconhecer e, de repente, agarrou-se-lhe ao pescoço, a chamá-lo pelo nome do filho. Ele deu-lhe um empurrão com tanta força que a fez cair para trás, de pernas abertas. Os que estavam à volta, largaram uma gargalhada, a apontarem para o sexo nu da velha. Mas uma rapariga baixou-se, cobrindo-a aos olhares dos homens, e ajudou-a a erguer-se. A velha ria às gargalhadas.

Quando as duas mulheres desapareceram no terreiro, fez-se um grande silêncio e todos ficaram a olhar para o cadáver. E só então se aperceberam de que aquele crime lhes viria custar a ira dos brancos.

Inquietos e medrosos, voltaram as costas ao cadáver e acercaram-se dos três velhos que estiveram no alpendre com o Xá-Mucuarí. Mas eles nada tinham para lhes dizer e ficaram, confusos, a olhar uns para os outros.

Foi nesse momento que se ouviu um grito e logo um homem entrou a correr no terreiro, com as mãos na cabeça, a berrar que o soba estava morto. A multidão precipitou-se atrás do homem, matagal dentro. Os velhos correram a rouquejar de ira.

Perto do rio, numa pequena clareira, chão de santuário, com manipanços de olhos arregalados e pequenos fetiches dentro de cabaças e panelas de barro negro, viram o Xá-Mucuari pendurado pelo pescoço numa árvore.

Os velhos não deixaram ninguém tocar no corpo. Foram eles que o apearam da árvore, deitaram-no numa padiola e, aos tropeços pelo caminho, o trouxeram para a aldeia. O povo vinha atrás, em silêncio. Quando os velhos entraram no terreiro e puseram a padiola ao pé do alpendre, o mulherio rompeu aos gritos.

O mais velho dos três velhos que estiveram naquele dia no alpendre com o soba, arrastou um grande tambor para o meio do terreiro e começou a tocar, avisando os povos vizinhos que tinha morrido o soba Xá-Mucuari, o último grande chefe das terras de Camaxilo.

Um homem alto e espadaúdo, de lábios grossos e carapinha aos tufos, saltou para o meio do terreiro e tirou o tambor ao velho.

— Os brancos vão ouvir! — gritou ele.

O velho ficou de boca aberta e olhos espantados para aquele atrevimento. Mas várias vozes vieram da multidão, em apoio ao gesto do homem que ousara desrespeitar o velho, um dos três «homens bons» da tribo, sempre temidos e venerados. Os que apoiaram o gesto de rebeldia, eram homens novos que andaram por terras de brancos, nas minas e nas vilas sertanejas, onde lhes disseram que

o tempo dos sobas tinha acabado e que já não havia moleques, toda a gente era igual para os brancos, quem mandava era o branco do Governo, que tanto podia castigar o soba como o seu antigo escravo. E isso era verdade, porque eles próprios tinham visto, em Camaxilo, alguns sobas de barbas brancas apanharem palmatoadas, em frente de toda a gente, por não terem respeitado as ordens da Administração. Os tempos tinham mudado, todos o sabiam, mas aqueles três velhos queriam viver como antigamente, fazendo o que lhes desse na cabeça.

Estabeleceu-se grande confusão na aldeia. Gritos e insultos partiam de todos os lados. Uns queriam que se tocasse o tambor, em aviso aos povos para virem chorar a morte do soba e dançar o batuque no seu chão; outros teimavam para se não tocar, porque ninguém devia vir àquela senzala onde estava um sipaio morto, e os brancos iam julgar que se fazia um batuque de festa por terem assassinado um homem do seu serviço. E ainda por cima tratando-se do Caluis, que ajudou os brancos a ganhar a guerra contra eles.

Depois de muito barulho, o povo dividiu-se em dois grupos e foram logo escolhidos, como é de tradição e uso, os oradores. Um dos velhos conselheiros do soba, homem de aspecto grave e palavras duras, aferrado à tradição, avançou para o meio do terreiro. Fez-se silêncio. Passou a mão pela barbicha branca, olhou demoradamente para a gente do grupo contrário, e pôs-se a chamar à razão os homens novos, transviados da vida da tribo por maus exemplos, sem respeito pelo soba morto, pai do povo, e pelos velhos que o ajudaram a governar. Levantando a voz, os braços no ar, implorou aos espíritos dos grandes mortos da tribo, que velam pela vida do povo, que castigassem todos aqueles que não quisessem chorar o passamento do seu chefe e dançar o batuque dos mortos, porque tinham medo dos brancos e queriam ser seus escravos.

As palavras do velho eram escutadas em silêncio e com respeito. Alguns homens foram de tal maneira por elas tocados que se passaram para o seu grupo.

E ele recomeçou, grave e arrogante, ora a recriminar a gente nova entontecida pelos brancos, ora a insultar com raiva os cães negros que os serviam, como o fizera esse Caluis que tantas desgraças trouxera à sua terra e à sua gente que mal algum lhe fizera. Mas, agora, que o vissem bem, morto com a morte que mereceu, sem uma só mulher que o chorasse. A sua farda já não metia medo, não servia para nada, quem quisesse podia cuspir-lhe em cima. Era mais miserável que um cão morto e podre, que esse ainda teria dono para o chorar, ao passo que dele todos se riam. E fora o velho Xá-Mucuari, que nunca tre­mera em frente dos brancos, que o matara com a sua faca, à vista de toda a gente, como só um homem valente pode fazer. Xá-Mucuari vingara-se e ao seu povo. Agora, o espirito do seu pai, morto na cadeia de Camaxilo, estava feliz. Mas para que os espíritos dos grandes da tribo não castigassem o povo, todos deviam dançar ao som dos tambores e de cânticos, em louvor do soba, no batuque dos mortos.

Depois, o velho falou da aldeia e da terra, que nunca mais serviriam para ninguém viver de cabeça levantada, porque eram muitas as desgraças que pesavam sobre o povo.

— A gente não pode ficar aqui — disse o velho. — Vamos procurar uma terra boa, sem brancos e sipaios.

A multidão agitou-se. Cruzaram-se olhares carregados de dúvidas e todos ficaram suspensos.

O velho lembrou-lhes que aquela terra estava estragada pelos brancos, que há muito tempo deixaram de comprar borracha, pagavam mal a fubá e o milho e só queriam gente forte para as minas, onde morriam os melhores homens da aldeia. E ainda vinham buscar velhos e crianças e as próprias mulheres para traba­lharem nas estradas.

Vamos para o Bula-Mataril

Fora! — gritaram os adversários.—Já não há terra sem brancos. Esse velho está doido I

O velho foi levado em triunfo para o seu grupo, a que se foi juntar, corrido pelo sarcasmo da gente nova do outro lado, um homem vestido com panos de casca de árvore, o mais pobre da aldeia. Os velhos receberam-no com gritos festivos, que entusiasmaram mais dois homens a passarem-se para o seu grupo.

Mas já os adversários barafustavam, pedindo silêncio para o povo poder ouvir o seu orador e, depois, escolher cada um o melhor caminho.

O homem que arrancara o tambor das mãos do velho avançou para o meio do terreiro. Alto e forte, com uma camisa esfarrapada a sair dos calções remendados com panos de várias cores, parou, de pernas abertas, mãos na cinta, e olhou num desafio para os velhos, que lhe vol­taram a cara. Um velhote casquinou, mas fez-se logo silêncio a pedido de várias vozes.

Fala, fala, Comboio! — gritaram os seus partidários. Sem rodeios, ele começou a insultar os velhos, ora

com palavras gritadas e gestos ameaçadores, ora em tom chocarreiro, arrancando gargalhadas aos amigos. Acusou-os de serem «manhosos como macacos», de cumplicidade na morte do sipaio, que não viera ali fazer mal a ninguém, bom amigo dos brancos do Governo e de todos os seus patrícios. Só porque vinha buscar os homens que fugiram das minas, que o soba e eles tinham escondido no mato com as mulheres, o assassinaram. O soba matara-o por medo de ir preso para Camaxilo, sem que um só daqueles três velhos rancorosos lhe fosse à mão. E, agora, que sabiam que os brancos viriam pedir contas daquele crime e do suicídio do soba, de que também eles eram os cul­pados, estavam a desafiar toda a gente para fugir, porque tinham medo.

Assobios e gritos de protesto partiram do grupo dos velhos. Mas depressa se fez silêncio e o Comboio continuou a arengar no mesmo tom.

Voltado para os três velhos, perguntou-lhes onde havia palmo de terra que os brancos não conhecessem para eles esconderem o povo. E, como ninguém lhe res­pondesse, soltou uma gargalhada de troça que provocou o riso dos amigos. Depois, falou no Bula-Matari, terra longe que ele conhecia muito bem, onde vira gente a trabalhar nas estradas com correntes ao pescoço. E, mordaz, perguntou se era para levar aos brancos do outro lado da fronteira que eles queriam o povo, que não estava habituado a trabalhar preso com correntes.

Os velhos levantaram a cabeça, os olhos cheios de ira, e cuspiram para a frente com desprezo. E, sem uma palavra, levantaram-se e abandonaram o terreiro. Uma gargalhada reboou nas suas costas.

Comboio voltou a acusá-los de serem a causa de todas as desgraças do povo, desde o tempo das guerras, vivendo à custa do trabalho dos homens novos, que tratavam como moleques, entregando-os aos brancos para irem trabalhar nas minas e nas estradas, enquanto escondiam no mato os seus filhos, vadios e ladrões que passavam a vida em bebedeiras e desordens.

— A gente é que paga os impostos desses ladrões I — gritou ele.

Um velhote, que estivera desde o princípio com os conselheiros do soba, levantou-se e, voltando-se para os companheiros, disse:

— Ele está a falar verdade.

E afastou-se, de cabeça erguida, o pano preso aos ombros, a ondular, e foi acocorar-se ao lado de um rapaz do grupo do Comboio.

A sua atitude quebrou a indecisão da maioria que apoiava os velhos. Um mocetão, com uma cicatriz da orelha à boca e dentes limados, insultou os que se passa­ram para o grupo dos novos, olhando num desafio para o Comboio. De longe, os três velhos nem queriam acre­ditar no que viam.

— Continua, Comboio — pediram várias vozes.

Bem de frente para o homem da cicatriz, Comboio afirmou, aos gritos, que ninguém iria para a cadeia de Camaxilo por conta dos velhos.

— Quem deixou o soba matar é que vai — gritou ele. E ameaçou com prisão todos aqueles que ficassem

com os velhos, porque por muito que corressem para atravessar o Luita, os brancos e os seus sipaios chegariam lá primeiro.

Estabeleceu-se barafunda no grupo dos velhos e subiram alto os protestos e ameaças, mas nada conteve o grande número que, à uma, correu para o lado contrário.

— Aprendeu com os brancos — regougou o homem da cicatriz, olhando com ódio para o Comboio.

Já nada detinha o povo que olvidara a tradição de respeito aos velhos e o temor às leis da tribo. O seu passado estava com o soba morto. Xá-Mucuari, ao dar-se à morte para não sofrer afrontas dos brancos, libertara o povo de um passado que ele próprio não pudera manter em prestigio.

Todos viam que os velhos queriam prolongar o sacri­fício do povo, que era a sua própria razão de vida e de mando, e essa certeza e as palavras do Comboio levaram-nos a repudiar o passado, embora ninguém tivesse cons­ciência do que seria o seu novo destino.

O mocetão da cicatriz, quando se viu rodeado por uma meia dúzia de velhotes, perguntou ao povo, com ar de troça, se alguma vez alguém viu um grande da tribo usar um nome posto pelos brancos, que ninguém sabia o que significava. Ele chamava-se Dumba, o Leão, outro Mutondo, a árvore, nomes que se sabia o que queriam dizer; mas Comboio o que era?

Os velhos riram alto. Comboio olhou-o com raiva e, apontando para o pano que ele trazia, perguntou-lhe quantas vezes a sua mulher tinha ido a Camaxilo dormir com o branco para ganhar o seu pano. As suas palavras foram acolhidas com gargalhadas estridentes e assobios. Ele mesmo riu, satisfeito com o que dissera e todos sabiam ser verdade.

Foi nesse momento que «a primeira mulher» do soba apareceu no terreiro, envolvida nos seus grandes panos vermelhos, seguida pelas outras quinze mulheres do Xá-Mucuari. A multidão afastou-se, em silêncio e com respeito. Os velhos aproveitaram a oportunidade para ir buscar o homem da cicatriz e levá-lo para fora do terreiro. No fundo da aldeia levantou-se, à volta do cadáver do soba, o choro das suas mulheres e das car­pideiras.

Ao ver alguns homens dirigirem-se para esse lado, Comboio gritou:

— Gentes I Vamos a Camaxilo levar o sipaiol

Vamos, vamos I — gritaram de todos os lados. Com um sorriso de triunfo na boca escancarada, de

dentes limados e aguçados como pregos. Comboio dirigiu-se para onde estava o corpo do Caluis, seguido pelo povo. Amarraram o cadáver a um pau, que dois homens escolhidos à sorte carregaram de ombro a ombro. De espingarda ao alto, Comboio abriu caminho. Abandona­ram a aldeia, atravessaram o capinzal e meteram à estrada. Um velhote, que estava sentado numa esteira à porta da cubata, com as pernas chagadas ao sol e às moscas, o peito metido para dentro pintado de barro branco, os olhos pequenos e redondos a brilharem de febre, pôs-se a dar risadinhas, dizendo:

Comboio ficou sobal Comboio ficou soba, ó gen­tes I — E abanava as mãos por cima da cabeça.

Já iam longe, na poeira da estrada, quando ouviram o tambor da aldeia. Pararam à escuta. O cheiro do cadá­ver empestava o ar. O toque do tambor transmitia às senzalas vizinhas a morte do soba, mas não convidava ninguém a vir à sua terra, pedindo somente a todos os povos que chorassem nas suas aldeias a morte do grande Xá-Mucuari, «valente como o Leão e esperto como a lebre». Que o chorassem todos, todos, porque ele fora grande e bom e nunca deixara o branco pôr-lhe as mãos na barba, pediam os velhos pela voz cava do tambor, que as brisas levavam, de aldeia em aldeia, na manhã luminosa.

Comboio quis voltar a trás e trazer de rastos o homem que estava a transmitir no tambor, mas os companheiros opuseram-se, que deixasse os velhos, porque não tarda­ria o ajuste de contas com os brancos, e que andassem todos depressa para chegarem cedo a Camaxilo, onde já devia estar o capita que viera com o Caluis.

Os velhos e as mulheres levaram o corpo do soba para a floresta e sepultaram-no sob uma árvore, colo­cando na campa os objectos do seu uso e a um extremo um pau, com uma cabeça esculpida a negro, enterrado ao alto. Era a imagem de Camuari, o deus dos mortos, que ali ficava a velar pelo último grande soba de Camaxilo.

Nesse momento, apareceram os cinco homens que tinham fugido das minas e as suas mulheres, acompanha­dos pelo mocetão da cicatriz. Falaram com os velhos e, prestos, dirigiram-se à aldeia, onde só estavam os doentes e aleijados. Lançaram fogo às palhotas e arrasaram os celeiros. Gritando como doidos, os enfermos vieram de rastos para o terreiro, à volta do qual subiam alto as labaredas das cubatas.

Quando a aldeia era um clarão, com nuvens de fumo negro no céu baixo onde se perdiam os gritos dos estro­piados, eles, os velhos e as mulheres entraram no matagal, passaram o rio a vau e ganharam destino de nómadas.

Gregório Antunes entrou com o automóvel a toda a velocidade na curva da estrada larga e ganhou a recta da savana. Mas, ao ver pela frente uma multidão de negros, fez ranger os travões numa paragem brusca que atirou os passageiros do banco de trás uns contra os outros. Soltou um palavrão, abriu a porta e saiu de pistola em punho. Anacleto, Pancário, o sipaio Canivete e o capita que fugira da aldeia do Xá-Mucuari, todos armados, saltaram dos estribos.

— Não se afaste do automóvel — recomendou o velho colono ao administrador.

Os negros, mal viram as armas, correram, em pânico, para as valetas, onde se agacharam levantando os braços.

No meio da estrada, ficaram Comboio e os homens que transportavam o corpo do Caluis. Eles tremiam tanto que o cadáver oscilava como se estivesse numa rede de balouço.

E veio a gente para istol — insurgiu-se Albano Sampaio, saindo do automóvel com o secretário e Joaquim Américo.

Foram juntar-se aos outros, sem tirarem do carro as velhas M. H. do tempo das «guerras negras», tão ferru­gentas que só por acaso poderiam fazer fogo.

Comboio aproximou-se dos brancos, com a espin­garda e o cofio estendidos, que o capita se apressou a tomar, e saudou-os humildemente.                         Ao ver o colono Anacleto, seu antigo patrão, alegrou-se e começou a contar, na língua da terra, o que se tinha passado com o sipaio.

Levem isso para longe — mandou o administrador aos homens que traziam o cadáver, cujo cheiro se tornara insuportável.

Anacleto interrompia o Comboio, de momento a momento, para informar o administrador, que poucas palavras conhecia da língua dos naturais. Atento, o sipaio Canivete vigiava a conversa, a olhar desconfiado para os homens da senzala.

Quando Comboio disse que o Xá-Mucuari se tinha suicidado, Anacleto deu um salto para trás, abriu muito os olhos e gritou:

Ah! O malandro matou-seI — E atirou o chapéu ao chão, pisando-o com desespero.

Estava tão fora de si e tão ridículo, que os outros largaram-se a rir. Envergonhado, recompôs-se e afastou-se, passando a mão descarnada e trémula pelo queixo. «Raça danada I», dizia entre dentes. Encostou-se ao automóvel, a torcer as mãos, completamente desinteressado do resto.

Comboio contava, com assomos de indignação, o que os velhos fizeram, querendo levar consigo o povo para o Congo Belga, mas que ele se opusera, porque era amigo dos brancos.

Bravo, rapaz! — disse o administrador. — É assim mesmo que se faz. Vou dar-te um bom mata-bicho.

o negro riu com a boca toda aberta. Depois, per­guntou ao povo se tinha ouvido bem o que dissera o administrador e pediu ao sipaio que traduzisse para a sua língua as palavras do «branco grande», para que todos ouvissem bem. À uma, todos se mostraram muito satisfeitos ao ouvirem o sipaio e recomendaram-lhe que transmitisse ao administrador o seu contentamento.

Vamos para a senzala — ordenou Gregório Antunes. Comboio saltou para o estribo e o automóvel largou

pela estrada da savana. Atrás, no meio de grande alga­zarra, o capita, com a arma ao ombro e o cofio do morto na cabeça, tomou a dianteira do povo.

Vergados ao peso do cadáver, os dois carregadores seguiram para Camaxilo. Perto de um ribeiro, encontra­ram João Calado e dois filhos do velho Bernardo. Contaram-lhes o que se tinha passado na aldeia e na estrada e afirmaram que os brancos tinham ido matar os velhos.

Só tem veio. Não tem guerra, não — disse João Calado.

Tá bom.   Não tava gostando disto, não — falou Luís Bernardo, que viera todo o caminho a queixar-se dos pés, por não estar habituado a andar com botas, que só o pai fora capaz de o obrigar a calçar, porque não queria que «filho seu fosse descalço para a guerra».

A gente vai embora — propôs Calado.

Não volta, não — contrariou o outro filho de Ber­nardo. — Seu administrador mandou.

A gente vai —apoiou Luís.— Pode panhar calquer cousa na senzala.

Panha quê? Tá pensar negro tem cousa presta? Não tem não.

E João Calado voltou-lhe as costas, para regressar a Camaxilo.

Os outros ficaram um momento indecisos; depois, resolveram continuar a viagem. Apressaram o passo e ainda foram apanhar o povo perto da aldeia, colocando-se ao lado do capita, muito importante com a espingarda e o cofio que herdara.

Quando começaram a subir a colina, viram no alto os fumos do rescaldo do incêndio.

Malandros queimou senzala I — disseram os mulatos. Ao aperceberem-se do que se passara na sua aldeia, os homens romperam aos gritos e as mulheres arrepela­ram-se num choro desesperado. Os homens largaram a correr para a senzala, sem ligarem importância aos insistentes chamados do capita.

No meio do terreiro, onde ardiam ainda os madeiros do alpendre, o povo encontrou os brancos a conversar. Passos além, o sipaio remexia com um pau num monte fumegante, de onde tirara um manipanço meio queimado. Mais adiante, viram o Comboio acocorado junto de um corpo enrodilhado. Os que dele se abeiraram, reconhe­ceram, morto, o velho da perna chagada que trazia sempre o peito coberto com barro branco, como recomendara o curandeiro, para afastar a doença.

— Morreu no fogo — disse Comboio.

O velho tinha as costas, pernas e braços queimados, mas a cara, tapada com as mãos, estava intacta, o que impressionou toda a gente, provocando comentários supersticiosos.

De vez em quando, um grito de horror chamava a atenção do povo, e os mais afoitos corriam a ver do que se tratava. E era sempre a descoberta de mais um cadáver, a maior parte das vezes de tal maneira queimado que não se podia identificar.

Mas no meio de tantas desgraças eles tiveram a con­solação de saber que as lavras, à beira-rio, estavam intac­tas. E isso alegrou-os tanto que, por momentos, esque­ceram os mortos.

Um homem veio a correr das bandas do rio e trouxe a notícia de que os velhos não tinham levado nem inuti­lizado os barcos. A alegria do povo foi tâo grande que só se ouviam gargalhadas.

São piores que bichosI — disse o administrador.— Nem a morte respeitam I

Ficou mandioca e os barco — disse o sipaio, que compreendia muito bem a alegria do povo.

Estavam todos a discutir se deviam ou não edificar a aldeia sobre aquelas cinzas ou noutras terras, mais para dentro do matagal, quando o administrador mandou reunir o povo, chamando o Comboio para o seu lado.

