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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


THE CHIEF - P. 3
THE CHIEF - P. 3

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

THE CHIEF - Parte III

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Capítulo 21

Era a última hora da tarde quando Tor retornou ao castelo. Embora tivesse desejado permanecer junto ao leito de sua esposa doente, assim que lhe asseguraram que se encontrava bem tinha ido ocupar-se de assuntos que não admitiam mais demora.

Que ele recordasse, era a primeira vez que se sentia contrariado ante a chamada do dever. Mas, além de tentar descobrir a um possível espião, tinha recebido uma mensagem inquietante de MacDonald no que lhe exigia que tomasse medidas. Embora aquilo certamente prejudicasse ao equilíbrio da equipe que tanto esforço havia tido alcançar, era inevitável.

Além disso, se ficava nesse aposento um minuto mais, corria o risco de esquecer-se de quão doente esteve Christina e lhe fazer sentir em suas próprias carnes o medo que ele tinha passado por sua culpa.

Desejava apagar para sempre de sua mente o momento em que ela se desabou no chão. Por um angustiante instante, tinha acreditado que estivesse morta. Não tinha recuperado o fôlego até que tinha notado o pulso acelerado sob seus dedos e a respiração tênue, mas constante contra sua bochecha. Sua sensação de pânico diminuiu um pouco mais quando a curandeira a examinou e comunicou a Tor que somente era um pouco de febre.

Somente. Não havia «somente» quando se tratava de sua esposa. Furioso pelo engano da anciã, aterrorizou-a ameaçando reduzir na metade os anos que ficavam, que, por certo não eram muitos.

Tor nunca havia se sentido assim. Christina despertava nele um forte instinto protetor que não sabia que tinha. Como seu marido, era seu dever mantê-la a salvo, mas o que sentia ia mais à frente do dever.

Sempre tinha sido capaz de deixar os sentimentos a um lado e fechar sua mente como uma armadilha de aço. Mas com a Christina não ficava tão simples. Havia algo nela que lhe tocava a fibra sensível, que lhe chegava muito fundo. Era delicada, amável e generosa, possuía uma mente ágil, um entusiasmo e uma alegria de viver contagiosos, mas também uma profundidade e uma têmpera maiores do que ele tinha pensado em princípio. Encarava-lhe, desafiava-o… e se preocupava com ele.

Era um remanso de doçura para um homem que somente tinha conhecido o conflito. E, por mais que se esforçasse Tor não podia manter distância.

Subiu a escada pesadamente e, de forma maquinal, observou a zona. Os guardas estavam em seus postos ao longo dos parapeitos de pedra e no seteiro - uma pequena obra em forma de caixa encostada à muralha do castelo— que sobressaía por cima das portas. Um punhado de mulheres extraía água do poço. Os criados tiravam bandejas e pratos do salão, e Christina estava…

Caiu-lhe a alma aos pés quando fixou o olhar na figura que caminhava entre as almenas. Ficou furioso, uma sensação a qual começava a acostumar-se. Que demônios fazia ela ali fora? Devia estar descansando, não perambulando por aí, exposta ao ar frio do exterior e ainda por cima com o cabelo úmido, Por Deus santo. Acaso não sabia que podia agarrar um resfriado?

Ela se voltou para ele e o saudou com um gesto. Baixou a mão devagar quando Tor se aproximou.

Tinha visto a expressão de seu rosto. Mordendo o lábio, retrocedeu uns passos, mas seu olhar apaziguador não serviu absolutamente para nada.

—Retornaste - disse em um tom exageradamente alegre—. Não te vi vir para aqui.

Sem abrir a boca nem diminuir o passo, ele se equilibrou para ela e a levantou.

Christina soltou um grito afogado de surpresa, mas ele manteve o olhar à frente, pois não se atrevia a olhá-la. Nesses momentos, seu controle sobre si mesmo pendia de um fio. Sentia um ardor no peito.

—Está exagerando-disse ela com suavidade, para aplacar a uma besta raivosa—. Encontro-me bem.

—Não fale-grunhiu ele com os dentes apertados e a ira a flor de pele—. Não fale.

Com um profundo suspiro de resignação, jogou os braços ao seu pescoço e apoiou a bochecha no peito de Tor. Uma enorme onda de calidez abriu passo através da raiva. Invadiu-o uma incrível sensação de… ternura. Que diabos estava lhe passando?

Não sabia e lhe dava igual, de modo que a atraiu para si um pouco mais.

O silêncio se impôs no grande salão quando ele entrou com ela em braços e se dirigiu ao corredor. Era consciente dos olhares de curiosidade que atraía, mas lhe importavam um nada. Se aos pressente deu a impressão de que seu chefe tinha perdido a cabeça, certamente tinham razão.

minutos depois, chegou ao quarto de Christina. Fechou a porta de uma patada e ficou ali de pé durante um momento, com uma estranha relutância a depositá-la sobre a cama. Finalmente o fez e se sentou a seu lado.

Pouco a pouco, notou que relaxava o corpo. Empurrou-lhe o queixo para cima com sua diminuta mão para obrigá-lo a olhá-la aos olhos.

—Sinto muito. Não era minha intenção te dar motivo de preocupação.

—Tem o cabelo molhado - disse ele, como se assim explicasse algo.

—tomei um banho.

—Poderia te resfriar.

Ela teve o descaramento de deixar que lhe notasse que estava reprimindo um sorriso.

—Isso não é mais que uma tolice própria de babás. Saí muitas vezes com o cabelo molhado e nunca adoeci por isso. Somente foi uma ligeira febre; estou bem, de verdade. Morag diz que já não tenho que guardar repouso.

Tor esticou a mandíbula.

—O que saberá Morag de uma pequenina como você? É tão robusta e teimosa como uma mula velha das Highlands.

desta vez ela sorriu abertamente.

—Pode ser que eu não seja tão alta como vós, mas tenho uma compleição forte. —escureceu o rosto—. Embora em alguma ocasião tenha desejado não tê-la.

Tor admirou-se esse comentário. Então lhe veio algo à memória.

—Contou-me que sua irmã esteve doente quando pequenas.

Ela assentiu.

—Beatrix sempre foi uma menina doentia. Eu quase nunca me punha má. Parecia-me tão injusto… Freqüentemente desejava poder ser eu quem caísse doente em lugar dela.

—Não é assim como funcionam as coisas - repôs ele com delicadeza—. Não devemos nos sentir culpados pelos dons que recebemos ao nascer-acrescentou sem pensar.

Ela inclinou a cabeça e lhe escrutinou o rosto.

—Você se sente culpado por ser o gêmeo mais velho.

De forma instintiva, encerrou-se em si mesmo e apagou toda expressão de seu semblante. Entretanto, o ligeiro olhar de recriminação que lhe dirigiu Christina lhe fez recordar o acordo ao que tinham chegado. Respirou fundo, perguntando-se em que diabos estivera pensando.

—Talvez um pouco quando eramos meninos. Parecia-me injusto que me tocasse ser chefe por uma diferença de minutos. Mas aprendi a aceitar que a vida nunca é justa e que devemos interpretar o papel que nos corresponde.

Ela ergueu o olhar para ele com um amplo sorriso nos lábios.

—Bom, não foi tão difícil, verdade?

Tor replicou entre dentes que era como se lhe cravassem agulhas candentes sob as unhas, mas isso a fez rir.

—Logo estará tagarelando sem parar como o pequeno Iain.

Ele pôs os olhos em branco.

—Deus não o queira. Esse moleque nunca fecha o bico.

trocaram um olhar de divertida cumplicidade que em seguida se transformou em outra coisa, em algo tórrido e selvagem que alagava seus sentidos.

Ele era plenamente consciente da situação em que se encontravam. A cama, as pernas tocando-se, o tênue aroma floral do sabão na pele recém lavada dele, a careta sensual em sua boca luxuriosa…

Sentiu um calor repentino na virilha. O desejo se apoderou dele com uma força irrefreável. Apressava-o. Atraía-o para ela. Fazia que lhe custasse recordar que Christina necessitava repouso.

O estranho torvelinho de emoções dos últimos dias ainda estava muito recente. Ele não podia pensar em outra coisa que em afundar-se nela para fazê-las desaparecer.

Inclinou-se para sua esposa. Tinha a boca a somente um palmo da sua. Ouviu que lhe agitava a respiração. Os lábios de Christina se abriram, incitantes.

Tor quase podia perceber seu sabor…

«Maldição. Controla-te.» separou-se dela, obrigando-se a ter presente que ainda estava muito fraca.

—Descansa um pouco. Depois passarei para ver como te encontra.

Ela fez carinha de sapeca. Seus olhos negros lhe esquadrinharam o rosto.

—Acaso não quer…? —Então baixou o olhar, e o sorriso pícaro que lhe curvou a boca fez que a Tor lhe arrepiasse o pêlo da nuca—. Já vejo que sim que quer - disse ela com voz áspera, lhe pondo a mão sobre a coxa. O músculo se esticou por reflexo. O contato daquela pequena palma queimava ao Tor como um ferro incandescente através do linho de seu leine, a escassos centímetros do lugar onde ele ansiava senti-la—. Por favor, fica - sussurrou Christina.

Sua mão se deslizou pela coxa dele, aproximando-se. A Tor lhe acelerou o pulso. Quase podia senti-la acariciando-o, estirando com movimentos largos e enérgicos de sua mão minúscula e delicada. Apertou os dentes, armando-se de valor para resistir a seu contato.

Estava a ponto de negar quando ela acrescentou:

—Necessito-te.

Nesse simples rogo, ele ouviu o eco dos medos que o tinham afligido nos últimos dias. Seus olhos se encontraram. Viu o rubor rosado nas bochechas de Christina, um rubor saudável.

—Não quero te fazer dano — disse com brutalidade.

O olhar dela se suavizou com um brilho de emoção que lhe encolheu o coração.

—Não vais fazer me dano.

Roçou-lhe o membro com os nódulos e ele soltou um grunhido, fechando os olhos enquanto uma ardente onda de desejo o percorria.

Agarrou-lhe a mão para evitar que seus dedos se fechassem em torno dele, embora nesse momento não houvesse nada no mundo que desejasse mais.

—me prometa que se começar a te sentir mal, avisará-me.

O sorriso travesso apareceu de novo ao rosto de Christina.

—Temo que tenho toda a intenção de me sentir mal, muito, muito mal. —inclinou-se para ele e apertou a boca contra sua mandíbula, justo ao lado da orelha—. E totalmente satisfeita.

Tor tinha chegado ao limite de sua boa vontade. Soltando-lhe o pulso, voltou a cabeça para aprisionar os lábios entre os seus e lhe escapou um gemido quando a mão dela o rodeou por fim. Uma sensação de alívio o alagou.

Deus, adorava beijar sua dama. Seus lábios eram muito suaves e tinham sabor de mel morno. Deslizou a língua pelo interior de sua boca em longas e lânguidas lambidas, tomando seu tempo para saborear e explorar. Sua sede dela era insaciável, e se entregou ao simples prazer de beijá-la que durante tanto tempo se privou.

Os ofegos entrecortados de Christina o excitavam ainda mais, ao igual ao roce brincalhão de sua mão. A pressão do linho o estava matando. Nada devia interpor-se entre eles.

Afastou-se de repente, interrompendo o beijo. O miado de recriminação que ela emitiu o fez sorrir. Parecia uma gatinha a quem tinham tirado sua terrina de leite. Tor ficou de pé. Ela abriu a boca para protestar, pois acreditava que ele pretendia partir, mas se deteve quando viu que abria o broche que segurava o brat ao pescoço.

Longe de dissimular sua admiração quando ele se despojou do objeto, devorou-o com os olhos, passeando o olhar por seu peito, seu abdômen e a extensão de seu longo e largo membro. O desejo manifesto em seu olhar minava a concentração de Tor. Quando Christina lambeu os lábios de forma inconsciente, por pouco não lhe dobraram os joelhos.

Voltou-se ligeiramente, e ela contemplou seu flanco. As sobrancelhas lhe juntaram.

—O que é essa marca?

Como não estava acostumado a que ninguém lhe examinasse o traseiro, esqueceu-se disso.

—Uma tatuagem azul feita com glasto. Fizeram-me isso quando nasci.

Ela assentiu.

—Tinha ouvido falar deles, mas nunca tinha visto um. É uma tradição em seu clã?

Interessante ideia, pensou ele.

—Não, era para me identificar como o primogênito. Não se pode eliminar. —Sorriu - Suponho que pensaram que era mais difícil que me cerceassem o traseiro a que me cortassem um braço ou uma perna.

Ela fez uma careta.

—Deixa-me ver?

Ele se aproximou, e os músculos se contraíram quando sentiu a suave ponta do dedo de Christina seguir o risco da tatuagem.

—Mor - disse. E a seguir traduziu—: Grande. —Um sorriso pícaro lhe desenhou nos lábios—. Muito apropriado.

—Garota má - a repreendeu Tor. Ela sabia perfeitamente que mor era um apelativo com que se estava acostumado a designar mais velho, do mesmo modo que og designava ao mais novo.

—Eu gosto do desenho.

—É irlandês - disse ele, rígido. Sentia como se seu membro estivesse a ponto de explodir por causa daquela exploração inocente.

—Doeu-te?

—Não que eu recorde. —Que introduziram agulhas quentes sob a pele não era a metade de doloroso do que estava fazendo nesse instante.

Tentando dominar seu desejo, sentou-se na borda da cama e a fez girar de modo que ficasse de pé frente a ele. Agora era sua vez de explorar. Ajudou-a com os broches e os laços até um ponto em que ela pudesse seguir por si mesmo.

—te dispa para mim, Tina - lhe ordenou—. Devagar.

As bochechas se tingiram de vermelho, mas fez o que pedia. Despiu-se, sustentando o olhar de Tor em todo momento.

Ele se acalorava cada vez mais à medida que a roupa caía ao chão: a capa, a túnica, as sapatilhas, as meias. Para quando chegou ao vestido, saltava à vista que já era toda uma perita. Pouco a pouco, o levantou por cima dos joelhos, as coxas… Deteve-se justo antes de revelar o doce centro de sua feminilidade.

Os músculos de Tor se esticaram sob sua pele excessivamente tirante, e, respirando com força, fixou na Christina seu olhar ardente. Ela o provocava e incitava, até que ele soltou um grunhido de impaciência. Justo quando ele se dispunha a lhe arrancar o maldito objeto, ela ergueu a barra até o ventre. Tor aspirou bruscamente, reprimindo o impulso de estender o braço para tocá-la, pois sabia que estaria quente e úmida de paixão.

Ela levantou o vestido mais e mais até que Tor espiou a delicada curva inferior de seus peitos.

Christina se deteve e ele conteve o fôlego até que lhe mostrou os formosos e turgentes Montes de carne coroados por mamilos muito duros e erguidos.

Tirou o vestido por cima da cabeça, atirou-o ao chão e ficou de pé ante ele, total e belamente nua. Os últimos raios de sol penetravam pela única janela, banhando-a em um resplendor quente e sensual.

Era maravilhosa. Um pequeno, compacto e delicioso pacote de feminilidade. Longas ondas de cabelo negro e sedoso lhe caíam sobre os ombros. Pernas torneadas, quadris curvilíneos, uma cintura estreita e seios grandes e empinados que convidavam a afundar o rosto entre eles e chorar de prazer, todo isso envolto na pele mais impecável, cremosa e suave que ele jamais vira ou tocara.

—Vêm aqui — ordenou ele, sem reconhecer sua própria voz, rouca e carregada de uma intensidade que nunca tinha ouvido antes.

Ela, obedientemente, aproximou-se até ficar diante dele. Tor sabia que se sentia envergonhada, mas não teve contemplações. Cravou nela os olhos com dureza.

—Antes tenho que me assegurar de que esteja bem.

Ela o olhou, vacilante.

—Seriamente?

Tor assentiu.

—Terá que te deitar para que examine… —Incapaz de resistir a tentação um segundo mais, deslizou a mão sobre a aveludada curva de seu quadril—. Cada palmo de seu corpo.

Ela arregalou os olhos antes de avivar-se, ansiosa.

Estendeu-se no leito em um esbanjamento de sensualidade para o olhar.

Tor se colocou em cima dela, com os joelhos em cada lado para poder mover-se livremente acima e abaixo. Começou pela boca, roçando os lábios com os seus, e percorreu a mandíbula até a orelha com movimentos rápidos da língua. Beijou-lhe o pescoço e afundou o rosto na sedosa suavidade de seu cabelo, que ainda estava úmido. As mechas espessas e escuras despediam um intenso aroma de lavanda.

Christina se retorceu debaixo de Tor, que ansiava apertar sua pele ardente contra a sua, sentir o delicioso estremecimento a seu contato. Ainda não. Como um penitente, torturava a si mesmo. Ia fazer lentamente e saborear cada instante.

Continuou examinando-a, explorando cada polegada daquela pele lisa como a de um bebê com a boca e a língua: o pescoço, os braços, o pulso e… Seus incríveis seios.

Entreteve-se ali um momento, lambendo e chupando no mais profundo da boca, fazendo girar a ponta ereta entre os dentes e a língua até que ela arqueou as costas e soltou um grito de desespero.

Deixando-a ofegante, deslizou a boca pela suave planície de seu ventre até os quadris, e dali à parte interior de suas pernas. Seu aroma o fazia enlouquecer; despertava todos seus instintos primários.

Ela tremia presa de um desejo que nem sequer sabia que tinha. Mas lhe ensinaria.

O membro inchou ainda mais.

Separou-lhe as pernas a beijos e rodeou os ombros com elas. Seu rosto estava a somente uns poucos centímetros.

Ouviu o repentino grito afogado de Christina quando ela compreendeu o que pretendia. Instintivamente, tentou fechar as pernas, mas somente conseguiu atraí-lo mais para si.

Tor riscou círculos com a língua pela parte interior das coxas até que o corpo de Christina se relaxou de novo. Ato seguido a roçou com o nariz de forma brincalhona e exalou seu fôlego sobre sua umidade até que ela ficou trêmula.

Já se tinha castigado o bastante. Não podia esperar mais.

—me olhe, Tina - lhe indicou, obrigando-a a dirigir o olhar para seus olhos—. Quero que me olhe enquanto te provo.

Ela emitiu um ofego ansioso, tendo deixado muito atrás as vontades de protestar. O corpo lhe tremia, faminto dele. Sustentando-lhe o olhar, percorreu-a com a língua, com o tato delicado de uma pluma. Christina sofreu um espasmo ao senti-lo, mas ele a segurou com firmeza pelo traseiro.

—Tem um sabor delicioso, minha doce moça. —Lambeu-a de novo, esta vez com mais força, deixando que notasse totalmente o contato de sua língua—. Como a nata mais deliciosa. Vou te lamber inteira.

*

Christina se sentia como se tivesse morrido e tivesse ido ao céu da luxúria. Tor quase lhe tinha feito perder a razão ao beijá-la por todo o corpo, mas quando ela tinha baixado o olhar para ver sua cabeleira dourada entre suas pernas e tinha caido na conta do que ia fazer lhe…

O pulso lhe tinha disparado com espera erótica; maravilhava-a que ele queria beijá-la em sua parte mais íntima. Paralisaram-lhe todos os músculos. Ela permanecia à espera do que ia ocorrer, intuindo que seria algo novidadeiro e fantástico. Não podia nem imaginá-lo.

A corrente de prazer que desatou o primeiro toque de sua língua lhe fez dar um salto. A segunda lhe provocou um calafrio.

OH, Deus.

Ela gemeu seu nome uma e outra vez incapaz de conter a força das intensas sensações desencadeadas por seu beijo perverso.

Tor a lambeu de novo, acariciando-a com a língua, descrevendo círculos, pinçando em seu interior com passadas largas e carinhosas até que ela acreditou que ia morrer de prazer.

Foi incrível. Não podia pensar mais que na boca e a língua de Tor, naquilo tão sensual que lhe estava fazendo.

A virilha começou a lhe palpitar mais depressa. Meneou os quadris contra a boca dele, desejando mais pressão, mais fricção.

E ele as deu. Levantou-a para si e apertou sua boca depravadamente talentosa contra ela.

Christina sentia o roce abrasivo de seu queixo enquanto Tor a devorava com seus beijos e sua língua voraz. Aquilo era muito.

Os espasmos se apropriaram dela, e estalou em lascas candentes de um êxtase abrasador. Mas, em vez de soltá-la, ele a agarrou contra si, recebendo seu prazer na boca.

Seu corpo ainda se convulsionava quando Tor a liberou. Olhou-a com os olhos entreabertos enquanto se estendia sobre Christina, estreitava-a contra seu corpo e se introduzia devagar nela. Sua pele, ainda sensível, notava uma leve dor com cada grosso lance.

Quando ele esteve dentro de tudo, não se moveu. Simplesmente a abraçou com mais ternura que nunca, aninhando-se contra o largo escudo de seu peito como se o mero contato fora suficiente.

Era.

Ela se derreteu contra ele, desfrutando da sensação de todos esses músculos que a rodeavam, de sua virilidade que a enchia.

E do coração dele, pulsando junto ao dele.

A emoção lhe oprimiu o peito. Era o momento mais emotivo de sua vida. Nunca tinha imaginado que pudesse sentir-se tão unida a alguém.

Permaneceram assim um longo momento, olhando-se nos olhos, em silêncio, salvo pelos sonoros batimentos do coração de seus corações, que palpitavam ao uníssono.

Então ele começou a mover-se. Devagar. Sem afastar o olhar de seus olhos, sujeitando-a com uma intensidade que fazia que o coração lhe golpeasse com força contra as costelas.

Empurrava e retrocedia com um vaivém longo e lânguido, como se dispor de todo o tempo do mundo. Como se eles fossem o mundo. Tor entrava e saía, detendo-se na parte mais profunda, e lhe arrancou um ofego de surpresa ao entrar ainda mais nela.

Pouco a pouco, começou a acelerar o ritmo, a penetrar com um pouco mais de ímpeto, a afundar-se um pouco mais. Pele com pele, seus corpos se deslizavam juntos de forma perfeitamente compassada.

Ela notou que as sensações se avivavam de novo, embora dessa vez fossem diferentes, menos violentas, mas mais intensas e poderosas. Não só se apoderaram de sua virilha, mas sim de todo seu ser.

Viu que o rosto de Tor se esticava, que apertava a mandíbula, que os músculos de seus ombros se inchavam. Tinha a pele quente e a fronte brilhante de suor.

Seus corpos se balançavam. Ele movia os quadris em círculos, com embates mais rápidos. Apertava-se contra ela até fazê-la resfolegar, até fazer que o coração lhe pulsasse a toda velocidade, e que as palpitações entre suas pernas se tornassem frenéticas.

Ele seguia lhe sustentando o olhar, e seus olhos de um azul cristalino destilavam uma emoção intensa que ela nunca tinha visto antes. Não era luxúria a não ser um pouco mais profundo, mais significativo. Ela não se atrevia a fazer-se ilusões.

—goze comigo, Tina - lhe disse ele grosseiramente.

e o fez. A respiração se entrecortou, as costas lhe arqueou, e seu prazer culminou, não com uma explosão violenta, a não ser em uma lenta rendição que começou muito dentro e se propagou para fora com uma fulgurante corrente de sensações.

E ele gozou com ela, deixando-se levar pela onda de seu clímax.

Nesse instante para Christina pareceu que seus sonhos estavam tão perto que quase podia tocá-los com a ponta dos dedos.

*

Um longo momento depois de que se apagassem os últimos ecos de seu clímax, Tor jazia na cama com Christina profundamente adormecida junto a ele. Estava-lhe custando enfocar o que acabava de ocorrer de uma perspectiva adequada.

Intenso. Esta palavra ficava muito pequena para descrevê-lo. Cataclísmico. Demolidor. Estas se aproximavam mais.

Não tinha idéia de que copular pudesse ser assim.

O peito ardia de ternura para a diminuta jovem feita um novelo a seu lado como um filhote. Depois do falecimento de seus pais e os longos anos que tinha convivido com a guerra e a morte, acreditava ter se protegido contra esse tipo de sentimentos. Seu autocontrole e sua falta de emoções eram o que o fazia destacar como chefe e como guerreiro, mas sentia que as capas de gelo se fundiam sob o calor do… amor de Christina.

Seu irmão estava no certo: ela o amava. Tor o notava nos olhos, no modo em que o tocava, em sua forma de beijá-lo.

E não podia negar que a moça lhe inspirava uma ternura especial, e isso o preocupava. Podia sentir algo por ela e mesmo assim antepor o bem de seu clã? Nunca antes tinha acreditado possível. Os sentimentos só complicavam as coisas, faziam-no mais vulnerável, e esse era um risco que nenhum guerreiro podia correr. Teve ocasião de comprová-lo quando MacDougall o tinha enfrentado e quando tinha visto Christina na aldeia. Passasse o que acontecesse, sabia que não podia permitir que sua debilidade por sua esposa interferisse em seu dever.

Ela, adormecida, emitiu um suave som de satisfação. Tor suspirou, apoiou a bochecha em sua cabeleira cálida e sedosa, e aspirou seu aroma doce e feminino. Uma sensação de complacência percorreu seus musculos esgotados. Ela era tão miúda, tão suave… Delicada e frágil. Evitar machucá-la seria toda uma provação, mas Tor jurou esforçar-se ao máximo por fazê-la feliz.


Capítulo 22


Christina estava recostada sobre o peito de Tor, com o infolio de pele sobre seu ventre nu e as pernas envoltas nos lençóis enrugados. O reluzente sol da manhã entrava em torrentes pela janela que tinha a portinha aberta, lhe proporcionando luz de sobra para ler.

Ou ao menos para tentar, pois seu irritante marido não deixava de interrompê-la. Quando chegou à parte em que Lancelot se rebaixava a montar em uma carreta para salvar a sua dama, ouviu o som inconfundível de uma gargalhada.

Baixou o livro e se voltou para lhe lançar um olhar sério.

—Se for danificar a história, não penso seguir lendo.

—Esses cavalheiros e seus ridículos códigos - disse com um desprezo indissimulado—. Parece-lhe o cúmulo da desonra viajar em uma carreta? —Sacudiu a cabeça—. Diabos, eu me arrastaria por um monte de esterco para te salvar.

A Christina tremeu as comissuras dos lábios. Custava-lhe seguir zangada quando o ouvia dizer coisas como aquela. Quem ia pensar que um monte de esterco poderia ser tão romântico?

Ergueu-se para lhe plantar um beijo rápido.

—Que terno.

—Terno? —escureceu o olhar—. Não tenho um cabelo de terno.

Para demonstrar atraiu-a sobre seu peito e a beijou de forma muito mais apaixonada. O livro caiu entre eles quando ela, aproveitando-se de sua posição e da considerável ereção de Tor, deu a volta em cima dele.

Com os joelhos a cada lado de seu corpo, fez que Tor a penetrasse, suspirando de agrado conforme ele a enchia. E como a enchia! Adorava senti-lo em seu interior, longo e grosso. Em efeito, tinha aprendido a apreciar seu tamanho e agora compreendia por que aquela criada a tinha prevenido desse modo no Finlaggan.

Com um gemido, lhe agarrou os seios com suas mãos grandes e ásperas, e começou a apertar e beliscar os mamilos entre os dedos enquanto ela o montava. Começou devagar e foi movendo-se mais depressa até encontrar seu ritmo.

Arqueou as costas sobre as mãos dele, deixando cair à cabeça para trás ao tempo que se erguia, levantando o torso tudo que pôde antes de inclinar-se de novo sobre ele, descrevendo círculos sensuais com os quadris.

Seus corpos se moviam ao uníssono com toda facilidade e fluidez. Na cama, não ficava nada a se interpor entre eles: nem acanhamento nem desconforto. Tinham alcançado a união perfeita de dois amantes.

Quando ela estava a ponto de culminar, ele baixou a mão e acariciou esse ponto deliciosamente sensível com o dedo, intensificando o prazer de Christina justo como sabia que gostava.

Ela se estremeceu, gritando, sacudida pelos espasmos. Ainda sentia um comichão quando ele a agarrou pelos quadris e se afundou no mais profundo dela, chegando a sua vez ao clímax.

Com delicadeza, sujeitou-lhe o rosto entre as mãos e a beijou de novo.

—Pareceu-te bastante terno?

—Sim. Prefiro mil vezes montar sobre ti que sobre uma carreta. —Soltou uma risadinha e, depois de aninhar-se contra ele, tirou o livro dentre os lençóis.

—E agora, quer que acabe o capítulo ou não? —perguntou lhe dirigindo um olhar severo, como se fosse um menino levado.

Tor torceu os lábios.

—Já que estamos não vejo por que não.

Ela não se deixou enganar por sua fingida indiferença. face ao evidente desdém de Tor para o código cavalheiresco, Christina sabia que estava gostando do relato.

Conseguiu ler o resto do capítulo sem mais interrupções, mas quando terminou, ele se levantou da cama (a contra gosto, pareceu a ela) para vestir-se.

Christina o observou sem dissimular seu interesse. Embora levasse duas semanas despertando em seus braços, não tinha perdido nem um ápice de seu entusiasmo. Depois daquela primeira vez, Tor tinha dormido a seu lado todas as noites. Embora o Natal tivesse sido há uma semana, cada dia era como um presente para ela. Duvidava que chegasse a cansar-se jamais de despertar junto a ele ou de contemplar seu magnífico corpo enquanto fazia suas abluções matutinas, consciente de que apenas alguns minutos antes estivera entre seus braços.

Seu marido tinha suavizado sua atitude com ela; disso não cabia a menor duvida. Já não se mostrava tão distante e indiferente, e se esforçava por abrir-se mais a ela, como tinha prometido, em que pese que não era fácil. Dada a brutalidade que tinha imperado em sua vida e as circunstâncias em que tinham morrido seus pais, não lhe custava entender por que.

Despertar em seus braços todas as manhãs tinha proporcionado algo da intimidade que desejava, mas ainda faltava algo. Seguia havendo uma barreira entre eles. Era como se Tor levasse duas vidas: uma com ela e outra diferente com todos outros.

Sabia tão pouco de suas atividades como antes. Mesmo assim, fixou-se no propósito de ser paciente. Tinha que lhe dar uma oportunidade.

Tor se vestiu a toda pressa; lavou os dentes enxaguando-se com vinho branco e esfregando com um tecido fino e uma massa de hortelã e sal; passou um pente pelo cabelo, Passou a água da bacia no rosto e se secou com o tecido adequado para isso. Entretanto, a água fria não levou os sinais de inquietação gravadas em seu semblante.

Estava aflito por algo. Como Christina o conhecia melhor que antes, tinha aprendido a decifrar seus gestos quase imperceptíveis: uma ligeira tensão da boca, a ruga na testa e um olhar distante.

—O que ocorre? —perguntou-lhe—. O que te preocupa?

Eram os rumores das crescentes desavenças entre Bruce e Comyn, a crescente ameaça de uma guerra entre Escócia e Inglaterra? Agora que sabia que ele tinha batalhado por ressuscitar seu clã a partir das cinzas da destruição, compreendia suas razões para querer evitar a guerra e manter-se neutro.

Com um sorriso, ele sacudiu a cabeça, sinal de que não tinha a menor intenção de contar-lhe, Christina lutou por conter a onda de decepção que a invadiu, não só pela falta de confiança - ou porque ele se confiou a outros—, mas sim porque temia que a visse como um brinquedo frágil que necessitava que o protegessem e o tivessem entre algodões.

«É questão de tempo», recordou-se. E tinham toda uma vida juntos em frente.

—Só é um assunto que estive pensando. —voltou-se para olhá-la nos olhos—. É possível que passe fora o resto da semana.

desta vez ela não pôde evitar sentir-se desiludida, embora fizesse o possível por dissimulá-lo. Sabia que devia estar agradecida pelas semanas que tinham estado juntos, mas não lhe bastava isso. Tornou-se ambiciosa. Quanto mais tempo passava com ele, mais tempo desejava.

Não lhe perguntou aonde ia, pois não queria ficar com pior humor quando ele se negasse a dizer. Mas, de repente, lhe ocorreu uma possibilidade. Deus bendito, tinha chegado o dia que tanto temia, o dia em que ele zarparia para ir à guerra?

*

Ao Tor a perspicácia de Christina respeito a seu estado de ânimo já não lhe surpreendia embora lhe incomodasse ser tão transparente para ela. Era certo que algo lhe preocupava. Não podia seguir demorando com o que MacDonald tinha ordenado.

Por desgraça, ela também era transparente para ele, por isso Tor sabia que sua reticência a feria. O acordo que tão cuidadosamente tinham estabelecido estava vindo abaixo. Embora ela fingisse entender por que ele não podia lhe explicar o que fazia; quanto mais se estreitavam seus laços, maior era o abismo que os separava.

O que mais surpreendia ao Tor era que em realidade tinha vontades de contar. Tinha guardado tudo dentro de si durante anos. Ao afrouxar a tampa, anos de pressão acumulada ameaçavam estalando. Certamente tinha cometido um engano ao fazer uma exceção, embora não podia negar que falar das coisas ajudava a limpar a cabeça.

Ela colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e encolheu as pernas, envolvendo-as joelhos na manta.

—averiguaste quem foi o responsável pelo ataque? —perguntou em um tom inexpressivo.

Tor não se deixou enganar por sua atitude despreocupada; sabia o que encerrava essa pergunta. Embora ela já não o interrogasse sobre o lugar aonde ia, isso não significava que não lhe interessasse saber. Seus lábios se curvaram para baixo com dureza.

—Não.

MacSorley e MacRuairi tinham retornado pouco depois de partir, com uma tripulação em extremo insuficiente, à caça de quatro navios de guerra que tinham seguido de longe até que uma das galeras ficou atrasada. Tinham-na assaltado com facilidade, mas nem sequer a habilidade considerável do MacRuairi para extrair informação lhe tinha revelado o nome da pessoa para a que trabalhavam.

—Ainda não - precisou—, mas o averiguarei. Assim que encontre ao infiltrado… —interrompeu-se, sentindo-se como se lhe tivessem atirado uma machadada. Nunca na vida tinha metido a pata dessa maneira. Talvez Christina não se desse conta. Sim, claro…

Ela afogou um grito.

—Acredita que há um espião?

—Parece provável - respondeu ele devagar, furioso consigo mesmo—. Todos os ataques se produziram quando eu estava fora, ou quando se supunha que estava. É muita casualidade para atribuí-la ao azar.

—Sabe quem é o espião?

—Não, ainda não. Poderia ser qualquer. Qualquer - repetiu—. Quando saio do castelo, não o faço precisamente em segredo, mas meus homens estão alerta a algo fora do comum ocorra, e estão tomando precauções. —Examinavam todas as mensagens e levavam a ele tudo o que consideravam suspeito. Vigiavam aos guardas (em especial aos que tinham sido recrutados recentemente) e ao pessoal do castelo, incluídos o tabelião e ao Rhuairi. Entretanto, depois de ver como o clérigo tinha protegido a Christina, suas suspeitas iniciais lhe pareceram infundadas.

Quase podia ler os pensamentos que se amontoavam na mente de Christina. Talvez o lapso tivesse sido o melhor que podia acontecer, disse a si mesmo. Terei que caçar a cobra com toda cautela para que não escapasse, e podia resultar perigoso. Mais valia que ela estivesse em guarda.

—Só poucos de meus guardas de máxima confiança estão à corrente disto, Christina. Lembre-se que a situação é grave e potencialmente perigosa. Espero não ter me equivocado ao depositar minha confiança em ti.

Ela sacudiu a cabeça com veemência.

—É obvio que não. —Sorriu—. Obrigado por me contar isso. Inclinou a cabeça—. É por isso que te parte?

—Em parte. Meus homens estarão atentos se por acaso acontece algo incomum no castelo, embora duvide que essa gente tente nada tão pouco tempo depois do último ataque. Mas não quero que saia do castelo durante minha ausência. Não esqueça sua promessa. —Não era necessário lhe explicar que não devia misturar-se em seus assuntos.

—Mas vou me aborrecer - protestou ela.

Tor tentou não sorrir ao fixar-se em sua expressão de despeito.

—Acreditava que estava trabalhando em um estandarte novo para o salão.

Christina entrecerrou os olhos.

—Sabe perfeitamente que é um desastre. Sou uma negação com a agulha.

Ele soltou uma risadinha.

—Estou seguro de que encontrará alguma atividade em que ocupar seu tempo.

—Se não tivesse enviado a seu irmão e a sua mulher ao exílio, teria a alguém com quem conversar.

Aquele era um tema delicado. Christina não entendia que seu marido estivesse empenhado em castigar seu irmão…, embora em realidade não o estivesse. Não era de se admirar. Ela tinha muito bom coração e não estava acostumada a tomar as decisões difíceis às que Tor se enfrentava diariamente como chefe.

—Janet estará aqui.

Como havia um possível espião entre eles, Tor tinha chegado à conclusão de que era muito arriscado que ela seguisse indo e vindo do castelo ao broch. Os homens tinham que arrumar-se somente com a comida… e se queixavam disso.

Christina arqueou uma sobrancelha.

—Quer que trave amizade com sua amante?

