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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TERRAMAR / José Jorge Leiria
TERRAMAR / José Jorge Leiria

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

T E R R A M A R

 

A violência é uma das realidades mais terríveis e mais presentes do nosso tempo. Todos os dias lidamos com ela nas ruas, na televisão, no cinema, nas filas de trânsito a caminho do emprego ou da escola.

 

A violência existe, faz parte de nós e é agravada pela forma como se vive nos centros urbanos, pelo cansaço, pela pressa de chegar, pela falta de dinheiro para pagar as contas fixas no prazo certo e pela falta de respeito e de tolerância em relação aos outros. A violência mora connosco e faz parte de nós. Sobre isto não vale a pena termos ilusões.

 

O século xx foi o século mais violento da história da humanidade. Só nas duas guerras mundiais (a de 1914-1918 e a de 1939-1945) morreram quase cem milhões de pessoas. Se a estas duas guerras somarmos a Guerra Civil de Espanha, a Guerra do Vietname, a Guerra do Afeganistão e a Guerra Colonial, em que Portugal esteve envolvido entre 1961 e 1974, ano em que, a 25 de Abril foi derrubada uma ditadura de 48 anos, verificamos que aqueles números assustadores aumentarão bastante.

 

Mas que não se pense que a violência é só a da guerra. Há muitas outras formas de violência que, normalmente, nem encaramos como tal. Há a violência no trânsito, há a violência nos recintos desportivos, com destaque para os campos de futebol, há a violência juvenil que se traduz, por exemplo, na destruição de equipamentos que existem para servir a comunidade, há a violência doméstica sobre as mulheres e as crianças, há a violência sobre os animais que tem como expressão mais terrível o seu abandono nas ruas e nos campos sem abrigo nem alimento, há a violência dos desenhos animados e de certos filmes que transformam a morte e a brutalidade física numa coisa quase tão banal como beber um copo de água, há a violência racista e a violência psicológica, que se traduz em excluir quem é pobre ou quem é doente, e há ainda a violência verbal.

 

E haverá violência mais terrível do que abandonar uma criança num contentor ou num cesto no meio de uma rua durante a noite, ou abandonar uma pessoa idosa num hospital sem ter a intenção de a ir buscar quando está curada?

 

Sobretudo de países como os Estados Unidos da América chegam notícias frequentes e alarmantes acerca de jovens de 12, 13 ou 14 anos que pegam em armas de fogo de grande calibre, entram nas escolas e começam a disparar sobre colegas e professores, matando uns e ferindo outros. Quem consegue explicar fenómenos tão graves que têm na origem problemas de inadaptação, de falta de amor e de marginalização? Os especialistas (psiquiatras, psicólogos, sociólogos, psicanalistas e psicoterapeutas) conseguem encontrar explicações que só nos satisfazem parcialmente.

 

Há quem diga que os crimes praticados por adolescentes nos Estados Unidos só acontecem porque se trata do país do mundo onde o acesso às armas de fogo é mais fácil. Mas será que isso explica tudo? Então e o ódio que conduz a mão que pega na arma e a transforma num instrumento de morte? A arma de fogo, que melhor seria que não existisse, é apenas a etapa final de um processo que vem muito mais de trás e que costuma ter as suas raízes na casa e na escola.

 

Não podemos esquecer-nos de que o Homem é o único animal que tem consciência da sua própria morte e da dos outros e que, ao contrário dos restantes que povoam o mundo doméstico ou natural, é também o único que mata sem ser para se alimentar ou defender o seu território quando o sente ameaçado ou invadido.

 

O ser humano, desde que tem consciência de si próprio, tem também consciência de que é violento. Os mais importantes textos religiosos da história da humanidade, a começar pela Bíblia, incluem relatos de uma extrema violência. Caim matou o seu irmão Abel, David, pequeno e frágil, matou com a pedra que tinha na funda o gigante Golias, acertando-lhe em cheio na cabeça.

 

É certo que também houve grandes figuras deste século que impuseram as suas ideias e conquistaram milhões de seguidores através do princípio da não-violência. Foi o caso do indiano Mahatma Gandhi ou do norte-americano Martin Luther King. No fundo, tentaram dar razão a Jesus Cristo quando defendia a ideia de que devemos oferecer a outra face a quem nos esbofeteou. Mas a verdade é que ambos foram vítimas mortais da não-violência que pregaram. Tanto num caso como no outro foram balas de assassinos que lhes roubaram a vida.

 

A forma mais extrema de violência que marcou o século xx foi a praticada pelos nazis nos campos de concentração. Entre os princípios dos anos 40 e o ano de 1945 nos campos de concentração morreram seis milhões de judeus e muitas centenas de milhares de outras pessoas cujo único crime foi serem diferentes daquilo que Hitler e os seus seguidores pretendiam que eles fossem. Ainda hoje, mais de meio século passado sobre aquilo que ficou conhecido como Holocausto, muita gente continua a perguntar "porquê?", não conseguindo encontrar uma resposta minimamente satisfatória. O Holocausto foi talvez a maior vergonha da história da humanidade e continua a não ter uma explicação aceitável, seja qual for o ângulo pelo qual o observemos.

 

Fica assim claro que o ser humano é naturalmente violento e que essa violência tem formas mais chocantes e graves de se afirmar e outras mais dissimuladas mas nem por isso menos preocupantes e graves.

 

Quando, numa discussão de trânsito, os condutores abrem as portas das viaturas e pedem contas um ao outro, mesmo que não se agridam fisicamente, a forma como se insultam tem a violência de um disparo de arma de fogo ou de uma paulada certeira dada com um instrumento contundente. A linguagem é, assim, uma das formas primeiras de expressão da violência entre os seres humanos.

 

Mas há, naturalmente, formas ainda mais terríveis de violência. Uma delas é o terrorismo. Em países como a Espanha ou a Irlanda do Norte, esta ainda integrada na Grã-Bretanha, muitos milhares de pessoas perderam (e continuam a perder) a vida, ao longo de décadas, devido a atentados terroristas. Em muitos desses atentados, as vítimas mortais foram mulheres, crianças e idosos que nada tinham a ver com os conflitos políticos que deram origem ao terrorismo.

 

Mas será que nós que condenamos a violência e, a cada passo, afirmamos ser pessoas pacíficas e defensoras da harmonia, detestamos de facto a violência? Vale a pena tentarmos ter ideias claras a este respeito.

 

Se houver confronto físico entre duas pessoas na rua, as pessoas param para assistir, mas dificilmente tomarão a mesma atitude se virem uma criança a oferecer flores ou um jovem a ajudar um deficiente a atravessar uma estrada.

 

Entre um filme que tenha cenas de violência, com sangue, mortos e muitos golpes de artes marciais, e uma história de amor, a esmagadora maioria dos espectadores prefere o primeiro.

 

É por essas e por outras que os telejornais, as primeiras páginas dos jornais e as notícias de abertura dos serviços de informações radiofónicos dão destaque aos crimes, aos grandes acidentes, às guerras e a outros conflitos violentos. Fazem-no porque, lá no fundo, a violência atrai muito mais as pessoas em geral do que qualquer outro tipo de mensagem.

 

Ter maiores tiragens e maiores audiências representa maior lucro, e os órgãos de comunicação social estão integrados no mercado e obedecem às suas regras. Quer isto dizer que a violência, ao fim e ao cabo, também é lucrativa. E enquanto o Homem for Homem, a violência e o conflito serão sempre notícias mais apelativas que a paz e o entendimento, seja entre pessoas, entre forças políticas ou entre povos.

 

Por mim, não posso deixar de lembrar que, em locais de acidentes rodoviários, já vi muitas pessoas saírem desiludidas, com um encolher de ombros, lamentando-se nestes termos: "Vamos embora, não houve feridos. Foi só chapa batida. E esteve aqui a gente a perder tempo".

 

A violência, seja ela de que natureza for, atrai o ser humano porque vai ao encontro da sua curiosidade mórbida e da violência que existe dentro dele.

 

Há quem afirme que "violência gera violência", pois é sabido que, quando um bate e o outro responde, seguramente o primeiro não se fica, e o segundo dificilmente baixará os braços. Como dizia a minha avó, "é como o coçar; o pior é começar".

 

O Homem é capaz dos actos mais dignos e elevados, mais solidários e exemplares, mas também é capaz da maior crueldade e brutalidade. E que não se pense que são as pessoas incultas e grosseiras que são mais violentas. Os milhões de alemães que seguiram Adolf Hitler e foram com ele até ao abismo e ao mais terrível dos horrores eram um dos povos mais cultos e ilustrados do mundo e nem por isso deixaram de transformar uma boa parte do mundo num imenso cemitério.