Gregório Antunes propôs a escolha do novo soba, que fosse da vontade de todos, frisou. sipaio Canivete traduziu as suas palavras na língua dos naturais.

A multidão manifestou-se com alegria ruidosa, porque assim é que estava certo, que o «branco grande» procedia bem, visto ser esse o costume da terra.

De mãos nos bolsos, a barriga espetada, o adminis­trador andava de um lado para o outro, defronte da multidão, tecendo elogios ao Comboio, um «homem esperto e valente», com mais valor que a maioria dos sobas da Circunscrição, que sabia falar português e era amigo dos brancos, com quem estava acostumado a viver.

Comboio não cabia em si de contente. Mas o povo começou a esmorecer, quando o sipaio lhe traduziu as palavras do administrador. Alguns velhos entreolharam-se e trocaram palavras de desagrado, olhando desconfiados para o Comboio.

O que é que esses velhos querem? — perguntou Gregório Antunes.

Não estão satisfeitos, senhor administrador — disse Pancário, intrometendo-se propositadamente. — Parece que não gostam do Comboio.

Pois é esse mesmo que nos serve para soba. Canivete apressou-se a informar o povo da decisão

do administrador. E, por sua conta, ameaçou de prisão quem não respeitasse as ordens do Governo.

Eles querem o Comboio para soba, não é isso? — perguntou o administrador.

Si siô, falou. Tá contente — disse o sipaio.

E voltando-se para o povo, mandou que todos agra­decessem ao administrador a escolha do soba e por lhes ter perdoado a morte do sipaio e consentir que ficassem nas suas terras.

Com palmas e gritos, todos agradeceram o favor do «branco grande» os deixar continuar a viver nas velhas terras.

Está bem —disse Gregório Antunes.— Mas agora calem-se.

Os home tá contente, nosso administrador — disse Canivete; e olhou significativamente para o Comboio.

Dois velhos aproximaram-se de Gregório Antunes e pediram-lhe que dissesse ao povo que o Comboio não podia bater em ninguém, tão-pouco tirar o dinheiro dos homens que regressavam das minas. Também não queriam que ele obrigasse as mulheres, que tivessem os seus homens a trabalhar nas estradas, a dormirem com ele.

Comboio protestou, que não era preciso estarem a dizer essas coisas ao branco, porque ele não ia ficar soba antigo, a comer o que era dos outros. Mas que castigos sempre os sobas deram aos homens malandros e que ele também os daria aos que não cumprissem as ordens da Administração.

Os velhos não arredaram pé enquanto o administra­dor os não atendeu, por interferência de Manuel Pancário, que se arvorou em intérprete ao ver o sipaio esta­belecer confusão, com o propósito de servir o Comboio, para depois lhe exigir o pagamento dos favores que desde o princípio lhe prestava.

Castigos só na Administração — determinou o admi­nistrador.

E correu com os velhos, perguntando-lhes se não tinham vergonha de andar vestidos com peles, a cheirarem mal como os bichos, em vez de trabalharem para comprar panos e sabão.

Foram-se os negros, convencidos de que o Comboio não ousaria seguir o exemplo dos antigos sobas, porque o administrador fora claro: castigos só na Administração.

Mas ainda os brancos se não tinham ido embora e já o novo soba falava aos berros com a sua gente, a marcar serviços e a distribuir safanões aos que não corriam de pronto a cumprir as suas ordens.

A caminho da estrada, o administrador encarregou o sipaio e o capita de irem prender os velhos e todos os que os acompanhavam.

Toda essa cachorrada — gritou ele ao entrar no automóvel.

O senhor administrador esqueceu-se do capita...

Tem razão, Silva. — E voltando-se para o capita:

Ó rapaz, como te chamas?

O capita atrapalhou-se, tirou o cofio, pôs e tirou a arma do ombro, sem saber como estar em frente do administrador.

É   Capango,   nosso administrador — respondeu o sipaio por ele.

Capango... Não, esse nome não presta. Antunes pensou   um momento, sem que nenhum

nome lhe ocorresse.

Como diabo se há-de chamar a este tipo? — disse, sem se dirigir a ninguém. — Ah I já sei, já sei — e sorriu-se. — Ouve cá, rapaz, tu agora vais ser sipaio e o teu nome é Batata. Sipaio Batata.

Os olhos do negro riram ao saber-se sipaio, mas não gostou do nome.

Fica no lugar do Caluis, mas com metade do ordenado, até ver o que dá —ordenou Gregório Antunes ao secretário.

Nosso administrador... — balbuciou o novo sipaio.

O que há?

Batata não bom... Capitão é mió...

Estás doido! Qual capitão, qual história!   Batata está muito bem.

Si siô...

Quinze dias depois, os sipaios regressaram a Camaxilo e disseram que os velhos e seus companheiros tinham atravessado a fronteira, no rio Luita, e que os belgas lhes deram terras e sementes para trabalharem durante um ano, sem pagar impostos.

 

Vieram as chuvas e os ventos rijos de tempestade. As manhãs frescas e claras da época do cacimbo, com flores abertas ao sol sob o zumbido das abelhas, perfu­mando os caminhos limpos de capim, tornaram-se som­brias e quentes. A terra começou a exalar calor de estufa e o céu carregou-se de nuvens cinzentas e negras, que marchavam açoitadas pelo vento.

Nos carreiros do gentio, por planícies e florestas até às aldeias pardacentas, cortados pelas chuvas e invadidos pelo mato, aninhavam-se cobras e cricrilavam grilos ver­melhos. Nas estradas de terra encarnada, com poças de água negra e regos de enxurradas, passavam macacos doirados e azuis, de pêra branca e olhos maliciosos, à procura de frutos.

O Sol aparecia tarde, rompendo a custo os nevoeiros da planície, cobria a vila e afundava-se no vale esfarra­pando a neblina, estendida sobre o rio a tresvasar do leito. As águas avermelhadas de terra e flora, que o rio trouxe de longe, cobrem a água morta dos juncais, dos esteiros onde o negro ancora as almadias e das lagunas que são viveiros de mosquitos e bebedoiros de antílopes e feras na época seca.

O fio de água de há três meses, sumindo-se no fundo do vale sob o verde sombrio da floresta, tornou-se em pouco tempo rio caudaloso, rumorejante, cavando fundo a terra das margens e arrancando pela raiz árvores que car­rega no dorso ao longo da selva para a estepe do Cuilo.

O homem nu não se afoitava com a sua almadia a ganhar o caminho das aldeias ribeirinhas. E os bichos há muito deixaram de procurar os seus bebedoiros da quadra do cacimbo, à sombra da floresta que cobre o vale.

Os homens e os bichos abandonaram, medrosos, a fúria do rio. Só a floresta lhe oferece luta, obrigando-o a revolver-se no labirinto das suas árvores e a desviar-se aqui e ali das barreiras de cipós. Enfurecido, o rio atira-se contra a floresta, que o tenta apertar no leito, invade-lhe as terras sombrias, abre-lhe rasgões por onde estende os seus braços, envolvendo-a e pondo a nu raízes seculares. E segue, bramindo, para a planície que logo se lhe oferece, dando-lhe largas para se espraiar. É ali, na terra nua de horizontes desolados, que se lhe quebram as energias. A sua fúria abranda pouco a pouco, deixa-se de ouvir o seu bramido, e os despojos que ganhou, em dura luta, à floresta, vão ficando pelo caminho, na planície alagada para onde fogem os peixes atormentados pela impetuo­sidade da corrente. E segue, brando, no seu leito natural, através da planície, onde as águas paradas ao longe vão enegrecendo sob as asas das aves que descem em voos rápidos para apanharem pequenos peixes.

Ao fundo da estepe, com uma mancha negra de floresta na linha do horizonte, o rio entra num tremedal, desaparece sob os Iodos verdes e negros, com flores ver­melhas, amarelas e azuis a perfumarem o céu baixo e sombrio, para surgir mais adiante, junto à floresta, por onde abre caminhos tortuosos que o levam para a boca de outro rio.

Muito atrás ficaram, emergindo das águas baixas da estepe, os despojos que ele trouxe do vale e da floresta. É então que o sertanejo mete a almadia nas águas mortas, guiando-a com uma vara comprida, que vai enterrando até encontrar chão duro para a impulsionar, e lança na corrente os cestos de pesca.

As terras negras das margens do rio, onde durante os meses de cacimbo verdejaram as hortas dos colonos e as plantações de milho e mandioca dos sipaios e capitas, desapareceram sob as águas avermelhadas que descem, arrastando terra, arbustos e capim, a encosta pelos córre­gos que, na época seca, eram trilhos por onde se ia em poucos minutos à povoação dos comerciantes.

As águas do rio e das chuvas trabalhavam para o colono, depositando na terra de plantio, que suas com­panheiras e filhas amanhavam, o húmus rico da floresta. Mais tarde, as mulheres juntar-lhe-iam as cinzas das queimadas.

No vale, a meia encosta, as copas das grandes árvores apareciam à tona da água. Ali, a água parava em grandes poças, porque o rio não tinha forças para subir mais. Os jacarés vinham aquietar-se nessas águas paradas e pouco fundas, olhando, horas e horas imóveis, com olhos ensonados para a terra desolada. Mais adiante, sobre capim rasteiro, cabriolavam pares de lontras. Patos-bravos grasnavam no céu de cinza.

Nas noites negras e quentes, com estrelas no fundo do céu, os cães selvagens vinham uivar à entrada da vila, sobre o vale.

Anoitecia cedo. Poucos negros vinham à vila e não se demoravam para a noite os não surpreender nos caminhos de feras.

Os comerciantes molengavam todo o dia, encostados ao balcão imundo das lojecas. Quando aparecia um agri­cultor indígena a vender géneros do seu celeiro, para pagar uma dívida ou imposto atrasado de parente pobre que os sipaios procuravam para os trabalhos públicos, ficavam ao balcão, de conversa pegada. onegro contava da sua vida e da vida do povo. Depois, falava dos brancos e pedia conselhos ao comerciante sobre uma queixa que queria apresentar na Administração.

Na Secretaria, Sampaio e Américo bocejavam, amole­cidos pelo calor e sem terem nada que fazer. Estavam cobra­dos os impostos e era raro passar-se uma guia de trânsito, porque o indígena não gosta de viajar em época de tro­voada. E poucas questões lhes eram trazidas pelos homens nus, que só quando de todo descrêem da justiça do soba apelam para a do branco, acabando, em geral, por voltar ao soba e sujeitarem-se à sua decisão.

Quando trovejava, os funcionários fechavam as portas e a janela sem vidros da Administração, acendiam o can­deeiro e esperavam que chegasse a hora de fechar a Secretaria.

o secretário andava a percorrer a região há mais de três meses, porque se atrasara no recenseamento da popu­lação e fiscalização dos seus bens, sempre debaixo do olho do branco.

As notícias que ele mandava pelos estafetas eram inquietantes. Aldeias que se tinham despovoado, outras reduzidas a metade pela gripe e varíola, muita gente ao deus-dará e crianças errando pelas aldeias acossadas pela fome. A par disso, muitos indígenas, cansados da pobreza da terra da planície e dos recrutamentos de trabalha­dores para as minas, tinham mudado não se sabia para onde. Sipaios e capitas andavam a bater o mato à sua procura.

Só o administrador e o secretário se mostravam inquie­tos com a mortandade e deserções, porque as suas per­centagens sobre o imposto indígena dependiam do número de contribuintes.

Gregório Antunes, tolhido pelo reumatismo, estava de cama há perto de um mês, enchendo D. Jovita de cuidados e maçadas.

Todos os dias, Américo, que ficara a substituir o secre­tário, ia até junto da sua cama receber ordens e, uma vez por outra, levar-lhe papéis para assinar. Demorava-se a ouvir as lamentações do doente, que «não era homem para estar de conserva entre lençóis», e despedia-se sem­pre com as mesmas palavras banais de conforto.

  1. Jovita raramente aparecia. Mas Joaquim Américo sentia-a a cirandar pela casa e a falar com os criados, sempre de mau humor. Viu-a duas vezes, porque o marido a chamara, e achou-a pálida, os lábios descorados e o olhar mortiço. Falara-lhe só para o cumprimentar, com enfado, esforçando-se por ser atenciosa para o marido.
  2. Jovita tinha mudado, como o tempo. Que era feito do seu olhar alegre e do sorriso com que a todos se dirigia? Agora, seu rosto é sombrio, o olhar vago e triste, os lábios murchos, os gestos moles. Já não trazia flores no cabelo, agora mal penteado e sem brilho.

A solidão em que vivia e a doentia quadra do ano, quente e abafada durante o dia, as noites frias e nevoentas, traziam Joaquim Américo irritado. Mal dirigia a palavra a Sampaio, enfastiando-se a ouvir-lhe larachas e gaba-rolices sobre mulheres. Por um nada descompunha os sipaios, que o olhavam admirados.

«Este branco tá ficando zangado como os outros», comentavam eles.

Era com grande sacrifício que ia à casa do adminis­trador. E como se fosse de propósito, Antunes demorava-o mais tempo, mesmo depois da hora do serviço, a falar-lhe da sua vida, dos trabalhos duros que passara por essa colónia fora, das fomes e sedes no tempo das campanhas da Ocupação, e da sua carreira administrativa, por circuns­crições do mato, mais de trinta anos de canseiras, rodeado de injustiças e invejas, sem amealhar vintém. «Funcionário com fortuna, só roubando», dizia-lhe Gregório Antunes.

Num desses dias, em que só dispensou o aspirante à hora do jantar, disse-lhe, fingindo-se desinteressado, que o Silva tinha «um pecúlio bem bom, umas dezenas de contos no Banco da Metrópole e Colónias e uma cota numa mercearia de Lisboa».

—é o que dizem. Está cheio dele. O senhor é que não tem vintém, nem eu. Mas é melhor assim, Américo. Mãos limpas, é que é preciso.

A vida de Joaquim Américo decorria monótona e tediosa. Fazia por não pensar em nada; mas pesava-lhe a inutilidade da sua própria vida. «Enterrado vivo...», lasti­mava-se a si mesmo. Outras vezes cobria-se de injúrias. Sentia que qualquer coisa de anormal se passara, tirando-lhe a vontade para tudo, inibindo-o de procurar inicia­tivas. Começara a neurastenizar-se e vivia a descobrir dificuldades em tudo e por tudo, como se quisesse justi­ficar-se da sua vida parada, inútil, um deixar correr o tempo, um esperar o amanhã para sair da apatia que o prostrava.

Um ano depois de ter chegado a Camaxilo, o tempo como que deixara de contar para a sua vida. O ar morno em que se movia era como um veneno que respirava e o entorpecia como fumo de ópio, lentamente. oque ele censurara, ao aportar a Angola, aos colonos, vendo-os lastimar-se, amargurados e descrentes, fatalistas ante o destino, como se eles mesmos não tivessem de o cons­truir, era precisamente o que se estava a passar consigo. De longe em longe, despertava e tinha nítida e dolorosa consciência da sua atitude passiva. Sobressaltava-se. De súbito, um mundo de projectos arrebatava-o, insuflava-lhe vida. Mas esse alvoroço durava pouco. E sobrevinham crises de abatimento de que saía mais cansado e triste, irreco­nhecível aos seus próprios olhos. A solidão envenenara-lhe a vida. «Como a gente muda murmurava a cada passo a si mesmo. E ficava-se, horas seguidas, afundado na espreguiceira, de olhos semicerrados, absorto.

Os seus dias decorriam vazios e tediosos. Ia de casa para o serviço e do serviço para casa, sempre pelo mesmo caminho, vendo sempre as mesmas caras e os mesmos gestos, sem ter ninguém com quem pudesse conversar. Vasconcelos fazia-lhe falta, embora entre eles nada houvesse de comum. Mas fora seu companheiro durante três anos, dia a dia, e o hábito de o ver a escutá-lo, momentaneamente entusiasmado com os seus projectos, sem todavia os compreender bem, e a sua própria presença física, o calor da simpatia, tudo isso criara nele uma neces­sidade, bruscamente perdida e não compensada de qual­quer maneira. Vasconcelos fora sempre uma pessoa em que ele repousara, vivendo momentaneamente, enquanto o escutava, os seus problemas. Ele falava-lhe calmamente, embalando-se com as suas próprias palavras, vivendo as suas ideias. Às vezes lia-lhe passagens dos seus livros predilectos, mas fazia-o mais para si mesmo do que para o companheiro. A princípio, tentara interessá-lo nos problemas sociais que o entusiasmavam. Vasconcelos concordava com tudo quanto lhe dizia, mas, em verdade, era indiferente ao mundo das ideias. Era incapaz de ler qualquer obra séria. Só gostava de romances policiais. Sampaio e Silva eram pessoas detestáveis, com quem Américo só falava o indispensável. Vivia enterrado em silêncio e desolação. Agora, nem à noite jogava, coisa que viera aprender a África e que o entretinha apesar de não sentir inclinação para jogos de azar. «Matar o tempo é a única coisa que se pode fazer nesta terra», dissera-lhe Vasconcelos quando o ensinou a jogar as cartas. Mas nem isso lhe restava. Ficavam-lhe os livros, mas nem sempre tinha disposição para ler.

Nos últimos tempos mal suportava ouvir os colegas, os nervos crispavam-se-lhe e tinha de fazer grande esforço para se dominar. Nesses momentos, tinha vontade de fugir, de aparecer de repente no meio de uma multidão que falasse a sua linguagem, que tivesse os seus gestos, que cami­nhasse os seus passos perdidos... Mas à sua volta só havia a terra longe, o céu sombrio, e os homens nus das aldeias de palha a viverem o seu destino desgraçado, a sonharem com o seu velho mundo perdido. E ele sem coragem para voltar as costas a tudo aquilo e reentrar na sua vida, construir o seu destino. «Estou-me a afundar...», dizia a si mesmo, acabrunhado. Mas não se decidia a romper com aquela vida que já ia para quatro anos, sem ter juntado o dinheiro suficiente para abandonar a África. E abismava-se num tédio de enlouquecer.

Ao cair da tarde, Sampaio passava à porta da sua casa, a caminho da povoação-de-baixo, saudava-o de largo com um «até logo» que era sempre o dia seguinte, porque regres­sava a desoras, quando não pernoitava em casa do Pancário, de quem depressa se fizera amigo.

Quando a noite se fechava, negra e triste, sobre a vila, metia-se em casa, acendia o candeeiro de petróleo e todas as velas, porque já não podia suportar a escuridão das primeiras horas da noite e punha-se a contar os seus próprios passos através das três divisões da casa. Quando se cansava, ia ao quintal, demorava-se à porta da cozinha a fazer perguntas inúteis ao criado e cozinheiro. Depois, regressava a casa, atirava-se para cima de uma cadeira de verga e lia qualquer livro e os jornais da Metrópole, de ponta a ponta, demorando-se nos anúncios de pedidos e ofertas de empregos, a cento e cinquenta escudos de ordenado mensal para dactilógrafas, empréstimos de quinhentos escudos sobre a mobília do quarto de dormir, de oferecimento de serviços de governanta ou dama de companhia só pela comida, de negócios sob o máximo sigilo e de outros muito escuros. Outras vezes, enterrado na espreguiceira, deixava passar, lentas e amarguradas, as horas do entardecer, pensando à toa, incapaz de se fixar numa ideia ou mesmo numa recordação agradável, numa indiferença por tudo e todos. O criado entrava sem ele dar por isso e perguntava-lhe se queria jantar. Estre­mecia e abria os olhos. Era como se tivesse acordado no fundo de um abismo, envolvido em sombras e silêncio. Bocejava e dizia, vagarosamente: — «Que tédio... que tédio...»

Durante o jantar conversava com o negro António, enchia-o de perguntas, a que ele raramente sabia respon­der ou o fazia dizendo disparates. Chamava-lhe burro, perguntava-lhe o que é que tinha dentro da cabeça e queria saber se ao menos havia notícias da terra. Falava por falar e raras vezes dava atenção ao que o negro dizia.

Foi numa dessas conversas que soube que entre os mulatos e negros «civilizados» se falava com azedume do Sampaio e da filha mais nova do Alfredo Anacleto, a Maria. Um moleque tinha-os visto ao lusco-fusco, no mato das traseiras do quintal do colono, a cochicharem, muito chegadinhos, e fora avisar os mulatos.

Isso é mentira — disse Joaquim Américo para cor­tar a conversa.

Mulato fala muito, patrão —disse o negro, para lhe agradar.

Dias depois, num domingo de sol pálido, Joaquim Américo foi à povoação dos colonos e parou uns minutos na varanda do velho Bernardo.

Há muito tempo que o não via, senhor Américo. E engordou, sim, senhor!

Aproveitei o sol e vim desenferrujar as pernas.

Fez muito bem. Tem feito um tempo dos diabos! A casa torna a gente velhos. E o senhor ainda está muito novo para se meter no cantinho. Isso é bom para mim, atirado para aqui como um trapo velho...

E por cá vai tudo bem?

Vamos indo, senhor Américo. Ali o Calado é que anda adoentado. É do tempo e dos mosquitos.

E novidades, senhor Bernardo? O senhor anda sempre bem informado...

o velho protestou, a rir, que não, que passava o tempo ali no seu cantinho, «a pensar na porca da vida», e que ninguém gostava de falar com gente velha e surda.

Olhe, o seu colega Sampaio ainda se demorava por aqui, mas aborreceu-se e nunca mais passou cá à porta. Rapazes...

Se calhar foram intrigas... — brincou Américo.

Qual intrigas, senhor Américo... — E o velho deu uma risadinha, dobrando-se para a frente, a piscar os olhos com malícia.

Houve um pequeno silêncio. Depois, o velho disse:

Esse seu colega é o diabo...

Então?

