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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Tess Gerritsen
Tess Gerritsen

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Pecadora

 

Não existem lugares sagrados... Quando uma das noviças do convento é encontrada morta na capela o horror instala-se na comunidade. O sangue tinge os dias de medo e receio. A autópsia do corpo revela que a jovem freira tinha dado à luz recentemente. Maura Isles e Jane Rizzoli, a dupla de investigadoras, caem numa espiral de negros segredos que as levam aos meandros do fanatismo. O silêncio das antigas paredes do convento guarda uma verdade demasiado assustadora para ser revelada.

 

Andhra Pradesh índia.

O motorista recusou-se a levá-lo mais longe.

Uns mil e seiscentos metros antes, pouco depois de terem passado pela Octagon, a fábrica de produtos químicos que estava abandonada, o pavimento dera lugar a uma estrada de terra batida invadida pelas ervas. Agora, o motorista queixava-se de que o mato estava a riscar-lhe o carro e de que, com as chuvas recentes, os pneus podiam ficar atolados no lamaçal. E o que lhes aconteceria? Ficariam ali, abandonados, a cento e cinquenta quilómetros de Hyderabad. Howard Redfield escutou o longo rol de objecçÕes e percebeu que não passavam de um pretexto para ocultar o verdadeiro motivo pelo qual o homem não queria avançar mais. Ninguém admite com facilidade que tem medo.

Redfield não tinha alternativa; dali em diante, seria obrigado a ir a pé.

Ao inclinar-se para falar ao ouvido do motorista, sentiu o bafo do suor do homem. Pelo retrovisor, no qual estava pendurado um rosário, viu os olhos negros que o fitavam.

Fica aqui à minha espera, não é verdade? perguntou Redfield. Fique aqui mesmo, na estrada.

Durante quanto tempo?

Uma hora, talvez. O tempo que for preciso.

Já lhe disse que não há lá nada para ver. Já não está lá ninguém.

Mas espere aqui, está bem? Espere. Pago-lhe o dobro quando regressarmos à cidade.

Redfield agarrou na mochila, saiu do carro com ar condicionado e mergulhou num mar de humidade. Não usava mochila desde os tempos da faculdade, quando viajava pela Europa, sem dinheiro, e sentiu-se estranho, aos cinquenta e um anos, com uma a dançar-lhe nas costas. Mas estava disposto a ir até onde fosse preciso naquele país que mais parecia um sauna, sem se separar da garrafa de água mineral, do repelente de insectos, dos óculos escuros e do medicamento contra a diarreia. E da máquina fotográfica; não podia prescindir da máquina fotográfica.

A suar, exposto ao calor do fim da tarde, olhou para o céu e pensou: óptimo, o sol está a declinar e os mosquitos saem todos ao lusco-fusco. Aqui vem o vosso jantar, insectozinhos miseráveis.

Começou a descer a estrada. As ervas altas não o deixavam ver o caminho. Tropeçou num sulco e enterrou-se na lama até aos tornozelos. Era evidente que não passava nenhum carro por ali há meses, e a Mãe Natureza apressara-se a reclamar o seu território. Redfield parou, a arfar, e afugentou os insectos. Ao olhar para trás, já não conseguiu ver o carro, o que o deixou inquieto. O motorista ficaria à espera dele? O homem mostrara-se relutante em levá-lo até ali e o seu nervosismo aumentava à medida que eles avançavam aos solavancos na estrada cada vez mais acidentada. Havia gente má e tinham acontecido coisas terríveis naqueles sítios, afirmara o motorista. Ambos podiam desaparecer, e quem se daria ao trabalho de ir à procura deles?

Redfield fez um esforço para avançar.

A atmosfera húmida parecia fechar-se à sua volta. Ouvia a água chocalhar na garrafa que trazia na mochila e já tinha sede, mas não parou para beber. Restava-lhe pouco mais de uma hora de luz do dia e tinha de continuar a andar. Os insectos zumbiam no meio das ervas, e pareceu-lhe ouvir os pássaros a cantar no arvoredo que o envolvia, mas o som era diferente de tudo quanto ouvira até então. Naquele sítio, tudo parecia estranho e irreal. Redfield avançava a custo, como que em transe, e o suor escorria-lhe pelo peito. O ritmo da sua própria respiração aumentava a cada passo. Segundo o mapa, a distância não era superior a dois quilómetros, mas a caminhada parecia-lhe interminável e nem uma nova aplicação do repelente de insectos afugentou os mosquitos. Estava farto de ouvir o seu zumbido e tinha a cara toda picada.

Tropeçou noutro sulco e caiu de joelhos no meio da vegetação densa. Cuspiu as ervas que lhe tinham entrado na boca, e deixou-se ficar de cócoras, tão desanimado e exausto que concluiu que chegara o momento de voltar para trás, de regressar de avião a Cincinatti, com o rabo entre as pernas. A cobardia, afinal, era muito mais segura. E confortável.

Suspirou, pousou a mão no solo para conseguir levantar-se e deixou-se ficar imóvel, a olhar para as ervas. Avistou qualquer coisa no meio da verdura, qualquer coisa metálica. Era apenas um botão de lata barato, mas que, naquele momento lhe pareceu um sinal. Um talismã. Enfiou-o no bolso, levantou-se e continuou a andar.

Uns trinta metros mais adiante, a estrada desembocou subitamente numa grande clareira rodeada de árvores altas. No extremo oposto, erguia-se uma estrutura solitária, atarracada, de blocos de escória prensada e com uma cobertura de zinco ferrugento. Os ramos das árvores estalavam, empurrados por uma brisa suave que também provocava um movimento ondulante na vegetação rasteira.

É este o sítio, pensou Redfield. Foi aqui que tudo aconteceu.

De repente, a sua própria respiração pareceu-lhe demasiado ruidosa. Com o coração a palpitar, desenvencilhou-se da mochila, abriu-a e tirou a máquina fotográfica. Tinha de documentar tudo, pensou. A Octagon tentará fazer-te passar por mentiroso. Eles farão tudo o que puderem para te desacreditar, portanto tens de estar pronto para te defender. Tens de provar que estás a dizer a verdade.

Avançou para a clareira, na direcção de um monte de ramos enegrecidos. Afastou-os com os sapatos e cheirou-lhe a madeira queimada. Recuou, com um calafrio na espinha.

Eram os restos de uma pira funerária.

Com as mãos alagadas em suor, retirou a protecção da lente e começou a tirar fotografias. De olho colado ao visor, registou imagens umas a seguir às outras. Os despojos queimados de uma cabana. Uma sandália de criança no meio das ervas, um pedaço de tecido coruscante, de um sari. Para onde quer que olhasse, só via morte.

Desviou-se para a direita, e o visor mostrou-lhe um tapete de verdura. Preparava-se para tirar mais uma fotografia quando o seu dedo se imobilizou no botão.

Um vulto perpassou e desapareceu no limite da moldura.

Redfield afastou a máquina dos olhos, endireitou-se e observou as árvores. Não viu nada, excepto o ondular dos ramos.

Ali... Seria um movimento rápido, mesmo no limite do seu campo de visão? Avistou apenas uma coisa escura, a balouçar-se no meio das árvores. Seria um macaco?

Tinha de continuar a tirar fotografias. A luz do sól estava a desaparecer rapidamente.

Passou por um poço de pedra e dirigiu-se para a construção com cobertura de zinco, a olhar para a esquerda e para a direita, com as ervas a roçarem-lhe nas calças. Parecia que as árvores tinham olhos e que o observavam. Ao aproximar-se da construção, verificou que as paredes estavam chamuscadas. Em frente da porta via-se um monte de cinzas e ramos calcinados. Mais uma pira funerária.

Contornou-a e olhou para a entrada.

A princípio, não conseguiu ver grande coisa no interior sombrio. A luz do sol estava a desaparecer rapidamente e lá dentro a escuridão era ainda maior, uma paleta de negros e cinzentos. Parou momentaneamente para que a sua vista se adaptasse. Cada vez mais espantado, apercebeu-se do brilho da água numa bilha de barro. E do cheiro a especiarias. Como era possível?

Atrás dele, estalou um ramo.

Redfield deu meia volta.

Na clareira, encontrava-se um vulto solitário. As árvores mais próximas estavam imóveis e até os pássaros se tinham calado. O vulto avançou na sua direcção, com um andar estranho e desajeitado, e imobilizou-se a poucos metros dele.

A máquina fotográfica caiu das mãos de Redfield, que recuou, horrorizado.

Era uma mulher. E não tinha rosto.

 

Chamavam-lhe Rainha dos Mortos.

Embora ninguém lho dissesse cara a cara, a Dra. Maura Isles já ouvira várias vezes a alcunha ciciada à sua passagem quando percorria o triângulo lúgubre cujos vértices eram a sala de audiências, o local do crime e a morgue. De vez em quando, detectava um tom de sarcasmo: Ah, ah, lá vai ela, a nossa deusa selvagem, buscar carne fresca. Às vezes, os murmúrios incluíam um tremor que denotava inquietação, como os cochichos dos fiéis à passagem de um desconhecido laico. Era a inquietação dos que não compreendiam o que a levara a seguir as pegadas da morte. Interrogavam-se se ela gostaria do que fazia. Se o contacto com a carne fria e o cheiro a putrefacção a atrairiam ao ponto de virar as costas aos vivos. Na opinião deles, isto não era normal, e olhavam-na de esguelha quando ela passava, reparando em pormenores que só reforçavam a convicção de que ela era uma ave rara. A pele cor de marfim, o cabelo preto cortado à Cleópatra. O vermelho berrante do baton. Quem mais usaria baton num ambiente de morte? Acima de tudo, era a calma dela que os perturbava, o olhar frio e imponente com que contemplava os horrores que eles mal conseguem digerir. Ao contrário deles, ela não desviava o olhar. Debruçava-se, aproximava-se e observava, tocava. Cheirava.

E mais tarde, sob as luzes fortes da sala de autópsias, dissecava.

Estava a dissecar um cadáver nesse momento, enterrando o seu bisturi na pele gelada e depois numa camada subcutânea de gordura amarelada. Um homem que gostava de um bom hambúrguer com batatas fritas, pensou ela, servindo-se da tesoura para cortar as costelas e levantar o escudo triangular do esterno como quem abria a porta de um armário, para revelar o seu conteúdo precioso.

O coração jazia deitado no leito esponjoso dos pulmões. Durante cinquenta e nove anos, bombeara sangue no corpo de Samuel Knight. Crescera com ele, envelhecera com ele, transformara-se, como ele, passando do músculo magro da juventude para aquele naco de carne bem lardeado. Todas as bombas acabam por deixar de funcionar, o mesmo acontecera à de Mr. Knight quando ele estava sentado no seu quarto de hotel em Boston, com a televisão ligada e um copo de uísque ao seu lado, em cima da mesa-de-cabeceira.

Maura nem parou para perguntar a si própria quais teriam sido os últimos pensamentos do morto, nem se ele tivera dores ou medo. Apesar de explorar os seus recantos mais íntimos, apesar de lhe ter rasgado a pele e ter o seu coração nas mãos, Samuel Knight continuava a ser um estranho, um indivíduo silencioso e sem exigências, que lhe revelava os seus segredos de boa vontade. Os mortos são pacientes. Não se queixam, não fazem ameaças, não adulam.

Os mortos não ofendem ninguém; só os vivos fazem isso.

Maura trabalhava com uma eficiência serena, resseccionando as vísceras torácicas, pousando o coração sobre a bancada. Lá fora, rodopiavam os primeiros flocos brancos de neve de Dezembro, que embatiam nas janelas e deslizavam pelas ruas. Mas ali dentro, na sala de autópsias, os únicos sons que se ouviam eram o da água a correr e o silvo do ventilador. Yoshima, o assistente, movia-se com um silêncio invulgar, adivinhando-lhe os pedidos, materializando-se sempre que ela precisava dele. Trabalhavam juntos apenas há um ano e meio, mas já funcionavam como se fossem um só, unidos pela telepatia de duas mentes lógicas. Ela não teve de lhe pedir que virasse a lâmpada; ele já o fizera e a luz incidia agora no coração gotejante, e uma tesoura aguardava, a postos, que ela lhe pegasse.

As manchas escuras na parede do ventrículo direito e a isquemia apical esbranquiçada indicaram a Maura que aquele coração tinha uma história triste. Um velho enfarte do miocárdio, já com meses ou anos, destruíra parte da parede do ventrículo esquerdo. Depois, algures nas últimas vinte e quatro horas, sobreviera um novo enfarte. Um trombo bloqueara a artéria coronária direita, impedindo que o fluxo de sangue chegasse ao músculo do ventrículo direito.

Maura cortou tecido para o exame histológico, sabendo já o que iria ver ao microscópio. Coagulação e necrose. A invasão de glóbulos brancos, que acorriam como um exército à defesa. Talvez Mr. Samuel Knight julgasse que o mal-estar no peito se devia a uma indigestão. Que o almoço fora um exagero, que não devia ter comido todas aquelas cebolas. Talvez um Pepto-Bismol resolvesse o problema. Ou talvez se tivessem manifestado mais alguns sinais agoirentos que ele optara por ignorar: o peso no peito, as dificuldades respiratórias. Decerto nem lhe passara pela cabeça que estava a sofrer um ataque cardíaco.

E muito menos que, um dia depois, morreria em consequência de uma arritmia.

Agora, o coração estava em cima da bancada, aberto e seccionado. Maura olhou para o tronco, a que faltavam todos os órgãos. Assim termina a sua viagem de negócios a Boston, pensou ela. Não há surpresas, aqui. Nem jogo sujo, excepto o modo como abusou do seu corpo, Mr. Knight.

Doutora Isles?

Era Louise, a sua secretária, a falar pelo intercomunicador.

Sim?

Tenho a detective Rizzoli na linha dois para si. Pode atender?

Atendo.

Maura tirou as luvas e atravessou a sala, em direcção ao telefone de parede. Yoshima, que estava a lavar uns instrumentos no lavatório, fechou a torneira. Virou-se e ficou a observá-la com os seus olhos de tigre, sabendo já o que significava um telefonema de Jane Rizzoli.

Quando Maura desligou, reparou no olhar inquiridor do seu assistente.

Isto hoje começa cedo disse ela.

Em seguida, despiu a bata e saiu da morgue. Ia buscar mais um súbdito para o seu reino.

O nevão da manhã transformara-se numa mistura traiçoeira de neve e de gelo, e não se viam limpa-neves em parte nenhuma. Maura conduzia cautelosamente ao longo de Jamaica Riverway; os pneus chiavam na lama e os limpa-pára-brisas arranhavam o vidro coberto de geada. Era o primeiro vendaval do Inverno e os condutores tinham de se adaptar às novas condições atmosféricas. Já se haviam registado vários despistes, e Maura passou por um carro-patrulha estacionado, com as luzes a piscar e um agente junto do condutor de um camião, ambos a olhar para um automóvel que caíra na valeta.

Os pneus do Lexus começaram a guinar e o pára-choques a desviar-se para o trânsito que circulava no sentido contrário. Em pânico, Maura levou o pé ao travão e percebeu que o controlo automático de derrapagem do veículo fora accionado. Conseguiu repô-lo na sua faixa de rodagem. Raios partam isto, pensou ela, com o coração aos pulos. Vou regressar à Califórnia. Abrandou consideravelmente, sem se importar com quem buzinava nem com a fila que engrossava atrás de si. Avancem e ultrapassem-me, seus idiotas. Já vi muitos condutores como vocês estendidos na minha mesa de autópsias.

A estrada levava-a para Jamaica Plain, um bairro de mansões antigas e imponentes, grandes espaços ajardinados, parques tranquilos e caminhos à beira-rio, situado na zona ocidental de Boston. No Verão, devia ser um refúgio frondoso do ruído e do calor do centro da cidade, mas, nesse dia de céu cinzento e com um vento agreste que varria os relvados despidos, era uma área desolada.

O endereço que Maura procurava parecia ser o mais assustador de todos. O edifício ficava atrás de um muro alto de pedra, coberto por um emaranhado de hera. Uma barricada que o protegia do mundo, pensou ela. Da rua, só se viam os picos góticos de um telhado de ardósia e uma janela alta na empena, que a observava como se fosse um olho negro. Um carro-patrulha estacionado junto do portão principal confirmou-lhe que não se enganara. Por enquanto, os carros que tinham chegado ainda eram poucos as tropas de choque, antes do exército mais numeroso de técnicos que compareceriam no local do crime.

Maura estacionou do outro lado da rua e cruzou os braços à frente do corpo para se proteger da primeira rajada de vento. Quando saiu do carro, escorregou, deixou cair um sapato e mal teve tempo de se agarrar à porta para não se estatelar no chão. Ao endireitar-se, sentiu nos tornozelos os pingos de água gelada que lhe caíam da bainha ensopada do casaco. Por instantes, deixou-se ficar ali, com o gelo a bater-lhe na cara, surpreendida pela rapidez com que tudo acontecera.

Olhou para o agente que estava sentado no carro-patrulha e viu que ele a observava e que a vira escorregar. Ferida no seu amor-próprio, tirou o estojo do banco da frente, fechou a porta e, com a dignidade possível, preparou-se para atravessar a rua coberta de gelo.

Sente-se bem, doutora? perguntou o agente da janela do carro-patrulha, com uma solicitude que não agradou a Maura.

Sinto.

Cuidado com os sapatos. O pátio ainda está mais escorregadio.

Onde está a detective Rizzoli?

Na capela.

E onde é que isso fica?

Não há que enganar. É a porta que tem uma cruz grande por cima.

Maura dirigiu-se para o portão principal, mas encontrou-o fechado à chave. Havia uma sineta de ferro no muro; puxou a corda e o toque medieval dissipou-se lentamente até se ouvir apenas o som mais suave do granizo a cair. Mesmo por baixo da sineta, havia uma placa de bronze, cuja inscrição estava parcialmente coberta por uma pernada de hera acastanhada.

Abadia de Graystones

Irmãs de Nossa Senhora da Luz Divina

"A colheita é farta, mas os jornaleiros são poucos.

Rezai, portanto, para que os jornaleiros façam a colheita."

Do outro lado do portão apareceu de repente uma mulher vestida de negro, tão silenciosa que Maura se assustou ao ver o seu rosto entre as grades. Era o rosto de uma velha, tão engelhado e vincado que parecia à beira do colapso, mas os olhos eram vivos e brilhantes como os de um pássaro. A freira não disse nada, limitando-se a fazer a sua pergunta com o olhar.

Sou a doutora Isles do Instituto de Medicina Legal disse Maura. Foi a polícia que me pediu para vir cá.

O portão abriu-se, com um guincho. Maura entrou no pátio.

Procuro a detective Rizzoli. Creio que está na capela.

A freira apontou para o lado oposto do pátio. Em seguida, virou-lhe as costas e, a arrastar os pés, dirigiu-se lentamente para a porta mais próxima, deixando Maura.

Os flocos de neve rodopiavam e dançavam no meio das agulhas de granizo, como borboletas brancas fazendo rodas à volta das suas primas mais pesadonas. O caminho mais directo era atravessar o pátio, mas o pavimento empedrado estava coberto por uma camada de gelo e os sapatos de Maura, com solas escorregadias, já tinham demonstrado que não eram os mais adequados para aquela superfície. Maura optou pelo estreito corredor coberto que bordejava o pátio. Apesar de estar protegida do granizo, continuava a sentir o vento, que lhe atravessava o casaco. Estava surpreendida com o frio e pensou mais uma vez como o mês de Dezembro podia ser cruel em Boston. Durante muito tempo vivera em São Francisco, onde a queda de neve era uma delícia rara e não um tormento, como estas urtigas que rodopiavam por baixo da aba do telhado e lhe picavam a cara. Encostou-se mais ao edifício e aconchegou o casaco ao corpo quando passou pelas janelas às escuras. Do outro lado do portão vinha o ruído ténue do trânsito em Jamaica Riverway. Mas ali, no interior daqueles muros, reinava o silêncio. Se não fosse a velha freira que lhe abrira a porta, dir-se-ia que o recinto estava abandonado.

Por isso, foi com surpresa que Maura viu três rostos a observá-la de uma das janelas. As freiras formavam um quadro silencioso, como fantasmas vestidos de escuro do outro lado dos vidros, e observavam a intrusa que se embrenhava cada vez mais no seu santuário. O olhar das três mulheres desviou-se à passagem de Maura.

A entrada da capela estava delimitada por um cordão de fita amarela que assinalava o local do crime. A fita descaíra junto da porta e estava coberta por uma camada de gelo. Maura levantou-a, passou por baixo e abriu a porta.

O disparo de uma máquina fotográfica em cheio nos olhos obrigou-a a parar. A porta fechou-se lentamente atrás dela, dissipando a imagem que se formara na sua retina. Já com uma visão mais nítida, deparou com diversos bancos de igreja dispostos em filas, paredes caiadas e um crucifixo enorme pendurado por cima do altar. Era um recinto frio e austero, cujo ambiente lúgubre era acentuado pelas janelas de vitral, que deixavam entrar apenas uma nesga de luz.

Pare! Tenha cuidado com o sítio onde põe os pés disse o fotógrafo.

Maura olhou para o chão de pedra e viu sangue. E pegadas, muitas e misturadas, junto de acessórios médicos. Seringas e ligaduras rasgadas. Aquilo que a equipa de uma ambulância deixara para trás. Mas não viu nenhum cadáver.

Olhou mais adiante e reparou no pano branco enrolado na nave e nas manchas de sangue nos bancos. Via o bafo da sua própria respiração naquela sala gélida, e a temperatura parecia estar a descer. A sua sensação de frio aumentou quando se apercebeu de que as manchas de sangue se sucediam nas várias filas de bancos e só então compreendeu o que tinha acontecido ali.

O fotógrafo recomeçou a disparar a sua máquina e o flashh era uma agressão para os olhos de Maura.

Na parte da frente da capela, surgiu um tufo de cabelos pretos e despenteados. Era a detective Jane Rizzoli, que se levantou e acenou.

Doutora? A vítima está aqui.

E que sangue é este aqui, à porta?

Esse é da outra vítima, a irmã Ursula. Os tipos da Med-Q levaram-na para o Hospital St. Francis. Há mais sangue nessa nave central e umas pegadas que estamos a tentar conservar, portanto talvez seja melhor contorná-las pela sua esquerda. Mantenha-se encostada à parede.

Maura parou para calçar uns sapatos de papel e depois continuou a andar ao longo do perímetro da sala, colada à parede. Só quando se afastou da primeira fila de bancos é que viu o corpo da freira, deitada de barriga para cima. O tecido do hábito era uma mancha negra num lago de sangue. As mãos já tinham sido protegidas para conservar as provas. A juventude da vítima apanhou Maura de surpresa. A freira que a recebera ao portão e as que vira à janela eram mulheres idosas. Esta era muito mais nova. Tinha um rosto etéreo, e dos seus olhos azuis claros, escancarados, emanava uma tranquilidade quase sobrenatural. Na cabeça rapada, o cabelo louro não tinha mais de dois centímetros de comprimento. Todos os golpes terríveis tinham sido desferidos no couro cabeludo, que mais parecia uma coroa deformada.

Chamava-se Camille Maginnes. Irmã Camille. Era de Hyannisport explicou Rizzoli, num tom frio e profissional. Era a primeira noviça desde há quinze anos. Tencionava fazer os votos perpétuos em Maio.

A detective calou-se e depois acrescentou, com uma raiva incontrolável:

Tinha apenas vinte anos.

Tão nova!

Pois. Ele deixou-a desfeita.

Maura calçou as luvas e agachou-se para examinar a destruição. A arma do crime deixara lacerações lineares no couro cabeludo. Na pele rasgada destacavam-se fragmentos de osso e uma porção de massa cinzenta. Apesar de a pele da cara estar em grande parte intacta, tinha um tom arroxeado escuro.

Ela morreu de barriga para baixo. Quem é que a virou?

As irmãs que a encontraram respondeu Rizzoli. Para verificarem se o coração ainda batia.

A que horas é que as vítimas foram descobertas?

Por volta das oito da manhã Rizzoli consultou o relógio de pulso. Há cerca de duas horas.

Sabe o que aconteceu? O que lhe contaram as irmãs?

É difícil arrancar-lhes qualquer dado útil. Só restam catorze irmãs e todas se encontram em estado de choque. Aqui, julgam-se em segurança. Protegidas por Deus. E depois, há um louco qualquer que entra por aqui dentro.

Há sinais de entrada forçada?

Não, mas não é assim tão difícil entrar no recinto. Todos os muros estão cobertos de hera. É possível saltá-los sem grandes problemas. Além disso, há um portão nas traseiras, que dá para um campo, onde elas têm os jardins. Qualquer um podia entrar por aí, também.

E pegadas?

Algumas, aqui. Mas lá fora devem estar cobertas de neve.

Portanto, não sabemos se ele entrou à força. Podem tê-lo deixado entrar pelo portão principal.

Esta é uma ordem de clausura, doutora. Ninguém pode transpor o portão principal excepto o pároco, quando vem rezar missa e ouvi-las em confissão. E também há uma senhora que trabalha na residência paroquial. Deixam-na trazer a filha quando não consegue arranjar quem fique com ela. Mas é isto. Não entra mais ninguém sem a autorização da madre superiora. Elas só saem para ir ao médico ou em situações de emergência familiar.

Com quem é que falou até agora?

Com a superiora, a madre Mary Clement. E com as duas freiras que encontraram as vítimas.

O que lhe disseram? Jane Rizzoli abanou a cabeça.

Não viram nada, não ouviram nada. Não creio que as outras nos consigam dizer muita coisa, também.

Porquê?

Reparou na idade delas?

Isso não significa que tenham perdido as faculdades mentais.

Uma teve uma trombose e duas sofrem da doença de Alzheimer. A maioria dorme em quartos que não dão para o pátio e portanto não viram nada.

A princípio, Maura limitou-se a inclinar-se sobre o corpo de Camille, sem lhe tocar. Quis conceder à vítima um derradeiro momento de dignidade. Agora, nada te pode magoar, pensou ela. Começou a palpar-lhe o couro cabeludo e sentiu o estalido provocado pelos fragmentos de osso a deslocarem-se debaixo da pele.

Golpes múltiplos. Todos eles desferidos no cimo da cabeça ou na parte posterior do crânio...

E as equimoses na face? É apenas lividez?

É. E não vai aumentar.

Então os golpes vieram de trás. E de cima.

Talvez o agressor fosse mais alto.

Ou ela estivesse ajoelhada. E ele estivesse num plano superior. Maura ficou imóvel, sem afastar as mãos da carne fria, chocada

com a imagem impressionante daquela jovem freira, ajoelhada aos pés do agressor que lhe golpeava a cabeça inclinada.

Mas quem será o patife que anda a espancar freiras? Que raio de mundo é este?

Maura estremeceu ao ouvir as palavras de Jane Rizzoli. Embora já não se lembrasse da última vez em que pusera os pés numa igreja e tivesse deixado de acreditar há uns anos, o facto de ouvir tais impropérios num espaço sagrado perturbava-a, soava-lhe a profanação. Tal era a força da doutrinação na infância. Nem ela, para quem os santos e os milagres não passavam agora de fantasias, se atreveria a praguejar na presença da cruz.

Mas Jane Rizzoli estava furiosa e nem reparava no que dizia, mesmo naquele lugar sagrado. Estava mais despenteada do que era habitual, com uma juba negra e revolta que a geada derretida tornava ainda mais brilhante. Os ossos angulosos da face destacavam-se na pele clara. Na semiobscuridade da capela, os olhos dela pareciam tições, rubros de fúria. A raiva justificada sempre fora o incentivo de Rizzoli, aquilo que a levava a perseguir os monstros. Mas nesse dia tinha um ar febril e o rosto mais magro, como se o fogo que a consumia viesse de dentro.

Maura não quis alimentar essas chamas. Conservou um tom desapaixonado e profissional. Era uma cientista, lidava com factos e não com emoções.

Pegou no braço da irmã Camille e verificou a articulação do cotovelo.

Está flácida. Não há rigor mortis.

Menos de cinco, seis horas, hem?

Também está frio aqui dentro.

Jane Rizzoli riu-se, exalando uma baforada de vapor na atmosfera gelada.

Não brinque comigo!

Eu diria que a temperatura é quase negativa. Se assim for, o rigor mortis é retardado.

Por quanto tempo?

Quase indefinidamente.

E a cara dela? As equimoses?

O rigor mortis pode não ter mais de meia hora. Isso não nos ajuda muito a calcular a hora da morte.

Maura abriu o seu estojo e tirou o termómetro para medir a temperatura ambiente. Reparou nas várias camadas de roupa da vítima e resolveu não medir a temperatura rectal enquanto o corpo não fosse transportado para a morgue. O recinto estava mal iluminado, não era um local em que ela pudesse apurar com rigor se houvera ou não abuso sexual antes de inserir o termómetro. Além disso, se lhe despisse as roupas poderia eliminar provas. Optou por tirar uma seringa para recolher humor vítreo, o que lhe permitiria medir os níveis de potássio e, desse modo, calcular a hora da morte.

Fale-me da outra vítima pediu Maura, ao mesmo tempo que espetava o olho esquerdo da morta e recolhia humor vítreo com a seringa.

Impressionada, Rizzoli gemeu e virou a cara para o lado.

A vítima que foi encontrada à porta era a irmã Ursula Rowland, de sessenta e oito anos. Devia ser uma velha rija. Eles disseram que ela ainda mexia os braços quando a levaram para a ambulância. Eu e o Frost chegámos aqui precisamente quando eles iam a sair.

Qual a gravidade dos ferimentos dela?

Não a vi. Segundo as últimas notícias que tivemos do Hospital St. Francis, está a ser operada. Fracturas múltiplas no crânio e hemorragias cerebrais.

Tal como esta vítima.

Pois. Como a Camille.

A raiva regressara à voz de Rizzoli.

Maura levantou-se e continuou a tremer. A bainha ensopada do casaco molhara-lhe as calças e ela sentia os tornozelos envolvidos em gelo. Como lhe haviam dito ao telefone que o local do crime não era ao ar livre, não trouxera o cachecol nem as luvas que tinha no carro. Mas aquele recinto sem aquecimento era pouco mais quente do que o pátio lá fora. Enfiou as mãos nas algibeiras do casaco e não percebeu como é que Rizzoli, que também não trouxera luvas nem cachecol, conseguia estar há tanto tempo numa capela tão fria. Aparentemente, a detective dispunha da sua própria fonte de calor, a febre da sua indignação e, apesar de estar a ficar com os lábios roxos, não tinha pressa de sair dali.

Porque está tanto frio aqui dentro? perguntou Maura. Não posso imaginar que elas quisessem assistir à missa nesta sala.

E não assistem. Esta parte do edifício nunca é utilizada no Inverno. Sairia muito caro aquecê-la. Afinal, são tão poucas as que ainda aqui vivem. A missa é celebrada numa capela mais pequena, ao lado da residência paroquial.

Maura pensou nas três freiras que tinha visto à janela, todas elas idosas. Estavam mesmo a apagar-se, uma por uma.

Se esta capela não é utilizada, o que estavam as vítimas a fazer aqui?

Rizzoli suspirou, soltando uma baforada de vapor, como se fosse um dragão.

Ninguém sabe. A superiora diz que a última vez que viu as irmãs Ursula e Camille foi durante as orações de ontem à noite, por volta das nove horas. Como elas não apareceram para as orações da manhã, as irmãs foram à procura. Nunca esperaram vir encontrá-las aqui.

Estes golpes todos na cabeça... Parecem ser o resultado de um ataque de fúria, pura e simplesmente.

Mas repare na cara dela disse Rizzoli, apontando para Camille. Ele não a atingiu na cara. Poupou-a, o que torna a coisa muito menos pessoal. Como se não se dirigisse especificamente a ela, mas ao que ela é. Ao que ela representa.

A autoridade? O poder? perguntou Maura.

É curioso! Eu inclinar-me-ia mais para fé, esperança, caridade.

Bem, eu frequentei um liceu católico.

Você? Ninguém diria retorquiu Rizzoli, dando uma gargalhada.

Maura inspirou uma boa lufada de ar frio e olhou para o crucifixo, recordando os anos que passara na Holy Innocents Academy. E os tormentos especiais infligidos pela irmã Magdalene, que dava aulas de História. O tormento não fora físico, mas emocional, aplicado por uma mulher que tinha facilidade em identificar as raparigas que, na sua opinião, pecavam por um excesso indecoroso de autoconfiança. Aos catorze anos, os melhores amigos de Maura não eram pessoas, mas livros. Impusera-se com facilidade às colegas de turma e orgulhava-se disso. Fora isto que fizera com que a ira da irmã Magdalene se abatesse sobre ela. Para o próprio bem de Maura, aquele orgulho pecaminoso de que o seu intelecto padecia teria de ser domado e transformado em humildade. E a irmã Magdalene entregou-se a essa tarefa com um gosto perverso. Ridicularizava Maura nas aulas, escrevia comentários incisivos nas margens dos seus testes imaculados e suspirava acintosamente sempre que Maura levantava a mão para fazer uma pergunta. E Maura acabara por ficar reduzida ao silêncio.

Elas intimidavam-me explicou Maura. As freiras.

Julguei que nada a assustava, doutora.

Há muitas coisas que me assustam. Rizzoli soltou uma gargalhada.

Mas não os cadáveres, pois não?

Há coisas muito mais assustadoras neste mundo do que os cadáveres.

Deixaram o corpo de Camille deitado no seu leito de pedra e contornaram o recinto até chegarem ao sítio em que Ursula fora encontrada, ainda viva. O fotógrafo acabara o seu trabalho e fora-se embora. Maura e Rizzoli ficaram na capela, sozinhas, a ouvir o eco das suas próprias palavras. Maura sempre considerara que as capelas eram santuários universais, onde até o espírito daqueles que não acreditavam poderia encontrar conforto. Mas não se sentia confortada neste lugar desolado, onde a Morte entrara, desprezando os símbolos sagrados.

Foi precisamente aqui que encontraram a irmã Ursula disse Rizzoli. Estendida no chão, com a cabeça virada para o altar e os pés virados para a porta.

Como se se tivesse prostrado diante do crucifixo.

Este tipo é um animal nojento comentou Rizzoli, cujas palavras indignadas eram cortantes como pedaços de gelo. É com isso que temos de lidar. Um louco. Ou algum idiota charrado à procura de qualquer coisa para roubar.

Não sabemos se é um homem.

Rizzoli apontou para o corpo da irmã Camille.

Acha que foi uma mulher que fez aquilo?

Uma mulher é capaz de manejar um martelo, de esmagar um crânio.

Descobrimos uma pegada. Ali, no meio da nave. Pareceu-me ser de um sapato de homem número quarenta e dois.

Não será de alguém que veio na ambulância?

Não. As pegadas da equipa da Med-Q estão aqui, junto da porta. A da nave é diferente. É dele.

O vento soprava, fazendo estremecer os vidros das janelas, e a porta chiava como se umas mãos invisíveis a abanassem, desejosas de entrar. Os lábios de Rizzoli estavam roxos e o seu rosto adquirira uma palidez cadavérica, mas aparentemente a detective não tencionava encontrar um sítio mais quente. Rizzoli era assim mesmo, demasiado teimosa para ser a primeira a capitular, a admitir que atingira o seu limite.

Maura olhou para o chão de pedra em que a irmã Ursula estivera caída e não pode deixar de concordar com a intuição de Rizzoli. Aquela agressão fora um acto de insanidade. Era loucura o que ela via naquelas manchas de sangue. Nos golpes desferidos no crânio da irmã Ursula. Ou loucura ou maldade.

Sentiu um calafrio na espinha. Endireitou-se, a tremer, e contemplou o crucifixo.

Estou a enregelar disse ela. Podemos aquecer-nos em qualquer lado? Tomar um café?

Já acabou o que tinha a fazer aqui?

Já vi o que precisava de ver. A autópsia dir-nos-á o resto.

 

Saíram da capela, pisando a fita da polícia que entretanto caíra da porta e estava revestida de gelo. O vento fustigou-lhes o casaco e o rosto enquanto percorriam a passagem coberta, com os olhos semicerrados para se protegerem das investidas impiedosas dos flocos de neve. Assim que entraram num átrio sombrio, Maura sentiu um sopro de ar um pouco mais quente no rosto entorpecido. Cheirou-lhe a ovos, a tinta velha e ao mofo de um sistema de aquecimento antigo que libertava pó.

Atraídas pelo tilintar da louça, desceram um corredor mal iluminado que desembocava numa divisão inundada de luz fluorescente, um pormenor de uma modernidade desconcertante. A luz projectava-se, intensa e implacável, nas faces engelhadas das freiras sentadas à volta de uma mesa escalavrada. "Eram treze um número aziago. Estavam concentradas em quadrados de tecido com um padrão floral de cores claras, fitas de seda e tabuleiros cheios de alfazema seca e pétalas de rosa. Era a hora dos lavoures, pensou Maura, observando o modo como as mãos tolhidas pela artrite enchiam os saquinhos com as plantas e os atavam com a fita. Uma das freiras encontrava-se numa cadeira de rodas. Estava inclinada para o lado, com a mão esquerda enrolada como uma garra sobre o braço da cadeira, e tinha um rosto flácido que mais parecia uma máscara parcialmente derretida. A sequela cruel de uma trombose. No entanto, foi a primeira a reparar nas duas intrusas e soltou um gemido. As outras irmãs levantaram a cabeça e viraram-se para Maura e Jane Rizzoli.

Ao contemplar aqueles rostos encarquilhados, Maura ficou surpreendida com a sua fragilidade. Não eram as imagens fortes de autoridade que recordava da sua infância, eram expressões confusas e aturdidas que procuravam nela respostas para a tragédia que as atingira.

Maura sentiu-se pouco à vontade na sua nova situação, como uma criança crescida que se apercebe pela primeira vez de que ela e os pais inverteram os papéis.

Alguém me sabe dizer onde está o detective Frost? perguntou Jane Rizzoli.

Quem respondeu foi uma mulher com um ar mortificado, que acabara de sair da cozinha com um tabuleiro cheio de chávenas de café e pires. Vestia uma bata azul desbotada com nódoas de gordura. Na mão esquerda, um pequeno diamante destacava-se no meio da espuma da água de lavar a louça. Não era uma freira, pensou Maura, mas a empregada da residência paroquial, que cuidava daquela comunidade ainda mais débil.

Ele ainda está a falar com a madre respondeu a mulher. Inclinou a cabeça na direcção da porta, e soltou-se-lhe uma madeixa de cabelo castanho encaracolado que lhe caiu sobre a testa franzida. O gabinete dela é ao fundo do corredor.

Eu sei o caminho disse Rizzoli, com um gesto de cabeça.

Saíram da sala, furtando-se àquela luz desagradável, e continuaram a descer o corredor. Maura sentiu uma corrente de ar frio, como se tivesse acabado de passar por um fantasma. Não acreditava na vida depois da morte, mas quando seguia os passos de alguém que tinha morrido há pouco tempo, às vezes perguntava a si própria se o falecimento não deixara atrás algum sinal, algum ligeiro sobressalto, algum resquício de energia que outros pudessem sentir.

Rizzoli bateu à porta do gabinete da madre.

Entre! respondeu uma voz trémula.

Ao entrar, Maura sentiu o aroma do café, tão delicioso como o de um perfume, e reparou nos painéis de madeira escura e num crucifixo singelo pendurado na parede por cima de uma secretária de carvalho. Do outro lado da secretária estava uma freira curvada, cujos olhos azuis, ampliados pelos óculos, se assemelhavam a lagos enormes. Parecia tão velha como as suas frágeis irmãs sentadas à mesa da residência paroquial, e as lentes, grossas e pesadas, como que a obrigavam a debruçar-se sobre a secretária. Mas o olhar era vivo e irradiava inteligência.

O colega de Rizzoli, Barry Frost, pousou imediatamente a chávena de café e levantou-se por delicadeza. Frost era o equivalente a um irmão mais novo, o único elemento da unidade de homicídios que entrava numa sala de interrogatórios e conseguia convencer o suspeito de que era o seu melhor amigo. Além disso, era o único que aparentemente nunca se importava de trabalhar com a finória da Rizzoli, que naquele momento lançava um olhar de censura à sua chávena de café, sem dúvida registando o facto de o colega estar confortavelmente instalado numa sala aquecida, enquanto ela tremia de frio na capela.

Reverenda madre, apresento-lhe a doutora Isles, do Instituto de Medicina Legal. Doutora, esta é a madre Mary Clement.

Maura apertou a mão da madre. Era uma mão deformada, e a pele parecia papel ressequido. Ao cumprimentá-la, Maura reparou no punho bege que saía da manga preta. Então era assim que as freiras suportavam o frio naquele edifício. Por baixo do hábito de lã, a madre usava roupa interior.

Os olhos azuis observaram-na através das lentes grossas.

Do Instituto de Medicina Legal... Quer dizer que é médica?

Sou. Patologista.

Estuda as causas da morte?

Exactamente.

A madre calou-se, como se ganhasse coragem para fazer a pergunta seguinte:

Já entrou na capela? Já viu...

Maura fez um sinal afirmativo. Queria evitar a pergunta que adivinhava, mas era incapaz de ser indelicada para com uma freira. Apesar de já ter quarenta anos, ainda ficava perturbada ao ver um hábito negro.

Ela... A voz de Mary Clement resumia-se a um murmúrio. A irmã Camille sofreu muito?

Lamento não ter ainda respostas. Só quando concluir a... O exame.

A autópsia, queria ela dizer, mas o termo pareceu-lhe demasiado frio, demasiado clínico, para os ouvidos recatados de Mary Clement. Além disso, não queria revelar a terrível verdade. Imaginava o que tinha acontecido a Camille. Alguém confrontara a jovem na capela. Alguém a perseguira quando ela fugira, aterrada, para a nave, e lhe arrancara o véu branco de noviça. Quando os golpes do agressor lhe atingiram o couro cabeludo, o sangue espirrou para os bancos, mas ela continuou a avançar, até que caiu de joelhos, derrotada, aos pés dele. Mesmo assim, o agressor não parou. Mesmo assim, continuou a espancá-la, esmagando-lhe o crânio como se fosse um ovo.

Evitando o olhar de Mary Clement, Maura fitou o crucifixo de madeira pendurado na parede atrás da secretária, mas esse símbolo imponente já não foi para ela uma fonte de conforto.

Ainda não vimos os quartos atalhou Jane Rizzoli. Como era habitual, o seu profissionalismo veio à superfície,

levando-a a concentrar-se apenas na tarefa seguinte. Mary Clement conteve as lágrimas.

É verdade. Eu ia agora mesmo conduzir o detective Frost aos aposentos delas.

Estamos à sua disposição rematou Rizzoli.

A madre tomou a dianteira e subiu uma escada iluminada apenas pela luz do dia que entrava por uma janela de vitral. Num dia sem nuvens, o sol teria pintado as paredes com uma rica paleta de cores, mas nessa manhã invernosa só se viam sombras.

Agora os quartos lá de cima estão quase todos vazios. Ao longo dos anos, fomos mudando as irmãs cá para baixo, uma por uma disse Mary Clement, subindo devagar e agarrando-se ao corrimão como que para içar o corpo.

Com receio que ela se desequilibrasse, Maura seguia atrás, retesando-se sempre que a madre parava, a cambalear.

O joelho da irmã Jacinta anda a incomodá-la e também tenho de lhe arranjar um quarto cá em baixo. E agora a irmã Helen tem dificuldades respiratórias. Já somos tão poucas...

É um edifício bastante grande para conservar disse Maura.

E velho.

A madre parou para recuperar o fôlego. Depois acrescentou com um sorriso triste:

Velho como nós. E com uma manutenção tão dispendiosa! Chegámos a pensar que teríamos de o vender, mas Deus contemplou-nos com uma solução.

Qual?

Recebemos um donativo, o ano passado. Agora começámos as obras de remodelação. As telhas de ardósia da cobertura são novas e isolámos o sótão. A seguir, tencionamos substituir a caldeira. Acredite ou não, este edifício está muito confortável, comparado com o que era há um ano disse ela, olhando de novo para Maura.

A madre respirou fundo e recomeçou a subir a escada, com as contas do rosário a tilintar.

Chegámos a ser quarenta e cinco. Quando eu vim para Graystones, todos os quartos estavam ocupados. Nas duas alas. Mas agora somos uma comunidade envelhecida.

Quando veio para cá, reverenda madre? perguntou Maura.

Entrei como postulante com dezoito anos. Havia um jovem cavalheiro que queria casar comigo. O orgulho dele ficou bastante ferido quando o troquei por Deus. A freira parou e olhou para trás. Pela primeira vez, Maura reparou que ela usava um aparelho auditivo por baixo da touca. Talvez não consiga imaginar, não é verdade, doutora Isles? Que eu já fui tão nova?

Não, Maura não conseguia imaginar. Não conseguia imaginar que Mary Clement tivesse sido outra coisa excepto a relíquia vacilante que era agora. E muito menos uma mulher desejável, perseguida pelos homens.

Quando chegaram ao cimo da escada, viram um longo corredor. Estava mais quente ali, quase agradável, talvez porque os tectos baixos e escuros conservavam mais o calor. As vigas pareciam ter pelo menos um século. A madre encaminhou-se para o segundo quarto e hesitou, com a mão no puxador da porta. Por fim, abriu-a e a luz acinzentada que vinha do interior projectou-se no seu rosto.

Este é o quarto da irmã Ursula disse ela em voz baixa. O quarto era tão pequeno que mal cabiam lá todos ao mesmo tempo. Frost e Rizzoli entraram, mas Maura ficou à porta, a observar as estantes recheadas de livros e os vasos com belas violetas africanas. Com janelas de pinázios e o tecto baixo de vigas salientes, o quarto parecia medieval. A mansarda alinhada de uma estudiosa, cuja mobília se reduzia a uma cama simples, uma cómoda, uma secretária e uma cadeira.

A cama está feita disse Rizzoli, olhando para os lençóis bem esticados.

Foi assim que a encontrámos esta manhã esclareceu Mary Clement.

Ela não se deitou ontem à noite?

É mais provável que se tenha levantado cedo. É o costume.

A que horas?

Ela levanta-se muitas vezes antes das matinas.

Matinas? perguntou Frost.

Das nossas orações da manhã, às sete horas. No Verão passado, saiu sempre cedo, para o jardim. Ela adora trabalhar no jardim.

E no Inverno? perguntou Jane. O que faz ela tão cedo?

Seja qual for a estação, há sempre coisas a fazer, para aquelas de nós que ainda conseguem trabalhar. Mas agora, muitas das irmãs já não têm forças. Este ano, tivemos de contratar Mistress Otis para nos ajudar na cozinha. Mesmo com a ajuda dela, mal conseguimos dar conta do recado.

Rizzoli abriu a porta do roupeiro. Lá dentro estava uma colecção austera de vestes pretas e castanhas. Nem uma nota de cor ou de embelezamento. Era o guarda-roupa de uma mulher para a qual só a obra do Senhor era importante, para a qual o estilo da roupa estava apenas ao Seu serviço.

- Estas são as únicas roupas que ela tem? O que estou a ver neste roupeiro? perguntou Rizzoli.

Fazemos um voto de pobreza quando ingressamos na ordem.

Isso significa que renunciam a tudo o que vos pertence? Mary Clement reagiu com o sorriso paciente de quem responde a criança que acabou de fazer uma pergunta absurda.

Não é assim tão difícil, detective. Ficamos com os nossos livros e com algumas recordações pessoais. Como pode ver, a irmã Ursula gosta das suas violetas africanas. Mas sim, deixamos quase tudo para trás quando vimos para cá. Esta é uma ordem contemplativa, e não nos agradam as distracções do mundo exterior.

Desculpe, reverenda madre disse Frost. Não sou católico e, portanto, não sei o que significa essa palavra. O que é uma ordem contemplativa?

A pergunta fora bastante respeitosa, e Mary Clement concedeu-lhe um sorriso mais caloroso do que aquele que dispensara a Jane Rizzoli.

Uma freira contemplativa leva uma vida de reflexão. Uma vida de oração, devoção e meditação. É por isso que nos refugiamos cá dentro, que não recebemos visitas. A clausura é um conforto para nós.

E se alguma violar as regras? perguntou Rizzoli. Expulsam-na?

Maura reparou que Frost estremecera ao ouvir a pergunta tão directa da colega.

As nossas regras são voluntárias respondeu Mary Clement. Acatamo-las porque é esse o nosso desejo.

Mas, de vez em quando, deve haver uma freira que acorda um dia e diz: "Apetece-me ir à praia."

Isso não acontece.

Tem de acontecer. São seres humanos.

Não acontece.

Ninguém viola as regras? Ninguém salta o muro?

Não precisamos de sair da abadia. Mistress Otis faz-nos as compras. O padre Brophy satisfaz as nossas necessidades espirituais.

E as cartas? Os telefonemas? Mesmo nas prisões de alta segurança, é possível fazer um telefonema de vez em quando.

Frost abanava a cabeça, com uma expressão dorida.

Temos aqui um telefone, para emergências respondeu Mary Clement

E qualquer pessoa pode utilizá-lo?

Para quê?

E a correspondência? Recebem cartas?

Algumas de nós optaram por não aceitar correspondência.

E se quiserem enviar uma carta?

A quem?

Isso é importante?

O sorriso de Mary Clement denotava agora tensão e cansaço.

Só posso repetir o que disse, detective. Não somos prisioneiras. Optámos por viver desta maneira. As que não concordarem com estas regras, podem sair.

E o que fariam, lá fora?

Talvez julgue que não sabemos o que é o mundo. Mas algumas irmãs trabalharam em escolas e em hospitais.

julguei que viver em clausura implicava não sair do convento.

Às vezes, Deus convoca-nos para tarefas no exterior destes muros. Há uns anos, a irmã Ursula sentiu o Seu chamamento para servir no estrangeiro e foi-lhe concedida autorização para viver lá fora e manter os seus votos.

Mas voltou.

O ano passado.

Não lhe agradou aquilo lá fora, o mundo?

A missão dela na índia não foi fácil. E houve violência, um ataque terrorista à aldeia em que ela estava. Foi então que ela voltou para nós. Aqui, sentiu-se de novo em segurança.

Ela não podia ir para casa da família?

O parente mais próximo era um irmão, que morreu há dois anos. Agora, nós somos a família dela e Graystones é a sua casa. Quando está cansada do mundo e precisa de conforto, não vai para casa, detective? perguntou a madre com ternura.

Aparentemente, esta resposta desestabilizou Rizzoli. A detective desviou o olhar para a parede em que estava o crucifixo e, com a mesma rapidez, olhou para outro lado.

Reverenda madre?

A mulher da bata azul com nódoas de gordura estava no corredor, a olhar para elas com uma expressão neutra e indiferente. Tinham-se soltado mais algumas madeixas do seu rabo-de-cavalo que lhe caíam sobre a face angulosa.

O padre Brophy diz que vem a caminho para falar com os repórteres. Mas já são tantos a telefonar que a irmã Isabel tirou mesmo agora o telefone do descanso. Não sabe o que lhes há-de dizer.

Eu já lá vou, Mistress Otis. A madre virou-se para Rizzoli. Como pode ver, estamos assoberbadas. Por favor, fique aqui o tempo que for preciso. Eu estarei lá em baixo.

Já agora, qual é o quarto da irmã Camille? perguntou Jane.

É a quarta porta.

E não está fechada à chave?

Estas portas não têm fechadura. Nunca tiveram respondeu Maiy Clement.

O cheiro a lixívia e a sabão foi a primeira coisa de que Maura se apercebeu ao entrar no quarto da irmã Camille. Tal como o da irmã Ursula, tinha uma janela de pinázios que dava para o pátio e o mesmo tecto baixo com vigas salientes. Mas, enquanto o quarto de Ursula parecia habitado, o de Camille estava tão esfregado e limpo que parecia esterilizado. As paredes caiadas estavam nuas, com excepção de um crucifixo de madeira pendurado em frente da cama. Devia ser a primeira coisa que Camille via todos os dias ao acordar, um símbolo da sua existência monodirigida. Era o quarto de uma penitente.

Maura olhou para o soalho e reparou que havia zonas em que, de tanto esfregar, o verniz desaparecera e a madeira estava mais clara. Imaginou a jovem e frágil Camille de joelhos, agarrada à palha-de-aço, a raspar... O quê? Manchas seculares? Todos os vestígios das mulheres que ali tinham vivido antes dela?

Céus! exclamou Rizzoli. Se o asseio for uma característica da santidade, esta mulher era uma santa.

Maura aproximou-se da secretária junto da janela, onde estava um livro aberto: Saint Brigid of Ireland: A Biography. Imaginou Camille a ler naquela secretária antiga, com a luz do dia a dançar nas suas feições delicadas. Interrogou-se se, nos dias de calor, Camille alguma vez tirara o véu branco e se deixara ficar de cabeça nua, para que a brisa que entrava pela janela lhe arejasse o cabelo louro rapado.

Aqui há sangue disse Frost.

Maura virou-se e viu o detective ao pé da cama, a olhar para os lençóis amarrotados.

Jane puxou a colcha para trás, revelando manchas vermelho-vivo no lençol de baixo.

Sangue menstrual esclareceu Maura.

Reparou que Frost corara e virara as costas. Até os homens casados eram melindrosos quando estavam em causa pormenores íntimos do corpo das mulheres.

O toque da sineta levou Maura a olhar de novo para a janela. Viu uma freira a sair do edifício para ir abrir o portão. Quatro pessoas de impermeável amarelo entraram no pátio.

Chegaram os peritos observou Maura

Vou ter com eles lá abaixo disse Frost, saindo do quarto.

Continuava a cair granizo que embatia nos vidros da janela, formando uma camada de gelo que impedia Maura de ver o pátio com nitidez. Mas conseguiu distinguir Frost a sair e a ir ao encontro da equipa de peritagem. Mais invasores que violavam a santidade da abadia. E, do outro lado do muro, outros aguardavam também a sua oportunidade de entrar. Maura avistou a carrinha de uma estação de televisão a passar pelo portão, decerto com as câmaras a funcionar. Como teriam dado com a morada tão depressa? Seria o cheiro da morte assim tão intenso?

Virou-se para Rizzoli.

Você é católica, Jane, não é?

Rizzoli fungou e continuou a vasculhar no roupeiro de Camille.

Eu? Deixei de ir à catequese.

Quando é que deixou de acreditar?

Mais ao menos quando deixei de acreditar no Pai Natal. Nem sequer fiz o crisma, o que ainda hoje lixa o juízo ao meu pai. Céus, mas que roupeiro tão monótono! Vejamos, o que hei-de vestir hoje? O hábito preto ou o castanho? Por que motivo é que uma rapariga no seu perfeito juízo havia de querer ser freira?

Nem todas as freiras usam hábito. Desde o Concílio Vaticano II que é assim.

Pois, mas essa coisa da castidade não mudou. Imaginem! Uma vida inteira sem sexo!

Não sei disse Maura. Talvez seja um alívio deixar de pensar em homens.

Não tenho a certeza de que isso seja possível. Jane fechou o roupeiro e examinou lentamente o quarto, à procura de... De quê? Da chave para compreender a personalidade de Camille? De uma explicação para o facto de a vida dela ter acabado tão cedo, de uma forma tão brutal? Mas ali não havia pistas visíveis. Era um quarto em que todos os vestígios da sua ocupante tinham sido eliminados. Talvez este fosse o traço mais revelador da personalidade de Camille. Uma jovem a esfregar, sempre a afastar a sujidade. O pecado.

Rizzoli aproximou-se da cama e pôs-se de gatas para espreitar por baixo.

Meu Deus! Isto aqui em baixo está tão limpo que até se podia comer no chão.

O vento fez abanar a janela e o granizo fustigou os vidros. Maura virou-se e viu Frost e os membros da equipa de peritagem a dirigirem-se para a capela. Um dos técnicos escorregou de repente e levantou os braços como um patinador para tentar manter-se de pé. Todos tentamos manter-nos de pé, pensou Maura. Resistindo à tentação, tal como tentamos resistir à força da gravidade. E quando caímos, é sempre uma surpresa.

A equipa entrou na capela, e ela imaginou-os de pé, em círculo, a observar em silêncio o sangue da irmã Ursula, rodeados de baforadas de vapor que assinalavam a sua respiração.

Ouviu um baque atrás de si.

Virou-se e ficou alarmada. Rizzoli estava sentada no chão junto à cadeira tombada, com a cabeça entre os joelhos.

Jane! Maura ajoelhou-se junto dela. Jane? A detective afastou-a com a mão.

Eu estou bem. Eu estou bem...

O que aconteceu?

Eu só... Acho que me levantei demasiado depressa. Estou apenas um pouco tonta...

Rizzoli tentou endireitar-se, mas apressou-se a baixar a cabeça outra vez.

Devia deitar-se.

Não é preciso. Dê-me só um minuto para desanuviar. Maura lembrou-se que Rizzoli não estava com bom aspecto na capela, tinha o rosto muito pálido e os lábios roxos. Nessa altura, calculou que fosse por causa do frio. Agora estavam numa sala quente e Rizzoli parecia igualmente esgotada.

Tomou o pequeno-almoço esta manhã? perguntou Maura.

Hum...

Não se lembra?

Sim, acho que sim. Mais ou menos.

O que quer dizer com isso?

Comi uma torrada. Rizzoli afastou a mão de Maura, recusando com impaciência qualquer tipo de ajuda. Era por causa deste terrível orgulho que às vezes se tornava tão difícil trabalhar com ela. Acho que estou a ficar com gripe.

Tem a certeza que não é mais nada?

Rizzoli afastou o cabelo do rosto e levantou-se devagar.

Tenho. E não devia ter bebido tantos cafés esta manhã.

Quantos?

Três... Talvez quatro.

Não está a exagerar?

Eu precisava de cafeína. Mas agora sinto um buraco no estômago. Apetece-me vomitar.

Eu acompanho-a à casa de banho.

Não. Rizzoli afastou-a. Eu consigo desenvencilhar-me sozinha, está bem?

Levantou-se devagar e deixou-se ficar parada por alguns instantes, como se não confiasse nas suas forças. Depois, empinou os ombros e, com um assomo da sua arrogância habitual, saiu do quarto.

O toque da sineta obrigou Maura a espreitar de novo pela janela. Mais uma vez, a velha freira saiu do edifício e atravessou a custo o pátio empedrado para responder à chamada. O novo visitante nem precisou de justificar-se; a freira abriu imediatamente o portão. Um homem de sobretudo preto entrou no pátio e pousou a mão no ombro da freira. Era um gesto de conforto e de familiaridade. Dirigiram-se ambos para o edifício. O homem caminhava devagar, acompanhando o passo da velha tolhida pela artrite, de cabeça baixa como se não quisesse perder nada do que ela dizia.

A meio caminho, parou de repente e olhou para cima, como se, sentisse que Maura estava a observá-lo.

Por instantes, os olhares de ambos cruzaram-se através da janela. Maura viu um rosto magro e impressionante e uma cabeça de cabelos negros despenteados pelo vento. E apercebeu-se de uma superfície branca, por baixo da gola levantada do sobretudo preto.

Era um padre.

Quando Mrs. Otis anunciou que o padre Brophy ia a caminho da abadia, Maura imaginara que se tratava de um homem idoso e de cabelo grisalho. Mas o indivíduo que a encarava agora era novo, não tinha mais de quarenta anos.

Ele e a freira continuaram a dirigir-se para o edifício, e Maura deixou de os ver. O pátio voltou a ficar deserto, mas a neve pisada conservava as marcas de todos os que a tinham atravessado nessa manhã.

A equipa de recolha da morgue estava a chegar com a maca, e as pegadas seriam ainda mais numerosas.

Maura respirou fundo, temendo o regresso à capela fria e à tarefa sinistra que a aguardava. Saiu do quarto e foi ao encontro da sua equipa.

 

Jane Rizzoli aproximou-se do lavatório e, ao olhar para o espelho não gostou do que viu. Não pôde deixar de se comparar com a elegante Dra. Isles, que tinha sempre um aspecto magnífico, sereno e controlado, com os cabelos pretos no seu lugar e o batom vermelho e brilhante que se destacava na pele impecável. A imagem que Rizzoli viu no espelho não era serena nem imaculada. O seu cabelo estava tão desgrenhado como o de um espírito celta e os caracóis negros sobrepunham-se ao rosto pálido e esgotado. Nem pareço eu, pensou ela. E não reconheço esta mulher que olha para mim. Quando me transformei nesta estranha?

De repente, teve outro acesso de náusea e fechou os olhos, lutando contra ela, resistindo-lhe tão ferozmente como se disso dependesse a sua vida. Mas nem toda "a força de vontade do mundo podia afastar o inevitável. Levou a mão à boca e correu para a cabine mais próxima, onde chegou mesmo a tempo. Depois de ter esvaziado o estômago, ficou ali com a cabeça inclinada sobre a sanita, sem se atrever a sair daquele lugar seguro. Pensou: Tem de ser da gripe. Por favor, que seja da gripe.

Quando o enjoo passou, sentiu-se tão cansada que se sentou na sanita, encostando-se à parede. Pensou no trabalho que tinha à sua frente. Todas as entrevistas que ainda havia a fazer, a frustração de tentar arrancar qualquer informação útil àquela comunidade de mulheres aturdidas e silenciosas. E o pior de tudo, estar presente enquanto os técnicos periciais levassem a cabo a sua microscópica caça ao tesouro. Em geral, era ela que ansiava por provas, sempre mais provas, era ela que procurava controlar todos os locais do crime. E agora estava enfiada numa casa de banho, relutante em envolver-se a fundo no caso, ao contrário do que sempre tentava fazer. Apetecia-lhe esconder-se ali, no meio daquele silêncio abençoado, onde ninguém pudesse ver a agitação que o seu rosto denunciava. Perguntou a si própria se a Dra. Isles já teria reparado em alguma coisa; talvez não. A patologista parecia sempre mais interessada nos mortos do que nos vivos e, quando era confrontada com uma cena de homicídio, era o cadáver que mais lhe despertava a atenção.

Por fim, Jane Rizzoli endireitou-se e saiu da cabine. A cabeça estava mais desanuviada e o estômago acalmara. O fantasma da velha Rizzoli regressava de novo à sua pele. No lavatório, encheu a boca de água fria para eliminar o sabor a azedo e molhou o rosto. Anima-te, rapariga. Não sejas piegas. Se eles virem um buraco na tua carapaça, tentarão aumentá-lo. É sempre assim. Rizzoli agarrou num toalhete de papel, enxugou o rosto e preparava-se para o deitar no cesto dos papéis, quando parou, lembrando-se da cama da irmã Camille. Do sangue nos lençóis.

O cesto dos papéis estava quase cheio. Entre o monte de toalhetes, encontrava-se um pequeno embrulho de papel higiénico. Vencendo a repugnância, desfez o embrulho. Embora já soubesse o que estava lá dentro, ficou perturbada ao ver o sangue menstrual de outra mulher. Lidava permanentemente com sangue e já vira um mar dele debaixo do cadáver de Camille. Mas ficou muito mais abalada ao ver aquele penso higiénico. Estava ensopado, pesado. Foi por isto que saíste da cama, pensou ela. O líquido quente a escorrer pelas coxas e a humidade dos lençóis. Levantaste-te, vieste à casa de banho para mudar o penso e atiraste este para o cesto.

E depois... O que fizeste depois?

Saiu da casa de banho e voltou ao quarto de Camille. A Dra. Isles já tinha saído, e ela ficou sozinha, franzindo o sobrolho ao ver os lençóis manchados de sangue, a única nota de cor naquele espaço sem vida. Aproximou-se da janela e olhou lá para baixo, para o pátio.

Havia agora muitas pegadas na mistura de neve e gelo. Do lado de fora do portão, estacionara junto ao muro mais uma carrinha de uma estação de televisão e o pessoal aprontava o equipamento. A história da freira assassinada directamente em vossas casas. Seria com ela que abriria o noticiário das cinco, pensou; as freiras despertam curiosidade a todos nós. A recusa do sexo, o recolhimento, e toda a gente pensa no que esconderão debaixo do hábito. É a castidade que nos intriga; não compreendemos um ser humano que se priva do mais rorte de todos os impulsos, que vira as costas ao que a natureza queria que fizéssemos. É a pureza delas que nos faz titilar.

Rizzoli desviou o olhar do pátio para a capela. Era lá que eu devia estar agora, a tremer de frio com a equipa de peritagem, pensou ela. E não neste quarto a cheirar a lixívia. Mas só dali ela podia imaginar o que Camille vira ao regressar da sua ida nocturna à casa de banho numa manhã escura de Inverno. Devia ter visto luz na capela, através das janelas de vitral.

Uma luz que não devia lá estar.

Maura aproximou-se dos dois serventes que estenderam um lençol lavado e transferiram devagarinho o corpo da irmã Camille. Já vira outras equipas a remover cadáveres de outros sítios. Umas vezes executavam essa tarefa com uma eficiência sumária, outras com um desagrado evidente. Mas, de vez em quando, transportavam a vítima com uma ternura especial. As crianças de tenra idade eram alvo desta atenção as cabecinhas eram aconchegadas com cuidado e os corpinhos inertes eram acariciados à medida que iam entrando no saco de plástico. A irmã Camille foi tratada com a mesma ternura, com a mesma tristeza.

Maura abriu a porta da capela para eles passarem com a maca e acompanhou a marcha lenta até ao portão. Do outro lado do muro, apinhavam-se os repórteres com as câmaras prontas a captar a imagem clássica da tragédia: o corpo na maca e o invólucro de plástico que encerrava claramente uma forma humana. Embora o público não visse a vítima, sabia que se tratava de uma mulher jovem e, ao olhar para o saco, dissecaria mentalmente o seu conteúdo. A sua imaginação implacável violaria a privacidade de Camille como o bisturi de Maura nunca poderia fazer.

Quando a maca saiu do portão, os repórteres e os operadores de câmara avançaram em círculo, ignorando o agente que os mandava afastar-se.

Por fim, foi o padre que conseguiu mantê-los à distância. Com a sua figura imponente vestida de negro, saiu do portão e avançou para a multidão, sobrepondo a sua voz indignada ao ruído caótico.

Esta pobre irmã não merece o vosso respeito? Porque não a respeitam? Deixem-na passar!

Às vezes, até os repórteres podem ter vergonha e alguns recuaram para deixar passar a equipa de transporte. Mas as câmaras de televisão continuaram a funcionar enquanto a maca entrava na viatura. Nenhuma destas câmaras famintas se virou para a vítima seguinte: Maura, que acabara de sair do portão e se dirigiu para o seu carro, aconchegando o casaco ao corpo como se ele a protegesse da notoriedade.

Doutora Isles, tem alguma declaração a fazer?

Qual foi a causa da morte?

... algum indício de que tenha havido abuso sexual?

Assediada pelos repórteres, Maura procurou as chaves no interior da carteira e accionou o controlo remoto. Assim que abriu a porta do carro, ouviu alguém a chamá-la. Mas, desta vez, era um grito de alarme.

Olhou para trás e viu um homem deitado no passeio e várias pessoas debruçadas sobre ele.

Temos um acidente com um operador de câmara! gritou alguém. É preciso chamar uma ambulância!

Maura fechou a porta do carro e correu para o homem caído no chão.

O que aconteceu? Escorregou? perguntou ela. Agachou-se junto do homem. Já o tinham virado de costas, e Maura viu um indivíduo encorpado, de cinquenta e tal anos, cujo rosto estava a escurecer. Ao lado dele, caída na neve, estava uma câmara de televisão que ostentava a sigla WVSU.

O homem não respirava.

Maura inclinou-lhe a cabeça para trás, esticando-lhe o pescoço carnudo para favorecer a passagem do ar e debruçou-se para iniciar a reanimação. O cheiro a café requentado e a cigarros nauseou-a. Pensou na hepatite, na sida e em todos os outros horrores microscópicos que podiam transmitir-se através dos fluidos corporais e fez um esforço para colar a sua boca à dele. Exalou uma lufada de ar e viu o peito dele a subir, os pulmões a encherem-se de ar. Repetiu duas vezes a operação e palpou a carótida.

Nada.

Preparava-se para abrir o fecho do blusão do homem, mas alguém se adiantou. Levantou a cabeça e viu o padre ajoelhado em frente dela, a tentear o peito do homem com as suas mãos enormes, à procura de pontos de referência. Pousou as palmas das mãos no esterno e depois olhou para ela, para confirmar se podia iniciar as compressões. Maura deparou com uns surpreendentes olhos azuis. E uma expressão determinada.

Pode começar. Força! disse ela.

O padre iniciou a operação, contando em voz alta à medida que fazia as compressões, para que ela pudesse medir o ritmo respiratório.

Mil. Duas mil...

Não havia pânico na sua voz, apenas a contagem firme de um homem que sabia o que estava a fazer. Maura não precisou de lhe dar instruções; trabalharam em conjunto como se sempre tivessem formado uma equipa, revezando-se duas vezes para se aliviarem.

Quando a ambulância chegou, Maura tinha a parte da frente das calças ensopada por se ter ajoelhado na neve e estava a suar, apesar do frio. Levantou-se, hirta e exausta, e ficou a observar a cena, enquanto os enfermeiros punham o homem a soro, inseriam o tubo endotraqueal e transportavam a maca para a ambulância.

A câmara de televisão que o homem deixara cair estava já nas mãos de um funcionário da WVSU. O espectáculo tem de continuar, pensou ela, vendo os repórteres a aglomerarem-se junto da ambulância, apesar de a notícia ser agora o desfalecimento do próprio colega.

Maura virou-se para o padre que estava a seu lado, com as calças ensopadas no sítio dos joelhos.

Obrigada pela ajuda disse ela. Calculo que já tenha feito reanimação.

O padre sorriu e encolheu os ombros.

Só num boneco de plástico. Nunca julguei que viesse a aplicar os meus conhecimentos. Sou Daniel Brophy. A senhora é a patologista? perguntou ele, estendendo-lhe a mão.

