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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TERRAS DO DEMO / Aquilino Ribeiro
TERRAS DO DEMO / Aquilino Ribeiro

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

                                        A VELHA E O LOBO

 

   - Arre-diabo, Rosa, arre-diabo! - dizia o Brás. Saiu-te cara a passagem do homem…!

   - Cara!? Só falta tirarem-me as meninas dos olhos, - carpia ela. - Foi um doido, Deus o tenha à sua mão direita… Já lá vai a lameira, ainda me é preciso vender…

   E vendia o cerrado, onde, ao abrigo do vento galego, papa-feijões, nunca perigaram os agros, e uma nogueirinha temporã dava gradas e reboludas nozes, muito apetecidas das moças que à sua porta vinham cantar as janeiras na alva do ano novo.

 

 

 

 

   Quem a vira solteira, benzia-se. Na terra não nascera outra mais amiga de luxar e bater a tamanquinha em bailes e romarias. Pudera, a casa do pai, José Francisco Gaudêncio, era das mais valentes por aquela corda de povos. Salgava quatro a cinco leitões de ceva, trazia três juntas ao jugo, e o seu rebanho, com cortinha própria no meio da serra, zagais de trabuco e rafeiros de rijas puas no pescoço, aventurando-se aos longes pastos, era o mais medrado e lanzudo. Linhares e chãos não tinham conta, e a lenha das tapadas acamava de velha, nas abas do povo algumas e todas à mão de encarrar, tão grandes que não amanhecia domingo ou dia de guarda que os caçadores por lá não bombeassem, com balsas escusas para o coelho e a galinhola e até madrigueiras de raposo e de texugo. De lá partiam, nas noites velhas de Inverno, os assaltos às capoeiras, a pontos que em casa do Senhor Padre António - já lá está - uma vez que se esqueceram de cispar o buraco, não houve bico que escapasse ao dente mofino.

   Boas matas, rica folha, não contente do que possuía no termo, o Gaudêncio atrevera-se a ir lavrar vinho para o Távora em terra que mandou abacelar. Era usança entre os serranos de posses, mas baldada pena, que a filoxera  chupou-lhe, a pouco tempo do plantio, as cepas todas.

   Ordenou um filho, e as casas, que ergueu, eram uns conventos; todas de sobrado e boa cantaria, tirante a de Rosa, em tosca pedra de arranco, com o patim a pique que parecia trepar para o céu. Nelas morava a descendência directa, a Rosa já nomeada, Manuel Cardiga, viúvo de Luísa, a Clarinha, que casara com um neto bastardo e a quem à sua morte o Gaudêncio legara o terço, mal instruído que a lei deixava margem a diferente doação. E, com vidraças para a rua, havia ainda a residência que entrou no património do Padre Francisco, caiada, com faixa azul a toda a sombra do beiral, e pombinhas de argamassa, rechonchudas, nos pontos de quebra do guieiro. A modos dum casal de velhos fidalgos, com quintã ao meio de serventia a todos os patins, resguardada por muro de cerca quando não era parede de habitação, e duas porteiras a cada ponta, por onde entravam de rópia as mais soberbas carradas. Ao abrigo da devassa em vida do Gaudêncio velho - ainda se viam chumbados nas ombreiras os gonzos das dobradiças - faziam dela, ao tempo, corte de recos e de bezerros à volta do mercado, mormente depois que a Clarinha, acolhendo na loja todo o viageiro, fosse ele Lázaro dos caminhos, almocreve ou ladrão, ali deixava feirar os tendeiros volantes.

   Era boa criatura, mas pascácia e pernóstica a mais não poder, esta Clarinha. Por suas benfeitorias sem olhar a que rês, mais de um abusou dela: o Fradão da vila, mulo do inferno, que foi à fina força meter-se com ela na cama, e os ciganos que em hora de muito taró acenderam o lume na loja e iam queimando a casa toda. Valeu-lhe acudir Seitosa em peso, ao toque dos sinos, que os tratantes pegaram de pôr a salvo jericos e atafaias e despediram deixando, por susto ou maldade, o incêndio a lavrar. Ficou-lhe para emenda, que mais ciganos não aboletou, sob pena de impedernir o coração devocioneiro à sua grande lamúria:

   - Somos do Egipto, patroinha, terra do menino Jesus!

   - Do Egipto ou da Falperra, tanto monta. Está a loja tomada com lenhas.

   - Trazemos uns niños doentinhos... Tenha caridade.

   - Não se ralem… Inda há ar de dia, vão bater a outra porta.

   Eles, então, erguiam a voz a amaldiçoar:

   - Deus permita que hoje mesmo se te veja a casa esborralhada! Deus permita, e que fiques por baixo como uma sapa para saberes o que é andar pelo mundo!

   E, assim tenazada, mais de uma vez teve de gritar

à-d’el-rei contra tais negros. Mas a caminhante enfadado, gente das tendas, pobres de Cristo, não vedava ela a quentura do palheiro. Só lhes dizia ao entrar: "Pelas alminhas do Purgatório, não acendam paulitos na loja." E acolhia-se ao janelo, a espiar-lhes os manejos e a estudar o cariz da Serra da Estrela, que, lá em face, vestida de mantel branco, lilás como a túnica do Senhor dos Passos, triste do tom das cinzas, alegre a parecer uma tribuna de igreja em dia de festa, consoante, dava mais certo o tempo que o Borda-d’Água. Seus olhos liam melhor na cordilheira longínqua a chuva e a neve do que um padre a palavra de Deus nos latins do missal.

E ao conceber-se jornada, corte de madeiras, semeadura ou tira das batatas, Clarinha era o astróligo em que todos punham fé.

   Podia ser santanária, mandar dizer missas e mascar padre--nossos, que as pragas dos Gaudêncios, esbulhados do terço, choveram sobre ela como granizo. Não fora culpa sua, é certo, que a filha de Gaudêncio, a Rosalina, se deixasse engodar de um faiante e concebesse o menino que os altos juízos de Deus lhe destinaram para esposo, e a lei, mal pulsada, parecesse não estipular outra sorte de providência. Há que tempos isso fora, já tinham aberto a campa do seu homem para dar sepultura a um morto, ainda lhe refertavam a sorte de cão.

Tentaram ainda os herdeiros anular o testamento, mas o Padre Francisco, que tanta dinheirama consumiu a ordenar-se, porque fora um estoira-vergas, perdido do jogo e do mulherio, e andou com a arte debaixo do braço por França e Aragança, Lamego, Pinhel, Guarda, até abrir coroa, em alto e bom som fez respeitar a vontade do defunto pai. A este, que deixara fama de santo homem, não abocanhavam os filhos por vergonha; a melgueira ao neto abonava mesmo a escrupulidão cautelosa de seu proceder. A terra lhe seja leve, o machucho quedou a rir, a família a chorar, sem grandes razões, que a legítima não era peca. De mais - alegava o padre - a fortuna granjeara-a com o rico suor do seu rosto, podia pôr e dispor como melhor apetecesse.

   Ali, na bruta serra, sem andar de taleiga às costas Brasil vai, Brasil vem, se fez ricaço. Começou por pouco, em moço a guardar porcos ao fintão na aldeia farta de S. Martinho, só no tarde se lançando ao negócio, taverna e estalagem para almocreves que infestavam os caminhos, então que o demónio dos engenheiros não tinham ainda gizado as estradas reais para vau de carros e carris. Era o bom tempo, o tempo das libras e das peças, que chocalhavam na bolsa de qualquer bigorrilha como ao presente os vinténs e nicos na algibeira dos lordas. Também os almocreves não eram destes arrebentados, entregues ao jogo de naveta de terra para terra, com dois odres de azeite ou cântaro de aguardente, que mal ganham para os atafais; mas daqueles que botavam de Torre de Dona Chama até Vale do Mondego com cargas de grande valia, e traziam pistolas nos coldres por mor dos quadrilheiros. Em récuas, para mais segurança, o seu passo, em fieira, enegrecia o caminho que se vê correr branco e sem fim para a Senhora da Lapa. Chó macho! Toma ali, Rabudo! Filho de sete curtas! - gritos e pragas ferviam no ar. Um deles, mais alvarinho, jaqueta de alamares, colete de pele de raposa com a corrente de dois fios e o pinto à dependura, os dois braços suspensos em arco do azorrague traçado de ombro para ombro, desfraldava uma xácara sanguinosa. E era como um guião vermelho a esvoaçar por cima do chape-chape da marcha:

 

                 Anda cá, ó soldadinho,

                 Vens em bô ocasião,

                 Meu marido não 'stá cá

                 Foi para Monte Marão.

 

                 Oxalá que cá não torne,

                 Botesmo-lhe a maldição:

                 - Ó corvos picai-lhe os olhos

                 E arrincai-lhe o coração!

 

                 Palavras não eram ditas,

                 Homem à porta a bater.

                 - Tu que tens, ó Felomena,

                 Que estás tu a empalecer?!

 

   Ao som dos aljorces, taludos como os das vacas sábias, machos todos lirós com suas cornachas de cores, corria a gente aos terrados. Lá vinham eles, faixa à cinta onde guardavam faca e bolsa, chapeirão braguês para a nuca, calça à boca de sino sobre sapato de tromba erguida. Alguns usavam suíças, assim de chapa como o musgo preto nos penhascos, mas os mais traziam os queixos todos rapados, ao estilo de mecânicos.

   - Tio Gaudêncio, viva! Deite vinho! Acomode essas bestas! - e rompia ali uma inferneira, vozes acá, rinchos além, trabucada de tamancos sobe, desce e gira.

   Custódia Gaudência punha a forjicar um pedaçorro de marrã, se havia defunto no chambaril. De contrário, imolava um reixedo e toca para a caçoila com bom azeite do Tedo, cebola, batata turca, grossa como cabeças de doutores. Ao cheiro dos petiscos acudiam os afilhados para a varredura dos créscimos, não faltavam os gulosos e os necessitados, esses às novenas, e, rilha que rilha, era como nos dias fartos de segada.

   Às vezes vinha um nevão e ali quedavam os almocreves, bem agasalhados, comendo e bebendo à tripa-forra, com torgo rijo na lareira e moças que era um regalo de ver e palpar. Os mais sisudos sacavam do baralho e turravam à bisca o serão inteiro; os chibantes armavam-se das castanholas e da pandereta e batiam um fandango que até do mais fundinho do povo as raparigas vinham ver. Um arraiano - sucedia muitas vezes - puxava duma dança e cantiga à moda de Castela, e eram saracotes que nem cachorro a sacudir-se de um banho na ribeira. As moças mais correntonas fraguavam com eles, e o entremez via apontar as Três Marias no céu.

   Deste modo corria o oiro para as gavetas do Gaudêncio; e, porque era amigo de bem servir e nada onzeneiro nas contas, quem caísse uma vez na sua estalagem não demandava outra. Desta sorte enriqueceu, e não como se reza de hospedeiros

que vão cravar de noite o coração do marchante enliçado no sono e, tão bem lhe fazem desaparecer o cadáver debaixo da terra muda que só tarde quando a locanda varia de dono, ao cavarem por acaso no quintal, se descobre o homicídio. José Gaudêncio era a honra em pessoa. Desfeitas nunca as fez e só as recebeu da filha, a Rosalina, se deixar lograr pelas sete falinhas doces dum recoveiro, cantarino e pé leve, que devia na pousada de comes e bebes ao redor de cinco libras. Assim lhe pagou o maninelo, cobrindo-lhe a moça, por amor de quem arrifavam na Serra os morgados de mais teres. Muita gente se benzeu, rapariga tão mimosa e desenxovalhada, de boa família, escorregar com um frangalhoteiro das dúzias. Berimbau, isto de fêmeas, na maré do carvoeiro, nem fechadas numa torre estão seguras. E mais a Rosalina, de olhos pestanudos e tão mexidos, que a cada mirada, pareciam negacear a castidade de um santo!

   Foi uma vergonhaça naquela casa; o Gaudêncio perdoou, mas, passante de ano, não lhe conheceu o corpo camisa lavada para festa ou romaria. Todo esmado, caído das cadeiras e dando a salvação de olhos baixos, nem que andasse à busca dos côvados de terra que o haviam de tragar. Tudo tem fim um dia, e tal aprouve à maluqueira da sua desonra. Daquela sorte passassem os trabalhos de Rosalina que, já de menino aos peitos quando o pai andava em inculcas para caçar o mequetrefe e induzi-lo a recebê-la, morria com um febrão que não houve barbeiro nem benta que atalhar-lhe soubessem. Foi este um passo que deu grande brado por aquela área de terras.

   Pessoa de bons negócios e melhores contas, ali não havia que deitar fora. Em abono contavam os velhos que houvera uma manhã grande peguilho na venda do Gaudêncio por via duns dinheiros que certo almocreve achou a menos à hora de largar.

Estava-se, por modos, em tempo de carnaval, e haviam pernoitado na estalagem três almocreves com seus machos. Na véspera, as raparigas tinham-se vestido de madamas com as melhores saias de folhos, brunidas ao ferro, os seus lenços de lã rala ou de seda pelos olhos para não se darem a conhecer, e, a meio dos chichisbéus enfarruscados nos paranhos do forno ou com caraças de sola ou de tábua, tão disformes que até os meninos rinchavam de medo, foram dar volta aos serões. Na cola seguia o descante, que isto de sarambeque sem zanguizarra é como casamento sem bebedeira. Pândega, mais pândega, deitaram até à taverna do Gaudêncio, onde os almocreves, para matar o tempo, jogavam o chincalhão. Em alabança deles, o Faria coiteiro tangeu-lhes na viola o vira minhoto, um cantador jogou-lhes uma saúde e aí se mete na rusga o Zé da Birra, assim se chamava o almocreve, nanja que o merecesse, pois era homem para não perder de todo as estribeiras, mas porque herdara a alcunha de geração. Pois aí se mete o Zé da Birra na borga, deitando cantigas, sapateando o saricoté melhor que o Mafarrico. E venha vinho, vá de trigo e palaio, saíram dali todos, já a noite tinha dobrado, manatas, madamas e almocreves, a espinotear a ribaldeira num pé só.

   Manhã cedo, estava o vendeiro na quintã a apertar os arcos duma pipa para mandar ao vinho, rompeu de dentro o Zé da Birra, com o colete na mão, cara de quem perdera a sua sina:

   - Tio Gaudêncio, estou roubado!

   - Hem?

   - Está mouco?!... Roubaram-me a bolsa com trinta peças! - e, alteando a voz, ali fez alardo da ladroíce.

   Eram trinta peças, oiro de lei, que lhe tinham furtado com a bolsa durante a noite. Antes de se deitar, ocorrera-lhe verificar se não teria dado alguma, na dança, por doze

vinténs em prata. A conta estava ao justo… trinta peças, trinta dobras, amarelinhas como o Sol. Mas estava-se ninando, fora na estalagem do tio Gaudêncio, ele é que tinha de as prantar para ali com língua de palmo.

   O Gaudêncio ficou diante do almocreve, branco como a neve, muito direito, que era homem bem parecido, sobelo alto.

   - Entre vossemecê aqui para a venda - disse-lhe ele e não grite. Quem passar não julgue que fui eu que o roubei.

   - Não sei quem foi… quero para aqui o meu dinheiro!

   Os outros almocreves, entrementes, tinham saltado das tarimbas e acudido à berrata. O Sol ainda não era nado. Ouvia-se para o fundo do povo o chiadoiro alanceado dum bácoro na matança. As vacas, jungidas para a jornada, retraçavam a erva solta no chão, alagando a manhã com o tinir das campainhas. Acabara de tanger o sino do orago e dava gana de ir à santa missa, com o ar lá dentro morno do bafejo de meio povo, os santos, as velas e o latim incompreensível a falarem do Deus que não tem princípio nem termo, reparte a vida e morte, nanja de pegar logo de madrugada em despiques e consumições.

   - Quero para aqui o meu rico dinheiro! - clamava o Birra, cuidando com o assanho pôr os companheiros à sua banda. - Isto quanto mais santanários, mais ladros.

   - Está certo que se deitou com a bolsa? - perguntou-lhe o Gaudêncio, que era homem de palavras poucas, mas acertadas.

   - Ora! como do Sol que nos alumia.

   - Não a terá perdido, ou não lha terão pilhado ontem no adjunto?...

   - E ele a dar-lhe! - redarguiu o Birra, largando um estalo com a língua. - Se lhe estou a dizer que contei as

minhas trinta peças ao deitar. Ou julga você que é fábula? Ó Ramalho, dize lá, tinha ou não tinha ontem trinta peças comigo? Não mas viste contar pelo caminho? Fala a verdade...

   - Vi; tinhas na bolsa trinta peças, conta redonda.

   - Que digo eu, tio Gaudêncio?

   - De modo que fui eu ou gente de minha casa quem lhas roubou?

   - Se não foi gente da sua casa, foi um zango, foi o Vargas, foi o Diabo, quero lá saber! Deito-me na cama que você me aluga, comigo não fica ninguém, acordo roubado, quem há-de ustir? - e o Birra, forte de suas razões, passeava em volta um olhar de embófia.

   - Ouça vossemecê - proferiu José Gaudêncio há trinta anos ponho ramo, há vinte e tantos abri estalagem, é a primeira que tal me sucede. Credo! Eu e a patroa fomo-nos deitar ao direitinho, depois de trancar as portas da loja. Está aí o Senhor Engrácio, que foi connosco e dormiu na casa de cima mesmo à boqueira do nosso quarto, não me deixa mentir. O Senhor. Ramalho, também não estava longe, pode dizer se nos sentiu...

   O Engrácio, testemunhado, certificou que nem o tio Gaudêncio nem a tia Custódia haviam arredado pé do quarto, toda aquela noite. Podia jurá-lo pela luz de seus olhos, que tinha o sono leve!

   - O rapaz - tornou Gaudêncio - esse é arraçado, mas está para o moinho, desde ontem ao pôr-do-sol, a moer uma fanega. Nem ele sabe que vossemecês cá estão. Seriam as raparigas? Ver vamos. Muito cabras seriam elas para, dormindo nas traseiras do palhal, andarem de noite de alevante, sem dar senha na casa. Nos moços não se fala, moram fora de muros. Se cá estivesse o meu Chico, o meu estudante, não punha as mãos por ele, porque, além de gastador e estroina, é criança. Está longe. Não sei… Custa-me a crer que alguma das raparigas

saísse ratoneira… Averigua-se. Tem vinte e três anos a do primeiro ventre, dezassete a cadeta, ainda lhes não descobri tal balda. Mas, enfim, em pouco mato se esconde um lobo... ou como diz o outro: à conta de ciganos, todos nós furtamos.

   As falas cordatas de Gaudêncio tinham chamado o Birra à razão. Por trás dele, encolhendo os ombros, com viso de incrédulos, os dois almocreves cochichavam.

   - Custódia - gritou ele para a mulher -, diz às raparigas que venham cá. O Navainho também.

   O Navainho era o neto, que herdara, como intruso na família, o título de berra do pai recoveiro. Muito espigado para os nove anos, dormia com Rosa, a meã das três filhas, e andava nos mandaletes da casa a toque de caixa.

   Apresentaram-se as moças mai-lo galeguito: Luísa, a morgada, vassoiruda, de largos encontros e corada como camoesa; Rosa, faceira e morena; Rita, pequenina e muito composta de sua pessoa. Tiravam-se à casta, olhando bem para a pinta do rosto, que em estatura não pareciam irmãs.

   - Raparigas - disse o pai, de olhos a fuzilar queixa-se o tio José Birra que lhe furtaram trinta peças. Ficou sozinho na casa nova, as portas da quintã estavam trancadas, o Augusto foi moer o pão, uma de vós foi. Prantai para aí o dinheiro ou vou buscar uma soga e ponho-vos as costas a escorrer sangue.

   Em alta grita protestaram as três que o dinheiro servisse de lume a quem o tinha, e sequinhas como as argalhas do monte fossem as mãos do gatuno. O pai, não se fiando em juras, sujeitou-as ali a perguntas que nem um doutor de leis. Ainda que não soubesse cortar letra redonda e assinasse de cruz, era homem de muito entendimento e não dava o braço a torcer ao primeiro sarrafaçal. Seitosa tinha nele o seu juiz para coimas, desmandos de boca, e dúvidas de marcação nas leiras.

Era um dos quarenta maiores da comarca.

   Luísa respondeu de olhar firme, sem titubear; o tom de sua voz, entre brando e severo, de ré que nem tenta aplacar pela suavidade nem impor-se pelo protesto, convenceu a todos. E, negando sacudidamente, não soltou outro remoque que "deixassem-na ir cuidar da vianda dos recos que grunhiam desatinados".

   Já Rosa se exaltou com a aleivosia, deitando palpites sobre o roubo e chorando como uma madalena. O pai tenazava sempre, e foi preciso que o Engrácio erguesse a voz, escandalizado:

   - Homem, deixe lá a moça! Até me dá febre ver atormentar uma inocente!

   Muito cordata, Rita disse que a olhassem dos pés à cabeça se não criam nas suas juras; nunca roubara nada a ninguém, não tinha nem esperava vir a ter manhas tão ruins. O pai conhecia-lhe o ânimo timorato e bondoso, e certo estava de que não era ela que daria um passo de noite, sozinha. Largou-a. E, pela mansidão, pela ira, e pelo falar despachado, se saíram as três escusadas no roubo.

   O Engrácio dava trombadas com a cabeça, acusando o Birra de pouco tino, pois só um desleixadão daqueles se metia a bater o samba, a mata-cavalo, com uma quantia daquelas na faixa. Nada mais fácil a bolsa pular e cair nos mandamentos dum gerifalte que se calou bem calado. O matuto que foi não perdera a noitada.

   Choroso, vencido por aqueles murmúrios, o Birra jurava e trejurava que tinha contado as peças ao deitar.

   - Contaste mas foi os andanhos da casa com a cabeça! – chasqueou o parceiro. - Estavas com uma cardina que nem te lambias.

   As mulheres tinham partido à lide, ficara só o Navainho muito admirado, no meio da venda, ao ver um homem chorar.

   Menino - perguntou o avô -, tu viste a bolsa deste tio? Dize lá… Se falares a verdade toda, hei-de comprar-te uma carapuça nova de Alvite.

   - Eu não vi, não senhor.

   - Viste, viste! Tens medo que tuas tias te vão ao pêlo?! Dize o que sabes, que ninguém te toca com um dedo molhado.

   - Soubesse eu…

   - Não notaste a modos dum pé de peúga de riscas ao travesso, nas mãos da tia Rosa?

   - Não, senhor.

   - E nas da tia Luísa?

   - Também não, senhor.

   - E não deste fé de nenhuma se alevantar?

   - Lá isso, a modos que a tia Rosa se alevantou. Mas não sei bem... estava com muito sono.

   Depois de muito malhar com perguntas sobre perguntas, o Gaudêncio chamou outra vez Rosa.

   - Rosa - disse-lhe ele, ao entrar da soleira  levantaste-te esta noite?

   A rapariga deitou um olhar ao aparato todo e respondeu:

   - Levantei, senhor pai.

   - A quê?

   - A verter águas.

   O pai cresceu para ela:

   - Ah coira, és tu que tens o dinheiro!

   - Eu? eu? Podem-me revistar.

   O pai apalpou-a toda, viraram-lhe depois a cama e os

trastes com o debaixo para riba, perscrutaram os buracos. Nada se descobriu. De joelhos contra o poial da janela, a soluçar, Rosa votava a todas as pragas deste mundo e do outro a alma excomungada que bifara as peças, conjurando o Padre Santo António - que tinha livrado o pai da forca - a que ali lhe pusesse a careca à mostra para sossego da sua inocência.

   Desandaram todos dali, e o José Gaudêncio disse para o almocreve:

   - Minhas filhas, senhor Birra, não o roubaram; juro-lho pela salvação da minha alma. Quem poderia ser? Seus companheiros não, que são pessoas de chaço e dormiram debaixo do mesmo tecto que nós... Pastores e moços de vacas ficam no cabanal, para lá do caminho. Não sei…

   A uma voz, os dois almocreves afiançavam que a bolsa lhe fora roubada no baile e que, ao deitar, borracho tombado, não tivera tremenhos para verificar o que trazia. Não fosse mamposteiro... que montava...

   - Tudo se há-de remediar - disse-lhe o Gaudêncio. - Mas seja franco por uma vez. Quando se deitou fez reparo na bolsa? Ora seja franco…

   Espicaçado dum lado e do outro, depois de negas e

protestos, o Birra acabou por confessar ser aquele ponto invenção sua, na ideia de que melhor se descobriria o ratoneiro. Mas ao tanger das ave-marias, ainda a tivera na mão.

   - Tirou-me você, seu Birra, um grande peso de cima do peito - exclamou o Gaudêncio, soprando com desafogo. - Trabalhava-me ainda cá no juízo essa das suas peças contadas ao deitar da cama. As raparigas não lhe cobiçaram o haver, não... Levaram-lho ontem na patuscada. Oh! de consumição sirva a quem lho tem, que vossemecê ganhou-o com o suor honrado do seu rosto. Mas não se aflija... eu abono-lhe o dinheiro que for mister.

   E, vá de oferecimentos, vá de bem-hajas, mandou o Gaudêncio buscar dez libras pela patroa, que era de quanto o Birra precisava para aguentar o negócio. Ela, de seu natural avessa ao génio prestadio do homem, rompeu em ralhos e destemperos - raios lhe partissem o juízo, era um mãos-rotas e havia de derreter a casinha, pobre dela sempre uma surrona, embrulhada em serguilha e tomentos para o poupar, tristes dos filhos que teriam de pegar num bordão e ir pelas portas. E ferroada daqui, mais ferroada dalém, o Gaudêncio arrancou de uma tigela e mandou-lha à tola. Não a acertou, mas serviu-lhe de escarmento, pois rodou sem mais remoque para breve volver com as dez libras, que uma a uma, de semblante nojoso mas submisso, foi batendo na pedra, em fé de que não atraiçoavam dono.

   - Aí tem, seu Birra - disse-lhe o estalajadeiro vossemecê é homem honrado e conhecido velho. Quando se desforrar do prejuízo, mas tornará. Agora, se a sorte lhe for contrária, reze-me por alma quando eu morrer. Não se há-de dizer que, aboletado em minha casa, um homem ficou na penúria. Cá fico de olho sobre as suas trinta peças, que uma hora, por  malas-artes, se não dê a matar o gatuno. Mas quem lha pregou, tem astúcia. Que a maldição do Senhor acompanhe esse oiro até se desfazer em cinzas!

   E beberam à sossega em homens de bem, reconciliados.

   O Birra meteu-Se a contrabandista e, recuperando breve o perdido, pagou ao seu benfeitor. As peças roubadas calaram-se bem caladas. No povo ninguém ergueu telhado ou adquiriu leira; moça alguma estreou cordão que surpresa fosse. Nem por indícios ou pensamento se ouviram tilintar as malditas. E lá levaram para a terra da verdade a José Francisco Gaudêncio, seguro de que o oiro negregado não queimaria as mãos de gente sua.

   Com os casamentos na terra e fora da terra, partilhas, vendas e trocas, a grande casa que deixou fundiu-se, a pontos de não se fazer uma ideia do vulto que punha. O Augusto

casara em Segões, lugar chegante a Seitosa, e Luísa  recebeu-se, ainda esse ano, com lavrador muito adrega, e a poder de labuta começou a governar boa casa. Rosinha, andava o Chico Brás, cavalaria em Viseu, a namorar a cadeta, deitou os pregões com o Libânio, ao tornar este de Manaus depois de sete anos de roça, boa pedra na gravata, boa cadeia de oiro com um borrego de grilhão, e punhos postiços que ao fazer um cumprimento se escapuliam do paletó, os excomungados.

   O Libânio era o zangarelho dum homem no dobrar dos trinta, rosto marcado das febres, o arcaboiço rendido para dentro à força de ceifar capim. Trouxera um papagaio má língua e, nas tardes calmosas, vinha, meio doutor, ao cavaco para debaixo da latada do Senhor Padre Francisco. Puxando cigarro após cigarro, sentado na borda do tanque à fresquinha, tratava a ama do padre por Don’Ana, o que lhe valeu o tríplice conceito de cidadão bem educado, homem do mundo, e cavalheiro às direitas.

   Foi Don’Ana que lhe aplanou o caminho para o matrimónio, empurrando a Rosa, doida varrida por franças.

   - Casa com o brasileiro. Este ao menos é pessoa de peso, sabe onde tem a cabeça, cantés meliantes e amor louco, eu por ti, e tu por outro…

   - Dizem que o Libânio vem héctico…

   - Àgora; aquilo é dos ares das outras bandas, que são bravos, e pintam o rosto como lagarto. É o que te digo: sãos como os nossos, não há por esses mundos de Cristo.

   O senhor padre não abria os beiços, tão ausente da família como se ela não existisse ou morasse no cabo do mundo. Debalde Rosa esperava um sinal. Já o não dera a Luísa, como alheio se mostrou quando o descante do Chico Brás vinha para a quintã dos Gaudêncios endoidar-lhe a irmã mais nova com chulas e desgarradas. O seu fito era ter muitos gerais

e sermões a escarduçar, e lebres a romper-lhe pelas chãs a bom ponto de mira. Tinha já, para embelecos, um filho em casa que caminhava de burrinhas, e um outro a criar na ama de Vila-Cova-a-Coelheira. Dizia-se que não era boa fazenda e que fizera das suas na freguesia que paroquiara antes de colar-se naquela onde estava e lhe fora berço.

   Rosa, que devia andar pelos vinte e seis anos, estragara bons casamentos. Além de se não saber haver com o morgado de Forles, que passava por possuir uma rasa de libras, desdenhara do Narciso Espadagão, que lhe queria de morte. Pestinheira como poucas, não prometia domar à lide da lavoira o corpo afidalgado na taverna a medir quartilhos, e daí, em especial, vinha detrimento ao seu arrumo. E já o seu pé era menos alceiro para romarias e brequefestas e o seu amanho mais descuidado.

   - É tempo, casa-te.- dizia-lhe Ana, quando o Libânio a andava a cometer. - Estás a ficar pesada…

   Depois de muito cisma, de muitos conselhos e consultas, Rosa recebeu Libânio no dia mesmo de Nossa Senhora das Candeias, fazia quatro invernos estava o pai no celário. E grande cabeçada foi, pois a legítima do noivo não era de arregalar olho, os acréscimos vindos da roça chilros, sendo para mais um fumador danado que, para matar o vício, se lhe faltasse tabaco, até barbas de milho fumava, enroladas num migalho de jornal.

   Em poucos anos o casal estava carregado de filhos e

para mantê-los e manter-se tinham que fossar muito no

chão, que a mamadeira da venda acabara, ainda o corpo do Gaudêncio não estaria consumido pela terra. A viúva tentara ainda aguentar-se de loireiro à porta. Mas os tempos eram outros. Os almocreves tomavam já as estradas reais que o governo mandara abrir - diziam os mais antigos - por não ter onde enterrar o dinheiro. E tão bastos foram da gente de termo os calotes e dos filhos os palmanços que, ao cabo de ano, não havia na gaveta com que tirar a indústria. E aí se põe a viúva à gamela dos filhos, não parando em casa de nenhum, que noras e genros são sempre de má raça e o génio dela era, em boa verdade, quezilento e marralheiro. E o mesmo lhe assucedeu com o seu Francisco. Tanto a aguilhoaram os outros em como o cigano do padre queria ripar-lhes a herança, índuzindo-a a uma escritura de doação, que, dando os bens em partilha a troco dumas medidas de centeio e meia dúzia de rasas de batatas, meteu-se numa cardenha e aí terminou os dias mofina e abandonada.

   O Libânio, pegamaço como era, ia mesmo assim tenteando a casa, sem pedir a juros nem vender horta. Os rapazes, que eram três e faziam uma escaleira de ano para ano, amargavam já o comer e, graças à rapariguita que calhara muito girota, Florinda, a mãe podia ficar o dia todo ao tear, batendo as apeanhas. O primeiro nado, Jaime, aos treze anos, decruava a terra e esquentava o forno. O chegante a este, João, é que fora pouco mimoso da graça de Deus. Quando veio ao mundo, redondo como as panelas de Vale de Ladrões, vestido de velo de rato, benzeram-se. O crianço papeava como se estivesse a dar a alminha ao Criador. Chamaram à pressa a Zabana, benzedeira, para o baptizar.

   - Anjo bento! anjo bento! - exclamou ela. - Isto não é gente, é um olharapo.

   Despejaram-lhe uma malga de água no toutiço em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, a mãe encostou-o ao seio, e logo ele rompeu a mamar, às turras e mais sôfrego que um bezerro. Vingou. Mas desde pequeno que as bruxas se encanzinaram contra ele, passeando-o em bolandas por riba das arcas e do monte das batatas como a uma bola e chupando-o. Bem as esconjurava a pobrezinha; era fazer figas ao vento. Uma noite foi-se deitar com o menino nos braços, armada dos santos escapulários. Confiada no divino amparo, lançou um desafio às feiticeiras invisíveis:

   - Vinde, vinde cá, frangas do Tinhoso!

   Na manhã seguinte topou o seu anjinho no telhado - contava ela - a chuchar no cabo duma vassoira.

   Sem embargo de tombos e pirraças da bruxaria, o menino deitou avante. Cresceu. Ao tempo da muda era um mamarracho de venta espalmada e grande guedelha, que atraía o olhar às pessoas, quer quisessem quer não.

   Cabeça enorme e reboluda em que mal se via o nariz chato, olhos zarcos, a boca muito grande e sem lábios como sarja em bexiga, ventre de afogado, pernas de anainho, mãos mais compridas que as pernas, era o gato-sapato do lugar, que, pela ordem do esferoidal, lhe chamava o João Bispo. "João Bispo, diz a missa! João Bispo, olha uma boa fêmea para esfregares os untos!" as vaias choviam sobre ele, quando aos domingos saía a terreiro ou, de gorra com a rusga, arriscava pé na venda. Bem retrucava:

   - Vá chamar Bispo à raiz da curta que o pariu! - os desagravos de tal boca não faziam mossa e mais aguerrida se tornava a surriada.

   Também era um teigueiro, um papa-la-assorda, capaz de imolar uma panela de feijões de seis tigelas, se lha prantassem à frente.

   - Aquilo tem bicho ruim que coma por ele! - dizia a mãe.

   Os irmãos empurravam-no para fora das mantas mesmo que fizesse taró, e batiam nele como em cão malhadiço. Para pouco mais servia que tanger as badanas pelo monte e deitar a água às ervas de lima.

   O António era um caguinchas de magreira e, com um rosário de dentes de alho ao pescoço por ser atreito às bichas e serem de regra na família os maus olhados, carretava lenha para o lume e era um moleque dos primos, os filhos do padre, que com a direita lhe davam pão, com a esquerda pau.

   Não tinham fome os Libânios, mas não se conhecia dia santo em sua casa. O rol do Sarrico, em cigarros, sorvia-lhes as medidas de trigo e painço que malhavam cada ano e poderiam dispensar. Bem barafustava Rosa:

   - Homem, fuma de engorra!

   Ele passaria sem o caldo, sem a côdea, sem o vinho, mas sem o cigarro tó ruça. Tornava-se uma fera o grande molancão! Debalde se carpia a mulher que os filhos andavam descalços e rotos, tão emormados do frio que só tinham ranho. Era bradar num oiteiro! E se queria pagar nas tendas, safava o seu alqueire da arca, pela calada. Quem dera os tempos do pai Gaudêncio, com ricas saias de castorina, chanquinhas de Viseu, barba nédia de fartura e o cabelo sempre alisado! Quem dera!

   Um dia rompeu o primo Luís Alonso, do Brasil, fanfando de rico, e o Libânio, estimulado, falou de embarcar outra vez a cometer a sorte.

   - Um chilandrão com a canseira que tu tens ir ao Brasil!

- exclamou a mulher. - Que granjeaste em sete anos que por lá correste à sirga? Fome e doenças. Deixa o Brasil para os filhos, quando sejam capazes…

   - Ando farto de moirejar e as melhorias são poucas.

   - E eu, meu rico? Dá graças a Deus que não temos nada empenhado e, se devemos, é esses cigarros que o lume do Inferno consuma.

   Mas, quando Deus ou o Diabo quer e a cabeça não regula, pouco vale teimar. Tinha a ideia entranhada, de nada serviu a mulher pintar-lhe o espantalho da morte com a casinha esfrangalhada no inventário pelos cães da justiça, e os perdigotos dos filhos ao deus-dará.

   - Um homem é para o mundo! - alanzoava.

   E lá partiu. Abonou o António Rola a passagem e passaporte, vinte e quatro libras a dez por cento, sobre letra. Era a morte a chamá-lo. Mal pegou uns dias do gadanho na Sapucaia, ataram-lhe os pés. Os patrícios tiveram que se fintar para o enterrar em terra santa.

   Coitada de Rosa, nunca o falar dela fora mais certo! Oficial de diligências sobe e desce, louvados para aqui e para ali, mais juiz, mais papel, mais selos, foi-se a melhor fazenda da casa. Os patifes da justiça tinham fome, ferraram o dente envenenado.

   - São como os corvos, - choramingava ela -, vêm ao cheiro do cadáver!

   - Arre-diabo, Rosa, arre-diabo! - retrauteava o cunhado Brás. - A morte do homem arrasou-te!

   Chamada a contas, vendia a viúva o cerrado, mimosinho de tudo, em que pulava cebola cabonde, uma só, a estrugir o quarto dum carneiro, e a nogueirinha temporã dava nozes de cada apanha para derrear uma jerica.

   Já o António Rola, em vésperas de a letra vencer, lhe batera à porta:

   - Rosa - disse ele -, pagas ou protesto?

   - Pago, mas dê-me uma semana de espera. Por alma das suas obrigações, tio António.

   - Até domingo! É a lei…

   - Mas olhe, reforme-me a letra…

   - Não; quem queira dinheiro não falta. Assim o dê Deus.

   - Eu pago-lhe com’os mais.

   - A dez; ainda hoje me pediram uma boa maquia a doze. As vinte e quatro libras vão para lá.

   - Não sei como há-de ser do pé para a mão…

   - Não sabias que findava o prazo? Já te disse, eu fico-te com o cerrado da nogueira elha por elha; e não vais mal…

   - Não queira o sangue dos pobres, tio António. O linhar vale quarenta libras a olhos fechados, que o dizia meu defunto marido.

   - Pois vai vendê-lo... vai vendê-lo... Se te derem mais, melhor. Olha, ou pagas até segunda-feira de manhã ou protesto. Tem paciência, lá te arranja.

   E despediu o alma danada daquele onzeneiro, com um gabinardo de golas altas pelos ombros, de olhos sempre no chão a contar os cobres e a estudar o modo de passar o baraço, por esse mundo fora, a orfãozinhos e viúvas. Mil raios o partissem mais à cobiça que tinha ao seu rico linhar!

   Rosa tinha diante três dias e três noites e tanto malucou, tanto malucou, que nem apetite teve de se deitar. Na noite de sexta para sábado, o Jaime ouviu-a na cozinha falar alto e tilintar dinheiro, e, levantando-se da cama, foi ver. Mas as tábuas rangeram, e só viu a mãe com o avental arregaçado contra o peito, as mãos sobre ele em cruz, salamurda.

   - Vossemecê está a contar as libras! - disse o filho, com ar finório.

   Estou a contar as vergonhas que tenho a passar até arranjar o dinheiro.

   - Ouvi chocalhar…

   - Ouviste chocalhar as tenazes… que havia de ser?!

   O rapaz volveu à cama, teimando em supor que a mãe fora desenterrar dinheiro para remir a letra. Mas quê?! No dia seguinte, em sua presença, dava parte ao Sarrico que tinha o cerrado a vender, se não sabia de alguém capaz de lhe pegar pelo justo.

   - Os tempos vão ruins para compras – respondeu o taverneiro. - Depois que o fidalgo de Ceia vendeu o casal, fundiu-se toda a dinheirama do Rio. Mas passa-se palavra…

   - Pois é grande favor que me faz.

   À tardinha volveu ela com esculcas.

   - Não vejo quem se tente - disse ele. - Meu cunhado Afonso comprava-o, mas baratucho… vinte libras…

   - Até parece escárnio! Mais dá o Rola.

   - Pois entrega-lho. Há-de ser difícil topar quem cubra o lanço.

   - Nem que os bens todos me fossem à praça!

   - Lá sabes…

   À noite, já os gados tangiam nas lojas a sacudir o piolho, tirou-se de seu mole e meteu-se a Aris a tomar conselho com o Chico Brás e a irmã, que vendera a legítima a uma banda para comprar à outra.

   - Rosa - disse-lhe ele -, o linhar não vale vinte e cinco libras, vale quarenta sem regateio. Era dos melhores cibos da casa. Por esse preço não vendas, que nem Deus te perdoa… Bem sei, estás com o baraço ao pescoço. É o dianho… É o dianho… E, olha lá, porque não vais ter com o padre? … É irmão, não faz favor nenhum em te valer… E esse tem dinheiro, ganha-o a cantar. Cá por minha banda vou ver… Talvez ali o senhor Tobias nos possa arremediar… ou o Javardo. Antes de mais nada, vai ao padre.

   Assim fez ela.

   - O Rola ofereceu-te vinte e cinco libras? - disse ele. - Quer-te roubar. Mais custou o migalho a meu pai…

   - É um ricaço, sem alma, a quem Deus não há-de querer no Céu, nem o Diabo no Inferno! - exclamou, com voz trémula de dor, a senhora Ana, que viera ouvir.

   - Tivesse eu abonos - tornou o padre - e estavas servida. A freguesia não rende, os trabalhadores absorvem em salários, comes e bebes, o montante dos géneros. Má hora em que tentei nesta Igreja!

   E o padre Francisco pôs-se a passear pela sala, soprando grandes fumaças do cigarro.

   - Dinheiro de portas a dentro… nem papel, nem cobre! -apoiava a ama, numa mesura de muita lástima. - Até ainda se deve a sementeira ao lavrador.

   - E nem tenho a quem o pedir - tornou o padre. - Porque não vais ao João Catrino, que tem sempre quantia devoluta para mercas e trocas?

   Saiu dali, com o coração trespassado, a ter com o

Catrino, troquilha e cigano de feiras.

   - Minha amiga - declarou-lhe este -, as terras que possuo sobram já para o meu governo. Desse-me Deus filhos e teria a ambição de comprar; assim não… O tio Rola ofereceu-te vinte e cinco libras, pega-lhe na palavra, mulher! O dinheiro anda caro.

   Parecia que estavam apostados uns com os outros para esbulhá-lha do seu rico bocadinho.

   - Anda lá, filho - disse ela para o Jaime, que a acompanhara nas voltas. - Há mais ladrões nesta terra que pelas estradas.

   Cearam essa noite, muito tristes, caldo de berças com pão de rala. Os filhos foram à deita e ela quedou ao borralho, entanguida de frio, a fiar. O Inverno zurrava nos pinhais que parecia uma estropeada de mil demónios a caminho do Inferno. A sineta, com os sacolões do vento, toava dlam… dlam e mais dlam a um enterro que não tem fim. Sobre as telhas ia grande estreloiçada, chuva, vento, como se andassem por riba delas rebanhos de cabras, ou feiticeiras jogassem para lá com areias às mãos fartas, para tormentina das almas… Ia um Dezembro muito rijo e custava já a passar nas pontes.

   Sem poder pregar olho com o barulho do soão, novamente o rapaz ouviu a mãe falar em voz alta, contando uma, duas, três, até para riba de vinte. E sentiu tinir dinheiro.

   - Minha mãe anda a mangar com a tropa. Tem dinheiro aferrolhado e fala em vender os bens. Cem cães a mordam! - malucou ele.

   Domingo, ao depois de missa, que tinha ali capelania, binando por cento e vinte medidas de centeio, o Senhor Padre Francisco, chegou-se ela muito ronceira para a venda, onde os homens entravam à formiga a tomar o mata-bicho.

   - Então, Rosa, já decidiste? - perguntou-lhe o vendeiro.

   - Ainda não decidi. Querem-no dado.

   - Minha amiga, tens de te compor.

   Veio o linhar a despique e ninguém se mostrou esparvadiço a comprar. Pelo contrário, o Afonso, cunhado do vendeiro, prantou-se para ali a chorar a careza da vida, e o ror de tributos que consumiam o melhor sangue da lavoura. Estava-se numa época em que empregar dinheiro em fazendas era o mesmo que deitá-lo pela água abaixo. Má hora para quem compra como para quem vende... E tanto amolou o ladrão, que o José Narciso, embora tido por cabeça no ar, largou este remoque:

   - Também é desfazer! Tia Rosa, tivesse eu quarenta libras, que lhas dava já pelo migalho.

   Mas o Catrino, tio da rapariga que ele andava a rentar, piscou-lhe o olho, que o Jaime percebeu, e fez viravolta:

   - Verdade, que tudo depende da ocasião. Agora se lho pagarem por metade é o muito.

   Jaime, vendo o rumo que o negócio seguia, esgueirou-se, deixando ali a mãe, e foi passar uma busca a casa. Não lhe saía da cabeça que a mãe tinha dinheiro assolapado. Se o pilhasse, havia de lho meter pelos olhos na presença do povo todo, para escarmento da mesquinha, pois vender o linharzinho por uma tuta-e-meia era tão grande perdição que até o avô Gaudêncio se levantaria do outro mundo a protestar.

   Feito com Florinda, mexeu e remexeu na cozinha, nas caçoilas entupidas de fuligem, no caniço, debaixo da pilheira, por todos os cantos e recantos. Foram ainda ao tear, às arcas, à cama dela, debaixo das tábuas que ladravam. - Dinheiro? de grilo. E quando Jaime voltou à venda, a mãe, de ramela nos olhos, toda babosa bebia ao alvaroque com o Rola e a súcia safada.

   - Então por quanto?

   - Vinte e seis libras. Não foi dado nem vendido.

   - Diabos a levem, foi roubado.

   - Que vem para aqui o pendente meter o bico? exclamou o Rola.

   Jaime foi esconder-se na loja da vacas, a chorar.

   À noite veio o tio Chico Brás dar conta de suas vãs passadas e, à fogueira, contou ter ouvido na venda do Clementino que, para a compra do prédio, o Rola se entendera com o Sarrico e mais vigairada. Por modos, o Rola tinha-os a todos filados pelo gasnete, mas uns ladrões assim eram capazes de tirar os ovos à milheira e ela no choco!

   Em voz alta, Jaime declarou que sua mãe era uma grandessíssima coruja que tinha dinheiro enterrado e preferia beber o sangue dos filhos.

   A mãe arrancou dum tamanco e fez-lhe uma brecha na cabeça.

 

   Estava à porta a Senhora de Agosto, e a velha sem malhar as cinquenta pousadas que pela roda do ano fora amanhando, sabe Deus com que canseiras. O António casara em Lamosa; o Jaime tinha desertado para a Sapucaia; restava o cagaçal do Bispo, a quem em parte alguma requeriam para malhador a troco de malhador. As trovoadas começavam a gerecer-se para os altos da Serra numas carantonhas de nuvens que, à volta da lua nova, com o mais leve pé-de-vento, estavam deitadas ao termo a descoser-se em borrasqueiros.

   De olho invejoso, Rosa seguia o malhio pelas lajas, onde, uma a uma, as medas altas e rombudas se tornavam em palheiros redondos e encoruchados, como piões fantásticos de ferrão para o ar.

   Manhã cedo, mal o sol, bravio que nem enxame de abelhas alvoriçado, pulava detrás dos montes, goela forte bradava do alto pináculo da meda: - à eira-aaa-aa-a! - Aquilo ouvia-se em grande raio pelo povo e suas abas, como os sinos de Toledo. E logo de cada canto rompiam os malhadores, lépidos e pontuais como quem acode a um toque de guerra. Calça branca de estopa, para gargantilha um lenço de mulher, esfraldado sobre os ombros por mor de paraganas, sol e moscas, irmãos danados a ferrar, a grenha das pomas a espirrar dos bofes da camisa, uns após outros, enchiam os caminhos dormentes que levam às eiras. Todos descalços - que nem carne de Ferrabrás aturava pés calçados de sol a sol, na trabuzana - apenas se ouviam suas vozes marulhar ásperas na corrente remansosa da madrugada.

   A Serra da Estrela, a dez léguas pelo redondo acercava-se no ar translúcido, punha-se de atalaia mesmo lá em riba, a menos do galope dum cavalo, por detrás do morro de Segões. De lá vinha a neve de cantaril e o vento que corta, mas, se tamanha e mais sólida que muralha de bronze a ergueu ali Nosso Senhor, para algum beneficio foi… talvez para não deixar esbarrondar para campos de Espanha, assim como um monte de trigo, as terrinhas altas da Beira… ou para que estrela, correndo cega pelo céu, mal’hora as não escaqueirasse como a púcaras de barro. Sabe-se lá!... Descobrindo-se com o nascer do sol, da roxidão dos lírios roxos macerados, ao perto que se afigurava, chegava a gente a crer que se divisaria, batendo suas devesas, um caçador com os cães. Galgava para ela a praia-mar doirada dos restolhais subindo os montes, insulando as moitas verdes, dum verde que dá a gana das sestas, e os oiteiros de urze e de sargaço, surrados dos rebanhos, de alcandor aos baixos ribeirinhos onde ainda apendoava o milharal. De todo esse terrunho que se avistava, iam agora enchendo-se as tulhas. Já pelos longes, na cernelha de Forles e na gamela de S. Martinho, se empoleiravam muito brancos os palheiros novos. Vistos dentre as matas, ao passar, pareciam, talhados em capindó, por trás dos lumes da canícula, grandes anáguas de linho, enfunadas no volteio da dança.

   Bafoeiradas da aragem traziam pelos ares a moinha dos centeios padejados e o rescendor da macela e da labaça que ressequiram nos campos gadanhados. Cortavam o céu alto bandos de pombos bravos e, descuidosas, mondando o grão caído da espiga gorda, cantavam na terra das searas a perdiz e a corcolher. Já as cerejas tinham bichos e a cigarra

emudecia longas horas, quebrantada de tanto zangarrear. As manhãs, até toarem os manguais, eram dum silêncio que se sentia do mais pequeno tropel de tamancos estreloiçando nas ruas.

   Ainda o sol, furando às espaldas dos montes do Corregal, não se livrava - é um modo de dizer - duma pedra bem mandada, já a eira estava a postos. De chapelão de grande sombra, saiote vermelho e colete de atacadores, mulheres ajeitavam as cuanhas e estendiam mantas a toda a roda para caçar o grão respingueiro. Outras preparavam a eirada com desatar os molhos e espalhar a palha em carreiras, tendo o cuidado de deixar as espigas bem ao léu, para que se embebedassem de sol - o sol que as criara e agora ajudava os manguais a enxotar o grão para fora de seus casulos. E tão breve a palha aquecia, se punham em fila os malhadores.

   Benziam-se por mor dos maus repetentes com o vinho, para que o pirtigo, saltando da carapula, não matasse, para a malhada não sofrer desmancho, e, entremeando mangueiras direitas com esquerdas a fim de não quedar a mão em aberto, encetavam a cubela. Todo esse debrum em volta da laja, necessário para desempacho das testeiras, não era de valha, dado no mole; como uma escaramuça folgada, zurra tu, zurro eu, levando ao longe os ecos intermitentes dum batuque, servia para espertar os tendões, pôr à prova as meãs. A tesura era na beira.

   Aí, espinha flexuosa, braços jogando em cadência, fôlego por medida, rompiam. Pé atrás, pé adiante, seus dorsos eram mil arcadas fugidias sob o fugidio sarambeque dos pirtigos. Lá voltejavam eles, subindo e descendo tão certeiros e tão lestos que descobrirem-se bem só no ponto morto, ao alto, onde cobravam fortaleza. O mais eram relâmpagos brancos saraivando no ar.

   As primeiras pirtigadas caíam surdas na palha balofa; era como bater no vento; mas a paveia quebrava, encamava,

fundia-se com a laja e a laja a soltar ronco que parecia o coração da terra a estoirar.

   - Óooo-oo-o! - remetiam-se, então, os malhões, uns aos outros, de seus picotos estrelados, num clangor que devia esparvar os lobos, pelas raposeiras quietas, até a outra banda da Nave.

   Era um buzinado de guerra. À porfia, de olhos no chão moventes em que o sol, já alto, se espolava num delíquio de luz e de fogo, apertavam uns com os outros. Com luzinhas presas a cada aresta de palha, a eira breve se tornava um caldeirão de cobre a ferver. Por isso mesmo a manobra requeria olho fino e mão lesta. Já os olhos, em sua fixidez para a mobilidade, desvairavam. Mas os braços obedeciam pela ordenança mesmo do vaivém. E sempre avante!…

   O grão lá ia largando, era ver as zagolatadas que acompanhavam o erguer dos pirtigos na palha delida. Conho, tinha que saltar, para ir ao crivo das cirandeiras, às arcas, à azenha, e volver do forno no pãozinho que, com tanto apego, se pede ao Senhor no padre-nosso. Agora, que escorresse lume, ou se calcasse lume, era deitar o alento todo. E hã-hã,    hã-hã, lá iam.

   Uma praga raivosa estalava, às vezes, por cima da ronca dos manguais. Moscardo, atraído pelo cheiro a mortulho das costas em suor, ferrara o farpão. Um pirtigo estroncava: outro...

   A partir da segunda eirada, a laja acendia-se numa só labareda; diante deles os muros e as árvores dançavam; o chão metia-se pela terra dentro, apenas o vulto esbranquiçado das medas ficava a bolar à flor do sumidouro. E mais sanha lhes vinha para puxar e aziúme duns para os outros:

   - Aguenta, parceiro!

   - Aí vai, minha mão!

   - Eh, Cristina!

   E, açulando-se com brutas vozes, despediam de roldão, pós-catrapós, em rijo rebimba-o-malho. Bumba, bumba, pirtigo em baixo, pertigo no ar, bem empinado a adquirir sustância, a palha parecia cortada a cutelo. O grão esperrinchava mais do que cuspido por bacamarte.

   A mulher da beira, que ia encostando ao traço dos manguais as gabelas mergulhadas, cega de poalha, rolando e desenrolando-se, de gatinhas e às arrecuas, lembrava a ursa sábia no vaganau das festas.

   Eram os arrancos danados. Os poros botavam água como fontes. Colava-se a roupa ao corpo. Forte ou fraco, escachava-se para ali a alma. E a malhador estranho à terra metiam-no entre dois façanhudos, um Zé da Narcisa, um Cláudio, e: "Tem-te, valentão! Responde lá a esta, meu lérias!" espremiam-no como uva no lagar. Na eira da Barroca uma cruzinha de homem morto, espetada na parede, dizia bem o que são estas horas do Diabo.

   Ao cabo de três carreiras, como mandava o uso, esperava a cabaça do vinho. Era o minuto de cobrar fôlego. A arquejar, o mais farsola sorvia de pulmões ávidos o bafo afogadiço que revessavam os pinhais. Como se viessem a descer a serra, lá estavam eles, hirtos, encimados de suas polas cor-de-rosa, mal murmurando uma reza baixa. Agastadas da canícula, ou entretidas com os rolinhos, nem em suas sombras as rolas meiguiceiras arrulhavam. Mas cerca dali, no montado do Padre Francisco, a vagem das giestas estalava, e era uma chieira contínua como de incêndio a triturar.

   A todo o âmbito, perto e longe, por moitas e alqueives, levava a labareda do sol seu amarelo de rescaldo. A serra da Lapa cobria-se de cinzas; a serra da Estrela, torva, opaca, com o cabeçorro da Guarda à frente, tomava a forma de gigantesca figura humana, deitada de bruços a sorver o sangue da terra na angústia imensa da sede. E, pegando de novo,  hã-hã, hã-hã, lá iam os malhadores…

   A horas de janta, aparecia a senhora do malhio; os pirtigos arrancavam uma salva que nem trovoadas que se

encontram. Todos à uma, urravam: óóó!!! E os ecos e doutras eiras respondiam óóó!!! A surriada alagava as gândaras, tornava mais pasmados os penedais pasmados, e sacudia nos horizontes ermos, ruivos da brasa do meio-dia, a tremulina tonta da canícula.

   O comer era à lauta, do melhor, caldo de leite com abóbora, sopa doce, arroz com gravanços, reixelo guisado com trigo, iguarias estas de provar e mugir por mais. Punha-se à prova o dedo das cozinheiras! Também causava um despesão o jantar das malhadas; com o sol a ferver no cachaço, vinho a rodos, o espírito todo no mangual, os homens eram debiqueiros e retraçavam mais do que comiam. Tirava o ventre de misérias a parentela dos malhadores que varria as caçoilas, sopeava das almofias, rilhava os ossos que nem bando de olharapos. As malhadas enxameavam de beleguins que só ali vinham para estorvar e comer. Mas fosse ele ano de espiga grada, a pãozinho de Nosso Senhor merecia bem que se não olhasse a gastos nem ao que devoravam os pardais na eira.

   Ao anoitecer, rachado muito pirtigo de carripoto, cuanhado e padejado o pão, coberto o malheiro com um carapuço de Roberto, chamava-se bombo, os ferrinhos, a gaita ou a viola. E iam bater a chula à porta de São João até que dessem voz de ceia. Eh! malhadas, trabalhosas que fossem, com as arcas a encher e, ao domingo, santos farandoleiros nas ermidinhas dos montes, desse-as Deus todos os meses do ano!

   Por mais de duas semanas, Rosa assistiu do mirante a estas flostrias nas eiras, o fel derrancado de ver a debulha do seu pãozinho remetida ao tempo da canhota. E, falando alto, sozinha, blasfemava daquela cadela de sorte que seus pecados não mereciam. Velha enjangada, ninguém a rogava, ou requeria sequer para uma demão de pressa nas eiras. Florinda, que era espevitada e sabia menear o quadril nos saracoteios da chula, abalava todas as manhãs com amo. Ainda que má cuanheira, era muito mexida a prantar uma toalha e a servir o comer. Nas mãos dela não se partia prato, cantés as moças do tempo eram uma alobatadas que nem o caldo sabiam migar. Saias, graças à filha que as ganhara, havia já de sobra; o Demónio podia vir e levar que ainda sobejavam mulheres para a debulha, trincar, dar à língua, e tanger castanhetas no baile, se baile se armasse. Mas os homens eram praga, estavam encarreirados à vez e, que houvesse devolutos, exigiam um bom pinto de jorna. Olha um pinto, o preço de duas missas! Consumição levasse o Brasil, que sorvia toda a rapaziada nova!

   - Rogue homens, senhora mãe! - pregava-lhe Florinda.

   - E pagas-lhe tu? Ensina-me onde se cava dinheiro...

   - Vomecê deve saber... Dizem que tem libras enterradas...

   - Tenho o diabo que te carregue! Teu irmão Jaime é o maior piranga que a rosa do sol cobre.

   E aí rompia ela numa sarabanda contra o Jaime, que lhe alevantara aquele falso testemunho e não havia de ser ajudado de Deus.

   Bem se chamou a todos os santos e santas da sua devoção, mas os santinhos não lhe valeram. Teve de esperar que as malhadas chegassem ao cabo e a parentela se doesse do seu rico pão a esbagoar-se no rolheiro. Que remédio! Mas quis logo o fadário que todos os dias, obra de meia manhã, as trovoadas salteassem o povo. E com que furor, árvore da bela cruz! Às vezes eram três e quatro que, avançando das serranias, Montemuro, Estrela, Santa Helena, Lapa, se encontravam em cima da povoação e despediam seus raios e trons como numa batalha. Em tom plangitivo ao janelo, a Clarinha fartava-se de bradar:

 

                     Sangue de Deus vivo,

                     Sende comigo!

                     Sangue de Deus vivo,

                     Metei-vos em mim!

                     Sangue de Deus vivo,

                     Livrai-me do perigo!

 

   No alpendre da Guiomar do André as comadres batiam o dente e, acima do matraqueado, ouvia-se a voz de cabra da Zabana a rezar o esconjuro:

 

                       Agra, agrão,

                       Sagra, sagrão,

                       Sagra, sagra,

                       Pedra de ara,

                       Corpo de Cristo

                       Se meta entre nós

                       E o corisco!

 

   Os relâmpagos varriam o céu de lés a lés com uma foiçada de lume. Depois, estalava um ribombo ou castanhetado seco de trovões tão medonho que deve ser assim no dia de juízo quando desabem os montes uns sobre os outros.

   Ela fugia para casa de seu irmão padre onde havia o bento amparo dos santos óleos. De pé, muito pálido, Francisco dizia a Magnificat, a ama de joelhos e mãos postas, por seu lado, declamava em alto patético:

 

                       Santa Bárbara bendita,

                       Que no céu está escrita

                       Com papel e água benta,

                       Pedi a Jesus Cristo

                       Que nos guarde da tormenta!

 

   Ateava-se pela aldeia fora um clamor de ladário. Durava meia hora, uma hora se tanto, a procela. Corriam levadas de água pelos caminhos. Em seguida, num rufo, enxugava a terra. As rolas volviam a arrulhar na coruta dos pinheiros. Ao largo passava um corvo a levar por lá a boa nova. Branqueavam os horizontes, e das hortas e quintais a brisa trazia aromas da alfazema e de alecrim, que inebriavam a gente.

   Ah, assim passasse a sua mofina! Quando foram a abrir a meda, no tarde, à volta da Senhora da Lapa, o grão estava recozido. Pútrido e tão malcheiroso, que nem os pardais lhe pegavam, fartaram-se de andar com ele em mantas, pelos soalheiros. Mas não houve jeito de perder o ar de grão meio digerido, tirado da moela de frango que se matou para um doente. E depois da cozedura, sabia a mofo e causava azia. Uma danação! Procurou ainda desfazer-se dele, mas não houve almocreve que lhe metesse dente ao preço da uva mijona.