Olhe, senhor Américo, não se deve falar sem ter a certeza, mas com o senhor a gente pode abrir-se, que é homem sério. Já nos conhecemos há muito tempo.

Calou-se por um momento, espiou a rua, onde uma galinha ciscava num monte de imundícies sob os olhos fixos de um cachorro, deitado na varanda de Anacleto, e, baixando a voz, disse:

— O meu compadre anda desconfiado com uns zunzuns. Com aquele génio esquentado é capaz de fazer uma das dele. Eu nem sei, senhor Américo...

Eu é que não sei de nada.

o velho endireitou-se e olhou para ele, desconfiado.

Ah!... Mas toda a gente sabe, senhor Américo! É que não se fala noutra coisa...

Pois eu não sei de nada, absolutamente nada, nem me interessa.

Como se o não tivesse ouvido, o colono continuou:

Só o pai é que ainda anda na dúvida. É a tal his­tória dos de casa serem sempre os últimos a saber. Mas não está certo, senhor Américo. E logo com a Maria, um fedelho I

Pois olhe que tudo isso é novidade para mim. Passam-se dias que mal falo com o Sampaio e só estamos juntos na Secretaria.

Sim, sim, já cá tinha chegado que o senhor não vai à bola com ele. E faz bem, senhor Américo, que aquilo é um bom traste.

Mas se eles gostam um do outro, que mal há

nisso? Os senhores complicam sempre os assuntos mais simples.

Então não se escondam. Fale ao Anacleto, que a gente não tem as filhas para freiras. Agora andar aí pelo capim é que não.

Após curto silêncio, o velho arriscou:

—O senhor Américo é que lhe podia falar...

Não! Eu não me meto na vida dos outros, não tenho nada com isso.

Pois ó — disse o colono, pouco à vontade, — Eu logo disse ao Calado que o senhor Américo não era homem para essas coisas. Mas ele teimou... Desculpe-me, senhor Américo.

Falemos noutra coisa. Como vai o negócio?

Ruim, muito ruim. Isto já deu o que tinha a dar. Se não fosse o bocado de fubá que a gente vende para os senhores darem aos homens que vão para os dia­mantes, nem sei...

E o colono lamentou-se da vida que arrastava, com os filhos ao abandono, sem saberem ler, sem terem onde trabalhar, a fazerem-se uns vadios, sempre na rua a ques­tionarem com toda a gente, sem respeito pelos próprios pais.

Fazem-se uns selvagens, que até corta o coração, senhor Américo. Mas o que é que a gente há-de fazer, se não tem dinheiro para nada...

Deixe-os ir para Malanje, Saurimo, Luanda, para onde eles quiserem. O que eles precisam é de entrar na vida.

Pois... pois...

Joaquim Américo deixou o velho na sua cadeira de ripanço e encaminhou-se para a casa do Calado. Atra­vessou a rua a encontrou na estrada os filhos dos colonos a mexerem com um pau no chão.

O que é isso, rapazes? — E aproximou-se, curioso.

É cobra, seu Américo. A gente panhou ela no quintal do seu Pancário — informou João Calado.

Tem outra que fugiu pró mato — adiantou Gastão

Bernardo.

O teu pai está em casa, João?

Olhe, tá ali, seu Américo.

O comerciante acabara de aparecer na varanda e encostava-se a um pilar para descansar a perna inchada.

Américo apertou a mão aos mulatos, o que os outros funcionários nunca faziam, e foi direito a José Calado, que gritou para dentro da casa a pedir cadeiras.

Não vale a pena, senhor Calado. Vim só saber como estava e vou-me já embora, que o tempo não está bom.

Vai-se indo, graças a Deus e ao Diabo... O tempo é que não ajuda, com esse nevoeiro de cortar à faca.

A negra Francisca veio com as cadeiras e o seu melhor sorriso. Américo deu-lhe a mão, como aprendera no Brasil e era motivo de censura dos brancos de África. Ela afas­tou-se um pouco, fingindo-se entretida a olhar para os mulatos, mas toda ouvidos à conversa dos brancos.

O senhor precisa de se tratar. Meta-lhe quinino para dentro, senhor Calado. Olhe que estamos no tempo das biliosas.

Isto já não vai com quinino, senhor Américo. Agora, só lá pra cima... — E o colono apontou para as bandas do cemitério.

Deixe-se disso! Trate-se e vai ver que ainda está para durar muito tempo. Vi agora o seu filho, está um homem.

Ando com ideia de o mandar para Malanje. Francisca voltou-se, de cenho carregado.

Manda nada— disse ela.

José Calado fez de conta que não tinha ouvido.

Lá pode aprender um ofício e tratar da vida, que isto de comércio por aqui já não dá nada. Foi tempo, foi, em que se enriquecia com a borracha. Agora, nem para comer com decência. É pró pirão, como os negros.

Uma nuvem escura apareceu no alto de Camaxilo.

Não tarda a cair uma chuvada das fortes —disse Américo, despedindo-se.

Já na estrada, pediu ao Calado que dissesse ao Pancário e Anacleto que ia a fugir à chuva, mas que vol­taria, breve, para os ver. Era costume que já tinha encon­trado na terra, visitar todos os colonos uma vez que entrasse na casa de um. E quem o não fizesse, era sabido que havia falatório para muitos dias, descobertas de negócios escuros ou intrigas femeeiras. E os não visitados queixa­vam-se de falta de consideração e que não eram «bonecos de trapo».

Estrada a cima, Américo alargou o passo sob a ameaça da chuva, com o céu a baixar, pesado de nuvens negras, sobre a solidão da vila.

Mal entrou em casa, a chuva começou a açoitar o zinco do telhado e um trovão abalou as portas e as janelas. Choveu e relampejou até de madrugada.

O secretário regressou a Camaxilo depois de quatro meses de ausência. Entrou na vila ao entardecer, deitado na machila, com o sipaio Aparo ao lado, de arma ao ombro. Atrás, em fila indiana, vinham para cima de trinta carregadores, com redes cheias de galinhas, cestos de ovos, cabritos puxados por cordas e um porquito deitado no pescoço de um rapaz que caminhava com os joelhos a dobrarem-se de fadiga.

Na varanda da Administração, Gregório Antunes espan­tou-se:

Mas este homem é doidoI — E, a fungar, meteu-se no gabinete, batendo a porta.

Eia I   Que colheita! — disse Sampaio   largando a rir. — Assim não custa a vidinha... até dá gosto...

Quando o secretário saiu da machila, com a fralda da camisa de fora e as botas cheias de lama seca, Sam­paio saltou da varanda e foi para ele de braços abertos. Abraçou-o sem   que Silva levantasse os braços, tão admirado ficou   com   aquele despropósito,   porque se conheciam mal e de verdes dias.

A pedido de Silva, Joaquim Américo acompanhou-o a casa. E, mal entraram, o secretário desembestou contra Sampaio, por causa desse «escândalo que envergonhava toda a gente».

O Calado nem esperou que eu saísse da tipóia. Foi mesmo ali na rua que despejou o saco. E logo com a Maria, uma criançaI Que diz você a isto, Américo?

Nada.

E ficou a olhar para o colega, perdido de riso.

Nada?! Mas, homem, isto é um escândalo dos diabos I

Ó Silva, o melhor é não se meter nisso. É lá com eles. Cada um que se governe.

o quê?! — saltou   Jaime   Silva,   todo   vermelho, empinando a barriga. — Pode-se lá consentir numa coisa dessas! Isto não é a Metrópole nem Luanda, aqui a coisa é diferente, não se podem fazer dessas porcarias! Bonito exemplo para os negros, não?

Deixe-se disso. Silva. Acabe lá com essa mania de andar a espiar a vida dos outros. Isso não interessa nada.

Isto não fica por aqui! — gritou, sacudindo as mãos papudas.

É melhor, homem. Se se começa a mexer na trampa levanta-se para aí um cheiro de empestar. É o diabo, Silva...

o secretário pôs-se vermelho até às orelhas, percebendo onde Américo queria chegar, e afastou-se para a porta. Encostado à ombreira, gritou aos negros que arrumassem as cargas na varanda, para não apanharem chuva, e que fossem para a senzala dos sipaios.

Quando voltou para junto de Américo, queixou-se de dores de cabeça.

— Vou-me deitar para ver se isto passa.

— Adeus. Apareça logo para jantar, Silva. Há peixe do rio e rabanetes. Apareça.

Silva desculpou-se: estava muito cansado e só tomaria um caldo de galinha para se meter logo nos lençóis. Américo ficou satisfeito de não o ter à mesa. Oferecera-Lhe de jantar porque era costume fazê-lo aos que chegavam à vila, fosse quem fosse.

— Há quatro meses que não me deito numa cama de gente civilizada. Até amanhã, Américo. Depois, a gente fala.

 

O automóvel de Gregório Antunes rolou na estrada enla­meada de Malanje. D. Jovita, embrulhada numa manta de peles, os olhos verdes a brilharem de febre no fundo das órbitas, sacudida de arrepios, encostou a cabeça ao ombro do marido. De momento a momento, passava pelos lábios ressequidos um limão e gemia a queixar-se de sede.

Aos solavancos no banco de trás, o criado Julião e o guarda-fios Pedro, que só ia até Caungula levantar a linha do telefone que liga Malanje a Camaxilo, estendida no tempo das operações militares, viam-se e desejavam-se entre malas e embrulhos, que a trepidação e as frequentes derrapagens jogavam de um lado para o outro.

O administrador ia o mais depressa possível, para atin­gir o Cuango antes da noite cair, pernoitar no Posto e largar cedo para Malanje, trezentos quilómetros abaixo de Camaxilo, por más estradas, com pontes de pouca segurança, porque só ali tinha recursos médicos.

  1. Jovita andava com febres desde o princípio das chuvas, perdera as cores e por um nada se irritava. Na­quela manhã acordara a vomitar bílis e sem forças para se levantar. Estava tão abatida que o marido se assustou e resolveu seguir, de pronto, para Malanje. Ela ainda teimou em ficar, que aquilo ia passar com quinino e purgas, amedrontada com a viagem, porque na época das chuvas nunca se sabe o que se vai encontrar pelo caminho. São os rios que levam as pontes, as enxurradas a abrirem regos fundos na estrada e a lama a tornar o seu leito num nateiro. Sempre uma maçada e não poucas vezes um perigo. Mas Gregório Antunes fora ríspido, ralhara, tratou-a de criança mimalha e obrigou-a a pre­parar-se para a viagem. Na hora da partida, levou-a ao colo para o automóvel, ajeitou-lhe a manta sobre o corpo semideitado em almofadas e fez-lhe uma festa.

Os funcionários vieram à estrada dizer-lhes adeus e desejar melhoras. D. Jovita mal os viu, amodorrada nas almofadas, com o sol a irisar-lhe os cabelos loiros empas­tados de suor sobre a testa pálida.

Você devia ter pedido ao administrador para o levar —disse Alfredo Anacleto ao Calado,   quando o automóvel passou pela povoação-de-baixo.

Falta-me o melhor — respondeu-lhe Calado, com um sorriso mole no rosto verde e chupado. — Gente pobre no mato só se pode tratar com curandeiros.

E foi-se a mancar, apoiado a um pau, para casa.

Se não se trata, não passa das chuvas — comentou Bernardo.

oano passado esteve mesmo por um triz — disse Anacleto.

Avistaram ao longe, estrada a baixo, a farda branca do Sampaio. Num pulo, Anacleto pôs-se em casa, a resmun­gar palavrões. Bernardo afundou-se na espreguiceira.

Sampaio passou ao largo e cortou por um atalho para casa do Pancário. Mal tinha desaparecido atrás de uma moita, Alfredo Anacleto, com o chapéu puxado para os olhos, meteu-se à estrada, chibatando os arbustos por cima da valeta. Passos atrás, com um balaio à cabeça, o vestido de chita acima do joelho, Maria dava às ancas, voltando de momento a momento a cabeça para o lado da casa de Pancário. Ia com o pai apanhar agriões à beira-rio, porque a bronquite do velho só cedia com xarope feito com aquelas ervas.

Manuel Pancário estava encostado ao balcão, a chupar um cigarro, quando Albano Sampaio entrou, sempre impecável na farda branca, enquanto os colegas andavam em geral vestidos de caqui. Vinha muito alegre. Abraçou o comerciante por cima do balcão e convidou-se para o jantar, o que era raro deixar de fazer.

Às ordens, senhor Sampaio. Já lá está o seu lugar. o aspirante saltou por cima do balcão e foi tirar um maço de cigarros à prateleira.

Ponha na conta, Pancário.

o filho do comerciante anotou a despesa no livro dos fiados, onde Sampaio ocupava umas poucas de folhas.

O comerciante foi até à porta e demorou-se a olhar para a rua, onde dois mulatitos traquinavam. Depois, voltou-se e fez um sinal a Sampaio.

o que há, Pancário?

Foram conversar para o fundo da varanda.

Eu bem o avisei, senhor Sampaio, mas não me quis ouvir...

Homem, mas é que não há nada. Você bem sabe, tudo isso são intrigas.

Mas Pancário sabia de tudo, pusera os seus serventes de atalaia e eles bem tinham visto a Maria e Sampaio metidos no mato, a esfregarem a boca um no outro. E quando ele a quis derrubar no capim, ouviu-se barulho na estrada e ela fugira para o quintal do pai.

Tome cuidado, senhor Sampaio, olhe que o velho não é para brincadeiras. Ele já anda desconfiado...

Ah?!

E Sampaio quis saber o que é que se dizia «naquela terra miserável» em que um homem não podia olhar

para uma mulher. E quando tinha um palminho de cara e era alegre como a Maria Anacleto, toda a gente se punha a falar e a inventar infâmias... Mas Pancário só sabia o que toda a gente dizia.

Toda a cautela é pouca, senhor Sampaio. Eu sou da terra e conheço bem tudo isto. Ainda ontem o velho esteve cá e eu bem o ouvi resmungar.

E o comerciante voltou a pedir ao «amigo Sampaio» que abrisse bem os olhos e não recolhesse a casa muito tarde, porque essa «cáfila de mulatos» não era de confiança.

Isto de mulatos, senhor Sampaio, é raça ruim que puxa para o negro. Eu tenho um filho mulato e sei de que força eles são. O meu só está à espera que eu feche os olhos para ir rebentar o vintenzinho que ponho ao canto. Mas o que ele não sabe é que a castanha lhe há-de rebentar nas unhas.

Pancário insistiu que ele tivesse tento, que o Anacleto devia ter gente a vigiá-los, e se o apanhasse com a boca na botija sucedia-lhe o mesmo que ao Serrão, que teve de casar com a filha do Bernardo, «uma desavergonhada que até com os negros da senzala se metia».

Quem é esse Serrão?

Foi chefe do Cuilo, antes do Vaiadas. Era boa pessoa, não desfazendo. Pois o velho Bernardo fez um banzé dos diabos, meteu queixa e o Serrão teve de casar para não cair no tribunal. Mas, também, logo que chegou a Malanje deu-lhe um pontapé no rabo e pôs-se ao fresco. Dizem que anda lá por Lisboa aos paus. E a moça está a dar ao fanico em Luanda. Não devia ter mais de quinze anos, o raio da moça, mas com pinta Até comia a gente com os olhos...

Isso foi mal feito — disse Sampaio. — Um homem assume a responsabilidade ou não se mete nelas.

Mas é que ela era de força. Nunca vi nada pare­cido. Apre!

Bem, bem. Isso já é outra coisa. Mas, ó amigo Pan­cário, o Anacleto disse-lhe alguma coisa?

Pancário agastou-se, que se o velho lhe tivesse dito uma só palavra a respeito do «amigo Sampaio», ele não era homem para andar com intrigas, punha tudo logo a nu. Não, o velho só resmungara, sem se perceber uma palavra.

Quando o Anacleto anda assim, é porque a coisa não lhe cheira bem. Eu conheço-o, senhor Sampaio. É esturrado.

Então, deve ser por outra coisa. Qualquer dia falo com ele, ponho tudo a limpo. Não sou homem para mexericos, Pancário.

Eu também faria o mesmo, de homem para homem. É falando que a gente se entende.

Alfredo Anacleto apareceu no princípio da rua, as mãos enterradas nos bolsos, caminhando todo curvado.

Vem para cá — disse Pancário. E chamou-o: — Se­nhor Anacleto! Ó senhor Anacleto, chegue cá.

Homem... — resmungou Sampaio, corado até às orelhas.                                              

Vá ter com ele e acaba logo com tudo.

Meta-se   na   sua   vida,   senhor   Pancário — disse entre dentes, com os olhos a chisparem de ira.

Mas vendo Anacleto aproximar-se, a olhá-los por baixo, não teve outro remédio, saltou da varanda e foi ao seu encontro.

Preciso de falar consigo, senhor Anacleto. Pancário viu-os afastarem-se, rua a cima. Não arredou pé da varanda, a ver o que aquilo ia dar, mas já arre­pendido de ter chamado o velho.

Aqui e ali, atrás das moitas e à esquina das casas, apa­receram as caras dos mulatos e negros empregados dos comerciantes, a espiarem cheios de curiosidade.

Seu Cleto tá levando ele pra fora — disse Gastão Bernardo ao ouvido de João Calado.

Vai dar nele. Espera só.

E o mulato João era todo olhos para o cimo da rua, ansioso por ver o velho atirar-se ao aspirante e sová-lo com força, como ele próprio desejaria fazê-lo.

Mas ao chegarem ao alto da rua, quando todos espe­ravam vê-los desaparecer na curva que se fecha na estrada de Malanje, ei-los que regressam, lado a lado, o velho de cabeça baixa, a chibata a dar a dar na calça, a ouvir Sampaio, todo gestos largos, com ar pimpão. Pararam no meio da rua, o velho levantou a cabeça e começou a falar, metendo a chibata debaixo do braço.

A negra Francisca deitou a cabeça de fora da janela e arregalou os olhos.

Jisusl Jisusl — disse ela, fechando a janela. Todos estavam admirados. Pancário, especado na varanda, nem queria acreditar no que via. Os mulatos cochi­chavam à esquina das casas e atrás das moitas. Só os criados dos brancos se alegraram por eles não estarem a jogar à pancada, como os mulatos queriam. Os seus patrões não voltariam a obrigá-los a andar de noite, de moita em moita, a rondar as casas, a espiar o Sampaio e a Maria.

Se é para bom fim, senhor Sampaio, não sou eu que diga que não. Isso é lá com o senhor e a cachopa. Mas para pegar e largar é que não.

É como lhe disse, senhor Anacleto. A gente também não pode ir a correr para o casório, é preciso conhe-cermo-nos, não?

Está claro. Tudo tem o seu tempo. Eu não quero a rapariga para freira, lá isso não, mas não a criei para andar por aí aos tombos, como qualquer borrega. Para desgostos já chegam os que tenho. Casada ou amigada, isso cá para mim é o mesmo, mas com um homem direito, que a trate bem.

- Pois, pois. Se a gente se entender, está a coisa feita. Mas casados, porque os meus pais também se casaram e é assim que eu entendo que se deve fazer. Tenho trinta e cinco anos e toda a gente sabe que sou um homem de palavra.

Isso é o que se quer —disse o velho, muito grave, levantando a mão à altura da cara. —É com homens de palavra que eu gosto de tratar. Está dito, senhor Sampaio.

Então, venha daí essa mão e, pronto, não se fala mais nisso.

O colono apertou-lhe demoradamente a mão, as pontas do bigode a tremerem sob o lábio esticado num sorriso. Depois, Albano Sampaio abraçou-o e convidou-o a ir «molhar a língua» à loja do Pancário, como a gente da sua terra fazia ao empenhar a palavra num negócio.

João Calado resmungou, atrás da moita:

Seu Cleto tá doido!

Tá nada. O veio já passou a fia no branco — disse Gastão, e deu uma risadinha que enfureceu o com­panheiro.

Tou aqui tou indo na venta de tu.

Tu tá é cum raiva. — E Gastão pôs-se ao largo, a rir alto.

João Calado seguiu-o com olhares furibundos. Depois, puxou as calças, atirou um pontapé a um arbusto, atraves­sou a rua e entrou em casa pela porta do quintil.

Manuel Pancário cresceu na ponta dos pés, atrás do balcão, quando eles entraram, muito satisfeitos. E cor­reu, nervoso, a encher dois copos de vinho, dos grandes, como Sampaio lhe pedia indicando o tamanho com um gesto de palmo.

Encha outro, Pancário, para si, que ofereço eu — disse o aspirante, encostado ao balcão.

O comerciante ficou tão atrapalhado que entornou o vinho de um dos copos.

Homem, a estragar uma pinga destas! — censurou Anacleto.

À nossa I — E Sampaio levantou o copo.

o velho bebeu de um trago, deu um estalo com a língua e passou-a pelos beiços.

Que rica pinga —exclamou, a limpar a boca e os bigodes com as costas da mão.

Deite mais, Pancário — mandou Sampaio. Vieram azeitonas e um rabo de bacalhau para puxar

vinho. Ao quinto copo, o velho teve uma tontura e agar­rou-se ao balcão.

Que é isso, homem?!

Pancário amparou o velho, todo a tremer e a suar. Sampaio pediu café muito quente. Anacleto sentou-se e encostou a cabeça num braço, sobre a borda do balcão.

Deu-lhe na fraqueza — comentou Pancário. Depois de beber o café, o velho sentiu-se melhor,

limpou o suor frio que lhe cobria a testa e lastimou-se:

Já não aguento nada. Estou pronto... — E despe­diu-se para voltar a casa.

Pancário e Sampaio quiseram acompanhá-lo, mas ele opôs-se, que sempre tinha entrado por seu pé em casa e era preciso dar o exemplo aos filhos.

Tinha anoitecido sem eles darem por isso. O ar fresco reanimou o velho, por um momento.