Maura Isles. Esta é a sua paróquia, padre Brophy? Ele fez um sinal afirmativo.

A minha igreja fica a três quarteirões daqui.

Sim, eu vi-a.

Acha que salvámos aquele homem? Maura abanou a cabeça.

Quando a reanimação se prolonga tanto, sem pulsação, não é um bom sinal.

Mas há alguma hipótese de ele sobreviver?

Nem por isso.

Mesmo assim, creio que fomos úteis. O padre olhou para os repórteres, que permaneciam concentrados na ambulância. Deixe-me acompanhá-la ao carro, para que consiga sair daqui sem ser filmada.;

A seguir, irão atrás de si. Espero que esteja pronto para os enfrentar.

Já prometi que faria uma declaração. Embora não saiba verdadeiramente o que eles pretendem de mim.

Eles são canibais, padre Brophy. Querem nada mais nada menos do que meio quilo da sua carne. Cinco quilos, se conseguirem.

Ele riu-se.

Então, tenho de avisá-los que a minha carne é rija.

O padre acompanhou-a até ao carro. As calças molhadas colavam-se às pernas de Maura e o tecido começava já a ficar teso com o vento frio. Teria de vestir uma bata assim que chegasse à morgue e de pôr as calças a secar.

Se vou fazer uma declaração, há alguma coisa que eu deva saber? Alguma coisa que me possa dizer? perguntou ele.

Terá de falar com a detective Jane Rizzoli. Ela é que é a responsável pela investigação.

Acha que este foi um ataque isolado? As outras paróquias terão motivos para se preocupar?

Eu só examino as vítimas, e não os agressores. Não lhe sei dizer quais são os seus motivos.

Estas mulheres são velhas. Não podem ripostar.

Eu sei.

Então, o que lhes dizemos? A todas as irmãs que vivem em comunidades religiosas? Que não estão em segurança mesmo no interior dos conventos?

Nenhum de nós está totalmente seguro.

Não é essa a resposta que lhes quero dar.

Mas é a única que elas têm de ouvir. Maura abriu a porta do carro. Eu recebi uma educação católica, padre. Julgava que as freiras eram intocáveis. Mas acabei de ver o que fizeram à irmã Camille. Se isso pode acontecer a uma freira, então ninguém é intocável. Boa sorte com a imprensa. Tem a minha solidariedade disse, entrando no carro.

O padre fechou a porta e ficou a olhar para ela através da janela. Apesar de ter um rosto que impressionava, era aquele colarinho de padre que mais atraía a atenção de Maura. Era uma faixa branca muito estreita, mas tinha o condão de o distinguir de todos os outros homens. Tornava-o inatingível.

Ele acenou-lhe. Em seguida, olhou para o grupo de repórteres, que começavam a rodeá-lo. Maura viu-o endireitar-se, respirar fundo e ir ao encontro deles.

"À luz dos dados anatómicos e do conhecido historial de hipertensão do indivíduo, é minha opinião que esta morte se deveu a causas naturais. A sequência mais provável dos acontecimentos foi um enfarte do miocárdio agudo, que ocorreu nas vinte e quatro horas anteriores à morte, seguido por uma arritmia ventricular, que foi o acontecimento terminal. Causa presumível da morte: arritmia fatal na sequência de um enfarte do miocárdio agudo. Ditado por Maura Isles, médica, Instituto de Medicina Legal, Comunidade do Massachusetts."

Maura desligou o ditafone e olhou para os diagramas já impressos em que registara os pontos de referência do corpo de Samuel Knight. A velha cicatriz da apendicectomia. As manchas de lividez nas nádegas e na parte de baixo das coxas, onde o sangue se concentrara durante as horas em que ele permanecera sentado na cama, já sem vida. Não havia testemunhas dos últimos momentos de Mr. Knight no seu quarto de hotel, mas Maura conseguia imaginar o que lhe passara pela cabeça. Uma palpitação súbita no peito. Após alguns segundos de pânico, ele percebe que a palpitação vem do coração. E, em seguida, um desfalecimento gradual até à escuridão total. Foste um dos casos fáceis, pensou ela. Um ditado rápido, e Mr. Samuel Knight podia ser posto de parte. Este breve encontro terminaria com, a rubrica dela no relatório da autópsia.

Havia mais relatórios no seu cesto, um monte de ditados transcritos que precisavam que ela os revisse e assinasse. Mas aguardava-a mais uma conhecida, armazenada no frio: Camille Maginnes, cuja autópsia estava marcada para as nove horas da manhã seguinte, para que Rizzoli e Frost pudessem assistir. Maura folheava os relatórios, fazendo correcções nas margens, mas continuava a pensar em Camille. O frio que sentira na capela, nessa manhã, ainda não a abandonara e, apesar de estar sentada à secretária, conservava a camisola para se proteger da recordação dessa visita.

Levantou-se da cadeira para ver se as calças de lã que deixara em cima do aquecedor já estavam secas. Mais ou menos, pensou. Desatou o cordão à pressa e despiu a bata que usara durante toda a tarde.

Recostou-se na cadeira e ficou a olhar para uma das gravuras com motivos florais que estava pendurada no seu gabinete. Para compensar o carácter soturno da sua profissão, decorara o gabinete com símbolos de vida e não de morte. Ao canto, estava uma figueira envasada, a feliz contemplada com as discussões e a atenção permanente de Maura e Louise. Na parede, havia gravuras emolduradas de flores: um ramo de peónias brancas e íris azuis. Outro com uma jarra de rosas, tão cheias de pétalas que os caules cediam ao peso. Quando os dossiês se acumulavam em cima da secretária, quando a pressão da morte parecia insuportável, Maura olhava para aquelas gravuras e pensava no seu jardim, no cheiro a terra e no verde vivo da vegetação primaveril. Pensava naquilo que crescia e que não estava a morrer. Afastava a imagem da decadência.

Mas nesse dia de Dezembro, nunca a Primavera lhe parecera tão distante. A chuva gelada batia na vidraça, e Maura receava a ida para casa. Perguntou a si própria se já teriam espalhado sal pelas ruas, ou se ainda haveria uma camada de gelo que fazia patinar os carros como se estes fossem discos de hóquei.

Doutora Isles? chamou Louise pelo intercomunicador.

Sim?

Está ao telefone um tal Dr. Banks para falar consigo. Na linha um.

Maura calou-se.

É... O doutor Victor Banks? perguntou ela em voz baixa.

É. Diz que pertence à organização de beneficência One Earth International.

Maura não disse nada, de olhar fixo no telefone e com as mãos imóveis em cima da secretária. Mal ouvia a chuva a bater na janela; escutava apenas o bater do seu próprio coração.

Doutora Isles?

É uma chamada interurbana?

Não. Ele já tinha deixado uma mensagem. Está no Hotel Colonnade.

Maura engoliu em seco.

Agora não posso atender.

É a segunda vez que ele telefona. Diz que a conhece. Sim, claro que conhece.

Quando é que ele falou pela primeira vez? perguntou Maura.

Esta tarde, quando a senhora ainda estava no local do crime. Deixei a mensagem em cima da sua secretária.

Maura descobriu três mensagens cor-de-rosa escondidas por baixo de um monte de dossiês. Lá estava ela. Dr. Victor Banks. Telefonou às 12.45. Ficou a olhar para o nome, com um aperto no estômago. Porquê agora? perguntou a si própria. Depois de todos estes meses, porque me telefonas assim de repente? O que te leva a pensar que podes regressar à minha vida?

O que lhe digo? perguntou Louise.

Maura respirou fundo.

Diga que eu lhe telefono. Quando estiver preparada para isso.

Amachucou o papel e atirou-o para o cesto. Pouco depois, sem conseguir concentrar-se, levantou-se e vestiu o casaco.

Louise ficou admirada ao vê-la sair do gabinete, já pronta para enfrentar o frio. Em geral, Maura era a última a ir-se embora e quase nunca saía antes das cinco e meia. Ainda não eram cinco horas e Louise já estava a desligar o computador.

Vou dar uma ajuda ao trânsito disse Maura.

Acho que já é muito tarde para isso. Já viu o tempo? A maior parte dos escritórios da cidade já fecharam por hoje.

A que horas?

Às quatro.

Porque é que ainda está cá? Já devia ter ido para casa.

O meu marido vem buscar-me. O meu carro está na oficina, lembra-se?

Maura estremeceu. Sim, Louise falara-lhe no carro nesse dia de manhã, mas ela esquecera-se, evidentemente. Como era habitual, concentrara-se tanto nos mortos que quase nem ouvira os vivos. Viu Louise a pôr um cachecol e a vestir o casaco e pensou: não tenho tempo para ouvir os outros. Não reservo tempo para me relacionar com as pessoas enquanto elas estão vivas. Embora já trabalhasse ali há um ano, pouco sabia acerca da vida pessoal da sua secretária. Nunca vira o marido de Louise sabia apenas que se chamava Vernon. Não se lembrava onde é que ele trabalhava nem do que vivia, em parte porque Louise raramente falava de si. A culpa será minha? Interrogou-se Maura. Sentirá ela que eu não quero ouvi-la, que me sinto mais à vontade com os meus bisturis e o ditafone do que com os sentimentos das pessoas que me rodeiam?

Desceram o corredor juntas em direcção à saída para o parque de estacionamento. Nada de conversa de circunstância, apenas duas pessoas que se dirigiam para o mesmo destino.

O marido de Louise estava à espera no carro, cujos limpa-pára-brisas oscilavam furiosamente para proteger o vidro da geada. Maura acenou a Louise assim que o carro arrancou e foi contemplada com um olhar surpreendido de Vernon, que decerto não sabia quem era aquela mulher que acenava como se os conhecesse.

Como se ela conhecesse verdadeiramente alguém...

Atravessou o parque de estacionamento, escorregando no pavimento e de cabeça baixa para se proteger da tempestade. Ainda tinha mais uma coisa a fazer. Mais uma obrigação a cumprir antes de terminar o seu dia.

Dirigiu-se ao Hospital St. Francis para se inteirar do estado da irmã Ursula.

Embora não trabalhasse numa enfermaria há alguns anos, desde o internato, as recordações da sua passagem pela Unidade de Cuidados Intensivos mantinham-se desagradavelmente vivas. Recordou os momentos de pânico, o esforço para vencer o entorpecimento provocado pela falta de sono e conseguir pensar. Lembrou-se de uma noite em que tinham morrido três doentes no seu turno e em que tudo correra mal. Agora, não conseguia entrar na UCI sem sentir o peso das antigas responsabilidades e dos erros passados.

A Unidade de Cuidados Intensivos de Cirurgia de St. Francis dispunha de um pólo central de enfermeiras rodeado por doze compartimentos destinados aos doentes. Maura parou junto da secretária da recepcionista para se identificar.

Sou a doutora Isles, do Instituto de Medicina Legal. Posso consultar a ficha clínica da vossa doente, a irmã Ursula Rowland?

A recepcionista olhou para ela com um ar admirado.

Mas a doente ainda não faleceu.

A detective Rizzoli pediu-me que me informasse sobre o estado dela.

Ah! A ficha está naquele compartimento. É o número dez.

Maura encaminhou-se para os cacifos e abriu a tampa de alumínio daquele em que se encontrava a ficha clínica da cama n.° 10. Abriu-a e procurou o relatório preliminar. Era um resumo manuscrito pelo neurocirurgião logo após a operação:

"Grande hematoma subdural identificado e drenado. Parietal direito aberto com fractura craniana cominutiva desbridada e elevada. Laceração durai fechada. Relatório cirúrgico completo ditado. James Yuen, médico."

Maura virou-se para os apontamentos das enfermeiras e analisou a evolução da doente após a cirurgia. As pressões intracranianas mantinham-se firmes, com o auxílio do Manitol e do Lasix por via intravenosa e da hiperventilação forçada. Aparentemente estava a ser feito tudo o que era possível; agora, restava aguardar para ver quais seriam as consequências das lesões neurológicas.

Com a ficha na mão, Maura dirigiu-se para o compartimento n° 10. O polícia que estava à porta reconheceu-a.

Olá, doutora Isles.

Como está a doente? perguntou ela.

Mais ou menos na mesma, creio eu. Parece que ainda não acordou.

Maura olhou para as cortinas fechadas.

Quem está lá dentro ao pé dela?

Os médicos.

Maura bateu na estrutura e afastou a cortina. Junto da cama estavam dois homens. Um era alto, com feições asiáticas, um olhar penetrante e uma cabeleira espessa e grisalha. Era o neurocirurgião, concluiu ela ao ler a placa que ele trazia ao peito: Dr. Yuen. O outro era mais novo tinha trinta e tal anos e uns ombros robustos que se destacavam sob a bata branca. Usava o cabelo louro comprido e apa- nhado num rabo-de-cavalo impecável. O Fábio da medicina, pensou Maura, olhando para o rosto bronzeado e para os olhos cinzentos e encovados do médico.

Desculpem interromper disse ela. Sou a doutora Isles, do Instituto de Medicina Legal.

Do Instituto de Medicina Legal? perguntou o Dr. Yuen, atónito. Esta visita não é um pouco prematura?

A responsável pela investigação pediu-me que viesse ver a vossa doente. Como sabem, há outra vítima.

Sim, ouvimos dizer.

Amanhã vou fazer a autópsia. Queria comparar o padrão de ferimentos destas duas vítimas.

Não creio que consiga ver grande coisa. Pelo menos agora, depois da operação. Ficará mais elucidada se consultar as radiografias

e as TACs que ela fez quando deu entrada no hospital.

Maura olhou para a doente e concordou com ele. A cabeça de Ursula estava coberta de ligaduras e os ferimentos já tinham sido alterados devido à cirurgia. Em coma profundo, a freira respirava com a ajuda de um ventilador. Ao contrário da elegante Camille, Ursula era uma mulher grande, de ossos largos e com o rosto redondo e simples de uma camponesa. Sobre os braços carnudos via-se um emaranhado de tubos. No pulso esquerdo, tinha uma pulseira onde se lia "Alérgica à penicilina". E uma cicatriz feia, grossa e esbranquiçada no cotovelo direito a sequela de um antigo ferimento, mal suturado. Seria uma recordação do seu trabalho no estrangeiro? interrogou-se Maura.

Fiz o que pude na sala de operações disse Yuen. Agora, tenhamos esperança que aqui o doutor SutclifFe consiga evitar as complicações clínicas.

Maura olhou para o médico de rabo-de-cavalo, que baixou a cabeça e sorriu.

Chamo-me Matthew Sutcliffe e sou o internista dela disse ele. Há vários meses que ela não me consultava. Só há pouco é que soube que ela tinha dado entrada no hospital.

Tem o número do telefone do sobrinho dela? perguntou Yuen. Quando ele me telefonou, esqueci-me de lho pedir. Ele disse que falaria consigo.

Eu tenho-o. Seria mais fácil se fosse eu o único a contactar com a família. Eu ponho-os ao corrente do estado dela disse Sutcliffe.

Qual é o estado dela? perguntou Maura.

Eu diria que ela se encontra clinicamente estável respondeu Sutcliffe.

E em termos neurológicos? perguntou Maura olhando para Yuen.

Ele abanou a cabeça.

É demasiado cedo para dizer seja o que for. As coisas correram bem na sala de operações, mas, como eu estava aqui a dizer ao doutor Sutcliffe, se ela recuperar a consciência e isso pode não acontecer, é provável que não se lembre dos pormenores da agressão. A amnésia retrógrada é vulgar nas lesões cerebrais. O médico olhou para o bíper quando este deu sinal. Desculpe, mas tenho de atender esta chamada. O doutor Sutcliffe pode pô-la ao corrente do historial clínico dela.

E, com duas passadas rápidas, o Dr. Yuen saiu do quarto. Sutcliffe estendeu o estetoscópio a Maura.

Pode examiná-la, se quiser.

Ela pegou no aparelho e aproximou-se da cama. Por instantes, limitou-se a ver o peito de Ursula a subir e a descer. Era raro examinar os vivos; teve de fazer uma pausa para rememorar as suas competências clínicas, consciente de que o Dr. Sutcliffe saberia avaliar até que ponto ela estava desabituada de examinar um corpo cujo coração ainda batia. Trabalhara com os mortos durante tanto tempo que se sentia desajeitada na presença dos vivos. Sutcliffe estava à cabeceira da cama. Era uma figura imponente, de ombros largos e olhar penetrante. Observou-a enquanto ela apontava a lâmpada de fenda aos olhos da doente, lhe palpava o pescoço e lhe passava os dedos pela pele quente. Tão diferente do frio da carne refrigerada!

Maura hesitou.

Não há pulsação na carótida do lado direito.

O quê?

Há uma pulsação forte no lado esquerdo, mas não no direito.

Maura pegou na ficha clínica e abriu-a nos apontamentos da sala de operações. Ah, o anestesista fala aqui nisso. "Nota-se ausência da artéria carótida direita. Muito provavelmente uma variação anatómica normal."

O médico franziu o sobrolho e corou.

Tinha-me esquecido disso.

Então já sabia? Que não havia pulsação deste lado?

É congénito.

Maura pôs o estetoscópio nos ouvidos e levantou a camisa da doente, expondo os seios volumosos de Ursula. A pele era ainda clara e jovem, apesar dos seus sessenta e oito anos. Ao longo de décadas, o hábito protegera-a do desgaste provocado pelos raios solares. Encostando o diafragma do aparelho ao peito de Ursula, Maura sentiu os batimentos firmes e vigorosos do coração. O coração de uma sobrevivente, a bombear, invencível.

Uma enfermeira enfiou a cabeça no compartimento.

Doutor Sutcliffe? Telefonaram dos raios X a avisar que a radiografia ao tórax está pronta, se quiser ir vê-la lá abaixo.

Obrigado. O médico olhou para Maura. Também podemos ver as radiografias do crânio, se quiser.

Desceram no elevador com seis jovens vestidas de cores claras, com um aspecto fresco e de cabelos lustrosos, sempre a rir e a lançarem olhares de admiração ao Dr. Sutcliffe. Apesar de ser um homem atraente, o médico parecia indiferente à atenção delas, concentrado, com um ar solene, nos números dos pisos. O encanto de uma bata branca, pensou Maura, lembrando-se dos seus tempos de adolescente, quando trabalhava como voluntária no Hospital St. Luke em São Francisco. Os médicos pareciam-lhe intocáveis. Inatingíveis. Agora que ela própria era médica, sabia muito bem que a bata branca não a impediria de cometer erros. Não lhe garantiria a infalibilidade.

Olhou para as jovens e pensou em si própria com dezasseis anos

não risonha, como estas raparigas, mas silenciosa e grave. Já nesse tempo tinha consciência do lado sombrio da vida e se sentia instintivamente atraída por melodias tristes.

As portas do elevador abriram-se e as jovens saíram, um grupo alegre de cor-de-rosa e branco, deixando Maura e Sutcliffe sozinhos.

Elas cansam-me disse ele. Aquela energia toda. Quem me dera ter uma décima parte dela, sobretudo depois de uma noite de serviço. Tem muitas?

Noites de serviço? Funcionamos em sistema de rotatividade.

Aposto que os seus doentes não esperam que você ande a correr.

Não é como a sua vida aqui nas trincheiras.

Ele riu-se e, de repente, transformou-se num surfista louro e sorridente. Vida nas trincheiras... Às vezes é assim que me sinto. Na linha da frente.

As radiografias já estavam à espera deles em cima do balcão. Sutcliffe levou o envelope grande para a sala de visualização. Colocou várias chapas no visor e ligou o interruptor.

A luz mostrou as imagens de um crânio. As linhas de fractura entrecruzavam-se no osso como raios durante uma trovoada. Maura detectou dois pontos distintos de impacto. O primeiro golpe atingira o osso temporal direito e provocara uma pequena fissura na direcção do ouvido. O segundo, mais forte, atingira a zona posterior e comprimira a zona achatada do crânio, empurrando-a para dentro.

Ele bateu-lhe primeiro na parte lateral da cabeça disse ela.

Como sabe que essa foi a primeira agressão?

Porque a primeira linha de fractura impede a propagação da fractura resultante de uma segunda agressão. Maura apontou para as linhas de fractura. Está a ver como esta linha acaba precisamente aqui, onde atinje a primeira linha de fractura? A força do impacto não consegue que ela passe para o outro lado. Isso indica-me que este golpe na têmpora direita foi o primeiro. Talvez ela estivesse a virar-se. Ou então não o viu, porque ele apareceu de lado.

Ele apanhou-a de surpresa disse Sutcliffe.

E isso teria sido suficiente para a deixar vacilante. Depois, desferiu o segundo golpe, mais atrás, aqui continuou Maura, apontando para a segunda linha de fractura.

Foi um golpe mais forte concluiu ele. Comprimiu a zona achatada do crânio.

Sutcliffe retirou as radiografias do visor e concentrou-se nas TACs. A tomografía axial computorizada permitia visualizar o interior do crânio humano, revelando o cérebro fatia por fatia. Maura viu uma bolsa de sangue que escorrera de vasos dilacerados. O aumento da pressão sanguínea devia ter apertado o cérebro. Era uma lesão potencialmente tão devastadora como a de Camille.

Mas a anatomia e a resistência humana são variáveis. Enquanto a freira muito mais nova sucumbira aos ferimentos, o coração de Ursula continuava a bater e o corpo não queria libertar-se da alma. Não era um milagre, apenas uma daquelas singularidades do destino, como a criança que sobrevive a uma queda da janela de um sexto andar e sofre apenas uns arranhões.

Espanta-me que ela tenha sobrevivido comentou em voz baixa.

Também a mim. Maura olhou para Sutcliffe. A luz do visor iluminou metade da cara do médico, revelando-lhe a face angulosa. Estes golpes destinavam-se a matar.

 

Camille Maginnes tinha ossos de jovem, pensou Maura, observando as radiografias no visor da morgue. Os anos ainda não haviam carcomido as articulações, nem feito descair as vértebras ou calcificado a cartilagem costal das costelas da noviça. E nunca o fariam. Camille seria depositada na terra, e os seus ossos conservariam para sempre a juventude.

Yoshima tinha radiografado o corpo enquanto estava vestido, uma medida de precaução habitual para localizar balas soltas ou outros fragmentos metálicos que pudessem estar alojados na roupa. Com excepção do crucifixo e daquilo que era claramente alfinetes-de-ama sobre o peito, não se viam outros objectos metálicos na radiografia.

Maura retirou as radiografias ao tórax, e as películas emitiram um som musical ao dobrarem-se nas suas mãos. Pegou nas do crânio e colocou-as no visor.

Meu Deus! exclamou o detective Frost em voz baixa. As lesões na caixa craniana eram terríveis. Um dos golpes fora tão forte que se viam fragmentos de osso num nível muito inferior ao do crânio. Embora Maura ainda não tivesse feito nenhuma incisão, conseguia imaginar a gravidade da lesão. A ruptura dos vasos sanguíneos e as bolsas de hemorragia. E o cérebro, a formar uma hérnia devido à pressão crescente do sangue.

Fale connosco, doutora disse Jane, ríspida e frontal. Tinha um aspecto mais saudável nessa manhã e entrara na morgue com o seu passo brusco habitual. A guerreira estava de novo em acção. O que está a ver?

Três agressões distintas. A primeira atingiu-a aqui, no cimo da cabeça. Maura apontou para uma linha de fractura em diagonal. Seguiram-se mais duas, na nuca. Calculo que, nessa altura, ela estivesse de barriga para baixo. Estendida no chão, indefesa e de bruços. Foi então que o último golpe lhe esmagou o crânio. Era um desfecho tão brutal que Maura e os dois detectives calaram-se por instantes, imaginando a mulher caída, com a face encostada ao chão de pedra. O agressor de braço no ar, empunhando a arma mortal. O som dos ossos esmagados a quebrar o silêncio da capela.

Como uma foca bebé morta à paulada. Ela não teve hipótese rematou Jane.

Maura virou-se para a mesa de autópsias onde jazia Camille Maginnes, que envergava ainda o seu hábito ensopado em sangue.

Vamos despi-la.

Yoshima aguardava, já de bata e luvas, como se fosse um fantasma. Com uma eficiência silenciosa, aprontara o tabuleiro dos instrumentos, as luzes e os recipientes especiais. Maura quase nem precisava de falar; bastava um olhar e ele lia a sua mente.

Primeiro, descalçaram-lhe os sapatos de cabedal preto, feios e práticos. Depois hesitaram, observando as várias camadas de roupa da vítima e preparando-se para uma tarefa que nunca tinham executado: despir uma freira.

O cabeção tem de ser o primeiro a sair disse Maura.

O que é isso? perguntou Frost.

Uma espécie de capa sobre os ombros. Mas não vejo colchetes à frente. E não vi fechos na radiografia. Vamos virá-la de lado, para eu verificar as costas.

O corpo, já rígido, era leve como o de uma criança. Viraram-na de lado e Maura abriu o cabeção.

Fita Velcro disse ela.

Frost soltou uma gargalhada de espanto.

Não me diga!

O medieval cruza-se com o moderno.

Maura retirou o cabeção, dobrou-o e guardou-o num saco de plástico.

Isto é um pouco decepcionante. As freiras a usarem fita Velcro.

Querias que elas ficassem na Idade Média? perguntou Rizzoli.

Julgava que eram mais tradicionalistas.

Detesto desiludi-lo, detective Frost disse Maura, retirando a corrente e o crucifixo. Mas hoje em dia há conventos que têm os seus próprios sites na Web.

Não me diga! Freiras na Internet... Isso dá-me volta à cabeça.

A seguir vem o escapulário disse Maura, apontando para a túnica sem mangas que chegava até à bainha. Retirou-a com todo o cuidado pela cabeça da vítima. O tecido estava ensopado em sangue e teso. Depositou-o noutro saco de plástico e juntou-lhe o cinto de couro.

Chegou a vez da última camada de lã, uma túnica preta que caía, solta, sobre o corpo esguio de Camille. A última barreira do seu pudor.

Apesar de despir cadáveres há muitos anos, Maura nunca sentira uma relutância tão grande ao desnudar uma vítima. Esta era uma mulher que optara por viver escondida dos olhares masculinos; agora seria cruelmente exposta, o seu corpo devassado e os seus orifícios esquadrinhados. Ante a perspectiva de tal invasão, Maura sentiu a boca amarga e fez uma pausa para retomar a compostura. Reparou no olhar interrogador de Yoshima. Se estava perturbado, não o demonstrava. O seu rosto impassível tinha um efeito calmante naquela sala, onde a própria atmosfera parecia saturada de emoção.

Maura concentrou-se no que tinha a fazer. Juntos, ela e Yoshima levantaram a túnica, fazendo-a deslizar pelas coxas e ancas. Como era larga, conseguiram retirá-la sem quebrar o rigor mortis dos braços. Por baixo, havia ainda mais roupa uma touca de algodão branco que escorregara para o pescoço e cujas abas frontais estavam pregadas com alfinetes-de-ama a uma T-shirt ensanguentada. Os mesmos alfinetes que se viam na radiografia. A vítima usava uns colãs pretos fortes. Retiraram os colãs e viram umas cuecas de algodão branco. Eram de uma modéstia absurda, destinadas a cobrir ao máximo a pele, a roupa interior de uma velha e não de uma jovem núbil. Por baixo do algodão, distinguia-se o volume de um penso higiénico. Tal como Maura já desconfiava ao ver os lençóis manchados de sangue, a vítima estava menstruada.

Em seguida, Maura ocupou-se da T-shirt. Abriu um alfinete-de-ama, separou mais abas de fita Velcro e retirou o capuz. No entanto, não foi tão fácil tirar a T-shirt devido ao rigor mortis. Maura pegou numa tesoura e cortou-a ao meio. O tecido abriu-se, revelando mais uma camada de roupa.

Esta deixou-a estarrecida. Maura olhou para a tira de pano bem apertada à volta do peito e pregada à frente com dois alfinetes-de-ama.

Para que é isso? perguntou Frost.

Parece que ela enfaixou os seios respondeu Maura.

Porquê?

Não faço ideia.

Para substituir um sutiã? alvitrou Rizzoli.

Não consigo perceber porque é que ela usava isto em vez de um sutiã. Reparem como está tão apertada. Devia ser muito desconfortável.

Como se um sutiã fosse confortável, hem? rosnou Rizzoli.

Não será mais uma peça de vestuário religioso? Uma parte do hábito? perguntou Frost.

Não, é uma ligadura elástica vulgar. A mesma que se compra numa farmácia para ligar um tornozelo deslocado.

Mas, como havemos de saber o que costumam usar as freiras? Afinal, elas podiam usar renda preta e tule por baixo dessa roupa toda.

Ninguém se riu.

Maura olhou para Camille e, de repente, ficou abalada com o simbolismo dos seios ligados. Os traços femininos disfarçados, suprimidos. Apertados até à submissão. O que passara pela cabeça de Camille para ligar o peito, para encostar o tecido elástico à pele? Sentir-se-ia mais limpa, mais pura, com os seios disfarçados pela ligadura, com as curvas eliminadas, com a sexualidade negada?

Maura abriu os dois alfinetes-de-ama e depositou-os no tabuleiro. Em seguida, com a ajuda de Yoshima, começou a desenrolar a ligadura, desnudando sucessivas zorjas de pele. Mas nem o elástico conseguiu poupar a carne saudável. Quando a última faixa se soltou, revelando uns seios jovens e maduros, a pele ostentava as marcas do tecido. Outras mulheres ter-se-iam orgulhado de uns seios como aqueles; Camille Maginnes escondera-os, como se se envergonhasse deles.

Faltava retirar uma única peça de roupa. As cuecas de algodão.

Maura fez escorregar o elástico pelas ancas e pelas coxas. O penso higiénico, colado à roupa interior, tinha uma pequena mancha de sangue.

É recente observou Rizzoli. Parece que ela tinha acabado de o mudar.

Mas Maura não estava a olhar para o penso higiénico; estava concentrada no abdómen sem cor, flácido e solto entre os ossos das ancas. Estrias acinzentadas atravessavam a pele descorada. Por instantes, não disse nada, tentando interpretar em silêncio o significado daquelas estrias. E pensou, também, nos seios ligados.

Virou-se para o tabuleiro em que depositara a ligadura elástica e desenrolou-a devagar, inspeccionando o tecido.

O que procura? perguntou Rizzoli.

Manchas respondeu Maura.

Já viu o sangue.

Não são manchas de sangue...

Maura calou-se. Na ligadura aberta viam-se círculos escuros em que o líquido secara. Meu Deus, pensou ela. Como é possível? Olhou para Yoshima.

Vamos prepará-la para um exame ginecológico. O assistente franziu o sobrolho.

Vamos quebrar o rigor mortis

Ela não tem muita massa muscular. Camille era magra, o que lhes facilitaria a tarefa.

Yoshima mudou-se para a outra extremidade da mesa. Enquanto Maura segurava a pélvis, ele enfiou as mãos por baixo da coxa esquerda e tentou flectir a anca. Quebrar o rigor mortis era tão brutal como soava a ruptura forçada das fibras musculares rígidas. Não era um processo agradável e deixou Frost visivelmente horrorizado. O detective afastou-se da mesa e ficou lívido. Yoshima empurrou com força e Maura sentiu o estalo do músculo a rasgar-se, transmitido através da pélvis.

Que horror! exclamou Frost, virando-se para o lado. Mas foi Rizzoli que se dirigiu a cambalear para a cadeira que estava junto do lavatório e pôs a cabeça entre as mãos. Rizzoli, a estóica, que nunca se queixava do que via ou cheirava na sala de autópsias, parecia agora incapaz de digerir aqueles preliminares.

Maura passou para o outro lado da mesa e continuou a segurar a pélvis, enquanto Yoshima manipulava a coxa direita. Até ela se sentiu nauseada quando tentavam quebrar a rigidez. De todas as provações que sofrera durante o estágio, o contacto com a cirurgia ortopédica fora o que mais a consternara. Perfurar e serrar os ossos, a força bruta que era necessária para desarticular as ancas. E agora sentia a mesma repulsa ao ouvir o músculo a estalar. De repente, a anca direita flectiu-se e até a expressão habitualmente impassível de Yoshima denunciou um certo desagrado. Mas não havia outra maneira de visualizar os órgãos genitais, e Maura queria confirmar a sua suspeita o mais depressa possível.

Viraram as duas coxas para fora e Yoshima apontou uma luz directamente para o períneo. O sangue tinha coagulado no canal vaginal sangue menstrual normal, como Maura teria inferido antes. Agora, estava petrificada com o que via. Com um pedaço de gaze, limpou o sangue para inspeccionar a mucosa que estava por baixo.

Há um rasgão vaginal do segundo grau às seis horas disse ela.

Quer mechas?

Quero. E teremos de fazer uma remoção em bloco.

O que se passa? perguntou Frost. Maura olhou para ele.

Não faço isto muitas vezes, mas vou retirar os órgãos pélvicos de uma só vez. Cortar o osso púbico e tirar tudo.

Acha que ela foi abusada sexualmente?

Maura não respondeu. Contornou a mesa e tirou um bisturi do tabuleiro. Aproximou-se do tronco e começou a fazer uma incisão em Y.

Doutora Isles? chamou Louise pelo intercomunicador.

Sim?

Tem uma chamada na linha um. É outra vez o doutor Victor Banks, daquela organização, a One Earth.

Maura ficou imóvel, com o bisturi na mão. A ponta a aflorar a pele.

Doutora Isles? insistiu Louise.

Não estou disponível.

Digo-lhe que lhe telefona mais tarde?

Não.

É a terceira vez que ele liga hoje. Perguntou se podia telefonar-lhe para casa.

Não lhe dê o número do telefone da minha casa.

A resposta soou mais ríspida do que ela desejava, e Yoshima virou-se para olhar para ela. Maura sentiu que Frost e Rizzoli também a observavam. Ganhou fôlego e acrescentou, mais calma:

Diga ao doutor Banks que não estou disponível e continue a dizer o mesmo até ele parar de telefonar.

Fez-se uma pausa.

Está bem, doutora Isles respondeu por fim Louise, um pouco agastada com a troca de palavras.

Era a primeira vez que Maura lhe falava num tom tão ríspido, e teria de ser ela a arranjar maneira de limar a aresta e reparar os danos. A conversa deixara-a agitada. Olhou para o tronco de Camille Maginnes, tentando concentrar-se de novo na tarefa que tinha em mãos, mas os seus pensamentos estavam dispersos e faltava-lhe firmeza na mão.

Os outros deram por isso.

Porque é que a One Earth anda a telefonar-lhe? perguntou Rizzoli. Quer angariar donativos?

Isto não tem nada a ver com a One Earth.

Então o que é? insistiu Rizzoli. Esse tipo anda atrás de si?

É apenas uma pessoa que tento evitar.

Parece que ele é muito persistente.

Nem imagina.

Quer que eu o afaste? Que o mande àquela parte?

Não era só a detective que falava assim; era também a mulher, que não tinha paciência para aturar homens dominadores.

É um assunto pessoal esclareceu Maura.

Se precisar de ajuda, basta pedir.

Obrigada, mas eu trato dele.

Maura encostou o bisturi à pele do cadáver, ansiosa por não falar mais em Victor Banks. Respirou fundo e pensou que era uma ironia que o cheiro da carne morta a perturbasse menos do que o simples facto de pronunciar o nome dele, que os vivos a atormentassem muito mais do que os mortos. Na morgue, ninguém a magoava ou traía. Na morgue, era ela que controlava tudo.

Então quem é esse tipo? perguntou Rizzoli.

A pergunta continuava na mente de todos eles. A pergunta à qual Maura teria de responder, mais cedo ou mais tarde.

Enterrou a lâmina na carne e viu a pele a abrir-se como uma cortina branca.

É o meu ex-marido respondeu ela.

Fez a incisão em Y e em seguida afastou a pele descorada. Yoshima serviu-se de uma serra vulgar para cortar as costelas. Depois, levantou o triângulo das costelas e o esterno e deixou à mostra um coração e uns pulmões normais, um fígado, um baço e um pâncreas saudáveis. Os órgãos limpos e sãos de uma jovem que não tinha abusado nem do álcool nem do tabaco e que não vivera o suficiente para que as suas artérias estreitassem e bloqueassem. Maura reduziu ao mínimo os comentários enquanto retirava os órgãos e os colocava numa bacia metálica, com pressa de atingir o objectivo seguinte: examinar os órgãos pélvicos.

A excisão em bloco da pélvis era um processo que ela reservava habitualmente para os casos fatais de violação, na medida em que permitia uma dissecção mais detalhada dos órgãos do que a autópsia vulgar. Não era agradável, este esvaziamento do conteúdo da bacia. Quando Maura e Yoshima começaram a serrar as ramificações do osso púbico, ela não ficou admirada ao ver que Frost se virava para o lado. Também Rizzoli se afastou da mesa. Agora, ninguém falava dos telefonemas do ex-marido de Maura; ninguém a obrigava a revelar pormenores pessoais. De repente, a autópsia tornara-se demasiado assustadora para admitir conversas, o que muito aliviou Maura.

Retirou todo o bloco formado pelos órgãos pélvicos, pelos órgãos genitais exteriores e pelo osso púbico e transferiu-o para uma prancha de corte. Ainda antes de abrir o útero, percebeu pelo aspecto do órgão que os seus receios se confirmavam. O útero estava maior do que devia estar, com o fundo muito acima do nível do osso púbico, e as paredes tinham um aspecto esponjoso. Maura abriu-o e viu o endométrio ainda espesso e ensanguentado.

Olhou para Rizzoli e perguntou, abruptamente:

Esta mulher saiu da abadia na semana passada?

A última vez que Camille saiu da abadia foi em Março, para ir visitar a família em Cape Cod. Foi o que Mary Clement me disse.

Então, tem de fazer uma busca ao complexo. Imediatamente.

Porquê? O que procuramos?

Um recém-nascido.

Esta resposta deixou Jane profundamente abalada. Lívida, olhou para Maura e depois para o corpo de Camille Maginnes, estendido na mesa de autópsias.

Mas... Ela era freira.

Pois. E deu à luz há pouco tempo afirmou Maura.

 

Nessa tarde, quando Maura saiu do edifício, estava a nevar outra vez, flocos suaves e rendilhados que borboleteavam como traças brancas e iam pousar nos automóveis estacionados. Nesse dia, encontrava-se preparada para o mau tempo e calçara umas botas curtas com solas de borracha. Mesmo assim, foi cautelosa ao atravessar o parque de estacionamento; as botas escorregavam no gelo coberto de neve e ela protegeu o corpo com os braços, para não cair. Quando por fim chegou ao carro, suspirou de alívio e procurou as chaves dentro da carteira. Distraída, mal ouviu o barulho da porta de outro carro a fechar-se. Só quando sentiu os passos é que se voltou para o homem que se aproximava. Ele parou a meia dúzia de passos dela, sem dizer nada. Ficou a observá-la, com as mãos enfiadas nos bolsos do blusão de couro. Os flocos de neve pousavam no seu cabelo louro e agarravam-se à barba impecavelmente aparada.

O homem olhou para o Lexus dela e disse:

Vi logo que o preto era teu. Escolhes sempre o preto. Andas sempre do lado da sombra. E quem mais tem um carro tão limpo?

Por fim, Maura conseguiu falar. A voz saiu roufenha, como se não fosse a dela.

O que estás aqui a fazer, Victor?

Aparentemente, é a única maneira de te ver.

Armas-me uma emboscada no parque de estacionamento?

É isso que parece?

Tens estado aí sentado à minha espera. Chamo a isso uma emboscada.

Não me deste alternativa. Não respondeste a nenhum dos meus telefonemas.

Não pude.

Nunca me deste o teu novo número de telefone.

Nunca mo pediste. Ele olhou para a neve, que caía como confetes, e suspirou.

Bem, é como nos velhos tempos, não é?

Exactamente. Maura virou-se para o seu carro e accionou o controlo remoto.

A fechadura reagiu.

Não queres saber porque estou aqui?

Tenho de ir andando.

Apanhei um avião para Boston e tu nem sequer perguntas porquê.

Está bem. Porquê? perguntou ela, encarando-o.

Três anos, Maura.

Ele aproximou-se mais e ela sentiu-lhe o cheiro. A cabedal e sabonete. A neve a derreter-se na pele quente. Três anos, pensou ela, e ele pouco mudara. A mesma inclinação acriançada da cabeça, as mesmas rugas de expressão à volta dos olhos. E, até em Dezembro, o cabelo parecia descolorado pelo sol; não eram tons artificiais, mas madeixas louras naturais de horas passadas ao ar livre. Victor Banks parecia irradiar a sua própria força gravitacional, e Maura era tão susceptível a ela como qualquer outra pessoa. Sentiu o velho impulso que a atraía para ele.

Não perguntaste a ti própria, ao menos uma vez, se teria sido um erro?

O divórcio? Ou o casamento?

Não é óbvio de qual estou a falar? Se estou aqui a conversar contigo...

Levaste muito tempo.

Maura virou-lhe as costas e preparou-se para entrar no carro.

Não voltaste a casar. Ela parou. Olhou para ele.

E tu?

Não.

Então, presumo que ambos somos pessoas com quem é difícil viver.

Não tiveste tempo para chegar a essa conclusão.

Ela riu-se. Havia um som amargo e desagradável neste silêncio.

Tu é que andavas sempre a caminho do aeroporto. Sempre a rugir para salvar o mundo.

Não fui eu que fugi do casamento.

Não fui eu que tive o caso.

Maura deu meia volta e abriu a porta do carro.

Raios, não podes esperar? Escuta-me.

Ele agarrou-lhe no braço e ela ficou admirada com a raiva que aquela mão transmitia. Fitou-o com um ar frio, dando-lhe a entender que fora longe de mais.

Ele largou-a.

Desculpa. Céus, não era assim que eu queria que as coisas corressem.

O que esperavas?

Que ainda houvesse alguma coisa entre nós.

E havia, pensou ela. Havia demasiadas coisas, e era por isso que ela não podia prolongar aquela conversa. Receava ser apanhada mais uma vez. Aliás, sentia que isso já estava a acontecer.

Ouve disse ele. Fico uns dias na cidade. Amanhã tenho uma reunião na Harvard School of Public Health, mas depois não tenho planos. O Natal está à porta, Maura. Lembrei-me que podíamos passar estes dias juntos. Se estiveres livre.

E depois vais-te embora outra vez.

Pelo menos, podíamos esclarecer várias coisas. Não podes tirar uns dias de licença?

Eu tenho um emprego, Victor. Não posso deixá-lo assim sem mais nem menos.

Ele olhou para o edifício e soltou uma gargalhada incrédula.

Não sei porque havias de querer um emprego destes.

O lado da sombra, lembras-te? Eu sou assim.

Ele olhou para ela e disse, com uma voz mais terna:

Não mudaste. Nada.

Nem tu, e esse é o problema. Maura entrou no carro e fechou a porta.

Ele bateu no vidro. Ela olhou para ele, que a observava, com flocos de neve a brilhar nas pestanas, e só lhe restou abrir a janela e continuar a conversa.

Quando podemos voltar a falar? perguntou ele.

Agora tenho de ir.

Mais tarde, então. Esta noite.

Não sei a que horas vou chegar a casa.

Ora, Maura.

Ele inclinou-se mais e acrescentou em voz baixa:

Arrisca. Estou hospedado no Colonnade. Telefona-me.

Ela suspirou.

Vou pensar nisso.

Ele estendeu a mão e apertou-lhe o braço. Mais uma vez, o perfume dele despertou recordações fortes, de noites passadas entre lençóis amarrotados, com as pernas entrelaçadas. De beijos prolongados e lentos e do sabor a limão fresco e a vodka. Dois anos de casamento deixam recordações inapagáveis, tanto boas como más, e naquele momento, com a mão dele no seu braço, eram as boas recordações que prevaleciam.

Fico à espera do teu telefonema disse ele, já a partir do princípio que vencera.

Ele julga que é assim tão fácil? interrogou-se ela, quando saiu do parque de estacionamento e se dirigiu para Jamaica Plain. Um sorriso, uma carícia, e está tudo esquecido?

De repente, os pneus começaram a patinar na estrada coberta de gelo e ela agarrou-se ao volante, concentrando-se de novo e recuperando o controlo do carro. Estava tão agitada que nem se apercebera da velocidade a que seguia. O Lexus guinou e os pneus procuraram o seu ponto de apoio. Só quando ela recomeçou a seguir em linha recta é que se permitiu respirar outra vez. Irritar-se outra vez.

Primeiro, deixaste-me destroçada. Agora, ias-me matando.

Um pensamento irracional, mas era assim mesmo. Victor inspirava pensamentos irracionais.

Quando parou em frente da Abadia de Graystones, do outro lado da rua, sentiu-se esgotada. Deixou-se ficar sentada no carro durante alguns instantes, tentando controlar as emoções. "Controlo" era a palavra que norteava a sua vida. Assim que saísse do carro, era uma personalidade pública aos olhos das autoridades e da imprensa. Eles esperavam que ela se mostrasse calma e lógica, e ela assim faria. Uma grande parte do seu trabalho consistia apenas em representar.

Saiu e dessa vez atravessou a rua com confiança; as solas das botas não escorregaram no pavimento. Os carros da polícia formavam uma fila. e duas equipas de estações de televisão aguardavam no interior das carrinhas que surgissem novos dados. O dia de Inverno começava já a dar lugar à noite.

Maura tocou a sineta e no meio das sombras apareceu uma freira de hábito preto. A freira reconheceu-a e deixou-a entrar sem trocar uma palavra com ela.

No tapete de neve que cobria o pátio, viam-se dezenas de pegadas. Não parecia o mesmo sítio daquela manhã em que Maura lá entrara pela primeira vez. Hoje, toda a aparência de tranquilidade era afectada pela busca que estava em curso. Via-se a luz acesa em todas as janelas e ouviam-se vozes masculinas nas arcadas. No átrio, cheirava a molho de tomate e a queijo, odores desagradáveis que recordaram a Maura a lasanha desenxabida e encortiçada que serviam muitas vezes no refeitório do hospital em que estagiara.

Olhou para a sala de jantar e viu as freiras sentadas à mesa, na sua refeição da noite, em silêncio. Viu mãos trémulas a levar garfadas vacilantes a bocas desdentadas e viu leite a escorrer por queixos engelhados. Aquelas mulheres tinham vivido quase sempre fechadas e envelhecido em reclusão. Ter-se-iam algumas arrependido do que haviam perdido, da vida que podiam ter vivido, se tivessem pura e simplesmente saído pelo portão e nunca mais voltassem?

Continuando a descer o corredor, Maura ouviu vozes masculinas, estranhas e surpreendentes numa casa de mulheres. Dois agentes reconheceram-na e cumprimentaram-na.

Olá, doutora.

Descobriram alguma coisa? perguntou ela.

Ainda não. Estamos quase a acabar, por hoje.

Onde está Rizzoli?

Lá em cima. No dormitório.

Na escada, Maura cruzou-se com mais dois membros da equipa de investigação que vinham a descer cadetes da polícia, tão novos que pareciam acabados de sair do liceu. Um jovem, ainda com marcas de acne na face, e uma mulher, com aquela máscara distante que muitas agentes pareciam adoptar para se autopreservarem. Ambos baixaram o olhar em sinal de respeito quando reconheceram Maura. Esta reacção fê-la sentir-se velha, ao ver aqueles jovens a afastarem-se, por deferência, para deixá-la passar. Intimidá-los-ia ela tanto que eles não vissem a mulher que havia nela, com a sua colecção de inseguranças? Maura aperfeiçoara o seu ar de invencibilidade, que agora era chamada a ostentar. Baixou a cabeça num gesto de saudação e deitou-lhes uma olhadela rápida, sabendo que eles ficariam a observá-la enquanto subia a escada.

Foi encontrar Rizzoli no quarto da irmã Camille, sentada na cama e com os ombros caídos, de cansaço.

- Parece que todos vão para casa excepto você disse Maura.

Rizzoli virou-se para ela. Tinha os olhos baços e olheiras fundas, e no seu rosto havia rugas de fadiga que Maura nunca vira.

Não encontrámos absolutamente nada. Temos andado à procura desde o meio-dia. Mas isto leva tempo, passar a pente fino todos os armários, todas as gavetas. E ainda há o campo e os jardins nas traseiras... Quem sabe o que estará por baixo da neve? Ela pode tê-lo embrulhado e atirado para o lixo há uns dias. Pode tê-lo entregado a alguém ao portão. Podemos passar dias à procura de uma coisa que pode ou não estar aqui.. O que diz a madre?

Ainda não lhe disse o que procuramos.

Porquê?

Não quero que ela saiba.

Talvez ela pudesse dar uma ajuda.

Ou tomar medidas para garantir que não encontrássemos nada. Acha que esta arquidiocese precisa de mais escândalos? Acha que ela quer que se saiba que um membro da sua ordem matou o próprio filho?

Não sabemos se a criança está morta. Sabemos apenas que desapareceu.

E tem certezas absolutas quanto às conclusões da autópsia?

Tenho. Camille encontrava-se num estado avançado de gravidez. Não, não acredito na imaculada concepção. Maura sentou-se na cama, ao lado de Jane. O pai pode ser fundamental para a descoberta do agressor. Temos de identificá-lo.

Pois, eu estava precisamente a pensar nessa palavra. Pai. Ou padre.

O padre Brophy?

É um homem bem-parecido. Já o viu?

Maura lembrou-se dos olhos azuis brilhantes que a fitavam quando o operador de câmara estava estendido no chão, do modo como ele saíra do portão da abadia, como se fosse um guerreiro vestido de negro, pronto a desafiar aquela alcateia de repórteres.

Ele vinha cá muitas vezes disse Rizzoli. Rezava missa. Ouvia-as em confissão. Há alguma coisa mais íntima do que partilharmos os nossos segredos num confessionário?

Você está a partir do princípio que o sexo foi consensual.

Estou apenas a dizer que ele é um tipo bem-parecido.

Não sabemos se o bebé foi concebido nesta abadia. Camille não foi visitar a família em Março?

Foi. Quando a avó morreu.

Precisamente. Se ela concebeu em Março, estaria agora no nono mês de gravidez. Tudo pode ter acontecido durante essa ida a casa.

E pode ter acontecido aqui. Dentro destas paredes. Para cumprir esse tal voto de castidade concluiu Rizzoli com um riso cínico.

Calaram-se durante algum tempo e ficaram a olhar para o crucifixo na parede. Como nós, os humanos, somos imperfeitos, pensou Maura. Se existe um deus, porque nos impõe ele padrões tão inatingíveis? Porque define objectivos que nunca conseguimos alcançar?

- Eu quis ser freira, noutros tempos disse Maura.

Julguei que não era crente.

Tinha nove anos. E acabara de saber que fora adoptada. A minha prima deu com a língua nos dentes, uma daquelas revelações desagradáveis que de repente explicam tudo. Porque é que eu não era parecida com os meus pais. Porque é que não havia fotografias de quando eu era bebé. Passei o fim-de-semana inteiro a chorar no meu quarto. Maura abanou a cabeça. Pobres pais! Não sabiam o que haviam de fazer e levaram-me ao cinema para me animar. Fomos ver Música no Coração. O bilhete custou apenas setenta e cinco cêntimos, porque o filme era antigo. Maura calou-se por instantes. Achei a Julie Andrews deslumbrante. E queria ser como a Maria. Ir para o convento.

Doutora, quer que eu lhe conte um segredo?

O que é?

Também eu. Maura olhou para ela.

Não me diga!

Posso ter sido um zero à esquerda no catecismo. Mas quem consegue resistir ao apelo da Julie Andrews?

Riram-se, mas foi um riso nervoso que rapidamente deu lugar ao silêncio.

Então o que a fez mudar de ideias? perguntou Rizzoli. Porque não foi para freira?

Maura levantou-se e foi até à janela. Olhando para o pátio às escuras, respondeu:

Fui crescendo. Deixei de acreditar naquilo que não via, que não cheirava ou em que não tocava. Em tudo o que não pudesse ser provado cientificamente. E descobri os rapazes.

Ah, pois, os rapazes. Rizzoli riu-se. É sempre a mesma coisa.

- É o verdadeiro objectivo da vida, sabe? De um ponto de vista biológico.

O sexo?

- A procriação. É o que os nossos genes exigem. Que cresçamos e nos multipliquemos. Julgamos que somos os únicos a controlar a nossa vida, mas não passamos de escravos do nosso ADN, que nos diz para termos bebés.

Maura virou-se e ficou admirada ao ver que Rizzoli tinha os olhos marejados de lágrimas; estas desapareceram num ápice, afastadas com um gesto rápido da mão.

Jane?

Estou cansada. Não tenho dormido muito bem.

Passa-se mais alguma coisa?

Que mais havia de ser? A resposta foi demasiado rápida, demasiado à defesa. Até Rizzoli se apercebeu disso e corou. Tenho de ir à casa de banho disse ela, levantando-se, como se estivesse ansiosa por fugir. Quando chegou à porta, parou e olhou para trás. A propósito, conhece o livro que está em cima da secretária? Aquele que Camille andava a ler. Reparei no título.

Qual é?

"Santa Erigida da Irlanda". É uma biografia. É curioso como existe um santo padroeiro para tudo, para todas as ocasiões. Há um santo para os chapeleiros. Um santo para os toxicodependentes. Com os diabos, até há um santo para as chaves perdidas.

Santa Erigida é padroeira de quem?

Dos recém-nascidos respondeu Jane em voz baixa. Erigida é a santa dos recém-nascidos.

E, dizendo isto, saiu do quarto.

Maura olhou para a secretária onde estava o livro. Ainda na véspera imaginara Camille sentada à secretária, a virar as páginas tranquilamente, a buscar inspiração na vida de uma jovem irlandesa destinada à santidade. Agora, a cena era diferente Camille não era uma jovem serena, mas atormentada, pedindo a Santa Erigida que salvasse o filho morto. Peço-te, recebe-o nos teus braços misericordiosos. Mostra-lhe a luz, apesar de ele não ter sido baptizado. Ele é um inocente. Ele não tem pecado.

Contemplou o quarto austero e viu-o a uma nova luz. O soalho imaculado, o cheiro a lixívia e a cera tudo ganhava um novo significado. A limpeza como metáfora da inocência. Camille, a pecadora, limpara desesperadamente os seus pecados, a sua culpa. Durante meses, devia-se ter apercebido de que trazia um filho no ventre, escondido debaixo das pregas volumosas do hábito. Ou recusara-se a aceitar a realidade? Ou negara-a perante si própria, tal como as adolescentes grávidas negavam às vezes a evidência da sua própria barriga inchada?

E o que fizeste, quando o teu filho veio ao mundo? Entraste em pânico. Ou livraste-te, fria e tranquilamente, da consequência do teu pecado?

Maura ouviu vozes masculinas lá fora. Através da janela, avistou os vultos de dois polícias a sair do edifício. Pararam para aconchegar os sobretudos e para contemplar a neve que caía, rutilante, do céu nocturno. Depois saíram do pátio, e os gonzos chiaram quando o portão se fechou atrás deles. Maura ficou à escuta de outros sons, de outras vozes, mas não ouviu nada. Apenas o silêncio de uma noite de neve. Tão calma, pensou ela. Como se eu fosse a única que ficou no edifício. Esquecida e sozinha.

Ouviu um estalido e sentiu um movimento, de outra presença no quarto. De repente, os pêlos da nuca eriçaram-se e ela soltou uma gargalhada.

Céus, Jane, não me pregue um susto como... Virou-se para trás e não terminou a frase.

Não estava ali ninguém.

Por instantes, não se mexeu, não respirou, limitou-se a olhar para o espaço vazio. Para o ar, para o soalho encerado O quarto está assombrado, foi o seu primeiro pensamento irracional, antes de a lógica levar a melhor. Os soalhos velhos estalavam e os tubos do aquecimento central gemiam. Não eram passos, mas as tábuas do soalho, a contraírem-se com o frio. Havia explicações perfeitamente razoáveis para que ela tivesse julgado que estava mais alguém no quarto.

No entanto, continuava a sentir uma presença, continuava a sentir que estava a ser observada.

Agora, também os pêlos dos seus braços se eriçavam e todos os seus nervos retiniam em sinal de alarme. Algo andava aos saltos lá em cima, como se fossem unhas a bater na madeira. Maura olhou para o tecto. Será um animal? Está a afastar-se de mim.

Maura saiu do quarto. O bater desordenado do seu coração quase abafava os sons vindos de cima. Lá estava aquilo... A deslocar-se no corredor!

Pum-pum-pum.

Maura foi atrás do barulho, sempre a olhar para o tecto, a andar tão depressa que ia chocando com Rizzoli, que acabara de sair da casa de banho.

O que é? Qual é a pressa? perguntou Rizzoli.

Chiu!

Maura apontou para as vigas escuras do tecto.

O que é?

Escute!

Ficaram à espera, tentando ouvir mais alguma coisa. Mas, com excepção do bater do seu coração, Maura só ouviu o silêncio.

Talvez fosse a água a correr nos canos disse Rizzoli. Eu puxei o autoclismo.

Não eram os canos.

Bem, então o que ouviu? Maura voltou a olhar para as traves antigas do tecto.;)

É ali! O barulho recomeçou, ao fundo do corredor. Rizzoli olhou para cima.

O que diabo é isto? Ratos?

Não respondeu Maura em surdina. Seja o que for, é maior do que um rato.

Desceu o corredor à pressa, com Rizzoli atrás dela, e aproximou-se do sítio de onde viera o barulho pela última vez.

De repente, ouviu-se uma série de pancadas no tecto, desta vez em sentido contrário.

Vai para a outra ala! exclamou Rizzoli.

Com a detective à frente, entraram numa porta que havia ao fundo do corredor. Rizzoli acendeu a luz. Depararam com um corredor deserto. Estava frio ali, e a atmosfera era abafada e húmida. Através das portas abertas, viram quartos abandonados e os vultos fantasmagóricos de móveis cobertos com lençóis.

O que quer que fugira para aquela ala estava agora em silêncio, não dava sinal de si.

A sua equipa inspeccionou esta zona do edifício? perguntou Maura.

Demos uma vista de olhos a todos estes quartos.:

E lá em cima? Por cima deste tecto?

Aí é o sótão.

Bem, há alguma coisa a mexer lá em cima disse Maura. E é suficientemente inteligente para saber que andamos atrás dela.

Maura e Rizzoli agacharam-se na galeria superior da capela para examinarem o painel de mogno que, segundo Mary Clement lhes explicara, dava acesso ao sótão do edifício. Rizzoli empurrou ligeiramente o painel, que se abriu sem fazer barulho. Olharam ambas para o escuro e ficaram à escuta. Um bafo quente bateu-lhes na cara. Era no sótão que se concentrava o calor do edifício, e elas sentiram-no a sair pela abertura.

Jane apontou a lanterna lá para dentro. Via-se o travejamento maciço e a cor rosada do material isolante recentemente aplicado. Do chão, serpenteavam vários fios eléctricos.

Rizzoli foi a primeira a entrar. Maura acendeu também a sua lanterna e entrou atrás dela. O espaço não tinha altura suficiente para ela se endireitar; teve de inclinar a cabeça para evitar as vigas de carvalho abauladas que sustentavam a cobertura. A luz das lanternas descrevia grandes círculos no escuro. Para além deles, havia uma fronteira invisível; Maura sentiu o ritmo respiratório acelerado de ambas. O tecto baixo e o ar rarefeito davam-lhe a sensação de estar enclausurada.

Sobressaltou-se quando sentiu que lhe tocavam no braço. Sem dizer uma palavra, Rizzoli apontou para a direita.

A madeira estalava à medida que avançavam através das sombras. Rizzoli ia à frente.

Espere! disse Maura em voz baixa. Não devia pedir reforços?

Porquê?

Por causa daquilo lá em cima.

Não vou pedir reforços se aquilo que estamos a perseguir for apenas um estúpido guaxinim... Rizzoli parou, apontando o foco de luz para a esquerda e para a direita. Acho que já acabámos a ala oeste. Está quentinho aqui em cima. Desligue a lanterna.

O quê?

Desligue-a. Quero verificar uma coisa.

Com relutância, Maura desligou a lanterna. Rizzoli fez o mesmo.

Na escuridão súbita, Maura sentiu a pulsação a acelerar. Não vemos o que está à nossa volta. O que possa estar a vir ao nosso encontro. Pestanejou, forçando os olhos a adaptarem-se ao escuro. Foi então que reparou na luz raiozinhos de luz, entre as fendas do soalho. Aqui e ali, uma fenda maior, no sítio em que as tábuas se tinham afastado, ou em que os nós da madeira se tinham contraído com a atmosfera seca do Inverno, formando uma espécie de olho.

Os passos de Rizzoli faziam estalar o soalho. De repente, o seu vulto sombrio agachou-se, e ela encostou a cabeça ao chão. Ficou algum tempo naquela posição e depois riu-se baixinho.

Até parece que estou a espreitar para o vestiário dos rapazes no liceu.

O que está a ver?

O quarto de Camille. Estamos mesmo por cima dele. Há aqui um buraco na madeira.

Maura avançou na escuridão e aproximou-se de Rizzoli. Ajoelhou-se e espreitou pelo buraco.

Estava a ver a secretária de Camille.

Endireitou-se, sentindo um calafrio na espinha. Aquilo que estava aqui em cima viu-me, naquele quarto. Estava a observar-me. Pum-pum-pum.

Maura tenteou a lanterna, ligou-a e apontou-a em todas as direcções, procurando quem, ou aquilo, que se encontrava no sótão, junto delas. Vislumbrou teias de aranha penugentas, traves maciças mesmo por cima da sua cabeça. Estava muito calor ali em cima, a atmosfera era sufocante e abafada e a sensação de asfixia alimentava o seu pânico.

Tanto ela como Rizzoli estavam instintivamente na defensiva, costas com costas, e Maura sentia os músculos tensos da companheira, a respiração acelerada, enquanto ambas inspeccionavam a escuridão. À procura do brilho de uns olhos, de um rosto feroz.

A rapidez dos movimentos de Maura foi tal que ela não viu à primeira. Só quando voltou a apontar o foco de luz para a extremidade de uma viga é que reparou que havia uma irregularidade no soalho tosco. Concentrou-se, mas não acreditou no que estava a ver.

Deu um passo em frente, cada vez mais horrorizada à medida que se aproximava e que o foco de luz ia revelando outras formas semelhantes. Eram tantas...

Meu Deus, é um cemitério. Um cemitério de bebés.

O foco de luz vacilou. Maura, cuja mão era sempre tão firme a manejar o bisturi na mesa de autópsias, não conseguiu deixar de tremer. Parou, e o foco da sua lanterna incidiu directamente num rosto. Um par de olhos azuis fitaram-na, lustrosos como berlindes. Maura continuou a olhar, apercebendo-se lentamente do que estava a ver.

E depois soltou uma gargalhada. Uma gargalhada sonora e assustada.

Nessa altura, já a detective estava à sua direita, a iluminar a pele rosada, a boquinha, o olhar sem vida.

Que diabo! exclamou ela. É apenas uma maldita boneca!

Maura apontou a lanterna para os outros objectos que se encontravam ao lado. E viu pele macia, de plástico, membros roliços. O brilho dos olhos de vidro reflectiu-se nos dela.

São bonecas. É uma colecção de bonecas disse ela.

Repare como estão alinhadas, em fila. Parece uma espécie de enfermaria. Que estranho!

Ou um ritual contrapôs Maura, baixinho. Um ritual pagão num santuário de Deus.

Oh, céus. Agora é que você me tramou. Pum-pum-pum.

Rodopiaram ambas, atravessando a escuridão com os focos de luz, mas não descobriram nada. O som fora mais ténue. O que quer que se encontrava no sótão com elas estava agora a afastar-se, furtando-se ao alcance das suas luzes. Maura assustou-se ao ver que Rizzoli puxara da arma; fora tudo tão rápido que ela nem se apercebera.

Não creio que seja um animal comentou Maura. Pouco depois, Rizzoli disse:

Também não me parece.

Vamos sair daqui. Por favor!

Está bem. Rizzoli respirou fundo e Maura ouviu-lhe pela primeira vez a voz trémula de medo. Está bem. Uma saída controlada. Um passo de cada vez.

Percorreram juntas o caminho de regresso. O ar tornou-se mais frio, mais húmido; ou talvez fosse o medo que arrepiava Maura. Quando se aproximaram do painel, ela saltou literalmente do sótão.

Atravessaram a abertura e entraram na galeria da capela. Com as primeiras lufadas de ar frio, o medo dissipou-se. Ali, à luz, Maura conseguiu controlar-se. E voltar a pensar com lógica. O que vira, de facto, naquele sítio escuro? Uma fila de bonecas, nada mais. Pele de plástico, olhos de vidro e cabelo de náilon.

Aquilo não era um animal disse Rizzoli, agachando-se e examinando o soalho da galeria.

O que é?

Está aqui uma pegada.

Rizzoli apontou para os vestígios de poeira. A marca de um sapato de desporto.

Maura deitou uma olhadela às solas dos sapatos e verificou que também ela trouxera pó para a galeria. Quem deixara aquela pegada fugira do sótão pouco antes delas.

Bem, cá está quem procuramos disse Rizzoli, abanando a cabeça. Meu Deus! Ainda bem que não disparei. Detesto pensar que...

Maura olhou para a pegada e estremeceu. Era de uma criança.

 

Grace Otis estava sentada à mesa da sala de jantar do convento e abanou a cabeça.

Ela tem apenas sete anos. Não podem confiar em nada do que ela diz. Mente-me constantemente.

De qualquer modo, gostava de falar com ela disse Rizzoli. Com a sua autorização, claro está.

Falar com ela sobre quê?

Saber o que estava ela a fazer no sótão.

Ela estragou alguma coisa, foi isso? Grace deitou um olhar nervoso à madre Mary Clement, que fora chamá-la à cozinha. Eu vou castigá-la, reverenda madre. Tenho tentado andar atrás dela, mas ela é manhosa e nunca conta o que fez. Nunca sei onde é que ela foi...

Mary Clement pousou a mão deformada no ombro de Grace.

Por favor. Deixe que a polícia fale com ela.

Grace deixou-se ficar sentada, sem saber o que fazer. Depois de arrumar a cozinha, ficara com o avental cheio de nódoas de gordura e de molho de tomate, e sobre o rosto suado caíam várias madeixas de cabelo castanho que se tinham soltado do rabo-de-cavalo. Era um rosto rude, gasto, que talvez nunca tivesse sido belo e que as rugas de amargura sobrecarregavam ainda mais. Agora, enquanto as outras aguardavam a sua decisão, ela era a única que controlava a situação, que tinha poder, e parecia saboreá-lo. Adiando a decisão tanto quanto possível, enquanto Rizzoli e Maura esperavam.

De que tem medo, Mistress Otis? perguntou Maura tranquilamente.

A pergunta parece ter irritado Grace.

Não tenho medo de nada.

Então porque não quer que falemos com a sua filha?

Porque ela não é de fiar.

Sim, sabemos que ela tem apenas sete...

Ela mente. As palavras saíram-lhe da boca como o estalar de um chicote. O rosto de Grace, que não era atraente, tornou-se ainda mais feio. Ela mente acerca de tudo. Até sobre coisas sem importância. Não podem acreditar em nada do que ela diz, em nada.

Maura olhou para a madre, que abanou a cabeça, atrapalhada.

A menina tem-se mostrado sossegada e comedida disse Mary Clement. Foi por isso que autorizámos a Grace a trazê-la para a abadia enquanto trabalha.

Não posso pagar a uma pessoa para tomar conta dela interpôs Grace. Aliás, não tenho dinheiro para nada. Só assim é que posso trabalhar, se ficar com ela aqui depois da escola.

E ela fica aqui à sua espera? perguntou Maura. Até a senhora acabar o trabalho?

O que hei-de fazer? Tenho de trabalhar, percebe? O meu marido não está lá de graça. Hoje em dia, até para morrer precisamos de dinheiro.

Como disse?

Refiro-me ao meu marido. Está internado no Hospício de Santa Catarina. Só Deus sabe quanto tempo ele lá ficará. Grace deu uma olhadela à madre, penetrante como uma seta envenenada.

Trabalho aqui. Isso faz parte do acordo.

Era óbvio que não se tratava de um bom acordo, pensou Maura. Grace não podia ter mais de trinta e cinco anos, mas devia sentir que a sua vida já tinha acabado. Estava manietada pelas obrigações para com uma filha de quem claramente não gostava muito e para com um marido que nunca mais morria. Para Grace Otis, a Abadia de Graystones não era um santuário, era uma prisão.

Porque é que o seu marido está em Santa Catarina? perguntou Maura amavelmente.

Já lhe disse. Está a morrer.

De quê?

Da doença de Charcot, também conhecida como Lou Gehrig

ELA.

Grace respondeu sem emoção, mas Maura conhecia a realidade terrível que este nome escondia. Quando andava a estudar, examinara um doente com esclerose lateral amiotrófica. Apesar de estar completamente acordado e consciente, e de ser sensível às dores, não se podia mexer devido à atrofia dos músculos, que o reduzia a pouco mais do que um cérebro prisioneiro de um corpo inútil. Quando lhe examinara o coração e os pulmões e lhe palpara o abdómen, sentira o olhar dele cravado nela, e não quisera encará-lo, porque sabia o desespero que veria nos seus olhos. Quando por fim saíra do quarto, sentira alívio, mas também uma ponta de remorso, mas só uma ponta. A tragédia dele não lhe dizia respeito. Ela era apenas uma estudante, de passagem pela vida dele, sem obrigação de partilhar o fardo do seu infortúnio. Era livre de se ir embora, e foi.

Grace Otis não podia fazer o mesmo. O resultado era visível nas rugas de ressentimento do seu rosto e nas madeixas prematuramente brancas do seu cabelo.

Pelo menos, avisei-a. Ela não é de fiar. Conta histórias. As vezes, são histórias ridículas disse ela.