 

                            QUANDO A VIOLÊNCIA COMEÇA EM CASA

 

"A violência pode ter efeito sobre as naturezas servis, mas não sobre os espíritos independentes".

                           BEN JONSON

 

Quando falamos em violência, pensamos habitualmente nas guerras, nos confrontos físicos entre as claques nos estádios, ou nas acções de quadrilhas armadas que assaltam bancos, mas há uma forma de violência menos visível e de que só agora começa a falar-se com alguma frequência. Refiro-me à violência doméstica, que pode revestir-se de várias formas, todas elas condenáveis e igualmente preocupantes.

 

E muito elevado, em Portugal, o número destes casos. Só no ano de 1999, segundo as estatísticas da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), quase 3400 pessoas foram vítimas de violência dentro das suas próprias casas. Este número representa um aumento de 15 por cento em relação a 1998 e envolve somente as pessoas que deram conhecimento das suas situações àquela associação. Quer isto dizer que desse número já de si preocupante estão excluídos todos aqueles que, por medo ou por vergonha, não chegaram a divulgar os maus tratos de que foram vítimas. Em Espanha, só em 1993, morreram mais de 40 mulheres vítimas de violência doméstica exercida pelos maridos. Em

1994, também em Espanha, quase 121 mil mulheres foram agredidas pelos maridos em casa. Nestas situações de violência doméstica estão incluídas as mulheres maltratadas pelos maridos e as crianças e os idosos que foram vítimas de várias formas de violência física e psicológica.

 

As mulheres, que costumam ser as principais vítimas da violência doméstica, decidiram iniciar, em 2000, no seu Dia Mundial (o dia 8 de Março), uma marcha mundial contra a violência e a pobreza que terminou a 17 de Outubro desse ano, em frente à sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, sendo essa uma forma de mostrarem à opinião pública mundial a justeza da sua luta.

 

Mas será que a violência doméstica se resume à agressão física a que o marido alcoolizado ou frustrado por qualquer motivo sujeita a mulher? Claro que não. Há outras formas de violência que não deixam cicatrizes nem provocam nódoas negras mas que têm efeitos muito mais prolongados e profundos. É o caso das ameaças, dos insultos e da chantagem feita a partir de uma situação de superioridade económica. Isto acontece, por exemplo, com os maridos que proíbem as mulheres de terem um emprego e que, no momento em que elas, cansadas de sofrimento físico e humilhação, lhes dizem que os vão abandonar, lhes respondem: "Se o fizeres, não tens dinheiro para comer nem para te vestires e eu ficarei com os nossos filhos, já que só eu é que estou em condições de os sustentar".

 

O medo da pobreza, do abandono e da perda dos filhos leva um grande número de mulheres, em Portugal e noutros países considerados civilizados, a suportarem a violência de que são vítimas muito para além do limite razoável. Calam-se, escondem o que sofrem, até que um dia, não podendo aguentar mais, optam pela ruptura, pela saída de casa e até, em casos extremos, pela ida à polícia ou à APAV, que lhes fornece o apoio jurídico e psicológico de que necessitam.

 

Entretanto, continuam a surgir, com uma frequência alarmante, nos jornais e nos telejornais dos vários canais de televisão, relatos de crianças espancadas, nalguns casos até à morte, pelos pais (pai e mãe), pelos padrastos ou por pessoas que aceitaram tê-las a seu cargo e educá-las.

 

Na maior parte das situações, o agressor é tido no emprego ou mesmo na vizinhança como uma pessoa normal, delicada e incapaz de exercer qualquer forma de violência, seja ela física ou psicológica. Nada mais enganador. Atrás de um rosto calmo e de uma fala mansa esconde-se, com frequência, um perigoso agente da violência doméstica, que bate, insulta, humilha e tortura psicologicamente.

 

Outra situação típica de violência doméstica é a exercida por jovens toxicodependentes sobre os pais, sobre os avós ou sobre os irmãos mais novos, frustrados por não conseguirem obter diariamente o dinheiro de que precisam para comprarem doses de droga que o organismo viciado lhes exige.

 

As causas destas situações são sempre mais profundas e complexas do que à primeira vista pode parecer. O que determina a violência doméstica são muitos factores, desde o alcoolismo à falta de dinheiro que permite levar o tipo de vida que a sociedade de consumo impõe. E esse tipo de vida implica a existência de bons automóveis, de roupas de marca, de relógios caros e de meios para se frequentar restaurantes e ginásios caros. Privadas desses meios que consideram indispensáveis para não serem postas à margem, muitas pessoas, agindo sob o efeito de um impulso irracional, têm tendência para ver na casa, na família e nos compromissos que assumiram a esse nível as causas de todos os seus males.

 

Quem vive nas grandes cidades, em prédios de apartamentos, ouve com frequência os ecos dessa violência sob a forma de gritos, de insultos, de ameaças e de choros. E que não se pense que este é apenas um problema dos grupos sociais com menores recursos. Hoje o problema da violência envolve quase todos os meios sociais, revestindo-se, em alguns casos, de formas sofisticadas e difíceis de imaginar.

 

O sistema jurídico e o sistema social têm que se adaptar a estas novas realidades que se encontram cada vez mais presentes no nosso dia-a-dia, embora haja ainda quem pense que os números que têm sido divulgados e as situações denunciadas não passam de um exagero sensacionalista que ajuda a vender mais jornais ou a aumentar as audiências televisivas.

 

Embora, segundo os especialistas, este seja um fenómeno predominantemente urbano, começam a surgir sinais do seu constante agravamento também nos meios rurais e em zonas onde o peso da família e da comunidade tradicional parecia ser suficientemente forte para evitar o seu enraizamento.

 

São muitas as crianças que chegam à escola, ou mulheres que chegam ao emprego com os olhos negros e os lábios inchados, sendo, por medo ou por vergonha, ou por ambas as razões, levadas a responder, quando inquiridas sobre as causas das lesões, que caíram numa escada, escorregaram no banho ou bateram, por distracção, na porta de um armário.

 

Um dos piores aliados desta forma de violência é o silêncio cúmplice de quem sabe e cala, de quem tem o dever de apoiar e de denunciar e se remete a uma atitude de indiferença ou de apatia que acaba sempre por dar mais força ao agressor.

 

Por vezes, numa reportagem de televisão ou de jornal, quando aquilo que era um caso corrente de violência doméstica degenera em tragédia mortal, aparece alguém que diz: "Há muito tempo que ele batia na mulher e nos filhos" ou: "Toda a gente aqui no bairro sabia o que se passava naquela casa". Então se sabiam, por que não denunciaram, por que não ajudaram as vítimas a terem força suficiente para procurar ajuda junto das autoridades?

 

Há uma tendência para se dizer e se pensar: "Entre marido e mulher não metas a colheo>, ou: "O que se passa lá em casa é um assunto deles e não nosso". Quando a violência conduz à morte, quem assim pensa põe a mão na consciência e é possível que pergunte, penitenciando-se: "Porque não decidi agir enquanto era tempo?" A resposta, quando vem, é sempre tardia e inútil. O problema da violência doméstica é um problema social e da comunidade, exigindo, por isso, a intervenção oportuna de quem tem o dever de fazer respeitar a lei e de quem, sendo cidadão, quer ver a violência erradicada. Como pode uma pessoa, numa grande ou numa pequena cidade, dormir em sossego se souber que no andar de cima ou do lado há uma criança que é espancada ou queimada com pontas de cigarros, ou uma mulher que é agredida só porque o marido suspeita de que ela olha para os outros homens quando vai ao café ou às compras?

 

E que não se pense que o problema da violência doméstica ou pública é uma questão nova. Recorde-se que a própria Bíblia descreve várias situações de violência fatal. É o caso, já referido, de Caim que mata o irmão Abel. O primeiro era agricultor e o segundo pastor. Ambos quiseram levar a Jeová os frutos do seu trabalho: o primeiro os frutos da terra e o segundo as melhores cabeças do seu rebanho. Jeová aceitou as ofertas de Abel e rejeitou as de Caim. Este, enfurecido pela recusa de Jeová e movido pelo ressentimento e pela inveja, decidiu matar o irmão.