Um homem é um homem...—tartamudeou ele, andando aos bordos.

Ao deixar a rua para se meter a um atalho que ia direito a sua casa, caiu numa poça de água negra, soltou um palavrão e, de gatas, saiu todo enlameado para o trilho. Na queda, desorientou-se e começou a andar em sentido oposto à casa. Quando deu por isso, estava defronte da loja de José Calado. Deu voltas sobre voltas até conseguir chegar ao seu pardieiro.

A negra, mãe de todos os seus filhos, ao vê-lo esbarrar nos móveis toscos e a dizer palavrões, começou a barafustar e chamou pelas filhas. Entregou o coto da vela, com que o viera receber, à Maria e tentou ajudá-lo. Mas mal lhe pôs a mão num braço, ele atirou-lhe uma bofetada.

Tome, negra! Larga-me!

Ela largou-o e o velho caiu sobre uma cadeira. Tentou levantar-se, em vão, e começou a vomitar. As filhas levaram-no em braços para a cama. A chorar, a companheira sentou-se ao seu lado, puxou-lhe o cobertor para o pescoço e falou-lhe como se fala a uma criança. Ele caiu numa modorra, de que despertou minutos depois para se atirar para a beira da cama, aos vómitos. Deram-lhe café forte. Descansou com a cabeça no ombro da compa­nheira, e, pouco depois, ressonava. A negra e as filhas deitaram-se e a casa ficou silenciosa e às escuras.

Um cão ladrou, ao longe. Depois, ficou tudo em silêncio.

Na casa adormecida, Maria abandonou a cama, envolveu o corpo num cobertor, atravessou, pé ante pé, o seu quarto, onde as irmãs dormiam, e o dos pais tacteando os móveis, com a respiração suspensa, desli­zou ao longo das paredes e só parou um instante na casa de jantar, com a mão no fecho da porta.

Ouvia o pai ressonar. No quarto ao lado, um dos irmãos mexeu-se na cama. Esperou um momento, depois abriu a porta para o quintal, que atravessou com a brisa da noite escura a soltar-lhe os cabelos. No meio do quintal assustou-se a, numa corrida, ganhou as traseiras da cozinha. Sampaio recebeu-a nos braços.

— Demoraste tanto tempo!

— Tava esperando mamãe dormir.

— E o teu pai?

— Tá bêbado. Não corda não.

— Vem.

Sampaio levou-a para junto da paliçada.

— Não salta — disse ela. — Aqui é bom. Sentaram-se no chão e ele contou-lhe a conversa

que tivera com o colono. Ela ficou tão alegre que se pôs a beijá-lo repetidas vezes nos olhos, na boca e nas mãos. Sampaio abraçou-a e ao meter-lhe a mão pelo cobbrtor à procura dos seios, sentiu que ela estava nua. Estreitou-a mais e beijou-a na boca, com sofreguidão.

— Não me aperta. Tá magoando.

E Maria deitou o busto para trás, dobrada pelos rins sobre o braço dele. Semicerrou os olhos, as narinas dila­tadas, e entreabriu os lábios grossos. Quando ele se incli­nou a beijar-lhe o colo, todo o seu corpo estremeceu, os braços penderam e o cobertor abriu-se. Ao senti-la toda nua, ele beijou-lhe os seios redondos e duros e percorrreu-lhe o corpo com as mãos a tremerem. E deitou-a no capim.

— Não me faz mal... — pediu-lhe num murmúrio, o braço à volta do pescoço, a beijá-lo na boca e nos olhos.

— Amor, amor...

E ela abriu-se-lhe toda, soltando um gritinho de dor e prazer.

Quando a lua vermelha apareceu no alto de Cama-xilo, Sampaio deixou-a ir com promessas de casamento e muitos e belos projectos, mas recomendou-lhe que era preciso que se calasse e tivesse muito juízo, caso con­trário faria o mesmo que o Serrão.

Maria protestou, muito agarrada a ele, que ela não era nenhuma desavergonhada como a Arminda Bernardo e que só fizera «aquilo» por gostar muito dele.

— Tu viu bem que eu tava virge. Ele beijou-a na boca e disse:

— Agora, está tudo nas tuas mãos.   Não fales a ninguém e deixa o resto comigo. Sou eu que trato do assunto com o teu pai, na altura própria. Foi isso que combinámos.

— Ela afastou-se, feliz, com um sorriso a abrir-lhe os lábios grossos e vermelhos sobre os dentes muito brancos.

 

A notícia espalhou-se rapidamente entre os indígenas: o leão matara o cantoneiro do Huamba. Já era o quinto negro daquele cantão que morria sob as suas patas. Arma­dilhas e esperas, carne envenenada posta no caminho e fogueiras de chamas altas, nada vencera a manha do leão.

«É leão velho acostumado a carne humana», diziam os colonos.

Alarmados, os negros começaram a propalar que o leão do Huamba tinha feitiço...

Era sempre um trabalhão para se conseguir contratar um cantoneiro para o Huamba. O sítio já de si era mau, com muita humidade e nuvens de mosquitos, e fatigante o trabalho na estrada barrenta, a fazer uma curva à beirinha do vale fundo e estreito, com o rio a barulhar sobre pedras, subindo ao caminho na época das chuvas. otrânsito de automóveis ficava impedido por muito tempo. Era o «cemitério das camionetas», na estrada de Malanje.

Os funcionários de Camaxilo e o tenente que coman­dava a Companhia Indígena de Infantaria de Caungula, já lá tinham ido fazer três esperas ao leão, empoleirados nas árvores, mas ele não aparecera, suas pegadas desco­briram-se longe, como se pressentisse o perigo à distância.

«Leão velho conhece o cheiro do homem», diziam os caçadores.

Mas o que acima de tudo admirava e metia medo aos negros, era o facto do leão não tocar nos cabritos que se punham nas armadilhas, enchendo a noite com urros que se ouviam a grande distância. O bicho passava ao lado, marcava o chão com pegadas, e ia direito às galinhas do cantoneiro. obarulho acordava o negro e ei-lo de escopeta em punho, a espreitar pela porta. Num salto, o leão enfiava em casa, metendo a porta dentro, e abatia o homem, sem que tivesse tempo sequer de dar ao gatilho. Depois, desfazia às patadas a palhota, fartava-se na carne quente e, sentado sobre as patas ao lado dos restos do negro, a cabeça levantada, quedava-se arrogante e majestoso.

o secretário mandou chamar os caçadores das aldeias ao redor da vila e tentou contratar um deles para o cantão. Mas, à uma, eles disseram que não iam, porque o Huamba ficava muito longe e tinham medo daquele leão que tinha «grande feitiço».

Silva insurgiu-se, que não havia feitiços, que só os selvagens acreditam nisso, e prometeu isentar do paga­mento do imposto e pagar vinte angoiares mensais a quem aceitasse o lugar. Mas nenhum caçador se decidiu, nem tão-pouco os homens a quem os sipaios foram falar às senzalas, longe da vila.

Você já viu uma coisa assim, ó Américo? Não se consegue um homem para o Huamba. E o administrador que tem de passar por lá, com aquela maldita curva e a lama.

Se lhe parece...

Mas é que tem de ir alguém. Se até amanhã não aparecer ninguém, tira-se à sorte entre os caçadores.

Eh! —fez Joaquim Américo.

Eu é que não vou — agastou-se Silva.

Albano Sampaio ouviu parte da conversa, ao apro­ximar-se da Secretaria.

Não   se   apoquente,   secretário — disse   ele,   en­trando. — Um dos filhos do Bernardo quer o lugar.

O quê?! Não pode ser. Aquilo só para negro sel­vagem. E nem esses querem ir para lá.

Também me parece — concordou Américo. — Isso deve ser engano.

Pois foi o que ouvi. É o Luís, o serrador.

Esse talvez. Só não é negro na pele. Mas mesmo assim... Ele agora não tem trabalho.

Jaime Silva mandou um capita procurar o Luís Bernardo.

Quando o sino tocou para os trabalhadores largarem o serviço, o mulato entrou na Secretaria. Parou defronte do balcão onde os indígenas pagam os impostos, com o boné debaixo do braço, a camisa de chita rasgada no peito largo e alto.

Chamou?

Ouve cá, rapaz, ouvi dizer que queres o lugar do Huamba? — E Silva aproximou-se do balcão.

Diz que dá dinheiro do imposto e mais vinte.

É isso mesmo.

O mulato pôs as mãos enormes, as unhas negras, em cima do balcão.

Faz setenta angolar só. Se dá cem, vou.

Isso é muito.

Luís Bernardo coçou a cabeça, a carapinha desgre­nhada, um tufo sobre a testa estreita.

Não dá conta, não. — E baixou os olhos para os pés descalços, com um dedo entrapado.

o secretário foi à mesa do trabalho, mexeu nuns papéis e, meio voltado para o mulato, disse:

Então?

Não pode. Tá tudo caro...

Dou-te noventa, que é quanto ganha um sipóio. E olha que nunca se pagou coisa que se pareça a um cantoneiro.

Luís piscou os olhos e um sorriso iluminou-lhe o rosto avermelhado, cheio de borbulhas.

Mas olha que não é para pegar e largar logo — pre­veniu Silva.

Não sou desses. Tem de dar espingarda e cartucho.

Escolhe ali. — E o secretário apontou para uma fileira de escopetas, ao longo da parede. — São antigas, mas são boas.

O mulato franziu o nariz e olhou de través para o Silva. Mirou arma por arma, a abanar a cabeça. Eram todas de carregar pela boca e muito velhas, do tempo das «guer­ras negras», apreendidas aos indígenas, que durante anos as esconderam. Por fim, escolheu uma de cano comprido, com a coronha cheia de pregos de cabeça amarela, dis­postos em desenhos, e foi à varanda para a examinar melhor à luz do Sol.

Serve — disse ele, voltando à Secretaria. — Falta pólvora.

Quando é que podes ir? Amanhã?

Pode.

De fuzil ao ombro, o mulato atravessou o largo e meteu à estrada da povoação comercial. O si paio e os capitas que estavam na varanda seguiram-no com olhares trocistas e, quando ele se afastou, largaram a rir.

Mulato ficou servage... — disse o sipaio. Os outros largaram uma gargalhada.

Foi curto o caminho para os passos largos do mulato Luís.

Quando chegou à ponte, um grupo de garotos mulatos e negros largou da beira do rio e correu para a estrada.

196

Um deles, de olhos azougados e grande trunfa, pôs-se à frente de Luís Bernardo, fez a continência, piscando o olho, e começou a andar de costas, batendo os pés com força. Os outros, atrás e ao lado do mulato, comandavam: «Um, dois, um, dois...» Luís Bernardo riu-se; mas a insis­tência dos rapazinhos acabou por aborrecê-lo e tentou agarrar o que lhe vinha a pisar os calcanhares. Com gritos agudos, o bando correu para o mato. De longe, os mais atrevidos gritaram-lhe: «Óia negro, onde tu roubou isso?» E riam às gargalhadas.omulato seguiu o seu caminho sem lhes ligar importância.

Mal entrou em casa, Luís pôs a arma debaixo da cama e voltou a sair. Rondou a casa do Alfredo Anacleto, avis­tou no quintal a mulata Flávia, seu namoro, a pilar mandioca, e parou a contemplá-la, com os olhos a bri­lharem e um sorriso babado nos lábios grossos e revirados. Ela estava de costas para ele, toda debruçada para o pilão que lhe dava pela barriga, a saia um palmo acima da curva da perna gorda, a dar a dar às ancas largas e cheias, que era o que ele mais admirava. Virou-se e deu de cara com o namorado. Pôs-se muito vermelha e puxou a saia para baixo. Fingiu-se zangada, dando com os ombros, estreitos de mais para os seios volumosos como mamões, apertados na blusa amarela. Depois, ficou com um sorriso na cara bolachuda e fez-lhe sinal que o pai estava em casa.

Luís deu volta à varanda e foi bater à porta.

Entrei

O colono estava sentado à mesa, em mangas de camisa, o chapéu no alto da cabeça, a beber vinho de palmeira.

Que é, Luís?

O mulato foi entrando, alto e forte, de modos desajeitados, e parou a um metro da mesa, com o boné às voltas nas mãos grandes e duras, calejadas de serrar árvores.

Diz lá, rapaz.

É que... que... Seu Cleto, tou indo pró Huamba.

Para o Huamba? Fazer o quê?

Mas logo pensou que fosse cortar árvores e disse:

Lá há boas madeiras. Tenho uma cama de tacula de lá, há mais de trinta anos.

Não é, seu Cleto. Tou cantoneiro do Huamba.ocolono abriu muito os olhos.

Cantoneiro?!

Luís não percebeu o motivo do seu espanto e riu com a boca muito aberta.

É, é, seu Cleto. E tou aqui... Calou-se e esfregou um pé no outro.

E o que é que queres?

É pra falar no seu Cleto...

E tornou a hesitar, os olhos baixos, às voltas com o boné.

Fala, homem I — impacientou-se Anacleto, empur­rando a caneca do vinho de marufo para a frente.

É a Flávia, seu Cleto... A gente já falou... O colono saltou na cadeira.

O quê?! — gritou. — Tu estás doido!

O mulato deu um passo a trás, o sangue subiu-lhe à cara, deixou cair o boné e tartamudeou:

Seu Cleto falou... Tem trabaio certo. Cem angolar no mês...

Põe-te já daqui para fora! Ou tu julgas que eu dou uma filha a um cantoneiro!

Seu Cleto falou...

Isso é lugar de negro, homem! Gira, gira!

Luís recuou até à porta, com as mãos abertas, o sangue a estoirar-lhe no carão fechado, olhos muito abertos e o lábio pendido.

Sai, sai I — E o colono avançou para ele, rubro de cólera. — Ora o figurão! Era o que faltava I

Luís Bernardo deixou a casa do colono e ficou-se, aparvalhado, no meio da rua, sem saber o que fazer. Sentiu o colono abrir a porta atrás das suas costas e ouviu -lhe a voz dura:

Leve esta porcaria.

Voltou-se no momento em que lhe caía aos pés o boné que deixara na casa de jantar do colono. Abaixou-se, apanhou-o e foi-se embora, de cabeça baixa, pondo-se a andar ao acaso.

Quando regressou a casa, atirou-se para cima do catre, afastando com um safanão o irmãozinho que lhe queria puxar pelos cabelos, como sempre fazia. Ali ficou até ao anoitecer, a rememorar a promessa que o colono lhe fizera, já lá iam três anos, de lhe dar a filha logo que arranjasse um emprego com ordenado certo. E, agora, que tinha o lugar, sucedera aquilo... Corrido pelo Anacleto como se fosse um cãol Fechou as mãos com força e mordeu o lábio, os olhos apertados, cheio de raiva.

Quando se levantou, já a noite se tinha fechado e a casa estava silenciosa. Saiu para a rua, mas não foi, como era seu hábito, para defronte da casa do José Calado, onde os mulatos se reuniam todas as noites. Não queria encontrar-se com os companheiros. Meteu à estrada do vale, vendo no alto de Camaxilo as luzes das vivendas dos funcionários.

Tomou o caminho da povoação alta, tentado a ir dizer ao secretário que desistia do lugar. Já ia perto do Paiol quando resolveu retroceder. Não, não iria dar o dito por não dito. Os brancos iam chamar-lhe intrujão e os mulatos e negros «civilizados» ficariam a rir-se dele.

Aceitara o lugar por causa da namorada, sem mesmo falar com ela, convencido de que o colono ficaria satis­feito, porque sempre se mostrara seu amigo. Agora, não lhe interessava ir para o Huamba, ou para onde quer que fosse, mas não podia voltar a trás.

Ao passar ao largo da casa do Anacleto, veio-lhe a ideia de falar com Flávia. Talvez ela dissesse qualquer coisa ao pai e tudo se viesse a arranjar.

«Não fala, não», disse ele, em voz alta, sabendo do medo que ela tinha ao pai.

E continuou o caminho.

Troçada pelas irmãs, Flávia ficou furiosa com Luís Bernardo, a querer levá-la para uma cubata, como se fosse qualquer negra selvagem, longe de toda a gente, naquela terra onde havia um leão «cheio de feitiço».

— Eu digo ele I — ameaçou Flávia, dirigindo-se às irmãs.

E mandou-lhe dizer por um servente, que o foi encon­trar na estrada da planície, muito acima da casa dos colonos, que não lhe queria falar mais e não consentia que voltasse a olhar para ela, porque «não era negra da senzala».

Luís Bernardo atirou um pontapé ao rabo do servente, que se pôs em fuga, e gritou um palavrão.

No dia seguinte, muito cedo, pôs a espingarda ao ombro e meteu-se a caminho do Huamba, acompanhado por um rapaz que lhe levava o saco do rancho e a esteira para dormir.

O velho Bernardo, enfurecido por ele ir ocupar um lugar que nem os negros de tanga queriam, não se despe­diu do filho, que «era a vergonha dos brancos», e mandou-Lhe dizer que não voltasse a pôr os pés em sua casa.

Foi Gastão que lhe levou o recado. Luís encolheu os ombros; depois, disse:

— Diz pra ele que é mió trabaiá na estrada que tá na casa, comendo o trabáio dos outro. Espera só mamãe e Amélia morre e as fias amiga, pró veio vê que fica prá boca. Nada.

— Tu não pode falar essa maneira. Papai tá veio.

— Tá veio pra trabaiá, tempo não caba pra pôr fio na barriga das negra que vem na loja. E manda mamãe e as fia cum enxada na horta. É só come trabaio dos outro. Não é?

— Papai vai dar porrada tu I — gritou Gastão, mas de longe, porque o irmão mais velho era bruto e onde punha as mãos era seu.

E pôs-se a arremedá-lo na maneira de falar, o que sem­pre provocava a troça dos companheiros, que pronunciavam o português um tudo-nada melhor do que ele.

Só a mãe, uma negra velha que nunca aprendera a falar português nos seus cinquenta anos de companheira do colono, a quem dera os filhos mais velhos, que os outros eram da falecida Clara e da Amélia, a amásia mais nova do Bernardo, é que foi à estrada dizer-lhe adeus, a chorar e a lastimar-se.

Era o único filho que lhe restava, em Camaxilo, dos sete que tivera de Francisco Bernardo. Os dois mais velhos morreram durante a guerra do Nzovo, a lutarem contra os negros. As filhas andavam sabe Deus por onde. Só da Arminda é que sabia o paradeiro, num bordel de Benfica de Benguela, depois de ter estado nos de Malanje e Luanda. O mais novo, após ter saldo da cadeia de Luanda, fora para Matadi e nunca mais dera notícias. Agora, era o Luís a deixá-la, metendo-se no Huamba, ali a dois passos, mas que para ela era como se fosse muito longe, ou ainda pior, porque dos outros não sabia o destino, ao passo que deste conhecia-lhe o paradeiro, com aquele leão a rondar o cantão, louco por carne de gente.

— Leão não vai come, mamãe. Pra que tá chorando? Vá na casa. Deixa meu vida.

Já a Amélia, a saia de chita azul a enfunar, a cha­mava da varanda, a mando do colono, que não queria ouvir mais choradeiras. A velha, embrulhada nos seus panos remendados e sujos, voltou para casa, a chorar baixinho para o seu branco não se zangar.

 

No dia em que Luís Bernardo abalou para o cantão do Huamba, José Calado caiu à cama com febres e arrepios de bater os dentes. A negra Francisca assustou-se ao vê-lo bolçar bílis com arrancos que o deixavam derreado, quase sem respirar, alagado em suor. Depois, voltava o frio e para ali ficava a tremer que nem vime ao vento. Correu a chamar o Alfredo Anacleto. No caminho, encontrou o filho a jogar à bola e correu com ele para casa, aos insultos.

— Não sabia, mamãe. Ninguém falou, não.

— Tu tá malandro!

— Deixa, tou indo.

Entrou de mau modo em casa, foi ao quarto do pai, que dormia agitado sob um cobertor de papa, olhou para a sua cara esverdeada, com barba de uns poucos de dias, franziu o nariz e saiu. Foi para o quintal e sentou-se numa pedra, a pensar no que seria dele e da mãe se o pai morresse. Um cão veio meter-se-lhe entre as pernas, levantou o focinho e lambeu-lhe as mãos. Acarinhou a cabeça do cachorro e quis falar-lhe, mas sentiu a voz presa e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Chorou soluçando sobre a cabeça do cão, que se pôs a latir e a dar à cauda.

Esteve ali um ror de tempo. Lembrou-se de tudo quanto foi triste na sua vida, desde os passos de menino, com o pai a zangar-se a toda a hora e a mãe sempre metida na cozinha a fazer bolos, e, também, segundo as más línguas, em safadezas com o Mualucano, um negralhão que o Calado correu a chicote sob o pretexto de se embebedar e não trabalhar. Recor­dou-se da Maria Anacleto e sentiu uma saudade amarga. Como eram belos os seus olhos verdes, tão meigos e tão tristes. Viu-se a beijá-la junto à paliçada, ao lusco-fusco, cheia de promessas mentirosas. Agora, os seus beijos quentes eram para o outro, o Sampaio. Deixara-o para ir para o branco, só por ser branco, tinha a certeza disso. Uma vez dissera-lhe que não queria ter filhos negros e que gostava dele porque era mulato claro, como ela. Mas pouco tempo depois apareceu o branco e foi-se logo para ele. A esta lembrança, o sangue subiu-lhe à cara e as mãos tremeram-lhe. Num repelão, levantou-se, deu um pontapé ao cão e começou a andar às voltas pelo quintal.

Cansado, parou à porta da casa, encostou-se à om­breira e deixou-se ficar, como esquecido, com o coração apertado e os olhos rasos de água. Ouviu a voz do Anacleto no quarto do pai, limpou as lágrimas com a palma da mão e afastou-se. Foi para a varanda da frente e seguiu os companheiros que estavam a jogar a bola. Chamaram-no com gritos e acenos, mas ele disse-lhes com a mão que não ia.