Nós compreendemos respondeu Maura. As crianças são assim.

Se quiserem falar com ela, tem de ser na minha presença. Só para eu ter a certeza que ela se porta bem.

Com certeza. Está no seu direito, como mãe. Por fim, Grace levantou-se.

A Noni está escondida na cozinha. Vou buscá-la. Passados alguns minutos, Grace reapareceu, com uma menina de cabelo escuro pela mão. Era óbvio que Noni não queria vir e que resistira durante todo o caminho, com todas as fibras do seu corpinho, à força inexorável da mãe. Por fim, Grace pegou na filha por baixo dos braços e sentou-a numa cadeira não com ternura, mas com o cansaço e o desagrado de uma mulher que chegara ao limite da sua resistência. A menina manteve-se calada durante algum tempo, como que admirada por se ter deixado dominar tão depressa. Era uma criança de cabelo encaracolado, queixo anguloso e olhos escuros cheios de vivacidade, que depressa se apercebeu da presença de todos. Olhou apenas de relance para Mary Clement, o seu olhar demorou-se um pouco mais em Maura e, por fim, concentrou-se em Rizzoli. E ali ficou, como se a detective fosse a única merecedora da sua atenção. Tal como um cão que resolve importunar o único asmático que se encontra na sala, Noni concentrara-se na pessoa que menos gostava de crianças.

Grace deu um encontrão à filha.

Tens de falar com elas.

Noni fez um esgar de protesto. Saíram-lhe da boca duas palavras, roufenhas, como o coaxar de uma rã.

Não quero.

Não me interessa que não queiras. Elas são da polícia. O olhar de Noni demorou-se em Rizzoli.

Não parecem ser polícias.

Mas são insistiu Grace. E se não falares verdade, elas levam-te presa.

Isto era precisamente o que os polícias detestavam que um pai ou uma mãe dissesse a um filho. As crianças ficavam com medo das pessoas em quem deviam confiar.

Com um gesto rápido, Rizzoli pediu a Grace que se calasse. Agachou-se em frente da cadeira de Noni para ficar ao mesmo nível da criança. Eram tão parecidas uma com a outra o cabelo escuro e encaracolado, o olhar intenso que Rizzoli poderia estar diante de um clone de si própria. Se Noni também fosse teimosa, então a semelhança seria total.

Vamos esclarecer uma coisa, está bem? disse Rizzoli à menina, num tom brusco e directo, como se falasse não com uma criança mas com um adulto em miniatura. Eu não te levo presa. Eu nunca levo os meninos presos.

A menina fitou-a, desconfiada.

Nem os meninos maus? perguntou ela, com ar de desafio.

Nem os meninos maus.

Nem os muito, muito maus?

Rizzoli hesitou, com uma certa irritação no olhar. Noni não desarmava.

Bem, se forem muito, mas mesmo muito maus, mando-os para o reformatório.

Isso é uma prisão para meninos.

Exactamente.

Então mandas meninos para a prisão. Rizzoli deitou a Maura um olhar estupefacto.

Bem, estou aqui ao pé de ti, mas não vou mandar-te para a prisão. Só quero falar contigo.

Porque é que não estás fardada?

Porque sou detective. Não tenho de usar farda. Mas sou polícia.

Mas és uma mulher.

Pois, sou uma mulher-polícia. E agora queres dizer-me o que estavas a fazer lá em cima, no sótão?

Noni encolheu-se na cadeira e ficou a olhar, como uma gárgula, para a sua interrogadora. Durante um bom minuto, observaram-se mutuamente, cada uma à espera que a outra quebrasse o silêncio.

Por fim, Grace perdeu a paciência e deu um safanão no ombro da filha.

Vá lá! Conta-lhe!

Por favor, Mistress Otis! Isso não é necessário! disse Rizzoli.

Mas está a ver como ela é? Não facilita nada. Tudo serve de confronto.

Vamos descontrair-nos, está bem? Eu posso esperar. Posso esperar tanto como tu, miúda disse-lhe Rizzoli com o olhar. Portanto, vamos lá, Noni. Diz-nos onde arranjaste aquelas bonecas. Aquelas com que estiveste a brincar lá em cima.

Não as roubei.

Eu não disse que as roubaste.

Encontrei-as. Uma caixa cheia delas.

Onde?

No sótão. E há lá mais caixas.

Não devias estar lá. Devias andar perto da cozinha e não incomodar ninguém.

Eu não estava a incomodar ninguém. Mesmo que quisesse, não havia ninguém naquele sítio para eu incomodar.

Então encontraste as bonecas no sótão disse Rizzoli, conduzindo de novo a conversa para o assunto em questão.

Uma caixa cheia delas.

Rizzoli deitou um olhar interrogador à madre Mary Clement, que respondeu:

Faziam parte de um projecto de beneficência aqui há uns anos. Nós é que fizemos as roupas das bonecas para dar a um orfanato no México.

Então encontraste as bonecas repetiu Rizzoli a Noni. E brincaste com elas lá em cima.

Mais ninguém se servia delas.

E como é que conseguiste entrar no sótão?

Vi o homem a entrar lá.

O homem? Rizzoli olhou para Maura. Aproximou-se mais de Noni e perguntou:

Qual homem?

Ele trazia coisas no cinto.

Coisas?

Um martelo e outras coisas respondeu Noni apontando para a madre. Ela também viu. Estava a falar com ele.

A madre Mary Clement soltou uma gargalhada de espanto.

- Oh! Eu sei ao que ela se refere. Nos últimos meses, fizemos várias obras de remodelação. Têm andado uns homens a trabalhar no sótão, a fazer o novo isolamento.

- Quando é que isso foi? perguntou Rizzoli.

Em Outubro.

Tem os nomes de todos esses homens?

Posso ir verificar os livros. Guardamos os documentos de todos os pagamentos que fazemos aos empreiteiros.

Afinal, não se tratara de uma revelação muito surpreendente. A menina andara a espiar os operários que subiam para um esconderijo cuja existência ela ignorava. Um espaço misterioso, cujo acesso se fazia apenas por uma porta secreta. Seria irresistível para qualquer criança sobretudo uma tão curiosa como esta dar uma espreitadela lá para dentro.

E não te importaste que estivesse escuro lá em cima? perguntou Rizzoli.

Eu tenho uma lanterna, sabes?

Mas que pergunta tão estúpida, era o que dava a entender o tom de voz de Noni.

Não tiveste medo? De estar sozinha?

Porquê?

Porquê, de facto? pensou Maura. Esta criança era corajosa, não se assustava nem com a escuridão nem com a polícia. Olhava fixamente para Rizzoli, como se fosse ela própria, e não a detective, a conduzir a conversa. Mas, apesar do seu aspecto sereno, não deixava de ser uma criança, e pouco cuidada. O cabelo era um emaranhado de caracóis salpicados de pó do sótão. A sweatshirt cor-de-rosa parecia em segunda mão. Era demasiado grande e tinha os punhos enrolados e sujos. Só os ténis lhe ficavam bem Keds novinhos em folha. Os pés da criança não chegavam ao chão e ela continuava a balouçá-los para um lado e para o outro num ritmo monótono. Um metrónomo com excesso de energia.

Grace disse:

Eu não sabia que ela estava lá em cima, acreditem. Não posso andar sempre atrás dela. Tenho de cozinhar e fazer a limpeza. Não saímos daqui antes das nove horas e só consigo metê-la na cama às dez. Grace olhou para Noni. Isso é uma parte do problema. Ela anda sempre cansada e maldisposta e por isso tudo se transforma numa discussão. No ano passado, conseguiu provocar-me uma úlcera.

Criou uma tensão nervosa tão grande que o meu estômago começou a digerir-se a si próprio. Eu dobrava-me com dores e ela não se importava. Continua a fazer uma birra para ir para a cama ou para tomar banho. Não se preocupa com mais ninguém. Mas as crianças são assim, completamente egoístas. O mundo inteiro gira à volta dela,

Enquanto Grace dava largas à sua frustração, Maura observava a reacção de Noni. A menina calara-se, deixara de balouçar as pernas e fechara a boca, com um ar carrancudo. Mas os olhos escuros encheram-se momentaneamente de lágrimas, que desapareceram com a mesma rapidez, graças ao gesto furtivo de um punho encardido. Ela não era surda nem muda, pensou Maura. Sentia a raiva na voz da mãe. Todos os dias, de muitas maneiras, Grace devia transmitir o seu descontentamento em relação à filha. E a criança compreendia. Não era de admirar que fosse problemática; não era de admirar que exasperasse Grace. Era a única emoção que ela conseguia arrancar à mãe, a única prova de que existia um sentimento qualquer entre elas. Tinha apenas sete anos e já sabia que perdera a aposta no amor. Sabia mais do que os adultos imaginavam, e aquilo que via e ouvia era, sem dúvida, penoso.

Rizzoli estivera agachada ao mesmo nível da criança durante muito tempo. Levantou-se e esticou as pernas. Já eram oito horas, ainda não tinha jantado e começava a perder a energia. Continuou a fitar a menina, ambas igualmente com o cabelo desgrenhado e uma expressão determinada.

Então, Noni, tens ido muitas vezes ao sótão? perguntou Rizzoli, quase a perder a paciência.

O molho de cabelos poeirentos fez um gesto afirmativo.

O que fazes lá em cima?

Nada.

Acabaste de dizer que brincas com as tuas bonecas.

Isso já eu te disse.

E que mais é que fazes?

A menina encolheu os ombros.

Rizzoli insistiu:

Vá lá, isto está a ficar aborrecido. Não posso imaginar que queiras andar a passear pelo sótão se não tiveres alguma coisa interessante para ver.

Noni baixou o olhar.

Costumas espreitar as irmãs? Observar o que elas fazem?

Estou sempre a vê-las.

E quando elas vão para os quartos?

Não tenho licença para ir lá acima.

Mas costumas observá-las quando elas não estão a ver? Sem elas darem por isso?

Sem levantar a cabeça, Noni respondeu:

Isso é espiar.

E tu és uma especialista nisso disse Grace. É uma invasão da privacidade. Eu já te avisei.

Noni cruzou os braços e declarou com uma voz sonante:

invasão da privacidade.

Parecia que estava a fazer troça da mãe. Grace corou e avançou para a filha, como se tencionasse bater-lhe. Rizzoli deteve Grace com um gesto rápido.

A senhora e a madre Mary Clement não se importam de sair da sala por uns minutos?

A senhora disse que eu podia ficar retorquiu Grace.

Creio que a Noni necessita de alguma persuasão suplementar. Será preferível que não estejam presentes.

Ah! Com certeza.

Grace acedeu, com um certo desagrado no olhar.

Rizzoli interpretara correctamente esta mulher. Grace não estava interessada em proteger a filha; pretendia apenas vê-la disciplinada. Subjugada. Deitou a Noni um olhar do género agora estás tramada e saiu da sala, seguida pela madre.

Por instantes, ninguém pronunciou uma palavra. Noni continuou sentada, cabisbaixa, com as mãos no regaço. A imagem da obediência infantil. Mas que grande actriz!

Rizzoli puxou uma cadeira e sentou-se em frente dela. Ficou à espera, sem dizer nada. Deixando que o silêncio actuasse.

Por fim, por baixo de um caracol caprichoso, Noni deitou um olhar manhoso a Rizzoli.

Estás à espera de quê?

Que me digas o que viste no quarto de Camille. Porque sei que andaste a espreitá-la. Eu fazia a mesma coisa quando era pequena. Espreitava os adultos. Via as coisas estranhas que eles faziam.

Isso é uma invasão da privacidade.

Pois, mas é divertido, não é?

Noni levantou a cabeça e olhou bem de frente para Rizzoli.

Isso é uma partida.

Eu não prego partidas, ouviste? Preciso que me ajudes. Acho que és uma menina muito esperta. Aposto que vês coisas em que os adultos nem reparam. O que achas?

Noni encolheu os ombros, com um ar solene

Talvez.

Então conta-me algumas das coisas que viste as freiras a fazer.

Coisas esquisitas?

Sim.

Noni inclinou-se na direcção de Rizzoli e disse baixinho:

A irmã Abigail usa fralda. Faz chichi nas cuecas porque é muito, muito velha.

Quantos anos tem ela? Sabes?

Uns cinquenta.

Livra! É mesmo velha!

A irmã Cornélia mete os dedos no nariz.

Que nojo!

E atira os macacos para o chão quando julga que ninguém está a ver.

Ainda pior!

E manda-me lavar as mãos porque diz que eu sou porca. Mas ela não lava as mãos e tira macacos do nariz.

Estás a tirar-me o apetite, Noni.

E eu perguntei-lhe porque é que ela não lavava as mãos para sacudir os macacos e ela ficou furiosa comigo. Disse que eu falava de mais. A irmã Ursula disse o mesmo, porque lhe perguntei porque é que aquela senhora não tinha dedos, e ela mandou-me calar. E a minha mãe obriga-me sempre a pedir desculpa. Diz que eu a envergonho. É por isso que eu ando por onde não devia andar.

Está bem, está bem disse Rizzoli, com ar de quem estava com uma dor de cabeça. Tudo isso é muito interessante, mas sabes o que quero saber?

O quê?

O que viste no quarto da irmã Camille. Por aquele buraco na madeira. Tu estavas a espreitar, não estavas?

Noni baixou a cabeça.

Talvez.

Não estavas?

Desta vez, Noni reconheceu, submissa:

Eu queria ver...

Ver o quê?

O que elas usam por baixo da roupa.

Maura teve de conter-se para não dar uma gargalhada. Lembrou-se da época em que frequentara o colégio Holy Innocents e em que também perguntara a si própria o que usariam as freiras por baixo do hábito. As religiosas pareciam sempre seres misteriosos, com corpos disfarçados e informes, e as túnicas negras que afastavam os olhares dos curiosos. O que usaria uma noiva de Cristo junto da pele nua? Maura imaginava-as com umas horríveis ceroulas brancas que chegavam até à cintura, um sutiã de algodão para disfarçar e reduzir as formas do corpo e meias grossas como invólucros de salsichas para esconder as pernas inchadas e cheias de varizes. Imaginava os corpos aprisionados por camadas e camadas de algodão macio. Até que um dia, vira a irmã Lawrencia a levantar a saia quando subia as escadas e vislumbrara uma peça de roupa encarnada por baixo da bainha. Não eram apenas umas cuequinhas encarnadas, mas umas cuequinhas de cetim encarnado. Maura nunca mais voltara a olhar para a irmã Lawrencia, nem para outra freira qualquer, da mesma maneira.

Eu também sempre quis saber o que usavam elas por baixo do hábito, percebes? disse Rizzoli, inclinando-se para a menina.

Noni abanou a cabeça com uma expressão grave.

Ela nunca se despia.

Nem sequer quando ia para a cama?

Eu tenho de ir para casa antes de elas se deitarem. Nunca vi.

Bem, então o que viste? O que fazia Camille lá em cima, sozinha no quarto?

Noni revirou os olhos, como se a resposta fosse enfadonha.

Fazia limpezas. Sempre. Era a senhora mais limpa de todas. Maura lembrou-se do soalho esfregado, da cera raspada até chegar à madeira nua.

E que mais fazia ela? perguntou Rizzoli.

Lia o livro.

E que mais? Noni fez uma pausa.

Chorava muito.

Sabes porque chorava ela?

A menina mordeu o lábio inferior, como se pensasse no que havia de dizer. De repente, lembrou-se de uma resposta:

Porque tinha pena de Jesus.

Porque dizes isso? Noni suspirou, exasperada.

Não sabes? Ele morreu na cruz.

Talvez ela chorasse por outra coisa qualquer.

Mas ela estava sempre a olhar para ele. Ele está pendurado na parede.

Maura lembrou-se do crucifixo, pendurado em frente da cama de Camille. E imaginou a jovem noviça prostrada diante da cruz, a rezar por... quê? Pelo perdão dos seus pecados? Pela ausência de consequências? Mas todos os meses a criança ia crescendo dentro do seu corpo e ela começava a sentir-lhe os movimentos. Os pontapés. Não havia preces nem limpezas, por mais frenéticas que fossem, que conseguissem afastar aquela culpa.

Já acabaste? perguntou Noni. Rizzoli recostou-se na cadeira e suspirou.

Já, miúda. Estamos conversadas. Podes ir ter com a tua mãe. A menina saltou da cadeira e pousou os pés no chão com tal força que os caracóis estremeceram.

Ela também andava triste por causa dos patos.

Olá! Isso soa-me a jantar disse Rizzoli. Pato assado.

Ela costumava ir dar-lhes de comer, mas depois eles fugiam todos no Inverno. A minha mãe diz que alguns não voltam porque morrem a caminho do sul.

Pois, é a vida. Vai, que a tua mãe está à espera disse Rizzoli, mandando-a embora.

A menina estava a chegar à porta da cozinha quando Maura perguntou:

Noni, onde é que estavam esses patos a que a Camille dava de comer?

Estavam no lago.

Qual lago?

Nas traseiras. Mesmo depois de eles se irem embora, ela continuava a ir procurá-los, mas a minha mãe dizia que ela estava a perder tempo porque talvez eles já estivessem na Florida. É onde fica a Disney World acrescentou a criança, saindo da sala, aos saltos.

Fez-se um longo silêncio.

Rizzoli virou-se devagar e olhou para Maura.

Você ouviu o mesmo que eu?

Ouvi.

Está a pensar...

Maura fez um sinal afirmativo.

Tem de fazer uma busca ao lago dos patos.

Eram quase dez horas quando Maura parou na sua rua. As luzes acesas na sala davam a ilusão de que estava alguém em casa, à sua espera, mas ela sabia que não era assim. Era sempre uma casa vazia que a aguardava, e as luzes eram acesas não por mãos humanas, mas por três programadores automáticos que lhe tinham custado cinco dólares e noventa e nove cêntimos cada um no Wal-Mart local. Nos dias curtos de Inverno, ela programava-os para as cinco horas para que, quando chegasse, a casa não estivesse às escuras. Escolhera este bairro periférico de Brookline, a oeste de Boston, pela segurança que lhe inspiravam as ruas sossegadas e bordejadas de árvores. A maior parte dos seus vizinhos eram profissionais liberais que, como ela, trabalhavam na cidade e se refugiavam todos os dias neste porto de abrigo suburbano. O vizinho do lado, Mr. Telushkin, era um engenheiro robótico israelita. As vizinhas do outro lado, Lily e Susan, eram advogadas de direitos cívicos. No Verão, toda a gente tinha o jardim bem tratado e o carro lustroso uma versão actualizada do sonho americano, em que lésbicas e imigrantes se saudavam alegremente por entre sebes bem aparadas. Era um bairro tão seguro quanto era possível nos arredores da cidade, mas Maura sabia como estas noções de segurança eram ilusórias. As ruas dos subúrbios eram frequentadas tanto por vítimas como por predadores. A sua mesa de autópsias era um destino democrático; não discriminava as donas de casa suburbanas.

Embora os candeeiros da sala irradiassem uma luz acolhedora, a casa estava gelada. Ou talvez Maura trouxesse o Inverno consigo, como aquelas personagens de banda desenhada sobre as quais pairam sempre nuvens de tempestade. Rodou o termostato e acendeu a chama da lareira a gás uma comodidade que antes lhe parecia de um artificialismo assustador, mas que ela se habituara a apreciar. Fogo era fogo, quer se acendesse accionando um interruptor ou com madeira e acendalhas. Nessa noite, agradava-lhe particularmente aquele calor, aquela luz prazenteira, e o facto de poder atingir tão depressa uma sensação de conforto.

Encheu um copo de xerez e instalou-se numa poltrona junto da lareira. Através da janela, viu as luzes de Natal que enfeitavam a casa do outro lado da rua, como se fossem pingentes de gelo a cair do beiral do telhado lembrando-lhe como ela estava longe do espírito da época. Ainda não comprara uma árvore, nem os presentes, nem sequer uma embalagem de cartões de boas-festas. Este era o segundo ano em que fazia de Mrs. Grinch. No Inverno anterior, mudara-se para Boston e, com a instalação e a adaptação ao novo emprego, mal dera pelo Natal. E qual é a tua desculpa este ano?, pensou ela. Dispunha apenas de uma semana para comprar a árvore, pendurar as lâmpadas e fazer licor de ovos. Na pior das hipóteses, tocaria ao piano umas canções de Natal, como costumava fazer quando era pequena. O livro com as partituras ainda devia estar dentro do banco do piano, desde...

Desde o meu último Natal com o Victor.

Olhou para o telefone sobre a mesinha. Começava a sentir os efeitos do xerez e sabia que qualquer decisão que tomasse nesse momento seria em parte influenciada pelo álcool. Pela imprudência.

Mesmo assim, pegou no telefone. Enquanto a telefonista do hotel ligava para o quarto, ela olhou para a lareira e pensou: Isto é um erro. Só vai deixar-me destroçada.

Maura? respondeu ele.

Sem ela ter dito nada, ele já sabia quem era.

Eu sei que é tarde disse Maura.

São apenas dez e meia.

Mesmo assim, eu não devia ter telefonado.

Então porque telefonaste? perguntou ele em voz baixa. Ela calou-se e fechou os olhos. Ainda conseguia ver o brilho das chamas. Mesmo que não olhes para elas, mesmo que finjas que elas não estão ali, as chamas continuam a arder. Quer as vejas quer não, elas ardem.

Achei que era tempo de deixar de te evitar respondeu ela. Caso contrário, nunca conseguirei dar uma volta à minha vida.

Bem, mas que motivo tão lisonjeiro para mim! Ela suspirou.

Isto não está a sair bem.

Não creio que haja alguma maneira simpática de dizeres o que me queres dizer. O mínimo que podes fazer é dizê-lo pessoalmente. Não pelo telefone.

Assim seria mais simpático?

Seria muito mais corajoso, com os diabos.

Um desafio. Um ataque à coragem dela.

Maura endireitou-se na poltrona e olhou de novo para a lareira.

Porque é que isso é importante para ti?

Porque devemos enfrentar a situação. Ambos precisamos de continuar a viver. Não saímos do mesmo sítio porque nennhum de nós percebeu o que correu mal. Eu amava-te e creio que tu me amavas, mas repara onde chegámos. Nem sequer conseguimos ser amigos. Diz-me porquê. Porque é que duas pessoas que foram casadas uma com a outra não conseguem manter uma conversa civilizada? Como manteriam com outra pessoa qualquer?

Porque tu não és outra pessoa qualquer. Porque te amei.

Podemos fazer isso, não podemos? Conversar apenas, cara a cara. Enterrar os fantasmas. Não vou ficar muito tempo na cidade. É agora ou nunca. Ou continuamos a esconder-nos um do outro, ou esclarecemos isto e falamos sobre o que aconteceu. Acusa-me, se quiseres. Admito que mereço censura. Mas vamos deixar de fingir que o outro não existe.

Maura fitou o copo vazio.

Quando queres que nos encontremos?

Podia ser agora.

Pela janela, Maura viu as lâmpadas decorativas da casa em frente a apagarem-se de repente, os pingentes de gelo a desaparecerem numa noite de neve. A uma semana do Natal, em toda a sua vida, nunca se sentira tão só.

Eu moro em Brookline disse ela.

 

Maura avistou os faróis do carro dele por entre os flocos de neve. Victor conduzia devagar, à procura da casa e parou mesmo ao fundo da rampa. Também estás com dúvidas, Victor?, pensou ela. Também te interrogas se isto será um erro, se não devias dar meia volta e regressar à cidade?

O carro aproximou-se do passeio e estacionou.

Maura afastou-se da janela e deixou-se ficar de pé na sala, ciente de que tinha o coração aos pulos e as mãos a transpirar. O toque da campainha sobressaltou-a e obrigou-a a respirar fundo. Não estava preparada para encará-lo, mas ele estava ali e ela não podia deixá-lo lá fora ao frio.

A campainha tocou outra vez.

Assim que Maura abriu a porta", entraram logo alguns flocos de neve, a rodopiar. Cintilavam no casaco, no cabelo e na barba de Victor. Era um momento clássico: o antigo amante à porta da casa dela, perscrutando avidamente a face dela, e ela sem saber o que havia de dizer excepto "entra". Nem um beijo, nem um abraço, nem sequer um aperto de mão.

Ele entrou e sacudiu o casaco. Quando ela foi pendurá-lo, o cheiro familiar do cabedal, sempre associado a Victor, fez-lhe doer a garganta. Fechou o armário e virou-se para ele.

Queres tomar alguma coisa?

Um café?

Do verdadeiro?

Não passaram mais de três anos, Maura. É preciso perguntar? Não, não era preciso perguntar. Ele bebia sempre o café muito forte e sem misturas. Maura teve uma sensação de familiaridade que a perturbou ao conduzi-lo à cozinha e ao tirar do congelador a embalagem de café em grão Mt. Sutro Roasters. Era a marca preferida de ambos em São Francisco, e ela continuava a mandar vir da loja uma embalagem de dois em dois meses. Os casamentos podem acabar, mas há certas coisas das quais não podemos prescindir. Maura moeu os grãos e ligou a máquina de café, sabendo que ele estava a examinar a cozinha e a reparar especialmente no frigorífico de aço inoxidável, no fogão Viking e nos tampos de granito preto das bancadas. Tinha remodelado a cozinha pouco depois da compra da casa e orgulhava-se de que ele estivesse em território dela, de que tivesse sido ela a custear tudo o que ele estava a ver, com o suor do seu rosto. Neste aspecto, o divórcio deles fora relativamente simples; não tinham exigido nada um ao outro. Depois de um casamento que durara apenas dois anos, tinham reclamado os seus bens pessoais e seguido o seu próprio caminho. Esta casa era só dela e todas as noites, quando chegava, Maura sabia que encontraria tudo no mesmo sítio. Que todas as peças de mobiliário tinham sido compradas por ela, escolhidas por ela.

Parece que tens finalmente a cozinha dos teus sonhos comentou ele.

Estou contente com ela.

Então, diz-me, as refeições sabem melhor quando são confeccionadas num belo fogão com seis queimadores?

Maura não gostou do tom sarcástico dele e ripostou:

Por acaso sabem. E também sabem melhor se forem servidas em louça Richard Ginori.

O que aconteceu ao velho serviço Crate and Barrei?

Resolvi satisfazer um desejo, Victor. Deixei-me de sentimentos de culpa por ter dinheiro e gastar dinheiro. A vida é demasiado curta para que eu continue a viver como uma hippie.

Ora, ora, Maura. Era isso que sentias quando vivias comigo?

Tu dizias-me que o facto de nos concedermos alguns luxos era uma traição à causa.

Que causa?

Para ti, tudo era uma causa. Há pessoas a morrer de fome em Angola, portanto é pecado comprar belos tecidos. Ou comer um bife. Ou ter um Mercedes.

Julguei que também acreditavas nisso.

Sabes uma coisa, Victor? O idealismo torna-se cansativo. Não me envergonho de ter dinheiro nem sinto remorsos por gastá-lo.

Maura serviu-lhe o café, perguntando a si própria se ele teria consciência de um pequeno pormenor irónico: ele era dependente do café Mt. Sutro, cujos grãos tinham sido enviados expressamente do outro extremo do país (que gasto de combustível!). Além disso, na chávena em que o bebia figurava o logotipo de uma empresa farmacêutica ("luvas!"). Mas ele não disse nada. Era uma estranha atitude de submissão para um homem que sempre se pautara tanto pelo seu idealismo.

Fora precisamente essa paixão que a atraíra nele. Tinham-se conhecido em São Francisco, numa conferência sobre a medicina no Terceiro Mundo. Ela apresentara uma comunicação sobre as taxas de autópsia no estrangeiro; ele fizera a alocução principal sobre as muitas tragédias humanas com que as equipas médicas da One Earth deparavam noutros países. De pé na presença de um público bem vestido, Victor mais parecia um maltrapilho cansado e com a barba por fazer do que um médico. A verdade é que saíra do avião vindo da Guatemala e nem sequer tivera tempo de engomar a camisa. Entrara logo na sala apenas com uma caixa de diapositivos. Não levara nenhum discurso escrito, nem sequer tópicos; só aquele precioso conjunto de imagens que se projectavam no ecrã numa sequência trágica. A jovem mãe etíope a morrer de tétano. O bebé peruano com fenda palatina, abandonado à beira da estrada. A menina cazaque, vitimada por uma pneumonia e envolvida na sua mortalha. Todas eram mortes evitáveis, sublinhara ele. Aquelas eram vítimas inocentes da guerra, da pobreza e da ignorância, que a sua organização, a One Earth, podia ter salvo. Mas nunca haveria dinheiro que chegasse, nem voluntários suficientes para satisfazer as necessidades de todas as crises humanitárias.

Mesmo naquela sala às escuras, Maura emocionara-se com as palavras dele, pela paixão com que falara dos hospitais de campanha e dos postos de distribuição de alimentos, dos pobres esquecidos que morriam todos os dias sem ninguém saber.

Quando as luzes se acenderam, ela já não viu um médico com o fato amarrotado atrás do pódio. Viu um homem cuja determinação o engrandecia. Também ela, que exigia ordem e racionalismo na sua própria vida, se sentiu atraída por esse homem de uma intensidade quase assustadora, cujo trabalho o levava aos lugares mais caóticos do planeta.

E o que vira ele nela? Decerto não uma companheira de cruzada. Ela dera estabilidade e calma à vida dele. Era ela que controlava o livro de cheques e geria a economia doméstica, que o esperava em casa enquanto ele saltava de crise para crise, de continente para continente. A vida dele era inseparável da mala de viagem e rica em adrenalina.

Teria essa vida sido muito mais feliz sem mim?, interrogou-se Maura. Ele não tinha um aspecto particularmente feliz, ali sentado à mesa da cozinha dela, a beber café. O cabelo estava um pouco desgrenhado, a camisa a precisar de uma boa engomadela e as pontas do colarinho estavam puídas tudo provas do seu desprezo pelo que era superficial. Mas, noutros aspectos, estava diferente. Era um homem mais velho, mais cansado, que parecia calado, mesmo triste, cujo fogo abrandara com a maturidade.

Maura sentou-se do outro lado da mesa com a chávena de café na mão, e olharam um para o outro.

Devíamos ter tido esta conversa há três anos disse ele.

Há três anos, não me terias dado ouvidos.

Tentaste? Alguma vez me disseste que estavas farta de ser a mulher do activista?

Maura olhou para o café. Não, não lhe dissera. Guardara para si, como fazia em relação às emoções que a perturbavam. A raiva, o ressentimento, o desespero desestabilizavam-na, e isso ela não podia tolerar. Quando assinara os documentos do divórcio, sentira-se estranhamente desinteressada.

Nunca percebi que a situação fosse tão difícil para ti.

Se eu tivesse falado contigo, isso alteraria alguma coisa?

Podias ter tentado.

E tu o que terias feito? Saído da One Earth? Não havia compromisso possível. Empolga-te desempenhares o papel de São Victor. Os prémios, os elogios... Ninguém aparece na capa da People por ser apenas um bom marido.

Achas que o faço por isso? Pela atenção, pela publicidade? Céus, Maura! Sabes como isto é importante! Faz-me essa justiça, pelo menos!

Ela suspirou.

Tens razão, eu fui injusta para contigo. Mas ambos sabemos que sentirias a falta disso.

Sim, é verdade admitiu ele. Mas acrescentou tranquilamente:

Mas não sabia até que ponto iria sentir a tua falta. Maura deixou passar estas palavras sem resposta. Deixou que o silêncio pairasse entre ambos. A verdade é que não sabia o que havia de dizer, de tal modo o desabafo dele a abalara.

Estás com óptimo aspecto disse ele. E pareces satisfeita. Estás?

Estou.

A resposta dela foi demasiado rápida, demasiado automática. Maura sentiu que corava.

O novo emprego está a resultar? perguntou ele.

Mantém-me motivada.

É mais divertido do que aterrorizar os estudantes de Medicina na Universidade da Califórnia?

Ela soltou uma gargalhada.

Eu não aterrorizava os estudantes.

Talvez eles tivessem uma opinião diferente.

Eu puxava por eles, mais nada. E eles correspondiam quase sempre.

Eras uma boa professora, Maura. Tenho a certeza de que a universidade gostaria muito que voltasses.

Bem, todos seguimos a nossa vida, não é verdade? Maura sentiu que ele a observava e manteve uma expressão impenetrável de propósito.

Ontem vi-te na televisão. disse ele. No noticiário da noite. Aquele caso das freiras.

Tive esperança de que as câmaras não dessem por mim.

Localizei-te logo. Eles mostraram-te a sair do portão.

É um dos ossos do ofício. Estamos sempre em exposição.

Sobretudo neste caso particular, imagino. As imagens passaram em todas as estações de televisão.

O que andam eles a dizer?

Que a polícia não tem suspeitos. Que o motivo permanece desconhecido. Victor abanou a cabeça. Parece completamente irracional, atacar freiras. A menos que se trate de um caso de abuso sexual.

Isso torna o caso racional?

Sabes o que quero dizer.

Sim, ela sabia e conhecia Victor suficientemente bem para não se ofender com o comentário dele. Aliás, havia uma diferença entre o agressor sexual frio e premeditado e o psicótico que não controlava a realidade.

Fiz a autópsia esta manhã disse ela. Fracturas cranianas múltiplas. Ruptura da artéria meníngea média. Ele agrediu-a várias vezes, provavelmente com um martelo. Não creio que seja possível considerar esta agressão racional.

Ele abanou a cabeça.

Como lidas com esta nova situação, Maura? Deixaste de fazer autópsias agradáveis e asseadas a pessoas que morriam no hospital e passaste para isto.

As mortes que ocorrem no hospital não são exactamente agradáveis nem asseadas.

Mas uma autópsia a uma vítima de homicídio? E ela era nova, não era?

Tinha apenas vinte anos.

Maura calou-se, prestes a contar-lhe o que descobrira durante a autópsia. Quando eram casados, partilhavam sempre as suas experiências profissionais e confiavam um no outro quanto à confidencialidade das informações. Mas este assunto era demasiado assustador, e ela não queria integrar ainda mais a morte na conversa.

Levantou-se para ir buscar a cafeteira. Quando voltou para a mesa, disse:

Agora fala-me de ti. O que tem feito São Victor?

Por favor, não me trates assim.

Costumavas achar divertido.

Agora acho horrível. Quando a imprensa começa a chamar-nos santos, é porque aguarda a oportunidade de nos fazer cair do pedestal.

Reparei que tu e a One Earth têm aparecido bastante nos noticiários.

Ele suspirou.

Infelizmente.

Porquê infelizmente?

Tem sido um ano mau para a ajuda internacional. Há muitos conflitos e muitos refugiados. É só por isso que temos aparecido nos noticiários. Porque somos os únicos a intervir. Temos sorte porque acabámos de receber um donativo chorudo este ano.

Uma consequência de todo esse protagonismo? Ele encolheu os ombros.

De vez em quando, algumas grandes empresas tomam consciência da situação e resolvem passar um cheque.

Tenho a certeza que as deduções nos impostos também lhes sabem bem.

Mas esse dinheiro desaparece tão depressa! Basta que um louco qualquer resolva desencadear um conflito, e, de repente, confrontamo-nos com mais um milhão de refugiados. Mais cem mil crianças a morrer de tifo ou de cólera. É isto que me tira o sono, Maura. Penso nas crianças.

Victor bebeu um gole de café e pousou a chávena, como se já não conseguisse saboreá-lo.

Maura observou-o e reparou nas novas madeixas grisalhas no seu cabelo castanho alourado. Talvez estivesse a envelhecer, mas não perdera nada do seu idealismo. Fora este idealismo que a atraíra nele... E que acabara por separá-los. Ela não podia competir com as necessidades do mundo que reclamavam a atenção de Victor, e nunca devia ter tentado. O caso amoroso com a enfermeira francesa não fora, afinal, surpreendente. Fora um acto de desafio da parte dele, a maneira de reafirmar que era independente.

Mantiveram-se em silêncio, sem olhar um para o outro. Apesar de se terem amado no passado, não conseguiam agora arranjar nada para dizer. Sob o olhar observador de Maura, Victor levantou-se e aproximou-se do lava-louça para passar a chávena por água.

Então, como está a Dominique? perguntou ela.

Não sei nada dela.

Continua a trabalhar para a One Earth?

Não. Saiu. Não era uma situação confortável para nenhum de nós, depois...

Victor encolheu os ombros.

Não mantêm o contacto?

Ela não era importante para mim, Maura. Bem sabes.

É engraçado! Mas tornou-se muito importante para mim. Ele virou-se para ela.

Achas que alguma vez deixarás de estar zangada por causa dela?

Passaram três anos. Acho que sim.

Isso não responde à pergunta. Maura baixou os olhos.

Tu tiveste um caso. Era inevitável que eu me zangasse. Era a única maneira.

A única maneira?

De eu te deixar. De eu conseguir passar sem ti.

Victor aproximou-se dela. Pôs-lhe as mãos nos ombros, com um gesto afectuoso e íntimo.

Não quero que passes sem mim disse ele. Mesmo que isso implique odiares-me. Pelo menos, significa que sentes alguma coisa. O que mais me incomodaria era que te afastasses pura e simplesmente. Que demonstrasses frieza em relação a tudo.

É a única maneira que conheço de enfrentar a situação, pensou ela, quando ele a abraçou. Quando a respiração dele lhe aqueceu o cabelo. Há muito tempo que ela aprendera a reprimir todas estas emoções que a confundiam. Eram tão diferentes um do outro! O exuberante Victor casado com a Rainha dos Mortos. Porque lhes passara pela cabeça que aquela relação resultaria?

Porque eu desejava este calor, esta paixão. Eu queria o que eu própria nunca consigo ser.

O telefone começou a tocar e as mãos de Victor imobilizaram-se nos ombros dela. Afastou-se e deixou-a desejosa do seu calor. Maura levantou-se e foi atender o telefone à cozinha. Ao olhar para o visor de identificação, percebeu que essa chamada iria obrigá-la a sair outra vez nessa noite, a enfrentar a neve. Enquanto falava com o detective e dava as suas instruções, reparou que Victor abanava a cabeça com um ar resignado. Nessa noite, ela era chamada a cumprir o seu dever e ele seria preterido.

Desligou.

Desculpa, mas tenho de sair.

O Exterminador Implacável chama-te?

Houve um homicídio em Roxbury. Estão à minha espera. Victor acompanhou-a até à porta.

Gostavas que eu fosse contigo?

Para quê?

Para te fazer companhia.

Acredita que estarei muito acompanhada no local do crime. Victor espreitou lá para fora, pela janela da sala. O nevão continuava.

A noite não está nada boa para conduzir.

Nem para ti nem para mim.

Maura inclinou-se para calçar as botas. Congratulou-se por ele não lhe ver a cara quando acrescentou:

Não precisas de voltar para o hotel. Porque não ficas cá?

Passar cá a noite?

Seria mais conveniente para ti. Podes fazer a cama no quarto de hóspedes. É provável que eu me demore algumas horas.

O silêncio de Victor fê-la corar. Sem olhar para ele, Maura abotoou o casaco. De repente, ansiosa por fugir dali, abriu a porta da rua.

E ouviu-o dizer:

Fico à tua espera

As luzes azuis faiscavam através da neve que caía. Maura parou mesmo atrás de um dos carros-patrulha, e aproximou-se dela um agente com o rosto meio escondido pela gola levantada, como uma tartaruga recolhida na sua carapaça. Maura abriu a janela e piscou os olhos, encandeada com a luz da lanterna dele. A neve entrou, espalhando-se pelo painel.

Sou a doutora Isles, do Instituto de Medicina Legal disse ela.

Muito bem, pode estacionar aqui, minha senhora.

Onde está o corpo?

Lá dentro. O agente apontou a lanterna para um prédio do outro lado da rua. A porta principal está fechada a cadeado. Tem de entrar pelo beco. Não há luz, portanto tome cuidado. Vai precisar da sua lanterna. O beco está cheio de caixotes e de lixo amontoado.

Maura saiu do carro ao encontro de uma cortina de renda branca. Nessa noite estava preparada para o tempo e agradecida por ter os pés quentes e secos dentro das botas Thinsulate. Na rua, a camada de neve atingia pelo menos quinze centímetros, mas os flocos eram macios e penugentos e não ofereciam resistência.

Ao entrar no beco, Maura acendeu a lanterna e viu uma zona vedada pela polícia com fita amarela quase coberta por uma camada branca de neve. Ao passar por cima da fita, desencadeou uma chuva de flocos. O beco estava obstruído por vários montes amorfos disfarçados pela neve. A bota de Maura embateu em qualquer coisa sólida e ouviu-se o tilintar de garrafas. O beco era utilizado como vazadouro de lixo, e Maura perguntou a si mesma o que estaria escondido debaixo daquele tapete branco.

Bateu à porta e exclamou:

Está alguém? Sou a médica-legista.

A porta abriu-se e alguém lhe apontou uma lanterna aos olhos. Maura não conseguiu ver o homem que a empunhava, mas reconheceu a voz do detective Darren Crowe.

Olá, doutora. Bem-vinda à cidade das baratas.

O foco de luz desviou-se da cara dela e Maura distinguiu a silhueta do detective, de ombros largos e um pouco ameaçadores. Era um dos detectives mais novos da Brigada de Homicídios, e sempre que ela trabalhava num caso com ele sentia-se no cenário de um espectáculo de televisão, em que Crowe era a estrela da série, um protagonista de cabelo seco com secador e com um ar petulante e cheio de si. A única coisa que os homens como Crowe respeitavam numa mulher era o profissionalismo frio, e era o que ela lhe mostrava. Os elementos masculinos do Instituto de Medicina Legal podiam brincar com Crowe, mas ela não; as barreiras tinham de ser mantidas e os limites definidos, caso contrário ele arranjaria uma forma de minar a autoridade.

Maura calçou as luvas e as protecções para os sapatos e entrou no prédio. Ao apontar a lanterna para o interior, viu umas superfícies metálicas que se reflectiam nela. Um frigorífico enorme e várias bancadas. Um fogão industrial e vários fornos.

Antigamente, isto era o restaurante italiano Mama Cortinas

explicou Crowe. Até que a Mama abandonou o negócio e isto foi à falência. O prédio foi interditado há dois anos e as entradas foram fechadas a cadeado. Parece que a porta do beco foi arrombada há algum tempo. Todo este equipamento de cozinha vai a leilão, mas não sei quem é que o quer. Está nojento. Crowe apontou o foco da lanterna para os queimadores a gás, onde a gordura acumulada durante anos formara uma crosta negra. As baratas rugiram da luz.

Isto está cheio delas. Ficam deliciadas com esta gordura toda.

Quem é que descobriu o corpo?

Um dos nossos colegas da Divisão de Narcóticos. Andavam a fazer uma busca nesta zona. O suspeito fugiu e eles julgavam que ele tinha vindo para aqui. Repararam que a porta tinha sido arrombada. Entraram à procura do patife e tiveram uma grande surpresa. Crowe apontou a lanterna para o chão. Há algumas marcas de arrastamento aqui no pó. Como se o criminoso tivesse arrastado a vítima por aqui. O detective desviou o foco para o outro extremo da cozinha. O corpo está daquele lado. Temos de atravessar a sala de jantar.

Já filmaram isto?

Já. Tiveram de trazer dois pacotes de pilhas para conseguirem luz suficiente. Já as gastaram. É por isso que isto aqui está um pouco escuro.

Maura entrou na cozinha atrás dele, com os braços agarrados ao corpo para não tocar em nada. Como se ela quisesse... Ouvia um restolhar à sua volta nas sombras, e pensou em milhares de pernas de insectos a subir pelas paredes e agarrados ao tecto sobre a cabeça dela. Podia ser estóica em relação ao sangue e ao grotesco, mas os insectos causavam-lhe uma verdadeira repugnância.

Ao entrar na sala de jantar, sentiu os cheiros que estavam sempre associados às traseiras dos velhos restaurantes: a couves e a cerveja retardada. Mas aqui havia algo mais, um odor terrivelmente familiar que lhe acelerou a pulsação. Era o motivo da sua visita e despertou-lhe curiosidade e medo.

Parece que andaram por aqui alguns vadios disse Crowe, apontando a lanterna para o chão, onde ela viu um cobertor velho e pilhas de jornais. E também há aqui umas velas. Ainda bem que não pegaram fogo a isto, com este lixo todo.

O foco da lanterna incidiu num monte de embalagens de comida e de latas vazias. Dois olhos amarelados fitaram-nos do cimo do monte de lixo era uma ratazana, corajosa, atrevida até, que os desafiava a avançar.

Ratos e baratas. Com esta bicharada toda, o que restaria do corpo? interrogou-se Maura.

Está ali ao canto. Com uma confiança atlética, Crowe passou pelo meio das mesas e das cadeiras empilhadas. Mantenha-se deste lado. Há umas pegadas que estamos a fazer o possível por conservar. Alguém pisou sangue do cadáver. Elas terminam mais ou menos aqui.

Crowe encaminhou-a para um pequeno corredor. De uma porta ao fundo saía uma luz ténue. Vinha da casa de banho dos homens.

A doutora está aqui! gritou Crowe.

Apareceu mais um foco de luz à porta. Jerry Sleeper, o colega de Crowe, saiu da casa de banho e acenou a Maura com a mão enluvada. Sleeper era o detective mais velho da Brigada de Homicídios, e sempre que Maura o via parecia-lhe que ele tinha os ombros um pouco mais curvados. Perguntou a si mesma até que ponto o desalento de Sleeper se ficaria a dever à companhia de Crowe. Nem a sabedoria nem a experiência podiam sobrepor-se ao dinamismo da juventude, e há muito que Sleeper cedera o controlo das situações ao seu arrogante colega.

Não é uma cena bonita de se ver disse Sleeper Ainda bem que não estamos em Julho. Nem quero pensar no cheiro se não estivesse tanto frio aqui dentro.

Crowe riu-se.

Parece que alguém está de partida para a Florida.

Tenho lá um belo apartamento. Fica a um quarteirão da praia. Hei-de passar o dia inteiro de calções de banho. Sem me preocupar com nada.

Praias quentes, pensou Maura. Areia fina. Quem não gostaria de estar lá nesse momento, em vez de estar neste corredor pequeno e escuro, iluminado apenas por três lanternas?

É tudo seu, doutora disse Sleeper.

Maura dirigiu-se para a porta. O foco da lanterna iluminou um pavimento sujo, de mosaicos pretos e brancos dispostos em xadrez, onde se viam pegadas e sangue seco.

Mantenha-se encostada à parede aconselhou Crowe. Maura entrou na sala e recuou instantaneamente, assustada com algo a mexer-se junto dos seus pés.

Céus! exclamou ela, com um riso assustado.

Pois, essas ratazanas parecem coelhos disse Crowe. E têm-se banqueteado à grande aqui dentro.

Maura viu uma cauda a deslizar por baixo de uma cabine da casa de banho e pensou na velha fábula urbana em que as ratazanas atravessavam os canos de esgoto e subiam pelas sanitas.

Apontando lentamente a lanterna, viu dois lavatórios sem torneiras e um urinol, cujo ralo estava entupido com lixo e pontas de cigarro. Por fim, avistou o corpo nu, deitado de lado junto do urinol. Os malares expostos destacavam-se no meio do cabelo preto desgrenhado. Os roedores já tinham atacado aquela abundância de carne fresca, e no tórax distinguiam-se várias mordeduras de rato. Mas não foram os estragos causados pelos dentes afiados que mais horrorizaram Maura; foi o tamanho diminuto do corpo. Uma criança?

Maura agachou-se junto do corpo, que jazia com a face direita encostada ao chão. Ao aproximar-se, reparou nos seios completamente desenvolvidos; afinal, não era uma criança, como ela pensava, mas uma mulher de pequena estatura, cujas feições não se distinguiam. Os necrófagos tinham-se banqueteado avidamente com a face esquerda exposta, devorando a pele e até a cartilagem nasal. A pele que ainda restava no tórax estava fortemente pigmentada. A mulher seria hispânica?, interrogou-se Maura, iluminando os ombros ossudos e a espinha nodosa do cadáver. No tórax nu, viam-se nódulos escuros, quase arroxeados. Na anca e na nádega esquerda havia mais lesões. A terrível erupção estendia-se à coxa, à canela e ao...

O foco da lanterna parou no tornozelo.

Meu Deus! exclamou Maura.

Faltava o pé esquerdo. O tornozelo terminava num coto, cuja extremidade estava negra devido ao estado adiantado de decomposição.

Maura apontou o foco de luz para o outro tornozelo e viu mais um coto. Também faltava o pé direito.

Agora verifique as mãos disse Crowe, que se aproximara dela.

O agente dirigiu o feixe de luz da sua lanterna para os braços, que estavam escondidos pela sombra do tórax.

Em vez das mãos, Maura viu dois cotos, cujas extremidades esfrangalhadas ostentavam as marcas dos dentes dos roedores.

Recuou, petrificada.

Também não foram os ratos que fizeram esse trabalho observou Crowe.

Maura engoliu em seco.

Pois não. São amputações.

Acha que ele fez uma coisa dessas com ela ainda viva? Maura examinou os mosaicos manchados e viu apenas pequenas poças negras de sangue seco junto dos cotos, sem salpicos.

Não havia pressão arterial quando estes cortes foram feitos. As partes foram removidas após a morte. A médica olhou para Crowe. Você encontrou-as?

Não. Ele levou-as. Sabe-se lá porquê...

Há um motivo lógico para isso atalhou Sleeper. Agora não temos impressões digitais. Não podemos identificá-la.

Se ele pretendia ocultar a identidade dela... Maura contemplou a face do cadáver, o brilho do osso, e estremeceu, horrorizada. Tenho de virá-la ao contrário.

Tirou um lençol descartável do seu estojo e estendeu-o ao lado do corpo. Juntos, Sleeper e Crowe transferiram o cadáver para cima do lençol.

Sleeper susteve a respiração e afastou-se. O lado direito da face que estivera encostado ao chão ficou à vista, assim como um único orifício de bala no seio esquerdo.

Mas não foi a ferida provocada pelo projéctil que repeliu Sleeper. Foi o rosto da vítima, cujos olhos sem pálpebras pareciam fitá-los. O lado direito da face, que ficara encostado ao chão, não fora atacado pelos dentes dos roedores, mas a pele desaparecera. O músculo exposto secara em estrias coriáceas, das quais emergia um pedaço amarelado do malar.

Também não foram os ratos que fizeram isto comentou Sleeper.

Não disse Maura. Esta lesão não foi provocada pelos necrófagos.

Céus, mas ele arrancou-a? Como se arranca uma...

Uma máscara. Mas aquela máscara não era de borracha nem de plástico; era de pele humana.

Ele destruiu a face. E as mãos. Inviabilizou a identificação disse Sleeper.

Mas porque levou os pés? perguntou Crowe. Isso não faz qualquer sentido. Não é possível identificar ninguém pelas impressões digitais dos pés. Além disso, não me parece que alguém desse pela falta dela. A mulher é negra? Latina?

O que tem a raça a ver com o facto de alguém dar pela falta dela? perguntou Maura.

Eu só quero dizer que ela não é uma dona de casa dos subúrbios. Caso contrário, porque viria parar a este bairro?

Maura levantou-se, sentindo uma repugnância tão forte por Crowe que teve dificuldade em manter-se ao lado dele. Examinou a divisão com a lanterna e viu diversos lavatórios e urinóis.

Há sangue aqui, na parede.

Eu diria que ele a matou aqui mesmo disse Crowe. Arrastou-a para aqui, atirou-a contra a parede e puxou o gatilho. Depois, fez as amputações, mesmo aqui onde ela caiu.

Maura olhou para o sangue nos mosaicos. Eram apenas algumas manchas, porque nessa altura a vítima já estava morta. O coração tinha deixado de bater, de bombear. Ela não sentira nada quando o assassino se agachara a seu lado e lhe enterrara a lâmina nos pulsos, procurando as articulações. Cortara-lhe a carne e arrancara-lhe a pele da face como se esfolasse um urso. E quando acabara de recolher os seus trofeus, deixara-a ali, como se ela fosse uma carcaça sem préstimo, uma oferta aos necrófagos que infestavam aquele prédio abandonado.

Passados uns dias, sem roupas que impedissem a investida dos seus dentes afiados, os roedores tinham chegado aos músculos.

Um mês depois, aos ossos.

Maura olhou para Crowe.

Onde estão as roupas dela?

Só encontrámos um sapato. Um ténis, tamanho quatro. Acho que ele o deixou cair quando ia a sair. Estava na cozinha.

Tinha sangue?

Tinha. Salpicos de sangue na parte de cima.

Maura olhou para o coto em que devia estar o pé direito.

Então, foi aqui que ele a despiu.

Houve abuso sexual de cadáver? perguntou Sleeper. Crowe riu-se.

Quem é que tem vontade de comer uma mulher com esta porcaria toda na pele? Que erupção é essa, afinal? Não é contagiosa, pois não? Parece uma espécie de varíola.

Não, estas lesões parecem crónicas, e não agudas. Reparem que algumas têm crostas.

Bem, não compreendo que alguém quisesse sequer tocar-lhe, e muito menos comê-la.

Tudo é possível disse Sleeper.

Ou talvez ele a tenha despido só para expor o cadáver disse Maura. Para acelerar a sua destruição pelos roedores.

Porque havia ele de dar-se ao trabalho de levar as roupas?

Talvez fosse mais uma maneira de ocultar a identidade dela.

Acho que ele as levou propositadamente observou Crowe. Maura olhou para ele.

Porquê?

Pelo mesmo motivo que levou as mãos, os pés e a cara. Ele queria recordações. Crowe olhou para Maura. Naquela semiobscuridade, o detective pareceu-lhe mais alto. Ameaçador. Acho que o nosso homem é um coleccionador.

A luz do alpendre estava acesa; Maura avistou o clarão amarelado através da cortina de neve. A sua casa era a única em que se via luz àquela hora. Em muitas outras noites, quando ela chegava, já os candeeiros tinham sido acesos, não por mãos humanas, mas por temporizadores. Esta noite, há alguém que está à minha espera, pensou.

Reparou então que o carro de Victor já não estava estacionado à frente da casa. Ele foi-se embora, pensou. Vou entrar numa casa vazia, como de costume. A luz do alpendre, que lhe tinha parecido tão acolhedora, mostrava-se agora fria e anónima.

Teve uma sensação de vazio e de desapontamento ao virar para a rampa de entrada. O que mais a incomodava não era o facto de ele se ter ido embora; era a sua própria reacção. Passei um serão com ele e cá estou eu como há três anos, indecisa, com a minha independência a esboroar-se, pensou.

Accionou o controlo remoto da porta da garagem. A porta abriu-se com ruído, e Maura soltou uma risadinha nervosa ao ver o Toyota azul estacionado no espaço do lado esquerdo.

Afinal, Victor guardara o carro na garagem.

Maura parou ao lado do Toyota alugado, e quando a porta da garagem se fechou atrás dela deixou-se ficar sentada durante alguns instantes, bem ciente da sua pulsação acelerada, da expectativa que lhe revolvia as entranhas como se fosse uma droga. Em dez segundos, passara do desespero ao júbilo. Fez um esforço para recordar que nada mudara entre eles. Que nada podia mudar entre eles. Saiu do carro, respirou fundo e entrou em casa.

Victor?

Não teve resposta.

Deu uma olhadela à sala; depois percorreu o corredor e entrou na cozinha. As chávenas de café estavam lavadas e arrumadas. Não havia um único vestígio da visita dele. Maura foi espreitar os quartos e o escritório nada de Victor.

Só quando voltou à sala é que lhe viu os pés, devidamente protegidos com peúgas brancas, a saírem de uma extremidade do sofá. Ficou ali a vê-lo dormir, com um braço inerte, o rosto tranquilo. Não era este o Victor de que ela se lembrava, o homem cujas paixões vulcânicas a tinham atraído e depois repelido. O que ela recordava do casamento de ambos eram as discussões, as feridas profundas que só um amante pode infligir. O divórcio distorcera as recordações que guardava dele, tornando-o mais obscuro, mais irritado. Ela fomentara essas recordações, alimentara-se delas durante tanto tempo que o facto de o ver agora, desprevenido, despertava nela um misto de reconhecimento e de surpresa.

Eu costumava observar-te enquanto dormias. Eu amava-te.

Foi buscar um cobertor ao armário e tapou-o. Preparava-se para lhe acariciar o cabelo, mas a mão imobilizou-se sobre a cabeça dele.

Victor tinha os olhos abertos e observava-a.

Estás acordado disse ela.

Eu não queria adormecer. Que horas são?

Duas e meia. Ele gemeu.

Eu ia-me embora...

Podes ficar. Está a nevar imenso.

Meti o carro na garagem. Espero que não te importes. O limpa-neves vinha a chegar...

E rebocavam-te o carro, se não o tirasses dali. Maura sorriu e acrescentou com ternura:

Dorme.

Olharam um para o outro. Apanhada entre o desejo e a dúvida, não disse nada, sabendo quais seriam as consequências de uma opção errada. Deviam estar ambos a pensar na mesma coisa: que o quarto era ao fundo do corredor. Bastavam uns passos, um abraço, e lá estaria ela mais uma vez, de regresso. Num refúgio que lhe custara tanto a conquistar.

Maura levantou-se, um acto que lhe exigiu um esforço enorme, como se tentasse libertar-se de areias movediças.

Até amanhã disse ela.

Teria sido desapontamento o que viu no olhar dele? Maura não pôde deixar de sentir uma certa satisfação com esta hipótese.

Já deitada na cama, não conseguia dormir, sabendo que ele estava debaixo do mesmo tecto. Do tecto dela, do território dela. Em São Francisco, tinham vivido na casa que ele já possuía quando se casaram, e Maura nunca a sentira verdadeiramente como sua. Nessa noite, a situação era a inversa, e era ela que a controlava. O que acontecesse a seguir seria o resultado de uma decisão sua.

As hipóteses atormentavam-na.

Só quando acordou, sobressaltada, é que percebeu que tinha adormecido. Já se via a luz do dia através da janela. Maura deixou-se ficar na cama, sem saber o que a tinha acordado. Sem saber o que iria dizer a Victor. Então, ouviu a porta da garagem a abrir-se e o ruído de um motor na sua rampa.

Levantou-se e espreitou pela janela, mesmo a tempo de ver o carro de Victor a afastar-se e a desaparecer na esquina.

 

Jane Rizzoli acordou cedo. Ainda não se ouvia barulho na rua; o trânsito matinal ainda não tinha começado em força. Jane deixou-se ficar na penumbra, a pensar: vá lá, tem de ser. Não podes enfiar a cabeça na areia.

Acendeu a luz e sentou-se na beira da cama, nauseada. Apesar de o quarto estar frio, ela estava a suar e tinha a T-shirt colada às axilas.

Era tempo de enfrentar a realidade.

Descalça, entrou na casa de banho. A embalagem estava em cima da bancada, onde ela a deixara na noite anterior, para que não se esquecesse de utilizá-la de manhã. Como se isso fosse preciso... Abriu a caixa, rasgou o invólucro de papel de alumínio e retirou a vareta de teste. Na véspera, à noite, lera as instruções várias vezes e praticamente memorizara-as. Mesmo assim, leu-as mais uma vez. Adiando um pouco mais o momento da verdade.

Por fim, sentou-se na sanita. Com a vareta no meio das coxas, urinou, embebendo a ponta com umas gotas da primeira urina da manhã.

Esperou dois minutos, seguindo as instruções.

Pousou a vareta na bancada e foi à cozinha. Encheu um copo de sumo de laranja. A mesma mão que era capaz de agarrar numa arma e de disparar vários tiros tremeu quando ela pegou no copo de sumo e o levou à boca. Olhou para o relógio da cozinha, sem tirar os olhos do movimento circular brusco do ponteiro maior. Sentiu o pulso acelerado quando os dois minutos chegaram ao fim. Nunca fora cobarde, nunca deixara de enfrentar o inimigo, mas este medo era diferente, íntimo e persistente. O medo de que pudesse tomar a decisão errada e passasse o resto da vida a sofrer por causa disso. Com os diabos, Jane. Vai em frente!

Subitamente irritada consigo própria, revoltada com a sua cobardia, pousou o copo do sumo e voltou para a casa de banho. Nem sequer parou à porta para se orientar; foi direito à bancada e pegou na vareta de teste.

Não precisou de ler as instruções para perceber o que significava aquela linha roxa.

Nem se lembrava de ter regressado ao quarto. Deu consigo sentada na cama, com a vareta na mão. Nunca gostara de roxo; era uma cor demasiado feminina e vistosa. Agora, só de olhar para ela tinha vómitos. Julgava que estava preparada para o resultado, mas não estava. Tinha as pernas dormentes por ter estado sentada durante muito tempo na mesma posição, mas aparentemente não conseguia mexer-se. Até o cérebro bloqueara, afectado pelo choque e pela indecisão. Não conseguia pensar no que havia de fazer. A primeira coisa que lhe veio à cabeça foi infantil e completamente irracional.

Quero a minha mãe.

Tinha trinta e quatro anos e era independente. Arrombara portas ao pontapé e capturara assassinos. Matara um homem. E estava ali, subitamente desejosa de abraçar a mãe.

O telefone tocou.

Olhou para ele, confusa, como se não o reconhecesse. Ao quarto toque, atendeu.

Olá, ainda estás em casa? perguntou Frost. A equipa já está toda aqui.

Fez um esforço para se concentrar nas palavras dele. A equipa. O lago. Virou-se, olhou para o relógio que tinha à cabeceira e ficou admirada ao ver que já eram oito e um quarto.

Rizzoli? Eles estão prontos para começar a dragagem. Queres que avancemos?

Quero. Não me demoro.

Desligou. O som do auscultador a pousar no descanso pareceu-lhe o estalar dos dedos de um hipnotizador. Findo o transe, endireitou-se. Mais uma vez, o seu trabalho exigia a sua atenção total.

Atirou a vareta para o contentor do lixo. Em seguida, vestiu-se e foi trabalhar.

A Senhora dos Ratos.

Depois de uma vida inteira, ficamos reduzidos a isto, pensou Maura quando viu o cadáver estendido sobre a mesa de autópsias, com os seus horrores escondidos por baixo de um lençol. Não tens nome, não tens rosto e a tua existência reduz-se a três palavras que só realçam a indignidade com que acabou a tua vida. Comida para ratos.

Fora Darren Crowe que alcunhara o cadáver na noite anterior, enquanto eles ali estavam, rodeados de vermes que se deslocavam na escuridão. Lançara a alcunha ao acaso, na presença da equipa de resgate da morgue e, na manhã seguinte, quando Maura entrara no seu gabinete, já o pessoal tratava a vítima por Senhora dos Ratos. Maura sabia que se tratava apenas de uma alcunha adequada para uma mulher que poderia chamar-se, por exemplo, Jane Doe, mas não pôde deixar de estremecer quando ouviu o detective Sleeper pronunciá-la. É assim que superamos o horror, pensou ela. Que lidamos com as vítimas perto de nós. Referimo-nos a elas usando uma alcunha, um diagnóstico ou o número de um processo. Deste modo, elas não parecem pessoas e, por conseguinte, o destino delas não consegue afectar-nos.

Maura levantou a cabeça quando Crowe e Sleeper entraram no laboratório. Sleeper estava exausto devido ao esforço da noite anterior, e a luz intensa da sala de autópsias realçava-lhe cruelmente os olhos papudos e as bochechas flácidas. A seu lado, Crowe parecia um jovem leão, bronzeado, apto e confiante. Crowe não era uma pessoa que alguém quisesse humilhar; sob a capa da arrogância, escondia-se em geral a crueldade. Ele observava o cadáver com um esgar de repugnância. A autópsia que ia começar não seria agradável, e até Crowe parecia encará-la com uma certa agitação.

As radiografias estão prontas disse Maura. Vamos examiná-las antes de começarmos.

Atravessou a sala e accionou um interruptor. O visor iluminou-se e revelou imagens fantasmagóricas das costelas, da espinha e da pélvis. Viam-se estilhaços metálicos espalhados pelo tórax, como uma galáxia de estrelas nos pulmões e no coração.

Isto parece um cartucho de caça comentou Sleeper.

Foi o que eu pensei, ao princípio disse Maura. Mas se você reparar aqui, ao lado desta costela... Está a ver esta sombra opaca? Quase se perde no contorno da costela.

Um invólucro metálico? alvitrou Crowe.

É o que me parece.

Então isto não é um cartucho de caça.

Não. Parece uma Glaser. A avaliar pelo número de projécteis que vejo aqui, o mais provável é tratar-se de uma Glaser de ponta azul. Um invólucro de cobre com doze chumbos.

Uma bala do tipo Glaser, destinada a provocar uma lesão muito mais destruidora do que uma bala convencional, atingia o alvo e só depois do impacto é que se fragmentava. Maura não precisava de abrir o tórax para saber que as lesões causadas por aquele único projéctil eram devastadoras.

Retirou as radiografias do tórax e pendurou outras duas. Estas imagens eram de certo modo mais perturbadoras, devido àquilo que lhes faltava. Mostravam o antebraço direito e esquerdo. O rádio e o cúbito, os dois ossos compridos do antebraço, estendiam-se desde o cotovelo até ao pulso, onde se juntavam aos densos ossos cárpicos. Mas neste caso, terminavam abruptamente.

A mão esquerda foi desarticulada aqui, precisamente na articulação entre a apófise estilóide do rádio e o escafóide disse ela. O assassino retirou todos os ossos cárpicos e a mão. Até se vêem algumas marcas do corte, nas outras radiografias, onde ele raspou a ponta da apófise estilóide. Ele cortou-lhe a mão exactamente no ponto em que os ossos do braço se ligam aos do pulso. Maura apontou para a outra radiografia. Agora reparem na mão direita. Aqui, ele não foi tão perfeito. Não cortou exactamente a articulação do pulso e, quando amputou a mão, deixou o osso curvo. Vê-se como a faca fez aqui um corte. Parece que ele não conseguiu encontrar a articulação e acabou por cortar à volta, às cegas.

Então estas mãos não foram amputadas, digamos, com um machado disse Sleeper.

Não. Isto foi feito com uma" faca. Ele cortou-lhe as mãos tal como nós desconjuntamos um frango. Dobramos a perna para expor a articulação e depois cortamos os ligamentos. Deste modo, não temos de serrar o osso.

Sleeper fez um esgar.

Acho que não vou comer frango esta noite.

Que tipo de faca é que ele usou? perguntou Crowe.

Tanto pode ter sido uma faca de desossar como um bisturi. O coto já foi demasiado mordido pelos ratos, o que nos impede de examinar a extremidade da ferida. Teremos de ferver os tecidos moles e examinar as marcas do corte ao microscópio.

Acho que também não vou comer sopa esta noite disse Sleeper.

Crowe olhou para a barriga grande do colega.

Devias vir à morgue mais vezes. Talvez perdesses esse pneu.

Em vez de passar a vida no ginásio? ripostou Sleeper.

Maura olhou para ele, surpreendida com a reacção. Até Sleeper, em geral tão afável, podia cansar-se do colega.

Crowe limitou-se a rir, indiferente à irritação que despertava nas outras pessoas.

Olha, quando estiveres pronto a inchar, da cintura para cima, claro, podes vir ter comigo.

Há outras radiografias interpôs Maura, retirando as películas com a eficiência de uma profissional.

Yoshima entregou-lhe as seguintes, que ela colocou no visor. Mostravam a cabeça e o pescoço da Senhora dos Ratos. Na véspera, ao olhar para o rosto do cadáver, Maura vira apenas carne crua, ainda mais devastada pelos necrófagos esfomeados. Mas, por baixo da carne arrancada, os ossos faciais estavam misteriosamente intactos, excepto a extremidade do osso nasal, que fora removida quando o assassino levara o seu trofeu.

Faltam os dentes da frente observou Sleeper. Acha que ele também os levou?

Não. Estas parecem ser alterações atróficas. E é isso que me surpreende.

Porquê?

De um modo geral estas alterações estão associadas à idade avançada e a uma má dentição. Mas isto não se aplica a uma mulher que parecia ser relativamente nova.

Como pode fazer essa afirmação se a cara dela desapareceu?

As radiografias da espinha não revelam indícios de alterações degenerativas que em geral são visíveis com a idade. Ela não tem cabelos brancos, nem na cabeça nem no púbis. E não tem arcos senis nos olhos.

Que idade calcula que ela tivesse?

Eu diria que ela não tinha mais de quarenta anos. Maura olhou para as radiografias que estavam no visor. Mas estes raios X são mais consistentes com uma mulher de idade avançada. Nunca vi uma reabsorção óssea tão acentuada em ninguém, e muito menos numa mulher nova. Ela não seria capaz de usar uma dentadura, mesmo que pudesse comprá-la. É óbvio que esta mulher não tinha o menor cuidado com os dentes.

Então teremos de comparar com radiografias dentárias.

Aposto que esta mulher não ia ao dentista há muitos anos. Sleeper suspirou.

Não há impressões digitais. Não há cara. Não há radiografias dentárias. Nunca conseguiremos identificá-la, e talvez fosse esse o objectivo do assassino.

Mas isso não explica o motivo que o levou a amputar-lhe os pés disse Maura, sem tirar os olhos do crânio anónimo que o visor lhe mostrava. Acho que ele fez isto por outros motivos. Poder, talvez. Raiva. Quando se arranca a face a uma mulher, não se leva apenas uma recordação. Rouba-se a sua própria essência. Rouba-se-lhe a alma.

Pois bem, ele utilizou o último recurso atalhou Crowe. Quem é que queria uma mulher sem dentes e com a pele cheia de feridas? Se a intenção dele era coleccionar caras, bem podia arranjar uma melhor para expor na consola da lareira.

Talvez ele esteja apenas a começar disse Sleeper em voz baixa. Talvez esta não seja a primeira que ele mata.

Maura virou-se para a mesa de autópsias.

Vamos começar.