—ex-amante -a corrigiu ele—, mas segue sendo uma amiga. Dê-lhe uma oportunidade, gostarás dela.

Ela fez um ruído abafado parecido a um bufo.

—Os homens não entendem nada. Duvido muito que queira ser amiga minha.

Embora Tor não tivesse a menor ideia de por que, não pretendia entender as complexidades da mente feminina.

Agachou-se para beijá-la com suavidade. O beijo foi mais longo do que ele queria, mas quando levantou a cabeça, viu que havia valido a pena. Os lábios vermelhos entreabertos e um pouco inchados, as pálpebras entreabertas, o olhar aturdido, as bochechas rosadas… Maldita seja, adorava o aspecto que tinha quando a beijava.

—Voltarei antes que te dê conta.

*

Christina tinha conseguido distrair Tor de seus problemas, mas não durante muito tempo. «Maldito Bruce. Dane-se MacDonald.» Detestava os enganos de todo tipo. Aqueles homens formavam uma equipe e mereciam saber a verdade. Para que uma guarda secreta como essa cumprisse seu encargo, a autoridade máxima em relação às decisões que se atinham ao grupo devia ficar ao cargo do líder da equipe. Se ele estivesse ao mando, diria a Bruce e ao MacDonald exatamente onde podiam meter-se suas «ordens». Mas em pouco menos de três semanas, MacSorley seria o líder e a decisão estaria em suas mãos. Entretanto, nem sequer o corpulento escandinavo sabia o que estava a ponto de acontecer.

Era a última prova da Perdição, que fora postergada por sua volta antes do tempo a Dunvegan.

Os homens se congregaram em torno dele enquanto explicava sua missão. Tinha levado mais de dois meses, mas Tor por fim tinha conseguido lhes fechar a boca.

—Não podem estar falando sério. —Seton foi o primeiro que teve a audácia de dizer o que outros pensavam.

O olhar que Tor lhe jogou parecia indicar justamente o contrário.

—Foi o desafio final para o Fianna do Finn MacCool.

—Mas isso não é mais que uma lenda - protestou MacGregor—. Ninguém poderia proteger-se de tantas lanças enterrado até a cintura e com somente um escudo para cobrir-se.

Tor sorriu.

—Não têm por que te preocupar. Vou modificar a prova do Finn. Poderão colocar o elmo e a cota de malha, e não lhe atirarão todas as lanças de uma vez.

Ouviu algumas gargalhadas. Ao que parece suas modificações não fora suficiente para os convencer.

—Pode fazer—atravessou Campbell—. Um guerreiro destro pode apanhar facilmente dez lanças ou mais. O mais importante é dominar o medo.

—A ti isso será fácil - repôs MacGregor—. Cresceram esquivando das lanças que lhe atiravam à cabeça. Todos vimos o que és capaz de fazer com elas.

Campbell olhou ao Tor aos olhos e assentiu em sinal de aprovação.

—Verão-me em ação - comentou.

Os homens dedicaram às horas seguintes a exercitar-se. Campbell lançava as lanças - o que agradeceram atrás de alguns erros deliberados— e logo, uma vez que agarraram o truque, passaram a treinar com uma lança que tinha a ponta de aço afiada envolta em um pedaço de couro. Por último, cada um deles se enfrentou ao exercício autêntico. Além de Seton, que recebeu um forte golpe no ombro, todos conseguiram apanhar ao menos dez lanças seguidas, e alguns deles umas quantas mais. Campbell estava no certo: quando se conseguia dominar o medo, não era tão difícil. E nenhum deles tinha medo de nada.

Tor escavou o buraco enquanto os homens se adestravam. Dado a provocação que tinha exposto, pensou que era o minimo que podia fazer. Com uma profundidade que chegava à cintura e um par de pés de diâmetro, o fosso era estreito, mas o bastante grande para que eles pudessem girar para os lados, embora com muita dificuldade.

MacSorley foi o primeiro em entrar enquanto os outros formavam um círculo ao redor dele, a uns vinte passos de distância.

Tirou todas as armas que levava presas com correias a seu volumoso peito, mas ia protegido com a cota, o elmo e o escudo.

Tor ergueu a mão para assinalar o começo.

—Se houver uma só gota de sangue, não valerá a prova.

MacSorley assentiu.

—Entendido.

—Preparado?

—Sim.

Tor fez um sinal ao Lamont, o homem situado a sua direita, e as lanças começaram a sair voando do perímetro do círculo. Um por um, esperando uns segundos entre um e outro, os homens as jogavam no alvo vivo no centro.

MacSorley encontrou seu ritmo em seguida, alternando entre apanhar as lanças e aparar os golpes com o escudo. Tor foi o último em atirar sua lança, que foi a que esteve mais perto de acertar no alvo, mas MacSorley a desviou no último instante com seu escudo. Como seu birlinn, a madeira forrada de pele tinha pintado no anverso uma águia pescadora de aspecto feroz.

Ao final, havia nove lanças no chão ao redor do MacSorley e uma cravada em seu escudo. Mas tinha conseguido, e assim que os outros viram que podia fazer, apressaram-se a seguir seu exemplo.

O último em baixar ao fosso foi Campbell. A tensão se dissipou com o triunfo de cada aspirante, e enquanto Campbell se preparava para seu turno, outros inclusive intercambiavam brincadeiras.

Tor cravou nele o olhar.

—Preparado?

Campbell assentiu com a expressão severa. Tor fez o sinal, e as lanças começaram a sair. Como se tratava do último homem, os outros guerreiros se acostumaram e os intervalos entre os lançamentos seguiam uma pauta ordenada.

Uma pauta que Tor rompeu.

Quando MacGregor, que estava a sua esquerda, soltou sua lança, Tor jogou a sua ao mesmo tempo.

Tal como tinham feito seus predecessores, Campbell tinha se adaptado a um ritmo. Apanhou com facilidade a lança do MacGregor mas não estava preparado para a de Tor. Sem tempo para colocar seu escudo em posição, inclinou-se a um lado no último momento, apenas o suficiente para evitar que a lança o alcançasse no peito. Entretanto, esta lhe roçou o braço antes de cravar-se no chão, alguns pés atrás dele.

Depois de uns instantes de atordoamento geral, Tor ouviu um suspiro de alívio coletivo a seu redor.

—Foi por um triz - disse MacGregor.

Por toda resposta, MacSorley sacudiu a cabeça com pesar.

Tor não disse nada. Como outros, estava contemplando como a manga da cota do Campbell se manchava de sangue.

Campbell fixou o olhar nele.

—Sinto muito, moço - disse Tor em voz baixa.

Campbell afastou o olhar e fez um gesto afirmativo. Conhecia as regras.

—Recolherei minhas coisas.

Sem acrescentar uma palavra, saiu do buraco ajudando-se com os braços e se encaminhou para a broch. Outros o olharam afastar-se com um silêncio cheio de estupefação.

Foi Seton quem se dirigiu primeiro ao Tor.

—Não posso acreditar que o deixem partir. Necessitamo-lo. Não há outro explorador como ele em toda Escócia… ou no resto do mundo, de fato.

—Não fez a prova —replicou Tor, embora não tinha por que dar explicações.

O rosto de Seton avermelhou de raiva.

—Porque vocês têm feito armadilha.

O estalo de silêncio que seguiu a estas palavras foi ensurdecedor. Os highlanders sabiam algo que aquele cavalheiro inglês ignorava.

—Se eu me regesse pelo código ao que estas referindo, estaria morto pelo que acabas de dizer.

Seton apertou os dentes; precaveu-se de seu engano.

—Na guerra não existem armadilhas, e se querem formar parte desta equipe, mais vale que coloquem isso na cabeça quanto antes. Este guarda tem que estar preparada para tudo, e Campbell confiou demais. Se nos confiarmos, morreremos todos.

MacSorley lhe dirigiu um olhar estranho, e Tor se deu conta de que tinha cometido um engano: ele não formava parte desse «nós».

—O capitão tem razão - disse MacGregor—. Todos nos confiamos. Campbell não deveria ser o único em pagar as conseqüências. Voltarei a me submeter à prova com ele.

Tor o olhou longamente, impressionado pelo profundo vínculo que se forjou entre aqueles dois membros de clãs que antes se enfrentavam. Embora discutissem como inimigos, atrás da retórica agressiva havia uma amizade. Amaldiçoou em seu foro interno o injusto da situação, mas seu tom ao falar não delatou seus pensamentos.

—Campbell teve sua oportunidade. Deveremos nos arrumar sem ele. Boyd e Lamont são exploradores excelentes; que eles ocupem seu lugar. —Percorreu com o olhar o círculo de homens, todos eles furiosos, para que sua mensagem ficasse bem claro—. Não há mais que falar. Tomei minha decisão.

Conscientes de que protestar seria inútil, os homens se dispersaram. Não gostavam da decisão mas a acatavam, com diferentes graus de indignação. Como era de esperar, MacGregor o evitou durante o resto do dia.

Campbell se despediu com solenidade e, quando chegou o momento, Tor o acompanhou em solitário à galera que o levaria de volta a terra firme.

—Levas tudo? —perguntou.

Campbell assentiu.

—Sinto muito, moço. Desejaria que as coisas não tivessem que ser assim.

O rosto do Campbell era uma máscara de pétrea resignação.

—Sim, capitão, compreendo-o.

—Como está o braço?

—Está bem. —Instintivamente, Campbell levou a mão à parte superior do braço, não o esquerdo, que tinha ferido pela lança, a não ser o direito, no que Tor lhe tinha tatuado em segredo um sinal a altas horas da noite anterior.

Embora outros não soubessem a verdade, Campbell era um deles.

—Se alguma vez estiveres em apuros…

Campbell moveu a cabeça afirmativamente.

—Sei o que devo fazer.

Tor o agarrou do braço e lhe deu um apertão firme.

—Bs roimh geill.

—Antes morrer que render-se — respondeu Campbell com ferocidade. Depois de jogar uma última olhada a broch, embarcou de um salto e se fez ao mar.

Tor o observou afastar-se.

«Agora há dez.»


Capítulo 23


Tor levava poucos dias fora quando Christina começou a sentir os efeitos de sua inquietação. Tal como suspeitava, lady Janet não interessava cercar uma amizade com ela. Mostrava-se cortês, mas Christina estava convencida de que os sentimentos que a outra mulher ainda albergava para Tor lhe impediam de ir mais à frente.

Christina não podia culpá-la por isso.

Como dispunha de tempo de sobra, havia-se aficionado a dar longas caminhadas pelo perímetro da muralha. Além de seus passeios matinais com o irmão John, agora saía a caminhar também depois do jantar.

Adorava erguer o olhar para o céu nas noites limpas, embora não fossem muito freqüentes durante o inverno na «ilha da Bruma». As estrelas pareciam tão próximas ali que quase tinha a sensação de que se estendia o braço poderia agarrar uma.

Aquela era uma dessas noites e, apesar de fazia mais frio que de costume - inclusive para janeiro—, ela permaneceu um momento entre as almenas, contemplando primeiro o firmamento e logo o mar. era fascinante e provocador ver as cintilantes ondas negras com cristas de espuma branca rompendo-se contra o escarpado rochoso.

Baixou o olhar para o embarcadouro e ficou imóvel. Percorreu-a um calafrio. O birlinn aterrorizante com o falcão gravado na proa estava atracado ao lado das outras embarcações.

De repente, veio-lhe à memória o dia que tinha visto o Rhuairi no mole. Cabia a possibilidade de que o senescal fosse o espião?

Suas suspeitas aumentaram quando o homem em quem pensava saiu a toda pressa do grande salão, cruzou o pátio e baixou a escada que conduzia ao molhe. Como Christina estava oculta nas sombras, o homem não reparou em sua presença. Ela se inclinou sobre a mureta, mas não alcançou ver o que ocorria debaixo. Um momento depois, não obstante, Rhuairi subiu correndo a escada e voltou sobre seus passos para o interior do salão.

para Christina o coração pulsava com força. Permaneceu aninhada na escuridão um momento mais, sem saber o que fazer. O que acabava de presenciar podia ser um ato totalmente inocente. Mas por que se comportou ele de um modo tão estranho naquele dia e tinha negado ter recebido uma mensagem?

Seu primeiro impulso foi segui-lo, mas recordou a advertência de Tor. Não queria que ela se envolvesse. Se Rhuairi fosse o espião, seria perigoso que a surpreendesse seguindo-o. Christina teria que aguardar que seu marido retornasse para lhe expor suas suspeitas.

Esperava que para então não fosse muito tarde.

*

Lady Christina não se precavera de que alguém a observava. O irmão John MacDougall, sobrinho e xará de John do Lorne, não podia saber de ciência certa o que estava pensando, mas tinha que correr o risco. Seu instinto de sobrevivência tinha prevalecido nos últimos dias e o tinha impulsionado a preparar-se para partir. Se queria averiguar o que trazia MacLeod entre as mãos, devia fazê-lo já, e o mensageiro secreto do senescal lhe tinha dado uma idéia.

Suspeitava fazia um tempo que ela sabia ler, e suas suspeitas se viram confirmadas quando percebeu que alguém tinha corrigido os livros. Não queria implicá-la nesse assunto, mas por outro lado, pensou, estava-lhe fazendo um favor. MacLeod não gostava. Essa besta selvagem e desumana não sabia apreciar a jóia que tinha por esposa. Entretanto, também saltava à vista que sua jovem esposa o idolatrava. Talvez aquilo a obrigaria a vê-lo como era na realidade.

Ou assim esperava.

Arrependia-se de ter permitido que seu tio o metesse nisso: a espionagem teria que ser posta nas mãos de quem tivesse estômago para o engano. Embora, na realidade, não tinha escolha. Igual MacLeod, seu tio não era um homem ao que convinha desafiar.

*

Transcorreram dois dias mais, e Tor não tinha retornado. Enquanto isso, as suspeitas de Christina a corroíam por dentro. No dia anterior, tinha entrado nos aposentos principais com o irmão John, e Rhuairi, sobressaltado, tinha juntado seus papéis e se retirado com um rubor de culpabilidade no rosto. O tabelião também se fixou na estranha conduta do senescal e tinha feito um comentário sobre o nervosismo crescente do Rhuairi.

Tendo bem presente a promessa que tinha feito a seu marido, Christina tinha respondido que não tinha notado nada. Detestava não poder confiar em seu amigo. Embora o irmão John fosse a última pessoa do mundo de quem suspeitaria, Tor tinha advertido que não confiasse em ninguém.

Pensou em mandar a seu marido uma nota, mas não tinha nenhuma prova. Além disso, não poderia enviar sem que Rhuairi se inteirasse. Como não tinha alternativa, aguardou… Até a tarde seguinte.

Como era seu costume depois do jantar, estava caminhando ao redor da muralha quando viu de novo ao Rhuairi sair apressadamente do grande salão. dessa vez, entretanto, em lugar de receber a um mensageiro, subiu a bordo de um birlinn que o esperava e zarpou de volta ao mar aberto, não para a aldeia.

Admirada, Christina se dispunha a entrar no castelo quando o irmão John, com o rosto avermelhado, e esteve a ponto de atropelá-la.

Ele se desculpou, com ar transtornado.

—Por ventura vistes ao senescal?

—Sim - assentiu ela—. Se foi há alguns minutos.

—Cáspita!

Christina sorriu ao comprovar que o irmão John se apropriou de sua expressão favorita.

—Ocorre algo?

Mostrou-lhe uma folha de pergaminho.

—Caiu isso de Rhuairi, e pela pressa que tinha, pareceu-me que talvez fosse algo importante. Mas esta noite devo ir à aldeia a ver o pai Patrick.

—Não sabem do que se trata?

Ele sacudiu a cabeça.

—Não é algo que eu tenha escrito.

A Christina lhe acelerou um pouco o pulso, e todos seus instintos ficaram alerta. Estendeu a mão.

—Não faz falta que postergues sua visita à aldeia - disse sem controlar de todo o tom agudo de sua voz—. Eu o entregarei ao Rhuairi quando voltar.

O tabelião titubeou.

—Estas segura? Provavelmente o necessitará assim que retorne, e talvez seja muito tarde.

—Não me importa - respondeu ela—. Não estou cansada.

—Espero que não se trate de nada grave, embora o certo é que Rhuairi parecia um pouco mais nervoso que de costume. —Um leve sorriso se desenhou nos lábios do jovem tabelião, e toda a vacilação que sentia se esfumou. Deu-lhe o pergaminho e acrescentou—: Por outra parte, tinha prometido ao pai Patrick, e suponho que isto estará em suas mãos.

Christina, que sabia a que se referia, alegrava-se de que ele não alcançasse a ver o rubor de culpabilidade que lhe tingia as bochechas. Como estivera esperando alguma indicação de Tor, ainda não tinha contado a ninguém que sabia ler. Conhecia o modo em que funcionava a mente de seu marido, por isso imaginava que ele considerava mais seguro guardar essa informação até que descobrisse ao espião.

—Pergunto-me o que acontece ao Rhuairi - disse o irmão John, como ausente—. Ultimamente tem uma atitude tão circunspeta…

—Estou segura de que não é nada importante - mentiu Christina, tentando não sentir-se culpada. Esperava que o irmão John a perdoasse, mas não podia arriscar-se a expressar suas suspeitas em voz alta.

—Obrigado, milady. E agora, se não se importar, devo partir.

—Veremo-nos pela manhã — disse ela, e o observou cruzar a porta que dava ao mar e descer para o embarcadouro.

Resistindo o impulso de abrir a nota ali mesmo, a guardou entre as dobras de sua capa e se dirigiu rapidamente à intimidade de seu quarto. Ali, à luz das velas, desdobrou com cuidado a pequena folha de pergaminho.

O coração lhe pulsava a toda velocidade. Aquela podia ser a prova que esteve procurando. Sentiu uma pontada de culpabilidade, mas a sacudiu em seguida. Se a mensagem não fosse importante, Tor nunca se inteiraria. Mas se era, daria-lhe obrigado por isso. Podia lhe proibir que se misturasse, raciocinou, mas não que observasse o que ocorria diante de seu nariz.

Reconheceu imediatamente a tosca letra do Rhuairi, embora a nota não estivesse assinada. Era breve e concisa, mas fez que lhe gelasse o sangue com uma gélida onda de pavor. Tinha encontrado sua prova, e era muito pior do que tinha acreditado.

«Paradeiro do MacLeod confirmado. Tragam reforços. Atacaremos a meia-noite.»

Deus santo, que horas era? sete? oito? Tinha o coração desbocado. O que podia fazer? Tinha que encontrar uma maneira de acautelá-lo, antes que fosse muito tarde.

*

Tor estava sentado em uma pedra grande e plaina frente à entrada da broch, com uma jarra de cuirm na mão, contemplando os últimos raios rosados do sol extinguirem-se depois do horizonte.

Embora Campbell se fora fizesse quase uma semana, a equipe ainda não se recuperara da perda de um dos seus. Ele sabia que devia estar agradado por isso, pois era uma prova de que o treinamento tinha sido um êxito, mas não estava. A marcha de um membro da equipe, independentemente do motivo, ardia-lhe.

Resmungou uma blasfêmia e tomou um gole longo da forte cerveja antes de deixar a taça vazia na pedra com um golpe.

—Ai - disse MacSorley, que tinha saído da broch para sentar-se junto a ele—. Está um pouco amarga a cerveja, ou é bem o sabor do remorso?

—Não sigas por aí - lhe advertiu Tor—. Não estou de humor para sua língua afiada.

MacSorley bebeu um gole de sua própria taça. Ficaram sentados em silencio durante um momento antes que ele falasse de novo.

—Eles perdoarão. Dêem-lhe tempo.

Depois da partida do Campbell, a brecha entre o Tor e os homens se alargou. Uma vez mais, voltara a estar firmemente instalado no papel de líder, o homem obrigado a tomar decisões duras e impopulares. Formava parte da equipe, mas estava à margem. Entretanto, não era isso o que lhe incomodava. Quão único queria era acabar de uma vez por todas com esse maldito assunto.

—ides contar logo? —perguntou-lhe MacSorley em voz baixa—. Somente restam duas semanas.

A mandíbula de Tor se esticou. dessa vez o outro homem tinha dado no alvo.

—Não, ainda não.

Todo rastro de jovialidade desapareceu do rosto do MacSorley, que se endureceu com uma severa expressão de raiva.

—antes de zarpar, merecem saber que não ides os capitanear quando tiver terminado aqui.

Suas palavras se aproximavam muito ao que pensava Tor, mas não queria as ouvir nesse momento. Olhou ao MacSorley entreabrindo os olhos de forma ameaçadora.

—Tome cuidado, escandinavo. Ainda não estais ao mando.

MacSorley não se intimidou ante sua advertência, embora Tor tampouco esperasse que o fizesse. O viking era quase tão temerário como loquaz.

—Sabes no que acredito? —Tor fingiu não tê-lo ouvido, com o olhar fixo na fileira de árvores, no outro lado do claro—. Acredito que não queres dizer porque desejas capitaneá-los, e lhe chateia a má maneira se sentir incapaz de fazê-lo. Mas cedo ou tarde terá que descer do burro, MacLeod. —Não disse «capitão». A Tor não aconteceu inadvertido o desprezo—. A guerra é iminente, e um dia destes, certamente antes do que pensa, teras que escolher. Esta equipe precisa de ti - disse com suavidade—. A Escócia lhe necessita.

Ao diabo com Escócia; seu dever era para com seu clã.

—Falam como o condenado de seu primo.

—Angus Og é um homem sábio. Pense. —Dito isto, deixou-o por fim em paz.

Que MacSorley fosse ao Hades! Tor não necessitava sua opinião. Fazia sua própria análise, e muitas vezes. Embora MacSorley estivesse certo, nada tinha mudado. Seguia sendo injustificável implicar a seu clã em uma guerra que não supunha uma ameaça para eles.

Duas semanas mais, pensou. Duas semanas mais, e teria completado com seu compromisso. O risco de que o descobrissem - e a traição que cometia ao adestrar homens para que lutassem pelo Bruce— ficaria para trás. Teria respeitado sua parte do trato ao treinar aos homens e teria conseguido tirar de cima ao Nicolson.

As águas voltariam para seu leito, por mais que fosse uma tortura para ele pensar que seus homens lutariam sem ele: ocuparia de novo uma posição de neutralidade na guerra da Escócia e no conflito entre o MacDougall e MacDonald.

Por mais que ele quisesse que as coisas fossem de outra maneira, suas obrigações para com seu clã eram sempre em primeiro.

*

Christina sabia que aquela era a oportunidade perfeita que esteve esperando para fazer algo importante.

Lembrando-se de quão categórico tinha sido Tor em relação à possibilidade de que ela saísse do castelo, foi em busca de lady Janet ou Colyne —pois lhe constava que Tor confiava em ambos—, mas não encontrou a nenhum dos dois. Como não se atrevia a envolver a ninguém mais, sabia que teria que lidar com ele por si mesmo. Não estava segura de que se encontrasse na broch, mas a julgar pela mensagem, parecia provável.

Foi mais fácil do que esperava. A única dificuldade surgiu quando tentou embarcar em um birlinn com destino à aldeia. O guarda do molhe se negou em um princípio a deixá-la partir. Ela não tinha a menor ideia do que fazer até que recordou a promessa de seu marido. Pelo visto, tinha mantido sua palavra de informar a seus homens em relação à condição que tinha imposto para casar-se com ele, já que, quando recordou ao guarda que devia haver um birlinn ao seu dispor para quando desejasse ir, ele cedeu.

Deixou que um punhado de guardas a acompanhasse à igreja, mas a seguir insistiu em que podia continuar sozinha a partir de ali. Uma vez que partiram, ela retornou ao bosque, voltando sobre os passos que a tinham levado até a broch a primeira vez. Estava escuro e não se atreveu a levar consigo uma tocha, mas por sorte a lua estava quase cheia e seu brilho era bastante intenso para atravessar o tênue manto de névoa que turvava o ar fresco da noite. Estava muito preocupada para ter medo; seu maior temor era não lembrar-se de como chegar ali.

Caminhava devagar e com determinação, mantendo a cabeça encurvada para ver por onde pisava. O chão era irregular, por isso tropeçou mais de uma vez. Mas já quase estava ali. Ao cabo de poucos minutos se encontraria perto do lugar do bosque do que tinha espiado a Tor e a seus homens.

Deteve-se e deu uma olhada para trás para assegurar-se de que ninguém a seguia. Não viu mais que as silhuetas escuras e ameaçadoras das árvores. Mesmo assim, não podia desterrar a sensação de que alguém a observava. Tudo estava totalmente tranqüilo…, muito tranqüilo.

De repente, viu-se imobilizada contra um peito revestido de aço e notou o fio inconfundivelmente frio de uma adaga contra o pescoço.

—Seu nome, moça - lhe grunhiu uma voz ao ouvido.

Essa vez não se tratava de seu marido.

—Lady Christina - gaguejou—. A esposa do chefe dos MacLeod.

Ele soltou um juramento, obrigou-a a dar volta e lhe tirou o capuz com brutalidade.

Christina se encontrava frente ao olhar furioso de sir Alexander Seton. Aproveitando-se de sua surpresa, dedicou-lhe uma reverência e disse: —Sir Alex, passou muito tempo.

—Milady. —inclinou-se automaticamente, como correspondia a um cavalheiro galante, fossem quais fossem as circunstâncias—. O que fazes aqui fora?

—Um dos homens de meu marido o traiu e interceptei uma mensagem. Planejam atacar esta noite, assim tinha que lhe avisar.

Ele endureceu sua expressão.

—Estás segura?

Christina assentiu.

Sir Alex a olhou com curiosidade.

—Espero que estejas certa.

Assim que tinha pronunciado estas sinistras palavras, um objeto alongado e metálico - um utensílio de lavoura, possivelmente?— emergiu das sombras, atrás de sua cabeça, e desceu com violência sobre o elmo de aço. Com um gemido de dor, sir Alex se desabou aos pés de Christina, reduzido a um vulto coberto de malha.

Ela espiou pela extremidade do olho algo que se movia, e uma figura com uma capa negra apareceu das trevas. Christina abriu a boca para gritar, mas era muito tarde. Um objeto contundente lhe golpeou a nuca. Teve a muito estranha impressão de ouvir alguém murmurar « sinto muito » antes que a escuridão a envolvesse.

Os sons não muito aprazíveis de uma bofetada e o exabrupto «maldito néscio inglês» a fizeram voltar a si. Em um princípio pareceu que a voz se dirigia a ela, mas ao abrir os olhos viu um guerreiro gigantesco e de aspecto aterrorizante que, inclinado sobre sir Alex, tentava despertá-lo.

Ela o tinha visto antes. Moreno, de sobrancelhas grossas e um rosto mais agreste que arrumado, parecia um homem que tinha participado de muitas brigas de tabernas a altas horas da noite. Então o recordou: era o guerreiro que tinha levantado aquela pedra enorme como se não pesasse virtualmente nada.

Deve ter deixado escapar um som, porque o guerreiro se afastou imediatamente de sir Alex e se aproximou dela.

—Está bem, moça?

—Isso acredito. —Ajudou-a a levantar-se. Depois de um momento de enjôo, a cabeça limpou em seguida. Ao levar mãos à nuca, apalpou um pequeno galo, mas por sorte não havia sangue. Sentia sobre si o olhar penetrante do homem—. E sir Alex? Ele encontra-se bem? —perguntou.

O guerreiro entrecerrou os olhos.

—Conhece o inglês?

Ela caiu em si de que não lhe havia dito quem era.

—Sou lady Christina Fraser.

Se isto o surpreendeu, dissimulou-o muito bem.

—A mulher do MacLeod?

Ela assentiu.

—E vocês são…?

Depois de titubear por um instante, ele respondeu:

—Incursionador. —Pelo visto, não queria lhe revelar seu nome nem se incomodou em lhe explicar por que.

—São da zona fronteiriça? —Ao advertir uma faísca de desconcerto em seus olhos, Christina supôs que tinha deduzido acertadamente a origem do sotaque.

—O que fazem vocês aqui? —inquiriu ele, trocando de tema—. O que ocorreu?

Recordou tudo de repente e se levantou de um salto, presa do pânico. Quanto tempo esteve inconsciente?

—Que horas são? —perguntou freneticamente. Antes que o homem pudesse responder, ela o agarrou pela parte dianteira de sua cota de malha. Ele não se moveu um centímetro. O que acontecia com esses guerreiros das Highlands? Por que tinham todos corpos do tamanho de montanhas?

—Explicarei-lhe isso tudo, mas não fica tempo… Deve me levar até meu marido.

Embora isso não parecesse fazer muita graça ao homem, seu tom o convenceu da urgência da situação.

—Estás em condições de andar?

Ela assentiu, e ele a ajudou a ficar de pé. Sir Alex era um homem corpulento, mas aquele «Incursionador» o levantou e o jogou ao ombro como um saco de farinha, sem muita delicadeza, por outra parte. Dava a impressão de que não sentia afeto pelo jovem cavalheiro. Sem dizer uma palavra mais, guiou-a através das árvores.

Quando saíram na clareira que se estendia ao pé da broch, gritou como um mocho, o que evidentemente era algum tipo de sinal. E apesar da noite estava avançada, havia um punhado de homens exercitando-se com armas diversas: espadas e tochas, pareceu a ela. Uma figura estava de pé ante a entrada, e pelas dimensões de sua sombra ela soube que era seu marido. Invadiu-a um grande alívio ao saber que tinha chegado a tempo. Tinha conseguido.

Tor foi a seu encontro e ela arrancou a correr para ele. Outros se juntaram ao redor para averiguar o que estava passando.

—Christina? —perguntou ele, com a voz aguda pela incredulidade—. O que ocorreu? O que faz aqui? Acreditava te ter advertido que não voltasse nunca para este lugar.

Ela ouviu a chispada de ira e se jogou em seus braços antes que estalasse. Ele a estreitou contra si de forma mecânica, mas afastou o olhar dela durante o tempo suficiente para ver o homenzarrão atirar a sir Alex a seus pés. Christina respirou aliviada ao advertir que o jovem cavalheiro se movia.

Tor soltou um juramento e a agarrou pelos ombros, olhando a de marco em marco.

—Têm-lhe feito mal?

Ela negou com a cabeça.

—Tenho um galo na cabeça, isso é tudo. Este homem, Incursionador, encontrou-nos. —Tor arqueou uma sobrancelha com expressão inquisitiva, mas o musculoso guerreiro se limitou a encolher os ombros como dando a entender que já explicaria mais tarde.

—Quem te fez isto? —A voz de Tor soou mais fria e letal do que ela a tinha ouvido nunca.

—Não sei, mas tem que me escutar. Não fica muito tempo. —devido a sua ânsia por contar-lhe o que saiu de sua boca foi uma corrente de palavras confusas e embaralhadas. Ao precaver-se da crescente impaciência de Tor, simplesmente lhe entregou a nota—. É a letra do Rhuairi - disse, sem saber até que ponto seria inteligível—. Ele sabe que está aqui e planeja lançar um ataque nesta noite.

—Parece a letra do Rhuairi, mas não tem pés nem cabeça.

Christina não alcançou a perguntar por que. Tor chamou a alguém em voz muito alta, e em pouco momento dois homens saíram da broch. Ela empalideceu ao reconhecer ao Rhuairi e ao Colyne.

Se Rhuairi era o espião, que fazia ali? Deveria ter posto terra por meio fazia tempo.

Esteve tão convencida de que tinha descoberto a verdade que inclusive quando surgiu a possibilidade de que não fosse assim, custou-lhe assimilá-lo.

Rhuairi se aproximou para ler a nota. Deu uma olhada rápida antes de devolver ao Tor.

—É uma boa imitação de minha letra, mas eu não escrevi isto.

Embora Tor falasse em um tom enganosamente sereno, Christina percebia a tormenta que estalava.

—Como diz que conseguiste esta nota?

Contou sua conversa com o irmão John.

—E disse que iria à aldeia? —perguntou Tor.

Christina assentiu, e ele proferiu uma maldição. O olhar que lhe lançou não destilava gratidão, a não ser escárnio, como se não pudesse acreditar que ela fosse tão estúpida.

—Quando? —inquiriu, sacudindo-a pelos ombros—. Quanto tempo estivestes inconsciente?

Ela abriu muito os olhos, totalmente desconcertada ante aquela reação tão diferente da que tinha imaginado.

—Não… não sei —gaguejou—. Uma hora, talvez mais.

Tor se voltou para o Incursionador em busca de uma confirmação.

—Eu tinha saído de ronda pelo este, e Seton pelo oeste. Como o inglês não respondeu a minha chamada, fui em sua busca. Pode ter sido uma hora, possivelmente mais.

—E não lhe ocorreu ir à caça de quem fez isso, seja quem é?

Incursionador apertou os lábios, que formaram uma linha tensa.

—Pareceu-me mais importante não deixar sozinha à moça e lhe trazer aqui.

Apesar da evidência de que a tinham enganado era evidente, Christina se negava a acreditar.

Tinha que haver alguma explicação.

—Equivoca-te a respeito ao irmão John. Não pode ter sido ele. —«Ele não me faria uma coisa assim», pensou—. Não disse a ele que sei ler.

—Está totalmente segura disso? —O olhar que lhe jogou seu marido teria podido cortar um diamante—. Reza por que esteja certa. Não tem idéia do que pode ter feito.

Sem lhe dirigir uma palavra mais, ordenou a dois dos homens que fossem ao povoado através do bosque para ver o que averiguavam, e a outros que preparassem o birlinn para navegar de retorno ao Dunvegan.

Christina estava petrificada de espanto. Tinha conduzido ao espião diretamente até seu marido? «Sinto muito.» A voz na escuridão de repente cobrou sentido. Ficou com vontade de tapar as orelhas com as mãos para não ouvir a verdade. «Deus santo, tem que ser de um engano. Por favor, que seja um engano.»

*

Tor aguardava com ar sério a que Lamont e MacLean retornassem do povoado. Mas já sabia o que tinha acontecido. O tabelião tinha seguido a Christina pelo bosque e se partira fazia um bom momento. Embora estivesse escuro, Tor tinha que supor que John tinha visto o suficiente para pôr em perigo a missão de seus homens.

A intromissão de Christina tinha posto em grave risco tanto a seu clã como a guarda secreta de Bruce. Vinte anos de guerra e esforços por restabelecer seu clã, e agora a vida de seus membros e a sua própria pendiam de um fio. Se o tabelião o relacionava com o Bruce e o rei Eduardo conseguia capturá-lo, sua vida não valeria nada. Mas ele não seria a única vítima. Seu clã cairia com ele, e se o tabelião tinha reconhecido a alguns dos integrantes da guarda secreta de Bruce, também teriam um alvo sobre a cabeça.

Como tinha podido permitir que ocorresse algo assim? Isso era impróprio dele. Tinha querido acreditar que ele e Christina eram diferentes. Acaso não tinha aprendido nada com a morte de seus pais?

Isto era exatamente o que queria evitar.

Era um maldito idiota. Pensava que Christina tinha entendido. Tinha sido um engano confiar nela. Ao tentar agradá-la, tinha falhado com sua guarda e tinha deixado que ela soubesse muito. Tinha permitido que uma mulher se interpusesse entre ele e seu dever para com seu clã.

Estava tão furioso que não se atrevia a lhe falar ou a olhá-la sequer. Entretanto, era perfeitamente consciente de que estava ali, sentada no assoalho, com os olhos exageradamente abertos e pálida. Fez-se forte e não deixou que o tremor de seus lábios ou as ligeiras sacudidas de seus ombros o comovessem. Nunca voltaria a comover-se por ela.

O pulso martelava nos ouvidos, por isso mal ouviu os homens quando retornaram e corroboraram o que ele já sabia. O tabelião tinha desaparecido. Ninguém o tinha visto partir, mas Tor não podia evitar supor que alguém o tinha ajudado a fugir.

Tinha a mandíbula apertada com tal força que notava que as veias do pescoço lhe tinham inchado. Ordenou com voz ensurdecedora que aparelhassem os navios. Tinha que encontrar ao traidor antes que transmitisse a informação que tinha averiguado. O fracasso não era uma opção.

Os homens limparam os aposentos principais. Tor repartiu instruções de último momento a Colyne e a Murdoch a fim de que preparassem o castelo para a guerra e se levantou para partir. O aposento ficou vazio salvo por sua esposa.

Ela deveria tê-lo deixado partir sem mais, mas nunca sabia quando deter-se. Agarrou-o pelo braço, e ele sentiu que a leve pressão de sua mão lhe queimava como um ferro em vermelho vivo, na pele, no peito. Entretanto, precaver-se de que sua debilidade por ela aumentara não fez a não ser avivar sua ira.

—Sinto muito - sussurrou Christina, retorcendo as mãos e olhando-o com olhos grandes e suplicantes—. Somente tentava ajudar.

Tor permaneceu totalmente imóvel, face à voragem desatada em seu interior. Seu rosto não demonstrava nem um traço de emoção. Não deixaria que seus rogos fizessem uma fresta nele. dessa vez não. Nunca voltaria a permitir que sua esposa ou ninguém interferisse em seu dever.