Quando o colono apareceu à porta, a falar para dentro da casa com Francisca, João correu a pedir-lhe notícias do pai.

São febres ruins, rapaz. Mas a gente logo chega-Lhe com quinino e aquilo passa.

Passa mêmo, seu Cleto? — duvidou João.

Está claro que passa. É preciso ires lá acima com um bilhete que vou escrever ao senhor Américo para te dar quinino.

Rabiscou meia dúzia de palavras encostado à parede e o mulato largou a correr para a povoação alta.

À noite, José Calado piorou, quis saltar da cama, os olhos como carvões em brasa, a falar e gesticular desor­denadamente. Francisca rompeu aos gritos: — «Meu branco tá morrendo!» Foi preciso o filho obrigá-la a calar-se, expli­cando-lhe que aquilo era da febre. Mas ela só se acalmou quando lhe prometeu ir chamar o Anacleto.

A febre não cedia ao quinino nem aos escalda-pés com umas folhas que a negra velha do Francisco Bernardo conhecia, receita que lhe dera um curandeiro de Pungo Andongo.

De madrugada, o doente teve uma crise de tremuras, a cabeça a escaldar-lhe, o corpo frio de gelo, e só acalmou quando o sol aqueceu. Caiu numa modorra que se pro­longou até à tarde. Quando despertou, falou perfeitamente com o Anacleto, conheceu os que o rodeavam, chamou o filho e encarregou-o de olhar pela loja, fazendo projectos de se levantar dentro de poucos dias. Estava sem febre e com fome. Mas, pouco depois, um grande cansaço prostrou-o, e febre voltou e começou a queixar-se de dores violentas e rápidas, como picadas fundas, nos rins. Ao entardecer urinou sangue.

Está com a biliosa — cochichou Anacleto ao ouvido do Pancário, que acabava de entrar no quarto do doente, a cheirar a febre e urina.

Saíram para a varanda e deram a notícia ao Bernardo. O velho abanou a cabeça e disse:

Não aguenta. Está muito fraco. E ele sabe, Anacleto?

Sabe. Viu o sangue e nunca mais falou.

Se desmoraliza ainda é pior — disse Pancário. — Vai-se num instante. Eu vi um que se ficou em horas, depois de ter olhado para o penico. Mas esse emborcou uma garrafa de conhaque, dizendo que era para não ver a «Senhora Negra». E nem deu que morria.

Quando chegar a   minha   hora, também   hei-de fazer o mesmo — disse Anacleto. — A gente não a vê chegar e ao menos vai consolado...

Pancário foi ver o doente e voltou logo.

Aquilo está num fio — disse ele.

E ficaram os três na varanda, calados e tristes.

Negros com cargas às costas atravessaram a estrada, olharam para os brancos, admirados de os ver juntos àquela hora, e encaminharam-se para a loja do Pan­cário.

Vou indo — disse Pancário. — Se for preciso alguma coisa é só mandar.

E abalou, no seu passo miudinho e apressado, não fossem os negros pensar que não se fazia negócio por estar um branco a morrer.

Aquele não perde pitada...— comentou o velho Bernardo.

Anacleto mordiscou uma ponta do bigode e acompa­nhou Pancário com os olhos.

Ao anoitecer, o secretário e os aspirantes, avisados por Alfredo Anacleto, vieram ver o doente. Saíram do quarto do colono convencidos de que era um caso perdido. Só a companheira e o filho tinham esperanças.

Seu Cleto, ele tá mais mior — disse João, vendo o pai dormir muito calmo.

Não te iludas, rapaz. Isso não são melhoras. oteu pai está muito mal.

Mas João Calado não acreditava. E dizia aos compa­nheiros:

Pai tá deitando ela fora.

Seu Cleto diz que...

Seu Cleto não é doitor, não. Espera só e tu vai ver. Ele tá miorando. É só ver ele.

Mas ao cair da noite a febre subiu muito e o colono não pôde suportar as dores dos rins sem gritar. Os gritos ouviam-se longe e toda a gente se assustou. Os colonos e os filhos vieram a correr de suas casas.

Agarrada ao Anacleto, Francisca pedia-lhe que cha­masse o curandeiro Caporolo, em quem tinha muita fé, desde que a tratara de uma dor no peito, que não passara com remédios dos brancos.

Os colonos reuniram-se a discutir o caso.

Esse não conheço — disse Anacleto. —oSalupo, sim, sabia da coisa, mas esse tal Caporolo...

A Amélia tratou-se com ele e diz que ó bom e não leva caro — informou Bernardo.

Então, chama-se — decidiu Anacleto. — É da von­tade do filho e da companheira. A gente também já não tem nada a fazer.

O velho negro veio com as suas beberagens, andou à volta do Calado, meteu-lhe pelas goelas uma água verde que empestou o quarto e fez tossir o doente, e pintou-lhe o peito com sangue de galinha e óleos vegetais. Depois, acocorou-se a um canto e rompeu numa lengalenga.

Isto já é música para puxar mais dinheiro — comen­tou Anacleto, a meia voz.

Pancário sorriu. Mas a negra Francisca estava muito satisfeita com a reza e apoiava o curandeiro com repetidos movimentos de cabeça.

Tá puxando os febre pra fora — disse ela ao ouvido do filho.

O veio sabe. Pai vai ficar bom.

Mas a doença seguiu o seu curso fatal. O colono não voltou a falar e recusava, apertando os lábios gretados de febre, o caldo de galinha que Francisca teimava dar-lhe.

— Não come vai morre — dizia ela, debruçada sobre o companheiro.

Mas o doente não descerrava os dentes. Francisca largava do quarto, encostava-se à parede da varanda e chorava alto.

Ao terceiro dia de se ter declarado a biliosa, o curan­deiro, depois dos funcionários saírem do quarto do doente e o secretário o ter mirado e remirado, enchendo-o de medo, porque as autoridades perseguem os feiticeiros, declarou à negra Francisca que as suas mezinhas não faziam nada porque o remédio do branco já tinha estra­gado tudo. Reclamou os honorários: um pano, uma galinha e cinco angolares. Francisca pagou-lhe tudo e chamou-lhe ladrão. Mas ele não se importou e foi-se embora, muito satisfeito.

Noite fechada, com chuva a cair em cordas, o colono entrou na agonia. E morreu quando o dia começou a clarear no alto da povoação e os galos cantavam nos quintais dos colonos. Ainda era noite no fundo da planície.

Com a cara afundada no travesseiro, junto à cabeça do morto, o mulato João rompeu a chorar. Francisca, que tinha ido buscar água, estacou à porta, o copo caiu-lhe das mãos e rompeu aos gritos:

— Meu branco morreu I Ai meu branco morreu!

Um servente chamou pela mulher que estava na cozi­nha e entraram em casa. Levaram Francisca para o quarto ao lado.

Sentado no fundo da cama, com o queixo no peito, Alfredo Anacleto não tinha uma palavra para o filho do companheiro perdido.

— Meu branco morreu I Ó gentes, meu branco morreu!

Os gritos de Francisca encheram a povoação baixa. Os negros e mulatos que os ouviram, sentiram um arrepio, foram acordar o velho Bernardo e Pancário e correram para casa do Calado.

— Não deu tempo para nada — disse Anacleto a Ber­nardo e Pancário, que acabavam de chegar. — Começou a deitar espuma pela boca, revirou os olhos e ficou-se sem dizer nada.

Na cama, sobre o cobertor de papa, José Calado, dentro de um velho fato de cotim sal-e-pimenta, sem gra­vata nem colarinho, o botão de metal amarelo da camisa a brilhar, barba por fazer, de peúgas verdes e sem botas, porque os pés incharam tanto que nem os chinelos ser­viam, tinha as mãos cruzadas no peito e os lábios em chaga arrepanhados num sorriso de consolação. À volta, as mulheres choravam, em altos gritos.

No quintal, o cão soltou um uivo que fez estremecer João Calado, atirado, aos soluços, sobre uns sacos nos fundos da loja. Outros uivos vieram da rua e dos quintais.

Com a manhã alta, começaram a chegar os negros da vila. odia estava cheio de sol e muito quente. No céu, de um azul esbatido, desfaziam-se ao longe, resvés à estepe, pedaços de nuvens brancas.

— Não é dia para ninguém morrer — disse Anacleto.

— Era destes dias de sol que ele gostava...—falou o velho Bernardo.

Do fundo da planura, veio um canto monótono e triste. Marchavam a cantar os homens nus das aldeias de palha que vinham entregar os seus braços às minas de diamantes.

Chegaram os funcionários nas suas fardas brancas, muito graves. Os sipaios também vieram com os cofiós vermelhos, mas sem as armas. Só os capitas traziam os seus compridos chicotes de cavalo-marinho.

Os funcionários demoraram-se uns segundos junto do morto. Silva benzeu-se. Vieram para a varanda onde estavam os colonos.

Nunca vi um morto com um sorriso de tanta satis­fação! — admirou-se Albano Sampaio.

Alfredo Anacleto lembrou a conveniência de se fazer o enterro naquele dia, porque o tempo estava muito quente e o corpo já «cheirava que era um perigo para todos».

Não é da lei — disse o secretário, formalista. — Só depois de vinte e quatro horas é que se pode enterrar.

Bem sei, senhor secretário. Mas um dia e uma noite com o calor que está... Ninguém pode parar com o cheiro. Vão ver.

Os outros colonos apoiaram o Anacleto. Jaime Silva acabou por concordar.

Não há dúvida que ele está morto, não é verdade?

disse o secretário, e olhou à sua volta.

Joaquim Américo encarou-o, furioso. «Que besta!», pensou, e afastou-se para o fundo da varanda.

Sobre isso é que não há dúvidas, senhor secretá­rio — disse Anacleto, baixando os olhos.

Tratando-se da saúde pública... — arriscou Albano Sampaio. — Nesse caso...

Isso não é novidade — cortou o secretário. — Era no que eu estava a pensar. — E determinou, voltando-se para Joaquim Américo: — Pode enterrar-se. Assumo a responsabilidade, em defesa da saúde pública.

Depois do caixão sair, a caminho do cemitério, às costas de seis negros, atrás os funcionários e os colonos, seguidos por sipaios e capitas que mantinham a distância os negros, as mulheres numa choradeira pegada, a Amélia do Francisco Bernardo levou Francisca e João para sua casa.

Um capita ficou, por ordem do secretário, de guarda à loja.

Depois do enterro. Silva e Sampaio vieram arrolar, na presença do Anacleto e Pancário, os bens deixados por José Calado: meia dúzia de peças de riscado, rolos de tabaco, uma lata com missangas e medalhas de santos para mata-bichos aos comerciantes indígenas, sacos de fubá e milho, atados de peixe seco, duzentos e três ango-lares em notas e moedas, as roupas de uso e os tarecos que formavam a mobília que servira ao colono durante vinte anos.

E é tudo — disse o secretário.

Selaram as portas, deixaram o capita a tomar conta da casa e dos tarecos, que o restante foi mandado para a Administração, e abalaram para a povoação alta.

Dias depois, quando a negra Francisca quis voltar para casa, o capita tornou-lhe o passo e disse-lhe que o secre­tário dera ordens para não deixar entrar ninguém. Apontou-Lhe para os lacres que estavam nas portas e janelas e afas­tou-se.

Tem minha pano. Só pega pano, Cangolo — pediu ela.

Mas o capita dizia-lhe de longe que não, que fosse pedir ao secretário, porque ele não iria parar à cadeia por causa dos seus panos. E como ela insistisse, numa teima birrenta, o capita acabou por se zangar e ameaçou-a de a levar presa para a Administração. A negra enfureceu-se e pôs-se a gritar, com as mãos na cabeça, insultando brancos e negros fardados.

Pancário veio à varanda. As mulatas espiaram das janelas e os negros vieram a correr para a rua. Afredo Anacleto perguntou do seu quintal o que se passava. ocapita foi para trás da casa fechada, com vontade de esbofetear a negra. João Calado correu para a mãe e calou-lhe os gritos de desespero e raiva com promessas:

— Vou no seu secretário, mamãe. Vai dar tudo na gente. É pró negro não rouba, mamãe.

Francisca calou-se, as lágrimas a correrem-lhe em fio pelas bochechas, e voltou para casa do Bernardo, pela mão do filho.

Nesse mesmo dia, o mulato apresentou-se na Admi­nistração.

— Que há, João? — perguntou Jaime Silva.

— É chave da casa. A gente vai volta.

— Qual chave?

— Da nossa casa.

O mulato olhava muito admirado para o secretário, e, depois, encarou os aspirantes, com uma ponta de desconfiança.

— Ouve, rapaz, isso não pode ser assim. Não é como tu julgas. A coisa é mais complicada.

João Calado abriu muito os olhos e ficou à espera, inquieto. Silva hesitou um momento, pondo-se a arrumar a mesa de trabalho, tirou um livro de uma estante e per­guntou-lhe:

— Tu sabes se o teu pai te registou como filho? João não sabia. Nunca ouvira falar em registos, nem

sabia para que isso fosse preciso. Não estava ali por causa de registos, mas só para que lhe entregassem a chave da casa onde nasceu, construída pelo pai e onde sempre viveram todos juntos.

— Pai pagou imposto — disse ele, julgando que seria essa a razão da não entrega das chaves.

— Não é nada disso. Eu falo do registo de nascimento. Talvez os amigos do teu pai saibam. Nos nossos livros não há nada a teu respeito. Se quiseres podes ver — e apontou-lhe para o livro que, momentos antes, tirara da estante — Vê, vê.

— A gente não sabe lê. Branco não sinou.

— Então vai lá perguntar isso ao Anacleto e ao Ber­nardo. Talvez haja alguma coisa nos livros da Missão do Luremo ou noutro sítio. Nós aqui é que não sabemos.

Quando o mulato saiu, o secretário voltou-se para os aspirantes e disse:

— Vocês ouviram o gajo?o branco não ensinou, hem... Mulato atrevido!

— E tem razão — disse Américo.

Silva olhou para ele de viés e não disse nada.

o mulato foi a correr à casa dos colonos. Ia con­vencido de que os velhos sabiam pôr tudo aquilo a limpo.

«Eles sabe tudo, tava cá cum pai», dizia em voz alta, mas era para si mesmo que falava.

Mas os colonos tiraram-lhe as esperanças.

— A gente só registou os nossos o ano passado. Mas o teu pai foi adiando, por causa daquela perna que o não deixava andar, e lá se foi, coitado, sem regularizar a tua situação — informou Alfredo Anacleto. — Eu bem o avisei que podia dar sarilhos.

— Diz que na Missão... — balbuciou o mulato.

Os velhos abanaram a cabeça. Depois, Francisco Bernardo disse:

— Antigamente não se faziam registos, não havia auto­ridade. E lá isso de padres não é com a gente. Teu pai nem os podia ver. E olha que ele tinha um irmão que era padre. Mas esse nunca esteve por cá.

— Quando   tu   nasceste,   não   havia a   Missão do Luremo — informou Anacleto. — Padres não apareciam por cá.

— Não vai dar nossa casa? — perguntou João, ansioso, o sangue a subir-lhe à cara.

— Talvez...—arriscou Anacleto, após um curto silên­cio. E voltando-se para o compadre: — Já uma vez eles fecharam os olhos, quando foi da morte do Reis, de Caun-gula. Você lembra-se? Os filhos também não estavam registados. Mas isso foi no tempo do administrador Cabrita. Agora...

— Também podiam fazer o mesmo com este — disse Bernardo. — O que o Calado deixou ou nada...

— Sempre faz jeito, para quem não tem um tecto. Voltou João Calado à Administração e papagueou

o que os colonos lhe disseram.

— Não, rapaz, isso não pode ser assim. Lá o que se passou com os filhos desse tal Reis, não tenho nada com isso. Eram outros tempos. Agora é diferente. oteu caso é bicudo.

— Não vai dar, seu secretário? — E as mãos do mulato tremiam.

— Tenho muita pena, mas é contra a lei. Joaquim Américo saiu para a varanda e encostou-se a um pilar, a olhar para um grupo de garotos que brincavam em correrias, mas a sua atenção não saía da Secretaria.

— Pai fez casa. Tudo ó nosso.

Silva explicou-lhe que, perante a lei, ele não era filho de José Calado. omulato ficou de boca aberta, vermelho até as orelhas.

— Em face da lei, tu não tens pai nem mãe. João   Calado   tomou   aquelas   palavras como   um

insulto, que um sorriso de Sampaio agravou. o sangue subiu-lhe à cabeça, a vista turvou-se-lhe e, num repente, gritou:

— Me tá roubando I

— Filho da puta!—gritou o secretário deitando-lhe as mãos à camisa. — Eu te ensino, seu negro I

— Larga I — E o mulato atirou-lhe um empurrão.

o secretário desequilibrou-se e caiu sobre uma cadeira, que se voltou. omulato cresceu para ele, os olhos raiados de sangue, e atirou-lhe um murro que o jogou ao chão.

Sampaio correu à porta a chamar pelos sipaios.

Apertado pelos joelhos do mulato e sob os seus murros, Silva, com a cara cheia de sangue, estrebuchava e tentava mordê-lo.

Os sipaios arrancaram João Calado de cima do secre­tário, que tinha a farda rasgada e suja de sangue.

— Amarrem-no I Fechem as portas I

Sampaio apressou-se a fechar as portas, enquanto os sipaios amarravam as mãos do mulato atrás das costas.

— Larga, negro I Me larga, cachorro I

E o mulato atirava pontapés às cegas, sem atingir ninguém.

Quando o viu de mãos amarradas. Silva tirou um chi­cote da gaveta da sua mesa de trabalho e mandou que o largassem. Mal os sipaios se afastaram, atirou-lhe uma chicotada. O mulato desviou a cabeça e o chicote apa­nhou-o num braço, desequilibrando-o. Encostou-se à parede e arrancou num salto, a cabeça para a frente. Sampaio puxou o secretário por um braço, evitando o choque. João Calado bateu com a cabeça na parede e caiu atordoado. Tentou levantar-se, mas já o cavalo-marinho lhe estava em cima, golpe sobre golpe. Uma chicotada rasgou-lhe a cara, dos olhos ao queixo, arran­cando-lhe um urro que fez os sipaios fugirem para debaixo do balcão. Outro golpe rasgou-lhe a boca. Perdeu os sentidos.

Toma i toma, cãol — E Silva chicoteava-o às cegas. A porta abriu-se com estrondo e Joaquim Américo correu sobre o Silva, arrancou-lhe o chicote, atirou-o para longe e esbofeteou-o.

Pulha! Cobarde!

Sampaio meteu-se entre eles, a cobrir o secretário.

Ó Américo, veja o que está a fazer, homem I — dizia o Sampaio.

Jaime Silva escondeu-se atrás da sua mesa de tra­balho e pôs-se a gritar:

Está preso! Sipaios, prendam este branco! Sipaios! O sipaio Aparo tinha-se escondido debaixo do balcão e não havia gritos nem ameaças que o fizessem mexer. Batata fugira para as traseiras da casa, surdo a qualquer chamado.

Américo voltou as costas aos colegas e saiu da Secretaria. Viram-no atravessar o largo e meter à estrada.

Secretário, eu estou inteiramente ao seu lado.

Muito obrigado, Sampaio, muito obrigado.

Não é para agradecer, secretário. Os amigos são para as ocasiões.

João Calado foi levado às costas de um capita para a cadeia. Os negros que estavam a trabalhar no alto da povoação, suspenderam as enxadas e quedaram-se, pas­mados e medrosos, vendo-o com a cabeça pendida sobre o ombro do capita, olhos fechados, sem um gemido, como morto, os pés a arrastar na estrada que ficou marcada com sangue até à porta da cadeia.

Nesse dia, pelas aldeolas ao redor da vila, correu o boato da morte do mulato. Negros que tinham ido à Administração contaram o que fizera Joaquim Américo, mas os homens das aldeias não quiseram acreditar. Um velho afirmou que tudo era mentira, que não havia branco tomasse a defesa de um mulato contra outro branco. Disse aos berros que conhecia muito bem os brancos e sempre os vira unir-se contra os homens que não eram sua raça. Mas vieram outros homens da vila, alguns velhos de consideração, e confirmaram tudo o que os outros disseram. O velho escutou-os em silêncio, esteve muito tempo de olhos escancarados, sem dizer palavra, e, de repente, levantou-se, correu para o tambor do terreiro e começou a tocá-lo, gritando:

Povo Nasceu o coração do branco!

E pôs-se a cantar uma canção de louvor para Joaquim Américo.

Os homens nus formaram roda à volta do tambor e bailaram cantando a canção do velho.

Quando Américo entrou na sua casa, ouviram-se gritos para os lados da Administração. Era o sipaio Aparo que estava sendo castigado com palmatoadas dadas por um capita, sob as vistas de Jaime Silva e Sampaio. Sobre os gritos do negro, a voz do secretário cresceu:

Com mais forçai Chega-lhe!   Rebenta-lhe essas unhas!

Depois de surrado, as mãos inchadas a escorrerem sangue, o sipaio caiu de borco na varanda da Adminis­tração, a gemer com a boca no chão.

É para a outra vez ouvires as ordens do branco — berrou-lhe o secretário, assentando-lhe um pontapé na cabeça. Voltou-se para o capita e disse aos gritos: — Agora no Batata, com força, bem puxadas, senão apa­nhas tu.

Logo às primeiras palmatoadas, os berros do sipaio vararam a vila, arrepiantes. Joaquim Américo saiu de casa. Não podia ouvir aqueles gritos.

— Cobarde! MiserávelI—dizia, a descer a estrada, a passo estugado.