Enquanto Sleeper e Crowe punham as máscaras, ela retirou o lençol e foi atingida por um cheiro intenso a putrefacção. Na noite anterior, medira os níveis de potássio através do humor vítreo e concluíra que a vítima morrera cerca de trinta e seis horas antes de ter sido descoberta. Ainda existia rigor mortis, e não foi fácil manipular os membros. Apesar de estar um frio gélido no local do crime, a decomposição já começara. As bactérias tinham iniciado o seu trabalho, destruindo as proteínas e criando bolsas de ar. A baixa temperatura atrasara, mas não interrompera, o processo de decomposição.

Embora Maura já tivesse visto aquele rosto desfeito, sentiu um sobressalto ao contemplá-lo de novo, ao ver as muitas lesões na pele que, sob a luz intensa, pareciam nódulos escuros e inflamados, realçados pelas mordeduras dos ratos. Naquele cenário de pele destruída, a ferida provocada pela bala parecia insignificante não mais do que um pequeno orifício do lado esquerdo do esterno. As balas Glaser destinavam-se a minimizar o efeito de ricochete e a provocar o máximo de lesões assim que entravam no corpo. À penetração seguia-se a explosão dos grãos de chumbo que se encontravam no interior do cartucho de cobre. Aquela pequena ferida não era nada em comparação com a destruição causada no interior do tórax.

Então o que é esta erupção de pele? perguntou Crowe. Maura concentrou-se nas zonas não afectadas pelos dentes dos roedores. Os nódulos arroxeados estavam espalhados pelo tronco e pelas extremidades e alguns tinham crostas.

Não sei o que é isto disse ela. Parece ser uma afecção sistémica. Pode ser uma reacção a um medicamento. Pode ser uma manifestação de cancro. Maura hesitou. Ou pode ser de origem bacteriana.

Quer dizer... Infecciosa? perguntou Sleeper, dando um passo atrás.

Foi por isso que vos aconselhei a usarem máscara. Maura passou o dedo por uma das lesões com crostas, o que provocou uma descamação esbranquiçada.

Isto lembra-me um pouco a psoríase. Mas a distribuição não é do mesmo tipo. Em geral, a psoríase afecta sobretudo os cotovelos e os joelhos.

Mas não há tratamento para isso? perguntou Crowe. Eu costumava ver o anúncio na televisão. O tormento da psoríase.

É uma afecção inflamatória e, como tal, reage a cremes esteróides. A terapia por radiação ultravioleta também ajuda. Mas reparem na dentição dela. Esta mulher não tinha dinheiro para pagar cremes caros nem consultas médicas. Se for psoríase, nunca foi tratada.

Mas que sofrimento que isto lhe deve ter causado, sobretudo no Verão, pensou Maura. Mesmo nos dias mais quentes, ela devia usar calças e blusas de manga comprida para esconder as lesões.

Não só o assassino escolhe uma vítima sem dentes como lhe esfola a pele da cara desta maneira comentou Crowe.

A psoríase tende a poupar a face.

Acha que isso é significativo? Talvez ele só tenha cortado as partes do corpo em que a pele estava sã.

Não sei disse Maura. Não consigo perceber o que pode ter levado alguém a fazer uma coisa destas.

Maura concentrou-se no coto do pulso direito. Através da carne, via-se o osso esbranquiçado. Os roedores tinham abocanhado a ferida aberta, destruindo as marcas do corte deixadas pela faca, mas a observação ao microscópio da superfície do osso cortado poderia revelar as características da lâmina. Maura levantou o antebraço do cadáver para examinar a parte de baixo da ferida, e uma mancha amarelada chamou-lhe a atenção.

Yoshima, dá-me a pinça, por favor?

O que é? perguntou Crowe.

É uma espécie de fibra colada à extremidade da ferida. Yoshima era tão silencioso nos seus movimentos que a pinça apareceu como que por encanto na mão de Maura. Deslocando a lente sobre o coto do pulso, Maura retirou com a pinça o fragmento da crosta de sangue e carne ressequida e depositou-o no tabuleiro. Através da lente, viu um espesso rolo de fio amarelo-canário.

É das roupas dela? perguntou Crowe.

Parece demasiado áspero para ser de roupa.

Talvez de um tapete...

Um tapete amarelo? Não consigo imaginá-lo.

Maura depositou o fio num saco que Yoshima já aprontara e perguntou:

Havia mais alguma coisa no local do crime que condissesse com isto?

Não havia nada amarelo respondeu Crowe.

Será corda amarela? perguntou Maura. Talvez ele lhe tenha atado os pulsos.

E depois levou as cordas? Sleeper abanou a cabeça Que estranho, o tipo ser tão asseado.

Maura olhou para o cadáver, pequeno como o de uma criança.

Ele nem precisava de lhe atar os pulsos. Teria sido fácil dominá-la.

E como devia ter sido simples tirar-lhe a vida! Uns braços tão finos como aqueles não podiam oferecer resistência durante muito tempo a um agressor, nem umas pernas tão curtas.

Já foste tão violada, pensou Maura. E agora o meu bisturi vai deixar mais uma marca na tua pele.

Maura trabalhou com uma eficiência silenciosa, cortando a pele e o músculo. A causa da morte era tão evidente como os estilhaços de bala que se destacavam na radiografia. Quando, por fim, ela abriu o tronco e viu o saco pericárdico intacto e as bolsas de hemorragia nos pulmões, não ficou admirada.

A bala Glaser perfurara o tórax e em seguida rebentara, espalhando os estilhaços mortíferos pelo peito. O metal lacerara veias e artérias e perfurara o coração e os pulmões. E o sangue entrara no saco que envolvia o coração, comprimindo-o de tal maneira que ele não conseguia inchar nem bombear. Um tamponamento do pericárdio.

A morte tinha sido relativamente rápida.

Ouviu-se o zumbido do intercomunicador.

Doutora Isles?

Maura virou-se para o altifalante.

Sim, Louise?

A detective Rizzoli na linha um. Pode atender?

Maura descalçou as luvas e aproximou-se do telefone.

Rizzoli? disse ela.

Olá, doutora. Parece que precisamos de si aqui.

O que há?

Estamos no lago. Levámos um certo tempo a retirar o gelo.

Já acabaram de dragar?

Já. Encontrámos uma coisa.

 

No campo desabrigado soprava um vento cortante que fustigou o casaco e o cachecol de lã de Maura quando ela saiu pelo portão do claustro das traseiras e começou a dirigir-se para o grupo de polícias que a aguardavam à beira do lago. Sobre a neve caída formara-se uma camada de gelo que estalava sob o peso das suas botas, como se fosse uma cobertura de açúcar. Maura sentiu que todos os olhares convergiam para ela. As freiras observavam-na do portão e a polícia aguardava a sua chegada. Era o único vulto que se mexia naquele manto de brancura, e no silêncio da tarde todos os sons pareciam amplificados, desde o ranger das botas até à sua própria respiração ofegante

Rizzoli destacou-se do grupo e foi ao seu encontro.

Obrigada por vir tão depressa.

Então a Noni tinha razão quanto ao lago dos patos.

É verdade. Camille passava muito tempo aqui e não é de admirar que se lembrasse de utilizar o lago. O gelo ainda está muito fino. É provável que a camada se tenha formado há um ou dois dias. Rizzoli olhou para a água. Só conseguimos à terceira.

Era um lago artificial pequeno, uma superfície lisa, oval e escura que no Verão devia reflectir as nuvens, o céu azul e a passagem das aves. Num dos extremos, destacava-se um tufo de amentilhos que pareciam estalagmites. A volta de todo o perímetro, a neve estava pisada e misturada com lama.

À beira da água, via-se uma pequena forma coberta por um lençol descartável. Maura agachou-se ao lado dela e o detective Frost, com um esgar, afastou-o, revelando as ligaduras, cobertas de lama.

Parece que tem pedras lá dentro disse Frost. Por isso é que foi ao fundo. Ainda não as desatámos. Achámos que devíamos esperar pela senhora.

Maura tirou as luvas de lã e calçou as de borracha, que não a protegiam do frio. Foi já com os dedos enregelados que retirou a camada exterior de gaze. Caíram duas pedras do tamanho de uma mão. A camada seguinte também estava ensopada, mas não tinha lama. Era um cobertor de lã azul-claro. Um tom que associamos a um bebé, pensou. Um cobertor para o manter quente e em segurança.

Já tinha os dedos dormentes e com pouca mobilidade. Afastou um canto do cobertor, apenas o suficiente para ver um pé. Pequeno, quase como o de um boneco, com a pele escura e veios azulados.

Não precisou de ver mais nada.

Voltou a cobri-lo com o lençol. Levantou-se e olhou para Rizzoli.

Vamos levá-lo directamente para a morgue. Lá faremos o resto. Rizzoli limitou-se a fazer um gesto de cabeça e olhou em silêncio para o pequeno embrulho. As ligaduras molhadas começavam já a endurecer com o vento gelado. Foi a vez de Frost falar:

Como é que ela foi capaz de fazer uma coisa destas? De atirar o bebé à água?

Maura tirou as luvas de borracha e enfiou os dedos entorpecidos nas de lã. Pensou no cobertor azul-claro que envolvia o bebé. Lã quente, como a das suas luvas. Camille podia ter embrulhado o bebé noutra coisa qualquer jornais, lençóis velhos, farrapos, mas optara por um cobertor, como se quisesse protegê-lo, isolá-lo da água fria do lago.

Afogar o próprio filho! exclamou Frost. Não devia estar boa da cabeça.

Talvez a criança já estivesse morta.

Pois bem, então ela matou-o primeiro. Mesmo assim, devia estar louca.

Para já, não podemos tirar conclusões. Só depois da autópsia. Maura olhou para a abadia. Debaixo da arcada, três freiras, que mais pareciam almas penadas vestidas de negro, observavam-nos.

Já falou com Mary Clement?

Rizzoli não respondeu. Continuava de olhos fixos naquilo que o lago lhes entregara. Bastaram duas mãos para enfiar o embrulho no saco enorme e correr o fecho com um gesto eficiente. O som fê-la estremecer.

As irmãs sabem? perguntou Maura. Por fim, Rizzoli encarou-a.

Souberam o que encontrámos.

Devem ter uma ideia de quem é o pai.

Elas negam até a possibilidade de ela estar grávida.

Mas a prova está aqui. Rizzoli esboçou um sorriso trocista.

A fé é mais forte do que a evidência dos factos.

A fé em quê?, interrogou-se Maura. Na virtude de uma jovem? Existiria algum castelo de cartas mais periclitante do que a fé na castidade humana?

Calaram-se quando o saco foi levado. Não foi necessário trazer uma maca; o servente recebera o saco nos seus braços com a mesma ternura de quem embalava o próprio filho e atravessava agora, desolado, o campo ventoso em direcção à abadia.

O telemóvel de Maura começou a tocar, violando o silêncio fúnebre. Ela abriu-o e respondeu serenamente:

Doutora Isles.

Desculpa ter saído sem me despedir, esta manhã.

Maura sentiu que corava e que o coração pulsava duas vezes mais depressa.

Victor.

Eu tinha de chegar a tempo à minha reunião em Cambridge. Não quis acordar-te. Espero que não penses que fugi de ti.

Por acaso, pensei.

Podemos encontrar-nos mais tarde, para jantar?

Ela calou-se, apercebendo-se de repente de que Rizzoli a observava. E também da sua própria reacção física à voz de Victor. O pulso acelerado, a alegria da antecipação. Ele já regressou à minha vida, pensou. E eu já estou a ponderar as hipóteses.

Furtou-se ao olhar de Rizzoli e respondeu em voz baixa:

Não sei quando estarei despachada. Está a acontecer muita coisa neste momento.

Podes contar-me o teu dia ao jantar.

Isto está a complicar-se.

Tens de comer, não importa a que horas. Posso convidar-te? Para o teu restaurante preferido?

Maura respondeu demasiado depressa, com uma ansiedade exagerada:

Não. Encontramo-nos em minha casa. Vou fazer o possível por chegar por volta das sete.

Não estou à espera que cozinhes para mim.

Então, serás tu a cozinhar.

Ele riu-se.

Que mulher corajosa!

Se eu me atrasar, podes entrar pela porta lateral da garagem. Deves calcular onde está a chave.

Não me digas que continuas a escondê-la naquele sapato velho.

Ainda ninguém descobriu. Até logo à noite.

Maura desligou, virou-se e verificou que Rizzoli e Frost a observavam.

Um encontro excitante? perguntou Rizzoli.

Na minha idade, já é uma sorte ter um encontro respondeu ela, guardando o telemóvel na carteira. Encontramo-nos na morgue.

Ao atravessar novamente o campo, seguindo o trilho da neve pisada, sentiu que eles continuavam a observá-la. Foi com alívio que entrou pelo portão das traseiras e se refugiou no interior dos muros da abadia. Mas assim que deu meia dúzia de passos no pátio, ouviu alguém a chamá-la.

Virou-se e deparou com o padre Brophy a sair de uma porta. O padre, uma figura solene vestida de preto, dirigiu-se a ela. Os seus olhos, de um azul extraordinário, contrastavam com o tom escuro e ameaçador do céu.

A madre Mary Clement gostava de falar consigo disse ele.

É com a detective Rizzoli que ela deve falar respondeu Maura.

Ela prefere falar consigo.

Porquê?

Porque a senhora não é da polícia. Pelo menos, parece disposta a ouvir as preocupações dela. A compreender.

A compreender o quê, padre?

Ele calou-se. O vento açoitava-lhes o casaco e picava-lhes a cara.

Essa fé não deve ser ridicularizada disse ele.

E era por isto que Mary Clement não queria falar com Rizzoli; a detective não era capaz de disfarçar o seu cepticismo, o seu desprezo pela Igreja. Uma coisa tão pessoal como a fé não devia estar sujeita ao desdém de outra pessoa.

É importante para ela. Por favor! disse o padre Brophy.

Maura entrou no edifício atrás dele e desceu o corredor mal iluminado e ventoso, em direcção ao gabinete da madre. Mary Clement estava sentada à secretária. Levantou a cabeça quando eles entraram. Através das lentes grossas dos óculos, era visível a sua irritação.

Sente-se, doutora Isles.

Embora a Holy Innocents Academy fosse uma realidade muito recuada no tempo, o facto de ver uma freira zangada continuava a agitar Maura, que acedeu a sentar-se na cadeira como se fosse uma aluna culpada. O padre Brophy sentou-se ao lado dela, como um observador silencioso do mau momento que se aproximava.

Nunca nos disseram qual era o motivo desta busca comentou Mary Clement. Os senhores desestabilizaram as nossas vidas. Violaram a nossa privacidade. Desde o início que colaborámos de todas as maneiras, embora nos tenham tratado como se fôssemos o inimigo. Devem-nos a cortesia de pelo menos nos explicarem o que procuram.

Acho que devia ser a detective Rizzoli a falar consigo acerca disto.

Mas foi a senhora que iniciou a busca.

Eu só lhes disse o que descobri na autópsia. Que a irmã Camille dera à luz há pouco tempo. A detective Rizzoli é que resolveu fazer uma busca na abadia.

Sem nos dizer porquê.

Em geral, as investigações policiais são rodeadas de um grande secretismo.

Isso é porque não confiam em nós, não é verdade? Maura enfrentou o olhar acusador de Mary Clement e concluiu que só podia dizer a verdade.

Só nos restava avançar com precaução.

Em vez de a irritar ainda mais, esta resposta pareceu dissipar a indignação da madre. Com um ar subitamente esgotado, Mary Clement recostou-se na cadeira e transformou-se na velha que efectivamente era.

Mas que mundo este, em que nem sequer somos dignas de confiança.

Como toda a gente, madre.

Mas é precisamente isso, doutora Isles. Nós não somos como toda a gente.

Mary Clement proferiu estas palavras sem qualquer tom de superioridade. Pelo contrário, foi tristeza que Maura pressentiu na voz dela, e perplexidade.

Nós podíamos ter-vos ajudado. Podíamos ter colaborado, se soubéssemos o que procuravam.

Não fazia mesmo ideia de que Camille estava grávida?

Mas como? Quando a detective Rizzoli me disse isso esta manhã, eu não acreditei. E continuo a não acreditar.

Infelizmente, a prova estava no lago.

A madre encolheu-se e pareceu ainda mais pequena na sua cadeira. Fitou as mãos deformadas pela artrite. Ficou em silêncio, a contemplar as mãos, como se elas não lhe pertencessem.

Como poderíamos não saber? perguntou ela em voz baixa.

É possível ocultar uma gravidez. Sabemos que as adolescentes escondem o seu estado das próprias mães. Algumas mulheres negam esse facto mesmo a si próprias, até darem à luz. É provável que tenha sido o caso de Camille. Tenho de admitir que fiquei completamente estarrecida com a autópsia. Não era nada o que eu esperava encontrar...

Numa freira concluiu Mary Clement, olhando de frente para Maura.

Não quero dizer que as freiras não sejam seres humanos. Um sorriso ténue.

Obrigada por reconhecer isso.

E ela era tão nova...

Acha que só os jovens é que lutam contra as tentações? Maura pensou na noite agitada que passara. Em Victor, a dormir ao fundo do corredor.

Passamos a vida inteira fascinadas por isto ou por aquilo. As tentações mudam, evidentemente. Quando somos novas, é um rapaz bonito. Depois, são as guloseimas ou a comida. Ou, quando estamos velhas e cansadas, a simples possibilidade de poder dormir mais uma hora de manhã. Muitos pequenos desejos, e somos tão vulneráveis a eles como qualquer outra pessoa, só que não podemos admitir que assim é. Os nossos votos diferenciam-nos. Usar o véu pode ser uma alegria, doutora Isles. Mas a perfeição é um fardo e nenhuma de nós consegue atingi-la.

E muito menos uma mulher tão jovem.

A idade não facilita a tarefa.

Camille tinha apenas vinte anos. Deve ter tido algumas dúvidas quanto aos seus votos perpétuos.

A princípio, Mary Clement não respondeu. Olhou lá para fora através da janela, que dava para um muro liso. Uma vista que lhe recordava que o seu mundo era limitado por uma barreira de pedra. Depois, acrescentou:

Eu tinha vinte e um anos quando fiz os votos perpétuos.

E teve dúvidas?

Nem uma. Eu tinha a certeza respondeu ela, olhando para Maura.

Como?

Porque Deus falou comigo. Maura não disse nada.

Eu sei o que está a pensar disse Mary Clement. Que só os psicóticos é que ouvem vozes. Que só os psicóticos é que ouvem os anjos a falar com eles. A senhora é médica e talvez encare tudo sob a perspectiva do cientista. Dir-me-á que isto não passou de um sonho. Ou de um desequilíbrio químico. Ou de um ataque pontual de esquizofrenia. Eu conheço as teorias todas. Sei o que dizem de Joana d'Arc... Que queimaram uma louca na fogueira. É o que a senhora pensa, não é?

Não sou religiosa.

Mas foi, em tempos?

Recebi uma educação católica. Era no que acreditavam os meus pais adoptivos.

Nesse caso, está familiarizada com as vidas dos santos. Muitos deles ouviram a voz de Deus. Como explica isso?

Maura hesitou, sabendo que o que dissesse poderia ofender a madre.

Muitas vezes as alucinações auditivas são interpretadas como experiências religiosas.

Mary Clement não se mostrou ofendida, como Maura esperava. Limitou-se a retribuir o olhar, bem firme.

Parece-lhe que estou louca?

De maneira nenhuma.

No entanto, aqui estou eu a dizer-lhe que ouvi a voz de Deus. O olhar de Mary Clement desviou-se mais uma vez para a janela. Para o muro cinzento, cujas pedras reluziam, cobertas de gelo. A senhora é a segunda pessoa a quem eu digo isto, porque sei o que as pessoas pensam. Eu própria não acreditaria se isso não me tivesse acontecido. Quando temos apenas dezoito anos e Ele nos chama, o que nos resta fazer, excepto escutá-Lo?

Mary Clement recostou-se na cadeira e acrescentou em voz baixa:

Eu tive um namorado, sabe? Um homem que quis casar comigo.

Eu sei. A madre disse-me respondeu Maura.

Ele não percebia. Não compreendia o que levava uma mulher jovem a esconder-se da vida. Era o que ele dizia. A esconder-se, como uma cobarde. A submeter-me à vontade de Deus. É claro que tentou fazer-me mudar de ideias. Tal como a minha mãe. Mas eu sabia o que estava a fazer. Soube-o desde o momento em que fui chamada. Estava no meu quintal, a ouvir os grilos. Ouvi a voz dEle, clara como um sino. E compreendi.

Mary Clement olhou para Maura, que se mexia na cadeira, ansiosa por terminar a conversa. Incomodada com este assunto de vozes divinas.

Maura olhou para o relógio.

Reverenda madre, lamento, mas tenho de ir andando.

Não sabe porque lhe estou a dizer isto.

Sim, sei.

Eu só disse isto a mais uma pessoa. Sabe quem foi?

Não.

A irmã Camille.

Maura fitou os olhos azuis da madre.

Porquê Camille?

Porque ela também ouviu a voz. Foi por isso que ingressou nesta ordem. Foi criada no seio de uma família extremamente rica. Cresceu numa mansão em Hyannisport, relativamente perto dos Kennedy. Mas foi chamada para esta vida, tal como eu. Quando somos chamados, doutora Isles, sabemos que fomos abençoados e respondemos com o coração a transbordar de alegria. Ela não tinha dúvidas quanto aos votos. Estava totalmente comprometida com esta ordem.

Então como explica a gravidez? Como é que isso aconteceu?

A detective Rizzoli já me fez a mesma pergunta. Mas só quis saber nomes e datas. Quais os operários que trabalharam aqui. Em que mês é que a irmã Camille foi visitar a família. A polícia só se preocupa com pormenores concretos e não com questões espirituais. Nem com o chamamento de Camille.

Ela engravidou. Ou foi um momento de tentação ou foi uma violação.

A madre superiora deixou-se ficar calada, a olhar para as mãos. Depois, respondeu tranquilamente:

Há uma terceira explicação, doutora Isles. Maura franziu o sobrolho.

Qual é?

Vai troçar disto, eu sei. É médica. Baseia-se nos testes laboratoriais, no que vê ao microscópio. Mas não lhe acontece já ter visto o inexplicável? Quando um doente que devia estar morto recupera de repente? Nunca presenciou milagres?

Todos os médicos foram surpreendidos pelo menos algumas vezes na sua carreira.

Não só surpreendidos. Estou a falar de algo que nos deixa estupefactos. Algo que a ciência não consegue explicar.

Maura lembrou-se do seu período de internato no São Francisco General.

Houve uma mulher, com um cancro no pâncreas.

Isso é incurável, não é?

É. Equivale a uma sentença de morte. Ela não devia ter sobrevivido. Quando a vi pela primeira vez, encontrava-se em estado terminal. Já confusa e com icterícia. Os médicos tinham decidido não a alimentar mais, porque ela estava às portas da morte. Lembro-me das instruções na ficha: mantê-la confortável, apenas. Não podemos fazer mais nada, no fim, excepto aliviá-la das dores. Convenci-me de que ela morreria dentro de poucos dias.

Mas ela surpreendeu-a.

Acordou, um dia de manhã, e disse à enfermeira que estava com fome. Passado um mês, foi para casa.

A madre abanou a cabeça.

Um milagre.

Não, madre. Uma remissão espontânea disse Maura, olhando fixamente para ela.

Isso é apenas uma maneira de dizer que não sabe o que aconteceu.

As remissões acontecem. Os cancros regridem por si próprios. Ou então o diagnóstico inicial estava errado.

Ou então foi outra coisa qualquer. Que a ciência não consegue explicar.

Quer que eu diga que se tratou de um milagre?

Quero que considere outras hipóteses. Muita gente que recupera depois de ter estado a morrer afirma que viu uma luz brilhante. Ou que viu os seus entes queridos, a dizerem que a sua hora ainda não chegara. Como explica a universalidade destas visões?

São alucinações de um cérebro privado de oxigénio.

Ou a prova do divino.

Eu gostava muito de encontrar essa prova. Seria reconfortante saber que existe algo para além desta vida física. Mas não posso aceitar que se trate apenas de uma questão de fé. É onde quer chegar, não é? Dizer que a gravidez de Camille foi uma espécie de milagre? Mais uma manifestação do divino.

A senhora diz que não acredita em milagres, mas não consegue explicar porque é que a sua doente com um cancro no pâncreas sobreviveu.

A explicação nunca é simples.

Porque a ciência médica não compreende totalmente a morte. Não é verdade?

Mas compreendemos a concepção. Sabemos que ela exige um espermatozóide e um óvulo. É biologia pura e simples, madre. Não acredito na imaculada concepção. Acredito é que Camille teve uma experiência sexual. Pode ter sido forçada ou consensual. Mas o filho dela foi concebido da maneira habitual. E a identidade do pai pode estar relacionada com o seu assassínio.

E se nunca encontrarem um pai?

Teremos o ADN da criança. Só precisamos do nome do pai.

Tem tanta confiança na sua ciência, doutora Isles! É a resposta para tudo!

Maura levantou-se da cadeira.

Mas, pelo menos, são respostas em que consigo acreditar.

O padre Brophy saiu do gabinete com Maura. Desceram ambos o corredor mal iluminado, fazendo ranger as tábuas do soalho já muito gasto.

Podíamos puxar o assunto agora, doutora Isles.

Que assunto?

O padre parou e fitou-a.

Saber se o filho é meu.

O olhar dele enfrentou o dela sem pestanejar; foi Maura que teve de desviar o seu, de proteger-se daquela intensidade.

É nisso que está a pensar, não é? perguntou ele.

É compreensível, não acha?

Acho. Como a senhora disse há pouco, as leis incontornáveis da biologia exigem um espermatozóide e um óvulo.

O senhor é o único homem que tem acesso regular a esta abadia. Reza missa, confessa.

É verdade.

Conheces os segredos mais íntimos delas.

Só os que elas querem contar-me.

É um símbolo de autoridade.

Há quem encare os padres dessa maneira.

Para uma jovem noviça, sê-lo-ia certamente.

E isso transforma-me automaticamente num suspeito?

Não seria o primeiro padre a quebrar os seus votos.

Ele suspirou e, pela primeira vez, deixou de olhar para ela. Não para a evitar, mas porque reconheceu tristemente que ela tinha razão.

Não é fácil, hoje em dia. Os olhares que as pessoas nos deitam, as graçolas nas nossas costas. Quando celebro uma missa, olho sempre para a cara das pessoas que estão na minha igreja e sei no que estão a pensar. Interrogam-se se eu toco em rapazinhos ou se desejo meninas. Todas elas se interrogam, como a senhora. E pensam o pior.

O filho é seu, padre Brophy?

Os olhos azuis fitaram-na mais uma vez, com uma firmeza inabalável.

Não, não é. Nunca quebrei os meus votos.

Compreende que não podemos fiar-nos apenas na sua palavra, não é verdade?

Claro. Eu podia estar a mentir, não podia?

Apesar de ele não levantar a voz, Maura detectou laivos de irritação. Ele aproximou-se mais e ela ficou imóvel, resistindo ao impulso de recuar.

Eu podia cometer um pecado, e outro, e mais outro. Na sua opinião, aonde conduz essa espiral de pecados? À mentira, ao abuso de uma freira. Ao assassínio?

A polícia tem de explorar todos os motivos. Até os seus.

E quer o meu ADN, suponho.

Isso eliminaria a possibilidade de o senhor ser o pai do bebé.

Ou faria de mim o principal suspeito do assassínio.

Depende dos resultados.

O que acha que eles mostrarão?

Não faço ideia.

Mas deve ter um palpite. Está aqui, a olhar para mim. Vê em mim um assassino?

Só confio nas provas.

Números e factos. Só acredita nisso.

É verdade.

E se eu lhe dissesse que estou inteiramente disposto a submeter-me ao teste de ADN? Que lhe darei já uma amostra de sangue, se quiser tirá-la?

Não é preciso uma amostra de sangue. Basta uma gota de saliva.

Seja! Só quero esclarecer que estou a oferecer-me.

Comunicarei à detective Rizolli. Será ela a fazer a colheita.

Isso irá alterar a sua opinião? Acerca da minha culpabilidade?

Como já disse, saberei quando vir os resultados. Dizendo isto, Maura abriu a porta e saiu.

O padre foi atrás dela até ao pátio. Não trazia casaco, mas parecia insensível ao frio, de tão concentrado que estava nela.

A senhora disse que teve uma educação católica.

Frequentei um liceu católico. O Holy Innocents, em São Francisco.

Mas só acredita nas suas análises ao sangue. Na sua ciência.

Em que havia eu de basear-me?

Nos instintos? Na fé?

Em si? Só porque é padre?

Só por isso? O padre Brophy abanou a cabeça e deu uma gargalhada triste, lançando uma baforada de ar quente para a atmosfera gelada. Acho que isso responde à minha pergunta.

Eu não tenho palpites. Não assumo nada em relação às outras pessoas porque elas surpreendem-me muitas vezes.

Chegaram ao portão principal. Ele abriu-o e ela saiu. O portão fechou-se entre eles, separando de repente dois mundos diferentes.

Lembra-se do homem que desmaiou no passeio? perguntou ele. Aquele a quem fizemos reanimação?

Lembro.

Está vivo. Fui visitá-lo esta manhã. Acordou e já fala.

Ainda bem.

Nunca pensou que ele se safasse.

Tinha tudo contra ele.

Está a ver? Por vezes, os números e as estatísticas são enganosos.

Maura deu meia volta.

Doutora Isles! gritou ele. A senhora foi educada no seio da Igreja. Resta alguma coisa da sua fé?

Ela olhou para trás.

A fé não exige provas. Mas eu exijo respondeu Maura.

A autópsia de uma criança era uma tarefa que aterrava todos os patologistas. Enquanto Maura calçava as luvas e preparava os instrumentos, evitou olhar para o pequeno embrulho que estava em cima da mesa, tentando distanciar-se, tanto quanto possível, da triste realidade com a qual estava prestes a confrontar-se. Com excepção do tilintar dos instrumentos, reinava o silêncio na sala. Nenhum dos presentes tinha vontade de dizer fosse o que fosse.

Maura sempre impusera o respeito no seu laboratório. Quando estudava Medicina, assistira às autópsias de doentes que tinham sido tratados por ela, e, embora os patologistas que faziam essas autópsias os considerassem pessoas estranhas e anónimas, ela, que os conhecera em vida, não conseguia olhar para eles, estendidos na mesa, sem ouvir as suas vozes nem recordar os seus olhares conscientes. A sala de autópsias não era o local indicado para contar anedotas nem para falar do encontro da noite anterior, e ela não tolerava tais comportamentos. Um olhar grave dos seus conseguia dominar o mais desrespeitoso dos polícias. Ela sabia que eles não eram insensíveis, que o humor era uma forma de lidarem com a natureza sinistra da sua profissão, mas esperava que eles deixassem o sentido de humor à porta, caso contrário podiam contar com uma descompostura.

Essa descompostura nunca era necessária quando havia uma criança estendida na mesa.

Maura olhou para os dois detectives à sua frente. Barry Frost, como era habitual, tinha uma palidez doentia e estava ligeiramente afastado da mesa, como se se preparasse para fugir. Nesse dia, não eram os cheiros desagradáveis que dificultavam a autópsia; era a idade da vítima. Jane Rizzoli estava ao lado dele, com uma expressão resoluta e o corpo franzino quase perdido numa bata cirúrgica que era demasiado grande para ela. Encostara-se à mesa, uma posição que anunciava: estou pronta. Consigo lidar com tudo. A mesma atitude que Maura vira nas internas de cirurgia. Os homens podiam chamar-lhes cabras, mas ela reconhecia-as pelo que eram: mulheres preparadas para a luta, que trabalhavam muito para se afirmarem numa profissão masculina, ao ponto de ostentarem uma arrogância própria dos homens. Era o caso de Jane Rizzoli, embora o seu rosto não condissesse exactamente com a pose destemida. Estava pálido, crispado e com umas olheiras que denunciavam cansaço.

Yoshima apontara a luz para o embrulho e aguardava junto do tabuleiro dos instrumentos.

O cobertor estava ensopado, e caíram algumas gotas de água gelada do lago quando Maura o afastou devagarinho, revelando mais uma camada de ligaduras. O pezinho que ela vira estava agora exposto, a sair do tecido molhado. Colada ao corpo do bebé, como se fosse uma mortalha, estava uma fronha de almofada branca, fechada com alfinetes-de-ama. Viam-se partículas rosadas agarradas ao tecido. Maura pegou na pinça, retirou as partículas e deixou-as cair num pequeno tabuleiro.

O que é isso? perguntou Frost.

Parecem confetes respondeu Rizzoli.

Maura enfiou a pinça numa prega molhada e retirou um graveto.

Não são confetes, são flores secas disse ela.

O significado desta conclusão impôs de novo o silêncio. Um símbolo de amor, pensou Maura. De luto. Lembrou-se como ficara comovida quando, há uns anos, soubera que os homens de Neanderthal enterravam os seus mortos com flores. Era a prova do seu desgosto e, portanto, da sua humanidade. Aquela criança tinha sido chorada, pensou ela. Envolvida em ligaduras, aspergida com flores secas e embrulhada num cobertor de lã. Não fora deitada fora, fora sepultada. Uma despedida.

Maura concentrou-se no pé, minúsculo como o de um boneco, a sair da mortalha. A pele da planta estava engelhada devido à imersão em água doce, mas não havia decomposição nem veias salientes. A temperatura no lago era quase negativa, e o corpo podia manter-se num estado de quase conservação durante algumas semanas. Seria difícil, ou mesmo impossível, determinar a data da morte.

Maura pôs de parte a pinça e retirou os quatro alfinetes-de-ama que fechavam a fronha. Fizeram um ruído quase musical quando ela os deixou cair num tabuleiro. Ao levantar o tecido e empurrá-lo um pouco mais para cima, apareceram as pernas, dobradas e com as coxas abertas, como as de uma pequena rã.

A avaliar pelo tamanho, tratava-se de um feto completamente formado.

Maura expôs os órgãos genitais e depois um pedaço inchado do cordão umbilical, atado com uma fita de cetim vermelho. De repente, lembrou-se das freiras sentadas à mesa, com as mãos deformadas a mexerem em flores secas e fitas para fazerem os seus saquinhos. Um bebé-saquinho, pensou ela. Coberto de flores e atado com uma fita.

É um rapaz disse Rizzoli, com a voz quase a falhar. Maura levantou a cabeça e reparou que Rizzoli estava ainda mais pálida e que se encostara à mesa, como se não conseguisse equilibrar-se.

Precisa de sair? Rizzoli engoliu em seco.

É apenas...

O quê?

Nada. Estou bem.

O pior ainda estava para vir.

Maura puxou a fronha sobre o peito, estendendo primeiro um braço e depois o outro, para libertá-los do tecido molhado. As mãos eram perfeitas, e os dedinhos capazes de acariciar a face de uma mãe, de agarrar uma madeixa de cabelo. A seguir ao rosto, são as mãos que melhor definem um ser humano, e era quase doloroso olhar para elas.

Maura enfiou a mão dentro da fronha para segurar a nuca, enquanto puxava o resto do tecido.

No mesmo instante, percebeu que algo não estava bem.

A sua mão apoiava um cérebro que, ao tacto, não parecia normal, humano. Parou, sentindo de repente a garganta seca. Aterrada, afastou o tecido, e apareceu a cabeça da criança.

Rizzoli perdeu o fôlego e afastou-se da mesa.

Céus! exclamou Frost. O que diabo lhe aconteceu?

Demasiado aturdida para falar, Maura só conseguiu olhar, horrorizada, para o crânio aberto, com a massa encefálica à vista. E para a face, dobrada para dentro como uma máscara de borracha amolgada.

De repente, um tabuleiro metálico virou-se e caiu. Maura levantou a cabeça mesmo a tempo de ver Rizzoli, lívida, a cair lentamente ao chão.

 

Não quero ir parar às urgências.

Maura limpou o resto do sangue e franziu o sobrolho ao ver a laceração de dois centímetros e meio na testa de Rizzoli.

Não sou cirurgiã plástica. Posso suturar isto, mas não posso garantir que não fique com uma cicatriz.

Trate lá disso, está bem? Não quero passar horas e horas sentada na sala de espera de um hospital. Além disso, podia sair-me na rifa um estudante de medicina.

Maura desinfectou-lhe a pele com Betadine e em seguida pegou num frasco de xilocaína e numa seringa.

Primeiro, vou anestesiar-lhe a pele. Vai sentir uma picada, mas depois não sente mais nada.

Rizzoli deixou-se ficar imóvel na marquesa, de olhos pregados no tecto. Apesar de não se encolher quando a agulha lhe atravessou a pele, fechou a mão e manteve o punho bem cerrado durante a anestesia. Nem um lamento, nem uma lamúria. Já se sentira suficientemente humilhada com a queda no laboratório. E ainda mais por não conseguir equilibrar-se sozinha e ter de aceitar a ajuda de Frost, que a conduziu ao gabinete de Maura como se ela fosse uma noiva. Agora estava deitada, com um ar macambúzio, firmemente determinada a não dar parte de fraca.

Quando Maura perfurou as extremidades da laceração com a agulha curva, Rizzoli perguntou, com uma voz muito calma:

Vai dizer-me o que aconteceu àquele bebé?

Não lhe aconteceu nada.

Aquilo não é normal! Bolas, falta-lhe metade da cabeça!

Nasceu assim respondeu Maura, cortando a linha e dando um nó. Suturar pele humana era o mesmo que coser um tecido, e neste caso ela não era mais do que uma simples costureira que unia as pontas e rematava a costura com um nó. O bebé é anencefílico.

O que quer isso dizer?

O cérebro dele nunca se desenvolveu.

Mas não se trata apenas da falta do cérebro. Parecia que lhe tinham cortado o cimo da cabeça. Rizzoli engoliu em seco. E a cara...

Faz tudo parte do mesmo defeito congénito. O cérebro desenvolve-se a partir de uma camada de células chamadas tubo neural. Se a parte de cima do tubo não se fechar como deve, o bebé nasce sem uma parte do cérebro, do crânio e até do couro cabeludo. É o que significa anencefálico.

Nunca tinha visto um como este?

Só num museu de Medicina. Mas não é assim tão raro. Acontece uma vez em cada mil nascimentos, aproximadamente.

Porquê?

Ninguém sabe.

Então podia... Acontecer o mesmo a qualquer bebé.

Exactamente. Maura deu o último ponto e cortou o excesso de sutura. Esta criança nasceu com uma malformação grave. Se não nasceu morta, é quase certo que morreria pouco depois.

Então, Camille não a afogou.

Vou examinar os rins para ver se há diatomáceas. Isso indicar-nos-á se a criança morreu por afogamento. Mas não acredito que este seja um caso de infanticídio. Creio que o bebé morrreu de morte natural.

Graças a Deus! disse Rizzoli em voz baixa. Se essa coisa tivesse sobrevivido...

Não teria. Maura aplicou um penso sobre a ferida e descalçou as luvas. Está pronta, detective. Deve tirar os pontos daqui a cinco dias. Pode passar por cá que eu tiro-lhos. Mas continuo a pensar que devia ir ao médico.

Você é médica.

Trabalho com mortos, não se esqueça disso.

Acabou de suturar-me lindamente.

Não estou a falar de dar alguns pontos. Estou preocupada com o resto.

A que se refere?

Maura inclinou-se para a frente e fitou Rizzoli.

Você perdeu os sentidos, lembra-se?

Não almocei. E essa coisa... O bebé... Chocou-me.

Chocou-nos a todos. Mas você é que desmaiou.

Nunca tinha visto nada igual.

Jane, você já viu toda a espécie de coisas terríveis naquela sala de autópsias. Todos vimos, todos cheirámos várias coisas juntos. Você sempre teve um estômago forte. Os polícias mais novos, tenho de mantê-los debaixo de olho, caso contrário, caem como tordos. Mas você sempre conseguiu manter o sangue frio aqui dentro. Até agora.

Talvez eu não seja tão forte como você julga.

Não. Creio que há um problema qualquer.

De que género?

Há uns dias, você sentiu-se tonta. Rizzoli encolheu os ombros.

Tenho de começar a tomar o pequeno-almoço.

Porque não o faz? São os enjoos. E tenho reparado que você vai à casa de banho praticamente de dez em dez minutos. Foi lá duas vezes enquanto eu preparava os instrumentos.

Mas que diabo é isto? Um interrogatório?

Você tem de ir ao médico. Tem de fazer um exame completo e análises ao sangue para controlar a anemia, pelo menos.

Só preciso de apanhar ar puro. Rizzoli sentou-se e levou imediatamente as mãos à cabeça. Céus, é esta maldita dor de cabeça.

Você bateu com a cabeça no chão com toda a força.

Já me tinha acontecido o mesmo.

Mas o que mais preocupa é que tenha perdido os sentidos. Que esteja tão cansada.

Jane Rizzoli levantou a cabeça e olhou para ela. Nesse instante, Maura teve a resposta. Já desconfiava, e agora via as suspeitas confirmadas no olhar da detective.

A minha vida é tão lixada! desabafou Rizzoli em voz baixa. As lágrimas surpreenderam Maura. Nunca vira Rizzoli chorar,

sempre a considerara uma mulher demasiado forte e obstinada para soçobrar, mas nesse momento as lágrimas caíam-lhe pelas faces, e Maura ficou tão abalada que se limitou a observá-la em silêncio.

Ficaram ambas sobressaltadas quando ouviram bater à porta.

Frost enfiou a cabeça no gabinete.

Como vão as coisas por aqui... Faltou-lhe a voz ao reparar no rosto molhado da colega. O que é isso? Sentes-te bem?

Rizzoli enxugou as lágrimas com um gesto de irritação.

Sinto.

O que há?

Já te disse que estou bem

Detective Frost. Precisamos de algum tempo a sós. Concede-nos alguma privacidade, por favor? pediu Maura.

Frost corou.

Desculpem disse ele em voz baixa, e retirou-se, fechando a porta sem fazer barulho.

Eu não devia ter gritado com ele disse Rizzoli. Mas às vezes é tão estúpido!

Ele só está preocupado consigo.

Pois, eu sei. Pelo menos é bom tipo.

Rizzoli não conseguiu dizer mais nada. Fez o possível por não chorar e cerrou os punhos, mas as lágrimas apareceram e depois os soluços. Eram soluços sufocados, de vergonha, que ela não conseguiu reprimir. Maura sentiu-se incomodada ao presenciar a desintegração de uma mulher cuja força moral sempre a impressionara. Se Jane Rizzoli se descontrolava, então podia acontecer o mesmo a toda a gente.

De repente, Rizzoli bateu com os punhos cerrados nos joelhos e respirou fundo várias vezes. Quando conseguiu levantar a cabeça, as lágrimas ainda lá estavam, mas o orgulho transformara o seu rosto numa máscara rígida.

São as malditas hormonas. Dão-me volta à cabeça.

Há quanto tempo é que"sabe?

Não sei... Há pouco, creio eu. Acabei por fazer um teste de gravidez esta manhã. Mas já há umas semanas que eu sabia. Sentia-me diferente. E não me apareceu o período.

De quanto tempo está? Rizzoli encolheu os ombros.

Um mês, pelo menos.

Maura reclinou-se na cadeira. Agora que Rizzoli já controlava as emoções, ela podia refugiar-se no seu papel de médica. A médica de cabeça fria, disposta a dar conselhos práticos.

Tem muito tempo para tomar uma decisão. Rizzoli fungou e passou as mãos pelo rosto.

Não há nada a decidir.

O que vai fazer?

Não posso tê-lo. Bem sabe que não posso.

Porquê?

Rizzoli fitou-a como se ela fosse uma imbecil.

O que faria eu com um bebé nos braços?

O mesmo que toda a gente faz.

Consegue imaginar-me como mãe? Rizzoli deu uma gargalhada. Que horror! A criança não sobreviveria um mês com os meus cuidados.

As crianças têm uma resistência espantosa.

Pois bem, eu não sou boa nisso.

Foi impecável com aquela menina, a Noni.

Pois.

Mas é verdade, Rizzoli. E ela correspondeu. Ignorou-me e retraiu-se na presença da mãe. Mas vocês tornaram-se logo amigas.

Isso não significa que eu seja do tipo maternal. Os bebés assustam-me. Não sei o que hei-de fazer com eles e passo-os logo para o colo de outra pessoa. Rizzoli resfolegou, como se não houvesse mais nada a dizer. Assunto encerrado. Não posso. Não posso.

Levantou-se da cadeira e atravessou a sala em direcção à porta.

Já disse ao agente Dean?

Rizzoli parou, com a mão no puxador da porta.

Jane?

Não. Não lhe disse.

Porquê?

É difícil termos uma conversa quando mal nos vemos.

Washington não fica do outro lado do mundo. Até tem o mesmo fuso horário. Você podia tentar pegar no telefone. Ele gostaria de saber.

Talvez não. Talvez seja uma daquelas complicações de que ele prefere nem ouvir falar.

Maura suspirou.

Certo, admito que sim. Não o conheço muito bem. Mas durante o pouco tempo em que trabalhámos juntos ele pareceu-me levar as suas próprias responsabilidades a sério.

Responsabilidades? Finalmente, Rizzoli virou-se e olhou para ela. Oh, nem mais! É isso que eu sou. É isso que este bebé é. E ele não é nenhum escuteiro para ter de cumprir o seu dever.

Não foi isso que eu quis dizer.

Mas você tem toda a razão. O Gabriel cumpriria o seu dever. Pois bem, que se lixe! Não quero ser o problema de homem nenhum, a responsabilidade de homem nenhum. Além disso, não é a ele que compete decidir. É a mim. Eu é que teria de o criar.

Você nem sequer lhe deu uma hipótese.

Uma hipótese de quê? De pôr um joelho em terra e pedir-me em casamento? retorquiu Rizzoli, rindo-se.

Porque é que isso é assim tão estranho? Já vos vi juntos. E reparei como ele olha para você. Existe algo mais do que um caso de uma noite.

Pois. Foi um caso de duas semanas.

Não foi mais do que isso para você?

Que mais podia ser? Ele está em Washington e eu estou aqui. Rizzoli abanou a cabeça, admirada. Céus, nem posso acreditar que fui apanhada. Isto só devia acontecer às mulheres patetas. Calou-se. E riu-se. Pois, e o que é que eu sou?

Pateta não é, com certeza.

Infeliz. E estupidamente fértil.

Há quanto tempo não fala com ele?

Desde a semana passada. Ele telefonou-me.

Porque não lhe disse nada?

Porque ainda não tinha a certeza.

Mas agora tem.

Mas não lhe vou dizer nada. Tenho de escolher o que me convém, e não o que convém aos outros.

O que receia que ele lhe diga?

Que me diga para lixar a minha vida. Que me diga para ficar com o bebé.

É mesmo isso que receia? Ou tem medo que ele não o queira? Que ele a rejeite antes que seja você a rejeitá-lo?

Rizzoli olhou para Maura.

Sabe uma coisa, doutora?

O que é?

Às vezes, não sei de que é que você está a falar.

E às vezes eu acerto em cheio, pensou Maura, vendo Rizzoli a sair do gabinete.

Rizzoli e Frost estavam sentados no carro, com o radiador a expelir ar frio e os flocos de neve a embaterem no pára-brisas. O céu cinzento condizia com a sua disposição. A detective tremia de frio, na obscuridade claustrofóbica do carro, e cada floco de neve que caía no vidro impedia-a ainda mais de ver alguma coisa lá para fora. Enclausurava-a, sepultava-a.

Estás melhor? perguntou Frost.

Foi uma dor de cabeça. Mais nada.

Tens a certeza que não queres que eu te leve às urgências?

Só preciso de tomar um Tylenol.

Está bem.

Frost ligou o motor, mas depois mudou de ideias e desligou-o. Olhou para ela.

Rizzoli?

O que é?

Se quiseres falar comigo sobre alguma coisa, seja ela qual for, eu não me importo de ouvir.

Ela não respondeu e limitou-se a olhar através do pára-brisas para os flocos de neve que desenhavam uma filigrana branca no vidro.

Trabalhamos juntos há quanto tempo? Há dois anos? Parece-me que não me contas muita coisa que se passa na tua vida disse ele. Talvez eu te encha os ouvidos acerca de mim e da Alice. Todas as discussões que temos, tu sabes, quer queiras quer não. Nunca me mandas calar e, portanto, deduzo que não te importas. Mas sabes? Apercebi-me agora de uma coisa. Tu ouves muito, mas falas pouco de ti.

Não há muito a dizer.

Frost ficou a pensar nisto. Depois, acrescentou, quase envergonhado:

Nunca te tinha visto chorar. Ela encolheu os ombros.

Pois bem, viste agora.

Ouve, nem sempre nos demos bem...

Achas que não?

Frost corou, como acontecia sempre que era apanhado num momento desastrado. A sua cara parecia um holofote, que se tornava vermelho ao primeiro sinal de embaraço.

O que eu quero dizer é que não somos, assim, grandes amigos.

Mas agora queres que sejamos grandes amigos?

Eu não me importava.

Combinado, somos grandes amigos respondeu ela bruscamente. Vamos andando.

Rizzoli?

O que é?

Eu estou aqui, ouviste? Só quero que saibas isso.

Ela pestanejou e virou-se para a janela lateral, para ele não ver o efeito que as suas palavras tiveram nela. Pela segunda vez numa hora, Rizzoli sentiu as lágrimas a chegar. Malditas hormonas! Não percebia porque é que as palavras de Frost a faziam chorar. Talvez fosse apenas o facto de ele estar a ser tão meigo para ela. A verdade é que sempre o fora, mas ela estava hipersensível e em parte desejava que Frost fosse estúpido que nem uma porta e não se apercebesse da sua agitação. As palavras dele tornavam-na vulnerável e exposta. Não era assim que se conquistava o respeito de um colega.

Rizzoli respirou fundo e desanuviou. O momento difícil passara e as lágrimas já tinham desaparecido. Conseguiu olhar para ele e simular a sua postura habitual.

Olha, preciso daquele Tylenol disse ela. Vamos passar o dia inteiro aqui sentados?

Ele concordou e ligou o motor. Os limpa-pára-brisas afastaram a neve do vidro, revelando-lhes o céu e as ruas cobertas por um manto branco. Rizzoli passara o Verão escaldante a suspirar pelo Inverno, pela pureza da neve. Agora, ao contemplar este cenário desolado, pensou que nunca mais voltaria a amaldiçoar o calor de Agosto.

Nas noites de sexta-feira, ninguém conseguia entrar no bar. P. Doyle's sem esbarrar com um polícia. Situado mesmo ao fundo da rua, no extremo oposto da esquadra de Jamaica Plain da Polícia de Boston, e apenas a dez minutos de Schroeder Plaza, o Doyle's era o ponto em que os agentes costumavam encontrar-se para conversar e beber uma cerveja quando estavam de folga. Por isso, quando Rizzoli entrou no Doyle's, esperava encontrar uma série de rostos conhecidos. O que ela não esperava era ver Vince Korsak sentado ao balcão, a beber uma cerveja. Korsak era um detective aposentado da Polícia de Newton, e o Doyle's ficava fora do seu território habitual.

Ele viu-a assim que ela entrou e acenou-lhe.

Olá, Rizzoli! Há quanto tempo não te via! O que te aconteceu? perguntou ele, apontando para o penso que Jane trazia na testa.

Ora, nada. Escorreguei na morgue e tive de levar uns pontos. E o que fazes tu por estas bandas?

Vou mudar-me para cá.

O quê?

Acabei de alugar um apartamento ao fundo da rua.

E a tua casa em Newton?

Isso é uma longa história. Queres jantar? Conto-te tudo. Korsak pegou na cerveja. Vamos para um compartimento na outra sala. Estes fumadores idiotas estão a dar-me cabo dos pulmões.

Nunca te incomodaste com isso.

Pois é. Isso é quando eu era um desses idiotas.

Não há nada como uma trombose para transformar um fumador inveterado num maníaco da saúde, pensou Rizzoli, seguindo atrás do corpulento Korsak. Embora tivesse perdido peso desde que sofrera o ataque cardíaco, ainda tinha arcaboiço para jogador de basebol, que era o que ele lhe parecia ao abrir caminho entre a multidão de sexta-feira à noite.

Entraram na sala de não fumadores, onde o ambiente estava um pouco mais desanuviado. Korsak escolheu um compartimento junto da bandeira irlandesa. Na parede, viam-se recortes amarelados e emoldurados do Boston Globe, artigos sobre antigos mayors e políticos que tinham morrido há muito tempo. Os Kennedy, Tip O'Neill e outros filhos ilustres do Eire, muitos dos quais tinham lidado com a melhor sociedade de Boston.

Korsak deslizou ao longo do banco de madeira, encolhendo a barriga generosa do outro lado da mesa. Apesar de continuar pesado, parecia mais magro do que em Agosto, quando ambos tinham participado na investigação de um múltiplo homicídio. Rizzoli não conseguia olhar para ele sem se lembrar desse Verão. O zumbido das moscas nas árvores, os horrores que a floresta desvendara, no meio da folhagem. Ainda lhe vinham à mente imagens daquele mês em que dois assassinos se tinham juntado para encenar fantasias terríveis em casais abastados. Korsak fora uma das poucas pessoas que se apercebera do impacto que o caso tivera nela. Juntos, tinham combatido monstros e sobrevivido, e havia um traço de união entre eles, forjado na crise de uma investigação.

No entanto, havia muita coisa em Korsak que a repelia.

Viu-o beber um gole de cerveja e passar a língua pelo bigode para retirar a espuma. O ar simiesco dele sempre a impressionara. As sobrancelhas farfalhudas, o nariz largo e os pêlos negros e hirsutos dos braços. E o modo como andava, com os braços grossos a balouçar ao lado do corpo e os ombros curvados para a frente, exactamente como um macaco. Rizzoli sabia que havia problemas no seu casamento e que, desde que se reformara, lhe sobrava tempo. Agora, ao olhar para ele, sentia um certo remorso. Korsak deixara-lhe várias mensagens no telefone, propondo que jantassem juntos, mas ela, sempre atarefada, nunca lhe respondera.

A empregada aproximou-se da mesa, reconheceu Rizzoli e perguntou:

Quer a sua Sam Adams, como de costume, detective? Rizzoli olhou para Korsak, que entornara cerveja na camisa, deixando um rasto de nódoas molhadas.

Hum, não. Só uma Cola respondeu ela

Quer encomendar? Rizzoli abriu a ementa. Nessa noite, não tinha estômago para cerveja, mas estava esfomeada.

Quero uma salada do chefe com muito molho Thousand Island. Peixe com batatas fritas. E um pratinho de rodelas de cebola. Pode trazer tudo ao mesmo tempo? Ah, e traga também uma dose extra de manteiga para os pãezinhos.

Korsak riu-se.

Não te prives, Rizzoli!

Estou com fome.

Sabes o que os fritos fazem às tuas artérias?

Está bem. Não comes nem uma das minhas rodelas de cebola. A empregada olhou para Korsak.

E o senhor?

Salmão grelhado, sem manteiga. E uma salada com molho vinagrete.

Assim que a empregada se afastou, Rizzoli deitou um olhar incrédulo a Korsak.

Desde quando começaste a comer peixe grelhado? perguntou ela.

Desde que recebi um aviso "forte do tipo lá de cima.

Estás mesmo a comer assim? Não é só para te exibires?

Já perdi cinco quilos. Mesmo sem fumar, ou seja, peso realmente menos. Não é apenas a retenção de líquidos. Korsak recostou-se, mostrando-se satisfeito consigo mesmo. Agora até uso o tapete de corrida.

Não me digas!

Inscrevi-me num ginásio. Faço exercícios cardíacos. Verifico as pulsações, controlo esta máquina. Sinto-me dez anos mais novo.

Pareces dez anos mais novo, talvez fosse o que ele esperava que ela dissesse, mas Rizzoli não disse, porque não era verdade.

Cinco quilos. Isso é bom para ti comentou ela.

Já não passo sem isto.

Então, porque bebes cerveja?

O álcool é bom, não sabes? É a última palavra no New England Journal of Medicine. Um copo de vinho tinto faz bem ao coração.

Korsak apontou para a Cola que a empregada serviu a Rizzoli. O que é isso? Costumavas beber sempre Adams Ale. Rizzoli encolheu os ombros.

Esta noite não me apetece.

Sentes-te bem?

Não, não me sinto bem. Estou grávida e não consigo beber uma cerveja sem ter vontade de vomitar.

Tenho andado muito ocupada respondeu ela.

Pois, tenho sabido. O que há com as freiras?

Ainda não sabemos.

Ouvi dizer que uma delas tinha sido mãe.

Onde é que ouviste isso?

Bem sabes. Por aí.

E que mais ouviste dizer?

Que vocês retiraram um bebé de um lago.

As fugas de informação eram inevitáveis. Os polícias conversavam uns com os outros. Conversavam com as mulheres. Rizzoli pensou em todos os investigadores que estavam à volta do lago, nos funcionários da morgue, nos peritos. Alguns tagarelas, e pouco depois até um polícia reformado de Newton conhecia os pormenores. Rizzoli receava o que os jornais da manhã pudessem publicar. Um assassínio já fascinava bastante o público; agora havia sexo proibido, um aditivo forte que manteria este caso nas primeiras páginas.

A empregada trouxe a comida. Aquilo que Rizzoli encomendara ocupava a maior parte da mesa; os pratos multiplicavam-se, como numa festa de família. Rizzoli atacou o que tinha à frente e deu uma dentada numa batata frita tão quente que teve de beber um pouco de Cola para refrescar a boca.

Korsak, apesar dos seus comentários virtuosos acerca dos fritos, não tirava os olhos das rodelas de cebola. Depois, olhou para o seu peixe grelhado, suspirou e pegou no garfo.

Queres umas rodelas de cebola? perguntou Rizzoli.

Não. Estou bem. Garanto-te que estou a dar uma volta à minha vida. Talvez aquela trombose tenha sido a melhor coisa que me aconteceu.

Estás a falar a sério?

Claro. Estou a perder peso. Deixei de fumar. Olha, acho que até o meu cabelo voltou a crescer.

Korsak inclinou a cabeça e mostrou a calva. Se havia cabelos a nascer, era dentro da cabeça, mas não por fora, pensou Rizzoli.

É verdade. Estou a fazer uma série de alterações disse ele. Korsak calou-se e concentrou-se no salmão, mas aparentemente sem prazer. Condoída, Rizzoli teve vontade de empurrar o seu prato de rodelas de cebola para junto dele.

Mas quando ele levantou a cabeça outra vez, foi para ela que olhou e não para a comida.

Também fiz mudanças lá em casa.

Houve qualquer coisa na entoação dele que a deixou pouco à vontade. O modo como olhou para ela, como se quisesse desabafar. Rizzoli receava ouvir os pormenores sórdidos, mas compreendeu que ele tinha necessidade de falar.

O que se passa lá em casa? perguntou ela, quase a adivinhar o que iria ouvir.

A Diane e eu... Sabes qual é a situação. Já a viste. Rizzoli vira Diane pela primeira vez no hospital, quando Korsak recuperava do ataque cardíaco. No primeiro encontro, reparara na fala arrastada e nos olhos vítreos de Diane. A mulher era um autêntico armário de medicamentos ambulante, cheio de Valium, codeína... Tudo o que ela conseguia extrair aos médicos. Há anos que o problema existia, conforme lhe explicara Korsak, mas ele mantivera-se ao lado da mulher por entender que era essa a sua obrigação.

Como está a Diane? perguntou Rizzoli.

Na mesma. Continua obtusa.

Tu disseste que as coisas estavam a mudar.

E estão. Eu deixei-a.

Rizzoli sabia que ele estava à espera da reacção dela. Não desviou o olhar, sem saber se havia de ficar satisfeita ou triste por ele. Sem saber o que ele queria ver nela.

Céus, Korsak! disse ela por fim. Não tens dúvidas?

Nunca tive tanta certeza na minha vida. Vou mudar-me para a semana. Encontrei um apartamento de solteiro aqui, em Jamaica Plain. Vou equipá-lo como me apetece. Um grande ecrã de televisão, uns brutos altifalantes daqueles que nos rebentam com os tímpanos, percebes?

Ele tem cinquenta e quatro anos, teve um ataque cardíaco e saltou-lhe a tampa, pensou ela. Está a comportar-se como um adolescente ansioso por mudar-se para o seu primeiro apartamento.

Ela nem vai reparar que eu saí. Desde que eu continue a pagar-lhe as contas da farmácia, sente-se feliz. Bolas, não sei porque levei tanto tempo para fazer isto. Desperdicei metade da minha vida, mas, digo-te, estou farto. Daqui em diante, todos os minutos serão importantes para mim.

E a tua filha? O que diz? Korsak riu-se.

Está-se nas tintas. Está sempre a pedir dinheiro. Papá, preciso de um carro novo. Papá, quero ir a Cancun. Julgas que eu alguma vez fui a Cancun?

Rizzoli recostou-se, fitando-o e deixando arrefecer as rodelas de cebola.

Sabes o que estás a fazer?

Sei. Estou a assumir o controlo da minha vida.

Korsak calou-se e em seguida acrescentou, com um certo ressentimento:

Julguei que ficavas contente por mim.

E fico. Acho que sim.

Então e o meu aspecto?

Que aspecto?

É como se me tivessem nascido asas.

Tenho de habituar-me ao novo Korsak. Parece que já não te conheço.

E isso é mau?

Não. Pelo menos já não me atiras baforadas de fumo para acara.

Riram-se. O novo Korsak, ao contrário do velho, não deixaria o carro dela a tresandar a cigarro.

Korsak espetou uma folha de alface e comeu em silêncio, de sobrolho carregado, como se o simples acto de mastigar exigisse toda a sua concentração. Ou para preparar o que viria a seguir.

Então como vai isso entre ti e o Dean? Continuam a ver-se?

A pergunta dele, feita com tanta naturalidade, apanhou-a desprevenida. Era o último assunto de que lhe apetecia falar, a última coisa que esperava que ele perguntasse. Korsak não escondia que não gostava de Gabriel Dean. Ela também não gostara dele, quando Dean se juntara à investigação em Agosto, exibindo o distintivo do FBI e querendo assumir o controlo das operações.

Umas semanas depois, tudo mudara entre ela e Dean.

Rizzoli olhou para a metade da refeição que ainda não comera, subitamente sem apetite. Sentia que Korsak a observava. Quanto mais tempo ela esperasse, menos credível seria a sua resposta.

As coisas vão bem respondeu ela. Queres outra cerveja? Acho que vou pedir mais uma Cola.

Ele veio ver-te há pouco tempo?;

Onde está a empregada?

Quando foi isso? Há umas semanas? Há um mês?

Não sei...

Rizzoli fez sinal à empregada, que não a viu e se encaminhou para a cozinha.

O quê? Não tens reparado nisso?

Tenho outras coisas em que pensar, percebes? disparou ela. Foi o tom de voz que a traiu. Korsak recostou-se, fitando-a com o seu olho clínico. Um olho que sabia muito.

Um tipo bem-parecido como ele talvez julgue que nenhuma mulher lhe resiste.

O que quer isso dizer?

Não sou tão estúpido como pareço. Percebo que alguma coisa não vai bem. Sinto-o na tua voz. E isso aborrece-me, porque tu mereces melhor. Muito melhor.

Eu não quero falar deste assunto.

Nunca confiei nele. Eu disse-te, em Agosto. Parece-me que nessa altura também não confiavas nele.

Rizzoli fez de novo sinal à empregada, que voltou a ignorá-la.

Há qualquer coisa de dissimulado nesses tipos do FBI. Em todos os que conheci. São todos falinhas mansas, mas nunca são frontais. Fazem jogos mentais. Julgam-se melhores do que os polícias. Toda essa escumalha federal.

O Gabriel não é desses.

Não?

Não é.

Só dizes isso porque estás apanhadinha por ele.

Porquê esta conversa?

Porque estou preocupado contigo. É como se estivesses a cair de um penhasco e nem sequer pedisses socorro. Não creio que tenhas alguém com quem possas falar disto.

Estou a falar contigo.

Pois, mas não me estás a contar tudo.

Mas o que queres que eu diga?

Ele não tem vindo cá ver-te, pois não?

Rizzoli não respondeu, nem sequer olhou para ele. Concentrou-se no mural pintado na parede atrás dele.

Temos andado muito ocupados.

Korsak suspirou e abanou a cabeça, com um gesto de compaixão.

Eu não estou apaixonada, nem nada que se pareça. Apelando ao seu orgulho, olhou finalmente para ele. Julgas que fico deprimida só porque um tipo me deixa?

Bem, não sei.

Rizzoli riu-se, mas pareceu um riso forçado, até a ela própria.

É só sexo, Korsak. Tens uma experiência e segues o teu caminho. É o que os amantes fazem.

Estás a dizer-me que és apenas uma amante?

Não me venhas com esse paleio machista!

Não, pronto! Queres dizer que ninguém sai magoado? Ele vai-se embora e tu ficas na mesma?

Rizzoli olhou-o fixamente.

Fico na mesma.

Ainda bem. Porque ele não merece, Rizzoli. Ele não merece um minuto de desgosto. E eu vou-lhe dizer isso, da próxima vez que o vir.

Porque estás a fazer isto?

A fazer o quê?

A interferir. A provocar. Eu não preciso disto. Já tenho problemas que cheguem.

Eu sei.

E só estás a piorar as coisas.

Korsak ficou a observá-la. Em seguida, baixou a cabeça.

Desculpa disse ele tranquilamente. Mas, sabes, só estou a tentar ser teu amigo.

De tudo o que ele pudesse ter dito, nada a teria afectado mais. Rizzoli deu consigo a reprimir as lágrimas ao mesmo tempo que fitava a cabeça calva de Korsak. Às vezes, ele causava-lhe repulsa, quando a enfurecia.

E havia momentos em que ela deitava um olhar surpreendido ao interior daquele homem, um homem decente e generoso, e envergonhava-se da sua impaciência para com ele.

Não trocaram uma palavra enquanto vestiam o casaco e saíam do Doyle's, emergindo da nuvem de fumo de cigarro para a noite resplandecente de neve. Da esquadra de Jamaica Plain, ao cimo da rua, saiu um carro-patrulha, cujo pirilampo mal se via através da cortina de flocos. Viram ambos o carro a descer a rua, e Rizzoli perguntou a si mesma qual seria a crise que o esperava. Havia sempre uma crise em qualquer lado. Casais a gritar, a discutir. Crianças perdidas. Condutores atordoados, encolhidos junto dos seus carros ameigados.

Tantas vidas diferentes que se intersectavam de múltiplas maneiras! A maioria das pessoas estava envolvida nos seus próprios casulos, num caminho do universo. Um polícia via de tudo.

Então o que tencionas fazer no Natal? perguntou ele.

Vou a casa dos meus pais. O meu irmão Frankie vem passar esta quadra à cidade.

É aquele que está nos fuzileiros, não é?

E. Sempre que ele aparece, toda a família se ajoelha e o venera.

Olá... Uma rivalidadezinha entre irmãos?

Nada disso. Há muito tempo que perdi esse concurso. O Frankie é o maior. E tu, o que fazes no Natal?

Korsak encolheu os ombros.

Não sei.

Nesta resposta estava implícito um pedido de convite. Salva-me de um Natal solitário. Salva-me da minha própria vida lixada. Mas Rizzoli não podia valer-lhe. Nem sequer conseguia valer-se a si mesma.

Tenho alguns planos apressou-se a acrescentar Korsak, demasiado orgulhoso para deixar que o silêncio se prolongasse. Talvez vá até à Florida, ver a minha irmã.

Parece uma boa ideia. Rizzoli suspirou, formando uma nuvem de vapor. Bem, tenho de ir para casa. Preciso de dormir.

Se quiseres que voltemos a encontrar-nos, tens o número do meu telemóvel, está bem?

Pois, tenho. Passa um bom Natal. Rizzoli encaminhou-se para o "seu carro.

Rizzoli!...

Sim?

Eu sei que ainda sentes alguma coisa pelo Dean. Desculpa-me por ter dito aquelas coisas acerca dele. Mas continuo a achar que merecias melhor.

Ela riu-se.

Como se houvesse uma fila de tipos à espera, à minha porta!

Bem disse ele, olhando para o cimo da rua e evitando, de repente, encará-la. Há um tipo.

Rizzoli ficou imóvel, a pensar: por favor não me faças isto. Por favor, não me obrigues a magoar-te.

Antes que ela pudesse reagir, ele virou-se abruptamente para o carro. Fazendo-lhe um aceno desleixado, contornou-o e enfiou-se lá dentro. Rizzoli viu-o afastar-se e olhou para a toalha de neve que os pneus deixaram para trás.

 

Já passava da sete da noite quando Maura chegou a casa. Ao virar para a rampa de acesso, viu luzes acesas lá dentro. Não era a luz insignificante de algumas lâmpadas acesas por temporizadores automáticos, mas a incandescência alegre de muitos candeeiros que alguém ligara porque estava à espera dela. E através dos cortinados da sala, avistou uma pirâmide de luzes de várias cores.

Uma árvore de Natal.

Era a última coisa que Maura esperava ver, e parou no meio da rampa, a olhar para as luzes de várias cores a acender e a apagar, recordando os Natais em que fora ela a fazer a árvore para Victor, em que tirara bolas frágeis das embalagens e as pendurara nos ramos que lhe perfumavam os dedos com o aroma acre do pinheiro. Lembrou-se dos Natais anteriores, quando era pequena e o pai a punha às cavalitas para ser ela a colocar a estrela prateada no cimo da árvore. Os pais não tinham interrompido uma única vez essa tradição feliz, que no entanto ela se apressara a deixar fugir da sua vida. Era uma vida demasiado agitada, demasiado trabalhosa. Levar a árvore para casa, deitá-la fora, e ali ficava depois aquele objecto seco e acastanhado no passeio, à espera do carro do lixo. Maura deixara-se desencorajar pelos pormenores incómodos e esquecera-se da alegria.