 

A história da humanidade é uma interminável história de violência que tem os seus pontos altos nos circos romanos onde se matavam diariamente centenas de homens e de animais para gozo de um público sedento de sangue, nos autos-de-fé da Inquisição, que matou e queimou na fogueira, sob a acusação de praticarem bruxaria ou acreditarem noutros deuses, muitos milhares de pessoas, ou nos campos de concentração criados pelos nazis na Alemanha e noutros países ocupados, entre 1939 e 1945.

 

                     O RACISMO COMO FORMA DE VIOLÊNCIA

 

"A regra de ouro da conduta é a tolerância mútua".

                       MAHATMA GANDHI

 

Uma das formas mais repugnantes de violência é o racismo. A questão da cor da pele é apenas a face visível de um problema que tem outras causas e outras origens. Essas causas e origens costumam ser económicas, sociais e psicológicas.

 

A tendência para se excluir, para se pôr à margem quem pertence a outras raças e tem outra coloração de pele resulta quase sempre do medo do que é diferente e, sendo diferente, pode ocupar o nosso território, e da ideia de que quem tem mais dinheiro e mais elevado estatuto social não deve misturar-se com quem, vindo de outros países e de outras culturas, tem uma situação social inferior.

 

Os fenómenos de racismo que surgiram na Europa nos últimos anos são disso um bom exemplo.

 

Países como a França, a Alemanha, a Holanda, a Bélgica ou a Áustria aceitaram, desde finais dos anos cinquenta, milhões de trabalhadores imigrantes que ajudaram a reconstruí-los após a destruição provocada pela Segunda Guerra Mundial. Esses imigrantes foram-se integrando socialmente, tendo filhos e beneficiando das vantagens do sistema social e de saúde, às quais têm pleno direito. Entretanto, surgiram crises económicas que lançaram muitas centenas de milhares de pessoas no desemprego. Aí, as forças da extrema-direita, inspiradas nos ensinamentos de Mussolini ou de Hitler e das ditaduras fascistas, apressaram-se a tentar explicar o desemprego e o aumento da criminalidade com a presença nos seus países de um número de estrangeiros que consideram excessivo.

 

Foi com base nessas ideias, que, ainda há uns anos atrás, pareciam estar definitivamente fora de circulação, que Jean Marie Lê Pen, em França, com a Frente Nacional, ou Joerg Haider, na Áustria, com o Partido da Liberdade, conseguiram fazer eleger seus representantes. O segundo conseguiu mesmo que o seu partido formasse governo com os conservadores no princípio do ano 2000, provocando uma violenta reacção dos países da União Europeia, na altura sob presidência portuguesa, e de muitas centenas de milhares de pessoas em vários países, e na própria Áustria, que se recusam a aceitar o regresso de fascistas e de nazis ao poder.

 

Se o racismo é a marginalização de pessoas de outras raças, a xenofobia é o ódio ao estrangeiro. É uma palavra de origem grega, e já no tempo dos gregos antigos o seu significado era bem compreendido. Racismo e xenofobia andam sempre de mãos dadas. São faces da mesma moeda.

 

Uma moeda cujo valor costuma ser fatal para as sociedades.

 

No caso dos neofascistas e dos neonazis, as ideias racistas e xenófobas são a base de uma propaganda política agressiva e assente nas piores formas de intolerância. Tanto Lê Pen como Haider são contra os turcos, contra os africanos, contra os ciganos, contra todos os que não representam, tal como defendia Adolf Hitler, a pureza da sua raça, como se existissem raças puras.

 

Neste século, a forma mais violenta de racismo foi a criação, na África do Sul, de um regime chamado Apartheid, que se traduziu, até aos anos noventa, pela separação total de negros (a esmagadora maioria da população) e de brancos nos diversos níveis da sociedade, estando o acesso a todos os lugares de responsabilidade vedado aos primeiros. Só com a saída de Nelson Mandela da prisão, após 27 anos de cativeiro por ter liderado a luta contra o Apartheid, & com a chegada ao poder, por via democrática, do Congresso Nacional Africano, o seu partido, esse regime de segregação teve os dias contados. Dando um elevado exemplo de tolerância e de grandeza moral, Mandela não excluiu os brancos da nova sociedade, atribuindo-lhes cargos e funções que eles sempre recusaram aos negros.

 

Há muitas formas de racismo, umas mais encapotadas e outras menos. A Alemanha nazi levou o racismo às suas últimas consequências, perseguindo e assassinando seis milhões de judeus e centenas de milhares de ciganos. Mas o racismo continua a estar presente na sociedade contemporânea sob formas que nos devem causar preocupação e vigilância.

 

Mesmo em Portugal, que não tem uma tradição racista, surgem com frequência manifestações de racismo, associadas a ideias neonazis e não só.

 

Nos últimos anos registaram-se casos graves de agressões, ou mesmo de espancamento, até à morte, de jovens de origem africana. Um jovem negro foi amarrado aos carris da linha férrea no Porto. A noite de Lisboa, do Algarve e de outros pontos do país está recheada de casos de agressão a negros por gangs organizados para o efeito ou até por agentes da PSP, em esquadras ou fora delas. Entretanto, os jovens negros, por razões de ordem social e económica, começaram também a organizar os seus próprios gangs, aumentando os índices da criminalidade no país.

 

Têm-se multiplicado, por outro lado, os casos de perseguição a ciganos, que são normalmente associados por vários sectores da população ao tráfico de droga.

 

Primeiro, as manifestações de racismo partiam quase exclusivamente dos chamados "skinheads" (cabeças rapadas) que defendiam ideias de extrema-direita. Ultimamente, este tipo de violência passou a revestir-se de formas mais difíceis de caracterizar e de explicar. Sobretudo nos períodos de Verão registam-se violentos confrontos físicos entre grupos organizados, e a questão racial nunca está totalmente afastada desse tipo de conflitos.

 

Portugal é um país onde, ao longo dos séculos se misturaram raças e culturas. Os portugueses têm, entre outras, na sua origem, influências árabes e judaicas. Com os Descobrimentos, os negros passaram a ter uma presença forte e importante para a economia em Lisboa e noutros pontos do País.

 

Ninguém pode pensar ou falar de pureza de raça em Portugal e muito menos tornar-se racista em nome de uma pureza que de facto não existe. Muitos portugueses têm ainda sangue africano a correr nas veias e foi com esse espírito que colonizaram grandes territórios como o Brasil, que é um exemplo extraordinário de mestiçagem, ou seja, de cruzamento de raças (brancos, negros, índios, árabes e orientais).

 

A nossa grande tradição histórica e cultural é a do cruzamento de raças e de culturas. No entanto, o racismo existe em Portugal, está a tornar-se cada vez mais violento e pode vir a ser um fenómeno de proporções graves nos próximos anos, sobretudo se os tribunais não condenarem severamente os autores da violência racista, seja ela qual for

- também há racismo de negros contra brancos - e se a escola, a família e a comunidade não explicarem aos mais novos que a diferença é um factor de enriquecimento da sociedade e que a igualdade que conta é a que nasce da diferença. Nova Iorque é, talvez, a cidade mais dinâmica e criativa do mundo e o seu segredo reside no cruzamento, ao longo das décadas, das mais diferentes raças, com igualdade de oportunidades para todas.

 

Quando alguém diz, em Portugal, e há muita gente a dizê-lo, "não tenho nada contra os negros, mas não gostava de ver uma filha ou filho meu casado com uma pessoa dessa raça", estamos perante uma manifestação de racismo. Do pensamento ao acto vai um passo muito curto. E esse passo costuma levar a uma das piores formas de violência, principalmente numa época em que aumenta a emigração africana para Portugal devido às grandes obras públicas que Precisam de mão-de-obra em quantidade.

 

                                 A VIOLÊNCIA NO DESPORTO

 

"Eu desconfio dos que não comunicam. Eles são a fonte de toda a violência".

                             JEAN-PAUL SARTRE

 

Os recintos desportivos e, em particular, os estádios de futebol são espaços ideais para a violência se manifestar. Porquê? Porque ali há sempre equipas e claques em confronto, porque as provas desportivas, em ambiente de campeonato, aquecem os ânimos e porque, como alguém já disse, o desporto, e sobretudo o futebol, apresenta condições semelhantes às dos conflitos entre tribos.

 

A situação mais grave é a do futebol.

 

As claques são importantes para dar apoio às equipas, mas está provado que muitas delas estão infiltradas por elementos neofascistas que tentam transformá-las, a coberto das cores dos clubes, em verdadeiros exércitos prontos para o combate.