Os moleques que estavam a espiar atrás da paliçada dos quintais, tremiam de medo, mas não arredavam pé, curiosos, olhos esbugalhados para a varanda. Mas os presos que andavam a trabalhar aqui e ali, riam à socapa, sem largarem de vista o guarda, não fosse ele surpreendermos na risota e cair-lhes em cima a golpes de cavalo-marinho. Estavam alegres porque se sentiam vingados das arrogâncias e maus tratos que sofriam dos sipaios.

Enfurecido com os gritos do Batata e suas esquivas a abrir as mãos à palmatória de cinco olhos e cinco quilos, ora atirando-se ao chão ora saltando como possesso, a tentar libertar o pulso da mão de ferro do capita, o secretário foi buscar o chicote à Secretaria e zurziu-o até o sedar, sem gritos, um gemido enorme na boca san­grenta, ao castigo de palmotoadas.

Anoitecia quando Américo voltou a casa. Recostou-se numa cadeira de lona e reconsiderou, calmamente, no seu acto e nas consequências que dele lhe adviriam. Não lhe ficava dúvida de que seria demitido. Levantar-Lhe-iam um processo, que se arrastaria por muito tempo, subindo todos os escalões da burocracia para terminar pela demissão. Entretanto, ser-lhe-ia fixada residência em qualquer circunscrição do mato, sem direito a venci­mentos. Era da praxe.

«Não lhes darei esse trabalho», disse consigo, deci­dido a abandonar o cargo e a terra.

Levantou-se e pôs-se a andar de cá para lá, no quarto ensombrado. O criado entrou para acender o candeeiro. Bateram à porta.

Branco — disse o negro, e deu um passo para a porta.

Espera. Eu abro. Era o Sampaio.

O que é que quer?

Eu vinha...

Américo deu-lhe com a porta na cara e gritou-lhe:

Desapareça da minha vista, seu traste I

Os passos do Sampaio afastaram-se, apressados, na estrada.

Tu viste o branco vir?

Não siô. É sapato dele no caminho.

No dia seguinte, Joaquim Américo vestiu-se à pai­sana, mandou entregar ao secretário a chave da casa e mudou-se para a povoação dos colonos. Instalou-se em casa do Manuel Pancário, à espera de transporte para Malanje.

 

A chuva não voltou para acamar a sepultura do colono, onde a negra Francisca ia todos os dias pôr flores colhidas no matagal bravio, nas manhãs orvalhadas.

De regresso do cemitério, parava à porta da cadeia a chorar pelo filho que os sipaios a não deixavam ver, por determinação do secretário.

— Fala nosso secretário — recomendavam-lhe os sipaios.

Mas ela não se sentia com coragem de voltar à Admi­nistração a implorar a Jaime Silva, como tantas vezes fizera, sempre em vão, que a deixasse ver o filho. «Só ver ele, branco.» Mas o coração do secretário estava duro e nem lhe respondia.

Os sipaios tinham de correr com ela, ameaçá-la com o secretário, para não ficarem o dia inteiro a ouvir o seu choro.

Um domingo, andava o Silva para as bandas do rio aos tiros aos patos-bravos; o sipaio Canivete, de guarda à prisão, prometeu-lhe, sob segredo, deixá-la ver o filho. Que viesse à noite, depois de se apagarem as luzes nas casas dos brancos, prometera-lhe, em voz baixa, olhando em redondo, cheio de medo. Ela viu-lhe o cinto do filho e acreditou.

Passou o dia a cantarolar e a andar de um lado para o outro numa nervoseira que chamava as atenções, o que lhe custou a reprimenda de uma das filhas do Bernardo.

— Inda teu home tá quente e tu tá aí cum essa boca aberta!

Francisca calou-se. No dia seguinte é que disse por que estivera tão contente, com tanta vontade de cantar.

— Meu fio tá assim — disse ela espetando um dedo, a significar a sua magreza extrema.

Abanou a cabeça com tristeza e os olhos encheram-se-Lhe de lágrimas.

— Quando sai? — interessaram-se as mulatas.

— Jão mandou eu no Malanje pedir seu governador. Ele manda orde.

— Tu vai? Quando?

— Tou falando carregador. Seu Américo deu dinheiro, cem angolar. Vinte ficou cum sipaio.

— Deu ele?

— Pra vê Jãozinho. Também panhou cinto. Seu Amé­rico dá mais.

Na véspera de deixar Camaxilo, Francisca foi ao cemi­tério. De passagem pela povoação alta, roubou uma rosa vermelha no jardim de D. Jovita e deixou-a na campa do Calado. De regresso, entregou ao sipaio uma lata com doce de amendoim para o filho. Mas ainda ia a meio do caminho da casa do colono e já o sipaio tinha visto o fundo à lata e um negrinho, com o umbigo do tamanho de uma noz, raspava-a com os dedos sujos de terra.

Ao afastar-se da vila, dentro de uma machila, a negra Francisca começou a chorar. Vivera ali vinte anos, com José Calado, e tudo a prendia àquela terra. Ele trouxera-a de Malanje e nunca mais saíra da vila. Mesmo quando o colono foi com os soldados às aldeias do Lubalo, como guia da coluna de Ocupação, e os negros vieram queimar e saquear a sua casa, por represália, ela não deixou a vila. Refugiara-se numa senzala à beira-rio, sob a protecção de um sobeta que se fora oferecer aos militares quando ainda vinham a caminho.

Quando o colono regressou da guerra, estava pobre, mais pobre que no dia em que ali chegara com uma pacotilha, muitas esperanças de enriquecer depressa e uma saúde de ferro. Um comerciante de Malanje fiou-lhe fazendas e logo recomeçou o negócio, primeiro numa grande cubata, depois na casa nova, levantada pelos negros que o coman­dante da coluna pôs à sua disposição, sem pagar vintém, a título de compensação pelos prejuízos que outros negros lhe causaram. Mas daí por diante a vida começou a correr-lhe mal. As fazendas chegavam a Camaxilo muito caras e de longe em longe, e os pedidos do seu pagamento eram sempre urgentes e com ameaças veladas de se suspender os fornecimentos, se os fundos não fossem enviados. O comerciante de Malanje tratava-o como seu aviado. Quando Manuel Pancário chegou com fazendas de padrões novos e muito mais baratas, ele perdeu os melhores fre­gueses e mal passou a ganhar para comer e pagar as licenças.

Francisca olhou mais uma vez para a vila, um ponto branco no verde sombrio da mata, e já não distinguiu a cadeia onde estava o filho, nem a estrada para o cemitério. Tudo começava a ficar longe.

Agora, que a negra está de regresso à sua terra, onde seu filho prometera ir juntar-se-lhe depois de receber a herança do pai e vender a casa, ela recorda a vida feliz que viveu na vila, quando o seu homem tinha dinheiro e a amizade dos grandes sobas. Na sua casa havia sempre muita gente, comerciantes da vila opulenta, que tinha fama em toda a colónia como mercado de borracha, outros do Cuilo, Luremo e de muitas feitorias das planí­cies de além-Luita, hoje terra dos Belgas. Lembra-se, como se fosse hoje, de ter aberto muitas garrafas de champanhe para os amigos do seu branco e de lhes ter servido peixes e carnes que vinham em latas e doces em bonitos frascos. Nesse tempo os brancos não bebiam água nem comiam pirão e peixe seco. Isso era bom só para o negro. Ela andava, de igual para igual, entre todos esses homens vestidos de brim branco e de bom caqui inglês, com cha­péus de aba larga e capacetes de cortiça, a falarem muito e sempre em voz alta, gritando palavrões e dando grandes gargalhadas. Ela ria, vaidosa, quando eles lhe gabavam as blusas de cores berrantes, os panos de cetim fulgurante e os lenços de cabeça, amarelos e vermelhos, as cores de que mais gostava, que o companheiro lhe mandava com­prar nas boas casas de Luanda.

Dentro da machila trepidante, planície em fora, na estrada avermelhada entre capins amarelos e verdes, a negra está a ver o seu passado. Lá está a vila perdida no mundo das suas saudades, com as casas brancas de telhados de zinco a rebrilharem ao sol, enchendo uma dúzia de ruas. Ao fundo, sobre o vale e os juncais, des­taca-se o hotel do Monteiro, com os brancos a jogarem ao bilhar, a baterem cartas nos panos verdes das mesas do bacará e a beberem, sempre a beberem. Francisco Bernardo, vestido de branco, muito alto, de barba negra, os olhos cheios de brilho e alegria, contava aos comer­ciantes, recentemente chegados, as suas aventuras no tempo em que chegara à Lunda e ainda não havia comércio de borracha. Só se compravam escravos e dentes de mar­fim. Riam às gargalhadas ao ouvi-lo falar nas negras nuas que encontrara em Mona Quimbundo, agachadas defronte das fogueiras, com as mãos abertas sobre o sexo. E ele, meses antes chegado da Metrópole, onde poucas mulheres conhecera até aos dezoito anos, idade em que viera para Angola, a ver aquele espectáculo com o olho a luzir de gozo, enquanto o soba o espiava soltando gargalhadas, perguntando-lhe se na sua terra não havia mulheres. Entre os ouvintes, lá estava José Calado, sempre metido consigo, sem largar as cartas.

A negra recorda-se da vida de todos os homens da antiga vila, das suas coisas boas e más, mas mais destas que daquelas. O seu homem não gostava que ela se refe­risse a esse tempo, em que foi abastado e viveu feliz. Então, ele falava em ir viver em Portugal e comprar uma quinta para descansar o resto da vida. Dizia-lhe a toda a hora que levaria o filho para estudar para «doutoro. Ela ficaria em Malanje, numa casa nova, vivendo da mesada que lhe deixaria. Os outros europeus que tinham filhos mulatos, pensavam da mesma maneira, sem se importa­rem com os queixumes das companheiras. «É para o menino não ficar selvagem», diziam eles. E elas lamen­tavam-se vendo-se já sem os filhos, mas resignadas porque eles não iam ficar selvagens. Mas foram poucos os que compraram a quinta na terra e menos os que levaram os filhos. A maioria morreu e os filhos andavam agora pelas vilórias do sertão. Alguns ficaram com as mães nas senzalas e tornaram-se tão selvagens como os homens de tanga e amuletos.

O que é que a negra Francisca não conhece da vida de Camaxilo? Se ela até sabe que o velho Bernardo se meteu com a Flávia, filha do seu compadre Anacleto e sua afilhada, quando era rapariguinha como o é a irmã Maria. E aquilo só não deu escândalo, quando a mãe lhe viu o vestido manchado de sangue, porque o com­padre andou com dinheiro e panos, presente para aqui, presente para ali, que era um regalo para a negra e uma raiva para ele. E também sabe a história daquele branco que apareceu morto na loja do Veríssimo, o «Espalha- Brasas», na noite em que chegou de uma feitoria de além-Cuilo com mais de trezentos fardos de borracha. Encon­traram-no debaixo das cargas, com a cabeça esmagada e os braços partidos. Os brancos falaram muito no caso e alguns voltaram as costas ao Veríssimo. Mas o que mais indignação causou foi ele ter recusado dar um lençol para o cafuso ir a enterrar.

Depois, os brancos começaram a abandonar a vila, porque já não valia a pena comprar borracha. As casas foram caindo, o capim entrou nas ruas e nasceram ervas nos quintais e sobre as ruínas.

Foi nesse tempo que José Aparício se enforcou na sua loja e o mulato Jesus enlouqueceu, desaparecendo dias depois no rio, durante a cheia.

Quando os brancos fardados, primeiro os militares e muito mais tarde os administrativos, chegaram à vila, já a terra estava morta. Mas ainda se contavam histórias de brigas e de sangue, de roubos e de casas saqueadas, de morte de homem e de meninas desfloradas, tudo passado entre brancos e mulatos. Os negros viviam afas­tados, nas suas aldeias, onde os comerciantes iam pagar o imposto aos sobas.

Anos depois é que se encontraram os primeiros dia­mantes, no rio Cassai, e vieram os pesquisadores da Com­panhia de Diamantes do Nordeste. Os comerciantes foram expulsos da zona mineira. Alguns foram presos porque lhes encontraram diamantes que os negros apanharam havia muitos anos nas areias dos rios e que não sabiam pertencerem à Companhia recentemente fundada...

Ruíram, ao abandono, as casas comerciais dadas como dentro da zona mineira, encheram-se de mato os cami­nhos e muita gente emigrou, porque a terra estava morta e os brancos do Governo andavam a «caçar» homens para trabalhar por conta alheia. Mais tarde, lundas e quiocos regressaram às suas antigas terras, porque do outro lado da fronteira também havia brancos e minas e os castigos ainda eram mais duros: tronco, chicote e correntes ao pescoço durante o trabalho nas estradas.

Umas coisas trazem outras do fundo da memória da negra Francisca. Lembra-se de brancos e negros que há muito tempo andavam esquecidos. Mas há coisas em que não gosta de pensar, como nessa guerra do Caungula, em que ele mandou roubar e saquear muitas casas de brancos. Esse foi o último golpe na fortuna dos colonos, que andavam longe das suas casas a ajudarem os brancos que vieram fazer a guerra. Empobrecidos, os colonos quiseram abandonar a região, mas o comandante da coluna de Ocupação acusou-os de falta de patriotismo. Pediu-lhes que nunca se esquecessem que eram soldados da Ocupação, e lembrou-lhes que cada um representava no posto onde se encontrasse a soberania portuguesa. Que ficassem, firmes nos seus postos, porque o Governo os indemnizaria dos prejuízos de guerra. E que ele mesmo, seu comandante, iria propor condecorações para «os bravos que guiaram as tropas aos antros dos sobas san­guinários e ladrões». «A Pátria não esquece os seus bons filhos», dissera-lhes o oficial. Mas o tempo foi passando e não lhes deram um chavo nem os penduricalhos. Pouco tempo antes de morrer, José Calado fez um requerimento a lembrar a indemnização. Francisca quis que ele também falasse na medalha, mas o colono dissera-lhe que pendu­ricalhos não davam de comer a ninguém e os negros quando viam um comerciante com medalhas ao peito desconfiavam dele e não punham os pés na sua casa. Bernardo e Anacleto nem queriam ouvir falar nessas coisas.

Depois, os militares foram-se embora e vieram os administrativos cobrar os impostos a abrir estradas. Bran­cos e negros pagaram de mau modo os primeiros impostos ao Estado e disseram que a terra e a vida estavam estra­gadas para sempre... Fecharam-se várias lojas e só fica­ram, em Camaxilo, Bernardo, Anacleto e Calado.

Foi nesse tempo que o homem da senzala pegou pela primeira vez numa enxada para cavar terra de plantio, porque os brancos novos queriam comer couves e batatas como as do seu país. As negras que viram os seus homens de enxada na mão, indignaram-se contra o branco que dera essa ordem humilhante, porque só a elas competia fazer esse serviço. Mas os brancos disseram que era a mesma coisa, a que os homens só tinham a ganhar aprendendo a cavar, porque «o futuro da colónia estava na agricultura».

E todos ficaram pasmados, quando o administrador disse que «o tempo antigo tinha acabado» e que se ia começar vida nova. Prometeu escolas para os mulatos e crianças negras aprenderem a ler e a escrever, para não ficarem selvagens; médicos e enfermeiros, porque não queria que os brancos se tratassem com os curandeiros, que deviam ser perseguidos e presos como assassinos, e um hospital para europeus e indígenas, para ninguém morrer como cão abandonado.

Francisca tem a impressão de ainda estar a ouvir o administrador a discursar junto do pau da bandeira, a drapejar no alto, os sipaios em sentido, os colonos nos seus fatos domingueiros e os sobas com o seu povo, muito atentos a ouvirem dizer que já não havia escravos, que todo o homem era livre. «O negro é um cidadão», declarara o administrador no fim do discurso.

Ao recordar as últimas palavras do administrador, proferidas havia mais de duas dezenas de anos, Fran­cisca cuspiu para fora da machila, apertou os olhos e franziu o nariz.

Na planície cheia de sol, com pássaros a voarem alto, os machileiros abandonaram a estrada para meterem a um atalho, desaparecendo dentro do capinzal a amare­lecer nós cimos ondulantes.

 

Albano Sampaio deixou de aparecer na loja de Manuel Pancário. Não queria encontrar-se com Joaquim Américo. Mas ao cair da tarde, os aguadeiros negros viam-no descer a estrada, de chicote na mão, assobiando, parar uns momentos na ponte, debruçar-se na guarda a fazer tempo, e à boca da noite meter-se, olho à esquerda, olho à direita, ao matagal que subia do vale até à cerca da casa do Alfredo Anacleto. A mulata já o esperava debaixo de uma árvore, junto ao cercado, e lançava-se-lhe nos braços cheia de medo e cio. Demorava-se pouco tempo, porque em casa do colono podiam dar pela sua falta e a noite no vale era um perigo, com as feras a acordarem nos covis para se lançarem pelos matagais nas suas caçadas aos comedores de ervas.

Como quem vai em passeio, os mulatos começaram a passar à beira do lugar onde eles se encontravam, dois a dois, falando em voz alta, com alusões ao encontro dos amorosos. Um dia, desafiaram Eugênio a ir ver o que a irmã estava a fazer. O rapaz não foi e queixou-se ao pai. O velho mandou-o calar e proibiu-o que se metesse onde não era chamado. Eugênio embezerrou. Deixou de falar à irmã, que trocara João Calado, seu amigo, pelo aspirante, «só por ser branco».

Mas Anacleto, nesse mesmo dia, pôs um servente, negro velho da sua confiança, a espreitá-los, não fosse o namoro adiantar-se e dar mau resultado e o Sampaio fazer-se esquecido do que combinaram. O velho dizia para consigo que «tudo anda muito bem enquanto se não experimenta, porque depois do fruto comido deitam-se as cascas fora».

— Eles só fala — diziam os mulatos, despeitados. — Seu Sampaio é branco de cuspo...

Mas era rara a noite que Maria não fugia de casa para se-encontrar com o amante atrás do quintal, com o velho negro, que o pai pusera a espiá-los, generosamente gra­tificado pelo aspirante, de atalaia.

Na noite em que Joaquim Américo se mudou para casa do Pancário, Maria disse ao Sampaio:

— Os negro tá falando tu panhou de seu Américo. Não é verdade, não?

— é mentira! Eu é que lhe cheguei a roupa ao pêlo. Até o atirei com um pontapé para fora da Secretaria.

— Tá certo. Negro só fala mentira. — E ela beijou-lhe a boca.

Passado um momento, deitada sobre o peito do amante, olhos fitos na sua boca, disse:

— Albano, tem uma coisa pra dizer...

O que ó?

— Tu vai ficar contente. Vai, vai.

— Diz depressa.

— Tou grávida — murmurou-lhe ao ouvido.

— O quê?! — E afastou-a com um braço, pondo-se nervoso.

Maria abriu muito os olhos, os lábios tremeram-lhe e começou a chorar.

—oque é que tu tens, Maria? — disse ele abran­dando a voz, aborrecido consigo mesmo por não se ter dominado.

— Tu zangou.

— Não. Que ideia, amor... — disse a beijar-lhe os

olhos.   E   procurando ser natural:—Temos   de casar depressa, Mariazinha.

Ela pôs-lhe as mãos na cara, sorriu ainda com os olhos molhados e beijou-o repetidas vezes.

— Vou tratar dos papéis. E é já amanhã. Mas ouve bem o que te vou dizer, Maria.

Ela inclinou-se, ansiosa, os olhos muito abertos e brilhantes.

— A quem é que tu disseste que estavas grávida? Foi à tua mãe ou a alguma das tuas irmãs?

— Não disse, não. Só vi.

— Como?

— Faltou o «costume».

— Bem, bem... O que é preciso é não abrires a boca, nem uma palavra, porque eu não quero que o teu pai saiba isso sem primeiro casarmos. Não quero, ouve bem, que ele julgue que eu sou algum pantomimeiro. Percebes bem, Maria? Sou eu quem lhe fala, ouviste?

Ela dizia a tudo que sim com repetidos movimentos de cabeça.

— Se falas, estragas tudo — tornou Sampaio, olhando-a nos olhos.

— Não fala, não. Juro por tudo.

— Eu sei. E amanhã, já sabes, começo a tratar dos papéis e logo que tudo esteja pronto casamo-nos na Adminis­tração.

— Não queres na Missão? Tem padre e tudo. Eu gos­tava mais.

— Está claro que quero. Casamos na Administração e depois vamos à Missão de Malanje e damos um passeio até Luanda.

Maria apertou-lhe as mãos e beijou-as demoradamente.

— Tu é bonzinho...

— Bem; agora vou até lá acima. Chegou o Vaiadas. Hoje não me posso demorar.

— Não vai já, não — pediu numa carícia, chegando-se muito a ele.

— Tenho de ir.   Ele está em minha casa—mentiu, desprendendo-se-lhe dos braços. — Amanhã venho mais cedo.

Beijou-a nos olhos e afastou-se a coberto das árvores.

— Tenho uma grande novidade para vos dar. Uma não, duas — disse   Carlos Vaiadas,   parado   na   estrada defronte da casa de Pancário.

Subiu para a varanda, onde Joaquim Américo estava encostado numa cadeira de lona, e disse:

— Vocês vão ficar parvos!

Manuel  Pancário   aproximou-se,   curioso,   a   farejar escândalo.

— Desembucha, homem! — impacientou-se Américo.

— Aí vai: o Sampaio foi-se embora!

—oque... que me diz!... — gaguejou Pancário, pondo-se muito vermelho.

— Foi para Saurimo. Nem o vi quando me levantei. Saiu ainda de noite. Ontem jantámos todos em casa do Silva e eu nem suspeitava que o gajo se ia raspar.

— Não pode ser! — E Pancário enfiou para a loja.

— O que é que ele tem? Foram atrás do comerciante.

— E a outra? — quis saber Américo.