Saiu da garagem fria e, ao entrar em casa, foi recebida com o cheiro a frango assado com alho e alecrim. Como era bom ser acolhida pelos aromas do jantar e ter alguém à sua espera! Ouviu o som da televisão na sala e foi ao seu encontro, tirando o casaco enquanto percorria o corredor.

Victor estava sentado no chão, de pernas cruzadas, junto da árvore, tentando desfazer um molho de teias. Ao vê-la, sorriu, com um ar resignado.

Sou tão bom nisto como quando éramos casados.

Eu não estava à espera disse Maura, olhando para as luzes.

Bem, pensei que estamos a 18 de Dezembro e que tu ainda nem tinhas uma árvore.

Não tive tempo de ir comprá-la.

Há sempre tempo para o Natal, Maura.

A mudança foi muito grande. Dantes, eras tu que andavas sempre muito ocupado nesta época.

Victor olhou para ela, por entre o emaranhado de teias prateadas.

E tu atiravas-me sempre isso à cara, não era?

Maura calou-se, arrependida do seu último comentário. Não era uma boa maneira de começar o serão, lembrar antigos ressentimentos. Deu meia volta e foi pendurar o casaco no roupeiro. De costas para ele, perguntou:

Posso preparar-te uma bebida?

O que tiveres.

Mesmo que seja uma bebida feminina?

Alguma vez fui sexista nos meus cocktails?

Ela riu-se e foi para a cozinha. Tirou limas e sumo de arando do frigorífico. Mediu o tríplice seco e a vodca e deitou-os no shaker. Junto do lava-louça, misturou as bebidas com o gelo, sentindo que o recipiente metálico começava a ficar frio. Misturar, misturar, misturar, como dados a chocalhar num copo. Tudo é um jogo, e o amor acima de tudo. Da última vez que ganhei, perdi, pensou ela. E desta vez, estou a jogar para quê? Para que haja uma hipótese de as coisas se recomporem entre nós? Ou para ficar de novo destroçada?

Dividiu o líquido gelado por dois copos de cocktail e ia a sair da cozinha quando reparou que o contentor do lixo estava cheio de embalagens de comida vazias. Não pôde deixar de sorrir. Afinal, Victor não se transformara num cozinheiro por artes mágicas. Nessa noite, o jantar de ambos ficaria a dever-se ao New Market Deli.

Quando entrou na sala, verificou que Victor tinha desistido de pendurar as teias e estava a arrumar as caixas vazias dos enfeites da árvore.

O trabalho que tiveste! exclamou ela, pousando os copos em cima da mesa baixa. Lâmpadas, luzes e tudo.

Não encontrei decorações de Natal na tua garagem.

Deixei tudo em São Francisco.

E nunca compraste outras?

Nunca mais fiz uma árvore de Natal.

Já lá vão três anos, Maura.

Maura sentou-se no sofá e bebeu tranquilamente um gole do seu cocktail.

E qual foi a última vez em que tu tiraste para fora essa caixa de lâmpadas?

Ele não disse nada e continuou a empilhar as caixas. Quando respondeu, não olhou para ela.

Também não me tem apetecido muito festejar.

A televisão continuava ligada, sem som, e as imagens sucediam-se no ecrã. Victor pegou no controlo remoto e desligou-a. Depois, sentou-se no sofá, a uma distância confortável de Maura, sem lhe tocar, mas suficientemente perto para deixar todas as hipóteses em aberto.

Olhou para o cocktail que ela trouxera.

É cor-de-rosa! exclamou ele, um pouco admirado.

Avisei-te que era uma bebida feminina. Ele provou.

Sabe a raparigas divertidas.

Durante alguns instantes, não disseram nada, saboreando as bebidas à luz das lâmpadas da árvore que acendiam e apagavam. Um ambiente acolhedor e confortável, mas Maura estava longe de sentir-se descontraída. Não sabia o que esperar do serão, nem tão pouco sabia o que ele esperava. Tudo em Victor era de uma familiaridade desconcertante. O seu cheiro, o modo como a luz do candeeiro incidia no seu cabelo. E os pequenos pormenores, que ela sempre considerara enternecedores porque reflectiam a sua ausência de pretensiosismo: a camisa puída, as calças de ganga desbotadas. O mesmo Timex que ele usava quando se tinham conhecido. Não posso ir para um país do Terceiro Mundo com um Rolex no pulso, afirmara ele. Victor, qual Dom Quixote de La Mancha, a lutar contra o moinho de vento da pobreza. Talvez Maura se tivesse cansado dessa luta há muito tempo, mas ele continuava empenhado nela.

E ela não podia deixar de admirá-lo por isso.

Victor pousou o copo.

Hoje vi mais coisas sobre as freiras. No noticiário.

O que andam eles a dizer?

Que a polícia estava a dragar um lago nas traseiras do convento. De que se trata?

Maura recostou-se no sofá. O álcool começava a dissolver a tensão que sentia nos ombros.

Encontraram um bebé no lago.

O da freira?

Estou à espera que o teste de ADN o confirme.

Mas tens a certeza que o bebé era dela?

Tem de ser. Ou então este caso torna-se particularmente complicado.

Assim conseguirás identificar o pai. Se tiveres o ADN.

Em primeiro lugar, precisamos de um nome. E, mesmo que consigamos estabelecer a paternidade, nunca saberemos se o sexo foi consensual ou se houve violação. Como havemos de provar se foi uma coisa ou outra sem o testemunho de Camille?

Mesmo assim, pode ser um motivo para assassinar alguém.

Sem dúvida.

Maura bebeu o resto do cocktail e pousou o copo. Fora um erro beber antes do jantar. O álcool e a falta de sono conspiravam para lhe turvar os pensamentos. Esfregou as têmporas, tentando obrigar o cérebro a manter a lucidez.

Eu devia alimentar-te, Maura. Parece que tiveste um dia realmente difícil.

Maura fez um sorriso forçado.

Conheces aquele filme em que o menino diz: "Eu vejo gente morta"?

O Sexto Sentido.

Pois bem, eu estou sempre a ver gente morta e já começo a ficar cansada. É isso que me deprime. O Natal está a chegar e eu nem sequer pensei em fazer uma árvore, porque trago sempre a sala de autópsias na cabeça. Ainda conservo o cheiro nas mãos. Num dia como hoje, depois de fazer duas autópsias, chego a casa e nem consigo pensar em fazer o jantar. Nem consigo olhar para um naco de carne sem pensar em fibras musculares. O que me sabe bem é um cocktail. Preparo a bebida, cheiro o álcool e, de repente, lá volto eu para o laboratório. O álcool e o formol têm ambos o mesmo cheiro intenso.

Nunca te ouvi falar assim do teu trabalho.

Nunca me senti tão assoberbada por ele.

Não pareces a invencível doutora Isles.

Bem sabes que não sou.

Mas desempenhas muito bem esse papel. Inteligente e à prova de bala. Sabes que intimidavas os teus alunos na Universidade da Califórnia? Todos eles tinham medo de ti.

Maura abanou a cabeça e riu-se.

A Rainha dos Mortos.

O quê?

É assim que os polícias me chamam aqui. Não na minha cara. Mas eu soube por portas travessas.

Isso agrada-me. Rainha dos Mortos.

Pois bem, eu detesto. Maura fechou os olhos e aconchegou-se nas almofadas. Até parece que sou um vampiro, um ser grotesco.

Maura nem o sentiu levantar-se do sofá e ir para trás dela. Assustou-se quando ele pousou de repente as mãos nos seus ombros. Ficou hirta, com as extremidades dos nervos bem alerta e extraordinariamente sensíveis ao tacto.

Descontrai-te pediu ele em voz baixa, massajando-lhe os músculos. É uma coisa que nunca aprendeste a fazer.

Não faças isso, Victor.

Estás sempre de sobreaviso. Queres dar sempre uma imagem de perfeição.

Os dedos dele enterravam-se nos ombros e no pescoço dela. Sondando, invadindo. Ela reagiu ficando ainda mais tensa, e os seus músculos retesaram-se, na defensiva.

Não admira que estejas cansada disse Victor. As tuas defesas estão sempre alerta. Não consegues recostar-te e disfrutar a situação quando alguém te toca.

Não faças isso!

Maura afastou-se e levantou-se. Virou-se para ele, ainda com a pele eriçada.

O que se passa aqui, Victor?

Eu estava a tentar ajudar-te a relaxar.

Já estou relaxada, obrigada.

Estás tão crispada que até parece que os músculos estalam.

Bem, o que esperas? Não sei o que estás aqui a fazer. Não sei o que pretendes.

E que tal se voltássemos a ser amigos?

E podemos ser?

Porque não?

Quando olhou para ele, sentiu-se corar.

Porque há demasiada história entre nós. Demasiada... Atracção, era o que ela estava a pensar, mas conteve-se. Em vez

disso, acrescentou:

Não sei muito bem se os homens e as mulheres conseguem ser apenas amigos, afinal.

É triste que penses assim.

É realista. Trabalho com homens todos os dias. Sei que eles se sentem intimidados, e é isso que eu quero. Quero que eles sintam autoridade em mim. Um cérebro e uma bata branca. Porque assim que começam a pensar em mim como mulher, o sexo está sempre presente.

Victor protestou.

E isso contaminaria tudo.

É verdade.

Não interessa que tipo de autoridade lhes inspiras. Os homens olham para ti e todos vêem em ti uma mulher atraente. A menos que enfies um saco na cabeça. O sexo está sempre presente. Não podes fechá-lo à chave.

É por isso que não podemos ser apenas amigos. Dizendo isto, Maura pegou nos copos e foi para a cozinha. Victor não foi atrás dela.

Maura aproximou-se do lava-louça e ficou a olhar para os copos, ainda com o sabor da lima e da vodca na boca e o cheiro dele no nariz. Sim, o sexo estava presente, sem dúvida, traiçoeiro, mostrando-lhe imagens que ela tentava afastar, mas não conseguia. Pensou na noite em que tinham ido ao cinema e chegado tarde a casa e tinham começado a despir-se um ao outro assim que entraram. Na maneira frenética e quase brutal como tinham feito amor ali mesmo, no soalho; os movimentos bruscos dele tinham-na feito sentir-se utilizada, como se fosse uma prostituta. E ela" gostara.

Agarrou-se ao lava-louça e sentiu a aceleração do seu próprio ritmo respiratório, sentiu o corpo a tomar a sua própria decisão, rebelando-se contra a lógica que a mantivera no celibato durante todos estes meses.

O sexo está sempre presente.

A porta principal fechou-se com estrondo.

Maura virou-se para trás, sobressaltada. Correu para a sala e só viu a árvore de Natal a cintilar, mas Victor desaparecera. Ao olhar pela janela, viu-o entrar no carro e ligar o motor.

Saiu de casa a correr, escorregando no caminho coberto de gelo, em direcção ao carro dele.

Victor!

De repente, o motor parou e os faróis desligaram-se. Ele saiu e olhou para ela; a cabeça dele era apenas uma silhueta escura por cima da capota do carro. Estava vento, e Maura semicerrou os olhos para se proteger dos flocos de neve que lhe picavam a pele como se fossem agulhas.

Porque te vais embora? perguntou ela.

Vai para dentro, Maura. Está muito frio.

Mas porque te vais embora?

Mesmo na sombra, Maura viu a nuvem fria do bafo dele, exalado por frustração.

É óbvio que não me queres cá.

Volta. Eu quero que fiques.

Maura contornou o carro e ficou de frente para Victor. O vento atravessava-lhe a blusa fina.

Recomeçaríamos a atacar-nos um ao outro. Como sempre fazemos.

Victor ia a entrar no carro.

Ela agarrou-o pelo casaco e puxou-o para si. Nesse instante, quando ele se virou para ela, Maura teve a certeza do que viria a seguir. Fosse ou não irresponsável, nesse momento era o que ela queria que acontecesse.

Ele não teve de puxá-la para os seus braços. Ela já lá estava, procurando o calor dele, a boca dele com a sua. Sabores conhecidos, cheiros conhecidos. Os dois corpos encaixados, como sempre. Maura tremia, de frio e de excitação. Ele abraçou-a e protegeu-a do vento com o corpo, enquanto se beijavam, ao mesmo tempo que se dirigiam para a porta principal. Com eles entrou um borrifo de neve, partículas brilhantes que escorregaram para o chão assim que ele despiu o casaco.

Nem chegaram ao quarto.

Ali mesmo, à entrada, ela desabotoou-lhe a camisa e libertou-o das calças. A pele dele parecia escaldante em comparação com os seus dedos, entorpecidos pelo frio. Maura afastou o tecido, ansiosa pelo calor dele, desesperada para senti-lo na sua própria pele. Quando chegaram à sala, já a blusa dela estava desabotoada e as calças com o fecho aberto. Maura recebeu-o de novo no seu corpo. Na sua vida.

As luzes da árvore cintilavam como estrelas de muitas cores quando ela estava deitada no chão, debaixo dele. Fechou os olhos mas, mesmo assim, viu aquelas luzes a piscar por cima dela, num firmamento de cores. Os dois corpos rolaram juntos numa dança já conhecida, sem atrapalhações, sem a incerteza dos principiantes. Ela conhecia-lhe as mãos, os movimentos, e quando o prazer se apoderou dela e ela gritou, não se sentiu envergonhada. Três anos de separação foram varridos por este único acto. Depois, deixaram-se ficar deitados no meio das roupas que tinham despido, e o abraço dele pareceu-lhe tão familiar como um cobertor já gasto.

Quando Maura reabriu os olhos, Victor observava-a.

És o melhor presente que eu desembrulhei debaixo de uma árvore de Natal disse ele.

Maura olhou para uma teia reluzente que caía de um ramo.

É assim que eu me sinto. Desembrulhada. Exposta confessou ela em surdina.

Dizes isso como se não fosse uma coisa boa.

Depende do que acontecer a seguir.

O que acontece a seguir? Maura suspirou.

Não sei.

O que queres que aconteça?

Não quero que me magoem outra vez.

Receias que eu o faça. Maura encarou-o.

Já o fizeste uma vez.

Magoámo-nos um ao outro, Maura. De várias maneiras. As pessoas que se amam fazem-no sempre, sem intenção.

Tu é que tiveste aquele caso. O que fiz eu?

Isso não nos leva a lado nenhum.

Quero saber insistiu ela. Que mal te fiz eu?

Victor fez rolar o corpo e ficou deitado a seu lado, sem lhe tocar, de olhos pregados no tecto.

Lembras-te do dia em que tive de partir para Abidjan?

Lembro disse ela, ainda com o sabor da amargura.

Admito que foi um momento terrível para eu te deixar, mas fui obrigado a isso. Eu era a única pessoa que podia conduzir as negociações. Tinha de lá estar.

No dia seguinte ao funeral do meu pai? Maura olhou para ele. Eu precisava de ti. Precisava que estivesses em casa junto de mim.

A One Earth também precisava de mim. Podíamos ter perdido aquele contentor cheio de medicamentos. O assunto não podia esperar.

Bem, eu aceitei, não é verdade?

É exactamente essa a palavra. Aceitei. Mas eu percebi que ficaste furiosa.

Porque isso estava sempre a acontecer. Aniversários, funerais... Nada te conservava em casa. Eu vinha sempre em segundo lugar.

E era no que isso dava, não era? Eu tinha de escolher entre ti e a One Earth. E eu não queria escolher. Achava que não tinha de escolher. E muito menos com tanta coisa em causa.

Não podes salvar o mundo sozinho.

Posso fazer muito. Antigamente, também acreditavas nisto.

Mas tudo acaba com o tempo. Passaste anos obcecado pelas pessoas que morriam noutros países. E depois, um dia acordaste e quiseste concentrar-te na tua vida, para variar. Ter filhos. Mas também nunca tiveste tempo para isso. Maura respirou fundo e sentiu um nó na garganta, ao pensar nos bebés que desejara mas que talvez nunca viesse a ter. Ao pensar, também, em Jane Rizzoli, cuja gravidez lhe recordava dolorosamente que ela própria não tinha filhos. Cansei-me de estar casada com um santo. Eu queria um marido.

Passaram-se alguns momentos. As luzes da árvore por cima de Maura diluíam-se em manchas coloridas. Victor pegou-lhe na mão.

Acho que fui eu que falhei.

Ela engoliu em seco, e as cores adquiriram de novo a nitidez das luzes a cintilar num fio.

Falhámos ambos.

Ele não retirou a mão; apertou-a com força, como se receasse que, ao retirá-la, não houvesse uma segunda oportunidade de contacto.

Podemos conversar sobre o que nos apetecer, mas não creio que alguma coisa tenha mudado entre nós disse ela.

Sabemos o que correu mal.

Isso não significa que desta vez seja diferente. Ele respondeu serenamente:

Não somos obrigados a fazer nada, Maura. Podemos apenas estar juntos. Isso não basta neste momento?

Apenas estar juntos. Parecia simples. Deitada ao lado dele, só com as mãos a tocarem-se, Maura pensou: Sim, posso fazer isso. Posso distanciar-me o suficiente para dormir contigo e não deixar que me magoes. Sexo sem amor... Os homens gostavam disso, sem segundas intenções. Porque não havia ela de conseguir?

E quem sabe se desta vez será ele a sair magoado?, segredou uma vozinha cruel.

Doze

A viagem para Hyannisport devia ter levado só duas horas, em direcção ao sul, pela Estrada 3 e depois pela Estrada 6, para Cape Cod, mas foi necessário parar duas vezes para Rizzoli ir à casa de banho. Só chegaram a Sagamore Bridge às três da tarde. Depois de atravessarem a ponte, encontraram-se de repente na zona balnear. A estrada passava por uma série de pequenas localidades, como se fosse um colar de belas contas enfiadas ao longo do cabo. Rizzoli sempre fora a Hyannisport durante o Verão, quando as estradas se encontravam entupidas com automóveis e as pessoas de T-shirt e calções saíam em fila das geladarias. Nunca lá fora num dia de Inverno como este, em que metade dos restaurantes estavam fechados e apenas alguns bravos circulavam nos passeios, com os casacos abotoados até ao pescoço para se protegerem do vento.

Frost virou para Ocean Street e disse em voz baixa, fascinado:

Livra! Olha para o tamanho destas casas!

Queres mudar-te? perguntou Rizzoli.

Talvez, quando ganhar os meus primeiros dez milhões.

Diz à Alice que é melhor ela ir arranjando esses primeiros milhões, porque, com certeza, não vais ser tu a consegui-los com o teu salário.

As placas de sinalização conduziram-nos a uma entrada ladeada por dois pilares de granito; percorreram um caminho largo que desembocava numa linda casa à beira-mar. Rizzoli saiu do carro e parou ao vento, tremendo de frio, para admirar a cobertura de madeira a que o sal conferia um tom prateado e os três torreões virados para o mar.

Como é possível que ela tenha deixado tudo isto para ser freira? perguntou Rizzoli.

Quando Deus nos chama, acho que temos de corresponder. Ela abanou a cabeça.

Se fosse eu, deixava que Ele continuasse a chamar. Subiram os degraus do alpendre e Frost tocou à campainha. Uma mulher pequena de cabelo preto abriu uma nesga da porta

só para ver quem era.

Somos da Polícia de Boston disse Rizzoli. Telefonámos antes. Vimos falar com Mistress Maginnes.

A mulher fez um sinal de reconhecimento e afastou-se para os deixar entrar.

A senhora está na Sala do Mar. Eu acompanho-os. Atravessaram soalhos de teca encerada e viram paredes cobertas de quadros com barcos e mares encapelados. Rizzoli imaginou a pequena Camille naquela casa, a correr de um lado para o outro naquele chão reluzente. Poderia correr? Ou só teria autorização para andar, solenemente e sem fazer barulho, no meio das antiguidades?

A mulher conduziu-os a uma grande sala rasgada por janelas até ao tecto que davam para o mar. A vista das águas escuras varridas pelo vento era de tal modo espectacular que absorveu instantaneamente a atenção de Rizzoli. No entanto, havia um odor acre na sala. Cheiro de urina.

Rizzoli virou-se e percebeu donde vinha o cheiro. Ao pé das janelas, exposto como uma obra de arte, estava um homem deitado numa cama articulada. Uma mulher de cabelo ruivo, que estava sentada numa cadeira ao lado dele, levantou-se para cumprimentar os visitantes. Rizzoli não encontrou no rosto dela nenhuma semelhança com Camille. A beleza de Camille era frágil, quase etérea. A mulher à sua frente era altiva o cabelo parecia um elmo e as sobrancelhas lembravam as asas de uma gaivota.

Sou Lauren Maginnes, a madrasta de Camille disse a mulher, estendendo a mão a Frost.

Algumas mulheres ignoram o seu próprio sexo e concentram-se apenas nos homens presentes. Lauren era uma delas, pois toda a sua atenção convergiu para Barry Frost.

Fui eu que lhe telefonei. Sou a detective Rizzoli. E este é o detective Frost. Lamentamos muito a sua perda.

Só então Lauren se dignou reparar em Rizzoli.

Obrigada disse ela. Olhou para a mulher de cabelo preto que lhes abrira a porta. Maria, diga aos meninos que desçam e venham ter connosco. Está aqui a polícia. Laureen virou-se para os recém-chegados e apontou para um sofá. Sentem-se, por favor.

Rizzoli ficou sentada mesmo ao lado da cama. Olhou para a mão do homem, contraída como uma garra, e para o rosto dele, imobilizado de um lado, e lembrou-se dos últimos meses de vida do avô, deitado na cama da casa de repouso, com um olhar atento e irritado, prisioneiro de um corpo que já não obedecia às suas ordens. Viu o mesmo discernimento no olhar deste homem. Ele olhava de frente para ela, uma visita que não conhecia, e Rizzoli viu nele desespero e humilhação. O desamparo de alguém cuja dignidade lhe fora roubada. Não devia ter muito mais de cinquenta anos, mas o corpo já o atraiçoara. Um fio de saliva brilhava-lhe no queixo e escorria para a almofada. Numa mesa ao lado, estava toda a parafernália necessária ao seu conforto: latas de Ensure, luvas de borracha e toalhetes perfumados. Uma embalagem de fraldas para adultos. Uma vida inteira reduzida a uma mesa cheia de produtos de higiene.

A enfermeira do turno da noite está um pouco atrasada. Espero que não se importem de ficar aqui enquanto eu tomo conta do Randall disse Laureen. Mudámo-lo para esta sala porque ele sempre adorou o mar. Agora pode estar sempre a olhar para ele. Lauren pegou num toalhete de papel e limpou-lhe cuidadosamente a saliva da boca. Pronto. Pronto, já está. Virou-se e olhou para os dois detectives. Estão a ver porque é que eu não quis ir a Boston? Não gosto de deixá-lo sozinho com as enfermeiras durante muito tempo. Fica agitado. Não consegue falar, mas sei que sente a minha falta.

Lauren recostou-se na poltrona e concentrou-se em Frost.

Tem feito progressos na investigação?

Mais uma vez, foi Rizzoli que respondeu, determinada a atrair a atenção desta mulher e irritada por ela continuar a fugir-lhe.

Estamos a seguir algumas novas pistas respondeu ela.

Com certeza que não vieram até Hyannis só para me dizerem isso.

Não. Viemos falar de alguns assuntos que preferimos tratar pessoalmente.

E quiseram saber como éramos, calculo.

Queríamos ter uma noção do passado de Camille. Da família dela.

Pois bem, aqui estamos disse Lauren, agitando o braço. Foi nesta casa que ela cresceu. Quem diria, não é verdade? Que ela iria trocá-la por um convento. O Randall deu-lhe tudo o que uma rapariga poderia ambicionar. Um BMW novinho em folha no dia do aniversário. Um pónei só para ela. Um roupeiro cheio de vestidos que ela mal usou. Optou por se vestir de preto para o resto da vida. Optou... Lauren abanou a cabeça. Ainda nos custa a acreditar.

Não gostaram da decisão dela?

Oh, eu habituei-me. Afinal, a vida era dela. Mas o Randall nunca aceitou. Continuava com esperança que ela mudasse de ideias. Que se cansasse do que as freiras fazem durante todo o dia e que voltasse para casa. Lauren olhou para o marido, deitado na cama, sem poder falar. Creio que foi por isso que ele teve a trombose. A Camille era a sua única filha e ele não conseguia acreditar que ela o tivesse abandonado.

E a mãe biológica de Camille, Mistress Maginnes? Disse-me ao telefone que ela morreu.

Camille tinha apenas oito anos quando isso aconteceu.

Quando aconteceu o quê?

Bem, chamaram-lhe uma dose excessiva de medicamentos, acidental, mas estas coisas são realmente acidentes? O Randall já tinha enviuvado há vários anos quando o conheci. Creio que podem considerar-nos uma família reconstituída. Tenho dois filhos do meu primeiro casamento, e o Randall tinha a Camille.

Há quanto tempo é que a senhora e o Randall estão casados?

Há quase sete anos.

Lauren olhou para o marido e acrescentou, num tom resignado:

Para o melhor e para o pior.

A senhora e a sua enteada eram íntimas? Ela desabafava consigo?

A Camille? Lauren abanou a cabeça. Tenho de ser honesta. Nunca fomos muito chegadas, se é isso que quer saber. Ela já tinha treze anos quando eu conheci o Randall, e a senhora sabe como são os miúdos nessa idade. Não querem nada com os adultos. Não é que ela me tratasse como se eu fosse a madrasta má. Não. Mas não ligávamos bem, acho eu. Eu tentei, realmente, mas ela era sempre tão...

De repente, Lauren calou-se, como se receasse dizer alguma coisa que não devia.

Qual é o termo que procura, Mistress Maginnes? Lauren ficou a pensar.

Estranha disse ela por fim. A Camille era estranha. Lauren olhou para o marido, que a observava, e apressou-se a acrescentar:

Desculpa, Randall. Sei que é terrível eu dizer isto, mas eles são polícias. Querem saber a verdade.

O que quer dizer com "estranha"?

Por exemplo, quando vamos a uma festa, às vezes reparamos numa pessoa que está completamente sozinha disse Lauren. Alguém que não olha para nós de frente, percebe? Ela estava sempre enfiada a um canto, ou escondida no quarto. Nunca nos passou pela cabeça o que ela estava a fazer lá em cima. Estava a rezar! Ajoelhada, a rezar. A ler aqueles livros que lhe emprestou uma colega da escola, que era católica. Nós nem sequer somos católicos, somos presbiterianos. Mas ela fechava-se no quarto. A açoitar-se com um cinto, acredita nisto? Para se purificar. Onde é que vão buscar estas ideias?

Lá fora, o vento borrifava as janelas com o sal vindo do mar. Randall Maginnes soltou um gemido quase inaudível. Rizzoli reparou que ele estava a olhar de frente para ela e retribuiu, perguntando a si mesma até que ponto compreenderia aquela conversa. Se compreendesse tudo, tanto pior para ele, pensou. Saber tudo o que se passava à sua volta. Saber que a filha, a sua única filha, estava morta. Saber que o seu estado de saúde era um fardo para a mulher. Saber que o cheiro terrível que era obrigado a sentir vinha do seu próprio corpo.

Rizzoli ouviu passos, virou-se e viu dois jovens a entrar na sala. Era óbvio que eram os filhos de Lauren, com o mesmo tom de cabelo castanho-arruivado, as mesmas feições. Apesar de estarem vestidos informalmente, com calças de ganga e camisolas de gola alta, conseguiam projectar uma confiança com o seu quê de distintos, como a mãe. Filhos-família, pensou Rizzoli.

Estendeu-lhes a mão. Fê-lo com um gesto firme, para marcar a sua autoridade.

Sou a detective Rizzoli.

Os meus filhos, Blake e Justin disse Lauren. Vieram passar as férias a casa.

Os meus filhos, afirmara ela. Nesta família, a reconstituição não diluíra totalmente as fronteiras do amor. Mesmo após sete anos de casamento, os filhos dela continuavam a ser dela e a filha de Randall era dele.

São os dois futuros advogados da família acrescentou Lauren. Com todas as discussões que têm presenciado nesta casa, não terão falta de prática na sala de audiências.

Trocas de impressões, mãe corrigiu Blake. Nós chamamos-lhes trocas de impressões.

Às vezes, não sei qual é a diferença.

Os rapazes sentaram-se com a graciosidade fácil dos atletas e olharam para Rizzoli, como se esperassem que o espectáculo começasse.

Então andam no colégio, hem? disse Rizzoli. Em qual?

Eu ando em Amherst e o Justin anda em Bowdoin respondeu Blake.

Ambos relativamente perto de Boston.

E querem ser advogados? Os dois?

Eu já me candidatei às faculdades de Direito disse Blake. Tenciono seguir Direito do Espectáculo. Talvez resulte na Califórnia. Vou escolher uma cadeira de História do Cinema e estou convencido de que ficarei com umas boas bases.

Pois, e ele também quer ir passear com actrizes giras. Ai não! interpôs Justin.

O comentário valeu-lhe uma palmada nas costas.

Rizzoli admirou-se que os dois irmãos conseguissem brincar um com o outro desta maneira enquanto a meia-irmã, morta há tão pouco tempo, se encontrava na morgue.

Quando é que viram a vossa irmã pela última vez? perguntou ela.

Blake e Justin olharam um para o outro e responderam quase em uníssono:

No funeral da avó.

Isso foi em Março? Rizzoli olhou para Lauren. Quando Camille veio a casa?

Lauren fez um sinal afirmativo.

Tivemos de pedir à Igreja que a autorizasse a vir a casa para assistir às cerimónias fúnebres. Parecia uma prisioneira a pedir a palavra. Eu nem pude acreditar, quando não a deixaram vir a casa outra vez, em Abril, depois de o Randall ter sofrido a trombose. O próprio pai! E ela acatou essa decisão. Limitou-se a obedecer. Muito gostava eu de saber o que se passa dentro desses conventos, para que receiem tanto deixá-las sair! Quais os abusos que escondem. Mas talvez fosse por isso que ela gostava de lá estar.

Porque pensa assim?

Porque era do que ela gostava. De castigo. De sofrimento.

Camille?

Já lhe disse que ela era estranha, detective. Quando tinha dezasseis anos, descalçou-se e foi passear. Em Janeiro. Estavam dez graus negativos lá fora! A criada foi dar com ela no meio da neve. É claro que todos os vizinhos vieram a saber. Tivemos de levá-la ao hospital por causa das queimaduras provocadas pelo frio. Ela explicou ao médico que fizera isso porque os santos tinham sofrido e ela também queria sofrer. Estava convencida de que isso a aproximaria mais de Deus. Lauren abanou a cabeça. O que se pode fazer com uma rapariga destas?

Amá-la, pensou Rizzoli. Tentar compreendê-la.

Eu queria que ela fosse a um psiquiatra, mas o Randall nem quis ouvir falar no assunto. Nunca admitiu sequer que a sua própria filha fosse...

Lauren calou-se.

Diga, mãe insistiu Blake. Ela era doida. Era o que todos nós pensávamos.

O pai de Camille soltou um gemido.

Lauren levantou-se e foi limpar mais um pingo de saliva que escorria da boca do marido.

Mas onde está essa enfermeira? Devia estar aqui às três horas.

Quando Camille veio a casa em Março, quanto tempo é que cá ficou? perguntou Frost.

Lauren fitou-o, distraída.

Cerca de uma semana. Podia ter ficado mais tempo, mas resolveu regressar ao convento mais cedo.

Porquê?

Acho que ela não gostou-de estar com tanta gente. Vieram muitos parentes meus de Newport ao funeral.

Disse-nos que ela gostava de se isolar.

Isso é dizer pouco.

Ela tinha muitos amigos, Mistress Maginnes? perguntou Rizzoli.

Se tinha, nunca os trouxe cá a casa.

E na escola?

Rizzoli reparou que os dois rapazes olharam um para o outro.

Só aqueles que não andavam com mais ninguém respondeu Justin com uma rispidez desnecessária.

Refiro-me a namorados. Surpreendida, Lauren deu uma gargalhada.

Namorados? Quando ela só sonhava em tornar-se a noiva de Cristo?

Ela era uma jovem atraente. Talvez vocês não reparassem nisso, mas tenho a certeza que alguns rapazes reparavam nela. Rapazes que estavam interessados nela disse Rizzoli, olhando para os filhos de Lauren.

Ninguém queria sair com ela. Riam-se dela disse Justin.

E quando veio a casa em Março? Passou algum tempo com amigos? Houve algum homem que se mostrasse particularmente interessado nela?

Porque insiste nos namorados? perguntou Lauren. Rizzoli não sabia como havia de revelar a verdade.

Desculpem, mas tenho de vos dizer isto. Pouco antes de ser assassinada, Camille deu à luz um filho. Um bebé que morreu à nascença.

Rizzoli olhou para os dois irmãos. Eles fitaram-na com um ar espantado.

Por alguns momentos, o único som que se ouviu na sala foi o do vento a fustigar o mar e a sacudir as janelas.

Não tem lido os jornais? Todas essas coisas terríveis que os padres têm feito? Ela passou os dois últimos anos num convento! Esteve sob a supervisão deles, sob a autoridade deles. A senhora devia falar com eles.

Já interrogámos o único padre que tinha acesso ao convento. Ele dispôs-se a ceder o seu ADN. Esses testes estão a decorrer.

Então, ainda nem sabem se é ele o pai. Porque nos incomodam com estas perguntas?

O bebé podia ter sido concebido em Março, Mistress Maginnes. No mês em que ela veio a casa para assistir ao funeral.

E acha que isso aconteceu aqui!

Os senhores tiveram a casa cheia de convidados.

O que espera que eu faça? Que telefone a todos os homens que vieram cá nessa semana? "A propósito, o senhor dormiu com a minha enteada?"

Temos o ADN do bebé. Com a vossa ajuda, talvez conseguíssemos identificar o pai.

Lauren pôs-se de pé num abrir e fechar de olhos.

Peço-lhes que saiam já daqui.

A sua enteada morreu. Não quer que descubramos quem a matou?

Estão a procurar no sítio errado. Lauren encaminhou-se para a porta e gritou:

Maria! Ponha estes polícias na rua!

O ADN dar-nos-ia a resposta, Mistress Maginnes. Com algumas amostras, poderíamos eliminar todas as suspeitas.

Lauren virou-se para ela.

Então comecem pelos padres. E deixem a minha família em paz.

Rizzoli entrou no carro e fechou a porta. Enquanto Frost aquecia o motor, ela observou a casa e pensou como ficara impressionada ao vê-la pela primeira vez.

Antes de conhecer as pessoas que lá viviam.

Agora percebo porque é que Camille saiu de casa disse Rizzoli. Imagino-a a viver ali. Com aqueles irmãos. Com aquela madrasta.

Eles mostraram-se muito mais incomodados com as nossas perguntas do que com a morte da rapariga.

Ao passarem pelos pilares de granito, Rizzoli olhou para trás pela última vez, para a casa. Imaginou uma menina a deslizar como um fantasma no meio daqueles salões. Uma menina escarnecida pelos irmãos e ignorada pela madrasta. Uma menina cujos sonhos e esperanças eram postos a ridículo por aqueles que deviam amá-la. Cada dia naquela casa desferia mais um golpe na tua alma, mais doloroso do que a queimadura causada pelo gelo quando passeavas descalça na neve. Querias estar mais perto de Deus, conhecer a ternura incondicional do Seu amor. E eles riam-se de ti por isso, tinham pena de ti ou diziam-te que eras uma candidata ao divã do psiquiatra.

Não era de admirar que os muros do convento parecessem tão acolhedores.

Rizzoli suspirou e virou-se para a frente, olhando para a estrada.

Vamos para casa disse ela.

Este diagnóstico deixou-me perplexa comentou Maura.

Colocou uma série de fotografias digitais em cima da mesa da sala de reuniões. Os quatro colegas quase nem pestanejaram ao ver as imagens, porque tinham visto coisas muito piores na mesa de autópsias do que aquela pele roída pelos ratos e aqueles nódulos inflamados. Pareciam muito mais concentrados na caixa dos pãezinhos com mirtilos frescos que Louise trouxera nessa manhã, uma oferta que os médicos devoravam de bom grado, olhando ao mesmo tempo para aquelas fotografias indigestas. Aqueles que trabalham com os mortos aprendem a não deixar que as imagens e os cheiros lhes tirem o apetite, e entre os patologistas que estavam sentados à volta da mesa havia um que apreciava particularmente foie gras, um prazer não ofuscado pelo facto de passar os dias a dissecar fígados humanos. A avaliar pela sua barriga avantajada, nada tirava o apetite ao Dr. Abe Bristol, que mastigava alegremente o terceiro pãozinho quando Maura pousou a última fotografia.

Esta é a sua Jane Doe? perguntou o Dr. Costas. Maura fez um sinal afirmativo.

Sexo feminino, trinta a quarenta e cinco anos de idade, com um ferimento de bala no peito. Foi encontrada cerca de trinta e seis horas após a morte no interior de um prédio abandonado. Houve excisão do rosto depois da morte, assim como amputação das mãos e dos pés.

Céus! Aqui está um tarado para si.

São estas lesões na pele que me confundem disse Maura apontando para as fotografias. Os roedores fizeram alguns estragos, mas a pele intacta é suficiente para detectar o mau aspecto destas lesões subcutâneas.

O Dr. Costas pegou numa das fotografias.

Não sou especialista, mas diria que este é um caso clássico de inchaços avermelhados afirmou ele com um ar solene.

Todos se riram. Os médicos atarantados com as lesões cutâneas limitavam-se com frequência a descrever o aspecto da pele, sem conhecerem as causas. Os inchaços avermelhados podiam ser provocados por qualquer coisa, desde uma infecção viral à auto-imunidade, e eram poucas as lesões de pele que permitiam um diagnóstico imediato.

O Dr. Bristol parou de mastigar o seu pãozinho, apontou para uma das fotografias e disse:

Temos aqui umas ulcerações.

Sim, alguns nódulos apresentam ulcerações pouco profundas com formação de crostas. E noutros vê-se a escamação prateada que caracteriza a psoríase.

Culturas bacterianas?

Nada que não seja vulgar. Apenas Staph. epidermidis.

O estafilococo epidérmico era uma bactéria vulgar na pele, e Bristol limitou-se a encolher os ombros.

Contagioso.

E as biópsias da pele? perguntou Costas.

Ontem estive a examinar os diapositivos respondeu Maura. Há alterações inflamatórias agudas. Edema, infiltração por granulócitos. Alguns microabcessos profundos. Também se registam alterações inflamatórias nos vasos sanguíneos.

E você não fez cultura de bactérias?

Nem a coloração Gram nem a Fite Faraco indicaram a existência de bactérias. Estes são abcessos estéreis.

Você já sabe a causa da morte, não é verdade? disse Bristol, com as barbas pretas cheias de migalhas. Que interessa o que são estes nódulos?

Detesto pensar que me falha qualquer pormenor óbvio neste caso. Não possuímos a identificação desta vítima. Não sabemos mais nada acerca dela, excepto a causa da morte e o facto de apresentar estas lesões.

Bem, qual é o seu diagnóstico?

Maura olhou para os inchaços de aspecto desagradável, como se a vítima sofresse de carbúnculo.

Eritema nodoso respondeu ela.

Causa?

Maura encolheu os ombros.

Idiopática.

Que significava, apenas, de causa desconhecida. Costas riu-se.

Esse seu diagnóstico não é convincente.

Não sei que outra coisa lhe hei-de chamar.

Nem nós disse Bristol. Também concordo com o eritema nodoso.

Maura voltou para a secretária, releu o relatório da autópsia já dactilografado da Senhora dos Ratos e ditado por ela e sentiu-se insatisfeita ao assiná-lo. Sabia qual fora a hora aproximada da morte da vítima e a causa. Sabia que a mulher devia ser pobre e que sofrera por se sentir humilhada com o seu aspecto.

Olhou para a caixa dos diapositivos da biópsia, etiquetada com o nome de Jane Doe e o número da ficha. Tirou um dos diapositivos e examinou-o ao microscópio. Através da lente, detectou espirais rosadas e violáceas. Era uma mancha de hematoxilina e de eosina na pele. Maura viu o pontilhado escuro das células inflamatórias agudas, o círculo fibroso de um vaso sanguíneo infiltrado por glóbulos brancos, sinais de que o corpo estava a reagir, a enviar os seus soldados de células imunes para a luta contra... O quê?

Onde estava o inimigo?

Reclinou-se na cadeira, a pensar no que vira na autópsia. Uma mulher sem rosto nem mãos, mutilada por um assassino que ceifara identidades e vidas.

Mas porquê os pés? Porque levara ele os pés?

Este é um assassino que parece agir com uma lógica fria e não com perversões sinuosas, pensou ela. Atira a matar, com uma bala eficaz e letal. Despe a vítima mas não abusa sexualmente dela. Amputa-lhe as mãos e os pés e esfola-lhe a cara. Em seguida, deixa o cadáver num local em que a pele da vítima será devorada pelos necrófagos.

Mas Maura voltava sempre aos pés. A amputação dos pés não fazia sentido.

Voltou a pegar no envelope com as radiografias da Senhora dos Ratos e colocou as películas do tornozelo no visor. Mais uma vez, ficou chocada com a demarcação brutal da carne cortada, mas não viu nada de novo, nenhumas pistas que explicassem o que levara o assassino a efectuar a amputação.

Retirou as radiografias do visor e substituiu-as pelas do crânio, frontais e laterais. Observou os ossos da face da Senhora dos Ratos e tentou imaginar como seria o rosto. Não tens mais de quarenta e cinco anos, mas já perdeste os dentes de cima, pensou ela. Já tens o maxilar de uma velha, os ossos da face estão a apodrecer por dentro e o teu nariz está a afundar-se numa cratera enorme. E há nódulos horríveis espalhados pelo teu torso e pelos teus membros. Se te visses ao espelho, seria doloroso. E depois saíres, ficares exposta aos olhares dos outros...

Maura observou os ossos a brilhar no visor. E pensou: eu sei porque o assassino levou os pés.

Faltavam apenas dois dias para o Natal, e quando Maura entrou no campus de Harvard, encontrou-o quase deserto. O jardim era uma ampla extensão de branco, com umas pegadas aqui e ali. Percorreu o caminho, com a pasta e um grande envelope de radiografias na mão, sentindo no ar o odor penetrante de um nevão iminente. Algumas folhas mortas pendiam, trémulas, das árvores nuas. Uns veriam neste cenário um postal de boas-festas, mas ela via apenas os cinzentos monótonos do Inverno, uma época de que já estava farta.

Quando chegou ao Museu Peabody de Arqueologia de Harvard, tinha as meias e a bainha das calças ensopadas em água fria. Sacudiu a neve e entrou num edifício que cheirava a história. Os degraus de madeira rangeram quando ela desceu à cave. A primeira coisa em que reparou, assim que entrou no gabinete escuro da Dra. Julie Cawley, foi nas caveiras humanas, pelo menos uma dúzia delas, que forravam as estantes. Uma única janela, rasgada bem acima na parede, estava semicoberta pela neve e a pouca luz que conseguia entrar incidia directamente na cabeça da Dra. Cawley. Era uma mulher atraente, cujo cabelo grisalho penteado para cima parecia adquirir uma tonalidade de estanho naquela semiobscuridade. Trocaram um aperto de mão, um cumprimento estranhamente masculino entre duas mulheres.

Obrigada por me receber disse Maura.

Estou ansiosa por ver o que tem para me mostrar.

A Dra. Cawley acendeu um candeeiro. Graças à sua luz amarelada, o gabinete parecia subitamente mais quente. Mais acolhedor.

Gosto de trabalhar às escuras disse ela, apontando para o brilho do ecrã do computador que tinha à frente. Ajuda-me a concentrar. Mas é duro para os olhos de uma pessoa de meia idade como eu.

Maura abriu a pasta e retirou um dossiê com fotografias digitais.

Estas são as fotografias que tirei à morta. Lamento que não sejam muito agradáveis de ver.

A Dra. Cawley abriu o dossiê e parou, olhando para a face mutilada da Senhora dos Ratos.

Já há algum tempo que não assisto a uma autópsia. É verdade que nunca gostei. Sentou-se à secretária e respirou fundo. Os ossos parecem muito mais limpos. E de certo modo menos pessoais. Ver a carne é que dá a volta ao estômago.

Também trouxe as radiografias dela, se preferir vê-las primeiro.

Não, tenho de olhar para isto. Tenho de ver a pele. Passou lentamente à fotografia seguinte e parou, horrorizada. Meu Deus! O que aconteceu às mãos? perguntou ela em surdina.

Foram amputadas.

A Dra. Cawley deitou-lhe um olhar atónito.

Por quem?

Pelo assassino, calculamos nós. As duas mãos foram amputadas. E algumas partes dos pés.

A face, as mãos, os pés... Estas são as primeiras zonas do corpo que eu procuraria para fazer este diagnóstico.

Talvez tenha sido por isso que ele as removeu. Mas trago aqui outras fotografias que talvez a ajudem. As lesões cutâneas.

A Dra. Cawley virou-se para o conjunto de imagens seguinte.

Sim disse ela em voz baixa, enquanto as observava devagar, uma por uma. Isto podia ser...

O olhar de Maura desviou-se para a fila de caveiras que se encontravam em cima da estante, sem perceber como é que a Dra. Cawley conseguia trabalhar naquele gabinete, com todas aquelas órbitas vazias a olhar para ela. Pensou no seu próprio gabinete, com plantas envasadas e quadros com motivos florais... Não havia nada nas paredes que lhe lembrasse a morte.

Mas a Dra. Cawley optara por rodear-se das provas da sua própria mortalidade. Como professora de História da Medicina, era simultaneamente médica e historiadora, uma mulher que sabia ler as misérias escondidas nos ossos dos mortos. Sabia olhar para as caveiras que tinha em cima da estante e ver, em todas elas, uma história de sofrimento. Uma antiga fractura, um dente do siso encravado ou um tumor no maxilar. Muito depois de a carne se desfazer, os ossos ainda conseguiam contar as suas histórias. E a avaliar pelas muitas fotografias da Dra. Cawley tiradas em sítios arqueológicos de todo o mundo, há várias décadas que ela explorava essas histórias.

A Dra. Cawley levantou a cabeça.

Algumas destas parecem psoríase. Percebo que tenha sido um dos diagnósticos que você ponderou. Também podem ser infiltrações leucémicas. Mas estamos a falar de um grande embusteiro. Podem ser muitas coisas diferentes. Fez biópsias da pele?

Fiz, nomeadamente para detectar bacilos de acidificação rápida.

E?

Não vi nenhum.

A Dra. Cawley encolheu os ombros.

É possível que ela tenha recebido tratamento. Neste caso, já não haveria bacilos na biópsia.

É por isso que vim ter consigo. Sem uma doença activa, sem bacilos para identificar, não sei mesmo como hei-de fazer este diagnóstico.

Deixe-me ver as radiografias.

Maura entregou-lhe o envelope grande. A Dra. Cawley levou-o para um visor instalado na parede. Naquele gabinete repleto de artefactos do passado caveiras, livros antigos e fotografias com muitas décadas, o visor destacava-se pela sua modernidade. A Dra. Cawley deu uma vista de olhos pelas radiografias e, por fim, inseriu uma por baixo das molas.

Era uma radiografia do crânio. Sob os tecidos moles mutilados, as estruturas ósseas da face permaneciam intactas, brilhando como a cabeça de um morto em contraste com o fundo negro. A médica examinou-a, retirou-a do visor e substituiu-a por uma imagem lateral do crânio, captada de perfil.

Ah, cá estamos disse ela em voz baixa.

O que é?

Está a ver aqui? Onde devia estar o osso nasal anterior? A Dra. Cawley acompanhou com o dedo aquilo que devia ter sido a curvatura do nariz. Houve uma atrofia avançada do osso. Aliás, há uma obliteração quase total do osso do nariz. A médica aproximou-se da estante em que se encontravam as caveiras e pegou numa. Deixe-me mostrar-lhe um exemplo. Esta caveira foi exumada de um cemitério medieval na Dinamarca. Estava enterrada numa necrópole desolada, muito afastada do cemitério. Aqui, as alterações inflamatórias destruíram uma quantidade tal de tecido ósseo que existe apenas um orifício no sítio em que devia estar o nariz. Se fervêssemos os tecidos moles desta sua vítima, o cérebro dela seria muito parecido com este.

Não se trata de uma lesão post-mortem. É possível que o osso nasal tenha sido quebrado quando se deu a excisão da face?

Isso não justificaria a gravidade das alterações que detecto nesta radiografia. E há mais. A Dra. Cawley pousou a caveira e apontou para a película. Estamos perante uma atrofia e um recesso do maxilar de tal modo graves que os dentes frontais superiores foram afectados e caíram.

Eu julgava que isso se devia à falta de higiene dental.

Pode ter contribuído. Mas isto é outra coisa. É muito mais do que uma gengivite em fase avançada. Fez as outras radiografias que sugeri? perguntou a Dra. Cawley olhando para Maura.

Estão dentro do envelope. Fizemos uma radiografia invertida e uma série periapical para realçar as marcas nos maxilares.

A Dra. Cawley tirou mais radiografias do envelope. Colocou no visor uma radiografia apical, em que se via a base da cavidade nasal. Por instantes, não disse nada, como que fascinada pelo brilho esbranquiçado do osso.

Há anos que eu não via um caso como este disse ela em voz baixa, espantada.

Então os raios X permitem fazer um diagnóstico? Aparentemente, a Dra. Cawley saiu do seu transe. Virou-se para trás e pegou na caveira que estava em cima da secretária.

Vê como houve atrofia e afundamento do processo alveolar da maxila? disse ela, virando a caveira ao contrário para mostrar o osso do véu palatino. A inflamação destruiu este osso. Registou-se um tal recesso das gengivas que os dentes da frente caíram. Mas a atrofia não ficou por aqui. A inflamação continuou a devorar o osso e a destruir não só a abóbada palatina como os cornetos do nariz. A face foi literalmente consumida, a partir de dentro, até que o véu palatino abriu buracos e caiu.

Como esta mulher deve ter ficado desfigurada!

A Dra. Cawley virou-se e olhou para a radiografia da Senhora dos Ratos.

Se estivéssemos na Idade Média, ela teria sido um objecto de horror.

Então isto é suficiente para fazermos um diagnóstico?

É quase certo que esta mulher padecia da doença de Hansen respondeu a Dra. Cawley.

 

O nome parecia suficientemente inócuo àquelas pessoas que não reconhecessem o seu significado. Mas a doença tinha outra denominação com ressonâncias de horror: lepra. Trazia à memória imagens medievais de intocáveis que envergavam túnicas compridas e escondiam o rosto, de párias e desgraçados que pediam esmola. Das campainhas da lepra, que soavam para avisar os incautos da aproximação de um monstro.

Tais monstros não eram mais do que as vítimas de um invasor microscópico: o Mycobacteríum leprae, um bacilo que se desenvolve lentamente e vai desfigurando à medida que se multiplica, enchendo a pele de nódulos de aspecto muito desagradável. Destrói os nervos das mãos e dos pés de tal modo que as vítimas deixam de sentir dor, não se protegem das agressões e os seus membros tornam-se vulneráveis a queimaduras, traumas e infecções. Com a passagem do tempo, a mutilação prossegue. Os nódulos engrossam e a cana do nariz abate. Os dedos das mãos e dos pés, cobertos de feridas, começam a desaparecer. E quando o doente acaba por morrer, não é sepultado no cemitério, mas banido e enterrado muito para além dos seus muros.

Até na morte o leproso era evitado.

Ver um doente numa fase tão avançada é uma coisa muito rara nos Estados Unidos afirmou a Dra. Cawley. A medicina moderna conseguiria conter a doença muito antes de ela provocar este nível de desfiguração. A terapia dos três medicamentos consegue curar até os piores casos de lepra lepromatosa.

Estou a partir do princípio de que esta mulher foi tratada disse Maura. Porque não vi bacilos activos nas biópsias da pele.

Sim, mas é óbvio que o tratamento chegou tarde para ela. Repare nestas deformidades. A queda dos dentes e o colapso dos ossos da face. Ela já estava infectada há bastante tempo, talvez há décadas, antes de receber cuidados médicos.

Até o doente mais pobre deste país teria recebido tratamento.

Espero bem que sim, porque a doença de Hansen é uma questão de saúde pública.

Então esta mulher devia ser uma imigrante. Cawley concordou.

Esta doença ainda se encontra em certas populações rurais. A maioria dos casos situa-se apenas em cinco países.

Quais?

Brasil, Bangladesh, Indonésia, Myanmar e, evidentemente, índia.

A Dra. Cawley repôs a caveira na estante e em seguida juntou as fotografias espalhadas em cima da secretária. Mas Maura quase nem reparou no que a outra mulher fazia. Olhou para a radiografia da Senhora dos Ratos e pensou noutra vítima, noutro crime. Em sangue derramado, na sombra de um crucifixo.

índia. A irmã Ursula tinha trabalhado na índia.

A Abadia de Graystones parecia mais velha e desolada do que nunca quando Maura transpôs o portão nessa tarde. Foi a velha irmã Isabel que a conduziu através do pátio, com umas incongruentes botas de neve L.L. Bean a espreitarem por baixo do hábito preto. Quando o Inverno era brutal, até as freiras recorriam ao conforto da Gore-Tex.

A irmã Isabel encaminhou Maura para o gabinete vazio da madre e em seguida desapareceu no corredor escuro, a arrastar os pés, deixando atrás de si um eco que se foi desvanecendo.

Maura tocou no radiador de ferro fundido que se encontrava a seu lado; estava frio. Resolveu não tirar o casaco.

Passou tanto tempo que ela começou a pensar se teria sido esquecida, se a velha irmã Isabel já não se lembrava dela quando chegara ao fundo do corredor. Ouvindo os ruídos do edifício e as rajadas de vento na janela, Maura imaginou-se a passar a vida inteira debaixo daquele tecto. Os anos de silêncio e oração, os rituais imutáveis. Havia um certo conforto nesse tipo de existência, pensou. Saber sempre como iria correr o dia. Nada de surpresas nem de agitação. Levantar-se da cama e vestir sempre a mesma coisa, ajoelhar-se e fazer sempre as mesmas orações, percorrer sempre os mesmos corredores escuros para ir tomar o pequeno-almoço. Do outro lado dos muros, as saias das mulheres podiam subir e descer, os automóveis podiam ostentar novas formas e cores e uma galáxia mutável de estrelas de cinema apareceria e desapareceria dos ecrãs. Mas dentro daqueles muros, os rituais continuavam a ser os mesmos, mesmo quando os corpos perdiam a firmeza, as mãos começavam a tremer e o mundo se tornava mais silencioso com a perda de audição.

Consolo, pensou Maura. Contentamento. Sim, estes eram motivos que justificavam o afastamento do mundo, motivos que ela compreendia.

Não sentiu Mary Clement a aproximar-se e ficou sobressaltada ao ver a madre na soleira da porta, a observá-la.

Reverenda madre.

Deduzo que tenha mais perguntas a fazer, não é assim?

Acerca da irmã Ursula.

Mary Clement entrou no gabinete, como se deslizasse, e sentou-se à secretária. Num dia tão gélido, nem ela estava imune ao frio do Inverno; por baixo do véu, trazia uma camisola de lã cinzenta bordada com gatos brancos. Cruzou as mãos sobre a secretária e fitou Maura com um ar carrancudo e não com a expressão amigável da primeira manhã.

A senhora fez tudo para desestabilizar a nossa vida. Para destruir a memória da irmã Camille. E agora quer repetir o processo com a irmã Ursula?

Ela havia de gostar que descobríssemos quem é o seu agressor.

E que terríveis segredos imagina que ela esconde? Quais são os pecados que procura agora, doutora Isles?

Não são pecados, necessariamente.

Ainda há poucos dias se concentrava apenas em Camille.

E talvez isso nos tenha impedido de sondar melhor a vida da irmã Ursula.

Não encontrará escândalos.

Não ando à procura de escândalos. Procuro o motivo do agressor.

Para matar uma freira de sessenta e oito anos? Mary Clement abanou a cabeça. Não me ocorre nenhum motivo racional.

A madre disse-nos que a irmã Ursula cumpriu uma missão no estrangeiro. Na índia.

A mudança repentina de assunto pareceu apanhar de surpresa Mary Clement, que se mexeu na cadeira.

Porque é que isso é relevante?

Conte-me mais coisas. Fale-me do período em que ela esteve na índia.

Não sei exactamente o que pretende saber.

Ela tinha conhecimentos de enfermagem?

Sim. Trabalhou numa pequena aldeia nos arredores da cidade de Hyderabad. Esteve lá durante cerca de cinco anos.

E regressou a Graystones há um ano?

Em Janeiro.

Ela ralava muito do trabalho que lá fez?

Não.

Passou lá cinco anos e nunca falou das suas experiências?

Nós aqui damos valor ao silêncio. Não à conversa ociosa.

Não considero que falar de uma missão no estrangeiro fosse conversa ociosa.

Já viveu no estrangeiro, doutora Isles? Não num belo hotel de turismo, onde os empregados mudam os lençóis todos os dias. Refiro-me a aldeias em que os esgotos correm para a rua e as crianças estão a morrer de cólera. A experiência dela lá não era um tema de conversa particularmente agradável.

Disse-nos que tinha havido violência na índia. Que a aldeia em que ela trabalhava foi atacada.

A madre baixou a cabeça e olhou para a pele gretada e vermelhusca das mãos cruzadas em cima da secretária.

Reverenda madre? disse Maura.

Não sei a história toda. Ela nunca me falou disso. O pouco que sei, contou-me o padre Doolin.

Quem é ele?

Trabalha no arcebispado de Hyderabad. Telefonou da índia, pouco depois de aquilo ter acontecido, para me comunicar que a irmã Ursula regressava a Graystones. Que era seu desejo voltar a viver em clausura. Recebemo-la de braços abertos, evidentemente. Esta é a casa dela. Naturalmente, era aqui que encontraria consolação, depois...

Depois de quê, reverenda madre?

Do massacre. Na aldeia de Bara.

De repente, a janela estremeceu, com uma rajada de vento. Do outro lado do vidro, o dia perdera todas as cores. Via-se um muro cinzento encimado por um céu cinzento.

Era lá que ela trabalhava? perguntou Maura. Mary Clement fez um sinal afirmativo.

A aldeia era tão pobre que não tinha telefone nem electricidade. Viviam lá quase cem pessoas, mas poucos se atreviam a visitá-las. Foi essa a vida que a irmã Ursula escolheu. Servir os mais desafortunados.

Maura pensou na autópsia da Senhora dos Ratos. No crânio dela, deformado pela doença.

Era uma aldeia de leprosos disse ela baixinho. Mary Clement confirmou.

Na índia, consideram-nos os mais impuros de todos. São desprezados e temidos. Expulsos pela família. Vivem em aldeias especiais, onde podem refugiar-se da sociedade, onde não têm de esconder a cara. Onde os outros são tão deformados como eles. A madre olhou para Maura. Nem isso evitou que eles fossem atacados. Bara já não existe.

A madre disse que houve um massacre.

Foi o que o padre Doolin lhe chamou. Uma mortandade.

Quem foi?

A polícia nunca identificou os agressores. Podem ter sido membros de outras castas. Ou fundamentalistas hindus, furiosos com o facto de uma freira católica viver no seio deles. Podem ter sido os tamils, ou alguém da meia dúzia de facções separatistas que se degladiam na região. Mataram toda a gente, doutora Isles. Mulheres, crianças. Duas enfermeiras da clínica.

Mas Ursula sobreviveu.

Porque não estava em Barahèssa noite. Tinha partido na véspera para ir buscar medicamentos a Hyderabad. Quando voltou na manhã seguinte, encontrou a aldeia reduzida a cinzas. Os operários de uma fábrica próxima também lá estavam, à procura de sobreviventes, mas não encontraram nenhum. Até os animais as galinhas, as cabras foram chacinados, e os corpos queimados. A irmã Ursula desmaiou quando viu os cadáveres, e um médico da fábrica teve de interná-la na sua clínica até o padre Doolin chegar. Foi a única pessoa que sobreviveu em Bara. Foi uma felizarda.

Uma felizarda, pensou Maura. Poupada à mortandade, para regressar à Abadia de Graystones e descobrir que a morte não a tinha esquecido. Que nem ali podia escapar-lhe.

Os olhares das duas mulheres cruzaram-se.

Não encontrará nada vergonhoso no passado dela. Apenas uma vida inteira ao serviço de Deus. Deixe a memória da nossa irmã em paz, doutora Isles. Deixe-a em paz.

Maura e Rizzoli estavam no passeio, à porta daquele que fora o restaurante Mama Cortinas, e o vento atravessava-lhes os casacos como uma lâmina gelada. Era a primeira vez que Maura se encontrava ali de dia, e viu uma rua de prédios abandonados, cujas janelas olhavam para baixo como órbitas vazias.

Mas que bela zona esta para onde você me trouxe! exclamou Rizzoli, levantando a cabeça e olhando para a tabuleta descorada do Mama Cortinas. A sua Jane Doe foi encontrada aqui?

Na casa de banho dos homens. Estava morta há cerca de trinta e seis horas quando a examinei.

E não tem pistas que permitam identificá-la? Maura abanou a cabeça.

Considerando o estado avançado da doença de Hansen, é possível que ela tivesse chegado ao país há pouco tempo. Talvez sem documentos.

Rizzoli aconchegou mais o casaco ao corpo.

Ben-Hur disse ela em voz baixa. É o que isso me faz lembrar. O Vale dos Leprosos.

Ben-Hur era apenas um filme.

Mas a doença é real. Aquilo que faz à cara, às mãos.

Pode ser fortemente mutiladora. Era isso que aterrava os antigos. O simples facto de verem um leproso podia levar as pessoas a gritar de horror.

Céus! E pensar que a temos mesmo aqui em Boston. Rizzoli estremeceu. Está frio. Vamos lá para dentro.

Entraram no beco, pisando o caminho gelado que se formara com as pegadas de muitos agentes da autoridade. Ali podiam proteger-se do vento, mas o poço de escuridão entre os prédios era ainda mais desagradável, e reinava um silêncio lúgubre. A soleira da porta do restaurante estava vedada por fita da polícia.

Maura tirou a chave e inseriu-a no cadeado, mas este não se abriu. Ela agachou-se, remexendo na fechadura gelada.

Porque lhes caem os dedos? perguntou Rizzoli.

O quê?

Quando alguém apanha lepra. Porque lhe caem os dedos? A doença ataca a pele? Essa bactéria devora a carne?

Não. Actua de uma maneira diferente. O bacilo da lepra ataca os nervos periféricos, e os dedos das mãos e dos pés ficam dormentes. O doente não sente dor. A dor é o nosso sistema de alarme, faz parte do nosso mecanismo de defesa contra as agressões. Sem ele, podíamos mergulhar os dedos em água a ferver e não sentiríamos a queimadura na pele. Nem as bolhas a formarem-se nos pés. Podemos ferir-nos sucessivamente, o que provoca outras infecções. Gangrena. Maura calou-se, frustrada com a teimosia do cadeado.

Deixe-me tentar.

Maura afastou-se e, agradecida, enfiou as mãos nas algibeiras, enquanto Rizzoli manipulava a chave.

Nos países mais pobres, são os ratos os verdadeiros responsáveis pelas lesões nas mãos e nos pés.

Rizzoli levantou a cabeça, franzindo o sobrolho.

Os ratos?

De noite, durante o sono. Vão ter com os doentes à cama e roem-lhe os dedos das mãos e dos pés.

Está a falar a sério?

E o doente não sente nada, porque a lepra deixa-lhe a pele dormente. No dia seguinte, ao acordar, descobre que já não tem as pontas dos dedos. Que só lhe restam cotos ensanguentados.

Rizzoli fitou-a e depois virou a chave com força. O cadeado abriu-se. Através da porta entreaberta, viam-se manchas cinzentas que se diluíam na escuridão.

Bem-vinda ao Mama Cortinas disse Maura.

Rizzoli parou na soleira da porta e dirigiu o feixe luminoso da sua lanterna lá para dentro.

Está qualquer coisa a mexer lá dentro disse em voz baixa.

São ratos.

Não falemos mais de ratos.

Maura ligou a sua própria lanterna e foi atrás de Rizzoli, no meio de uma escuridão que cheirava a gordura rançosa.

Ele trouxe-a para aqui, para a sala de jantar disse Maura, cujo foco de luz dançava no chão. Eles descobriram algumas marcas de arrastamento no meio da poeira, talvez deixadas pelos saltos dos sapatos dela. Ele deve tê-la agarrado por baixo dos braços e arrastado para trás.

Seria de esperar que nem sequer tivesse vontade de lhe tocar.

Creio que usou luvas, porque não deixou impressões digitais.

Mesmo assim esteve em contacto com as roupas dela. Expôs-se à infecção.

Você está a pensar como os antigos. Como se o facto de um leproso lhe tocar a transformasse num monstro. A doença não se transmite tão facilmente como julga.

Mas podemos apanhá-la. Podemos ficar infectados.

É verdade.

E a seguir verificamos que temos o nariz e os dedos das mãos a cair.

A doença é curável. Há antibióticos.

Não me interessa que seja curável disse Rizzoli, atravessando a cozinha devagar. É de lepra que falamos. De algo saído directamente da Bíblia.

Atravessaram a porta de batentes e entraram na sala de jantar. A lanterna de Rizzoli descreveu um círculo e mostrou várias cadeiras empilhadas junto da parede. Embora não vissem a infestação, ouviam o restolhar. A escuridão estava viva.

Por onde vamos? perguntou Rizzoli. A sua voz era agora um murmúrio, como se ambas tivessem entrado em território hostil.

Continue a andar. Há um corredor à direita, ao fundo da sala.

Apontaram os focos de luz para o chão. Os últimos sinais de arrastamento tinham sido apagados pela passagem de todos os elementos da autoridade que ali se tinham dirigido. Na noite em que Maura comparecera no local do crime, estava acompanhada pelos detectives Crowe e Sleeper, sabia que já estava a postos um exército de peritos para entrar por ali dentro com as suas competências, as suas máquinas fotográficas e os seus pós destinados a assinalar impressões digitais. Nessa noite, ela não tivera medo.

Agora, arfava. Muito perto de Rizzoli, muito consciente de que não tinha ninguém a protegê-la pelas costas. Sentiu os pêlos da nuca a eriçar-se, particularmente atenta a quaisquer sons, a qualquer movimento nas suas costas.

Rizzoli parou, virando o feixe de luz para a direita.

O corredor é este?

A casa de banho fica ao fundo.

Rizzoli avançou, virando a lanterna para um lado e para o outro. Ao chegar à última porta parou, como se já soubesse que o que se seguiria seria perturbante. Apontou a lanterna lá para dentro e ficou a olhar para as manchas de sangue no chão de mosaicos. Examinou rapidamente as paredes, a cabine da casa de banho, os urinóis de porcelana e os lavatórios manchados de ferrugem. Depois, como que atraído por uma força magnética, o feixe de luz incidiu de novo no chão, no sítio onde fora descoberto o cadáver.

Um local onde ocorreu uma morte tem uma força muito especial. Muito depois de o corpo ser removido e de o sangue ser limpo, permanece ali a memória do que aconteceu. Há ecos de gritos, o odor remanescente do medo. E, como um buraco negro, ele absorve a atenção dos vivos, que não conseguem virar-lhe as costas, que não conseguem resistir a espreitar o inferno.

Rizzoli agachou-se para observar os mosaicos manchados de sangue.

Foi um tiro em cheio no coração disse Maura, agachando-se ao lado dela. Um tamponamento pericárdico que provocou rapidamente uma paragem cardíaca. Por isso é que há tão pouco sangue no chão. Assim que o coração parou, a circulação cessou. Quando ele fez as amputações, estava a cortar um cadáver.

Permaneceram em silêncio, a olhar para as manchas acastanhadas. Naquela casa de banho não havia janelas. Uma luz acesa lá dentro não se via da rua. Quem manejara a faca tivera o tempo por sua conta, demorando-se com o objecto da sua carnificina sem que ninguém o incomodasse. Não havia gritos para abafar, nem o perigo de ser descoberto. O assassino pudera cortar à sua vontade a pele e as articulações, recolher os seus trofeus.

E, depois de acabar, deixara o corpo naquele local dominado pelos vermes, onde os ratos e as baratas iriam banquetear-se, fazendo desaparecer a carne que restasse.

Maura levantou-se, ofegante. Embora estivesse frio no interior do prédio, tinha as mãos a suar dentro das luvas e sentiu o coração a palpitar.

Podemos ir-nos embora? perguntou ela.

Espere. Deixe-me ver mais umas coisas.

Não há mais nada para ver.

Ainda agora chegámos, doutora.

Maura olhou para o corredor as escuras e estremeceu. Sentiu uma movimentação estranha no ar, um sopro gelado que lhe eriçou os pêlos da nuca. A porta, pensou ela de repente. Não fechámos à chave a porta que dá para o beco.

Rizzoli continuava agachada junto das manchas de sangue, com a lanterna a escorregar lentamente para o chão, sem tirar os olhos daquilo. Ela não está alterada, pensou Maura. Porque hei-de eu estar? Acalma-te, acalma-te.

Esgueirou-se para a porta. Brandiu a lanterna como se fosse um sabre e apontou-a rapidamente para a escuridão do corredor.

Não viu nada.

Estava aterrada.

Jane segredou ela. Podemos sair daqui agora?

Só então Rizzoli se apercebeu da tensão na voz de Maura e perguntou tranquilamente:

O que é?

Quero ir-me embora.

Porquê?

Maura olhou para o corredor escuro.

Há qualquer coisa que não bate certo.

Ouviu alguma coisa?

Vamos embora daqui, está bem?

Rizzoli levantou-se e respondeu em voz baixa:

Está bem.