   - Seja pelos trabalhos que o Senhor padeceu! exclamavam as vizinhas, enclavinhando as mãos para melhor exprimir a dor d’alma.

   Rosa conjurava o fogo de Deus a abrasar as casas e as searas da malvada da sua gente, o Cardiga, viúvo de Luísa, farto e regalão, o Augusto sotranqueiro, o padre soberbo, que não se importavam de a ver a pedir às portas.

   Para mais, veio logo o Inverno, cedo saindo das profundas, onde o Diabo o gerou para tormento da Serra, com borrifos, ventania e o carujo lá em cima, entre as barrocas, a fazer manta aos lobos para dizimar os rebanhos. E com ele velo o taró que corta as orelhas e os beiços e o suão que parece uma navalha de salteador a picar, lento e malvado, o corpo todo. Mal se podia arredar passo fora de telha. À noite, no serão - que para poupar creosende Rosa amalhoava com outras na sua loja - todas clamavam que era castigo de Deus pelos muitos pecados dos homens, e que temporais tão duros só podiam ser sinal de fim do mundo. Mimosos e felizardos os que tinham os cabanais bem providos de lenhas, e não lhes faltava carniça e salpicão na salgadeira e batata farinhota no monte!

   Mofina e rabujenta, Rosa encomendava-os a todas as tranquibérnias do Mafarrico. Também haviam de morrer, também eram um saco de podridão como os pobres! Mas, até à hora de o Manuel Safadinho lhes cavar a cama detrás dos pinhais, iam vivendo na regalada, enquanto o seu passadio se limitava ao caldo de nabos com um cassamente de unto e ao pão sediço que lhe punha as tripas a roncar como vitelo ougado. A justiça de Deus quando chegava!?

   Matara um berrelho, temporão para o chambaril, fora palhas ardidas no ar. O sarrafaçal do Bispo dera em lambareiro e, mal a topasse decuidosa, corria ao açafate ou à ucha, e era olho vê, pé vai, mão pilha. Quando lhe descobriu as manhas - comeste perdiz, a barba to diz -, todas as chouriças da carne estavam passadas a são-gulão. A salgadeira não tinha fechadura e, como o fradinho da mão furada, achava sempre tremenhos de lhe chegar, levantando duas tábuas no soalho ou despregando a almofada da porta.

   Redondo, machacaz, não valendo amo pela mantença, para a rapina dava-lhe o Demo arte. E a mãe não era senhora de ir à lida que, numa volta de mão, lá estava ele a alforjar, a espostejar no toucinho, nas pás ou no presunto, para satisfazer o apetite de jibóia. Servia-lhe tudo, contando que enchesse a morca, até o unto rudo que de gordo engulha. No dia em que a mãe deitou à feira de Lamas a comprar uns tamancos, à volta caçou-o na alhada. Como havia de castigar o grande rabaceiro? Cispando-lhe sobre o gasnete a tábua arrancada, por onde furava para a loja, e largando-o ao pendurão, a esbarregar-se, a espernear como um condenado na forca. Se lhe não acode Florinda, levava-o São Pelicardo. já tinha um palmo de língua fora da boca e os olhos em alvo, desvairados. Pois não lhe serviu de emenda. Mal a mãe e a irmã voltavam costas, partia ele ao sequestro.

   - O excomungado é capaz de me rilhar a madre! - exclamava a mãe. - Foi ele o herdeiro do triste bacorinho.

   Com o vezo e a experiência e porque ladrãozinho de agulheta sobe sempre a barjuleta, o João Bispo deitou o pé mais longe. A vizinhança começou a queixar-se de sumiços sobre sumiços, ovos que desapareciam do ninho ainda a pita poedeira a repenicar, queijos frescos da francela e até broa dos açafates. Foi cão, foi gato, foi doninha, e o João Bispo com o odre à ufa.

   Viam-no ir levado pelos caminhos da serra a cantarolar na sua voz roufenha de cornemusa:

 

                       Minha mãe tem, tem

                       Tripas a cozer,

                       E ó do ri-pó-pó

                       Que me hei-de encher!

 

   - João - perguntavam-lhe -, não viste por aqui cachorro a roubar?

   - Vi sim, senhora; olhe, passou há nadinha a Farrusca do tio Zé Narciso com um grande trancanaz de pão nos dentes.

   - Fogueira a parta!

   Outras vezes era a gata do padre, que tinha ninhada nos palhais e saíra das casas a lamber-se toda.

   E, como São Benedito, que não come, nem bebe, e anda gordito, o João Gaudêncio andava nédio só com a graça de Deus. Tinha encontrado boa indústria o safado. Dos ovos, sorvidos dum trago, ainda quentes da cloaca, com um furo ao alto para descoser melhor, passou à caça das galinhas que dormem, sem cuidados, à sombra dos alpendres, ou catam, alheias ao mundo, os vermes das valetas. Grãos de milho à laia de contas enfiadas numa guita, elas a morderem de gulosas e a virem à mão como o peixe no anzol. Zarelhavam das asas, mas não podiam cacarejar, que seria o perigo. E ia vendê-las à gente da feira, se era azo, quando não, assava-as na serra com duas pitadas de sal num morouço de carqueja. Andava na ceva o grande macaco!

   - O raposo derrota-nos a criação! - queixavam-se as donas de casa. O Cláudio, que acabava de pôr venda, vinho, lumes e cigarros, mestre em ratoeiras, todas as noites armava os ferros de serrilhas, para caçar coelho no toural, a cada buraco do gato.

   Um dia, porém, o galaroz de penas galantes da Clarinha - bicho de quem o tio Alonso brasileiro dizia: não é um galo, é um urubu - pegou-se no rosário de milhão e tanto estrebuchou, tanto escarrou, tanto apitou o carrasco, que a dona veio fora. O João Bispo, com o laço em punho, buscava jeito de lhe passar ao pescoço os cinco mandamentos. Aqui ardeu Tróia. Em voz alta, a Clarinha acoimou sua tia Rosa de ladra e que ensinava malas-artes aos filhos para roubarem o alheio. Rosa veio ao patim e despicaram-se horas e horas. O que ali vomitaram uma para a outra - nem duas regateiras do fado.

   A honra da Gaudência saiu abocanhada daquele passo.

À boca grande se dizia que o meigengro do filho, bertoldo e salamurdo como era, sem escola, não teria usado de manhas tão arteiras no roubar.

   - Cruzes! - diziam ainda. - O jagodes, ao ardil que tem, com outro corpo dava em ladrão de estrada.

   A cabeça de macho velho, barriga de abóbora carneira, pernas curtas, apaulitadas, não lhe permitiam empresas mais altas que as capoeiras das comadres.

   A mãe aplicou-lhe com uma tranca sova de vulto. O odreiro já tinha tirado sortes, mas pelos ares, o queixo com pêlos ralos e compridos como erva sobre um penedo, o reboludo do tronco, não lhe davam mais que dezasseis anos.      Suspendera-se-lhe a crescença, mas medrara-lhe a maldade, por valimento do Demo.

   Por muito tempo não se falou noutra coisa; e à conta do machacaz foram lançando os roubos sucedidos e por suceder no povo, desde os tamancos da Teresa Fortunata e a saia de folhos da Zefinha Narcisa, deixada a enxugar no estendedoiro, a uns meiotes rotos do Zé da Clandina, metidos num buraco da varanda para consertar. Valeu à Rosa Gaudência ter serão para sair menos denegrida da escândula. Na roda, pôs a nu a careca daquele maroto como quem despe relaxado tratante no pelourinho. Deixá-lo, não perdia casamento, que nenhuma moça o aceitava, a mais ranhosa ou morta por matar as comichões da donzelia. Para honra dela e de Florinda assim foi mister.

   - Grande lambão! - regougava ela. - Olhem que o não tem de leite!

   - Ninguém ponha as mãos pelos filhos! - respondiam as matronas encanecidas a ver os espelhos do mundo.

   - São os destampatórios da sorte - comprazia uma terceira. - Quem tem filho varão, nem dê vozes ao ladrão!

   O João Bispo, dali em diante, não pôde unhar mais o alheio; precatavam-se dele. As mulheres faziam-lhe mesmo figas, suspeitando-o de entreter pacta com o Diabo e todas as noites ir fandangar com as bruxas para os vidoeiros. E, sempre esfomeado, passou a comer os reixelos mortos que atiravam para os quintais, os coelhos mansos do padre a que as ratazanas chupavam as cordoveias, frangos afogados nos poços, e até a carne das bezerras, quando lavrou a malina. Um cachorro de raça, que o Senhor Mioma criava com muito mimo, forneceu-lhe um lauto festim. O seu refeitório era a grande serra, que guardava segredo, e ele corria de manhã a sol-pôr atrás de duas ovelhas ranhosas.

 

 Serão de mais nomeada não havia por aquela corda de povos. O gaiteiro de Forca não conhecia melhor para a ribaldeira. Quando o Pai Paulino vinha com a comédia, ali armava as pachouchadas do Roberto e da Henriqueta. Loja alta e ampla, daquelas que o Gaudêncio velho gizou para acoitar as rédeas dos almocreves, podia-se ali bater o saricoté ou motetar a chula, ficando em paz quem para a galhofa queda ou arte não tinha. Além disso, limpa, asseada, e com palha sempre enxuta, por não a pisar vaca desde que falecera o Libânio - Deus lhe fale n’alma. A dezena de cabeças de gado da senhoria encostava-se às paredes ruminando ou a cismar lá nas histórias que só elas sabem.

   Seroavam com Rosa as moças mais biquinho-de-lêndia da fonte para cima, a Glorinhas, filha do Manuel Cardiga e da Luísa Gaudência defunta, que tão enriçada andara com o senhor Inácio Mioma, figurão que possuía moradia em Lisboa e uns anos por outros vinha a ares da serra; a Guiomar do André por tom e som menina mesmo de cidade; as duas Planetas sisudas, se bem que airosas, e a Maria Morgada com a melhor legítima da freguesia. Também era ali certa a Teresa Fortunata, Zabana de alcunha, muito procurada para rogos e alquilés e de muita virtude a atalhar impigens e a endireitar a espinhela aos embaçados. Outras, de cometer por suas prendas ou agrados, pousavam ali, sem contar a Zefinha Narcisa, desde que o Alonso a recebera, e Florinda, toda sécia e perluxosa, ainda que com mais presunção que virtudes. Com gado assim, os bargantes acudiam ali que nem melros às amoras dos silvados, no tempo sequioso das ceifas. Em noites de borga, os descantes encabeçavam pelo serão da Gaudência.

   Acocoradas sobre as pernas dobradas para baixo da rabadilha, a que as solas dos pés ofereciam um raso de tamborete, obra de vinte mulheres fiavam, faziam meia ou dobavam em volta do candil de petroline à dependura duma trave, e o tempo corria que não havia lebreu que melhor corresse. Espulgava-se a vida própria e a alheia, chamado ali o mundo todo a juízo. junto das pulquérias com os pés debaixo das saias duma e a cabeça no regaço doutra, os rapazes jogavam a sua sentença e anedota de pícara galanteria; ou cabrazavam à mistura, com luxuoso tagaté eles, elas fingidiços arrenegos.

   Nas noites de sábado punha-se o trabalho e atafaias para um canto, e batia-se o calcanhar. À falta de música, dançavam joguinhos de roda e de cadeia: ó amendoeira qu’é da tua rama, Ó dom Celidon, Pelo mar abaixo vai um aranhão. E, umas vezes por outras, desenfadavam-se com jogos de astúcia ou de adivinha, pândegos para as velhas e roçadiços para os namorados: A condessa, Os casadinhos. E nestes engrimanços de melada manobra os surpreendia o cantar do galo.

   No tempo santo, o tio Manuel Abade vinha com a cartilha e rezava-se em coro a Novena do Menino-Deus, se era Natal, a Via-Sacra, se Endoenças. Ou então lia pelo Mestre da Vida passos dos milagres, mais catitas que as práticas do cura em domingo terceiro. A devoção não era tão grande que moça, beliscada na coxa pelo galante, não soltasse amoroso uivo:

   - Raio te parta para titereteiro!

   - Credo, esta gente de agora não tem assento! - rosnavam as velhas.

   Imperturbável, o Manuel Abade continuava a soletrar a história de São Ludovico, que em vida desceu ao Inferno por um poço sem fundo em montes de Albania.

   Chocaram-se mais casamentos naquele serão da Rosa que por ceifas e romarias. Deitados ao longo um do outro, debaixo da mesma capa, ali embeiçavam os pares, para só despegar com a sepultura. O serão, além de casamenteiro, era pelourinho e alçada de desembargo. Graças à sua provedoria, Rosa e Florinda acabaram por sair de mãos enxutas, para o geral, das gatunices do filho. Prova disso se viu quando voltou à terra o Luís Maneto, vagamundo, que alevantara com os maus tratos que o pai lhe dava, o Rola somítego, mal este veio a acordo não haver jeito de o encarreirar para as letras.

   De sete filhos que tinha, o Rola, tão cedo se viu podre de rico e os dinheiros a crescer à força de onzena, tirou dois para os estudos, por cabeçada, nanja por inclinação, pois que, tendo nascido a fossar na terra, queria os seus, consoante ele, a fossar na terra também. Foram eles Micas, a mais velha, a quem pusera amor e se mostrava muito finota a deitar-lhe contas aos juros, e o Luís pela desgraça que lhe sucedeu quando menino. O raio dum bácoro, em dia que a mãe o deixara no berço, entrou pela casa dentro e roeu-lhe metade dos dedos da mão esquerda e duas terças partes de uma orelha. Foi a salvação do anjinho do Senhor aparecer a Rola naquele repente, senão o animal maldito papava-o inteiro como a um repolho na horta. Porque tal mazela o tolhia de ombrear com os manos na lavoira, impô-lo o pai com mestres a fim de o habilitarem para a carreira eclesiástica. Mal empregado dinheiro! Mais avisado andaria comprando veneno para os ratos ou gastando-o com os outros irmãos, que, de maltrapilhos e surros, a ninguém acudia serem pertença dum ricaço. Mas o tino dele era aferrolhar, meter para a burra, andassem os seus bem embora descalços e rotos, comessem de seco ou de molhado, fossem ou não fossem risa e chacota do mundo, e maravilha fora aquela de querer ordenar a dois.

   O rapaz andou no colégio dos padres, na Lapa, ao tempo do Senhor Inácio Mioma que era um azougue de finura, foi para Lamego, ali latiu o hora horae, amolou, encaleceu. O cachorro tinha a cachimónia mais dura que seixo. Fartou-se de apanhar lambada do pai, dos companheiros, dos mestres. Era o mesmo que malhar em centeio verde. À força de ser bombo, tornou-se mais ruim que um saco de lacraus; mas se onagro era, onagro ficou.

   - Gastei com ele à beira de vinte centos de mil réis. - lamentava-se o Rola. - O excomungado não tem queda para as letras. Nem a pico!

   Quando voltou de estudante, desesperado com os maus tratos e a mofa dos irmãos, que eram uns moiros de trabalho e lhe viam as unhas brancas, fugiu para o Porto. Carregou muito fardo numa baiuca e coçou-se de muito pontapé na bunda. Dali arrancou para a capital e foi servente desses calceteiros que nas ruas bordam bonitezas para passeadouro dos peraltas. De gorra com aqueles, embarcou para o Rio e por mais de dois anos ninguém ouviu falar no doido. Vai senão quando, rompe uma manhã pela casa paterna dentro, pobre como fora, mas todo correntão e domado à lida. A tanto tombo que deu, acabou por abrir os olhos. Não estava nada doutor, mas dava indícios de acertar pela doutrina do pai e ser tão calão como ele. Chegou Pero de malas-artes com seu tabardo de Chartres. Minguavam-lhe dedos; pois já não arriava na labuta e até punha farroma ao pé dos manos, que, apostos de muito novos à canga, tinham saído uns zorreiros e enjangados da maleita.

   O Luís Maneto, com vinte e quatro anos no pêlo e boa sorte no amanhã, ia amiúde pelo serão da Gaudência rentar às moças. De princípio andou muito embeiçado por Glorinhas e, quando a rapariga, pelas mostras, começava a dar trela, largou-a de salto. Já não era o primeiro que fairava às fraldas da criatura e como o cuco despedia sem dizer: aqui me vou! Nanja que ela não tivesse uma legítima arredondadinha e não fosse mulher curiosa, asseada, toda videira, sabendo coser à máquina e cobrando boa propina das roupas que amanhava. Mas fora o brinquinho do Senhor Inácio Mioma - homem de prol e agrónomo, ainda longe dos trinta, de seu nome completo Inácio Relvas Maturranga, da casa de Mioma, em termo de Ferreira de Aves - e isto de fidalgos não despedem sem satisfazer a cobiça como os rabusanos. À boca grande se dizia que o Senhor Inácio se gozara dela forte e feio; verdade ou mentira, não se livrava da fama, e por aí se lhe ia escoando a maré do casamento.

   O Luís foi pela vereda dos mais e, mal te precatas, virou-se para a prima Florinda. Tinha aquela pecha da mão ratada, mas a legítima que lhe coubesse era mesmo para obscurecer achaque de maior vulto. Além disso, apreciavam-no por bem falante e pimpão, que dalgum proveito lhe houvera de servir a escola do cadelas e correr as sete partidas do mundo, da precisão tirando arte. E o derriço pegou deveras.

   Florinda gozava fama de cachopa limpa, em que ninguém punha tacha, e, bem governada, a sua sorte não era argalho que se não visse. Breve se falou no povo da gorra que os dois iam levando, e as moças, quando ele lhes adiantava mão para o amoujo ou queria passar-lhes uma esfregadela de barba, formalmente ariscas, destemperavam:

   - Larga, cadelo!… larga… Não tens a Florinda!…

   No serão, o Luís Maneto alapardava-se-lhe no regaço e assim curtia horas em êxtase amorudo ou roncando de sono, quando não largava de papo mariola uma léria à characina. Aos sábados, não a deixava dançar - que fora arte que não aprendeu com os padres - e sentia zelos vendo-a em fragalhotice com os mais. Bem suspirava ela, que tinha o pé alceiro, mas compunha-se e, aninhados a um canto, muito engalriçados, apreciavam, ou entretinham-se em fosquinhas de bem-querer. A Gaudência velha enfeitava-se toda quando proferia o nome de Luís Rola.

   Naquele Entrudo, como era da lei, a rapaziada andou a casar as donzelas pelas portas das quintãs e dos serões e encruzilhadas das ruas. Dois dos mais farsolas no meio de boa escolta orneavam por borrifadores que traziam para mascarar e engrossar a voz. Por achincalhe, umas vezes destinavam à moça mais faceira o rapaz mais zambro; outras, se isso não tropeçava com as miras dos casamenteiros, liam os pregões consoante lhes estava indicando o pendor dos amorios. Em tal prática, enxovalhavam as baldas de quem as tinha, e escarneciam, ao despautério, do vesgo, broma e aleijado. O despropósito, botando fora das marcas, dava às vezes que falar.

   Pois esse ano, em que a Zefinha Narcisa casou com o Alonso, andaram eles vozeirando por portas e becos até que chegaram ao cimo do povo. Seriam dez horas e caía neve, a neve ladroa, que entra pelas casas - juntas do telhado, buracos de alvenaria - melhor que trasgos ladinos. Em faíscas que não bailam nem se vêem descer do céu, parece chegar de longe, num voo rasteiro, sem quebra. É a concubina danada do vento nordeste. Ambos, pela serra fora, são como dois cavalões encrespados a correr. Fustigam o viandante, derrotam as matas, as aldeias transfiguram-se em barrocais, montes de brancura a uma banda, negridão cavernosa a outra. Quem está debaixo de telha deixa-se estar, que para lapas e apriscos

enxotou ela os rebanhos e os animaizinhos do monte.

   Não obstante a nevasca, os bargantes da terra não renunciaram àquela prática zombeteira, que vinha do tempo do rei que rabiou. Com o céu em tábua, era preciso esporteirar mesmo às orelhas dos manteados. Embora, eles lá andavam lestos e petulantes, nem temidos de calhaus, nem da neve.

   No serão da Rosa, mal foram pressentidos, as raparigas romperam aos pinotes e em fungadela como burro que dá em vespeiro:

   - Não haver uma pedrada que lhes parta a pinha e o borrifador!

   - Golas de odres! Deus nos perdoe, mas havia de vir uma neve tão alta, tão alta, que os engolisse até para riba da cornadura!… Filhos de má mãe!

   Casaram uma por uma, a Guiomar do André, toda alfenim, com o Manuel Borralho, sonso e pilhanqueiro, a Maria Morgada, rica e sisuda, com o Zé da Claudina, figurilha mas pobretana, E logo se bacorejou que um dos casamenteiros era o Zé da Claudina, que também rampanara à Gaudência nova, pela boa queijada que se repartia o lapantim.

   - Terçã o coma para boca-rota! Um tunante que não tem onde cair morto e sempre em borgas! - resmungou Rosa.

   Glorinhas, toda afidalgada e cheia de fidúcias, demais que andara de amores com o Senhor Mioma, com quem a aparçaram eles? Com o trangolão do primo, o Bispo. Ela, que tal ouviu, corou muito, continuando a fiar sem dar cavaco. O matulão, que estava presente, é que ficou a lamber-se todo, de olhos a rir como auricus.

   - Ó compadre! - tornou a urrar a voz à esquina da quinta - temos agora uma moça de truz para casar…

   - A Florinda Gaudência?! - roncou o segundo, da outra boqueira da quintã.

   - Essa mesma! Anda danadinha…!

   - Oh! oh! oh!

   - Oh! oh! oh! Quem lhe havemos de dar, compadre?

   - Dita lá tu, compadre.

   - O Miguelão da Cabeça da Ponte?

   - Esse sim! Esse sim! Oh! oh! oh! Que se lhe deixa p’ra dote?

   - Os enxalmos do Luís Maneto.

   Diante do desconchavo, na loja da Gaudência, as matronas benzeram-se. Ao nome da Cabeça da Ponte, vinham à baila da imaginação todas as canchondices da parada, onde éguas e burras das redondezas iam a padrear. Uma imundície com o coito raivoso dos animais, as vozes despejadas de quem via, relinchos que esparvavam, pelos pastos, as poldras novas. E o Miguelão, em tal abocamento, já não era apenas o lançarote, mas o cavalo garanhão mesmo. Uma bodeguice! Devia ser o traste da Claudina o padre casamenteiro que se dava a matar por arrastar o nome do Luís Maneto, de despeitado. A terra se abrisse debaixo dos pés do macanjo e o tragasse!

   Lá fora, a surriada não despegava: oh! oh! oh!

   O Luís Maneto saiu ronceiro de cacheira na mão. O luar do quarto espargia pelos espaços uma claridade tristonha, em que se viam os flocos zimbar mais luzentes que faúlhas de prata. Muito enxutos, fustigados, pareciam cuspidos de longe, ao rés da terra. Já a casa do Padre Francisco, de quatro águas, tomava cor de novinha, acabada de caiar. O paredão velho da quintã era um estendedoiro de branco, e para o lado de lá do caminho as três mimosas do Senhor Mioma tinham ramos amarfanhados, ramos pendentes, franças erguidas, assim como calvários no destroço dum terremoto.

   O Rola coseu-se com a parede de modo a passar despercebido dos tunantes. Nos dois boqueirões, a choldra ocupava-se em casar a Teresa Fortunata, dura de rilhar com os seus quarenta bem medidos, com o próprio Luís Maneto. A raiva, então, deu-lhe esporas com que ele próprio se acicatou. A coberto do patim, despediu uma fragada para a cáfila com quanto arranco pôde, depois, outra e outra. E foi como um bando de estorninhos em que pula o açor. Largaram todos a fugir numa tropeada medrosa de tamancos.

   O Maneto foi-lhes no encalço, forte daquela debandada, e, mal alcançou um dos arruaceiros, deu, deu até o estrumar por terra. Aqui d’el-rei, juntou-se o povo, alevantaram o homem do charco, e o Narciso Espadagão, que era o regedor, guiado pelas pegadas na neve e a grandura sabida da planta, deu voz de preso ao Rola. O burrancão fora bater no filho da Anastázia Afonsa, um pobre de Cristo, trabalhador e salamurdo, que não fazia mal a um gato. E então que trepa! Tinha a cabeça rachada de alto a fundo e os ossos, em roda, mexiam como uma trémola. Puseram-lhe a extrema-unção e esteve a bater a bota. Todo choramingas, o Rola pai ofereceu dez moedas e pagar doutor e boticário, se não dessem parte à justiça. A Anastázia Afonsa, que era pobrezinha, anuiu. O rapaz, sem que ficasse escorreito, escapou. Pois não viu um puro real das mãos do onzeneiro.

   Isto de amores, regados com serrabulho dum entremetido, acabam sempre com o conjungo vos. O Luís Maneto e a Florinda receberam-se por meados da Quaresma, num domingo de claro sol. O Rola pai não estorvou, mas foi dizendo:

   - Cachorro, comeste-me vinte centos de mil réis para te casares com a fome linda!

   Rosa arrancou das ricas ciganas de oiro e meteu-as nas orelhas da filha.

   - Bem me podia dar uma cadeia! - lamuriou a desposada.

   - Tivesse eu posses, menina…

   - Vá ao tesoiro que tem enterrado…

   - Se é verdade, enterrada seja eu já com ele nas profundas do inferno! Delambida! - e não resmungou mais à ideia de que a sua filha casava com um ricaço e ia ser cunhada da senhora Dona Miquinhas, mestre-régia, e o centeio estragado ficar para mantença dos porcos, nanja para passadio de seu estômago debiqueiro.

   Foi uma festa de estrondo o casamento. O rancho dos noivos, ao botar para a igreja, tingia com os lenços de seda ramalhudos, xailes ricos das festas, chambres novos, o caminho soalheiro de São João. E, com o seu capote de cavalaria, mais à retaguarda, caminhava, entre o Cláudio e o Narciso, o Rola usurário.

   Na volta, toparam trincheiras armadas à entrada do lugar: uma fita carmezim lés a lés do caminho, a cujas pontas pegavam Glorinhas, toda formosa em cabelo e corpo bem feito, e a Zefa do Alonso, ainda que casada, por ser moça louçã e amiga de folgar. O Rola deitou um tostão no prato de cada uma, que era de moda darem alvíssaras os pais dos noivos.

   A boda foi lauta e farta, para o que por baixo de capa se esportularam Leocádia Rola e a Dona Miquinhas. Estava a parentela toda, afora o Padre Francisco, que olhava para a família como pardal a pardais, irmãozinhos de ninhada. Cantou-se, bailou-se, e o Chico Brás, de Aris, tio dos desposados, jogou lutas cambalhotas, ao desafio, com os mais valentes da terra.

   O João Bispo, muito bêbedo, que ficara a arrastar a asa à prima Glorinhas, depois dos casórios do Entrudo, disse-lhe de parte:

   - Ó Glorinhas, fazemos um ajuste!

   - Dize lá…

   - Tenho aqui treze vinténs; dou-tos, se me deixas dar uma embigada.

   - Vai dá-la na égua do padre.

   - Coira! Se fosse o senhor Inacinho …

   Glorinhas, se bem que ele fosse um brutamontes e azoratado, talvez, ainda, porque às outras se deparava marido, foi-se dali a chorar.

 

   O Luís Rola veio aquartelar em casa da sogra, com três mantas de burel que a mãe lhe deu às escondidas, além do baú de coiro, brochado de amarelo, e os manaixos de emigrante. O pai negou-lhe uma cardenha das muitas que tinha, alegando serem-lhe todas poucas para seu amanho. E, sobre isto, nem com um chavo galego ou quartel de horta o contemplou.

   O filho sofreu sem alarido, mas cosido de fel, aquele enjeitamento desalmado. E a sós com a mulher foi rosnando:

   - Deixa, há mais marés que marinheiros. Se lhe pranto os galfarros na burra, apanha um rombo que o ladrão, com o desgosto, dá logo pulo no inferno. Deixa…

   A velha foi remetida para o desvão, onde ficava o Bispo, este para a loja, e o casal engorrou-se no velho quarto dos Libânios, que era o melhor da casa e recebia luz por um olheiro de vidro talhado no escama-peixe. O Luís Rola ficava deste modo rei. Dois dias depois do casamento, viam-no já andar por cima do telhado, bulindo, remendando, à caça das pingas que pelo Inverno adiante faziam da casa uma enxovia.

   - Cedo anda o cuco por cima dos telhados! - disse o Zé da Claudina avistando-o da boqueira da venda.

   - É o pai escarrado! - manifestou o Cláudio.

- Parecem-se como um ovo de cobra com outro ovo de cobra.

   Mediante uns pares de mil reis que a mana professora lhe emprestou, o Luís Rola adquiriu os tarecos que se tornavam necessários de portas a dentro pois a casa estava nua como se por ali tivesse passado Jinó e os franceses. Trastes para arranjo da papança e da lavoira, que lá assentos ou outra mobília dispensavam-na bem enquanto houvesse soalho para arrimar o cadáver e as coisas da lida. Comprou, também, uns sacos de centeio, que o grão da velha, além de não ter virtude, empanzinava como um urco e fazia arrotos chocos. E, depois de muitos meses, os Gaudêncios puderam saborear da bola fresca da legítima que corre no canal sem presigo. Rosa toda se desfazia em améns para o laboreiro do genro.

   Com o João Bispo, endireitou o Rola as paredes dos lameiros e dos linhares, rapou estrumes, dispôs os agros. Afeito à moina de zagal, impando, o cunhado derretia as banhas todas do corpo sapudo.

   - Anda, rebolão! - gritava-lhe o Rola, mal o surpreendia de costa direita. - Amarga a côdea que me comes.

   E, só de ver-lhe catadura de carrasco, o João Bispo deitava os bofes pela boca.

   A velha pôs-se também ao tear e, de sol a sol, não se ouvia mais que o ruído das apeanhas na quintã dos Gaudêncios. Muito girota, Florinda lavava e remendava o seu Luís e olhava pelas voltas da casa. Sentia-se ali a mão dum fazendeiro!

   Ao cabo de tempos, porém, como a crise viesse de longe e os renovos ainda tardassem a produzir, não havia golpe de azeite na almotolia nem escudela de farinha na arca. Tirando ousio daquela refrega valente, que tanto dava para admirar, decidiu apresentar-se ao pai, porquanto só uma alma de rifenho não abrandaria em tais auges. E por uma tarde -floriam já as ervilhas e espigavam os trigais - pés nus e cabeça ao léu, que era assim sua costumeira para forrar carapuça e socos, foi-se ter com ele, que chapotava na vinha, rente à casa.

   O Rola velho, cauteloso em não dar ponto sem nó, tinha a toleima, que lhe saía cara, de aclimatar a vide na Serra. Antes, encostada aos soalheiros, lá havia uma ou outra cepa que pegara e dava uvas pelo tarde. Mas que uvas?! Daquelas que, espremidas no olho do gato o faziam dar um berro que nem azeite a ferver. A Serra era para o que era, para o centeio, para a batata, para o milhão, mas vinho só por fantasia. Os codos e os frios crestavam os pâmpanos à nascença e, se alguns deitavam adiante, o bago era rijo que se podiam fazer deles zagalotes para trabuco. Mesmo assim, o Rola teimava e lá tinha uma grande jeira abacelada, bem provida de tanchões e com cepas de enforcado, trepando pelas árvores guedelhudas. Vindima serôdia, sempre tirava dali uma zurrapa que o poupava de recorrer às vendas para gente de fora nas rogas, e para gastos de casa.

   Pois andava com a maça do polegar esladroando, quando o filho se chegou a ele, de mãos atrás das costas, sinal de quem vai, de começo, humilhando o seu recado:

   - Então toca a limpar?

   - Que queres… é tempo. Em Abril, pampo a rir.

   Pegaram de paleio sobre vinhos e renovos, e a certa altura o filho disse-lhe:

   - Senhor pai, venho pedir-lhe vinte alqueires de pão até a novidade.

   - Vinte alqueires de pão? Não os tenho. Que os tivesse não tos emprestava… está a dar muito. No último mercado de Moimenta, chegou a sete tostões.

   - Pago-lhos em dinheiro.

   - Não; vai bater a outra porta. Se tivesse que vender era com quatrini à vista.

   - Bem sabe que ando farto de trabalho… Para o ano lavro cabonde.

   - Olha, casasses-te só para o ano! Cuidavas tu que ia manter-te a familagem… a noiva, a feiticeira da velha, o

lambodas do Bispo? Mantinha-te a ti e não era pouco.

   - O que está feito está feito. Empresta-me o pão?

   - Não. Já disse. Se te aperta a fome, vai dar o dia, vai roubá-lo!…

   - Vou roubá-lo!… Então, roubo-o a vossemecê, que fica a jeito…

   - Rouba; bem me roubaste tu vinte centos de mil réis para andares aí um pirangão, descalço e roto, que nem os cães te conhecem. Aqui está no que veio a dar um estudante.

   - Sabe que mais, meta a sanfona no saco; dos seus sermões, bah…! - e o Luís traçava a mão espalmada pela boca, num arremedo de náusea.

   - Dizes bem, cão. Ao meu rico dinheirinho já nem Deus nem Santa Maria lhe vale. Tem-lo no papo, excomungado, mas ninguém o há-de dizer!

   - Ladre, enquanto ladra não morde! - tornou-lhe o filho, voltando face, pois já o Rola arrancava dum estaqueiro para o desancar.

   - Larápio! Safado! Casou-se com a fome! Vá, coma da bêbera da mulher. Saia às estradas!

   - Unhas de fome! judeu duma fona! Monturo! - repontava o filho, andando seu caminho.

   O Maneto coçou a cabeça e largou dali, às carreiras, a

ter com o tio Brás de Aris, que tinha uma jumenta. E, no dia seguinte, mal luziu o buraco, abalou para Sendim, onde estava a mana de professora. De lá pôde trazer com que comprar meio carro de pão.

   - Cá o centeio quer-se regrado - ordenou ele para a mulher quando os sacos estavam a entornar na caixa. - Quando governarem deste grão, governem também do outro à parte.

   - Nem o Diabo o pode tragar! - proferiu Florinda.

   - Já disse.

   Assim se fez, deixando o bácoro de comer a vianda adubada com a farinha que desbotava os dentes e enfolava a tripa. A velha e o Bispo comiam do pão derrancado, o casal do outro.

E não havia jeito de o lograr, que era ele quem esquentava o forno e, ao volverem para casa os tabuleiros, cada espécie vinha marcada com o sinal do dedo aleijadinho. O mesmo ardil usava com o pão encetado depois do comer. Em má hora se atreveu o Bispo a cortar-lhe uma fatia no seu; apanhou uma sova, que o ia aleijando para toda a vida.

   - O trangolão é fidalgo! - exclamava ele, dando à cabeça, enquanto o cunhado se confrangia a um canto, curtido de dores.

   A velha chorava contra o avental de serguilha. Tinha medo, e não era senhora de erguer a voz que ele não gritasse:

   - Cale a música, mulher! Você tem o miolo n’água.

   De ventas no açafate, Florinda dava-se o jeito de quem era estranha àqueles feitios.

   Pão separado, acabaram por estremar tudo no comer, afora o caldo, que duas panelas ao lume requeriam muita lenha e trabalho dobrado. Mas enquanto eles moquiam o bom salpicão ou o bom naco de cobro, que a mãe Leocádia lhes ia dando por baixo da capa, a velha e o Bispo rilhavam o pão de codesso com batatas singelas do púcaro.

   O Bispo arrelampava para eles olhinho de ougamento; a baba descia-lhe pelo queixo abaixo; mas não pedia, que o Maneto era sujeito de má colada, capaz de lhe arrancar o fígado pelas costas. Um dia que deixou cair um saco de cinza e, além da perca, pôs a casa toda num chavascal, logo este lhe berrou com um soco no ar:

   - Andas podre, ladrão!

   - Não, que eu não tenho a sua sustância. Vossemecê come do bom e do melhor, os mais vianda, e que aguentem.

   Estava no acto gente de fora e ele não pôde, como era gana sua, fazer-lhe engolir o vomitado. Limitou-se a clamar no tom colérico dum inocente:

   - Raios te pelem, cachorro!… Pois tu não comerás da mesma panela que eu?… Dize, ora dize, meu bordegueiro!…

   O João Bispo quedou a menear a cabeça, em frente. O Maneto saltou de assunto, mas desde aquele dia correu povo a sua fama de onzeneiro e ladro como o pai.

   Rosa estava mais velha, o rosto cheio de rugas e de covas, como se sobre ela já andasse a morte a picar. Sentada à teia, ou fia que fia na roca, levava horas falando alto, sozinha. Bem lhe dizia Florinda:

   - Está uma cismática, senhora mãe!

   - Estou, estou… Ocupa-te de ti e do traste do homem.

   Mais duma vez fora, pé ante pé, surpreendê-la na    lenga-lenga:

   - Um safado assim nem nas profundas do inferno. Olha quem eu fui meter em casa!… a víbora traidora. Anda… Tantos pinotes dê ele na caldeira de Pero Botelho como de pragas lhe roguei já. Safado, safadão, maneto, manetão! Tinhoso, filho de cão e loba! Dá comigo doida, mas deixa estar, perdes mais que o que ganhas. Perdes, soubesses tu! Outro galo te cantara, sendo tu melhor fazenda. Olaré!… Hás-de-te arrepender! Carrasco, que me faz comer o pão dos porcos...

Cão, tinhoso, safado, safadão! … - e não tinha fim o rosário de queixas e blasfémias.

   - Florinda - dizia-lhe a Clarinha, que já fizera as pazes com os Gaudêncios -, tua mãe acaba em Rilhafoles. Aquilo traz o juízo descomposto. Tratai-a com caridade… lembrai-vos que é vossa mãe.

   - Que quer vossemecê?! Ninguém a trata mal. O meu Luís dana-se com trabalho.

   - Pois sim, dai-lhe o desconto aos anos. Não lhe berreis; olha que por este jeito, acaba a bater com a cabeça pelas paredes. Aquele falazar é já de zorata…

   Florinda protestava que era balda da criatura e a herdara de leite, pois muitas vezes ouvira dizer que já sua avó Custódia tinha aquela pecha de andar a responsar pelos caminhos.

   - Luís! - ia-se ela para o homem - é por aí o povo cheio que derrancamos a mãe. Deixa-a comer do nosso pão…

   - Deixo comer o diabo que te leve mais a ela. Granjeou-o? Se não fosse a professora, roíamos um chavelho.

   Apesunhada que nem sob trave lagareira, a velha não proferia um queixume diante deles. Às vezes as lágrimas soltavam-se-lhe dos olhos em fio, salgando-lhe o comer, mas não davam tento nelas porque eram mansas e corriam na sombra. Desforrava-se, depois, na sua ladainha, conjurando o Céu e Inferno contra o negro do genro.

   O João Bispo, ainda menos machacaz que malhadiço, armava, de tempos a tempos, em respingão. Com a malga do caldo, a arrefecer sobre o soalho, amuava.

   - Quero-me ir embora para o Brasil! - dizia.

   - Vai. Quem te pega? - retrucava o Rola.

   - Dê-me a minha sorte…

   - Tira-a.

   Ele tirava as castanholas do borralho, se lá as tinha posto a assar, nanja o que era seu, bem seguro nas mãos do cunhado. Nem dente de cão! Se ainda tivesse alguém a apoiá-

-lo, vá, mas onde estava o fajardo que queria contratos com ele, tido e havido como demente? Para mais, temiam o Rola, que não era azêmola nenhuma, mitrado como era em letras e tretas. O João Bispo tinha de ustir, e andar para a frente.

   Por todo aquele longo Verão o Rola lidou rijo e fero. Abalando antes do sol e tornando depois do sol na trabuzana, roto, negro, descalço, parecia um salteador dos quatro caminhos. O Bispo era o caudatário e sempre alceiro, quando não, trabalhava o arrocho. Fartavam-se de lavorar. Também, quando chegou o São Miguel, tinham as arcas cheias, boa sebe de batatas no monte, e bácoro a engordar, que dele cuidava Florinda melhor que de si e do seu homem.

   O Luís Rola tinha assente o seu pé de vida. Não fumava, não bebia, não parava em feiras e romagens a menos de forte necessidade, podia arrotar. Na entrada do Inverno mercou uma vaca para aparçar com o Zé da Narcisa e lá se foi o serão, o céu da tia Rosa. Coitada, foi como se lhe arrancassem as meninas dos olhos! Ali, aldemenos, tinha com quem espairecer e muito penado anda quem não alivia vendo outros a galhofar.

   O serãozinho servia-lhe de desafogo, as cantigas de lavadoiro às mágoas. Depois o palhuço era quente, tão apetitoso como a melhor cama de lençóis. Terçã comesse seu genro, bem se importava ele de soidades! E nem repontou, era o mesmo que falar ao Rei Cru. Desde aquela hora, porém, mais macambúzia e cismática se fez.

   - Deixa-a ir para o serão da Chilandreira - dizia Florinda ao Rola.

   - Para dar à taramela? Olha que bestinha! O serão é aqui, em volta da brasa. Uma candeia de petróleo, por noite, nem tira nem põe. Mais dano nos pode fazer, deixando-a à solta.

   A velha acocorava-se ao borralho, de roca à cinta, fingindo que fiava; o João Bispo ia para a vida marota, que também ele tinha o vezo dos serões e não havia jeito de o estorvarem por dormir na loja com a bezerra. A cavalo no cepo de meia-lua, o Luís Rola ia deitando contas à vida, enquanto a mulher, sobre a gamela, lavava a loiça em estremunhenta tilintada.

   O vento lá fora bufava zuu!… deixá-lo bufar. Ouvia-se no patim o pling-pling-plão duma goteira a encher a lata dos bácoros. Era o Inverno…

   Florinda mal pegava do fuso, já o homem lhe estava às cotoveladas; partiam à deita antes de meio serão. Dali a pouco, porque o quarto ficava encostado à cozinha, a velha ouvia a cama de bancos ranger e Florinda soltar gemidos baixos. E muito acitada, de ouvido à escuta, ia pensando alto.

   - Lá estão eles! Esta minha Florinda só serve para isto… Fungar, fungues tu ainda hoje no Inferno com o Diabo a cavalo! Cabra! Grande coira! Não te emprenha o ladrão para saberes o que custam gostinhos! Chavelhudo ele seja como o Porco-sujo! Heis-de-vos fartar da pouca vergonha, cães. Perdeis mais do que ganhais… Andai andai…

   O Luís Rola berrava-lhe por detrás do taipal:

   - Que está para aí a alanzoar, mulher?

   Emudecia; recomeçava a chiadeira na cama, recomeçava ela.

   Por isto, porque era uma boca à manjedoira e uma meigengra, o Rola não a podia ver nem tragada. Em questão de comes e bebes, era um rifenho com ela. Se adiantava a mão para a prateira, antes de tempo, já ele ia com uma palmada.

   - Sape, gato!

   Se tinha fome e engolia com sofreguidão, logo o safardana a rosnar:

   - Está uma alobatada a comer. Olhe que os mais também são filhos de Deus.

   Conformando-se, acabou por trincar do que sobrava deles e só depois deles. Enchia a barriga, é verdade, sempre dispondo de viandas, mas na raiva de sofrer tais tratos, andava magra e escanzelada como uma cadela sem dono.

   O João Bispo, esse, comia por medida, pois era uma urca que nada saciava. Tropeço de broa a uma banda, batatas a outra, e de sopetear só o caldo, que a panela era graúda como o caldeirão dum regimento. Assim, não se engasgava o tangaril!

   Às horas de comer, mormente se o cunhado não estava em casa, apepinava a irmã como o tonilho que ouvira ao Pai Paulino:

 

                           Que é o almoço?

                           Cascas de tremoço.

                           Que é o jantar?

                           Beiços de alguidar.

                           Que é a ceia?

                           Morrão de candeia.

 

   De longe em longe pilhava pita morta ou tresmalhada e era uma festança. Se fosse dia em que apascentasse as vacas, tinha vagar para cozinhá-la e comê-la. Se não, enterrava-a, para desenterrar em ocasião favorável. Mas o tempo corria escorreito, sem anhos a falecer pelos currais e a peste a grassar. Ano farto de mortulho aquele em que casou Florinda e morreu a Ramalha do tio Brás! Então sim, trazia a barba nédia da regaleira! Agora, à saúde que floria sobre a terra, andava héctico, a cair mesmo de magreza.

   - Se lhe damos corda - sentenciava o Rola -, é capaz de

nos comer vivos. Aquilo não é bandulho de homem… é uma cisterna.

   Bem cantarolava o Bispo, de arreganho:

   - Vou-me casar.

   - Com a da pata rachada?

   - Vomecê verá.

   - Quem é a felizarda?

   E, após muita lembrança, de rompante declarava:

   - Com a Glorinhas, pois então!

   O Luís Rola sufocava a rir, batia palmas nas coxas, de consolado.

   - Ela quer-te lá! - dizia Florinda.

   E, porque punham em dúvida a sua palavra, contava encontros, conversas que tivera com a rapariga no meio dos pinhais. E jurava, trejurava pelas meninas dos olhos que tinham ajustado o casamento. Mortinha andava ela por isso!

   O Rola caía de cócoras, às gargalhadas:

   - Raio do homem, uma parte assim... É de a gente morrer a rir como a Maria Rita!

   No íntimo, trabalhava-o o receio de ser esbulhado da legítima paterna do Bispo. Era preciso pôr-lhe tutor.

   - Eu sei lá! - dizia para Florinda. - Isto de mulheres são todas umas esgorjadas. A melada da Glorinhas, para não ficar a ver navios, agarra-se ao que encontra.

   Florinda retrucava que tudo aquilo era trapaça do irmão, chocho de todo com a prima depois dos casamentos do Entrudo. Podia lá ser - uma moça limpa e desenxovalhada cobiçar-se dum bilontra daqueles. Era o Bispo que saíra um invencioneiro, doido varrido.

   - São todas umas cróias, - tornava o Rola. - Olha a Zefa que anda para a pregar, se já a não pregou ao marido. Bem vi no baile. Lambia-se toda diante do tio Brás. E repara tu, um homem de quarenta anos, pai de filhos… São todas as mesmas!

 

   O cepo esmiolava-se em cinzas e, no silêncio a par do doce zumbir do fuso, ouvia-se o ronrom da gata que chegara de fora e, muito amoruda, o toco do rabo a prumo, a espinha em arco, se roçava pelas pernas do Brás. Há muito tempo tinham dado graças a Deus e, pela altura da maçaroca, era ao redor de meio serão, para mais que não para menos. Por detrás da pilheira, o grilo branco de inverno findara o cantar; sentia-se o pesadume da noite, com vagar dobando-se no novelo em que Nosso Senhor enrola segundo a segundo há tantos milhentos anos.

   - Sabes, homem - disse de súbito a mulher – os arraianos carregaram a carcaça da Ramalha…

   - Raios os pelem!… Para quê?

   - Quem adivinha! Perguntados, responderam que os ossos têm muito préstimo para caldear o açúcar e drogas que um cristão mete no bucho. Só por caçoada.

   - Eu sei lá. Isto que não seja a carne da salgadeira, o pão e a batatinha, é uma grande tiborna.

   E volveu à sua cisma, escanchado para as brasas, que ora lhe apareciam em sala de baile de mafarricos, ora em eira de cachorrinhos amarelos, a morder-se, consoante a fantasia dos olhos fascinados.

   Agora o ladrão do pensamento fugia-lhe da Zefa do Alonso, tempos atrás, à Ramalha, que uma tarde de Maio, na volta da Santa Eufémia, viera topar de joelhos sobre o palhuço, a arfar, olhos muito esbugalhados em redondo, que até parecia

uma alma cristã a dizer: valei-me! Rica vaca trancosana, larga de peitos, inda que pouco airosa de testa, sem igual para criar e para bater… rica vaca!… Tinha a majedoira cheia de palha-milha, comestio que é para elas a modo de arroz doce para os homens, era como se fosse calhaus. A sua Rita veio com uma vianda de farelos e codinhas de pão; afocinhou-se-lhe a tromba dentro. Sacou a língua de fora, varreu uma venta, varreu outra e recaiu no arfadoiro. Às Trindades, ou porque a arrepiasse o uivo da sineta, ou porque a tisicasse a queixa, prantou-se a mugir, tão alto e dolorido que até parecia estar a dizer adeus ao mundo. A sua Rita fugiu dali, esbagoada em lágrimas. Vai ao depois, eram horas de se ter comido o caldo, lá porque lhe abrandasse a dor, ficou um pedação quieta e muda a lembrar-se, quem sabe, do boi Barrabil ou doutra história, das muitas, se Deus quer, que as mães vacas contam às bezerrinhas.

   Fitas em alvo, luziam-lhe muito as meninas dos olhos, mais avantajadas que de costume, e parecia à gente a mirar-se nelas que entrava por uma igreja dentro. Coitadinha, um pecador a rezar não estaria mais recolhido, Dizia o Senhor Tobias que era a entregar-se à morte; ora, sabe Deus, talvez a despicar-se com a vida, os pastos nos bons tempos de boeirinhas em roda, as palestras dumas para as outras nas feiras, e até o toiro do Manel da Forca que era um sanhudo pimpão a dar a estocada. Na alva começou a inchar e a crescerem-lhe as bugalhas dos olhos, como se estivesse com a sofreguidão de cativar quanta luz Deus mandava ao mundo. E ali rompeu ela a mugir outra vez, em voz tal que fazia chorar as pedras. A dois passos, pegada também da malina, a Formosa do Neve-Ladroa soltava roncadoiro igual; e, na calada do amanhecer, só se ouviam suas vozes lanceadas. O Lájeas de Seitosa, santanário, ainda foi à missa responsá-la ao Padre Sant’António entre o cálix e a hóstia. Bem a defumou a sua Rita nas cinco ervas, mais a pitadinha de pó do adro. Não houve nada que lhe se não fizesse. Tinha de morrer! Desatou à beira da tarde, língua fora da boca passante de palmo, mouçó mais larga que a pipa grande do Pólito, a escumar que parecia a desensaboadela duma tina de roupa. Veio o João Catrino da Seitosa, tirou a carapuça, tirou a véstia, rapou da navalha e, dando-lhe o jarrete a segurar, por ali arriba safou-lhe o coiro com a perfeição com que se despe uma camisa. Tamoeiro a este, sogas àquele, mais uns apeiros além, rendeu-lhe duas libras, e foi com os cornos que para ali andavam, um às sementes dos nabos, outro à pedra da gadanha, que salvou das dezasseis moedas que um marchante das bandas do Zonho lhe metia à cara pelo animal no mercado de Lamas. O Senhor Tobias emprestou a égua e arrastou-se o cadáver para o cabeço da Paibarba; foi um regabofe para os cães. Mas havia tanta carniça a apodrecer à flor da terra que foram os lobos que a despacharam. Muito tempo andou lá o esqueleto com seu monturo de cal. Quando o oiteiro se vestia com a Primavera, lembrava, no meio da poalha vermelha das urzes e entre as lágrimas doiradas do tojo, molhadas, grandes molhadas de lírios brancos aganados para o chão. Carregaram-na os arraianos… Assim acabou a Ramalha!

   E, novamente, o pensamento derivou para a Zefa, que esperava por ele aquela noite. Uma língua de fogo, azul como os fogaréus das campas, bafocirava do cepo; e, chiando que parecia uma gaitinha-de-foles a despejar, lambia a pelagem da Rabota, estendida em meia-lua, olhos cerrados de gozo puro, rente ao braseiro.

   - Olha o demonho da Rabota a arder! - exclamou Rita. - Sape, gata, sape!

   A gata, com a samarra cavada de manchas amarelas, pulou e, sobre o piso que se elevava da cozinha, ficou imóvel a olhar, menos surpresa da malquerença que saudosa do regalo que perdia.

   - Saiu esta tarde de casa do Javardo com uma grande ratazana - disse a mulher. - Por modos tem lá bicharia que não lhe deixa nada direito.

   - Haviam de o comer vivo! - formulou o Brás. Um alma negra aquele Joaquim Paula, Javardo da alcunha herdada do cão que o forjicou, rico como porco, héctico da poupança, que também a ele trazia pelo gasnete, o carrasco. Ao outro dia de lhe morrer a Ramalha, o machucho veio com pés de lã, todo ronceiro, oferecer-lhe uma bezerra ao ganho. Tinha abanos, puxava por eles na hora ajuizada. Comprava do bom, comprava do mau, do que se ajeita. Foi quem inçou as lojas castigadas da Serra e lhe deu a Galante, uma bichanita ruiva, que ao tempo não sofria molhelha e, de bonito, só tinha a área artola das galheiras de Jermelo. Beuh, pouco mais de ano, fossem lá com quinze libras! Um ror de lucros que tinha a embolsar o ladrão! Ladrão em tudo, até a tornar as águas, que àquela hora ele lá devia andar pelo paul, lá devia andar, para chegado o mês das recolhenças meter tanto comestio que o palhal dum ano só o gastava no outro ano.

   - Vou-me lá, que se faz tarde! - declarou, alevantando-se. - Diabos me melem se o cão do Javardo não anda por lá a tornar-me as águas.

   - Toma tento, Francisco, não saias tu na hora do   Porco-sujo…

   - Àgora! O Javardo não é homem que coma outro.

   - Nunca fiando. Depois, lembra-te que lhe trazes a vaca e ta pode tirar.

   - Tantos estoiros dê eu no Inferno como de vezes a há-de jungir. já lho escarrei em rosto… Quando quiser o dinheiro, que apareça. Vende-se um linhar… - e arremeteu para a porta,

desatinado, como de todas as vezes que naquilo botava o pensamento.

   Põe os polainos, cabo dos trabalhos! - clamou-lhe a mulher. Chegas aí que nem um pito calçudo.

   - Olha polainos!… - replicou ele, já de mão na fecheleira. - Têm o junco todo rilhado de bater. Bem precisava duns novos, bem precisava… pedem um pinto! Vão roubar ao Inferno.

   - Se aldemenos fosses de socos…

   - Pró Javardo me perceber? Olha com que menino! Sabes que mais, chega o lume e deita-te.

   E o Chico Brás abalou, cispando a porta sem arruído, muito sorrateiro, capucha traçada para o ombro, o sacho de peta de longo pé entalado no sovaco.

   Seria obra de dez horas e caía uma geada muito forte que sobradava os agros e metia pela terra dentro suas agulhas de gelo. No céu, adiante de cirros, ia de jornada uma lua bochechuda. E tão estanhada, que os barrocais luziam até muito para riba do povo, donde as águas manavam cantando, glau! glau! Os telhados que da portela cimeira do Brás desciam em alpendorada para a igreja figuravam, a cavalo sobre as lájeas puídas, nadar em leite. Nas ventanas do campanário, muito recortado pelo luar, o sino era mesmo a fralda duma moça a chegar à varanda. Mas não se distinguia o barzabu do galo, diluído na farfalha do luar, como nos dias grandes se dilui em sol o cocoricó que os galos autênticos de entre as frangas ao esgravatar nas eiras. A casa de Deus com o torreão, as pirâmides, a cruz e as duas bandeiras cravadas na terra branca do adro, era uma caravela a desarvorar. Mais para baixo, o caminho velho de Seitosa, alagado pelas águas da chuva, cintilava. À outra banda os castanhais apareciam vestidos de lençaria - lhama de oiro, negro e branco - por disfrute de feiticeiro. À esquerda, o prédio do Senhor Tobias, a cal muito fresca, até dava olhado.

   O Chico Brás desceu a calçada subtil e cauteloso, para não dar senha na venda do Zé Pólito, onde a rapaziada estava pela certa pegada ao chincalhão. Andavam as ruas desertas que o forno estava parado. Também nenhum rumor se percebia além das águas, muito brandas, a limar, e pássaros de má morte exalando seu pio para as corujeiras.

   Na encruzilhada dos caminhos, à sombra do souto que à certa confita já dava castanhas muito antes da Patuleia, o Chico Brás estacou. Havia lua para mais de duas horas, ao passo que ela ia, a danada. Mesmo assim, no céu escampo, à parte ligeiras farripas pardas, as estrelas luziam como cravos ao arrancar da forja.

   Havia festa no céu, tudo estava aceso de nascente a poente; São Tiago, se fosse a hora, ver-se-ia passar na sua estrada de mil pedrinhas de oiro, a ir ter com o Senhor. Regalada noite para os bichos bravos, estas noites brancas em que os lobos nas limpaças uivam à lua, quem sabe, se a julgar que é ovelha que vai fugindo! Comadre raposa anda de ameijoada rente às eiras, e a boga acode ao galrito, doida de todo. Quem tem ferros arma-os no toural, e é coelho certo, que eles saem dos brejos a valsar. Rica noite para os bichos, as águas e quem vai de jornada!

   Dois caminhos rompiam ali: um que cortava a Serra, povos em fora, de vila para vila, o outro direito ao paul, onde o Javardo andaria, com um zango esparvadiço, rondando por entre os amieiros e recolhos dos juncais.

   Boas sortes, a botar um feno que vinha abaixo de balofo, eram as suas. Mas, desde que se metera em andanças com a Zefa do Alonso, São Torcato em diante, que não abria ali talhadoiro, a pontos que se veria o sabugo à erva se, por uma

raridade, as escorralhas não transbordassem das lameiras vizinhas alagadas. Os mais anos, por aquele tempo, era dito e feito à beira do rego, testo sobre o rabo do sacho, a ouvir a água dando-se à erva numa taramelice de freirinha a rezar, enquanto a noite ia de rotina pelos mundos além. Quantas vezes lhe não bateu mais açodado o coração à ideia dos medos, das coisas ruins que povoavam estes gólfãos de escuro que há por detrás duma parede ou à borda dum barranco! O Santo Anjo da Guarda na boca, a mão no cabo da faca lhe valiam naquelas horas em que o Negro mai’-la choldra tinhosa andam à solta a desassossegar as almas. Também, vinha a sazão e a gadanha vergava pelo ervaçal dentro. As suas fachas derrotavam o braço. Uma só era cabonde para dar alento às vacas que fossem a tirar uma pipa do Távora para riba.

   Afoito, furtando-se à tentação da Zefa, o Brás ia seu caminho, em direitura aos almargeais. O cemitério ficava-lhe à esquerda, e ele, sem olhar para lá, com que não acreditasse em almas do outro mundo, benzeu-se e rezou um padre-nosso pelo descanso dos fiéis defuntos, e outro pelo de seu pai, que morreu a comer o caldo, com noventa anos feros. Os longes esfarelavam-se num luaceiro grisalho, como de moinha ao vento; mas, a todo o largo da mirada, a terra descobria-se com os mouchões das leiras a reluzir prateados ao luar e os regos coalhados de tinta negra. Nas leiras onduladas de morro para morro, o centeal dormia debaixo do codo, a meio as pedras intonsas e impressionantes como cabeças mortas saindo debaixo dum lençol. As giestas projectavam uma sombra muito escura, o que o levou a notar que a sombra que O seu vulto também projectava era tão retinta e desengonçada como se levasse um fantasma à mão direita. Não se enxergava vivalma nem de homem, nem de bicho, nem de ser nado que fosse. Mas, pela lua que caminhava sempre, o sete-estrelo muito rútilo, a rija imobilidade da planície, sentia-se a terra presa a amarras que não quebram nem se rendem.

   Leva que leva, chegou ao teso donde a vista alcançava a folha toda, passante o Paiva. Grosso das enchentes, o rio descia surdo das alturas de Peravelha para estoirar de rópia nos três arcos da ponte nova, assim chamada desde há trezentos anos quando a construíram para vau dos romeiros que se dirigiam da Terra Fria à Senhora da Lapa, depois que uma cheia arrastou a ponte de tábuas com uns infelizes que voltavam do santuário. Era o seu sussurro como o da mata a zoar com a ventania, e tão invariável que os ouvidos se esqueciam de ouvi-lo. Pelo corgo de Aris, atufado no solo amarujento, a água mal vinha chocalhando. Céu aberto, campina silenciosa, só um cão para as cortinhas da Granja maticava.

   Trupe, trupe, o Brás espraiava a vista; branqueavam as encostas centeeiras e por elas fora os penedos, encastoados pelo luar, pareciam grandes boladas a monte. As paredes punham no chão uma sombra com seus buracos e recortes que, em perfeição, nem as rendas no altar de Santa Quitéria, padroeira da freguesia. Erguidos por detrás delas, os escarapeteiros faiscavam como castiçais; um pinhal novo aparentava mais obra de talha que tribuna de igreja, daquelas que se fabricaram em bons tempos, quando os obreiros se contentavam em ganhar um alqueire de pão ao fim do mês… e ter garantida a salvação no outro mundo. Trechos havia que lembravam mesmo templos ao depois de dizer missa. Com tanto logro para os olhos, a noite não metia sustos a ninguém, nem a pecadores, como o Brás, carregado de pecados, estes que rompem a buzinar do Inferno pelas azinhagas e caminhos tenebrosos.