 

Países como a Grã-Bretanha já identificaram e estudaram devidamente o fenómeno dos "hooligans" (vândalos) que acompanham as suas equipas de futebol de cidade para cidade, de país para país, e que, antes e após os jogos, apesar dos milhares de agentes da polícia que tentam controlá-los, são capazes de lançar uma cidade no caos, incendiando carros, destruindo montras e agredindo pessoas. Durante a Final do Europeu de 2000, não faltaram exemplos desta preocupante realidade.

 

Quanto menos uma sociedade tem valores e princípios que a ajudem a encontrar o seu rumo, mais as energias das pessoas se canalizam para os estádios de futebol, transformados, por vezes, em verdadeiros campos de batalha em que ninguém consegue pôr ordem, por mais que tente.

 

Precisamente porque são violentas, as pessoas fazem dos clubes e da crença clubística as forças pelas quais tomam partido.

 

É sabido que se é de um clube e não de outro por razões afectivas profundas que estão muito ligadas à infância e, sobretudo, à figura do pai. Por isso, pode mudar-se de muita coisa - de cidade, de emprego, de casa, de família ou até de partido político -, mas só muito raramente se muda de clube desportivo. Isso é bom e é mau ao mesmo tempo. É bom porque representa uma causa e uma bandeira. É mau porque serve de pretexto para se descarregar muitas tensões, conflitos e frustrações acumuladas ao longo da vida, tantas vezes da maneira mais agressiva e incorrecta.

 

O futebol deixou de ser um desporto para se transformar num espectáculo, numa indústria e num negócio de muitos milhões. O espectáculo dado pelos dirigentes e pelos treinadores dos clubes ao longo dos campeonatos são, frequentemente, verdadeiras declarações de guerra que levam os adeptos a entrarem nos estádios com um espírito agressivo e revoltado. Qualquer erro de arbitragem pode atear o rastilho que leva à explosão final, como tem acontecido em várias situações nos últimos anos.

 

Por outro lado, a linguagem que se ouve nas bancadas, dirigida aos árbitros, aos treinadores, aos jogadores e aos adeptos dos outros clubes, é talvez a pior e a mais vergonhosa forma de violência. Há quem diga nas bancadas o que não seria capaz de dizer em qualquer outra circunstância da sua vida. Se as palavras matassem, em cada domingo haveria nos estádios muitas centenas de mortos.

 

As pessoas esquecem-se de que o futebol, podendo, quando é bem jogado, ser um bom espectáculo, tem muito menos importância nas suas vidas do que, à primeira vista, podem imaginar.

 

Há quem diga que é bom que assim aconteça para se descarregar as tensões acumuladas ao longo da semana. Resta saber se, deste modo, a violência não aumenta ainda mais.

 

Se se estabelecer uma relação entre alguns tipos de violência doméstica e de agressões entre automobilistas e os maus resultados de alguns clubes, talvez se conclua que as tensões em vez de diminuírem aumentam ainda mais.

 

Não quer isto dizer que o futebol esteja errado. Errados estão os valores que se põem em causa à volta daquilo que deveria limitar-se a ser um espectáculo bonito e apelativo. Mas será que o Homem é capaz de fazer prevalecer estas regras e não as que levam à agressividade e à hostilidade de quem está do outro lado ou de quem não actua como ele espera que actue?

 

                           AS ESTRADAS COMO PALCO DE VIOLÊNCIA

 

Portugal é o país da União Europeia com maior número de acidentes nas estradas e com maior número de vítimas mortais nesses acidentes.

 

Apesar das campanhas de prevenção cada vez mais rigorosas, do aumento do valor das multas e do agravamento das penas para quem não respeita as regras de trânsito, o número de acidentes graves não pára de aumentar. Muitos automobilistas são verdadeiros criminosos, pondo em risco as suas vidas, a dos que viajam com eles e a dos outros condutores.

 

Há em Portugal uma das mais violentas e perigosas conduções rodoviárias do mundo. O condutor senta-se ao volante e sente-se poderoso, tentando imitar as manobras mais perigosas das grandes vedetas dos "rallies" ou dos grandes prémios de Fórmula 1. O automóvel é o seu instrumento de afirmação e de poder.

 

Sentado ao volante, sobretudo se tiver bebido em excesso, ele sente-se senhor do mundo, pisando traços contínuos, passando no vermelho dos semáforose não parando nas passagens de peões. O resultado é trágico e está tristemente à vista. E que não se diga que a culpa é de termos más estradas. A nossa rede viária melhorou muito nos últimos anos. O que não melhorou foi o nível de civismo dos condutores, cada vez mais agressivos e ameaçadores.

 

Sempre que há um conflito provocado por um problema de prioridades ou outro, o mínimo que um automobilista chama ao outro é "palhaço". Daí até à confrontação física é um instante. Muitos automobilistas usam armas de fogo dentro das viaturas e, em dezenas de casos, já as usaram, ferindo ou matando por questões absurdas, tendo depois a vida inteira para se arrependerem do que fizeram.

 

Quando se diz, e diz-se com muitu frequência, que somos "um país de brandos costumes", é preciso pensar no que se passa nas nossas estradas para se concluir se a frase faz ou não sentido. A condução é violenta, impaciente, intolerante. A linguagem insultuosa, obscena, ameaçadora. Por este andar, a que desfecho iremos assistir?

 

Os estrangeiros que nos visitam, vindos de países onde a condução é civilizada, é das primeiras coisas em que reparam. Cada automobilista parece ter em cada dia, em cada minuto, uma batalha para vencer. Muitas vezes perde-a e, com ela, a própria vida.

 

Já vi condutores com crianças e familiares idosos a bordo a fazerem gestos e a insultarem outros condutores de uma forma que creio que, caso pudessem ver em vídeo a sua figura, ficariam corados de vergonha para o resto da vida.

 

Os "aceleras" portugueses, na sua maioria, são tão perigosos, por serem assassinos potenciais, como qualquer pistoleiro da Máfia. Com uma diferença: o mafioso age com um objectivo, sabe o que quer e o mal que vai causar e consegue controlar os nervos. Os automobilistas não.

 

Tal como acontece nos casos de violência doméstica, ninguém diria, vendo um automobilista médio, longe do volante, que ele se pode tornar, em poucos minutos, um animal em fúria, usando a sua viatura como uma metralhadora ou uma carabina de precisão. Ao volante, ele sente que está a ajustar todas as contas que tem para ajustar com o mundo.

 

                   A GUERRA COMO FORMA LIMITE DE VIOLÊNCIA

 

               "A essência da guerra é a violência"

                             JOHN FISHER

 

A mais terrível de todas as formas de violência é, sem dúvida, a guerra. O século xx assistiu às piores de toda a história da humanidade, porque foram aquelas em que se utilizaram meios tecnológicos mais sofisticados, as que se fizeram em nome de ideologias e aquelas em que morreram mais pessoas. Só durante a Segunda Guerra Mundial morreram mais de 50 milhões de pessoas, estando incluídos nesse número os seis milhões de judeus dos campos de concentração e as centenas de milhares de vítimas das duas bombas atómicas lançadas pelos norte-americanos em Hiroshima e Nagasaki.

 

Mais recentemente assistimos a guerras como a do Golfo, a da Bósnia-Herzegovina e a do Kosovo, para já não falar das situações de Angola ou do Ruanda. Angola, por exemplo, vive uma situação de guerra há cerca de 40 anos, tendo já morrido, naquele, país mais de dois milhões de pessoas. Os que não são mortos durante os combates, morrem depois de fome, de epidemias ou em consequência dos milhares de minas que ficaram abandonadas nesse e noutros territórios que foram ou são ainda teatro de guerra.

 

Nunca é fácil dizer o que provoca e mantém verdadeiramente uma guerra. À primeira vista parecem ser questões territoriais, religiosas ou políticas. Mas, por trás delas, há sempre outros interesses, a começar, naturalmente, pelos económicos. Em grande parte, quem mantém as guerras e, se necessário, as provoca são os fabricantes de armas que precisam de mercados para escoarem os seus produtos, e os seus produtos têm sempre uma palavra inscrita: morte.

 

Foi assim em todas as guerras já referidas, independentemente das outras causas que estiveram na sua origem. Foi assim na Guerra do Vietname, na Guerra Colonial mantida durante 13 anos pelos portugueses em Angola, Guiné e Moçambique, na Guerra do Afeganistão ou na Guerra do Golfo. Para além dos valores e dos princípios, estão sempre os intereses. Nenhuma potência grande, média ou pequena entra numa guerra sem avaliar primeiro o que vai ganhar em termos económicos, militares, geoestratégicos, diplomáticos e políticos. Os cálculos de perdas humanas costumam quase sempre ficar para o fim.