Foi atrás dela na direcção do corredor. Parou, como se farejasse o ar, tentando detectar uma ameaça. A destemida Rizzoli, sempre à frente, pensou Maura. Percorreram o corredor, atravessaram a cozinha e entraram na sala de jantar, de lanternas em riste. Os alvos perfeitos. E lá vamos nós, com o soalho a ranger debaixo dos pés e os nossos feixes de luz, que parecem dois olhos-de-boi.

Maura sentiu uma lufada de ar frio e olhou para o vulto de um homem que se encontrava à porta. Parou, petrificada, enquanto as vozes explodiam de repente nas sombras.

Rizzoli, já em posição de combate, gritou:

Alto!

Atire a arma para o chão!

Eu disse alto, idiota! ordenou Rizzoli.

Polícia de Boston. Eu sou da Polícia de Boston!

Quem diabo...

A lanterna de Rizzoli iluminou de repente a face do intruso. Este levantou o braço para se proteger da luz intensa, a piscar os olhos. Fez-se um longo silêncio.

Rizzoli riu-se com desdém.

Oh, merda!

Pois, também tenho muito prazer em ver-te disse o detective Crowe Aposto que é aqui que decorre a acção.

Eu podia ter-te estourado os miolos disse Rizzoli, Podias ter avisado que vinhas a entrar...

Faltou-lhe a voz. E ficou imóvel quando surgiu mais um vulto. Um homem alto, que se deslocava com uma elegância felina atrás de Crowe e que entrou no círculo de luz da sua lanterna. De repente, a luz oscilou devido ao tremor da sua mão.

Olá, Jane disse Gabriel Dean.

A escuridão só contribuiu para acentuar o longo silêncio. Quando Rizzoli conseguiu responder, foi com um tom de voz estranho e impassível. Profissional.

Não sabia que estavas na cidade.

Cheguei esta manhã, de avião.

Rizzoli guardou a pistola no coldre. Recompôs-se.

O que estás aqui a fazer?

O mesmo que tu. O detective Crowe anda a mostrar-me o local do crime.

O FBI está metido nisto? Porquê? Dean olhou à sua volta.

Podemos falar nisso noutro sítio qualquer. Mais quente, pelo menos. Eu gostava de saber como é que o teu caso se cruza com este, Jane.

Se conversarmos, as informações têm de circular nos dois sentidos retorquiu Rizzoli.

Com certeza.

Com as cartas todas na mesa. Dean concordou.

Ficarás a saber tudo o que eu sei.

Olhem, deixem-me acabar de mostrar isto ao agente Dean. Encontramo-nos na sala de reuniões. Pelo menos lá teremos luz para nos vermos uns aos outros. E não estaremos de pé, com o rabo a arrefecer.

Na sala de reuniões, às duas horas. Até logo disse Rizzoli.

 

Rizzoli encontrou as chaves do carro e deixou-as cair na neve. Praguejou ao agachar-se para as apanhar.

Sente-se bem? perguntou Maura.

Ele apanhou-me de surpresa. Eu não esperava... Rizzoli levantou-se e expeliu uma nuvem de vapor. Bolas, o que está ele a fazer aqui? O que diabo está ele a fazer aqui?

O trabalho dele, imagino.

Não estou disposta a isto. Não estou disposta a trabalhar com ele outra vez.

Talvez não tenha alternativa.

Eu sei. E é isso que me lixa, o facto de não ter alternativa. Rizzoli abriu as portas do carro e ambas entraram. Os bancos estavam gelados.

Vai dizer-lhe o que se passa? perguntou Maura. Mal-humorada, Rizzoli ligou o motor.

Não.

Ele gostaria de saber.

Não estou certa disso. Não sei se algum homem gosta.

Então você está a eliminar o final feliz? Nem sequer lhe dá uma hipótese?

Rizzoli suspirou.

Se fôssemos pessoas diferentes, talvez houvesse uma hipótese.

Não foi a outras pessoas que isto aconteceu. Foi a vocês os dois.

É verdade! Que surpresa, hem?

Porquê?

Rizzoli calou-se, de olhos fixos na estrada.

Sabe o que me chamavam os meus dois irmãos quando éramos pequenos? perguntou ela em voz baixa. O sapo. Diziam que nenhum príncipe quereria beijar um sapo. E muito menos casar comigo.

Os irmãos sabem ser cruéis.

Mas às vezes dizem-nos a verdade nua e crua.

Quando o agente Dean olha para si, não me parece que ele veja um sapo.

Rizzoli encolheu os ombros.

Sabemos lá o que ele vê.

Uma mulher inteligente?

Pois, isso é mesmo sexy!

Para alguns homens é.

Isso é o que eles dizem. Mas sabe uma coisa? Custa-me a acreditar. Quando são confrontados com a alternativa, optam sempre pelas mamas e pelo rabo.

Furiosa, Rizzoli concentrou-se na estrada. Passaram por ruas em que a neve formara uma crosta encardida nos passeios e os carros estacionados estavam cobertos de branco.

Alguma coisa ele viu em si, Jane. O suficiente para desejá-la.

Foi o caso em que andávamos a trabalhar. A excitação da caçada. Faz-nos sentir vivos, sabe? Quando começamos a fechar-nos, a adrenalina aumenta e tudo parece diferente. Trabalhamos com alguém vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, tão perto que lhe conhecemos o cheiro. Sabemos como é que ele bebe o café e como é que ele faz o nó da gravata. Depois, o caso complica-se e nós enfurecemo-nos juntos e assustamo-nos juntos. E pouco depois, isto começa a confundir-se com amor. Mas não é. São apenas duas pessoas a trabalhar numa situação tão intensa que nem conseguem diferenciar o prazer físico da emoção da caçada. Quanto a mim, foi isto que aconteceu. Conhecemo-nos na presença de alguns cadáveres. E, passado algum tempo, eu comecei a agradar-lhe.

Ele não é mais do que isso para si? Alguém que começou a agradar-lhe?

Merda! Ele agrada-me mesmo.

Porque se você não o ama... Se nem sequer se interessa por ele... Então vê-lo não deveria ser tão penoso para si. Não acha?

Não sei respondeu Rizzoli, exasperada. Não sei o que sinto por ele!

Isso depende de ele a amar ou não?

De certeza que não lhe vou fazer essa pergunta.

É uma maneira de conseguir uma resposta directa.

Como é o velho ditado? "Se não quiseres ouvir a resposta, então não faças a pergunta?"

Nunca se sabe. A resposta pode surpreender-nos.

Na Schroeder Plaza, pararam na cafetaria para ir buscar cafés e levaram as chávenas para cima, para a sala de reuniões. Enquanto esperavam que Crowe e Dean chegassem, Maura observou Rizzoli a vasculhar nos documentos e a procurar nos dossiês, como se neles houvesse algum segredo que ela quisesse desesperadamente descobrir. Às duas e um quarto, ouviram o toque frouxo do elevador e depois as gargalhadas de Crowe no átrio. Rizzoli empertigou-se. À medida que as vozes dos homens se aproximavam, o olhar dela concentrava-se ainda mais nos documentos. Quando Dean apareceu à porta, Rizzoli não levantou logo a cabeça, como se se recusasse a reconhecer o seu poder sobre ela.

Maura conhecera o agente especial Gabriel Dean no fim de Agosto, quando ele fazia parte da equipa que investigava o assassínio de casais ricos na zona de Boston. Dean, um homem de estatura imponente, inteligente e de poucas palavras, começara rapidamente a dominar a equipa e o seu conflito com Rizzoli, a responsável pela investigação, era quase garantido à partida. Maura fora a primeira a ver esse conflito transformar-se em atracção. Reparara nas primeiras faíscas, vira os olhares que trocavam sobre os corpos das vítimas. Percebera os rubores de Rizzoli, a sua insegurança. As primeiras fases do amor são sempre pródigas em confusão.

Assim como as últimas.

Dean entrou na sala e olhou de imediato para Rizzoli. Vestia fato e gravata, e o seu aspecto contrastava fortemente com a blusa amachucada e o cabelo desgrenhado de Rizzoli. Quando ela levantou a cabeça, foi para lhe deitar um olhar quase de desafio. Pois aqui estou. É pegar ou largar.

Arrogante, Crowe dirigiu-se para a cabeceira da mesa.

Muito bem, está cá a malta toda. É tempo de mostrar o que valemos disse ele, olhando para Rizzoli.

Ouçamos primeiro o FBI disse ela.

Dean abriu a pasta que trouxera para a sala. Tirou um dossiê e fê-lo deslizar por cima da mesa em direcção a Rizzoli.

Essa fotografia foi tirada há dez dias em Providence, Rhode Island disse ele.

Rizzoli abriu o dossiê. Maura, sentada ao lado dela, teve uma panorâmica completa da fotografia. Fora tirada no local do crime e mostrava um homem, enrolado em posição fetal, dentro do porta-bagagem de um automóvel. Viam-se pingos de sangue no tapete castanho claro. Curiosamente, o rosto da vítima estava intacto, de olhos abertos, a pele lívida e com derrames violáceos.

A vítima chamava-se Howard Redfield, cinquenta e um anos, branco, divorciado, natural de Cincinnati disse Dean. A causa da morte foi um único ferimento de bala, que atravessou a têmpora esquerda. Além disso, apresentava fracturas múltiplas nas duas rótulas, provocadas por uma arma romba, possivelmente um martelo. Também tinha queimaduras graves nas duas mãos, que estavam atadas com fita gomada atrás das costas.

Ele foi torturado concluiu Rizzoli.

Foi. Durante muito tempo.

Rizzoli recostou-se na cadeira, muito pálida. Maura era a única pessoa presente na sala que conhecia o motivo daquela palidez e fitou-a com preocupação. Viu a luta desesperada que se travava no rosto dela para controlar o enjoo.

Foi encontrado morto no porta-bagagem do seu próprio carro

acrescentou Dean. O automóvel estava estacionado a cerca de dois quarteirões da estação dos autocarros de Providence. Fica perto de uma hora, hora e meia de caminho daqui.

Mas pertence a outra jurisdição disse Crowe. Dean concordou.

Por isso é que esta morte não vos chamou a atenção. É possível que o assasssino tenha levado esse carro para Providence com a vítima lá dentro, o tenha deixado lá e tenha apanhado um autocarro de regresso a Boston.

De regresso a Boston? Mas porque acha que ele partiu daqui?

perguntou Maura.

É só um palpite. De facto, não sabemos onde é que o assassínio foi cometido. Nem sequer sabemos ao certo qual foi o paradeiro de Mister Redfield nas últimas semanas. Ele vive em Cincinnati, mas aparece morto em Nova Inglaterra. Não há rasto do cartão de crédito dele nem se sabe por onde andou. Sabemos que levantou uma grande quantia da sua conta há um mês. E que depois saiu de casa.

Parece ser alguém que anda a fugir e que não quer ser encontrado comentou Maura. Ou alguém que está assustado.

Dean olhou para a fotografia.

E, como é óbvio, tinha motivos para isso.

Fale-nos mais desta vítima pediu Rizzoli, que conseguira controlar-se e olhava agora para a fotografia, sem pestanejar.

Mister Redfield foi vice-presidente da Octagon Chemicals, responsável pelas operações no estrangeiro explicou Dean. Há dois meses, demitiu-se da empresa, obviamente por razões pessoais.

A Octagon? perguntou Maura. Tem sido notícia. Essa empresa não está a ser investigada pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários?

Dean fez um sinal afirmativo.

A Comissão levantou um processo cível contra a Octagon, alegando múltiplas violações que envolvem biliões de dólares em transacções ilegais.

Biliões? Uau! exclamou Rizzoli.

A Octagon é uma grande multinacional, com vendas anuais da ordem dos vinte biliões de dólares. Estamos a falar de peixe graúdo.

Rizzoli olhou para a fotografia.

E esta vítima navegava nessas águas. Ele conhecia-a por dentro. Acham que ele era um problema para a Octagon?

Há três semanas, Mister Redfield marcou uma reunião com responsáveis do Departamento de Justiça.

Pois. Ele era mesmo um problema para a empresa disse Crowe, soltando uma gargalhada.

Ele pediu que a reunião se realizasse aqui, em Boston.

Porque não em Washington? perguntou Rizzoli.

Ele disse-lhes que havia outras pessoas que queriam prestar declarações. Que isso tinha de ser feito aqui. Só não sabemos porque é que ele contactou o Departamento de Justiça e não apelou directamente à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, porque partimos do princípio que o caso estava ligado à investigação da Octagon.

Mas não têm a certeza?

Não, porque ele não compareceu à reunião. Nessa altura já estava morto.

Bem, se isto parece um contrato e cheira a contrato... disse Crowe.

O que tem isso a ver com a Senhora dos Ratos? perguntou Rizzoli.

Já lá chego. A senhora fez a autópsia. Qual foi a causa da morte? perguntou Dean, virando-se para Maura.

Um ferimento de bala no peito respondeu Maura. Os fragmentos da bala perfuraram o coração, provocaram uma grande hemorragia no pericárdio e o coração parou. Aquilo a que se chama um tamponamento cardíaco.

E qual foi o tipo de bala utilizada?

Maura lembrou-se da radiografia ao tórax da Senhora dos Ratos. A dispersão dos fragmentos, como uma galáxia de estrelas espalhadas pelos pulmões.

Era uma Glaser de ponta azul respondeu ela. Um cartucho de cobre com chumbos. Fragmenta-se no interior do corpo, com poucas hipóteses de penetração total.

Maura calou-se e depois acrescentou:

É um projéctil devastador.

Dean olhou para a fotografia de Howard Redfield, enrolado e coberto de sangue no porta-bagagem do carro, e abanou a cabeça.

Mister Redfield foi morto com uma bala Glaser de ponta azul. Disparada pela mesma arma que matou a sua Jane Doe.

Por instantes, ninguém falou. Depois, Rizzoli disse, incrédula:

Mas acabaram de admitir que se trata de um assassínio contratado. É a maneira como a Octagon lida com quem fala demais. Esta outra vítima, a Senhora dos Ratos...

A detective Rizzoli tem razão disse Maura. A Senhora dos Ratos é o alvo mais improvável de um assassínio a mando de uma empresa que eu poderia imaginar.

Mesmo assim, a bala que a matou foi disparada pela mesma arma que tirou a vida a Howard Redfield disse Dean.

É aqui que entra o agente Dean explicou Crowe. Eu pedi uma busca DRUGFIRE sobre aquele cartucho de cobre que a senhora lhe retirou do peito.

À semelhança da AFIS, a base de dados nacional do FBI, a DRUGFIRE era uma base de dados centralizada sobre armas de fogo. As marcas e estrias descobertas nas balas utilizadas nos crimes eram armazenadas como dados digitalizados, que depois podiam ser comparados, ligando todos os crimes cometidos pela mesma arma de fogo.

E condizia concluiu Dean. Rizzoli abanou a cabeça, espantada.

Porquê estas duas vítimas? Não percebo a ligação.

É isso que torna a morte de Jane Doe tão interessante concluiu Dean.

Maura não gostou que ele usasse a palavra "interessante". O termo implicava que algumas mortes não eram interessantes, não eram merecedoras de atenção especial. Com certeza que as vítimas não seriam da mesma opinião.

Concentrou-se na fotografia, uma terrível mancha de sangue em cima da mesa de reuniões.

A nossa Jane Doe não pertence a esta história disse ela.

Porquê, doutora Isles?

Existe uma razão lógica. Howard Redfield foi assassinado. É provável que quisesse denunciar ilegalidades no âmbito da investigação da Comissão. Os sinais de tortura indicam-nos que a sua morte não foi apenas algo que correu mal num caso de fraude. O assassino pretendia qualquer coisa dele. Uma retribuição, talvez. Ou uma informação. Mas como é que a nossa Jane Doe muito provavelmente uma imigrante ilegal se encaixa nisto? Porque havia alguém de desejar a sua morte?

Essa é a questão, não é verdade? Dean olhou para Rizzoli. Sei que têm um caso que também pode estar ligado a este.

O olhar atrapalhou Rizzoli, que abanou a cabeça com nervosismo.

É mais um que parece completamente desconexo.

O detective Crowe disse-me que foram atacadas duas freiras no convento. Em Jamaica Plain continuou Dean.

Mas o assassino não utilizou uma arma de fogo. As freiras foram agredidas à cacetada, talvez com um martelo. Parece ter sido um ataque de fúria. Algum tarado que detesta mulheres.

Talvez fosse o que ele queria que nós pensássemos. Talvez quisesse ocultar a ligação com estes homicídios.

Pois, então a coisa resultou. Segundo o diagnóstico da doutora Isles, Jane Doe tinha lepra. Parece que uma das freiras que foi atacada, a irmã Ursula, trabalhou numa aldeia de leprosos, na índia.

Uma aldeia que já não existe disse Maura. Dean olhou para ela.

O quê?

Pode ter sido um massacre religioso. Foram chacinadas cerca de cem pessoas e a aldeia foi incendiada. Maura fez uma pausa. A irmã Ursula foi a única pessoa da aldeia que sobreviveu.

Rizzoli nunca tinha visto Gabriel Dean tão surpreendido. Em geral, era ele que mantinha os segredos e fazia as revelações. Esta nova informação remeteu-o temporariamente ao silêncio.

Atirou-lhe mais uma.

Creio que a nossa Jane Doe pode ter vindo dessa mesma aldeia na índia.

Mas tinhas admitido que ela fosse hispânica disse Crowe.

Foi apenas um palpite baseado na pigmentação da pele.

Então mudas o palpite para que se ajuste às circunstâncias?

Não. Mudo-o devido ao que descobrimos na autópsia. Lembras-te da fita amarela que ela trazia no pulso?

Lembro. Os peritos disseram que se tratava de algodão. Talvez um pedaço de fio.

Diz-se que quem usar uma fita no pulso fica protegido do mau olhado. É um hábito hindu.

Mais uma vez a índia disse Dean. Maura concordou.

Tudo vai dar à índia.

Uma freira e uma imigrante ilegal com lepra? Que ligação podem ter elas com um contrato de assassínio? interpôs Crowe, abanando a cabeça. Não se contratam profissionais a não ser que haja muito a ganhar.

Ou muito a perder acrescentou Maura.

Se todas estas mortes forem assassínios contratados, podem ter a certeza de uma coisa disse Dean. A evolução da vossa investigação será acompanhada com muito cuidado. Vocês têm de controlar todas as informações relativas a estes casos, porque alguém está a vigiar tudo o que a Polícia de Boston anda a fazer.

E a mim também, pensou Maura, arrepiada. E a sua visibilidade era tão grande. Nos locais dos crimes, nos noticiários televisivos. No carro. Estava habituada a estar debaixo do olho dos media, mas agora admitia que outros olhos pudessem andar a observá-la. A seguir-lhe os passos. E lembrou-se do que sentira na escuridão do Mama Cortinas: a sensação fria de medo da presa, quando se apercebe de que está a ser perseguida.

Tenho de ver esse outro local. O convento, onde as freiras foram atacadas. Podes levar-me lá? perguntou Dean, olhando para Rizzoli.

Rizzoli não respondeu logo. Ficou imóvel, sem tirar os olhos da fotografia de Howard Redfield, morto e enrolado no porta-bagagem do seu próprio carro.

Jane?

Ela respirou fundo e endireitou-se na cadeira, como se de súbito tivesse descoberto uma nova reserva de coragem. De força.

Vamos embora. Acho que somos de novo uma equipa disse ela, levantando-se e olhando para Dean.

 

Eu consigo lidar com isto. Eu consigo lidar com ele.

Jane Rizzoli dirigiu-se para Jamaica Plain com os olhos postos na estrada, mas a pensar em Gabriel Dean. Sem avisar, ele tinha entrado de novo na sua vida, e ela ainda estava demasiado atordoada para perceber o que sentia. Tinha um aperto no estômago e as mãos dormentes. Ainda na véspera pensara que a fase pior já estava a passar e que, com algum tempo e muita distracção, conseguiria deitar o assunto para trás das costas. Longe da vista, longe do pensamento.

E agora ele estava à sua frente, e em grande parte no seu pensamento.

Foi a primeira a chegar à Abadia de Graystones. Deixou-se ficar sentada no carro à espera dele, com os nervos em franja. A ansiedade começava a dar lugar à náusea.

Controla-te, raios! Concentra-te no trabalho!

Viu o carro alugado dele a estacionar atrás dela.

Saiu imediatamente e recebeu de bom grado o vento castigador na face. Quanto mais brutal fosse o frio, melhor, para cair em si. Viu-o sair do carro e cumprimentou-o com o gesto de cabeça brusco que era habitual entre colegas.

Em seguida, deu meia volta e tocou a sineta do portão. Não parou para conversar, não arriscou dizer nada. Seguiu em frente, porque era a única maneira que conhecia de lidar com o reencontro. Ficou aliviada quando viu uma freira a sair do edifício e a avançar a custo através da neve, em direcção ao portão.

É a irmã Isabel disse Rizzoli. Acredites ou não, é uma das mais novas.

Isabel semicerrou os olhos através das grades, examinando o acompanhante de Rizzoli.

Este é o agente Gabriel Dean do FBI disse Rizzoli. Vou só mostrar-lhe a capela. Não queremos incomodá-la.

Isabel abriu o portão para os deixar entrar. Este fechou-se atrás deles com um implacável som metálico. O som frio da inexorabilidade. Do enclausuramento. A irmã Isabel regressou imediatamente ao edifício, deixando os dois visitantes no pátio. A sós um com o outro.

De repente, Rizzoli assumiu o controlo do silêncio e lançou-se numa revisão do caso.

Ainda não sabemos ao certo qual foi o ponto de entrada disse ela. A neve cobriu as pegadas, e não encontrámos ramos de hera partidos que nos indicassem que ele tenha subido o muro. Aquele portão da frente está sempre fechado e, se o assassino entrou por ali, é porque alguém cá de dentro o deixou entrar. É uma violação das regras do convento. Teria de ser à noite, quando ninguém visse.

Não têm testemunhas?

Nenhuma. A princípio, julgámos que tinha sido a freira mais nova, Camille, a abrir o portão.

Porquê Camille?

Por aquilo que descobrimos na autópsia Rizzoli desviou o olhar para a parede, evitando encará-lo. Ela esteve grávida recentemente. Encontrámos a criança morta num lago nas traseiras da abadia.

E o pai?

Obviamente é um dos principais suspeitos, seja ele quem for. Ainda não o identificámos. Os testes de ADN ainda não estão concluídos. Mas agora, depois do que tu nos contaste, é provável que estejamos a apontar ao alvo errado.

Rizzoli fitou os muros que os rodeavam, o portão que lhes vedava a entrada ao mundo, e de repente começou a desenrolar-se diante dos seus olhos uma sequência alternativa de acontecimentos, uma sequência muito diferente da que imaginara quando estivera no local do crime pela primeira vez.

Si não foi Camille que abriu o portão...

Então quem é que deixou entrar o assassino na abadia? perguntou Dean, como se lhe lesse os pensamentos.

Rizzoli franziu o sobrolho e olhou para o portão, pensando na neve a fustigar o empedrado.

Ursula estava de casaco e de botas...

Rizzoli virou-se e olhou para o edifício. Imaginou-o naquela escuridão antes do amanhecer, com as janelas sem luz e as freiras a dormir nos seus quartos. O pátio silencioso, à parte o vento.

Já estava a nevar quando ela veio cá fora continuou Rizzoli. Ela estava vestida para o frio. Atravessou este pátio, até ao portão, onde alguém a esperava.

Alguém que ela devia saber que estava lá fora acrescentou Dean. Alguém de quem ela estava à espera.

Rizzoli concordou. Virou-se para a capela e começou a andar, esburacando a neve com as botas. Dean seguia atrás, mas ela já o afastara do seu pensamento; seguia as passadas de uma mulher perdida. Uma noite a rodopiar com a primeira neve da época. As tuas bótas escorregam no empedrado. Deslocas-te sem fazer barulho porque não queres que as outras irmãs saibam que te vais encontrar com alguém. Alguém por quem estás disposta a quebrar as regras.

Mas está escuro, e não há candeeiros que iluminem o portão. Por isso não lhe vês a cara. Não podes saber ao certo se este é o visitante que esperas esta noite...

Ao chegar à fonte, Rizzoli parou abruptamente e olhou para a fila de janelas que davam para o pátio.

O que é? perguntou Dean.

O quarto de Camille. É ali em cima respondeu Rizzoli, apontando.

Dean olhou para a janela do quarto. Estava corado do vento e despenteado. Foi um erro olhar para ele, porque, de repente, sentiu um desejo tão imperioso de lhe tocar que teve de se virar para o lado e de levar a mão à barriga para contrariar o vazio que sentia.

Talvez ela tenha visto alguma coisa, daquele quarto alvitrou Dean.

A luz na capela. Estava acesa quando descobriram os corpos. Rizzoli olhou para a janela de Camille e lembrou-se do lençol manchado de sangue.

Ela acorda com o penso higiénico ensopado. Levanta-se da cama e vai à casa de banho mudá-lo. E quando regressa ao quarto, vê luz nas janelas de vitral. Uma luz que não devia estar acesa.

Rizzoli virou-se para a capela, atraída pela imagem fantasmagórica que via agora da jovem Camille a sair do edifício principal. Ao dirigir-se para a passagem coberta, começou a tremer, talvez arrependida de não ter vestido um casaco para fazer a curta travessia entre os edifícios.

Foi atrás do fantasma e entrou na capela.

Ficou ali às escuras. As luzes estavam apagadas, e os bancos não eram mais do que faixas paralelas de sombra. Dean estava a seu lado, silencioso como um fantasma, quando ela imaginou a cena final.

Camille a transpor a porta, apenas um deslize de criança, branca como a cal.

Olha para o chão, horrorizada. A irmã Ursula jaz a seus pés e as pedras estão salpicadas de sangue.

Talvez Camille não percebesse logo o que tinha acontecido e a princípio julgasse que Ursula escorregara e batera com a cabeça no chão. Ou talvez já soubesse, ao vislumbrar o sangue, que o mal invadira aqueles muros. E que naquele momento estava atrás dela, a observá-la.

Que estava a avançar para ela.

O primeiro golpe deixa-a a cambalear. Apesar de ter ficado atordoada, ainda tenta fugir. Toma a única direcção possível: sobe a nave central. A caminho do altar, onde tropeça. Onde cai de joelhos, esperando o golpe final.

E quando tudo acaba, e a jovem Camille está morta, o assassino volta-se para trás, para a primeira vítima. Para Ursula.

Mas não acaba o seu trabalho. Deixa-a viva. Porquê?

Rizzoli olhou para as pedras, para o sítio onde Ursula tinha caído. Imaginou o agressor a agachar-se para confirmar a morte.

Ficou imóvel, ao lembrar-se de repente do que a Dra. Isles lhe havia dito.

O assassino não sentiu a pulsação disse ela.

O quê?

A irmã Ursula não tinha pulsação na carótida do lado esquerdo. Ele julgou que ela estava morta continuou Rizzoli, fitando-o.

Subiram a nave central e passaram pelas filas de bancos, seguindo os últimos passos de Camille. Aproximaram-se do local em que ela tinha caído, junto do altar. Ficaram ali em silêncio, de olhos postos no chão. Embora não vissem nada às escuras, ainda devia haver vestígios de sangue nas fendas entre as pedras.

A tremer, Rizzoli levantou a cabeça e viu que Dean a observava.

Não há mais nada para ver aqui. A menos que queiras falar com as irmãs disse ela.

Quero falar contigo.

Estou aqui.

Não, não estás. A detective Rizzoli é que está aqui. Eu quero falar com a Jane.

Ela riu-se. Um som blasfemo naquela capela.

Dizes isso de uma maneira que até parece que eu tenho dupla personalidade ou qualquer coisa do género.

Isso não anda muito longe da verdade. Esforças-te muito por representar o papel de polícia, mas sufocas a mulher. Foi a mulher que eu vim ver.

Demoraste muito.

Porque estás tão zangada comigo?

Não estou.

Que modo tão estranho de me receberes em Boston!

Talvez porque não te deste ao trabalho de me avisar que vinhas.

Ele suspirou, ressentido.

Não podemos sentar-nos um pouco a conversar?

Dirigiu-se para o banco da frente e sentou-se. Dean instalou-se a seu lado, mas ela continuou a olhar em frente, com receio de encará-lo. Com receio das emoções que ele pudesse despertar nela. Só o acto de inalar o cheiro dele já era doloroso, devido às recordações que reavivava. Este era o homem com quem ela partilhara a cama,

Icujo tacto, sabor e riso continuavam a povoar os seus sonhos. A consequência da união de ambos continuava a crescer dentro dela, e Jane levou a mão à barriga para mitigar a dor secreta que sentiu de repente.

Como tens passado, Jane?

Bem. Muito ocupada.

E esse penso na testa? O que aconteceu?

Oh, isto! Passou a mão pela testa e encolheu os ombros.

Foi um pequeno acidente na morgue. Escorreguei e caí.

Pareces cansada.

Não te esforças muito com cumprimentos, pois não?

É apenas uma observação.

Pois, bem, estou cansada. É claro que estou. Esta tem sido uma semana dos diabos. E o Natal está a chegar e eu ainda nem sequer comprei presentes para a minha família.

Dean observou-a e ela desviou o olhar, sem querer enfrentá-lo.

Não te agrada estares a trabalhar comigo outra vez, pois não?

Ela não disse nada. Pelo menos não negou.

Porque diabo não me explicas o que se passa? disparou ele por fim.

A irritação na voz dele apanhou-a de surpresa. Dean não era um homem que exteriorizasse muito as suas emoções. No passado, isso enfurecera-a, porque a fazia sentir sempre que era ela a descontrolar-se, a que ameaçava sempre perder a calma. O caso deles começara porque fora ela a dar o primeiro passo, e não ele. Fora ela que arriscara tudo e que apostara o seu orgulho, e qual fora o resultado? Estava apaixonada por um homem que continuava a ser um enigma para ela. Um homem cuja única exteriorização emocional era a irritação que ela sentira na sua voz.

Esta situação irritou-a também.

Não vale a pena dourar a pílula disse ela. Temos de trabalhar juntos. Não temos alternativa. Mas tudo o resto... Não consigo lidar com isso neste momento.

Não consegues lidar com quê? Com o facto de termos dormido juntos?

Sim.

Não me pareceu que te importasses, nessa altura.

Aconteceu, pronto. Tenho a certeza que foi tão importante para ti como para mim.

Ele calou-se. Estará melindrado?, interrogou-se ela. Ofendido? Parecia-lhe impossível ofender um homem que não tinha emoções. Ficou admirada quando ele deu uma gargalhada.

Estás de todo, Jane disse ele.

Ela virou-se olhou mesmo para ele e ficou sem fôlego pelos mesmos motivos que a tinham atraído no passado. O queixo forte, os olhos azul-acinzentados. O ar de comando. Podia cobri-lo de insultos, mas sentia sempre que era ele a controlar a situação.

Tens medo de quê? perguntou ele.

Não sei do que estás a falar.

Que eu te magoe? Que seja o primeiro a ir-me embora?

Para começar, nunca cá estiveste.

Isso é verdade. Nem podia. Com a profissão que temos.

E tudo vai dar aí, não é verdade? Jane levantou-se do banco e bateu com os pés no chão para reactivar a circulação. Tu estás em Washington, e eu estou aqui. Tu tens a tua profissão, de que não abdicas. Eu tenho a minha. Nada de compromissos.

Falas como se isso fosse uma declaração de guerra.

Não, é apenas lógica. Faço o possível por ser pragmática. Deu meia volta e encaminhou-se para a porta da capela.

E por te protegeres.

Achas que faço mal? perguntou ela, olhando para trás.

O mundo não está todo contra ti, Jane.

Porque eu não deixo.

Deixaram a capela. Atravessaram de novo o pátio e saíram pelo portão, que fez um som metálico ao fechar-se.

Bem, acho que não tem interesse eu tentar furar essa carapaça disse ele. Estou disposto a ir muito longe por ti, mas também tens de ajudar. Também tens de dar alguma coisa.

Dean voltou-se e começou a dirigir-se para o carro.

Gabriel? disse ela.

Ele parou e virou-se para ela.

O que julgavas que aconteceria entre nós desta vez?

Não sei. Que gostarias de me ver, pelo menos.

E que mais?

Que voltaríamos a fornicar como coelhos.

Deu uma gargalhada e abanou a cabeça. Não me tentes. não me recordes aquilo de que tenho sentido a falta.

Dean olhou para ela por cima da capota do carro.

Eu contento-me com a primeira coisa, Jane disse ele. Em seguida, entrou no carro e fechou a porta.

Viu-o afastar-se e pensou: foi a fornicar como uma coelha que eu me meti neste sarilho.

A tremer, olhou para o céu. Ainda eram quatro horas e a noite parecia estar a cair, apoderando-se dos últimos raios de sol. Não trouxera as luvas, e o vento era tão agreste que lhe magoou os dedos quando ela tirou as chaves e abriu a porta do carro. Entrou e tentou enfiar a chave na ignição, mas tinha as mãos entorpecidas e mal sentia os dedos.

Parou, já com a chave na ignição.

De repente, pensou nas mãos da leprosa, nos dedos desfeitos até aos cotos.

E lembrou-se, vagamente, de uma pergunta sobre as mãos de uma mulher. Uma referência de passagem, que ela tinha ignorado nessa altura.

Ela disse que eu era malcriada porque perguntei porque é que aquela senhora não tinha dedos.

Saiu do carro e encaminhou-se de novo para o portão. Tocou a sineta várias vezes.

Por fim, apareceu a irmã Isabel. A avaliar pela sua expressão entre as grades de ferro, a velha freira não ficou satisfeita por voltar a vê-la.

Tenho de falar com a menina, a filha de Mistress Otis disse Rizzolí.

Rizzoli foi encontrar Noni sentada, sozinha, numa antiga sala de aula ao fundo do corredor, com as pernas fortes a balouçar na cadeira e um arco-íris de lápis de cores espalhados no velho tampo de uma carteira. Estava mais quente na cozinha da abadia, onde Mrs. Otis preparava o jantar para as freiras, e o aroma dos bolinhos de chocolate feitos há pouco tempo chegava até aquele extremo lúgubre da ala, mas Noni optara por se refugiar naquela sala fria, longe da língua afiada e dos olhares reprovadores da mãe. A menina parecia nem dar pelo frio. Tinha na mão um lápis verde-limão e manuseava-o como qualquer criança, muito concentrada, com a língua de fora, desenhando faíscas a sair da cabeça de um homem.

Vai explodir disse Noni. Os raios da morte estão a cozer-lhe a cabeça. Ele vai rebentar. Como quando cozemos coisas no microondas e elas explodem, tal e qual.

Os raios da morte são verdes? perguntou Jane. Noni levantou a cabeça.

Deviam ser de outra cor?

Não sei. Sempre pensei que os raios da morte fossem, digamos, prateados.

Não tenho nenhum lápis prateado. O Conrad tirou-me o meu, lá na escola, e nunca mo devolveu.

Acho que os raios da morte verde também servem.

Mais sossegada, Noni voltou a concentrar-se no seu desenho. Pegou num lápis azul e acrescentou uns espigões aos raios, que pareciam uma chuva de setas a cair sobre a pobre vítima. Havia muitas vítimas em cima da carteira. Nos desenhos viam-se naves espaciais a disparar fogo e alienígenas azuis a cortar cabeças. Não eram extraterrestres amigáveis. Aos olhos de Rizzoli, a menina que os desenhava parecia também uma alienígena, um gnomo com olhos castanhos de cigana, escondida numa sala em que ninguém a incomodava.

Noni optara por um refúgio depressivo. A sala de aula parecia não ser usada há muito tempo, e nas paredes austeras viam-se marcas de pioneses e de fita gomada amarelecida. Várias carteiras estavam empilhadas a um canto, deixando a nu o soalho riscado. A única luz vinha das janelas e mergulhava tudo nos tons de cinzento próprios do Inverno.

Noni passara ao desenho seguinte da sua série de atrocidades alienígenas. A vítima dos raios da morte verde-limão tinha agora um buraco na cabeça donde saíam bolhas arroxeadas. Por cima, via-se a sua exclamação de morte, delimitada por uma bolha como na banda desenhada. AHHHHHH!

Noni, lembras-te daquela noite em que falámos contigo? Os caracóis castanhos agitaram-se para cima e para baixo, num gesto afirmativo.

Tu nunca mais vieste ver-me.

Pois, tenho andado a correr de um lado para o outro.

Devias deixar de andar a correr. Devias aprender a sentar-te e a descontrair.

Havia ecos de uma voz adulta nesta afirmação. Não andes sempre a correr, Noni!

E não devias estar tão triste acrescentou Noni, pegando noutro lápis.

Em silêncio, Rizzoli observou a menina a desenhar gotas vermelho-vivo que saíam da cabeça rebentada. Céus, pensou. Esta criança tem olho. Este gnomo destemido vê mais do que as outras pessoas.

És muito observadora disse Rizzoli. Vês muitas coisas, hem?

Uma vez vi uma batata a rebentar. No microondas.

Contaste-nos umas coisas da última vez, acerca da irmã Ursula. Disseste que ela ralhou contigo.

E ralhou.

Ela chamou-te malcriada, porque fizeste perguntas sobre as mãos de uma mulher. Lembras-te?

Noni levantou a cabeça, e viu-se um olho escuro a espreitar por baixo do monte de caracóis.

Julguei que só querias saber coisas da irmã Camille.

Também me interessa a irmã Ursula. E a mulher que tinha um defeito qualquer nas mãos. O que querias dizer com isso?

Ela não tinha dedos. Noni pegou num lápis preto e desenhou um pássaro a voar por cima do homem que tinha rebentado. Uma ave de rapina com umas asas pretas enormes. Abutres. Eles comem as pessoas mortas explicou ela.

Aqui estou eu, a confiar na palavra de uma criança que desenha alienígenas e raios da morte, pensou Rizzoli.

Inclinou-se para a frente e perguntou, tranquilamente:

Onde é que viste essa mulher, Noni?

Noni pousou o lápis e suspirou, como se estivesse cansada.

Está bem. Já que tens de saber. Dizendo isto, saltou da cadeira.

Onde vais?

Vou mostrar-te onde estava a senhora.

O casaco de Noni estava-lhe tão grande que a criança parecia um homenzinho da Michelin, a caminhar pesadamente através da neve. Rizzoli seguiu as pegadas deixadas pelas botas da criança, como um soldado submisso atrás de um general determinado. Atravessaram o pátio e passaram pela fonte, onde a neve se acumulara em camadas como se fosse um bolo de noiva. A criança parou junto do portão e apontou.

Ela estava ali.

Do lado de fora do portão?

Sim. Tinha um lenço grande a tapar-lhe a cara. Parecia o assaltante de um banco.

Então não lhe viste a cara?

Noni abanou a cabeça, agitando os caracóis.

Essa senhora falou contigo?

Não, o homem é que falou. Rizzoli fitou-a.

Ela vinha com um homem?

Ele pediu-me para os deixar entrar, porque eles precisavam de falar com a irmã Ursula. Mas é contra o regulamento, e eu disse-lhes. Se uma irmã não cumprir o regulamento, é expulsa. A minha mãe diz que as freiras não têm mais nenhum sítio para onde ir e, portanto, cumprem sempre o regulamento, com medo de ficarem na rua.

Noni fez uma pausa. Levantou a cabeça e acrescentou com um certo orgulho:

Mas eu ando sempre na rua.

Isso é porque não tens medo de nada. És destemida, pensou Rizzoli.

Noni começou a descrever uma linha na neve com as botinhas cor-de-rosa, marchando com a precisão de um soldado. Cortou um galho e desenhou metade de um rosto, apagando a linha paralela com os pés. Ela julga que é invencível, pensou Rizzoli. Mas é tão pequena e vulnerável! Não passa de uma pequerrucha dentro de um casaco enfunado.

E o que aconteceu depois, Noni?

A criança voltou para trás a arrastar os pés e parou de repente, a olhar para as botas cobertas por uma camada de neve.

A senhora passou uma carta através do portão.

Noni inclinou-se para a frente e acrescentou em voz baixa:

E eu vi que ela não tinha dedos.

Entregaste essa carta à irmã Ursula? A menina fez um sinal afirmativo.

E ela veio cá fora. Logo.

E falou com eles? Noni abanou a cabeça.

Porquê?

Porque quando ela veio cá fora, eles já se tinham ido embora.

Rizzoli virou-se e olhou para o passeio onde os dois visitantes tinham ficado, implorando a uma criança recalcitrante que os deixasse entrar.

De repente, sentiu os pêlos da nuca a eriçarem-se. A Senhora dos Ratos. Ela tinha estado ali.

 

Rizzoli saiu do elevador do hospital, passou pela placa onde se lia

TODOS OS VISITANTES DEVERÃO IDENTIFICAR-SE À ENTRADA. atravessou as portas duplas e entrou na Unidade de Cuidados Intensivos. Era uma hora da manhã, e as luzes estavam reduzidas ao mínimo para assegurar o sono dos doentes. Saída directamente do corredor bem iluminado, encontrou um espaço em que as enfermeiras eram vultos sem rosto. Só um dos compartimentos destinados aos pacientes tinha a luz acesa, que a atraiu como se fosse um farol.

A agente negra que estava no exterior do compartimento cumprimentou Rizzoli.

Olá, detective. Chegou cá depressa.

Ela já disse alguma coisa?

Não pode. Ainda tem aquele tubo enfiado na garganta. Mas está acordada. Tem os olhos abertos e ouvi a enfermeira dizer que ela faz o que lhe pedem. Toda a gente está admirada por ela ter acordado.

O guincho do alarme do ventilador obrigou Rizzoli a espreitar através da entrada do compartimento o grupo de pessoal médico concentrado à volta da cama. Reconheceu o neurocirurgião, o Dr. Yuen, e o internista, o Dr. Sutcliffe, cujo rabo-de-cavalo louro era um pormenor desconcertante naquele conjunto de profissionais de aspecto austero.

O que se passa aqui?

Não sei. É algo relacionado com a pressão arterial. O Dr. Sutcliffe chegou aqui quando as coisas começaram a complicar-se. Depois apareceu o Dr. Yuen, e, desde então, têm estado sempre de volta dela. A agente abanou a cabeça. Não me parece que aquilo esteja a correr bem. Aquelas máquinas não se calam.

Bolas, não me digam que vamos perdê-la precisamente quando ela acorda.

Rizzoli enfiou-se no compartimento, onde o brilho intenso da luz era penoso para os seus olhos cansados. Não conseguiu ver a irmã Ursula, que estava escondida pelo pessoal, mas viu os monitores à cabeceira da cama. O ritmo cardíaco saltava como uma pedra à superfície da água.

Ela está a tentar arrancar o tubo endotraqueal! exclamou uma enfermeira.

Ate-lhe melhor essa mão!

...Ursula, descontraia-se. Tente descontrair-se.

As sístoles desceram para oitenta...

Porque está ela tão afogueada? perguntou Yuen. Olhem para a cara dela!

O médico olhou de relance quando o ventilador guinchou.

Demasiada resistência ao ar explicou uma enfermeira. Ela está a lutar com o ventilador.

A tensão está a descer, Dr. Yuen. Está com oitenta sístoles.

Vamos dar-lhe uma gota de dopamina. Já.

De repente, uma enfermeira reparou que Rizzoli estava à porta.

Minha senhora, vai ter de sair.

Ela está consciente? perguntou Rizzoli.

Saia do compartimento!

Eu trato disto disse Sutcliffe.

O médico agarrou-a por um braço, e o seu gesto não foi nada meigo quando a pôs fora do compartimento. Fechou a cortina, impedindo-a de ver a doente. Naquela semiobscuridade, Rizzoli sentiu o olhar das enfermeiras, que a observavam dos seus diversos postos na Unidade de Cuidados Intensivos.

Detective Rizzoli, tem de deixar-nos fazer o nosso trabalho disse Sutcliffe.

Também estou a tentar fazer o meu. Ela é a nossa única testemunha.

E encontra-se em estado crítico. Temos de deixar passar esta crise e só depois alguém poderá falar com ela.

Mas ela está consciente?

Está.

Compreende o que se está a passar?

O médico não respondeu logo. À luz fraca da UCI, Rizzoli não conseguiu ler a sua expressão. Distinguiu apenas os ombros largos e o reflexo esverdeado dos olhos devido à proximidade dos monitores.

Não tenho a certeza. Francamente, nunca esperei que ela recuperasse a consciência.

Porque está a tensão arterial a descer? É um dado novo?

Há pouco ela começou a entrar em pânico, talvez devido ao tubo endotraqueal. É uma sensação assustadora, sentirmos um tubo na garganta, mas é necessário para ajudá-la a respirar. Demos-lhe Valiam quando a tensão disparou. Depois, de repente, começou a descer.

Uma enfermeira arredou a cortina do compartimento e chamou:

Doutor Sutcliffe?

Sim?

A tensão não está a reagir, mesmo com dopamina. Sutcliffe regressou ao compartimento.

Através da porta aberta, Rizzoli assistiu ao drama que se desenrolava a poucos metros dela. A freira tinha os punhos cerrados, e os tendões dos braços pareciam cordas esticadas enquanto ela tentava libertar-se dos atilhos que lhe prendiam as mãos às grades da cama. Tinha o cimo da cabeça envolvido em ligaduras e a boca estava escondida pelo tubo endotraqueal, mas o rosto era bem visível. Parecia inchado, e a face estava muito corada. Presa como uma múmia naquela profusão de gaze e de tubos, Ursula tinha os olhos de um animal acossado, com as pupilas dilatadas pelo medo, e virava-os freneticamente ora para a esquerda ora para a direita, como se procurasse fugir. As grades da cama abanavam como as de uma gaiola quando ela puxava os atilhos. Todo o seu corpo se afastou da cama e, de repente, soou o alarme cardíaco.

Rizzoli olhou para o monitor, onde viu uma linha horizontal.

Está bem, está bem! exclamou Sutcliffe. Ela só desligou um dos cabos.

O médico voltou a ligar o fio e a frequência do ritmo cardíaco reapareceu no ecrã. Um rápido blip-blip-blip.

Aumentem a dose de dopamina! ordenou Yuen. Vamos empurrar os fluidos.

Rizzoli viu a enfermeira a abrir completamente o orifício do tubo intravenoso, descarregando um fluxo de solução salina na veia de Ursula. O olhar da freira cruzou-se com o seu num derradeiro momento de consciência. Antes de começar a ficar com os olhos vidrados, antes de a última centelha de consciência se dissipar, o que Rizzoli viu naquele olhar foi um terror mortal.

A tensão continua a não aumentar! Desceu para seis...

Os músculos da face de Ursula relaxaram e as mãos imobilizaram-se. Por baixo das pálpebras, os olhos deixaram de ver.

Arritmias! exclamou a enfermeira. Estou a ver arritmias!

Todos os olhares se desviaram para o monitor cardíaco. O traçado, que até aí mostrava um ritmo cardíaco acelerado, mas uniforme, no ecrã, era agora irregular.

Taquicardia ventricular! exclamou Yuen.

Não consigo sentir a tensão! O líquido não está a entrar.

Desçam essa grade da cama. Vá, vá, vamos dar início às compressões.

Rizzoli foi empurrada para trás e obrigada a sair, quando uma enfermeira correu para a porta e gritou:

Temos um Código Azul!

Pela janela do compartimento, Rizzoli assistiu à agitação que se desenrolou à volta de Ursula. Viu a cabeça do Dr. Yuen a subir e a descer enquanto tentava a reanimação. Viu diversos medicamentos, uns a seguir aos outros, a serem injectados nos tubos intravenosos e compressas esterilizadas a caírem ao chão.

Rizzoli olhou para o monitor. O traçado era agora uma linha em ziguezague.

Passem para duzentos!

No interior do compartimento, todos recuaram quando uma enfermeira se debruçou sobre a doente com as pás do desfibrilador. Rizzoli viu claramente os seios nus de Ursula, com a pele manchada e vermelha. Surpreendeu-a um pouco que uma freira tivesse uns seios tão generosos.

As pás lançaram uma descarga.

O corpo de Ursula deu um solavanco, como se tivesse sido puxado por cordas.

A agente que estava ao lado de Rizzoli disse em voz baixa:

Tenho um mau pressentimento. Ela não se safa.

Sutcliffe levantou a cabeça outra vez e olhou para o monitor. Depois, o seu olhar cruzou-se com o de Rizzoli através da janela. O médico abanou a cabeça.

Uma hora mais tarde, Maura chegou ao hospital. Depois do telefonema de Rizzoli, levantara-se da cama, deixando Victor a dormir, e vestira-se sem tomar banho. Ao subir de elevador para a UCI, sentiu o cheiro dele na pele. Doía-lhe o corpo da brutalidade com que tinham feito amor durante a noite. Ela entrara no hospital a cheirar a sexo, ainda a pensar em corpos quentes, e não em cadáveres gelados. Nos vivos, e não nos mortos. Encostou-se à parede do elevador, fechou os olhos e permitiu-se saborear as recordações durante mais alguns segundos. Mais uns segundos de prazer.

Ficou sobressaltada quando a porta se abriu. Afogueada, precipitou-se para a saída, quase sem olhar para as duas enfermeiras que esperavam para entrar. Terão reparado?, interrogou-se, ao descer o corredor. Com certeza que toda a gente detecta na minha cara o rubor pecaminoso do sexo.

Rizzoli estava na sala de espera da UCI, sentada no sofá a beber café numa chávena descartável. Quando Maura entrou, mirou-a, como se também detectasse nela algo diferente. Um rubor indecoroso, nessa noite em que a tragédia as convocara.

Dizem que teve um ataque cardíaco. A situação parece ser grave. Estão a tentar reanimá-la.

A que horas é que ela teve o ataque?

Por volta da uma. Tentaram reanimá-la durante quase uma hora e conseguiram que o ritmo cardíaco voltasse. Mas agora está em coma. Sem respiração espontânea. Sem reacção pupilar. Rizzoli abanou a cabeça. Acho que não volta a acordar.

O que dizem os médicos?

Bem, esse é o pomo da discórdia. O Dr. Yuen não quer desligar a máquina por enquanto. Mas o hippie acha que o cérebro dela está morto.

Refere-se ao Dr. Sutcliffe?

Sim. O garanhão de rabo-de-cavalo. Mandou fazer um electroencefalograma de manhã para verificar a actividade cerebral.

Se não existir, é difícil justificar a manutenção do apoio vital. Rizzoli concordou.

Eu já calculava que dissesse isso.

A paragem cardíaca teve testemunhas?

O quê?

Havia pessoal médico presente quando o coração dela parou? Rizzoli parecia irritada, desconcertada com as perguntas banais de Maura. Pousou a chávena com força, salpicando a mesa de café.

Uma multidão, por sinal. Eu também lá estava.

O que provocou o ataque?

Disseram que a tensão começou por subir e que o pulso descarrilou. Quando cheguei, a tensão já estava a descer. E foi então que o coração parou. Portanto, todo o processo teve testemunhas.

A televisão estava ligada, mas sem som. Transmitia o noticiário da CNN, e na banda que se deslocava na parte inferior do ecrã, Rizzoli leu: Funcionário descontente alveja quatro pessoas em fábrica de automóveis na Carolina do Norte... Derrame de produtos químicos tóxicos no descarrilamento de um comboio no Colorado... Uma série de desastres em todo o país, e aqui estamos nós, duas mulheres cansadas, a tentar que tudo corra bem esta noite.

Maura sentou-se no sofá ao lado de Rizzoli.

Como vai, Jane? Parece desanimada.

Sinto-me terrivelmente mal. Como se tivesse esgotado todas as minhas energias. E não me restasse nada.

Bebeu o último gole de café e atirou a chávena para o cesto dos papéis, mas falhou a pontaria. Ficou a olhar para ela, demasiado cansada para se levantar e ir apanhá-la.

A menina identificou-o disse Rizzoli.

O quê?

A Noni. Rizzoli fez uma pausa. Gabriel foi muito meigo com ela, o que me surpreendeu. De certo modo, eu não esperava que ele tivesse jeito para crianças. Você sabe como ele é, impenetrável. Tenso. Mas sentou-se ao lado dela e conseguiu que ela fosse comer-lhe à mão... desviou o olhar, pensativa, mas depois recompôs-se. Ela reconheceu a fotografia de Howard Redfield.

Foi ele que esteve em Graystones? Que acompanhou Jane Doe?

Rizzoli fez um gesto afirmativo.

Foram lá os dois. E tentaram entrar, vê-la. Maura abanou a cabeça.

Não percebo. O que têm estas três pessoas a ver umas com as outras?

Essa é uma pergunta a que só a irmã Ursula podia responder. Rizzoli levantou-se e vestiu o casaco. Dirigiu-se para a porta, mas depois parou e olhou para Maura.

Ela chegou a acordar, sabe?

A irmã Ursula?

Antes de sofrer o ataque, ela abriu os olhos.

Acha que ela estava mesmo consciente? Que tinha a noção do que se estava a passar?

Apertou a mão da enfermeira. Reagiu às ordens. Mas eu não tive oportunidade de falar com ela. Eu estava ali de pé, e ela olhou para mim, precisamente antes de... calou-se, como se o pensamento a abalasse. Fui a última pessoa que ela viu.

Maura dirigiu-se para a Unidade de Cuidados Intensivos. Passou por monitores com luzes verdes a pulsar e pelas enfermeiras que cochichavam no exterior dos compartimentos resguardados por cortinas. Quando era interna e estava de turno, as suas visitas a desoras à UCI eram sempre ocasiões de ansiedade um doente a morrer, uma crise que exigia a sua decisão rápida. Mesmo após todos estes anos, ao entrar na UCI sentiu que o pulso acelerava. Mas nessa noite não a esperava nenhuma crise de natureza clínica; estava ali para verificar as consequências.

Encontrou o Dr. Sutcliffe à cabeceira de Ursula, a escrever qualquer coisa na ficha clínica da doente. A caneta dele imobilizou-se, com o bico encostado ao papel, como se tivesse dificuldade em redigir a frase seguinte.

Doutor Sutcliffe?

Ele olhou para ela. No rosto bronzeado viam-se novas rugas de cansaço.

A detective Rizzoli pediu-me que viesse aqui. Disse-me que tenciona desligar a máquina.

Você está a antecipar-se, mais uma vez respondeu ele. O Dr. Yuen resolveu esperar mais um ou dois dias. Quer ver primeiro o electroencefalograma. É irónico, não é? Há páginas e páginas sobre os últimos dias dela neste mundo. Mas a história da vida dela cabe num pequeno parágrafo. Há qualquer coisa de errado nisto. De obsceno.

Pelo menos você conhece os seus doentes quando eles ainda respiram. Eu nem sequer tenho esse privilégio.

Não me parece que eu gostasse do seu trabalho, doutora Isles.

Há dias em que nem sequer penso nisso.

Então porque o escolheu? Porque preferiu os mortos aos vivos?

Eles merecem atenção. Querem que saibamos porque é que morreram.

O Dr. Sutcliffe olhou para Ursula.

Se você quer saber o que correu mal neste caso, eu posso dar-lhe a resposta. Não fomos suficientemente rápidos. Ficámos aqui a observar o estado de pânico da doente e devíamos tê-la sedado. Se a tivéssemos acalmado mais cedo...

Está a dizer que ela sofreu um ataque cardíaco devido ao pânico?

Foi assim que começou. Primeiro, uma subida rápida da tensão arterial e das pulsações. Depois, uma descida brusca da tensão, e começaram as arritmias. Levámos vinte minutos a recuperar o ritmo cardíaco.

O que mostra o electrocardiograma?

Um enfarte do miocárdio agudo. Ela está em coma profundo. Não tem reacções pupilares. Não reage à dor. É quase certo que sofreu lesões cerebrais irreversíveis.

É um pouco cedo para fazer essa afirmação, não é?

Eu sou realista. O doutor Yuen tem esperança que recupere, mas ele é um cirurgião. Quer as suas estatísticas cor-de-rosa. Se o doente sobreviver à operação, ele pode averbar mais um êxito. Mesmo que o doente fique em estado vegetativo.

Maura aproximou-se da cama e franziu o sobrolho ao ver a doente.

Porque está ela tão edematosa?

Administrámos-lhe vários medicamentos por via intravenosa durante o ataque, para tentar que a tensão arterial subisse. É por isso que ela tem a cara inchada.

Maura examinou os braços de Ursula e reparou numas pústulas avermelhadas.

Parecem vestígios de urticária. Que medicamentos é que ela tomou?

A mistura habitual que administramos durante os ataques cardíacos, para combater as arritmias. Dopamina.

Acho que você deve pedir uma despistagem medicamentosa e toxicológica.

Desculpe?

Esta paragem cardíaca não tem explicação. E esta urticária parece uma reacção aos medicamentos.

Não costumamos pedir despistagens toxicológicas só porque um doente sofre um ataque cardíaco.

Neste caso, deve pedir.

Porquê? Acha que cometemos algum erro? Que lhe demos alguma coisa que não devíamos?

O Dr. Sutcliffe parecia agora na defensiva. A fadiga estava a dar lugar à irritação.

Ela é testemunha de um crime lembrou Maura. A única testemunha.

Passámos os últimos sessenta minutos a tentar salvar-lhe a vida. E agora você insinua que não confia em nós.

Ouça, eu estou apenas a tentar ser cuidadosa.

Está bem. Vou mandar fazer a despistagem, só por sua causa. disse, fechando a ficha e saindo do compartimento.

Maura deixou-se ficar a observar Ursula, que jazia banhada na luz suave e sepulcral do candeeiro da cabeceira. Não viu nenhum dos objectos habituais que eram apanágio de uma operação de reanimação. As seringas usadas, os frascos e as compressas esterilizadas que se utilizavam sempre numa situação daquele tipo tinham sido levados. O peito da doente subia e descia apenas devido ao ar vindo dos foles do ventilador, que lhe entrava à força nos pulmões.

Maura pegou numa lâmpada de fenda e examinou os olhos de Ursula.

Nenhuma das pupilas reagiu à luz.

Ao endireitar-se, sentiu de repente que alguém a observava. Virou-se para trás e ficou admirada ao ver o padre Brophy à porta.

As enfermeiras telefonaram-me disse ele. Pensaram que pode ter chegado a hora.

Tinha olheiras profundas e a barba por fazer escurecia-lhe o queixo. Como era habitual, vestia o seu fato de sacerdote, mas trazia a camisa amarrotada. Maura imaginou-o a acordar àquela hora, a levantar-se da cama e a vestir-se à pressa. A pegar naquela camisa e a deixar o calor do seu quarto.

Quer que saia? perguntou ele. Posso voltar mais tarde.

Não, faça o favor de entrar, padre. Eu ia apenas rever a ficha. Ele obedeceu e entrou no compartimento. O espaço tornou-se de repente demasiado exíguo, demasiado íntimo.

Maura pegou na ficha clínica que Sutcliffe ali deixara. Sentou-se num banco ao lado da cama e apercebeu-se mais uma vez do seu próprio cheiro, interrogando-se se Brophy também o sentiria. O cheiro de Victor. Do sexo. Brophy começou a rezar e ela fez um esforço para se concentrar nos apontamentos das enfermeiras.

00.15: Sinais vitais: tensão arterial 13/9, pulsação 80. Olhos abertos. Faz movimentos com sentido. Aperta a mão direita a pedido. Dr. Yuen e Dr. Sutcliffe detectaram alteração do estado mental.

00.43: Tensão arterial 18/10, pulsação 120. Dr. Sutcliffe esteve aqui. Doente agitada e a tentar arrancar tubo endotraqueal.

00.50: Tensão arterial sistólica desceu para 11. Afogueada e muito agitada. Dr. Yuen esteve aqui.

00.55: Tensão arterial sistólica 8,5, pulsações 180. Tubo intravenoso totalmente aberto...

À medida que a tensão arterial descia, os apontamentos tornavam-se mais concisos e a letra mais apressada, até se transformar em gatafunhos quase ilegíveis. Maura imaginou a sucessão dos acontecimentos naquele compartimento. A luta desordenada para encontrar sacos intravenosos e seringas. A enfermeira a correr de um lado para o outro para ir buscar os medicamentos. As compressas esterilizadas abertas à pressa, os frascos esvaziados, as dosagens correctas freneticamente calculadas. Tudo isto enquanto a doente se debatia e a tensão arterial descia a pique.

01.00: Código Azul accionado.

Agora, a letra era diferente. Fora outra enfermeira a registar os acontecimentos. As novas entradas eram impecáveis e metódicas, o trabalho de uma enfermeira cuja função durante o ataque cardíaco era apenas observar e documentar.

Fibrílação ventricular. Cardioversão a 300 joules. Dose intravenosa de lidocaína aumentada para 4 mglminuto.

Cardioversão repetida, 400 joules. Ainda em fibrilação.

Pupilas dilatadas, mas ainda reactivas à luz...

Ainda não estava a desistir, pensou Maura. Pelo menos enquanto as pupilas reagissem. Enquanto ainda houvesse uma hipótese.

Maura lembrou-se do primeiro Código Azul que dirigira no internato e da relutância que sentira em reconhecer a derrota, mesmo quando era óbvio que o doente não tinha salvação. Mas a família do homem estava à espera lá fora a mulher e dois filhos adolescentes e era no rosto dos rapazes que Maura continuava a pensar enquanto aplicava as pás do desfibrilador, uma e outra vez. Os dois rapazes tinham altura suficiente para serem adultos, uns pés enormes e marcas de acne na face, mas choravam como crianças, e ela prolongara as tentativas de reanimação muito para além da inutilidade, pensando: aplica-lhe mais um choque. Só mais um.

Maura apercebeu-se de que o padre Brophy se calara. Levantou a cabeça e deu com ele a observá-la, tão fixamente que se sentiu invadida.

E, ao mesmo tempo, estranhamente excitada.

Fechou a ficha, um gesto ostensivamente profissional para disfarçar a sua atrapalhação. Tinha acabado de sair da cama de Victor, mas sentia-se atraída por este homem. Sabia que as gatas com cio conseguiam atrair os machos com o seu odor. Seria esse o sinal que ela estava a dar, o odor de uma fêmea receptiva? Uma mulher que passara tanto tempo sem sexo que não conseguia saciar-se?

Maura levantou-se e pegou no casaco.

Ele avançou para a ajudar a vestir-se. Aproximou-se por trás e abriu o casaco enquanto ela enfiava os braços nas mangas. Maura sentiu a mão dele a roçar-lhe na pele. Foi um toque acidental, mais nada, mas desencadeou um arrepio alarmante. Ela afastou-se e abotoou o casaco à pressa.

Antes de sair, gostava de mostrar-lhe uma coisa. Vem comigo?

perguntou ele.

Onde?

Lá abaixo, ao quarto piso.

Confusa, Maura foi atrás dele até ao elevador. Entraram e, mais uma vez, partilharam um espaço fechado que parecia demasiado exíguo. Ela enfiou as mãos nas algibeiras e permaneceu estoicamente a olhar para os números dos pisos, perguntando a si própria: será pecado considerar um padre atraente?

Se não era pecado, era com certeza uma loucura.

Por fim, a porta do elevador abriu-se, e ela percorreu o corredor atrás dele. Atravessaram várias portas e entraram na Unidade de Cuidados Coronários. Tal como no bloco operatório da Unidade de Cuidados Intensivos, a intensidade da luz fora reduzida durante a noite. O padre Brophy conduziu-a à central de monitores electrocardiográficos.

A enfermeira corpulenta que estava sentada em frente dos monitores desviou o olhar dos múltiplos traçados cardíacos e mostrou os dentes num sorriso.

Padre Brophy! Anda a fazer rondas nocturnas?

Ele tocou no ombro da enfermeira, um gesto fácil e familiar que denunciou uma amizade confortávelr Maura lembrou-se da primeira vez que vira Brophy, a atravessar o pátio cheio de neve sob o quarto de Camille. Ele pousara uma mão animadora no ombro da velha freira que o cumprimentara. Era um homem que não tinha receio de oferecer o calor do seu contacto.

Boa noite, Kathleen disse ele, com a cadência suave do irlandês de Boston. A noite tem sido calma?

Até agora sim, longe vá o agouro. As enfermeiras pediram-lhe que viesse ver alguém?

Não é nenhum dos seus doentes. Estivemos lá em cima, na Unidade de Cuidados Intensivos. Eu trouxe a doutora Isles cá abaixo para irmos fazer uma visita.

As duas da manhã? Kathleen riu-se e olhou para Maura.

Ele dá cabo de si. Este homem não tem descanso.

Descanso? O que é isso? perguntou Brophy.

É uma coisa de que nós, pobres mortais, precisamos.

Brophy olhou para o monitor.

E como vai o nosso Mister Demarco?

Ah, o nosso doente especial. Amanhã vai ser transferido para a enfermaria. Eu diria que ele está a evoluir muito bem.

Brophy apontou para a linha electrocardiográfica da Cama 6, que avançava serenamente no ecrã.

Ali disse ele, tocando no braço de Maura, que sentiu a respiração dele no seu cabelo. Era isto que eu queria mostrar-lhe.

Porquê? perguntou Maura.

Mister Demarco é o homem que salvámos, no passeio. O homem que você admitiu que não sobreviveria. É o nosso milagre. O seu e o meu.

Não é necessariamente um milagre. Já me tenho enganado.

Não a surpreende que este homem vá sair do hospital? Maura olhou para ele na intimidade silenciosa da penumbra.

Já não há muitas coisas que me surpreendam, desculpe que lhe diga.

Maura não queria ser cínica, mas foi assim que a frase lhe saiu, o que a levou a perguntar a si própria se o teria decepcionado. Por qualquer motivo, parecia ser importante para ele que ela demonstrasse alguma admiração, e ela limitara-se a contemplá-lo com o equivalente verbal de um encolher de ombros.

No elevador, quando desciam, Maura disse:

Eu gostava de acreditar em milagres, padre. Sinceramente. Mas receio que o senhor não consiga alterar a opinião de uma velha céptica.

Ele reagiu com um sorriso.

A senhora foi contemplada com uma mente brilhante, e é claro que deve fazer uso dela. Fazer as suas próprias perguntas e encontrar as suas próprias respostas.

Tenho a certeza que o senhor faz as mesmas perguntas que eu.

Todos os dias.

Mas aceita o conceito de divino. Nunca sente a sua fé abalada? Seguiu-se uma pausa.

A minha fé, não. Com ela posso eu contar. Maura detectou alguma incerteza na voz dele e fitou-o.

Então, o que questiona?

Ele encarou-a, com um ar que pareceu ir direito à mente dela, ler-lhe os pensamentos contra a sua vontade.

A minha força. Às vezes, questiono a minha própria força respondeu ele serenamente.

Lá fora, sozinha no parque de estacionamento do hospital, Maura recebeu lufadas castigadoras de ar frio. O céu estava limpo e as estrelas brilhavam intensamente. Entrou no carro e deixou-se ficar sentada enquanto o motor aquecia, tentando compreender o que se acabara de passar entre ela e o padre Brophy. Absolutamente nada, afinal, mas ela sentia-se culpada, como se tivesse acontecido alguma coisa. Culpada e entusiasmada.

Percorrendo as ruas resplandecentes de gelo, foi para casa a pensar no padre Brophy e em Victor. Saíra cansada; agora, estava desperta e agitada, com os nervos à flor da pele, e sentia-se mais viva do que nunca.

Arrumou o carro na garagem e já ia a despir o casaco quando entrou em casa. Já ia a desabotoar a blusa quando se dirigiu para o quarto. Victor dormia profundamente, sem saber que ela estava ao pé dele, a despir-se. Nos últimos dias, passara mais tempo em casa dela do que no quarto do hotel, e agora parecia pertencer à cama dela. À vida dela. A tremer de frio, Maura enfiou-se debaixo dos lençóis, que estavam deliciosamente quentes, e a frescura da sua pele contra a dele fê-lo mexer-se.

Umas carícias, uns beijos, e ele acordou completamente, excitado.

Maura recebeu-o, incitando-o, e, embora estivesse debaixo dele, não era por submissão. Desfrutou o seu próprio prazer, tal como ele, reclamando o que lhe era devido com um grito abafado de triunfo. Mas quando fechou os olhos e sentiu o clímax dele dentro de si, não pensou apenas no rosto de Victor, mas também no do padre Brophy. Uma imagem passageira que não se consolidava, que ia e vinha, ao ponto de ela não saber a quem pertencia.

Pertencia a ambos. E a nenhum.

 

No Inverno, os dias límpidos são os mais frios. Maura acordou com o sol a brilhar na brancura da neve e, apesar de lhe agradar ver o céu azul, o vento era implacável e o rododendro que tinha no exterior da casa curvava-se como um velho, com as folhas penduradas e encarquilhadas pelo frio.

Bebeu o café no caminho para o emprego, piscando os olhos para se proteger da luz do sol e ansiando por dar meia volta e ir para casa. Voltar a meter-se na cama com Victor e passar o dia inteiro ao pé dele, a aquecerem-se um ao outro debaixo do edredão. Na noite anterior, tinham cantado canções de Natal ele com a sua bela voz de barítono e ela tentando harmonizar-se com a sua voz de contralto desafinado. O resultado foi péssimo, e acabaram os dois a rir em vez de cantar.

E nessa manhã, lá ia ela a cantar outra vez, desafinada como sempre, por entre os candeeiros das ruas enfeitados com grinaldas e as montras dos grandes armazéns, onde os manequins exibiam os vestidos coruscantes próprios da época. Há várias semanas que as grinaldas e os festões estavam ali, evidentemente, mas Maura nem reparara neles. Alguma vez reinara na cidade um ambiente tão festivo? Alguma vez a luz do sol se reflectira com tanta intensidade na neve?

Que Deus vos abençoe, que a vossa alegria não esmoreça.

Entrou no edifício do Instituto de Medicina Legal em Albany Street, em cujo átrio se lia, em grandes letras de papel de alumínio,

PAZ NA TERRA.

Louise olhou para ela e sorriu.

Hoje está com um ar feliz.

Estou apenas contente por ver de novo o sol.