—Ajudar? —Soltou uma gargalhada para magoar—. Ao que parece é difícil pra ti compreender, mas não quero nem necessito sua ajuda. É minha esposa, Por Deus, não um de meus homens. Adverti-a que não te entremetesse. Pedi-te que nunca, sob nenhuma circunstância, aproximasse-te de novo ao broch. Sua «ajuda» pôs em grave perigo a meu clã, aos homens que estive treinando e a minha pessoa. Se não encontrarmos o tabelião, o rei Eduardo porá a minha cabeça um preço bastante alto para que inclusive meus aliados mais leais se voltem contra mim. Não tem idéia do que tem feito.

Embora Christina parecesse a ponto de desmoronar-se, ficou rígida para ouvir essas palavras.

—É verdade, dado que nunca te me dignaste dizer nada.

Tor se pugnou por manter o controle. Somente ela ousaria fazer recriminações depois do que acabava de ocorrer. Seu olhar se escureceu cortante como seu resistente tom de voz.

—E por uma boa razão, considerando o que tem feito. É justamente por isso que não queria que te implicasse. Deveria ter sido mais ardiloso e não ter revelado nada deste assunto.

A ousadia temporária de Christina veio abaixo quando começou a cair na conta da gravidade de seus atos.

—Tem todo direito de estar zangado, mas acreditava que corria perigo. Jamais teria imaginado que o irmão John tramasse algo assim. Tomei todas as precauções…

—Que obviamente não foram suficientes.

Os olhos de Christina se arrasaram em lágrimas. Inclinou-se para apoiar-se em Tor, mas ele ficou perfeitamente erguido. Tinha que fazer um esforço para não mover-se, para não sucumbir ao desejo urgente de estreitá-la entre seus braços e sacudi-la… ou beijá-la até que se fosse a dor que lhe oprimia o peito. Ele não era como os outros, maldita seja; supunha que devia ser insensível. Não era disso do que se apreciava? Não era isso o que o convertia em um grande líder e guerreiro? Apesar de tudo, o pranto de Christina corroía sua férrea determinação como o ácido.

—Juro que não voltará a ocorrer - murmurou ela.

Tor tinha que deixar bem claro como seriam exatamente as coisas a partir desse momento. Fixou nela um olhar duro e implacável.

—É obvio que não voltará a ocorrer, pois jamais te contarei uma maldita coisa mais.

Ela se separou dele, como se tivesse gritado, embora o havia dito com uma tranqüilidade glacial.

—Está zangado - sussurrou ela—. Não fala sério. —Dava a impressão de estar tentando convencer-se a si mesmo.

O olhar que lhe lançou teria gelado a lava do inferno.

—Nunca na minha vida falei mais a sério. —Tinha cometido um engano, mas estava resolvido a não repeti-lo. Era tão responsável como ela do acontecido. Tinha permitido que ela o convertesse em parte de sua pequena fantasia. Mas isso acabou—. Já te disse exatamente o que espero de ti: que fiscalize o castelo, que dê a luz a meus filhos e que deixe todo o resto em minhas mãos. Não espere nada mais que isso.

Christina estremeceu, profundamente ferida. Quem era esse homem desumano e inflexível? Nunca tinha falado dessa maneira; nem sequer na primeira ocasião em que o tinha visto tinha parecido tão frio e distante. Tão isento compaixão.

«Não fala sério — disse —. Está zangado.» Entretanto, a sombra de uma dúvida aninhou em seu coração.

Esforçou-se por lhe sustentar o olhar, decidida a não deixar-se intimidar. Tor não devia falar assim. Ela tinha errado, mas por um bom motivo, e suas intenções eram puras.

—Mereço sua ira, mas não seu desprezo. Não trabalhei de forma precipitada, nem era meu desejo que isto acontecesse. Sou vítima de um engano. Tem que saber que eu jamais faria algo para te prejudicar. —Fez uma pausa, antes de acrescentar em voz baixa—Amo-te.

Aguardou que Tor reagisse a sua declaração sincera, mas ele guardou um silêncio sepulcral, displicente, indiferente, magnânimo como um rei. O único indício de que a tinha ouvido era uma ligeira palidez em torno da boca.

Christina não esperava que ele correspondesse a seus sentimentos… ou sim?

Escapou-lhe uma lágrima. Custava-lhe falar pelo nó que tinha na garganta. Por que se estava comportando assim? Comportava-se dessa forma com todos outros, mas não com ela. Era o mesmo homem a quem tinha lido relatos na cama?

—Não faça isto. Não me separe de seu lado. Não mereço que me trate como se não significasse nada para ti. —Tentou tragar saliva, mas lhe doía—. Você não é assim.

Ele a olhou aos olhos, rebatendo-a em silêncio. Se ela tivesse percebido ira em sua expressão, teria mantido a esperança, mas no olhar frio e firme de seus olhos azul celeste não havia o menor indício de emoção. Christina retrocedeu um passo, como se o estivesse vendo pela primeira vez.

—Este é meu verdadeiro eu. Não sou seu condenado Lancelot. Isto não é uma fantasia romântica, e nada do que faça vai mudar isso, por muito boas que sejam suas intenções.

Ela soltou um grito afogado, como se Tor acabasse de lhe cravar uma adaga no coração. Seu rosto ficou lívido. Tor tinha arrojado luz sobre seus sonhos mais profundos e escuros para depois pisoteá-los. Tão transparente era Christina? Via ele suas tentativas por agradá-lo como um patética tentativa de conquistar seu coração? Encolheu-se de vergonha, pensando que talvez tivesse razão.

—Não sei a que te refere - disse por orgulho.

«Por favor, que não seja pena isso que percebo em seus olhos.»

—Crie que não me dei conta de como me olha, que não sei o que quer de mim? Mas não posso te dar o que desejas. É jovem, e tem a cabeça cheia de fantasias sobre cavalheiros e aventuras românticas. Sou um valente chefe das Highlands que só deve lealdade a seu clã.

—Então não há lugar para mim?

—Não na forma em que você deseja.

—As coisas não têm que ser assim.

Tor não moveu um só músculo do rosto.

—Sim, têm que ser assim.

—Você quer que seja - disse ela com raiva—. Quer estar sozinho para não sofrer se perder a alguém e para não ter que depender de ninguém. Começo a acreditar o que se diz de ti. Mas não é invencível. É um homem. As pessoas necessitam umas das outras, embora dêem passos em falso. Seu pai se equivocou ao te inculcar a idéia contrária. —Ao ver que tremia a mandíbula de Tor se perguntou se não tinha ido muito longe.

—Não sabe do que falas - acusou ele—. Estou seguro de que isto é um engano.

O coração deu um tombo a Christina quando compreendeu a que se referia. O engano era seu matrimônio.

Não dizia seriamente. Sem dúvida tinha tido algum desejo de casar-se com ela… ou não? Ninguém o tinha obrigado a nada. Por muito que lhe doesse, tinha que saber a verdade.

—por que te casou comigo?

Ele se voltou, e por sua atitude vacilante Christina soube que não queria responder a sua pergunta.

Sentia tal opressão no peito que mal podia respirar.

—Que importância tem isso agora? —inquiriu mordaz—. Para que manter as ilusões entre nós?

Tor lhe lançou um olhar severo, pois não tinha gostado de seu sarcasmo.

—Tu eras parte de meu acordo com o MacDonald. Casar-me contigo foi o preço que paguei em troca da paz. Embora, depois do que ocorreu hoje, é possível que perdi isso.

Christina sentiu que o coração lhe rompia em um milhão de pedacinhos que se dispersaram no chão, a seus pés.

Umas lágrimas grossas e quentes lhe escorreram pelas bochechas.

—E treinar esses homens também formava parte do trato?

Áspero e impassível, contou-lhe de maneira sucinta o que ela desejava saber desde o começo, lhe deixando meridianamente claro o que tinha posto em perigo com seus atos. Ela o escutou enquanto explicava os termos de seu acordo com o MacDonald, sua negativa inicial a adestrar aos homens e a oferta posterior de MacDonald que ele não tinha podido rechaçar.

«Nunca teve desejo de casar-se comigo.» O que o tinha feito mudar de idéia não tinha sido seu sentido da honra nem que albergasse sentimentos especiais para ela, a não ser seu dever para com seu clã. E ela tinha feito quão único Tor jamais poderia lhe perdoar: interpor-se entre seu clã e ele. Sentiu náuseas ao compreender a ameaça que tinha atraído sobre ele sem querer. Por culpa dela, a segurança do clã e todo aquilo pelo que Tor tinha lutado desde a morte de seus pais estavam em perigo.

Nunca voltaria a confiar nela. Ela sabia o muito que lhe havia custado baixar a guarda só um pouco, e que tomaria acontecido como um fracasso pessoal. Christina tornava realidade seu pior temor: que o fato de estreitar laços com alguém prejudicasse a seu clã. A promessa das últimas semanas se desvaneceu. Tor tinha se afastado dela, desta vez para sempre.

—E agora? —perguntou Christina—. Sente o mesmo que antes?

Pareceu-lhe que a determinação em seu olhar fraquejava por uns instantes, mas não foi mais que um efeito da luz das velas.

—Que importância tem isso? É minha esposa.

Foi o golpe de graça. As fantasias de Christina lhe tinham impedido de ver a realidade. Pela primeira vez, viu as coisas com claridade. Tor tinha razão: nunca poderia lhe dar o que ela queria. Sempre haveria uma parte dele que lhe estaria vedada. Embora sentisse algo por ela, jamais o reconheceria. Não a amava; nunca a amaria. Ela tinha se enganado, inventando desculpas, convencendo-se de que, debaixo aquela aparência fria, ele a queria, de que somente mantinha essa aparência para proteger-se, de que simplesmente não sabia como demonstrar seus sentimentos.

Mas se equivocava. Tentar lhe arrancar uma amostra de emoção era como tentar tirar água de uma pedra espremendo-a. Ela não pretendia encher uma taça, somente conseguir umas gotas. Mas ele nem sequer era capaz de lhe oferecer isso.

E Christina se fartou de tentar. Entregou-se a ele por completo, mas isso não tinha sido suficiente. Nunca seria.

Enxugou as lágrimas dos olhos. Assim seriam as coisas entre eles. Sempre. Nunca seria nada especial. Essa sensação não tinha sido nada a não ser fruto de sua imaginação. Tor não era seu Lancelot, a não ser um desumano chefe das Highlands que devia a seu clã.

Ouviram golpes na porta.

—Estamos preparados, capitão - disse MacSorley.

Tor se dirigiu à porta.

—Sinto muito - disse ela por última vez.

—Muito tarde para desculpar-se- replicou ele, impávido—. Se quer ajudar, reza para que encontre seu amigo antes que faça cair a ira de Eduardo sobre todos nós.

A opressão no peito de Christina aumentou enquanto o via partir, tentando gravar cada detalhe na memória, sabendo em seu coração o que sua cabeça ainda ignorava.

—Adeus… —sussurrou, ao tempo que a porta se fechava atrás dele.

Percebeu de que o havia dito com toda sinceridade. Talvez fosse inevitável. Um matrimônio apoiado no engano estava condenado desde o começo. Mas não podia continuar assim, fingindo, dando-se contra um muro de pedra. Talvez ele tivesse suavizado as barreiras entre eles, mas seguiam estando ali; sempre estariam. Sempre viveriam em mundos separados. Ela não se conformava com isso.

Queria —não, merecia— algo melhor. Tor não era o único que tinha direito a ser feliz.

O irônico era que lhe tinha aberto os olhos. Christina já não era a jovem assustada que se encolhia quando seu pai lhe levantava a mão, nem o cachorrinho amoroso que se contentava com qualquer sobra de carinho que seu marido se dignasse lhe jogar. Tinha muito que oferecer. Sabia ler e escrever, fazer cálculos mentais complexos, acondicionar um torreão escuro para convertê-lo em um lar e, sobre tudo, amar com toda sua alma. Se ele era incapaz de ver isso, ele perdia.

O pai Stephen tinha razão. Ela merecia a alguém que soubesse apreciar suas qualidades e querê-la por isso, que não lhe desse as costas cada vez que cometesse um erro. Queria ser importante para alguém. Talvez fosse uma aspiração pouco realista, mas a alternativa era muito pior. A vida que Tor podia lhe dar não só lhe romperia o coração, mas sim lhe quebraria o espírito. Ela podia viver com o coração quebrado, mas não sem sua alma.

Respirou fundo e secou as lágrimas dos olhos. Somente podia fazer uma coisa.


Capítulo 24


Christina, aninhada no birlinn, observava os ameaçadores muros de pedra do castelo do Dunvegan esfumar-se na bruma da manhã, e seu coração quebrado se desmoronou um pouco mais. Ao longo dos últimos meses, tinha chegado a sentir apego pelo velho montão de pedras que formavam o imponente castelo e pelos taciturnos ocupantes de seu grande salão. Ficaria terrivelmente com saudades.

Também sentiria muita falta de Tor. Seus olhos, que acreditava incapazes de derramar mais lágrimas, encheram-se de novo, mas ela os enxugou com determinação. Tinha tomado sua decisão e teria que ater-se a todas as conseqüências.

Acabou. Ia deixá-lo. Abandonar ao homem que amava. Ia obrigar a seu marido a respeitar sua promessa de deixá-la retirar-se ao convento de Iona, uma promessa que ela sabia que Tor não acreditava jamais que teria que cumprir. Detestava fugir desse modo, mas não estava segura de que ele mantivesse sua palavra desse-lhe oportunidade de opor-se.

Quando tinha descoberto que já havia um birlinn preparado para navegar rumo à ilha do Mull, Christina tinha pedido à tripulação que a levasse primeiro a Iona. Embora isso os obrigasse a dar uma pequena volta, era mais simples que aparelhar outra embarcação. Christina, que não tinha tido tempo de dispor de seus pertences para a partida, tinha embarcado com pouco mais que uma muda de roupa e alguns mimos pessoais. Mhairi recolheria o resto de suas coisas e as mandaria a Iona antes de retornar junto a sua família no Touchfraser. Não levou consigo seu prezado livro. O relato não fazia mais que infundir a jovem falsas esperanças e sonhos impossíveis.

Havia dito aos guardas que a acompanhavam que ia visitar sua irmã, mas sabia que não tinham acreditado de tudo. Ao contrário deles, não tinha um elmo de aço que ocultasse seus olhos inchados e seu rosto manchado de lágrimas.

Foi uma travessia rude, pois o mar estava agitado. Christina estava sentada sozinha, perto da proa, coberta com uma capa e peles, sentindo-se mais desventurada que nunca, e não pelo vento ou o frio.

Em mais de uma ocasião esteve a ponto de indicar aos guardas que virassem de volta, mas afugentava suas dúvidas sobre a conveniência de partir repetindo em seu foro interno que romper o vínculo entre eles seria o melhor para Tor também. O matrimônio não desejado por ele so lhe tinha ocasionado problemas. Talvez sua partida lhe ajudasse a sair do embrulho em que ela o tinha metido.

Não obstante, saber que sua decisão era a correta não fazia que fosse mais fácil. Uma parte dela desejava ser capaz de contentar-se com meia vida, mas Christina sabia que o que ele podia lhe oferecer nunca a satisfaria e que jamais deixaria de pressioná-lo para que lhe brindasse com algo mais. Ele, por sua parte, trataria-a cada vez mais com maior frieza até que ela acabasse por odiá-lo… e por odiar-se a si mesma.

Não, era melhor assim. Sua infelicidade e desespero desapareceriam com o tempo. Embora o certo fosse que, no momento, longe de diminuir, pioravam conforme avançava o dia e o navio se afastava do lugar mais parecido a um lar que ela tinha conhecido.

Levavam navegando algumas horas, percorrendo o trajeto inverso ao que ela tinha feito há apenas uns meses. Reconheceu alguns das ilhotas que vira durante a viagem para o norte: Rum, Eigg e Muck. Embora o céu estivesse nublado e cinza, a bruma limpou o suficiente para que de quando em quando vislumbrasse a costa escocesa a sua esquerda. Logo se encontrariam entre o Coll e Mull, e justo ao sul estaria a ilha Iona. Se o vento não amainasse, ela logo estaria instalada a salvo entre as paredes do famoso convento junto com Beatrix. Desfrutaria da segurança que procurava, mas sem as ilusões.

Tão absorta estava em seu sofrimento que demorou um momento em ver que algo ia mau. As ordens enérgicas do Murdoch, o escudeiro de Tor e capitão de sua guarda, ressonavam de forma cada vez mais premente.

—O que ocorre? —perguntou-lhe Christina ao jovem guerreiro que ia sentado no banco situado em frente ao dela.

—Estou seguro de que não é nada, milady. —Assinalou para trás, e ela alcançou a divisar as velas de dois navios ao longe—. Essas galeras estiveram nos seguindo perto de uma hora. O capitão rodeará a ilha da Staffa a toda velocidade e estou seguro que conseguiremos burlá-los.

—Parecem galeras bastante grandes - observou ela em um tom cauteloso.

—Os assaltos no mar não são freqüentes, milady. Realizamos esta rota com regularidade e rara vez sofremos contratempos.

Assaltos? Face à afirmação do homem de que certamente não era nada, Christina sentiu que lhe acelerava o pulso, arrancando-a de sua letargia. Minutos depois, Murdoch gritou aos tripulantes que se agarrassem forte, e a embarcação virou bruscamente à esquerda para circunavegar a pequena ilha com suas estranhas formações rochosas. Ela nunca tinha visto nada parecido aquelas colunas hexagonais de rocha negra, mas não dedicou um segundo às estudar, pois estava muito nervosa, olhando para trás, com a esperança de que o veleiro que os seguia passasse, e tentando evitar o pânico quando viu que continuavam atrás deles.

Embora soubesse que o guerreiro que tinha ao lado estava ocupado remando, não pôde deixar de comentar:

—Parece-me que ainda nos seguem.

Ele não passou por cima do temor que destilava sua voz. Christina advertiu que não queria assustá-la, mas tampouco subtrair a importância do que estava acontecendo.

—Tentaremos deixá-los para trás.

«Tentaremos.» Mas ela sabia tão bem como ele que somente era questão de tempo que os navios maiores lhe alcançassem. Em condições de vento forte, o birlinn era mais veloz, mas a galera tinha quase o dobro de remos.

—São piratas?

O homem torceu a boca com expressão sombria. Os navios se aproximavam e se achavam já a poucas centenas de milhas.

—Algo pior -respondeu—. Ao que parece um deles é inglês.

—O que é que querem?

Ele sacudiu a cabeça.

—Ignoro, milady.

—Todos a coberto! —bramou de repente Murdoch.

Christina se viu derrubada de um empurrão, e um teto de escudos se formou sobre sua cabeça, poucos segundos antes que ouvisse o tamborilar surdo e arrepiante das flechas que choviam sobre eles. Estava tão aflita que demorou um momento em compreender o que ocorria.

—por que nos atacam? —perguntou, mas os homens estavam muito ocupados tentando evitar a seus perseguidores e contra-atacar com suas próprias flechas para lhe responder.

—Rendeis-vos - gritou uma voz ao longe, e Christina soube que procedia de um dos navios.

Não fez falta ouvir a soez resposta do Murdoch para saber o que fariam os homens de Tor. Eles viviam para lutar. Inclusive naquele momento ela percebia sua ânsia por entrar em ação. Render-se não estava em seu caráter. Antes preferiam a morte.

Entretanto, Christina não ia permitir se podia evitar. Tinha que fazer algo.

—Não - disse, abrindo passo por entre os escudos para captar a atenção do capitão—. Façam o que lhe pede, Murdoch. Ao menos tentem averiguar o que querem.

O rosto do Murdoch se converteu em uma máscara de fúria. Saltava à vista que nunca antes tinha recebido ordens de uma mulher e queria fazer caso omisso dela. Fugir de um combate ia contra sua natureza de guerreiro, mas, por outro lado, sabia que estava obrigado a proteger a sua senhora. Christina respirou aliviada quando Murdoch afastou o olhar dela e, dirigindo-se a vozes ao navio mais próximo -que ainda estava a certa distância—, fez o que lhe pedia.

—O que ocultam filhos do Leod? —foi à resposta.

«Sabem quem somos», pensou ela. Deviam ter reconhecido a insígnia: as três pernas recobertas de malha dobradas formando um triângulo, que denotavam que o clã descendia dos reis do Man, e um birlinn negro, símbolo de sua ascendência escandinava, sobre campo de gules e azur.

—nos entreguem a metade e lhe deixaremos partir em paz - acrescentou outro homem.

«Deus santo, acreditam que transportamos riquezas! Não são mais que piratas ingleses.»

—Não temos nada que possa lhes interessar - replicou Murdoch—. Não levamos moedas nem mercadorias valiosas a bordo.

Ficou claro que seus perseguidores não tinham acreditado quando lançaram contra eles outra chuva de flechas. Christina se viu empurrada de novo sob o toldo de escudos e já não voltou a intervir. Não serviria de nada, pois estavam decididos a roubar. Seu pai falava freqüentemente das atrocidades dos ingleses, assim por que se surpreendia?

Notou que o navio se movia de novo enquanto os homens manobravam para encontrar a rajada de vento que lhe permitisse ficar fora do alcance das flechas e escapar.

Desde debaixo dos escudos, Christina ouviu gemer a um homem que tinha perto e soube que uma das flechas dos assaltantes tinha dado no alvo.

Afogou um grito de espanto tapando a boca com o punho. Estava tão assustada que não sabia o que fazer. Com o rosto apoiado sobre os joelhos, tentou isolar do fragor horrível que a rodeava. Esteve a ponto de cair pela amurada quando a embarcação foi investida pelo outro lado. O estrondo soava cada vez mais forte; mais gritos, mais flecha, o som de um gancho de ferro de metal jogado para prender os dois navios entre si, seguido pelo balanço provocado pelo movimento dos homens e o entrechocar de espadas quando a batalha começou em um estrépito de aço e morte. Christina via a muralha de pernas dos homens que a rodeavam, e sabia que morreriam protegendo-a.

Os guardas de seu marido figuravam entre os melhores guerreiros das ilhas, mas eram somente uma vintena, enquanto que o inimigo os quadruplicava em número, a julgar pelo tamanho de suas embarcações.

Os sons eram dilaceradores: gemidos de dor, rangidos de ossos, alaridos de agonia. A bílis lhe subiu pela garganta enquanto os homens caíam em torno dela. Homens que conhecia. O terror se apropriou de Christina quase por completo. Aquilo era muito.

Tinha vontade de desmaiar, mas não queria envergonhar aqueles homens que pereciam enquanto tentavam mantê-la a salvo. Em troca, esforçou-se por não cair no atordoamento.

Cada minuto que passava era insuportável. Embora os guardas do MacLeod lutassem com galhardia, acabaram por sucumbir ante a superioridade numérica do inimigo. Quão guerreiros a rodeavam começaram a cair. Olhou a Murdoch nos olhos quando se desabou sobre ela e compreendeu sua intenção. Pugnando por reprimir um grito, ocultou-se sob o escudo de seu corpo ensangüentado.

Ainda pior que os sons da batalha foi o silêncio que se impôs quando terminou, pois sabia que todos tinham morrido.

—Afastem os cadáveres - ouviu dizer um homem—. Vejamos o que é o que estavam tão ansiosos por proteger.

Os últimos esforços do Murdoch tinham sido inúteis. Um momento depois, alguém a tirou de forma brusca de seu esconderijo.

—É uma moça - disse o homem, lhe tirando o capuz—. E bastante bonita, por certo.

Um aroma denso como a cobre a afligiu. Deu uma olhada em redor, aos restos da matança e os rostos conhecidos foi demais e vomitou sobre as grebas e os escarpes de aço do homem que a segurava.

Este proferiu um juramento e atirou uma bofetada com o dorso da mão.

—Zorra estúpida!

—Como te chamas?

Christina limpou a boca e levantou o olhar para o homem que tinha falado. Sob a viseira de aço de seu elmo, seus olhos se cravaram nela como duas adagas negras. Pela qualidade de sua malha e a sobreveste fina que levava sobre o peito, supôs que era o cabeça dos ingleses.

Ela ergueu o queixo e lhe sustentou o olhar.

—Christina, esposa do chefe dos MacLeod. —O nome do temido chefe não impressionou absolutamente ao altivo inglês. O desdém que destilava seu rosto cruel e curtido não impediu a Christina acrescentar—: Com que autoridade assalta este navio e assassinam estes homens?

A julgar pela expressão do homem, não tinha gostado de seu tom desafiante.

—a de Eduardo, rei da Inglaterra, senhor da Irlanda, príncipe de Gales e duque da Aquitania pela graça de Deus. Seus homens opuseram resistência - mentiu descaradamente. Afastou sua atenção dela e se dirigiu ao soldado que a tinha agarrado pelo braço—. Não lhe entretenham muito. —O líder inglês percorreu com o olhar a outros homens que o rodeavam—. E o mesmo digo a todo aquele que deseje uma parte dos despojos. Aqui não há nada. Quando tiverem terminado, queimem tudo.

Christina conteve outra arcada ao compreender o que pretendiam fazer. Iriam violentá-la e logo matá-la, a fim de que não ficassem testemunhas de seu crime. A esposa de um chefe das Highlands não valia nada para eles. Néscios! Tor os caçariam quando se inteirasse do ocorrido.

A segunda nave tinha ancorado ao outro lado do birlinn. Ao fixar-se na roupa e as armaduras de seus ocupantes, Christina viu que se tratava de highlanders. Escrutinou aqueles rostos ásperos e selvagens em busca do menor raio de piedade, mas não o encontrou. De repente um homem deu um passo adiante. Seu olhar era penetrante. Parecia familiar.

—Acredito que a moça pode nos ser útil, capitão.

O líder dos ingleses se voltou para quem tinha falado com somente um pouco menos de desprezo do que tinha mostrado a ela.

—E que é você?

—Arthur Campbell.

—Campbell? Não é seu irmão um dos companheiros de Bruce?

Sem dúvida por isso o tinha reconhecido Christina. Recordava a sir Colin Campbell do Finlaggan. Arthur, embora vinte anos mais jovem que seu diferente irmão, assemelhava-se a ele.

—Sim, e outros dois irmãos e eu somos leais ao senhor do Badenoch. Comyn o Vermelho.

Não era incomum que as famílias estivessem divididas. O capitão inglês aceitou sua explicação, e Campbell prosseguiu: —A moça se casou recentemente com o chefe dos MacLeod; um matrimônio por amor, conforme dizem. —Ela reprimiu uma gargalhada aguda de histeria que lhe subiu à garganta—. Estará ansioso por recuperá-la. Possivelmente ela possa nos ajudar a persuadi-lo de que nossa causa é justa. —O capitão não parecia muito convencido. Como a maioria dos ingleses, cometia o engano de subestimar aos «bárbaros» das Highlands—. Também é a filha de Andrew Fraser - adicionou.

Isso fez que o capitão prestasse atenção. Olhou-a, entreabrindo os olhos.

—É isso certo?

Christina assentiu, depois de decidir que o mais prudente era não mencionar que a ameaça de acabar com sua vida não daria muito resultado com seu pai.

Um sorriso se estendeu lentamente em seu rosto cruel.

—tragam-me isso - ordenou ao homem que ainda a segurava—. Talvez possa nos ser útil, apesar de tudo. E se não… —deu de ombros.

Ela soube o que significava esse gesto.

Embora sem dúvida a motivação de Arthur Campbell não tinha sido ajudá-la, lhe dedicou um olhar de gratidão, mas ele já tinha desaparecido entre a multidão de guardas que tripulavam a segunda galera. Entretanto, sua oportuna intervenção não tinha sido mais que uma salvação temporária; seu pai não moveria um dedo para socorrê-la. Quanto a Tor…

Não lhe restava dúvida de que sairia em sua busca. Embora não a amasse, consideraria que era seu dever protegê-la. Mas descobriria a tempo o que tinha acontecido?

*

O êxito deveria ter melhor sabor na sua boca. A equipe havia retornado a demonstrar que suas habilidades eram do que mais valiosas, da perícia do Lamont como rastreador até os dotes de marinheiro do MacSorley, passando pelos instintos do MacRuairi, que os tinham levado a dirigir-se para o Dunstaffnage. Tor duvidava que tivesse conseguido sem eles. Apesar de tudo, durante a viagem - inclusive quando tinham alcançado ao irmão John e MacRuairi o tinha «persuadido» de que lhe revelasse para quem trabalhava— Tor não podia desterrar a tristeza que o envolvia como uma nuvem negra.

A intromissão de Christina poderia ter estragado tudo, mas ela so queria ajudar. Ele não podia reprovar-lhe. Tinham-na enganado e simplesmente tinha tentado fazer o correto. A culpa era dele, por lhe contar mais do que devia. Não permitiria que isso voltasse a ocorrer. Faria o que tivesse que fazer. Repetiu a si mesmo inumeráveis vezes. Por que não podia deixar de ver em sua mente a expressão abatida de Christina?

Afrouxou a cota, tentando aliviar o persistente desconforto que sentia no peito.

Queria deixar para trás o passado. Quando os homens partissem, ele esperava poder virar a página e voltar para um certo estado de normalidade…, se é que tal coisa era possível com Christina. Nada tinha sido normal do momento em que tinha pousado os olhos nela pela primeira vez.

Duas noites depois de sua partida, Tor subiu a escada do molhe, depois de ter coroado sua missão com um êxito terminante. Tinha impedido que o tabelião divulgasse a informação e tinha averiguado quem era o responsável pelos últimos ataques lançados contra Dunvegan. John MacDougall do Lorne ganhou um inimigo poderoso, e Angus Og MacDonald tinha um novo aliado contra seu traiçoeiro parente. Tor já não se manteria à margem do conflito entre os dois influentes clãs ilhéus.

Enquanto se aproximava do grande salão, pensava no que diria para sua esposa para acabar com a discórdia entre eles, mas imediatamente intuiu que algo ia mau. O lugar estava muito escuro, muito tranqüilo. Era como se um pano mortuário cobrisse tudo.

Rhuairi e Colyne foram a seu encontro a passo veloz. Ao ver sua expressão, ele soube que foram lhe dar uma má notícia.

—O que acontece? —quis saber.

Eles se olharam, nervosos, mas Colyne foi o primeiro em falar.

—Trata-se da senhora, RI tuath.

Um calafrio lhe percorreu as costas. Obrigou-se a manter um tom sereno, Apesar de que todos seus músculos se esticaram em um estado de máxima alerta.

—Está doente?

Colyne sacudiu a cabeça.

—Não, chefe - respondeu Rhuairi—. Se foi.

Zumbiram-lhe os ouvidos como se alguém acabasse de lhe golpear o elmo com uma espada. Demorou uns momentos em compreender o que o senescal havia dito. Agarrou ao Rhuairi pelo broche de seu brat de quadros.

—Como que se foi?

Tor escutou a explicação do senescal de que ela partiu na companhia dos homens que se dirigiam ao Mull com uma mescla de incredulidade e um pânico crescente conforme assimilava o ocorrido. Christina tinha aproveitado sua estúpida promessa de permitir que se retirasse a um convento. A ele jamais teria passado pela cabeça que ela chegaria a fazê-lo algum dia, embora em realidade não soubesse por que. Tinha-lhe dado uma saída; por que lhe surpreendia que ela a tivesse utilizado?

Deus sabia que não lhe tinha dado nenhuma razão para ficar. Ela não tinha feito outra coisa que tentar agradá-lo desde que se casaram. Tinha-lhe entregue seu coração, e não tinha dado nada em troca. Comportou-se como um bastardo insensível e tinha acabado por afugentá-la.

Estava sozinho. Não era isso o que queria? Não sentir nada a não ser um vazio em seu interior? Mas não era um vazio o que sentia, a não ser uma dor aguda e lacerante. Sentia-se como se acabassem de lhe cravar uma espada no peito e lhe tivessem esmigalhado as vísceras.

Uma vida inteira de solidão se abria ante ele. Uma vida em que somente teriam a guerra e suas responsabilidades para com seu clã. Uma vida de infelicidade.

Deus santo, o que tinha feito?

Deveria estar furioso porque ela se atrevera a abandoná-lo. Os highlanders eram célebres por seu orgulho, e ele não era uma exceção. Entretanto, unicamente podia pensar no dano que devia ter feito para que chegasse a esse extremo. Sentia-se doente somente de pensar. Tinha que recuperá-la. Não porque fosse sua mulher - porque lhe pertencesse —mas sim porque seu lugar era ali a seu lado.

Não sabia por que albergava sentimentos tão intensos, mas teria que demonstrar-lhe custasse o que custasse.

Continuou caminhando até o salão, com os dois homens seguindo-o a toda pressa. Uns poucos membros do clã dormiam ao calor do fogo, mas a maioria estava sentada em silencio em torno das longas mesas. O ambiente estava tal como ele tinha deixado, mas parecia diferente. Lôbrega, como se toda a alegria se apagou. Seus cães ergueram a cabeça quando entrou. Em vez de correr a recebê-lo, dirigiram-lhe um olhar de desilusão e apoiaram de novo a cabeça sobre suas patas.

—Onde está Murdoch? —perguntou com impaciência.

Ambos os homens o olharam, desanimados. Colyne sacudiu a cabeça.

—Com os homens que foram zarpar para o Mull. Não retornaram.

—Como que não retornaram? —estalou Tor—. Até tendo em conta o tempo acrescentado da viagem a Iona, deveriam ter retornado ontem.

Nenhum dos dois respondeu. De repente, o estômago de Tor deu um tombo, como se tivesse tragado um bocado de carne putrefata. O pânico começou a crescer em seu interior, mas o reprimiu. Christina estava bem. Tinha que haver uma explicação. Mas Rhuairi não tinha terminado.

—Chegou isto para você faz menos de uma hora. O mensageiro disse que ninguém devia vê-lo exceto você.

Tor o abriu, atendido por uma negra premonição.

Parou-lhe o coração e seu rosto ficou lívido quando leu as palavras escritas na parte de pergaminho, palavras que iriam mudar sua a vida.

«Homens mortos. Os ingleses capturaram a sua dama. Dumfries. Não demorem.»

«Não demorem.» Tinham assassinado seus homens e tinham a intenção de matar a ela também.

A perda de seus homens o punha furioso. Tinha vontades de estrangular a alguém. Mas ao pensar que Christina corria perigo…

A bílis lhe queimou a garganta. Embora sempre tivesse acreditado que não tinha medo de nada, um medo maior que jamais sentira se deu procuração dele; um medo escuro que lhe consumia a alma e corroía como o ácido a cobertura de aço de seu coração. Sentia-se como em carne viva. Nu. E mais apavorado do que estivera em toda sua vida.

Se inteirar-se da ida de Christina o tinha arrancado de seu estupor emocional, a notícia de que tinha caído prisioneira dos ingleses foi como um brilho de lucidez que o obrigou a aceitar a verdade.

Amava-a.

Muito tarde compreendeu o insensato que tinha sido. Sua obstinação em orgulhar-se por sua crença de que era imune às emoções tinha impedido de ver o que estava ali desde o começo. Essa era a razão pela que nunca deixava de pensar nela. A razão pela que procurava pretextos para passar tempo em sua companhia. A razão pela que lhe fazer o amor provocava uma sensação tão diferente. Era o que fazia que se sentisse feliz simplesmente ao estreitá-la entre seus braços durante horas e escutar sua voz enquanto lia essas ridículas histórias românticas. Era o motivo pelo que desejava despertar a seu lado todos os dias pelo resto de sua vida. Era o motivo pelo que lhe saltava o coração quando entrava em um aposento e ela levantava o olhar para ele, com um amplo sorriso desenhando-se o no rosto.

Ela havia devolvido a calidez a sua vida, tinha quebrado a muralha de gelo que tinha erigido em seu interior e mergulhou até o mais profundo para encontrar emoções que levavam muito tempo enterradas.

Mas talvez já não tivesse ocasião de dizer-lhe.

Imagens longamente reprimidas desfilaram ante seus olhos. O corpo nu e maltratado de sua mãe coberto de hematomas e sangue, com uma expressão de terror fixada para sempre em seu olhar. E logo recordou o resto: como tinha se jogado sobre ela e se negara a permitir que os homens de seu pai a levassem; quanto tinha chorado; como a dor o tinha abrasado e destroçado por dentro, igual a agora.

Não podia ocorrer isso a ela também. A idéia de não voltar a vê-la jamais…, de não voltar a tocá-la…, de não aspirar nunca mais seu aroma suave e floral era insuportável. Não podia perdê-la.

Algo estalou em seu interior. Raiva. Loucura. Uma determinação obsessiva por encontrá-la e devolver o golpe com a espada da vingança. Jurou que encontraria a cada um dos responsáveis pelo assassinato de seus homens, e se haviam tocado um só cabelo da sedosa e negra cabeleira de Christina, asseguraria-se de que sofressem uma morte lenta e dolorosa.

Os escudeiros de Eduardo tinham cometido um engano de fatais conseqüências. Ao matar aos homens de Tor e capturar a sua esposa, os ingleses tinham feito que a guerra da Escócia passasse a ser a guerra de Tor.