   Descendo para o corgo, o Brás chegou à borda dos amieiros e dos salgueiros, que em procissão rompiam dentre charcos espelhentos de água, a enastrar nos quais pedaços de regato traziam à lembrança peças de linho no coradoiro. Marcada por um carvalho revelho, lá estava a regada que comprara por boas trinta moedas ao Pata-Larga, que Deus haja. Mas olha, não apresentava aquela cara estanhada das mais, antes o tom verdete da erva quando a água lima pelas geadas. Se aquela assim andava de molho, mesmo à beirinha do Javardo, não havia que arrecear pela outra. Aquilo o ladrão ficara entre as mantas, com medo de arreganhar. Nem valia a pena ir atolar os sapatos... e, arrepiando caminho, a imagem da Zefa volveu outra vez a tentá-lo.

   Era a hora em que na quentura dos serões os farsolas emorrinham no regaço das namoradas. Mais duma vez a Zefa teria erguido os olhos à candeia, suspensa ao alto por um ourelo, a calcular pelo morrão em que altura iria a medida de creosende.

   Mas não tugia, que a magana mais asseada na maroteira não alumiava a rosa do sol. Naquelas noites de encontro, seroava como sempre, e, ao romper da manhã, mal o padre tangia o sino, a tamanquinha dela era a primeira a acordar as ruas adormecidas. Assim fosse esperta a não conceber como era a encobrir! Mulher de perdição, ao pé, a sua patroa era uma cavaca, uma perfeita carga de ossos com a pele a arregoar sobre as jogas, sempre de espinhela caída e a gemer-se do soventre depois que sofrera o desmancho. Louvores a Deus, os dois moleques eram rijos e tesos, pouco herdados do lençol de baixo. Mas Deus desse muitos anos e bons à sua Rita que nem pelo mundo todo topava melhor governadeira de casa! Fêmea aquela Zefa, nutrida, limpa e perluxosa que nem moça de padre-cura. O dianho era se alcançava... E logo a que raça pertencia, os Narcisos, que tinham alma excomungada, e não se benziam duas vezes para esfaquear um santo! Ambos os Irmãos eram farsolas de respeito, nanja o homem que andava pelo Rio ao trapo, mole, derrancado da cachaça, que por modos bebia como cale de moinho bebe água. O melhor era pôr termo à extravagância, mandar a Zefa à tabua…

   Já longe do corgo, a assomar entre duas chãs, o caminho da Seitosa, recto e plaino, muito puído das bestas e dos carros, convidava-o. E outra vez estacou indeciso: vou? Não vou?

   À mão direita ficava o lugar, com os filhos a dormir o sono dos justos e a sua Rita, deitada em cão de espingarda, as costas em aduela num torpor de enfermo, fungando como realejo velho pela boca sem dentes; pràs bandas de poente, embaciadas do luar, estava a Zefa, com braços que se enroscavam como serpentes, e o peito a tremer que nem a torre de Santo Antão quando dobram os sinos.

   A lua tinha ainda uma boa corda de encarrar para descer, mas caminha e não caminha, espia e não espia, quando batesse à porta da Zefa, aquela meia légua andada, todos os gatos seriam pardos. E, resoluto, cortou de espora fita pelo pousio, direito ao caminho velho da Seitosa.

   Trupe, trupe, ao ruído compassado da marcha, a consciência martelava-lhe: se a zoina concebe? Medroso e de sangue revolto, pegou a rezar ao Padre Sant’António que afastasse tal peste, e com fervor ali lhe prometeu uma missa em seu altar se, quando o Alonso voltasse, a topasse enxuta como a deixara. E, confiante em tão poderoso advogado, e ainda porque esta casta de mulheres, boas para a pouca vergonha, não geram, foi escudando o seu remorso de homem limpo, pai de filhos, com o exemplo alheio: o Rabecas de Lamosa, que se deitara à cunhada, e o padre Noquinhas que pusera um cuquinho na cama dum embarcadiço.

   Andando, andando, à Cruz do Caetano, onde o Zé Pólito assassinou o Pata-Larga, vieram-lhe novos engulhos de

timorato. A cruzinha, de pau a esborolar e a destingir por sóis e por chuvas, espetada de riba do penedal num buraco aberto a cinzel, parecia com os braços virados para ele tolher-lhe o caminho. Ou então era a representação do Pata-Larga, ali estendido de papo para o ar durante um dia e um noite num alagoeiro de sangue, atulhado de formigas e de varejas, com a metola amolgada como a tampa dum baú de folha, que o assombrava. E, anojado com tão ruim lembrança, o Brás foi encomendando o defunto a santos e santas da corte celestial, porque, ainda que borrachão e mal-educado, não roubava, nem fazia mal a uma mosca, e era cidadão o pagar.

   Coitado, lá estava a contas com o justo juiz, enquanto o Pólito continuava na Terra a passar a veniaga. Também lhe saíra caro, a junta das vacas, o melhor linhar, e a trutaria e a caça ferveram para a vila, que não houve tratante da justiça que não untasse a barbela. Dali, daquele poceirão de lama, ajudara numa manta de farrapos a deitá-lo para o carro, já estrume, a feder a mortulho, mal as autoridades da vila, a tapar o nariz com lenços de cheiro, lhe vieram soprar ao rabo para dizer: está bem morto! Paz à sua alma, padre-nosso e ave-maria…

   O calafrio demorou-lhe nos nervos até assomar à encosta de que se enxergava Seitosa. Aí, o pensamento desviou-se-lhe de todo para a Zefa, o ranger da porta cautelosa, e a mão dela que o arrepanhava para dentro como fateixa de loba. Debaixo dos sapatos brochados, o chão penetrado pelas agulhas do codo estreloiçava. Ouviam-se ladrar os rafeiros para as eiras, alevantando um eco muito fino no céu estanhado. O sete-estrelo estava alto; luziam as Três Marias por entre alvas nuvens. A lua lá ia de cambulhada com os cirros, veleira como folha num rio a monte. Deviam estar a despedir dos serões. Mas a terra, em contra das sombras negras do mato, debaixo do estendal branco da geada, parecia ainda uma laja de malhar. Um homem punha vulto que se descobria à légua.

   Acercando-se do povo com mais vagar, o Brás em breve enxergou na luz mortiça o casario adormecido. E, para fugir aos trilhos costumados, pôs-se a fazer um grande rodeio, metendo pelas hortas em que as couves tronchas se desorelhavam de fartas. Vestidas de codo assemelhavam, à claridade do luar que esmorecia, touceiras de açucenas em flor. Sentindo-as balofas de seiva, o Brás deitava olhos namorados de lavrador àqueles campos férteis, tão mimosos, que eram cobertos de oiro ao necessitado que os vendia.

   Salvando paredes e valados, ora de ímpeto, ora com a tineira subtil dum larápio, o Brás chegou à quintã do Alonso. Um cão arremeteu grasnento da viela; atirou-lhe um naco de broa e bateu à porta. Mão nervosa veio de dentro filá-lo.

   - Ai Brás - exclamou Zefa -, estou grávida!

 

   Para fugir às perrarias do genro, muita gente aconselhou a velha a ir viver em Lamosa com o filho António. Baldada empresa: nem rogos nem ralhos houveram jeito de a fazer despegar daquela casa. Ali fora nada, ali queria que lhe fechassem as pálpebras ao dar o último suspiro. Lá tinham atado os queixos e armado o celário a seu pai que Deus haja; ali sofrera as alegrias e as dores de cinco partos, três meninos e duas meninas, uma que mal viu a luz do dia e foi a que teve mais sorte, porque voou ao direito para o céu onde estava entre os mais anjinhos a rogar por ela ao Senhor. Arrancarem-na dali, só para o cemitério. Um rifenho dava ordens nela, é certo, mas não deixava de ser a sua toca com as quatro paredes e os quatro trastes, a que tinha o amor que se cativa das coisas que vêem à criatura levar pela vida fora a cruz do calvário.

   O António era um paz de alma, carregado de crianças, negrinho de trabalhos e de penas, que a mulher dera em bebedona; não era ele que negava à triste da mãe velha uma tijela de caldo, se lhe batesse à porta; ela, porém, queria acabar na sua casinha, dizer dali adeus ao mundo. Não teimassem!

     Escouceada ora e logo, buscava a amizade do Bispo, com o qual fora sempre escassa de carinhos. O seu regalo era mandarem-na com ele para sachas e mondas, deixarem-nos o dia inteiro sós a sós. Já em casa, toda ela era sete falinhas doces para o sapo-concho: "Joãozinho, não bebas do cântaro; água fria sarna cria; Joãozinho, não saias por um escuro destes, que te podem dar uma calhoada." Joãozinho para aqui, Joãozinho para ali, passava as marcas; o Maneto pôs-se de pé atrás, desconfiado. Quando Deus quer, alguma tramavam contra ele.

   Um dia abalou de peito feito a ter com o Bispo, que guardava as vacas na regada. De princípio interrogou-o à boa maneira sobre aquela maridança; depois, ergueu a voz, ameaçou. Duma forma ou doutra, não houve meio de lhe arrancar uma palavrinha. O bruto era cispado como um caixa nova. Estava a mangar, mas espera… uma perna por detrás, uma cotovelada na boca do estômago, afocinhou com ele no chão. Depois saltando-lhe com um joelho sobre os bofes, premindo pouco a pouco, pô-lo a perguntas. Qual, o cainho, enfechelados os dentes, arquejava sim, falar nem bus. Enraivecido, o Rola espremeu, soqueou, tornou a soquear, já lhe doíam os punhos de bater pela cara, pela peitaça, já botava o lambão língua de palmo, foi o mesmo que malhar em centeio verde. E teve de o largar, pois o brutamontes era mais capaz de render a alma ao Diabo que dizer da gorra em que andava envolvido. E, desde aquele passo, o Rola mais suspeitoso ficou que alguma estrangeirinha lhe armavam.

   Passaram-se tempos e, uma manhã, o Rola muniu-se de podoas, machadinha de mato, e disse à mulher que lhe trouxesse uma bola, salpicão, presunto ou qualquer outro conduto e lhe enchesse a ancoreta de vinho. Prestes o farnel, disse para o cunhado:

   - Carrega, rapaz.

   - Para onde ides, cabo dos trabalhos? - perguntou Florinda.

   - Vamos alimpar o pinhal novo da Santa Luzia.

   E assim foi. Esgalharam, podaram, clarearam na mata, até que, à altura de os gados saírem ao monte, abriram o surrão e puseram-se de trincadeira. Tinham-se sentado à beira do pinhal e batia-lhes de chapa o sol abençoado, que não há maior gozo que o soalheiro de inverno. O Rola trinchou metade do salpicão, fez o mesmo à broa, e deu ao cunhado parte igual. Os olhos do pegamaço esbugalharam-se de espanto: podia lá ser!

   Mas o Rola repetia muito liberal e amigalheiro:

   - Pega, homem, pega!

   O Bispo estendeu a mão, ainda receoso, não tivesse a petisqueira sénica; receoso, deu a primeira dentada; mas o outro manducava-lhe de boa gana, e ele pôs os dentes em função, que era como deitar uma mó a andar. O Rola, de muito boa lua, falava-lhe em coisas e loisas, ele moquia. Voraz e com desconfiança, breve ingeriu tudo e ia a limpar a barbela ao canhão da véstia quando o Maneto lhe ofereceu ainda do seu quinhão:

   - Come, não trago apetite.

   Depois passou-lhe o vinho e, a cada golada, mais lhe dizia o Rola:

   - Afinfa-lhe, que o mereces; afinfa-lhe…

   Comeu-lhe bem, bebeu-lhe melhor, tudo regadinho dum sol que valia mais ser João Bispo na terra que João Bispo no céu. Que não faria ele? Não daria a mão esquerda com seus cinco lapuzes à maneta do cunhado, a legítima ao cobiçoso, os penduricalhos a um velho? Pois escarrou para ali tudo o que tinha no peito de malhoada com a mãe. Tudo. O que o Rola não tinha podido saber, tocando-lhe pandeiro nas costas,   pescara-o ali com isca lambareira, a brincar.

   A sogra queria lográ-lo, a grandessíssima bruxa! A mira dela era que o Bispo casasse com a Glorinhas, fazendo-lhe sorte boa, contando que os manos da desposada, tidos e havidos por pimpões, enxotassem o Rola de casa para fora. Má mula!

   - Mas sabe vomecê, a rapariga não quer…

   - Não?

   - Nem a fogo.

   - Mas disseste-me que andava mortinha por se casar contigo…

   O João Bispo escancarava a boca até às orelhas numa gargalhada:

   - Eram alavelas minhas. A mãe palpou-a bem palpada, euh, mais lhe rendera o pedir para as almas. Pois, além de pagar a bula da dispensa, até um cordão de oiro e contas, como nenhuma moça bota na terra, lhe prometeu…

   - Cordão de oiro? Ela não tem…

   - Disse que comprava.

   O Rola quedou pensativo por muito tempo. Satisfeito de ser o nó daquela meada, borracho com os tragos que bebera, o Bispo pisava e repisava toda a conjura da velha. E ia soltando, de permeio, grandes surriadas, todo ancho do seu papel.

   O Rola ergueu-se, afinal, e pôs-se à limpa. Ele ficou jazendo de papo para o ar, a lamber os beiços, regaladinho do sol, o sol amigo que punha os lagartos em soneira à boca dos boiões e entontecia o passaredo – uma carriça ali ao pé, farfalhuda e lépida, parecia de luto a arruçar viuvinha em busca de chichisbéu, uma cotovia trepava, trepava para as nuvens a visitar Nosso Senhor, duas alvéolas, além sobre uma lájea, abanavam o leque de suas caudas com tais denguices e cochilos que só meninas loucas entretidas de amorios loucos. Mas o Rola, correndo para ele, disparou-lhe um grande pontapé à morca:

   - Arriba, broeiro!

   E com mais duas murraças pô-lo esperto, tirou-lhe as minhocas dos olhos escandilados.

   - Eu que te dizia! - clamava ele para a mulher nessa

mesma tarde, depois de lhe expor a traça toda. - Tua mãe saiu-me mais maloia do que o que eu pensava.

   Florinda voltou a falar no oiro, enterrado, oiro com que a velha poderia comprar quantos bons cordões quisesse para peita de nora. Mas ele abanava a cabeça, descrente. Guardasse ela, alguma vez, libras amochiladas, que já as tinha posto com dono; escusava de vender a regada, para custear o inventário, e o linhar para recolher a letra; não teria comido do pão que o diabo amassa, nem andado rota e esfaimada a lazarar pelos invernos. Florinda estendia a beiçola em goteira, nas dúvidas que a puxavam, ora a favor, ora contra juízo tão temerário. O Luís Rola, pelo sim pelo não, foi-se postando de atalaia.

   Ia o Janeiro fora, estava o tempo escorrido, se bem que a terra andasse alagada de água com o Inverno muito chuviscoso que trouxera à serra bandos de gansos e patos bravos, para olhos de velhos imagens nunca vistas. O Rola remeteu o Bispo com as vacas, a sogra a sachar uma courela, e ele quedou em casa a compor uma rabiça. Serrou, aplainou, mas o pau era zambro e carrasqueiro e não levou muito tempo a desesperar-se e a parti-lo em troços para o lume.

   - Dá cá uma côdea - disse para a mulher. - Vou ajudar a tua mãe a mondar a barreira.

   E despediu pelos quintais abaixo, descalço, sem chapéu, os olhos, para a direita e para a esquerda, a inventariar o que havia pelas fazendas suas e dos outros. Ano abundante de chuva, os nabais, não podendo digerir a muita água, estavam derrancados com a potra. Os codos, também, tinham crestado as hortas, mas, vá que escape, os centeios lá iam pulando menos maus. Nos lenteiros, fartos de beber, a erva torcia de sofrega, podia cantar a seitoira. Bons princípios para os fenos, se o Abril viesse molhado como prometia o Borda d’Água. Era preciso ir acondicionando a moreia, que a terra ensopada tem duas vezes fome e não há esterco que a farte. E o Luís Rola calculava as carradas que seria mister.

   Desertor da gleba por pancada do pai, a gleba, em que sete gerações dos seus tinham tetado e feito vida, volvera a recuperá-lo. Rendido deveras, votava-lhe serodiamente o amor animal, sem tagatés, que votava a Florinda, e o amor suspicaz que se tem pela amante, de incerta fidelidade. Os migalhos eram-lhe mais estremecidos que os próprios membros do corpo, avezados a romper à chuva, ao sol, e à nevasca, na fé de que o carnagão aguenta, dando o que tem a dar. Para os bens todos os cuidados eram poucos; cuidados e desconfianças, pois que uma coisa traz a outra. Dizia-lhe o instinto que o homem é o escravo da terra, nanja o senhor. Daí o temer o azar nas colheitas, mais que os andaços, e pôr em tudo um olho previdente de macacão. Dos vinte centos de mil réis que queimara ao sovina do pai, ficara-lhe a arte: saber velar; e de correr trancos e barrancos - uma regra de boa experiência: ser desconfiado.

   Conforme tinha por balda ao descer os quintais, o Rola ia feitoriando como um louvado de el-rei. E, se larva mais remota lhe escorregava no entendimento, não era o latim dos padres, antes a legítima paterna na hora abençoada em que esticasse o pernil o velhorro duma figa. Malo-haja, o corujo era churro e relho, destes que com o toque de agonia das campainhas da garganta dão um pontapé à morte e prantam-se a viver outra vida. Oh! quando soaria a hora em que o Manuel Safadinho lhe fizesse a cama atrás das casas, entre os pinheiros, comprida de dois côvados e pico, funda de duas varas, para dormir uma vez por todas a sua madorna! E o Rola entrevia a meia manhã cheia de torpor, doce torpor aldeão em dia de finado, bem embora chiem os carros e ladrem os cães, em que duas filas de povo cantariam o beato ao rabo do velho.

   Quando chegou ao pinhal, que fazia cabeceira à courela, pareceu-lhe perceber vozes. E, de orelha guicha, cauteloso, acercou-se. Não se descobria vivalma além da sogra, que lá andava na sacha, não te rales. As vozes, porém, continuavam e, de súbito, reconheceu que era ela que falava alto.

   Que diabo estaria a feiticeira a rezar?! E de rastos como uma cobra, cabeça erguida a procurar a linha defesa dos pinheiros, aqui me alapo, além pulo, ora de gatinhas ora às arrecuas, foi postar-se na ourela mesmo da mata, por detrás duns codeços.

   A velha dava uma cavadela, e estarrecia encostada ao cabo do sacho, a cismar. Cismava um repente, murmurinhava e, em voz mais alta, punha-se a questionar como se outrem ali andasse à mão. Corda gasta, enterrava duas vezes a ferra no trolho e, novamente, se esquecia de olhos em alvo, malucando primeiro, alanzoando depois. Nem um entremez! Pareciam duas criaturas a bater língua uma com a outra.

   Corria um vento maneirinho e as vozes chegavam esfarrapadas, quando chegavam. Lembrou-se então do que os garotos fazem nas cidades para se certificar da vinda das diligências, e colou o ouvido contra a terra. E, se não toda a lenga-a-lenga, foi colhendo o que pôde.

   «- Quarenta, são quarenta, afora os pintos… amarelinhas como o sol. Até regala os ouvidos ouvi-las tilintar… - Lá estão, deixá-las estar. Ali não lhes chega a unha do Maneto.-Olha, quisesse a Glorinhas… - Eh, bem teimaste tu com ela, mas uma delambida, só lhe servem fidalgos… - Muita fominha passei, Pai da vida, muitos trabalhos, mas lá estão todas. - São bem quarenta, tirante os pintos, não? - São; e que caras elas têm! Hom! umas bochechas, uma gaforina, por cruzes uma jarra a dizer que matam a sede! - Aquilo chama-se oiro de nação… até parece que estão a arder. - São quarenta hem? - Quarenta, sim. - Muito tuas, que Deus já perdoou, aos padre-

-nossos que rezaste pelo homem. As outras eram da casa, não tens contas a dar. - Pois não tenho, não senhora.           - Trocá-las, isso trocas tu? - Fosse meu genro outro traste! - É um cão, um tinhoso, antes deitá-las a um poço… - Antes deitá-las a um poço, dizes bem. - Piranga, malvado, um estoiro dê eu no meio do Inferno se lhe prantar a vista derriba! - São quarenta, hem? - Sim, quarenta, amarelinhas como o sol… delambida… Maneto, Manetão… bem arrecadadas…»

   Dali por diante, o Luís Rola só ouviu palavras truncadas. O trolho, à medida que a velha ia sachando, afastava-a. Com o coração aos saltos e mais cautela que nunca, pôs-se a fazer marcha atrás. E, trôpego de júbilo, com rodas amarelas, fugitivas como os fogaréus da canícula, a dançar diante dos olhos, foi dar uma grande volta para aparecer à sogra ao largo, pela frente descoberta.

   Toda aquela santíssima noite levou a malucar: onde terá a excomungada da velha o dinheiro? E, em imaginação, foi fazendo romaria pelos andanhos da casa, os mais escusos e defesos, de que ela acertasse fazer escondedoiro. A casa tinha muita talisga, muito alçapão, mas cheio de brenhas era Montemuro e mais dava-se-lhe volta. Deixassem-no fusgar, bater tudo bem batido e, a menos que o Demo ali metesse pata, oh, o dinheiro soaria. Era questão de jeito e lúzio afinado. Se tanto requeresse, punha-se a choupana debaixo para cima, que quarenta peças, libras que fossem, não andavam aos tropeções de qualquer filho da mãe. Mas que raio de mulher! Uma mocanquice assim! Iii! Era para a gente se esfoirar a rir, nanja por escárnio, livre-nos Deus. Verdade verdadinha, só uma pancrácia, testuda como asno de moleiro, seria capaz de ter aquela riqueza sonegada, andando, ao mesmo tempo, a estalar de larica e a vender ao desbarato os bons migalhos. Com que fim? Só se fosse para lha atarem ao rabo, quando a levasse Belzebu. Ora, mas bem haja ela. Não fosse sotranqueira e nunca na porca da vida lhe cairia no papo semelhante queijada. Bifara-a? Abençoadas fossem as suas mãos, pois lhe traziam um folar que nem a madrinha mais esmoler.

   E o Rola não pregou olho a deitar balanço à vidinha, trazendo à baila a chelpa que caía dos céus aos trambulhões, a dispor, a tinir as rodelas de oiro tão maganas.        Arre-cristo, se calhassem ser aquelas moedas que se trazem ao pendurão das correntes, por fantasia, era um biscato de arregalar! E talvez. Elas ainda corriam no tempo do Gaudêncio velho, ao que contavam os antigos. Ah, Senhora da Boa Fortuna! E reloucava de felícia, com as unhas atascadas de oiro até o sabugo, besuntadas de luz, os dedos a escorrerem amarelo, como de azeiteiro.

   Cantaram os galos duas vezes, a mulher passou do primeiro para o segundo sono, sem rumor, como quem atravessa umas alpodras a pés nus. Forte broma, viesse o tranglomango e gozar-se-ia dela sem a acordar! Quanto a ele não havia modo de adormecer. Zoava-lhe a cabeça como os açudes quando sentem temporal, e ferviam-lhe os pés que nem mordidos por lacraus.

E a noite calma de inverno corria ralaça e mole como uma ovelha perdida pelos montes.

   Mal luziu o buraco, o Rola saltou abaixo da cama, com grande banzé para acordar a casa.

   A velha, que tinha o dormir esperto, deu logo sinal de si; o João Bispo, mais pegamaço e enfadado da roçadoira, nem tugiu.

   - Arriba, cagaçal! - gritava-lhe o Rola, dando grandes patadas no soalho: - Tum, tum, tum!

   O Bispo moita.

   - Ó cão, não estarás farto de dormir? Tum, tum, tum!

   - Ham! - rosnou ele, por fim.

   - Levanta-te…

   - Levanto-me?!…

   - Senão deixa-te estar, eu já lá vou com um vergueiro.

   O Rola acabou de enfiar as calças, e botando a véstia pelos ombros, saiu ao patim. Ainda luziam estrelas, mas pelos bulcões negros que corriam nas limpaças alvacentas do céu, era certo estar a romper a aurora. O tempo mostrava-se enxuto se o vento fino que soprava da serra, de cortar coiro e cabelo, não andasse por lá a arrebanhar chuva. Deus a levasse para termo em que não fizesse dano. Agora o que se precisava era tempo seco para poder sachar as terras e cortar os estrumes que apodreciam nas coutadas. Ainda mais naquele dia que fazia tenção de impontar a velha e o Bispo de modo a não lhe servirem de estorvo na devassa a cometer. E o foleiro do Bispo sem espertar. Raios o pelissem!

   O Rola desceu a escaleira quatro a quatro e correu à loja.

   Ora, o safado dormia a sono solto como um baronês. Trás, trás, cachaçada aqui, pontapé para acolá, o burranca   ergueu-se tresnoitado a berrar:

   - Ai! minha mãezinha do céu! Ai! Ai!

   - Orneia!… orneia para aí. Não estou farto de te chamar?!

   - Ai, minha mãezinha do céu que me arrombou as costelas! Ai! Ai!

   Trincaram uma côdea com um rabo de sardinha corchada, e o Rola disse-lhes:

   - Vá, toca a andar! Tu, João, vais-me para os tojos da Concelha; vossemecê, mulher, vai acabar de sachar a leira. Vida, que se faz tarde!

   E foi-se para a banda de fora do patim vê-los ir. A velha rosnava; deixa… mais havia de rosnar quando desse pela falta da malagueta! Rabanadas sujas de cacimba cavalavam no céu esbranquiçado. À porta da capela, o pano da bandeira trapejava rijo com o vento marão. Morte mate! o dia ia estar coberto, se não deitasse molha valente!

   Mal os dois acabaram de chanquelhar, cada um à sua derrotina, o Rola entrou dentro, açodado:

   - Florinda, traz cá o candil.

   E, alumiado por ela, correu à cozinha a erguer uma loisa em que punha todo o palpite, e era o prolongamento da pedra lar, enorme, labrosca, que dera que fazer a uma malhada de homens. Bem a empinou ele, mas de dinheiro nem rasto! Estava lá um grilo branco, o grilo que pelos serões de brasa a esmorecer ia lançando no silêncio do seu lascarinho gri-gri. O Rola esborrachou-o com o calcanhar:

   - Pega! É para que não sejas siseiro!

   Dali espulgou a cozinha toda, buraco por buraco. Subiu ao caniço, mexeu, remexeu. Veio de lá mais negro de fuligem e sujidade que Lúcifer do Inferno. A melgueira não parava por aqueles lados. Talvez no cubículo da velha… E passando-se para lá, buscou, rebuscou melhor que o mais fino cão do monte. Meteu o nariz em todas as fendas, buliu o soalho tábua por tábua, virou a ruma das batatas, pôs-lhe a enxerga em mondongos. Dinheiro viste-lo? Nem eu!

   Descoroçoado, veio prantar-se de pé no meio da casa, ora rolando a beiça com o mata-piolho, ora lançando a vista em redondo, trombas no ar.

   - Dize cá, Florinda - proferiu ele, depois de ter botado os seus cálculos -, se hoje larapiasses dinheiro, que é um supor, e tivesses de o esconder, onde é que o metias?

   - Sei lá! - respondeu a mulher, galhofeira. Num buraco.

   - Mas ouve, cabeça de arolo, há esconder e esconder. Esconder coisa de que ninguém deu fé e de que ninguém anda à coca, é um cantar; esconder coisa que deu nas vistas e que escape ao lúzio do mais pintado, é outro cantar. Estás percebendo?

   - Ham?

   - Ham, zurram os burros.

   - Entendo-te lá, homem!

   - Se suspeitasses que vinham a descobrir a ariosca, onde o metias?

   - O dinheiro?

   - Sim, pois que havia de ser…?!

   - Ora, debaixo da terra, para um cabeço onde nem olharapo nem Santa Maria o sonhassem.

   - Metia-lo uma nisga; metia-lo mas era em casa.

   - Se adregasse…

   - Metias, que to digo eu. Onde está o ladrão está o roubo.

   Calaram-se. O olhar de Luís fuzilava aceso e raivoso que nem gato bravo.

   - Tua mãe é perra fina… matuta velha… amochilou o dinheiro bem amochilado.

   - Pudera! meu irmão Jaime fartou-se de lhe espevitar os ouvidos. Eu não te contei?

   Dali a pedaço o Rola abanava a cabeça:

   - Temos que cardar. Apostava dobrado contra singelo em como o dinheiro se encontra de portas adentro. Mas onde? Puh… muito responsado ele anda!

   - Se calhar, está-nos por aí a ouvir em qualquer lorga da parede. Minha mãe não é mulher para magicar por aí além…

   - Deus o queira, senão estamos roubados!

   O Luís Rola volveu às pesquisas, começando pela casa

fora. A eito, como quem passa as contas de um rosário, foi escrutando as raladas da parede, tenteando-as com o furabolos ou com um pauzinho, devassando-as com a vista até achar fundo. Dali passou ao sobrado, e não restou vão sobre caibro ou dormente que não palpasse. Os trastes, as arcas da roupa e das ceveiras, o tear, o velho baú pelado do Libânio, tudo esquadrinhou, sacudindo, desenculatrando, esfandegando. De oiro, nem o soído.

   No quarto, onde tinham a cama e que fora, antes deles, a alcova da velha, não foi melhor sucedido. Pois não deixou passar em falso o mais pequeno escaminho onde acoitar-se pudesse, não se diga já uma bolsa, mas coisa da grandura dum bugalho. Mula velha!

   Restava-lhe o patim a mexer com a parte da parede que lhe ficava adjunta, em volta do buraco do gato e do esconderijo da chave, sobre a torça. Ainda que lhe não palpitasse, era nos limites, e a escorrer dos poros como um sudário, sob o molinheiro que caía fino e frio, lá foi à rebusca. Mais lhe valera estar quedo; com o suor por dentro e molha por fora, veio dali pingado, a bater os tremeliques.

   Não havia dúvida, estava roubado! A velha escolhera abafadoiro seguro, com o fito de lograr o ardil do mais velhaco. Para o mal dera-lhe o Demónio arte. Foeira a partisse!

   - E na loja? - alvitrou Florinda.

   - Não me cheira. - respondeu ele, torcendo o nariz. E todavia, para lá se foram pelo sim e pelo não e por escrúpulo, para nunca, por nunca, terem a pungi-los o remorso dum descuido.

   Moeram, sondaram, viraram o estábulo do avesso, até que, desiludido e danado, o Rola resmungou:

   - Ná, aqui com tanta gente a entrar e a sair, não o assolapava ela. O dinheiro está lá em riba.

   Com gana redobrada, volveu à casa, e esmiuçou, trabucou, explorou todos os recessos em que só por milagre se podia ocultar um argalhinho duvidoso. São Policarpo levasse a caipira, era o mesmo que andar aos peixes com um podão!

Embora, negro, derreado, sem comer, o Rola não despedia. Bacorejava-lhe lá dentro que, dum minuto para outro, o dinheiro se pusesse tim-tim-tim, como o Demo a rir dos parvos. E foi a rapar nas caçoilas velhas, desasadas, que a sogra, entrando muito sorrateira, de socos na mão, os veio bispar. Tinham esquecido tudo e, quando ao voltar costas, deram com ela no traço da cozinha, muda e de olhos esbugalhados para a mascambilha, caiu-lhes a alma aos pés.

   Florinda fez-se mais vermelha do que o saiote; se lhe chapassem na cara massa de bola, massa ruda, cozia-se, ao fogo que a abrasava.

   Mas o Rola breve achou rasgo para dizer:

   - Então já acabou de sachar a barreira? Ainda agora saiu…

   Por entre dentes, a velha murmurou que devia ser passante do meio-dia.

   - Qual meio-dia! Ainda agora o sino tocou para a aula. Não?! Iam agora mesmo os estudantes a baldroar pelo caminho…

   - Olha que os estudantes já entraram; já sairam; já tornaram a entrar. É tarde! - rectificou Florinda na manha de dissipar suspeitas de sua mãe dando-lhe razão contra o Luís.

   - Homens essa! A manhãzinha passou como uma galga - proferiu ele com fingido desenfado.

   - A vida é um rio a monte - tornou Florinda.

   O Rola sacudiu as mãos e apontou o chiqueiro à sogra:

   - Vem em boa hora. Varra aí essa cozinha, que está pior

que o forno. Andei a limpar o caniço, que, se lhe pegasse uma fona, a casa voava pelos ares.

   A velha assim fez, mas bem se tirava pelos jeitos as ruins suspeitas que lhe iam na cachola.

   - Tate! - segredou o Rola para a mulher – a grande coruja desconfiou.

   A mãe varria que varria e Florinda lembrou-se de ir espreitá-la por uma greta do taipal. Dobrada sobre a vassoira de giesta, o beiço de baixo pregado com os dentes de riba, dava à cabeça como besta em que ferra mosca. Não cessava de varrer, mas menos cessavam as cabeçadas. Florinda, de dedo nos lábios, acenou ao homem.

   - Eu que te disse! - murmurou ele depois de esgrelhar pela talisca. - Aventou-nos a alhada. Vigia-a tu; não lhe tires um momento a vista do lombo. Eu vou-me para os tojos.

   - E comer?

   - Não tenho apetite. Faze o caldo e comei-o.

   E despediu, cozido de raiva.

 

   O Chico Brás não tornou a cuquear com a Zefinha do Alonso. Repeso e assustadiço, nutrindo a esperança de que os rebates da gravidez podiam ser flato ou endrómina passageira, e mesmo que Nosso Senhor, amerceando-se com a quebra de mancebia, fosse servido de sustar tão grave dano para os dois. E, todo pronóstico, cuidou de pôr os santos da sua banda, rezando-lhes, depois de ceia, uma boa enfiada de padre-nossos e não se esquecendo de ajudar todas as manhãs à missa do padre Zé. Aí estava este, que era um rascoeiro de gema, sem olhar a donzela, viúva ou casada, que para riba dos setenta andava rijo como um pêro, mimoso da divina graça. Ora, o corpo o pede… Deus consente.

   O Neve-Ladroa, que fora moço de padeiro no Porto e corria feiras e romarias em chinelos de trança largando pelas tavernas suas loas de borracho e doutor da mula ruça,  disse-lhe uma vez, à boca do adro:

   - Estás um santarrão, amigo Brás! Mas olha, toma tento com a patroa. O marranito ainda chinca… e para toda a casta de pássaras!

   O marranito era o padre, das unhas do qual, muito franzino e tarraco, nenhuma moça saía, a dar crédito às vozes, sem subir ao calvário.

   O Brás, beliscado em sua honra, cresceu para ele; mas seguraram-no.

   - Eu dou-te a chincadela, pedaço de bêbedo! - espumava ele.

   E o Neve-Ladroa, que lhe sabia dos maus repentes, desandou, pigarreando, de envergonhado, aquele seu mormo de velho piteireiro.

   O Inverno zurrava lá de riba da Nave, tão ventoso e com pancadas de água tão rijas que pareciam os penedos dos barrocais a rolar por ali abaixo, de escantilhão. As hortas nadavam na cheia, raro o folhareco de couve a que lançar os dedos. Inteigava-se o cristão com caldo de castanhas piladas, miga de unto, pão com cebola ruda ou umas azeitonas do Távora mais pequenas que carrapatos. Andavam os pobres a lazarar, de povo em povo, sequinhos como as palhas em que se deitam.

   Quedava o vivo nas lojas, a esmoer nos cuanhos das malhadas, berrando por todos os foles sua dura fome. Havia rebanhos em que tinham morrido os reixelos da novidade. Deus andava de mal com a Serra!

   Na quintã colmada de giestas negrais, o Brás, que era jeitoso, ia tecendo a sebe nova do carro, uma sebe para despejar duma só vez o cortelho dos bácoros. Era o modo de aproveitar aquele Inverno madraço. Dava-lhe água pela barba mas, toda ela em varas frescas de casticeira, entrançadas com sangrino, devia ficar uma perfeição. Vinham para ali vê-lo à obra, encapuchados com o taró, e era um nunca acabar de lambanças. O rapaz mais velho, Júlio, muito ranhoso do frio mas relho que nem, chegava-lhe a madeira. E ele, zap-trap, encaniçava depressa e melhor que o mais pintado cesteiro.

   Naquela labuta pegada de sol-nado a sol-pôr, além do espinho da porquidade com a Zefa do Alonso, mortificava-o a ideia de a Galante ser por três quartos pertença do Javardo e não lhe ser fácil remi-la. Demais, sabia que o excomungado lha andava a namorar, mal a vira luzidia, encorpada, com um amoujo de turina. Sarna o pelasse, não lhe havia de deitar as sogas, inda que tivesse de vender o último lenço da mulher! Quando a quisesse levar à feira, pronto e lesto, as libras soariam, viessem do céu ou do inferno. Lá deixar-se picar, tó ruça!... picar-lhe-ia também o bandulho à ponta de naifa.

   O Javardo bem sabia a rês que afrontava! E afora estes instantes de consumição, que levam anos de vida, o Inverno lá ia descosendo sem saltos, alambradas as corgas de areia e de merugens com o mar-a-monte, a sua Rita sempre a gemer, molhada pingando, e a venda do Pólito a trasbordar de borrachos.

   Tecida a sebe, prantou-se a deitar eivecas e cambões nos arados e a eixar as rodas que o ferreiro de Segões, o Gonçalo, lhe ferrara tanto para aturar no monte como para levar carretos à Régua. Depois em troitoiras, miúlos, chavelhão, lá se foi um ror de dias. O bom tempo estava à porta, piavam já muito os pardais. Ouvira-se o sino grande do Carregal, o Barradas, que é sinal de céu a limpar mais dia menos dia; na flecha do campanário o galo zarelhava, teimando ainda em não aproar a crista a nascente. Ah, mas ele o sol vinha aí com os dias grandes, as cerdeiras a florescer e o cuco a cantar pelos carvalhais! Entrementes, o Chico Brás trabucava da achamboaria para os apeiros, todo adrega e metido consigo. A mulher, porque lhe desconhecesse o tormento, estranhava vê-lo tão cismático e caseiro nas horas que deviam ser confiadas:

   - Homem, estás um murzango…! Até parece que trazes morte de homem às costas.

   Certa manhã, já os cabritos novos pinchavam pelas ferrãs, calçou os polainos, deitou a palheira por mor das bátegas de água, sempre possíveis no Março marçagão, e de roçadoira ao ombro, queijo, broa e cabaça no bornal, largou para a serra a fazer uma roçada. O monte estava a arrotar de tojo carriço e sargaço, era só cuspir às unhas. Ainda por lá não tinham aparecido os gadunhas de Peva, que não havia no concelho mais alvissareiros a matejar.

   Por obra do meio-dia, tinha mais de vinte rocadas engabeladas, ouviu os chocalhos dos rebanhos que trepavam para os altos. Sacou da côdea e estava na santa trincadeira, quando se apercebeu dum vulto de mulher, embuçada na capucha, que rompia para ele da lomba do couto. E teve um palpite: "É o coirão da Zefa!»

   Ora, pois quem havia de ser! Era ela mesmo, de roca à cinta, fiando, naquele seu passinho miúdo de gaia.

   - Deus lhe dê muitos bons dias.

   - E mais a quem vem - respondeu ele, com o canivete levando à boca um cibo de queijo. - É servida?

   Ela chegou-se muito a ele, olhou-o de frente com olhos maus e, descendo a vista a cuspinhar no fio enquanto o fuso fungava, disse-lhe:

   - Então, Brás, é lá de homem o que tens feito?… Tantos trabalhos te persigam como de lágrimas me tens feito chorar!

   O Brás esteve tentado a dar-lhe um pontapé na mouçó para que não viesse, a grande cabra, tirar um homem da devoção; mas só regougou:

   - Hem?

   - Hem! - arremadou ela. - Maldita a hora em que te dei ouvidos, mil vezes maldita!

   - Mas que há, mulher? Que há?

   - Que há? - tornou ela, fitando-o demoradamente com vista cheia de rancor. - Não sabe a beleza em que me pôs? Não sabe? Desgraças-me, ladrão, depois lanças-me à margem como a uma cadela tinhosa! … Ah! tu terás o pago... terás! Fugir a dever que o pagar está certo!… Triste de mim, triste de mim!

   O Brás compreendera de chofre, mas resistira a querer acreditar. Então sempre era certo a semente ter pegado, e Deus e os santos não lhe terem acudido com a sua divina graça? Ah, tinhosa de vida, sempre era certo?!

   E, baixinho, a desafiar ainda a realidade, murmurou:

   - Sempre estás pejada?

   - Ora!… Faz para esta lua nova quatro meses… Eu não to disse?

   O Brás especou de boca aberta, defronte, a mirar-lhe a barriga, que não parecia mais cheia que de moça donzela. Ali, naquele alforge, por detrás do baetão do saiote, estava o castigo de seu erro, com todos os percalços, o inferno em casa, pragas e maldições nas bocas do mundo... a vingança dos desonrados. A terra tragasse, duma vez, a raça daninha das mulheres!

   E, como ela continuasse calada, fia que fia, increpou-a:

   - Terçã te parta, ó Zefa, porque não foste a uma benta? Bruta! A Folexa não deitou cá para fora a cria que lhe fez o amo de Peva? E olha, foi com uma botijada, que mo contou a minha Rita.

   Ela, então, carpindo-se deu conta dos andanhos que correra. Havia lá bento ou benta, habilidoso ou benzedeira para que não tivesse apelado! A benta da Quintela tinha-lhe dado riço de carvalhas a beber. Cevou-se nele como sanguessuga; faria o mesmo a água da fonte. O anjinho do Senhor estava bem pegado…

   Rezas, defumadoiros, escalda-pés, valeram tanto como mijado de galinhas. Tinha vendido as arrecadas e um saco de pão para meter na boca dos mezinheiros. Tanto montara... Não houvera também santo nem santa na corte celeste a que se não tivesse chamado. Qual? Estava perdida, mais valia o morrer!…

   - Safada de sorte!

   Bem safada! Ai, o que não iam murmurar por essas terras onde era conhecida! Só à ideia da escândula, seus olhos estavam secos de chorar. Às vezes, ao erguer da cama, via-se mais negrinha que o paranheiro do forno… Morria de vergonha, se não morresse de paixão… isso é que morria!

   E aí estiveram um pedação, ela botando queixas, ele ouvindo-a maluco de todo, até que chocalharam os rebanhos detrás do cabeço. O Brás puxou-a para o abrigo dum penedo e aí, ombro com ombro, enterneceu-se:

   - Pobre rapariga!

Corriam-lhe as bagadas dos olhos, muito mansas e gordas, umas atrás de outras como contas dum rosário que se desfiou. O Brás arrepelava-se de desespero: «Então não haveria um remédio, custoso fosse ele? Negro ficasse, se não dava a Galante para a safar do atoleiro!»

   Ela, conquanto queixosa, abrandara. Já não lhe saíam coriscos dos olhos, entre lágrimas, nem, a voz tinha aquele sonido de vergasta a vergastar.

   - Foi caipora, foi. Mas, ó Brás, largares-me tu num aperto assim! Sem dar mais cavaco! Não, uma destas só a terra a há-de comer…

   - Que queres, um homem é tonto. Maluquei cá com os meus botões que ainda seria tempo de se arretar a gente!…

   - Ah! Ah! que siso de alveitar, mula morta, manda-a sangrar! - tornou ela em tom espevitoso, menos de escárnio que de despeito.

   - Mas quem havia de dizer! Com o teu homem não alcançavas… Não vai em cinco anos que estais casados?

   - Faz seis pròs Remédios... Meu homem não é de casta. Vê lá tu os irmãos, não têm descendência que se conte.

   - É verdade.

   Ficaram por muito tempo a cismar, um rente ao outro. Ela tinha os olhos no chão, mal embrulhada na capucha de burel velho. Ele estudava-a dos pés à cabeça e apenas lhe parecia mais olheirenta, mas o sempre mesmo ar, tez mosqueada de

sardas, a pinta das cobras, o seio alto e rijo no chambre estreito de flanela, a cinta bem lançada, magana de todo no saiote vermelho. Aquele vermelho assanhado, cheio de cio dos poros, a feder a badulaque, escaldava-lhe o sangue. Fêmea duma cana! Lá dizia o rifão: da galinha a preta, da pata a parda, da mulher a sarda!

   - Já me lembrei de despedir por esses mundos fora, e correr, correr, até tombar numa estrada... Mas que havia de ser da lida sem mim?! Também me vieram tentações de me deitar à ribeira, mas temo as contas que hei-de dar a Deus.

   - Matar só ele, mulher!

   - Deixá-lo! Quem sabe... meu irmão Zé é capaz de me trincar os fígados.

   - E a justiça?

   -!

   -!

   - Que não fará o Alonso quando voltar? Jesus…!

   - O Alonso anda longe... Ainda o pode levar por lá Barzabu!

   Ela então, depois de hesitar, espreitar à roda, não ouvisse quem?… - os penedos, os gaios, o vento que soprava de nascente e logo era o escariore - em voz baixa, contou a feitiçaria horrenda: apanhara uma sapa e cosera-lhe os olhos e a boca a retrós vermelho…

   - E ao depois…?

   Largara-a na horta. Uma semana andada vira-a… Já nem parecia a mesma!

   - E ao depois?

   - Ao depois, se a operação foi bem feita, mirra ela e lá longe vai mirrando ele. Mas sabe-se lá!? Teria eu pronunciado as palavras bem ditas e retornadas…?

   Ficaram em silêncio, balouçados entre a esperança e a náusea de morte de homem. Mas acabou-se, ninguém o sabia.

Não morre a cada hora gente dum andaço, duma febre, duma dor repentina, antes dos dias cheios?

   Os chocalhos soavam já perto, nos visos do cerro. Ela estendeu o pescoço, à espreita:

   - Vou-me lá. Vim tocar as ovelhas, e avistei-te…

   E como adiantasse um passo para despegar, o Brás   filou-lhe a capucha.

   - Deixe-me! - pronunciou ela em tom sacudido.

   - Vem até ali ao pinhal!…

   - Não.

   Encararam-se parte a parte com inexplicável aversão. Ao passo que lhes vinha uma vontade confusa de se agatanharem e morderem, condensava-se à sua volta um ar torvo e cheio de bruteza. Não saberiam dizer que sanha os impelia um contra o outro e que mão benigna os continha. O Alonso e o mundo com a sua peçonha e maldade não eram ali vistos nem chamados. Estavam só eles frente a frente. Pela segunda vez cruzaram um olhar fero como inimigos e, depois de se medirem um instante, cada um voltou ao seu ódio.

   O pinhal novo, cheio de sombras e segredo, cortava o horizonte das bandas do nascer do sol, a poucos passos. Com a boca seca, os olhos cheios do lume do saiote, o Brás não desamarrava. Ela resistia.

   - Estás-te a fazer fina! - pronunciou ele de cenho descido.

   Ficaram a olhar-se um momento.

   - Zefa - tornou ele - anda daí… conta comigo.

   - Contava com boa bisca!

   O sorriso que a alumiou, ao proferir a chalaça, deu-lhe ânimo. E, pelo braço e aos empuchões, foi-a arrastando.

   - Dianhos, ainda não te basta para emenda?! - e, depois de descer a roca da cinta, seguiu-o submissa.

 

   No dia do grande logro o Luís Maneto roçou no tojal até sol-pôr, assanhado de raiva ao trabalho, sem outro comer que a bucha da manhãzinha. O Bispo, que já nem enxergava com a odrada de fome, virando as algibeiras, rilhou as côdeas de broa, duras de muitos dias, e as migalhas misturadas com cotão que pôde caçar. Mal pôs pé em casa, o Rola disse para a mulher que estava moído, lhe doíam muito as cruzes e deitou-se. Florinda fez-lhe uma sopa de unto bem migada, mas faleceu-lhe o ânimo para a acabar. Na manhã seguinte, quando ia para se erguer, não pôde.

   - Raios partam o dinheiro! - disse ele. - Tua mãe é bruxa por mais que me digam. A alma do diabo deitou-me quebranto.

   - Foi resfriado que apanhaste, homem. Andavas a suar, saíste para a chuva… ora, é catarro que tens no pêlo.

   - Será!… antes isso.

   Levou o dia todo de cama, sem apetite. Sentia na cabeça dois ferreiros a malhar ferro, ora um, ora outro, tam-tam, tam-tam, e os golpes, e o som e a regularidade eram-lhe insuportáveis. Veio a família, o pai, a mãe, os tarracos dos irmãos, pelo dia fora. Sentada no mocho, junto do tear, a sogra espiava a roca, alheia ao vaivém.

   - Mandem chamar o barbeiro - ordenou o Rola velho.

   Ao redor do meio-dia, apareceu o barbeiro da Lamosa, com um pifão, o desalmado, que até lhe caía a baba ao falar. Carapuça alentejana na cabeça, fato de cotim velho com os cotovelos reforçados de burel, socos de mulher, sem testeiras, saquinha de chita com a arte e os utensílios do ofício - era o mesmo de há vinte anos àquela banda por lugarejos e romarias. De beiçola arregoada dos frios, o carão sobre o oblongo, cheio de cavas e de gorovinhas profundas, com o nariz multo descido e olhos pequenos, lembrava aqueles semblantes de arraianos que andam pelas portas bufarinhando a veniaga castelhana. Tinha, além disso, uma voz agreste de falsete, com rompantes de borracho e loas de doutor das dúzias, que entrava pelas orelhas como granizo. Dentro ou fora de seus cinco sentidos, um empurrão de menino daria com ele em terra. Vagabundeando quase sempre sem outro sustento além do vinho e da côdea, que na hora lhe davam para puxavante, com as calças a cair do ventre esfalfado, a bater o chão com um pau de marmeleiro, era a figura mesmo da Fome. Os cães arremetiam para ele da boqueira das portas, e o rapazio jogava-lhe rabo-levas e surriadas. Não lhe sabiam o nome, era o Barbeiro da Lamosa no geral, o Mestre à cabeceira dos doentes.

   O barbeiro veio ante o Rola, excogitou-lhe a língua e as fontes da cabeça, ouviu-lhe o roncadoiro e, tartamudo, zambro de todo, disse que o doente mostrava mau parecer e era mister aliviar-lhe já os humores com uma sangria.

   Hora de necessidade, mas como a lua entrou em Aries, o signo cálido, não há que temer. Cá o amigo é dos fleumáticos…

   - Mas, ó mestre, estará você na sua sina para lancetar? - objectou-lhe o Rola velho, estendendo o pescoço na jeiteira, tão sua, de grou ao dar bicada.

   O barbeiro aprumou-se, torcendo a beiçola:

   - Até para lhe fazer uma utópsia a vossemecê, homem, e deixá-lo são e escorreito.

   Decidida a operação, foram pôr uma toalha e um covilhete para aparar o sarrabulho, enquanto na sola da mão o curandeiro assentava a lanceta.

   - Entese para cá o braço - disse ele. E, zás, com um lanho «na veia meã» fez saltar um repuxo de sangue que nem de pipa espichada.

   Deitou, deitou e sentenciava o barbeiro:

   - Sempre trazia o sangue muito envenenado! Apre, negro que nem um chapéu!

   - Parece bem vermelhinho! - exclamou Florinda.

   - A esguichar. Aqui é que se vê! - retorquiu o mestre, fazendo dançar o sangue na malga.

   De boca muito aberta, olhinhos de furão, o Rola velho seguia, interessado, todos os passos da cirurgia.

   - Quem sabe, sabe! - proferia de pasmo.

   Mas era tempo de vedar ao verde; não apareciam ligaduras e a pata do Rola continuava escorrendo, ainda que mais manso, como gorgulho de fontainha.

   - Tragam um lençol.

   - Rasguem umas tiras.

   - Ai, não! É um lençol novo de estopa!

   Envolveram-lhe o braço com o lençol todo; o barbeiro bem impou, bem arreatou, dali a um nadinha a chumaceira estava empapada de sangue.

   - Aí se escoa o desinfeliz! - gritava a Florinda ao mesmo tempo que ia murmurando as palavras de virtude: - Sangue, tem-te a ti, como Nosso Senhor Jesus Cristo se teve em si! Sangue, tem-te forte, como Nosso Senhor Jesus Cristo se teve na morte!

   - Não há que ver, escoa-se! - assentiu o pai Rola.

   - Àgora, tem ainda muito para botar! - declarou o barbeiro. - Arranjem-me uma colher de açúcar e teias de aranha.

   Despediram cada um para sua banda; na casa de fora, Florinda bramou para mãe:

   - Oh, descansada entre você ainda hoje no Inferno, para morcega! Vê a gente aflita e não se mexe. Corra à loja buscar teias de aranha.

   Ela pulou ao Cláudio comprar açúcar, que não havia uma pitada de portas adentro. Quando voltou, o seu homem estava amarelo como a cera melada. E, vendo a cama numa alagoa de sangue, as mãos do barbeiro a escorrer sangue, desatou a berrar:

   - Ai que me matou o meu homem! À d’el-rei que me matou o homem!

   - Cala-te, mulher, cala-te! - proferiu o sogro. - O mestre não é tão azêmola como isso.

   O barbeiro pegou do açúcar, chapou-lho no talho, depois com as telas de aranha enredou, enredou bem de cima, bem de baixo e, cobrindo com uns panos, disse:

   - Agora deixem o doente!

   - Já não é sem tempo! - murmurou Leocádia Rola.

   - Hum, tomara eu tanto vinho a cada comer como de sangue tem no fole.

   O Maneto rebolava no travesseiro um olho muito doce e amadornado. Nem dum borrego, coitadinho! Parecia que a cada momento ia render os espíritos.

   - Daqui a uma semana, está guicho! - declarou o barbeiro, ao lavar no patim as mãos e a lanceta. Fiquem-se com a graça de Deus. Volto à primeira alerta.

   E o grande flibusteiro meteu para a taberna a beberricar.

   Qual semana! Quinze dias depois, ainda o Rola se não mexia na enxerga, destemperado de todo, amarelo e na espinha como um santo lázaro. Revessava quanto comia e a fraqueira era tanta que, nas suas necessidades, haviam de o suster pelos sovacos. Florinda tinha-lhe matado a galinha barbuda, que derrotava um braço e era muito boa poedeira. Foi o Bispo que a comeu, metade por trancafio, a outra metade quando já se estava a derrancar e com cheirete. Da primeira vez andava a mulher por fora, o lambão do Inferno arrancou da coxa da pita e mesmo nas barbas do cunhado a devorou:

   - Vomecê não quer? - disse ele para o doente. Quero eu.

   - Ah, cadino - rosnou o cunhado, -, galinha comas tu no caldeirão de Pero Botelho! Ó Florinda!… Florinda, dá-me cá um diabo com que lhe atirar aos cornos!

   O Bispo batia diante dele o saricoté, e sobre a perna descarnada da franga arremedava o arrulho das rolas:

   - Rrou-rrou! Rrou!

   - Carrasco… safado!… tu mas pagarás!

   A velha, ali a dois passos, esfoeirava-se de riso.

   Neste entrementes, Florinda, tirando-se do seu mole e de súcia com a Teresa Zabana, pau para toda a colher, deitou-se a consultar o corpo-aberto de Quintela. Abalaram uma manhã de segunda muito cedo, tão cedo que foram topar a benta ainda de cama. Bateram à porta, tornaram a bater, até que, depois de muita bulha e muito esperar, ela em pessoa lhes veio abrir e atender.

   Florinda levava uma camisa e, pondo-a nas mãos da benta, rogou:

   - Diga-me, se pode, de que moléstia padece meu homem…

   - A camisa não é dele! - exclamou o corpo-aberto depois de vê-la e palpá-la.

   - Ah! isso é!

   - Não é, que mo diz a voz.

   - É sim, senhora.

   - É? Ora veja bem, mulherzinha…

   - Vê lá, Florinda! - apoiou a Zabana.

   - É dele; quer dizer, já foi de meu pai que Deus haja.

Mas tem-na ele sempre trazido, que lha deu minha mãe com mais outras, quando nos casámos.

   - Vê! Pois que afirmava eu?

   Florinda ficou boquiaberta com tanto adivinhar. Seu homem trajava a camisa, mas porque fora de seu pai não lhe pertencia de raiz; logo não era dele. Nem botara nisso o pensamento. Mas uma certeza assim! Viessem dizer-lhe que isto de corpos-abertos era fábula, modo de armar ao dinheiro! Se espíritos não houvesse, não podiam as bentas certificar.

   - Então de que mal sofre meu homem?

   O corpo-aberto recolheu-se um pedação, depois pôs-se a bulir com os lábios, como a falar baixo para pessoa que se não via. E, arregalando os olhos em brancos, acabou por dizer:

   - Seu homem não sofre de mal nenhum.

   - Homens essa, está há quinze dias doente que se não pode virar!…

   - Não sofre de mal nenhum. Está esampado.

   - Quem-no esampou?

   O corpo-aberto recaiu outra vez em morrinha e no mesmo trejeicar de boca.

   - Não lho posso dizer - tornou ela, findo o quebranto.

   - Diga… diga, eu pago o que for.

   - Não lho posso dizer, santinha de Cristo. Está esampado, e foi uma pessoa de família.

   - Veja lá vossemecê…

   - Não se mate; venha cá noutra ocasião… Então lho direi.

   - Mas é mal de morte?

   - Só Deus o sabe. É preciso atalhar com tempo. Vá, defume-o três dias a fio com flor de sabugueiro, rama de avenca, uma pinoca de arruda e cinco de alecrim. Quando tudo estiver a arder, abafe com terra do adro, apanhada com a alva, antes de ninguém lá pôr o pé e reze o credo em cruz.

   - E fica esconjurado?

   - Fica, tendo fé ele e vossemecê.

   - Jesus! o meu Luís é tam pouco santanário!

   - Encomende-o ao Padre Sant’António. Calaram-se e o corpo-aberto levantou-se da banqueta; pelos modos estava com pressa de acabar. Era uma mulheraça muito nutrida, rosada e ruiva, com duas mamoilas que nem duas abóboras-meninas. Um grande crucifixo negro bimbalhava-lhe no meio delas e parecia assim uma daquelas cruzes que rezam de morte de homem e se topam nos caminhos, entre dois penedos. Como a serva de Deus acabara de sair da cama, estava ainda em camisa, com um lenço amarelo de malha encruzado sobre o peito.

   - Então quando hei-de cá tornar? - perguntou Florinda.

   - O mais cedo que possa. E traga camisa que não tenha servido a outro corpo.

   Florinda quedara no meio da casa, sem despegar. O gosto dela seria sentar-se no chão e meter paleio com aquela matrona que tinha assim uns ares de madre abadessa. Eh, aquela não andava a eslavoirar, bem se lhe via nos pés mimosos e brancos, calçados em boa chinela de ourelo. E que papo! Roupa branca muito lavada, saía sem um remendo! Altos juízos de Deus sabiam porque poisava tanta virtude numa regalona assim!

   Florinda não se fartava de admirar à serva de Deus e ao trasteio da casa, que andava mais limpa que a dela, quando lá fora soou grande alarido. Voz colérica de mulher testemunhava ali Céu e Inferno contra a desavergonhada da benta que dormira a noite com o seu homem.

   - Quer que lhe diga a esmola? Um pinto ou um alqueire de pão - disse o corpo-aberto, em tom sacudido.

   Florinda contou-lhe para riba duma arca quatrocentos e oitenta réis e despediu-se até mais ver.

   Por aqui vão mais ao direito! - proferiu a benta, encaminhando-as pela traseira da casa. - Atravessam este quintal e estão logo no caminho da Lapa. Não tem que errar. Vão com Nossa Senhora. Tenha fé que seu marido há-de sarar.

   Ao desembocar do quinchoso, ouviram a benta e a mulher endiabrada que se despicavam porcamente, como duas moças da vida.

   - Nem estou em mim! - declarou Florinda. - Se é certo o que aquela voz dizia, pouca honra tem a benta.

   - Pode ser falso testemunho - replicou-lhe a Zabana. - E olha, minha rica, a fé é que salva. A Zefinha do Alonso veio cá, quando há tempo andava com engulhos e tonturas, e foi um tornadoiro de águas.

   - Hum! Veio vomecê com ela?

   - Não vim, mas contaram-mo.

   Florinda não adiantou conversa. Posto que os dias fossem pequenos e se não ralassem a caminhar, chegaram a Seitosa ainda com horas de sol. Logo à entrada da Porta, Florinda tropeçou com a mãe, sentada no mocho a mandar o sarilho.

   - Fogueira a coma, vomecê empeceu-me o homem!

   - Eu?

   - Sim! É uma grandessíssima feiticeira.

   - Eu empecer-te o homem? Oh excomungada! Oh negra! Maldito seja o leite que me mamaste! - e cresceu para ela de tamanco no ar, que, se não foge para trás da cama do marido, esfandegava-a.

   Perante aquele ataque de cólera, Florinda caiu em si, considerando que a benta não nomeara sua mãe como esampadora. Mesmo assim, foi contando ao marido o passo com todas as voltas, para que em caso algum se dissesse que punha as mãos pela serpente.

   - Não há que duvidar! - exclamou ele. - Tua mãe é bruxa, o Bispo zango!

   Florinda defumou o homem três vezes a seguir como a mezinheira ordenara e em tão boa hora foi que se achou melhor. Dias depois já vinha para as escaleiras alapardar-se à récega, se Deus a dava.

   Mas quis logo o Demónio que fosse tentado a tirar vinganças das muitas desfeitas que o Bispo lhe pregara, o esbulho da galinha, arreganhos, revelias, que o estilavam mais que a própria febre.

   - João - disse-lhe ele uma tarde que estavam sós por quem és, compõe-me aqui a fronha detrás das costas…

   De boa-fé, o João Bispo chegou-se a ele, todo farófia e baboso por ser rogado. Mas, apenas as mãos tocavam na travesseirinha, o Rola saltou-lhe à gorja como um cão de fila. O Bispo deu em terra, rebolou, engoliu dois cascudos, mas, farto de lhes tomar o peso, sentiu que não eram aquelas as veras manápulas do algoz.