Aproveite enquanto dura. Sei que vamos ter mais neve amanhã à noite.

Agrada-me que neve na véspera de Natal. Maura tirou alguns bombons de chocolate da taça que estava em cima da secretária de Louise. Qual é o programa para hoje?

Não chegou nada ontem à noite. Acho que ninguém quer morrer nas vésperas do Natal. O doutor Bristol tem de estar no tribunal às dez e talvez vá directamente para casa, se a senhora puder assegurar as chamadas dele.

Se isto se mantiver calmo, é provável que eu também saia cedo. Louise ergueu o sobrolho, surpreendida.

Para se divertir, espero.

Pode crer. Vou as compras disse Maura, dando uma gargalhada.

Entrou no gabinete, onde nem a pilha de relatórios e de ordens internas que aguardavam revisão conseguiu estragar-lhe a boa disposição. Sentou-se à secretária e passou a hora de almoço a trabalhar e a saborear alegremente os chocolates. Tencionava sair por volta das três e ir direita ao Saks Fiíth Avenue.

Não contava com uma visita de Gabriel Dean. Quando ele entrou no seu gabinete às duas e meia da tarde, nem ela imaginava como essa visita iria alterar o seu dia. Como sempre, achou-o impenetrável e mais uma vez reconheceu que seria improvável existir um caso amoroso entre uma pessoa temperamental como Jane Rizzoli e este homem frio e enigmático.

Regresso a Washington esta tarde disse ele, pousando a pasta. Queria saber a sua opinião- acerca de uma coisa antes de partir.

Com certeza.

Primeiro, posso dar uma vista de olhos aos restos mortais de Jane Doe?

Está tudo no meu relatório de autópsia.

Mesmo assim, acho que devia ser eu a ver. Maura levantou-se da cadeira.

Devo avisá-lo que o espectáculo não será nada agradável disse ela.

A refrigeração consegue retardar, mas não interromper, o processo de decomposição. Quando Maura abriu o fecho de correr do saco, teve de proteger-se dos cheiros. Já avisara Dean sobre o aspecto do corpo, e ele nem pestanejou quando o plástico se abriu e revelou carne viva em vez de um rosto.

Foi completamente esfolado disse Maura. A pele foi cortada ao longo do couro cabeludo, na coroa, e, em seguida, puxada para baixo. E solta com outra incisão por baixo do queixo. Como se arranca uma máscara.

E ele levou a pele?

Não foi a única coisa que ele levou.

Maura abriu completamente o saco. O cheiro exalado foi tão intenso que ela lamentou não estar devidamente protegida. Mas Dean pedira apenas um visionamento superficial e não um exame completo, e estavam ambos de luvas.

As mãos disse ele.

Foram ambas amputadas, assim como uma parte dos pés. A princípio, julgámos que estávamos perante um coleccionador, para quem as partes do corpo eram trofeus. A outra hipótese era que ele estivesse a tentar ocultar a identidade da vítima. Nem impressões digitais, nem rosto. Este seria um motivo prático para a remoção.

Se não fossem os pés.

E isso é que não fazia sentido. Então, admiti que houvesse outro motivo para a amputação. Não foi para esconder a identidade dela, mas sim o facto de ela ter lepra.

E estas lesões abrangem toda a pele do corpo? Também resultam da doença de Hansen?

Esta erupção de pele chama-se eritema nodoso leproso. E uma reacção ao tratamento médico. É óbvio que ela estava a ser tratada com antibióticos. Por isso é que não detectámos bactérias activas na biópsia da pele.

Não é a própria doença que provoca estas lesões?

Não. Isto é um efeito secundário de um tratamento recente com antibióticos. A avaliar pelas radiografias, ela padecia da doença de Hansen há algum tempo, talvez há anos, antes de começar a receber tratamento. Maura levantou a cabeça e olhou para Dean. Já viu o suficiente?

Ele fez um sinal afirmativo.

Agora quero mostrar-lhe uma coisa.

Já lá em cima, no gabinete, Dean abriu a pasta e tirou um dossiê.

Ontem, depois da nossa reunião, telefonei para a Interpol e pedi informações sobre o massacre de Bara. Isto foi o que a Divisão de Crimes Especiais da Polícia Judiciária indiana me enviou por fax. Também me enviaram por e-mail algumas fotografias digitais que eu gostava que visse.

Maura abriu o dossiê e viu a folha de rosto.

É um dossiê da polícia.

Do estado indiano de Andhra Pradesh, onde ficava a aldeia de Bara.

Em que fase se encontra a investigação?

Prossegue. O caso tem um ano, e eles ainda não fizeram grandes progressos. Duvido que alguma vez seja resolvido. Nem sequer tenho a certeza que seja uma grande prioridade.

Foram mortas quase cem pessoas, agente Dean.

Pois, mas tem de inserir este acontecimento no seu contexto.

Um sismo é um acontecimento. Um tornado é um acontecimento. O massacre de toda a população de uma aldeia não é um acontecimento. É um crime contra a humanidade.

Repare no que está a acontecer no Sul da Ásia. Em Caxemira, massacres em massa efectuados por hindus e muçulmanos. Na índia, os crimes dos tamils e dos sikhs. Além disso, todos os outros crimes entre castas. Os bombardeamentos de guerrilheiros maoistas-leninistas...

A madre Mary Clement está convencida de que se tratou de um massacre com motivações religiosas. De um ataque contra os cristãos.

Esses ataques acontecem naquela zona. Mas a clínica em que a irmã Ursula trabalhava era financiada por uma instituição secular. As outras duas enfermeiras, as que morreram no massacre, não pertenciam a nenhuma Igreja. Por isso é que a polícia de Andhra Pradesh duvida que tenha sido um ataque religioso. Um ataque político, talvez. Ou um crime de ódio, porque as vítimas foram leprosos. Esta era uma aldeia dos desprezados. Dean apontou para o dossiê que Maura tinha na mão. Há uns relatórios de autópsia que eu quero que você veja, e fotografias do local do crime.

Maura virou a página e olhou para uma fotografia. Ficou tão atordoada que nem conseguiu falar. Nem conseguiu desviar o olhar daquele horror.

Era uma visão do Armagedão.

Em cima de montes de lenha fumegante e cinzas viam-se cadáveres calcinados. O calor contraíra os músculos flexores e os corpos estavam imobilizados em poses pugilísticas. No meio dos despojos humanos, viam-se cabras mortas com o pêlo enegrecido.

Eles mataram tudo disse Dean. Pessoas. Animais. Até as galinhas foram mortas e queimadas.

Maura fez um esforço para passar à fotografia seguinte. Viu outros corpos, ainda mais consumidos pelas chamas, reduzidos a montes de ossos calcinados.

O ataque registou-se durante a noite explicou Dean. Só na manhã seguinte é que os corpos foram descobertos. Os operários do turno de dia de uma fábrica nos arredores repararam no fumo espesso que vinha do vale. Quando lá chegaram, encontram aquilo. Noventa e sete pessoas mortas, muitas das quais eram mulheres e crianças, e duas enfermeiras da clínica, ambas americanas.

A mesma clínica em que Ursula trabalhava.

Agora vêm os pormenores verdadeiramente interessantes disse ele.

Maura levantou a cabeça, mais atenta do que nunca.

Sim?

Essa fábrica, nos arredores da aldeia.

Qual era o problema?

Pertencia à Octagon Chemicals. Maura ficou a olhar para ele.

Octagon? Não era nessa empresa que Howard Redfield trabalhava?

Ele fez um gesto afirmativo.

A que está a ser investigada pela Comissão. Há tantas ligações entre estas três vítimas que isto começa a parecer uma teia gigantesca. Sabemos que Howard Redfield era vice-presidente para as operações no estrangeiro da Octagon, a proprietária da fábrica nos arredores de Bara. Sabemos que a irmã Ursula trabalhou em Bara. Sabemos que Jane Doe padecia da doença de Hansen e que também pode ter vivido em Bara.

Tudo remete para essa aldeia reconheceu Maura.

Para esse massacre. Caíram-lhe os olhos nas fotografias.

O que espera que eu encontre nestes relatórios de autópsia?

Diga-me se há alguma coisa que os patologistas indianos não tenham detectado. Algo que possa fazer luz sobre esse ataque.

Maura olhou para os cadáveres calcinados e abanou a cabeça.

Vai ser difícil. A incineração provoca uma grande destruição. Sempre que o fogo está envolvido, pode não ser possível determinar a causa da morte, a menos que existam outras provas. Balas, por exemplo, ou fracturas.

Vários crânios foram esmagados, segundo os relatórios de autópsia. Eles concluíram que as vítimas devem ter sido atacadas durante o sono. Depois, os corpos foram retirados das cabanas, empilhados e cremados.

Maura passou à fotografia seguinte. Mais uma visão do inferno.

Todas estas vítimas... E ninguém conseguiu escapar?

Deve ter sido tudo muito rápido. É provável que muitas das vítimas estivessem deformadas pela doença e não conseguissem fugir. Afinal, aquilo era um santuário para os doentes. A aldeia estava separada da sociedade, isolada num vale, numa estrada sem saída. Era fácil que um grande grupo de assaltantes entrasse e matasse uma centena de pessoas. E ninguém ouviria os gritos.

Maura concentrou-se na última fotografia do dossiê. Mostrava um pequeno prédio caiado, com cobertura de zinco e as paredes chamuscadas. À porta, via-se mais um amontoado de corpos, cujos rostos queimados impediam o reconhecimento.

Essa clínica foi a única coisa que ficou de pé, por ser construída com blocos de escória prensada esclareceu Dean. Os restos mortais das duas freiras americanas foram encontrados nessa pilha. Tiveram de ser identificados por um antropólogo forense. Disse que as queimaduras eram tão fortes que, na sua opinião, os agressores devem ter usado um catalisador. Concorda com isso, doutora Isles?

Maura não respondeu. Já não estava concentrada nos cadáveres. Observava uma coisa que considerava muito mais perturbante. Uma coisa que, por alguns segundos, lhe cortou a respiração.

Sobre a porta da clínica, via-se uma placa com uma insígnia bem distinta: um pombo a voar, cujas asas abertas protegiam amorosamente um globo azul. Uma insígnia que ela reconheceu imediatamente.

Era uma clínica da One Earth.

Doutora Isles?

Maura levantou a cabeça, sobressaltada. E percebeu que ele continuava à espera da sua resposta.

Os corpos... Não é assim tão fácil incinerá-los observou ela. O teor de água é muito elevado.

Estes corpos foram queimados até aos ossos.

Sim, é verdade. Portanto, um catalisador... Tem razão, é provável que tenham usado um catalisador.

Gasolina?

Talvez. É o que está mais à mão. Maura voltou a olhar para as fotografias da clínica incendiada. Além disso, vêem-se claramente os restos de uma pira, que mais tarde abateu. Estes ramos queimados...

Isso faz diferença? Usar uma pira? perguntou Dean.

Maura pigarreou.

Se os corpos não estiverem em contacto com o solo, a gordura derretida alimenta as chamas. Ela... Mantém o fogo.

De repente, Maura juntou as fotografias e guardou-as de novo no dossiê. Cruzou as mãos sobre o papel-manilha. Apesar de este ser suave ao contacto com a pele, o seu conteúdo era esmagador.

Se não se importa, agente Dean, eu gostava de dispor de algum tempo para ler estes relatórios de autópsia. Eu devolvo tudo. Posso ficar com o dossiê completo?

Com certeza. Dean levantou-se da cadeira. Pode telefonar-me para Washington.

Maura continuava a olhar para o dossiê e nem o viu dirigir-se para a porta. Nem se apercebeu de que ele tinha voltado atrás e olhava para ela.

Doutora Isles?

Ela levantou a cabeça.

Sim?

Tenho outra preocupação. Não é sobre o caso, é um assunto pessoal. Não sei ao certo se é consigo que devo falar.

O que é, agente Dean?

Conversa muito com a Jane?

Naturalmente. No decurso desta investigação...

Não me refiro ao trabalho, mas ao que a preocupa. Maura hesitou. Eu podia dizer-lhe, pensou. Alguém devia dizer-lhe.

Ela tem andado muito tensa disse ele. Mas há mais alguma coisa. Percebo que ela anda sob uma grande pressão.

O crime na abadia tem sido um caso difícil para ela.

Não se trata da investigação. Há mais alguma coisa que a incomoda. Alguma coisa de que ela não fala.

Não é a mim que deve perguntar. Tem de falar com a Jane.

Já tentei.

E?

Ela arma-se em profissional. Você conhece-a, é uma polícia-robô.

Dean suspirou e acrescentou tranquilamente:

Acho que a perdi.

Diga-me uma coisa, agente Dean.

Sim?

Interessa-se por ela?

Ele fitou-a sem pestanejar.

Não estaria a perguntar-lhe isto se ela não me interessasse.

Então, tem de confiar em mim. Você não a perdeu. Se ela parece distante, é só porque tem medo.

A Jane? Dean abanou a cabeça e riu-se. Ela não tem medo de nada. E muito menos de mim.

Maura viu-o sair do gabinete e pensou: estás enganado. Todos nós temos medo das pessoas que podem magoar-nos.

Em criança, Rizzoli adorava o Inverno. Passava o Verão a pensar nos primeiros nevões, na manhã em que abriria os cortinados do quarto e veria o chão coberto de branco, com uma pureza ainda não conspurcada pelas pegadas. Saía. Ria-se e começava a correr, a transpor os montes de neve acumulada pelo vento.

Agora, enfrentando o trânsito congestionado do meio-dia e todas as outras pessoas que também faziam compras, perguntava a si própria quem teria roubado essa magia.

A perspectiva de passar a véspera de Natal com a família na noite do dia seguinte não contribuía para a alegrar. Sabia como iria decorrer o serão: toda a gente a empanturrar-se de peru, com a boca demasiado cheia para falar. O seu irmão Frankie barulhento e irritante devido ao excesso de licor de ovos "baptizado" com rum. O pai, com o controlo remoto do televisor na mão, a ligar para a ESPN e a inviabilizar qualquer conversa interessante. E a mãe, Angela, cansada de passar o dia inteiro a cozinhar, "a "cabecear na poltrona. Todos os anos repetiam os mesmos rituais, mas uma família era isso mesmo, pensou ela. Fazemos as mesmas coisas da mesma maneira, quer elas nos façam ou não felizes.

Embora não lhe apetecesse ir às compras, não podia adiar mais a provação; não era possível aparecer em casa dos Rizzoli na véspera de Natal sem os devidos presentes. Não interessava que não fossem apropriados, desde que tivessem um bonito embrulho e toda a gente recebesse um. No ano anterior, o Frankie, esse idiota, oferecera-lhe um porta-moedas de pele de sapo do México. Fora uma maneira cruel de lhe lembrar a alcunha que ele lhe pusera. Um sapo para o sapo.

Este ano, o Frankie estava tramado.

Jane empurrou o carrinho no meio da multidão que enchia os armazéns Target, à procura do equivalente ao sapo. Dos altifalantes saíam cânticos de Natal e Pais Natal mecânicos saudavam-na com os seus ho-ho-hos enquanto ela avançava, com uma determinação implacável, nos corredores decorados com festões dourados. Para o pai, comprou uns mocassins forrados de lã. Para a mãe, um bule irlandês decorado com pequenos botões de rosa. Para o irmão mais novo, Michael, um roupão de banho, e para a nova namorada dele, Irene, uns brincos compridos de cristal australiano vermelho-vivo. Até comprou presentes para os miúdos de Irene, uns fatos de esqui com riscas, como os dos desportistas.

Mas para Frankie, o idiota, não tinha nada.

Deu uma volta pela secção de roupa interior para homem. Aqui havia algumas hipóteses. Frankie, o fuzileiro machista, com roupa interior cor-de-rosa? Não, era demasiado vexatório; nem ela desceria tão baixo. Continuou a andar, passou pelos fatos de equitação, e abrandou ao chegar às boxers, pensando de repente não em Frankie, mas em Gabriel, com os seus fatos cinzentos e as suas gravatas monótonas. Um homem de gostos discretos e conservadores, mesmo na roupa interior. Um homem que podia dar com uma mulher em doida, porque ela nunca sabia o que esperar dele, nunca sabia se havia um coração a sério debaixo daquele fato cinzento.

Saiu abruptamente daquela secção e continuou a andar. Concentra-te, raios! Arranja qualquer coisa para o Frankie. Um livro? Jane lembrou-se de alguns títulos apropriados. Como Não Ser Um Idiota. Era uma pena que ninguém o tivesse escrito; mercado não lhe faltaria. Atravessou a secção e passou à seguinte, à procura, à procura.

E depois parou, com um nó na garganta e os dedos dormentes de empurrar o carrinho.

Ficou a olhar para o corredor dos artigos de bebé. Viu pijamas de flanela minúsculos com patinhos bordados. Luvas que pareciam de boneca, botinhas e gorros rematados por pompons. Pilhas de cobertores azuis e cor-de-rosa para embrulhar recém-nascidos. Foi nos cobertores que se concentrou, lembrando-se do modo como Camille embrulhara o seu próprio filho morto numa peça de lã azul-bebé, com amor de mãe, com dor de mãe.

Só após alguns toques do telemóvel é que despertou do seu transe. Tirou-o da bolsa e atendeu-o, atordoada:

Rizzoli.

Olá, detective. Fala Walt DeGroot.

DeGroot trabalhava na secção de ADN do laboratório criminal. Em geral, era Rizzoli que lhe telefonara, tentando convencê-lo a apressar os resultados dos testes. Nesse dia, respondeu ao telefonema dele com um interesse reduzido.

Então o que tem para mim? perguntou ela, voltando a olhar para os cobertores de bebé.

Analisámos o ADN materno daquele bebé que você descobriu no lago.

Sim?

A vítima, Camille Maginnes, é, sem dúvida, a mãe da criança. Rizzoli suspirou, cansada.

Obrigada, Walt disse ela em voz baixa. Era o que nós esperávamos.

Mas há mais!

Mais?

Isto, não me parece que vocês esperassem. É acerca do pai do bebé.

De repente, Rizzoli concentrou-se totalmente na voz de Walt. No que ele ia dizer-lhe.

O que há acerca do pai?

Eu sei quem ele é.

 

Rizzoli conduziu durante toda a tarde até ao anoitecer, vendo a estrada à sua frente através de uma nuvem de raiva. Os presentes que comprara ainda estavam amontoados no banco de trás, além dos rolos de papel de embrulho e da fita prateada, mas ela já não pensava no Natal. Pensava numa rapariguinha, a andar descalça na neve. Uma rapariguinha que procurara o sofrimento das queimaduras provocadas pelo frio, mesmo que fosse só para mascarar um sofrimento mais profundo. Mas nada se comparava ao seu tormento secreto, não havia oração nem autoflagelação que conseguisse silenciar os seus gritos de dor.

Quando finalmente passou pelos pilares de granito e entrou na propriedade dos pais de Camille, eram quase cinco horas, e sentia os ombros crispados pela tensão que fora acumulando durante aquela longa viagem. Saiu do carro e encheu os pulmões com o ar salgado do mar. Subiu os degraus e tocou à campainha.

A governanta de cabelo preto, Maria, veio abrir a porta.

Desculpe, detective, mas Mistress Maginnes não está. Ela esperava-a?

Não. A que horas é que ela chega?

Foi às compras com os meninos. Mas vem jantar. Daqui a uma hora, calculo.

Então, espero por ela.

Eu não sei se...

Eu faço companhia a Mister Maginnes. Se não há inconveniente.

Relutante, Maria deixou-a entrar. Uma mulher habituada a cumprir ordens não iria vedar a entrada a um agente da autoridade.

Rizzoli não precisou que Maria lhe mostrasse o caminho; atravessou os mesmos soalhos encerados, passou pelos mesmos quadros com motivos marítimos e entrou na Sala do Mar. A vista de Nantucket Sound era terrífica, a água agitada pelo vento e salpicada de carneirinhos. Randall Maginnes estava deitado na cama de hospital, sobre o lado direito, virado para as janelas para poder ver a tempestade que se aproximava. Um lugar na primeira fila para assistir à turbulência da natureza.

A enfermeira particular de serviço estava sentada ao lado dele. Assim que reparou na visita, levantou-se da cadeira.

Boa tarde.

Sou a detective Rizzoli, da Polícia de Boston. Estou à espera que Mistress Maginnes chegue. Lembrei-me de vir ver como está Mister Maginnes.

Está mais ou menos na mesma.

Tem havido progressos desde que ele teve a trombose?

Há uns meses que anda a fazer fisioterapia. Mas as lesões são muito graves.

E são irreversíveis?

A enfermeira olhou para o doente e em seguida fez sinal a Rizzoli para que saíssem ambas da sala.

Não gosto de falar acerca dele quando está a ouvir-nos. Sei que compreende o que dizemos observou a enfermeira, já no corredor.

Como é que sabe?

Pelo modo como ele olha para mim. Pelo modo como reage às coisas. Embora não consiga falar; o cérebro dele funciona. Esta tarde, pus a tocar um CD com a ópera preferida dele, La Bohème. E reparei que tinha lágrimas nos olhos.

Talvez não seja da música. Pode ser apenas frustração.

É claro que ele tem direito a sentir-se frustrado. Passados oito meses, a recuperação é quase nula. É um prognóstico muito cruel. O mais certo é não voltar a andar. E quanto à fala, bem... A enfermeira abanou a cabeça tristemente. Foi uma trombose fortíssima.

Rizzoli virou-se para a Sala do Mar.

Se quiser fazer um intervalo, eu não me importo de ficar com ele um pouco.

Não se importa?

A menos que ele necessite de alguns cuidados especiais.

Não, não é necessário fazer nada. Basta conversar com ele. É uma coisa que ele aprecia.

Está bem.

Rizzoli regressou à Sala do Mar e puxou uma cadeira para junto da cama. Sentou-se de modo a ver os olhos de Randall Maginnes. De modo a que ele não pudesse evitar o seu olhar.

Olá, Randall disse ela. Lembra-se de mim? Sou a detective Rizzoli. Sou eu que estou a investigar o assassínio da sua filha. Sabe que a Camille morreu, não sabe?

Rizzoli detectou um lampejo de tristeza nos olhos cinzentos de Randall. Era a prova de que ele estava a entendê-la, de que lamentava a morte da filha.

Ela era bonita, a sua Camille. Mas você sabe isso, não sabe? Como poderia não saber? Todos os dias a observava nesta casa. Viu-a crescer e transformar-se numa mulher. Rizzoli hesitou. E assistiu à destruição dela.

Os olhos dele continuavam fixos nela, absorvendo todas as suas palavras.

Então quando é que começou a fornicá-la, Randall?

Lá fora, as rajadas de vento fustigavam Nantucket Sound. Mesmo ao anoitecer, distinguia-se a espuma na crista das ondas, pontinhos brilhantes de turbulência nas águas escuras.

Randall Maginnes já não a fitava. Baixou os olhos, tentando desesperadamente evitá-la.

Ela tinha apenas oito anos quando a mãe se matou. E, de repente, a Camille não tem mais ninguém excepto o seu papá. Precisa de si. Confia em si. E o que fez você? Rizzoli abanou a cabeça, enojada. Você sabia como ela era frágil. Você sabia porque é que ela caminhava descalça na neve. Porque é que ela se fechava à chave no quarto. Porque é que ela fugiu para o convento. Ela fugia de si.

Jane aproximou-se mais dele. O suficiente para sentir o cheiro da urina que lhe ensopava a fralda.

A única vez que ela veio a casa de visita, pensou que talvez você não lhe tocasse. Que, por uma vez, a deixasse em paz. Você tinha a casa cheia de parentes para o funeral. Mas isso não foi um obstáculo para si, pois não?

Randall continuava de olhos baixos, evitando enfrentá-la. Rizzoli agachou-se ao lado da cama. Aproximou-se tanto que, olhasse ele para onde olhasse, veria sempre a cara dela.

O bebé era seu, Randall disse ela. Nem foi necessária uma amostra do seu ADN para fazer a prova. O bebé é muito parecido com a mãe. Está escrito aqui, no ADN do bebé. Um filho incestuoso.

Você sabia que a tinha engravidado? Sabia que destruiu a sua própria filha?

Rizzoli deixou-se ficar sentada na cadeira, a olhar para ele. No meio do silêncio, ouvia a respiração ofegante, os arquejos ruidosos de um homem que queria desesperadamente rugir, mas não podia.

Sabe, Randall, não acredito lá muito em Deus. Mas você leva-me a pensar que talvez eu esteja enganada a este respeito. Repare no que lhe aconteceu. Em Março, você fornicou com a sua filha. Em Abril, teve uma trombose. Nunca mais poderá andar. Nem falar. Você não passa de um cérebro num corpo morto, Randall. Se isto não é justiça divina, não sei o que é.

Randall choramingava e tentava mexer os seus membros inúteis. Rizzoli inclinou-se e segredou-lhe ao ouvido:

Não sente o cheiro da sua própria podridão? Enquanto você está aqui deitado, a fazer chichi na fralda, o que julga que a sua mulher, Lauren, anda a fazer? Talvez a divertir-se. Talvez à procura de alguém que lhe faça companhia. Pense nisso. Não é preciso morrer para ir para o inferno.

Com um suspiro de satisfação, Rizzoli levantou-se.

Felicidades, Randall! disse ela, saindo da sala. Quando se dirigia para a porta principal, ouviu Maria a gritar:

Já se vai embora, detective?

Já. Resolvi não esperar por Mistress Maginnes.

O que lhe digo?

Diga-lhe só que passei por aqui. Rizzoli olhou para trás, para a Sala do Mar. Olhe, diga-lhe o seguinte.

Sim?

Acho que o Randall sente a falta da Camille. Porque é que não põem uma fotografia dela onde ele a possa ver, permanentemente? Ele havia de gostar.

Dizendo isto, Rizzoli sorriu, abriu a porta e saiu.

As lâmpadas de Natal cintilavam na sua sala de estar.

A porta da garagem abriu-se e Maura viu que o carro alugado de Victor estava lá dentro. Ocupava o lado direito, como se aquele lugar lhe pertencesse. Como se aquela fosse agora a sua casa, também. Maura estacionou ao lado e desligou o motor com um gesto de irritação. Esperou um pouco que a porta voltasse a fechar-se, tentando acalmar-se e preparando-se para o que viria a seguir.

Agarrou na pasta e saiu do carro.

Entrou em casa, levou algum tempo a despir o casaco e a pousar a carteira. Sem largar a pasta, dirigiu-se para a cozinha.

Victor estava a deitar gelo no shaker e sorriu ao vê-la entrar.

Olá, estou a preparar a tua bebida preferida. O jantar já está no forno. Estou a tentar provar-te que um homem pode ser muito útil em casa.

Maura viu-o manejar o shaker e deitar o líquido num copo de cocktail. Ele estendeu-lhe a bebida.

Para a dona da casa que se farta de trabalhar disse ele, beijando-a na boca.

Maura nem se mexeu.

Ele recuou lentamente, perscrutando-a.

O que se passa? Ela pousou o copo.

Chegou o momento de seres honesto para comigo.

Achas que não tenho sido?

Não sei.

Se vamos falar do que correu mal há três anos... Dos erros que cometi...

Isto não tem nada a ver com o que aconteceu nessa época. Refiro-me ao presente. Não sei se estás a ser honesto para comigo.

Confuso, Victor deu uma gargalhada.

O que fiz eu desta vez? Porque devo pedir desculpa? É que terei o maior gosto nisso, se é o que pretendes. Com os diabos, eu até peço desculpa por coisas que não fiz.

Não estou a exigir que peças desculpa, Victor Maura tirou da pasta o dossiê que Gabriel Dean lhe emprestara e entregou-lho. Só quero que me fales disto.

O que é isto?

É um dossiê da polícia, transmitido pela Interpol. Diz respeito a um massacre em massa que se registou o ano passado, na índia. Numa pequena aldeia nos arredores de Hyderabad.

Victor abriu o dossiê e, ao ver a primeira fotografia, pestanejou. Sem dizer uma palavra, passou à segunda e depois à terceira.

Victor?

Ele fechou o dossiê e olhou para ela.

O que esperas que eu diga acerca disto?

Sabias da existência deste massacre, não sabias?

É claro que sabia. Eles atacaram uma clínica da One Earth. Perdemos duas voluntárias. Duas enfermeiras. Compete-me tomar conhecimento disso.

Não me disseste.

Isto aconteceu há um ano. Porque havia eu de contar-te?

Porque é importante para a nossa investigação. Uma das freiras atacadas na Abadia de Graystones trabalhava nessa mesma clínica da One Earth. Tu sabias, não é verdade?

Quantos voluntários julgas tu que trabalham para a One Earth? Temos milhares de membros de pessoal médico em mais de oitenta países.

Mas responde-me, Victor. Sabias que a irmã Ursula trabalhava para a One Earth?

Ele deu meia volta e encaminhou-se para o lava-louça. Ficou ali a olhar pela janela, embora não houvesse nada para ver, apenas a escuridão.

É interessante disse ela. Depois do divórcio, nunca mais tive notícias tuas. Nem uma palavra.

Devo lembrar-te que também nunca te deste ao trabalho de me contactar?

Nem uma carta, nem um telefonema. Se quisesse saber de ti, tinha de ler a People. Victor Banks, o santo das causas humanitárias.

Não fui eu que me sagrei, Maura. Não podes usar isso contra mim.

E depois, de repente, sem mais nem menos, apareces aqui em Boston, ansioso por me ver. Precisamente quando começo a trabalhar neste caso de homicídio.

Victor virou-se para ela.

Não acreditas que eu quisesse voltar a ver-te?

Esperaste três anos.

Pois. Três anos é muito tempo.

Porquê agora?

Ele perscrutou-lhe o rosto, como se esperasse detectar algum sinal de compreensão.

Tenho sentido a tua falta, Maura. A sério.

Mas não foi essencialmente por isso que vieste ver-me, pois não?

Seguiu-se uma longa pausa.

Não, não foi.

Sentindo-se de repente exausta, Maura deixou-se cair numa cadeira da cozinha e olhou para o dossiê onde se encontrava a maldita fotografia.

Então porque foi?

Eu estava no meu quarto de hotel, a vestir-me, e a televisão estava ligada. Ouvi a notícia sobre os assassínios no convento. E vi-te, ali. No local do crime.

Foi nesse dia que deixaste a primeira mensagem à minha secretária. Nessa mesma tarde.

Ele fez um sinal afirmativo.

Meu Deus, estavas espantosa na televisão! Embrulhada naquele casaco preto! Já me tinha esquecido de que és tão bonita.

Mas não foi por isso que me telefonaste. O assassínio é que te interessava. Telefonaste porque eu sou a médica-legista, neste caso.

Ele não respondeu.

Tu sabias que uma das vítimas tinha trabalhado para a One Earth. Querias apurar o que a polícia sabia. O que eu sabia.

De novo o silêncio.

Porque não me perguntaste? O que andas a tentar esconder? Ele endireitou-se, desafiando-a subitamente com o olhar.

Imaginas quantas vidas é que nós salvamos todos os anos?

Não estás a responder à minha pergunta.

Quantas crianças é que vacinamos? Quantas mulheres grávidas é que recebem cuidados pré-natais nas nossas clínicas? Elas dependem de nós, porque não têm alternativas. E a One Earth só sobrevive graças à boa vontade dos seus benfeitores. A nossa reputação tem de ser imaculada. Uma referência desfavorável na imprensa, e o nosso dinheiro evapora-se assim disse ele, fazendo estalar os dedos.

O que tem isso a ver com esta investigação?

Passei os últimos vinte anos a construir a One Earth a partir do zero, mas nunca por mim. Tem sido sempre por elas, pelas pessoas sem ninguém que se interesse pelo seu destino. Elas é que são importantes. É por isso que não posso permitir que alguma coisa ponha o nosso financiamento em perigo.

Dinheiro, pensou ela. É tudo pelo dinheiro. Maura fitou-o.

O donativo da empresa.

O quê?

Tu falaste-me nisso. Que recebeste um grande donativo de uma empresa, o ano passado.

Nós recebemos donativos de muitas fontes...

Foi a Octagon Chemicals?

O ar assustado dele foi uma resposta à pergunta. Maura ouviu-o respirar fundo como se se preparasse para negar, mas depois expirou sem dizer uma palavra, reconhecendo que seria inútil discutir.

Não é difícil confirmar disse Maura. Porque não me dizes a verdade?

Ele baixou a cabeça, com um ar cansado.

A Octagon é um dos nossos maiores doadores.

E o que espera de vocês? O que tem de fazer a One Earth em troca desse dinheiro?

Porque julgas que temos de fazer alguma coisa? O nosso trabalho fala por si. Porque julgas que somos tão bem recebidos em muitos países? Porque as pessoas confiam em nós. Não pregamos moral nem nos metemos na política local. Estamos ali apenas para os ajudar. Afinal, isso é que interessa, não é? Salvar vidas?

E a vida da irmã Ursula? É importante para ti?

Claro que é!

Ela está a ser ventilada. Mais um electroencefalograma e é provável que lhe desliguem a máquina. Quem é que a quer morta, Victor?

Como hei-de saber?

Pareces saber muitas coisas que nem te deste ao trabalho de me contar. Sabias que uma das vítimas trabalhou para ti.

Não achei que isso fosse relevante.

Devias ter deixado que fosse eu a decidir se era ou não.

Disseste que estavam concentrados na outra freira. Na mais nova. Ela foi a única vítima de que tu falaste. Parti do princípio que nada tinha a ver com Ursula.

Ocultaste informação.

Agora estás a falar como um maldito polícia. Tencionas exibir o distintivo e as algemas a seguir?

Estou a tentar não envolver a polícia. Estou a tentar dar-te a oportunidade de explicar.

Para que te dás a esse trabalho? Já passaste ao julgamento.

E tu já estás a agir como culpado.

Ele ficou imóvel, de olhar atento, com uma mão agarrada ao tampo de granito da bancada. Passaram alguns segundos sem nenhum deles quebrar o silêncio. E de repente Maura concentrou-se no conjunto de facas de cozinha que estava mesmo ao pé dele. Oito facas de cozinha Wusthof, que ela conservava sempre bem afiadas e prontas a utilizar. Nunca tivera medo de Victor. Mas o homem que estava junto daquelas facas era alguém que ela não conhecia, que nem sequer reconhecia.

Acho que te deves ir embora disse ela tranquilamente. Ele virou-se para ela.

O que vais fazer?

Vai-te embora, Victor.

Por instantes, ele não se mexeu. Maura fitou-o, com o coração aos pulos e os músculos tensos. Não tirou os olhos das mãos dele, atenta ao movimento seguinte, e sempre a pensar: Não, ele não me faria mal. Não acredito que ele fosse capaz de me fazer mal.

E, ao mesmo tempo, consciente da força das mãos dele. Perguntou a si própria se alguma vez aquelas mãos teriam pegado num martelo e esmagado o crânio de uma mulher.

Eu amo-te, Maura disse ele. Mas há coisas mais importantes do que qualquer de nós. Antes de dares mais algum passo, pensa no que podes estar a destruir. Quantas pessoas, pessoas inocentes, podes estar a ofender.

Maura retraiu-se quando ele se encaminhou para ela. Mas ele não parou; limitou-se a seguir em frente. Ela ouviu-o a sair do corredor e depois a fechar a porta principal.

Levantou-se imediatamente e foi para a sala. Através da janela, viu o carro dele a sair da rampa em marcha atrás. Foi trancar a porta principal. Em seguida, fechou à chave a porta que dava acesso à garagem. Bloqueou a entrada a Victor.

Voltou à cozinha e trancou também a porta das traseiras, com a mão a tremer quando pegou na corrente. Virou-se e olhou para uma divisão que agora lhe parecia estranha, ainda com os ecos da ameaça no ar. O cocktail que Victor lhe preparava estava em cima da bancada. Maura pegou no copo já morno e despejou o líquido no lava-louça, como se estivesse contaminado.

Ela própria sentia-se contaminada. Por ter feito amor com ele.

Foi direita à casa de banho, despiu-se e entrou no duche. Ficou ali debaixo do fluxo de água quente, tentando retirar da sua pele tudo o que restava dele, mas não conseguiu remover as recordações. Fechou os olhos e era ainda o rosto dele que via, o contacto dele que recordava.

No quarto, tirou os lençóis da cama, e o cheiro dele libertou-se do tecido. Mais uma lembrança dolorosa. Fez a cama com lençóis lavados, que não cheiravam a sexo. Substituiu as toalhas da casa de banho, as que ele usara. Voltou à cozinha e deitou fora a comida que ele estava a aquecer no forno um prato de beringelas com queijo parmesão.

Nessa noite, não jantou; encheu um copo de vinho da Califórnia e levou-o para a sala. Acendeu a lareira e sentou-se a olhar para a árvore de Natal.

Boas-festas, pensou. Posso abrir o tórax de alguém e esvaziá-lo do seu conteúdo. Posso cortar tiras de pulmão e, através do microscópio, diagnosticar um cancro, uma tuberculose ou um enfisema. Mas os segredos que um coração humano encerra não estão ao alcance do meu bisturi.

O vinho teve um efeito anestésico e adormeceu o desgosto. Assim que esvaziou o copo, Maura foi para a cama.

De noite, acordou sobressaltada e sentiu a casa a estalar com o vento. Quando os últimos resquícios do pesadelo se dissiparam, estava ofegante e com o coração aos pulos. Corpos queimados, empilhados como ramos enegrecidos numa pira. Labaredas que iluminavam uma série de vultos em círculo. Ela tentava manter-se na sombra, esconder-se do clarão da fogueira. Mesmo em sonhos, não consigo afastar-me destas imagens, pensou. Vivo com o meu próprio inferno de Dante na cabeça.

Acariciou os lençóis frios ao seu lado, no sítio em que Victor tinha dormido. E sentiu a falta dele. De repente, a ausência dele foi-lhe tão penosa que ela cruzou os braços sobre o peito para mitigar o vazio que sentia.

E se estivesse enganada? E se ele estivesse a dizer a verdade?

Ao nascer do sol, saltou finalmente da cama, sentindo-se drogada e inquieta. Foi para a cozinha, fez café e sentou-se à mesa a bebê-lo na sua caneca, na semiobscuridade da manhã. Olhou para o dossiê com as fotografias, que ainda ali estava.

Abriu-o e deparou com a fonte de inspiração do pesadelo dessa noite. Os corpos queimados, os restos calcinados das cabanas. Tantos mortos, pensou ela, vítimas do paroxismo de violência de uma noite. Que fúria terrível terá levado os atacantes a chacinar até os animais? Maura olhou para as cabras e para os seres humanos mortos, misturados no mesmo amontoado de corpos.

As cabras. Porquê as cabras?

Ficou a pensar nisto, tentando compreender os motivos de uma destruição tão absurda.

Animais mortos.

Passou à fotografia seguinte. Mostrava a clínica da One Earth, as paredes de blocos de escória chamuscadas e a pilha de corpos queimados em frente da porta. Mas não foram os corpos que lhe chamaram a atenção; foi a cobertura de zinco ondulada, intacta. Maura nem tinha reparado na cobertura. Agora, examinava o que lhe pareciam ser folhas caídas. Viam-se diversas manchas escuras espalhadas pela chapa ondulada. Eram demasiado pequenas para que ela pudesse distinguir algum pormenor.

Levou a fotografia para o escritório e acendeu as luzes. Procurou na secretária e descobriu uma lupa. À luz intensa do candeeiro, examinou a imagem, concentrando-se na cobertura de zinco, perscrutando com a lente todos os pormenores das folhas caídas. De repente, as manchas escuras ganharam uma nova e terrível forma. Maura sentiu um arrepio na espinha. Largou a lupa e ficou petrificada.

Pássaros. Eram pássaros mortos.

Dirigiu-se à cozinha, pegou no telefone e enviou uma mensagem a Rizzoli. Quando o telefone tocou, alguns minutos depois, Maura assustou-se com o som.

Tenho de lhe contar uma coisa disse Maura.

Às seis e meia da manhã?

Eu devia ter contado isto ontem ao agente Dean, antes de ele partir. Mas não quis dizer nada antes de falar com o Victor.

O Victor? Não é o seu ex-marido? -É.

O que tem ele a ver com isto?

Acho que ele sabe o que aconteceu na índia. Naquela aldeia.

Foi o que ele lhe disse?

Por enquanto, não. É por isso que você tem de o intimar para um interrogatório.

 

Estavam sentados no carro de Barry Frost, estacionado mesmo à porta do Hotel Colonnade. Frost e Rizzoli estavam no banco da frente e Maura no de trás.

Deixem-me falar com ele primeiro pediu Maura.

É melhor ficar aqui, doutora disse Frost. Não sabemos como ele irá reagir.

É menos provável que resista se eu falar com ele.

Mas se estiver armado...

Não me fará mal disse Maura. E eu não quero fazer-lhe mal, que fique claro. Vocês não vão prendê-lo.

E se ele não quiser vir?

Ele virá. Maura abriu a porta do carro. Deixem-me tratar do assunto.

Meteram-se no elevador para o quarto piso, partilhando o espaço com um jovem casal provavelmente intrigado com o ar implacável daquele trio. Ladeada por Rizzoli e por Frost, Maura bateu à porta do quarto 426.

Passaram alguns instantes.

Maura preparava-se para bater outra vez quando a porta se abriu. Victor ficou a olhar para ela. Tinha um ar cansado e uma expressão infinitamente triste.

Estava a ver o que irias decidir disse ele. Começava a ter esperança que...

Victor abanou a cabeça.

Victor...

Mas creio que não tenho motivos para ficar admirado. Victor olhou para Rizzoli e Frost, que se mantinham no corredor. Soltou uma gargalhada amarga.

Trouxeram algemas?

Não é necessário algemas respondeu Maura. Eles só querem falar contigo.

Pois, claro. Só querem falar. Devo chamar um advogado?

Isso é contigo.

Não, diz-me tu. Vou precisar de um advogado?

Só tu é que sabes, Victor.

É esse o teste, não é? Só os culpados é que insistem na comparência de um advogado.

Um advogado nunca é uma má ideia.

Então, para te provar alguma coisa, não vou chamar nenhum. Victor olhou para os dois detectives. Tenho de me calçar. Se não houver objecções...

Virou-lhes as costas e aproximou-se do roupeiro. Maura disse a Rizzoli:

Podem esperar aqui fora?

Entrou no quarto atrás de Victor e deixou que a porta se fechasse atrás dela para assegurar um último momento de privacidade. Victor estava sentado numa cadeira a atar as botas. Maura reparou que ele tinha a mala em cima da cama.

Estás a fazer a mala comentou ela.

Tenho uma reserva para o voo das quatro. Mas aposto que estes planos vão ser alterados, não é verdade?

Senti-me obrigada a contar-lhes. Lamento.

Não duvido.

Não tinha alternativa. Victor levantou-se.

Tinhas e escolheste-a. Acho que isso diz tudo. Atravessou o quarto e abriu a porta.

Estou pronto anunciou ele, entregando a Rizzoli um molho de chaves. Calculo que queiram inspeccionar o meu carro alugado. É o Toyota azul que está na garagem, no terceiro piso. Não digam que eu não colaborei.

Coube a Frost acompanhar Victor. Rizzoli puxou o braço de Maura e reteve-a, enquanto os dois homens se dirigiam para o elevador.

É nesta fase que você tem de se afastar disse Rizzoli

Eu é que o entreguei.

É por isso que não pode participar.

Ele foi meu marido.

Exactamente. Você tem de se afastar e deixar-nos tratar do assunto, como sabe.

Maura sabia.

Mesmo assim, desceu com eles. Entrou no seu carro e foi atrás deles até Schroeder Plaza. Avistou Victor no banco traseiro. Só uma vez, enquanto estavam parados num semáforo, é que ele se virou e olhou para ela. Os olhares de ambos cruzaram-se momentaneamente através da janela. Depois, Victor voltou-se para a frente e nunca mais se virou.

Quando Maura conseguiu um lugar para estacionar no parque da sede da Polícia de Boston, já eles tinham levado Victor para cima. Meteu-se no elevador, subiu ao segundo andar e dirigiu-se para a Unidade de Homicídios.

Barry Frost interceptou-a.

Não pode entrar ali, doutora.

Ele já começou a ser interrogado?

A Rizzoli e o Crowe estão a tratar disso.

Fui eu que o entreguei a vocês, com os diabos. Pelo menos deixem-me ouvir o que ele tem a dizer. Posso observar da sala ao lado.

Tem de esperar aqui. Por favor, doutora Isles acrescentou ele com delicadeza.

Maura correspondeu ao olhar compreensivo dele. De todos os detectives da Unidade, Frost era o único que conseguia silenciar os seus protestos apenas com um olhar amável.

Porque não se senta aqui, à minha secretária? alvitrou ele. Eu vou buscar-lhe um café.

Maura sentou-se numa cadeira e observou a fotografia que estava em cima da secretária de Frost. Uma bela loura com rosto de aristocrata. Pouco depois, ele chegou com o café e sentou-se diante dela.

Maura nem tocou no café. Continuou a olhar para a fotografia da mulher de Frost e pensou noutros casamentos. Em finais felizes.

Rizzoli não gostou de Victor Banks.

Ele sentou-se à mesa da sala de interrogatórios, a beber tranquilamente um café, com os ombros descontraídos, numa postura quase natural. Era um homem atraente, e sabia-o. Demasiado atraente. Rizzoli olhou para o casaco de cabedal coçado e para as calças de caqui, e lembrou-se de um Indiana Jones bem instalado na vida, sem o chicote. Era médico e possuía sólidas credenciais humanitárias. Oh, sim, as mulheres não lhe resistiam. Até a doutora Isles, sempre tão fria e controlada na sala de autópsias, perdera a cabeça por ele. E tu traíste-a, filho-da-mãe!

Darren Crowe estava sentado à direita dela. Tinham combinado que seria quase sempre ela a falar. Até aí, Victor mostrara-se frio, mas colaborou, respondendo às perguntas introdutórias com as respostas bruscas de um homem que pretendia despachar-se, que não tinha um respeito especial pela polícia.

Quando ela acabasse de falar, ele havia de respeitá-la.

Então, há quanto tempo está em Boston, Mister Banks?

Doutor Banks. E já lhe disse que estou cá há nove dias. Cheguei no domingo à noite.

Disse que veio a Boston para participar numa reunião?

Com o reitor da Harvard School of Public Health.

E qual o motivo dessa reunião?

A minha organização tem convénio com várias universidades.

A sua organização é a One Earth?

Exactamente. Somos uma instituição de beneficência que presta cuidados médicos. Temos clínicas em todo o mundo. É claro que aceitamos de bom grado todos os estudantes de medicina e de enfermagem que se oferecem para trabalhar nas nossas clínicas. Eles adquirem experiência da vida real no trabalho de campo. Em contrapartida, nós beneficiamos das suas competências.

E quem é que marcou essa reunião em Harvard? Victor encolheu os ombros.

Tratou-se apenas de uma visita de rotina.

Mas quem é que fez o telefonema? Silêncio. Apanhei-te!

Foi você, não foi? perguntou ela. Você telefonou para Harvard há duas semanas. Disse ao reitor que viria a Boston de qualquer maneira e que podia passar pelo gabinete dele.

Eu tinha de manter os meus contactos.

Qual o verdadeiro motivo que o trouxe a Boston, doutor Banks? Não houve outro motivo?

Hesitação.

Houve.

E qual foi?

A minha ex-mulher vive cá. Eu queria vê-la.

Mas não falava com ela há... Há quase três anos.

Claro que ela lhe contou tudo. Para que está a falar comigo?

De repente quer vê-la tão desesperadamente que atravessa o país sem sequer saber se ela irá recebê-lo?

Às vezes, o amor exige que corramos riscos. É uma questão de fé. De acreditarmos em algo que não podemos ver e em que não podemos tocar. Temos apenas de dar o salto. Victor fitou-a. Não temos, detective?

Rizzoli sentiu-se corar e não conseguiu encontrar nada para dizer. Victor invertera a situação, de tal modo que ela sentiu que a conversa incidia sobre ela. O amor exige riscos.

Crowe quebrou o silêncio.

É uma senhora atraente, a sua ex-mulher disse ele. Não com hostilidade, mas com o tom natural e descontraído de um homem que fala com outro, ambos ignorando Rizzoli. Compreendo que tenha feito uma viagem tão grande para compor as coisas. E conseguiu?

As coisas estavam a resultar entre nós.

Pois, eu soube que você ficou em casa dela nos últimos dias. Isso cheira-me a progresso.

Porque não vamos direito à verdade? interpôs Rizzoli.

A verdade? perguntou Victor.

O verdadeiro motivo que o trouxe a Boston.

Porque não me diz você qual a resposta que pretende sacar-me, que eu dou-lha? Poupava-nos tempo.

Rizzoli pôs um dossiê em cima da mesa.

Olhe para isto.

Victor abriu o dossiê e verificou que eram as fotografias da aldeia destruída.

Já as vi disse, fechando o dossiê. A Maura mostrou-mas.

Não parece muito interessado.

Não são propriamente imagens agradáveis.

Nem têm de ser. Veja outra vez. Rizzoli abriu o dossiê, tirou uma das fotografias e pespegou-a em cima da mesa. Sobretudo esta.

Victor olhou para Crowe, como se procurasse um aliado contra esta mulher desagradável, mas o detective limitou-se a encolher os ombros.

A fotografia, doutor Banks disse Rizzoli.

O que devo eu dizer exactamente acerca dela?

Que existia uma clínica da One Earth naquela aldeia.

Isso é assim tão surpreendente? Vamos para onde as pessoas necessitam de nós. O que significa que por vezes nos encontramosem situações desconfortáveis ou mesmo perigosas. Victor continuava a não olhar para a fotografia, a evitar a imagem repugnante. É o preço que pagamos por desenvolver trabalho humanitário. Corremos os mesmos riscos que os nossos pacientes.

O que aconteceu naquela aldeia?

Acho que isso é bastante óbvio.

Olhe para a fotografia.

Está tudo no relatório da polícia, tenho a certeza.

Olhe para o raio da fotografia! Diga-me o que vê. Victor olhou para a fotografia. Pouco depois, respondeu:

Corpos queimados. Em frente da nossa clínica.

E como é que eles morreram?

Disseram-me que foi um massacre.

Tem a certeza?

O olhar de Victor transferiu-se para ela.

Eu não estava lá, detective. Estava em casa, em São Francisco, quando recebi o telefonema da índia. Portanto, não conte comigo para lhe dar pormenores.

Como sabe que foi um massacre?

Era o que dizia o relatório que recebemos da polícia de Andhra Pradesh. Que foi um ataque com motivações políticas ou religiosas e que não havia testemunhas, visto que a aldeia era relativamente isolada. As pessoas tendem a evitar contactos com os leprosos.

Mas queimaram os corpos. Não acha isso estranho?

Estranho, porquê?

Os corpos foram arrastados, amontoados e só depois queimados. Na sua opinião, ninguém queria tocar num leproso. Então, porque empilharam os corpos?

Para ser mais eficiente, suponho. Queimá-los em grupos. Eficiente?

Estou a tentar encarar isto com lógica.

E qual é o motivo lógico para terem queimado os corpos?

Raiva? Vandalismo? Não sei.

Aquele trabalho todo, para deslocar os cadáveres. Transportar latas de gasolina. Empilhar a lenha. E sempre sob a ameaça de serem descobertos.

Onde quer chegar?

Estou a dizer que os corpos tiveram de ser queimados. Para destruir as provas.

As provas de quê? É óbvio que foi um massacre. O fogo não poderia esconder tal coisa.

Mas o fogo poderia esconder o facto de não ter sido um massacre.

Rizzoli não se admirou quando ele desviou o olhar. De repente, Victor tinha relutância em encará-la.

Não sei porque me faz estas perguntas disse ele. Porque não acredita no relatório da polícia?

Porque ou eles se enganaram ou foram subornados.

Você sabe, não é verdade? Rizzoli bateu ao de leve na fotografia.

Olhe outra vez, doutor Banks.

Prefiro não o fazer.

O que vemos aqui não são apenas cadáveres humanos queimados. As cabras foram chacinadas e também foram queimadas. E as galinhas. Que desperdício! Toda aquela carne tão nutritiva! Porquê matar cabras e galinhas e depois queimá-las?

Victor soltou uma gargalhada sarcástica.

Porque também poderiam ter lepra? Sei lá!

Isso não explica o que aconteceu aos pássaros. Victor abanou a cabeça.

O quê?

Rizzoli apontou para a cobertura de zinco.

Aposto que nem reparou nisto. Estas manchas escuras aqui em cima. À primeira vista, parecem folhas caídas. Mas não acha estranho que haja folhas aqui, onde-aparentemente nem há árvores?

Victor não disse nada. Ficou muito quieto, de cabeça baixa para ela não lhe ver a cara. Só pela linguagem corporal, Rizzoli percebeu que ele se preparava para o inevitável.

Não são folhas, doutor Banks. São pássaros mortos. Uma espécie de corvos, suponho. Há três caídos neste canto da fotografia. Como explica isso?

Victor encolheu os ombros, com um ar indiferente.

Podiam ter sido alvejados, acho eu.

A polícia não mencionou quaisquer indícios de utilização de armas de fogo. Não havia orifícios de balas no edifício, nem foram recuperados cartuchos. Não se encontraram fragmentos de bala em nenhuma das vítimas. Segundo a polícia, vários cadáveres apresentavam fracturas no crânio, por conseguinte, concluiu-se que as vítimas foram todas mortas à paulada durante o sono.

É também o que eu concluo.

Então como explica os pássaros? Com certeza que estes corvos não ficaram no telhado à espera que alguém subisse e lhes desse com um pau na cabeça.

Não sei aonde quer chegar. O que têm os pássaros mortos a ver com isto?

Tudo. Eles não foram mortos nem à paulada nem a tiro. Victor resfolegou.

Por inalação de fumo?

Quando a aldeia foi incendiada, os pássaros já estavam mortos. Estava tudo morto. Os pássaros, o gado, as pessoas. Nada se mexia, nada respirava. Era uma zona esterilizada. Todas as formas de vida foram eliminadas.

Victor não reagiu.

Rizzoli inclinou-se de modo a olhá-lo bem de frente.

Quanto é que a Octagon Chemicals doou à sua organização este ano, doutor Banks?

Victor levou o copo de água à boca e bebeu, sem pressa.

Quanto?

Foi da ordem das... Dezenas de milhões. Eu queria mais água, se não se importa pediu, olhando para Crowe.

Dezenas de milhões? Porque não diz que foram oitenta e cinco milhões de dólares? perguntou Rizzoli.

Talvez fosse isso.

No ano passado, não deu nada. O que mudou entretanto? A Octagon desenvolveu de repente uma consciência humanitária?

Tem de perguntar-lhe.

É a si que pergunto.

Eu queria mais água.

Crowe suspirou, pegou no copo vazio e saiu da sala. Rizzoli e Victor ficaram sozinhos.

Rizzoli aproximou-se mais dele, um ataque frontal à zona de segurança de Victor.

É tudo por causa do dinheiro, não é? disse ela. Oitenta e cinco milhões de dólares é uma pipa de massa. A Octagon devia ter muito a perder. E você, obviamente, tinha muito a ganhar, colaborando com eles.

Colaborando em quê?

No silêncio. Guardando o segredo deles.

Rizzoli pegou noutro dossiê e atirou-o para a frente dele.

Era uma fábrica de pesticidas. A pouco mais de dois quilómetros da aldeia de Bara, a Octagon armazenava toneladas de isocianato de metilo na sua fábrica. Esta foi encerrada no ano passado, sabia? Pouco depois de a aldeia de Bara ter sido atacada, a Octagon abandonou a fábrica. Despediu todo o pessoal e arrasou as instalações. Medo de um ataque terrorista foi a explicação oficial. Mas você não acredita nisso, pois não?

Não tenho mais nada a dizer.

Não foi um massacre que destruiu aquela aldeia. Não foi um ataque terrorista.

Rizzoli calou-se e depois acrescentou serenamente:

Foi uma catástrofe industrial.

 

Victor nem se mexeu. Nem olhou para Rizzoli.

"Bhopal" diz-lhe alguma coisa? perguntou ela. Ele demorou a responder.

Claro que sim disse ele, em voz baixa.

Conte-me o que sabe acerca do assunto.

Bhopal, na índia. O acidente da Union Carbide em mil novecentos e oitenta e quatro.

Sabe quantas pessoas morreram nesse acidente?

Foram... Milhares, creio eu.

Seis mil pessoas precisou ela. A fábrica de pesticidas da Union Carbide libertou acidentalmente uma nuvem tóxica que cobriu a cidade de Bhopal durante a noite. Na manhã seguinte, seis mil pessoas tinham morrido. Houve centenas de milhares de feridos. Com tantos sobreviventes, tantas testemunhas, era impossível esconder a verdade. Não foi possível ocultá-la. Rizzoli olhou para a fotografia. Como em Bara.

Só posso repetir o que já disse. Eu não estava lá. Não vi.

Mas aposto que calcula o que aconteceu. Nós só estávamos à espera que a Octagon fornecesse uma lista do seus empregados naquela fábrica. Um deles acabará por falar. Um deles acabará por confirmar. É o turno da noite, e um empregado sobrecarregado de trabalho tem um descuido. Ou adormece, não acciona o interruptor e pufl Liberta-se uma nuvem de gás venenoso que é levada pelo vento. Rizzoli calou-se. Sabe o que a exposição aguda ao isocianato de metilo provoca no corpo humano, doutor Banks?

Ele sabia, evidentemente. Tinha que saber. Mas não respondeu.

É corrosivo, basta tocar-lhe para ficarmos com a pele queimada. Portanto, imagine o que ele nos faz ao revestimento das vias respiratórias, aos pulmões, quando o inspiramos. Começamos a tossir e temos dores de garganta. Sentimo-nos atordoados. Depois, não conseguimos respirar, porque o gás está literalmente a destruir-nos as mucosas. O fluido penetra e inunda-nos os pulmões. Chama-se edema pulmonar. Morremos afogados nas nossas próprias secreções, doutor Banks. Mas tenho a certeza que sabe isto, pois é médico. Victor confirmou, com um ar derrotado.

E a Octagon também sabia. Eles não devem ter levado muito tempo a perceber que tinham cometido um erro terrível. Sabiam que o isocianato de metilo é mais denso que o ar. Que se acumula em zonas baixas. E apressam-se a ir ver o que aconteceu à aldeia de leprosos do vale, que fica na direcção do vento. E o que encontram é uma zona de morte. Pessoas, animais... Nada sobreviveu. Olham para os cadáveres de quase cem pessoas e sabem que são responsáveis por essas mortes. Sabem que estão em apuros. Certamente serão acusados de crime e talvez presos. O que acha que eles fizeram a seguir, doutor Banks?

Não sei.

Entraram em pânico, claro está. Você não entraria? Quiseram afastar o problema. Quiseram que ele desaparecesse. Mas o que haviam de fazer a todas aquelas provas? Não é possível esconder uma centena de corpos. Não é possível fazer desaparecer uma aldeia. Além disso, havia duas americanas entre os mortos, duas enfermeiras. As mortes delas não seriam ignoradas.

Rizzoli espalhou as fotografias pela mesa, para que se vissem todas ao mesmo tempo. Três imagens. Três montes de cadáveres.

Queimaram-nas disse ela. Deitaram mãos à obra para esconder os seus erros. É possível que tenham mesmo fracturado alguns crânios para confundir os investigadores. O que aconteceu em Bara começou por não ser um crime, doutor Banks. Mas, nessa noite, transformou-se num crime.

Victor empurrou a cadeira.

E eu estou preso, detective? É que gostava de ir-me embora neste momento. Tenho de apanhar um avião.

Há um ano que você sabia disto, não é verdade? Mas calou-se, porque a Octagon lhe pagou. Um desastre como este teria custado centenas de milhões de dólares em multas. Além dos processos judiciais e dos prejuízos, já para não falar das acusações. A opção mais fácil foi comprar o seu silêncio.

Está a falar com a pessoa errada. Continuo a dizer-lhe que não estive lá.

Mas soube o que se passou.

Não sou o único.

Quem é que lhe contou, doutor Banks? Como é que soube? Rizzoli inclinou-se mais, fitando-o do outro lado da mesa. Porque não nos diz a verdade, e talvez ainda tenha tempo de apanhar esse avião para São Francisco?

Não respondeu logo e ficou a olhar para as fotografias que tinha à sua frente.

Ela telefonou-me. De Hyderabad disse ele por fim.

A irmã Ursula.

Victor fez um sinal afirmativo.

Dois dias depois do... Acontecimento. Nessa altura, já eu sabia pelas autoridades indianas que tinha havido um massacre na aldeia. Que duas das nossas enfermeiras tinham morrido naquilo que eles julgavam ser um ataque terrorista.

Não foi isso que a irmã Ursula lhe disse?

Não, mas eu não sabia o que havia de fazer com o telefonema dela. Parecia assustada e agitada. O médico da fábrica tinha-lhe dado uns tranquilizantes, e creio que os comprimidos aumentavam ainda mais a sua confusão.

O que lhe disse ela exactamente?

Que algo estava a correr mal na investigação. Que as pessoas não estavam a falar verdade. Que tinha visto contentores de gasolina vazios num dos camiões da Octagon.

Ela falou com a polícia?

Tem de compreender a situação em que ela se encontrava. Quando chegou a Bara nessa manhã, havia corpos queimados em toda a parte, os corpos das pessoas que ela conhecia. Ela foi a única sobrevivente e estava rodeada por empregados da fábrica. Depois, chegou a polícia, e ela chamou um dos agentes de parte e apontou para os contentores de gasolina. Partiu do princípio que iriam investigar o assunto.

Mas não aconteceu nada.

Foi então que ela se assustou. Foi então que começou a duvidar da polícia. Só quando o padre Doolin a levou de carro a Hyderabad é que se sentiu segura e me telefonou.

E o que fez você? Depois desse telefonema?

O que podia eu fazer? Eu estava do outro lado do mundo.

Ora, doutor Banks. Não posso acreditar que tenha ficado sentado no seu gabinete de São Francisco e deixado cair o assunto. Você não é o tipo de homem que, sabendo de uma bomba como essa, não fizesse nada.

O que havia eu de fazer?

O que acabou por fazer.

E o que foi?

Basta verificar o registo dos seus telefonemas. Deve lá estar, algures. A chamada que fez para Cincinnati. Para a sede da Octagon.

Naturalmente que lhes telefonei! Eu tinha acabado de saber que os empregados deles tinham incendiado uma aldeia, com duas das minhas voluntárias.

Com quem falou na Octagon?

Com um homem. Um vice-presidente executivo.

Lembra-se do nome dele?

Não.

Não foi Howard Redfield?

Não me lembro.

O que lhe disse? Victor olhou para a porta.

Porque está a prolongar tanto esta conversa?

O que lhe disse, doutor Banks? Victor suspirou.

Disse-lhe que corriam boatos acerca do massacre de Bara. Que os empregados da fábrica da Octagon talvez estivessem implicados. Ele disse que desconhecia o assunto e prometeu averiguar.

O que aconteceu depois?

Cerca de uma hora depois, recebi um telefonema do presidente do conselho de administração da Octagon, que queria saber a origem desses boatos.

Foi então que ele ofereceu à sua instituição um suborno de milhões de dólares?

A coisa não foi apresentada dessa maneira!

Não posso censurá-lo por ter aceitado o acordo com a Octagon, doutor Banks disse Rizzoli. Afinal, o mal já estava feito. Não é possível ressuscitar os mortos e você talvez pudesse servir-se da tragédia para beneficiar mais gente. Rizzoli baixou a voz, conferindo-lhe um tom quase íntimo. Foi esse o seu ponto de vista? Em vez de centenas de milhões de dólares irem parar aos bolsos dos advogados, porque não fazer bom uso do dinheiro? Faz todo o sentido.

As palavras são suas, detective, não minhas.

E como é que eles compraram o silêncio da irmã Ursula?

Teria de fazer essa pergunta à arquidiocese de Boston. Estou certo que também entraram em acordo com eles.

Rizzoli calou-se, pensando de súbito na Abadia de Graystones. A cobertura nova, as obras de remodelação. Como é que uma irmandade pobre podia manter e restaurar um edifício tão valioso? Lembrou-se do que Mary Clement dissera: que lhes tinha valido um donativo generoso.

A porta abriu-se e Crowe entrou com um copo de água, que pousou em cima da mesa. Nervoso, Victor apressou-se a beber um gole. O homem que começara a falar com tanta calma, e até com insolência, parecia agora desfeito, desprovido de autoconfiança.

Chegara o momento de lhe extorquir o resto da verdade.

Rizzoli aproximou-se ainda mais dele, pronta a desferir o golpe final.

Qual o verdadeiro motivo que o trouxe a Boston, doutor Banks?

Já lhe disse. Eu queria ver a Maura...

A Octagon pediu-lhe que viesse. Não é verdade? Ele bebeu mais um gole de água.

Não é verdade?

Eles estavam preocupados.

Com quê?

Eles estão na mira de uma investigação da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. Não tem nada a ver com o que aconteceu na índia. Mas, dada a dimensão do donativo que a One Earth recebeu, a Octagon receava que isso pudesse chamar a atenção da Comissão. Que eles fizessem perguntas. Eles queriam certificar-se de que leríamos todos pela mesma cartilha, se fôssemos interrogados.

Pediram-lhe que mentisse?

Não. Apenas que não falasse. Mais nada... Apenas que não... Me referisse à índia.

E se fosse chamado a depor? Se lhe fizessem directamente a pergunta? Teria dito a verdade, doutor Banks? Que recebeu dinheiro para ajudar a encobrir um crime?

Não estamos a falar de um crime. Estamos a falar de um acidente industrial.

Foi por isso que veio a Boston? Para convencer Ursula a manter também o silêncio? Para manter uma frente unida de mentiras?

Não são mentiras. É silêncio. Há uma diferença.

É então que tudo se complica. Um vice-presidente executivo da Octagon chamado Howard Redfield resolve dar com a língua nos dentes e falar com o Departamento de Justiça. Não só o faz como arranja uma testemunha indiana. Uma mulher que ele trouxe da índia para depor.

Victor levantou a cabeça e fitou-a, deveras surpreendido.

Que testemunha?

Ela esteve lá, em Bara. Foi um dos leprosos que sobreviveu. Está admirado?

Desconheço a existência de testemunhas.

Ela viu o que aconteceu na aldeia. Viu aqueles homens da fábrica a empilharem os corpos e a acenderem as fogueiras. Viu-os a esmagarem a cabeça dos amigos e dos parentes. O que ela viu, o que ela sabia, podia deixar a Octagon de cócoras.

Não sei nada disso. Ninguém me disse que havia uma sobrevivente.

Viria tudo ao de cima. O acidente, a operação de disfarce. Os subornos. Talvez você estivesse disposto a mentir. Mas, e a irmã Ursula? Como convencer uma freira a mentir sob juramento? Esse era o problema, não é verdade? Uma freira honesta podia deitar tudo a perder. Se ela abrisse a boca, lá fugiam os seus oitenta e cinco milhões de dólares. E lá caía o São Victor do pedestal perante os olhares de todos.

Acho que fico por aqui. Tenho de apanhar o avião disse Victor, levantando-se.

Você teve a oportunidade e o motivo.

Motivo? Victor deu uma gargalhada incrédula. Para assassinar uma freira. Vocês também podiam acusar a arquidiocese, porque tenho a certeza de que eles foram muito bem pagos.

O que lhe prometeu a Octagon? Ainda mais dinheiro, se você viesse a Boston e lhes resolvesse o problema?

Primeiro, você acusa-me de homicídio. Agora afirma que a Octagon me contratou? Imagina um executivo a correr o risco de ser acusado de homicídio só para encobrir um acidente industrial? Victor abanou a cabeça. Nenhum americano foi para a cadeia por causa de Bhopal. E nenhum americano irá para a cadeia por causa de Bara. E agora posso ir-me embora, ou não?

Rizzoli deitou um olhar interrogador a Crowe, que reagiu com um gesto descoroçoado de concordância, uma reacção que lhe deu a entender que ele já tivera notícias da Unidade de Peritagem. Enquanto ela interrogava Victor, a UP revistara o carro alugado. Era óbvio que não tinha encontrado nada.

Não dispunham de elementos suficientes para o prender.

Por agora, pode ir, doutor Banks. Mas temos de conhecer exactamente o seu paradeiro.

Volto para casa, para São Francisco. Têm a minha morada. Victor encaminhou-se para a porta. Parou e virou-se para ela. Antes de me ir embora, quero que saiba uma coisa a meu respeito.

O que é, doutor Banks?

Eu sou médico. Lembre-se disso, detective. Eu salvo vidas. Não as tiro.

Maura viu-o sair da sala de interrogatórios. Victor olhou em frente e nem sequer virou a cara ao passar pela secretária em que ela estava.

Maura levantou-se da cadeira.

Victor?

Ele parou, mas não se virou para ela, como se não suportasse encará-la.

O que aconteceu? perguntou ela.

O que achas que aconteceu? Contei-lhes o que sabia. Disse a verdade.

Foi só o que eu te pedi. Nada mais.

Agora tenho de ir apanhar o avião.

O telemóvel de Maura começou a tocar. Ela olhou para o aparelho, com vontade de o deitar fora.

É melhor atenderes disse ele, com um tom de irritação na voz. Talvez algum cadáver precise de ti.

Os mortos merecem a nossa atenção.

Essa é a diferença entre ti e mim, sabes? Tu cuidas dos mortos. Eu cuido dos vivos.

Maura viu-o afastar-se. Victor não olhou para trás nem sequer uma vez.

O telemóvel dela deixara de tocar.

Maura abriu-o e viu que a chamada era do Hospital St. Francis. Queria saber o resultado do segundo electroencefalograma de Ursula, mas nesse momento não estava em condições de lidar com o assunto; ainda não absorvera o impacto das últimas palavras de Victor.