O caminho que devia seguir estava claro. De momento começou a fazer preparativos para reunir-se com os homens na broch. Necessitaria-os se queria ter alguma possibilidade de resgatar Christina. Surpreendentemente, reconhecer isto para seus adentros não lhe custou o menor esforço. Antes de partir, entregou ao Rhuairi uma mensagem breve para que o despachasse ao MacDonald: «Estamos preparados».

Tinha tomado uma decisão. Não haveria volta atrás.


—Peço-lhe desculpas pelas maneiras do capitão, lady Christina. Ao que parece se excedeu um pouco em seu zelo por lhe interrogar.

Um pouco? Christina olhou fixamente ao comandante inglês ricamente vestido e impecavelmente arrumado, que estava sentado de frente a ela nos luxuosos aposentos principais do castelo do Dumfries. Seus olhos delatavam que não o lamentava absolutamente. Entretanto, bater em uma mulher —embora fosse escocesa— era pouco cavalheiresco. Lorde Seagrave, com sua sobreveste impoluta bordada em branco e dourado e sua malha reluzente, deu-lhe a impressão de ser o tipo de homem a quem não gostava de manchar as mãos com os aspectos mais desagradáveis de suas responsabilidades como comandante da guarnição inglesa no castelo do Dumfries, no Galloway. Perto de cinqüenta anos, era um dos comandantes mais velhos do rei em Escócia e tinha participado de quase todas as lutas principais da última década.

Embora tivesse vontade de lhe espetar que guardasse suas desculpas e lhe recriminar que tivessem assaltado seu navio sem motivo e assassinado a todos aqueles homens, Christina sabia que para proteger a seu marido e a sua família teria que seguir interpretando o papel de rapariga assustada e sorrindo como uma parva, que era o que tinha feito no momento de sua captura. Os últimos dois dias tinham sido os mais longos de sua vida. Horrorizada pela matança gratuita dos homens de seu marido, tinha vivido a cada segundo temerosa de que mudassem de idéia. Tinha que sobreviver durante o tempo suficiente para informar a alguém do acontecido. Era imprescindível vingar aquelas mortes.

O capitão inglês tinha mitigado o tédio da longa travessia por mar interrogando-a sobre as atividades de seu pai e seu marido. Quando não gostava da resposta, golpeava-a. Sua arrogância, não obstante, tinha virado em favor de Christina, pois era evidente que na realidade não acreditava que ela possuísse informação valiosa. A maioria dos homens considerava as mulheres seres inferiores, e os ingleses, com seu altivo sentimento de superioridade, eram ainda piores.

Christina tinha se informado de muitas mais coisas das que tinha revelado. Os homens falavam sem disfarces em sua presença, sobre tudo de noite. Ela tinha descoberto que acabavam de estar no castelo do Inverlochy, o bastão nas Highlands do senhor do Badenoch, Comyn o Vermelho. A escolta dos highlanders estava integrada em sua maior parte por membros do clã Comyn e seus parentes do clã MacDougall.

Quando chegaram ao castelo do Galloway, conduziram a Christina à praça dos ingleses no Dumfries enquanto os highlanders se dirigiam ao castelo do Dalswinton para aguardar a chegada de seu senhor.

Estava virtualmente segura de que tramavam alguma ação nefasta relacionada com o conde de Carrick, Robert de Bruce. Um dos guardas do Comyn tinha mencionado de passagem que estava preso em uma prisão inglesa, mas isso era tudo o que ela tinha conseguido ouvir. Esperava averiguar algo mais de boca de lorde Seagrave.

Resistiu o impulso de levar a mão à cara, que tinha inchada e arroxeado, e dizer a lorde Seagrave exatamente onde podia meter sua compaixão. Seus machucados desapareceriam, e suas probabilidades de escapar seriam mais altas se eles a subestimavam. Antes morreria que trair seu marido. Os últimos meses tinham despertado nela uma força e um valor que não sabia que possuía. Se mostrasses intimidada, era unicamente por interpretar um papel. Assim, em vez de replicar com raiva, agachou a cabeça e disse: —Meu pai é um súdito leal do rei. O que seu homem insinua… —inclinou-se para ele e sussurrou—: É traição.

Esperava haver dado a sua voz o toque justo de surpresa e inocência.

Ele sorriu com indulgência, como em deferência a seu simples intelecto feminino.

—Esquecestes que seu pai esteve na prisão por traição não faz muito tempo?

Christina abriu muito os olhos.

—Certamente que não, milorde. Por isso mesmo posso lhe garantir sua lealdade para o rei. Embora diga que o trataram com toda cortesia - mentiu— não tem o menor desejo de voltar. —Baixou a voz com uma atitude de cumplicidade—. Acredito que é porque sentia falta de seu uísque e os bolos de maçã de seu cozinheiro. —Franziu o sobrecenho de maneira forçada—. Tem maçãs na Inglaterra?

Quando o comandante a olhou como se fosse parva de arremate, ela esperou não ter carregado muito as tintas.

—Temo que sim.

—Então talvez fossem as ameixas. Estão demais de ricas. Têm ameixas também?

A lorde Seagrave começava a esgotar a paciência. Aquela mulher tinha intercalado seus dois interrogatórios com bate-papos sobre comida, móveis e música, para grande irritação do comandante.

—Remetemos uma mensagem a seu pai, mas não respondeu ainda. Por quê?

Estava entrando em terreno perigoso. O valor de Christina como refém diminuiria de forma considerável se os ingleses descobrissem que seu pai não iria resgatá-la.

—Talvez esteja de viagem. Retornou o mensageiro que enviaram a meu marido?

—Ainda não - disse ele com o sobrecenho enrugado.

De novo chamou alguém na porta, mas Christina se acostumou às interrupções constantes. Durante a hora que ele levava tentando interrogá-la nesse dia, um desfile de homens tinha passado pelo aposento.

Um soldado jovem entrou e entregou uma carta sem explicação alguma. Lorde Seagrave devia estar esperando-a, pois a abriu e a leu com rapidez. O sorriso matreiro que lhe arqueou os lábios despertou a curiosidade de Christina.

—partiram os homens? —perguntou lorde Seagrave.

—Não - respondeu o jovem cavalheiro—. Digo se acontecer, senhor?

Christina ficou de pé, sem dissimular sua emoção.

—Posso voltar para mi… quarto. —O quarto reduzido e sem janelas na torre mal era digna desse nome.

Ele a olhou com dureza.

—Não terminamos. Esperes aqui, em seguida volto. —Deixou-a sozinha e fechou a porta atrás de si.

Christina ficou carrancuda até que viu o pergaminho desdobrado sobre a mesa. Arrepiou-lhe o pêlo dos braços. Não acreditou em seus olhos. O comandante deixou a carta.

Com o coração desbocado, inclinou-se sobre a mesa e virou os documentos para coloca-los de cara para ela. Primeiro examinou a página superior e viu que estava escrita em francês.

Afogou um grito e a leu de novo para assegurar-se de que a tinha entendido bem. Era do Comyn o Vermelho para o rei Eduardo, e lhe informava da traição de Bruce, a prova da qual se anexava a seguir. Christina levantou apressadamente a primeira folha de pergaminho e viu um documento lacrado, em latim. Embora continha muitos detalhe, ao que parece se tratava de um pacto entre o Comyn e Bruce contra o rei Eduardo. E agora Comyn pretendia voltar-se contra Bruce e exibir seu acordo como prova de traição.

Ouvindo passos sonoros do outro lado da porta, Christina devolveu os documentos a seu lugar e se reclinou em sua cadeira, tentando serenar seu pulso e atenuar o rubor de nervosismo que lhe tingia as bochechas.

O coração pulsava com força enquanto obrigava a sua mente a responder às perguntas do comandante da forma mais desatinada possível enquanto planejava sua fuga.

Não podia esperar que a resgatassem tendo em conta que essa mensagem seria despachada a Londres a qualquer momento. Embora não conhecesse bem a área, sabia que o castelo de Bruce no Annandale, Lochmaben, encontrava-se perto. Não sabia como chegaria até ali, mas tinha que tentar.

Se essa carta chegasse às mãos do rei Eduardo, Robert Bruce logo seguiria ao Wallace à tumba.


Capítulo 25

Era uma noite perfeita para uma incursão: escura e brumosa, sem uma lua prateada que os delatasse. A escuridão seria sua primeira arma, e a velocidade e a surpresa, a segunda. Atacar depressa e com força era a principal estratégia de todos os piratas. Nem código cavalheiresco, nem regras.

Tor e a equipe, ocultos no bosque, atrás do pequeno castelo de estilo normando erguido em um montículo, aguardavam as altas horas da madrugada enquanto vigiavam todos os movimentos dos soldados ingleses.

Depois da longa viagem pelo mar do norte de Skye até Galloway, no rincão sul-ocidental da Escócia, era uma tortura para ele ter que esperar, sabendo que sua esposa se achava a somente umas centenas de pés dali. Não queria nem imaginar o que ela devia estar suportando nesse momento. Também se negava a considerar a possibilidade de que não seguisse com vida. Tinha que concentrar-se em seu encargo. Assaltar um castelo ocupado por uma guarnição inglesa inteira não era tarefa fácil.

Mas podia levar a cabo.

Era célebre o ataque surpresa por meio do qual Wallace tinha tomado a praça inglesa no castelo do Ardrossan, no Ayr, e Tor tinha decidido empregar uma tática similar. Com perto de uma vintena de homens e sem máquinas de assédio, irromper em turba pelas portas ficava descartado, assim teriam que recorrer ao sigilo e às manobras de distração.

Supunham que Christina estivesse presa na torre de pedra de planta quadrada construída no alto do montículo de terra, de quarenta pés. Para chegar até ali, teriam que atravessar as duas linhas de defesa características disse tipo de fortificação: o fosso que circundava todo o complexo e a paliçada que se levantava do outro lado.

À frente de oito homens da equipe de Bruce, cruzaria o fosso e a paliçada da parte posterior do castelo, em frente da ponte levadiça exterior. Uma vez dentro, separariam-se para procurar Christina, enquanto outros preparavam a fuga. MacRuairi estava convencido de que podia tira-la da torre quando tivessem conseguido entrar, independentemente de onde a tivessem encerrada. Ao Tor bastava jogar uma olhada a seu semblante para acreditar. Seton e Boyd também o acompanhariam. Necessitava homens acostumados no combate corpo a corpo que soubessem dar morte de forma silenciosa, com adagas ou com as mãos nuas.

Disporiam de meia hora para encontrá-la e matar aos guardas antes que Gordon e o resto da equipe atraíssem a atenção dos ingleses para eles para que os outros pudessem sair. MacSorley estaria esperando no exterior com seus guardas do clã MacLeod quando baixassem a ponte.

A luz do interior da torre se apagou quase por completo. A atividade dos soldados ingleses se reduzira. Somente um ou outro som de um animal ou o sussurro das folhagens rompia o silêncio. Tinha chegado o momento.

Tor se ajoelhou na terra e nas folhas, rodeado pelos membros da equipe, para lhe da as últimas instruções.

—Já sabes o que deve fazer, Falcão? —perguntou ao MacSorley, que encabeçaria aos do clã do MacLeod.

Tor tinha tomado um risco ao levar guerreiros adicionais, mas como precaução acrescentada se guardara de chamar os membros da equipe por seus nomes. Tinha ocorrido à idéia de utilizar nomes de guerra quando tinha ouvido Boyd empregar o apelido com que MacSorley se referia a ele ante a Christina.

O gigantesco escandinavo desdobrou um grande sorriso, e o branco de seus dentes reluziu em seu rosto com o resto sumido na escuridão.

—Sim, capitão. Ir por sua senhora e nos assegurar de que esses condenados ingleses não se esqueçam desta noite por toda sua vida.

De qualquer óptica minimamente racional, atacar uma guarnição de cem soldados ingleses com uma vintena de homens parecia uma missão suicida. Mesmo assim, Tor confiava no seu êxito. A destreza da unidade de elite de Bruce tinha superado inclusive suas próprias expectativas. Juntos formavam uma força digna de ter em conta. Sentia-se como se estivesse a ponto de viver um momento transcendental, como disposto a fazer história. Criava-se uma nova era de guerreiros, a era dos highlanders.

Esses malditos ingleses não sabiam o que os esperava.

Assaltar uma praça inglesa os converteria a todos em traidores aos olhos de Eduardo, mas eram conscientes disso quando foram à chamada de Bruce. A incógnita de que Lamberton e Bruce aprovariam ou não aquela operação precipitada e não autorizada não era algo que preocupasse ao Tor. A vida de Christina estava em jogo; ele faria o que tinha que ser feito.

Tor e os oito membros da guarda de Bruce que o acompanhavam avançaram sem fazer o menor ruído por entre as sombras para o fosso que rodeava o montículo. Por meio de gestos, indicou que colassem o corpo a terra e se mantivessem muito pegos ao chão. Quando chegaram na borda do fosso, aguardaram até certificar-se de que o sentinela no alto do montículo não pudesse vê-los antes de descer. Como era inverno, o profundo fosso continha alguns pés de água, ou, melhor dizendo, de um lodo frio e negro que desprendia um aroma mofado a plantas podres. Cuidando de proteger a pólvora do Gordon, caminharam pela lama e ao chegar ao outro extremo subiram à borda para chegar à paliçada formada por estacas bicudas.

Essa era a parte mais delicada da missão. Teriam que escalar os postes de madeira de dez pés de altura sem que os descobrissem os guardas situados no montículo, por cima deles, nem o soldado que fazia a ronda por aquela seção do recinto. Tinham escolhido um lance da paliçada oculto à vista por um volumoso edifício que se erguia no pátio exterior do castelo - provavelmente as cozinhas, a julgar pela quantidade de fumaça que tinham visto sair dali horas antes—, mas de todos os modos durante alguns minutos estariam expostos ao perigo.

Tor foi o primeiro a entrar. Lançou um gancho preso a uma corda entre dois postes e puxou a corda até que o gancho de ferro se enganchou.

O coração lhe pulsava a toda velocidade. Com os sentidos totalmente em alerta, esperou o momento certo. Quando o soldado passou, Tor subiu impulsionado pela corda, encarapitou-se nos postes e se deixou cair são e salvo do outro lado.

Estava dentro.

Quando o soldado passou de novo, sua costa encontrou com o aço da adaga do MacKay concebida especialmente com esse fim. A folha se alargava para o punho e pelo outro lado se estreitava até uma ponta aguçada que lhe atravessou a cota de malha até os pulmões. O soldado desabou aos pés de Tor sem soltar nem um gemido. MacRuairi o chamava «morte silenciosa» e tinha ensinado aos homens a encontrar o ponto exato em que cravar a arma. Era uma técnica extremamente eficaz para ações encobertas como naquela em que o som mais leve podia ter conseqüências nefastas.

Um a menos, mas ainda ficavam aproximadamente noventa e nove.

Poucos minutos depois, os outros oito homens estavam junto a ele; tinham conseguido passar ilesos por cima da paliçada.

Tor fez ao Gordon um sinal com a cabeça, e a equipe se dividiu: MacRuairi, Seton e Boyd foram com ele; MacGregor, MacLean, Lamont e MacKay foram com o Gordon.

À frente de sua equipe, Tor rodeou o montículo de terra até a parte detrás. Para acessar a torre da comemoração, teriam que arrastar-se costa acima sem que os vissem. Em vez de avançar um atrás de outro, espaçaram-se entre si de modo que, quando chegassem ao topo, estivessem em posição de matar aos guardas. Mas a sincronização era fundamental. Deviam chegar ao alto da colina e sossegar aos dois guardas que faziam ronda pelo perímetro antes que pusessem de sobreaviso aos sentinelas que custodiavam a entrada da torre que servia de moradia, em que estava Christine.

A terra e a erva seca do pequeno morro que subiam pouco a pouco, fazendo força com os cotovelos e os antebraços, estavam escorregadias e cobertas de barro. Detiveram-se uns pés do topo e se comunicaram de um homem a outro por gestos. Tor ergueu a mão: cinco, quatro, três, dois…

Saíram da escuridão e se equilibraram sobre os guardas despreparados, como seres espectrais. As facas desceram de forma inesperada e letal. Os sentinelas postos na frente da porta exterior da torre foram os seguintes. Noventa e cinco. Tor sentiu que a emoção da batalha o percorria com uma intensidade cada vez maior conforme se aproximava mais e mais a sua esposa. O plano ia dar resultado.

A seguir chegavam o salão, cheio de soldados que dormiam. Nada lhe teria agradado mais que massacrá-los a todos, mas isso teria que esperar. Primeiro tinha que tirar Christina dali. Dispunha-se a entrar na torre quando ouviu um grito procedente do pátio inferior que lhe gelou o sangue.

Amaldiçoou entre dentes, pois sabia que suas possibilidades de êxito tinham passado de boas a péssimas em um piscar de olhos. A vantagem que para eles era a escuridão e o fator surpresa se esfumou. Tor esperava com toda sua alma que o alarido não tivesse sido proferido de seus homens.

Agora, para tirar Christina do castelo, teriam que abrir caminho lutando contra a guarnição de soldados que dormia no salão, a somente alguns passos dali. A fortaleza inteira já ficava em movimento enquanto o alvoroço de baixo aumentava. Não havia tempo a perder.

Tor estava a ponto de ordenar aos homens que entrassem quando, pela extremidade do olho, viu algo que o fez deter-se.

MacRuairi também percebeu isso.

—Parece tratar-se de uma moça, capitão - sussurrou.

Com o sobrecenho franzido, Tor estudou a figura coberta com uma capa que lutava com o guarda que vigiava a porta. O pulso lhe acelerou e o coração deu um tombo repentino contra as costelas. Não se tratava de qualquer moça, mas sim de sua moça. Pelo visto sua mulher tinha decidido não esperar que a resgatassem. Por que não se admirava com isso?

Soltou um juramento e arrancou a correr escada abaixo para o pátio. Levou ambas as mãos às costas e desembainhou a espada.

Um selvagem grito de guerra brotou de seus pulmões e deixou gelados aos soldados de baixo. Um momento depois, Gordon respondeu a sua chamada com outro bramido.

*

Por sorte de Christina, os soldados ingleses gostava de beber.

Quase tinha conseguido cruzar o salão quando um soldado que ela acreditava que estava desmaiado em um estupor alcoólico a agarrou enquanto passava junto à mesa e a sentou sobre os joelhos. Christina passou a mão pela boca, tentando livrar do desagradável sabor do beijo que lhe tinha dado nos lábios. Mas supunha que deixar-se manusear um pouco por um bêbado era um preço que valia a pena pagar pela liberdade. Riu, afastando-o com um tapa com atitude brincalhona, e lhe tinha passado outra taça de vinho antes de baixar-se de seus joelhos, murmurando que tinha outras obrigações que atender.

Fez uma careta de pesar ao pensar na roupa de criada que levava. Esperava não ter batido muito forte na moça, mas tinha que estar segura de que demoraria um momento para voltar em si. Quando a criada tinha aberto a porta para lhe levar o jantar, Christina a tinha surpreendido com um golpe de candelabro na nuca. Tinha «tomado emprestada» a túnica e o brat, esperando que ninguém se fixasse em que ia arrastando os oito centímetros de saia que sobravam, e depois, com tiras de lençóis, atou os pés e mãos da criada e a amordaçou. Desse modo, embora despertasse, não poderia alertar a ninguém.

Lorde Seagrave, a quem jamais teria passado pela cabeça que uma mulher tentasse fugir, acreditava que bastaria passar o ferrolho à porta, por isso não tinha posto um guarda. Foi um descuido de que acabaria por arrepender-se.

Com a esperança de acautelar a perseguição de algum outro soldado amoroso, Christina agarrou uma bandeja e uma jarra vazia, e, fingindo que estava recolhendo as mesas, passou diretamente entre os sentinelas da entrada, baixou a escada e cruzou a ponte para o pátio inferior. Depois de desfazer-se dos objetos de cenário, escondeu-se entre as sombras atrás das cavalariças próximas às portas, esperando uma ocasião para escapulir se confundindo entre os aldeãos. Entretanto, o guarda tinha fechado as portas pouco depois de que ela chegasse. Pugnou por não cair no desespero, pois sabia que não as abririam de novo antes da manhã.

Quanto demoraria em dar conta de que escapara? alguém sentiria falta da criada? Tinha apertado o suficiente suas ataduras?

Havia tantas coisas que podiam sair mau… Rezou por que se produzisse um milagre.

Em vez disso, poucas horas depois - por culpa de um gatinho curioso com o miado mais estridente que ela jamais tinha ouvido—, descobriram-na. Por mais que se empenhasse em afugentar à molesta bola de pelo, esta retornava uma e outra vez. Um soldado viu o gato e decidiu investigar o que ocorria ao ver que o bichinho se negava a lhe fazer caso.

Ela notou que alguém a tirava com brutalidade de seu esconderijo e se encontrou frente a frente com um cavalheiro jovem. De baixa estatura e de costas largas, tinha um rosto chato e traços toscos, mas em seus olhos apreciava um brilho de inteligência. Por sorte, tinha bebido bastante vinho.

—O que fazes oculta na escuridão? —inquiriu.

Christina se esforçou por discorrer uma explicação acreditável enquanto notava os batimentos do coração de seu coração na garganta.

—Pois… —Um sorriso forçado de inocência apareceu em seus lábios enquanto pestanejava com paquera—. Vou encontrar-me com alguém.

Essa mutreta feminina fracassou estrepitosamente. O olhar do guarda se fez mais penetrante.

—Com quem?

—Com o Edward - se apressou a responder ela. Seguro que haveria algum Edward por ali. As pessoas sempre punham nomes de reis em seus filhos, e Edward Plantageneta reinava fazia mais de trinta anos.

—Edward que mais?

Cáspita! Tinha que haver mais de um, estava claro. Ao ver que ela titubeava, o guarda a arrastou até a luz de uma tocha e chamou os outros três soldados que custodiavam nas portas.

—Algum de vós conhece esta empregada?

Um deles a conhecia. Era um soldado que esteve a bordo da galera, com ela.

—É a moça que capturamos -disse— A filha de Fraser.

Não! Tendo conseguido chegar até ali, não suportava pensar que não ia conseguir. Era sua única oportunidade. Seus guardiães não voltariam a relaxar tanto as medidas de segurança. Tentou soltar-se, mas a mão do soldado a aferrava como uma tenaz.

—Por favor - suplicou—. Tenho que voltar para meus afazeres…

Um alarido aterrorizante troou o ar quente da noite. Todos se voltaram para o montículo e a torre.

Christina conteve o fôlego.

O soldado lhe soltou o braço, mas ela se aproximou de novo a ele, para proteger-se instintivamente de algo muito mais horripilante que os ingleses.

As portas do inferno se abriram para deixar sair a um exército de demônios. Os quatro guerreiros espectrais que caíram sobre eles se assemelhavam a seres de pesadelo. Vestidos de negro dos pés a cabeça para confundir-se com a noite, de uma estatura e uma musculatura sobrenaturais, baixaram a escada com passo trepidante, espadas em alto, preparados para descarregar a fúria do muito mesmo diabo com cada cutilada de seu temível aço.

Em vez de sobreveste e cota de malha, levavam espartilhos de guerra negros e saias escuras de quadros rodeadas ao corpo de forma estranha com cinturões. Sob os espantosos elmos com protetor nasal, seus rostos estavam melados, não da pintura azul de glasto dos antigos gaélicos, mas sim de cinza. Somente um brilho branco rasgava a escuridão.

«Deus bendito, os monstros estão sorrindo!»

Christina não podia afastar o olhar do aterrorizante guerreiro que dirigia o ataque relâmpago. Havia algo…

Um calafrio lhe desceu pelas costas no instante em que o identificou. Embora estivesse virtualmente irreconhecível, ela o conhecia.

Seu marido tinha ido a seu resgate.

Os ingleses não sabiam o que fazer. Enquanto os soldados permaneciam paralisados, Christina, consciente do perigo, separou-se da trajetória da investida dos guerreiros. Apenas tinha se afastado uns passos quando o caos estalou —literalmente— em torno deles.

Uma série de estampidos ensurdecedores sacudiu a noite: detonações horríveis que semeavam o terror. Ela nunca tinha ouvido nada parecido. Soavam como trovões, mas o céu estava totalmente limpo.

Ouviu o zumbido de flechas que voavam sobre sua cabeça, e os quatro soldados que vigiavam as portas caíram em rápida sucessão. Um momento depois, um guerreiro com um arco à costas saltou do telhado das cavalariças, porta se abriram, a ponte desceu, e mais guerreiros de seu marido irromperam no tumulto que reinava no pátio do castelo.

Os soldados corriam de um lado a outro, saíam dos barracões e desciam da torre para ver o que estava ocorrendo.

*

Tor e seus homens lutavam como possessos, atravessando com a espada a todo aquele que se interpor em seu caminho. A rapidez e a ferocidade do ataque eram assombrosas. Os ingleses, aturdidos, não eram rival para eles.

Christina viu perecer ao cruel capitão que tinha assassinado aos homens de Tor e a tinha mantido presa, virtualmente partido em dois por um poderoso talho da enorme espada de seu marido.

Desviou o olhar, pois não tinha estômago para presenciar a morte de ninguém, inclusive quando era merecida.

O céu se iluminou, e as chamas prenderam ao redor deles. Os animais se uniram à correria humana que tentava escapar. Christina esteve a ponto de ser atropelada por um cavalo, mas uma mão firme a levantou e a pôs fora de perigo.

Tor. Antes que Christina pudesse deitar-se em seus braços, ele a fez girar para um lado enquanto, com uma mão, atirava um golpe de espada a um soldado que se aproximou dela por trás.

Mas o caos começava a remeter. Seu marido e seus homens tinham despachado já à maioria dos soldados havia no pátio. Uma nova onda de ingleses desceu em turba a escada da torre, mas quando cruzaram a ponte sobre o fosso, os guerreiros de Tor estavam esperando-os para dar conta deles um a um. Ao precaver-se do que ocorria, alguém —certamente lorde Seagrave— deu a ordem de retirada da torre. Os homens que ficaram no pátio foram deixados a sua sorte quando a porta da torre se fechou.

Christina abraçou a seu marido, com o rosto contra seu peito, muito aliviada para que importasse que estivesse coberto de barro e imundície.

—Não estava segura de que chegasse a tempo.

Ele a afastou ligeiramente, levantou-lhe o queixo com sua mão embainhada em uma manopla e lhe deu um beijo tão selvagem e frenético que a deixou sem fôlego e atordoada por uns instantes. Entretanto, Christina não se atrevia a ter ilusões.

Ele interrompeu o beijo e a olhou aos olhos.

—Eu temia que fosse muito tarde. Encontra-te bem?

Ela assentiu, e as lágrimas apareceram em seus olhos. Uma só olhada ao Tor bastou para que todo o medo, o espanto e o desespero que tinha acumulado em seu interior nos últimos dias estalasse em uma corrente de pranto.

—foi horrível. Seus homens… —Soluçou—. O navio… Todos mortos.

Os lábios de Tor adotaram uma expressão séria sob a máscara de aço.

—Sei. Chist - a sossegou, tentando tranqüilizá-la—. Já me contará isso mais tarde. —Levantou-lhe o rosto para a luz e proferiu uma maldição ao ver os hematomas em torno da bochecha e do o olho—. Quem te fez isto? Matarei-o.

—Já o fez - repôs ela, assinalando ao capitão.

—Tenho que te tirar daqui. Está em condições de montar a cavalo?

Christina assentiu com um ardor e um nó na garganta que lhe impedia de falar.

—Bem. Um de meus homens está juntando cavalos fora da paliçada; levarei-te com ele. Estará a salvo até que terminemos aqui.

Tinha a intenção de tomar também a torre. Considerando o que os ingleses tinham feito a seus homens, ela sabia que não teria piedade.

—Não há tempo para isso. Tem que me levar até o conde de Carrick quanto antes. Rogo por que esteja no Lochmaben.

—Bruce? O que necessita dele?

Falou-lhe dos documentos que tinha lido, e não fez falta que lhe explicasse as possíveis repercussões.

—Está segura?

Christina fez um gesto afirmativo.

—Terá que interceptar aos mensageiros antes que cheguem onde está Eduardo.

—Viu-os partir?

—Isso eu creio. Dois homens partiram a cavalo antes do almoço.

—Ingleses?

Christina assentiu.

—Poderão prosseguir sua viagem com menos dificuldades que os homens do Comyn quando chegarem à fronteira.

—Eu me ocupo dos mensageiros.

Dirigiu-se a um dos guerreiros vestidos de negro e lhe disse algo. O homem reuniu a três guerreiros mais, subiram no lombo de suas cavalgaduras e puseram-se em marcha.

Uns minutos mais tarde, Christina cavalgava junto com o Tor, rapidamente, em direção ao Lochmaben.

*

Robert de Bruce, conde de Carrick e senhor do Annandale, escutou o relato de Christina com incredulidade crescente, e logo com ira mal contida. Que não pusesse em julgamento a veracidade de suas palavras confirmava que esse documento tão perigoso, o tratado que tinha assinado com o Comyn, era autêntico.

—Matarei-o - disse, com os olhos azuis escurecidos pela raiva—. Sabia que não era de confiança.

—Então por que confiaram nele? —perguntou Tor.

Semelhante desacerto não encaixava com a imagem que se formara do aspirante a governar Escócia. Bruce o tinha surpreendido. Assim que o tinha visto, Tor tinha identificado nele o único traço que teria impressionado a qualquer Highlanders: Bruce era um guerreiro. A diferença da maioria dos nobres escoceses, dava a impressão de sentir-se tão cômodo no campo de batalha como no Parlamento.

O conde tinha um olhar ardiloso e dizia as coisas sem disfarces; algo insólito para um político. Embora não restava dúvida de que era um homem orgulhoso, felizmente parecia desdenhar a pompa ao que era tão aficionada a nobreza das Lowlands. O brat forrado de pele e o pesado broche de ouro que levava a pescoço eram os únicos sinais visíveis de sua riqueza. Se tinha notado o pó e a sujeira que recobriam ao Tor e a seus homens, não tinha dado o menor indício disso, e os tinha feito passar ao salão em seguida.

Bruce baixou a voz para responder à pergunta de Tor. Embora lhe tivesse assegurado que podiam falar com inteira liberdade no salão, não era demais ser precavidos.

—Teria sido mais fácil vencer a Eduardo com uma Escócia unida. Além disso, esperava poder evitar uma guerra civil. Não acreditava capaz de confessar sua própria traição para delatar a mim. Comyn tem mais fé que eu na gratidão de Eduardo. —Olhou ao Tor com fixidez—. A quem enviaram atrás dos mensageiros?

—Aos melhores homens - respondeu ele—. Lamont encabeça a equipe; encontrarão-os.

Bruce lhe sustentou o olhar e, ao perceber que a segurança com que falava era sincera, assentiu.

—O que ides fazer, milorde? —perguntou Christina.

—Não sei - disse Bruce em um tom solene—, mas Comyn terá que prestar contas pelo que tentou hoje. —Como acima de tudo era um cavalheiro galante, Bruce deixou a um lado a ira e se inclinou sobre a mão dela para lhe plantar um casto beijo nos nódulos — Estou em dívida com você, lady Christina, uma dívida que jamais poderei lhe pagar. —voltou-se para Tor—. Espero que seu marido seja consciente de quão afortunado é por ter uma esposa que não só é bela, mas sim também possui talentos inesperados e extremamente úteis. Dissestes as palavras desse documento melhor que meus tabeliães. —Seus olhos cintilaram—. Possivelmente deveria toma-la a meu serviço.

Christina, encantada com a adulação, ruborizou-se de prazer ante a admiração sincera que destilava no rosto do conde; um rosto muito arrumado, diga-se passagem, embora deixasse de sê-lo se não lhe soltava a mão. Talvez isso de cavalheirismo não estivesses do todo mal.

—Sou consciente disso - balbuciou Tor entre dentes—. E temo que os talentos de Christina estejam reservados para seu marido.

A aspereza de seu tom fez que Christina franzisse o sobrecenhopois não compreendia o porquê de sua irritação. Bruce, pelo contrário, compreendia-o perfeitamente. Riu e lhe soltou a mão.

—Agradeço-lhe o serviço que me emprestastes hoje, moça. Se algum dia necessitarem algo, não têm mais que me pedir isso Christina ficou um pouco mais rubra e lhe devolveu o sorriso.

—Se não lhe importar, quereria apelar agora mesmo a essa generosidade que me ofereces. Um banho me sentaria uma maravilha.

—Disporei que lhe preparem isso no ato.

Christina dirigiu ao Tor um olhar inquisitivo.

—Vá -disse ele—. Eu irei em seguida.

Ela assentiu e saiu do salão depois da criada. Os dois homem a observaram afastar-se.

—saístes ganhando com nosso acordo - comentou Bruce com malícia.

Era certo, mas Tor não tinha por que dizer-lhe.

—Não me queixo.

—decidistes aceitar a encomenda.

—Com algumas condições. —Na presença de Christina tinham falado em francês, mas tinham ido inconscientemente ao gaélico quando ela se fora; outro ponto a favor de Bruce.

O conde o olhou com receio.

—Que condições?

—Obedeceremos a suas ordens, mas eu tenho que estar no comando da equipe. Para que uma guarda destas características seja eficaz, devo gozar de autonomia e de uma autoridade absoluta sobre o terreno.

Bruce refletiu durante longo momento, ao que parece não muito agradado por suas exigências.

—Assim que eu lhe digo o que necessito e vocês decidem como levá-lo a cabo?

Tor deu de ombros. Essa era uma forma de vê-lo.

Ao cabo de uns minutos mais, Bruce, a contra gosto, assentiu em sinal de consentimento.

—Não é que não esteja impressionado pelo que seus homens e vocês têm feito, mas a próxima vez procure me avisar antes de atacar uma praça inglesa.

Tor sorriu.

—Farei o possível, mas o que ocorre é que não dispúnhamos de tempo. Os ingleses tinham em seu poder um bem muito valioso para mim.

—Alguma outra condição?

—Embora meus homens e eu estejamos presos a seu código cavalheiresco, e embora lhe façamos o trabalho sujo, não obedecerei nenhuma ordem que me obrigue a matar mulheres ou meninos.

—Alegra-me ouvir isso - disse Bruce com expressão sardônica—. Embora lhe encomendarei missões perigosas e desagradáveis, dou-lhe minha palavra de que não lhe pedirei nada que não esteja disposto a fazer eu mesmo.

Surpreendentemente, Tor advertiu que falava sério. Sua admiração pelo elogiado cavalheiro cresceu grandemente. Em um princípio, a decisão de Tor de dirigir a equipe não obedecia tanto a seu desejo de unir-se a Bruce como de derrotar a Eduardo. Entretanto, o jovem conde lhe tinha causado uma magnífica impressão. Bruce não era um aristocrata de pouca subida, a não ser um guerreiro nobre decidido a recuperar um reino. A diferença de quase todos aqueles que se regiam pelas regras cavalheirescas, Bruce não assustava sujar as mãos. Era uma qualidade que seria necessária se queria ter a menor possibilidade de êxito. Para ganhar aquela guerra, teria que arrastar-se pelo barro.

Tor o olhou aos olhos.

—E Comyn? Querem que me ocupe dele?

Bruce não fingiu ter interpretado mal a pergunta. Seu caminho ao trono não só estava obstaculizado pelo rei Eduardo, mas também pelo Comyn o Vermelho, possivelmente o nobre mais poderoso daquelas terras.

—Não. Eu mesmo me encarregarei do Comyn.

Tor assentiu, consciente de que as primeiras hostilidades de uma longa guerra estavam a ponto de começar.

—Vá - disse Bruce—. Atendas a sua esposa. —Sorriu—. Embora lhe aconselho que primeiro que tome um bom banho e mudes de roupa.

Tor torceu a boca.

—Sábia recomendação. —Talvez fosse mais fácil convencer a sua esposa de que o perdoasse se não fedesse a pântano.

—E outra coisa, MacLeod. —Tor se voltou, e Bruce lhe dirigiu um olhar severo e significativo—. Estejas preparado.

—Sim, milorde - respondeu Tor com uma inclinação da cabeça—. A suas ordens.

*

Os efeitos relaxantes do banho se dissiparam quando levaram a água. Christina tinha posto uma túnica e um vestido limpos que lhe tinha emprestado a esposa de Bruce, lady Elizabeth de Burgh. Quase sem reparar na decoração luxuosa que a rodeava, aguardava ansiosa, sentada em uma cadeira frente à chaminé, secando os cabelos, sem saber o que aconteceria quando seu marido aparecesse por fim.

Mostrou-se muito aliviado ao vê-la, mas Christina intuía que devia estar furioso com ela por haver partido. Esperava poder lhe fazer compreender que não havia alternativa, que os dois estariam melhor separados. Sabia que tinha sido uma covardia abandoná-lo sem lhe dar explicações, mas aquela primeira despedida tinha sido muito dura; não tinha nenhuma vontade de dizer adeus cara a cara.

Por que Tor demorava tanto?