 

Os Estados Unidos da América fizeram a Guerra do Vietname em nome dos valores da liberdade e da democracia, mas o que pretendiam era não perder a sua influência no continente asiático, transferindo poder e influência para os comunistas. Perderam quase 60 mil homens e também a guerra, mas recuperaram os gastos com as dezenas de filmes que, desde então, fizeram sobre o tema e que lhes deram centenas de milhões de dólares a ganhar em todo o mundo.

 

A guerra é, para uma minoria sem rosto, o maior e o mais rendoso de todos os negócios, juntamente com o tráfico de droga. Muitas vezes andam mesmo de braço dado. Onde está um, também está o outro. É a lógica do lucro contra a da vida humana.

 

Independentemente do apuramento dos vencedores e dos vencidos, quem sai sempre prejudicado são as populações que perdem os melhores dos seus filhos, que vêem morrer crianças, mulheres e idosos, animais e muitos sonhos.

 

Onde há guerra, não há espaço nem tempo para haver mais nada. Não há música, não há alegria, não há convívio, não há sono descansado e, muitas vezes, não há sequer esperança de que a guerra acabe.

 

A guerra, seja ela civil (a mais terrível de todas), regional ou mundial, étnica ou religiosa, é a pior expressão da violência humana. É a violência humana levada à sua máxima e mais trágica potência.

 

Depois de quase 50 anos de paz, a Europa viu a guerra regressar na ex-Jugoslávia e em territórios da ex-União Soviética, e ninguém nos garante que novas situações não vão surgir nos próximos anos, apesar dos esforços da diplomacia, dos movimentos de opinião e do papel infelizmente cada vez mais limitado das Nações Unidas.

 

Triste e trágico espectáculo de violência foi, em Setembro de 1999, o que o exército indonésio e as milícias por ele criadas e armadas deram ao mundo ao tentarem impedir o povo de Timor Loro Sae de chegar à independência depois de ter votado em massa nesse sentido, num referendo realizado em 30 de Agosto desse ano.

 

A guerra é tão antiga como a presença do Homem sobre a face da Terra e continuará a sê-lo, apesar de todos sentirmos e sabermos que ela é o maior e o mais devastador inimigo dos povos, de culturas, de civilizações e de memórias.

 

Quando o Homem for capaz de vencer a guerra, enquanto forma de conduta e de destruição, eliminará o seu maior e mais terrível inimigo de sempre. Mas será que esse dia alguma vez chegará? Será que a guerra, tal como prevêem os filmes de ficção científica, não vai passar, dentro de alguns anos, a ter como cenário o espaço interplanetário?

 

Enquanto houver guerras, morrerão milhares de seres humanos, cidades serão destruídas, epidemias alastrarão, serão queimados livros, museus, colheitas e os sonhos de várias gerações.

 

E que não se pense que o Homem não é capaz de inventar sempre formas mais cruéis e devastadoras de fazer a guerra. Para além da guerra atómica, que, felizmente, só teve expressão trágica no Japão, em meados de 1945, há a guerra química, a guerra bacteriológica e também a guerra psicológica. Todas somadas dão um retrato do ser humano que está muito longe de poder ser um motivo de orgulho para a nossa espécie.

 

Ao abordar este tema, não posso deixar de referir a violência que se exerce sobre jornalistas que cobrem, em todo o mundo, situações de guerra. A missão de informar, mesmo nas mais duras circunstâncias, leva-os a situações das quais muitas vezes acabam por sair sem vida. Só em

1999 morreram em todo o mundo 34 jornalistas, segundo dados divulgados pelo Comité de Protecção dos Jornalistas. Este número foi superior em 24 ao total registado em idênticas situações no ano anterior. Dez foram mortos na Serra Leoa e seis durante a guerra na Jugoslávia.

 

Entretanto, apesar de ter vindo a baixar nos últimos anos, continua a ser muito elevado o número de jornalistas presos no exercício da sua função de informar e de denunciar a violência, a falta de liberdade e outras violações dos direitos humanos. Em 1999, havia cerca de 90 jornalistas presos por regimes autoritários que recorrem à violência e ao terror.

 

Quando uma pessoa escolhe a profissão de jornalista sabe que este é um dos riscos a que pode ficar sujeito. Se as guerras não poupam vidas em geral, é natural que também não poupem os que estão nas zonas mais críticas dos conflitos com o propósito de contarem ao mundo o que viram e ouviram.

 

                         A VIOLÊNCIA DAS IMAGENS

 

"A primeira condição essencial para o êxito é um perpétuo, constante e regular emprego da violência".

                         ADOLF HITLER

 

Mais de 80 por cento dos filmes que circulam no mercado mundial incluem imagens violentas. Quando falo de violência nas imagens, falo de tiros, que, além de matarem, projectam os corpos a grandes distâncias, de perseguições de automóveis de muitos minutos com a destruição final de dezenas de viaturas, de casas bombardeadas e incendiadas, de espancamentos físicos e de uma linguagem que, em cada frase, inclui um número incalculável de palavras agressivas e obscenas.

 

A violência tornou-se uma exigência dos grandes produtores cinematográficos. Mesmo os filmes aparentemente inofensivos, para atraírem o público às salas, devem incluir cenas de violência física e de sexo.

 

Deste modo, a violência banalizou-se de uma forma constante e perigosa. Os mais jovens, e sobretudo as crianças, ficam com a ideia de que usar uma arma de fogo ou atirar um carro a grande velocidade para cima de uma multidão é uma coisa simples, natural e inofensiva.

 

Talvez isso explique a trágica frequência com que, nos Estados Unidos, jovens pegam em armas e matam nas escolas colegas e professores, ninguém parecendo ser capaz de encontrar uma causa para esse tipo de actos. É certo que, naquele país, a causa principal deste tipo de situações é o fácil acesso de qualquer pessoa a armas de fogo, não havendo legislação que proiba a sua compra e utilização.

 

Para além dos filmes, as séries de televisão e até os desenhos animados, sobretudo os feitos no Japão, estão cada vez mais marcados pela violência, que é o resultado das imagens e dos sons combinados para aumentar a agressividade de quem os vê.

 

A gravidade desta situação preocupa professores, escolas, associações de pais e até responsáveis políticos. Em Portugal, pessoas cuja opinião é importante, têm denunciado o excesso de violência na televisão. E, como violência atrai violência, é natural que este excesso de imagens que vulgarizam o sangue, a agressão física e verbal e a destruição física de pessoas e de bens torne ainda mais violentos aqueles que têm condições naturais para o serem.

 

A violência é como uma praga ou uma epidemia. Se não a travamos, cresce, multiplica-se e ganha proporções incontroláveis.

 

Poderá dizer-se que as pessoas só vêem na televisão ou no cinema aquilo que querem ver, já que, numa sociedade livre, ninguém obriga ninguém a ver e a consumir aquilo de que não gosta. Isso é só em parte verdade. Se as pessoas ligam os televisores e os filmes que vêem são na sua maioria violentos, a violência passa a estar muito mais presente no seu dia-a-dia, mesmo quando se encontram a descansar depois de um dia de trabalho ou de estudo.

 

A violência é encarada pela indústria cinematográfica, e não só, como um negócio. Esse negócio leva em conta o facto incontestado de as pessoas, em geral, serem mais atraídas pela violência do que por aquilo que é suave e pacífico. Quem investe muitos milhões de dólares num filme, quer esse investimento multiplicado por cinco, por dez ou por vinte. No fundo, trabalha para ter lucro, e não tem preocupações morais no modo como o obtém.

 

Se isto é válido para o cinema, para as séries de televisão e para os desenhos animados, também se aplica por inteiro à forma como se faz informação televisiva. É cada vez maior o número de telejornais que abrem com imagens de raptos, de homicídios, de espancamentos e de outras manifestações de violência física. E porquê? Porque, para além de informar, os canais de televisão, sejam eles públicos ou privados, não querem perder a guerra das audiências. Onde há sangue e violência, há mais gente agarrada aos ecrãs e isso significa maior audiência e maior volume de publicidade. O mercado impõe as suas leis selvagens e as suas regras pouco morais, e a sociedade vai-se regendo por elas como se fosse esse o único caminho a seguir.

 

Haverá sempre quem diga: "Se as pessoas é disto que gostam, é isto que lhes vamos dar, porque vivemos numa sociedade livre e democrática e quem quiser seguir outro caminho que não este tem sempre possibilidade de o fazer".