Rizzoli saiu da sala de interrogatórios e aproximou-se dela, com um ar comprometido.

Desculpe, mas não podíamos deixá-la entrar. Compreende porquê, não é verdade?

Não, não compreendo. Maura guardou o telefone na carteira e fitou Rizzoli. Fui eu que lho entreguei. Fui eu que lhe dei a resposta.

E ele confirmou tudo. O cenário de Bhopal. Você tinha razão acerca dos pássaros mortos.

Mas você mandou-me sair da sala. Como se não confiasse em mim.

Eu estava a tentar protegê-la.

De quê? Da verdade? Do facto de ele se ter servido de mim? Maura soltou uma gargalhada amarga e preparou-se para sair. Isso já eu sabia.

Maura dirigiu-se para o Hospital St. Francis no meio de um nevão, com as mãos calmas e firmes no volante. A Rainha dos Mortos ia a caminho para reclamar mais um súbdito. Quando entrou na garagem, estava pronta a representar o papel que sempre desempenhara tão bem, pronta para usar a única máscara que ela permitia que o público visse.

Saiu do Lexus com o casaco preto a arrastar no chão e atravessou a garagem em direcção ao elevador. As lâmpadas de sódio envolviam os carros numa luz misteriosa, como se ela atravessasse uma névoa alaranjada. Como se, ao esfregar os olhos, a luz desaparecesse. Não viu ninguém e ouviu apenas o eco dos seus próprios passos no cimento.

No átrio do hospital, passou pela árvore de Natal, que cintilava com lâmpadas de várias cores, e pela secretária das voluntárias, onde se encontrava uma mulher de idade com um capuz vermelho de Pai Natal elegantemente encarrapitado no cabelo grisalho. Dos altifalantes saía o som de "Joy to the World".

Até na UCI reinava a boa disposição característica da época, o que não deixava de ser irónico. O balcão das enfermeiras estava enfeitado com grinaldas de pinheiro artificial e a recepcionista usava pequenas bolas douradas de Natal penduradas nas orelhas.

Sou a doutora Isles, do Instituto de Medicina Legal. disse Maura. O doutor Yuen está cá?

Ele acabou de ser chamado para uma cirurgia de emergência. Pediu ao doutor Sutcliffe que viesse desligar o ventilador.

Tiraram uma fotocópia do exame para eu ver?

Está tudo pronto para si. A recepcionista apontou para um envelope grosso que estava em cima do balcão e onde se lia "Médico-Legista", escrito à mão.

Obrigada.

Maura abriu o envelope e tirou a fotocópia do gráfico do exame. A triste acumulação de sintomas demonstrava que a irmã Ursula não tinha salvação: os dois electroencefalogramas revelavam uma ausência total de actividade cerebral e, numa nota manuscrita, o neurocirurgião, Dr. Yuen, admitia a derrota:

A paciente continua a não reagir à dor profunda e não respira espontaneamente. As pupilas permanecem em posição intermédia e fixas. A repetição do EEG não revela actividade cerebral. As enzimas cardíacas confirmam enfarte do miocárdio. O Dr. Sutcliffe deverá informar a família sobre o estado da paciente.

Avaliação: Coma irreversível resultante de anoxia cerebral prolongada após paragem cardíaca recente.

Por último, Maura, verificou os resultados das análises, colunas impecavelmente impressas com as contagens de glóbulos e os valores relativos ao sangue e à urina. Era uma ironia, pensou ela, que alguém morresse apesar de quase todas as análises ao sangue apresentarem resultados normais.

Maura dirigiu-se para o Compartimento 10, onde lavavam a doente com uma esponja pela última vez. Aos pés da cama, Maura viu a enfermeira a afastar os lençóis e a despir a camisa a Ursula, revelando o corpo não de uma asceta, mas de uma mulher que gostava de comer, com seios generosos descaídos e ancas descoradas, pesadas e cheias de celulite. Em vida, devia ter um aspecto formidável, e a sua figura corpulenta devia ser ainda mais imponente devido ao hábito volumoso. Agora, sem o hábito, era igual a qualquer outra doente. A morte não discriminava; no fim, santos e pecadores eram todos iguais.

A enfermeira torceu a esponja e passou-a pelo tórax da doente, deixando a pele lisa e brilhante. Em seguida, começou a lavar-lhe as pernas, dobrando-as pelos joelhos para limpar por baixo dos tornozelos. Nas canelas viam-se antigas cicatrizes resultantes de mordeduras de insectos infectados. Recordações de uma vida passada no estrangeiro. Terminada a sua tarefa, a enfermeira pegou na bacia com água e saiu do compartimento, deixando Maura sozinha com a doente.

O que sabias, Ursula? O que nos podias ter contado?

Doutora Isles?

Maura virou-se e deparou com o Dr. Sutcliffe atrás dela. O olhar dele era muito mais circunspecto que da primeira vez em que se tinham encontrado. Já não era o mesmo médico hippie simpático de rabo-de-cavalo.

Não sabia que estava aqui disse ele.

O doutor Yuen chamou-me. O nosso Instituto vai assumir a custódia do corpo.

Porquê? A causa da morte é bastante evidente. Basta olhar para o electrocardiograma.

É apenas uma questão burocrática. Assumimos a custódia sempre que há um crime envolvido.

Bem, creio que é um desperdício do dinheiro dos contribuintes, neste caso.

Maura ignorou o comentário e olhou para Ursula.

Calculo que tenha falado com a família sobre a intenção de lhe retirar o apoio vital.

O sobrinho concordou. Estamos só à espera do padre. As irmãs do convento pediram que o padre Brophy estivesse presente.

Maura observou o peito da doente a subir e a descer ao ritmo do ventilador. O coração continuava a bater e os órgãos a funcionar. Se alguém retirasse um tubo de sangue de uma veia de Ursula e o enviasse para o laboratório, nenhuma análise, nenhum daqueles aparelhos sofisticados revelaria que a alma daquela mulher já abandonara o corpo.

Gostaria que me enviasse os felatórios finais da morte para o Instituto.

Será o doutor Yuen a ditá-los. Dar-lhe-ei o recado.

E também os últimos relatórios laboratoriais.

Tudo isso já deve estar na ficha clínica.

Não havia nenhum relatório da despistagem toxicológica. O teste foi feito, não foi?

Deve ter sido. Vou confirmar junto do laboratório e digo-lhe os resultados pelo telefone.

Tem de ser o laboratório a enviá-los directamente para mim. Se o teste não tiver sido feito, fá-lo-emos na morgue.

Fazem despistagens toxicológicas a toda a gente? perguntou ele, abanando a cabeça. Mais um desperdício do dinheiro dos contribuintes.

Só as fazemos quando há determinados indícios. Estou a pensar na urticária que vi na noite em que ela sofreu o ataque cardíaco.

Vou pedir ao doutor Bristol que faça a despistagem toxicológica quando a autopsiar.

Julguei que era você que fazia a autópsia.

Não. Vou entregar este caso a um dos meus colegas. Se tiver perguntas a fazer depois do Natal, fale com o doutor Abe Bristol.

Maura ficou aliviada por ele não lhe ter perguntado por que motivo não era ela a fazer a autópsia. O que lhe teria respondido? O meu ex-marido é agora um dos suspeitos neste caso. Não posso permitir que alguém faça o mínimo reparo quanto a uma eventual falha da minha parte.

O padre está aqui. Creio que chegou a hora disse Sutcliffe. Maura virou-se e sentiu-se corar ao ver o padre Brophy à porta.

Os olhares de ambos cruzaram-se com uma familiaridade instantânea; eram os olhares de duas pessoas que, naquele momento de tristeza, tinham reconhecido subitamente um lampejo especial entre si. Maura baixou a cabeça quando ele entrou no compartimento e retirou-se, tal como Sutcliffe, para permitir que o padre administrasse a extrema-unção.

Pela janela do compartimento, viu o padre Brophy a debruçar-se sobre a cama de Ursula, a rezar e a absolver a freira dos seus pecados. E os meus padre?, interrogou-se ela, contemplando o perfil impressionante do sacerdote. Ficaria escandalizado se soubesse o que penso e o que sinto por si? Absolver-me-ia e perdoaria as minhas fraquezas?

O padre Brophy ungiu a testa de Ursula e fez o sinal da cruz com a mão. Depois, levantou a cabeça.

Chegara o momento de Ursula morrer.

O padre saiu e ficou junto de Maura, do lado de fora da janela. Sutcliffe entrou, acompanhado por uma enfermeira.

O que aconteceu a seguir foi de uma naturalidade perturbante. Apenas o estalido de alguns interruptores. O ventilador deixou de se ouvir e os foles imobilizaram-se com um zumbido. A enfermeira virou-se para o monitor quando o ritmo cardíaco começou a abrandar.

Maura sentiu o padre Brophy a mexer-se a seu lado, como que a lembrar-lhe que ele estava ali, no caso de ela precisar de conforto. No entanto, não era conforto que ele lhe inspirava, mas confusão. Atracção. Maura continuava a acompanhar o drama que se desenrolava do outro lado da janela e a pensar: são sempre os homens errados. Porque me sinto atraída por homens que não posso ou não devo ter?

No monitor, surgiu o primeiro batimento vacilante, e depois outro. Com falta de oxigénio, o coração continuou a lutar, embora as suas células estivessem a morrer. Seguiram-se outros batimentos descontrolados, que deterioraram os últimos espasmos de fibrilação ventricular. Maura teve de reprimir o instinto de reagir, interiorizado por muitos anos de prática clínica. Aquela arritmia não seria tratada; aquele coração não seria salvo.

Por fim, o traçado ficou resumido a uma linha recta.

Maura deixou-se ficar junto do compartimento, a observar o que se passava depois da morte de Ursula. O pessoal não perdeu tempo a chorar nem a reflectir. O Dr. Sutcliffe encostou o estetoscópio ao peito de Ursula, abanou a cabeça e saiu do compartimento. A enfermeira desligou o monitor, os cabos e os tubos intravenosos. A equipa de resgate da morgue já vinha a caminho.

Maura concluíra a sua tarefa.

Deixou o padre Brophy no compartimento e regressou ao balcão das enfermeiras.

Há mais uma coisa que me esqueci de pedir disse ela à recepcionista.

Sim?

Para os nossos ficheiros, precisamos de um contacto do parente mais próximo. O único número de telefone que vi na ficha foi o do convento. Creio que ela tem um sobrinho. Tem o número do telefone dele?

Doutora Isles?

Virou-se e viu o padre Brophy atrás dela, a abotoar o casaco.

Desculpe, eu não queria intrometer-me, mas posso dar uma ajuda. Temos todos os contactos de família das irmãs no escritório da nossa paróquia. Vou procurar o número e telefono-lhe mais tarde.

Fico-lhe muito grata.

Maura pegou na fotocópia da ficha clínica e encaminhou-se para a saída.

Ah, doutora Isles? Ela olhou para trás.

Sim?

Sei que talvez não seja o momento mais adequado, mas gostaria de lhe desejar um Feliz Natal disse, sorrindo.

Feliz Natal também para si, padre.

Irá visitar-me, um dia? Só para dizer olá?

Vou tentar respondeu ela, ciente de que estava a mentir por delicadeza. De que a coisa mais sensata que tinha a fazer era afastar-se deste homem e nunca mais olhar para trás.

E foi o que fez.

Ao sair do hospital, a lufada de ar frio apanhou-a desprevenida. Encostou a ficha clínica ao corpo e preparou-se para o embate com o vento gelado. Nessa noite sagrada, estava sozinha e a sua única companhia era o maço de documentos que levava na mão. Atravessou a garagem, sem ver mais ninguém, e ouviu o som dos seus passos a ecoar no cimento.

Estugou o passo. Parou duas vezes para olhar para trás e confirmar que ninguém a seguia. Quando chegou ao carro, ia a arfar. Tenho visto demasiado a morte à minha frente. Agora sinto-a em toda a parte.

Entrou no carro e trancou as portas.

Feliz Natal, doutora Isles. Colhes o que semeias e esta noite colheste solidão.

Ao sair do parque de estacionamento do hospital, teve de semicerrar os olhos para se proteger de dois faróis cuja luz se projectava no seu espelho retrovisor. Vinha um carro mesmo atrás dela. Seria o padre Brophy? E para onde iria ele na véspera de Natal? Para a sua residência paroquial? Ou ficaria na igreja a acompanhar todas as ovelhas solitárias do seu rebanho que pudessem aparecer por lá?

O telemóvel começou a tocar.

Maura tirou-o da carteira e abriu-o.

Doutora Isles.

Olá, Maura disse o colega, Abe Bristol. Fiquei admirado quando soube que me vai obrigar a sair do Hospital St. Francis.

Não posso fazer esta autópsia, Abe.

E passa-a para mim na véspera de Natal. Que simpatia a sua!

Desculpe. Bem sabe que não costumo passar a bola.

Esta é a freira de quem tenho ouvido falar?

É. Mas não há urgência nenhuma. A autópsia pode esperar até depois do Natal. Ela tem estado hospitalizada desde o ataque e foi-lhe retirado o apoio vital há pouco. Foi submetida a uma extensa neurocirurgia.

Então, o exame intracraniano não será muito útil.

Não, porque há alterações pós-operatórias.

Qual foi a causa da morte?

Entrou em coma ao princípio da manhã de ontem, devido a um enfarte do miocárdio. Como conheço o caso, já tratei dos preliminares. Tenho uma fotocópia da ficha clínica e levo-a depois de amanhã.

Posso perguntar porque não faz esta autópsia?

Não creio que o meu nome deva figurar no relatório.

Porquê?

Maura não respondeu.

Maura, porque está a afastar-se deste caso?

Por motivos pessoais.

Conhecia a doente?

Não.

Então, o que há?

Eu conheço um dos suspeitos. Fui casada com ele respondeu ela.

Desligou, atirou o telemóvel para cima do banco e concentrou-se no caminho para casa. No regresso à segurança.

Quando entrou na sua rua, estava a nevar, e os flocos de neve pareciam bolas de algodão. Era um espectáculo mágico, aquela espessa cortina de brancura que ia atapetando os espaços relvados em frente das casas. A tranquilidade de uma noite sagrada.

Maura acendeu a lareira e preparou uma refeição simples: sopa de tomate e uma tosta de queijo. Encheu um copo de vinho da Califórnia e levou-o para a sala, onde as lâmpadas da árvore de Natal acendiam e apagavam. Mas nem conseguiu comer o pouco que tinha à sua frente. Afastou o tabuleiro para o lado e bebeu o vinho até à última gota, sem tirar os olhos da lareira. Dominou o impulso de pegar no telefone e tentar falar com Victor. Teria ele apanhado o tal avião para São Francisco? Nem sequer sabia onde ele estava nessa noite, nem o que lhe diria. Traímo-nos um ao outro, pensou ela; não há amor que consiga sobreviver a tal coisa.

Maura levantou-se, apagou as luzes e foi para a cama.

 

Há quase duas horas que um tacho com molho estava ao lume, e o odor do tomate, do alho e da carne guisada sobrepunha-se ao aroma mais suave do peru de nove quilos que se encontrava agora, bem tostado e brilhante, numa assadeira em cima da bancada. Jane estava sentada à mesa da cozinha da mãe, a juntar ovos batidos e manteira derretida a uma taça cheia de batatas cozidas que acabara de reduzir a puré. Em sua casa, raramente tinha tempo para cozinhar, e as suas refeições eram constituídas por aquilo que conseguia desenterrar do armário ou do congelador. Mas ali, na cozinha da mãe, nada se fazia à pressa. Cozinhar era um acto reverencial, uma homenagem à própria comida, por muito modestos que fossem os ingredientes. Cada fase, cortar, mexer ou regar, fazia parte de um ritual solene que culminava com o cortejo de pratos a serem levados para a mesa, onde eram recebidos com os devidos suspiros de apreço. Na cozinha de Angela, tudo levava o tempo que fosse necessário.

E por isso é que Jane juntava lentamente a farinha ao puré de batata e aos ovos batidos, misturando tudo com as mãos. Agradava-lhe o trabalhar ritmado da massa quente e aceitava serenamente que o processo não podia ser acelerado. Não aceitava muitas coisas que faziam parte da sua vida. Gastava demasiada energia a tentar ser mais rápida, melhor, mais eficiente. Sabia-lhe bem, pelo menos uma vez, render-se às exigências inflexíveis da preparação de gnocchi.

Polvilhou a massa com mais farinha e continuou a tendê-la, concentrando-se na sua textura sedosa. Na sala ao lado, o local de reunião dos homens, a televisão estava sintonizada na ESPN no volume máximo. Mas aqui, protegida pela porta fechada da algazarra da multidão nos estádios e da tagarelice dos jornalistas desportivos, trabalhava serenamente a massa, que, entretanto, já adquirira elasticidade. Só se distraiu quando um dos gémeos de Irene entrou na cozinha a cambalear, bateu com a cabeça na mesa e começou a chorar. Irene entrou a correr e pegou-lhe ao colo.

Angela, tem a certeza que não posso ajudá-la? perguntou Irene, aparentemente um pouco ansiosa por fugir ao barulho da sala de estar.

Angela, que estava a fritar cannoli, respondeu:

Nem penses nisso! Vai tomar conta dos teus meninos.

O Michael pode olhar por eles. Não está a fazer nada a não ser ver televisão.

Não, vai sentar-te na sala e não te incomodes. Eu e a Janie temos tudo sob controlo.

Se tem mesmo a certeza...

Sim, tenho a certeza.

Irene suspirou e saiu da cozinha, com a criança a espernear ao seu colo.

Jane começou a estender a massa do gnocchi.

Sabe, mãe, ela queria mesmo vir para aqui ajudar-nos. Angela retirou os cannoli dourados e estaladiços do óleo e pô-los a escorrer sobre papel de cozinha.

É preferível ela tomar conta dos miúdos. Tenho tudo organizado. Ela não saberia o que fazer nesta cozinha.

Pois. Como eu?

Angela virou-se para ela, com a escumadeira a escorrer óleo.

Tu sabes.

Só porque a mãe me ensinou.

E isso não basta? Eu devia ter-te ensinado mais?

Bem sabe que não foi isso que eu quis dizer.

Com o seu olho crítico, Angela observou a filha, que cortava a massa em bocadinhos de dois centímetros e meio.

Achas que a mãe da Irene lhe ensinou a fazer gnocchi assim?

Duvido. Ela é irlandesa. Angela riu-se.

Mais uma razão para não a deixarmos vir para a cozinha.

Mamã! exclamou Frankie, entrando de rompante na cozinha. Tem mais alguma coisa que se coma?

Jane levantou a cabeça quando o irmão mais velho entrou, com a arrogância habitual. Era um fuzileiro dos quatro costados; os seus ombros empinados eram tão largos como o frigorífico em que metia agora o nariz.

Não posso acreditar que já tenhas comido tudo o que havia naquele tabuleiro.

Não, os miúdos é que andam sempre a chafurdar na comida com aquelas mãos imundas. Eu não tenho comido nada.

Há mais queijo e salame na prateleira do fundo disse Angela. E uns pimentos assados, naquela taça em cima da bancada. Porque não arranjas outro tabuleiro?

Frankie tirou uma lata de cerveja do frigorífico e abriu-a.

Não me pode fazer isso, mamã? Não quero perder a última parte do jogo.

Janie, arranjas um tabuleiro para eles?

Porque hei-de ser eu? Ele não está a fazer nada de útil lembrou Jane.

Mas Frankie já tinha saído da cozinha e o mais provável era estar de novo sentado em frente da televisão a beber a sua cerveja.

Jane aproximou-se do lava-louça para passar por água as mãos enfarinhadas. A serenidade que ainda há pouco sentia dera lugar a uma irritação que ela já conhecia. Cortou uns cubos de queijo mozzarella cremoso, umas fatias de salame finas como papel e dispô-los num tabuleiro. Juntou uns pimentos assados e uma mão-cheia de azeitonas. Se comessem mais, os homens ficariam sem apetite para o resto.

Céus, estou a pensar como a mamã! Porque diabo me hei-de preocupar se eles perderem o apetite?

Levou o tabuleiro para a sala, onde o pai e os dois irmãos estavam sentados no sofá, embasbacados, a olhar para a televisão. Irene estava ajoelhada no chão, junto da árvore de Natal, a apanhar migalhas de bolacha.

Peço muita desculpa disse Irene. O Dougie deixou cair isto na carpete e eu não consegui apanhar...

Janie! Podes sair da frente? Assim não consigo ver o jogo disse Frankie.

Jane pousou o tabuleiro de acepipes em cima da mesa baixa e retirou aquele que estava contaminado com os micróbios dos miúdos.

Alguém podia ajudar a Irene a tomar conta daqueles meninos. Por fim, Michael levantou a cabeça, de olhar vidrado.

O quê? Ah, pois...

Janie, afasta-te! pediu Frankie.

Só quando agradeceres.

Por quê?

Jane tirou-lhe da frente o tabuleiro de aperitivos que acabara de pousar em cima da mesa.

Está bem, está bem. Raios! Obrigado.

Não tens de quê.

Jane voltou a pousar o tabuleiro, com força, e dirigiu-se para a cozinha. Parou à porta e observou a cena que se desenrolava na sala de estar. Debaixo da árvore de Natal, com as lâmpadas a acender e a apagar, havia um monte de presentes, oferendas ao grande deus do excesso. Os três homens plantados diante do televisor empanturravam-se de salame. Os gémeos rodopiavam à volta da sala como dois piões. E a pobre Irene procurava esforçadamente migalhas de bolacha, enquanto algumas madeixas do seu belo cabelo ruivo se soltavam do rabo-de-cavalo.

Deus me livre! pensou Jane. Preferia morrer do que ser apanhada neste pesadelo.

Fugiu para a cozinha e pousou o tabuleiro. Ficou ali por instantes, a respirar fundo e a afastar uma terrível sensação de claustrofobia. Consciente, ao mesmo tempo, do volume que lhe comprimia a bexiga. Não posso deixar que isto me aconteça. Não posso ser como a Irene, esgotada e constantemente assediada por mãozinhas sujas.

O que se passa? perguntou Angela.

Nada, mamã.

O quê? Aposto que se passa alguma coisa. Jane suspirou.

O Frankie lixa-me o juízo, percebe?

Não podes usar um termo mais agradável?

Não, é exactamente o que ele me faz. Não vê o idiota que é? Sem dizer nada, Angela tirou os últimos cannoli do lume e pô-los a escorrer.

Sabia que ele andava atrás de mim e do Mike pela casa fora com o aspirador? Adorava assustar o Mike e dizia-lhe que ia sugá-lo para dentro do tubo. O Mike gritava como um possesso. Mas a mãe nunca ouvia, porque o Frankie fazia sempre aquilo na sua ausência. Nunca soube como ele era mau para nós.

Angela sentou-se à mesa e olhou para os pedacinhos de massa que a filha tinha cortado.

Eu sabia disse ela.

O quê?

Eu sabia que ele podia ter sido melhor para vocês. Podia ter sido um irmão melhor.

Mas deixava-o fazer tudo o que ele queria. Isso é que nos entristecia, mamã. E ainda entristece o Mike. O Frankie foi sempre o seu filho preferido.

Tu não compreendes o Frankie. Jane riu-se.

Compreendo-o muito bem.

Senta-te, Janie. Anda. Vamos fazer os gnocchi as duas. Assim é mais rápido.

Jane suspirou e sentou-se na cadeira em frente de Angela. Em silêncio, ressentida, começou a polvilhar os gnocchi com farinha e a fazer em cada um uma amolgadela com o dedo. Existiria uma marca mais pessoal que um cozinheiro pudesse deixar do que a sua própria impressão digital, fruto de um momento de irritação? Tens de dar um desconto ao Frankie disse Angela.

Porquê? Ele não me dá nenhum.

Tu não sabes o que ele tem passado.

Estou farta de ouvir falar nos fuzileiros.

Não, refiro-me ao tempo em que ele era bebé. Ao que aconteceu quando ele era bebé.

Aconteceu alguma coisa?

Ainda hoje tenho arrepios quando me lembro que ele bateu com a cabeça no chão.

O quê? Caiu do berço? Jane riu-se. Isso pode explicar o Q.I. dele.

Não, isto não tem graça nenhuma. Foi grave... Muito grave.

O teu pai estava fora da cidade e eu tive de levar o Frankie às urgências. Eles fizeram radiografias e descobriram-lhe uma fissura, mesmo aqui. Angela tocou na parte lateral da cabeça, deixando uma mancha de farinha no cabelo preto. No crânio.

Eu sempre disse que ele não regulava bem.

Garanto-te que isto não tem graça nenhuma, Janie. Ele ia morrendo.

Ele é demasiado ruim para morrer.

Angela olhou para a taça da farinha.

Ele tinha apenas quatro meses disse ela.

Jane calou-se, enterrando o dedo na massa mole. Não conseguia imaginar Frankie em bebé. Não conseguia imaginá-lo desamparado

nem vulnerável.

Os médicos tiveram de retirar-lhe sangue do cérebro. Disseram que havia uma hipótese...

Angela calou-se.

De quê?

De ele não ter um desenvolvimento normal.

Veio-lhe automaticamente à cabeça um comentário sarcástico, mas Jane conteve-se. Não era ocasião para sarcasmos.

Angela não olhava para ela, mas para a sua própria mão, agarrada a um bocado de massa. Evitando o olhar da filha.

Quatro meses de idade, pensou Jane. Há qualquer coisa errada aqui. Se ele tinha apenas quatro meses, ainda não gatinhava. Não podia ter caído do berço nem da cadeira. A única possibilidade era terem-no deixado cair.

Jane olhou para a mãe com um ar mais compreensivo. Perguntou a si própria quantas vezes teria Angela acordado de noite, horrorizada, lembrando-se do momento em que perdera a força nas mãos e deixara cair o seu bebé. Frankie, o menino de ouro, quase morto pela mãe descuidada.

Jane tocou no braço da mãe.

Mas acabou por correr tudo bem, não é verdade?

Angela respirou fundo. De repente, recomeçou a polvilhar e a beliscar mais gnocchi com uma rapidez nunca vista.

Mãe, de todos nós, o Frankie é o mais rijo.

Não, não é. Angela pôs um gnocchi no tabuleiro e olhou para a filha. Tu é que és.

Pois, está bem.

És, Janie. Quando nasceste, olhei para ti e pensei: com esta nunca terei de me preocupar. Esta vai dar luta, seja em que circunstâncias for. Quanto ao Mike, sei que talvez devesse tê-lo protegido melhor. Não é tão bom a defender-se.

O Mike tornou-se uma vítima. Há-de agir sempre como tal.

Mas tu, não. Angela esboçou um sorriso ténue ao olhar para a filha. Quando tinhas três anos, vi-te cair e bater com a cara na mesinha da sala. Fizeste um corte aqui, por baixo do queixo.

Pois, ainda tenho a cicatriz.

O corte foi tão profundo que tiveste de levar pontos. A carpete ficou cheia de sangue. E sabes o que fizeste? Adivinha o que fizeste.

Fartei-me de chorar, imagino.

Não. Começaste a bater na mesinha. Aos murros a ela, assim! Angela bateu na mesa com o punho fechado, levantando uma nuvem de farinha. Como se estivesses furiosa com ela. Não correste para mim. Não choraste ao ver o sangue. Fizeste frente àquilo que te tinha magoado. Angela riu-se e passou a mão pelos olhos, deixando um traço branco na face. Eras uma menina muito estranha! De todos os meus filhos, foste aquela de que mais me orgulhei. Jane Rizzoli fitou a mãe.

Não sabia. Não fazia ideia.

Ah! Filhos! Vocês não imaginam o que os pais passam por vossa causa. Espera até os teres e vais ver. Só depois é que vais saber como é.

Como é o quê?

O amor respondeu Angela.

Jane olhou para as mãos estragadas da mãe. De repente, sentiu os olhos a arder e uma dor na garganta. Levantou-se e aproximou-se do lava-louça. Encheu um tacho com água para cozer os gnocchi. Esperou que a água aquecesse, pensando: talvez eu não saiba verdadeiramente como é o amor. Porque sempre o tenho afastado, como afasto tudo o resto que me possa magoar.

Deixou o tacho ao lume e saiu da cozinha.

Lá em cima, no quarto dos pais, pegou no telefone. Sentou-se na cama, com o auscultador na mão, e tentou ganhar coragem para fazer o telefonema.

Faz! Tens de fazer!

Começou a ligar.

O telefone tocou quatro vezes, e depois ela ouviu a gravação, breve e trivial: "Daqui fala o Gabriel. De momento não estou em casa. Por favor, deixe uma mensagem."

Jane esperou pelo sinal sonoro e respirou fundo.

Fala a Jane disse ela. Tenho uma coisa para te dizer e creio que esta é a melhor maneira, pelo telefone. É melhor do que falar contigo pessoalmente, porque acho que não quero ver a tua reacção. De repente, deu uma gargalhada. Céus, sinto-me mesmo estúpida, a cometer o erro mais velho do mundo. Nunca mais farei troça de gente estúpida. O que aconteceu é que, bem... Estou grávida. De oito semanas, creio. O que, caso estejas interessado em saber, significa que o filho é teu, sem dúvida. Não estou a pedir-te nada. Não quero que te sintas obrigado a fazer seja o que for daquilo que os homens devem fazer. Mas pensei que tinhas o direito de saber, porque... Jane calou-se, com a voz embargada pelas lágrimas. Pigarreou. Porque resolvi ficar com o bebé.

E desligou.

Durante algum tempo, não se mexeu. Ficou a olhar para as mãos, apanhada num turbilhão de emoções. Alívio. Medo, Expectativa.

Mas não ambiguidade... Era uma opção em relação à qual não tinha dúvidas.

Levantou-se, sentindo-se de súbito mais leve, aliviada do fardo da incerteza. Eram tantas as preocupações, as mudanças para as quais tinha de se preparar, mas sentiu uma nova leveza no andar quando desceu as escadas e regressou à cozinha.

A água do tacho já estava a ferver. O vapor aqueceu-lhe a face, como uma carícia materna.

Juntou-lhe duas colheres de chá de azeite e em seguida despejou o gnocchi no tacho. Já havia mais três tachos ao lume, cada um dos quais libertava a sua própria fragrância. O perfume da cozinha da mãe. Jane inalou os odores, apreciando aquele lugar sagrado, onde a comida era amor.

Retirou do tacho as almofadinhas de batata à medida que elas vinham à superfície, colocou-as numa travessa e regou-as com o molho da carne. Abriu o forno e retirou os pratos que aqueciam lá dentro: batatas assadas, feijão verde, almôndegas e manicotti. Um cortejo de abundância, que ela e a mãe levaram em triunfo para a sala de jantar. E por último, evidentemente, o peru, que foi ocupar o lugar de honra, no centro da mesa, rodeado pelos seus primos italianos. A família não conseguiria comer aquilo tudo, mas isso é que era importante: a abundância de comida e de amor.

Jane sentou-se à mesa, em frente de Irene, que dava de comer aos gémeos. Apenas há uma hora, quando olhara para ela na sala, vira uma jovem cansada, cuja vida já terminara, com a saia descaída pelos puxões constantes das mãozinhas dos filhos. Agora, olhava para a mesma mulher e via uma Irene diferente, que se ria ao enfiar uma colher de molho de arando nas boquinhas dos gémeos e cuja expressão se enternecia ao beijar uma cabecinha cheia de caracóis.

Vejo uma mulher diferente porque eu é que mudei, pensou ela. Não foi a Irene.

Depois do jantar, ajudou a mãe a fazer o café e a rechear os cannoli com creme de pasteleiro e deu consigo a ver a mãe com outros olhos, também. Reparou que ela tinha mais cabelos brancos e que a face começava a ganhar uma certa flacidez. Alguma vez te arrependes de nos ter dado à luz, mamã?, interrogou-se Jane. Alguma vez pensas que cometeste um erro? Ou estavas certa, como eu estou em relação a este bebé?

Janie! gritou Frankie da sala de estar. O teu telemóvel está a tocar.

Podes atender? gritou ela.

Estamos a ver o jogo!

Tenho as mãos cheias de creme! Atendes?

Frankie entrou na cozinha e atirou-lhe praticamente o telefone.

É um gajo qualquer,

O Frost?

Não. Não sei quem é.

Gabriel, foi o primeiro pensamento dela. Ele ouviu a minha mensagem.

Aproximou-se do lava-louça e passou as mãos por água, sem pressa. Quando atendeu o telefone, conseguiu responder com calma.

Está?

Detective Rizzoli? É o padre Brophy.

De repente, toda a tensão acumulada se desvaneceu. Sentou-se numa cadeira. Percebeu que a mãe a observava e tentou eliminar a desilusão da sua voz.

Sim, padre?

Desculpe ligar-lhe na véspera de Natal, mas não consigo descobrir o telefone da doutora Isles e... Aconteceu uma coisa que eu achei que devia saber.

O que é?

A doutora Isles queria o contacto do parente mais próximo da irmã Ursula e eu ofereci-me para o procurar. Mas parece que o arquivo da nossa paróquia está um pouco desactualizado. Temos um número de telefone antigo de um irmão em Denver, mas esse telefone foi desligado.

A madre Mary Clement disse-me que o irmão morreu.

Ela disse-lhe que a irmã Ursula também tem um sobrinho que vive noutro estado?

A madre não me falou dele.

Parece que tem estado em contacto com os médicos. Foi o que as enfermeiras me disseram.

Rizzoli olhou para a travessa dos cannoli recheados, que começavam a ficar ensopados com o creme.

Aonde quer chegar com isso, padre?

Eu sei que isto parece um pormenor insignificante, tentar encontrar um sobrinho que não vê a tia há anos. E sei como é difícil localizar alguém que não reside neste estado, quando nem sequer sabemos o primeiro nome. Mas a Igreja tem recursos de que nem a polícia dispõe. Um bom sacerdote conhece o seu rebanho, detective.

Conhece as famílias e os nomes dos filhos. Telefonei ao padre da paróquia de Denver onde vivia o irmão da irmã Ursula. Ele lembra-se muito bem do homem. Foi ele que celebrou a missa de corpo presente.

Perguntou-lhe se ela tinha outros parentes? O tal sobrinho?

Perguntei.

E então?

Não há nenhum sobrinho, detective.

 

Maura sonhou com piras funerárias.

Estava na sombra, a ver as labaredas alaranjadas a lamber os corpos empilhados como lenha, a ver a carne a ser consumida no calor do fogo. Vultos masculinos rodeavam os cadáveres ardentes, um círculo de observadores silenciosos cujo rosto ela não conseguia descortinar. Nem eles a viam, porque ela estava na escuridão, encolhida.

As faíscas saltavam da pira alimentada por combustível humano e desapareciam em espiral na negrura do céu. Iluminavam a noite e desvendavam uma realidade ainda mais terrível: os corpos continuavam a mexer-se. Membros enegrecidos que se debatiam na tortura do fogo.

Um dos homens virou-se lentamente para trás e olhou para Maura. Era um rosto que ela reconheceu, um rosto cujos olhos eram desprovidos de alma.

Victor.

Maura acordou nesse mesmo instante, com o coração aos pulos e a camisa de noite ensopada em suor. Uma rajada de vento fez abanar a casa, e ouviu-se o som lúgubre das janelas a estremecer, o gemido das paredes. Ainda em pânico devido ao pesadelo, deixou-se ficar imóvel, sentindo o suor a arrefecer na pele. Fora só o vento que a acordara? Pôs-se à escuta, e todos os estalidos da casa lhe pareciam passos. De um intruso, que se aproximava.

De repente, o seu corpo retesou-se, alertado para um som diferente. Um arranhar, que lembrava as garras de um animal a tentar entrar em casa.

Maura olhou para o mostrador luminoso do relógio; faltava um quarto para a meia-noite.

Saiu da cama e sentiu o frio do quarto. Às apalpadelas, procurou um roupão, mas não acendeu a luz, para preservar a visão nocturna.

Aproximou-se da janela do quarto e verificou que já não nevava. O solo coberto de branco resplandecia ao luar.

Outra vez... O som de qualquer coisa a roçar na parede. Aproximou-se o mais possível do vidro e viu uma espécie de sombra a mexer-se junto da esquina da casa. Seria um animal?

Saiu do quarto, descalça, e desceu o corredor, em direcção à sala. Encostada à árvore de Natal, espreitou pela janela.

Ia morrendo de susto.

Um homem subia os degraus do seu alpendre.

Maura não conseguiu ver-lhe a cara, que estava escondida na sombra. Como se sentisse que estava a ser observado, o homem virou-se para a janela, e ela viu-lhe a silhueta. Os ombros largos, o rabo-de-cavalo.

Afastou-se da janela e ficou encostada aos ramos espinhosos da árvore de Natal, tentando perceber porque estava Matthew SutclifFe ali, à sua porta. Porque viria ele àquela hora, sem telefonar primeiro? Maura ainda não se libertara totalmente do medo causado pelo pesadelo, e aquela visita a desoras deixou-a inquieta. Pensou duas vezes se havia de abrir a porta a alguém... Mesmo a um homem que conhecia de nome e de vista.

A campainha tocou. Ela estremeceu, derrubando uma lâmpada de vidro que se estilhaçou no soalho.

Lá fora, a sombra encaminhou-se para a janela.

Maura não se mexeu, sem saber o que havia de fazer. Não vou acender a luz, pensou. Ele vai desistir,, e deixar-me em paz.

A campainha tocou outra vez.

Vai-te embora, pensou. Vai-te embora e telefona-me de manhã.

Suspirou de alívio ao ouvi-lo descer os degraus do alpendre. Aproximou-se da janela e espreitou lá para fora, mas não o viu. Nem avistou nenhum carro estacionado em frente da casa. Para onde fora ele?

Ouviu passos, o ruído de botas na neve, a dirigirem-se para o lado da casa. Que diabo andava ele a fazer? A contornar a propriedade dela?

Ele está a tentar arranjar uma maneira de entrar em casa.

Maura conseguiu sair de trás da árvore e conteve um grito de dor quando pisou a lâmpada partida e um pedaço de vidro se lhe enterrou no pé descalço.

De repente, um vulto apareceu numa janela lateral. Estava a espreitar lá para dentro, para a sala às escuras.

Maura refugiou-se no corredor, avançando sem fazer barulho, com a planta do pé ensanguentada.

É tempo de chamares a polícia. Liga para o 112.

Maura virou-se e entrou na cozinha, a coxear, apalpando a parede, à procura do telefone. Com a pressa, derrubou o auscultador. Agarrou nele e encostou-o ao ouvido.

Não dava sinal.

O telefone do quarto, pensou ela. Estaria desligado da ficha?

Desligou o telefone da cozinha e voltou ao corredor, sentindo o vidro a enterrar-se cada vez mais na planta do pé, repisando o soalho já ensanguentado. Entrou de novo no quarto e tentou orientar-se no meio da escuridão. Sentiu a carpete debaixo dos pés e deu uma canelada na cama. Deixou-se guiar pelo colchão e procurou chegar à cabeceira. Ao telefone que estava em cima da mesa.

Não dava sinal.

O terror atravessou-a como um vento gelado. Ele cortou a linha telefónica.

Maura largou o auscultador e ficou à escuta, ansiosa por ouvir o que ele faria a seguir. O vento fazia ranger a casa, disfarçando todos os sons excepto o bater do seu próprio coração.

Onde está ele? Onde está ele?

Depois, pensou: o meu telemóvel.

Aproximou-se da cómoda, onde deixara a carteira. Enfiou a mão lá dentro, apalpando o conteúdo, à procura do telemóvel. Tirou as chaves, várias canetas e uma escova de cabelo. O telefone, onde está o maldito telefone?

No carro. Deixei-o no banco da frente do carro.

A sua cabeça estalou ao ouvir o som de um vidro a partir-se.

Teria vindo da frente da casa, ou das traseiras? Para onde iria ele?

Maura saiu do quarto, já sem sentir a dor provocada pelo estilhaço de vidro que cada vez se enterrava mais no seu pé. A porta para a garagem ficava mesmo ao fundo do corredor. Abriu-a e entrou, precisamente no momento em que ouviu mais vidros a partir-se e a espalhar-se no chão.

Fechou a porta. Recuou até ao carro, ofegante. O seu coração parecia um cavalo a galope. Não faças barulho. Não faças barulho. Levantou o puxador da porta do carro, devagar, e encolheu-se quando ouviu o som da fechadura a ser accionada. Abriu a porta e sentou-se ao volante. Soltou um gemido estrangulado de frustração ao lembrar-se que tinha deixado as chaves do carro no quarto. Não podia ligar o motor e ir-se embora. Olhou para o lugar do passageiro e, à luz da lâmpada do tecto, viu o telemóvel.

Obrigada, meu Deus, pensou ela, e ligou para o 112.

Serviço de Emergência.

Fala do 2130, Buckminster Road disse ela em surdina. "Estão a arrombar a minha casa!

Pode repetir a morada? Não consigo ouvi-la.

Fala do 2130, Buckminster Road! Um intruso...

Maura calou-se, de olhar fixo na porta que dava acesso ao interior da casa. Por baixo dela, via-se uma nesga de luz.

Ele está lá dentro. Ele anda a revistar a casa.

Maura saiu do carro como pôde e fechou a porta sem fazer barulho, apagando a lâmpada do tecto. Ficou de novo às escuras. O quadro eléctrico da casa estava apenas a uns metros, na parede da garagem, e Maura ponderou desligar todos os circuitos e cortar totalmente a energia. Deste modo ficaria protegida pela escuridão. Mas ele adivinharia onde ela estava e dirigir-se-ia imediatamente para a garagem.

Deixa-te estar quieta, pensou. Talvez ele julgue que eu não estou em casa. Talvez ele julgue que a casa está vazia.

Depois, lembrou-se do sangue. Deixara um rasto de sangue.

Ouviu os passos dele. Os sapatos a atravessarem o soalho de madeira, à saída da cozinha, seguindo as pegadas ensanguentadas. Uma série delas no corredor, para um lado e para o outro.

Ele acabaria por ir ter à garagem.

Maura pensou no modo como morrera a Senhora dos Ratos, lembrou-se do brilho dos estilhaços espalhados no peito da morta. Pensou na destruição que uma bala Glaser com cartucho de cobre provocava no corpo humano. O chumbo rebentava e trespassava os órgãos internos. A ruptura dos vasos sanguíneos, a hemorragia maciça na cavidade torácica.

Foge. Sai de casa.

E depois? Gritava pelos vizinhos? Batia às portas? Nem sequer sabia quais eram os vizinhos que estavam em casa nessa noite.

Os passos aproximaram-se mais.

É agora ou nunca.

Maura correu para a porta lateral e, ao abri-la, sentiu uma lufada de ar frio. Precipitou-se para o quintal. Os pés descalços enterraram-se, até aos tornozelos, na neve que entrou em cascata, bloqueando a ombreira e impedindo-a de fechar a porta.

Deixou-a entreaberta, avançou para o portão e levantou o trinco emperrado pelo frio. Deixou cair o telemóvel ao tentar abrir o portão, empurrando-o contra a barreira de neve que se formara entretanto. Por fim, conseguiu entreabri-lo o suficiente para passar e entrou aos tropeções no quintal à frente da casa.

Todas as casas da sua rua estavam às escuras.

Desatou a correr, sentindo a neve a queimar-lhe os pés descalços. Tinha acabado de chegar ao passeio quando ouviu o seu perseguidor também a mexer no portão, a tentar abri-lo mais.

O passeio estava implacavelmente exposto; Maura contornou as sebes, em direcção ao quintal de Mr. Telushkin. Mas ali os montes de neve eram ainda mais altos, davam-lhe quase pelos joelhos, e ela teve de avançar a custo. Sentia os pés dormentes e as pernas enregeladas. O reflexo do luar na neve transformava-a num alvo fácil, num vulto negro que contrastava com um impiedoso mar de brancura. Ao avançar, com as pernas atoladas, perguntou a si própria se naquele momento ele estaria a apontar-lhe uma arma.

Enterrou-se num monte que lhe dava pelas coxas, caiu e experimentou o sabor da neve. Ajoelhou-se e começou a rastejar, recusando-se a ceder. A aceitar a morte. Mesmo sem sentir as pernas, continuou a avançar e a ouvir passos atrás dela. Sutcliffe estava disposto a matá-la.

De repente, fez-se luz no meio da escuridão.

Maura levantou a cabeça e avistou uns faróis acesos. Era um carro que se aproximava.

A minha única oportunidade.

Com um soluço, Maura levantou-se de repente e desatou a correr para a rua. A agitar os braços, a gritar.

O carro derrapou ao parar mesmo em frente dela. O condutor saiu. Era uma figura alta e imponente, que foi ao seu encontro no meio daquela brancura espectral.

Maura fixou-a. Lentamente, começou a recuar.

Era o padre Brophy.

Acalme-se. Está tudo bem disse ele em voz baixa.

Maura virou-se e olhou para a casa, mas não viu ninguém. Onde está ele? Para onde foi?

Naquele momento aproximaram-se mais luzes. Pararam mais dois carros. Maura viu o pirilampo azul de um carro-patrulha e levantou a mão diante dos faróis, tentando distinguir os vultos que avançavam para ela.

Ouviu Rizzoli gritar:

Doutora? Está bem?

Eu tomo conta dela disse o padre Brophy.

Onde está o Sutcliffe?

Não o vi.

Em casa respondeu Maura. Ele esteve em minha casa.

Meta-a no seu carro, padre ordenou Rizzoli. E não a deixe.

Maura ainda não se mexera. Parecia colada ao chão quando o padre Brophy se aproximou dela. O padre despiu o casaco e pôs-lho sobre os ombros. Cingiu-a com o braço e ajudou-a a entrar no carro.

Não percebo. Porque está aqui? perguntou ela em surdina.

Chiu! Vamos abrigá-la deste vento.

O padre Brophy sentou-se ao lado dela. Quando o jacto de ar do radiador lhe atingiu os joelhos e a cara, Maura aconchegou mais o casaco para se aquecer, mas os seus dentes tremiam tanto que ela nem conseguiu falar.

Pelo pára-brisas avistou uns vultos em movimento na rua. Reconheceu a silhueta de Barry Frost quando ele se aproximou da porta da frente do lado dela. Viu Rizzoli e um agente a dirigirem-se para o portão lateral da casa, de arma apontada.

Virou-se e olhou para o padre Brophy. Embora não conseguisse ler-lhe a expressão, sentiu a intensidade do seu olhar, que nada ficava a dever ao calor do seu casaco.

Como é que soube? perguntou ela em voz baixa.

Como não consegui telefonar-lhe, contactei a detective Rizzoli.

Ele pegou-lhe na mão, tomou-a entre as suas, um gesto que deixou Maura de lágrimas nos olhos. De repente, não conseguiu olhar para ele; olhou em frente, para a rua, e viu-a através de uma nuvem de cores quando ele encostou a mão dela aos seus lábios, num beijo terno e prolongado.

Afastou as lágrimas, e a rua recuperou a nitidez. O que viu, alarmou-a. Vultos a correr. A silhueta de Rizzoli, iluminada pelos pirilampos azuis, que atravessava a estrada a correr. Frost, de arma em riste, agachado atrás do carro-patrulha.

Porque vêm eles todos na nossa direcção? O que sabem eles que nós não sabemos?

Tranquem as portas! disse ela. Brophy olhou para ela, atrapalhado.

O quê?

Tranquem as portas!

Rizzoli gritava-lhes da rua. Eram gritos de aviso. Ele está aqui. Está agachado atrás do nosso carro.

Maura virou-se para o lado, tacteando a porta à procura do botão, frenética porque não conseguia descobri-lo às escuras.

A sombra de Matthew Sutcliffe apareceu do lado de fora do vidro do lado dela. Maura encolheu-se quando a porta se abriu e o ar frio entrou.

Saia do carro, padre! ordenou Sutcliffe.

O padre ficou imóvel. E respondeu tranquilamente:

As chaves estão na ignição. Leve o carro, doutor Sutcliffe. A Maura e eu vamos sair.

Não, só você.

Só saio se ela sair também. Caraças! Saia do carro, padre!

Maura tinha o cabelo arrepelado e a arma apontada à têmpora.

Por favor! Faça o que ele diz. Já pediu ela, em voz baixa.

Está bem! respondeu Brophy, em pânico. Eu faço! Eu saio...

O padre abriu a porta e saiu. Sutcliffe disse a Maura:

Passe para o volante!

A tremer, desajeitada, Maura passou por cima da alavanca das mudanças e sentou-se no lugar do condutor. Olhou de lado lá para fora e viu Brophy junto do carro, a olhar para ela e sem saber o que fazer. Rizzoli gritava-lhe que se afastasse, mas ele parecia paralisado.

Guie! disse Sutcliffe.

Maura engrenou a primeira e levantou o pé do travão. Carregou com o pé descalço no acelerador e depois tirou-o.

Você não me pode matar disse ela. A lógica Dra. Isles recuperara o autodomínio. Estamos cercados pela polícia. Você precisa de mim como refém. Precisa que eu conduza este carro.

Passaram alguns segundos. Uma eternidade. Maura ficou sem fôlego quando ele afastou a arma da cabeça dela e lhe encostou o cano, com força, à coxa.

E você não precisa da perna esquerda para conduzir. Quer conservar o joelho, ou não?

Maura engoliu em seco.

Quero.

Então, vamos.

Maura carregou no acelerador.

O carro começou a avançar lentamente e passou pelo carro-patrulha junto do qual Frost estava agachado. À frente deles via-se a rua às escuras, desobstruída. O carro continuou a andar.

De súbito, Maura viu o padre Brophy pelo retrovisor, a correr atrás deles, iluminado pelos lampejos azulados do pirilampo do carro-patrulha. Brophy agarrou-se à porta do lado de Sutcliffe e abriu-a. Meteu o braço lá dentro, agarrou no braço de Sutcliffe e tentou puxá-lo para fora.

O disparo projectou o padre para trás.

Maura abriu a porta do seu lado e atirou-se do carro em andamento.

Caiu no pavimento gelado e viu uns clarões ao bater com a cabeça no chão.

Por instantes, não conseguiu mexer-se. Ficou ali no escuro, entorpecida pelo frio, sem sentir dor nem medo. Sentia apenas o vento e os flocos de neve penugentos na face. Ouviu alguém a chamá-la muito ao longe.

O som aumentou de intensidade.

Doutora? Doutora?

Maura abriu os olhos e encolheu-se ao ver o foco da lanterna de Rizzoli. Virou a cabeça para o lado e avistou um carro a dez metros, com o pára-choques enfeixado numa árvore. Sutcliffe, deitado no chão, de barriga para baixo, tentava levantar-se, com as mãos algemadas atrás das costas.

Padre Brophy disse Maura em voz baixa. onde está o padre Brophy?

Já chamámos a ambulância.

Maura levantou-se devagar e olhou para o fundo da rua, onde Frost estava agachado junto do corpo do padre. Não, pensou. Não.

Não se levante por enquanto disse Rizzoli, tentando imobilizá-la.

Mas Maura empurrou-a e levantou-se, com pouca firmeza nas pernas e um nó na garganta. Mal sentiu o gelo debaixo dos pés descalços ao aproximar-se de Brophy, a cambalear.

Frost levantou a cabeça quando ela chegou ao pé deles.

É uma ferida no peito disse ele em voz baixa. Ajoelhando-se ao lado dele, Maura abriu a camisa do padre e viu o sítio em que a bala entrara no corpo. Ouviu o som terrível do ar a ser sugado para o peito. Encostou a mão à ferida e sentiu o sangue

quente e a carne viscosa. Brophy tremia de frio. O vento varria a rua, cortante. E eu aqui com o teu casaco vestido, pensou ela. O casaco que me deste para me aquecer.

Através do uivo do vento, Maura ouviu a sirene da ambulância que se aproximava.

Brophy tinha o olhar turvo e estava quase a perder os sentidos.

Fique comigo! Está a ouvir-me? A voz de Maura começou a falhar. Você vai viver!

Maura debruçou-se, com as lágrimas a cair sobre o rosto dele, e disse-lhe ao ouvido:

Por favor, faça isso por mim! Tem de viver. Tem de viver...

 

Na sala de espera do hospital, a televisão estava sintonizada, como sempre, na CNN.

Maura estava sentada com o pé ligado apoiado numa cadeira e de olhar fixo nas notícias que passavam na banda móvel do ecrã, mas sem conseguir registar uma única palavra. Apesar de já ter vestido uma camisola de lã e umas calças de bombazina, continuava com frio e nem acreditava que pudesse voltar a sentir-se quente. Quatro horas, pensou. Há quatro horas que ele estava na mesa de operações. Olhou para a mão e reparou que ainda tinha o sangue de Daniel Brophy debaixo das unhas, ainda sentia o coração dele a pulsar, como um pássaro a debater-se na palma da sua mão. Nem precisava de ver uma radiografia para saber quais os estragos provocados pela bala; vira o percurso letal que uma Glaser de ponta azul descrevera no tórax da Senhora dos Ratos e sabia o que os cirurgiões enfrentavam nesse momento. Um pulmão dilacerado pelos estilhaços. O sangue a jorrar de doze pontos diferentes. O pânico que se apoderava dos membros da equipa na sala de operações quando viam uma vida a esvair-se em sangue e os cirurgiões não conseguiam estancar a hemorragia a tempo.

Levantou a cabeça quando Rizzoli entrou na sala, com uma chávena de café e um telemóvel na mão.

Encontrámos o seu telemóvel junto do portão lateral disse ela, entregando-o a Maura. E o café é para si. Beba-o.

Maura bebeu um gole. Estava demasiado doce, mas nessa noite o açúcar soube-lhe bem. O seu corpo cansado e dorido recebia de boa vontade qualquer fonte de energia.

Posso fazer-lhe mais alguma coisa? Precisa de mais alguma coisa? perguntou Rizzoli.

Preciso. respondeu Maura, levantando a cabeça. Quero que me diga a verdade.

Eu digo sempre a verdade, doutora. Bem sabe.

Então diga-me que o Victor não teve nada a ver com isto.

Não teve.

Tem a certeza absoluta?

Tanto quanto é possível. O seu ex-marido pode ser o maior patife do mundo. Pode ter-lhe mentido. Mas tenho a certeza que ele não matou ninguém.

Maura reclinou-se no sofá e suspirou. De olhar fixo na chávena fumegante, perguntou:

E Matthew Sutcliffe? É mesmo médico?

De facto, é. Licenciou-se na Universidade de Vermont. Fez o internato em Boston. É interessante, doutora. Se o nosso nome é antecedido por "senhor doutor", somos muito importantes. Podemos entrar num hospital, dizer ao pessoal que o nosso doente acabou de ser admitido, e ninguém nos questiona. E muito menos quando um familiar do doente telefona e confirma a nossa história.

Um médico que trabalha como assassino contratado?

Não sabemos se a Octagon o contratou. Aliás, estamos convencidos de que a empresa não tem nada a ver com estes assassínios. O Sutcliffe deve ter tido as suas próprias razões.

Que razões?

Para se proteger. Para ocultar a verdade sobre o que aconteceu na índia.

Ao ver o ar confuso de Maura, Rizzoli acrescentou:

A Octagon acabou por fornecer aquela lista do pessoal que trabalhava na fábrica deles, na índia. E havia um médico.

Era ele?

Rizzoli fez um sinal afirmativo.

O senhor doutor Matthew Sutcliffe.

Maura olhou para a televisão, mas o seu pensamento não estava nas imagens que se sucediam no ecrã. Pensava em piras funerárias, em crânios selvaticamente fracturados. E lembrou-se do seu pesadelo em que o fogo consumia carne humana. Dos corpos, ainda a mexer, ainda a contorcer-se no meio das labaredas.

Em Bhopal morreram seis mil pessoas disse ela. Rizzoli reagiu com um aceno de cabeça.

Mas na manhã seguinte, havia centenas de milhares que ainda estavam vivas. Maura olhou para Rizzoli. Onde ficaram os sobreviventes de Bara? Não é possível que a Senhora dos Ratos tenha sido a única.

E se não foi, o que aconteceu aos outros?

Olharam uma para a outra. Ambas compreendiam agora o que Sutcliffe pretendera desesperadamente ocultar. Não o acidente em si, mas as consequências. E o papel que desempenhara nele. Maura pensou no terror que ele devia ter sentido nessa noite, depois de a nuvem venenosa ter atravessado a aldeia. Famílias inteiras, mortas nas suas camas. Corpos espalhados lá fora, imóveis na sua agonia final. O médico da fábrica devia ter sido o primeiro a comparecer no local para avaliar os estragos.

Talvez não se tivesse apercebido de que algumas vítimas ainda estavam vivas senão depois de tomada a decisão de incinerar os cadáveres. Talvez tivesse sido um gemido a alertá-lo, ou um espasmo, quando arrastavam os corpos para a pira.

Com o cheiro da morte e da carne queimada a elevar-se no ar, ele devia ter ficado em pânico ao olhar para os vivos. Mas, nessa fase, já não era possível voltar atrás; já tinham ido longe de mais.

Era isto que vocês não queriam que o mundo soubesse: o que fizeram aos vivos.

Porque é que ele a atacou esta noite? perguntou Rizzoli. Maura abanou a cabeça.

Não sei.

Você viu-o no hospital. Falou com ele. O que se passou lá? Maura pensou na sua conversa com SutclifFe. Tinham ficado a olhar para Ursula e a falar da autópsia. Das análises e dos relatórios. E das despistagens toxicológicas.

Creio que saberemos a resposta quando fizermos a autópsia disse ela.

O que espera descobrir?

O motivo pelo qual Ursula sofreu uma paragem cardíaca. Você esteve lá nessa noite. E disse-me que ela estava em pânico, antes de sofrer o ataque. Que parecia aterrada.

Porque ele estava lá. Maura concordou.

Ela sabia o que ia acontecer e não podia falar porque tinha um tubo enfiado na garganta. Já presenciei muitos ataques cardíacos. Sei como são. Toda a gente a correr para a sala, uma grande confusão. Meia dúzia de medicamentos a serem administrados ao mesmo tempo. Maura hesitou. Ursula era alérgica à penicilina.

Isso aparece na despistagem toxicológica?

Não sei. Mas ele devia estar preocupado com isso, não acha? E eu fui a única a insistir no teste.

Detective Rizzoli?

Viraram-se ambas para trás e viram uma enfermeira da sala de operações à porta.

O doutor Demetrios manda dizer que correu tudo bem. Estão a fechá-lo neste momento. Daqui a cerca de uma hora, o doente deve passar para a UCI do bloco operatório.

A doutora Isles gostaria de vê-lo.

Não poderá receber visitas tão depressa. Continua entubado e sedado. Será preferível voltar mais tarde. Talvez depois do almoço.

Maura concordou com a sugestão e levantou-se. Rizzoli fez o mesmo.

Eu levo-a a casa disse ela.

O sol já tinha nascido quando Maura entrou em casa. Olhou para o rasto de sangue seco que deixara no chão, a prova da sua experiência penosa. Percorreu todas as divisões, como que a reclamá-las à escuridão. Para se certificar de que aquela continuava a ser a sua casa, de que o medo não tinha lugar dentro daquelas paredes. Entrou na cozinha e viu que alguém já pregara umas tábuas no sítio do vidro partido para impedir que o frio entrasse.

Por ordem de Jane, sem dúvida.

Algures, um telefone começou a tocar.

Maura pegou no auscultador do telefone de parede, mas não havia sinal. A linha ainda não tinha sido reparada.

O meu telemóvel, pensou.

Entrou na sala, onde deixara a carteira. Quando pegou no telemóvel, este já tinha deixado de tocar. Digitou o seu código para ouvir a mensagem.

A chamada era de Victor. Maura deixou-se cair no sofá, estupefacta por ouvir a voz dele.

"Sei que ainda é muito cedo para te telefonar. E talvez estejas a pensar por que diabo me hás-de dar ouvidos, depois de... Bem, depois de tudo o que aconteceu. Mas agora está tudo esclarecido. Sabes que não tive nada a ganhar com este caso. E por isso talvez acredites em mim quando te digo que sinto muito a tua falta, Maura. Acho que podíamos tentar outra vez. Podíamos criar mais uma oportunidade. Dá-me outra oportunidade, está bem? Por favor!"

Maura deixou-se ficar sentada no sofá durante algum tempo, com o telefone nas mãos entorpecidas e a olhar para a lareira apagada. Nem todas as chamas se podiam reacender, pensou. Era preferível que algumas permanecessem extintas.

Guardou o telemóvel na carteira, levantou-se e foi limpar o sangue que estava no chão.

Por volta das dez horas da manhã, o sol tinha finalmente irrompido através das nuvens e, no caminho para casa, Rizzoli foi obrigada a semicerrar os olhos para se proteger do seu reflexo na neve que acabara de cair. As ruas estavam silenciosas e os passeios imaculadamente brancos. Naquela manhã de Natal, sentia-se renovada. Liberta de todas as dúvidas.

Tocou na barriga e pensou: acho que só nos temos um ao outro, miúdo.

Estacionou o carro em frente do seu prédio e saiu. Parou ali, ao sol e ao frio, para inspirar uma boa lufada de ar puro.

Feliz Natal, Jane!

Jane ficou imóvel, com o coração aos pulos. Virou-se lentamente.

Gabriel Dean estava à porta do seu prédio. Jane viu-o aproximar-se, mas não conseguiu lembrar-se de nada para lhe dizer. No passado, tinham sido tão íntimos um com o outro como um homem e uma mulher podiam ser, mas agora estavam ali, calados como se fossem dois estranhos.

Julguei que estavas em Washington disse ela por fim.

Cheguei há cerca de uma hora. Apanhei o primeiro avião de Columbia. Gabriel hesitou. Obrigada por me teres dito acrescentou ele serenamente.

Pois, está bem. Jane encolheu os ombros. Eu não tinha a certeza que quisesses saber.

Porque não havia de querer?

Porque é uma complicação.

A vida é uma série de complicações. Temos de lidar com elas à medida que vão surgindo.

Que resposta tão banal! O homem de fato cinzento. Fora a sua primeira impressão sobre Gabriel quando o conhecera e era assim que o via nesse momento, à sua frente, de sobretudo escuro. Tão calmo e distante!

Há quanto tempo sabias? perguntou ele.

Só há uns dias é que tive a certeza. Fiz um daqueles testes de gravidez caseiros. Mas acho que já desconfiava há umas semanas.

Porque esperaste tanto tempo para me dizer?

Eu não tencionava dizer-te nada, porque não pensava ficar com ele.

Porquê? Jane riu-se.

Por uma razão. Não tenho jeito para lidar com crianças. Quando alguém me entrega um bebé, não sei o que fazer com ele. Ponho-o a arrotar ou mudo-lhe a fralda? E como hei-de ir trabalhar se tiver um bebé em casa?

Não sabia que os polícias se comprometiam a não ter filhos.

Mas é tão difícil, sabes? Olho para as outras mães e não sei como conseguem. Não sei se serei capaz. Jane exalou uma nuvem esbranquiçada e endireitou-se. Pelo menos, a minha família vive cá. Tenho a certeza que a minha ficará encantada por tomar conta do bebé. E há um infantário aqui perto. Hei-de passar por lá para saber a partir de que idade os aceitam.

Então, é isso. Tens tudo organizado.

Mais ou menos.

Até quem vai tomar conta do nosso bebé.

O nosso bebé. Jane conteve-se, pensando na vida que crescia dentro de si e que era uma parte do próprio Gabriel.

Ainda preciso de acertar alguns pormenores.

Ele continuava impecável, ainda a desempenhar o papel do homem de fato cinzento. Mas, quando falou, Jane detectou uma certa irritação que a surpreendeu.

E onde é que eu entro? perguntou ele. Fizeste todos esses planos e não te lembraste de mim nem sequer uma vez. Não é que eu esteja admirado.

Ela abanou a cabeça.

Porque estás tão aborrecido?

É sempre a mesma coisa, Jane. Não consegues mudar. Jane Rizzoli toma as rédeas da sua própria vida. Totalmente segura dentro da sua carapaça. Quem é que precisa de um homem? Com os diabos, tu não.

O que queres que eu diga?

Tens de fazer uma opção.

E já fiz. Já te disse que fico com o bebé.

Jane começou a dirigir-se para a porta do prédio, avançando impetuosamente através da neve. Ele agarrou-lhe no braço.

Não estou a falar do bebé. Estou a falar de nós. Opta por mim, Jane disse ele, baixinho.

Jane virou-se para ele.

O que quer isso dizer?

Quer dizer que podemos fazer isto juntos. Quer dizer que me deixas furar a carapaça. Só assim é que isto pode resultar. Tu deixas que eu te magoe e eu deixo que tu me magoes.

Óptimo! E ficamos os dois cheios de cicatrizes.

Ou acabamos por confiar um no outro.

Mal nos conhecemos.

Conhecemo-nos suficientemente bem para termos feito um bebé.

Jane sentiu-se corar e, de repente, não conseguiu olhar para ele. Concentrou-se na neve.

Não estou a dizer que vamos conseguir. Nem sequer sei ao certo como é que isto vai funcionar, tu aqui e eu em Washington. Gabriel hesitou. E, sejamos honestos. As vezes, Jane, sabes ser muito mazinha.

Ela riu-se e esfregou os olhos.

Eu sei. Céus, eu sei.

Mas outras vezes... Gabriel tocou-lhe na face. Outras vezes...

Outras vezes, pensou ela, vês-me como sou.

E isso assusta-me. Não, aterra-me.

Talvez este seja o maior acto de coragem da minha vida.

Por fim, levantou a cabeça e olhou para ele. Respirou fundo.

E disse:

Acho que te amo.

 

Três meses mais tarde

Maura sentou-se na segunda fila de bancos da Igreja de Santo António, e o som do órgão despertou nela recordações da infância. Lembrou-se da missa de domingo na companhia dos pais e de como os bancos da igreja eram duros e impiedosos, quando alguém passava meia hora sentado neles. Nunca estava quieta, tentando sentir-se confortável, e o pai sentava-a ao colo, o melhor poleiro de todos porque era acompanhado de dois braços protectores. E dali ela observava os vitrais das janelas e as imagens, que a amedrontavam. Joana d'Arc, amarrada à estaca. Jesus pregado na cruz. Os santos, curvados diante dos carrascos. E sangue, muito sangue, derramado em nome da fé.

Nesse dia, a igreja não tinha um aspecto ameaçador. A música do órgão era alegre. Grinaldas de flores cor-de-rosa adornavam as naves laterais. Maura viu crianças a balouçarem-se, satisfeitas, ao colo dos pais, crianças não afectadas pelas imagens de sofrimento estampadas nos vitrais.

O órgão começou a tocar a "Ode à Alegria", de Beethoven.

Duas damas de honor envergando fatos cinzento-claro começaram a descer a nave central. Maura reconheceu-as; eram duas agentes da Polícia de Boston. Nesse dia, os bancos estavam repletos de polícias. Maura olhou para trás e viu Barry Frost e o detective Sleeper na fila a seguir à dela, ambos descontraídos e bem-dispostos. Quando os polícias e as famílias se reuniam na igreja, era quase sempre para chorar a morte de alguém. Nesse dia, Maura viu sorrisos e vestidos de cores garridas.

E, por fim, apareceu Jane, pelo braço do pai. Por uma vez, o seu cabelo escuro fora amansado e penteado com elegância. O fato de cetim branco, com um casaco largo, não disfarçava totalmente a barriga.

Ao aproximar-se do banco de Maura, os olhares de ambas cruzaram-se por instantes. Jane revirou os olhos, como que a perguntar: acredita que eu estou a fazer isto? Depois, concentrou-se no altar.

Em Gabriel.

Às vezes, pensou Maura, as estrelas alinham-se, os deuses sorriem e o amor tem uma oportunidade. Apenas uma oportunidade é só isso que se pode esperar. Não há garantias, não há certezas. Gabriel pegou na mão de Jane. Em seguida, viraram-se para o altar. Nesse dia estavam unidos, mas decerto haveria outros dias em que trocariam palavras de cólera ou em que o silêncio faria gelar a casa. Dias em que o amor ficaria em suspenso, como uma ave a voar só com uma asa. Dias em que a irascibilidade de Jane e a natureza mais fria de Gabriel os empurrariam para os seus próprios cantos, e em que ambos questionariam a sensatez daquela união.

E depois haveria dias como aquele. Dias perfeitos.

A tarde já ia adiantada quando Maura saiu da Igreja de Santo António. Estava um dia de sol, e pela primeira vez ela sentiu calor no ar. O primeiro sussurro da Primavera. Conduziu com a janela aberta, deixando entrar os aromas da cidade. Não ia para casa, mas para o bairro de Jamaica Plain. Para a igreja da paróquia de Nossa Senhora da Luz Divina.

Transpôs a porta maciça e entrou numa atmosfera de penumbra e de silêncio. As janelas de vitral captavam os últimos raios de sol. Viu apenas duas mulheres, sentadas uma ao lado da outra no banco da frente, com a cabeça inclinada, a rezar.

Maura dirigiu-se para o nicho. Ali acendeu três velas por três mulheres. Uma pela irmã Ursula. Uma pela irmã Camille. E uma por uma leprosa sem rosto, cujo nome nunca viria a saber. Não acreditava no céu nem no inferno; nem sequer sabia se acreditava na alma eterna. Mas ali, naquele local de culto, acendeu três velas e sentiu-se confortada, porque acreditava na força da lembrança. Só os esquecidos morriam verdadeiramente.

Saiu do nicho e reparou que o padre Brophy estava nesse momento junto das duas mulheres, dirigindo-lhes palavras de consolo. Levantou a cabeça. E os olhares de ambos cruzaram-se, enquanto os derradeiros raios de sol atravessavam as janelas e projectavam tonalidades de muitas cores. Por instantes, ambos esqueceram onde estavam. Quem eram.

Maura ergueu a mão, num gesto de despedida.

Saiu da igreja e regressou ao seu mundo.

 

                                                                                            Tess Gerritsen

 

 

                      

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