— Já me esquecia. A sede da Circunscrição vai para Caungula.

— Vejam, senhores, quase seis contos! — lamuriou-se Pancário, atrás do balcão, debruçado sobre o livro dos fiados. — E eu que lhe dei de comer de graça todo este tempo! E nem um bilhete a despedir-se! — E os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

— Homem, o que é isso!

— É de raiva, senhor Vaiadas. De raiva I

E Pancário afastou-se para o fundo da loja, a limpar os olhos com a ponta de um lenço, de costas para eles. Depois, enrolou um cigarro e veio acendê-lo na chama do candeeiro, sobre o balcão.

— E isso de Caungula, é verdade, senhor Vaiadas?

— É. Vi o ofício do governador. E é logo que o admi­nistrador chegue. Foi o que me disse o secretário ontem, logo que cheguei do Posto.

Manuel Pancário mal dormiu nessa noite. Aquela mudança da sede da Circunscrição para Caungula, ia obrigá-lo a abrir nova loja, para não perder os forne­cimentos de alimentação ao pessoal que fosse para as minas e continuar a vender aos brancos e negros ao seu serviço.

De manhã, muito cedo, já ele andava na varanda, de cigarro ao canto da boca, a vigiar a limpeza da loja. Quando viu Joaquim Américo sair do quarto e reclamar o café, disse-lhe:

— Vou abrir casa em Caungula. Deixo cá o Mariano e vou para lá.

— Pois, pois, Pancário, é aproveitar. Vamos a esse cafezinho.

Estava Pancário a atender um criado do Silva, que o informara ter Sampaio ido doente para Saurimo, mas que ele o tinha visto a falar e a rir muito satisfeito com o patrão, durante o jantar, na véspera da partida, quando Anacleto lhe entrou pela loja, esbaforido, em mangas de camisa e sem chapéu.

— Já sabe, Pancário? Esse malandro desgraçou-me a rapariga e fugiu I — exclamou o velho caindo sobre o balcão.

Pancário correu em seu auxílio, mas já não foi a tempo de evitar que batesse com a cabeça na quina do balcão. — Ajudem! Ó Mariano! Ó senhor AméricoI

Acudiram de todos os lados. Levaram o velho para casa e deitaram-no mesmo vestido. A companheira e as filhas, à volta da cama, choravam vendo-o de boca tor­cida e olhos revirados.

— Calem-se, por favor I — gritou Américo. — Chorem lá fora. — E empurrou as mulatas para o quarto ao lado.

— Uma destasI Ora, uma destas! — dizia o velho Bernardo, indo de um lado para o outro, sem saber o que fazer.

— Ponham-lhe toalhas com água fria na cabeça — recomendou Vaiadas, que viera a correr da povoação alta, onde se dizia que o velho tinha caído morto na loja de Pancário.

O velho esteve entre a vida e a morte durante uma semana. Nunca mais lhe ouviram palavra, nem dava sentido ao que lhe diziam. Estava paralítico do lado direito. A baba escorria-lhe pela boca torcida e uma névoa toldava-lhe os olhos.

— Nunca mais volta a ser o homem que foi — dizia Francisco Bernardo.

Quinze dias depois, o velho Anacleto já ia, amparado pelo filho, até à varanda, aquecer-se ao sol. Eugênio sentava-o num cadeirão de braços, ajeitava-lhe a perna paralítica e embrulhava-o numa manta, porque por forte que fosse o calor o velho tremia com frio. Para ali ficava horas e horas seguidas, com o olhar perdido nos longes, sem dizer palavra, apático.

Francisco Bernardo dizia-lhe adeus, da varanda, mas ele nunca ouvia. SÓ uma vez é que reparou nele e quis falar-lhe. O outro aproximou-se, mas não percebeu o que ele queria. Pela boca torcida só lhe saíam guinchos e saliva que se empapava na barba embranquecida. Só Eugênio percebia esses guinchos.

— Mais valia ter morrido — dizia   Bernardo, balan­ceando a cabeça.

Eugênio tomou o lugar do pai atrás do balcão, contra o conselho do Bernardo.

— A gente não ganha para as contribuições — dizia-Lhe o velho. — Eu vou fechar e tu devias fazer o mesmo. E ouve o que te digo, que sou teu padrinho e um velho que já viu muita coisa: os negros de cá não gostam de negociar com mulatos. Foi sempre assim.

Lembrou-lhe que a sede da Circunscrição ia para Caungula, acabando os fornecimentos de fubá e peixe seco à Administração, destinados ao pessoal contratado para as minas, e os sipaios e criados dos funcionários comprariam tudo ao comerciante que estivesse à mão.

Mas Eugênio ficou agastado com a referência ao negó­cio com os mulatos e não lhe deu ouvidos, chegando até a desconfiar que o padrinho lhe quisesse apanhar a freguesia.

—oveio tá pensando eu tou algum servagel — disse ele a sua irmã Flávia, que o ajudava na loja.

Mas quando, dias depois, foi pagar a contribuição à Administração, soube que Francisco Bernardo deixara de ser contribuinte.

—oveio tem razão — disse à irmã, de regresso da Administração. — Isto   não   presta.   Seu   Pancário tava dizendo lá prós brancos que comprou as prateleiras e o balcão do padrinho prá loja de Caungula.

Nesse momento, entrou na loja o soba Comboio, de pano novo à cinta, apertado num dólman de oficial da antiga Guarda Municipal, com um guarda-chuva aberto, cheio de buracos e varetas quebradas.

Comboio tinha sido servente do Alfredo Anacleto e afeiçoara-se aos mulatos. Acocorou-se sobre um saco de milho e pegou-se a conversar com o Eugênio.

Tem?! — perguntou   Eugênio,   abrindo   muito   os olhos.

Comboio confirmou tudo o que lhe estivera a dizer, mas teimou que só à noite podia trazer as pedras. E saiu pelo quintal, para ir ver a companheira do colono e as filhas.

Voltou à noite, com o chapéu de chuva aberto e um cobertor de papa aos ombros. Entrou na loja, que Eugênio fechou depois de espiar para todos os lados, e foi para o fundo do balcão, onde oscilava a chama de uma vela. Olhou em redor, inquieto, e apurou o ouvido.omulato sossegou-o afirmando que estavam todos a dormir. Então, ele tirou de uma bolsa de couro cru um trapo sujo, cheio de nós que começou a desfazer com os dedos e a ajuda dos dentes limados, vagarosamente.

Bateram à porta. O mulato pôs uma mão na boca do negro e apagou a vela com um assopro. E ficaram, a respiração suspensa, à escuta. Mas não voltaram a bater e não se sentia ninguém na varanda. Eugênio foi ao quintal, deu volta à casa e desceu à rua. Já se vinha embora, quando sentiu barulho debaixo da escada da varanda. Riscou um fósforo e um canito passou-lhe entre as pernas, desaparecendo no escuro da rua. Voltou à loja e acendeu a vela.

É cão — disse ele ao Comboio.

o soba desfez mais um nó sobre a palma da mão e mostrou sete pedritas, que pareciam de vidro muito sujo.

É mêmo! — exclamou o mulato.

E não tirava os olhos das pedritas, fascinado. Pegou uma por uma, com a ponta dos dedos, e passou-as para a cova da sua mão.

É mêmo! —repetiu.

Os olhos do negro luziam.

Onde Xá-Mucuari panhou elas?

Comboio não sabia. Encontrara-as dentro de um chifre de corça, com dois dentes de leão, uma unha de onça e muitas sementes. Fora um dos seus homens, que tinha trabalhado na escolha de diamantes, no Nordeste, que lhe disse serem iguais às de lá.

Na língua da terra, porque o soba compreendia muito mal o português, mesmo aquele que falavam os mulatos do sertão, combinaram o negócio. omulato iria vender os diamantes a um comerciante de Malanje, de que ouvira seu pai falar como um dos mais espertos traficantes de «feijão branco», enquanto o soba trataria de despachar para longe o homem que o informara sobre a qualidade das pedras. Depois, assentaram nas precauções a tomar, porque a Companhia tinha negros a fazer polícia nas senzalas e as autoridades andavam vigilantes. Ainda não havia muito tempo que o secretário fizera buscas nas cuba­tas de homens regressados das minas.

Nessa mesma noite, com um pano novo debaixo do braço, o soba meteu-se a caminho da sua aldeia. Quando ia a atravessar a estrada para meter ao trilho que encurtava o caminho para a senzala, conforme lhe recomendara Eugênio, ouviu barulho de automóveis para as bandas da planície. Parou e, momentos depois, viu luzes na estrada da povoação baixa. Escondeu-se atrás de uma moita e viu passar o carro do administrador. Logo a seguir, uma buzina tocou à porta da casa de Manuel Pancário. Era o Rocha com a sua «Mariquinhas».

O negro meteu-se no trilho, a rememorar as promessas de Eugênio Anacleto.

No dia seguinte, uns homens que andavam a colocar cortiços nas árvores da floresta, encontraram o cadáver do Comboio. Perto, viram uma faca manchada de sangue. Levaram o corpo para a senzala e foram dar parte à Administração.

— Quem matou? — perguntou Gregório Antunes.

o sipaio Canivete, que era o único que estava naquele momento em Camaxilo, prevendo trabalhos e canseiras, disse ao administrador que os negros afirmaram que Comboio tinha morrido nas garras de uma onça.

— Enterrem-no — mandou o administrador. — Depois se escolhe outro soba.

Comboio foi a enterrar, longe da sua aldeia, sem choros nem saudades. E o povo, que sempre o odiou, não quis dançar o batuque dos mortos.

 

O administrador Gregório Antunes estava sentado numa cadeira de lona, em mangas de camisa, a ler um jornal. A seu lado, D. Jovita fazia uma blusa para a mulher do sipaio Batata. Era o seu primeiro trabalho após o regresso de Malanje. E estava com pressa de o acabar, porque já não tinha dinheiro para «os alfinetes», ganho a costurar para os negros e a vender-lhes as suas roupas velhas e as do marido.

O criado Julião, vestido de branco, descalço, muito importante com o seu penteado à europeia, que causava admiração e inveja aos negros «civilizados» da vila, tirava a mesa do chá. Depois dele sair, Gregório Antunes levan­tou os olhos do jornal e disse à mulher:

— Mandei pôr o mulato na rua. Estás satisfeita?

— Fizeste bem. Ele passou aqui à porta. Está tão magro que mal o reconheci. Coitado I

— É mais um malandro que fica por aí à solta. — E vol­tou à leitura.

Bateram à porta.

— Siô Américo — anunciou Julião.

— Que entre para aqui — disse o administrador, sem tirar a cara de cima do jornal.

  1. Jovita saiu e encontrou Joaquim Américo na sala de entrada, a olhar para as peles de leopardo, escudos de couro cru, máscaras de feiticeiro, facas de mato, arcos e flechas, lanças e cornos de antílope, tudo a cobrir as paredes.

Julião saiu para a varanda e fechou a porta. A sala ficou em penumbra.

Julguei que se ia embora sem nos dizer adeus... — disse D. Jovita, a cabeça deitada para trás, a sorrir.

Não faria isso, D. Jovita. — E largou-lhe a mão que ela lhe abandonara.

Houve um curto silêncio.

oGregório está lá dentro — disse ela, convidando-o a acompanhá-la.

Ao passar-lhe à frente, tocou-lhe ao de leve com o peito no braço, e, sem olhar para ele, sorriu imperceptivelmente.

«Mudou outra vez... como o tempo...», pensou Joaquim Américo.

  1. Jovita deixou-o à porta da sala de jantar e retirou-se.

Entre, Américo — convidou o administrador, empur­rando-lhe uma cadeira, sem se levantar. — Sente-se aqui. Então, pronto para nos deixar?

Vou amanhã de manhã com o Rocha. Vim despe­dir-me e...

Espere, homem! — cortou o administrador, a sor­rir. — Já sei de tudo e quero falar-lhe. Estava só à espera que viesse cá.

Pela janela aberta para o quintal, chegavam-lhes fra­ses soltas, em português estropiado e quioco, e risos de negros.

osenhor andou mal nessa história do mulato e o Silva excedeu-se. Se eu estivesse cá, nada disso se teria passado. Mas o que está feito, está feito. Agora, o que é preciso é contemporizar.

Joaquim Américo franziu o sobrolho, mas não disse nada.

Ora diga-me, Américo, tem alguma graça inutilizar

a sua carreira por causa de um farrusco? BolasI Um mulato atrevido que apanha umas chicotadas e o senhor a tomar partido por ele Um malandrim que em qualquer altura lhe faria o mesmo, não tenha dúvidas. o senhor não conhece esta canalha. Isto não é o Brasil, Américo. Deve concordar que isso tudo é um disparate. O senhor não pode estragar a sua vida por uma ninharia. Que absurdo I

Não percebo o que quer dizer, senhor administrador. Eu já não sou funcionário. E, quanto ao resto, fiz o que devia fazer.

  1. Jovita entrou e um cheiro de perfume encheu a sala.

Bem. O senhor volta amanhã para o serviço. E não se fala mais nisso.

Obrigado, mas não aceito.

Gregório Antunes abriu muito os olhos, espantado.

Como?! Mas se foi o próprio Silva que...

Não, senhor Antunes. Fico-lhe muito agradecido, mas vou-me embora.

De pé, ao lado do marido, D. Jovita olhava, os lábios entreabertos, para Américo. Trocaram um olhar e ela abanou ligeiramente a cabeça, a recriminá-lo.

Bem, bem... — disse o administrador. — Até amanhã o senhor pode resolver. Há tempo para reconsiderar.

Está tudo resolvido, senhor administrador. Já me devia ter ido embora há mais tempo.

Ah! Já sei... As suas ideias... e esse horror que o senhor sente por tudo isto, não é? O senhor nunca com­preendeu esta vida.

Perdão, eu compreendo, mas não aceito, o que é dife­rente. Vou até à Metrópole.

Os senhores dão vontade de rir com essa mania de defensores do negro. Olhe que a negralhada não lhe agradece... — E o administrador riu alto.

Eu   não os defendo   por serem   negros,   porque para mim a cor e as raças não contam, mas sim como homens que são tratados como animais, como bestas, nada mais.

Gregório Antunes riu-se com um riso de superioridade.

Você é o demónio, Américo... — E tornou a rir. Ofereceu cigarros, atirou o jornal para cima da mesa,

recostou-se na cadeira, as mãos cruzadas sobre o ventre, e disse:

osenhor lá terá as suas razões. Mas, que diabo, a vida é uma coisa diferente! Bem, bem, o senhor faz o que quiser. Mas pense, pense um pouco, homem I

Isto não é tão mau... — arriscou D. Jovita, corando. Joaquim Américo sorriu e despediu-se «até um dia».

Espero até amanhã — insistiu o administrador, e apertou-lhe a mão, sem se levantar.

  1. Jovita acompanhou-o à porta.

Fique, senhor Américo — pediu ela com a mão na maçaneta, tão perto dele que os seus cabelos lhe toca­vam na cara.

Não posso, D. Jovita.

Ela levantou o rosto, muito corada, os olhos cheios de brilho, os lábios a tremerem, e ciciou:

Sou eu que lhe peço... — E agarrou-se-lhe ao braço, trémula, baixando a cabeça. — Sou eu...

Jovita I — chamou Gregório Antunes.

Fique, fique, Joaquim I

E, com os lábios grossos entreabertos, afogueada, as asas do nariz a tremerem, olhava para ele, ansiosa, à espera que falasse ou a tomasse nos braços.

Não, D. Jovita. Eu não esqueço o bem que ele me

fez. Não, não poderia fazer isso. Mas gostaria que com­preendesse. Creia, D. Jovita, eu nunca faria isso.

Mas, Joaquim...

Não, nãol A senhora não sabe o que quer ou... Adeus, adeus, D. Jovita.

Jovita I—tornou o administrador.

Com um movimento brusco, as faces afogueadas, ela abriu a porta, voltou-lhe as costas e respondeu para dentro de casa:

Espera I

Encontrou na sala de jantar o chefe do Posto do Cuilo.

Acende o candeeiro, filha.

Pois está teimoso — dizia o administrador. — E creia. Vaiadas, que me faz pena ver um rapaz a estragar, assim, o futuro. Ele nem sabe o que vai encontrar por ai fora. A vida está cada vez mais difícil. E então na Metrópole...

Andam por lá médicos a ganhar trezentos escudos por mês, que é quanto tem um primo meu que trabalha num hospital — disse Vaiadas. — E advogados a guiarem automóveis de praça! E é pena, senhor administrador, que ele é bom rapaz.

  1. Jovita deixou-os. «Bom rapaz...», disse entre dentes atirando-se para cima de uma cadeira de verga, na sala de entrada. «Bom rapaz... Estúpido é o que ele é!», disse em surdina, a morder o lábio. Os olhos enche­ram-se-lhe de lágrimas.

Sabe, Vaiadas, que ele pensa muito mal de nós...

Sei. Sempre pensou. E ainda hoje de manhã me disse que só com a nossa deformação profissional é que se pode viver aqui. Disse tantas coisas que nem me lembro. Não percebi onde ele queria chegar. Estava furioso.

Claro, claro. Vaiadas. Esta gente nova não percebe nada da vida.

Levantou-se, deu uma volta à mesa e parou em frente do chefe do Posto.

Ele quer dizer que nós somos pessoas duras, sem coração nem consciência. É uma injustiça. Bolas) A vida é que é dura, é que nos obriga...

Calou-se. A voz de D. Jovita veio do outro lado da casa, da varanda, uma voz de ralho a que Julião respondia a tartamudear.

Antunes acendeu um cigarro, atirou o fósforo para o chão e continuou:

Nós vivemos num canto da colónia, longe de tudo, sem recursos, sozinhos. Agora, veja. Vaiadas: esta Cir­cunscrição tem uma área com mais de trinta mil quiló­metros quadrados e quarenta mil negros. Quantos funcio­nários somos nós? Dez, quando estão todos. E três sipaios aqui na sede e mais três em cada posto, ao todo vinte e um, com armas velhas e sem instrução militar. Bolas! Bolas

Foi até ao fundo da sala, encolhendo várias vezes os ombros. Depois, voltou, de mãos enterradas nos bolsos, o sobrolho franzido, e acrescentou:

Dez homens responsáveis pela disciplina de qua­renta mil negros I Setecentos quilómetros de estradas a conservar, outras a abrirem-se. Está vendo? Mais de dez mil impostos a cobrar e mais de mil negros a mandar todos os anos para as minas. Que tal? Julgam que é com palmadinhas nas costas desses selvagens que se consegue tudo isto Que venham para cá e aguentem isto de outra maneira, era o que eu gostava de ver... Idiotas!

Foi isso que eu lhe disse, senhor administrador.

Idiotas! Ninguém castiga por prazer. Mas se nós não formos duros, se não puxarmos as rédeas com força.

essa cambada cai em cima de nós. Palermas, é o que eles são. Ele faz bem em se ir embora.

São aquelas malditas leituras, senhor administrador.

Asneiras, asneiras, Vaiadas, é o que eles dizem. Sempre aparece por cá cada telhudo! Veja lá esse chefe do Caluango, o Monteiro, que em vez de cobrar os impostos e mandar gente para as minas, anda metido pelas senzalas a ver como os pretos vivem e a ouvir histórias. Que raio podem interessar as histórias desses selvagens! Um telhudo. Nunca vi tanta gente desaparafusada como agora. Mas o que é que esta gente pensa? No tempo em que vim para cá é que eu os queria ver. Acabavam-se-lhes logo essas ideias. Olá se acabavam!

Há dias encontrei o Monteiro numa senzala do Luita. Estava sentado à volta da fogueira, de conversa pegada com os negros. Até lhe disse que aquilo não ficava bem a um branco. E não fica, senhor administrador. A gente sente-se mal.

É por essa e por outras que os negros abusam e se põem de corpo ao alto. Gente dessa não serve para cá. Vaiadas.   Aqui quer-se gente dura, gente de trabalho.

Calaram-se.   Carlos Vaiadas   acendeu   o cachimbo. Antunes foi à janela.

Você tem razão, Vaiadas, são essas leituras que estragam os rapazes. Tenho lá na Metrópole um filho que em vez de estudar também anda agarrado a esses livros venenosos. Até já me mandaram dizer que prendiam as pessoas que tinham desses livros. Mas logo que lá chegue, toda essa tralha vai para o fogão. Olá se vai! Ou estuda para ser alguém, ou vai para a tropa. Se não fosse mulato, já o tinha mandado vir. Mas mulatos, em África, você sabe,não levantam cabeça. O estupor nem vê o dinheirão que eu gasto com ele. Se calhar julga que por cá há as tais árvores das patacas...

Julião entrou para pôr a mesa de jantar. D. Jovita veio de dentro com os olhos pisados e foi sentar-se a cos­turar. Vaiadas despediu-se.

Já a camioneta do Rocha estava carregada, em frente da loja do Manuel Pancário, pronta para largar, quando o mulato Eugênio se foi despedir do padrinho. Francisco Bernardo deu-lhe um casaco coçado nos cotovelos, que era o melhor que tinha, e uma carta de recomendação para um amigo de Malanje.

Gastara toda a tarde do dia anterior a escrever a carta, porque há muito tempo, meia dúzia de anos, não escrevia uma linha. A mão tremia-lhe e os termos não lhe acudiam, o que o desesperava, arrancando-lhe lamentos sobre a velhice que de tudo o privava. Uma dezena de palavras, a emperrar aqui e ali, e estava a folha cheia de erros orto­gráficos, que nem a assinatura coube bem. E a paciência esgotada. Mas, à noite, dera um grande recado para o afilhado levar ao amigo, e que ele o desculpasse por não ter tido tempo de escrever tudo o que lhe mandava dizer.