   E, tomando ousio, engrifando-se, dali a pouco era ele que estava a cavalo, os dentes e os cinco galfarros ferrados no queixo e na garganta do Rola. O Rola debateu-se quanto pôde, até que caiu à mercê do patife, como um passarinho que já não tem fôlego na carreira do milhafre. Mesmo assim gemia numa voz rouca de esganado:

   - Quem me acode!… Quem me acode!…

   Foi a Clarinha que ouviu a tropeçada dos tamancos e os uivos do Bispo, todo encanzinado sobre ele, e lhe valeu.

   - Ai! que o mataste! - bradou ela, enclavinhando mãos aflitas, quando deu com o Rola estendido no chão e sem alento, pupilas extáticas para o céu sem fundo.

   - Foi ele que se deitou a mim…! - balbuciou o Bispo, boca torcida de espanto, cabelos no ar, olhos presos de desvairo sobre o corpo inteiriçado.

   - Vais morrer a uma cadeia! Jesus Senhora!

   O Bispo deitou a fugir, azangando como um louco paredes e barrancos, direito à serra.

   Ao deitarem-lhe água fria nas fontes o Rola recobrou a sina, mas teve uma recaída de semanas. E, se bem que os curiosos lhe pregassem o contrário, não lhe saía da maluqueira que a velha lhe pusera quebranto. Quê, era bruxa, bruxa escarrada, bruxa velha e o Bispo o acólito e caudatário! E passos foram aqueles que ficou receoso da sogra como o Demónio da cruz e o seu rompante quebrou para com o cunhado. Daí em fora, já o não zurzia como rafeiro malhadiço; acobardava-se. E para dar vazão aos maus repentes, que lhe estavam na massa do sangue e na gana que o recozia, tinha de forçar-se, encher-se de coragem, como um homem toma um licor de guerra para ter ânimo. E mais uma vez cismou: "o traste, se sabe que lhe tenho medo, faz de mim gato-sapato". Daí, o Bispo continuar a ser tangido de palavras, nanja de arrocho, o que pouco era para pessoa avezada ao tamboril e ao cachação.

   Muito mais que a façanhice do Bispo atemorizavam-no, porém, as endróminas da velha. A luta, aí, era no terreno que se não vê. E não bebia água de cântaro que ela fosse buscar, nem autorizava que metesse pés na cozinha enquanto se forjicasse o comer.

   - Prà rua, que é sala de cães! - gritava, pois a velha podia empeçonhar-lhe a bocada ou dar-lhe beberagem com que ficasse combalido para a vida toda.

   E foi deitando ao pescoço amuletos, que Florinda comprou em Quintela, e pendurando debaixo da cama uma cebola albarrã, droga esta de muito préstimo contra malefícios, embaçamentos, e outras feitiçarias.

   Temeroso perante os poderes ocultos da velha, não renunciava, no entanto, a surripiar-lhe o dinheiro. O dinheiro era como que a matéria por que nem Deus nem o Diabo terçavam; ambos a deixavam franca; estava na raia do bruxedo e da fé cristã, a modos de baldio. E, enrija que enrija, ia magicando, ordenando traças, pulsando todos os suspiradouros possíveis daquele enigma. Às horas de comer, entrando em casa ou saindo, não se esquecia, com o rabo do olho, de devassar os recantos, espiar o parecer da velha, os pestancios, os mais pequenos lances. A perra, porém, era ladina e, engoiada no mocho junto do tear, parecia de pau. Tinha a massa bem acaçapada, a grande ruiva!

   - Deixa lá o dinheiro! É dinheiro maldito! - dizia a mulher.

   - Cace-o eu e a maldição lha dou. Deita-se-lhe água benta.

   Mal se pilhou com sustância, atirou-se à lavoira, que estava toda em atraso. Meteu estrumes, foi levar a vaca ao boi, rachou lenha. Com tanta trabuzana não lhe passava dos sentidos o tesoiro da sogra. Astúcias com ela não medravam; experimentou, ainda, as boas maneiras, forçando-se até a tratá-la com rapapés, boa papança, falas amoráveis. A velha andava escarmentada, tudo o que ele tentasse pelo pau de sancadilha o tinha por suspeito e prenúncio certo de raios e trovões. Cedo, também, lhe mingou a paciência; a sua vontade era pegar duma enxada e bater, bater, até lhe pôr os ossos num feixe. E breve atirou de lado aquela manha que saía cara e fora bem assucedida com o Bispo, porque era zango novo e lambareiro de marca. Teve, ainda, o pensamento de a conduzir um dia para as tapadas e, lançando-lhe os guantes ao gasganete, obrigá-la a confessar onde tinha o bagulho. Mas o cometimento podia dar em vaza-barris com uma testuda daquelas e, andando o povo cheio que lhe dava maus tratos e a matava à fome, temia-se de escândalo maior.

   - Luís - dizia-se ele a si mesmo -, de perto se vai ao longe. Tem paciência. O dinheiro, se a velha o não meteu na mão dalgum padre para lhe cantar o miseré ao rabo, cedo ou tarde há-de tinir.

   De manhã, ao levantar, a primeira vez que punha olhos na sogra; pelo dia fora, sempre que entrava em casa e a descobria; a qualquer altura, em suma, a seguir ao mais breve eclipse de parte a parte, ao passo que dentro do bolso traçava uma figa com os dedos, não deixaria por nada de dizer o esconjuro que a benta ensinara a Florinda:

 

                 Tu és ferro,

                 Eu sou aço;

                 Tu és bruxa,

                 Eu te embaço,

 

   Mas tinha pressa, e não se detinha de excogitar, e estender o braço à ladina. Em casa não a perdia de vista um só momento, fiado que onde a pega tem os ovos lá tem os olhos; se largava para os campos, seguia-a de longe, a coberto de moitas e pinhais, e de rastos, por detrás das paredes. Ele próprio se comparava a um velho lobo esfaimado, dos que já provaram zagalote, que seguem uma badana até andurrial jeitoso em que possam pular-lhe à suã e filá-la.

   Numa destas sortidas, o Rola colheu-a a falar alto:

   «O safado que me quer chegar ao dinheirinho! Mas quem lho diria! Peste o devore, tem pacta com Satanás. Mas anda, mói-te, derranca-te: onde está, está bem arrecadado. É o Padre Sant’António que o guarda das tuas unhas, cão! São quarenta, hem? Quarenta, sim. Luzem como brasas. E que careta a delas! Uma gaforina… um papo, uma beiçola que nem meu irmão abade!

Deixá-las estar, que não pesam. Mas, ai que ladrão, pai do céu!…»

   - Oh, mil raios a confundam! Que o tem amochilado diz ela, mas onde, nem pio. Não lhe dar na bolha para fazer confissão plenária ao João da Rua! Mil raios a confundam! - malucava o Rola.

   Com o escurecer cada vez mais do mistério, crescia o asco dele pela sogra. Não a podia ter na presença que não lhe subisse o azedume aos miolos e não destemperasse com ela, com o Bispo ou com a mulher. Vinham-lhe raivas de se lhe deitar aos gorgomilos e esganá-la. Escaldado do Bispo, a mulher começou a ser a cabeça de turco destes acessos de tigre. Zurrava nela por um nonada; um dia escaqueirou a loiça toda do jantar. Foi para o pinhal, meteu a cabeça entre os joelhos e chorou, chorou lágrimas de sangue sobre o prejuízo e a má sorte.

   A velha, naqueles repentes de cão danado, refugiava-se no tear e tecia, tecia. Como tinha a vista curta e correra voz de ter estragado a tela de linho da irmã de Aris, apenas lhe encomendavam serguilhas e tomentos. As pagas eram reles e a más horas, mas faziam bom arranjo à Florinda, que daquele pé tirava para rendeiros e alfaiates. Urdia ou fiava, sentada no seu mocho, e o genro a bramar:

   - Teça uma corda para se enforcar, seu estafermo! O que você faz e leite de pombas é um só.

   A velha mantinha a mesma face estanhada que lhe fazia ranger os dentes.

   Desesperada com aqueles auges, e certa de que toda a cizânia vinha do dinheiro, Florinda mandou-o responsar na missa ao Lájeas, que tinha fortuna a deparar cousas escondidas. Bem o responsou o mesoneiro, nem cheta se veio entregar aos cobiçosos. Tonta de todo, Florinda deitou-se uma vez mais ao corpo-aberto de Quintela. Esta ouviu, indagou, e disse-lhe:

   - Traga-me cá sua mãe.

   Com fina ronha tentou Florinda levar a velha a Quintela: que estava farta de ser maninha, que tanto queria ter um menino, sua mãe, para a benzedura ter virtude, devia acompanhá-la à benta.

   - Tanto se me dá que alcances como deixes de alcançar - redarguiu-lhe a velha em rosto. - Teu homem é fanchono?

   Debalde gastou Florinda lágrimas e melados rogos; tinha-se propalado nesse dia a bacorice da Zefa e a mãe tornou-lhe:

   - Vai a um varrão como a outra… Vai a um varrão…

 

   Mal luziu a alva, o Brás, que toda a santíssima noite não tinha pregado olho, descolou-se da costela da mulher, ainda adormecida, e saltando para a camisa lavada, dobradinha sobre a arca, deu um berro pelo filho:

   - Ó Júlio!

   O moleque não tugiu; coitanaxo, andara o dia inteiro de padiola em punho a carretar estrume para um quartel de feijões, que era o tempo da semeadura. Moído que estivesse, tinha que aguentar.

   - Ó Júlio, Júlio!

   - Hã…!

   - Leva arriba!

   - Inda há luar, senhor pai.

   - Estás reloucado, é manhã alta. Vá, pula-me das mantas.

   O Brás vestiu a andaina de ver a Deus, do surrobeco de boa dura que vinha em tempos pelas portas; e, depois de desenramelar os olhos na gamela, andou com um lampião à cata do tamoeiro, de canto em canto, fulo de todo, com a pressa de jungir as vacas.

   - Raio parta o tamoeiro! Má peste o levou. Esta casa é uma babilónia… nada pára!… Um dia agarro dum estadulho e desanco mulher, desanco filhos, desanco o Diabo!

   - Cruzes, logo de manhã com o Demo na boca! - bravejou de lá Rita. - O tamoeiro ficou na loja, homem!

   Praguejando sempre, o Brás destrancou a porta; uma lufada de luz inundou a casa, pareceu-lhe que lhe lavava o rosto a água fria do cântaro.

   - Oh c’o catrino, é dia claro!

   Emborcado sobre o mundo, o céu reluzia como uma redoma. Desvendavam-se hortas e quintais. Pelos oiteiros, os vagalhões de sombras corriam que nem reses bravas. Ainda a estrela da manhã pestanejava, mas trémula e apagadiça como pálpebra de menino com sono. Para banda das Antas, havia um estendedoiro de vermelho, a tal "cabra esfolada" de que rezavam os antigos, a prenunciar o bom tempo. As matas, à traseira das lájeas, lembravam uma parede negra, a suster a noite para a banda de lá. Mas com endireitas do vale, os olhos já iam mais longe pelo espaço que o galope dum bom garrano. Enxergava-se, em baixo, o pano caiado da igreja, e, reparando bem, o macanjo do galo lá no coruto da torre, de crista para o nascente, à espera de salvar ao Sol como um galo verdadeiro. Cantava já para os soutos a melra, que é uma pássara que pega a cantar logo ao depois do rouxinol. Dali a pedaço, o cuco, as rolas, a popa e a milheira cantariam, cantariam todos diante da rosa do sol melhor que os senhores padres o tantum ergo. Pouco a pouco a terra descobria-se e seu descobrir tinha um não sei quê de parecenças com a mulher que se despe para se dar. Talvez pelo que nas várzeas e no corpo da mulher há de ôndulas, ganham em luz e guardam de mistério, porque uma e outra foram feitas pelo Pai do Céu para a grande comédia da sujeição. Já luziam os caminhos, traçados no saibro pelo rilhar dos carros, e as paredes ruças à força de ver morrer gentes e dias. A luz era como um mar que se desencadeasse sobre a terra, inundando-a de frescura e alegria. E mais e mais, da parte do Oriente, por cima do coradoiro rubro, galgavam ondas brancas, rabanadas de cravos brancos, atirados ao mundo pela mão larga do Criador.

   - C’o catrino, está o Sol a nascer! Dia abençoado!

   O Brás desatou da escaleira e meteu à loja das vacas, depois de soprar à lanterna. Lá estavam ambas, boas e fartas, deitadas sobre os joelhos, na santa ruminação. Bichas duma cana, fitaram-no com a meiguice que entra no peito da gente e a faz melhor! Nos olhos delas, lagos sem fundo, achava tanta bondade, tanta paz, que de comparável só a Lapinha de Belém onde o Menino Deus quis nascer!

   Pois lá estavam elas ocupadas com o seu afanoso triturar de mó; cada uma a seu canto, como comadres arrufadas. Mas não… A Cereja andava prenhe, e muito bem sabem elas, ainda que ninguém as ensinou, que a mais pequena pega pode arrebentar no fole com o vitelinho melindroso. Desde a monta que amuava para ali, longe da outra, o cetrás à parede e os galhos em baioneta. A Galante, que sempre fora mais correntona, guardava o centro, repimpada que nem baronesa.

Por entre as coxas dum branco leitoso, ao descer da rabadilha da cor da chama, o amoujo arredondava como alforje de mendicante à volta do peditório. Grande vaca, benza-a Deus!

   Ia pô-la na feira, assim lho exigia o Javardo. Melhor. Acabava-se com a pendença, graças ao Senhor Tobias, que lhe abonava a importância necessária para a remir. O Javardo havia de ter na praça testa de ferro que picasse o lanço… embora. Para outras mãos não ia, com penas de vender à mulher as arracadas das orelhas!

   Deitando-lhe a soga, o Brás desfazia-se em cálculos, a palpitar o mercado pela corpulência e estampa do animal. Orgulho teria ele que aquela bichanita ruiva, que viera para a sua mão arrepiada de fome e podre de baldas ainda que jermela de raça, pusesse o ramo para as novilhas do Crasto. Quando os marchantes, em volta, ao apalpar as vazias e estudar as tetas, se afrontavam como cães, a sua gana era que reloucassem a oferecer libras, mais libras.

   Teria orgulho com um destes despiques que são o galardão dum criador. Por outra, melhor era que lha amesquinhassem, que do bolso lhe doía. Se o sobrinho Luís Rola fosse à feira, estava ali homem para lhe fazer o cinco de oiros. Verdade que o Javardo era velhaco para desenterrar do Inferno quem lhe tenteasse o negócio, e ainda mais que era senhor de atar ou desatar…

   A Cereja, trancosana, de boa mente prestara os cornos ao jugo; já a Galante mangava; mangava porque era ardida em tudo, a puxar um carro e a dar uma vessada, e porque era amiga de brincar. Cabeçada para a direita, cabeçada para a esquerda, ainda que sem malícia, não era um doutor que a jungia. O Brás deu-lhe um mosquete na tromba, chamou:

   - Ei cá, ei!

   Fora, em cima do cabeçalho do carro, Júlio despejara um molho lauto de canas; sôfregas, de focinho dobrado, as vacas caíram sobre a ração; notas, alegres como pássaros, voaram das campainhas; e tão claras, tão luminosas que, parece, os horizontes mais embranqueceram. Ouvia-se na cozinha a farfalhada das queiroses a chilrear ao fogo. Já a sua Rita andava a pé. Tropicavam pelas lájeas tamancos ferrados que se iam botando à feira. Também já o Neve-Ladroa atroava a rua com o vozeirão salmodiado de crónico bebedola.

   Quando voltou dentro, topou mesa posta, pão, vinho, presunto e azeitonas, ali mesmo na tampa do açafate. E pôs-se a matar o bicho mai-lo rapaz que o gado com o sol que fervia andava mosqueiro para meterem às tavernas!

   - Como botou adiante, vai estar um feirão – disse ele. - O tempo anda firme, que sopra o vento-cieiro. Ontem, por aquela várzea, ouviam-se os sinos do Carregal como se estivessem ao pé. Podias vir, mulher…

   Rita escusou-Se mais uma vez com a lida da casa e os porcos da ceva, que não paravam aqueles relas de grunhir. Já lhes tinha o pote ao lume com a trincadeira. Ele lá apreçava as encomendas, sal, um cabo de alhos, uma gadanha para o caldo, testeiras para os tamancos encoirados de novo, tudo negócio de miudezas. Se o sal estivesse caro, trouxesse só uma quarta, lá para o diante vinha em boa conta pelas portas.

   Rita ia falando, encostada à arca, com as mãos debaixo do avental, vendo os seus homens dar ao dente.

   - Comei-lhe bem - recomendou ela. - Mais vale em casa que nos adjuntos pelas vendas.

   O Brás ia manducando, de olhos parados, a cismar. Já se enxergavam pela casa fora os trastes todos. Em carrapatinho como a mãe o botou ao mundo, António, o mais novo, de cinco anos, rompeu do quarto de dormir. Vinha de verga arrebitada, com a bexiga cheia. E, chegando-se ao açafate, lamuriou:

   - Dê-me uma codinha, senhora mãe…

   - Levantas-te com fome canina, rapaz!

   O pai deu-lhe um cigalho de broa e, derriçando, correu à soleira da porta, aberta de par em par à madrugada, a verter águas para a rua.

   Banhado do sol, nem o Menino Jesus, o taludinho, que se dá a beijar no dia de Reis, a olhar do seu trono de luzes por cima do mar de cabeças. A bênção de Deus o cobrisse e fizesse um homem!

   O Brás guardou a navalha e disse para o Júlio:

   - Anda, vai adiante ver se o tio Joaquim Paula já largou.

   -- Mete no bolso, comes pelo caminho! - aconselhou a mãe, que o via agarrado à bola.

   O Brás, de saco e guarda-sol em barba de baleia debaixo do braço, desandou:

   - Até logo, mulher.

   - Ide com Sant’António! - pronunciou ela do traço da porta. - Não esqueçam as testeiras, que daqui a pouco não tenho que calçar.

   O Brás apôs as vacas ao carro e larga! Estava a limpar de todo a manhã, e pelas faxas lés a lés do Oriente, agora da cor do pálio, vinha lá um sol criador. Falava gente pelas portelas, e suas vozes, na rijeza do ar, pareciam sopradas por canudos de lata. A folha despedia por ali abaixo, coberta de verde, mal amarelejando, de trato em trato, a tez maninha dos pousios. No souto, que fechava a vista a uma banda, o cuco erguia, muito pausado como a afinar, o seu canto mofareiro. Fuminhos de névoa voltejavam, ao fundo, sobre o Paiva, leves que nem velo de ovelhas brancas, tirado da carda. Vinha o sol e lambia aquilo mais depressa que a uma laranja o viandante que tem sede. Diziam os velhos que era o manto das feiticeiras. Boa vai ela, era mas era o bafo matinal do corgo, que andava quente, pois estava-se na sazão de os pintassilgos fazerem o ninho em suas frescas balsas. Aclarava de todo o céu. Já se viam as andorinhas em volta dos beirais do Senhor Tobias - Deus lhe desse muitos anos e bons que era amigo de acudir a um pobre numa precisão.

   O Brás sentou-se na cheda do carro, vacas em fora, sabedoras do trilho, os seus olhos de lavrador a especular. Enfolhavam os carvalhais e nas cerejeiras breve haveria cerejas que se pudessem colher. Os ramos vinham abaixo de carregados; era uma fartura para os pobres, para os tordos, para o mundo inteiro. Debruçadas dos quintais, até ao caminho davam ar de estrada real; em volta delas a luzir, o céu fazia-se vermelho, tinha uma alegria de festa; parece que, escondida aos sentidos pecadores, se estava passando ali a epifania dos Magos. Os homens podiam erguer andores, deixar fraldejar guiões, as mulheres pôr brincos nas orelhas, que nada igualava as cerejas da árvore à dependura. Fruto pequenino e uma só abrangia o verão todo, o verão tintureiro, abundoso, melado e jovial. Fê-las Deus, talvez só para os passarinhos, mas tão boas e bonitas, que o homem cobiçou-as, e Deus anuiu, pois todos os anos as pernadas carregavam. Também as aves comiam - fossem, lá estorvá-las à hora de missa - e daí terem goelas de prata para cantar. Cantavam para a cerejeirinha criadora, para o homem que as não escondia a sete chaves como ao grão das debulhas. Não medrava a vinha na Serra, nem a laranja, nem o limão, mas cerejas havia à farta. Eram o mimo que o Pai de todos desbaratava com o serrano, sempre escasso de tudo. Breve haveria cerejas, mormente as bicais, que se pudessem comer. Os pobres iam tirar o ventre de misérias naquele celeiro de mel rosado.

   À saída do povo, o Brás topou-se com o Javardo, que viera pelo caminho das eiras, e levava meia carrada de trigo para vender. Mandaram o Júlio para a dianteira, e eles, atrás, pegaram de cavaco, ao desfastio, para enganar o caminho. Arrulhavam as rolas para os pinhais, e o Javardo falou nos centeios, comidos de rabugem e de ervas ruins, e no ano que prometia ser cainho. Como todos os abastados, o Javardo nunca estava satisfeito com os bens da natureza, pedindo sol se estava chuva e água se fazia sol. O Brás retrucava-lhe que, por aquele corrume, as arcas iam abarrotar: o pão já muito grado, e a chuvinha a cair por mandil. Em boa verdade, por baixo da lenga-lenga, iam ocupados em orçar as moedas que podia render a Galante, e na maneira mais certa de um enganar o outro.

   Tinha-lhes nascido o sol para lá da Cruz do Caetano,

quando cruzaram o Pólito, que marchava atrás da égua carregada, os queixos gasalhados num lenço de lã.

   - Homem, madrugaste?

   - Fui moer um ralão ao moinho; dormi lá… A besta seguira, os carros avançavam muito mansos, o eixo do Javardo mal soluçando um espaçado chi-ii-herú. Mas havia lá adiante uma barroca e o Javardo correu às vacas.

   - Vais à feira? - perguntou o Pólito, olhando para o Brás muito fito.

   - Não vês?!

   - Aceita o conselho dum tolo, volta para trás.

   - Homens, essa!

   - Dizem alto e bom som que emprenhaste a Zefa do Alonso. Os Narcisos, se te pilham, esfolam-te vivo.

   O Brás quedou um migalho estarrecido, mais branco que a camisa. Depois, quando o chão lhe sossegou debaixo dos pés, replicou em voz sacudida:

   - Emprenhei a Zefa do Alonso? Eu? Oh raios a partam… Eu tive lá pacta com semelhante porca? Ceguinho eu seja, Pólito!

   - Lá sabeis. Não se fala noutra coisa. Pelos modos, o Zé Narciso pôs a irmã em lençóis de vinho. Aqui tens e repito: volta para trás.

   - Nem que me metessem uma faca aos peitos! Não tenho nada que ver com tal estupor.

   - Foi ela que te acusou, homem. A barriga cresceu, cresceu, teve de vomitar para ali tudo... Meteste-te em boa!

   - Acusou-me a alma de Barzabu? Pois que venha à minha presença. Ponho as mãos numas Horas em como mente. Grandessíssima calatra!

   - Mentirá; mas olha, Brás - tornou o Pólito, estalando com a língua no céu da boca -, quando elas se metem pelos olhos da cara a um homem, não há que fugir. São umas cabras! Sabes que mais, deixa acalmar, não vás à feira.

   - Ah, isso vou. Não fui eu o varrão, não tenho arreceio. Adeus, Pólito.

   - Não vás à feira…

   - Não vou à feira? E quem me negoceia a Galante? Quem me compra as encomendas? Adeus, Pólito, aqui não há medo.

   E, batendo uma palmada no peito, largou a correr.

   Os carros dobravam o picoto que olha a Seitosa. A dissimular, o Brás reatou o cavaco, no íntimo pulsando os percalços que lhe podiam advir, e se não era mais prudente perder o mercado e recolher a casa. Mas salteou-o a ideia de que era aquele pensar de fracalhão, não contando que o Javardo podia dizer tó ruça à proposta de remeter o negócio a outro dia, e seguiu afoito. Todavia, nas abas de Seitosa, onde um atalho corta pelas matas, foi dizendo ao Javardo e ao filho:

   - Tocai lá; vou ver ali uns pinheiros e saio-vos lá adiante.

   E, de sombreiro debaixo do braço, trupe, trupe, dobrado sob o peso da caipora, despediu. Lá ao ponto em que a vereda desemboca no caminho de Barrelas, num grande trato, largo e direito, doceiras com cestas brezes à cabeça, novilhos conduzidos à corda, burrinhas passeiras, feirantes de gorra uns com os outros, choutavam rijo. As vozes e os picos, que no oiteiro lavravam lanchões para a campa do Rola usurário, alvoroçavam a campina entranhada do langor matinal. E de ver a todos, muito tesos, leva que leva, sem feias contas a ajustar com o mundo, o Brás mordeu-se de raiva, jurando ao Diabo a má cabeça.

   Os carros, porém, demoravam a dar a volta, e sentou-se numa pedra, pensativo. Esperou, tornou a esperar, passavam sempre magotes de gente, falando alto de suas vidas. Lá para o povo, na casa do Senhor Inácio Mioma, que luzia entre acácias em flor, um papagaio arremedava o cacarejo das galinhas. Já o sol apoquentava como mosca brava, e considerou que o ladrão do Javardo se teria metido na venda a apreçar alguma vaca ao ganho. Peste comesse o pegamaço!

   Esperou, tornou a esperar, batendo o sapato de impaciência, quando soaram afinal as campainhas castelhanas do Javardo, que vinham as vacas dele na dianteira. Mas c’os diabos, era só o carro dele, e muito açodado aparecia o homem, picando, que até as rodas feriam lume!

   - Ó Brás! - exclamou ele, ainda a distância - aqueles carrascos não deixam passar o carro! Iam-me mordendo…

   - Quem?

   - Os da Seitosa. Já estroncaram a aguilhada nas costas do teu rapaz. São os Narcisos.

   - Raios os confundam! - e arremeteu a escumar, cheio de fúria.

   O Javardo atirou-lhe a unha à gola da véstia:

   - Não vás, que te matam! Homem, lembra-te que tens mulher e filhos!

   - Larga-me, Joaquim, larga-me! - e, safando-se num repelão, deitou a correr, direito ao lugar.

   Eh! lá estava o carro arrumado à valeta, e a Galante a tremer, a bufar lume pelas ventas! De borco sobre as chedas, o pequeno soluçava, coitadinho. Safados! Eh! lá saía o Zé Narciso do adjunto, um arganaz nédio como texugo e farfante. Deixá-lo vir, que topava homem! O outro Narciso, o Espadagão, alto como um cipreste, talhado em folha de espada, como dizia a alcunha, fazia girar a caneca pela roda. Não beber lume no Inferno, o excomungado!

   O Brás cresceu para o grupo, que nem pestanejava, afoito mas sem petulância, com manha de se sair daquele passo sem chegar às do cabo.

   - Eh, rapaziada da Seitosa - disse ele -, então que febre vos fazem as vacas?

   - Ainda aí apareces, filho de sete curtas!? - increpou o Zé Narciso. - Vais pagar o descaramento…

   E à mão tente despediu-lhe o lodo à nuca. O Brás aparou a pancada no ombro e respondeu-lhe com uma chuçada valente do sombreiro à arca do peito.

   O outro pulou e, trás, trás, só deixou de bater pela cabeça, pelos braços, pelo corpo todo, quando o viu estrumado por terra, a roncar.

   O Espadagão vinha com uma enxada para lhe britar a cabeça, mas o Cláudio vendeiro deitou-lhe o gadanho e o golpe foi quebrar-se nas costelas:

   - Conho, em homem no chão não se dá!

   - Deixa, mano - gritou o Zé -, basta que um se desgrace!

   Acudiram pessoas, em grande alarido, de todas as portas. Da janela, o Senhor Inácio Mioma observava com olhos estremunha-dos. Ninguém se entendia.

   O Cláudio veio com um funil deitar aguardente na boca enfechelada do Brás. Tinha a vida por um cabelo. O pequeno, no meio do largo, atroava os ouvidos a clamar:

   - À d’el-rei, que mataram o meu paizinho!

   Amarelo como as rosas da morte, o Zé levou a caneca aos lábios, pô-la sobre a escaleira do patim e, passeando olhos turvos por todo aquele alvoroço, chamou o irmão:

   - Pega ali…

   E um pela cabeça, outro pelas pernas, atiraram com o Brás para o leito do carro. Depois, chamando as vacas pelo caminho de Aris, o Zé berrou ao pequeno:

   - Gira!

   O carro arrancava, quando saiu duma porteira a cunhada Rosa Gaudência, aos gritos:

   - Mau homem que seja, tem alma cristã. Tragam-no para minha casa… tragam!

   O Luís Rola, porém, chegou-se a ela e, em voz que se ouviu, disse-lhe:

   - Não quero emplastos em casa. Vá você com ele para Aris ou para o Ladário…

   Ela, então, grimpou ao carro e, acocorando-se, pôs-lhe a cabeça ensanguentada sobre o regaço. Glorinhas acudiu também e, dum salto, foi postar-se da outra banda.

   - Chama lá as vacas, menino, chama lá as vacas! - mandou Rosa para o sobrinho.

   À porta da venda ateara-se a gritaria. Águeda, a mulher do Zé Narciso, abraçada a ele, clamava num uivo ferino:

   - Ai, marido da minha alma, que te deitaste a perder! A maldição do céu venha e cubra a tua irmã!

 

   Festa de estrondo a de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens, em Peva, que botava para o tempo quente, ao depois do cair das maias. Acudiam ali todos e de tudo, a arraia grada e a arraia-miúda, doce para empanzinar um convento, limonada fresca, montanhas de bolos, e as pipas, encarrapitadas sobre carros ramalhudos, não despegavam de deitar, como bicas de fonte farta. A um canto, a rifa pejada de cacaria de vidro girava fungando. Em cima duma pedra, numa roda de bajoujos, o meliante do Tamanqueiro de Segões armava a vermelhinha.

   Passavam maltas, de varapau a estreloiçar contra varapau, varrendo nas arrecuas do batuque o terreiro coalhado de gentiaga: Viva Lamosa!

   E, ao invés, rompia outra em tromba, coberta de pó e de suor, véstia num braço, lenço em gargalheira, aos pinotes: Viva Caria! Os cabos de ordens, muito patudos, a tiracolo a escopeta com que aos domingos fuzilavam o caçapo adormecido, beberricavam pelos adjuntos.

   Lá pelas dez, começavam a erguer as procissões, muitas freguesias vindo ali cumprir um voto antigo, de cruz alçada. Armavam no Santo Antão, que tinha sua ermida a dez minutos, num morro redondo e empinado, a modo de malga de boca para baixo; e era por ali fora, até a igreja matriz, um trapezar de pendões, de opas vermelhas, de lanternas verde-rosa em torno da cruz de prata que, tirante as grandes solenidades, os mesários tinham enterrada nas arcas centeeiras, com medo dos ladrões. E, logo após, de roquete de cambraia, a tolher o sol da careca com o tabaqueiro escarlate, avançava um senhor abade, que trazia os filhos nos estudos e era famoso caçador de lebres.

   A procissão do orago entrava em arraial com o sol a prumo, quando a pele de cabra do bombo já enrouquecera a rufar. Para ela apartava o Dinis de Moimenta a fazenda menos usada: pingentes catitas, gazes recamadas de lentejoulas, tafetás luminosos, tudo na mais atrevida e espampanante arquitectura que se pode imaginar. Os andores tinham andadas, umas sobre as outras como as torres, pirâmides que pareciam maravilha e uma altura tão desconforme que era preciso esgalhar as árvores pelos caminhos. Um ano caiu lá do alto o Santo Mártir; escaqueirou-se como uma pucarinha de barro, e por um cabelo que não matou o Narciso Espadagão, que oferecera o andor e marchava à beira todo ancho.

   Quando a bicha se desdobrava das matas, no caminho plaino do cemitério, ao som da fanfarra e dos morteiros, e o sol batia de testa nos metais e latões, nos adereços e na estamparia berrante dos andores, não havia voz humana que soubesse dar traça de tanto artifício. Nossa Senhora podia dar-se por contente que nem às noivas de reis levam com mais pompa a palácio!

   Botava à Senhora Mãe de Deus e dos Homens gente das vizinhas e longes terras, e não admirava que não era ponto de fé que houvesse melhor advogada para maleitas, males ruins e até travessias do mar.

   De alto a baixo, forravam as paredes da sua capela votos sem conta, tranças de cabelos pretos, madeixas de cabelinho loiro, velas de cera virgem, mortalhas de homens de idade e de donzelas em que pegou a morrinha, coroas de pano entretecidas de florinhas de papel, oferenda de meninos esampados. Em ciganas, cordões de oiro, fios de contas, nem as barracas dos ourives, pelas feiras, tinham mais e melhor.

   A Senhora Mãe de Deus e dos Homens recebia de tudo em grande abundância e, vão lá ver, já o Santo Antão, ali a dez minutos, só pechinchava orelhas de porco, queixadas de porco, rabo de porco, e um presuntito uma vez por outra. Nossa Senhora era mais mimalha. O João da Fonte, juiz em riba e em baixo, tinha só do Santo, bem embora a fazenda fosse por lei à praça, com que untar a barbela. Mas o Santo era rico, incapaz de protestar como estava na sua cartilha de bem-aventurado, e, comendo o cura, o juiz, os fregueses, ainda ficavam sobras para a festa de ano, que caía nos fins do Inverno, ao tempo dos sarrabulhos e dos nabais.

   Era o grande patrono dos animais domésticos, estando para acontecer que vaca, égua, leitoa, bem responsadas à sua intercessão, pateassem de febre ou raio. O mesmo é justo que se diga no respeitante à engorda dos cevados. Pusesse ele o dedo, e caíam uns untos do chambaril que atestavam o tabuleiro.

   No dia da festividade, o oiteiro enchia-se de reses. Os sinos, por uma banda, dlam-dão, dlam-dão, vacas, bezerros e bois, por outra, a mugir, parece que se afundia o picoto.

   Pois o santo era mamadeira para todos e ninguém o ouvia. Pela tarde, ao desmanchar, o João da Fonte, enlabuzado de salmoira e taramela do videira, erguia o copo no divino recinto, o mafarrico:

   - Santo Antão, bebes? Não bebes, pagas.

   E o beato Antão pagava e não bufava, nem fazia queixas ao justo juiz, pois salvo o ano da grande malina, nunca o seu bom amparo minguou, por aqueles sítios, aos bácoros de ceva, às cabrinhas do monte e às novilhas apojadeiras.

   Sua comadre, Nossa Senhora, não era menos bizarra no seu ramo. Um guardava o gado, a outra os homens. Também era um céu aberto a sua comemoração - prédica em que chorava a velha e a nova; missa a grande instrumental com zumbaias de clerezia, barrelas de incenso, cada tocata de clarinete que nos céus os serafins deviam de calar de vergonha seus pífaros de prata; gente a rodos, à cata do desenfadamento bem merecido com sachas, mondas e vessadas; e até sol, um sol em cachão que aquece e não abrasa, muito longe do da canícula, que põe o ar dança que dança diante dos olhos, e lembra o Demónio com a fralda da camisa a abanar.

   Festa rija!

   Frente à pipa do Cláudio, na zoadeira do bombo, os da Seitosa sapateavam a chula; os de Aris tinham-se ficado em seus barrocos. Só o Chico Brás, causador da rixa que lavrara todo o Inverno entre os dois povos, ousava meter à freguesia donde antes fora levado num santo sudário.

   Andava com a mulher, de chapéu derrubado sobre os olhos, muito composto e sério, não me toques que eu não te toco. Amigos certos iam mesmo perguntar-lhe pela obrigaçãozinha. A par deles, Rosa Gaudência, em capucha, porque era mulher de recato e humilde, não fartava de se benzer:

   - Tinhas um santo a pedir por ti, cunhado!…

   - Lá isso tinha. Pode-se mandar pintar num retábulo corroborava Rita.

   - …e sete fôlegos como os gatos.

   - Pega lá uma pinga - atalhava ele, de caneca a transvazar. - Escarapuça.

   Molhava os lábios.

   - Assim não é de valha; arrima-lhe!

   Muito rogada, tirava um bom trago.

   - Ninguém o havia de dizer! - tornava ela, de olhos fitos no Brás, fero e rijo a desafiar um toiro.

   Rita, em voz plangente, contava mais uma vez do seu fadário.

   «Ai! o seu homem estivera às portas da morte, já ninguém o julgava! Veio o Senhor a casa e ela tão doida do juízo, tão doida, que nem sabia como acertar a tirar lençóis lavados da arca com que receber Nosso Pai. Meteram-no na cama, a cabeça estava mesmo uma bola quando se amassa. Dava engulhos vê-lo.

E vai, mandou-se chamar o barbeiro da Lamosa, e o Senhor Tobias, que é homem sabedor do mundo, foi em pessoa buscar o médico, a cavalo na égua. Louvores a Deus, a casa ainda tinha por onde puxar. Ai, nem com o sangue das veias pagava os favores que devia àquele Senhor Tobias!

   «O barbeiro breve chegou com a arte numa saquinha de chita. Estava mesmo a vê-lo entrar de socos, carapuça azul - das singelas - até às orelhas, e aquele carão feio, aquele carão de fome que Deus lhe deu. Mirou-lhe o homem, tornou-o a mirar e pediu aguardente para lavar as brechas, murtinhos e ortigas moídas em vinagre para as pisaduras, e que também não seria mau bichas com que lhe cobrir o corpo todo. Enquanto foram à procura duma coisa e doutra, pôs-se a folhear o alfarrábio. «É isso - tornou dali a migalho -, aguardente, bichas, e cataplasma por toda a parte em que tenha mazela. Unguento de basificão era oiro, sobre azul, não há cá. E é preciso deitar-lhe pontos!» Sabia a irmã quantos pontos levou? Trinta e dois. Parecia mesmo a cosedura dum saco roto. Coitadinho, o seu Luís tinha perdido o acordo, fora o mesmo que espetar a agulha em toucinho da salgadeira. Era uma voz em geral que estava a despedir.

   - Passou, passou! - disse-lhe o Brás vendo-as chorar. - Mágoas não pagam dívidas.

   «Ali esteve o barbeiro sentado numa arca a gingar, a dizer por brutidade que, se o seu homem escapasse, ficava azoratado. Bonitas sentenças! Que havia de ser da casa sem um homem com o tino todo, de portas a dentro?! Ali esteve, e era um ror de pessoas, umas a entrar, outras a sair, e quando mal se precata já se não viu o barbeiro. O diabo do homem cheirara-lhe ao médico e com arreceio dele pusera-se ao fresco. O senhor doutor apareceu à tardinha, quando as bichas já andavam a sugar pelo cadáver do desinfeliz. Era um homem muito esquisito, de poucas falas, acoimado de maçónico à boca grande. Entrou dentro, tomou-lhe o pulso, mal lhe deitou um olhar à metola e saiu para o patim. O Senhor Tobias foi logo atrás com ela fisgada: - O homem vai-se? Veremos - respondeu ele. - E então que receita? - Deixem, deixem pastar as sanguessugas. E deita para cá vinte e cinco tostões e aqui me torno por onde vim. Ai, irmã, muito triste era a vida dos pobres!

   - Deixa-te de macarenas, mulher! - interrompeu o Brás. - Vinde à procissão que lá vai a sair…

   Rita olhou para os guiões que esvoaçavam em frente à galilé e, sem arredar, que havia tempo, foi contando:

   «Quinze dias esteve com os pés para a cova; fez-se branco como a cal, depois verde, depois tornou a pintar de vermelho. E, passante as duas semanas, um sábado à boca da noite, abriu os lábios para dizer: a Galante? Foram as suas primeiras palavras. A Galante estava farta e rija na loja, que abonara o Senhor Tobias onze moedas para meter na boca do Javardo, visto não lhe desamparar a porta, o grande cão! Vai dali começou o seu homem a beber umas colherinhas de leite, mas resulho nem à fina força lhe passava nos gorgomilos. E então sempre a delirar, umas falações atrás doutras, ora chorão, ora raivoso, que nem sabia onde tivera miolos que tanto sonhassem. Uma manhã, era feira de mês na Rua, vira-o nas últimas. Plantara-se a chorar aos pés da cama e, vai senão quando, o pobre abriu os olhos e proferiu: «Chama-te à Senhora Mãe de Deus e dos Homens, mulher, que se me vejo salvo hei-de no dia da festa levar-lhe um círio da minha altura.» Coitadinho, não queria morrer!… Ali esteve a mais de um mês a caldo e a leite. Ela tanto rezou, tanto rezou que já tinha a cabeça maluca com padre-nossos. Muitas promessas tinha que cumprir! Quem a via seca e mirrada dizia que o coveiro, a abrir hoje a cova para um, abriria amanhã a cova para outro. Mas muito se engana quem cuida! Lá foi indo, lá foi indo e, quando voltou bem a seus sentidos, ali clamou em voz alta que não dessem parte à justiça. Que não e que não! O processo já estava a correr; pois teve de se fazer alto, quando não aquele homem entisicava. E ela que tanto queria ver o negro do Narciso malhar com os ossos na costa de África! Pois por uma mulher sem honra há-de-se matar um homem casado e pai de filhos? Não, ela, por sua parte, nem no Céu nem no Inferno lhes perdoava. Nem a ele nem à tinhosa.

   - Anda para qualquer hora - segredou a irmã.

   - Pois que ande e que em vez duma alma cristã um lobisomem lhe saia do fole! Calatra, ia-me dando cabo do marido! Que seja tão perseguida, tão perseguida de trabalhos como de areias há à beira do mar!… Mas eu ia contando, o meu Francisco não quis meter a justiça na malhoada. Não houve termos de se convencer. Pois mais valia! Anda para aí o assassino todo farófia, que cuida que é meter uma lança em África malhar num homem desprecatado. Já para aí o lobrigámos; os olhos do meu Francisco até deitavam lume! Ai, Nossa Senhora me valha, eu conheço-lhe o génio, em o pilhando a jeito esgana-o. Pobre de quem nasceu com’a mim em má sina!

   - Ná, ele agora não se mete noutra!

   - Tomara eu que descessem a procissão para largarmos. Se visses a minha alma por dentro, Rosa! Está negrinha, negrinha como um tição. Viemos cumprir o voto mas estou morta por me ver ao largo. Olha lá saem os andores…

   De chapéu na unha, em frente delas, o Brás observava a procissão, que vagarosamente se desenrolava da igreja. Os pendões em fila rompiam marcha, fraldejava já a sua grande asa vermelha, branca, cor de vinho, sobre o formigar negro do povo. À porta principal, os valentes botavam andores ao ombro.

   - Já o Francisco se sentava na cama - reatou Rita «para contar o passo todo» - calha passar por ali o médico, mais outro sujeito. O senhor Tobias saiu-lhe ao caminho e falou-lhe. Por modos esperava ouvir que a terra mo estivesse a comer e ficou muito admirado. Lá se persuadiu e, dando de rédea ao cavalo, foi vê-lo. Tirou-lhe as ligaduras da cabeça, e, vê tu, desta feita palpou, tornou a palpar, escutou-lhe o peito, desengonçou-o todo a fazer bulir com as pernas e braços. Depois pôs-se a tirar dele como um padre que confessa. Vejam o bruxo do homem!… Quando lhe pareceu que era demais sacou uma carteirinha do bolso e pôs-se a rabiscar. «Pegue lá - disse olhando para mim -, mande à farmácia e molhe os panos na água que lhe hão-de aviar.» Aceitei o papel, mas com tenção de o deitar ao lume. Pois só quando ele começava a endireitar é que vinha com a cirurgia?! Mas o Senhor Tobias desaconselhou-me e mandei à botica. Veio o remédio, foi medicina abençoada. Até parecia um cão a   comer-lhe a carne podre da cabeça! E, vai, ali esteve o médico, e ali se pôs a falar com o parceiro que até era um encanto ouvi-lo. A gente não aprendeu nos livros, não sabe, mas sempre percebi que dizia lá por palavras suas: "Acabo de ver quanto o nosso juízo nos falseia. Julguei este homem perdido, não quis receitar. Abandonei-o a ele mesmo e não fiz mal. Vingou a máquina, mas para tanto é preciso não ter água childra nas velas e, sim, a robustez do homem de há milhentos anos. Só um serrano! Pois era para derrubar um cavalo!»

   - Não tinha de morrer! - sentenciou Rosa.

   - Virei-me para ele a perguntar quanto devia. «Nada», e saiu todo ancho. Olha, ele será um maçónico, mas ainda não é tão mau como dizem aquele senhor doutor José Castro da vila.

   - São pessoas que nasceram para o saber…

   - E queimaram muito as pestanas… Pois aqui está o homem e, louvores à Virgem Nossa Senhora, não ficou com aleijão, nem falho do entendimento. Lá a cabeça tem tão cosida, tão cosida que nem uma saquinha de amostras. Mas já lavrou uma leira, e andou a arrancar pedra na serra mai-1o filho. Assim ele agora tenha juízo…

   - Foi milagre!

   - Milagre da Senhora Mãe de Deus e dos Homens, por isso aqui estamos…

   Rita, ao despedir estas palavras, deitou os olhos em roda e não viu o seu Francisco. Ia a chamar e soltou um grito. Ai! lá se botava o desgraçado!… O Zé Narciso passava por diante, com o guião vermelho encabado na faixa preta, muito grave, de corrente de prata à cinta, no meio da malta de Seitosa. O seu homem pulava para ele e cravava-lhe no seio a faca de matar os porcos…

 

   Quando recobrou os sentidos, viu-se numa roda de fidalgas, na casa da aula, e uma delas dava-lhe água a beber por uma xícara.

   - O meu homem? - exclamou ela.

   - O seu homem fugiu.

   - Fugiu? Senhora o leve a porto de salvamento.

   - Esfaqueou o Zé Narciso...

   Ouvindo isto, deitou-se de borco sobre a mesa, a soluçar. Chorou, chorou, ali esteve por muito tempo, sozinha e abandonada, só dando fé dela para a mostrarem a dedo. Sua irmã Rosa tinha sido puxada dali pelo genro, o Luís Rola, que nem por sombras queria dares e tomares com a justiça.

   Era já pela tardinha, quando o Zé da Claudina e outros farsolas entraram de varapau na sala da aula.

   - O ladrão escapou-se–nos! - disse o Zé, todo esbaforido. - Levámo-lo até Segões a toque de rufo. Na Ponte do Miguelão tivemo-lo pilhado, mas deu uma facada no braço de Alberto Narciso e fisgou-se. Tanta pedrada lhe demos, que quando chegou ao povo já o sangue lhe chapinhava nos sapatos.

Algum tiro também o havia de atingir. Quisemo-lo arrancar para fora de casa do Gonçalo, onde o excomungado se foi meter, mas o Gonçalo prantou-se com uma espingarda à porta e em voz alta jurou que morria o primeiro que passasse do traço para dentro. Acudiu o povo, lá ficou, com um raio que o confunda mais à sorte que tem. Aquilo fez pacta com o Diabo!…

   O Zé Narciso apareceu muito pálido à porta de comunicação. Levantava-se da cama do professor para onde o tinham levado em braços. Valeu-lhe achar-se presente o Doutor Hermínio, de Barrelas, médico muito entendido para tudo, que lhe acudiu ao sangue e lavou a facada. Mas a grande salvação foi a lâmina emperrar na carteira de coiro e ter torcido rumo. Escapou de boa… E ali estava ele a ouvir e a abanar a cabeça, como que a afiançar a aliança do Brás com o Porco Sujo.

   Do fundo incendido do coração elevou Rita uma oração a Deus. E num momento de descuido, quando ninguém se importava com ela, safou as soquinhas dos pés, enfiou cada uma em sua mão, e meteu de vereda para casa do Gonçalo.

 

   Na venda do Cláudio, em Seitosa, jogava-se rijo ao chincalhão. A rapaziada, como as noites eram grandes e o vinho novo sobre o barato, caía ali como pardais na eira. O Zé Narciso, empunhando o baralho, punha um quartilho e um bolo e, partida puxa partida, saía-se dali noite velha, depois de os galos cantarem.

   Estava feito o sementio dos pães e dos nabais, e cabaneiros e lavradores abalavam para a serra a rapar o codeço e o tojo com que lastrar novamente os estábulos. Vinha lá o Inverno - ouvia-se zoar muito a ribeira, e a serra da Estrela mostrava desde a ante-véspera os corutos emaçarocados de neve. E a chuva já estava em atraso, o grão por grelar na terra esmilhenta, onde os borborinhos faziam espojadoiros pasmosos de lobisomens.

   Seitosa ia-se acomodando à vida de inverno. Alpendres atestados de lenha, os pretos - com vosso perdão - a caminhar para o chiadoiro, arcas cheias, a semente lançada à terra, o ladrão podia vir mai-la sua grandessíssima récua de excomungados, o carujo, a saraiva, as moscas brancas, e otaró de rachar. Capucha de burel, apisoado em Frágoas, em volta do peitaço, morca farta de torresmos, socos de encoiras altas, o serrano estava-se nas suas sete quintas e deixá-lo zurrar que se acabasse o Mundo!

   O sol ficava em casa de Deus, e os dias tinham a tristura das igrejas em semana de endoenças. Pelos morros, os pinhais, muito crestados da canícula, pareciam procissões de enterro, paradas a rezar.

   O grande cão entrava sempre assim, enfarinhado de cinzas, manso, com a capa de penitente. Depois, rompia aos uivos que nem cem matilhas a um lobo. Por aqueles oiteiros arriba era o soão quem mais bramia, parecendo ora vozes a pedir misericórdia, ora bocas desdentadas de feiticeiras em despique danado. Os seres vivos acoitavam-se nos refolhos; raro uma lebre largava diante dos gados, animando a devesa imóvel de sua fuga alerta; um mocho, ao alto de uma penha, com a cabeça recolhida entre as asas, tinha o ar de quem espera o fim do Mundo.

   O rio, aos pés da folha, num reboar constante de artilharias a trote, crescia até o rés das terras altas, tolhendo ao viandante e ao carteiro da vila com as cartas do Brasil o passo de alpoldras e pontões. O temporal abatia árvores, derrotava telhados, estoirava a madre às nascentes, alagava tudo, quase se via mais mar que terra. Nas noites luarentas, acendiam-se os charcos e eram espelhos, estendais de espelhos de lume vivo, onde a Lua e as estrelas se miravam, e até anjos e Nossa Senhora, se chegassem a uma janelinha do céu, veriam o rosto fagueiro.

   Nessas noitadas, o pensamento, não topando quebra, ia direitinho ao trono do Senhor. Ele, ou alguém por ele, lá devia estar segurando no ar a pesada bola da Terra, tocando a noite, trazendo o Sol, de volta, pelas portas do Oriente. Ele, que dava o pão e as cerejas, o vinho que fortalece e chega lume ao coração, a água fresca da fontainha ao viandante, a vida a uns e a morte a outros, bem repartindo tais dons, sem o quê não caberia a gente no Mundo! Bendito fosse ele pelos séculos dos séculos, que em tudo era poderoso, na dor e na alegria, no amor e na raiva, na peste, na fome e na guerra, levando para o Céu lavradores e pobrezinhos, e atirando para as profundas dos Infernos reis, doutores, papas, padres, escrivães da fazenda, e toda a cambada de grandes! Bendito ele fosse!

   Podia vir vindo o Inverno, que arrasa as fontes e estruma os montes, com os seus borrifeiros de aviso, que a folha estava uma samarra pelada, e os gados só pelos carrapitos descobriam fêvera para se desougar. Pariam já cabras pelos rebanhos, e nos atalhos as mães, atrás da pastora com o chibato ao colo, ciosas e famintas, de olhos na cria, esbarregavam-se a balir. O papagaio do Senhor Padre Francisco, que lhe dera o Libânio há mais de vinte anos, entorpecia horas inteiras na gaiola, murcho, sem bulir nem tugir, a cismar na morte da bezerra, o língua excomungada. Ah! Pai da vida, vinha lá um Inverno!…

   Já eram longas as noites, fartava-se uma alma cristã de dar tombos na cama. Bem ia para os vendeiros a quem sobrava tempo de passar a veniaga.

   Na tasca do Clementino faziam roda os pacatos, aqueles que, depois de tornar a água dos lenteiros, davam um giro pelo forno, quedavam uns minutos com o queixo especado no cabo do sacho e partiam à deita. Na do Cláudio, que era um correntão, com bons compadres na vila, e só tinha uma balda, ser um femeeiro de estrondo, abancava a rapaziada que tem o sangue leve e gosta de jogatilha e de zanguizarras.

   Reparassem-lhe para as meninas dos olhos, em que a palheta azul, azul de gato, era mais buliçosa que um raio de sol, e ficariam a saber quem reinava. Invejavam-no uns, aborreciam-no outros, mas só pelas costas se permitiam escarnecê-lo:

 

               Cláudio, Claudelas,

               emprenha cadelas!

               No tempo das uvas,

               emprenha viúvas!

               No tempo dos nabos,

               emprenha diabos!

 

   Por estas e outras, mais dum bonifrate lhe provara a mão alceira e bem calibrada.

   Depois da ceia, quem ali vinha, sem quebra duma só noite, beber o seu meio quartilho era o Zé Narciso. Entravam parceiros e, reclamando o baralho, mas o bom, que não estava marcado de traição como o tal Judas Iscariote, rompia o chincalhão.

   O Zé Narciso dobrava muito a carta na cova da manápula, a despistar o rabo do olho mais rabino. E corto, trunfo, bisco, só o João Lájeas, um gago igual em ronha, se media com ele no trancafio. À bisca samarreira ou de seis, em que o às arrebentando com a manilha do naipe decide a partida, à bisca de quatro, quando se botam condes e dama para casar, o Narciso tinha a mesma sorte de bruxo adivinhão.

   - Quem o não fez cigano, - diziam-lhe os pagantes  errou-lhe a carreira. Vossemecê era capaz de engazupar o Canhoto!

   O mestre ria e refocilava na caneca.

   Uma noite de sábado, obra de dez horas, ia grande zafarrancho na venda do Cláudio, ouviram-se foguetes à entrada do povo, da banda de Barrelas.

   - Brasileiro! - exclamou o Zé da Claudina.

   - O machucho, que é, vem para os torresmos da matança.

   - Má mula! São melhores que a carne seca da Sapucaia!

   Quem é, quem não é, ora quem havia de ser? O Luís Alonso. Entrou de rompante, todo liró, lenço amarelo ao pescoço, palhinha na cabeça, centenário a pular na corrente. Um riquichito! Pois ninguém botava o pensamento nele, porque só na cabeça dum asno cabe queimar foguetes à chegada ao cortelho, em que canta o cuquinho. Aquilo o pobre patola não sabia da tropeçada que tinha dado a bácora da mulher! Pois, sim senhores, parecia um fidalgo, cara balofa e branca, bem enroupado, nédio, e nem admira, que este ofício de andar ao trapo não escalda as unhas como o gadanho, no Bota-Fogo, a carregar os saveiros. Um lavrador, que voltava da Vouga, trazia-lhe a mala nas chedas do carro, uma destas malas em coiro felpudo de vaca ratinha, cravejada de brocha amarela, com iniciais na tampa da mesma pregagem sobre tira vermelha. Pesava como um morto, e o Zé Narciso, que agarrara à argola, comentou:

   - Traz contrabando!

   O Alonso riu:

   - Contrabando, ná, não traz. Na Alfândega de Lisboa são capazes de virar a tripa a um percevejo. Só um rolo de fumo…

   - É uma senhora mala!

   - Bons dez tostões que me mamou o cangalho da diligência.

   Vinha pingueiro e mandou deitar meia canada para o adjunto e o lavrador que queria seguir derrotina. E, enquanto a caneca girava à roda, foi dando, muito concho, informes daquele salto a Portugal, resolvido, que a cabeça é vária, do pé para a mão, por fantasia. Tinha ganho uns vinténs; o Rio estava mais batido que mulher do fado; vieram-lhe soidades das berças e da mulher. E como estava ela, cunhado?

   - Não há maleita que lhe morda!

   Ia para quatro meses que não sabia dela… é verdade. Por modos já não havia escrivães no povo! Terra de maldição! Os que aprenderam a rabiscar o nome navegavam, e o padre - esse sujaria as mãos se lhe pedissem duas regrinhas de graça. Ah! Deus tivesse na santa glória o tio Manuel Abade que não precisava que o rogassem duas vezes para escrever a um vagamundo. A malta do Rio, pelo que lhe dissera o Jaime Gaudêncio, ficava toda boa. Boa, mas o Rio já não era o Rio. O italiano e o espanhol tinham derrancado o trabalho. Depois, passagens caras e más. Viera no Malange, um mazombo de paquete que andava à tona como tubarão escaldado com abóbora. À passagem da linha, estivera a deitar a cama das tripas com o afocinhar do calhambeque. Perdesse o nome que tinha se aceitava mais algum dia viajar no francês! Uma putreia, comida para negros, beliches para condenados do Inferno. Boa a Mala Real, mas para melhor o alemão. O alemão, tempos àquela parte, batia a tudo o que andava no mar.

   Estavam todos silenciosos em volta dele e com caras de enterro. Muito enfronhado na capucha, o Zé Narciso pegara à parede a ouvir, a cuspinhar. E, dobrado sobre o mostrador, as mãos enclavinhadas em turquês, o Cláudio, embarcadiço duas vezes, grunhia hum! Hum! que é, como reza o outro, estou ouvindo, dizes bem. Mas o balordo, todo ancho da sua roupa preta no meio dos capucheiros, soberbo do cá estou, nem reparo punha nas trombas murchas dos patrícios.

   A caneca estava no fundo; veio mais um quartilho.

   - Bebei, rapazes; um dia não são dias. Tomai lá fumo…

   E metia-lhes à cara um macinho de cigarros, com pontas doiradas.

   - Olha, cigarros de lorda! São do Rio?

   - Ná, estes, se calha, comprei-os em Viseu. Puseram-se todos fumando de vigairada, e o Alonso, muito trôpego das pernas e da língua, a querer saber da corga que comprara à Leocádia Afonsa por vinte e Uma libra. Dera boas novidades?

   - Bagatela - respondeu-lhe o Narciso -, foi mau ano de renovos.

   Moeu, contou depois dos bons biscatos que topara nas suas rondas de trapeiro, até que, sentindo pesar-lhe o silêncio, disse para os presentes:

   - Ó rapazes, há aí dois pimpões que me ponham a mala em casa…?

   Iam a adiantar-se uns moços, mas o Narciso, sacudindo-os com o cotovelo, ordenou para um rapazote já espigado que ouvia de boca aberta:

   - Pega dali, sobrinho.

   O rapaz travou da argola, mas os tamancos zarelharam-lhe sob a carga.

   - Aguenta, galeote! - berrou-lhe o tio. - Para onde metes os feijões que comes?

   E a impar, ele adiante às arrecuas, o Narciso atrás, sacaram o baú para a praça. O Alonso salvou, numa voz, a todos os cidadãos presentes, e desandou na cola do seu haver.

   O terreiro disparava dali em quelhas e vielas que metiam cada uma para seu lado, como varetas dum sombreiro. Logo por castigo, a casa do Zé ficava na banda oposta à do Alonso, e para lá iam ambos em carreira direita com o baú.

   - Para onde ides? - gritou-lhes o brasileiro. - Eu já não verei o caminho?

   - Cunhado, vamos para minha casa...

   - Para tua casa!… Fazer o quê?

   - Lá te direi.

   - Homem, em primeiro está a mulher.

   - És meu amigo, cunhado?… Anda daí…

   Como estava afeito às tiranias do valentão, o Alonso seguiu atrás deles tataranho de todo, dando topada que feria lume. Mas, passos andados, metia-se-lhes nos pés, gaguejando:

   - Para que há-de a mala andar para trás e para diante? Vai-se pôr outra vez ao vendeiro.

   - Não, a mala vem.

   Avançaram meia dúzia de metros e o Alonso considerou:

   - Percebo, Zé, desconfias que te não dou nada do que trago a ti e à tua mulher… Descansa, sereis convidados…

   - Não te quero nada!

   - Não queres nada?

   - A peste me coma!

   A voz do Narciso era seca e decidida, e o Alonso novamente malucou que deitara mau juízo.

   - Não foi para te ofender… Perdoa, cunhado.

   - Estás perdoado… Vem daí.

   Puseram-se a caminho ombro a ombro, mas não tardou que o Alonso, ganhando ânimo, volvesse a petar:

   - Mas porque não vamos primeiro por minha casa? A patroa não fica contente…

   - Que se contente!

   Obra dum tiro para lá da venda, o Alonso suspendeu-se:

   - Não é bonito. Levai a mala. Eu sei os andanhos.

   E ia a desandar quando o Zé o filou pelo braço:

   - Vem, cunhado, não é para teu mal. Por tua mãe, que lá está, te peço…

   A voz branda do Zé deu-lhe ousio e, indignado, ergueu o tom:

   - Diabos te carreguem, não hei-de ir a casa?! Cuidas que sou algum palha-malhada…

   O Zé não replicou e mais se enfureceu:

   - Não hei-de ir a casa?! Até parece troça! Queres a mala, leva-a com um raio que te parta mais a ela. Dá-se-me tanto do que traz dentro como de penas a voar.

   - Cunhado, o que traz é sagrado. Ninguém lhe toca, fosse ele oiro em pó. Mas houve, anda comigo… para desgraças já basta.