Quando a porta se abriu finalmente uns minutos depois, o motivo da tardança ficou evidente. Ela ficou sem fôlego e notou uma opressão tão forte no peito que era quase um ardor. igual a ela, Tor tinha tomado um banho. Seu cabelo castanho com reflexos dourados reluzia à luz do fogo, e um aroma fresco de sabão flutuava no ar quente.

Christina sentiu o coração dar um tombo. Por que tinha Tor que lhe complicar a vida estando sempre tão absurdamente arrumado?

Seus olhares se encontraram. Ela abriu a boca com a intenção de desculpar-se, mas, para sua surpresa, viu-se apanhada em um apaixonado abraço.

—Por Deus santo, Christina, deu-me um susto de morte! —Tor deu um beijo no cocuruto a sua esposa e a estreitou com mais força entre seus braços—. Acreditava que tinha te perdido…

Seu tom soava diferente. Falava com uma voz mais suave, rouca pela emoção. Ela não queria ter ilusões vãs. Nada tinha mudado. Tor tinha ido em seu resgate, mas isso era algo que já tinha feito antes. desta vez ela não se deixaria levar por suas fantasias românticas. Aquilo não significava que ele a amasse.

Aspirou profundamente, desejando reter seu aroma quente e masculino, antes de obrigar-se a si mesmo a afastar-se dele.

—Suponho que estas desejando saber o que aconteceu com seus homens - disse—. Foi espantoso. —Os olhos se encheram de lágrimas—. Todos morreram…

Tor curvou os lábios em uma expressão séria.

—Morreram fazendo aquilo para o qual estavam treinados, Christina, o que mais amavam. O objetivo na vida de um highlander é morrer em batalha. Para um guerreiro, é a máxima honra.

Christina nunca conseguiria entender. Os guerreiros eram feitos de uma massa diferente.

—me conte o que aconteceu pediu Tor com delicadeza.

Explicou-lhe que os navios os tinham seguido e os tinham assaltado sem provocação prévia. Seu marido a escutou sem interrompê-la, sorrindo ao ouvir como seus homens a tinham rodeado e a tinham protegido com seu corpo.

—Talvez se eu não tivesse…

—Não - a cortou Tor—. Teriam morrido embora não estivesse ali. Ninguém teria podido prever o que ia acontecer. Meus homens realizam essa rota várias vezes ao mês; os assaltos no mar são muito pouco freqüentes. Imagino que os MacDougall reconheceram minha insígnia e decidiram prosseguir com seus esforços por acabar comigo.

—Eram os MacDougall que estavam atrás dos ataques?

Tor assentiu.

Isso significava que…

—alcançamos ao irmão John antes que pudesse divulgar o que tinha averiguado.

—Assim é. —Graças a Deus. Ao menos ela não seria responsável por isso—. O que não sabes é que meu novo tabelião era sobrinho de John do Lorne, e que meu tabelião anterior não tinha sofrido um acidente.

Que horror! Christina mordeu o lábio; ainda lhe custava assimilar a traição de seu amigo. Ao notar que Tor a observava, levantou o olhar para ele.

—E quando o deixaram…?

Ele a olhou fixamente.

—Tinha-nos visto.

Christina fez um gesto para indicar que tinha compreendido. Não podia ser de outra maneira. O tabelião sabia ao que se expos, o que lhe aconteceria se o capturavam. Mesmo assim, o coração lhe encheu de tristeza por sua morte.

Ao perceber sua aflição, Tor lhe afastou uma mecha de cabelo do rosto e acariciou devagar sua bochecha arroxeada com o dorso do dedo.

—Não sofreu. E acredito que lamentava ter te envolvido em sua traição. Sentia um afeto autêntico por ti.

A ternura das carícias a confundiu, igual a suas palavras amáveis. Por que tinha que lhe pôr as coisas tão difíceis? Ela so queria passar o mau gole quanto antes. Afastou o rosto da mão de Tor e recuou um passo.

—Não deveria ter te deixado desse modo.

—Não, não deveria.

—Fui uma covarde por não me despedir. Mas… temia… temia que me faltassem as forças.

—por que me deixou, Tina?

Algo em sua voz fez que o coração lhe desse um salto. Não. Negava-se a imaginar sentimentos que não existiam.

—Porque não suportaria passar o resto de meus dias com alguém que jamais poderia me amar - respondeu sem olhá-lo—, que não me deixaria formar parte de sua vida porque não me quer ou não me valoriza.

—Entendo - disse ele sem alterar-se—. Se todo isso era certo, tinha motivos de sobra para partir.

Tinha? Ela cravou o olhar em seus olhos inescrutáveis. É obvio que os tinha. Tor devia ter concluído também que seu matrimônio não levava a nenhuma parte. Ardiam-lhe as vísceras. Por que doía tanto a verdade? O que haveria ao Tor fingir que se importava ao menos um pouco? Baixou o olhar para que ele não visse seus olhos chorosos. De algum modo conseguiu articular as palavras, embora cada uma delas lhe engasgasse: —Se me levar a Iona na travessia de volta, não voltarei a te incomodar.

—Temo que não posso fazer isso —repôs ele com suavidade.

Christina notava em seu interior uma dor cada vez mais intensa, como um ferro candente contra a pele em carne viva.

—É obvio. Estará ocupado com sua equipe e o conde. Possivelmente possa dispor que um navio me leve…

—Não.

A firmeza da negativa a impulsionou a olhá-lo por fim.

—Não irá a Iona - disse Tor.

Christina ficou perplexa.

—Mas jurou que se algum dia eu desejasse ir, deixaria me retirar a lona com minha irmã.

Tor deu de ombros.

—Mudei de idéia.

—Não pode. Fez um juramento.

Tor sorriu ante sua indignação. Isso era algo tão inesperado para a Christina, dadas as circunstâncias, que não sabia o que fazer. Como podia ele ser tão cruel para burlar-se dela desse modo?

Entretanto, quando se fixou em seus olhos, o que viu neles fez que seu coração deixasse de pulsar.

Aproveitando-se de seu desconcerto, lhe rodeou a cintura com o braço e a atraiu para si, moldando o corpo de Christina ao dele. Beijou-a com delicadeza, docemente, com uma emoção quase reverencial.

—Farei o que seja necessário para que permaneça a meu lado - disse.

Todo rastro de hilaridade tinha desaparecido de seu semblante, e ela leu a incerteza em seu olhar.

Mas se Tor jamais sentia incerteza por nada…

—Não te entendo.

desta vez foi ele quem se afastou. Passou os dedos pelos cabelos, que seguiam úmidos. Caíam-lhe em ondas deliciosamente por debaixo das orelhas.

—Isto não eu não entendo bem.

Ela aguardou que continuasse, não muito segura do que se referia com «isto».

Tor respirou fundo.

—Quando me dei conta de que podia te perder, foi como se algo dentro de mim mudasse de repente. Como se tudo o que acreditava saber de repente se virou do avesso.

Embora Tor parecesse estar sofrendo o inexprimível, ela não teve piedade dele.

—A que te refere?

—Desde que meus pais morreram e eu passei a ser chefe, acreditava que tinha que ser diferente, que a única maneira de cumprir meu dever para com meu clã era desterrar toda emoção. Mas ao me esforçar por conseguir, esqueci-me do que significa viver. Você devolveu a calidez a minha vida - acrescentou, lhe roçando a bochecha com a parte posterior do dedo—. Acreditava que não necessitava a ninguém, mas estava equivocado. Necessito a ti, Tina. Sem ti, não tenho nada mais que uma vida fria e vazia.

Fez uma pausa, e Christina ficou contemplando-o.

—Por ser alguém quem não se dá bem falar de seus sentimentos, está fazendo maravilhas.

Ele sorriu, aliviado.

—Então já ouviste o suficiente?

Christina negou com a cabeça.

—Sei que me levei como um imbecil. —Ela não o contradisse—. Existem coisas pelas que não tenho direito a te pedir que me perdoe. Não posso alegar nada em minha defesa salvo que estava convencido de que tinha que fazer tudo sozinho. Sei que você tentava me ajudar. Além disso, não foi a única que se deixou enganar por aquele modesto tabelião. Sim, valorizo-te. Sempre te valorizei, embora possivelmente não soubesse até que ponto. Nunca me tinha dado conta que uma mulher pudesse ser tabelião, mas demonstraste que me equivocara. Rhuairi diz que seus cálculos são impecáveis. E, depois do que tem feito hoje… Graças a ti, Bruce viverá para lutar o dia de amanhã. —O orgulho que brilhava em seus olhos não podia ser fingido—. Perdoe-me, Tina. Retorna a casa comigo e me dê outra oportunidade.

Ela tinha o coração a ponto de estalar. Não havia nada que desejasse mais que apoiar a cabeça em seu peito e render-se à esperança que lhe brindava. Mas sua mente resistia a deixar-se convencer tão facilmente. Não poderia suportar outro frio rechaço como o da última vez.

—Como posso estar segura de que não reagirá exatamente da mesma maneira quando voltar a fazer algo que te desgoste?

Tor a olhou com apreensão.

—Tem pensado me desgostar muito freqüentemente?

Ela franziu os lábios e levantou o queixo.

—Pode ser que sim. Não vou conformar sendo sua esposa unicamente no quarto. Temo que vou pôr-me exigente contigo.

—Como de exigente? —perguntou ele como se lhe estivessem arrancando um molar.

—Muito. E se acessar a retornar, as coisas serão diferentes.

Ele a olhou com expressão de abatimento.

—Não vais facilitar-me as coisas, verdade?

—Temo que não. —Tor agachou a cabeça para animá-la a continuar—. De vez em quando, talvez queira que demonstre seu afeto diante dos membros de seu clã.

Ele fez um gesto de dor.

—Seguro que isso não será nece…

—Um olhar terno, possivelmente um beijo rápido. Nada que te custe muito esforço.

—Não é você quem terá que agüentar os comentários do MacSorley junto à fogueira.

—Estou segura de que é o bastante homem para suportar —disse ela sem mostrar a menor compaixão. Os guerreiros temíveis não deviam choramingar—. E de vez em quando possivelmente goste de te dar minha opinião sobre os temas de suas conversas.

—Sempre e quando estiver de acordo comigo.

—Inclusive quando essas opiniões não coincidam com as tuas.

Tor torceu os lábios.

—Em particular poderá me contradizer quanto queira.

Christina assentiu.

—Parece-me razoável.

—É tudo? —inquiriu Tor, com o aspecto de um réu que ia caminho do patíbulo.

Ela sacudiu a cabeça e levantou o olhar para ele, esperando que sua voz não delatasse o vulnerável que se sentia.

—Exijo também seu coração.

—É teu — disse Tor sem vacilar. Christina reprimiu o impulso de mover-se.

Tor pôs cara de sofrimento.

—Me vais obrigar-me a dizer, verdade? —perguntou.

Ela fez um gesto afirmativo.

—Temo que sim. É importante que o ouça de sua boca se tiver que te acreditar.

—É uma mulher cruel.

—Cruel, não. Desumana. —Sorriu com picardia—. Aprendi com o melhor.

Então Tor fez algo que Christina jamais teria imaginado que lhe veria fazer, algo que não esqueceria em toda a vida. Seu marido, o chefe orgulhoso, o rei de seu clã, o guerreiro maior de sua época, pegou sua mão e fincou um joelho em terra, ante ela.

—Amo-te, Tina. Talvez não seja o cavalheiro pelo qual suspirava, mas se voltar para meu lado te prometo que me pugnarei por te demonstrar meu amor todos os dias do resto de nossas vidas.

As lágrimas escorregavam pelas bochechas de Christina.

—Diz de coração?

Um sorriso irônico se desenhou no arrumado rosto de Tor.

—Tendo em conta minha posição neste momento, acredita que é necessária a pergunta? —Seu sorriso se alargou—. Sim, carinho. Digo de coração. Amo-te com toda minha alma.

Ela sabia que Tor nunca tinha pronunciado essas palavras antes.

—Dará-me outra oportunidade?

Christina moveu a cabeça afirmativamente.

Com um gemido de alívio, Tor a estreitou entre seus braços e não a soltou até que demonstrou esse amor. Uma e outra vez.


Epílogo


Ah, quão nobre é a liberdade!

John Barbour,

A gestão de Roberto de Bruce


Perto da abadia do Scone,

Perthshire, 27 de março de 1306


Os primeiros raios da alvorada apareciam por cima do horizonte. Como se Deus erguesse a mão para benzer em pessoa a cerimônia, um facho de luz brilhante e alaranjada atravessara como dedos o círculo de pedras. Esse espetacular efeito se viu realçado pelo lamento assustador das gaitas de fole que fendia o ar fresco desse dia da primavera. Não importava que o monumento em si fosse pagão: sua majestosidade prevalecia sobre tais considerações. Era um vínculo com o passado remoto da Escócia, um símbolo de força e continuidade, tão misterioso como os homens que se dispunham a ajoelhar-se ante o recém coroado rei da Escócia para lhe oferecer sua lealdade… e sua vida.


Christina, que se achava entre as testemunhas da cerimônia secreta que se estava celebrando entre pedras pagãs, não acreditava que pudesse haver um marco mais apropriado. Naturalmente, seu marido teria preferido que permanecesse a salvo no Skye, mas ela não se teria perdido aquilo por nada do mundo. Ganhou com acréscimo o direito a estar ali e não pensava deixar que ele o esquecesse.

Seu descobrimento tinha dado lugar ao enfrentamento final entre o Bruce e Comyn, e, posteriormente, a aquela cerimônia. Fazia pouco mais de sete semanas, Bruce tinha matado a seu adversário, Comyn o Vermelho, em frente ao altar da igreja do Greyfriars. A cruz ardente se propagou por toda Escócia, chamando a todos seus guerreiros a unir-se sob o estandarte de Bruce. Fazia só dois dias, na abadia do Scone, cenário histórico da coroação dos reis da Escócia, Robert de Bruce tinha sido proclamado rei da Escócia, embora sem a antiga pedra do Scone, roubada pelo rei Eduardo dez anos atrás.

Havia menos testemunhas dos que Bruce esperava. Três dos nove bispos — entre eles Lamberton, o mais influente— estavam presentes, e dos treze condados, somente os senhores do Atholl, Menteith, Lennox e Mar tinham ido à convocatória. Era especialmente destacável a ausência do jovem conde do Fife, quem tinha por nascimento o direito e a obrigação de coroar aos reis da Escócia. Sem a presença do Fife, alguns poriam em julgamento a legitimidade do ato. Entretanto, o jovem conde permanecia na Inglaterra, prisioneiro do rei Eduardo, e a tentativa de levá-lo até ali tinha fracassado.


Bruce estava de pé ante a pedra maior, embelezado com as vestimentas reais e um aro de ouro na cabeça, enquanto o sol se levantava como uma auréola sobre ele.

—Não podemos esperar mais — disse ao Tor—. Teremos que seguir adiante sem eles.

—Chegarão — assegurou Tor com firmeza—. Dêem-lhe dez minutos mais.

Não fez falta nem a metade desse tempo: quando ainda não tinham transcorrido cinco minutos, três figuras apareceram sobre o topo de uma colina que se levantava para o sul, galopando para eles. Entre o estrondoso tamborilar dos cascos dos cavalos, os três recém chegados irromperam no centro do círculo.

Christina reconheceu entre aquelas figuras a dois dos homens de seu marido, um dos quais era Lachlan MacRuairi. A terceira era uma mulher. Christina sorriu ao precaver-se de que tinham completado sua missão com êxito. Embora o jovem conde do Fife não estivesse ali, sua irmã tinha ido em seu lugar.

MacRuairi se aproximou para ajudá-la a desmontar, mas a dama — uma condessa, neste caso—, lhe jogando um olhar desdenhoso, desembarcou de um salto sem lhe dar a mão. A expressão sombria no rosto do MacRuairi gelou o sangue a Christina. Depois de passar andando régio junto ao ameaçador highlander, a condessa se dirigiu a toda pressa para o rei para prostrar-se ante

ele. O capuz de sua capa caiu para trás, deixando ao descoberto longos cabelos de cor loiro platino, uma paradoxo de suavidade que contrastava com a férrea determinação de suas feições pronunciadas. Christina viu que era jovem, talvez poucos anos mais velha que ela, com uns traços marcados, mais chamativos que belos.

—Excelência - disse com uma voz rouca e transbordante de orgulho—, vim assim que me foi possível. Espero não ter chegado muito tarde.

Bruce lhe dedicou um sorriso tão cálida que Christina se perguntou se seriam certos os rumores de que no passado tinham mantido uma relação amorosa.

—Não, Bela, não é muito tarde. Nunca é muito tarde, e menos ainda quando arriscastes tanto por vir.

Bruce não era o único que estava assombrado pela valentia da jovem condessa. Lady Isabella MacDuff tinha desafiado a seu marido e ao rei para ir a aquela entrevista. E não só era a irmã do conde do Fife, mas também a esposa do conde de Buchan, John Comyn, primo do Comyn o Vermelho e seguidor leal do rei Eduardo. Christina estava convencida de que se a Eduardo lhe apresentasse a oportunidade, faria pagar caro sua ousadia à condessa.

Pela segunda vez em um par de dias, presenciou a coroação do Robert de Bruce como rei da Escócia, embora nessa ocasião fosse lady Isabella quem lhe rodeou o aro de ouro à cabeça.


—Beannachd Do Righ Alban — disse a condessa quando teve terminado. «Que Deus abençõe ao rei da Escócia.»

Mais tarde, levaram rapidamente à condessa rebelde ao palácio para que se reunisse com a esposa e as irmãs de Bruce.

Ao ir a cavalo ao encontro de Bruce, Isabella MacDuff tinha escolhido seu caminho e já não poderia retornar ao lado de seu marido nem da filha que tinha deixado pra trás. De forma inconsciente, Christina levou a mão ao ventre, incapaz de imaginar-se tamanho sacrifício. Embora tivesse confirmado suas suspeitas fazia somente uns dias, já albergava um profundo carinho para o menino que estava gerando.

Por fim, chegou o momento da cerimônia que ela estivera esperando.

Um por um, os guerreiros de elite da guarda de highlanders de Bruce saíram à frente. Inclusive à luz do dia apresentavam um aspecto temível. Se não os tivesse conhecido no transcurso dos últimos dois meses, Christina teria acreditado que não eram reais, a não ser personagens míticos ou produtos de sua imaginação. Todos vestidos de negro e com seu elmo escuro, cujo protetor nasal lhe tampava boa parte do rosto, os guerreiros secretos foram chamados um após o outro por seus nomes códigos para que se ajoelhassem ante a enorme espada de Bruce. O apelido de MacSorley era «Falcão»; o de MacRuairi, «Víbora»; o de MacKay, «Santo»; o de Boyd, «Incursionador»; o de Lamont, «Caçador»; o de MacLean, «Golpeador»; o de MacGregor, «Flecha»; o de Seton, «Dragão», e o de Gordon, «Templário».


O último guerreiro do grupo era o que ela esteve esperando. Os homens se negaram a lhe revelar que nome tinham decidido pôr em seu marido.

—Chefe — chamou Bruce.

Christina sentiu que o coração lhe dava um tombo, comovida pela grande honra que os guerreiros tinham conferido a seu marido. Embora procedessem de clãs diferentes, Tor os tinha unido para formar um novo: MacLeomhann, «filho do Leão». Seria um clã que não estaria apoiado no parentesco, e sim em um objetivo comum: a liberdade e —como simbolizava a nova tatuagem de um leão rampante que seu marido luzia no braço— a restauração de um escocês no trono da Escócia.

Christina viu relampejar os olhos de seu marido sob o aço de seu elmo e soube que ouvir seu apelido também tinha emocionado a ele.

Com um nó na garganta, Christina observou a seu marido avançar e prostrar-se ante seu rei. Nunca se havia sentido tão orgulhosa dele. Era consciente do perigo que corria, mas a aventura em que ele e seus homens estavam a ponto de embarcar-se mudaria o rumo da história. Manter em segredo suas atividades seria complicado, mas por sorte ele tinha um irmão gêmeo que poderia ocupar seu lugar enquanto estivesse longe de casa.

«longe de casa.» Ambos teriam que fazer sacrifícios nos altares daquela guerra.

Mas quando Tor agachou a cabeça e a folha da espada de Bruce lhe tocou o ombro, Christina soube que tinha encontrado algo muito melhor que o cavalheiro de seus sonhos; tinha encontrado a um highlander que tinha conquistado seu coração e um amor que duraria toda a vida.

Os dez guerreiros formaram um círculo em torno de seu rei. Com as espadas em alto por cima de sua cabeça, gritaram: —Airson an Leomhann! —«Pelo Leão!», uma divisa que acabaria por semear o medo no coração de muitos homens.

A operação Leão Rampante30 tinha começado.


Fim


Nota da Autora A maioria dos personagens principais da história estão baseados livremente em figuras históricas reais. «Tor» foi o primeiro chefe e fundador do clã MacLeod (e sexto bisavô de Rory MacLeod, de ‘O Highlander Indomável’ ). Entretanto, em princípios do século XIV, os clãs tal e como os concebemos hoje em dia estavam ainda em matilhas. Inclusive o termo «highlander» é provavelmente um anacronismo — segundo o dicionário Oxford, a palavra highlandman aparece pela primeira vez em um texto por volta do ano 1425—, mas tanto autores de ficção (Nigel Tranter) como de não ficção (G. W. S. Barrow) empregam-na no mesmo contexto histórico. Suponho que, igual a mim, chegaram à conclusão de que não havia uma alternativa melhor. Por outro lado, que graça teria ler uma novela romântica ambientada em Escócia em que não aparece nenhum highlander?

Os dois ramos do clã MacLeod, os MacLeod de Harris e os MacLeod de Lewis, são conhecidos respectivamente como «Siol Thormoid» e «Siol Thorcuil» («semente de Tormod» e «semente de Torquil», em sentido literal). As últimas investigações sobre a genealogia dos MacLeod desmentem a crença anterior de que Tormod e Torquil eram irmãos, e em troca parecem indicar que Torquil foi neto de Tormod (e filho de Murdoch). Setecentos anos depois, é impossível riscar a genealogia com exatidão. Decidi me ater à versão tradicional, tanto por simplicidade como porque é a que mantém o chefe atual do clã MacLeod no lugar da Web de Dunvegan. De forma similar, a descendência de Tor por linha paterna do rei da Noruega e do rei de Man descrita no primeiro capítulo também está simplificada em grande medida e é objeto de controvérsia.

A maioria dos genealogistas coincide em que Tor se casou duas vezes e em que sua segunda esposa foi Christina Fraser, irmã do Alexander (seguidor de Bruce, a quem estava muito unido, e que mais tarde se desposaria sua irmã Mary) e de Simon, o primeiro senhor de Lovat. O pai de Christina esteve detido na Inglaterra durante uma temporada, mas diferente do que se conta na novela, sua família se encontrava ali com ele. Cabe supor que Christina e seus irmãos passaram um tempo na corte inglesa.

As alianças forjadas pelo Tor através do matrimônio ilustram à perfeição a mudança que se estava produzindo naquela época nas ilhas Ocidentais, que eram um reino marítimo independente de estar sob o domínio da Escócia. O primeiro enlace de Tor foi com uma família influente da costa ocidental, e o segundo com a filha de um nobre escocês.

O ataque de Skye por parte do conde do Ross ocorreu em realidade duas décadas antes da novela, em 1262. Foi tão brutal como o hei descrito, assassinato de meninos incluído. A morte dos pais de Tor durante a incursão, não obstante, é um fato fictício.

Segundo algumas lendas, Torquil MacLeod se fez com suas terras no Lewis matando a todos os membros varões do clã Nicolson (afogando-os no Minch) e casando-se depois com a filha herdeira. Como supus que isto seria algo excessivo para o gosto da maioria dos leitores, decidi dar um toque mais romântico à história.

O trasfondo político da primeira guerra da Independência da Escócia é, por dizer com suavidade, extremamente complicado. Aos interessados em conhecer mais a fundo aquela época, recomendo encarecidamente o livro Robert de Bruce do G. W. S. Barrow (Edinburgh University Press, 2005). Para quem quer ler uma série de novelas históricas e amenas ambientadas nesse período The Bruce Trilogy do Nigel Tranter (Hodder Headline, 1985); é um clássico.

A relação entre Bruce e Wallace foi muito mais complexa que a que descrevo no livro. Ambos desejavam expulsar aos ingleses da Escócia, mas Wallace aspirava a restaurar no trono à família Balliol, enquanto que Bruce queria a coroa para si. Tal como assinala Tor quando o critica no primeiro capítulo, Bruce se passava repetidamente do bando dos «patriotas» ao dos ingleses e vice versa. No geral, seus atos podem explicar-se em função de quem apoiavam os Balliol/Comyn; normalmente ele estava no lado contrário.

Passei nas pontas dos pés pelo que é provavelmente o momento mais importante na vida de Bruce: o assassinato de seu rival, Comyn o Vermelho, ante o altar da igreja do Greyfriars. Os relatos de quão feitos culminaram com o assassinato diferem enormemente entre si. Uma das versões «românticas» (hoje desacreditada) fala de um pacto com o Comyn e de mensageiros que levavam a Eduardo prova da traição de Bruce, mas que foram interceptados. Decidi aproveitar esta história porque minha heroína encaixava bem nela, mas também porque me encontrei com o mesmo problema que muitos dos primeiros cronistas da vida de Bruce: como explicar o ato decididamente anti heroico de um grande herói. Era evidente que Comyn se interpunha entre o Bruce e o trono, mas embora tira-lo meio era «necessário», o assassinato de um rival não causa boa impressão, olhe como se olhe. O fato de tê-lo matado em uma igreja e de ter violado com isso seu direito de asilo agravava muito as coisas. Por causa deste crime, Bruce esteve excomungado durante quase vinte anos. Escócia ficou debaixo de interdição também durante um tempo.

O assalto ao castelo do Dumfries se produziu em realidade depois de que Bruce matasse a Comyn, não antes, como acontece na novela. Atacar Dumfries foi o primeiro ato de rebeldia de Bruce contra o rei Eduardo. O governador do castelo naquela época era sir Richard Siward, não Seagrave. Entretanto, é verdade que Seagrave esteve destinado na Escócia durante anos.

Uma das maiores lacunas em meu conhecimento da história daquela época era a importância real que tiveram os descendentes do rei Somerled: os MacDonald (senhores de Islay), os MacRuairi (senhores do Garmoran) e os MacDougall (senhores de Argyll). «MacSorley» é o nome com que se conhece coletivamente aos descendentes de Somerled. Sabia da importância dos MacDonald (mais tarde senhores das Ilhas), mas desconhecia por completo a dos MacRuairi e os MacDougall. Estes últimos eram certamente o clã mais poderoso naquela época, mas foram a menos guerras de Independência. Nossos velhos amigos, os Campbell, foram os mais beneficiados com sua desgraça. Os MacRuairi desapareceram poucas décadas mais tarde.

Contava Bruce de verdade com «forças especiais», uma guarda de highlanders que utilizava como exército pessoal? A resposta breve é não, mas existem alguns paralelismos interessantes. As semelhanças com uma unidade de forças especiais são fictícias, mas é verdade que Bruce tinha uma «mesnada» ou séquito pessoal ao que pertenciam Robert Boyd e partidários deles como Christopher Seton, Alexander Fraser (irmão de Christina), Thomas Randolf, Edward Bruce e Neil Campbell. Este último, junto com Alexander Seton e Thomas Há, assinou um documento no que se comprometia a defender e apoiar Bruce até o final. Em um desses descobrimentos fantásticos que se fazem por acaso, encontrei uma referência ao Donald», filho de Alistair (em quem está apoiado o personagem de MacSorley), que dirigiu a um grupo seleto de highlanders (uma «tropa de ilhéus»), por ordem de Angus Og, com o fim de ajudar e proteger Bruce em 1306. Impressionante, não é?

O que está claro é que, já no início, Bruce reconheceu a importância das Highlands Ocidentais. Na transcendental batalha de Bannockburn, em 1314, Bruce lutou contra os ingleses à frente de uma divisão de highlanders e ilhéus. Em teoria, muitos dos membros da «Guarda das Highlands» combateram ao seu lado (incluindo Tor). E quando Bruce viveu seu momento mais difícil em sua luta por ocupar o trono, foram os highlanders e os ilhéus que foram em sua ajuda. Mas isso já é parte de outra história.

 

 

Notas


[1] O bìrlinn, vulgarmente conhecido como a fhada de longa duração (“Navio de longa duração”), foi construído de tijolo e pode ser navegado ou remado. It had a single mast with a square sail. Tinha um único mastro com uma vela quadrangular. Smaller vessels of this type might have as few as 12 oars, with the larger having as many as 40. As embarcações menores deste tipo pode ter apenas 12 remos, e o maior ter tantos como 40. For over 400 years, down to the 17th century, the bìrlinn or long-fhada was the dominant vessel in the Hebrides. Por mais de 400 anos, até o século 17, o bìrlinn ou fhada longa era a embarcação dominante nas Hébridas
[2] Chrétien de Troyes (c. 1135 – c. 1191) foi um poeta e trovador francês do final do século XII. Foi um dos primeiros autores de romances de cavalaria, sendo também considerado o primeiro grande novelista em língua francesa. Suas obras inspiraram a literatura em toda a Europa Ocidental durante a Idade Média. Sua obra é a primeira a mencionar temas tão conhecidos hoje como a busca do Santo Graal e o amor entre Lancelote e a rainha Genebra. A obra de Chrétien inclui cinco grandes poemas em versos octasilábicos. Destes, quatro estão completos: Erec e Enida (c. 1170), Cligès (c. 1176), Ivain, o Cavaleiro do Leão e Lancelote, o Cavaleiro da Carreta, os dois últimos escritos simultaneamente entre 1178 e 1181.
[3] Meleagant (também grafado Malagant ou Maleagant) é um vilão da lenda arthuriana. Originalmente um cavaleiro da Távola Redonda filho do rei Bagdemagus de Gorre, sua reivindicação à fama decorre de ter sido o seqüestrador de Guinevere. Sua primeira aparição ocorre em Lancelote, o Cavaleiro da Carreta por Chrétien de Troyes, onde leva Guinevere para seu castelo indevassável. A rainha é resgatada por Lancelote e Gawain; esta também é a primeira aparição de Lancelote na lenda arthuriana. Meleagant supostamente teria sido criado com base em Melwas, vilão das primeiras histórias galesas, o qual captura Guinevere na Vida de Gildas. Nesta obra, o rei Melwas captura a rainha e a leva para sua fortaleza em Glastonbury. Arthur a localiza após um ano de buscas e se prepara para atacar o castelo, mas Gildas negocia seu retorno em segurança.
[4] Casaco medieval que se colocava sobre a armadura
[5] Que segue, que acompanha; partidário; sectário, seguidor. S.m. Membro de um bando ou partido; prosélito, assecla.
[6] Maça de guerra:
[7] Machado de guerra:
[8] São Columba (7 de Dezembro de 521 a 9 de Junho de 597) também conhecido como Columba de Iona, ou, em Gaélico, Colm Cille ou Columcille (“pomba da Igreja”). Foi a grande figura missionária da Escócia. Monge irlandês (gaélico), reintroduziu o Cristianismo entre os Pictos medievais. É dito como sendo o primeiro a ter avistado Nessie, o monstro do lago Ness.
[9] Marzipã, marzipan ou maçapão é um doce de origem árabe, preparado a partir de uma pasta feita de amêndoas moídas, açúcar e claras de ovos, que pode ser moldada em praticamente qualquer formato. Também podem ser adicionadas essências.
[10] Clàrsach ou Cláirseach (dependendo irlandês gaélico ou gaélico escocês grafias), é o gaélico palavra genérica para “uma harpa , como derivado do irlandês médio . In English , the word is used to refer specifically to a variety of small Irish and Scottish harps. Em Inglês, a palavra é usada para se referir especificamente a uma variedade de pequenas e gaitas escocesas irlandês.
[11] “é um contador de histórias tradicional irlandesa. Grafias Alternatate incluem seanachaí, senachaí senachie e Shanachie. A palavra é uma forma latinizada do seanachaidh língua irlandesa ou seanchuidh. Vem da palavra irlandesa “seanachas” ou “seanchus” significado “histórico” ou “folclore”.
[12] Cuirm era uma espécie de cerveja fabricada pela Gael . It was a powerful, intoxicating liquor made from barley , and being of course used at all feasts, the word cuirm came ultimately to mean a feast itself. Era inebriante, feita de licor poderoso da cevada , e sendo, obviamente, utilizado em todas as festas, a cuirm palavra veio a significar em última análise, uma festa em si. It is supposed by some to have been the same as whisky , but the process of brewing being so much easier and cheaper than distilling , it was more probably a strong kind of beer. Supõe-se por alguns de ter sido o mesmo que o uísque mas o processo de fabricação de cerveja é muito mais fácil e mais barato do que a destilação.
[13] Vestido com abotoamento frontal e nas mangas
[14] A tradução correta para Gall-Ghàidheil ou qualquer uma das variantes de grafia é “Foreign Gaels” e não é utilizado especificamente para se referir aos estrangeiros nórdicos. It is a general term to describe a particular ethnic grouping of foreigners of which the Norse formed part. É um termo geral para descrever um grupo étnico específico de estrangeiros de que os nórdicos faziam parte. This term is subject to a large range of variations depending on chronological and geographical differences in the Gaelic language , ie Gall Gaidel , Gall Gaidhel , Gall Gaidheal , Gall Gaedil , Gall Gaedhil , Gall Gaedhel , Gall Goidel , etc. The modern term in Irish however, is Gall-Ghaeil , while the Scottish Gaelic is Gall-Ghàidheil . [ 1 ] Este termo está sujeito a uma grande gama de variações dependendo cronológica e geográfica diferenças na língua gaélica. O termo moderno em irlandês no entanto, é Gall-Ghaeil, enquanto o gaélico escocês é Gall-Ghàidheil.
[15] Whisky em gaélico escocês.
[16] Colchão fino de palha.
[17] Banshee é um ente fantástico da mitologia celta (Irlanda) que é conhecida como Bean Nighe na mitologia escocesa. As Banshee provêm da família das fadas, e é a forma mais obscura delas. Quando alguém avistava uma Banshee sabia mal seu fim estava próximo: os dias restantes de sua vida podiam ser contados pelos gritos da Banshee: cada grito era um dia de vida e, se apenas um grito fosse ouvido, naquela mesma noite estaria morto.
[18] Forte em gaélico
[19] Yule é a festa sagrada mais importante do ano teutônico. Começa em 20 de dezembro e dura doze dias, sendo o décimo segundo o primeiro dia do ano.
[20] Bardo dos habitantes das Terras Altas da Escócia, responsável por preservar e repetir as tradições das tribos.
[21] Narrativa medieval sobre mitos gaélicos
[22] Waternish é uma península de uns doze quilômetros de comprimento na ilha de Skye.
[23] Warwolf (Lobo de Guerra) considera-se a maior catapulta da história. Construiu-se na Escócia por ordem do rei Eduardo da Inglaterra, durante o assédio do castelo de Stirling, durante as guerras pela independência escocesa.
[24] Muro cercado defensivo característico dos castelos escoceses durante a Idade Média.
[25] Os brogues eram sapatos de solados planos de um couro muito flexível.
[26] Torre fortificada de duplas paredes e circular própria da Escócia.
[27] Sucessor; segundo ao mando entre as dinastias reais gaélicas.
[28] adj. || (tipogr.) diz-se do formato que tem a folha de impressão apenas dobrada em duas: Formato, volume infólio. , s. m. livro ou volume infólio: F. lat. In… +folium (folha).
[29] O Wyvern ou Guiver (também conhecido como wyverns, na sua grafia Inglês, ou drakontas - e às vezes até chamado por alguns corredores de vento) são criaturas lendárias pertencentes à mitologia medieval , em forma de grandes répteis alados da família de dragões nível inferior, mas são capazes de lançar feitiços.
[30] Leão rampante: firmado em suas patas traseiras. Em posição de ataque.

Capítulo 21

Era a última hora da tarde quando Tor retornou ao castelo. Embora tivesse desejado permanecer junto ao leito de sua esposa doente, assim que lhe asseguraram que se encontrava bem tinha ido ocupar-se de assuntos que não admitiam mais demora.

Que ele recordasse, era a primeira vez que se sentia contrariado ante a chamada do dever. Mas, além de tentar descobrir a um possível espião, tinha recebido uma mensagem inquietante de MacDonald no que lhe exigia que tomasse medidas. Embora aquilo certamente prejudicasse ao equilíbrio da equipe que tanto esforço havia tido alcançar, era inevitável.

Além disso, se ficava nesse aposento um minuto mais, corria o risco de esquecer-se de quão doente esteve Christina e lhe fazer sentir em suas próprias carnes o medo que ele tinha passado por sua culpa.

Desejava apagar para sempre de sua mente o momento em que ela se desabou no chão. Por um angustiante instante, tinha acreditado que estivesse morta. Não tinha recuperado o fôlego até que tinha notado o pulso acelerado sob seus dedos e a respiração tênue, mas constante contra sua bochecha. Sua sensação de pânico diminuiu um pouco mais quando a curandeira a examinou e comunicou a Tor que somente era um pouco de febre.