 

Em termos teóricos, é, de facto, assim. Mas também é verdade que há muita gente que consome droga e fica dependente dela e, no entanto, a sua venda é proibida por lei.

 

A grande indústria cinematográfica segue regras científicas na gestão da violência nas imagens, sabendo que de tantos em tantos minutos tem que haver um tiroteio ou uma cena de murros e de pontapés. Tal como acontece nos filmes cómicos, os produtores sabem que se o público não rir à gargalhada com uma frequência determinada o filme será um fracasso. Nos filmes de violência, o princípio também é válido. Quando mais violência houver, maior será o êxito de bilheteira.

 

Muitos são os filmes cuja história se conta numa frase e nos quais se fica com a ideia de que as personagens e os diálogos são apenas um pretexto para "encaixar" a violência. E essa violência também passa pelas bandas sonoras. Os ruídos dos murros e dos tiros é cada vez mais potente e arrasador, envolvendo os espectadores num clima agressivo que os excita e predispõe para a violência.

 

Um país escandinavo tomou já a decisão de escolher um dia na semana em que não há emissões televisivas. Porquê? Porque parece ser a única forma de forçar as pessoas, nesse dia, a dedicaram-se um pouco mais ao convívio com a família e a não estarem sujeitas à violência das imagens.

 

Em Portugal as pessoas vêem, em média, quatro horas de televisão por dia e as crianças chegam ao Ensino Básico com cerca de quatro mil horas de televisão já assimiladas. Uma boa parte dessas horas é constituída por desenhos animados em que a violência visual e sonora não pode ser maior, deformando a sua visão do mundo e a sua relação com os outros.

 

Quando crianças de nove ou 10 anos matam, como aconteceu em alguns países, crianças mais pequenas, é também na violência das imagens que é preciso encontrar uma explicação para esse estado de coisas de que todos somos, afinal, responsáveis.

 

                       O TERRORISMO: VIOLÊNCIA SEM ROSTO

 

"Os que tornam a revolução pacífica impossível, tornam a revolução violenta inevitável".

                     JOHN F. KENNEDY

 

O terrorismo político é uma das mais terríveis formas de violência. A Primeira Grande Guerra teve na origem um atentado terrorista que vitimou, em Sarajevo, o arquiduque Francisco Fernando e sua mulher.

 

Na Europa, milhares de pessoas morreram, depois da Segunda Guerra Mundial, vitimadas por organizações terroristas como as Brigadas Vermelhas, em Itália, já extintas, como o grupo Baader-Meinhof, na Alemanha, também já desaparecido, ou como a ETA, em Espanha, ou o IRA (Exército Republicano Irlandês), na Irlanda do Norte.

 

Fora da Europa, surgiram importantes organizações terroristas nos países árabes, lutando contra Israel e contra a ocupação do território que consideram ser pertença sua há séculos. A relação mais conflituosa neste quadro, é a da OLP

 

(Organização de Libertação da Palestina) chefiada por Yasser Arafat contra as autoridades de Tel Avive. Apesar de a faixa de Gaza ser hoje um território administrado pelos palestinianos, continuam a surgir com frequência focos de grande violência que degeneram em dezenas de mortos para ambos os lados. Só durante a Intifada (guerra das pedras), que começou em 1987 nos territórios ocupados por Israel, foram mortos cerca de 10 mil palestinianos. Na altura em que este livro é escrito prepara-se a declaração unilateral de independência, marcada para meados de Outubro do ano 2000.

 

O terrorismo político utiliza os mais diversos meios, e aqueles que estudam as organizações terroristas identificam facilmente o seu estilo e as suas marcas, seja pelo tipo de explosivos ou das balas que utilizam, seja pela forma como abatem as suas vítimas.

 

Se algumas organizações a par do uso regular de explosivos, recorrem ao assassínio a tiro de militares, agentes de segurança e autarcas, como é o caso da ETA, em Espanha, outras preferem colocar, sobretudo, cargas explosivas de grande potência em transportes e locais públicos, roubando a vida a dezenas de pessoas que nada têm a ver com o conflito. No Verão de 1998, o IRA cometeu um atentado desse tipo na Irlanda, atingindo dezenas de pessoas que faziam as suas compras num fim de semana.

 

Um dos principais alvos das organizações terroristas têm sido os aviões das linhas comerciais. O derrube de um avião representa em média a morte de mais de 200 pessoas e a abertura dos telejornais das televisões de todo o mundo. No fundo, o que as organizações terroristas buscam é publicidade para, através dela, chamarem a atenção para causas que consideram ser justas e que acabam por deixar de o ser devido ao uso da violência mais brutal e irracional.

 

E há também o terrorismo praticado por organizações neofascistas e neonazis. Em 1980, um desses grupos colocou uma bomba na gare da estação de caminhos de ferro de Bolonha, provocando a morte a 79 pessoas e ferindo gravemente cerca de 250. Em 1978, as Brigadas Vermelhas italianas raptaram o líder da Democracia Cristã, Aldo Moro, e acabaram por assassiná-lo, fazendo-o aparecer na mala de uma viatura no centro de Roma. Também a Mafia pratica actos de terrorismo. O mais famoso foi o assassinato do juiz Giovanni Falcone, que estava a investigar os crimes das principais "famílias" mafiosas e as suas ligações ao poder político.

 

Já nos anos 90 surgiu uma nova e inesperada forma de terrorismo nos Estados Unidos e no Japão. Em Oklahoma City uma potente carga explosiva colocada num edifício governamental matou mais de 300 pessoas. A responsabilidade terá sido pelo menos de um indivíduo ligado a um grupo de extrema-direita, entretanto condenado à morte. Em Tóquio, no Japão, uma seita religiosa extremista lançou nas condutas de ar do Metro da cidade gás "sarin", matando dezenas de pessoas e provocando lesões graves em muitas outras.

 

Não se pode partir do princípio de que existe terrorismo bom e terrorismo mau, terrorismo justo e terrorismo injusto. O terrorismo é sempre uma forma violenta e condenável de combate, seja ele político, étnico ou religioso. Por vezes, a violência militar e policial exercida pelo poder tenta activá-lo para depois poder justificar acções mais radicais e de excepção.

 

Como diz Roger Dadours, um estudioso francês do fenómeno da violência, "estabelece-se entre o terrorismo e a televisão um estranho conluio; num tal "teleterrorismo", o terrorismo age, preferencialmente "para" a televisão e, em contrapartida, a televisão "faz" do terrorismo um espectáculo, por vezes como se se tratasse de um folhetim".

 

Ou seja: o terrorismo não passa sem a sede que as televisões têm de espectáculos "fortes" e as televisões não passam, deixadas de lado as preocupações morais, sem este alimento que lhes permite aumentar as audiências e "agarrar" os telespectadores.

 

Nenhuma organização terrorista actua discretamente quando exerce violência. Ela precisa de publicidade para fazer a sua propaganda, precisa de tempo de antena para propagar medos e horrores e manter pessoas e instituições dominadas. Diz o mesmo autor que "o terrorismo manifesta-se de uma extremidade à outra do planeta", desde que tenha a garantia de que a comunicação social é a "caixa de ressonância" que lhe permite continuar a existir.

 

Não há dúvida de que esta forma extrema de violência, que vive paredes meias com os órgãos de informação, é uma das realidades mais trágicas do século xx, estando ainda muitos casos sem solução e podendo aparecer outros onde e quando menos se espera, já que o terrorismo, que é cruel e cobarde, nunca mostra o rosto e tem tanta sede de ecrã como algumas vedetas, de televisão que conhecemos. Entretanto, vítimas inocentes vão aumentando a lista já extensa dos que não foram poupados, só para que a máquina nunca deixe de estar em movimento.

 

Nunca uma bomba tornou uma ideia mais forte ou mais justa, nunca pôs termo à opressão e ao medo. Pelo contrário: só os aumentou e agravou.

 

                                           A VIOLÊNCIA JUVENIL

 

"É melhor ser violento se há violência nos nossos corações do que usar um disfarce de não-violência para disfarçar a impotência".