   O Alonso, piteiro como estava, deu fé que alguma coisa ruim escondiam. E, a chupar muito a beata, foi caindo em si, olhando em roda para a sua vida. Estava um polvilho de luar, e os dois tinham a vista muito fita… marrada nele.

   - Mas que foi, Zé? que foi?

   - Dize lá, alma do diabo! dize lá!…

   - Vem comigo, desventurado.

   Que tal disseste! Ali rompeu ele aos gritos e soluços tais que, em menos tempo do que se abre uma mão e se fecha, alvoroçaram o serão da Chilandreira e a gentiaga na venda.

   - Morreu a Zefa!? Dize lá, morreu a minha senhora!?

   - Sossega, não morreu.

   Ele, porém não ouvia e continuava a clamar:

   - Ai, mulher da minha alma! Rica mulher da minha alma! Que fico eu cá a fazer sem ti?!…

   - Sossega! - berrou-lhe o Zé, e arremessou o saco à boqueira da quintã donde partiam risos.

   À porta da taverna, receoso, o magote tresmalhou de pronto. O Zé correu ao Cláudio:

   - Compadre, o homem não sabe do feio passo que se deu. Vem-me ajudar a metê-lo em casa…

   O Alonso continuava a carpir-se em altos brados, desvairado, de mãos estendidas por uma parede, como se nela fosse a crucificar-se para lenitivo da sua dor. E foi necessário, para lhe trancar a gritadeira, que o Cláudio lhe azoasse à orelha uma destas palavras que amachucam e de que só ouviram o final.

   - Já vês que não morreu… Antes morresse…

   Bordejando e aos tropeções como homem que leva as tripas na mão, deixou-se conduzir pelo braço do taverneiro. Em casa do Narciso contou-se-lhe a bacorice toda da mulher, Santa Justa, com o Brás posto num lázaro em dia de feira, e o Narciso esfaqueado na procissão de Nossa Senhora, de estandarte em punho. Eh, não havia maleita que lhe mordesse, nem a ela, nem ao rebento do cuqueador!

   O Alonso, vermelho como baeta vermelha a tanta vergonha, escumando pelos cantos da boca, deitou ali pragas que o céu tremia. E não se cansava de repetir:

   - Hei-de matar aquela desaforadíssima reca! Hei-de  matá-la!

   O povo ia de alevante, e pelos serões não se falava noutra coisa. Vozes surdas cochilavam pelos quinchosos. E, uns após outros, vieram os da familagem saudá-lo e dar-lhe conselhos de paciência.

   - Hei-de matá-la! - respondia a todos.

   - Não te deites a perder, mano! – dizia-lhe a Felícia, que estava casada com o Cassiano Catrino, irmão do troquilha de vacas e de carneiros. - Bem bonda o que se passou…

   - Só depois de a matar, terei descanso. Hei-de coser-lhe a pele às naifadas.

   Rosa Gaudência, que se atrevera a botar até ali, embora irmã da Rita Brás, o que ninguém podia levar a mal dada a intromissão que tivera naquelas más andanças e porque queria saber notícias do seu Jaime, cilhando as mãos por baixo do avental exclamava:

   - Ai, ele as mulheres são ruim gado! Pois não são?!

   - Hei-de furar-lhe a badouga, zás, zás, zás! – e com a mão fazia trejeito de quem espeta.

   - É o que os patifes da justiça querem! – proferiu outra voz. - Deita-a à margem e acabou-se.

   - A margem há-de ser boa! Porca tinhosa!

   E era um nunca acabar de gente que entrava e se punha, em ares de piedade, a esperluxar a pouca-vergonha. O alarido foi crescendo, e o Zé Narciso, desesperado, correu pronto a trancar a porta. Duas madragoas escutavam rente à parede, e lançou mão dum vergueiro; elas moscaram lépidas como cabras.

   - Calatras! - gritou ele às sombras que fugiam.

   De escancha-perna sobre o baú, na roda de caras aparvoadas, o Luís Alonso reloucava: «Ah, sina safada, fartava-se um pândego de cuspir às unhas, de fazer o vaganau, de botar os bofes pela boca fora a granjeá-lo, e vai o calhatroz de uma zabaneira não tinha pejo de sujar as barbas dum homem! Irra, era preciso ser cabra! Tanta amizade lhe pusera, tanto dinheirinho lhe mandara, nada servia de estorvo à sua má colada. Refinadíssima curta! Avaliavam quantas moedas lhe remetera para a terra, depois de dois anos e três meses de Rio? Ia à beira de setenta e cinco. Melhor fora comprar sénica e dar-lha de beber… Oh! maldita a hora em que se cometera de semelhante coira!»

   - Escurece, compadre! - exortava uma.

   - Dá-a ao desprezo! - induzia outra.

   Ele continuava no seu murmurinho:

   «Ah, a gente sabia lá o veneno que cada um tem no interior?! Sabia lá! Pois aquela mulher era pior que a víbora traidora que rompia o selo da mãe que a gerou. Mas deixa… negro ele fosse, tolhidinho de pés e mãos, se ela não pagasse a desfeita com língua de palmo, Havia de furar-lhe o saco da cachondice a ponta de naifa, e depois arrastá-la para um cabeço onde os cães e os corvos lhe fossem espatifar o cadáver. Até o Pai do céu perdoava! Pois tanto trabalhinho, tanta alegria em tornar a vê-la, e dava um homem de cara com uma pandorga que não respeitara lei nem santidade! Havia de matá-la! Que o mandassem para as Pedras Negras, embora, morra um homem e fique fama! Alimpava, aldemenos, face borrada! Tanto trabalhinho!… tanto!… Se vissem as prendas que lhe trazia!… Tudo o que era bom!… Havia de gozar-se da ponta dum chavelho!… »

   E, coberto de lágrimas, sacando a chave do bolso, abriu o baú. Vinte olhos, a arder como brasas, poisaram nas grandes lindezas que trazia - roupa branca que nem de fidalgo; garfos e colheres para uma malhada, ainda que desirmanados; garrafas catitas, para licores, algumas com figurinhas no bojo; uma gadanha para a sopa; canivetes, mais de dúzia; tesouras, botões de farda e de paletó, um relógio com música, tudo o que caía, pelas manhãs alvacentas, na sua rede de farrapeiro. E, de mãos a tremer de gozo e de cobiça, a mulherada pôs-se a espiolhar-lhe a mala, a mexer, remexer a admirar:

   - Que riquezas!

   Há aqui um par de vinténs! - disse ele para o rancho de babosas.

   Pegando numa rica saia de seda, cor de vinho, muito pouco esburacada, atirou-a ao regaço da mulher do Zé. E pega tu! mais tu! rompeu a distribuir as maravilhas, dois garfos para esta - são de prata legítima! - um par de tesouras e uma garrafa àquela - é para a cachaça! - roupa fina e um saiote, pelas parecenças pouco usado, à bostiqueira da irmã. E, dando corda ao relógio, que se pôs a mascar, tim-tim, tim-tim-tam, uma modinha do céu, proferiu:

   - Para ti, cunhado.

   A mala despejava-se; mas entre o fato de cote, aos cantos, havia ainda navalhas, pentes, ganchos do cabelo, toda uma feira bem sortida. Aquelas corujas, que outro nome não mereciam, prantaram-se a piar:

   - Homem, trazes tanto canivete! - dizia uma. - Este fazia-me jeito…

   - Essas ganchas iam bem no cabelo da minha Joana -

murmurava outra. - Traz umas guedelhas!…

   E não se acobardavam de pedir e de embolsar.

   - Olha agulhas! - Olha um assobio de prata! Que dedal tão bonito! - e peça por peça, tudo se sumia na patrona do mulherio.

   O cunhado, vendo a abusão, foi dar um pontapé no baú:

   - O que é de mais cheira mal! - e ali se cispou a mala sobre as prendas que o homem colhera manhã a manhã nos barris de despejo, a escorregar para as sarjetas, na cidade pródiga do Rio.

   - Deixa, cunhado… estou viúvo! Abrindo outra vez a mala arrancou de dentro um xaile, mas que rico xaile!, com rosas de várias cores, franjas compridas, muito felpudo, mais lindo que o manto de Nossa Senhora. Estenderam-se logo dez mãos a apalpá-lo, trémulas e inquietas. Mas o Zé safou-lho de rompante, bramindo:

   - Ide à sirga! Quereis sugar o tutano do homem?…

   - Deixa cunhado… Estou viúvo!

   - Passa as marcas!

   As mulheres deram um passo atrás, envergonhadas. E, ciosas de seus haveres, foram-nos amochilando debaixo dos aventais da garra do Narciso, atrevida. No grande silêncio que se sucedeu, ouviu-se soluçar. Estavam a gemer à porta…

   A mulher do Narciso consultou o homem com um olhar.

   - Vai ver, Águeda - disse ele. Destrancou a porta, e um choro convulso, de cortar a alma, encheu a casa toda.

   - É vossemecê, mulher?! - pronunciou Águeda.

   Um vulto estava de joelhos no chão, a cabeça sobre a soleira da porta, e arquejava.

   - Vá-se embora que a mata!

   Mas o choro tornou-se mais forte, alto e agudo como um uivo. O Alonso deu um pulo; o Zé segurou-o com aqueles seus gatázios que retinham uma égua pelas clinas.

   - Larga-mel!… larga-me!… - exclamava o Alonso,    debatendo-se.

   - Não!

   - Larga-me!

   - Não. Aqui em minha casa não lhe tocas.

   - Raios te partam!

   - Sossega, homem!

   O Alonso estrebuchava, cheio de cólera:

   - Deixa-ma esganar.

   No patamar, as mulheres persuadiam Zefa a que fosse para a cardenha e se fechasse por dentro a sete chaves, senão o Alonso era capaz de lhe tirar as meninas dos olhos. Ela mais gania:

   - Mata-me? Deixá-lo; é meu homem… Rosa Gaudência lembrou--se de puxá-la para a rua, pelo braço. Jesus, atirou-se a ela como uma loba. Queria ver o seu homem, e que a matasse, perdoava-lhe a morte!

   Alvoroço dentro, alvoroço fora, Águeda fechou a porta. E ali se pôs a Zefa a gritar, a dar com a cabeça pelas paredes, com tanta fúria que nem zorata. E foi preciso deixá-la entrar, que se matava sem confissão.

   O Alonso estava bem seguro; ela entrou, a cara cheia de sangue, lá porque se arranhasse ou batesse com ela pelas pedras, os cabelos destrançados, a blusa em farrapos. E deitou-se aos pés do marido, a soluçar:

   - Marido da minha alma, mata-me que te atraiçoei!    Mata-me… Mereço-o…

   O Alonso desviou a cara para a banda e foi lançar-se sobre o baú, banhado em lágrimas. De rojo a gemer seu pecado, a Zefa foi para ele:

   - Mata-me! Mata-me!

   Pela blusa em mondongos via-se o colo todo, e uma das mamas, cheia que nem odre cheio, mamilo como morango pisado, saltara-lhe do colete e bimbalhava. O Alonso deitou-lhe por cima o xaile rico, mais rico que o manto de Nossa Senhora.

 

   Ia nascer o Menino-Deus. Já a beata da Clarinha mai-lo João Lájeas lhe armavam a cabana, colmo de palha, chão de musgo, e uma manjedoira para a burra e para a novilha, que era mocha, salvo seja. De parede, punham velhos chamalotes e, em torno do santo berço, os zagais de anhos às cavaleiras, os reis com bornal farto e toda a rude malta dos caminhos. A Clara pernóstica todos os anos mandava cortar à Glorinhas, que tinha muito boas mãos, uma camisa nova para o menino; camisa de fina holanda, muito cóscora da goma, colarinho à marialva, e ele, que era mesmo um torrão de açúcar, ria, ria, nem que lhe estivessem a fazer cócegas no umbigo. E assim fagueiro, nas sombras esvaentes da missa do galo, à luz das velas de chama de oiro, o dava a beijar o Senhor Padre, murmurando:

   - Venite, adoremus.

   O Menino-Deus era regalado de beijos, que de prendas não. Para o vale, peitavam-no com melápios, camoesas, peras, pinhas de gulosaria, enchendo-se rica bandeja que no adro ia à praça para quem mais desse. Na Serra, não havia mimos e o João da Cruz andava caro. Embora, o Salvador do Mundo acolhia os serranos sempre muito prazenteiro, como se cada um lhe levasse todo o oiro, incenso e mirra dos magos do Oriente.

   Lá andava no presépio o João Lájeas, entrementes que as donas da casa faziam os preparos da consoada.

   O carujo vinha descendo dos picotos, e os ladridos dos cães, nos rebanhos, soavam de longe, que nem do cabo do mundo. Caía um taró de rachar, mas larga, não era com o juiz da capela que ele queria meças. Temente a Deus e observador daquele grande dia de preceito, vingava-se de bocada a menos com golada a mais. A santa madre igreja, benfeitora dos homens, ordenava: tende fome, mas nanja tende sede. E, ao ir por pregos, e pelo martelo, e por água para lavar a cara tisnada de Belchior, torcia o caminho pelo vendeiro.

   - Que bafo vomecê deita, tio João! - exclamava a Clarinha beata, desviando a venta. - Se lhe prantam um lume à boca, arde como pólvora.

   - Pois olha, mal o provei; não tem lastro… O Menino-Deus me aceite o sacrifício!

   A noite vinha descendo, nimbada de bruma. Levava um ano a voltar, bem-vinda fosse com o cepo a infundir-se na lareira, caçoilas cheias, paz e alegria! Muitos, antes de perfazer seu giro a roda do tempo, estariam a adubar a terra da verdade. Outros levá-los-ia o fadário para longe. Toca a comer e a beber, e salve, noite do Natal!

   Ceotava-se em todos os lares, dos mais lautos aos mais escassos, do Senhor Padre Francisco, que ali tinha o filho mais velho, o seu benjamim, já com tonsura na cabeça, aos Rolas somítegos. Picado pela mulher, que o regalo dele seria consoar-se de broa para mais poupança, também o Luís Maneto se deitara à loja do Cláudio.

   - Ainda tem bacalhuço? - perguntou ele da porta, entre arredio e tentado, capucha pelos ombros e descalço, não sendo as pedras da rua que lhe gastavam o dinheiro.

   - Tenho um restito.

   A Zefa do Alonso, com o cuquinho ao colo, muito gordo e rosado, dava um garrafão a encher. Aquela era lagóia fina, borrava as barbas ao marido e ele trazia-a nas palminhas das mãos, limpa e escarolada, morca farta e do melhor. Outro jagodes igual não pisava à face da terra; quanto lhe vinha à unha, quanto rilhavam juntos. O Alonso enchia o rol pelas tendas e tavernas e, ao trasbordar do crédito, largava ao trapo. Mais lhe valia relego, governar os migalhos, pôr um freto na boca, em vez deste vaganau, Rio vai, Rio vem! E não era ele que o tinha de casta; foi só depois de casar com a Zefa que deu em lambareiro e bebedão. Estes Narcisos foram sempre gente de deita abaixo que ainda cabe!

   - Prante no rol - dizia Zefa ao desandar. - Queres uma pinga, Luís Rola?

   - Bem haja, bem haja, estamos onde o há.

   - Bebe…

   - Bem haja; que lhe faça bom proveito.

   O Cláudio acabara de riscar dois traços na lousa que, à dependura da trave por um negalho, em manso rodopio mostrava as faces cobertas dum deve, mais fechado que um canavial.

   - Queres então uma peixota? - disse ele para o Rola, engoiado à boca da venda.

   - Veremos, como dizia o cego.

   O Cláudio arrancou de quanto bacalhau tinha na caixa e, peça a peça, foi expondo no mostrador. A todas o Rola torcia o focinho, porque eram taludas de mais, porque botavam fora dos seus cálculos, levando mais avaria que jeito ao governinho da casa.

   - Meu rico, o que tenho está à vista.

   O Rola quedou, obra dum credo, de olhos pelo bacalhau, a medir-lhe o peso e a tentear-lhe a lasca.

   - Dianho, são grandotas! - disse, coçando a barbela com a mão ratada.

   - É o que há.

   - Faça-me arrátel e meio, dois arráteis…

   - Ná, era estragar a peixota. Olha que não apodrece na arca!

   Entrava gente, saía gente, a Glorinhas veio por cigarros para o pai. O Espadagão bebeu meio quartilho, e ele quedo nem ata nem desata. O Zé da Claudina, que voltava da vila de buscar o Senhor Inácio Mioma, arremetendo pela tasca dentro, de sapatos e pau argolado, pedia também uma peixota, das medianas. E o Rola, então, afoitou-se antes que o outro escolhesse:

   - Ora… um dia não são dias. Pese lá esta rabusana! e com o indicador da maneta apontava a peça mais maneirinha.

   - Dois quilos e quarta! - declarou o Cláudio depois de atenciosa e muda pesagem.

   - Apre, pesa mais que o meu dinheiro! Dois quilos e quarta?!… Só a estas terras bugalheiras as coisas não chegam em termos, quando chegam!

   - Burranca do inferno, não sabes que quanto mais encorpado melhor é!?

   - Ora, encha-se ele a barriga barato!

   - Come cascas de carvalho…

   O Zé da Claudina rompeu às gargalhadas e o Rola disse, pegando doutra peixota:

   - Esta parece mais pequena.

   - Parece mas não é. Em qualidade não lhe fica atrás. Pô-la na balança, equilibrou, contrapesou, botava meia onça a mais que a outra, mas tinha a recomendá-la o ser muito alta, sem tachas, e as barbatanas estarem enguichadas ao sabor da espinha, sinal de peixe adulto e de boa medrança. Mas o Rola rejeitou-a sem titubear porque importava, nuns reais a mais.

   - Quero eu essa! - declarou o Zé da Claudina.

   - Vais bem servido - disse o Rola escarninho -, a minha bolsa não chega aí… Ora vossemecê não ter peixotinhas miúdas para quem não é lorda!

   - Não fosses tu cainho e comias pescada! – retrucou-lhe o Zé.

   - E a como o dá?

   - A cento e dez o arrátel; é preço sabido.

   - Irra! - e estalou três vezes com a língua no céu da boca. - Mais caro só galinha, comida para doentes.

   - É para quem quer.

   - Está visto. Ninguém é obrigado. Agora, como é o rebotalho, sempre o há-de dar mais em conta...

   - Rebotalho? Então isto são bêberas?… Sempre me saíste um marralheiro! Foi o que aprendeste com os padres, safado?

   O Rola ria por desfaçatez para quebrar o gume às palavras amostardadas do Cláudio.

   - Mas ouça, tio Cláudio: fiado é um falar, de contado tem de ser outro…

   - Qual! Aqui morreu o fiar; quem o matou, o má pagar.

   - Não está certo!

   - Não está certo?! Certíssimo. Bem digo eu, ensinaram-te boa doutrina! Foi pena não ires por diante, rilhavas a madre às santas…

   - Bem, veja lá…!

   - Qual veja lá! É pegar ou andar. Tivesse-o eu posto a sete vinténs, vendia-o na mesma. Ora o melro!

   - Em Barrelas, estão-no a vender a tostão, do inglês.

   - Vai comprá-lo…! Quem te pega? Os caminhos estão desafrontados.

   - Sempre é ao pé da porta. Quero ajudar a viver os da terra.

   - Tomaras tu vê-los na forca… Até puxavas à corda. Olha que bestinha!

   O vendeiro dava grandes topadas com a cabeça, o que nele era indício de assanhamento.

   - Então quanto vêm a fazer os dois quilos e quarta? - perguntou o Rola, muito cordato, como quem passa da risa para o sério.

   - As contas são boas de deitar. Quatro vezes cento e dez - quatrocentos e quarenta; mais trinta réis de quarta - quatrocentos e setenta.

   - Ouça, tio Cláudio, contas redondas, vai por quatrocentos e quarenta?

   - Se queres pelo redondo, bota cá cinco tostões.

   - Homem, é do resto…

   - Não te mates.

   E aí se põe o cão a peguilhar, a chorar-se da porca da vida, a pontos que o Cláudio, enfadado, já varria o bacalhau para a arca:

   - Trinta réis é quanto ganho. Admira um homem que se fartou de moer dinheiro lá para a escola do cadelas ter saído tão fuinha! Cáspite!

   Lá levou, afinal, o bacalhau, por vergonha. Pelo pouco se tira o muito; o ladrão estava tão unhas de fome como o pai, que trazia meio povo debaixo da pata.

   - Quere-se regrado - disse ele para a mulher. Ainda pode dar para a Quaresma.

   - Olha, parte-o tu, alma do Senhor!

   - Anda lá. Põe o rabo e duas postas a dessar. Estão aí seis arráteis… Olho no Bispo!

   Florinda preparou uma porção com couve troncha, bolo trigo, cebola às rodelinhas, azeite e um dente de alho; ao que estava de fino, nem manjar para mulher parida!

   A outra esfiou-a para bolos com salsa e batata, a tirarem para o vinagre, que fariam perder o jejum a um santo. Da açorda atestou Florinda duas almofias, uma para eles, outra para a mãe e o Bispo. E, aquentados do toro de carvalho que estralejava, começaram a festa da Noite Boa.

   Zunia o vento debaixo da porta, parecendo uma matilha

de cães a correr por cima das folhas mortas dum souto.

Para as bandas do cemitério, ia uma ladainha nos pinhais, tão alta, tão furiosa, que assim deviam soar os clamores no Inferno se lhe erguessem o tampadoiro. Chuviscos fortes vergastavam os telhados; nas abertas, ouviam-se os beirais gotejar, tanger nas pedras e nos charqueiros um ping-ping choroso e aborrecido. Do fundo da folha, nas pausas do vendaval, a zoeira do rio avançava pelo céu e por sobre as casas, como se a terra se viesse esboroando pouco a pouco, pouco a pouco, e deste lavrar de ruína, em larga frente, os entulhos fossem caindo, rumorosamente, nos abismos sem fundo.

   Alguns anos havia neve, vestia-se a terra de branco, para, em pureza e inocência, celebrar a vinda do Redentor. Os picotos nevados faiscavam ao sol mais que os altares-mores, da antiga talha, com as rochas a arder num Salutaris. Nas eiras o passaredo acudia a catar, entre o palhiço, o grão escapo das mãos das cirandeiras; e entretanto elevavam ao Deus nado o quíries que eles sabem e que só para os néscios não é mais que piar. Nas salas a roda virava; e o Safadinho, que abre a cova aos mortos, tocava na viola modas alegres para os vivos.

   Com o temporal a roncar na serra, ou a neve a cobrir montes e vales com seus lençóis de alvo linho, sempre àquela hora em que Maria fora acometida das dores de parto, ano após ano, chamejava o cepo nos lares cristãos. Bufava o Inverno, deixá-lo bufar, as paredes eram seguras, o travejamento cortado pelo Gaudêncio velho em castanheiros que deram sombra aos moiros. Aquilo, com a açordinha de bacalhau, era mesmo um recanto do céu! De pouca dura; mal o Rola e a mulher iam a meio da pratada, já o telgueiro do Bispo e a velha andavam a vasculhar, a varrer a almofia com um naco de pão.

   - Parece que estão doentes de fome canina! - rosnou o Rola em tom de chalaça.

   - Aí vai o rabo da peixota - disse Florinda ao     deitar-lhes uma gadanhada. - Depois gritem que os matam à fome.

   A velha espetou, o Bispo espetou; e desataram ambos à bulha que nem dois cães a um osso. O Luís Rola soltava grandes surriadas, maluco com o entremez.

   - Não se arrufem. Peguem lá a almofia, que eu já comi cabonde - e, dizendo isto, fazia menção de lhe passar a pratada.

   De olhinho a rebolar, o João Bispo estendeu a pata.

   - Sape, gato! - e o Maneto deu-lhe um senhor piparote na mão.

   Mais ladina ou humilde, a velha cingiu-se ao que tinha e, com a falsa manobra que logrou o palouzano, coube-lhe regalar-se com o migalho.

   - Mil diabos a levem para comilona! - exclamou o filho, quando se viu esbulhado do quinhão. - Não é senhor a gente de desviar os olhos que não esteja roubado.

   O Rola ria e beberricava. A mãe tinha-lhe dado uma pichorra de vinhaça, daquela do quintal que arranhava a goela como tojo alvarinho. Empina, repimpina, mal sobrou um grocho para o Bispo que tinha os olhos a lazarar.

   - Não o cavo! - pronunciou ele, arqueando os ombros, por desabono.

   Florinda prantou os bolos de bacalhau diante do seu homem; e, dando um à mãe e outro ao irmão, acrescentou:

   - Hão-de-me dizer se alguém consoa assim… Nem o nosso tio abade, e mais ganha-o a cantar.

   Mortinho por desarvorar - àquela hora andaria a rapaziada à cata de lenha para a fogueira no largo de São João - o Bispo levantou-se.

   - Primeiro há-de rezar! - gritou-lhe o cunhado.

   - Vão por lá cortar a bandeira ao nosso pinhal das Corgas…

   - Deixa cortar. Para casos destes não os estorvo eu, nem tão-pouco tu que és um pele de asno. Cortam-na onde lhes calha mais a jeito…

   O Rola virou os pés para o braseiro, a velha puxou da roca, e no silêncio, a romper as guinadas da tramontana, malgas e pratos estreloiçavam dentro da gamela, sacudidos pelas mãos ágeis de Florinda.

   - Falta-nos aqui uma coisa para a consoada ser completa… - disse o Rola.

   - Já sei, as filhós. Os ovos estão pela hora da morte…

   - Não é isso…

   Florinda compreendeu, compreenderam todos; e, como minhocas a arrastar-se pelo chão duma cave, o pensamento deles, o mais vezeiro e mais íntimo, perpassou.

   «- Falta que a perra da velha nos dê o dinheiro que tem assolapado!

   «- O Diabo to dará no Inferno, que a Porca ruiva em que pensa lá cuida!

   «- Quarenta peças ou libras, faziam-me boa jeiteira…

   «- Vai pedi-las a teu pai, que anda farto de roubar o mundo. Salafrário!

   «- Que as tem, é certo; di-lo ela, talvez lhas visse o Jaime; onde?

   «- O Jaime viu-me mas foi piolhos e lêndeas, da aflição que me deu por morte do homem. Boca-rota, assim tem sido ajudado de Deus! Lá anda pelo Rio, Santa Casa vai, Santa Casa vem, nas mãos de uma ladra que lhe suga até a moela dos ossos. O Alonso é que conta…»

   Depois daquele ladrar surdo de pensamentos entre uns e outros, o Rola puxou com maus modos o açafate para o meio da lareira e engatilhando as mãos proferiu:

   - Infinitas graças e muitos louvores devemos dar a Deus por tão altos benefícios, Pai Nosso e Avé Maria.

   Se a voz dele era áspera, a cara estava mesmo a dizer que tinha o cão ruim dum pensamento a derriçar-lhe nos fígados. Via-se bem que não orava com devoção e engolia os padre-

-nossos enquanto o Diabo esfrega um olho. Por ali fora, São João, São Martinho, São Pedro e São Paulo, Santa Maria, nem o Padre Francisco a dizer os responsos. E já ia a rematar, sem um padre-nossinho, sequer, pelas obrigações da casa, como mandava o ritual daquela noite santa; foi preciso que Florinda lho soprasse:

   - Por alma de Manuel Libânio, que Deus tenha em santa glória, Pai Nosso e Avé Maria.

   A despedir para a súplica derradeira, a velha implorou também:

   - Por alma de meu pai José Gaudêncio e minha mãe Custódia, Pai Nosso e Avé Maria.

   A reza foi passando nos lábios de todos, rápida e assobiando.

   - Por alma de minha irmã Rosalina, a quem Deus tenha em descanso, Pai Nosso e Avé Maria.

   Estalava o fogo; o vento parecia um cavalo a rinchar.

   - Santa Eufémia digne amercear-se de meu irmão Augusto, entrevadinho, Avé Maria.

   O Rola deixara cair sobre os joelhos as mãos enfadadas; e a velha acanhou-se de ir mais longe. Ele, então, arrematou:

   - Senhor, estas orações são poucas ditas na terra, recebei-as vós no céu por muitas…

   E, dito o amém-Jesus, persignaram-se todos e pediram a bênção à velha. Florinda e o Bispo, em voz clara, como era costume, o Rola num arreganho mal distinto; o Bispo pediu, ainda, a bênção ao Rola, que ali representava a autoridade dum pai de família; e, encarapuçando-se, abalou.

   - Vai, vai, melcatrefe! O regalo é que seja preciso ir buscar-te numa padiola? - clamou o Rola ao romper o Bispo pós catrapós casa fora, com a pressa de juntar-se à malta àquela altura a fazer a fogueira e a pôr pendões no largo.

   O raio do dinheiro enterrado fizera-lhe perder a alegria; e resmungão marchou à deita, tanto mais que a missa do galo era com de noite, fora de horas. A velha achegou-se mais ao lume, e, puxando das contas, de olhos muito tristes nos tições acesos, pôs-se a rezar pelos seus mortos e a    lembrá-los, que já eram tantos que enchiam o cemitério. E para ali ficou cabeceando, desfia que desfia o rosário das verónicas, ou a remexer com um pauzinho o crisol de brasas. Dormitava, quase a queimar-se no borralho, quando o sino lançou o primeiro dobre para a missa do galo. Era a hora em que o serrano goza em sonhos os tesoiros enterrados das moiras.

   - Acende lá a candeia - disse o Luís Rola para a mulher. - O fura-bolos do padre está com febre de ganhar os cobres dos responsos!

   Arranjaram-se a toda a pressa e Florinda, posto que botasse a saia nova de riscado que lhe fizera a prima Glorinhas e lhe arredondava muito o quadril enxuto, nem paciência teve para se pentear.

   A velha, que acordara estremunhada e batia o dente de frio, buscava pelos cantos tanganho a que aquentar-se.

   - Cedo se pranta a esfogueirar lenha! - rosnou o genro. - Navegue, tem lá fora lume.

   Florinda deu-lhe um pavio e desceram. Fazia escuro, um escuro de alva, sem estrelas, coalhado pela névoa. Abrandara de chover e o vento desfechava para outras paragens, bem se percebia nas rajadas curtas e rijas de fim de temporal. Na quintã toparam a Clarinha, que ia para a missa, toda encapuchada, lampião adiante, a estudar o piso. «Bons dias, bom Natal nos traga o Menino» - e emparelharam as duas velhas à frente, eles atrás.

   - Se calha, o nosso padre Francisco está já no altar - disse a Clarinha. - Não dei razão de tocar a sineta. Se não é vós trabucardes em casa, não me desenvencilhava do sono.

   - Não, a sineta tangeu há um repente - respondeu Rosa, - Estava eu a sonhar com meu pai que Deus tenha. O que é a cabeça duma pessoa?! Sonhei que, estando todos nós na quinta da Faia, íamos para a missa do galo ao convento de Freixinho. Tínhamos passado o Távora sobre o Pontigo e, vê lá tu, ali se agarram uns homens a mim para me deitar ao chafurdo. Mas meu pai não deixou e fomos à missa. Dizia-a o Senhor Frei José da Lapa, e era tanta a gente, tanta a gente que não caçámos lugar com jeito. O presépio estava uma riqueza, tudo sedas, tudo rendas, que as freiras tinham bons dedos e vagar; às velas que ardiam, nem a luz do sol; era um cheiro a cera que agoniava; todo o mar de gente se prantara de joelhos. Vai senão quando, aparecem outra vez os homens a puxar-me pelos cabelos, para me deitar a afogar. Que aflição, Clara, que aflição! Meu pai dizia-lhes: Deixem a moça, é minha filha! Eles não me largavam; queria gritar e não podia; queria fugir e não achava forças. Deus dê saúde a meu irmão padre que madrugou a tocar o sino e me tirou este pesadelo de cima do peito. Que cobras e lagartos não andam na imaginação da gente, Clara!

   - Às vezes é a tentação do Demónio…

   - É!... ou uma pratada de bacalhau a pesar na búsera… - acudiu a dizer, chocarreiro, o Luís Rola. - Engabelou, engabelou à cela, ora pôs-se-lhe na boca do estômago.

   Tinham chegado ao largo de São João, que distava dali poucos passos. Ao centro, a fogueira enorme de troços de pinho deitava, nas colhidas do vento, labaredas que ensanguentavam os muros banhados das sombras da alva. À volta, da banda do abrigo, os rapazes atiçavam, ou especados aos sachos estendiam a pata para o braseiro, em grande algazarra.

   Como duas sentinelas à porta de São João, as bandeiras novas, de cruz no topo, trapejavam. Esfoladas de fresco, a escorrer resina, altas que nem, tinham sido escolhidas a dedo no pinhal mais medrado. Ninguém se atrevera a dizer "em matas minhas não quero machada". O rapazio ia onde melhor e mais jeitoso se lhe apresentava. Era um uso. E, em malta, traziam-nas a ombro, entrementes que as moças, nos serões, preparavam o pano com borlas; viras para resistir ao soão, e uma cruz no fecho para arrenegar o Demo. E ali quedavam toda a roda do ano, a ver ao longe, por riba das casas, o viandante, o pedinte e o almocreve que vêm e vão nos caminhos de Cristo.

   Passava gente tamancando, de lanterna na mão, que o escuro era muito. Dentro da capelinha, para lá do mar-a-monte das capuchas, luziam as velas acesas do altar. Os pavios, um a um, foram-se alumiando e pareciam mil estrelinhas caídas numa cisterna. O Padre Francisco, ajudado pelo Lájeas, acabava de revestir-se de casula branca, por ser festa de glória.

   Foi vindo freguesia, foi crescendo o monte, até que já era uma pinha de cabeças, à porta, para ouvir missa. O Rola desatou então da fogueira para ir encostar-se ao umbral da capela, rente ao frade, que servia de poiso para dobrar o sino. E, carapuça sobre o ombro, pegou-se a seguir os passos, enfadonhos à força de vistos, do santo sacrifício. Estava-lhe a palpitar que os pirangas que tinham ficado a forneirar no largo, em o apanhando descuidado, eram capazes de lhe saltar à loja da vaca e colher-lhe para a fogueira os cambões que lá havia. E bem botou o seu pensar; abria a Clara a boca a pedir um padre-nosso por alma do defunto marido, o Navainho, pulava um deles à quintã da Borralha, avantavam outros para as bandas de sua casa. Tirou-se da devoção e foi-lhes na alheta. Bem lhe adivinhara o mendinho; corriam-lhe já o cravelho da loja e fusgavam.

   - Não, amigos, lá isso não! - disse-lhes da porta em bons modos. - Os cambões não mos leveis.

   Desataram a rir.

   - Então que havemos de levar?

   - Queimai as pernas… ide a outras quintãs.

   - Lobos o comam, tio Rola, muito escasso saiu!

   - Que quereis… não tenho lenha cortada!

   - Nem aldemenos duas achas?

   - Não sei se há na cozinha. Se há, não dão para fazer uma barrela. Já vos digo…

   Subiram todos três o patim de rópia e entraram.

   - Arre! diz que não tem lenha... - exclamou um dos tunos ante o canto da cozinha cheio de cavacos.

   - Tira, mas não te alambazes…

   Quando volviam, o dianteiro botou de esgueira a unha ao mocho que estava ao canto do tear e correu para fora. Num pulo, o Rola segurou-o pelo rabo da véstia.

   - Pranta aqui o cepo.

   - Cepos há muitos...

   - É de castanho; é onde a velha se costuma sentar.

   - Está já podre.

   - Tomaras tu tantos anos de vida como ele ainda tem de dura.

   - Puh! - e deu um arranco para largar. Mas o Rola susteve-o e o mocho caiu-lhe das mãos sobre o traço da porta, com grande estreloiçada.

   - Fica-te com o Porco-sujo… - caçoaram os dois e despediram.

   O Rola baixou-se para repor o cepo no lugar, dois palmos a dois palmos e meio de castanho, grossura da cinta dum homem mediano, comido do bicho, sobre o qual a velha tinha o vezo de empoleirar-se como uma coruja. Com o choque, um pedaço de cerne saltara. Verdade, não estava tão são com isso… Mas… Ah!… ah!…

   O Rola abriu a navalha e, com a ponta, sacou de dentro do cepo o farrapo que vira a espreitar. Na lorga de madeira, dissimulada pelo rolo de cerne desconjunto, estavam as quarenta peças, das que se trazem nas correntes, amarelas como o Sol, a alumiar como brasas, a untarem as mãos como o azeite mais fino!

   Correu à loja das vacas e, arrancando uma pedra da parede, acoitou a sua presa. Toda a manhãzinha riu no Largo de São João, chacoteou, enfarruscou com carvões as moças que passavam, pagou vinho, pintou o mono. Parecia desvairado.

   A horas de almoço entrou em casa e disse para Florinda, que estava só:

   - Já cá cantam!

   A mulher pôs-lhe boa mesa, presunto e chouriça de carne com batatas às rodelas; não comeu, não tinha apetite.

   - A velha - disse ele - vai dar pinote de grande. Para onde foi ela?

   - Mandei-a à horta e ainda não voltou. Já lá vai o João chamá-la.

   Comeram, beberam, cochicharam; passante mais duma hora entrou o Bispo a dizer que ninguém dava razão de sua mãe.

   - Ai, a alma de Barzabu! - exclamou o Rola.

   Florinda encarou-o, de olhos muito fitos, assombrados. Ele correu ao tear ver o cepo; não o ia jurar, mas  afigurou-se-lhe que já lhe tinham bulido depois dele.

   - Ela andou para aqui a sisar?

   - Andou.

   Abalaram à cata da velha; correram as hortas, os trilhos onde era mais certa, as eiras; apartou-se gente do baile, no largo da capelinha, para procurá-la; mandaram portadores a Lamosa a casa do filho. Nada; forte sumiço lhe dera. No povo corriam os dizeres mais desencontrados acerca duma desaparição tão escura. À boca da noite, um pastor de vacas correu ao lugar, a dizer:

   - A tia Rosa está afogada no açude do Cláudio. Lá foram, era bem ela, atracandada na cale do moinho, com fundura de duas varas. Pescaram-na para riba com fateixas; tinha o ventre muito inchado e os pés, as pernas e a cara todos mordidos da peixaria.

   - Ai, minha mãezinha do céu, que tanto lhe queria! - clamava em alto choro Florinda. - Apagou-se a luz dos meus olhos. Ai minha mãezinha!… Foi o Porco-Sujo que a tentou… ninguém lhe deu uma palavra mais alta!… Minha mãezinha; minha mãezinha! minha mãezinha! Oh! minha mãezinha!!!…

   O Rola, com gordas lágrimas ao canto dos olhos, murmurava:

   - Ninguém lhe deu uma palavra mais alta… ninguém… Está aí o meu cunhado João que diga…

   Correu voz das façanhas do Rola. O ladrão devia tê-la apoquentado forte feio para a pobre criatura entregar assim a alminha que Deus lhe deu a Lúcifer. O regedor deu parte para a vila. Medroso do escândalo, o Senhor Padre Francisco meteu a mão junto da justiça, e do prelado para autorizar a sepultura em terra santa. Que não fora morte voluntária - informou. A criatura abeirara-se da ribeira para lavar os pés e escorregara ao pego. Quando ouviu versão tão bem remendada, o Maneto deu um murro na cabeça.

   - Cavalo, era com esta léria que havias de engrolar os parvos.

   Na Câmara Eclesiástica, como havia mentiras mais calvas aceites por verdades canónicas, fecharam os olhos.

   Por sua conta e risco Clarinha, relatando as falas agoirentas que sua tia tivera com ela na alva, descarregou sobre o Tentador as responsabilidades do genro. Mesmo assim o Rola carretou para Moimenta algumas pernas de vitela com que abafar o rescaldo todo da tranquibérnia.

   - Dinheiro amaldiçoado! - dizia Florinda para o homem.

   - É verdade! No bolso não o quero…

   - Que lhe fazes? Olha, gasta-o em missas por alma dela…

   - Então não gasto!…

   Uma bela manhã, quando tudo serenara, tomou a diligência de Barrelas para Viseu. E voltou de lá com um bom maço de notas, novinhas, entre o coiro e a camisa.

 

                                                     GLORINHAS

 

   Homem de seiscentos diabos aquele senhor padre Francisco, tão escoteiro nas suas obrigações de pároco como, pelos montes, a bater as lebres! Bofe, no domingo de Páscoa, tinha alma de tirar o folar em Peva, abadia de três povoações com passante de trezentos fogos, pôr-se em Aris ainda muito a horas para a segunda missa e a visita ritual aos fregueses. De boas pernas dispunha a égua ruça que, mau ano, bom ano, dava cria para o Trancoso e, de avantajada e andeira, na vasta redondeza, só os cegos ignoravam. Além da horsa   papa-léguas, a engrolar o latim era ele subir ao altar e, mal um cristão se precata, vê-lo de braços abertos ite missa est. Atabalhoado, sim senhor, não obstante é preciso rasgo até a alinhavar.

   Obra das duas da tarde, começava para os matutos de Aris a missa da Ressurreição; oficio de muita pompa, com o sol a dizer aleluias nas janelas, camisas lavadas a luzir na brenha dos fiéis, o rescendor do alecrim e da alfazema das hortas a avisar do maio moço, troca-burras, amarelo na Serra, pardo nos centeais, verde nos linhares, por baixo da capa de oiro que traz vestida como um bispo pluvial. Por ali fora, in illo tempore, kirie-eleison, kirie-eleison, a missa lá ia levada tão de afogadilho que o acólito mal tinha tempo de fazer as mesuras da lei. Mas bem haja ele, graças a Deus desse-as cada um em sua casa com mulheres e filhos, podendo estendê-las tão

longe como léguas antigas. Ali era para ser visto de santos e santas, enxotar o Porco-Sujo com dois pingos de água benta, e pedir a Nosso Senhor que trouxesse boa meda de pão ao serrano e o livrasse das correias de soldado e das garras da justiça. Isto feito, ala que se faz tarde.

   Pela presteza, queriam ao padre Francisco, como nunca vieram a tragar o padre Zé Noquinhas que era um ronceirão e, a ler no missal, parecia mesmo uma velha a rilhar castanhas. Tivera que avantar, sob ameaça de morte, pela avaria que fez de entregar o Pólito, caçado com certidão falsa a impor um embarcadiço. Tropeção lhe desse lá por terras excomungadas que, a não ser amiga, ninguém lhe chorava a falta. Além de onzeneiro, cansar as pedras com perlongas, e trazer o mulherio santanário, soltava às vezes bufo no santo lugar que nem cobra assanhada. Não tinha pejo de descompor o pagante. Um dia faltou-lhe o xairel da cavalgadura; foi-se para a missa, vomitou impropérios, que só os santinhos não coraram por serem de pau:

   - Roubaram-me o xairel da égua, uma rica peça de surrobeco, debruada de baetão, que mandei fazer ao Janeto da Lapa. E foi aqui! Sou sacerdote de Cristo, que morreu a perdoar os judeus que o crucificaram e, como tal, não quero a desgraça dos meus paroquianos. Só vos quero bem, e convosco ao ladrão que me roubou e está no meio de vós. Mas, alto lá, é com uma condição, que há-de restituir o que não é seu. E daqui lhe dirijo uma prece: ladrão, ladrãozinho, restitui-me o xairel! Se mo não restituis, então que as mãos te fiquem sequinhas como a caruma; que te nasçam tantos cornos na cabeça como de pêlos tem o surrobeco; que tantos trabalhos te persigam como de voltas me tens feito dar! Se ainda tens amor à alma, entrega-me o xairel, que eu já te encomendei a todos os Diabos do Inferno e cais lá direito como um malho! E vós, ó gente de Aris, se fé, honra e vergonha passeiam ainda nesta terra, não deiteis a capa sobre o larápio! Ponde-lhe a careca à mostra! Bem sabeis, e se o não sabeis eu vo-lo digo, é um dos pecados que bradam ao céu roubar um ministro do Senhor…

   O excomungado do Neve-Ladroa ergueu lá o vozeirão:

   - Ó senhor abade, ainda não viu na barriga da moça!? Então veja, que para muita gente é ponto de fé que ela fez dele saiote…

   A igreja ia caindo com a surriada; não se respeitou o lugar, nem santos nem santas, nem o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, acabado de verter das galhetas. Judiaria mais judiaria, igual só o Testamento do galo no terreiro!

   Depois da malsinação ao Pólito, veio substituí-lo, fazia para o São João um ano, o padre Francisco Gaudêncio, a rogo dos graúdos da terra, que deitaram a Lamego, serra da Nave fora, a falar ao bispo. O bispo queria despachar para ali um padrinho novo, desses de coroa não maior que um vintém, mais maraus que o raposo. Ná, para trabalhar as moças havia ferramenta na terra. Convinha-lhes o padre Francisco porque era homem de peso, tinha ali parentes e, pastoreando já em Peva, havia de ser mais maneiro que pároco encomendado na cobrança de alcavalas e pé de altar. Neste ponto, porém, lhes saiu o cálculo goro; o padre Francisco não desperdiçava uma migalha, que os dois filhos, estudantes, eram um sorvedoiro sem fundo. Aldemenos não era tanateiro nem beato, tendo sempre agrados para o rico e o pobre, e lesto nas obrigações como ele não havia na diocese. Era ver aquele domingo da Ressureição em que, com dois secula seculorum, mais dois amen dico vobis, a missa estava no papo.

   Bom dejejuadoiro lhe tinha a Senhora Ana na sacristia: salpicão e tromba de porco, uma galinha alourada na sertã, petiscos estes comuns ao Domingo de Páscoa e ao Domingo Gordo. O Senhor Padre Francisco debicou um naco de barbela e bebeu à beira de um quartilho de vinho, não mais.

   - Logo. A volta ao povo dá-se num rufo. Pastores e boieiros estão mortos por beijar Nosso Pai e largar.

   E, dizendo isto, rompeu do roquete, sombreiro cor de vinho aberto sobre a calva, seguido do Chico Brás para erguer o folar, do Joaquim Javardo com um cesto para os ovos, queijos e bolos de azeite, e do Luís Rola com a caldeirinha em cuja água benta viriam afundir-se os tostões em cobre, níquel ou prata que, uns entre outros, os paroquianos expunham como oferenda pascal. O Torres, sacristão, levava deitada sobre o braço a cruz rica de guiseiras, e o filho do Brás a campainha. E, assim equipados, meteram ao cabo da povoação para enfiar as casas a eito, de lés a lés.

   Aris toda se enfeitara de véspera e de manhãzinha para a cerimónia, ruas varridas para as quintãs, colchas às janelas, raparigas, bem trajadas, aos ranchos pelos soalheiros à espera da aleluia. A Teresa Zabana trouxera do Távora uma cesta brez de laranjas, a cinco por um vintém, e era um regalo ver as moças fazê-las bailar nas mãos ágeis e sorver com a boca vermelha, glutona, os gomos pálidos. Só pela graça de Deus vinha à Serra daquela fruta, tão linda de ver e mimosa de paladar. Entrementes Nosso Pai passava dentro de fina toalha de rendas, e cada uma corria a seu terrado.

   Recebia-se a visita pascal na casa de fora, armada com a melhor lençaria, lençóis bordados, colchas de algodão em xadrez, mantas antigas de chita com papagaios de oiro, cortiços de abelhas, rosas do Japão cor de carne, a encher um fundo, lavrado como leira, a branco e azul de mar. Sobre a arca, atolhada do mais puro linho, apresentava-se o folar, rimas de queijos e de bolos, pratos de ovos, ou moedas entaladas em laranjas, à falha destas, em pêros; nas casas lautas uma pichorra com vinho, rabo de porco ou orelheira para o arrebenta-diabos; e acima de todo este preparo, o Cristo da família, defumado da fuligem e mordido do tempo, com uma flor de arraial por detrás da nuca, abençoava.

   À maneira fidalga por terras do vale, o Senhor Tobias punha um pão-de-ló e uma libra de cavalinho espetada numalaranja; mas por fantasia, seguro de que o padre não teria ânimo de bifar-lhe a rica moeda. Quanto ao pão-leve, se não era logo ali espatifado para puxavante da pinga, portador o iria levar à ucha do abade. Por um caminho ou outro, o folar não errava o destino.

     O Torres, que por baixo da opa vermelha tinha as algibeiras da véstia mais fundas que cavernas, catrafilava toda a casta de fruta que topasse, para os filhos, para a mulher, que era uma grandecíssima rabaceira, para comadres e afilhados que lhe saltavam ao caminho. E, quanto a empinar, ele, o Brás e o Rola, era, onde vinho prantassem, deita abaixo que é sangue de Cristo. Para não fazer desfeita, e porque o estômago sem lastro mais lhe não consentia, o senhor abade molhava o lábio.

   A romaria pelas casas corria veloz; à frente o campainheiro, badalando como vaca-toira, após, o Torres com a cruz, no couce o padre e seus beleguins. O Torres destampava o santo Cristo. Tinham-lhe posto uma grande camélia acima da coroa de silvas e parecia banhado em sangue e esparrinhar à roda ondas de sangue. A família, de joelhos, colava os lábios nos pés puídos pelos beijos de séculos:

   - Aleluia! Aleluia!

   O Senhor Padre Francisco pegava do hissope e aspergia as cabeças sorridentes, a casa, o folar, os papagaios bisnaus no pano azul-marinho:

   - Boas festas! Boas festas! Aleluia!

   Despedia de roldão como tinha entrado, e era aquele o momento mais solene do obséquio; se o senhor abade não fazia o gesto de «deixa lá», os guantes do Brás varriam para o cesto do Javardo o que sobre a toalha se mostrasse. Visitadores e visitados não riam; agora, casas donde saíssem de mãos enxutas, eram todos rostos floridos e vozes alegres de bem haja. Ralo, um mais castigado resmungava.

   - Ponde menos! - dizia o Brás, num trocadilho mofareiro apontando as almofias coguladas de ovos.

   - Oh!…

   Com este oh!… diziam lá na sua que era uma vergonha apresentar um folar reles e maré para achincalhe quando se viesse a saber. O padre, também, tinha aturado a    desobrigá-los no confesso e a ministrar-lhes o corpo de Nosso Senhor, que assim preceitua a Santa Madre Igreja a todo o fiel cristão. Ora, bom proveito lhe fizesse, que isto de estar por detrás de uma rótula, por essa quaresma fora, à mercê de toda a ovelha ranhosa que quisesse limpar-se da tinta do Mafarrico, que não era peca com as rixas à boca da poça, a vez no forno, a chave do moinho comunal, com a consumição das décimas, os banzés nas romarias e os aciúmes do verão, era tarefa extenuante e aborrecida. Verdade, mais do dobro dos pecados, por esquecimento uns, por vergonha os mais graúdos, não passavam pelo crivo do confessionário. Deus guardasse muitos anos e bons para o sacerdote, que não atenazava os deliquentes como os homens da justiça, nem impunha penitência que derreasse!

   Por isto mesmo, lhe não refertavam o folar; aqueles para quem a mão do Brás fora alceira, ficavam quites. A mor parte dos outros remetiam-lho para casa por um próprio. Estes eram os folares de vulto, que derrotavam o braço com o peso. No ano anterior, só em galos, recebera das duas freguesias passante de vinte. Metidos numa sala, batalharam que nem cem pobres num palheiro. O filho do Senhor Abade, que estava quase doutor, divertia-se a vê-los de cristas a escorrer sangue, engrifadas as penas galantes do capelo, esporões em riste, projectando-se peito contra peito, ou de pupilas acesas e cabeça no chão concentrando fôlego para o ataque e injuriando-se no regougar. Mas pouco lhes durava a guerra. Na segunda-feira de Pascoela ainda com estrelas, a Teresa Zabana, o Zé da Claudina e outros paquetes abalavam com peita aviada para o fidalgo da Boa-Vista, para o monsenhor de Lamego, para o governador civil, todos amigos do abade e padrinhos dos filhos nos exames. Assim tresmalhavam os galarozes.

   O dia de Páscoa era uma malhada para os padres. Enchiam as queijeiras e chegavam a criar-lhes mofo nas arcas os pães-de-ló e os bolos de trigo folhado. Os ovos que ajuntavam enfartariam um convento de gulosas freiras com seus capelães durante um trintário.

   - Havia de ser duas vezes no ano! - murmurava a Senhora Ana, despejando na residência os cestos que, de espaço a espaço, lhe carretavam Florinda, Glorinhas e a Guiomar do André.

   A visita ia dobando, numa presteza de «acudam ao fogo». A uma ponta do lugar, as vacas tilintavam já a caminho dos lameiros; à outra, em magotes, os novos a jogar o pino, os velhos em sonolento cavaco, duas mulheres catando-se no traço da porta, umas raparigas e uns faias questionando o bolo ganho ao enganchar, enganchar, onde te vir te hei-de mandar rezar; reza! - esperavam a aleluia de rota pelas vizinhanças.

   Caía um sol madraceiro do céu toldado, sem pena nem folha que rumorejasse. Paiva fora, toda verde, a campina mostrava uma quietude assombrada de encantamento, a que se poderia chamar de festa. Descortinava-se um vulto até longe, e a beber no sol e a beber na água, fenos, trigos e ferrãs rivalizavam de soberbia. Já a paveia estava mais alta que o sargaço, podia-lhe entrar a foice. A Páscoa corria satisfeita. Para a venda do Pólito, que ficara arrasado com as peloticas da justiça, um harmónio punha uma doce languidez no ar emornecido. Lá pululavam, jogadas ao ar nas palmas duma serigaita, as laranjas, laranjinhas. O céu fazia-se alegre dos arremessos verticais e sarabandas que as mãos destras lhes imprimiam; os olhos enchiam-se de oiro, de pequeninas constelações de oiro, e só por milagre de Deus brotava tanta jovialidade dum fruto volteando. Lá vinham também a arrulhar moças de flores ao peito, as margaridas da horta do Senhor Tobias e as prímulas amarelas que medram na fresquidão dos corgos; riam alto, chilreavam, e todo o morno langor do dia quebrava como o silêncio dum bosquedo com o cantar do cardeal.

   Soava a campainha perto e, ao fundo da viela, duma porta para a outra, relampejavam a cambraia do abade, a opa do Torres que tingia a atmosfera com seu sangue de boi, e toda a ruidosa manobra dos piratas. Era uma balbúrdia, e até as lájeas sobre que se empoleirava aquele povo carrapitano pareciam revestir um ar de festa.

   - Aleluia! Aleluia!

   - Aleluia! Aleluia! - respondiam todos, casa a casa, no maior alvoroço visto que não magnificavam apenas à grande nova da Redenção mas ao tempo quente e aos dias grandes, que o Pai do Céu estava mesmo a anunciar com a rosa vermelha por detrás da nuca martirizada.

   Como o Senhor Padre Francisco se detivesse, apenas, a rezar o responso pelos mortos nas casas dos muito amigos, a visita terminou às horas costumadas de saírem os gados. A bufar de cansaço, a calva orvalhada de suor, meteu logo para a residência, casa de muitos cómodos em negra pedra de fortaleza, grandes salas em tabuleiro, tulhas para os cereais, e estrebaria para muitas cavalgaduras. Aris fora noutras épocas abadia de estrondo, lá estava o passal e a igreja em rica obra de talha, como não havia por ali perto, a atestá-lo.

   A Senhora Ana, com as pimponas de Seitosa que a haviam acompanhado, tinha o jantar pronto a saltar para a mesa.

O Senhor Padre Francisco abancou, mal despiu o roquete, e, sem dizer Santa Maria val, acometeu o prato da sopa a fumegar. Os ajudantes também não se fizeram rogados, afora o Joaquim Javardo, o somítego, que primeiro se abraçou à cântara da água.

   - Não beba, que se lhe gerescem rãs na barriga! - chalaceou Glorinhas.

   - Tem aqui pinga! - acudiu a senhora Ana com uma caneca cheia de verdasco, a esfuziar.

   - Uma vez só não castiga! - respondeu, limpando a beiça às costas da mão.

   Comeram-lhe à tripa forra carniça refogada, cozida, assada, de porco, de vaca, de chibato, carniça para todos os paladares. O arroz estava de se trocar por um prato dele a imortalidade, o cabrito, rechinado no espeto e picadinho de sal, até fazia cócegas no céu da boca. Quem bem come bem bebe, acabaram a janta enfrascados e lerdos como patos na engorda.

   O Senhor Abade desabotoou o colete de sete botões e a marca cimeira das calças, safou o cabeção de arrangamalho, e correu a deitar-se em cima da arca que ali tinha para as ementas. Como era homem sobre o corpulento, as pernas ficavam-lhe ao dlandão. A Senhora Ana, que esburgava uma coxa de cabrito, acocorada por terra, veio sentar-se à beira dele e, levantando-lhe a cabeça, pôs-lha no regaço. De olho muito derramado para o tecto, as mãos cilhadas no ventre, o Senhor Padre Francisco arrotava, como se o comer lhe tivesse dado na fraqueira. Mas ná, assim não estava a seu jeito, a cabeça calhara mesmo sobre a patrona da moça, atravancada com chaves, o rosário, um noz esquecida, um cibo de sabonete. Em voz quizilenta, resmungou. Glorinhas trouxe o xaile, era melhor, mas ainda não era a comodidade desejável.

   - Vai-se buscar um molho de feno - disse o Javardo.

   - É um rela! - protestou a senhora Ana, sorrindo. Se não está bem que se vá deitar à cavalariça.

   O Senhor Padre Francisco fechou os olhos, encolheu o pernil.

   - Está enfadado - murmurou o Brás.

   - Pudera! Com uma capilota destas no pêlo!

   O senhor Padre Francisco abriu outra vez os olhos.

   - Ana - disse ele - tira-me os butes, que me desgraçam os pés.

   O Javardo, muito serviçal, correu a puxar pelas botas, que eram de elástico. Mas logo o Senhor Padre Francisco deu um coice no ar, assanhado.

   - Arre bruto!

   - Então?

   - Ora, botaste-me a pata ao joanete, foi como quem me arrinca os cabelos. Arre...

   O Javardo puxou mais maneirinho.

   - Cuidado com os calos, Joaquim… cuidado! Isto não é a teta de tua mãe! - recomendava ele.

   - Não há-de haver novidade.

   Lá vieram à tona os pés do senhor abade, suarentos da romaria, cheios de altos e baixos que nem feitos à podoa, enormes, patudos, encabados em meias de lã. Pata larga, espalmada, de batedor de montes.

   Foi um alívio. Soprou; espreguiçou-se; deu meia volta para a parede e, com o rabadão para o público, adormeceu. Dia bem ganho, podia dormir…

   O Brás girou à lida e, no meio do soalho, a senhora Ana, Glorinhas e Florinda, ajudadas do Javardo e do Rola, puseram-se a apartar o folar. Fora ano de muitos queijos e, um a um, iam-nos dispondo em pilhas, consoante a grandura e a cara, aqui os broeiros e brancos, pouco espremidos no acincho, a alambrarem para o bolor, além os de cor trigueira, mordentes como pólvora, bons lá para o diante com bola e verdasco. Os pastos eram doces por igual, mas tudo ia das mãos, do coalho, e do lugar onde punham a francela. Bons queijos, tanto para merenda como para debicar depois de comer, fazia a Felismina Paula, irmã do Javardo, que casara em Peravelha! Só queria que provassem!…

   O Joaquim Javardo, como das vezes em que pegava à vara de mordomo, rompera logo de manhã todo chibante, boa fatiota de saragoça preta com corrente de pinto no relógio, lencinho de renda no bolso da véstia, e até fita de seda vermelha ao pescoço - fita que lhe trouxe o cunhado quando veio do Rio. Barbeado como um padre, estava liró de todo, mesmo com a poeira a enfartar-lhe os cantos da boca de sua limalha de ferro-velho. Podia fanfar, calçar bem e vestir melhor, a sua casa era das mais ricas da Serra. Só em vacas ao ganho encheria uma feira, e para o pão aquartelado nem a tulha da residência era cabonde. Até essa Lousadela e Forca lhe deviam carros e carros de ceveira.

   Porque era mesquinho, muito metido consigo, incapaz de pôr pé em boda ou entrudada, os amigos eram ralos. Orçava pelos quarenta, e levava jeitos de morrer solteiro, que as raparigas tinham-lhe azar pela balda de sotrancão e a fama de se tratar pior que os bácoros.

   Pouco prestadio para tudo o que lhe não acarretasse interesse, em coisas de igreja estava sempre a postos. Forreta, incapaz de deixar ir pela água abaixo um folhareco de couve e de perder um minuto a vender sombra, era ele, quando não era o Brás, quem aos domingos e dias em que houvesse missa na terra, graciosamente tirava do palhal o penso que a horsa do abado ingeria no espaço do santo mistério. Por isso o padre lhe dava sempre a mão direita em festas e solenidades. O Joaquim Javardo era há vinte anos o caudatário de todos os curas que pastoreavam a freguesia.

   Afora esta vaidade satisfeita, toda a sua cobiça era pertencer à junta de paróquia, no que topava relutância por não saber ler nem escrever. Bem se tisicava ele a aprender e a gatafunhar o nome, que é quanto bonda; não houve maneira de encarreirar com os rabiscos que sobem e descem combinados no papel, como a chula no terreiro. Boas mãos para a rabiça, para lavoirar direito uma vessada, compor chavelhão ou aiveca, tinha ele; mas lá com a caneta era mais cómico que o símio. Paciência, contentava-se com outras funções, e era tanta a sua paixão que, se naquele dia de páscoa o não convidassem para tirar o folar, estoirava de despeito. Quem gosta sopeteia, aguentou com o cesto, pesado como terra, mas nisso punha tanto prazer, tanta farófia que nem sendo ele o padre de hissope na mão: aleluia! aleluia!