Somente. Não havia «somente» quando se tratava de sua esposa. Furioso pelo engano da anciã, aterrorizou-a ameaçando reduzir na metade os anos que ficavam, que, por certo não eram muitos.

Tor nunca havia se sentido assim. Christina despertava nele um forte instinto protetor que não sabia que tinha. Como seu marido, era seu dever mantê-la a salvo, mas o que sentia ia mais à frente do dever.

Sempre tinha sido capaz de deixar os sentimentos a um lado e fechar sua mente como uma armadilha de aço. Mas com a Christina não ficava tão simples. Havia algo nela que lhe tocava a fibra sensível, que lhe chegava muito fundo. Era delicada, amável e generosa, possuía uma mente ágil, um entusiasmo e uma alegria de viver contagiosos, mas também uma profundidade e uma têmpera maiores do que ele tinha pensado em princípio. Encarava-lhe, desafiava-o… e se preocupava com ele.

Era um remanso de doçura para um homem que somente tinha conhecido o conflito. E, por mais que se esforçasse Tor não podia manter distância.

Subiu a escada pesadamente e, de forma maquinal, observou a zona. Os guardas estavam em seus postos ao longo dos parapeitos de pedra e no seteiro - uma pequena obra em forma de caixa encostada à muralha do castelo— que sobressaía por cima das portas. Um punhado de mulheres extraía água do poço. Os criados tiravam bandejas e pratos do salão, e Christina estava…

Caiu-lhe a alma aos pés quando fixou o olhar na figura que caminhava entre as almenas. Ficou furioso, uma sensação a qual começava a acostumar-se. Que demônios fazia ela ali fora? Devia estar descansando, não perambulando por aí, exposta ao ar frio do exterior e ainda por cima com o cabelo úmido, Por Deus santo. Acaso não sabia que podia agarrar um resfriado?

Ela se voltou para ele e o saudou com um gesto. Baixou a mão devagar quando Tor se aproximou.

Tinha visto a expressão de seu rosto. Mordendo o lábio, retrocedeu uns passos, mas seu olhar apaziguador não serviu absolutamente para nada.

—Retornaste - disse em um tom exageradamente alegre—. Não te vi vir para aqui.

Sem abrir a boca nem diminuir o passo, ele se equilibrou para ela e a levantou.

Christina soltou um grito afogado de surpresa, mas ele manteve o olhar à frente, pois não se atrevia a olhá-la. Nesses momentos, seu controle sobre si mesmo pendia de um fio. Sentia um ardor no peito.

—Está exagerando-disse ela com suavidade, para aplacar a uma besta raivosa—. Encontro-me bem.

—Não fale-grunhiu ele com os dentes apertados e a ira a flor de pele—. Não fale.

Com um profundo suspiro de resignação, jogou os braços ao seu pescoço e apoiou a bochecha no peito de Tor. Uma enorme onda de calidez abriu passo através da raiva. Invadiu-o uma incrível sensação de… ternura. Que diabos estava lhe passando?

Não sabia e lhe dava igual, de modo que a atraiu para si um pouco mais.

O silêncio se impôs no grande salão quando ele entrou com ela em braços e se dirigiu ao corredor. Era consciente dos olhares de curiosidade que atraía, mas lhe importavam um nada. Se aos pressente deu a impressão de que seu chefe tinha perdido a cabeça, certamente tinham razão.

minutos depois, chegou ao quarto de Christina. Fechou a porta de uma patada e ficou ali de pé durante um momento, com uma estranha relutância a depositá-la sobre a cama. Finalmente o fez e se sentou a seu lado.

Pouco a pouco, notou que relaxava o corpo. Empurrou-lhe o queixo para cima com sua diminuta mão para obrigá-lo a olhá-la aos olhos.

—Sinto muito. Não era minha intenção te dar motivo de preocupação.

—Tem o cabelo molhado - disse ele, como se assim explicasse algo.

—tomei um banho.

—Poderia te resfriar.

Ela teve o descaramento de deixar que lhe notasse que estava reprimindo um sorriso.

—Isso não é mais que uma tolice própria de babás. Saí muitas vezes com o cabelo molhado e nunca adoeci por isso. Somente foi uma ligeira febre; estou bem, de verdade. Morag diz que já não tenho que guardar repouso.

Tor esticou a mandíbula.

—O que saberá Morag de uma pequenina como você? É tão robusta e teimosa como uma mula velha das Highlands.

desta vez ela sorriu abertamente.

—Pode ser que eu não seja tão alta como vós, mas tenho uma compleição forte. —escureceu o rosto—. Embora em alguma ocasião tenha desejado não tê-la.

Tor admirou-se esse comentário. Então lhe veio algo à memória.

—Contou-me que sua irmã esteve doente quando pequenas.

Ela assentiu.

—Beatrix sempre foi uma menina doentia. Eu quase nunca me punha má. Parecia-me tão injusto… Freqüentemente desejava poder ser eu quem caísse doente em lugar dela.

—Não é assim como funcionam as coisas - repôs ele com delicadeza—. Não devemos nos sentir culpados pelos dons que recebemos ao nascer-acrescentou sem pensar.

Ela inclinou a cabeça e lhe escrutinou o rosto.

—Você se sente culpado por ser o gêmeo mais velho.

De forma instintiva, encerrou-se em si mesmo e apagou toda expressão de seu semblante. Entretanto, o ligeiro olhar de recriminação que lhe dirigiu Christina lhe fez recordar o acordo ao que tinham chegado. Respirou fundo, perguntando-se em que diabos estivera pensando.

—Talvez um pouco quando eramos meninos. Parecia-me injusto que me tocasse ser chefe por uma diferença de minutos. Mas aprendi a aceitar que a vida nunca é justa e que devemos interpretar o papel que nos corresponde.

Ela ergueu o olhar para ele com um amplo sorriso nos lábios.

—Bom, não foi tão difícil, verdade?

Tor replicou entre dentes que era como se lhe cravassem agulhas candentes sob as unhas, mas isso a fez rir.

—Logo estará tagarelando sem parar como o pequeno Iain.

Ele pôs os olhos em branco.

—Deus não o queira. Esse moleque nunca fecha o bico.

trocaram um olhar de divertida cumplicidade que em seguida se transformou em outra coisa, em algo tórrido e selvagem que alagava seus sentidos.

Ele era plenamente consciente da situação em que se encontravam. A cama, as pernas tocando-se, o tênue aroma floral do sabão na pele recém lavada dele, a careta sensual em sua boca luxuriosa…

Sentiu um calor repentino na virilha. O desejo se apoderou dele com uma força irrefreável. Apressava-o. Atraía-o para ela. Fazia que lhe custasse recordar que Christina necessitava repouso.

O estranho torvelinho de emoções dos últimos dias ainda estava muito recente. Ele não podia pensar em outra coisa que em afundar-se nela para fazê-las desaparecer.

Inclinou-se para sua esposa. Tinha a boca a somente um palmo da sua. Ouviu que lhe agitava a respiração. Os lábios de Christina se abriram, incitantes.

Tor quase podia perceber seu sabor…

«Maldição. Controla-te.» separou-se dela, obrigando-se a ter presente que ainda estava muito fraca.

—Descansa um pouco. Depois passarei para ver como te encontra.

Ela fez carinha de sapeca. Seus olhos negros lhe esquadrinharam o rosto.

—Acaso não quer…? —Então baixou o olhar, e o sorriso pícaro que lhe curvou a boca fez que a Tor lhe arrepiasse o pêlo da nuca—. Já vejo que sim que quer - disse ela com voz áspera, lhe pondo a mão sobre a coxa. O músculo se esticou por reflexo. O contato daquela pequena palma queimava ao Tor como um ferro incandescente através do linho de seu leine, a escassos centímetros do lugar onde ele ansiava senti-la—. Por favor, fica - sussurrou Christina.

Sua mão se deslizou pela coxa dele, aproximando-se. A Tor lhe acelerou o pulso. Quase podia senti-la acariciando-o, estirando com movimentos largos e enérgicos de sua mão minúscula e delicada. Apertou os dentes, armando-se de valor para resistir a seu contato.

Estava a ponto de negar quando ela acrescentou:

—Necessito-te.

Nesse simples rogo, ele ouviu o eco dos medos que o tinham afligido nos últimos dias. Seus olhos se encontraram. Viu o rubor rosado nas bochechas de Christina, um rubor saudável.

—Não quero te fazer dano — disse com brutalidade.

O olhar dela se suavizou com um brilho de emoção que lhe encolheu o coração.

—Não vais fazer me dano.

Roçou-lhe o membro com os nódulos e ele soltou um grunhido, fechando os olhos enquanto uma ardente onda de desejo o percorria.

Agarrou-lhe a mão para evitar que seus dedos se fechassem em torno dele, embora nesse momento não houvesse nada no mundo que desejasse mais.

—me prometa que se começar a te sentir mal, avisará-me.

O sorriso travesso apareceu de novo ao rosto de Christina.

—Temo que tenho toda a intenção de me sentir mal, muito, muito mal. —inclinou-se para ele e apertou a boca contra sua mandíbula, justo ao lado da orelha—. E totalmente satisfeita.

Tor tinha chegado ao limite de sua boa vontade. Soltando-lhe o pulso, voltou a cabeça para aprisionar os lábios entre os seus e lhe escapou um gemido quando a mão dela o rodeou por fim. Uma sensação de alívio o alagou.

Deus, adorava beijar sua dama. Seus lábios eram muito suaves e tinham sabor de mel morno. Deslizou a língua pelo interior de sua boca em longas e lânguidas lambidas, tomando seu tempo para saborear e explorar. Sua sede dela era insaciável, e se entregou ao simples prazer de beijá-la que durante tanto tempo se privou.

Os ofegos entrecortados de Christina o excitavam ainda mais, ao igual ao roce brincalhão de sua mão. A pressão do linho o estava matando. Nada devia interpor-se entre eles.

Afastou-se de repente, interrompendo o beijo. O miado de recriminação que ela emitiu o fez sorrir. Parecia uma gatinha a quem tinham tirado sua terrina de leite. Tor ficou de pé. Ela abriu a boca para protestar, pois acreditava que ele pretendia partir, mas se deteve quando viu que abria o broche que segurava o brat ao pescoço.

Longe de dissimular sua admiração quando ele se despojou do objeto, devorou-o com os olhos, passeando o olhar por seu peito, seu abdômen e a extensão de seu longo e largo membro. O desejo manifesto em seu olhar minava a concentração de Tor. Quando Christina lambeu os lábios de forma inconsciente, por pouco não lhe dobraram os joelhos.

Voltou-se ligeiramente, e ela contemplou seu flanco. As sobrancelhas lhe juntaram.

—O que é essa marca?

Como não estava acostumado a que ninguém lhe examinasse o traseiro, esqueceu-se disso.

—Uma tatuagem azul feita com glasto. Fizeram-me isso quando nasci.

Ela assentiu.

—Tinha ouvido falar deles, mas nunca tinha visto um. É uma tradição em seu clã?

Interessante ideia, pensou ele.

—Não, era para me identificar como o primogênito. Não se pode eliminar. —Sorriu - Suponho que pensaram que era mais difícil que me cerceassem o traseiro a que me cortassem um braço ou uma perna.

Ela fez uma careta.

—Deixa-me ver?

Ele se aproximou, e os músculos se contraíram quando sentiu a suave ponta do dedo de Christina seguir o risco da tatuagem.

—Mor - disse. E a seguir traduziu—: Grande. —Um sorriso pícaro lhe desenhou nos lábios—. Muito apropriado.

—Garota má - a repreendeu Tor. Ela sabia perfeitamente que mor era um apelativo com que se estava acostumado a designar mais velho, do mesmo modo que og designava ao mais novo.

—Eu gosto do desenho.

—É irlandês - disse ele, rígido. Sentia como se seu membro estivesse a ponto de explodir por causa daquela exploração inocente.

—Doeu-te?

—Não que eu recorde. —Que introduziram agulhas quentes sob a pele não era a metade de doloroso do que estava fazendo nesse instante.

Tentando dominar seu desejo, sentou-se na borda da cama e a fez girar de modo que ficasse de pé frente a ele. Agora era sua vez de explorar. Ajudou-a com os broches e os laços até um ponto em que ela pudesse seguir por si mesmo.

—te dispa para mim, Tina - lhe ordenou—. Devagar.

As bochechas se tingiram de vermelho, mas fez o que pedia. Despiu-se, sustentando o olhar de Tor em todo momento.

Ele se acalorava cada vez mais à medida que a roupa caía ao chão: a capa, a túnica, as sapatilhas, as meias. Para quando chegou ao vestido, saltava à vista que já era toda uma perita. Pouco a pouco, o levantou por cima dos joelhos, as coxas… Deteve-se justo antes de revelar o doce centro de sua feminilidade.

Os músculos de Tor se esticaram sob sua pele excessivamente tirante, e, respirando com força, fixou na Christina seu olhar ardente. Ela o provocava e incitava, até que ele soltou um grunhido de impaciência. Justo quando ele se dispunha a lhe arrancar o maldito objeto, ela ergueu a barra até o ventre. Tor aspirou bruscamente, reprimindo o impulso de estender o braço para tocá-la, pois sabia que estaria quente e úmida de paixão.

Ela levantou o vestido mais e mais até que Tor espiou a delicada curva inferior de seus peitos.

Christina se deteve e ele conteve o fôlego até que lhe mostrou os formosos e turgentes Montes de carne coroados por mamilos muito duros e erguidos.

Tirou o vestido por cima da cabeça, atirou-o ao chão e ficou de pé ante ele, total e belamente nua. Os últimos raios de sol penetravam pela única janela, banhando-a em um resplendor quente e sensual.

Era maravilhosa. Um pequeno, compacto e delicioso pacote de feminilidade. Longas ondas de cabelo negro e sedoso lhe caíam sobre os ombros. Pernas torneadas, quadris curvilíneos, uma cintura estreita e seios grandes e empinados que convidavam a afundar o rosto entre eles e chorar de prazer, todo isso envolto na pele mais impecável, cremosa e suave que ele jamais vira ou tocara.

—Vêm aqui — ordenou ele, sem reconhecer sua própria voz, rouca e carregada de uma intensidade que nunca tinha ouvido antes.

Ela, obedientemente, aproximou-se até ficar diante dele. Tor sabia que se sentia envergonhada, mas não teve contemplações. Cravou nela os olhos com dureza.

—Antes tenho que me assegurar de que esteja bem.

Ela o olhou, vacilante.

—Seriamente?

Tor assentiu.

—Terá que te deitar para que examine… —Incapaz de resistir a tentação um segundo mais, deslizou a mão sobre a aveludada curva de seu quadril—. Cada palmo de seu corpo.

Ela arregalou os olhos antes de avivar-se, ansiosa.

Estendeu-se no leito em um esbanjamento de sensualidade para o olhar.

Tor se colocou em cima dela, com os joelhos em cada lado para poder mover-se livremente acima e abaixo. Começou pela boca, roçando os lábios com os seus, e percorreu a mandíbula até a orelha com movimentos rápidos da língua. Beijou-lhe o pescoço e afundou o rosto na sedosa suavidade de seu cabelo, que ainda estava úmido. As mechas espessas e escuras despediam um intenso aroma de lavanda.

Christina se retorceu debaixo de Tor, que ansiava apertar sua pele ardente contra a sua, sentir o delicioso estremecimento a seu contato. Ainda não. Como um penitente, torturava a si mesmo. Ia fazer lentamente e saborear cada instante.

Continuou examinando-a, explorando cada polegada daquela pele lisa como a de um bebê com a boca e a língua: o pescoço, os braços, o pulso e… Seus incríveis seios.

Entreteve-se ali um momento, lambendo e chupando no mais profundo da boca, fazendo girar a ponta ereta entre os dentes e a língua até que ela arqueou as costas e soltou um grito de desespero.

Deixando-a ofegante, deslizou a boca pela suave planície de seu ventre até os quadris, e dali à parte interior de suas pernas. Seu aroma o fazia enlouquecer; despertava todos seus instintos primários.

Ela tremia presa de um desejo que nem sequer sabia que tinha. Mas lhe ensinaria.

O membro inchou ainda mais.

Separou-lhe as pernas a beijos e rodeou os ombros com elas. Seu rosto estava a somente uns poucos centímetros.

Ouviu o repentino grito afogado de Christina quando ela compreendeu o que pretendia. Instintivamente, tentou fechar as pernas, mas somente conseguiu atraí-lo mais para si.

Tor riscou círculos com a língua pela parte interior das coxas até que o corpo de Christina se relaxou de novo. Ato seguido a roçou com o nariz de forma brincalhona e exalou seu fôlego sobre sua umidade até que ela ficou trêmula.

Já se tinha castigado o bastante. Não podia esperar mais.

—me olhe, Tina - lhe indicou, obrigando-a a dirigir o olhar para seus olhos—. Quero que me olhe enquanto te provo.

Ela emitiu um ofego ansioso, tendo deixado muito atrás as vontades de protestar. O corpo lhe tremia, faminto dele. Sustentando-lhe o olhar, percorreu-a com a língua, com o tato delicado de uma pluma. Christina sofreu um espasmo ao senti-lo, mas ele a segurou com firmeza pelo traseiro.

—Tem um sabor delicioso, minha doce moça. —Lambeu-a de novo, esta vez com mais força, deixando que notasse totalmente o contato de sua língua—. Como a nata mais deliciosa. Vou te lamber inteira.

*

Christina se sentia como se tivesse morrido e tivesse ido ao céu da luxúria. Tor quase lhe tinha feito perder a razão ao beijá-la por todo o corpo, mas quando ela tinha baixado o olhar para ver sua cabeleira dourada entre suas pernas e tinha caido na conta do que ia fazer lhe…

O pulso lhe tinha disparado com espera erótica; maravilhava-a que ele queria beijá-la em sua parte mais íntima. Paralisaram-lhe todos os músculos. Ela permanecia à espera do que ia ocorrer, intuindo que seria algo novidadeiro e fantástico. Não podia nem imaginá-lo.

A corrente de prazer que desatou o primeiro toque de sua língua lhe fez dar um salto. A segunda lhe provocou um calafrio.

OH, Deus.

Ela gemeu seu nome uma e outra vez incapaz de conter a força das intensas sensações desencadeadas por seu beijo perverso.

Tor a lambeu de novo, acariciando-a com a língua, descrevendo círculos, pinçando em seu interior com passadas largas e carinhosas até que ela acreditou que ia morrer de prazer.

Foi incrível. Não podia pensar mais que na boca e a língua de Tor, naquilo tão sensual que lhe estava fazendo.

A virilha começou a lhe palpitar mais depressa. Meneou os quadris contra a boca dele, desejando mais pressão, mais fricção.

E ele as deu. Levantou-a para si e apertou sua boca depravadamente talentosa contra ela.

Christina sentia o roce abrasivo de seu queixo enquanto Tor a devorava com seus beijos e sua língua voraz. Aquilo era muito.

Os espasmos se apropriaram dela, e estalou em lascas candentes de um êxtase abrasador. Mas, em vez de soltá-la, ele a agarrou contra si, recebendo seu prazer na boca.

Seu corpo ainda se convulsionava quando Tor a liberou. Olhou-a com os olhos entreabertos enquanto se estendia sobre Christina, estreitava-a contra seu corpo e se introduzia devagar nela. Sua pele, ainda sensível, notava uma leve dor com cada grosso lance.

Quando ele esteve dentro de tudo, não se moveu. Simplesmente a abraçou com mais ternura que nunca, aninhando-se contra o largo escudo de seu peito como se o mero contato fora suficiente.

Era.

Ela se derreteu contra ele, desfrutando da sensação de todos esses músculos que a rodeavam, de sua virilidade que a enchia.

E do coração dele, pulsando junto ao dele.

A emoção lhe oprimiu o peito. Era o momento mais emotivo de sua vida. Nunca tinha imaginado que pudesse sentir-se tão unida a alguém.

Permaneceram assim um longo momento, olhando-se nos olhos, em silêncio, salvo pelos sonoros batimentos do coração de seus corações, que palpitavam ao uníssono.

Então ele começou a mover-se. Devagar. Sem afastar o olhar de seus olhos, sujeitando-a com uma intensidade que fazia que o coração lhe golpeasse com força contra as costelas.

Empurrava e retrocedia com um vaivém longo e lânguido, como se dispor de todo o tempo do mundo. Como se eles fossem o mundo. Tor entrava e saía, detendo-se na parte mais profunda, e lhe arrancou um ofego de surpresa ao entrar ainda mais nela.

Pouco a pouco, começou a acelerar o ritmo, a penetrar com um pouco mais de ímpeto, a afundar-se um pouco mais. Pele com pele, seus corpos se deslizavam juntos de forma perfeitamente compassada.

Ela notou que as sensações se avivavam de novo, embora dessa vez fossem diferentes, menos violentas, mas mais intensas e poderosas. Não só se apoderaram de sua virilha, mas sim de todo seu ser.

Viu que o rosto de Tor se esticava, que apertava a mandíbula, que os músculos de seus ombros se inchavam. Tinha a pele quente e a fronte brilhante de suor.

Seus corpos se balançavam. Ele movia os quadris em círculos, com embates mais rápidos. Apertava-se contra ela até fazê-la resfolegar, até fazer que o coração lhe pulsasse a toda velocidade, e que as palpitações entre suas pernas se tornassem frenéticas.

Ele seguia lhe sustentando o olhar, e seus olhos de um azul cristalino destilavam uma emoção intensa que ela nunca tinha visto antes. Não era luxúria a não ser um pouco mais profundo, mais significativo. Ela não se atrevia a fazer-se ilusões.

—goze comigo, Tina - lhe disse ele grosseiramente.

e o fez. A respiração se entrecortou, as costas lhe arqueou, e seu prazer culminou, não com uma explosão violenta, a não ser em uma lenta rendição que começou muito dentro e se propagou para fora com uma fulgurante corrente de sensações.

E ele gozou com ela, deixando-se levar pela onda de seu clímax.

Nesse instante para Christina pareceu que seus sonhos estavam tão perto que quase podia tocá-los com a ponta dos dedos.

*

Um longo momento depois de que se apagassem os últimos ecos de seu clímax, Tor jazia na cama com Christina profundamente adormecida junto a ele. Estava-lhe custando enfocar o que acabava de ocorrer de uma perspectiva adequada.

Intenso. Esta palavra ficava muito pequena para descrevê-lo. Cataclísmico. Demolidor. Estas se aproximavam mais.

Não tinha idéia de que copular pudesse ser assim.

O peito ardia de ternura para a diminuta jovem feita um novelo a seu lado como um filhote. Depois do falecimento de seus pais e os longos anos que tinha convivido com a guerra e a morte, acreditava ter se protegido contra esse tipo de sentimentos. Seu autocontrole e sua falta de emoções eram o que o fazia destacar como chefe e como guerreiro, mas sentia que as capas de gelo se fundiam sob o calor do… amor de Christina.

Seu irmão estava no certo: ela o amava. Tor o notava nos olhos, no modo em que o tocava, em sua forma de beijá-lo.

E não podia negar que a moça lhe inspirava uma ternura especial, e isso o preocupava. Podia sentir algo por ela e mesmo assim antepor o bem de seu clã? Nunca antes tinha acreditado possível. Os sentimentos só complicavam as coisas, faziam-no mais vulnerável, e esse era um risco que nenhum guerreiro podia correr. Teve ocasião de comprová-lo quando MacDougall o tinha enfrentado e quando tinha visto Christina na aldeia. Passasse o que acontecesse, sabia que não podia permitir que sua debilidade por sua esposa interferisse em seu dever.

Ela, adormecida, emitiu um suave som de satisfação. Tor suspirou, apoiou a bochecha em sua cabeleira cálida e sedosa, e aspirou seu aroma doce e feminino. Uma sensação de complacência percorreu seus musculos esgotados. Ela era tão miúda, tão suave… Delicada e frágil. Evitar machucá-la seria toda uma provação, mas Tor jurou esforçar-se ao máximo por fazê-la feliz.


Capítulo 22


Christina estava recostada sobre o peito de Tor, com o infolio de pele sobre seu ventre nu e as pernas envoltas nos lençóis enrugados. O reluzente sol da manhã entrava em torrentes pela janela que tinha a portinha aberta, lhe proporcionando luz de sobra para ler.

Ou ao menos para tentar, pois seu irritante marido não deixava de interrompê-la. Quando chegou à parte em que Lancelot se rebaixava a montar em uma carreta para salvar a sua dama, ouviu o som inconfundível de uma gargalhada.

Baixou o livro e se voltou para lhe lançar um olhar sério.

—Se for danificar a história, não penso seguir lendo.

—Esses cavalheiros e seus ridículos códigos - disse com um desprezo indissimulado—. Parece-lhe o cúmulo da desonra viajar em uma carreta? —Sacudiu a cabeça—. Diabos, eu me arrastaria por um monte de esterco para te salvar.

A Christina tremeu as comissuras dos lábios. Custava-lhe seguir zangada quando o ouvia dizer coisas como aquela. Quem ia pensar que um monte de esterco poderia ser tão romântico?

Ergueu-se para lhe plantar um beijo rápido.

—Que terno.

—Terno? —escureceu o olhar—. Não tenho um cabelo de terno.

Para demonstrar atraiu-a sobre seu peito e a beijou de forma muito mais apaixonada. O livro caiu entre eles quando ela, aproveitando-se de sua posição e da considerável ereção de Tor, deu a volta em cima dele.

Com os joelhos a cada lado de seu corpo, fez que Tor a penetrasse, suspirando de agrado conforme ele a enchia. E como a enchia! Adorava senti-lo em seu interior, longo e grosso. Em efeito, tinha aprendido a apreciar seu tamanho e agora compreendia por que aquela criada a tinha prevenido desse modo no Finlaggan.

Com um gemido, lhe agarrou os seios com suas mãos grandes e ásperas, e começou a apertar e beliscar os mamilos entre os dedos enquanto ela o montava. Começou devagar e foi movendo-se mais depressa até encontrar seu ritmo.

Arqueou as costas sobre as mãos dele, deixando cair à cabeça para trás ao tempo que se erguia, levantando o torso tudo que pôde antes de inclinar-se de novo sobre ele, descrevendo círculos sensuais com os quadris.

Seus corpos se moviam ao uníssono com toda facilidade e fluidez. Na cama, não ficava nada a se interpor entre eles: nem acanhamento nem desconforto. Tinham alcançado a união perfeita de dois amantes.

Quando ela estava a ponto de culminar, ele baixou a mão e acariciou esse ponto deliciosamente sensível com o dedo, intensificando o prazer de Christina justo como sabia que gostava.

Ela se estremeceu, gritando, sacudida pelos espasmos. Ainda sentia um comichão quando ele a agarrou pelos quadris e se afundou no mais profundo dela, chegando a sua vez ao clímax.

Com delicadeza, sujeitou-lhe o rosto entre as mãos e a beijou de novo.

—Pareceu-te bastante terno?

—Sim. Prefiro mil vezes montar sobre ti que sobre uma carreta. —Soltou uma risadinha e, depois de aninhar-se contra ele, tirou o livro dentre os lençóis.

—E agora, quer que acabe o capítulo ou não? —perguntou lhe dirigindo um olhar severo, como se fosse um menino levado.

Tor torceu os lábios.

—Já que estamos não vejo por que não.

Ela não se deixou enganar por sua fingida indiferença. face ao evidente desdém de Tor para o código cavalheiresco, Christina sabia que estava gostando do relato.

Conseguiu ler o resto do capítulo sem mais interrupções, mas quando terminou, ele se levantou da cama (a contra gosto, pareceu a ela) para vestir-se.

Christina o observou sem dissimular seu interesse. Embora levasse duas semanas despertando em seus braços, não tinha perdido nem um ápice de seu entusiasmo. Depois daquela primeira vez, Tor tinha dormido a seu lado todas as noites. Embora o Natal tivesse sido há uma semana, cada dia era como um presente para ela. Duvidava que chegasse a cansar-se jamais de despertar junto a ele ou de contemplar seu magnífico corpo enquanto fazia suas abluções matutinas, consciente de que apenas alguns minutos antes estivera entre seus braços.

Seu marido tinha suavizado sua atitude com ela; disso não cabia a menor duvida. Já não se mostrava tão distante e indiferente, e se esforçava por abrir-se mais a ela, como tinha prometido, em que pese que não era fácil. Dada a brutalidade que tinha imperado em sua vida e as circunstâncias em que tinham morrido seus pais, não lhe custava entender por que.

Despertar em seus braços todas as manhãs tinha proporcionado algo da intimidade que desejava, mas ainda faltava algo. Seguia havendo uma barreira entre eles. Era como se Tor levasse duas vidas: uma com ela e outra diferente com todos outros.

Sabia tão pouco de suas atividades como antes. Mesmo assim, fixou-se no propósito de ser paciente. Tinha que lhe dar uma oportunidade.

Tor se vestiu a toda pressa; lavou os dentes enxaguando-se com vinho branco e esfregando com um tecido fino e uma massa de hortelã e sal; passou um pente pelo cabelo, Passou a água da bacia no rosto e se secou com o tecido adequado para isso. Entretanto, a água fria não levou os sinais de inquietação gravadas em seu semblante.

Estava aflito por algo. Como Christina o conhecia melhor que antes, tinha aprendido a decifrar seus gestos quase imperceptíveis: uma ligeira tensão da boca, a ruga na testa e um olhar distante.

—O que ocorre? —perguntou-lhe—. O que te preocupa?

Eram os rumores das crescentes desavenças entre Bruce e Comyn, a crescente ameaça de uma guerra entre Escócia e Inglaterra? Agora que sabia que ele tinha batalhado por ressuscitar seu clã a partir das cinzas da destruição, compreendia suas razões para querer evitar a guerra e manter-se neutro.

Com um sorriso, ele sacudiu a cabeça, sinal de que não tinha a menor intenção de contar-lhe, Christina lutou por conter a onda de decepção que a invadiu, não só pela falta de confiança - ou porque ele se confiou a outros—, mas sim porque temia que a visse como um brinquedo frágil que necessitava que o protegessem e o tivessem entre algodões.

«É questão de tempo», recordou-se. E tinham toda uma vida juntos em frente.

—Só é um assunto que estive pensando. —voltou-se para olhá-la nos olhos—. É possível que passe fora o resto da semana.

desta vez ela não pôde evitar sentir-se desiludida, embora fizesse o possível por dissimulá-lo. Sabia que devia estar agradecida pelas semanas que tinham estado juntos, mas não lhe bastava isso. Tornou-se ambiciosa. Quanto mais tempo passava com ele, mais tempo desejava.

Não lhe perguntou aonde ia, pois não queria ficar com pior humor quando ele se negasse a dizer. Mas, de repente, lhe ocorreu uma possibilidade. Deus bendito, tinha chegado o dia que tanto temia, o dia em que ele zarparia para ir à guerra?

*

Ao Tor a perspicácia de Christina respeito a seu estado de ânimo já não lhe surpreendia embora lhe incomodasse ser tão transparente para ela. Era certo que algo lhe preocupava. Não podia seguir demorando com o que MacDonald tinha ordenado.

Por desgraça, ela também era transparente para ele, por isso Tor sabia que sua reticência a feria. O acordo que tão cuidadosamente tinham estabelecido estava vindo abaixo. Embora ela fingisse entender por que ele não podia lhe explicar o que fazia; quanto mais se estreitavam seus laços, maior era o abismo que os separava.

O que mais surpreendia ao Tor era que em realidade tinha vontades de contar. Tinha guardado tudo dentro de si durante anos. Ao afrouxar a tampa, anos de pressão acumulada ameaçavam estalando. Certamente tinha cometido um engano ao fazer uma exceção, embora não podia negar que falar das coisas ajudava a limpar a cabeça.

Ela colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e encolheu as pernas, envolvendo-as joelhos na manta.

—averiguaste quem foi o responsável pelo ataque? —perguntou em um tom inexpressivo.

Tor não se deixou enganar por sua atitude despreocupada; sabia o que encerrava essa pergunta. Embora ela já não o interrogasse sobre o lugar aonde ia, isso não significava que não lhe interessasse saber. Seus lábios se curvaram para baixo com dureza.

—Não.

MacSorley e MacRuairi tinham retornado pouco depois de partir, com uma tripulação em extremo insuficiente, à caça de quatro navios de guerra que tinham seguido de longe até que uma das galeras ficou atrasada. Tinham-na assaltado com facilidade, mas nem sequer a habilidade considerável do MacRuairi para extrair informação lhe tinha revelado o nome da pessoa para a que trabalhavam.

—Ainda não - precisou—, mas o averiguarei. Assim que encontre ao infiltrado… —interrompeu-se, sentindo-se como se lhe tivessem atirado uma machadada. Nunca na vida tinha metido a pata dessa maneira. Talvez Christina não se desse conta. Sim, claro…

Ela afogou um grito.

—Acredita que há um espião?

—Parece provável - respondeu ele devagar, furioso consigo mesmo—. Todos os ataques se produziram quando eu estava fora, ou quando se supunha que estava. É muita casualidade para atribuí-la ao azar.

—Sabe quem é o espião?

—Não, ainda não. Poderia ser qualquer. Qualquer - repetiu—. Quando saio do castelo, não o faço precisamente em segredo, mas meus homens estão alerta a algo fora do comum ocorra, e estão tomando precauções. —Examinavam todas as mensagens e levavam a ele tudo o que consideravam suspeito. Vigiavam aos guardas (em especial aos que tinham sido recrutados recentemente) e ao pessoal do castelo, incluídos o tabelião e ao Rhuairi. Entretanto, depois de ver como o clérigo tinha protegido a Christina, suas suspeitas iniciais lhe pareceram infundadas.

Quase podia ler os pensamentos que se amontoavam na mente de Christina. Talvez o lapso tivesse sido o melhor que podia acontecer, disse a si mesmo. Terei que caçar a cobra com toda cautela para que não escapasse, e podia resultar perigoso. Mais valia que ela estivesse em guarda.

—Só poucos de meus guardas de máxima confiança estão à corrente disto, Christina. Lembre-se que a situação é grave e potencialmente perigosa. Espero não ter me equivocado ao depositar minha confiança em ti.

Ela sacudiu a cabeça com veemência.

—É obvio que não. —Sorriu—. Obrigado por me contar isso. Inclinou a cabeça—. É por isso que te parte?

—Em parte. Meus homens estarão atentos se por acaso acontece algo incomum no castelo, embora duvide que essa gente tente nada tão pouco tempo depois do último ataque. Mas não quero que saia do castelo durante minha ausência. Não esqueça sua promessa. —Não era necessário lhe explicar que não devia misturar-se em seus assuntos.

—Mas vou me aborrecer - protestou ela.

Tor tentou não sorrir ao fixar-se em sua expressão de despeito.

—Acreditava que estava trabalhando em um estandarte novo para o salão.

Christina entrecerrou os olhos.

—Sabe perfeitamente que é um desastre. Sou uma negação com a agulha.

Ele soltou uma risadinha.

—Estou seguro de que encontrará alguma atividade em que ocupar seu tempo.

—Se não tivesse enviado a seu irmão e a sua mulher ao exílio, teria a alguém com quem conversar.

Aquele era um tema delicado. Christina não entendia que seu marido estivesse empenhado em castigar seu irmão…, embora em realidade não o estivesse. Não era de se admirar. Ela tinha muito bom coração e não estava acostumada a tomar as decisões difíceis às que Tor se enfrentava diariamente como chefe.

—Janet estará aqui.

Como havia um possível espião entre eles, Tor tinha chegado à conclusão de que era muito arriscado que ela seguisse indo e vindo do castelo ao broch. Os homens tinham que arrumar-se somente com a comida… e se queixavam disso.

Christina arqueou uma sobrancelha.

—Quer que trave amizade com sua amante?

—ex-amante -a corrigiu ele—, mas segue sendo uma amiga. Dê-lhe uma oportunidade, gostarás dela.

Ela fez um ruído abafado parecido a um bufo.

—Os homens não entendem nada. Duvido muito que queira ser amiga minha.

Embora Tor não tivesse a menor ideia de por que, não pretendia entender as complexidades da mente feminina.

Agachou-se para beijá-la com suavidade. O beijo foi mais longo do que ele queria, mas quando levantou a cabeça, viu que havia valido a pena. Os lábios vermelhos entreabertos e um pouco inchados, as pálpebras entreabertas, o olhar aturdido, as bochechas rosadas… Maldita seja, adorava o aspecto que tinha quando a beijava.

—Voltarei antes que te dê conta.

*

Christina tinha conseguido distrair Tor de seus problemas, mas não durante muito tempo. «Maldito Bruce. Dane-se MacDonald.» Detestava os enganos de todo tipo. Aqueles homens formavam uma equipe e mereciam saber a verdade. Para que uma guarda secreta como essa cumprisse seu encargo, a autoridade máxima em relação às decisões que se atinham ao grupo devia ficar ao cargo do líder da equipe. Se ele estivesse ao mando, diria a Bruce e ao MacDonald exatamente onde podiam meter-se suas «ordens». Mas em pouco menos de três semanas, MacSorley seria o líder e a decisão estaria em suas mãos. Entretanto, nem sequer o corpulento escandinavo sabia o que estava a ponto de acontecer.