                           MAHATMA GANDHI

 

Os jovens são cada vez mais violentos, principalmente nos grandes centros urbanos. Têm tendência para se organizar em grupos, umas vezes para se defenderem, outras para atacarem. Esses grupos, quando atingem um determinado grau de organização, podem classificar-se como "gangs", caracterizados pelo uso de roupas semelhantes, de símbolos, de cores e de palavras de ordem. Alguns são pequenos exércitos onde existe um chefe e uma hierarquia. Muitos desses gangs, sobretudo em países como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha ou a Alemanha, assentam em juramentos e em pactos que podem até ser de sangue. Quem quer sair, pode pagar com a vida essa opção. Os gangs são formas de organização tribal que reproduzem a maneira como os povos primitivos se preparavam para enfrentar os inimigos e marcarem explicitamente o seu território.

 

Na origem da violência juvenil está quase sempre um estado de revolta para o qual a família, a escola e a sociedade não encontram respostas nem saídas adequadas. É natural os jovens serem revoltados, pois têm dificuldade em adaptar os seus sonhos à crueza da realidade. Mas essa revolta pode ter expressões benignas ou malignas.

 

A violência juvenil organiza-se e expressa-se frequentemente através das claques dos clubes ou da participação em determinados tipos de concertos "rock". O álcool ou a droga agravam com frequência essa situação, convertendo a revolta em vandalismo e a agressividade em pura violência gratuita.

 

Um filme famoso - "Rebelde sem Causa" -, com James Dean, mostrava a dimensão que pode ter este fenómeno nas sociedades contemporâneas. O rebelde que não tem causa sente-se mal na sua própria pele, não se orienta por padrões morais e tem tendência para ser violento só para apaziguar a raiva que sente. A escola não o satisfaz, a escola não lhe dá perspectivas de futuro, a família não o aceita tal como é. Daí à ruptura é um pequeno passo. Esse passo pode levar à marginalidade e até ao crime organizado.

 

As formas mais benignas de vandalismo podem ser as pichagens nas paredes com frases contra o sistema, com desenhos ou até com versos. As mais graves vão até ao confronto físico violento entre grupos (muitas vezes a questão racial está na origem dos conflitos) e à destruição de montras e de viaturas após um encontro de "rock" ou um jogo de futebol.

 

Deste modo, os jovens, uma minoria, felizmente, pensam estar a desafiar a autoridade, seja a da família, da escola ou do Estado. E há sempre quem esteja atento, na sombra, às suas raivas e, principalmente, às suas necessidades. É por isso que as associações criminosas que traficam droga e as neofascistas nunca perdem estes jovens de vista. Eles são o terreno fértil para a sua acção ou o seu negócio.

 

Muitas vezes, o jovem é agressivo ou mesmo violento só para se fazer notar, para que dêem pela sua existência. Isso acontece com alguma frequência em turmas onde jovens vindos de famílias desestruturadas insultam os professores e agridem os colegas para terem, pela negativa, um reconhecimento que de outro modo nunca teriam. São reconhecidos pelo medo e pelo desconforto que causam e, ao mesmo tempo, descarregam a raiva que lhes vai no espírito.

 

Uma das mais preocupantes manifestações de violência juvenil tem sido, nomeadamente em Portugal, a agressão praticada por alunos contra professores em vários estabelecimentos de ensino. Só em 1999 foram participados 55 casos. Nalguns deles os professores foram agredidos por alunos e por encarregados de educação.

 

É preciso observar estas situações num quadro mais amplo de aumento da violência nas escolas e da violência na sociedade. Sabe-se que há muito mais situações do que aquelas que são participadas, porque os agredidos, tal como acontece com a violência doméstica, têm vergonha de dar conhecimento das situações em que foram vítimas.

 

Os 55 casos registados em 1999 dizem somente respeito a agressões físicas, mas há também, e com muito mais frequência, a violência verbal e psicológica.

 

É certo que há também casos de agressões a alunos feitas por professores, mas esses casos têm vindo a ser identificados e investigados com regularidade e são em menor número.

 

O certo é que quando a autoridade de quem ensina é posta em causa sob a forma extrema de agressão física, alguma coisa está mal e precisa de ser mudada com urgência.

 

Cada vez mais nas práticas juvenis se confunde liberdade com libertinagem e com o desrespeito pelas regras mais elementares de civilidade. É preciso que os responsáveis pelas instituições encontrem soluções rápidas sem caírem na tentação de misturar autoridade com autoritarismo. À violência é preciso responder com a autoridade que a lei e a razão nos dão e não com mais violência, sob pena de se transformarem pequenos conflitos em graves conflitos quase de natureza tribal.

 

Outro dos factores que levam os jovens a ter comportamentos violentos é a constante pressão que o meio exerce sobre eles no sentido de que não se deixem excluir dos grupos de que querem fazer parte. Para evitarem a exclusão, precisam de ter roupas de marca e de poder gabar-se dos carros potentes dos pais, das férias nas Caraíbas ou na neve, das casas de férias no Algarve e de outros sinais de prosperidade e de sucesso social. Quem não atinge esse patamar de reconhecimento pode ficar traumatizado e, sentindo-se excluído, pode resvalar para o consumo de drogas ou para a marginalidade.

 

O problema da violência juvenil deixou de ser exclusivamente urbano. Hoje, o fenómeno existe em todos os lugares onde a televisão chega, onde a sociedade de consumo se instalou e onde os padrões de vida dominantes lançaram raízes sólidas.

 

Entretanto, a violência vai aumentando de forma alarmante, seja por razões raciais, económicas e sociais, ou por outras que ninguém consegue ao certo determinar.

 

O mais preocupante nas formas de violência juvenil é que ela levanta as maiores dúvidas e interrogações quanto ao futuro que pertence aos jovens que hoje se revoltam.

 

É importante que a família lhes dê o suporte afectivo de que precisam e que a escola os prepare para entrarem num mercado de trabalho que, as mais das vezes, não necessita dos cursos que levam, com sacrifícios, anos a tirar.

 

Uma sociedade que não consegue demonstrar aos mais novos que é mais importante o que se é e o que se vale do que aquilo que se tem e se exibe, é uma sociedade que fracassa e abre as portas a novas formas de violência. Se os mais velhos não conseguirem explicar aos mais novos que os valores e os princípios são muito mais importantes que os interesses, terão falhado por completo a sua missão.

 

                             A VIOLÊNCIA NO TRABALHO

 

"A violência não existe e não pode existir só por si; ela está invariavelmente entrelaçada com a mentira"

                       ALEXANDER SOLJENITSINE

 

Nos últimos anos, têm vindo a surgir novas e até agora desconhecidas formas de violência. Uma delas é a violência exercida nos locais de trabalho por patrões ou por superiores hierárquicos. Se esta forma de violência existe é, essencialmente, porque a estabilidade de emprego é cada vez menor.

 

Países como a França preparam-se para produzir nova legislação que proteja os trabalhadores, especialmente as mulheres, que, devido a situações como a gravidez e a necessidade de apoio à família ou aos filhos menores, se encontram mais expostas a essas formas de violência.

 

Mas, no que consiste afinal, esse, novo tipo de violência? Consiste na agressão verbal, no assédio sexual, na criação de um clima de terror e no recordar permanente de que o vínculo que liga o trabalhador à empresa pode ser interrompido em qualquer momento por uma razão quase sempre insignificante.

 

Queixam-se alguns patrões de que os seus trabalhadores não acatam as suas ordens, mas, na maior parte dos casos, o que se verifica é que essas "ordens" são o pretexto ou o ponto de partida para o exercício de uma verdadeira tirania psicológica.

 

Um conhecido advogado francês disse, recentemente, que "existem dois tipos de assédio e violência: um que resulta do desejo perverso de destruir as pessoas psicologicamente, sendo mais raro, e outro que pretende levar os trabalhadores a situações psicológicas tão graves que acabem na sua demissão." Tanto os sindicatos como os serviços de Medicina no trabalho têm conhecimento, em vários países, de situações desta natureza. Muitas outras existem.no entanto, que não chegam nunca a ser comunicadas por vergonha ou por medo de represálias.

 

O BIT (Bureau International du Travail) publicou, em

1999, um vasto estudo sobre "A violência no trabalho". Esse estudo caracteriza os vários tipos de violência moral exercida nos locais de trabalho, que vão do insulto à criação de terror psicológico, passando pelo assédio sexual tornado, normalmente, impune devido ao medo que as vítimas têm de perder o emprego.

 

Por outro lado, estatísticas oficiais americanas estabelecem uma ligação entre as formas de violência no trabalho e algumas causas predominantes de morte, sobretudo entre as mulheres.