   Quando envergava o fato de ver a Deus, para quem o não conhecesse, metia mesmo respeito. Agora, nos dias de trapio, roto e negro, punha medo a um aldeagante. Nisto não degenerara da mãe, que deixara fama de mondongueira e dada a bruxarias. Os garotos, quando ela saía à rua, largavam-lhe na peugada, tocando latas e apupando-a. Ela deitava-lhes maldições que até tremia céu e terra. Para cada um seu flagelo:

   - Maldito sejas, tinhoso, e que tantos piolhos te cubram como de estrelas tem o céu com a lua nova! Que a sarna, a herpes e a câncero te roam dos pés à cabeça como os cães quando têm fome! Que te dê uma foeira e te derretas pelo ânus como um odre de azeite pelo pernil! Que tenhas tanta fome que comas tua mãe viva e desenterres os ossos de teu pai para os esburgar! Que tenhas uma dor de pedra que te saia o mijo pelos olhos! Que se te tape a tripa e deites pela boca como o cântaro quando está cheio! Que morras com os dentes a tocar castanhetas e os Diabos do Inferno dancem ao compasso!

   Coitadinhos dos amaldiçoados! Muitos deles não puseram as correias de militar, secos como as palhas. Quando morreu, ninguém lhe queria pegar ao esquife; foi preciso o regedor intimar os cabos da freguesia. O filho herdara-lhe os bens e a nomeada, mas com as arcas cheias e a vidinha segura, estava-se bugiando para as vozes do mundo.

   Rosnavam que o Joaquim Javardo não gostava de saias; lampanas; era ver como todo se derriçava junto da Glorinhas, olho molangueiro, falas doces, sua moça para aqui, sua moça para acolá.

   A Glorinhas estava naquele dia toda faceira, boa saia de merino de quatro panos justa na cinta, chambre de baptista com pregas de renda, tamanquinhas de Viseu em verniz com forro verde e pregaria amarela, das que deixam o peito do pé à mostra e parece mesmo milagre dar-se passo assim calçado. Rico cordão ao pescoço, faltava-lhe só chapéu para ser uma fidalga. E então bem feita, erguida dos peitos, muito arredondada nas ancas, e um palmito de rosto que nem cravos de jardim. O maroto do Senhor Inacinho não era peco em matéria de fêmeas. Tinha-a amestrado, dado lições de bizarria, era ver como os cabelos lhe borrifavam das tranças em anéis sobre a testa, cobrindo-lhe as fontes duma sombra fagueira. Mediana em estatura, nem magra nem gorda, aquilo não estava talhada para mecânicos, nem para a vida de lavrador. Bastava observar-lhe as unhas limpas e a tez mimosa, para dali tirar as fidúclas qualquer pilorda. Pois, embora, o Joaquim Javardo ia-a rentando, todo correntão, todo arteiro, parecendo ter outro na pele. E, mais graça daqui, mais motete dacolá, não a largou sem que ela, a senhora Ana e Florinda fossem ver os berrelhos, criados por sua mão, e provar o queijo da Felismina que era um regalo de comer e bradar por mais.

   A casa do Javardo ficava a deslado do povo, no caminho de Alvite, e compunha-se dum correr de choupanas com uma quintã à frente onde, entre moreias de estrume, duas cerejeiras e um mostajeiro se derretiam em flores. Numa era a cozinha, noutra a despensa, soalhada, e com uma janela em guilhotina contra o ramalhedo. As lojas de gado, que eram muitas, abriam para a esquerda do quinchoso sobre a serra.

   - São uns conventos! - proferiu a senhora Ana, apreciadora.

   - Para arrumação não há segundas no povo - disse ele. - Mas que monta… está tudo um palhagal, o argilo duma só pessoa não chega a tanto.

   E, muito lamecha foi fazendo estendal da sua labuta, a grande lida e as misérias de que uma certa gente, pelintrona, o acoimava. Às vezes, vinham-lhe ganas de pegar num estadulho, e moer, moer os trastes mesmo que tivesse de perder com a justiça uma junta de vacas!

   Conversando, foi-lhes mostrar os cochinos, com untos que mal lhes deixavam arrastar a rabadilha.

   - Deus os benza e deixe chegar ao chambaril! murmurou a senhora Ana. - Estão uns urcos; comiam-se já melhor sem tempero que sem sal.

   - São uns secas pela vianda. Ouvindo a voz do amo, os bácoros grunhiram; nem a banda de Vila Cova à Coelheira.

   - Vicá… vicá! - e entornou na pia de pedra o selamim de milhão que lhes levava.

   - Aqueles também são para cevar? - perguntou Glorinhas, apontando uns mais medianos.

   - São, são. Porcos de Janeiro vão com a mãe ao fumeiro. Mas é para vender. Um porco é uma botica… mas como sou só, basta-me qualquer estes. Cuch-cuch!

   Dali passaram à sala apieçada com arcas de castanho antigo e uma mesa de retorcidos, muito velha. Sobre, via-se ainda o folar, uma almofia de ovos, uma ruma de bolos, intacta, que o Senhor Abade tolhera-se, bem-entendido, de o castigar. Por lambança, com o pé de tirar um guardanapo para lhes servir a merenda, foi descobrir o bragal, pilhas de linho, de estopa, de burel, de tomentos, tudo à farta, como quitanda de rendeiro. Uma riqueza perdida num solteirão!

   Mais para não fazer ofensa que por apetite, puseram-se a trincar com a garrafa ao lado. O Joaquim não se fartava de ateimar com a Glorinhas:

   - Vá, sua moça, coma-lhe; as cerimónias são para a missa…

   Porque o chibato do jantar estava puxado do sal e além disso era devota da pingoleta, a senhora Ana fanfou-lhe.

E muito derramada dizia para o Javardo derramado:

   - Joaquim, precisas duma mulher de portas adentro.- A quem deixas o que tens?

   - Então!… - rosnava ele, arqueando as sobrancelhas no gesto de se escusar com o fadário.

   - Precisas…

   - Sim senhora, sim senhora!

   - … uma moça limpa, videira, que saiba dar dois pontos numa camisa e fazer chá a um doente…

   - Não há dúvida, sim senhora!

   - Sabes, meu rico, uma moça que te estava mesmo a quadrar? Era aqui a Glorinhas.

   A rapariga, pronunciado o seu nome, desatou a espenujar-

-se toda, a rir, a rir, menos de desdém, ou de lisonja, que para encobrir a vergonha. Ele tinha os olhos acesos nela que nem dois tições.

   - É o que te digo. E, além de moça de truz que é, minha prima tem boa legítima! - dizia Florinda, séria em seu sorrir.

   Lá fora passava o bombo, o harmónio, os ferrinhos, direito ao adro; esvoaçava no céu morno uma cantiga chorada. As mulheres correram à janela do ramalhedo, enquanto o Joaquim, em voz trémula, dizia:

   - Não há dúvida, senhora Ana, não há dúvida; um homem só é um besoiro.

   Mas o Senhor Abade ia espertar com o descante e desatinar ao ver-se preso, com a porta fechada, e despediram todos dali, a senhora Ana à testa, como a rainha Patuda com a sua corte.

 

   Inácio Relvas Maturranga de Mioma gozava a tarde de Junho à sombra da latada que cobria de frescura o pátio antigo e o tanque, em que se vinham lançar águas de mina, deixando ao despedir do boeiro um soluço sem fim. Uma galinha dava aula aos pintainhos, mesmo debaixo de seus pés, e suspendeu a leitura da Comédia Ulyssippo a observar-lhes a manobra, trajados ainda do pêlo do demo, nas rémiges um pó de    arco-íris, gárrulos e inocentes como os diabinhos dos velhos autos. A chieira que erguiam, ao prear mosca ou cibato perdido, quebrava o silêncio do lugar, fechado ao mundo, e aberto em toda a frente dele, ao horizonte infinito. A perder de vista, nos céus e na terra, a tarde estendia-se imponderável e luminosa. Apendoavam os centeais, e o frémito das espigas era mais ligeiro que a ondulação do mar mais benigno. O verde retinto vestia os campos até para lá de meia légua de bom andar, na encosta de Segões, onde a seara empoeirada do sol, já menos paveia que farfalha, barrava a Serra da Estrela, em sua imensidade extática de bronze, dum esmaecido esmeralda. Pinhais taciturnos, baldios de fieito e de sargaço eram levados na envolta efusiva do verde; e céu azul, terra em festa, os animaizinhos do Senhor cantavam. Cantavam. Cantavam todos nos seus jardins de serradela, ou à boca dos agulheiros, o grilo, o ralo, a cigarra vadia; na mata que, às horas do poente, estendia sua sombra pelos mortos, a rola e a popa arrulhavam; e ali nas cerejas do quintal, que já tinham bichos, o passaredo moinante parecia uma aula de meninos malcriados. A Primavera despedia discretamente, sem avisar, vinha aí o Verão, um senhor verão de chapéu de palha e cara pintada das amoras e das uvas. Aves e insectos celebravam a vinda estrondosa do grande rabaceiro, que lhes trazia fêmea, um silo, e farândolas de mosquitinhos loucos para encher o papo.

   Nado e criado na aldeia, Mioma sem ficar indiferente às belezas da natureza não embasbacava perante elas. O camponês desdobrado em agrónomo, isto é, em espírito imbuído de ciências naturais, interessava-se sobretudo pelo fabulário que a cada passo brota da terra, tão abundante e dir-se-ia tão espontaneamente como as boninas dos prados. E era-lhe preciso exercer sobre si próprio um esforço todo plástico para experimentar uma emoção digna perante trecho mimoso da paisagem, ou relance de céu suave. Por isso mesmo, dos pintainhos descuidosos e da perspectiva variada da planície, rolando em vagas ferretes nas abas do povo, cinzenta nos montes dalém, até cair na muda e quase roxa religiosidade da Serra da Estrela, breve volveu ao autor quinhentista: «Natureza das mulheres he querer gastar muitos fervidores, e entregar-se a hum. Querense rogadas com o que desejam, pera venderem bem sua mercadoria. Mostrãose izentas no que pretendem, porque possão mostrar que não rogarão, mas que de importunadas se rendem; E comtudo sempre que vem ao relho como dizem, E em hum momento fasem o que em cem annos contrastarão; occasião, conjunção, valem com ellas mais que toda obrigação; E portanto aveis de entender que muito poucos lhe tomão a palha, salvo por continuação, E importunação. Azos tambem acabão, muitas vezes mais do que a esperança cuidou. Por o que aveis de andar sempre com o faro na ventam E dormir com os olhos abertos como lebres.»

   Mioma ergueu a vista a saborear o sainete numa operação remissiva, quando viu passar em baixo Glorinhas. Era bem ela, por maré de acaso tangendo as vacas para o lameiro, cesta de rendas enfiada no braço, chibata na mão. Não, não o enganavam os olhos, só ela tinha aquela cadência tão harmoniosa da marcha, que lhe parecia ver Diane à la biche, despregando-se da imobilidade e andar. E, com inquieta saudade, a foi seguindo até desaparecer na senda que, por entre linhares e milharais a verdegar, mergulhava para o rio.

   Irresoluto a determinar-se, porque seu natural era tímido e delicado, a passo vagaroso, com intento de sair-lhe a caminho, foi quintal abaixo. E, maquinalmente lendo e relendo: ocasião, conjunção valem com ellas mais que toda obrigação, na consciência martelava-lhe: Glorinhas vai casar… vai casar.

   Ia casar com o Joaquim Javardo; já dois domingos o Senhor Padre Francisco, naquele tom túmido e fastidiento de homem que tem o ganha-pão na língua, levemente perro da cigarrada em jejum, lera os proclamas. Do fundo falso duma arca encoirada, o Joaquim Paula exumara os carolos de libras, empilhados pela mão somítega e embaçadeira da mãe Javarda, e a noiva chamada a pedir por boca, nas tendas mais sortidas, a peça de melhor merino e os lenços mais luxuosos para o seu arreio. Contas grossas como os padre-nossos para o pescoço, ciganas grandes como ferraduras para as orelhas, o Joaquim alargara as mãos, tendo a peito desmentir a fama de pilorda e fome-negra que lhe trazia as moças arredias como do mais desaforado trangalhadanças.

   E o Zé da Claudina, que o fora esperar à vila, acrescentava que o homem já rogara o tocador dos Alhais e trazia marcado um vitelão de seis meses para o dia da boda. Por aquele correr de povos, falava-se mais nos preparos do casamento que na Virgem Nossa Senhora que aparecera a uma pastorinha nos carrapitos de Tarouca.

   Mioma ouviu folgadamente a notícia daquele matrimónio ervoado, a Glorinhas toda perluxosa, que ele tocara de suas maneiras de homem feito a calçar luvas e dançar o bóston, com o Javardo catinguento e montesinho, ao redor dos quarenta anos. Com relutância e enjoo, pelo que transpirava, se decidira a moça àquele passo. A senhora Ana, do padre, pleiteara com engenho e astúcia a causa do Javardo; apalavradas por ela, as melhores inculcadeiras do povo mataram o bicho do ouvido a Glorinhas com os conselhos de prudência e máximas da vida prática. O Javardo fez soar a taleiga de libras herdadas de raiz e acrescentadas na usura, e ao Cardiga velho acenou com uma junta de vacas que poriam o ramo na freguesia. A desposada seria uma regalona, com criadas para a apagearem, égua com cadeirinha para ir à feira, e marido para trazer à argola como o urso Mariana dos saltimbancos. Endoidaram-na, só lhes faltando prometer que o rei e a rainha viriam de Lisboa ser os padrinhos do casório!

   E, contando todos os quindins até a rolinha cair no laço, o Zé da Claudina, leva que leva adiante do cavalo, com a mala no varapau, deslavado dizia:

   - Eh, aquilo é lá homem para se aguentar em mula que saiu das pernas do senhor Inacinho…

   Mioma protestava sem energia; o andarilho tornava chocarreiro:

   - Ora, cuco a mais, cuco a menos, não vem mal ao mundo!

   Aquela voz unânime de que a Glorinhas fora sua amante magoava-o; magoava-o não no que tal atribuição tinha de desonroso e injusto para ela, mas no que envolvia de desfrute à cobardia e de acinte ao amor-próprio para ele gratuitamente encoimado de sedutor. Por mais de dez anos, resistindo às espaçosas largadas da aldeia, entretivera com Glorinhas um destes amores mais idílio que carne, que se apascentam em pouca coisa, um beijo nas sombras, colóquios nas horas topadiças, enternecido falar dos olhos, muito cuidar e suspirar em ranchadas, festas e romarias. A mãe de Inácio, que tinha o orgulho da altura, opunha-se destemperadamente a uma inclinação tão terra-a-terra. Mais duma vez lhe aconteceu em público descompor Glorinhas, e o discurso daquela paixão, por muito recatada que andasse, trazia a ela e ao filho em porfiosa contenda.

   Pretendia a velha dama que Inácio, nomeado regente da Colónia Agrícola Provincial, fosse eleger esposa onde o pai - o capitão Maturranga, morto na campanha dos Landins - a fora buscar a ela, aos Miomas de Castelo de Ferreira, linhagem que tinha sempre meninas casadoiras e bem herdadas para todos os moços de feição. As primas, porém, não o cativaram, nem tão-pouco a política mostrava algum empenho em desencravilhá-lo da Direcção-Geral. Daí Dona Francisca Relvas e Mioma arrastar uma velhice irascível e contrafeita, achacada tanto da natureza como de revelias do filho.

   Ao embate constante - Dona Francisca a um lado    movendo-lhe guerra sem quartel, os Cardigas a outro, queixosos e adversos por intimidação - se robusteceu o sentimento dos dois. Mas, se deste jeito impediam uma paixão nada em crianças de amortecer, tolhiam-na também de tomar o rumo para que de ordinário endireita entre um mocinho fidalgo e uma donzelinha plebeia. A voz corrente ia até o limite lógico em apego, assim, de tão grande dura; e porque nunca a verdade fora tão fementida, Mioma mortificava-se a resolver as causas de sua inanidade amorosa, tão paradoxal e sem honra: seu excesso de timidez e de melindre, a esquiva ternura de Glorinhas, a implacável dureza de sua mãe que nada achava de melhor que amortalhar seus verdes anos em ascetismo. A ela, mais que a outra fonte, devia o ter ficado em branco aquela página tão terna da sua vida e que, dobando no tempo, viesse a engelhar, marear, desaparecer no cisco como glosa de qualquer poeta de água doce. E Mioma, assim considerando, maldizia até o ódio de sua mãe.

   Com o estancear intermitente na aldeia, os antigos amores, abafados sob outros amores e a dispersão de homem que corre mundo, despertavam com saudades e não menos mágoa. Por último, o casamento de Glorinhas causava-lhe grande nojo. Certo, era do destino, da condição da moça casar com o Javardo ou outro labrego qualquer. Estava na sazão de suas ancas fecundas de vénus silvestre, na lei da vida. Mas era menos o casamento, que a sua posição ante tal casamento, a fonte de quejandos dissabores. Escapava ao seu império aquela que lhe fora tão sujeita; ia entregar-se a segundo aquela que lhe fora tão rendida; outra boca, outros braços gozariam as divinas convulsões daquele corpo desaproveitado; ele fora o senhor em potência, vinha agora o senhor em verdade. E porque ela poderia ter sido sua, milhentas vezes sua, porque deveria tê-lo sido, porque o sentir geral protestava tal irrealidade, a voz do despeito era ainda mais atroz nele que o aguilhão da concupiscência. Nunca a gozara e outro ia gozá-la - acerbo remordimento havia em sua cupidez de macho; nunca a gozara e todos o encolmavam disso - e burlesco desdoiro revertia para a sua elegância de homem.

   Mioma tinha a amarga voluptuosidade de se atar ao pelourinho e chamar as potências todas do seio a renhir com sua necedade; e todas eram indómitas e ferozes, desde as mais íntimas e secretas, que rondam nos refolhos da consciência, àquelas que fazem gala em estadear suas garras e pujança.

   Amor-próprio, honra, remorso, luxúria, ciúme, despeito, era a sua uma alma-arlequim em crise.

   De olhos na página, quase ilegível em sua brancura espelhenta, marchando na terra inundada de sol, todo o seu mesquinho romance lhe passava instantâneo e feroz pelo espírito, enquanto maquinalmente lia: e comtudo sempre vem ao relho como dizem, e em hum momento fazem o que cem annos contrastarão…

   - Grande livro é esse - gritou-lhe ao lado o Cláudio - para assim ir embezerrado na leitura! Ora viva!

   - É verdade! - respondeu Mioma, depois de trocar a salvação. - Histórias do arco da velha, onde se ensina a arte de armar às mulheres…

   Cláudio, velho e afamado rascoeiro, sorriu; aquele sorriso contava todas as suas aventuras de Dom João sertanejo.

   - Cá eu nunca aprendi nos alfarrábios a arte de armar a tais pássaras - respondeu ele, os olhos zarcos mais mexidos e frios que estrelas num poço -, e biscato nunca me faltou.

   - Então como era isso, amigo Cláudio?

   - Atenda e, se lhe servir, guarde: a mulher nasceu para ficar por baixo, o homem para ficar por riba, que é, como quem diz, o homem tem de ser forte e ela fraca. Eu cá não lhes perguntava: quereis? Tombava-as em cima duma tojeira ou sobre a enxerga e ajustava com elas as contas que nossa mãe Eva deixou em suspenso depois de engolir a maçã. Esperneavam, gritavam, é de lei em tais cavalarias. Ao cabo de duas esticadelas, ficavam mudas e de pestanas descidas a rilhar os dentes de gozo. Todo o resto é fábula.

   - Nem sempre, Cláudio amigo.

   - Com as rabusanas de cá, é assim mesmo; lá as da cidade, não sei, mas hão-de rezar pela mesma cartilha. Nosso Senhor fez-nos mais brutos e mais fortes, não é só para lidar e durar; parece-me a mim que é para não termos necessidade de perder tempo com ajuste e regateios, o que é um grande escândalo e enjoativo nesta coisa de fazer criação. Olhe-me para os animais, que vai tudo de rebimba-o-malho!… Eu cá penso assim… agora lá os livros…

   - Os livros, tem você razão, Cláudio, são papel. Assim é que deve ser. Adeus! Aproveitarei o conselho…

   - Olha que bisca!… - e, esgrimindo o olhinho azul, o Cláudio desandou, já zambro nas pernas em aduela de montador, às canchas de pedra em pedra pelo caminho alagado do regadio.

   Mioma ficou a invejar aquele homem simples que não via a vida através de vidraças nem a atravancava de artifício. E só então saboreou a valer o sentido da Ulyssippo e os conceitos de alcova. Aquilo era no século XVI, no tempo portuguesíssimo da acção, de mais fazer que propor e de mais agir que pensar. Desses, que o próprio triunfo corrompeu, o Cláudio era o ignaro mas legítimo descendente. Sem dúvida que, no seu lugar, o Cláudio se teria gozado até o fastio de Glorinhas, pela mesma razão que um velho português a deixaria mãe de filhos, enjeitados talvez, mas donzela nunca.

   E, forte deste raciocínio, malsinando da raça que de grilhetas nos pés e nas mãos se desafogava a suspirar, desgostoso de sua inteligência estéril, meteu para os lameiros ao encontro da Glorinhas. A grandes pernadas, sem escolher caminho nem atalho, ia recalcando decisão, uma decisão indisciplinável que o conduzisse aos decantados sucessos do Cláudio. Não, não podia renunciar a Glorinhas, pura como a conhecera, pura como a deixara, para que, em mente sequer, o Javardo se gloriasse das primícias e de seu tolo rebuço em lhe catar cortesia de donzela. Tinha de dar-se uma satisfação por aquela voz geral que lhe assacava o logro de sua virgindade e a usança de seu corpo. Precisava de saciar a sede daquele longo amor, em que a candidez não era mais que o estado de contracção de um desejo recalcado. Depois de possuída, se mal houvesse de seu bem-querer, que casasse… que casasse com o Javardo ou igual filho do Demo.

   Premido deste pensar, guiado por sua experiência de caçador, em breve atingiu os pastos onde Glorinhas guardava as vacas. E, despindo para logo sua rópia, começou a procurar a razão que explicar pudesse a sua passagem por aqueles sítios e uma subtileza que o levasse de manso a entabular fala com ela. Como, porém, em sua astúcia não descobrisse a singeleza que o lance requeria, novamente considerou que seu porte era de covarde ou de delicado, e que para a frente era o caminho. Avançanco, pois, pelo giestal dentro, que a seu fundo entestava com o pasto, a menos de um credo avistou Glorinhas, sentada em campo livre, fazendo renda. Especado ao sacho, em frente dela, os dois cotovelos para fora como asas de talha, sob chapeirão de trança, em mangas de camisa, estava um homem. No primeiro relance, Mioma julgou ver o Javardo, mas pela bandouga enorme, as pernas de anainho, cabeçorra de alambique, cedo reconheceu o João Bispo. E, agastado com aquela circunstância ou satisfeito - não sabia bem -, a boca seca, as meninges a tamborilar como de homem que está para roubar ou matar, ficou à espera que o bruxo retirasse.

   Esperou a coberto de que o vissem e, esperando, seus olhos namoravam a rapariga, cujo tronco se erguia firme sobre o tapete verde da corga nas proporções dum belo mármore. Tinha o rosto de perfil e distinguia-lhe o canto da boca que uma ligeira malícia pungia, e que beijara; o colo forte, talvez excessivamente amplo e de tal luxurioso, que arfara por ele; os cabelos castanhos, voluptuosa teia para envencilhar, que uma tarde de abandonos ele cobrira com maias dos montes. Um lenço vermelho, a cor que atiça os toiros e escalda o sangue dos homens, descaía-lhe da nuca para os ombros bem rimados.

   Estudando-a, despindo-a, lambusando-a de sua líbido, Mioma cogitava nos tesouros de gozo que ali estavam represados. E seu desespero e cobiça eram piores que dois cães, dentro do seio, a dilacerar. Por certo que o Bispo, mais migalho menos migalho, desatava, e ele então, de salto, talvez ali mesmo, em pleno céu, em plena terra, cometesse a acção orgulhosa. Não temia o escândalo porque, ilimitado, sempre seria pequeno ao pé do desforço que tirava, e, porque reduzido à violência de forçar mais uma vez quem tantas vezes fora sua segundo a voz do povo, de pouca monta era o desacato. A mácula, também, que assacavam à moça era tão grande e categórica que sem custo absorveria aquela. Seu pundonor de homem podia, assim, jogar jogo franco e dedicido. E, fortalecendo-se com esta e outras razões, ia ordenando a forma de ataque, para o que evocava certos passos manhosos dos lutadores de circo e considerandos anatómicos, que lhe sugeria sua prática de mulheres.

   O Bispo, entretanto, não arredava pé e Mioma entrou a impacientar-se. Dobava a tarde e, por cima dele, as rolas em pequenos bandos desciam a beber no rio. Um perdigão, ali perto, cucuritava: cunexé! cunexé! e o sentimento de melancolia que há num toque de recolher encheu a campina silenciosa. Os mil animais da terra cantaram, e tornou-se mais estridente e variado que um arraial. A terra, com o sol a fugir para trás de Santo Antão e o tilintar das campainhas muito derramado, entrava na hora lânguida que, sorte de ponte suspensa, apenas para passagem de sombras, o estio lança da tarde para a noite.

   O Bispo e Glorinhas conversavam frente a frente e era ele que berrava, guardava, aqueibava as vacas quando moscavam para o lameiro vizinho. O sapo-concho não despegava do pé da boeirinha, fascinado também! E, acabando por perceber que numa regada próxima retolçavam as vacas do Luís Rola, desesperou, esteve tentado a voltar para casa e a remeter a hora melhor aquela empresa de tanto brio. Mas quê, se o casamento estava à porta?! E, sentindo-se estorvado em seu propósito, a angústia que o tomou foi tão grande que, abominavelmente, amaldiçoou de sua mãe, por cuja mão viera àquele tremedal, e de Glorinhas, que sem pejo transitava dele, criatura a bem se lhe querer, para o Javardo, pilorda só a detestar. Nestes auges, como jogador perdido que se lembra da última nota de banco, guardada num bolso falso, lembrou-se da Teresa Zabana. Esta mulherzinha, que sabia atalhar aos leicenços, vestia os mortos, e era a estafeta solerte de recados e alquilés, mostrara-se, um dia, hábil medianeira de amores. Já lá iam cinco anos e, graças a ela, pudera chegar às boas com uma carochinha de Vila d’Igreja, deliciosa em sua primavera já serôdia, sensual mas tímida. A Zabana, que então dera provas de grande zelo e argúcia, podia valer-lhe naquele tão apoquentado passo da sua vida; como nos votos aos santos milagreiros, pesar-lhe-ia Glorinhas a prata, se trazer-lha soubesse. Por ela, dar-lhe-ia tudo, o que tinha, o que não tinha, o que viesse a ter. E certo de que muito havia a esperar de criatura tão esperta ao ganho, mais sossegado, pensou em ir tentear o ânimo de Glorinhas, abrir a antiga chaga de amor, pôr-lhe no seio um pensamento de ternura. Mas à orla do giestal arreceou-se; seu ânimo cobarde e delicado podia mais que a sua teoria da força.

   Ao cabo de grande briga íntima, decidiu-se a romper. De passos incertos, olhos descidos sobre a Ulyssippo, na mesma página que conservara aberta por ter dobrado lomba com lomba: - Natureza das molheres he querer gastar muitos servidores e entregar-se a hum. Queremse rogadas… - caminhou para ela.

   - Boa tarde! - disse em voz mal segura, estacando nas imediações.

   Glorinhas não respondeu; sem fazer um gesto, o Bispo mal buliu com os lábios:

   - Venha com Deus!

   Sentindo-se embaraçado com tão singular acolhimento, Mioma quis explicar-se e que à razão dada Glorinhas atribuísse, não a ela mesma, o sentido que o trouxera por aqueles lugares. E gaguejou umas infantilidades.

   Ninguém, porém, lhe levantou a palavra; muito murzango, o Bispo olhava diante de si, para o chão; ela, de cabeça baixa, tecia com molde veloz a tira de entremeio. Mais contrafeito ainda, Mioma experimentava rancor, o rancor colérico das pessoas que se crêem superiores vendo-se um joguete doutras de condição inferior. Mais alto, pungia-o o sentimento de que tudo estava perdido, que se chocava contra o irremediável. E, procurando já não sair com vantagem mas apenas com honra daquele lance tão desairoso, tornou para o Bispo:

   - Então aqui é que guardas as vacas, rapaz?

   - Onde andam, não dão estrago.

   - Vem por aí teu cunhado que te chega a roupa ao pêlo…

   - Não lhe pegue meu cunhado.

   - Mas pega-me que deixes ir as vacas ao que me pertence. Tenho a tapada perto.

   - Homem, que há na sua tapada? Mato.

   - Há lá tojo.

   - O tojo desbota-lhes o dente; esteja você descansado que não lhe hão-de dar grande perca.

   O Bispo aceitara o debate e Mioma estava-lhe agradecido.

E após aquele primeiro sucesso, tentou tirar à fala Glorinhas.

   - Rendas… É para algum altar?

   Ela não respondeu e ele insistiu:

   - Hem? É para algum altar?

   - Não senhor.

   - Para que são então?

   - Para que são?

   - Para que o quer saber?

   - Curiosidade.

   Perpassou um minuto de silêncio entre eles durante o qual Glorinhas mais dobrara a cabeça sobre as rendas. Com o medo de perder o fio, Mioma voltou-se para o arganaz:

   - Sabes tu? Pareces o feitor…

   - Pergunte-o ao Vargas! - respondeu o Bispo num sorriso de mofa, derrubando a beiçola.

   - Não o pergunto ao Vargas, pergunto-o à tua pessoa.

   - Pois perde o tempo e o latim.

   Mioma, galhofeiro, deitou-lhe a mão ao sacho:

   - Estás respondão, Bispo!

   O outro dando um sacolão para trás safou-lho das mãos. E, enchouriçando-se todo, proferiu:

   - Vá pegar nos guizos do Padre-Santo.

   - Que dizes?…

   - Já disse…

   Mioma cresceu para ele e deitou-lhe a mão à gorja; depois, como fizesse menção de reagir, com um cambapé, pregou-o em terra. Mas ele envencilhara-se-lhe às canelas e, arruaçando, mordia-o com grande sanha. E teve de o soquear, moer a pontapé, cascar-lhe nos queixos dois murros valentes para que largasse a presa. Com a camisa de fora e a braguilha desfeita, o Bispo ergueu-se a gritar:

   - Aqui d’el-rei!! Aqui d’el-rei!!!!

   Em voz irada, de pé e com a cesta no braço, como quem despede, Glorinhas disse para Mioma:

   - Para que se vem meter com quem está quedo? Seguisse o seu caminho, ninguém o chamava cá!

   Mioma lançou-lhe um olhar que era a confissão eloquente do drama que se passava em sua alma. Ela aguentou-lhe o olhar e retorquiu:

   - Vá-se embora, deixe-me!

   - Aqui d’el-rei que me matou! - continuou vozeando o Bispo entre soluços.

   - Cala-te! - intimou Glorinhas, as palavras a sibilarem. - O mal que te fez podes bem com ele.

   - Esborrachou-me a carinha… Aqui d’el-rei!

   - Cala-te Estás habituado!

   De ânimo torvo, Mioma declarou que não tivera a intenção de o molestar, que só por brincadeira lhe deitara a mão ao pescoço. Mas Glorinhas não queria saber de escusas e foi numa voz quase de frenesi que exclamou:

   - Mas largue ...!

   - Glorinhas… adeus!

   - Adeus! - respondeu ela já em tom brando, voltando as costas.

   Mioma foi-se dali cabisbaixo e confuso em sua alma vencida.

 

   A Teresa Zabana, depois de trocada a salvação, empurrou a porta e, adiantando-se da sombra, mostrou aquela cara que Deus lhe deu de melageira, as meninas dos olhos a esbagoar-se em festas, os dentes encavalados a rir.

   - Não lhe dê olhado a casa, tia Teresa; ainda hoje não foi varrida.

   - Pois olha, ninguém o há-de dizer; pode-se comer o caldo no chão. Há lá no povo casinha mais limpa que a tua, Glorinhas!? Isso há ele!…

   - As manhãs já mingaram bem mingadas. O Sol no céu parece um comboio a fugir; todo o tempo é pouco…

   A passo miudinho de corvacha, muito engorrada na capucha que lhe caía em refegos sobre os braços cruzados ao jeito dos mortos, a Teresa Zabana acercou-se. E ao pé da máquina de costura, com o ponto estacado a meio da fazenda, desatando-se da capa que pusera por parecer mal entrar nas casas alheias em corpo bem feito, exclamou:

   - Que caloraça! Então, menina, muito trabalhinho?…

   - Não há remédio.

   - Mas que estás tu a zarafunchar? Ceroilas!…

   - Acertou; meia dúzia de pares de ceroilas para o meu desposado.

   E deu-lhe uma gargalhada, destas que vão prevenindo a mofa ou temperando a surpresa das pessoas.

   - Ó mulher, pois tu já lhe tomaste a medida? - replicou a Zabana, gracejando também.

   - Tó ruça! Tenho aqui o molde…

   E arrancou do açafate umas ceroilas de homem, de tomentos, que fariam vomitar a cama das tripas a um trapeiro, só de vê-las. Um mondongo em termos de servir para espantalho de pardais, com a escarcela amarelenta das águas e os fundilhos negros da porca lidairada. A Zabana abanou três vezes a cabeça e fez o sinal da cruz:

   - Benza-me Deus; enxalmo maior das pulgas nunca vi! ó rapariga, eu deitava a bochada se tivesse de lhe pegar! Até dão olhado!…

   Glorinhas nem pestanejou e ela, estendendo a mão para as ceroilas novas, palpou, tornou a palpar, desceu o nariz a estudar-lhes o trapio:

   - Rica teia, sim senhor, rica teia! Mal empregada naquele labregão.

   Glorinhas, desta feita, encolheu os ombros num gatimanho em que ia a história toda do casamento. Não era forma do pé dela, mas deixá-lo, aldemenos os filhos, se Deus os desse, não andariam de surrão pelas portas, a pedinchar.

   - Rica teia! -- repetiu a Zabana.

   - Urdiu-a minha tia Rosa Gaudência, que Deus tenha em sua guarda - disse ela, acompanhando os olhos da Zabana, namorados do linho. - Foi nos seus bons tempos; para o fim, já nem atinava a deitar os cadilhos.

   - Aquilo tinha já os miolos n’água. Deus lhe perdoe, se não fora o ladrão do genro ainda hoje comia a codinha.

   - Comia… meu pai é do mesmo ano e para aí anda sem querer morrer.

   Glorinhas volveu aos preparos do bragal, pedalando com brio, fazendo cirandar a costura com mão firme debaixo da agulha veleira. Era sobre o meio-dia, voltavam as vacas da primeira pastagem e raparigas iam à frente, de cântaro na cabeça, saiote vermelho a trapejar. A Teresa Zabana, a quem não passava o ver pelo ouvir, do rabo do olho, ao abrigo da ombreira da janela, espreitava a rua. Batiam os mangoais para as lájeas, nos derradeiros malhios. As arcas iam enchendo, já arruaçava a barba do milhão. No altinho do povo trovejavam tiros bombardeiros, e ouviam-se ferros e malhos rasgando a estrada real. Lá rompia o Cláudio com uma carrada de painço, adiante das vacas guizalheiras; logo atrás, na sua andadura pinchada de gaia, caminhava a Zefa do Alonso com a cântara de lata na mão, um menino de leite ao colo e o cuquinho, descalço, com o traseiro muito vermelho contra a racha dos calçonicos, a rilhar na peugada um tropeço de broa. Aquela, depois que cornudara o homem, era como as coelhas, uns fora, outros dentro. Já andava com a barriga à boca e ainda o último não gatinhava. Fosse pelo amor de Deus, o Brás tinha limpado os canais. No Rio, o negrinho podia cuspir às unhas, juntar trapo, que não lhe faltariam dentes para a trincadeira. Por lá andava, ia em seis meses, por modos sem remeter a passagem… oh!… e quem sabe lá se a chegaria a remeter!? Isto de sorte e de Brasil tanto anda como desanda… Felícia de cadela tinha a Carma Chilandreira a quem os filhos mandavam dinheirama que se podia medir à rasa. Pois nem assim a alma de cântaro velho perdia aquela tromba de ougada com que a mãe a botou à margem. M’amigo, o que o berço dá só a tumba o leva! Lá estava ela na quintã a especular, a deitar o lúzio. A Glorinhas tinha boa peça na vizinhança. Batera língua com o povo todo, por um dá cá aquela palha, a vez no forno, o assento na missa, até por mor das pitas, que lhe fossem esgravatar na estrumeira: Irra! não havia morto nem vivo com quem não tivesse andado de candeias às avessas. Dianhos a carregassem, lá estava a olharapa a meter os olhos pela janela dentro, para saber, para ir com intrigas…

   - Credo! Credo! - disse ela. - A Chilandreira até se põe nas pontas dos pés para esgrelhar.

   - Até pode subir para riba do telhado; não estamos a praticar nenhuma feia acção.

   - Mas passa as marcas. Quere-la ver de pescoço alçado?... Nem uma pirua!

   Glorinhas mal tornou os olhos e prosseguiu com a costura. E, como quem saca dum rosário, a Zabana foi contando as novidades, o Cláudio que dera uma grande surra na mulher por via da Folexa; o Neve-Ladroa que estava na venda, com um grande pifão, a dizer velhacarias dos padres que até tremia o céu e a terra; o Senhor Inácio Mioma que livrara o Zé Narciso da coima que lhe deitara o coiteiro. «Sempre estava um graúdo aquele senhor Mioma! E cavalheiro... não havia dois do Cabeço d’Alva para cima.»

   A moça, presa à obrinha, respondia com duas palavras secas, uma risada, quando não com um aceno de cabeça. Em procissão, entre vagas de pó, entravam os rebanhos, muito mansos por agastados da canícula, a procurar a sombra dos muros. O som dos chocalhos amortecia na luz acobreada do sol; era como pedras a fundirem-se na água densa dum charco. De envolta, o Safadinho, descalço, sem chapéu, pendurado num velho casaco eclesiástico, passou a cantarolar o passe-calhe da banda da Vila Cova à Coelheira, trazido à festa de Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens. Todo videirinho, levava a vida a soprar a moliana. Desbaratara a paterna em bebedeiras e jogatilhas, vivia agora dos mortos; já exigia um pinto para cavar a sepultura dum confessado, e doze vinténs a dum anjinho. Além disso, meia canada no vendeiro e um pataco de cigarros, afora as chinelas que roubava aos defuntos mal guardados. Peste o tragasse, de gorra com o João Bispo ia assar na serra os reixelos mortos e assaltava de noite os meloais. Por isso andavam reboludos e nédios, com mais pingo que lontra, caras vestidas de macio velo. E já suas figuras tinham mais de dois cabrões das selvas que de humanos seres. Lá ia a trautear: lalali-lala-la-xam! Piava o grande corujo… andava a morte perto! Retiniam mais forte os manguais e mulheres trotavam na rua com cabaças cheias. Com o sol a pino, ardia a goela dos malhadores. Eh, também lhe ardia a sua! E a sensação da sede, e o regalo dos bons goles saboreados lentamente, com todo o ripanso, na sua casinha fresca, desviaram-na do longo atalho por que buscava carreira.

   - Então quando é a boda? - interrogou ela.

   - Pergunta bem! Os papéis não tornaram mais de Lamego. Algum zango os enguiçou.

   - Essa agora…!?

   - E o que lhe digo. Meu tio padre está farto de escrever… Sem que o Joaquim Paula se bote lá em pessoa, não desencalham.

   - Ora, nunca mais eles cá cheguem. Tomara eu ver-te sempre uma solteirinha limpa e escarolada como não há segunda. Hás-de amargar o mimo!… hás-de! Tu não sabes o que é o fadário duma mulher casada!

   - Oh se sei!

   - Então se sabes, volta atrás, que por aí vais errada. Glorinhas espreguiçou-se, atou os braços ao alto da cabeça:

   - Depois de tantos gastos, tia Teresa…?

   - É rico… pode bem.

   Glorinhas, tendo-se levantado, plantou-se diante dela à espera que despedisse. Dois pobrezinhos subiam a fita estreita de sombra, palpando o terreno com o bordão. E, debaixo da sua janela, alijaram os alforjes, consolados de topar poiso agradável. Um deles rapou duma côdea de centeio; o outro abriu o albornoz e, de cabeça dobrada para o peito felpudo, pôs-se à caça da bicharia.

   - Vou-me lá fazer o jantar - proferiu Glorinhas desviando os olhos. - Vem aí meu pai cheio de larota.

   E ia a desandar, mas a Zabana segurou-a:

   - Tens tempo, ainda o sino de Santo Antão não bateu o meio-dia. O caldinho depressa o fazes… Sabes que quinta-feira é a festa da Senhora de Agosto?

   - Vão já os caminhos coalhados de romeiros.

   - Nunca vi gentiaga assim. Cai lá este mundo e o outro… Vamos lá, mulher?

   Glorinhas abanou a cabeça a escusar-se.

   - Não? E a nossa romaria? Querem ver que já se não lembra…!

   Palavra, não se lembrava! Quando o seu pai estivera a dar o cadilho com o flato, sim, tinham feito uma promessa à Senhora das Necessidades, mas nanja à Senhora da Lapa. Bem haja a tia Teresa que não arredara um cassamente do pé do seu velho, bem haja. Agora estava na ideia de que o voto fora à Senhora das Necessidades…

   - Não, menina, foi à Senhora da Lapa. Estou bem lembrada. Olha, prometemos seis voltas de joelhos ao penedinho…

   Glorinhas ficou a malucar, a puxar pela memória que não era rota de todo. E, torcendo os lábios, respondeu:

   - Será, mas vá vossemecê e que as passadas lhe sejam aceites. Encomende-me à Virgem Nossa Senhora…

   - E então tu? Saberás que é um grande pecado não pagar os votos aos santinhos…

   - Pois é, é, mas agora não calha. Vou lá depois de casada.

   - Ah, isso não! As promessas de solteira pagam-se de solteira, sempre ouvi dizer…

   - Vá vossemecê.

   - Não, que a romaria sem ti não é de valha. Temos de ir ambas. Há tanto tempo, é mesmo uma vergonha!

   - Ainda não há tanto como isso. Foi pela matança dos recos que meu pai teve as pontadas.

   - Arriba, arriba! Ainda não tinha parido nenhuma cabrinha no povo. Foi logo ao cabo das sementeiras.

   Glorinhas calou-se e a Zabana frigiu-a de razões, umas após outras. Não, não podia furtar-se; era um grande arrisco, em vésperas de casamento, negar a Deus o que se lhe devia. Até os filhos podiam nascer lobisomens! E quantas precisões não havia de ter de se chamar à milagrosa Nossa Senhora? Ham! Ham! Só os partos, que abriam a cova a tantas casadinhas pelo mundo!… Ele há lá nada mais ruim que o parir?!

   Glorinhas teimava:

   - Vamos lá ao depois da festa.

   - Vamos lá no dia que tem mais préstimo. É um salto, a Lapa não é Santiago da Galiza…

   - Deus me perdoe, mas não posso.

   - Podes, não digas que não podes. Quem te impece o caminho? Por mais que me digam, estas raparigas de agora são meias maçónicas. Está o mundo perdido!

   E a Zabana mostrava os dentes de cabra maninha num sorriso soalheiro.

   - Ai, tia Teresa!

   - Qual ai, nem meio ai! É para teu bem, menina, é para teu bem que estou a marralhar.

   - Já disse ao Joaquim Paula que não punha lá os pés… Tanto se matou aquela alma para eu ir…!

   - Ora, desculpa-te comigo. Vamos à tardinha, não se dá cavaco a ninguém e, leva que leva, cumprido o voto, toca a rodar. De manhãzinha estamos de volta. Ninguém nos há-de ouvir.

   - Mas que não há-de ele dizer?

   - Que se componha. De resto, minha rica, aprende com uma tola a lidar com os homens. Quantas mais vontadinhas se lhes fazem, mais eles puxam para o arrocho. Eu seja cega!

   Glorinhas estarreceu, meio batida em sua teima; mula fina, a Zabana apertou mais:

   - Então a mais linda flor de Seitosa não havia de ver Nossa Senhora no dia da romagem? Bofe, nem a festa era festa!

   Glorinhas ria, ria, lisonjeada.

   - Pois prepara-te. De nosso vagar, toca que toca, nem dão conta de nós.

   - Tia Teresa, tia Teresa, vossemecê é o cabo dos trabalhos!

   - Eu não, menina; é Nossa Senhora; é Nossa Senhora que quer ver lá a sua açucena, é Nossa Senhora a quem tu deves…

   - Lá isso…

   - Pois então vou-me lá, fica-te com Deus. Ouve, hei-de cozer o pão, faço uma bolinha com carne para a nossa merenda.

   - Não faça; eu arranjo farnel. Ainda aí há salpicão…

   - Faço, faço… Fica-te com Deus. O que eu desejava era ver-te uma fidalga rica e mimosa que o mereces. Fosses tu de outras terras que não era o Joaquim Javardo que te prantava os calções em riba. Eu seja negra! Mas sempre ouvi dizer, por cobiça de florim não te cases com ruim.

   E a Teresa Zabana despediu, dando um estalo com a língua em sinal de mágoa e de reprovação.

   Lá fora o sol escaldava as pedras, punha os pardais de mirante debaixo do beiral da Chilandreira. Os mendigos ressonavam de papo para o ar, cobertos de moscas, sobre os bornais do peditório.

   Muito lépida a Zabana entrou em casa a buscar uma garrafa. Um salto à venda do Cláudio, e breve volveu com o rico vinhinho fresco, a espumar, a entoar em suas camarinhas fugazes, cor-de-rosa, a música da regaleira.

   Encheu uma tigela até cima e bebendo-a primeiro com os olhos, no pesar de breve afogar seu gozo, soltou a voz, bem que não fosse murmurinhenta:

   - Arrima-lhe, Teresinha! Já ganhaste para um almude.

   Vagarosamente, delicadamente, como amante ao dar o primeiro beijo, levou a malga aos lábios. Tirou um, tirou dois tragos e, olhando o palhete enlevada outra vez, pensou alto:

   - Ah tola, esqueceu-te o pozinho de açúcar!

   Deitou-lhe o pozinho de açúcar, e com mais deleite que uma beata ante a sagrada mesa da comunhão, com a mesura dum enfermo, babosa de delícias, sorveu a bebida da sua loucura.

   A casinha toda, os trastes todos, desde o tanheiro ao cântaro, acocorado como um bonzo sobre a arca, pareciam compartilhar extáticos de sua quieta voluptuosidade. Abriu os olhos ao fragor dum tiro nas pedreiras da estrada. E, embrulhando-se de pronto na capucha a despeito do sol que rechinava ar e terra, meteu para os pinhais. Andou, andou, passaritou de mata para mata, e já descoroçoava de encontrar o doido quando o descobriu, caminhando de cabeça baixa, pelo ermo fora, como um desenganado.

   Largou-lhe no encalço, pschiu! pschiu!

   - Canudo! - proferiu ela, quando se encararam. - Cuidei que o não pilhava.

   - Que há, senhora Teresa? -- apressou-se a dizer Mioma.

   Schiu, as paredes têm ouvidos, os montes olhos. Vamos para ali. - Dizendo o que, sete lúzios à direita e à esquerda, arrastou-o para o mais fundo do bosquedo.

   - Todo o recato é pouco - tornou ela. - O nosso povo está cheio de noveleiros; não o sonham para o dizer.

   - Aqui ninguém nos ouve. Que há então?

   - Muita palha e pouco grão. Lá fui onde o senhor me mandou. Seja pelo amor de Deus, custou-me mais que se me mandassem para a morte, com um baraço ao pescoço. Quando pus os pés da porta para dentro, se em vez de soalho houvesse uma cisterna nem dava conta. Não, meu senhor, não nasci para estes mandaretes.

   - Que se passou?

   - Olhe!… aquilo está testa; nem a camartelo… Ponho as mãos numas Horas em como não é mulher que venha ao relho. Mas, ó meu senhor, em tantos anos não estará farto de se gozar dela?! Deixe-a lá, fraldas não faltam e das bem cheirosas.

   - Vossemecê, pelo jeito, precipitou-se?

   - Se eu fosse uma desbocada!? Não senhor, fui levando as coisas pela mansinha. Aquilo não é rolinha a quem se batam as palmas, truz! Truz! Olha lá…

   - Vai à Lapa?

   - Eu lhe conto: fartei-me de batalhar com ela. Perra assim, não quero que haja segunda debaixo da rosa do sol. Não, não e não; daqui não saía. Mais eu teimava, mais ela teimava. Mas cometes um grande pecado, rapariga?!… Nascem-te os filhos lobisomens?!…. Não e não. Estes Cardigas é raça dos antes quebrar que torcer.

   - Não vai, pois?

   - Tanto lhe roguei, tanto lhe roguei, era deitar vozes a gaiteiro. Valia mais pedir vista a um cego.

   - Eh!

   - Ela é uma rapariga de se lhe tirar o chapéu, só por malquerença se afirmará o contrário, mas lá senhora do seu nariz, disse. Olhe que até de joelhos me deitei a pedir que, por sistema dela, me não fizesse pecar…

   - E não cedeu…?

   - Pedi-lhe pelas cinco chagas de Cristo, por alma da mãe que lá tem, secou-se-me o sumo da boca de tanto rogar… Só queria que ouvisse.

   - E tudo debalde?

   - Vai ouvir. Um moiro não levaria tanto tempo para aceitar o baptismo. Eu em bons modos, porque torna porque deixa, e ela mula. Acabei por sair da minha sina, bramei, bramei… sei lá o que disse.

   - Mas convenceu-a?

   - O senhor já viu tirar o chiadoiro a um porco? Já viu? Assim lhe arranquei o sim da boca para fora. Aquilo é de estrela e beta e pé calçado.

   Mioma, após aquele palanfrório todo, desencrespou a testa; a Zabana, agora, jactava-se, dava velas ao seu triunfo:

   - Tinhosa eu seja se outrem fosse capaz de a levar. Nem a mais pintada.

   - Não há-de perder o seu tempo, descanse.

   - Pois sim, sim, mas melhor fora o senhor Inacinho não me meter nestas alhadas. Não é minha lavra. Não sei, não tenho estômago para ir com pau de sancadilha desinquietar quem está quedo. Porque não vai ter com a Rosa Foleira, que alcovitou a Ruça mais o Delegado manco da vila? Sabe que mais, vá ter com ela…

   - Só em si deposito confiança, senhora Teresa.

   - Nem lha hei-de desmerecer. Mas ouça, meu senhor, eu tenho muito medo de andar nas bocas do mundo. Imagine que se vinha a saber! Eram capazes de me vazar os olhos e verter águas nas poças. Esta gente tem muito má colada.

   - Pois não tenha medo; eu tomo a responsabilidade do que acontecer.

   - Toma, toma, mas dum enxovalho ninguém se livra. Ai! nem o senhor Inacinho imagina como trago o fígado derrancado cá por dentro! Bem sei, é sina das criaturas sair duns trabalhos para se meter noutros. Mas escutado fosse o conselho duma tola, e nem eu nem o senhor andávamos em brasas.

   - Qual é o conselho?

   - Quer saber? É deixar a moça. Deixe-a lá casar, que a leve o diabo. Não se encheu dela? - e a Zabana olhava-o muito direita nos olhos, com uma persistência molesta.

   - Não se afadigue vossemecê a fazer-me perguntas disse ele. - Estude bem o recado e ande para a frente.

   - Se ele fosse só andar? Ham! acordasse o senhor mais cedo e a coisa fazia-se enquanto o diabo esfrega um olho. Nesta altura, puh, é responsá-la ao Chuço…

   A Zabana interrompeu-se de orelha guicha para longe. A caruma rangia e, antes que se avistasse vulto, puxando Mioma para a sombra duma urgueira, murmurou:

   - Agache-se, vem gente.

   Era uma mateira que andava à apanha das pinhas, aqui uma, além outra, para a abada. E, um momento em que se endireitou em seu corpo bem feito, a Zabana disse:

   - Olhem quem ela é, a Guiomar do André. Grande coira, traz tolo de todo o padre Zezinho Gaudêncio. Não sair um tranglo-mango dessas brenhas e desmoçá-la, já que ele a não desmoça! Era bem feito, só para não vir tirar a gente da sua devoção… Que Deus ou o Diabo a levem lá por longe!

   Rente a Mioma, e porque seus corpos se tocavam, a Zabana sentia estremecer sua espinha lasciva de gata virgem. Não, não era aquele que, tombando-a para trás num jeito raivoso, lhe daria o sonhado gozo do forçamento. Sabia-se velha, com todos os agrados mortos. Nas manhãs mornas, nua sobre a cama triste de ermitoa, ou diante dum caco de espelho, estudando seu corpo, chorava a donzelia, lentamente a secar como uma desprezível erva de baldio. Emagrecera, os seios    sorvaram-lhe, só guardava os olhos, uns olhos felinos, mais estranhos ainda por serem de uma pretidão sem tacha. Ninguém a cobiçava… deixá-lo! Via aldemenos as outras dar em droga, batidas de plebeu e fidalgo, escorregar mais de uma para o triste fado. Lá ia vivendo, mofina por natureza, esperta a servir e ladina - marca jota - a explorar seus préstimos. Era leve o seu pé de recoveira, louvores a Deus, para alquicretes e recados, e o povo tinha-lhe respeito porque nutria comércio com os graúdos por essas terra fora. E este respeito, mais medo do que consideração, era o seu consolo de solteira velha e desprezada.

   Guiomar seguira a sua derrotina por largo e ela, erguendo-se, chalaceou:

   - Fosse aquela, e ainda hoje lha levava ao castigo!

   - Glorinhas não tem nada a perder.

   - Bem o sei; nem eu me metia a desencaminhar uma alma cristã que não fosse para bom fim. Dessa não hei-de eu dar contas ao justo juiz. O que queria dizer cá na minha é que a Glorinhas não é daquele trapio.

   E apontava para a rapariga cuja silhueta se perdia, ao longe, entre os pinheiros distantes.

   - Prometa-lhe tudo o que lhe vier à cabeça.

   - A quem o diz! Não é com vinagre que se caçam moscas. E o meu senhor não é homem que falte à sua palavra; queira ela e há-de fazê-la rica e estimada, cantés aquele meigengro do Javardo só surro lhe daria. Safado! Sabe o senhor, eu cá, com o seu perdão, ia-lhe prometendo casamento… maneira de lhe arregalar o olho…

   - Pois sim, mas não muito ao mar. A pequena é sabida.

   - Entendo… Na romagem, se Deus quiser, tenho tempo para a confessar. Prometo consoante a lua em que estiver, pois não é assim? Deixe-ma. Ai! bem transtorno me faz esta romagem à Lapa. A gente, ainda que seja pobre, também tem a sua lida. Lá tenho o painço no Paul a debulhar pela milheira; ontem não dei o dia e tanto que me consumiu a senhora Ana do padre… A gente não tem mãos a medir, que a galinha do Celorico pranta ovos pelo bico. É por estas e outras, que eu me queria ver livre destas rodilhas… Acredite, meu senhor, nem o comer me serve de préstimo.

   Mioma meteu as mãos nas algibeiras e tirou o seu dinheiro todo. E, pondo-lhe nas mãos aquelas dezenas de tostões, escusou-se:

   - Para a festa eu lhe darei mais; é quanto trago comigo.

   - Bem haja, meu senhor, bem haja! - exclamou ela, rosto florido de páscoa. - Não é por paga que faço isto, não é. Vejo-o consumido e tenho pena. As pernas se me quebrem, se é por interesse; é pela amizade que lhe tenho, e também pela paixão que me faz aquela moça, que vai ser uma negrinha nas mãos do boisana. Jesus! eu nem sei o que hei-de fazer da minha vida!

   Mioma aprouve-se a pintar-lhe o seu papel com tintas de virtude e a captá-la. E, vendo-a conformada, deu-lhe instruçoes.

   - Sabe que mais - atalhou ela -, apareça pela romaria. Faça-se encontrado… O bom pano na arca se vende.

   - Pois sim.

   - Mas tome tento, não vá espantar a pássara. Olho

fino, e falas pelo mandil. Sal quanto salga tanto vale.

   - Sim, senhora.

   - É receita. Vá para casa e descanse. Eu perca o nome de Teresa em como o negro de Aris, se quiser fêmea, há-de arranjá-la entre as da pata rachada, que não a Glorinhas. Até Deus se admirava…

   - Bem, bem.

   - Vou-me por ali ao mato. Não falte na Senhora da Lapa e muito bem haja. Tanto incómodo!…

   Mioma cortou para casa, de passo alerta. A Zabana  deixou-o desaparecer e pôs-se a contar o dinheiro, o seu dinheirinho bem ganhado.

 

   - Que beleza de seios vossemecê tem, tia Teresa… Safa! rijos, redondos, nem de donzelinha a amoujar. Deixe palpar, deixe… que mal há?

   - Dialho, esteja quedo! Não vê que são da Glorinhas, seu estavanado?

   - São teus?… Deixas, Glorinhas, deixas?

   - Palpe, mas avie-se; pode chegar o meu Javardo… Assim não, que me magoa! Meta a mão com jeitinho… lá…

   - Minha vida!

   - Sape, gato! Aí não! aí não!… Ui!

 - Glorinhas!

   - Não…! Olhe que me arrenego… Homem, não repara que estão com os olhos em nós?!

   Dlin-dlin-dlão, e Inácio Mioma acordou votando a um raio o dobre do sino que tão estupidamente lhe quebrara o voluptuoso sonhar. Enlanguescido, puxou a roupa para os olhos, em busca de reatar tão ameno passo. Mas lá fora tropeavam tamancos, a manhã clara de Agosto rompia pelas vidraças alvissareira e importuna. E saltou da cama com palpite de avistar Glorinhas no enterro do Rola usurário e a esperança de receber de seus olhos uma mirada de amor.

   Mioma vestiu-se com presteza, porque era homem de rasgo e andam sempre escoteiras as paixões alvoraçadas. E meteu de espora fita para casa do morto, onde deviam estar àquela altura ordenando o saimento. Rompia o sol de entre os montes, muito manso, como galinha choca no ninho. Cabaneiros passavam para o desmonte da estrada, a assobiar.

   O Rola velho fora na véspera encontrado morto sobre a campa, meio alancada a pedra da cobertoira, e com uma saca de libras aos pés. Já o sol ia alto quando o Safadinho entrara no cemitério a desassombrar de folhas as cepas que ali tinha de seu amanho, veio dar brado no povo. Correram de alevante. Era bem certo.

   Despojada da carga de coiro e osso, a alma do usurário teria àquela hora dado entrada no Inferno, se é que não estava ainda a prestar contas ao justo juiz. Tombado sobre a vazia, com as pernas engatilhadas, uma das mãos na lousa, a outra no ferrinho de pedreiro, conservavam ambas o jeito de agarrar. Na boca escancarada gelara-se-lhe o arreganho hediondo, morder a pedra ou morder os vivos. E por detrás das meninas dos olhos, lá bem do fundo daquela espécie de vidraças abertas duma casa devoluta, parecia que estava alguém à espreita. Do canto do lábio, escorria para o chão uma regueira fétida.

   Os filhos acudiram com um lençol a tapar o cadáver, até que a justiça se pronunciasse; mas quem não vira queria ver e, na penumbra, isolada do corpo, a cabeça do avarento era, ao erguer da mortalha, a mais danada fantasia do Inferno.

   Prestes engrossou a voz de que o Rola, sentindo rondar a morte, malavindo com os filhos e possesso do seu dinheiro, concebera escondê-lo para todo o sempre, enquanto a Seitosa fosse povo, debaixo da terra que o havia de tragar, e  gozar-lhe assim o contacto até o derradeiro chisgaravis da carcaça. E a tal se ajeitava o risco da sepultura, enquadrada de loisa, larga como lagar, sem fundo próprio e para entupir de terra após o corpo depositado. Não era destituído de imaginação o ladravaz!

   Havia tempos que os filhos se mostravam muito activos à sua volta, uns a furto, outros de soslaio a espreitar-lhe a hora do trespasse. Nem corvos. Que a morte andava a cavalo nele - bem se via. Muito dobrado, o gabinardo de golas altas a escorregar dos ombros, fugindo de emprestar dinheiro, seus olhos tristes pareciam ocupados em pedir à terra: malvada, não tenhas pressa de me comer!

   Dois sucessos vieram amolentar-lhe a construção rija de milhafre. O mais sentido - diziam os próximos - fora a abertura do macadame, que lhe derrotara a rica fazenda abacelada, onde, como cerca de convento, não entrava ratoneiro nem galinha. Céptico dos governos quanto a realizarem os planos gizados, o Rola encolhera os ombros uma manhã que vira os funcionários das obras públicas saltar-lhe as paredes e plantar no seu terreno bandeiras e bandeirolas. O cometimento não lhe perturbou o sono, nem o atemorizou quanto a acumular benfeitorias no quintalejo. Vinte escassos anos decorridos, um sujeito bexigoso descia à porta do Cláudio e, mandando ao Safadinho - sempre na ponta da unha - que tocasse o sino, desenrolou o seu canudo de papéis desbotados. Acudiu o povo; era o perito das expropriações que vinha concertar com os donos dos prédios cortados pelo lendário traçado o montante da devassa. Então sempre era certo os ministros virem derreter dinheiro naquelas terras montesinhas?! Hem, sempre era verdade, a estrada, que tinha embirrado lá para trás de Barrelas, romper por aí fora, arrasando leiras e ferregíais?! Ladrões, Portugal estava desgraçado!