Era a última prova da Perdição, que fora postergada por sua volta antes do tempo a Dunvegan.

Os homens se congregaram em torno dele enquanto explicava sua missão. Tinha levado mais de dois meses, mas Tor por fim tinha conseguido lhes fechar a boca.

—Não podem estar falando sério. —Seton foi o primeiro que teve a audácia de dizer o que outros pensavam.

O olhar que Tor lhe jogou parecia indicar justamente o contrário.

—Foi o desafio final para o Fianna do Finn MacCool.

—Mas isso não é mais que uma lenda - protestou MacGregor—. Ninguém poderia proteger-se de tantas lanças enterrado até a cintura e com somente um escudo para cobrir-se.

Tor sorriu.

—Não têm por que te preocupar. Vou modificar a prova do Finn. Poderão colocar o elmo e a cota de malha, e não lhe atirarão todas as lanças de uma vez.

Ouviu algumas gargalhadas. Ao que parece suas modificações não fora suficiente para os convencer.

—Pode fazer—atravessou Campbell—. Um guerreiro destro pode apanhar facilmente dez lanças ou mais. O mais importante é dominar o medo.

—A ti isso será fácil - repôs MacGregor—. Cresceram esquivando das lanças que lhe atiravam à cabeça. Todos vimos o que és capaz de fazer com elas.

Campbell olhou ao Tor aos olhos e assentiu em sinal de aprovação.

—Verão-me em ação - comentou.

Os homens dedicaram às horas seguintes a exercitar-se. Campbell lançava as lanças - o que agradeceram atrás de alguns erros deliberados— e logo, uma vez que agarraram o truque, passaram a treinar com uma lança que tinha a ponta de aço afiada envolta em um pedaço de couro. Por último, cada um deles se enfrentou ao exercício autêntico. Além de Seton, que recebeu um forte golpe no ombro, todos conseguiram apanhar ao menos dez lanças seguidas, e alguns deles umas quantas mais. Campbell estava no certo: quando se conseguia dominar o medo, não era tão difícil. E nenhum deles tinha medo de nada.

Tor escavou o buraco enquanto os homens se adestravam. Dado a provocação que tinha exposto, pensou que era o minimo que podia fazer. Com uma profundidade que chegava à cintura e um par de pés de diâmetro, o fosso era estreito, mas o bastante grande para que eles pudessem girar para os lados, embora com muita dificuldade.

MacSorley foi o primeiro em entrar enquanto os outros formavam um círculo ao redor dele, a uns vinte passos de distância.

Tirou todas as armas que levava presas com correias a seu volumoso peito, mas ia protegido com a cota, o elmo e o escudo.

Tor ergueu a mão para assinalar o começo.

—Se houver uma só gota de sangue, não valerá a prova.

MacSorley assentiu.

—Entendido.

—Preparado?

—Sim.

Tor fez um sinal ao Lamont, o homem situado a sua direita, e as lanças começaram a sair voando do perímetro do círculo. Um por um, esperando uns segundos entre um e outro, os homens as jogavam no alvo vivo no centro.

MacSorley encontrou seu ritmo em seguida, alternando entre apanhar as lanças e aparar os golpes com o escudo. Tor foi o último em atirar sua lança, que foi a que esteve mais perto de acertar no alvo, mas MacSorley a desviou no último instante com seu escudo. Como seu birlinn, a madeira forrada de pele tinha pintado no anverso uma águia pescadora de aspecto feroz.

Ao final, havia nove lanças no chão ao redor do MacSorley e uma cravada em seu escudo. Mas tinha conseguido, e assim que os outros viram que podia fazer, apressaram-se a seguir seu exemplo.

O último em baixar ao fosso foi Campbell. A tensão se dissipou com o triunfo de cada aspirante, e enquanto Campbell se preparava para seu turno, outros inclusive intercambiavam brincadeiras.

Tor cravou nele o olhar.

—Preparado?

Campbell assentiu com a expressão severa. Tor fez o sinal, e as lanças começaram a sair. Como se tratava do último homem, os outros guerreiros se acostumaram e os intervalos entre os lançamentos seguiam uma pauta ordenada.

Uma pauta que Tor rompeu.

Quando MacGregor, que estava a sua esquerda, soltou sua lança, Tor jogou a sua ao mesmo tempo.

Tal como tinham feito seus predecessores, Campbell tinha se adaptado a um ritmo. Apanhou com facilidade a lança do MacGregor mas não estava preparado para a de Tor. Sem tempo para colocar seu escudo em posição, inclinou-se a um lado no último momento, apenas o suficiente para evitar que a lança o alcançasse no peito. Entretanto, esta lhe roçou o braço antes de cravar-se no chão, alguns pés atrás dele.

Depois de uns instantes de atordoamento geral, Tor ouviu um suspiro de alívio coletivo a seu redor.

—Foi por um triz - disse MacGregor.

Por toda resposta, MacSorley sacudiu a cabeça com pesar.

Tor não disse nada. Como outros, estava contemplando como a manga da cota do Campbell se manchava de sangue.

Campbell fixou o olhar nele.

—Sinto muito, moço - disse Tor em voz baixa.

Campbell afastou o olhar e fez um gesto afirmativo. Conhecia as regras.

—Recolherei minhas coisas.

Sem acrescentar uma palavra, saiu do buraco ajudando-se com os braços e se encaminhou para a broch. Outros o olharam afastar-se com um silêncio cheio de estupefação.

Foi Seton quem se dirigiu primeiro ao Tor.

—Não posso acreditar que o deixem partir. Necessitamo-lo. Não há outro explorador como ele em toda Escócia… ou no resto do mundo, de fato.

—Não fez a prova —replicou Tor, embora não tinha por que dar explicações.

O rosto de Seton avermelhou de raiva.

—Porque vocês têm feito armadilha.

O estalo de silêncio que seguiu a estas palavras foi ensurdecedor. Os highlanders sabiam algo que aquele cavalheiro inglês ignorava.

—Se eu me regesse pelo código ao que estas referindo, estaria morto pelo que acabas de dizer.

Seton apertou os dentes; precaveu-se de seu engano.

—Na guerra não existem armadilhas, e se querem formar parte desta equipe, mais vale que coloquem isso na cabeça quanto antes. Este guarda tem que estar preparada para tudo, e Campbell confiou demais. Se nos confiarmos, morreremos todos.

MacSorley lhe dirigiu um olhar estranho, e Tor se deu conta de que tinha cometido um engano: ele não formava parte desse «nós».

—O capitão tem razão - disse MacGregor—. Todos nos confiamos. Campbell não deveria ser o único em pagar as conseqüências. Voltarei a me submeter à prova com ele.

Tor o olhou longamente, impressionado pelo profundo vínculo que se forjou entre aqueles dois membros de clãs que antes se enfrentavam. Embora discutissem como inimigos, atrás da retórica agressiva havia uma amizade. Amaldiçoou em seu foro interno o injusto da situação, mas seu tom ao falar não delatou seus pensamentos.

—Campbell teve sua oportunidade. Deveremos nos arrumar sem ele. Boyd e Lamont são exploradores excelentes; que eles ocupem seu lugar. —Percorreu com o olhar o círculo de homens, todos eles furiosos, para que sua mensagem ficasse bem claro—. Não há mais que falar. Tomei minha decisão.

Conscientes de que protestar seria inútil, os homens se dispersaram. Não gostavam da decisão mas a acatavam, com diferentes graus de indignação. Como era de esperar, MacGregor o evitou durante o resto do dia.

Campbell se despediu com solenidade e, quando chegou o momento, Tor o acompanhou em solitário à galera que o levaria de volta a terra firme.

—Levas tudo? —perguntou.

Campbell assentiu.

—Sinto muito, moço. Desejaria que as coisas não tivessem que ser assim.

O rosto do Campbell era uma máscara de pétrea resignação.

—Sim, capitão, compreendo-o.

—Como está o braço?

—Está bem. —Instintivamente, Campbell levou a mão à parte superior do braço, não o esquerdo, que tinha ferido pela lança, a não ser o direito, no que Tor lhe tinha tatuado em segredo um sinal a altas horas da noite anterior.

Embora outros não soubessem a verdade, Campbell era um deles.

—Se alguma vez estiveres em apuros…

Campbell moveu a cabeça afirmativamente.

—Sei o que devo fazer.

Tor o agarrou do braço e lhe deu um apertão firme.

—Bs roimh geill.

—Antes morrer que render-se — respondeu Campbell com ferocidade. Depois de jogar uma última olhada a broch, embarcou de um salto e se fez ao mar.

Tor o observou afastar-se.

«Agora há dez.»


Capítulo 23


Tor levava poucos dias fora quando Christina começou a sentir os efeitos de sua inquietação. Tal como suspeitava, lady Janet não interessava cercar uma amizade com ela. Mostrava-se cortês, mas Christina estava convencida de que os sentimentos que a outra mulher ainda albergava para Tor lhe impediam de ir mais à frente.

Christina não podia culpá-la por isso.

Como dispunha de tempo de sobra, havia-se aficionado a dar longas caminhadas pelo perímetro da muralha. Além de seus passeios matinais com o irmão John, agora saía a caminhar também depois do jantar.

Adorava erguer o olhar para o céu nas noites limpas, embora não fossem muito freqüentes durante o inverno na «ilha da Bruma». As estrelas pareciam tão próximas ali que quase tinha a sensação de que se estendia o braço poderia agarrar uma.

Aquela era uma dessas noites e, apesar de fazia mais frio que de costume - inclusive para janeiro—, ela permaneceu um momento entre as almenas, contemplando primeiro o firmamento e logo o mar. era fascinante e provocador ver as cintilantes ondas negras com cristas de espuma branca rompendo-se contra o escarpado rochoso.

Baixou o olhar para o embarcadouro e ficou imóvel. Percorreu-a um calafrio. O birlinn aterrorizante com o falcão gravado na proa estava atracado ao lado das outras embarcações.

De repente, veio-lhe à memória o dia que tinha visto o Rhuairi no mole. Cabia a possibilidade de que o senescal fosse o espião?

Suas suspeitas aumentaram quando o homem em quem pensava saiu a toda pressa do grande salão, cruzou o pátio e baixou a escada que conduzia ao molhe. Como Christina estava oculta nas sombras, o homem não reparou em sua presença. Ela se inclinou sobre a mureta, mas não alcançou ver o que ocorria debaixo. Um momento depois, não obstante, Rhuairi subiu correndo a escada e voltou sobre seus passos para o interior do salão.

para Christina o coração pulsava com força. Permaneceu aninhada na escuridão um momento mais, sem saber o que fazer. O que acabava de presenciar podia ser um ato totalmente inocente. Mas por que se comportou ele de um modo tão estranho naquele dia e tinha negado ter recebido uma mensagem?

Seu primeiro impulso foi segui-lo, mas recordou a advertência de Tor. Não queria que ela se envolvesse. Se Rhuairi fosse o espião, seria perigoso que a surpreendesse seguindo-o. Christina teria que aguardar que seu marido retornasse para lhe expor suas suspeitas.

Esperava que para então não fosse muito tarde.

*

Lady Christina não se precavera de que alguém a observava. O irmão John MacDougall, sobrinho e xará de John do Lorne, não podia saber de ciência certa o que estava pensando, mas tinha que correr o risco. Seu instinto de sobrevivência tinha prevalecido nos últimos dias e o tinha impulsionado a preparar-se para partir. Se queria averiguar o que trazia MacLeod entre as mãos, devia fazê-lo já, e o mensageiro secreto do senescal lhe tinha dado uma idéia.

Suspeitava fazia um tempo que ela sabia ler, e suas suspeitas se viram confirmadas quando percebeu que alguém tinha corrigido os livros. Não queria implicá-la nesse assunto, mas por outro lado, pensou, estava-lhe fazendo um favor. MacLeod não gostava. Essa besta selvagem e desumana não sabia apreciar a jóia que tinha por esposa. Entretanto, também saltava à vista que sua jovem esposa o idolatrava. Talvez aquilo a obrigaria a vê-lo como era na realidade.

Ou assim esperava.

Arrependia-se de ter permitido que seu tio o metesse nisso: a espionagem teria que ser posta nas mãos de quem tivesse estômago para o engano. Embora, na realidade, não tinha escolha. Igual MacLeod, seu tio não era um homem ao que convinha desafiar.

*

Transcorreram dois dias mais, e Tor não tinha retornado. Enquanto isso, as suspeitas de Christina a corroíam por dentro. No dia anterior, tinha entrado nos aposentos principais com o irmão John, e Rhuairi, sobressaltado, tinha juntado seus papéis e se retirado com um rubor de culpabilidade no rosto. O tabelião também se fixou na estranha conduta do senescal e tinha feito um comentário sobre o nervosismo crescente do Rhuairi.

Tendo bem presente a promessa que tinha feito a seu marido, Christina tinha respondido que não tinha notado nada. Detestava não poder confiar em seu amigo. Embora o irmão John fosse a última pessoa do mundo de quem suspeitaria, Tor tinha advertido que não confiasse em ninguém.

Pensou em mandar a seu marido uma nota, mas não tinha nenhuma prova. Além disso, não poderia enviar sem que Rhuairi se inteirasse. Como não tinha alternativa, aguardou… Até a tarde seguinte.

Como era seu costume depois do jantar, estava caminhando ao redor da muralha quando viu de novo ao Rhuairi sair apressadamente do grande salão. dessa vez, entretanto, em lugar de receber a um mensageiro, subiu a bordo de um birlinn que o esperava e zarpou de volta ao mar aberto, não para a aldeia.

Admirada, Christina se dispunha a entrar no castelo quando o irmão John, com o rosto avermelhado, e esteve a ponto de atropelá-la.

Ele se desculpou, com ar transtornado.

—Por ventura vistes ao senescal?

—Sim - assentiu ela—. Se foi há alguns minutos.

—Cáspita!

Christina sorriu ao comprovar que o irmão John se apropriou de sua expressão favorita.

—Ocorre algo?

Mostrou-lhe uma folha de pergaminho.

—Caiu isso de Rhuairi, e pela pressa que tinha, pareceu-me que talvez fosse algo importante. Mas esta noite devo ir à aldeia a ver o pai Patrick.

—Não sabem do que se trata?

Ele sacudiu a cabeça.

—Não é algo que eu tenha escrito.

A Christina lhe acelerou um pouco o pulso, e todos seus instintos ficaram alerta. Estendeu a mão.

—Não faz falta que postergues sua visita à aldeia - disse sem controlar de todo o tom agudo de sua voz—. Eu o entregarei ao Rhuairi quando voltar.

O tabelião titubeou.

—Estas segura? Provavelmente o necessitará assim que retorne, e talvez seja muito tarde.

—Não me importa - respondeu ela—. Não estou cansada.

—Espero que não se trate de nada grave, embora o certo é que Rhuairi parecia um pouco mais nervoso que de costume. —Um leve sorriso se desenhou nos lábios do jovem tabelião, e toda a vacilação que sentia se esfumou. Deu-lhe o pergaminho e acrescentou—: Por outra parte, tinha prometido ao pai Patrick, e suponho que isto estará em suas mãos.

Christina, que sabia a que se referia, alegrava-se de que ele não alcançasse a ver o rubor de culpabilidade que lhe tingia as bochechas. Como estivera esperando alguma indicação de Tor, ainda não tinha contado a ninguém que sabia ler. Conhecia o modo em que funcionava a mente de seu marido, por isso imaginava que ele considerava mais seguro guardar essa informação até que descobrisse ao espião.

—Pergunto-me o que acontece ao Rhuairi - disse o irmão John, como ausente—. Ultimamente tem uma atitude tão circunspeta…

—Estou segura de que não é nada importante - mentiu Christina, tentando não sentir-se culpada. Esperava que o irmão John a perdoasse, mas não podia arriscar-se a expressar suas suspeitas em voz alta.

—Obrigado, milady. E agora, se não se importar, devo partir.

—Veremo-nos pela manhã — disse ela, e o observou cruzar a porta que dava ao mar e descer para o embarcadouro.

Resistindo o impulso de abrir a nota ali mesmo, a guardou entre as dobras de sua capa e se dirigiu rapidamente à intimidade de seu quarto. Ali, à luz das velas, desdobrou com cuidado a pequena folha de pergaminho.

O coração lhe pulsava a toda velocidade. Aquela podia ser a prova que esteve procurando. Sentiu uma pontada de culpabilidade, mas a sacudiu em seguida. Se a mensagem não fosse importante, Tor nunca se inteiraria. Mas se era, daria-lhe obrigado por isso. Podia lhe proibir que se misturasse, raciocinou, mas não que observasse o que ocorria diante de seu nariz.

Reconheceu imediatamente a tosca letra do Rhuairi, embora a nota não estivesse assinada. Era breve e concisa, mas fez que lhe gelasse o sangue com uma gélida onda de pavor. Tinha encontrado sua prova, e era muito pior do que tinha acreditado.

«Paradeiro do MacLeod confirmado. Tragam reforços. Atacaremos a meia-noite.»

Deus santo, que horas era? sete? oito? Tinha o coração desbocado. O que podia fazer? Tinha que encontrar uma maneira de acautelá-lo, antes que fosse muito tarde.

*

Tor estava sentado em uma pedra grande e plaina frente à entrada da broch, com uma jarra de cuirm na mão, contemplando os últimos raios rosados do sol extinguirem-se depois do horizonte.

Embora Campbell se fora fizesse quase uma semana, a equipe ainda não se recuperara da perda de um dos seus. Ele sabia que devia estar agradado por isso, pois era uma prova de que o treinamento tinha sido um êxito, mas não estava. A marcha de um membro da equipe, independentemente do motivo, ardia-lhe.

Resmungou uma blasfêmia e tomou um gole longo da forte cerveja antes de deixar a taça vazia na pedra com um golpe.

—Ai - disse MacSorley, que tinha saído da broch para sentar-se junto a ele—. Está um pouco amarga a cerveja, ou é bem o sabor do remorso?

—Não sigas por aí - lhe advertiu Tor—. Não estou de humor para sua língua afiada.

MacSorley bebeu um gole de sua própria taça. Ficaram sentados em silencio durante um momento antes que ele falasse de novo.

—Eles perdoarão. Dêem-lhe tempo.

Depois da partida do Campbell, a brecha entre o Tor e os homens se alargou. Uma vez mais, voltara a estar firmemente instalado no papel de líder, o homem obrigado a tomar decisões duras e impopulares. Formava parte da equipe, mas estava à margem. Entretanto, não era isso o que lhe incomodava. Quão único queria era acabar de uma vez por todas com esse maldito assunto.

—ides contar logo? —perguntou-lhe MacSorley em voz baixa—. Somente restam duas semanas.

A mandíbula de Tor se esticou. dessa vez o outro homem tinha dado no alvo.

—Não, ainda não.

Todo rastro de jovialidade desapareceu do rosto do MacSorley, que se endureceu com uma severa expressão de raiva.

—antes de zarpar, merecem saber que não ides os capitanear quando tiver terminado aqui.

Suas palavras se aproximavam muito ao que pensava Tor, mas não queria as ouvir nesse momento. Olhou ao MacSorley entreabrindo os olhos de forma ameaçadora.

—Tome cuidado, escandinavo. Ainda não estais ao mando.

MacSorley não se intimidou ante sua advertência, embora Tor tampouco esperasse que o fizesse. O viking era quase tão temerário como loquaz.

—Sabes no que acredito? —Tor fingiu não tê-lo ouvido, com o olhar fixo na fileira de árvores, no outro lado do claro—. Acredito que não queres dizer porque desejas capitaneá-los, e lhe chateia a má maneira se sentir incapaz de fazê-lo. Mas cedo ou tarde terá que descer do burro, MacLeod. —Não disse «capitão». A Tor não aconteceu inadvertido o desprezo—. A guerra é iminente, e um dia destes, certamente antes do que pensa, teras que escolher. Esta equipe precisa de ti - disse com suavidade—. A Escócia lhe necessita.

Ao diabo com Escócia; seu dever era para com seu clã.

—Falam como o condenado de seu primo.

—Angus Og é um homem sábio. Pense. —Dito isto, deixou-o por fim em paz.

Que MacSorley fosse ao Hades! Tor não necessitava sua opinião. Fazia sua própria análise, e muitas vezes. Embora MacSorley estivesse certo, nada tinha mudado. Seguia sendo injustificável implicar a seu clã em uma guerra que não supunha uma ameaça para eles.

Duas semanas mais, pensou. Duas semanas mais, e teria completado com seu compromisso. O risco de que o descobrissem - e a traição que cometia ao adestrar homens para que lutassem pelo Bruce— ficaria para trás. Teria respeitado sua parte do trato ao treinar aos homens e teria conseguido tirar de cima ao Nicolson.

As águas voltariam para seu leito, por mais que fosse uma tortura para ele pensar que seus homens lutariam sem ele: ocuparia de novo uma posição de neutralidade na guerra da Escócia e no conflito entre o MacDougall e MacDonald.

Por mais que ele quisesse que as coisas fossem de outra maneira, suas obrigações para com seu clã eram sempre em primeiro.

*

Christina sabia que aquela era a oportunidade perfeita que esteve esperando para fazer algo importante.

Lembrando-se de quão categórico tinha sido Tor em relação à possibilidade de que ela saísse do castelo, foi em busca de lady Janet ou Colyne —pois lhe constava que Tor confiava em ambos—, mas não encontrou a nenhum dos dois. Como não se atrevia a envolver a ninguém mais, sabia que teria que lidar com ele por si mesmo. Não estava segura de que se encontrasse na broch, mas a julgar pela mensagem, parecia provável.

Foi mais fácil do que esperava. A única dificuldade surgiu quando tentou embarcar em um birlinn com destino à aldeia. O guarda do molhe se negou em um princípio a deixá-la partir. Ela não tinha a menor ideia do que fazer até que recordou a promessa de seu marido. Pelo visto, tinha mantido sua palavra de informar a seus homens em relação à condição que tinha imposto para casar-se com ele, já que, quando recordou ao guarda que devia haver um birlinn ao seu dispor para quando desejasse ir, ele cedeu.

Deixou que um punhado de guardas a acompanhasse à igreja, mas a seguir insistiu em que podia continuar sozinha a partir de ali. Uma vez que partiram, ela retornou ao bosque, voltando sobre os passos que a tinham levado até a broch a primeira vez. Estava escuro e não se atreveu a levar consigo uma tocha, mas por sorte a lua estava quase cheia e seu brilho era bastante intenso para atravessar o tênue manto de névoa que turvava o ar fresco da noite. Estava muito preocupada para ter medo; seu maior temor era não lembrar-se de como chegar ali.

Caminhava devagar e com determinação, mantendo a cabeça encurvada para ver por onde pisava. O chão era irregular, por isso tropeçou mais de uma vez. Mas já quase estava ali. Ao cabo de poucos minutos se encontraria perto do lugar do bosque do que tinha espiado a Tor e a seus homens.

Deteve-se e deu uma olhada para trás para assegurar-se de que ninguém a seguia. Não viu mais que as silhuetas escuras e ameaçadoras das árvores. Mesmo assim, não podia desterrar a sensação de que alguém a observava. Tudo estava totalmente tranqüilo…, muito tranqüilo.

De repente, viu-se imobilizada contra um peito revestido de aço e notou o fio inconfundivelmente frio de uma adaga contra o pescoço.

—Seu nome, moça - lhe grunhiu uma voz ao ouvido.

Essa vez não se tratava de seu marido.

—Lady Christina - gaguejou—. A esposa do chefe dos MacLeod.

Ele soltou um juramento, obrigou-a a dar volta e lhe tirou o capuz com brutalidade.

Christina se encontrava frente ao olhar furioso de sir Alexander Seton. Aproveitando-se de sua surpresa, dedicou-lhe uma reverência e disse: —Sir Alex, passou muito tempo.

—Milady. —inclinou-se automaticamente, como correspondia a um cavalheiro galante, fossem quais fossem as circunstâncias—. O que fazes aqui fora?

—Um dos homens de meu marido o traiu e interceptei uma mensagem. Planejam atacar esta noite, assim tinha que lhe avisar.

Ele endureceu sua expressão.

—Estás segura?

Christina assentiu.

Sir Alex a olhou com curiosidade.

—Espero que estejas certa.

Assim que tinha pronunciado estas sinistras palavras, um objeto alongado e metálico - um utensílio de lavoura, possivelmente?— emergiu das sombras, atrás de sua cabeça, e desceu com violência sobre o elmo de aço. Com um gemido de dor, sir Alex se desabou aos pés de Christina, reduzido a um vulto coberto de malha.

Ela espiou pela extremidade do olho algo que se movia, e uma figura com uma capa negra apareceu das trevas. Christina abriu a boca para gritar, mas era muito tarde. Um objeto contundente lhe golpeou a nuca. Teve a muito estranha impressão de ouvir alguém murmurar « sinto muito » antes que a escuridão a envolvesse.

Os sons não muito aprazíveis de uma bofetada e o exabrupto «maldito néscio inglês» a fizeram voltar a si. Em um princípio pareceu que a voz se dirigia a ela, mas ao abrir os olhos viu um guerreiro gigantesco e de aspecto aterrorizante que, inclinado sobre sir Alex, tentava despertá-lo.

Ela o tinha visto antes. Moreno, de sobrancelhas grossas e um rosto mais agreste que arrumado, parecia um homem que tinha participado de muitas brigas de tabernas a altas horas da noite. Então o recordou: era o guerreiro que tinha levantado aquela pedra enorme como se não pesasse virtualmente nada.

Deve ter deixado escapar um som, porque o guerreiro se afastou imediatamente de sir Alex e se aproximou dela.

—Está bem, moça?

—Isso acredito. —Ajudou-a a levantar-se. Depois de um momento de enjôo, a cabeça limpou em seguida. Ao levar mãos à nuca, apalpou um pequeno galo, mas por sorte não havia sangue. Sentia sobre si o olhar penetrante do homem—. E sir Alex? Ele encontra-se bem? —perguntou.

O guerreiro entrecerrou os olhos.

—Conhece o inglês?

Ela caiu em si de que não lhe havia dito quem era.

—Sou lady Christina Fraser.

Se isto o surpreendeu, dissimulou-o muito bem.

—A mulher do MacLeod?

Ela assentiu.

—E vocês são…?

Depois de titubear por um instante, ele respondeu:

—Incursionador. —Pelo visto, não queria lhe revelar seu nome nem se incomodou em lhe explicar por que.

—São da zona fronteiriça? —Ao advertir uma faísca de desconcerto em seus olhos, Christina supôs que tinha deduzido acertadamente a origem do sotaque.

—O que fazem vocês aqui? —inquiriu ele, trocando de tema—. O que ocorreu?

Recordou tudo de repente e se levantou de um salto, presa do pânico. Quanto tempo esteve inconsciente?

—Que horas são? —perguntou freneticamente. Antes que o homem pudesse responder, ela o agarrou pela parte dianteira de sua cota de malha. Ele não se moveu um centímetro. O que acontecia com esses guerreiros das Highlands? Por que tinham todos corpos do tamanho de montanhas?

—Explicarei-lhe isso tudo, mas não fica tempo… Deve me levar até meu marido.

Embora isso não parecesse fazer muita graça ao homem, seu tom o convenceu da urgência da situação.

—Estás em condições de andar?

Ela assentiu, e ele a ajudou a ficar de pé. Sir Alex era um homem corpulento, mas aquele «Incursionador» o levantou e o jogou ao ombro como um saco de farinha, sem muita delicadeza, por outra parte. Dava a impressão de que não sentia afeto pelo jovem cavalheiro. Sem dizer uma palavra mais, guiou-a através das árvores.

Quando saíram na clareira que se estendia ao pé da broch, gritou como um mocho, o que evidentemente era algum tipo de sinal. E apesar da noite estava avançada, havia um punhado de homens exercitando-se com armas diversas: espadas e tochas, pareceu a ela. Uma figura estava de pé ante a entrada, e pelas dimensões de sua sombra ela soube que era seu marido. Invadiu-a um grande alívio ao saber que tinha chegado a tempo. Tinha conseguido.

Tor foi a seu encontro e ela arrancou a correr para ele. Outros se juntaram ao redor para averiguar o que estava passando.

—Christina? —perguntou ele, com a voz aguda pela incredulidade—. O que ocorreu? O que faz aqui? Acreditava te ter advertido que não voltasse nunca para este lugar.

Ela ouviu a chispada de ira e se jogou em seus braços antes que estalasse. Ele a estreitou contra si de forma mecânica, mas afastou o olhar dela durante o tempo suficiente para ver o homenzarrão atirar a sir Alex a seus pés. Christina respirou aliviada ao advertir que o jovem cavalheiro se movia.

Tor soltou um juramento e a agarrou pelos ombros, olhando a de marco em marco.

—Têm-lhe feito mal?

Ela negou com a cabeça.

—Tenho um galo na cabeça, isso é tudo. Este homem, Incursionador, encontrou-nos. —Tor arqueou uma sobrancelha com expressão inquisitiva, mas o musculoso guerreiro se limitou a encolher os ombros como dando a entender que já explicaria mais tarde.

—Quem te fez isto? —A voz de Tor soou mais fria e letal do que ela a tinha ouvido nunca.

—Não sei, mas tem que me escutar. Não fica muito tempo. —devido a sua ânsia por contar-lhe o que saiu de sua boca foi uma corrente de palavras confusas e embaralhadas. Ao precaver-se da crescente impaciência de Tor, simplesmente lhe entregou a nota—. É a letra do Rhuairi - disse, sem saber até que ponto seria inteligível—. Ele sabe que está aqui e planeja lançar um ataque nesta noite.

—Parece a letra do Rhuairi, mas não tem pés nem cabeça.

Christina não alcançou a perguntar por que. Tor chamou a alguém em voz muito alta, e em pouco momento dois homens saíram da broch. Ela empalideceu ao reconhecer ao Rhuairi e ao Colyne.

Se Rhuairi era o espião, que fazia ali? Deveria ter posto terra por meio fazia tempo.

Esteve tão convencida de que tinha descoberto a verdade que inclusive quando surgiu a possibilidade de que não fosse assim, custou-lhe assimilá-lo.

Rhuairi se aproximou para ler a nota. Deu uma olhada rápida antes de devolver ao Tor.

—É uma boa imitação de minha letra, mas eu não escrevi isto.

Embora Tor falasse em um tom enganosamente sereno, Christina percebia a tormenta que estalava.

—Como diz que conseguiste esta nota?

Contou sua conversa com o irmão John.

—E disse que iria à aldeia? —perguntou Tor.

Christina assentiu, e ele proferiu uma maldição. O olhar que lhe lançou não destilava gratidão, a não ser escárnio, como se não pudesse acreditar que ela fosse tão estúpida.

—Quando? —inquiriu, sacudindo-a pelos ombros—. Quanto tempo estivestes inconsciente?

Ela abriu muito os olhos, totalmente desconcertada ante aquela reação tão diferente da que tinha imaginado.

—Não… não sei —gaguejou—. Uma hora, talvez mais.

Tor se voltou para o Incursionador em busca de uma confirmação.

—Eu tinha saído de ronda pelo este, e Seton pelo oeste. Como o inglês não respondeu a minha chamada, fui em sua busca. Pode ter sido uma hora, possivelmente mais.

—E não lhe ocorreu ir à caça de quem fez isso, seja quem é?

Incursionador apertou os lábios, que formaram uma linha tensa.

—Pareceu-me mais importante não deixar sozinha à moça e lhe trazer aqui.

Apesar da evidência de que a tinham enganado era evidente, Christina se negava a acreditar.

Tinha que haver alguma explicação.

—Equivoca-te a respeito ao irmão John. Não pode ter sido ele. —«Ele não me faria uma coisa assim», pensou—. Não disse a ele que sei ler.

—Está totalmente segura disso? —O olhar que lhe jogou seu marido teria podido cortar um diamante—. Reza por que esteja certa. Não tem idéia do que pode ter feito.

Sem lhe dirigir uma palavra mais, ordenou a dois dos homens que fossem ao povoado através do bosque para ver o que averiguavam, e a outros que preparassem o birlinn para navegar de retorno ao Dunvegan.

Christina estava petrificada de espanto. Tinha conduzido ao espião diretamente até seu marido? «Sinto muito.» A voz na escuridão de repente cobrou sentido. Ficou com vontade de tapar as orelhas com as mãos para não ouvir a verdade. «Deus santo, tem que ser de um engano. Por favor, que seja um engano.»

*

Tor aguardava com ar sério a que Lamont e MacLean retornassem do povoado. Mas já sabia o que tinha acontecido. O tabelião tinha seguido a Christina pelo bosque e se partira fazia um bom momento. Embora estivesse escuro, Tor tinha que supor que John tinha visto o suficiente para pôr em perigo a missão de seus homens.

A intromissão de Christina tinha posto em grave risco tanto a seu clã como a guarda secreta de Bruce. Vinte anos de guerra e esforços por restabelecer seu clã, e agora a vida de seus membros e a sua própria pendiam de um fio. Se o tabelião o relacionava com o Bruce e o rei Eduardo conseguia capturá-lo, sua vida não valeria nada. Mas ele não seria a única vítima. Seu clã cairia com ele, e se o tabelião tinha reconhecido a alguns dos integrantes da guarda secreta de Bruce, também teriam um alvo sobre a cabeça.

Como tinha podido permitir que ocorresse algo assim? Isso era impróprio dele. Tinha querido acreditar que ele e Christina eram diferentes. Acaso não tinha aprendido nada com a morte de seus pais?

Isto era exatamente o que queria evitar.

Era um maldito idiota. Pensava que Christina tinha entendido. Tinha sido um engano confiar nela. Ao tentar agradá-la, tinha falhado com sua guarda e tinha deixado que ela soubesse muito. Tinha permitido que uma mulher se interpusesse entre ele e seu dever para com seu clã.

Estava tão furioso que não se atrevia a lhe falar ou a olhá-la sequer. Entretanto, era perfeitamente consciente de que estava ali, sentada no assoalho, com os olhos exageradamente abertos e pálida. Fez-se forte e não deixou que o tremor de seus lábios ou as ligeiras sacudidas de seus ombros o comovessem. Nunca voltaria a comover-se por ela.

O pulso martelava nos ouvidos, por isso mal ouviu os homens quando retornaram e corroboraram o que ele já sabia. O tabelião tinha desaparecido. Ninguém o tinha visto partir, mas Tor não podia evitar supor que alguém o tinha ajudado a fugir.

Tinha a mandíbula apertada com tal força que notava que as veias do pescoço lhe tinham inchado. Ordenou com voz ensurdecedora que aparelhassem os navios. Tinha que encontrar ao traidor antes que transmitisse a informação que tinha averiguado. O fracasso não era uma opção.

Os homens limparam os aposentos principais. Tor repartiu instruções de último momento a Colyne e a Murdoch a fim de que preparassem o castelo para a guerra e se levantou para partir. O aposento ficou vazio salvo por sua esposa.

Ela deveria tê-lo deixado partir sem mais, mas nunca sabia quando deter-se. Agarrou-o pelo braço, e ele sentiu que a leve pressão de sua mão lhe queimava como um ferro em vermelho vivo, na pele, no peito. Entretanto, precaver-se de que sua debilidade por ela aumentara não fez a não ser avivar sua ira.

—Sinto muito - sussurrou Christina, retorcendo as mãos e olhando-o com olhos grandes e suplicantes—. Somente tentava ajudar.

Tor permaneceu totalmente imóvel, face à voragem desatada em seu interior. Seu rosto não demonstrava nem um traço de emoção. Não deixaria que seus rogos fizessem uma fresta nele. dessa vez não. Nunca voltaria a permitir que sua esposa ou ninguém interferisse em seu dever.

—Ajudar? —Soltou uma gargalhada para magoar—. Ao que parece é difícil pra ti compreender, mas não quero nem necessito sua ajuda. É minha esposa, Por Deus, não um de meus homens. Adverti-a que não te entremetesse. Pedi-te que nunca, sob nenhuma circunstância, aproximasse-te de novo ao broch. Sua «ajuda» pôs em grave perigo a meu clã, aos homens que estive treinando e a minha pessoa. Se não encontrarmos o tabelião, o rei Eduardo porá a minha cabeça um preço bastante alto para que inclusive meus aliados mais leais se voltem contra mim. Não tem idéia do que tem feito.

Embora Christina parecesse a ponto de desmoronar-se, ficou rígida para ouvir essas palavras.

—É verdade, dado que nunca te me dignaste dizer nada.

Tor se pugnou por manter o controle. Somente ela ousaria fazer recriminações depois do que acabava de ocorrer. Seu olhar se escureceu cortante como seu resistente tom de voz.

—E por uma boa razão, considerando o que tem feito. É justamente por isso que não queria que te implicasse. Deveria ter sido mais ardiloso e não ter revelado nada deste assunto.

A ousadia temporária de Christina veio abaixo quando começou a cair na conta da gravidade de seus atos.

—Tem todo direito de estar zangado, mas acreditava que corria perigo. Jamais teria imaginado que o irmão John tramasse algo assim. Tomei todas as precauções…

—Que obviamente não foram suficientes.