 

O BIT destaca, por ordem decrescente, cinco formas concretas de violência no trabalho: assédio sexual (33%), agressões verbais (29%), assédio moral, chantagem psicológica e perseguições colectivas (14%), agressões físicas (14%) e ameaças frequentes (10%). Países como a Finlândia e a Grã-Bretanha têm vindo a estudar com frequência este tipo de situações de violência, ao mesmo tempo que as relacionam com os custos que elas acabam por ter para as empresas e para o próprio Estado. De facto, o stress, o medo e a psicose resultantes das várias formas de violência moral acabam por conduzir a longos períodos de baixa médica, a formas visíveis de improdutividade e a um estado de conflito que degrada a própria vida empresarial.

 

Nos países da Europa do Norte existe já legislação prevendo estas situações. A França caminha nesse sentido. Portugal regista, também nesta matéria, um considerável atraso. A prova de que este fenómeno tem uma gravidade real está no facto de um livro publicado em França sobre este assunto já ter vendido mais de duzentos mil exemplares.

 

Em concreto, como se manifesta este tipo de violência? Pode revestir-se de várias formas. Nalguns casos, é o proprietário de uma pequena empresa em que trabalham apenas mulheres que obriga algumas delas a manterem com ele relações sexuais, sob a ameaça de, se não o fizerem, perderem o emprego; noutros casos é o chefe que está constantemente a chamar "incompetente", "preguiçoso" e "mau profissional" ao seu subordinado, ou subordinada, como forma de afirmar o seu poder, de o enfraquecer moralmente e de lhe mostrar que ele não tem instância de recurso no caso de querer protestar. Claro que não podemos dividir o mundo do trabalho só em bons e em maus, considerando que os patrões e os chefes são maus e os trabalhadores invariavelmente bons. Há muitos trabalhadores que não têm qualidade e muitos patrões e chefes que a têm. O que acontece é que o processo de avaliação nas relações de trabalho não pode nem deve assentar nos mecanismos do terror e da violência moral e sim na apreciação regular daquilo que as pessoas são e do que valem.

 

Se estas formas de violência têm vindo a agravar-se nos últimos anos é porque na sociedade contemporânea as relações humanas têm sofrido uma perigosa degradação. E é grave que assim seja, porque este tipo de situações contraria aquilo que os grandes especialistas em gestão de recursos humanos defendem actualmente. E o que eles defendem é bem claro. Por exemplo, Peter Drucker, um famoso teórico da gestão dos recursos humanos, considera que a relação de trabalho na empresa será tanto mais produtiva quanto mais assentar no afecto, na persuasão, no diálogo, na partilha de objectivos e de resultados alcançados. Os maiores especialistas japoneses nesta matéria são também da mesma opinião. Onde há afectividade e sentido humano, há mais produtividade e muito melhor ambiente. É, pois, estranho e condenável que, apesar destas ideias serem hoje bem claras, exista uma tendência cada vez mais nítida para o uso da violência no trabalho como forma de compartimentar os poderes e de humilhar e agredir os subordinados em nome de uma lógica que não gera riqueza nem dignifica o ser humano.

 

                     SERÁ POSSÍVEL A NÃO-VIOLÊNCIA?

 

"Em situação de violência, esquecemo-nos de quem somos".

                       MARY McCARTHY

 

Apesar de vivermos numa sociedade violenta, onde a criminalidade, sobretudo a ligada à droga, não pára de aumentar, é possível e desejável que tentemos viver de forma não violenta, combatendo o stress, procurando sempre a via do diálogo, defendendo os princípios e os valores, acreditando na harmonia e trabalhando pela paz.

 

Jesus e Buda, na Antiguidade, Mahatma Gandhi ou Martin Luther King, no século xx, marcaram a história da humanidade por terem defendido a não-violência como forma de impor o respeito dos direitos dos oprimidos e de os levar ao reconhecimento pleno do seu lugar na sociedade.

 

Jesus Cristo defendia que, quando nos batem numa face, devemos oferecer a outra. Não é uma ideia fácil de aceitar e muito menos de pôr em prática. Para o ser humano comum é muito mais lógico e natural a regra do "olho por olho, dente por dente", ou seja, o da resposta á medida da agressão, a da retaliação e da vingança.

 

Só uma invulgar grandeza moral aliada a uma enorme convicção e à força de um grande ideal porde levar um homem ou uma mulher a conduzir multidões em nome da não-violência, quando a tendência natural é responder à violência coma violência.

 

A violência é uma espiral interminável. Insulto puxa insulto, tiro pede tiro, ataque sugere ataque. Cansadas das várias formas de violência, da que anda nas ruas e nos órgãos de comunicação social, muitas pessoas procuram na religião o caminho da paz, da não-violência, da harmonia e da serenidade interior.

 

Como diz Jacques Sémelin, num livro em que explica o conceito da não-violência às suas filhas, "a não-violência não é passividade: é uma maneira de ser e uma maneira de agir que visa regular conflitos, lutar contra a injustiça, construir uma paz duradoura". E diz mais:

 

"Cremos que o não-violento é o que recusa sempre a guerra, que é o pacifista. Pensamos que ele não tem coragem, que é um cobarde que teme o confronto. Como a violência está em toda a parte, imaginamos que ser não-violento é ter a cabeça nas nuvens e aceitar que passemos por cima dela. Eu sou não-violento: podem fazer comigo o que quiserem! É preciso duvidar de que a não-violência seja isto".

 

Fica, pois, claro que o não-violento, porque se move com a força da razão que sabe ter, precisa de ter mais coragem do que aquele que é violento.

 

Cristo, Gandhi ou Luther King, que pagaram com a vida a força e a razão da sua não-violência, influenciaram muito mais pessoas do que se tivessem apelado à violência daqueles que os seguiam. E podiam tê-lo feito. Mas não teriam vencido. A coragem da não violência é uma profunda coragem moral. É a coragem de usar uma ideia contra uma espada ou uma bala, mesmo quando se sabe que a bala ou a espada nos tiram a vida. A humanidade gosta de respeitar as vítimas e, quando os seus ideais são grandes e duradouros, de as transformar em heróis.

 

Peço àqueles que lerem este livro que experimentem, em vez de cerrar os punhos e de ir para a luta, usar argumentos fortes com serenidade e convicção. Os grandes mestres das artes marciais são serenos e pacíficos e usam o que aprenderam muito mais como uma forma de alcançar a paz do que vencer a guerra, seja ela qual for, tenha ela a dimensão que tiver.

 

Como escreve a Prof.a Elena Ochoa, de Espanha, "desde que o ser humano tem consciência de si, que faz uso da violência. Violenta e é violentado. Sempre exerceu o poder, o controlo do outro através da força física, económica e técnica. Também usou a persuasão, o controle psicológico para manipular, segundo as suas conveniências, os seus iguais. A violência esteve presente desde sempre na história da humanidade, esteve e continuará a estar. Mas isso não significa que seja conatural ao homem, à mulher e à criança.

 

A violência não é um instinto, não é um reflexo, nem tão pouco uma conduta necessária para a sobrevivência. (...) A violência aprende-se. Aprende-se observando a forma como os pais, os irmãos mais velhos e os vizinhos se relacionam. Aprende-se vendo televisão e lendo determinadas bandas desenhadas ou romances (...) Esta aprendizagem não é um fenómeno das últimas décadas. Aconteceu sempre, embora com uma virulência menor que aquela a que temos assistido nos últimos anos".

 

A violência cerca-nos e ameaça-nos, mas não é preciso rendermo-nos a ela para nos sentirmos mais fortes. A paz deu sempre mais frutos que a guerra. E se o Homem não aprender de vez esta lição, a humanidade pode vir a ter uma vida mais breve do que aquela com que sonhou.

 

Este livrinho não tem a intenção de dizer tudo sobre a violência no mundo. Quis apenas apresentar alguns aspectos mais dramáticos e mais visíveis dela. Não é um livro de um especialista. É o livro de um escritor que também é jornalista e cidadão e que quer dar o seu contributo para que os mais novos não façam dos comportamentos violentos a sua arma e a forma de imporem o que julgam ser a sua razão.

 

Há hoje nos corredores da morte das prisões norte-americanas muitos jovens que já se arrependeram de um dia terem sido violentos.

 

Nem tudo o que faz parte da história e da tradição está certo e é legítimo. O ser humano, porque é inteligente e sensível, deve saber que a violência começa por destruí-lo a ele interiormente antes de destruir os outros.

 

Ainda estamos a tempo de transformar esta conclusão numa regra de vida. Porque a vida é para se viver em paz e não em guerra.

 

                                                                                José Jorge Leiria  

 

 

                      

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