   Pouco ciente das endróminas da engenharia, o Rola chamou o avaliador de parte e, metendo-lhe 2O OOO réis à cara, que desviasse o raio do macadame. O homenzinho indignou-se e, para represália da corrupção impossível, avaliou-lhe numa tuta-e-meia o estrago do quintal. Foi um duro golpe.

   Quase ao mesmo tempo, a Dona Miquinhas, professora, tomando-se de amores com um homem casado, foi levada, para esconder sua vergonha, a ocupar uma abortadeira. A operação, mal conduzida, matou-a. Os irmãos foram a Sendim buscar numa carrada as alfaias que lhe trastejavam o aposento. Tartamudo, chorando menos a filha que os dinheiros não recuperados, o Rola de todas se desfez por inúteis umas, por supérfluas outras em seu governo. O Cláudio taverneiro comprou-lhe o lavatório de ferro com bacia de válvula, a senhora Ana do Padre a cama com colchão de molas. E, intrigado, hasteando ao alto o irrigador com seu jogo de cânulas, o Rola lamuriava:

   - Onde vai o meu dinheirinho! o meu rico dinheirinho!

   Daquela hora em diante começou a emurchecer. Via-se andar a dançar com a sombra pelos caminhos, e era a sarabanda da morte. Não faltava a uma missa, a uma novena, a acompanhar o Senhor fora, trabalhado pelo medo do Inferno. Os filhos aguilhoavam-no com rogos de partilhas, e saraivadas de maldições a tanta sordidez. Uma noite foi caçar o Luís Maneto debaixo da cama disposto a roubá-lo, se não a assassiná-lo. Outras vezes largavam-lhe nas barbas com taleigadas de pão, surripiadas da tulha. Já se não sentia com forças para enxotar os lobatos.

   Encerrava-se, então, no seu cubículo e, pelo buraco da fechadura, os filhos viam-no construir montes de libras na tampa da arca encoirada. Gozoso, elevava e derribava os mouroços, estendia-os em linhas paralelas, obrigados a uma relação de valor e de simetria. Ao mais leve ruído deitava-se de borco sobre o haver, sem respirar, nem latejar. Mas nas horas confiadas, a sua voluptuosidade expandia-se num variado trejeitar de orate. Os olhos adquiriam-lhe então o fulgor dos tições em brasa, e saía dali, trôpego, pálido, mais aganado em sua caneira de milho zaburro despendoada. Mal comia o caldo; como quem azeite mede as mãos unta, comia do oiro.

   Nos derradeiros dias, sentado no mocho, não desamparara a porta do quarto. Passava o rosário, se é que não estava em prática com a mulher Leocádia acerca do seu enterro. Queria ser amortalhado de franciscano numa túnica de estamenha, pés descalços e em esquife; deixava uma fornada de dez alqueires para ser distribuída pelos pobres à boca do cemitério; mandava esportular todos os portadores de alfaias em seu saimento e rezar uma quarentena de missas pelo descanso de sua alma e outra quarentena pela de seus pais. E que dessem ao Safadinho a véstia que trazia no corpo, mais a camisa. Tratava de morrer como um bom cristão.

   Na véspera da morte, viram-no tomado de grande cisma, alheamentos, esquecido de tornar resposta às perguntas que lhe faziam.

   - Não bota o Verão fora - rosnou o Cláudio, que lhe devia dinheiro e o tinha ido visitar. - Já a voz lhe sai entaramelada…

   - Isso não quita - respondeu o filho mais velho, receoso de uma desilusão. - Muitos aguentam assim anos e anos.

   Da última jornada, ninguém conhecia os lances. Estava noite de sereno, não ladrara cão nem rangera porta, o usurário supusera acoitar o seu tesoiro e volver às mantas na boa paz do Senhor. Enganou-o o alento, escasso para empresa tão puxada como a de soerguer e cispar a cobertoira da sepultura. E lá ficou antecipadamente no côvado de terra que o ia envolver enquanto aquela aldeia fosse aldeia.

   Ainda o corpo não fora removido para o celário e já os herdeiros, em volta da saca de libras, que mais expedito o Luís Rola alevantara, faziam uma matinçada de cães famintos. A justiça, consultada pelo regedor, abrira mão do sucedido. Não houvera intervenção de segundos, não havia matéria criminal. Suscitaram-se, ainda, dúvidas no espírito do Senhor Abade sobre o enterro em sagrado. Mas, além de que o direito eclesiástico, no capítulo dos casos reservados, não citava artigo tocante àquele sucesso, Sua Reverendíssima, dando uma topetada com a cabeça, que resumia todo os seus sentimentos tanatológicos, proferiu:

   -Ora, morreu o bicho, morreu a peçonha! - e desatou a questão favoravelmente.

   Armaram-lhe o celário em cima duma arca centeeira e rogaram a Zabana e o Lájeas para o barbear, pentear, e vestir de irmão de São Francisco. O João Monge, que ele esbulhara da paterna, de panelinha com os letrados, e a Borralha viúva, ameaçavam de tocar um lateiro no couce do enterramento. O respeito da morte acobardou-os. E, ainda que dia de jorna, o povo era muito à porta do onzenário, as mulheres, de pavio a esmoncar-se num folhareco de couve, em fieira contra a parede, os homens mais ao largo, prontos a servir, já porque cobravam propina, já porque é uma obra de misericórdia enterrar os fiéis defuntos. Mas o silêncio não tinha aquela conspecção lúgubre de quem se debruça sobre a goela sem fundo do mistério da morte. Um combarro de lenha mal avelada, que tolhia a luz, dava apenas certo ar taciturno aos semblantes, com roubar-lhes mobilidade.

   Mioma postou-se a distância, rolando o chapéu na mão ociosa. E entrou logo a esquadrinhar a chusma de mulheres até topar Glorinha, que se lhe afigurou duma compostura rebuscada, os olhos fitos por demais diante dela. Alva, de feições puras, com um xailinho cor de café pelos ombros, parecia uma açucena no meio do matagal. E na morte, o Senhor Inacinho agradeceu a benignidade do acaso que lhe punha diante dos olhos a desejada e esquiva moça.

   O funeral ia-se aparelhando. O João Catrino, cunhado do defunto, com jeito seco de semeador, distribuía as opas do braçado:

   - Toma lá para a cruz de prata, Zé Narciso: toma tu, para a bandeira das almas, André; Zé da Claudina, não te esgueires, tens bom corpo, prò esquife. Quando te levar Barzabu não hás-de querer que te atirem para um cabeço…

   - Tropeção venha se me estou a escusar, tio Catrino.

   - Então ala pró esquife.

   Avistando Mioma, o troquilhas veio para ele, num sorriso trémulo de graças, compenetrado de sua própria lástima:

   - Bem haja, meu senhor! Todos havemos de passar por esta portela! - e despediu o choramingas, a arrotar à aguardente em que afogara o luto.

   O Senhor Padre Francisco mostrou-se então na soleira da porta, de sobrepeliz e barrete, a cuspinhar muito o pigarro da manhã ou o nojo da casa nauseabunda; e, dando de cara com Mioma, o próprio ripanço, em que espetava o dedo, lhe serviu para cortejar. Mioma, tanto mais que daquele poiso defrontaria melhor Glorinhas, chegou-se a ele, obsequiador.

   - Viva o nosso sábio! - salvou o padre. - Isto é que se chama madrugar!

   - Menos que o morto. Levantei-me para ouvir a ladainha dos espoliados.

   - Qual?! Ninguém abre a boca. A fio rouba o moleiro e mais dão-lhe o grão.

   - Pois olhe, era para ter dez aldeias a tocar-lhe pandeireta.

   - O Altíssimo lhe tirará contas, nanja nós. E quem sabe, um segundo de contrição redime as torpezas duma vida inteira!

   O Abade desculpava porque já a sua vida ia no pendor da encosta e os velhos são benignos com os mortos. E foi a olhar muito o chão que murmurou:

   - Felizes os que passam sem deixarem sombra! Este homem agiotou, é certo, roubou… talvez Vossa Excelência tenha a sorte de o ir encontrar no Paraíso…

   - Dispenso a companhia - retorquiu Mioma. Antes me quero no grémio das cem mil virgens.

   O abade sorriu porque seu ânimo era tolerante e acessível à graça:

   - Daqui a muitos anos… Olhe uma borboleta branca poisada na gola do casaco…! Boa fortuna… Eu enxoto.

   - Não, deixe-a vossa reverência estar. Talvez seja a alma do usurário na primeira metamorfose para pomba.

   O Senhor Padre Francisco desviou os olhos para o manejo fúnebre, à espera de romper. O Lájeas dobrara dois lençóis e orçava-os na cabeceira do esquife para mais fácil baixarem o corpo à sepultura. Depois, debruçando-se sobre o cadáver, disse para o Espadagão:

   - Arranca dali!

   O morto estirava-se todo o longo do arcaz, os queixos atados com um ourelo de pano cru, muito magro e tão comprido que, parece, não tinha fim. Tinham-lhe corrigido o ricto hediondo do falecer, mas não houvera jeito de lhe cerrar os olhos, aqueles globos vidrados e pequeninos de ave de rapina. Uma repa grisalha caía-lhe para eles, e era a ensinar o caminho aos vermes. Calçava umas grossas meias de lã e a planta espalmada, com artelho muito irregular e sola rugosa, rememorava a sua longa e descalça linhagem de pé fresco. O rosto, agora confeiçoado, tinha impresso o signo de inenarrável desespero.

   O Lájeas e o Espadagão, com mão segura, sobraçavam já o cadáver, mas a Clarinha entrou a correr:

   - Tate, senhor primo! E, ajoelhando à beira do finado, safou-lhe dos dedos coriáceos, sobrepostos, o seu rico rosário, o rosário dos fiéis defuntos, mal empregado para a terra comer.

   Mioma seguia a manobra com o desenfado de quem tem a atenção presa noutro sítio. De dentro, baforava o hálito de celário, odor de mortulho, muito da respiração da parentela numerosa que viera velar o cadáver. E, sobretudo, a atmosfera lúgubre da eternidade quando se lhe destapa o boqueirão.

   Na quintã, os homens acendiam as lanternas, cobriam as opas, alçavam as cruzes e as bandeiras das irmandades, medonhas de ver com Cristo de olhar fero e alminhas tisnadas nas chamas do Purgatório. E, mal se alongaram pela rua fora a buscar o passo, o sol chispou, incendiando o sanguíneo e negro dos paramentos e as arestas dos cobres, riu daquele aparato todo. As bocas destorceram-se. Cispou-se o alçapão do outro mundo.

   - Botem cá fora o defunto! - clamou o Zé Narciso. - Está o vivo danado nas lojas.

   O cadáver entrara no esquife, era só carregar. A mulherada, no entanto, apinhara-se derredor e não despegava. De rojo, contorcendo os braços, ia alto o alarido:

   - Ó sogro da minha alma, que te não importaste de nós!

   - Eras o ai-jesus dos netinhos! Adeus! Adeus!

   - Não me roubem o meu paizinho! Deixem-me o meu paizinho

   A Florinda Gaudência, de cabelos soltos, mãos torcidas, parecer desmanchado, esbagaxava-se toda em sua angústia de carpideira; as mulheres dos outros rifenhos uivavam. Mais cordatos, ou menos hábeis à obrigação, os filhos faziam um semicírculo para lá da porta negra que abria para o celário. Eram cinco cabeças guedelhudas, terrosas, e na sombra, como aparentassem ar de choro, luziam-lhes muito os dentes carniceiros.

   Lá fora, os lábios das mulheres trejeitavam de doloridos, por contágio. Glorinhas, essa, conservava aquela sua figura impassível e soberana de Dianne à la biche; e dali tirou Mioma o argumento dum carácter altaneiro e senhoril em sua amada.

   O Senhor Abade, na voz encatarroada do tabaco, afeita a cortar o choro pelos mortos, entoou o responso. Os quatro homens içaram o esquife:

   - Aguenta! - berrou o da Claudina para o Alonso, que vergava.

   - Está fixe! Pesa mais que o meu dinheiro.

   - Menos q’ò que deixou.

   - Em cobre…

   - Em oiro, homem. Setenta contos…

   - Lá vai para onde o pague. Rompe!

   Abalaram. Lá fora, a rosa do sol, já acima das casas, era uma joeira de oiro puro. E pelas ruas soalheiras, que pareciam animar-se com o gozo de serem percorridas, levou-se num tropear de brochas o corpo do avarento à morada sobre a qual só os pinheiros se debruçariam a gemer.

   Mioma, que não encontrara os olhos de Glorinhas, pouco a pouco foi-se sentindo trespassar do mistério peçonhento da vida e da morte. Os fumos capitosos do sonho, que tão pertinazmente corriam em suas veias, acabaram por evolar-se. Restavam-lhe agora as fezes amargas dum logro sensual. E, quando à boca escancarada da sepultura o padre ergueu no cantochão dos primeiros séculos o offerentes eam in conspectu Altissimi, a garra do níil lavrou-lhe o peito com raivosa sanha. Os portadores de alfaias largariam do cemitério em bando, a beberricar na taverna o vinho dos herdeiros; muito direita, sem volver olhos, Glorinhas desaparecia na curva do caminho, trupe, trupe; dentro em pouco, à mão tente, o Safadinho despejaria a terra sobre os olhos do Rola usurário, aqueles olhos maus que riram na onzena e as madrugadas, anos e anos, vieram enflorescer com tão divina bondade!

   E antecipando-se a todos, Mioma largou caminho fora, triste e a passo de vagabundo. Das aldeias da Serra desciam ranchos de romeiros. Luziam por debaixo das salas arregaçadas das mulheres os saiotes vermelhos e as fraldas brancas. E vinham cantando à desgarrada:

 

                       Tratei com certa mocinha

                       De ir à Siora da Lapa;

                       Levai-ma lá, ó Siora,

                       Que o amor dela me mata!

 

   Verdade, era véspera da Senhora de Agosto e ocorreu-lhe que tinha de esportular a Zabana, a sua Nossa Senhora. E o voluptuário, depondo a túnica pretexta do filósofo, voltou atrás sobre os passos. Diante da casa do Luís Rola, açulados em matilha, os quatro irmãos uivavam:

   - Ladrão! Ladrão!!…

 

   Quando chegaram ao Miradouro, guarita que cobre da chuva um santinho sem nome e o viandante que passa, atalaia, com mais outros três, a caminhos que dão ideia de andar perdidos pelos oiteiros à cata dos povoados, o sol estava na agonia. A Lapa aparecia em baixo, a um arranco de cavalo, com o santuário de panos caiados a fraldejar, a casaria, pobre e alegre, de rojo para a Casa dos jesuítas, grande e soturna, e o peso de gente que, lá em riba, subia e descia em        mar-a-monte, num ruído de trabuzana.

   Pelo braço de estrada fora rompiam ranchos em algazarra, bestas rinchonas caracolando e maltas de varapaus leva que leva. Lá adiante, no morrer da baixa, o melhor duma aldeia, harmónio fungando, cores a berrar, avançava em animado passo de dança. Sozinhos, chegados um ao outro, lá passavam dois casadinhos de fresco; bem se lhes via nos olhos muito mexidos o regalo de se mostrar. Tropicavam azeméis com velhos de capote e chapéu braguês para a nuca, e éguas de albarda com matronas de lenço de seda, peito coberto de oiro e tamanquinha de Viseu no bico do pé. Para aguentar o passo, outras mulheres tinham tirado as chinelas e com elas na mão, a par do sombreiro, ou à cabeça sobre o xaile, desunhavam-se todas tep, tep. E lá seguia tudo a catrapós, no frenesi de meter com sol à festa que o mês de Agosto c’os seus santos ao pescoço não tinha melhor que a Senhora da Lapa, a rica Senhora da Lapinha.

   Dali até o povo, em cada linha da rampa, os pobres eram mais que o cisco. Assentes sobre taleigos, os surdos-mudos pareciam marcos de baliza à espera que os distribuíssem pelos campos; já os entrevadinhos tinham avantado para o meio da estrada, sobre os cotos das mãos ou as pernas engatinhadas, algumas secas como cabos de faca, e deitavam a lamúria:

   - Ó meus ricos senhores, dai a esmola ao aleijadinho! Olhaide para a minha triste sorte!

   Outros, no meio de mondongos, punham ao léu as chagas cancerosas, mais roxas que as do santo Cristo, e charqueiros de putreia onde bichos reboludos, de cinta branca, e a mosca vareja vasculhavam. E berravam que o céu tremia:

   - Ó almas caridosas, dai cinco reisinhos ao desinfeliz!

   Os ceguinhos de nascença, de olhos vidrados, gemiam uma cantilena lenta e interminável como a noite que os envolvia:

   - Pela luz dos vossos olhos dai uma esmola ao ceguinho!

   E os entrevados e enfezados, de cabeça de alambique e corpo menineiro, em caixas de petrofine ou canastras de sardinha, ao lado de matulões barbaçudos, estendiam a mão, a guinchar:

   - Oh! tende dó, deixai uma esmola ao desgraçadinho!

   Atrás deles, aqui e além, a dois tanganhos, a panela do badulaque fervia; e, no vapor, passava a olha do pespé rançoso, colhido em porta responsada a Sant’António.

   - Por alminha de quem lá tendes, ó meus ricos senhores!

   Aquele tinha o carão roído dum cancro e dava vómitos olhá-lo; uma mulher vergava a cabeça debaixo dum lobinho, nascido no pescoço, e tão grande era que parecia trazer às costas uma badana pelada. E a sua voz arremedava o ladrar dos cães:

   - Ponde aqui os olhos, ó gente que passais! Por alma de vossos avós, dai a esmolinha!

   Jesus! um homem não tinha pernas nem traseiro, e, fixe sobre uma tábua, parecia enterrado de estaca. Mais além, um monstro, com a boca rasgada até às orelhas e sem nariz e sem dentes, era mais temível que a morte negra. E a fenda rubra gemia:

   - Ó santinhos de Nosso Senhor, tende piedade! Dai cinco reisinhos!

   - Seja pelo amor de Deus! - murmurou Glorinhas. Há cada espelho pelo mundo!…

   - Levam vida regalada - disse a Zabana. - Não precisam de trabalhar.

   - Deus do céu! eu antes queria andar de rastos como a cobra!

   Estrada fora, o corrilho de lázaros não despegava; e, entre as pernas das bestas e nas salas das mulheres, eram feros e agarradiços como carraças:

   - Cinco reisinhos, oh! dêem cinco reisinhos a quem o não pode ganhar!

   Um casal de cegos, bornal a tiracolo, rabeca ele debaixo do braço, viola ela, furavam ronceiros por entre os magotes, apalpando o chão com o pau, o braço dela e o braço dele engatando sucessivamente no ombro do moço, à frente.

   Eram os cegos de Aldeia de Nacomba que, errando de terra em terra, cantavam ao desafio, na zanguizarra, fadinhos lirós e as trovas da filha que bateu na mãe e ficou com o braço no ar. Logo após, caminhava o João Menino, de Quintela, que erguera casa a passear aquele enjalgado de trinta anos que cabia, dobrado, numa condessinha. A cáfila dos pobres, sabendo-lhe da felícia, crivava-o de chufas:

   - Pilhanqueiro! Filho de cão e lobo! Foste tu que desacreditaste o ofício de pobre! Ladrão!

   De cabelos e barbas em sedeiro, olhares de enguiço, engoiados nas burjacas, comidos de tinha, de lepra e de bichos, as chagas a derriçar-lhes na carne sã como cães, os pobres metiam nojo. Alguns deitavam mau olhado e tinham as vozes medonhas dos ladrões de encruzilhada. E havia-os que cheiravam a mortulho, à légua. Todo o caminho não descosia aquela praga, zumbindo, uivando, blasfemando, como se hospitais e campas tivessem para ali revessado a sua carne podre:

   - Pela vossa boa sorte, dai cinco reisinhos! Ó pais da caridade!…

   Glorinhas seguia pelo meio da estrada, bem ao meio, para os não pisar, nem se envencilhar neles. E, com o vómito na garganta e o coração arrepiado, levava os olhos por terra, que nem indo em procissão de penitentes, a cumprir um grande voto.

   Chegados, porém, ao largo do pelourinho, que é a boqueira do novo, de pedintes, entre a gentiaga em vaganau, só se toscavam os pirangas, que trocaram o trabalho pela vida marota, e os zoratos que fazem graçolas de mono, e arremedam bandurras no varapau a que se encostam.

   Já mal se rompia. Lá estavam as vareiras, com as chapeletas na caraminhola, de mangas arregaçadas diante das barricas, sobre que abririam as pernas a verter águas, quando ao peixe fosse mister de molhanga. Atrás delas, os burros dos festeiros cismavam com o relvão saboroso de Maio, que já lá ia. Os adjuntos, mormente à porta da Miquelina, que não precisava pôr ramo, de caneca alçada beberricavam. Para a outra banda, os romeiros de longes terras empilhavam-se nas escaleiras do pelourinho e suas abas, nas cercanias da velha cadeia, tão velha que já nem se sabia quando guardara homem. Entre eles nem ficava chão para cair um alfinete. E por entre estes e as vareiras, as maltas e ranchos cavalavam. Lá rompia Granjal de lodo no ar, tau-tau, viva a rusga! Logo na cola, um harmónio gemia a caninha verde, e os dançarinos, de rópia, em rijos saracoteios, vá de frente, vá de lado, batiam a terra a mata-cavalo.

   - Auguinha fresca!

   - Merca doces da Teixeira!

   - Paulitos, fortes, e almirantes!

   Era um dia de juízo. Esvaziavam-se para ali as terras de muitos concelhos. Ainda havia gente para a guerra em Portugal!

   A Zabana e Glorinhas foram subindo a rua, entre apertões, pelas fendas que se abriam ao passar das maltas. Moleques sopravam ao realejo, e os toques roufenhos, à tona da algazarra, lembravam cigarras cantando nos tempos doidos das ceifas. Aí disparava um cavaleiro, todo farófia, chapéu de aba larga, pau de choupa entalado debaixo da perna:

   - Olá, gentes, abram passagem!

   Bem arreada besta, crinas rentes, franjas na retranca, rifadora por de mais. O ar dele era rebentio, com a pinta de rico, e o poviléu apartava-se à banda. Mas lá desembocava outra malta:

   - Viva Tabosa!

   - Viva!

   - Viva até que morra!

   E arremetia por ali dentro, aos safanões, ó cetrás, em borborinhos de poeira, num zafarrancho de mil demónios.

   Diante da Casa dos Jesuítas, aproveitada como Colégio, as rendeiras não tinham mãos a medir nas barracas de lona. Vendia-se ali de tudo, berimbaus, bonecos que alçam as pernas para os ombros, guizos ásperos para adormecer meninos, bons canivetes de marca de anzol, faixas de oito voltas e linhas para quem se quiser coser. Diante de tanta lindeza, as moças arrelampavam. A senhora Preciosa, a Micas e o Albino, que corriam Ceca e Meca e Olivais de Santarém, desfaziam-se em salvações à sua freguesia variada. Nas redondezas, mais conhecido só o capador de São Joaninho, que entrava nos povos a tocar uma gaitinha de sete canudos vira-vira, vira-vira-vi

e castrava e limpava a cervilheira aos bácoros na perfeição. A filha da senhora Preciosa com a mão direita servia o povo, com a outra fazia pular o nené que lhe arranjou um fidalgote de Penso:

   - Ó rico, riquinho, riquiquinho! A corneta custa oito vinténs, freguês, por ser para quem é. Este artigo até nos dá perca…

   Faziam ali um negociarrão, e só lhes levava a melhor se levava - o João das Tres, que se botava de Lamego, com loiças finas e facas de pé de prata, a dar de comer aos figuros. Lá rescendia da chafarica o relento da boa vitela assada e, quando alguém entrava ou saía, pelas bambinelas arredadas, abispavam-se toalhas de pano famílio, talheres postos com guardanapo, e, gira que gira, criados de avental branco.

   Ali não faltava nada, só apetite ou dinheiro.

   Mais arriba, a entestar com o santuário, alinhavam as chafariqueiras; tomava-se ali toda a casta de bebidas, desde o café à limonada. Pelo meio, rondavam os moinas, que as melhores frangainhas da terra serviam naquelas barracas. O palminho de rosto, a poeira, o calor da bursunda, ou o frio da noite ajudavam à veniaga e era xícara cheia, xícara vazia. A Lapa vivia daquilo e dos padeiros. A água do sítio - ali tem o Vouga a mãe - era rija e fintava-se um pão que nem a senhora República em Lisboa o comia melhor. A Lapa abastecia tavernas e casas ricas pelas redondezas. Em duas alas, sobre tarimbas, ao entrar para a igreja, ofereciam as padeiras o pão. E até Nossa Senhora no penedinho recebia o bafo ainda morno das rescendentes fornadas. Vendedeiras de boa disposição a fazer bem, padeirinhas de pele rosada e cabelo loiro chamavam os falantes que gostam de se desougar ou arreitar a fêmea por feiras e romarias.

   Contra o Colégio, armavam as doceiras; bolos, fálgaros, rebuçados em tabuleiros de que choviam rendas e badalhocas; e debaixo do arco que do Colégio dá passadiço para a Capela, em lençóis à dependura das paredes, havia ricos ramalhetes de tafetá, amores-perfeitos em chita, raminhos com penas de canário, tudo mais catita que um jardim de Maio.

   Na Lapa, caramba, havia de tudo, o bom melão, a boa fruta, cachos do Távora, dos temporões, enguia, vitela, uma moça frescalhota para gozar. E, mesmo pelas sombras, estes negociantes da trama, sem poiso fixo, os criadores de furão, os jogadores da vermelhinha, e até os ciganos de má morte. Sem falar nos ourives e relojoeiros que, de lembrança, vinham pôr à ilharga esquerda do templo, quando se entra, sempre com variado e rico sortido, para arrear noivas e sorver a pecúnia dos Brasis. Podia gastar uma fortuna quem fosse rabaceiro ou amigo de doidejar. A Senhora de Agosto era uma só entre Douro e Mondego.

   - Não andas em tua sina, mulher! - disse a Zabana para Glorinhas.

   - Tanta cara, tanto arruído causam-me medo.

   Meteram para o templo a cumprir o voto, que estava em primeiro agradecer a Nossa Senhora da Lapa que farandolar pela romagem. Rompendo por um mar de gente, depois de muito boiar no vaganau, chegaram debaixo da penha bruta, que daria pedra para construir uma aldeia, onde a Virgem milagrosa com seu rico manto azul, ciganas de brilhantes nas orelhas, coroas de vários lumes, parecia dizer em seu beiço de inocência no rosto trigueiro:

 - Então como passaram lá por essas falperras…?! A obrigaçãozinha…?! O gadinho…?! Pois vivam, vivam!

   O altar era de prata e mármores de muitas cores e, por via dos ratoneiros e para receber as ofertas, estava ali, de plantão, um padre novinho. Não se podia beijar a imagem, atestada a cafurna com um rolho de romeiros, e porque o padreco só consentia o acesso a quem trouxesse bagulho. Para dar volta à penedia, por um escoadoiro acanhado até ao passo de ilharga, era um tormento. Mas, por suas grandes mercês, ninguém regateava à Virgem aquelas compressões do bandulho, trilhadelas e os riscos da gatunagem.

   - Se trazes dinheiro, acautela-o - disse a Zabana, quando de saia arregaçada, na cauda dos peregrinos, se lançaram de joelhos para dar seis voltas. - Aqui há mais larápios que na Terra Negra.

   Com muita devoção e sem fala, gatinhando sobre o saiote, passaram e repassaram o buraco de agulha, na centopeia variegada, rostilhante, de um só anel sem dessoldadura, os joelhos delas a tocar outros pés, os pés outros joelhos. Romeiros gemim, penitentes arquejavam, de cabeça baixa, com um regougo de dor na garganta. O grande rochedo parecia animado duma alma milenária, em transe. E a cada volta, na vénia da rendição a Nossa Senhora, parecia-lhes esta dizer com os olhos luminosos batidos pelos fogaréus das jóias:

   - Deixai lá! Para penitência já basta!

   Quando despediram da rocha soluçante, Glorinhas levava os olhos rasos de lágrimas. E pelo corpo da igreja não houve milagre, os moiros da moirama a avançar de alfange em punho e albornoz vermelho para as rolas espavoridas dum convento, o homem que, de joelhos dobrado, vomitava uma cobra da boca, o paquete das Américas a afundir-se num bulcão de fogo, que capaz fosse de distraí-la da sua compostura triste. E nem outro ar mostrou para o lagarto de três varas, suspenso por cambalheiras no vão do santuário e que, de medonho, goela em chama, colmilhos afiados, servia para meter susto aos meninos como o Jinó.

   Lá fora a noite tinha nivelado a terra, monte a monte; bruxuleavam já os archotes pelas tendas, chafaricas e palanques da música, e as fogueiras de tiborna nos desvãos do arraial. Na frontaria da igreja, de alto a fundo, luminárias de várias cores ardiam, pintarolavam o rosto rosado das padeirinhas e a tosta branca dos bolos.

   As rusgas urravam mais feras e já adiante das papeletas, enquanto um bombo tangaranhão subia o terreiro arruando, as requintas se ensaiavam para a rapsódia.

   Glorinhas e a Teresa Zabana quedaram-se de pé contra o muro da igreja, a observar. Não se imaginava donde pudera sair tanta gente. Até ao largo, as trevas buliam. Sempre devia haver muita mulher a parir pelo mundo assim se ver poviléu! Acima do banzé, rompia imperturbável o bum-barabum do bombo e, de quando em vez, a ronca das maltas, disparando de roldão:

   - Viva a rapaziada do Granjal!

   - Viva!

   - Morra quem não disser que viva!

   - Morra!

   E lá iam os tranca-ruas, varrendo tudo adiante, açulados contra outros que cruzavam.

   - Já me doem as pernas - disse Glorinhas, acocorando-se sobre uma lájea.

   Bem lhe clamou a Zabana que ao tempo é que era maré de passear a festa, animada da ribaldeira, cantés, mais tarde, só para apalpões e poucas-vergonhas. Debalde; Glorinhas protestou que dali se observava tudo muito bem, o fogo, a música e os descantes, sem sofrer enxovalhos; se estava de pé alceiro, que fosse ela, e se ajuntasse ao rancho da Seitosa que perto andaria. Ela iria esperar para a igreja, junto de Nossa Senhora. A Zabana, não vendo jeito de torcê-la, acaçapou-se a par dela, sem mais teimar. De verdade, daquele poiso alto, especulava-se o arraial até sua orla fundeira. Que monta, de olhos em alvo, perdidos, Glorinhas magicava, bem longe dali. Deixa, tinha em que malucar, se tudo o que lhe pregara pelo longo caminho fora lhe volvesse ao entendimento, como a manja às mandíbulas das cabras, no curral. Apre! parecia um pelém e era mais dura que safra de malhar ferro! Podia alguém conceber sequer que, depois de tantos anos de maranha com um fidalgo, a lambisgóia se quedara na fresca da ribeira? Não, senhora. Pois ela ia jurar sobre umas Horas em como Glorinhas saíra das mãos do Senhor Mioma pura como a neve antes de derreter. Mas era preciso ouvir a moça, vê-la de dentes fincados a afirmar, para pôr crédito em verdade tão mentirosa. Compreendia agora o empenho com que o Senhor Mioma armava o laço à milheira. Mariola, era o ougamento!

   - Olhe, tia Teresa - dissera ela - do Inacinho gostei, gostei a valer. Destes olhos, que a terra há-de cegar, caíram muitas lágrimas por mor dele. Trazia-o no coração, eu era uma doida, mas de mim não se gozou.

   - Em boa hora vens, rapariga. Não é o que dizem as bocas do mundo.

   - As bocas do mundo, ninguém as pode tapar… Foi uma falsidade que me ergueram, assim eu veja a face de Deus. O Inacinho brincou muitas vezes comigo, brincou, mas cometer-me nunca!

   - A Caruja veio dizer que o ouviu da boca dele!…

   - Bem sei, quando andava de gorra com o irmão, mas a Caruja é uma grandessíssima aldrabona… e, se ele o disse, Deus lhe tomará conta do falso testemunho.

   - Não quero teimas que a Caruja o alevantasse…

   - Não sei; o meu corpo está puro como minha mãe o deitou ao mundo.

   - Mas, ó Glorinhas, engalriçados um ror de anos, tontos um pelo outro, como acabou isso?

   - Como acabou? A gente sabe lá… Buh, acabou…

   - Sem uma palavra… uma pequenina razão?

   - Sim, sim, sem nada. Ele abalou lá para longe, estivemos muitos meses sem nos ver… depois, não me saía da cabeça que não era forma para o meu pé. Lutava comigo mesma a dizer que não tinha razão; nunca se nunca pilhei aquele homem em mentira, mas puh, sou uma casmurra. Vai, neste entrementes chegou meu irmão do Brasil todo leriante, todo chocho, a dizer que me havia de levar com ele, e a matar-me o bicho do ouvido com o senhor Inacinho. Um dia vem ele de Lisboa e, olhe, não lhe dei cavaco. Bem se matou ele… eu moita. Afinal cansou-se, quando eu já estava cansada de lhe fugir - a gente é doida - e não tornou mais a olhar para mim. Como acabou? Vê, tia Teresa, foi assim…

   - Foste uma bruta, eras hoje uma fidalga.

   - Deixá-lo!… E quem sabe lá se não seria uma desinfeliz?!

   - Queres desgraça maior que casar com o chilandrão do Javardo?

   - O futuro o dirá… é um homem como os mais. Lá reza o rifão, casar e comprar cada um com seu igual. O senhor Inacinho estava muito alto para mim.

   - Pois sim, sim mas também lá diz o outro, com cousa velha não te cases, nem te alfaies. Olha que o Javardo já dobrou.

   - Embora.

   - Fico na minha, foste uma bruta. O Inacinho morria por ti… levava-te à igreja, mulher.

   - Levaria… já passou.

   - Ora!… Mas, ó menina, franqueza, franquezinha, tu já não gostas dele?

   - De quem? Do Inacinho?

   - Pois de quem há-de ser?

   - Oh!

   - Hás-de gostar… Ele ainda gosta de ti… e muito!

   - Quem lho disse?

   - Diz-mo o dedo mindinho, menina. Um amor tão pegado podia lá assim findar do pé para a mão?!

   - Já lá vão dois anos; ainda minha mãe que Deus haja era viva.

   - Não importa. Gosta, gosta de ti, que to digo eu.

   - Pois que goste, pouco lhe valerá o gostar!

   - E tu também gostas…

   - Não mo pergunte, tia Teresa. Tenho os papéis a correr, para diante é que é caminho.

   - Os caminhos, às vezes, tornam ao cetrás.

   - Por esses não anda a tola de mim.

   - Anda toda a gente, minha rica.

   E, leva que leva, empurra que empurra, lá ia confessando a moça como o mais mula dos coroados. Coitadinha, estava com fidúcias, abriu para ali o peito, como pessoa, caçada só, abre a arca aos ladrões. Apenas de contar-lhe umas vozes, que nem ela nem outrem ouvira, da mãe do Senhor Mioma: «O que aquela delambida cobiçava era a boa sorte do seu filho, e ser uma pavoa, porque não tinha afeição ao trabalho; amor de raiz nem tanto como uma unha lhe tinha; fosse ele um cavador de enxada, a ver se ela o preferia entre os mais» as lágrimas saltaram-lhe dos olhos.

   - Ouça, tia Teresa - rompeu ela em voz angustiosa - e que o céu me sirva de testemunha; fosse ele o Inacinho um cavador, pobre como Job, e me viesse dizer hoje: larga o homem de Aris, não era preciso que mo repetisse três vezes. Largava-o a este e ao mais pintado que a rosa do sol cubra. Mas o Inacinho, por bem ou por mal dos meus pecados, não é cavador.

   Tinha o rosto afogueado e os soluços na garganta. E a Zabana foi-lhe dizendo:

   - Bem se vê, menina, que ainda lhe tens amor…

   - Terei, mas pelas cinco chagas de Cristo não me descubra. Que vergonha a minha se se viesse a perceber…

   - Está descansadinha. E ouve... ele também te tem amor!

   - E de que vale? Tem-me amor? Bem o sei. No enterro do Rola, que Deus perdoe, não tirava os olhos de mim. Até se tornou reparado. Mas agora é tarde, tio Pedro! Cada um seguiu a sua derrotina e estamos tão longe, tão longe, que só por milagre nos encontraríamos. É o que Deus manda…

   - És uma maluquinha. Risca-me com o noitibó de Aris e dá ouvidos a quem te quer bem.

   - Não, a casar caso com ele!

   - Vale mais casar com a morte, mulher.

   - Quando Deus for servido, tia Teresa. Outras farão mais falta que eu.

   - Não foi intento… levam-te pelos cabelos…

   - Consenti, está consentido.

   - Aquele negro é capaz de te matar à fome…

   - Bem haja ele, menos tenho a padecer no mundo.

   - Até os filhos saem olharapos…

   - Saem o que Deus quiser. Feios ou bonitos, são filhos.

   - Nenhuma moça o quis… é um meigengro…

   - A todos vem o seu São João.

   - Mas é preciso ter boa boca.

   - Sou como meus pais me fizeram. E quem lhe diz a vossemecê que, depois de casado, não muda? É somítego, é codegueiro, talvez vá com quem o endireite.

   - Podes lá com a vida dum homem daquele trapio! É pior que os porcos.

   - E que somos nós todos nestas terras? Sabe que mais tia Teresa, meu dito meu feito; com a palavra atrás não volto.

   Glorinhas emudecera, ela, vendo que trilhara caminho errado, como quem falava consigo, tocou outro bordão:

   - Santa Maria, abrenúncio!… Um desvairo assim nem por castigo!… Se fosses uma rodilhona como eu, mas uma menina limpa, escarolada, tão branca de rosto que até as fidalgas te invejam?! Abrenúncio!… Queres que te diga, não foi uma vez só nem duas que ouvi à gente que passava para a feira: Quem é aquela moça? É da terra? É da terra, pois então?! E  benziam-se todos; em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, onde veio nascer tão linda flor! Os anjos guardem, que não hão-de faltar olhos a cobiçá-la… Diziam isto de ti, Glorinhas…

   - Então, a gente não nasceu sarnenta, nem aleijada.

   - Mas ouve, todas as vozes, porque torna, porque deixa, é uma rosa, é uma açucena, muito pintado há-de ser o que a levar, tu queres ir meter-te nas pernas daquele foleiro?! Ó mulher, vai-te botar antes a um poço…

   - Vontade não me falta, mas foi Nosso Senhor que me deu a vida, só ele ma pode tirar.

   - E tu a dares-lhe e a burra a fugir! O que digo é que não podes ir meter-te na cova da Triste-feia. Uma formosura como tu, a mais pimpona de todas… Credo, credo, até era para te escarrarem em cima.

   - Mas que quer vocemecê que eu faça? Mandar bugiar o homem. Ele os papéis também nunca mais virão…

   - Esperarei até que cheguem.

   - E se nunca vierem?

   - Morrerei a esperar.

   - Trambica-te! Dás umas respostas que parecem de zorata. Nem são duma cabeça tão fina como a tua.

   - Pois que lhe hei-de eu dizer? Onde está o jeitoso que me pretenda?

   - Ouve o conselho duma tola. Estás certa que o Inacinho te quer? Estás? Pois então, meu rico, ou casar ou meter freira. Percebes?

   - Não, não e não!

   - Tola, sim, sim e sim!

   Iam nesta contenda quando chegaram ao miradouro e a atenção fugiu-lhe para a festa que, lá em baixo, a uma

arrancada de cavalo, alvoriçava o céu violeta da tardinha. Havia ainda muito que dizer e contar, mas a Zabana aguardou hora melhor. Mesmo assim a moça já estava entroviscada, bem se lhe percebia nos olhos em alvo, a dar tombo ao sentido, como se trouxesse dentro dela um bando de lobos a lutar. Também se lhe percebera nas lágrimas vertidas à beira de Nossa Senhora e no semblante agravado! De certo, não pedira à Virgem que por caminho plano e direito conduzisse o fidalguinho para ela; não, antes que lhe desse arrimo e alento para se não desviar do seu propósito, subir sem nojo as escadas do calvário. Fosse ele a rogar-lhe que se amerceasse do seu amor verdadeiro, não chorariam os olhos; haviam antes de rir, que o coração e um mariola em folguedos quando lhe bate o sol de frente. Deixa, tinha mistela no seio! Mas, bofe, só uma cabeçuda daquelas podia ter escapado a um gerifalte de garras brancas!

   Por muito tempo, rente à parede da igreja, ali quedaram as duas, em face do arraial, que até elas deitava as ondas, semelhante à cheia do mar. Nos dois extremos do terreiro, as charangas de Sernancelhe e de Leomil aguentavam o desafio, qual delas mais perra a ganhar as duas libras que a Virgem Nossa Senhora depositara para a mais sábia. Em roda delas tinham-se formado patuleias que ora aplaudiam, ora apupavam com uma assuada de mil demónios. E, de arreganho em arreganho, estava-se coalhando a açougada a faca e marmeleiro.

   - Viva a música de Sernancelhe!

   - Viva! Tem o cornetim mais valente!

   - Morra! É uma charameleira.

   - Viva a banda de Leomil! Viva! Em rufo ninguém lhe leva!

   E à luz dos archotes de creosende, fumosos como barrelas de pinho verde, via-se, entre vergastões verdes, amarelos e negros da claridade e das sombras, os músicos de bochechas apoplécticas atentos à senha dos caceteiros.

   De passo a passo, subiam no ar girândolas de foguetes que levavam apito ou uma lágrima muito luzente pelo céu baço, ou se esfoiravam em paranganas de oiro. Os morteiros rebentavam no seio das nuvens, pum, e o seu ribombo era tal que dava alanco à passarinha. Escoltado de rapazio, o fogueteiro pregou o lume ao amolador a amolar tesoiras e os urros das bombas, na roda girante, figuravam a guerra com o Gungunhana. Fizera-se uma grande limpaça em todo o âmbito e as caras movediças, a rir, a ver, a gaudiar, de mono, de cornudo, de pachola, lambidas das cores, mais ervoadas pareciam, como se

nelas caísse o arco-íris ou estivesse a arder alcatrão. E a algazarra do poviléu, a cada lance da peça de artifício, calava o troar do zabumba, a meio do largo em raivosa rebentina. Na fachada do santuário, em trângolas, cambo jogando com cambo, parelha com parelha, o fogo veneziano raiava. Já o suão, torcendo a chama, queimara alguns dos balões estende-encolhe, e dali clareiras romperam a cuidadosa ordenança das luminárias. O padre-capelão viera mesmo fora, de cabeça nua, a orçar o estrago; conhecia-o vila e termo que se fartava, na roda do ano, de pôr o ferro santo nos animais e pastorinhos mordidos de cão danado. E de vê-lo de topete erguido a feitoriar, muitos olhos voaram para as cristas da capela, até a cruz alta que os lumes vários coloriam duma aurora delirante. Mas já ele se recolhia à capela, levando um ar pesaroso; paciência. Nossa Senhora da Lapa não tinha meio de acudir a tanto - os forasteiros que, de muito longe, lhe vinham mendigar saúde, as maltas, para que a pancadaria não levasse a morte de homem, os descantes em que a requestavam para casamenteira e madrinha de amores - e ainda varrer para a serra o vento fresco, de cantaril, que ia destroçando, pouco a pouco, a festa do fogo à sua porta.

   - Ó menina, estamos aqui a ganhar a morte! - exclamou a Zabana de arremesso, levantando-se. - Passa as marcas.

   Mais duma vez insistira com a Glorinhas para darem uma girata, escusando-se ela com as pernas cansadas, as trilhadelas dos dançarinos de pós-catrapós, os ratoneiros que podiam bifar-lhe o seu rico cordão de dez libras. Não era pelo receio de que o homem de Aris o viesse a saber e desse o cavaco, não; até o lavar dos cestos é vindima; enquanto solteira fosse era senhora de si e do seu bem-querer. E sem outras razões, mais se encolhia nas sombras, toda murzanga, a cismar. Mas agora era de mais; arrefecera a noite e, no céu escampo, estrelado de cabeças de prego, corria uma aragem murmurinha que penetrava como alfinetes. Na Lapa, erguida em tão altos pináculos, as noites de Agosto requeriam capote. Exagerando o seu frio, a Zabana batia o pé, apitava, punha os queixos a bater castanhetas. No seu corpo bem feito, mal coberto do xaile franzino, Glorinhas começara também a tiritar.

   - Põe-te arriba! - tornou a Zabana. - Queres chegar a casa e que te ministrem a extrema-unção?

   Foram pelo arraial abaixo, tornaram pelo arraial acima, os olhos da Zabana fusgando à direita e à esquerda, metediços e mexeriqueiros, nem que andassem à busca de perdido. Não lhe escapava nada, as chafaricas a arrotar de fregueses, um ranchinho de moças traquejado por dois peralvilhos, as rodas arrebatadas por uma cantiga velha das serras, mormente os vultos e os ranchos em que se acusasse fidalguia. Fora sempre o seu lidar gente de teres e de brasão, e toda se gloriava, mostrando-a a dedo:

   - Olha, aquele é o senhor Melinho, de Vide. Andei com ele ao colo; está doutor de leis…

   Mais além era o Fedrico de Mondim que casara com a filha dum latoeiro e lhe queria como à luz dos olhos.

   - Já me não conhece; estou uma velha…

   E, por ali fora, sem paragem nem relego, ia inventariando os figuros todos. Na barraca do João das Tres colou o olho a um furo da lona. Dentro ia grande barafunda; à beira das mesas tomadas, pessoas esperavam vez; comia-se, bebia-se e a um canto o Doutor Teixeira da vila mai-lo Padre Francisco de Vila-Cova travavam-se em jogatilha com marchantes e abades. O aroma da vitela assada rescendia do fornilho improvisado de cascalho e argamassa, e consolava.

   - Venha daí, tia Teresa! - rogou Glorinhas. Parece mal.

   - Deixa-me ver, menina. Não se lhe come nada com os olhos.

   O arraial ia entrando pela noite dentro, e mais e mais aos quatro cantos do largo alastravam os bulcões de sombras.

Nas tendas de belfurinhas, sopraram ao acetilénio. As apregoadoras de doce da Teixeira e o velho de barbas recolhiam os tabuleiros. A festa, em sua orla, parecia entorpecer, mas no meinho, rusgas, bailados e cantarinos reloucavam.

   De magote para magote a Zabana avançava, curiosa e impertinente, na devassa dos fidalguinhos. Seu pescoço de grou estendia-se para todas as caras com gravata. E, de tanto se atrever, na dobra duma esquina, viu um punho de faia, que palpava uma raparigaça, vir-lhe direito às fúcias:

   - Que tem que cheirar, seu estafermo?

   - Desculpe, senhor. Procurava outra gente…

   - Então passe de largo.

   A Glorinhas ia sufocando de tanto rir.

   - Não havemos de ir embora sem ver o Colégio disse a Zabana.

   Meteram para a Casa dos jesuítas, pelo negro umbral da lájea e abóbada, onde a soldadesca soltava grande azoada, chufas e rabo-levas a quem ia seu caminho. Nos corredores, em que podiam girar duas berlindas par a par, um arraial, menos ralé, esparralhava-se. À luz do carbureto, ou fumacenta duma lanterna de tipóia, içada ao alto, os ranchos batiam a ribaldeira.

   Em roda, as sombras atropelavam-se, investiam, enrodilhavam-se como catervas de macavencos escondidos em capas pretas. Ia de feição, na meia penumbra, para bargantes e polhas esbagacharem a cachondice.

   Ali tinha vindo acampar a fidalguia de meia-tigela que a Zabana conhecia como os dedos, homens de ofício leve e figuros sem eira nem beira, e estas mocinhas que armam em damas, não cavam na terra, trazem o cabelo de popa, ou em regueifa sobre as orelhas, usam sapatinho e tamanca forrada de baetão, não têm ainda o descoco de pôr chapéu, e acabam em casar com barbeiro ou brasileirote curtido das febres e jarreta, quando não em mancebas dum senhor doutor. São as meias-senhoras e delas estão inçadas essas aldeias pelo mundo. Não faltam a festa e romaria, e os faias andam-lhes no rasto como galgos. Sombreirinho na mão, cinto de coiro, mantilha caída para os ombros, uma farfalha de salpor ao peito, quem se habilita, para a carochinha?

   A Zabana tinha-lhes azar, porque andavam fugidas à sua condição e, no trato com ela, eram mofentas e desdenhosas. Eram também futres a dar e a Zabana mostrava-se interesseira com quem não fosse da sua igualha. Já ouvira a sua avó: fidalguia sem comedoria é como gaita que não assobia.

   Lá andavam elas, donzelas loucas, em rijo saricoté. De rostilhão com tais pássaros, os fidalgos das dúzias, nanja desses que escusam de lavorar e fizeram os estudos todos. A Zabana ia-os tirando à casta ou de memória e eram os aguazis da vila, que vivem de cardar o serrano, um ou outro perdulário ao fim da paterna, menino que anda para professor régio ou chegou de caixeiro do Porto, mais um safado de rascoeiro na desejosa, e assim se compunha a gama macha da quadrilha. Entre eles, a Zabana reconheceu ainda o Pacheca administrador, de chapéu à Mazantini e botas à Frederica, cantarolando com uma pécora amoujuda o Dom Celidão.

   A Teresa Zabana excogitou os danços um por um,as sombras em que bulia vulto, as seixas das janelas emorouçadas de gente. E, depois de muito vaguear, tropeçando nas paredes, escorregando nas cascas de melancia e pondo pé em alagoeiros, que aquela casa, cerrada no destempo das festas para educação de meninos, tornava-se, nesta noite, valhacouto de clérigo e de ladrão, disse:

   - Vamo-nos daqui. Isto é uma Sodoma.

   Despedindo das grandes abóbadas, em folia, novamente foram cirandar pelo arraial. O grande ruído de açude tinha amainado e os pregões: auguinha fresca! merca fortes e almirantes! e as fífias dos clarinetes e uma cantiga: Dize lá, ó cantador! tinham uma ressonância estrídula, mas estreme, aos quatro pontos. Já havia adormentada pelas sombras gente em barda, que a noite ia alta. No tímpano da igreja, o vento tinha extinto ou incendiado filas inteiras de luminárias; uma, que bruxuleava aos pés da cruz, parecia a lâmpada das paredes mortas a pedir ao passante um padre-nosso e ave-maria pelas alminhas do Purgatório. Pelo arraial fora, os fogachos e as fogueiras das chafaricas derramavam uma chama mais vermelha no ar mais escuro. As vendedeiras de limonada contavam a receita para o lenço de assoar; as mocinhas do doce cispavam os açafates e corriam à roda desentorpecer a anca. O arraial romeiro pacato, devocionário amodorrava; prosseguia sem relego o arraial zaragateiro e pé leve.

   - Foge! Foge! - exclamou a Zabana para Glorinhas diante dum roldão de caceteiros em enovelada correria.

   Eram as maltas do Granjal e da Vila da Ponte que se acometiam, naquela sua inveterada rixa de povos fronteiriços e forçudos. Emborcando tarimbas do negócio e trilhando os dorminhões, acossado pelo estreloiçar dos paus, o poviléu varreu às bandas.

   Glorinhas e a Zabana meteram para a porta do santuário, em que uma onda medrosa se atropelava. A espaldas delas, retiniam pragas, gemidos e gritos de aqui-d’el-rei. Mas acudia a tropa e os desordeiros tresmalhavam a pés de cavalo. Curioso, o povo refluía sobre o lugar da refrega, que durara o tempo dum credo. Escabujava no chão homem ferido, se não morto, e vozes de mulher gemiam, testemunhando a justiça do céu e da terra.

   A Zabana e a Glorinhas avançavam para o levante quando, ao lado, uma voz, um pouco trémula, dizia:

   - Também por cá?

   Olhem quem ele era, o Senhor Mioma: fato de gabardina cor de azeitona verde, chapéu mole derrubado para a testa, em seu enleio sacudindo o pingalim, ar cobarde que não lhe deixava encarar a gente.

   - Então, meu senhor - respondeu a Zabana num tom melageiro -, às romarias e às bodas vão as loucas todas.

   Glorinhas tornara as costas e olhava de frente, arisca ou desdenhosa, como se alma viva estivera ao pé. E quedaram mudos por todo o tempo de uma cantiga, garganteada ali perto:

 

                       Siora da Lapa, valei-me,

                       Valei-me, Siora da Lapa!

                       Fiei amor verdadeiro

                       Às juras de Maria ingrata.

 

   - Viemos pagar um voto a Nossa Senhora - volveu a Zabana, e com um jeito rijo de cabeça e visagens de bugia remetia Mioma para Glorinhas.

   Muito confuso, quase azougado, disse ele à moça por trás do ombro.

   - Que voto foi, Glorinhas? Ela não respondeu e, na mesma voz empastada, tornou:

   - É segredo?

   - Deixe-me! - despediu ela, em tom mais seco que duas pedras na mão.

   O Senhor Mioma fez pé atrás, de parecer tão vergonhoso que metia dó. E, no silêncio, passou outra cantiga desgarrada:

 

                       Vim à luz, ó Virgem Santa,

                       No dia da tua festa,

                       Dai-me uma moça meiguinha,

                       Que amor bravio não presta!

 

   Com momices que diziam «não seja sendeiro», novamente a Zabana o empurrava para a rapariga. E, sem ânimo para desobedecer a uma nem afoiteza para tentar a outra, saiu-se com uma fala de toleirão:

   - Estás zangada comigo? - e logo se suspendeu, porque a moça continuava de costas viradas, crista ao alto, sem pestanejar.

   Até cheirava mal ver um moço tão bem falante e correntão ali a perros como um taranta qualquer, falho de rasgo e ousio. De pouco valem experiência e saber se numa aflição quedam no saco. E o ladrão do cantador, cada vez mais mofino:

 

                       Chamei-me à Siora da Lapa,

                       Que me deixasse viver,

                       Chamei-te, bem, não vieste,

                       Mais me valera o morrer!

 

   - …não te fiz mal nenhum! - continuou ele, porque era preciso continuar. - Fiz-te mal? Dize?…

   Aquelas palavras caíam no deserto tão vãs e tão moles como granizo na lama. O pobre homem já nem sabia onde se meter. E foi a Zabana com voz humilde, ao mesmo tempo que com a mão fechada lhe dava uma chuçada para a frente a incitá-lo, que exclamou:

   - Senhor Inacinho!…

   - Ora a seresma!… - pronunciou ele com despeito. - Não sei por que diabo deixou de me falar… - e tirando coragem do som das suas próprias palavras, levou de arreganho a mão ao braço de Glorinhas: - Porque foi?

   - Deixe-me, já lhe disse! - regougou ela. - Senão grito…

   O senhor Inacinho já despedia, descoroçoado, quando a Zabana se entremeteu a palear:

   - Ó senhor Inacinho, por quem é, não venham com despiques para o arraial. Repare, há já mais de vinte olhos em cima de nós! - e segurava-o pela aba do paletó.

   Reconfortada daquele apoio, Glorinhas voltou-se a proferir:

   - Nem fora da terra a gente está descansada?!…

   - Não é nada, não é nada. O senhor Inacinho é pessoa de muito peso para nos vir ofender. Mas olhe, meu senhor, aqui pode dar escândula… bem sabe.

   - Que diga o mal que eu lhe fiz!

   - É lá com ela, meu senhor; para aí não meto as mãos…

   Mioma novamente se quedou amedrontado, a juntar com o sapato a areia do caminho, enquanto a viola gemia:

 

                 Siora da Lapa, ouvi-me,

                 Ouvi-me em tão grande dor!

                 Ai, foi-me falso meu bem,

                 Foi-me infiel meu amor!

 

   Com a teimosia do jogador perdido que vai tentar um último lance, Mioma tornou-se mais resoluto. A sua voz adquiriu o metal duro que vem do desespero:

   - Que mal te fiz? Dize! Ou tens medo que te lance em rosto ires casar com o mais reles dos homens… como uma pataqueira…

   Glorinhas àquele sacudido, quem sabe se medrosa,  voltou-se para a Zabana, suplicante. E logo esta saiu a terreiro:

   - Pelo amor de Deus, senhor Inacinho, tenha prudência. Berros aqui, no meio do arraial, não, meu senhor, não. Há tanta noveleira pelo mundo… podem ir contar e é uma escândula muito grande! Se ainda fosse noutro sítio, mas aqui, ai… ai!…

   - O que lhe quero não é mal nenhum, pode sabê-lo toda a gente.

   - Pois sim, sim, mas o lugar não é próprio. Não quero encarregos… - e a Zabana, tendo dado senha ao Inacinho, tirou a moça consigo, para trás da igreja, onde mal chegava a escuma do arraial.

   - Sabes que mais - disse ela -, ouve-o lá e acaba-se com isto por uma vez.

   - Jesus, podem ver-nos!

   - Àgora! Diz-lhe o que tens a dizer e que se governe… cada mocho para seu soito.

   Ao dobrar o cunhal pararam embiocadas, no ar hirto de quem espera. Hesitante, o Senhor Mioma viera-lhes no encalço.

   - Eu nem estou em mim! - rompeu a dizer a Zabana. - São lá coisas que se tratem no meio de tanta balbúrdia! Vá, conversem lá, que eu vou espiar não venha por aí gente conhecida.

   E, isto dito, retirou para a banda, deixando-os face a face como dois galaripos que vão bulhar. Mas o Senhor Inacinho tinha chamado os espíritos todos - bem se percebia - e ela baixara um pouco a grimpa, que não há ainda como o aguilhão para meter as reses bravas ao rego. Lá soava a voz dele, ainda trémula, ainda de fraqueirão; mas vá, pouco a pouco subia em firmeza… animava-se, cobrava aquela doçura e força de melro nos silvados a trinar pela melra.

   Satisfeita do rumo que a disputa levava, a Zabana pôs-se a mirar em redondo. Contra as paredes, aos pés dos burros sonolentos, cardumes de romeiros dormiam. Mais para baixo, ao dobrar para o Granjal, fogueiras de sargaço charriscavam, enlabuzando de gilvazes as caras em volta. Em cima duma lancha erguida sobre matacões, um vendeiro tirava vinho dos odres. Também ela agora bebia uma pingoleta, depois de tantas voltas dar à procura de Inacinho, de peguilhar com a moça, para varrer o frio, que a noite estava fresca. O sete-estrelo voltava-se no céu, baço como um ramo murcho de cravos. O arraial entorpecia, exalando a surdina baixa e constante, sem fífias, dum açude no verão. Só à ilharga da igreja, a viola e o cantador continuavam gemebundos ao choradinho:

 

                           Já lá vai a meia-noite,

                           Estão os galos a cantar!

                           Dlim-dlim, dlim-dlom,

                           Dlom-dlim, dlim-dlom,

                           Já me lá vai meia vida,

                           Meus olhos sempre a chorar!

 

   E, ao enternecimento daqueles harpejos, e ao fogo dos dois namorados que ali queimavam sua estrela, a desgraça da sua sina, só e sem carinho, subiu-lhe à cabeça. Pela certa, o fidalgo caçava a pássara no laço; pela certa; que alvíssaras não lhe daria ele, contente da sua dita, mãos rotas como era? Boas e grandes as merecera, que só o Diabo com lume no olho seria capaz de levar marosca tão rude a seu termo! Boas e grandes! E da voz interesseira, o pensamento fugiu-lhe para o João Catrino que, um anoitecer, com o vitelão à trela, a cometera no caminho da vila e lhe propusera casamento. Bem conhecidas eram as sete falinhas doces do machucho, mas com boa maquia na unha, talvez o raposo viesse ao chamo. E toda a varava um frémito de gozo. Eia, ao lado, os pombinhos arrulhavam de grande. Dizia Glorinhas:

   - O senhor foi dizer à Caruja que era meu amigo. São arguições de homem que se preza?

   - Sendo verdade, - retrucava ele não o diria, em respeito para contigo; mentira, teria o descaro de inventá-lo? Não.

   A voz do grande mariola era doce como o mel. Por ali fora, confessando-se e escusando-se, lá iam fazendo sua segada. A Zabana não ouvia tudo, que eles falavam baixo por mor duns vultos que perto apareceram. Mas se pelos domingos se tiram os dias santos, a milheirinha estava no aboiz, tanto lhe valia correr como saltar. Eram favas contadas que o noitibó de Aris ficava a roer um chavelho. Não a merecia, ainda mais, inteirinha, com todos os agrados de quem não provou cavaleiro. Guarda Deus as bêberas para quem as há-de comer!

   Novamente a Zabana voltava a malucar na paga daquele grande serviço e no João Catrino, que era bem apessoado e tinha ricas lameiras, ganhas a esfolar cabras e a comprar bezerros para o talho da vila. Podiam levantar uma casinha de truz, ter filhos e viver fartos e regalados como Deus com os anjos. Quisesse ele! E a dobar a louca meada esqueceu-se de si, dos outros, do arraial. Quando acordou do seu longo cismar, o céu destrelava; era a alva; de serra para serra corriam vagalhões de fuligem. As sombras do chão pareciam doidas. Ouviam-se pelo arraial sons descompassados, claros,

acima do zumbido difuso de colmeia. Muito pertelinho um do outro, quase unidos, os dois namorados taramelavam sempre.