Com ele podes arranjar alguma coisa, que esse ainda é amigo do tempo da borracha. Mas com o Paulino, rapaz, duvido — e o velho franziu a testa. — Ele nem respondeu a uma carta do teu pai. E olha que foram amigos e devia-Lhe muitos favores. Até dinheiro.   E o teu   pai   por dinheiro... Bom, bom, adeus, rapaz, e muita sorte.

Seu Paulino vai fiar fazenda. Maria escreveu pra ele. É padrinho ela.

Deus queira, rapaz. Agora vê se ficas por lá, como os outros. Lembra-te do teu pai, que está com os pés para a cova, e das tuas irmãs, que sem pai ficam para aí... como negras.

— Chego e tou voltando. Não fico, não — disse a olhar para o lado.

O colono acompanhou o afilhado à camioneta, que já estava a trabalhar, com o Rocha e Américo na cabina. O mulato acomodou-se sobre a carga, ao lado do ajudante do Rocha, e a camioneta largou.

O velho acenou com a mão um adeus demorado ao afilhado e a Américo. Manuel Pancário também disse adeus com as duas mãos.

Na curva da estrada ficou uma nuvem de poeira, de onde se destacou o vulto de João Calado, parado a olhar para a camioneta que rodava devagar na estrada da planície. Fora ali, sozinho, para dizer adeus a Joaquim Américo.

Viu os colonos e afastou-se, entrando no mato, onde vivia na cubata de um negro, porque depois de sair da cadeia ninguém lhe dera abrigo. Os colonos não que­riam molestar o secretário e muito menos sustentá-lo, mostrando-se aborrecidos por ele ter recusado o ofereci­mento do Rocha, que o queria levar para Malanje. Nem os conselhos de Joaquim Américo o desviaram do pro­pósito de continuar em Camaxilo, onde só passava fome e ouvia recriminações de brancos, mulatos e negros «civilizados». Sentia que todos os brancos estavam contra ele; mas recusava-se a abandonar a vila. «Cada um tem seu destino», dissera ela a Américo. opróprio adminis­trador, que lhe mandara abrir as portas da cadeia, não o atendeu na questão da casa, dizendo-lhe o mesmo que o secretário. Convenceu-se de que nunca lhe dariam o que o pai deixara. Nem num canto da casa, que ruiria ao abandono, o deixariam dormir. Nada era seu, nem de sua mãe. E o administrador dissera-lhe que se não houvesse herdeiros, tudo ficaria para o Estado, como era de lei.

Não volta — disse Bernardo a Pancário, referindo-se ao afilhado. — Quem sai daqui não volta, Pancário. omeu Henrique também se foi, assim como este, e até hoje. Nem notícias!

o velho deu aos ombros e encaminhou-se para casa.

Um sipaio saiu do matagal, de arma ao ombro, e meteu à estrada. Atrás, apareceu um grupo de presos entre dois capitas, que fizeram estalar os chicotes no ar. Começaram a descer para o rio, no caminho da povoação alta.

Mais gente que fugiu   ao   imposto — comentou Pancário, e entrou na loja.

Alfredo Anacleto, imobilizado sob uma manta no cadeirão, na varanda, a aquecer-se ao sol, tremia de frio e babava-se, com os olhos fixos nos longes.

O velho Bernardo estendeu-se na cadeira de lona, no cantinho da sua varanda florida.

Um negro, com uma carga às costas, atravessou a rua e tomou a direcção da casa de Manuel Pancário.

Da loja do Anacleto, Flávia, que ficara a substituir o Eugênio ao balcão, sorriu para o padrinho. ovelho fechou os olhos e ficou como a sonhar.

 

Subiu pelo córrego, tropeça aqui, escorrega ali, a agar­rar-se aos arbustos, descansando uns segundos sobre pedregulhos, para logo recomeçar a escalada, com o nevoeiro a subir do fundo da noite do vale, até que alcan­çou uma árvore no alto da encosta, à beira da estrada e em frente da casa onde viveu Joaquim Américo.

— Pfu! — fez o mulato João.

E esfregou as mãos doridas na camisa empapada de suor, colada ao corpo. Tinha sede e a boca amargava-Lhe como se tivesse febre.

Na casa branca, que mal se enxergava do outro lado da estrada, alguém tossiu. O mulato esticou o pes­coço, à escuta. Outra vez a tosse. «É seu Vaiadas», disse ele a si mesmo. E ficou, sem se mexer, encostado à árvore. Mas tudo caiu em silêncio na noite fechada.

Há quanto tempo deixara de ouvir os gritos dos sipaios, o da Administração e o do Paiol, lá em baixo, na curva da estrada? Não sabe. Mas foi pouco antes de ter saído da moita, à beira do rio, para escalar a encosta, por córregos por onde ninguém passava, a ouvir o miado de uma onça na garganta do vale, para as bandas da ponte. Lembra-se de que o último sipaio a lançar o alerta fora o do Paiol. Depois é que a onça começou com os seus miados de cio. O guarda gritara duas vezes, espaçadas, e como o da Administração não respondesse, calou-se. Mas o seu brado ainda ficou muito tempo no ouvido do mulato, alongado pelo eco, vale em fora. Agora, devia estar a dormir, como o companheiro.

Àquela hora adiantada, era certo caírem no sono. Só o velho Caluis é que resistira, anos seguidos, acoco­rado defronte da fogueira, a espingarda ao alto, entre os joelhos, até romper o dia. Mas o velho fora soldado, trei­nara-se nas guardas e preferia fazê-las a ter de percorrer a região à caça dos remissos ao pagamento do imposto ou dos evadidos das minas de diamantes e trabalhos públi­cos. Os outros, ainda se aguentavam até noite alta, depois começavam a cabecear e entravam num sono fundo.

Ninguém podia suportar um dia inteiro de trabalho, a correr daqui para ali aos gritos dos funcionários, e entrar pela noite fora de olhos abertos, sozinho ao pé da fogueira, com o calor a amodorrá-lo. Tempos atrás, o guarda fazia-se acompanhar pela mulher e as noites de velada eram mais suportáveis. Mas, de um dia para o outro, o Administrador proibira que os sipaios se fizessem acom­panhar durante a guarda. Fora D. Jovita que levara o marido a dar essa ordem, porque não queria que o sipaio e a mulher estivessem a «fazer coisas feias» na varanda da Administração, ao lado da sua casa.

Adiantada a noite, os sipaios sabiam que os brancos estavam ferrados no sono e que só por acaso acordariam, mas por pouco tempo e sem se preocuparem com eles. É verdade que uma vez por outra, algum acordava e não conseguia adormecer tão depressa quanto desejava, e, então, era sabido que, no dia seguinte, o secretário ou o administrador mandava encher as mãos do dormi­nhoco com palmatoadas. E se era o Silva que dava a ordem, não arredava pé durante o castigo, não fosse o sipaio encarregado de o aplicar, negociar o número e o peso das palmatoadas. Mas mesmo com palmatoadas e ameaças de perder o lugar, era sabido que na próxima guarda o sono dominaria o sipaio.

«Tá tudo a dormir», disse o mulato, entre dentes, e esfregou as mãos sujas de terra nas calças.

Saiu de ao pé da árvore e entrou, curvado, na estrada. As botas rangeram no chão duro. «Diabo, vão ouvir», inquietou-se. Mas o silêncio era profundo na povoação adormecida. Sentou-se no chão e tirou as botas, que cal­çava sempre sem meias. Amarrou-as pelos atacadores e pendurou-as ao pescoço.

Cautelosamente, a espiar para todos os lados seguiu ao longo da berma da estrada, sob as copas das laran­jeiras e limoeiros. Parou perto do largo da Administração e meteu por detrás das árvores, não fosse o sipaio estar da parte da frente do casarão e enxergá-lo, tão habituado estava a ver dentro da noite. Os olhos, treinados à escuri­dão havia mais de três horas, esforçaram-se até distinguir as manchas das casas. Mas não havia sinal de fogueira. Desconfiado, deitou-se de barriga para baixo e colou o ouvido ao chão, como os homens nus da selva fazem para ouvir melhor. Nada. «Deve estar do outro lado», pensou. Abandonou a estrada e meteu ao mato, con­tornando a paliçada do quintal do administrador, e veio sair atrás da Administração. Estava de novo junto à estrada, acima do largo.

No alto de Camaxilo, a noite começava a azular-se. omulato parou junto da valeta e espreitou para todos os lados, à procura da fogueira do sipaio. Depois de grande esforço, avistou uma pequena mancha vermelha, para lá da varanda da Administração. «É mêmo», disse de si para si, satisfeito.

Um cão ladrou para as bandas da cadeia, no alto da povoação e atrás de um renque de acácias. O mulato atirou-se para o fundo da valeta. Levou a mão ao cinto e logo encontrou o cabo da faca. Esperou um momento, sem ouvir nenhum rumor. A camisa tinha-se-lhe secado no corpo e começou a sentir frio. A sede continuava a molestá-lo, a garganta seca e áspera.

No silêncio da noite, atravessou a estrada e ganhou a varanda da Administração, mal pisando o solo. Fechou um tudo-nada os olhos para que a vista fosse mais longe. Lá estava a luz vermelha da fogueira, mas não se dis­tinguia o vulto do sipaio.

Rente à parede, muito curvado, pé aqui, pé ali, sem respirar, foi até ao fundo da varanda, com a faca empu­nhada. Deitado numa esteira, o sipaio Canivete dormia com a cara voltada para o braseiro. Debruçado na varanda, o mulato tinha-o à mão. Ouvia-lhe a respiração, calma, e o lento arder dos madeiros. Os olhos do mulato brilharam, a boca torceu-se-lhe num sorriso. Num movimento rápido, estendeu o braço e enterrou a faca na garganta do sipaio, caindo sobre ele com todo o peso do corpo. Tudo se passara num segundo, sem se ouvir um só gemido. Mas o mulato não abandonava o sipaio, rma mão a tapar-lhe a boca, temendo que gritasse.

«Tá morto», disse de dentes cerrados, passado um grande momento.

Tirou a faca da ferida e limpou-a na farda da vitima. Olhou em redondo e encaminhou-se para a porta da Secretaria. A lingueta da fechadura saltou sob a pressão da ponta da lâmina. Entrou e encostou a porta. À luz de um fósforo, atravessou a sala onde brigara com o Silva e entrou no gabinete do administrador. Lá estava o cofre de madeira, com o busto da República em cima. Expe­rimentou a fechadura, que não resistiu mais que a da porta. Procurou os fósforos, mas estava tão nervoso que não os encontrou. Meteu as mãos no cofre e apalpou maços de dinheiro, que começou a meter precipitadamente dentro da camisa. Mas as mãos tremiam-lhe tanto que teve de parar. O coração batia-lhe com violência e sentia a garganta a apertar-se-lhe. Ouviu um rumor na varanda, julgou que fossem passos e desnorteou-se. Atravessou a Secretaria, com o cabo da faca apertado na mão, os dentes cerrados, esbarrou numa mesa e viu-se, num mo­mento, na varanda. Nada. Tudo estava em silêncio. Res­pirou fundo e limpou o suor da testa e da cara com a palma da mão. E ficou com os olhos muito abertos para a noite.

O dinheiro pesava-lhe sobre o estômago. Abotoou a camisa até ao pescoço. Não tornou a entrar na Admi­nistração.

Voltou para junto do sipaio, mas nem olhou para ele, meteu a faca no cinto, debruçou-se sobre a fogueira e começou a atirar, precipitadamente, com as brasas para cima do telhado de colmo. E, sem esperar que o fogo rompesse, deitou a mão à arma do sipaio e correu para o matagal, por trás da casa de Jaime Silva.

Já ia longe, a meia encosta da colina sobranceira à vila, quando se voltou e viu o clarão do incêndio.

«Não come minhas coisa!», disse com rancor.

Só então deu por falta das botas, mas não se demo­rou a pensar onde as tinha perdido. Afastou-se a correr. Só parou muito adiante, para ver o incêndio. Pareceu-lhe que toda a povoação estava em chamas. Sem dar por isso, pôs-se a rir às gargalhadas. Mas quando se ouviu, olhou apavorado para todos os lados e largou a correr.

Parou no alto da colina para descansar. A vila ficava longe e já mal se avistava, por entre a mancha das árvores, o clarão do incêndio. Despiu a camisa e embrulhou os maços do dinheiro. Eram quase todos de notas de vinte angolares, três de cinquenta e um de cem. O grosso da maquia tinha ficado no cofre.

Pendurou a trouxa no cano da espingarda e começou a descer para um vale.

Quando Jaime Silva acordou, sobressaltado com o barulho do incêndio, e correu à janela, viu Gregório Antu­nes e D. Jovita saírem de casa, a gritarem por socorro. Saltou pela janela e foi a correr ao seu encontro. Nesse momento, o tecto da Administração abateu com estrondo e as labaredas irromperam de todos os lados.

O dinheiro do imposto I — gritou o administrador. E correu, com o Silva, para a porta do seu gabinete,

no topo da varanda que dava para o lado da sua casa. Meteu o ombro à porta, que se escancarou. Com o impulso e a pouca resistência que ela ofereceu, teria caído dentro do fogo, que tomara toda a sala, se o Silva o não tivesse aguentado por um braço. Recuaram, sufocados pelo fumo.

—Chame toda a gente I—berrou Gregório Antunes.

E a limpar as lágrimas que a fumarada lhe provocara, afastou-se, indo ao encontro da mulher.

É impossível entrar lá dentro. Perde-se tudo, tudo Iosipaio desapareceu.

Que grande desgraça, Gregório

Ao aproximar-se da cadeia, Jaime Silva encontrou o sipaio Batata e os capitas, que tinham sido avisados do fogo por um rapaz.

Onde está o Canivete? —perguntou-lhes, olhando, aparvalhado, para todos os lados, como à espera de ver entre eles o sipaio que ficara de sentinela à Adminis­tração.

Os negros entreolharam-se, ninguém tinha visto o Canivete, e largaram a correr para o local do incêndio.

Foi o ladrão do sipaio I — dizia Gregório Antunes ao Vaiadas, que acabava de chegar, de pijama e cachimbo na boca.

Então, Silva? — falou Vaiadas, vendo-o entrar no largo.

Mas o secretário não o atendeu, porque o barulho do fogo não o deixava ouvir. Vaiadas foi ter com ele.

Que desgraça — disse Silva. Não se pode salvar nada.

Gregório Antunes andava desesperado de um lado para o outro, em frente do incêndio.

Era inútil qualquer tentativa para evitar a marcha do fogo, que em minutos devorara o colmo da cobertura e invadira por todos os lados o interior do casarão, onde era loucura tentar entrar. E como não havia água na povoa­ção, que se abastecia do rio, no fundo do vale, onde os negros a iam buscar em latas e cabaças, ninguém se mexia.

Parados no largo, Silva, Vaiadas e os negros olhavam para o incêndio, sem dizerem palavra. D. Jovita refugiara-se na varanda da sua casa e rezava à toa, com os olhos muito abertos para as labaredas que subiam de dentro da casa e irrompiam com fragor pelas portas e janelas.

Mexam-se Façam qualquer coisa. — gritou Gregó­rio Antunes, atrás dos funcionários.

Sobressaltado, o secretário começou a gritar com os negros e a dar-lhes safanões e pontapés, querendo que entrassem na Administração. osipaio e os capitas fugiram, apavorados com aquela ordem.

Vá você, sua besta, se é capaz. —berrou-lhe o administrador.

Jaime Silva afastou-se e foi a resmungar para casa.

De repente, ouviu-se um grito e todos correram na

sua direcção. O administrador empurrou o sipaio, que estava dobrado sobre um corpo, e viu o Canivete prostrado, com a garganta aberta.

Mataram-no!

Tem bota! — gritou um capita, exibindo as botas do mulato, encontradas nos baixos da varanda.

o sipaio Batata, mal viu as botas, declarou que eram do João Calado. Ele conhecia-as muito bem, porque lhas quisera comprar.

Vaiadas e o administrador ficaram a olhar um para o outro, espantados.

Prendam-no — gritou o administrador, dirigindo-se ao sipaio e capitas. — Avise já o secretário, Vaiadas.

Os negros largaram a correr em várias direcções, sol­tando gritos agudos.

Que bestas! — insurgiu-se o administrador, e diri­giu-se para casa.

  1. Jovita viu o marido e foi ao seu encontro.

Foi o mulato — disse-lhe ele com voz dura. — Estás satisfeita, não?

Eu... eu...

Sim, tu! Quem havia de ser? Se não fosses tu, nunca ele teria saído da cadeia. Mas quem me manda a mim fiar-me em mulheres! Bolas, bolas! — E entrou em casa atirando com a porta.

  1. Jovita ficou na varanda, encostada à balaustrada. Quando entrou em casa, não atendeu ao chamado do marido, que andava às voltas na sala de jantar, a bufar de desespero e raiva. Foi meter-se na cama, cheia de frio e furiosa por ele a acusar a cada passo por tudo que de mau lhe acontecia.

A culpa é do administrador, que o soltou — disse Jaime Silva, ao sair de casa na companhia de Vaiadas. — Agora, que se aguente com a bucha. Tem a mania de que só ele é que sabe tudo e que os outros são umas bestas! Que se aguente.

Encontraram Manuel Pancário a olhar embasbacado para o incêndio. Tinha chegado momentos antes com os seus serventes carregados de latas de água.

Só se for para lavar as paredes, Pancário — disse o chefe de Posto. — Isto já está no fim.

Perdeu-se   tudo,   senhor   Pancário — adiantou Silva. — E estavam   lá mais   de setenta   contos. Mas esses roubou-os o Calado.

Setenta contos I — espantou-se o comerciante. — E apanharam-no, senhor secretário?

Andam a caçá-lo. Se lhe deitarmos a mão, nem a alma se lhe aproveita! Que cachorro! Esse nunca me enganou. Saiu à raça da mãe.

Quando deixaram o largo, indo cada um para sua casa, já não havia labaredas e um fumo negro subia das paredes enegrecidas para o céu azul-cinzento da madru­gada.

o sipaio Batata e os capitas regressaram sem João Calado. Só um velho afirmara tê-lo visto, de arma ao ombro, para as bandas da aldeia que fora do Xá-Mucuari. Leva­ram-no para lá, para lhes mostrar o sítio onde o vira. Mas o velho não foi capaz de dar com o lugar. O povo des­mentiu-o, que ninguém tinha visto o mulato nem havia sinais da sua passagem e que ele com certeza tinha sonhado. ovelho ficou tão atrapalhado que acabou por dizer que estivera a dormir no caminho e que se lembrava, agora, muito bem, de ter sonhado. O sipaio esbofeteou-o e os outros correram-no a pragas.

Em todas as senzalas, os resultados foram os mesmos. João Calado sumira-se sem deixar rastro.

Deram-lhe fuga, não há que ver —disse o administrador. — Que cambada. Só a tiro! — E depois de uma pausa: —Que diz a isto, senhor secretário?

Acho que se deve pedir a sua captura às autoridades belgas.

Asneira Logo vi que saía asneira. Sabe se ele fugiu para o Congo Belga ou se está na colónia? Não sabe nada, mas tem sempre uma sentença.

Calou-se. Sabia que estava a ser injusto, que ele mesmo teria de proceder como o secretário opinara, mas, nos seus momentos de desespero, sentia prazer em ferir.

Mudamos amanhã para Caungula — disse o admi­nistrador.

Manhã cedo, filas de negros, com cargas às costas, deixaram Camaxilo, rumo a Caungula, nova vila e sede da Circunscrição. À tarde, o automóvel, com Gregório Antunes ao volante, ao lado da mulher. Silva e Vaiadas atrás, arrancou do largo da Administração, onde um grupo de presos demolia a picareta as paredes negras do casa­rão. Só D. Jovita se voltou para ver, pela última vez, a povoação abandonada, com o seu jardim florido, que em breve seria capinzal.

Na povoação-de-baixo, o carro parou em frente da casa do colono Bernardo. O velho desceu à rua, para se despedir dos funcionários e de Manuel Pancário, sentado ao lado do Vaiadas, para ir abrir a loja de Caungula.

Pelas janelas entreabertas, as negras dos colonos e suas filhas mulatas, espiavam para o automóvel. Um negro de peles parou a olhar. Ao sol da sua varanda, Alfredo Anacleto não dava por nada, com os olhos sempre voltados para o horizonte longínquo da planície.

Até à vista, senhor Bernardo — despediu-se o admi­nistrador.

Os outros disseram-lhe adeus com a mão. D. Jovita sorriu para o velho e acenou às mulatas.

Parado no meio da rua, o colono viu o carro desapa­recer na curva que entra na estrada da planície. Ainda ouviu o barulho do motor durante um momento. Depois, tudo caiu em silêncio.

Os últimos... —disse o velho, voltando-se para o paralítico que, como sempre, não lhe prestou atenção.

Encolheu os ombros, meneou a cabeça e voltou para a cadeira de ripanço, no canto da varanda florida, sobre o vale silencioso.

Maria Anacleto, com uma lata de água à cabeça, deixou a estrada do vale e entrou no carreiro que a levou ao quintal da casa dos pais.

Passou tempo no rio — repreendeu-a a irmã mais velha, que desde o que se passara com o aspirante Sam­paio a trazia debaixo de olho.

É longe. Tudo tá longe — respondeu-lhe Maria, com secura, pondo a lata de água na cozinha.

Um cão atravessou a rua a correr atrás de uma galinha. A negra velha do colono gritou-lhe e ele fugiu para o mato. Flávia sorriu-se para a negra e fechou as portas da loja. Depois, foi buscar o pai e levou-o para dentro de casa, porque começava a arrefecer.

A sombra da noite subia do vale para a terra morta de Camaxilo. O velho Bernardo acendeu o cachimbo e fumou-o de olhos fechados. 

 

                                                                                Castro Soromenho

 

 

                      

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