   - És de altura para mim, pois não és? - dizia ele.

   - Sou uma ignorante.

   - Eu te ensinarei a ler! Quantas faltas cometeres no abc, quantos beijos me darás.

   Ela ria, rendida de todo. Estava feito, a Zabana, enregelada, aproximou-se deles:

   - Ai, minha gente, estou com um taró!…

   - Vamos para uma fogueira - propôs Mioma. Sentaram-se ao lume, junto do vendeiro do odre, e puxando elas dos farnéis, todos três comeram e beberam como família. A Zabana  portava-se como uma mãe muito discreta.

   Arroxeava para as bandas do Douro. Por cima deles o céu, coalhado de papos de rola, anunciava um dia de esplendor. Já o sol não vinha longe na casa de Deus. Os romeiros, que tinham o dia a lidar, despediam caminhos fora, cantando:

 

                     Adeus, Siora da Lapa,

                     Adeus, té o ano que vem;

                     Façais vós o que vos pido

                     E cá vos trarei meu bem!

 

   Olhando fito, já luziam os dois miradouros do nascente, perdidos pelos cerros à cata dos caminhos de Aguiar e Sernancelhe. Pelos abrigos, os azeméis zurravam à madrugada.

   - Que anda aqui este tangaril a sisar? - clamou a Zabana, que se erguera num repente e correra a desencarapuçar um vulto.

   E, arrancando-lhe a capucha, pôs à mostra o João Bispo, o grande foleiro, pilho de broa e de galinhas. Nas sombras do amanhecer, em sua estatura de tarraco, pernas curtas, cabeça enorme de burranca, tinha alguma coisa dos avejões que aparecem nos pesadelos.

   - Raios a partam para feiticeira! - roncou ele - Pesa-lhe quem não se mete consigo?

   - Larga-me da vista, que te racho! - ameaçou ela dobrando-se para uma fraga.

   - Racha? - respondeu ele, arreganhando os dentes. - Zabana, magana, focinho de ratazana!

   O Senhor Mioma escorraçou-o para longe a pontapé.

   - O tio Javardo há-de saber com que espécie de rês está metido! - ameaçou ele, ao voltar da esquina.

   - Navega, vai-lho dizer! - gritou-lhe Glorinhas.

   Voltaram a sentar-se e a entreter-se de amor.

   - Glorinhas - proferiu Mioma, enlaçando-a -, dize que me amas…

   - Ponha aqui a mão…

   O peito dela palpitava; arfava forte; cantavam lá dentro todos os alegres pássaros do mundo.

 

   Uma boa manhãzinha, a Teresa Zabana apresentou-se à porta do Joaquim Javardo, em Aris, a bater à aldraba.

   - Olhe que não está; saiu para as fazendas - esclareceu uma voz ali de perto.

   A Zabana atirou com o cesto para riba duma pedra, que era o amassadoiro do linho, a impar, não tanto do carrego, como da carreira direita que trouxera de casa até ali. E, entrementes que enxugava o suor à rodilha, levantou a cabeça à procura da pessoa que lhe falara.

   - Ai, é vossemecê, tia Rita Brás! Como vai a obrigação toda? O seu Francisco? Os meninos? Pois estimo, estimo...

   - Ande cá para dentro que vem suada - proferiu a boa criatura depois dos cumprimentos. - Vamos-lhe dar de almoçar…

   - Bem haja, petisquei alguma coisinha antes de sair. Então cá o vizinho iria para muito longe?

   - Pergunta bem, mas não lhe sei dizer; largou antes do nascer do sol.

   - Anda para a Ribeira a semear os nabos - informou uma mulher, deitando a cabeça de fora do cancelo. – Por esta altura aquele adrega parava lá em casa!?

   Era a Custódia Planeta, que além de ajuntadeira de ovos, vendia creosende e paulitos de terra em terra. O Senhor Tobias gozara-se dela, ainda em moça, e fizera-lhe uma menina que o velho Padre Gaudêncio teve razões para casar com um criado, não fosse o Demo armá-las então que o filho ia cantar missa nova. Depois do Tobias, foi o Neve-Ladroa seu amigo, enchendo-a de filhos, uns mortos, outros desaparecidos, mais de dois enjeitados. Coscuvilheira de alto lá com ela, ao redor dos cinquenta anos, vivia do negócio e de mandaletes, de dar a jorna, e das esmolas que as boas almas lhe faziam. A filha andava no negócio de canastra pelas portas.

   A Zabana levara as mãos à cabeça.

   - Jesus, e eu que estou com tanta pressa!

   - Vai este menino chamá-lo - respondeu a Rita Brás, apontando o filho. - Tu vais lá, Toninho?

   - Não sei onde é - cofinhou o moleque.

   - Nem tu sabes outra coisa. É logo pegado ao chão do senhor Tobias… a lameira grande. Vai lá a correr muito.

   - Vai lá, meu homem - incitou a Zabana -, que te dou três nozes que aqui trago no bolso.

   - Ele vai; é bem mandadinho.

   Descalço, sem carapuça, a nadar numa véstia do irmão mais velho, que o cobria dos pés à cabeça, o pequeno largou de espora fita, aos pinchos sobre uma perna, dançando o balancé com a sombra do corpo, esborrachada na hora matutina.

   Se bem que estivesse à porta o Senhor Francisco, o Sol de Nosso Senhor ainda não precisava de capa para aquecer a gente. Por cima dos castanheiros, que viram enforcar ladrões nos picotos, esplêndido e soberbo, tinha o ar dum bispo pela Sé fora a enxotar os demónios com o hissope ensarilhado. As lájeas faiscavam, luziam suas palhetas brancas como se nelas houvessem entornado todos os diamantes de Minas. À sombra das paredes, na argalha dos enxurros, um bando de frangos outoniços havia esgaravatado poceiros, e de penas riças em escovinha tomava seu banho de frescor. Um galo erguia o dominus vobiscum para as eiras e, só daquele cantar, o dia ganhava o sabor do tempo das ceifas, amarelo, muito amarelo, com o lânguido espreguiçamento da terra em gravidez.

   Sentida do ferrão do sol, a Zabana recolheu-se para a sombra que, do alto da porta carreira do Javardo, um beirado de giestas derramava. E aí armou ao paleio.

   - Cuidei que vomecês moravam lá para riba, para a Portela, tia Rita. Tão poucas vezes por cá venho, que até me titubeia o sentido.

   - Mudámos para aqui pelos Santos do ano passado. Meu homem mandou compor estas casas, que as outras eram uns agulheiros; metemos para lá agora o vivo e o palhal. São choupanas de pobres… cá se vão engalhando os dias…

   - Aqui a dentro de muros, é bem mais jeitoso!

   A Custódia Planeta abrira o cancelo e, muito ronceira, viera rondar em volta do cesto que uma toalha tapava. Fairou, fusgou, e não se conteve que não lhe desse um sacolão.

   - Não sendo eu atrevida, - pronunciou ela vomecê vem aviada cá pela favelca do Joaquim Paula?

   - Venho, mulher, venho.

   - Bem me estava a palpitar. O Joaquim, por modos, sai amanhã para Lamego mai-lo padre Francisco.

   - Fazer o quê?

   - Ver se põem os papéis em andamento. Caíram na Câmara Eclesiástica nem que caíssem num poço. Aquilo foi praga que lhe rogaram!

   - É verdade - certificou a mulher do Brás. Ouvi-lhe ontem pedir a égua ao Pólito.

   - Anda tisicado com tanta perlonga; não come, não dorme... Parar em casa? Nem um cibinho. Mais desatinado, nem bode com cio, nem o demónio a tentar Santa Maria do Egipto. Querem vomecês saber duma parte que me assucedeu noutro diaço? Tinha eu ido a Moimenta buscar uma lata de petróleo, pus-me, já vinha estafada, a descansar num poiso, no torcilhão do caminho para cá da ponte de Peravelha. Vai se não quando, ouço um tamanco e gente a falar alto. Porque torna, porque deixa, uma criatura, ainda que não seja curiosa de meter o bedelho nas vidas alheias, tem de escutar, a menos que não enterre uma rolha nos ouvidos. Diziam as vozes: «Raio parta os papéis; aquilo é ladrão que te quer fazer estorvo; hão-de vir nem que eu perca o nome que tenho». Mais para aqui, mais para acolá. Quem havia de ser, já vomecês adivinharam, o Joaquim Paula. Cuidei que eram dois em conversa, era ele sozinho. Até deitei adiante a correr, com vergonha! Aquilo esquece-se, e arma cada cavaqueira de si para si que nem para amigo da vigairada…

   - Lá apoquentado anda - apoiou a Rita Brás.

   - Anda maluco de todo! Eh, arrancou, está mortinho por se tirar da desejosa… Sabem vomecês, ele já nem é o memo; mudou como da noite para o dia. Se vomecê visse, tia Teresa, só as obras que mandou fazer na casa?! Bom soalho de plaina, bom forro, até um quarto mandou caiar e pintar. Aquilo é o quarto dos mariposos.

   - Está outro, está - tornou Rita num tom brando de remoque. - Minha sobrinha merece tudo e, mais, ele gasta do que é seu, não tem que dar cavaco a ninguém.

   A Custódia Planeta ficou calada o tempo dum amém-jesus e tornou, dando um safanão ao cesto:

   - Então isto é o enxoval?

   - Acertou - respondeu a Zabana.

   - Deixa lá, mulher - resmoneou Rita Brás. Sempre ouvi dizer: nem olho em carta, nem mão em arca.

   - Tinha pouco que acertar - volveu a Planeta sorrindo sem se prender com o remoque da vizinha. - Era só o que lhe faltava, roupas brancas. O Manuel Alfaiate tem-se farto de lhe cortar fatiotas. Já lhe deu prontas três e todas em bom pano da berra. Aquilo daqui a pouco está camarista.

   - Bons costumes e dinheiro farão teu filho cavaleiro - redarguiu a mulher do Brás. - Do seu gasta, mas olhe vosse-mecê, tia Teresa, não é só fazer roupas, está mesmo mais correntão e amigo de prestar um favor. Já desta porta não sai pobre que não traga o seu cibo de pão ou coma a malga de caldo, se o há. Antes era aí um praguedo, que até a rosa do sol tremia.

   - O casório deu-lhe grande volta aos miolos, não há que ver. Ai, aquela moça vai andar nas palminhas da mãos! Quer vomecê que eu lhe conte um passo que deu brado, tia Teresa? Ouça e faça o seu juízo. O tio Aniceto, d’ò pé da igreja, o Anicetão da Clemência, que tem lá uma grande pimpona, quando pescou o Joaquim neste trilhar, veio-se ter com ele, todo sete falinhas doces:

   «- Então, ó Joaquim, corre para aí que botaste pregões em Seitosa?

   «- Dizem que sim.

   «- Pois olha, anda-me cá a trabalhar no pensamento que um homem como tu não deve casar fora da terra. Lá diz o outro, quem casa fora do termo ou se engana ou vai enganar.

   «- Deixá-lo! Ver vamos.

   «- Sabes que mais, eu uma vez neguei-te a Rosa…    neguei-ta, quer dizer, foi ela que não esteve para aí virada… Tu andavas um surra, lida mais lida, e isto de mocinhas de hoje querem agrados. A nossa vida é a terra, mas, enfim, ao domingo ponha-se camisa com asseio. Tu, meu mariola, agora até as trazes de goma!

   «- Mas onde quer vomecê chegar, tio Aniceto?

   «- Aonde quero chegar?… Olha, a rapariga ainda te

serve?… Vai buscá-la. Ela não há-de dizer que não e, para o caso, eu cá estou.

   «- Bem haja, tio Aniceto, mas veio ao destempo. Encarreirei para ali, dali não desapego. A sua Rosa deu-me com a porta na cara, nem honra nem vergonha eu teria se lá voltasse a fairar.

   «- Vê lá, Joaquim, olha que minha filha não tem defeito que se lhe diga. Abastada, videira, que mais queres?

   «- O dito, dito. Sua filha disse-me que não, adeus, quem vai ao vento, perde o assento.»

   - Não houve meio de morder - acrescentou a Planeta - pois o Aniceto está rico como porco e a rapariga desenxovalhada disse. Aí tem o que se passou, tão certo como Nosso Senhor estar dos altos céus a escutar-nos. Ouvi a parlenda com estes que a terra há-de comer. - E levava os fura-bolos, como dois atiçadores, às orelhas.

   - Ninguém duvida - declarou a Zabana.

   - É o que lhes digo. O homem anda tresloucado. Até já houve línguas excomungadas que começaram para aí a murmurar que foi grande mistela que ela lhe deu a beber. T’arrenego!

   - Há gente no nosso povo que precisava o pescoço cortado - proferiu em tom áspero a Rita Brás. - Minha sobrinha é uma cordeira inocente.

   - E uma menina como por aqui não passeia - apoiou a Zabana. - Admira que ande maluco! À moça louçã se rende a barba cã.

   - Pois não admira, não. É uma flor e tão amistosa que ninguém é pobre ao pé dela! Tomara eu assim noiva para o meu Júlio, quando lhe chegar o vício. A Glorinhas, além do bom moral, tem uma sorte de primeira!

   - Das melhores que há na Seitosa. O pai foi um grande granjeador e, da banda da mãe, a casa era boa.

   - Ora vejam como um janistroques destes foi desencantar uma baronesa! - exclamou a Planeta. - Verdade, verdadinha, quem para ele armou à pássara foi cá o irmão da Rita, o padre, mai-la moça. Eles é que foram os auruges. Também as peitas daqui para Seitosa têm sido umas atrás das outras. Olhem que até uma vitela a desmamar lhes foi meter na loja! Quem quer, escarra…

   - Meu irmão padre não meteu para aí prego nem estopa. Eu conheço-lhe o génio… Lá a senhora Ana, talvez.

   - Ele ou ela, dá tudo na mesma. Estão fartos de trincar! Só a cabritada e coelhada que ele lhes não tem mandado?! Está um mãos-rotas. Por aquela mulher era capaz de despir a camisa.

   - Do seu dá.

   - Pois que lhe preste. Eu cá não acredito - basta a moça sair de tão boa família - mas não é uma só boca a dizer que ela foi amiga do filho da senhora dona Francisquinha?!

   - Foi o diabo que te leve - gritou-lhe a Rita Brás. A tua não andou pegada com o filho mais novo de meu irmão padre, o Zezinho? Gostas que te digam que ele se encheu dela? Dize? Lá de minha sobrinha, não é verdade; mas que fosse, uma nódoa em bom pano cai.

   A Planeta virou os olhos para terra, contrafeita em sua maledicência, e as outras quedaram caladas, de olhos pelo longe e o perto. A manhã ia alta, já o Neve-Ladroa voltava com os tabuleiros do forno, esquentado com a alva. Na balbúrdia dos telhados, de limoso verde-rosa, os olheiros de vidro faiscavam ao sol claro. Pelos coradoiros, mulheres penduravam cueiros e fraldinhas, e de sua brancura, em roda, as paredes negras e as hortas ferretes do outono até pareciam desnevar. Na folha sem fim, baça do restolhal e dos pousios, os lavradores vessavam e uma voz guinava, no ar adormecido, em jeira que se não via: eh Ramalha! Pac’trás Ramalha!! Aloirava o souto e já os gaios rabaceiros crocitavam no folhedo à caça da castanha. Para o fundo do povo, um vitelinho desmamado mugia pela mãe e com o bater da roupa nos lavadoiros, vozes mortas de quando em vez por entre as casas, um cacarejo de galinha poedeira, era todo o agravo ao silêncio na manhã de sol.

   A Zabana soltou um ai de impaciência, depois de seus olhos irem pelos caminhos e as regadas à busca do Javardo, e respondeu às palavras da Rita Brás. Certa estava ela que a boa criatura, no fundo, não descria da voz geral que acoimava a sobrinha de manceba do Mioma. E para lhes dar uma ideia de seu trato, mais que pelo intento de varrer uma injustiça, a Zabana contou, por longe, aqueles amorios de criança. E a rir desconchavadamente, findava:

   - Aquilo ficou em beijos e amossadelas, que lho digo eu!

   - Ora - tornou a Planeta, tomando ousio com o tom desbragado da outra -, falso ou não, pouco monta para a tineta cá do vizinho. Quere-a assim, e queria-a, tivesse ela muito embora conhecido mais homens que de pêlos conta na cabeça. Lá lhe foram com a descoberta, segundo se rosnou, da parentela do Aniceto. Sabem o que respondeu? «Quem a mim me queira bem não me venha com intrigas; tenho aquela moça por limpa e honrada; se me enganei, é comigo." Nunca, por nunca se viu embeiçamento maior!

   - Então, está entrado na idade, precisa de mulher de portas adentro… Até aos quarenta, ou vai ou arrebenta.

   - Pois sim. Mas, ó tia Teresa e Rita que me ouvem, ele sempre há mulheres que nasceram com a felícia toda, para levar a vida fresca e regalada. Se se vissem umas baldorneiras como eu, fartas de trabucar?!

   Calaram-se, que a Custódia Planeta tinha lágrimas nos olhos. A ventura dos outros fazia-lhe móssega como se fosse feita com a mofina que a calcava desde o berço. Sendo uma pobre de Cristo, amiga até de fazer um favor, a inveja, que matou Caim, não a deixava medrar. No povo dizia-se dela que deitava olhado às vitelinhas gradas e aos meninos de mama rechonchudos. A Rita Brás tinha-lhe medo, que a língua dela era comprida como as bandeiras, e por baixo de capa ia-a convidando com a abada de verças e a abóbora para o caldo. O Brás dera-lhe com um estadulho, um dia que a apanhou na horta a roubar-lhe os porros. Ora chorava, ora ria, era a pobreza de olhos ougados.

   - Mas olhem - disse ela, que a enxugar as lágrimas ao avental torcera a cara à banda - lá vem o Paula em baixo, mais o pequeno. Nunca eu os enganei quando lhes disse que andava para a Ribeira. Deixa-me lá ir, que os dias são um sopro… Ó Rita, tu não vistes a minha pita pedrês?

   - Não vi.

   - Morte mate a consumação que me causa. Grande sumiço teve! Ontem, pouco passante do meio-dia, ainda vi o teu galo, derriba dela, a galá-la; depois desapareceu, não há volta que não tenha dado. Ai, infeliz de mim se foi a raposa que ma pilhou! Esta era das tais: galinha pedrês não a vendas nem a dês. Punha cada ovo que nem perua! Ai pita da minha alma!…

   - Não te tisiques, mulher! Anda por lá a rapar para as eiras.

   - Vou-me lá ver. Ai minha pitinha poedeira! E caminhou para as eiras, a responsá-la:

   - «Ó meu beato António, que tanto gadinho guardastes de má bicho, de má bicha, de má lobo, de má raposa, de má homem e de má mulher; da forca vosso pai livrastes; as coisas perdidas achastes; as esquecidas lembrastes; ó meu glorioso Sant’António, pelo hábito que vestistes, pelo cordão que cingistes, pelas alpergatas que calçastes, pela missa nova que dissestes, pelo breviário que rezastes…

   - Ora Deus lhe dê muitos bons dias! - salvou o Joaquim Javardo, ao encarar com a Zabana.

   - Mais a quem vem!

   - Isto é de mando da pessoa que nós sabemos? tornou ele, acenando para o cesto.

   - Saiba vomecê que sim.

   - Entre cá para dentro.

   Até os olhos se lhe riam. De rompante abriu a porta, fê-la saltar contra a couçoeira, impaciente e estavanado. Caramba, tinha ali o seu rico enxoval, mai-lo enxoval da moça que em poucos dias seria a patroa. Tudo bem feito, que, pelos vistos, ela tinha dedos de habilidade. E, ao dar uma demão ao cesto, até parecia outro, mais novo, mais airoso na camisa branca, boas calças de burel, chapéu, que antes da tramontana, era o chapéu de ver a Deus.

   - A senhora Glorinhas fica de boa saúde?

   - Fera que nem.

   A Zabana destampou o cesto e, ajoelhando à beira, pôs-se a tirar tudo para riba duma arca.

   - Sete camisas de homem - contou ela. - Foi quanto deu a tela que lhe mandou. Veja, aqui estão as sobras.

   - Era lá preciso isso…

   - A Glorinhas quis que viesse tudo. Seis pares de coturnos; cresceu um manelo… aqui está.

   - Prante para aí, santinha, e deixe lá as meças.

   - Tenha paciência. Os lençóis estão por fazer, não teve tempo. Aqui tem o pano todo, quarenta varas e meia. Confira.

   - Coitada, não pode deitar mão a tudo! A lida…

   - Disse que vomecê os mandaria cortar a quem bem lhe apetecesse.

   - Ora! quem manda é ela.

   - Estas são as toalhas compradas nos mercadores. São dez... eu conto, não tenha esquecido alguma… uma… duas…

   O Javardo interrompeu:

   - Não conte: ela não desconfia, eu também não desconfio de vossemecê.

   - …nove, dez. Não falta nenhuma. Isto são as fronhas, quatro prontinhas a bater, duas alinhavadas; é só coser

   - Está bem, está bem; eu hei-de-lhe deixar tempo para tudo. Já ando em inculcas para lhe arranjar uma paqueta, mas é gado ruim de descobrir quando se quer coisa com jeito. Pai da vida, o cesto ainda traz contrabando…

   - Traz, vai ver. Pegue lá as ceroulas. Olhe o molde, não se perca. É bom para espantar os pardais.

   - Estão bem velhinhas estas ceroulas, não há que dizer. Que quer, a senhora Glorinhas caçou-me desprevenido. Um homem só é um besoiro.

   - Tome, a saia de castorina mai-lo saiote. O chaile. Nem sequer o estreou. Pode devolvê-lo à tendeira.

   - Que o estreasse, era senhora. Mas para que mandou tudo tão cedo!? Eu sei lá quando virá licença para nos casarmos…

   - Neste embrulho - continuou a Zabana - vêm os lenços de seda. Quer que conte? É melhor. Um, dois… três, quatro. Ah! ela ajuntou a estes os lencinhos de assoar. Hão-de ser uma dúzia, se a memória me não falha. Verifica-se…

   A Zabana fitou-o; tinha o parecer demudado, a tez sobre o amarelo, as bugalhas dos olhos, muito maiores, fitas no cesto de que ainda não se via o fundo, como quem se desvaira para um tremendal que vai engoli-lo. Ela, contando sempre, não se desmanchou:

   - Este é o vestido; bonita peça! Só de mãos e em rendas tem mais que a valia do merino. Olhe que também ainda não viu corpo.

   - Mas, ó mulher, macacos me mordam se percebo! Que dianho de veneta foi esta de despachar tudo? Que eu saiba, os papéis ainda não tornaram de Lamego!…

   - Falta agora dar conta do que respeita ao oiro. Nesta caixinha encontra vomecê as contas, as arrecadas, os dois anéis e a serpentina de prata. Veja, veja se está conforme…

   Ele olhava para ela muito branco, tão branco, como uma criatura que vai dar o último suspiro. Bem se via que tinha lá dentro, a zarelharem-lhe na alma, todos os demónios da agonia. Nosso Senhor devia assim sofrer quando, no jardim da Amargura, seu Pai lhe disse que não.

   - Não lhe trago as tamanquinhas - disparou-lhe ainda a Zabana em rosto - porque já as calçou duas vezes. Manda perguntar em quanto importam para lhe remeter a conta.

   E dito isto, a Zabana deitou a mão ao cesto para largar. Ele segurou-a pelo braço, cara que parecia a dum condenado do inferno.

   - Mas explique-se, mulher! Eu endoideço!

   - Foi só o recado que me deram.

   - Por alma de quem lá tem…

   - Foi só isto…

   - Arrebento… arrebento. Vossemecê deve saber, ela já não me quer?

   - Palavra, não sei. Palavra!

   - Ai!… Maldita a hora em que minha mãe me botou ao mundo!

   E caiu sobre a arca a soluçar.

   - Não se consuma - murmurou a Zabana mulheres há muitas!

   Ouvindo isto ergueu-se num arrepelão, mas logo se tornou a deitar de bruços, soluçando mais forte. E ouviu-se-lhe dizer mal de sua sina, da que lhe deu o ser, e blasfemar dos anjos e dos santos.

   - Então que resposta lhe hei-de levar? - disse, afinal, a recoveira.

   - Resposta! - rosnou ele. - Resposta de quê?

   - Do custo das tamanquinhas…

   - Eu já lá vou com a resposta. É só calçar os sapatos e de arremesso meteu para o quarto numa fúria mal intencionada.

   A Zabana atirou com a rodilha e com os socos para o cesto e despediu. Corria que se desunhava, sempre em frente, sem olhar a carreiro nem atalho. Aos olhos da imaginação representava-se-lhe o Javardo com as pernas papa-léguas pistando-a de perto e, na primeira dobra do mato, com a foicinha, cevar nela sua sanha de cão danado - e não se atrevia a volver para trás os olhos da cara. Não se descobria vivalma pelos montes e mais o medo a aguilhoava. Ao azangar uma parede, um grande corvo amedrontado bateu as asas, elevou-se dum carvalhiço, grasnando; mais além, uma nuvem de estorninhos, que é a sazão de eles abandarem para meter a outras paragens, passou de esfuziote à banda dela e torceu rumo, corridos daquele desatinado correr. Naquela hora, desejaria ser feiticeira para se tornar em penedo, andorinha veloz, nuvem que alto voa. Raios pelem, não conhecia tais artes...! Corria, corria, e ao passar o caminho afogadiço da Cruz do Caetano, onde o Pólito chacinou o Pata-Larga, os cabelos puseram-se-lhe em pé; ouviu grunhir a porca que o Rola usurário andava cavalgando por aqueles cerros, banido do Céu e do Inferno. Ouviu-a grunhir, viu-a mesmo, com aqueles que a terra há-de comer, relampejar por sobre paredes e

silvados num assopro de mil nordestes. E sem ânimo para benzer-se, mais se esgalgou na carreira.

   De rota batida, sempre a galope, ainda os gados não tinham saído, que, Verão andado, os estábulos abrem por volta das nove, entrava ela tal um pé-de-vento em casa de Glorinhas.

   - Ai, que ele aí vem! - exclamou, atirando-se para riba duma arca a esbofar.

   - Ele quem?

   - O Javardo… Foge que te mata!

   - Deixe-o vir. Os toiros são bravos e, mais, amansam.

   - Não, não!… Vem assanhado como uma fera. Vou chamar o senhor Inacinho.

   - Não consinto.

   - Mas mata-te! Olha que te mata…

   - Àgora!

   Depois de beber uma malga de água, a Zabana contou o passo todo, começando pelo Rola montado na porca ruiva, e rematando com o Javardo a dar salto no chão, como cobra que cortam ao meio, e olhos de assassino a nadar em sangue.

   - Vossemecê podia pôr-lhe tudo em pratos limpos - disse apenas Glorinhas. - Valia mais…

   - Eu sabia lá que um jagodes daqueles tinha assim sentimento?! Eu sabia-o lá?!…

   Glorinhas volveu a abainhar o lenço e por um migalho quedaram caladas, remoendo sua inquietação. Depois, a Zabana tornou a teimar: porque se não ia chamar o Senhor Inacinho? Era homem para homem…

   Glorinhas meneava a cabeça negativamente.

   - Mas ele mata-te!… Aí vem ele… Abriram lá em baixo a porta da quintã… É ele!… Foge enquanto é tempo.

   - Qual fugir!? Estou no que é meu.

   Decidida como era, Glorinhas empalidecera da palidez da hora da morte. De facto mão rija desacravelhara a porta carreira; ainda ringiam os gonzos.

   - Por alma de tua mãe, Glorinhas, esconde-te…!

   - Não me seque. Esconda-se vossemecê.

   - Ah, isso escondo, que não posso ver desgraças! e deitou a correr para a cozinha, afogada nas sombras.

   - Ó da casa! - bradaram à porta.

   - Quem está lá?

   - Gente.

   Glorinhas encheu-se de ânimo e foi ao umbral. E recalcando o receio, em voz que mal tremia, disse:

   - É o senhor? Melhor foi que viesse. Aquilo a mulherzinha não lhe soube dar o recado. Chegou aldemenos tudo em ordem?

   Ele ficou no traço da porta, estarrecido, como boi a quem atordoam com uma mocada.

   - Entre cá para dentro, entre… - tornou a rapariga, cobrando fôlego. - E cubra-se, na casa não há santos.

   Levou-o para a salinha da costura e pôs-lhe um banco para se sentar. Ele obedecia a tudo, como um inocente, de olhos pelo chão. Rolando o chapéu nos dedos, confrangia-se todo a querer pintar o rosto dum sorriso.

   - O senhor Joaquim há-de desculpar que não fosse eu mesma em pessoa entender-me consigo. Mas lembrei-me que me não ficaria bem e o senhor tivesse tempo de seu para cá chegar…

   - Hum, a lida é muita… é muita, mas enfim… sempre adrega…

   As palavras enrodilhavam-se-lhe na boca, e o sorriso que se matava por dar parecia um luaceiro de lágrimas. Até ela teve pena.

   - Senhor Joaquim, perdoe… não queria magoá-lo… mas não pode ser.

   Ele nem perguntou o que não podia ser; não lho tinham dito ainda em franco falar, era o mesmo; há mais de hora que o sabia para desgraça sua. E só pôde proferir:

   - Mas que há, sua moça, que há?

   - Que há? Eu lhe digo, e não me chame desbocada, nem mulher perdida. Nunca o fui, saiba-o o senhor Joaquim, nunca o fui, embora para aí murmurem o contrário. O que há é isto: Outro, a quem eu estava prometida, apareceu agora a pedir cumprimento das minhas palavras. Julguei tudo roto entre nós… não senhor, voltou… Aí tem e perdoe…

   - Uma assim! - balbuciou dobrando a cabeça para o peito.

   - Que quer! Cada um tem que cumprir a sina com que nasce. A minha é esta…

   - Vossemecê não sabe o que perde, moça! - disse ele, abanando sempre a cabeça.

   - Não sei o que perco; sei só que o senhor é um bom homem.

   -…bom homem!… tanta alegria, tanta paixão pus em si, moça!… Maldita a hora em que os meus olhos a enxergaram…! Melhor fora que nessa hora me tivessem dado uma facada!… Triste de mim!

   - Por quem é, senhor Joaquim, não vale a pena lembrar águas passadas. Não há remédio…

   - Mas sempre é certo, está tudo desfeito?

   - Então, eu já lho disse!

   - Ai que não sabe o que perde… não sabe… Havia de querer-lhe mais que às meninas dos meus olhos! Não sabe o que perde… Não lhe havia de faltar nada… Nem uma fidalga, que lho digo eu! A minha casa é abastada; olhe que escondidas debaixo do soalho tenho passante uma quarta de libras…

   - O senhor topará mulher que lhas mereça.

   - Não, nunca mais me caso. Fartei-me de poupar, de pôr de lado, de o não vestir para o não romper, sabe para quê? À espera de companheira que me dissesse, para que tivesse de tudo, para os filhos serem fartos e mimosos… Andava um surrão, andava, mas acredite, era com esta ideia trancada na garganta. Vossemecê não quer?

   - Não posso…

   - Pois não sabe o que perde… não sabe o que perde!

   Tinha-se levantado e, olhando o chão de olhos muito quedos, bambaleava sempre a cabeça.

   - Mas para que me andou a enganar? São lá feitios…

   - Não o enganei de vontade. Andava na minha boa-fé.

   - São todas as mesmas!… Pois fique-se com Deus e que tão feliz seja como feliz me deixa!

   E desandou para a porta a passo vagaroso. Uma vez no traço virou-se, encarou com ela de frente:

   - Quem é o tal que vem para o meu lugar?

   - O tempo o dirá.

   - Não o posso saber agora?

   - Não.

   - É pena.

   Sem mais dizer, despediu pela escada abaixo, de rompante. Ouviram-se bater as porteiras na quintã e a Zabana saiu da escuridade:

   - Foi São João que se amerceou de ti, rapariga. Olha que o mostrengo vinha com maus fígados. Vá… vá, que lábia não te falta.

   - Fechei-lhe a boca com a verdade, tia Teresa.

   - Com dez diabos, parece que estás com dó do homem?!

   - Pois estou. Não nasci para dar ventura a ninguém.

   - Olha a palerma! O homem tem lá a quarta de libras. Quem mas dera, a ver se me faltavam casamentos! - e largou uma gargalhada.

   Glorinhas sentou-se à máquina a pedalar com fúria. Depois, suspendendo-se repentinamente, desatou a bater as palmas e a cantarolar:

   - Acabou-se, acabou-se, acabou-se, viva eu e o meu amorzinho!

 

   - Que esperas para fazer de Glorinhas tua amante? Homem, mais pegada só a hera!

   - Sim, em Glorinhas há uma louca amante, há; mas para além dum mar tão grande de brancura e de melindre que me aterra o cometimento. Pudesse eu pelas divinas artes da chuva de oiro ou do cisne gozar seu corpo recatado!

   - Poltrão, tudo é verdade e tudo é mentira na mulher! Sinuosa lhe chamavam os anacoretas por ondear como a serpente. A enganar, engana-se; a cuidar, descuida-se; nega o coração, obedecem os olhos; falas de neve, anseios de poldra.

   - Tenho medo…

   - Medo? Olha-lhe para as narinas quando a apertas ao seio!... É o sinal de Eva a convidar Adão para povoarem o Mundo. É a senha forte de Deus que não mente.

   - Será, mas falta-me a força para na hora precisa ser bruto.

   - Então, amiguinho, rapa a cabeça e faz-te monge. Outro virá saborear o fruto que amaduraste.

   - Ela é minha, três vezes minha.

   - Como a água que corre da fonte se a fores beber. Queres que a tua selvagina morra a esperar?

   - ?

   - …O jeito do velho Cláudio e, no chão ou na cama, sobre um tojo ou ao lume da lareira, lhe dês a paga de andar na vida.

   - E depois?

   - Depois abalas, e ela cá fica a tua escrava gentil para as vilegiaturas na serra, os enfados do espartilho e do pó-

-de-arroz, para o amor silvestre. Não esqueças que a licença que pediste na Repartição está a expirar.

   - Teócrito não fantasiaria melhor.

   - Fazes-lhe um filho, fazes-lhe dois filhos, é tua de todo, será tua para sempre. Por feiras e romarias dirão, quando ela passe airosa e bem trajada - porque naturalmente não a mandas tirar batatas - lá vai a amiga do senhor Inácio Mioma! O tratamento é depreciativo, mas embora, não deixa de ser o teu brinquinho e a mãe dos teus nenés.

   - Não caso, então?

   - Casas com ela à hora da morte, para segurar o nome dos teus descendentes. Assim entendiam e praticavam o amor os nossos grandes.

   - Vou, pois, ressuscitar os velhos fidalgos?

   - Vais e com honra.

   - Esqueces que são duas as partes.

   - Não esqueças tu que a moça vai nos vinte e quatro anos, sazão em que os faunos vão ter com elas à cama fazer-lhe cócegas na virgindade. Um mais esperto pode surgir-lhe de emboscada, por detrás dum bosquedo, e sujeitá-la sem que tenha ânimo de soltar um ai minha mãe. Acode-lhe enquanto é tempo.

   - Sou incapaz de ser fauno.

   - Parvo! Em hora enlanguescida, quando os olhos se lhe turvem, o peito bater por de mais, e, doida, a boca dela aceitar a tua boca depois de doido passaritar, volta por um instante, milhentos anos atrás, ao varão da tua estirpe... e pronto, bem haja a dona, como diria le Vert-galant. Nem tens que pedir desculpa, foi a hora reloucada…

 A disputa perdia-se nas brenhas do voluptuoso cuidar; Mioma entrevia na alvura entornada do corpo de Glorinhas formar-se esse céu vermelho, corrido de cintilas de oiro, que é a púrpura que então sobe aos olhos do orgulho satisfeito. E ao corpo submisso, desfalecido da vaga, Mioma tornaria a beijar, desde os pés, a que mordiam as areias dos caminhos, aos olhos turvos do voo; tornaria a vencer no que nele mais houvesse de princípio e de fim; a quebrar no tão docemente quebrantável.

   Da representação delirante, Mioma volvia esfomeado de amor e daí, mais cauteloso em desejá-la.

   - É menos árduo dar-lhe o nome de esposa. Depois da comédia havida, mesmo outro desfecho seria para ela uma bem amarga surpresa.

   - É certo, mas não é menos certo que quem ama se sabe o que deseja, não sabe o que lhe cumpre. E já consideraste no que é casar, mormente com moça de condição subalterna?

   - ?

   - Não falemos na primeira semana de noivado; nesse período não tens contigo tua mulher, tens contigo uma fêmea.

Por então basta-te. Depois da estátua gozada em todos os poros, todas as curvas, todos os latejos íntimos, destituída pela posse, o que resta é o pegamaço. O pegamaço, ama-te, segue-te, embebeda-te ainda, mas não sabe estimar o Bartholozi que tens na parede, compreender o teu bocejo diante dum drama de Sardou, arregaçar a saia ao subir para o carro. Ora tu necessitas impreterivelmente de quem sinta estas frioleiras. Poderá ser uma gata deleitável, eléctrica, mas nem mesmo com minuetes nas unhas cor-de-rosa o homem moderno se contenta com gatas.

   - Glorinhas é inteligente… posso educá-la.

   - A educação começa no berço. Um asno me coucinhe se a perna que bateu a chula se não torcer a dançar a valsa; se as mãos que comeram sardinha sobre o pão singelo aprenderão jamais a descascar com estilo uma laranja! Quando queira tocar Rubinstein ao piano, fugir-lhe-ão as teclas para a Caninha verde. É o diabo…

   - Retórica!

   - Talvez! Mas tem por certo que ou tu te tornas dromedário de tua mulher, ou o sultão duma pobre, tristonha e desprezível serva. Escolhe…

   - Não escolho, entre esses destinos há mil e um destinos.

   - Não há. Por via de regra, em alianças desta natureza, o intelectual é a vítima. A uma banda a vida exterior dispersiva e o repululamento da vida interior, a outra a simples, a mordomia doméstica, e o fazer finca-pé nos filhos tornam a mulher em questão o mais forte. E aí tens o dromedário, Mioma amigo.

   - Mais geométrico só o olhar de Deus, farsante.

   - Ná… o que te convém é a aliança à antiga portuguesa. Deixa-la aqui; é tua; ninguém lhe toca; o padre já é velho e é tio, o professor é gebo. Quando tua mãe falecer - e vamos, vai estando na idade de entrar no seio de Abraão - põe-la à testa da casa da Serra. Com os ganhos do seu economato, poderás comprar um bordel de bailarinas e correr o mundo de Harmonica-Zug. E a tua Glorinhas será, além de anémona cheirosa e vaso de eleição, a cornucópia da abundância.

   - Farsante! Farsante! Farsante!

   - Muito a sério, que esperas para fazer de Glorinhas tua amante?

   - Pode não aceitar…

   - Redondamente, se lho propuseres. Mas, não é por palavras, é por obras que se sela um pacto desta natureza. Olha os pardais…

   - O quid é esse.

   - É simples, tão natural como abrir os olhos na alvorada, fechá-los ao adormecer.

   - Se assim fosse…

   - É. Que chore, que grite, que te arranhe, que te morda, é artifício sincero da natureza. A natureza é, ao mesmo tempo, a nossa santa e a nossa porca madre. Não brinques com esta que, nas horas más, tem colmilhos de fera.

   - Sim… hei-de ver.

   - Não abuses da «porca madre» nesta moça, ó tu que podes ler Ovídio no original e nem soletrar sabes a escrita clara dum simples e virginal coração.

   Assim discorriam as duas pessoas em que se desdobrava Mioma; uma fundamental, fraca por índole e atormentada pela sensualidade: tímida; a outra teórica, do homem que palpou muita mulher, faz da vida um jogo, cuspiu em Paris e Berlim: faceta. Mioma era um cerebral e, pelo dia fora, no silêncio da terra e do céu ou quando se dirigia para casa de Glorinhas, se acendia o debate em seu cérebro fecundo. E de impulsos tão contrários só lhe ficava a ideia vã dum esforço vão.

   Noites sobre noites, depois da ceia, procurava Mioma à selvagina. A princípio fazia-o com rebuço, depois de a aldeia mergulhar no silêncio, temendo-se do génio rebentio da mãe e porque traziam ainda a estudo a maneira mais honesta de romper com o Javardo. Nisto como no mais a rapariga mostrava um ânimo sensível, escrupulosa em tratar com lisura e bondade. Repugnava-lhe romper com despejo um pacto selado de boa-fé. E, em contra das artes da Zabana, foi preciso desenvencilhar a rodilha com verdade e direitura.

   Dado o melindroso passo, eram senhores de se amar, fugir um com o outro para o cabo do mundo, e Mioma punha menos astúcia em esconder. Muito morfanho pela idade e a labuta, o Cardiga deixava Glorinhas à rédea solta do seu bem-querer; também não lhe cabia dar leis naquela casa, que viera a Glorinhas, depois das partilhas totais abertas de sua livre vontade, ao enviuvar. Os dois rapazes fintavam-se, ano por ano, com umas rasas de centeio para sua mantença, e lá ia entretendo a velhice, ao agasalho da filha, pagando com lhe lavorar as terras e cuidar da lida, no melhor de suas fracas forças. Glorinhas tratava-o com amor inquebrantável de filha e a solícita caridade de quem é moço para quem é velho. Já o mesmo não sabia dizer das noras, que o tinham por emplasto, e o aceitavam por obrigação em baptizados e bodeganas.

   Por isto, porque tudo o que Glorinhas fizesse estava bem feito, o Cardiga fechava os olhos às idas e vindas de Mioma. No fundo, talvez sentisse a vaidade de a ver requestada por um fidalgo, destes que trazem as quintas de renda e aos olhos dos quais se espenujam as mulheres e se erguem os chapéus. O Cardiga era um escravo de nação, e, como tal, votava um imoderado respeito a todos os que se vêem viver da terra sem nela se verem fossar. O seu dever ali era não tolher Mioma e não o tolhia; Mioma, também, não dava pelo velho serrano, e Glorinhas, assim, era sua como no meio duma floresta.

   Mal a povoação amadorrava na noite, Mioma saía da quinta e, firme e a direito, metia para casa de Glorinhas. Rua fora, as duas determinantes em que se lhe balouçava o eu incerto, timidez nativa e ousadia de intelectual, renhiam rija guerra. Até à porta, o tímido era o mais fraco, ante ela era o mais forte. Face a face com o instinto da bárbara, singelo e mimoso, o lúbrico cedia o campo ao terno e sentimental. A alma dela figurava-lhe branca como uma capelinha no cimo das serras e ele era o devoto que não sabia fugir à sina de seu coração delicado. Tudo o que havia nele de inconsciente, surdo e incoercível desatava a adorar. Às vezes, num lampejo de circunspecção, via em si a falência do homem superior, do homem artificial, e tinha dó desse falido. Esta noção arrastava outra após, a da pessoa que desce. Glorinhas, quem sabe se animada da gnose transcendente dos que amam, ensombrava em seu belo parecer. E logo ele, recalcando o pensamento orgulhoso, voltava a ajoelhar à virgem da ermida branca com a fé e o inocente apego do bom romeiro.

   Muito chegados um ao outro na mesma banqueta, os pés para o lume, entre afago e doce colóquio, a noite ia dobando. Estava frio, que era passante o Santo André e entrara já a matança dos porcos. O carujo aparecia nos picotos da serra a saracotear a sua fralda do Demo. O cieiro trouxera a geada e, até meia manhã, a terra repercutia sob os passos como tabuado de bailar. Já seroavam pelas lojas, e as noites velhas estremunhavam ao cantar dos galos, alto e claro como tormentina de charamelas. O serrano, comido o caldo e encomendado aos santos, engorrava-se na enxerga, ou de capucha traçada ia espairecer por tavernas e serões as horas que transbordavam do sono. O Zé Narciso fuzilara a primeira galinhola nos urgueirais da Nave.

   O velho Cardiga deitava-se cedo e a noite era deles só. Glorinhas punha a roca à cinta, porém mais fiava amor que a fiandeira. Mioma era um bruxo a falar-lhe, entre coisas e loisas, do mundo que vira e não vira, da constância com que a trouxera no pensamento lá por longes terras, das penas sofridas do aparente desamor que ela, a espaços, lhe mostrara. Glorinhas, em troco, abria-lhe seu seio leal e ele aspirava com a voluptuosidade dum delicioso as flores agrestes, rescendentes, da paixão que plantara e a que nem o tempo nem os desenganos haviam emurchecido. Não se cansavamde arrulhar e percorrer a gama de engrimanços dos noivos que estão à beirinha do mesmo par de lençóis. Mioma, no entanto, por cobardia ou por repugnância, abstinha-se de proferir a palavra decisiva ou palavras que esclarecessem, sequer, a vida nova. Não declarava: casaremos ou partiremos daqui a tal data, mas: agora nunca mais te deixo, sem ti não poderei viver, nunca nos apartaremos, e outras expressões fátuas do amor corriqueiro.

   Toda entregue à consolação de amar e ser amada, Glorinhas não se apercebeu, de começo, do terreno vago que pisava. Mas aquela beatitude extática foi-se prolongando, prolongando, até que sua inalterabilidade se tornou sentida. E um dia a Zabana foi encontrá-la com os olhos molhados de lágrimas, mal enxutas.

   - Que tens, menina?

   - Nada; estou em dizer que não nasci para dar ventura nem ser aventurada.

   A Zabana correu a inteirar Mioma daquele passo.

   - Veja lá, meu senhor - advertia ela. - Não ande a enganar a mocinha…

   De facto ele enganava; enganava, não cuidando de saber se como o concebia o entendimento da Zabana, mas porque faltava ao que de legítimo havia a esperar na sucessão dum amor tão resoluto a embargar caminho e vagaroso a seguir carreira sua. Enganava com trazê-la suspensa em lance tão sério, pensamento, instinto, curiosidadede de mulher e de amorosa em prolongada tensão. E analisando-se, Mioma reconheceu mais uma vez a necessidade de agir e ser forte. Era preciso perante a sua dignidade de homem e a melindrosa postura de Glorinhas, e essa noite bateu resoluto para casa dela, fechando-se aos pensamentos contrários que o assediavam.

   Estava o tempo ventoso e húmido e o lume aceso emornecia a cozinha de uma tepidez agradável. O Cardiga metera-se para o estábulo, que a Vermelha anunciara por incessantes mugidos ânsias de parir.

   - Glorinhas - disse ele -, deixa ver a mão. Ela estendeu a mão, fitando-o com olhos buliçosos de curiosidade. Não era fina, robustecida de mais no trabalho, mas nervada e bem feita, os dedos longos duma persistente esbelteza.

   - Até envergonham ao pé das suas tão brancas!

   - São mãos de moreninha, mãos para as jóias de vivas cores - respondeu ele, e meteu-lhe no dedo um anel, em que a uma cornalina enorme dum rubro retinto faziam roda brilhantes de puras águas.

   - Que riqueza!

   - Gostas?

   - Se gosto! Ai, parece mesmo uma nódoa de sangue coalhado! A chaga dos cravos de Nosso Senhor!…

   - Então que fique para lembrança dos cravos que ambos trazíamos ao peito! - e Mioma beijou-lhe a mão, e ela negando-lha, beijou-lhe a face.

   O seu ombro a roçar com o dela, o voluptuoso fazia apelo a todo o espírito de decisão para romper o círculo daquele encantado amor. E, tendo entrado com o propósito de fazê-la sua à viva força ou oferecer-lhe casamento, para de logo afastara a primeira hipótese como desairosa e arriscada.

Intimidava-o ultrajar, passageiro e remediável que fosse o ultraje, a desarmada singeleza de Glorinhas, grande como uma montanha de neve, e perfumosa como um campo de açucenas. Mas retraía-se, também, de cometer a segunda questão, naquela casinha rústica, encarvoada, com a pateguita a estender para a fogueira meias sujas por onde espreitavam dedos sujos. Nunca, como naquela noite, sentia sua carapaça de senhor a prender-lhe os impulsos. O sentimento da degradação pungia-o a ponto de ver o mundo em roda dele a escarnecer-lhe a tara, Severa e hirta em sua fidalguia de meia tigela, a mãe fechava-lhe a porta à esposa humilde. O seu passado, as convenções, a sua cultura protestavam. Mas ele poderia negociar com ela, rendê-la por palavras, e deixar ao tempo a situação melindrosa. Podia, se o seu carácter não fosse avesso a iludir, e seu ânimo tacanho a pronunciar-se em matéria que requeria arrojo, despejo e coração leve de sedutor. Contra ele a selvagina fiava… fiava.

   - O pai? - perguntou, para furtar-se aos seus transes.

   - Queria-lhe alguma coisa?

   - Queria… queria entender-me com ele. Mioma pronunciara estas palavras atabalhoadamente, sem correspondência com o movimento do espírito, mas logo a face de Glorinhas se cobriu de rubor, um rubor tão florido e deleitável que o tomou uma grande onda de ternura.

   - Quero pedir-te… - reforçou ele, alegremente.

   - O que o senhor quiser, ele o quer! - e o olhar dela parecia o duma escrava benditosa.

   - Glorinhas, deixa o «senhor»; não quero; ofendes-me; dize: o que quiseres, ele o quer…

   - Bem o sabe…

   - Bem o sabes, aliás.

   - Bem o sabes - repetiu ela sorridente, num doce balbuciar.

   - Dize ainda: quero-te de toda a minha alma… és… és o meu homem!

   - Quero-te de toda a minha alma; és o meu homem…

   - Minha vida!

   A vaga fremente, sacudindo-o para longe de tudo o que era cérebro e coração, inundava-o duma cegueira forte. Seus braços pegaram dela como uma pena, cingiram-na, esmagaram-na peito contra peito; a boca dela estava perto e beijou, beijou sofregamente, bebeu. Olhos de nuvem, seio trémulo, corpo de serpente, toda a compostura grave de espera, assim a entreviu ele. Mais beijos, mais vermelhidão no ar, a garganta a incendiar-se-lhe de febre até à tortura, o corpo luxuriante a desdobrar-se ao jeito ousado. Desdobrando-se, ela olhava-o com grandes olhos inquietos onde a luzinha de oiro parecia vir do fundo dum abismo negro, e dizia num tom breve:

   - Ai! meu pai pode vir… Ai!

   - Não!…

   - Ai!… pode, pode. Deixe-me...

   E Mioma deixou-a. Quando se viram lado a lado,    pareceu-lhe que estavam distantes um do outro a lonjura dum mundo. No lume, as brasas, o oiro a esfarelar-se em neve, fascinavam-lhe o olhar confuso. Poucas e sem espontaneidade foram as palavras que proferiram; os silêncios eram infinitos e ocos como palácios queimados. E, ainda antes da meia-noite, com a vaca a mugir sobre o vitelinho, Mioma se foi dali, trocando beijos que, pelo costume, foram graciosos.

   Mioma não cobrou sono toda a noite, dilacerado por uma alcateia de pensamentos mais ferozes que lobos. Sobre a alva, achou-se no cimo dum monte, entre brenhas, a violar uma fêmea monstruosa, coxas felpudas de caprípede, cinta de donzela, e um focinho dolorido e arreganhado de cadela a uivar. Sacudindo o pesadelo, com grande alívio viu que a manhã raiava e a bela luz do Senhor se estendia por montes e vales. E, abalando pelos campos fora, desconsolado, foi pedir consolação à natureza.

   Ainda não nascera o sol, mas lá as gralhas cirandavam na orla dos giestais e a carriça se via pincharolando de parede para parede, furar pelos buraquinhos, lesta e farfalhuda. Começava a erguer a poalha de lírios roxos que a noite deixa à terra, ao largar. Corria a luz pelos caminhos e o açude do Cláudio, para lá da folha daquele ano, voltava para o céu a inflorescer o lume baço dos velhos espelhos de igreja. Para trás do povo, descobria-se um bom trato do monte com coutos lambidos da canícula, barrocas de grande vão e pinhais solitários no jeito descabelado de avançar, subindo e descendo os cerros, uns para os outros em arremetida de guerra. Mais longe interpunha-se a névoa, incerta em poisar, oscilando das abas altas da Póvoa aos penedais torvos de Aris. Mas era para banda de sul - quintais, seara e rio - que o luaceiro da manhã esplendia. A campina desnudava-se, e toda a tristeza outonal parecia escorrer da serra da Estrela, lá atrás muito taciturna e dolente como se rezasse ao céu.

   Mioma partira sem destino, os pensamentos voltejando em torno de seu ilusório amor como um carrossel de doidos. Tamancavam já na aldeia, que era a hora de dar à terra o filhinho do Luís Rola, a manhã atrás encontrado frio de todo no berço, na face os piolhos a correrem-lhe desatinados.

   Mioma foi atravessando as aradas em que um bafo fino de cantaril dobrava as fibrilhas de centeio nascente, dum verde terno na lança, vermelhas como desembainhadas de sangue, ao rés da terra. Os campos, naquela corda, vestiam-se deste veludo movediço de que se exala uma sensação de Inverno. Já nele mondavam as perdizes e, corricando ou riscando o ar de asa flébil, imprimiam à hora fugidia, na extensão imóvel, seu acento de fugidiço.

   Pela mancha sombria das moitas e palheiros em capindó, tiravam-se os povos na remota perspectiva. E a meio da gândara sem fim, silenciosa, surrada dos gados, da cor das cinzas, eram em seu verde-escuro como folhas de nenúfar nas águas mortas dum pântano.

   Penedos musguentos, velhos como a barba de Deus, viam com um ar curioso passar Mioma; e, em seu jeito, tristonho, de concentração a esconder um dos gigantes encantados da Branca-Flor, pareciam perguntar: onde vai o louco?

   O Sol já a uma boa altura de cipreste, desembaraçou-se afinal da névoa e a natureza coloriu-se duma alegria discreta. Lá em cima no lugar, o sino dobrava a sinais.

Chocalhos de rebanhos tiniam pelas quebradas. Nos horizontes que recuavam, fuminhos ligeiros panela ao lume, cova de carvão ou queimada - subiam alto, ferretes na base, ténues e esbranquiçados ao ganhar altura, como seria o anjinho do Rola a despedir para o céu. Na folha de pousio, à direita, pelo restolhal fora dum amarelo crestado depois dos fogos da canícula, acordava o eco das cigarras e com ele toda a zerechia das ceifas estridulantes. Não se ouvia nem via nada, mas sugeria-o aos sentidos a poeira da palha e do sol. Um viageiro descia pelo caminho branco da Lapa dobrado sob o saquitel; era a vida em seu curso, como os rios e como os ventos.

   Pouco a pouco a alma de Mioma foi-se impregnando do trânsito sereno da natureza; todo o seu sentido de circunspecção bem desperto, via-se nos seres, nas coisas e até no florir espontâneo do próprio pensamento. O Eu coordenava-se-lhe, como fábrica arrasada, por sortilégio renascida dos escombros. E o dogma da existência aparecia-lhe mais na satisfação das realidades que prendem o instinto à terra do que em deixar correr ao espírito a aventura fátua da insaciedade. Glorinhas era o ponto necessário do seu volver à verdade; não seria a sua princesa; seria a sua mulher; não seria madame, seria a mãe dos seus filhos. Pronto, casariam.

   Quando tornou face para casa, galhardo como um paladino que bebeu os bálsamos, meia aldeia lidava nas hortas e linhares. O Cláudio plantava castanheiros novos numa belga de ferrã, e era salutar ver um velho entregue a uma tarefa de frutos longínquos, de todo safra para ele. Tinha filhos de três mulheres - um rebanho - e netos mais velhos que alguns dos filhos; à beira dos setenta ainda batia as lebres de sol a sol e segurava um bezerrão pelas pontas; vivera e vivia sem se perguntar o que era a vida e a morte.

   Mais adiante, a Teresa Zabana cavava a chá que Mioma lhe dera com casa de viver em título lavrado no tabelião ainda que sob simulacro de arrendamento por mor das bocas noveleiras. Andava magra, descadeirada, dir-se-ia que roída de surdo mal, muito lesta a correr à cabeceira dos moribundos e a ajudá-los a bem morrer. O filho do Rola lavara-o, penteara-o e vestira-o ela, com voz tartamuda e lágrimas a bailar nos olhos:

   - Quem me dera a tua dita, anjinho do Senhor! Na leira de lá, acocorada a fazer meia, a Zefa do Alonso guardava as cabras paridas. Falecera-lhe o homem no Rio dum cancro ruim, havia já um bom par de meses que a chita negra se lhe rasgava no corpo, desbotada, a pedir despejo. Assim era o luto, que já o Catrino a requestava, namorado, se não de seu airoso corpo, da lameira que tinha para o Paiva e abastecia uma casa de gente. Enquanto os três pequerruchos pinchavam em volta, mais joviais que os cabritos, fazia girar os moldes, de olhos no chão por mor da sombra da Zabana, com quem, dias antes, tivera rija pega de língua. Também com aquela a vida seguia seu curso simples.

   O Espadagão, no linhar, abria às águas, e na sua grande fazenda de milheiral e novidades, o Senhor Padre Francisco, rendido à balda do finado do Rola, desmontava um cabeço para plantio da vinha. O estrépito de alviões e pás alagava a planura; as camisas brancas e os lenços em gargalheira dos obreiros riscavam de alegre farândola a espalda do cerro, coberta de giestas negrais. De espingarda em bandoleira, o cinto a faiscar, o filho que paroquiava em Águas-Boas despedia dali assobiando aos cães. Em baixo, no caminho da várzea, a Guiomar do André tangia as vacas para o pasto, e não era risco supor que o padre ia no encalço da repitosca; já os tinham pilhado juntos a debicarem-se.

   Como há um ano, há vinte, há séculos, a aldeia bárbara saía a campo; morriam uns, nasciam outros, o fado de viver passava nela insensivelmente; o homem cumpria a sua missão de filho da terra.

   Ao descoser das casas, de enxada ao ombro, vinha o Luís Rola, descalço, roto, rilhando com dentuça alva de lobo a côdea de broa. Ainda em casa cheirava a mortulho, já ia refeito. Na véspera, vira-o Mioma sentado na escaleira a beberricar duma cabaça com parentes e amigos. De voz já perra, alardeava a despesa do caixão, tule por dentro, boa setineta azul por fora, fitilhos e argolas empoadas de oiro, e uma verdadeira fechadura de gaveta. E, emborcando a vasilha mais uma vez, renegava de doutores e boticários, que viviam vida regalada à custa dos sandeus. Dentro de portas Florinda uivava, ele ria um riso de borracho não vezeiro, dizendo muito ancho que aldemenos o seu Zezito ia como um passarinho para o Lindoso, com os fígados escorreiros de remédios e botijadas.

   Os soitos amaduravam envoltos na grande pompa de seus brocados sacerdotais. Já corriam para eles as mocinhas de giga no braço e os gaios, que pretendem dar ideia de seguir rota para longe, se ninguém os estorvava, desciam de voo picado a arpoar a castanha que ruborejava no ouriço arreganhado. Os meninos da Escola - tal como ele fizera há quinze, vinte anos - iam andando e rilhando as primeiras longais, muito doces e bonitas com suas malhas de branco e de sépia, deitadas abaixo à pedrada.

   Tudo no mundo era episódio, posto revertisse um acento de eterno dentro da ciclidade. Muitas gerações andadas,      ver-se-iam agros, gente, coisas, o mais iguais àquelas que se pode imaginar. A forma é que as prendia à existência. O mais, desejos, ilusões, vontade ou resignação da vontade perante o absoluto, que era isso?

   O homem, qualquer homem era uma peça, por sinal má peça, na relojoaria universal, com as suas efemérides como os soitos, ora nus, ora carregados de esplendor, como as ervas, ora mirradas pelo Agosto, ora reverdescidas pelas águas novas de Outubro. Porventura algum dia florisse na terra bárbara, em pobre diabo igual a si, o seu romance de amor. Que importância tinha no perpétuo fluir de tudo a presunção de determinar-se?

   Decidido a deixar-se viver, matando em si o atormentado, Mioma foi bater à porta de Glorinhas. Bateu, chamou, ninguém lhe tornou resposta. Lá ao fundo da quintã pareceu-lhe ouvir um rostolhadoiro de palhas, difícil de presumir se de gente se de animais. E de coração inquieto, possuído dum terror vago, meteu pela viela para que olhava a janelinha de grade da quintã. Em face, nos amassadoiros de pedra, a Maria Morgada, que recebera o filho da Chilandreira, a Águeda do Narciso e outras batiam adeitos de linho. Afoito, depois de dar os bons-dias, Mioma empurrou a porta na fresta de varões. Empurrou-a dum alancão, e seus olhos presenciaram a monstruosidade: o João Bispo, o homúnculo hediondo, sob seu corpo seminu subjugava o corpo seminu de Glorinhas. Bocados de formosura divina confundiam-se com luaceiros de disformidade imunda. Ela debatia-se, o monstro que com uma das mãos lhe tapava a boca, com a outra tenteava seu lance. Tinha a cara a correr sangue, espuma nos lábios, e era medonho em seu papel de animal, de emissário implacável da porca madre natureza. Mioma hesitou em gritar, em chamar aquelas mulheres a ver a desonra da sua amada e o seu opróbrio. Que chamasse… subvertido, o corpo desejado cedeu… semicerraram-se-lhe os olhos… a boca já livre entreabriu-se, toda a defesa parara.

   Mioma largou a fugir, a uivar, alucinado, como se levasse pelo corpo e até dentro do coração a mordê-lo, a persegui-lo, milhões de vespas em brasa.

 

                                                                                Aquilino Ribeiro  

 

 

                      

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