Os olhos de Christina se arrasaram em lágrimas. Inclinou-se para apoiar-se em Tor, mas ele ficou perfeitamente erguido. Tinha que fazer um esforço para não mover-se, para não sucumbir ao desejo urgente de estreitá-la entre seus braços e sacudi-la… ou beijá-la até que se fosse a dor que lhe oprimia o peito. Ele não era como os outros, maldita seja; supunha que devia ser insensível. Não era disso do que se apreciava? Não era isso o que o convertia em um grande líder e guerreiro? Apesar de tudo, o pranto de Christina corroía sua férrea determinação como o ácido.

—Juro que não voltará a ocorrer - murmurou ela.

Tor tinha que deixar bem claro como seriam exatamente as coisas a partir desse momento. Fixou nela um olhar duro e implacável.

—É obvio que não voltará a ocorrer, pois jamais te contarei uma maldita coisa mais.

Ela se separou dele, como se tivesse gritado, embora o havia dito com uma tranqüilidade glacial.

—Está zangado - sussurrou ela—. Não fala sério. —Dava a impressão de estar tentando convencer-se a si mesmo.

O olhar que lhe lançou teria gelado a lava do inferno.

—Nunca na minha vida falei mais a sério. —Tinha cometido um engano, mas estava resolvido a não repeti-lo. Era tão responsável como ela do acontecido. Tinha permitido que ela o convertesse em parte de sua pequena fantasia. Mas isso acabou—. Já te disse exatamente o que espero de ti: que fiscalize o castelo, que dê a luz a meus filhos e que deixe todo o resto em minhas mãos. Não espere nada mais que isso.

Christina estremeceu, profundamente ferida. Quem era esse homem desumano e inflexível? Nunca tinha falado dessa maneira; nem sequer na primeira ocasião em que o tinha visto tinha parecido tão frio e distante. Tão isento compaixão.

«Não fala sério — disse —. Está zangado.» Entretanto, a sombra de uma dúvida aninhou em seu coração.

Esforçou-se por lhe sustentar o olhar, decidida a não deixar-se intimidar. Tor não devia falar assim. Ela tinha errado, mas por um bom motivo, e suas intenções eram puras.

—Mereço sua ira, mas não seu desprezo. Não trabalhei de forma precipitada, nem era meu desejo que isto acontecesse. Sou vítima de um engano. Tem que saber que eu jamais faria algo para te prejudicar. —Fez uma pausa, antes de acrescentar em voz baixa—Amo-te.

Aguardou que Tor reagisse a sua declaração sincera, mas ele guardou um silêncio sepulcral, displicente, indiferente, magnânimo como um rei. O único indício de que a tinha ouvido era uma ligeira palidez em torno da boca.

Christina não esperava que ele correspondesse a seus sentimentos… ou sim?

Escapou-lhe uma lágrima. Custava-lhe falar pelo nó que tinha na garganta. Por que se estava comportando assim? Comportava-se dessa forma com todos outros, mas não com ela. Era o mesmo homem a quem tinha lido relatos na cama?

—Não faça isto. Não me separe de seu lado. Não mereço que me trate como se não significasse nada para ti. —Tentou tragar saliva, mas lhe doía—. Você não é assim.

Ele a olhou aos olhos, rebatendo-a em silêncio. Se ela tivesse percebido ira em sua expressão, teria mantido a esperança, mas no olhar frio e firme de seus olhos azul celeste não havia o menor indício de emoção. Christina retrocedeu um passo, como se o estivesse vendo pela primeira vez.

—Este é meu verdadeiro eu. Não sou seu condenado Lancelot. Isto não é uma fantasia romântica, e nada do que faça vai mudar isso, por muito boas que sejam suas intenções.

Ela soltou um grito afogado, como se Tor acabasse de lhe cravar uma adaga no coração. Seu rosto ficou lívido. Tor tinha arrojado luz sobre seus sonhos mais profundos e escuros para depois pisoteá-los. Tão transparente era Christina? Via ele suas tentativas por agradá-lo como um patética tentativa de conquistar seu coração? Encolheu-se de vergonha, pensando que talvez tivesse razão.

—Não sei a que te refere - disse por orgulho.

«Por favor, que não seja pena isso que percebo em seus olhos.»

—Crie que não me dei conta de como me olha, que não sei o que quer de mim? Mas não posso te dar o que desejas. É jovem, e tem a cabeça cheia de fantasias sobre cavalheiros e aventuras românticas. Sou um valente chefe das Highlands que só deve lealdade a seu clã.

—Então não há lugar para mim?

—Não na forma em que você deseja.

—As coisas não têm que ser assim.

Tor não moveu um só músculo do rosto.

—Sim, têm que ser assim.

—Você quer que seja - disse ela com raiva—. Quer estar sozinho para não sofrer se perder a alguém e para não ter que depender de ninguém. Começo a acreditar o que se diz de ti. Mas não é invencível. É um homem. As pessoas necessitam umas das outras, embora dêem passos em falso. Seu pai se equivocou ao te inculcar a idéia contrária. —Ao ver que tremia a mandíbula de Tor se perguntou se não tinha ido muito longe.

—Não sabe do que falas - acusou ele—. Estou seguro de que isto é um engano.

O coração deu um tombo a Christina quando compreendeu a que se referia. O engano era seu matrimônio.

Não dizia seriamente. Sem dúvida tinha tido algum desejo de casar-se com ela… ou não? Ninguém o tinha obrigado a nada. Por muito que lhe doesse, tinha que saber a verdade.

—por que te casou comigo?

Ele se voltou, e por sua atitude vacilante Christina soube que não queria responder a sua pergunta.

Sentia tal opressão no peito que mal podia respirar.

—Que importância tem isso agora? —inquiriu mordaz—. Para que manter as ilusões entre nós?

Tor lhe lançou um olhar severo, pois não tinha gostado de seu sarcasmo.

—Tu eras parte de meu acordo com o MacDonald. Casar-me contigo foi o preço que paguei em troca da paz. Embora, depois do que ocorreu hoje, é possível que perdi isso.

Christina sentiu que o coração lhe rompia em um milhão de pedacinhos que se dispersaram no chão, a seus pés.

Umas lágrimas grossas e quentes lhe escorreram pelas bochechas.

—E treinar esses homens também formava parte do trato?

Áspero e impassível, contou-lhe de maneira sucinta o que ela desejava saber desde o começo, lhe deixando meridianamente claro o que tinha posto em perigo com seus atos. Ela o escutou enquanto explicava os termos de seu acordo com o MacDonald, sua negativa inicial a adestrar aos homens e a oferta posterior de MacDonald que ele não tinha podido rechaçar.

«Nunca teve desejo de casar-se comigo.» O que o tinha feito mudar de idéia não tinha sido seu sentido da honra nem que albergasse sentimentos especiais para ela, a não ser seu dever para com seu clã. E ela tinha feito quão único Tor jamais poderia lhe perdoar: interpor-se entre seu clã e ele. Sentiu náuseas ao compreender a ameaça que tinha atraído sobre ele sem querer. Por culpa dela, a segurança do clã e todo aquilo pelo que Tor tinha lutado desde a morte de seus pais estavam em perigo.

Nunca voltaria a confiar nela. Ela sabia o muito que lhe havia custado baixar a guarda só um pouco, e que tomaria acontecido como um fracasso pessoal. Christina tornava realidade seu pior temor: que o fato de estreitar laços com alguém prejudicasse a seu clã. A promessa das últimas semanas se desvaneceu. Tor tinha se afastado dela, desta vez para sempre.

—E agora? —perguntou Christina—. Sente o mesmo que antes?

Pareceu-lhe que a determinação em seu olhar fraquejava por uns instantes, mas não foi mais que um efeito da luz das velas.

—Que importância tem isso? É minha esposa.

Foi o golpe de graça. As fantasias de Christina lhe tinham impedido de ver a realidade. Pela primeira vez, viu as coisas com claridade. Tor tinha razão: nunca poderia lhe dar o que ela queria. Sempre haveria uma parte dele que lhe estaria vedada. Embora sentisse algo por ela, jamais o reconheceria. Não a amava; nunca a amaria. Ela tinha se enganado, inventando desculpas, convencendo-se de que, debaixo aquela aparência fria, ele a queria, de que somente mantinha essa aparência para proteger-se, de que simplesmente não sabia como demonstrar seus sentimentos.

Mas se equivocava. Tentar lhe arrancar uma amostra de emoção era como tentar tirar água de uma pedra espremendo-a. Ela não pretendia encher uma taça, somente conseguir umas gotas. Mas ele nem sequer era capaz de lhe oferecer isso.

E Christina se fartou de tentar. Entregou-se a ele por completo, mas isso não tinha sido suficiente. Nunca seria.

Enxugou as lágrimas dos olhos. Assim seriam as coisas entre eles. Sempre. Nunca seria nada especial. Essa sensação não tinha sido nada a não ser fruto de sua imaginação. Tor não era seu Lancelot, a não ser um desumano chefe das Highlands que devia a seu clã.

Ouviram golpes na porta.

—Estamos preparados, capitão - disse MacSorley.

Tor se dirigiu à porta.

—Sinto muito - disse ela por última vez.

—Muito tarde para desculpar-se- replicou ele, impávido—. Se quer ajudar, reza para que encontre seu amigo antes que faça cair a ira de Eduardo sobre todos nós.

A opressão no peito de Christina aumentou enquanto o via partir, tentando gravar cada detalhe na memória, sabendo em seu coração o que sua cabeça ainda ignorava.

—Adeus… —sussurrou, ao tempo que a porta se fechava atrás dele.

Percebeu de que o havia dito com toda sinceridade. Talvez fosse inevitável. Um matrimônio apoiado no engano estava condenado desde o começo. Mas não podia continuar assim, fingindo, dando-se contra um muro de pedra. Talvez ele tivesse suavizado as barreiras entre eles, mas seguiam estando ali; sempre estariam. Sempre viveriam em mundos separados. Ela não se conformava com isso.

Queria —não, merecia— algo melhor. Tor não era o único que tinha direito a ser feliz.

O irônico era que lhe tinha aberto os olhos. Christina já não era a jovem assustada que se encolhia quando seu pai lhe levantava a mão, nem o cachorrinho amoroso que se contentava com qualquer sobra de carinho que seu marido se dignasse lhe jogar. Tinha muito que oferecer. Sabia ler e escrever, fazer cálculos mentais complexos, acondicionar um torreão escuro para convertê-lo em um lar e, sobre tudo, amar com toda sua alma. Se ele era incapaz de ver isso, ele perdia.

O pai Stephen tinha razão. Ela merecia a alguém que soubesse apreciar suas qualidades e querê-la por isso, que não lhe desse as costas cada vez que cometesse um erro. Queria ser importante para alguém. Talvez fosse uma aspiração pouco realista, mas a alternativa era muito pior. A vida que Tor podia lhe dar não só lhe romperia o coração, mas sim lhe quebraria o espírito. Ela podia viver com o coração quebrado, mas não sem sua alma.

Respirou fundo e secou as lágrimas dos olhos. Somente podia fazer uma coisa.


Capítulo 24


Christina, aninhada no birlinn, observava os ameaçadores muros de pedra do castelo do Dunvegan esfumar-se na bruma da manhã, e seu coração quebrado se desmoronou um pouco mais. Ao longo dos últimos meses, tinha chegado a sentir apego pelo velho montão de pedras que formavam o imponente castelo e pelos taciturnos ocupantes de seu grande salão. Ficaria terrivelmente com saudades.

Também sentiria muita falta de Tor. Seus olhos, que acreditava incapazes de derramar mais lágrimas, encheram-se de novo, mas ela os enxugou com determinação. Tinha tomado sua decisão e teria que ater-se a todas as conseqüências.

Acabou. Ia deixá-lo. Abandonar ao homem que amava. Ia obrigar a seu marido a respeitar sua promessa de deixá-la retirar-se ao convento de Iona, uma promessa que ela sabia que Tor não acreditava jamais que teria que cumprir. Detestava fugir desse modo, mas não estava segura de que ele mantivesse sua palavra desse-lhe oportunidade de opor-se.

Quando tinha descoberto que já havia um birlinn preparado para navegar rumo à ilha do Mull, Christina tinha pedido à tripulação que a levasse primeiro a Iona. Embora isso os obrigasse a dar uma pequena volta, era mais simples que aparelhar outra embarcação. Christina, que não tinha tido tempo de dispor de seus pertences para a partida, tinha embarcado com pouco mais que uma muda de roupa e alguns mimos pessoais. Mhairi recolheria o resto de suas coisas e as mandaria a Iona antes de retornar junto a sua família no Touchfraser. Não levou consigo seu prezado livro. O relato não fazia mais que infundir a jovem falsas esperanças e sonhos impossíveis.

Havia dito aos guardas que a acompanhavam que ia visitar sua irmã, mas sabia que não tinham acreditado de tudo. Ao contrário deles, não tinha um elmo de aço que ocultasse seus olhos inchados e seu rosto manchado de lágrimas.

Foi uma travessia rude, pois o mar estava agitado. Christina estava sentada sozinha, perto da proa, coberta com uma capa e peles, sentindo-se mais desventurada que nunca, e não pelo vento ou o frio.

Em mais de uma ocasião esteve a ponto de indicar aos guardas que virassem de volta, mas afugentava suas dúvidas sobre a conveniência de partir repetindo em seu foro interno que romper o vínculo entre eles seria o melhor para Tor também. O matrimônio não desejado por ele so lhe tinha ocasionado problemas. Talvez sua partida lhe ajudasse a sair do embrulho em que ela o tinha metido.

Não obstante, saber que sua decisão era a correta não fazia que fosse mais fácil. Uma parte dela desejava ser capaz de contentar-se com meia vida, mas Christina sabia que o que ele podia lhe oferecer nunca a satisfaria e que jamais deixaria de pressioná-lo para que lhe brindasse com algo mais. Ele, por sua parte, trataria-a cada vez mais com maior frieza até que ela acabasse por odiá-lo… e por odiar-se a si mesma.

Não, era melhor assim. Sua infelicidade e desespero desapareceriam com o tempo. Embora o certo fosse que, no momento, longe de diminuir, pioravam conforme avançava o dia e o navio se afastava do lugar mais parecido a um lar que ela tinha conhecido.

Levavam navegando algumas horas, percorrendo o trajeto inverso ao que ela tinha feito há apenas uns meses. Reconheceu alguns das ilhotas que vira durante a viagem para o norte: Rum, Eigg e Muck. Embora o céu estivesse nublado e cinza, a bruma limpou o suficiente para que de quando em quando vislumbrasse a costa escocesa a sua esquerda. Logo se encontrariam entre o Coll e Mull, e justo ao sul estaria a ilha Iona. Se o vento não amainasse, ela logo estaria instalada a salvo entre as paredes do famoso convento junto com Beatrix. Desfrutaria da segurança que procurava, mas sem as ilusões.

Tão absorta estava em seu sofrimento que demorou um momento em ver que algo ia mau. As ordens enérgicas do Murdoch, o escudeiro de Tor e capitão de sua guarda, ressonavam de forma cada vez mais premente.

—O que ocorre? —perguntou-lhe Christina ao jovem guerreiro que ia sentado no banco situado em frente ao dela.

—Estou seguro de que não é nada, milady. —Assinalou para trás, e ela alcançou a divisar as velas de dois navios ao longe—. Essas galeras estiveram nos seguindo perto de uma hora. O capitão rodeará a ilha da Staffa a toda velocidade e estou seguro que conseguiremos burlá-los.

—Parecem galeras bastante grandes - observou ela em um tom cauteloso.

—Os assaltos no mar não são freqüentes, milady. Realizamos esta rota com regularidade e rara vez sofremos contratempos.

Assaltos? Face à afirmação do homem de que certamente não era nada, Christina sentiu que lhe acelerava o pulso, arrancando-a de sua letargia. Minutos depois, Murdoch gritou aos tripulantes que se agarrassem forte, e a embarcação virou bruscamente à esquerda para circunavegar a pequena ilha com suas estranhas formações rochosas. Ela nunca tinha visto nada parecido aquelas colunas hexagonais de rocha negra, mas não dedicou um segundo às estudar, pois estava muito nervosa, olhando para trás, com a esperança de que o veleiro que os seguia passasse, e tentando evitar o pânico quando viu que continuavam atrás deles.

Embora soubesse que o guerreiro que tinha ao lado estava ocupado remando, não pôde deixar de comentar:

—Parece-me que ainda nos seguem.

Ele não passou por cima do temor que destilava sua voz. Christina advertiu que não queria assustá-la, mas tampouco subtrair a importância do que estava acontecendo.

—Tentaremos deixá-los para trás.

«Tentaremos.» Mas ela sabia tão bem como ele que somente era questão de tempo que os navios maiores lhe alcançassem. Em condições de vento forte, o birlinn era mais veloz, mas a galera tinha quase o dobro de remos.

—São piratas?

O homem torceu a boca com expressão sombria. Os navios se aproximavam e se achavam já a poucas centenas de milhas.

—Algo pior -respondeu—. Ao que parece um deles é inglês.

—O que é que querem?

Ele sacudiu a cabeça.

—Ignoro, milady.

—Todos a coberto! —bramou de repente Murdoch.

Christina se viu derrubada de um empurrão, e um teto de escudos se formou sobre sua cabeça, poucos segundos antes que ouvisse o tamborilar surdo e arrepiante das flechas que choviam sobre eles. Estava tão aflita que demorou um momento em compreender o que ocorria.

—por que nos atacam? —perguntou, mas os homens estavam muito ocupados tentando evitar a seus perseguidores e contra-atacar com suas próprias flechas para lhe responder.

—Rendeis-vos - gritou uma voz ao longe, e Christina soube que procedia de um dos navios.

Não fez falta ouvir a soez resposta do Murdoch para saber o que fariam os homens de Tor. Eles viviam para lutar. Inclusive naquele momento ela percebia sua ânsia por entrar em ação. Render-se não estava em seu caráter. Antes preferiam a morte.

Entretanto, Christina não ia permitir se podia evitar. Tinha que fazer algo.

—Não - disse, abrindo passo por entre os escudos para captar a atenção do capitão—. Façam o que lhe pede, Murdoch. Ao menos tentem averiguar o que querem.

O rosto do Murdoch se converteu em uma máscara de fúria. Saltava à vista que nunca antes tinha recebido ordens de uma mulher e queria fazer caso omisso dela. Fugir de um combate ia contra sua natureza de guerreiro, mas, por outro lado, sabia que estava obrigado a proteger a sua senhora. Christina respirou aliviada quando Murdoch afastou o olhar dela e, dirigindo-se a vozes ao navio mais próximo -que ainda estava a certa distância—, fez o que lhe pedia.

—O que ocultam filhos do Leod? —foi à resposta.

«Sabem quem somos», pensou ela. Deviam ter reconhecido a insígnia: as três pernas recobertas de malha dobradas formando um triângulo, que denotavam que o clã descendia dos reis do Man, e um birlinn negro, símbolo de sua ascendência escandinava, sobre campo de gules e azur.

—nos entreguem a metade e lhe deixaremos partir em paz - acrescentou outro homem.

«Deus santo, acreditam que transportamos riquezas! Não são mais que piratas ingleses.»

—Não temos nada que possa lhes interessar - replicou Murdoch—. Não levamos moedas nem mercadorias valiosas a bordo.

Ficou claro que seus perseguidores não tinham acreditado quando lançaram contra eles outra chuva de flechas. Christina se viu empurrada de novo sob o toldo de escudos e já não voltou a intervir. Não serviria de nada, pois estavam decididos a roubar. Seu pai falava freqüentemente das atrocidades dos ingleses, assim por que se surpreendia?

Notou que o navio se movia de novo enquanto os homens manobravam para encontrar a rajada de vento que lhe permitisse ficar fora do alcance das flechas e escapar.

Desde debaixo dos escudos, Christina ouviu gemer a um homem que tinha perto e soube que uma das flechas dos assaltantes tinha dado no alvo.

Afogou um grito de espanto tapando a boca com o punho. Estava tão assustada que não sabia o que fazer. Com o rosto apoiado sobre os joelhos, tentou isolar do fragor horrível que a rodeava. Esteve a ponto de cair pela amurada quando a embarcação foi investida pelo outro lado. O estrondo soava cada vez mais forte; mais gritos, mais flecha, o som de um gancho de ferro de metal jogado para prender os dois navios entre si, seguido pelo balanço provocado pelo movimento dos homens e o entrechocar de espadas quando a batalha começou em um estrépito de aço e morte. Christina via a muralha de pernas dos homens que a rodeavam, e sabia que morreriam protegendo-a.

Os guardas de seu marido figuravam entre os melhores guerreiros das ilhas, mas eram somente uma vintena, enquanto que o inimigo os quadruplicava em número, a julgar pelo tamanho de suas embarcações.

Os sons eram dilaceradores: gemidos de dor, rangidos de ossos, alaridos de agonia. A bílis lhe subiu pela garganta enquanto os homens caíam em torno dela. Homens que conhecia. O terror se apropriou de Christina quase por completo. Aquilo era muito.

Tinha vontade de desmaiar, mas não queria envergonhar aqueles homens que pereciam enquanto tentavam mantê-la a salvo. Em troca, esforçou-se por não cair no atordoamento.

Cada minuto que passava era insuportável. Embora os guardas do MacLeod lutassem com galhardia, acabaram por sucumbir ante a superioridade numérica do inimigo. Quão guerreiros a rodeavam começaram a cair. Olhou a Murdoch nos olhos quando se desabou sobre ela e compreendeu sua intenção. Pugnando por reprimir um grito, ocultou-se sob o escudo de seu corpo ensangüentado.

Ainda pior que os sons da batalha foi o silêncio que se impôs quando terminou, pois sabia que todos tinham morrido.

—Afastem os cadáveres - ouviu dizer um homem—. Vejamos o que é o que estavam tão ansiosos por proteger.

Os últimos esforços do Murdoch tinham sido inúteis. Um momento depois, alguém a tirou de forma brusca de seu esconderijo.

—É uma moça - disse o homem, lhe tirando o capuz—. E bastante bonita, por certo.

Um aroma denso como a cobre a afligiu. Deu uma olhada em redor, aos restos da matança e os rostos conhecidos foi demais e vomitou sobre as grebas e os escarpes de aço do homem que a segurava.

Este proferiu um juramento e atirou uma bofetada com o dorso da mão.

—Zorra estúpida!

—Como te chamas?

Christina limpou a boca e levantou o olhar para o homem que tinha falado. Sob a viseira de aço de seu elmo, seus olhos se cravaram nela como duas adagas negras. Pela qualidade de sua malha e a sobreveste fina que levava sobre o peito, supôs que era o cabeça dos ingleses.

Ela ergueu o queixo e lhe sustentou o olhar.

—Christina, esposa do chefe dos MacLeod. —O nome do temido chefe não impressionou absolutamente ao altivo inglês. O desdém que destilava seu rosto cruel e curtido não impediu a Christina acrescentar—: Com que autoridade assalta este navio e assassinam estes homens?

A julgar pela expressão do homem, não tinha gostado de seu tom desafiante.

—a de Eduardo, rei da Inglaterra, senhor da Irlanda, príncipe de Gales e duque da Aquitania pela graça de Deus. Seus homens opuseram resistência - mentiu descaradamente. Afastou sua atenção dela e se dirigiu ao soldado que a tinha agarrado pelo braço—. Não lhe entretenham muito. —O líder inglês percorreu com o olhar a outros homens que o rodeavam—. E o mesmo digo a todo aquele que deseje uma parte dos despojos. Aqui não há nada. Quando tiverem terminado, queimem tudo.

Christina conteve outra arcada ao compreender o que pretendiam fazer. Iriam violentá-la e logo matá-la, a fim de que não ficassem testemunhas de seu crime. A esposa de um chefe das Highlands não valia nada para eles. Néscios! Tor os caçariam quando se inteirasse do ocorrido.

A segunda nave tinha ancorado ao outro lado do birlinn. Ao fixar-se na roupa e as armaduras de seus ocupantes, Christina viu que se tratava de highlanders. Escrutinou aqueles rostos ásperos e selvagens em busca do menor raio de piedade, mas não o encontrou. De repente um homem deu um passo adiante. Seu olhar era penetrante. Parecia familiar.

—Acredito que a moça pode nos ser útil, capitão.

O líder dos ingleses se voltou para quem tinha falado com somente um pouco menos de desprezo do que tinha mostrado a ela.

—E que é você?

—Arthur Campbell.

—Campbell? Não é seu irmão um dos companheiros de Bruce?

Sem dúvida por isso o tinha reconhecido Christina. Recordava a sir Colin Campbell do Finlaggan. Arthur, embora vinte anos mais jovem que seu diferente irmão, assemelhava-se a ele.

—Sim, e outros dois irmãos e eu somos leais ao senhor do Badenoch. Comyn o Vermelho.

Não era incomum que as famílias estivessem divididas. O capitão inglês aceitou sua explicação, e Campbell prosseguiu: —A moça se casou recentemente com o chefe dos MacLeod; um matrimônio por amor, conforme dizem. —Ela reprimiu uma gargalhada aguda de histeria que lhe subiu à garganta—. Estará ansioso por recuperá-la. Possivelmente ela possa nos ajudar a persuadi-lo de que nossa causa é justa. —O capitão não parecia muito convencido. Como a maioria dos ingleses, cometia o engano de subestimar aos «bárbaros» das Highlands—. Também é a filha de Andrew Fraser - adicionou.

Isso fez que o capitão prestasse atenção. Olhou-a, entreabrindo os olhos.

—É isso certo?

Christina assentiu, depois de decidir que o mais prudente era não mencionar que a ameaça de acabar com sua vida não daria muito resultado com seu pai.

Um sorriso se estendeu lentamente em seu rosto cruel.

—tragam-me isso - ordenou ao homem que ainda a segurava—. Talvez possa nos ser útil, apesar de tudo. E se não… —deu de ombros.

Ela soube o que significava esse gesto.

Embora sem dúvida a motivação de Arthur Campbell não tinha sido ajudá-la, lhe dedicou um olhar de gratidão, mas ele já tinha desaparecido entre a multidão de guardas que tripulavam a segunda galera. Entretanto, sua oportuna intervenção não tinha sido mais que uma salvação temporária; seu pai não moveria um dedo para socorrê-la. Quanto a Tor…

Não lhe restava dúvida de que sairia em sua busca. Embora não a amasse, consideraria que era seu dever protegê-la. Mas descobriria a tempo o que tinha acontecido?

*

O êxito deveria ter melhor sabor na sua boca. A equipe havia retornado a demonstrar que suas habilidades eram do que mais valiosas, da perícia do Lamont como rastreador até os dotes de marinheiro do MacSorley, passando pelos instintos do MacRuairi, que os tinham levado a dirigir-se para o Dunstaffnage. Tor duvidava que tivesse conseguido sem eles. Apesar de tudo, durante a viagem - inclusive quando tinham alcançado ao irmão John e MacRuairi o tinha «persuadido» de que lhe revelasse para quem trabalhava— Tor não podia desterrar a tristeza que o envolvia como uma nuvem negra.

A intromissão de Christina poderia ter estragado tudo, mas ela so queria ajudar. Ele não podia reprovar-lhe. Tinham-na enganado e simplesmente tinha tentado fazer o correto. A culpa era dele, por lhe contar mais do que devia. Não permitiria que isso voltasse a ocorrer. Faria o que tivesse que fazer. Repetiu a si mesmo inumeráveis vezes. Por que não podia deixar de ver em sua mente a expressão abatida de Christina?

Afrouxou a cota, tentando aliviar o persistente desconforto que sentia no peito.

Queria deixar para trás o passado. Quando os homens partissem, ele esperava poder virar a página e voltar para um certo estado de normalidade…, se é que tal coisa era possível com Christina. Nada tinha sido normal do momento em que tinha pousado os olhos nela pela primeira vez.

Duas noites depois de sua partida, Tor subiu a escada do molhe, depois de ter coroado sua missão com um êxito terminante. Tinha impedido que o tabelião divulgasse a informação e tinha averiguado quem era o responsável pelos últimos ataques lançados contra Dunvegan. John MacDougall do Lorne ganhou um inimigo poderoso, e Angus Og MacDonald tinha um novo aliado contra seu traiçoeiro parente. Tor já não se manteria à margem do conflito entre os dois influentes clãs ilhéus.

Enquanto se aproximava do grande salão, pensava no que diria para sua esposa para acabar com a discórdia entre eles, mas imediatamente intuiu que algo ia mau. O lugar estava muito escuro, muito tranqüilo. Era como se um pano mortuário cobrisse tudo.

Rhuairi e Colyne foram a seu encontro a passo veloz. Ao ver sua expressão, ele soube que foram lhe dar uma má notícia.

—O que acontece? —quis saber.

Eles se olharam, nervosos, mas Colyne foi o primeiro em falar.

—Trata-se da senhora, RI tuath.

Um calafrio lhe percorreu as costas. Obrigou-se a manter um tom sereno, Apesar de que todos seus músculos se esticaram em um estado de máxima alerta.

—Está doente?

Colyne sacudiu a cabeça.

—Não, chefe - respondeu Rhuairi—. Se foi.

Zumbiram-lhe os ouvidos como se alguém acabasse de lhe golpear o elmo com uma espada. Demorou uns momentos em compreender o que o senescal havia dito. Agarrou ao Rhuairi pelo broche de seu brat de quadros.

—Como que se foi?

Tor escutou a explicação do senescal de que ela partiu na companhia dos homens que se dirigiam ao Mull com uma mescla de incredulidade e um pânico crescente conforme assimilava o ocorrido. Christina tinha aproveitado sua estúpida promessa de permitir que se retirasse a um convento. A ele jamais teria passado pela cabeça que ela chegaria a fazê-lo algum dia, embora em realidade não soubesse por que. Tinha-lhe dado uma saída; por que lhe surpreendia que ela a tivesse utilizado?

Deus sabia que não lhe tinha dado nenhuma razão para ficar. Ela não tinha feito outra coisa que tentar agradá-lo desde que se casaram. Tinha-lhe entregue seu coração, e não tinha dado nada em troca. Comportou-se como um bastardo insensível e tinha acabado por afugentá-la.

Estava sozinho. Não era isso o que queria? Não sentir nada a não ser um vazio em seu interior? Mas não era um vazio o que sentia, a não ser uma dor aguda e lacerante. Sentia-se como se acabassem de lhe cravar uma espada no peito e lhe tivessem esmigalhado as vísceras.

Uma vida inteira de solidão se abria ante ele. Uma vida em que somente teriam a guerra e suas responsabilidades para com seu clã. Uma vida de infelicidade.

Deus santo, o que tinha feito?

Deveria estar furioso porque ela se atrevera a abandoná-lo. Os highlanders eram célebres por seu orgulho, e ele não era uma exceção. Entretanto, unicamente podia pensar no dano que devia ter feito para que chegasse a esse extremo. Sentia-se doente somente de pensar. Tinha que recuperá-la. Não porque fosse sua mulher - porque lhe pertencesse —mas sim porque seu lugar era ali a seu lado.

Não sabia por que albergava sentimentos tão intensos, mas teria que demonstrar-lhe custasse o que custasse.

Continuou caminhando até o salão, com os dois homens seguindo-o a toda pressa. Uns poucos membros do clã dormiam ao calor do fogo, mas a maioria estava sentada em silencio em torno das longas mesas. O ambiente estava tal como ele tinha deixado, mas parecia diferente. Lôbrega, como se toda a alegria se apagou. Seus cães ergueram a cabeça quando entrou. Em vez de correr a recebê-lo, dirigiram-lhe um olhar de desilusão e apoiaram de novo a cabeça sobre suas patas.

—Onde está Murdoch? —perguntou com impaciência.

Ambos os homens o olharam, desanimados. Colyne sacudiu a cabeça.

—Com os homens que foram zarpar para o Mull. Não retornaram.

—Como que não retornaram? —estalou Tor—. Até tendo em conta o tempo acrescentado da viagem a Iona, deveriam ter retornado ontem.

Nenhum dos dois respondeu. De repente, o estômago de Tor deu um tombo, como se tivesse tragado um bocado de carne putrefata. O pânico começou a crescer em seu interior, mas o reprimiu. Christina estava bem. Tinha que haver uma explicação. Mas Rhuairi não tinha terminado.

—Chegou isto para você faz menos de uma hora. O mensageiro disse que ninguém devia vê-lo exceto você.

Tor o abriu, atendido por uma negra premonição.

Parou-lhe o coração e seu rosto ficou lívido quando leu as palavras escritas na parte de pergaminho, palavras que iriam mudar sua a vida.

«Homens mortos. Os ingleses capturaram a sua dama. Dumfries. Não demorem.»

«Não demorem.» Tinham assassinado seus homens e tinham a intenção de matar a ela também.

A perda de seus homens o punha furioso. Tinha vontades de estrangular a alguém. Mas ao pensar que Christina corria perigo…

A bílis lhe queimou a garganta. Embora sempre tivesse acreditado que não tinha medo de nada, um medo maior que jamais sentira se deu procuração dele; um medo escuro que lhe consumia a alma e corroía como o ácido a cobertura de aço de seu coração. Sentia-se como em carne viva. Nu. E mais apavorado do que estivera em toda sua vida.

Se inteirar-se da ida de Christina o tinha arrancado de seu estupor emocional, a notícia de que tinha caído prisioneira dos ingleses foi como um brilho de lucidez que o obrigou a aceitar a verdade.

Amava-a.

Muito tarde compreendeu o insensato que tinha sido. Sua obstinação em orgulhar-se por sua crença de que era imune às emoções tinha impedido de ver o que estava ali desde o começo. Essa era a razão pela que nunca deixava de pensar nela. A razão pela que procurava pretextos para passar tempo em sua companhia. A razão pela que lhe fazer o amor provocava uma sensação tão diferente. Era o que fazia que se sentisse feliz simplesmente ao estreitá-la entre seus braços durante horas e escutar sua voz enquanto lia essas ridículas histórias românticas. Era o motivo pelo que desejava despertar a seu lado todos os dias pelo resto de sua vida. Era o motivo pelo que lhe saltava o coração quando entrava em um aposento e ela levantava o olhar para ele, com um amplo sorriso desenhando-se o no rosto.

Ela havia devolvido a calidez a sua vida, tinha quebrado a muralha de gelo que tinha erigido em seu interior e mergulhou até o mais profundo para encontrar emoções que levavam muito tempo enterradas.

Mas talvez já não tivesse ocasião de dizer-lhe.

Imagens longamente reprimidas desfilaram ante seus olhos. O corpo nu e maltratado de sua mãe coberto de hematomas e sangue, com uma expressão de terror fixada para sempre em seu olhar. E logo recordou o resto: como tinha se jogado sobre ela e se negara a permitir que os homens de seu pai a levassem; quanto tinha chorado; como a dor o tinha abrasado e destroçado por dentro, igual a agora.

Não podia ocorrer isso a ela também. A idéia de não voltar a vê-la jamais…, de não voltar a tocá-la…, de não aspirar nunca mais seu aroma suave e floral era insuportável. Não podia perdê-la.

Algo estalou em seu interior. Raiva. Loucura. Uma determinação obsessiva por encontrá-la e devolver o golpe com a espada da vingança. Jurou que encontraria a cada um dos responsáveis pelo assassinato de seus homens, e se haviam tocado um só cabelo da sedosa e negra cabeleira de Christina, asseguraria-se de que sofressem uma morte lenta e dolorosa.

Os escudeiros de Eduardo tinham cometido um engano de fatais conseqüências. Ao matar aos homens de Tor e capturar a sua esposa, os ingleses tinham feito que a guerra da Escócia passasse a ser a guerra de Tor.

O caminho que devia seguir estava claro. De momento começou a fazer preparativos para reunir-se com os homens na broch. Necessitaria-os se queria ter alguma possibilidade de resgatar Christina. Surpreendentemente, reconhecer isto para seus adentros não lhe custou o menor esforço. Antes de partir, entregou ao Rhuairi uma mensagem breve para que o despachasse ao MacDonald: «Estamos preparados».

Tinha tomado uma decisão. Não haveria volta atrás.


—Peço-lhe desculpas pelas maneiras do capitão, lady Christina. Ao que parece se excedeu um pouco em seu zelo por lhe interrogar.

Um pouco? Christina olhou fixamente ao comandante inglês ricamente vestido e impecavelmente arrumado, que estava sentado de frente a ela nos luxuosos aposentos principais do castelo do Dumfries. Seus olhos delatavam que não o lamentava absolutamente. Entretanto, bater em uma mulher —embora fosse escocesa— era pouco cavalheiresco. Lorde Seagrave, com sua sobreveste impoluta bordada em branco e dourado e sua malha reluzente, deu-lhe a impressão de ser o tipo de homem a quem não gostava de manchar as mãos com os aspectos mais desagradáveis de suas responsabilidades como comandante da guarnição inglesa no castelo do Dumfries, no Galloway. Perto de cinqüenta anos, era um dos comandantes mais velhos do rei em Escócia e tinha participado de quase todas as lutas principais da última década.

Embora tivesse vontade de lhe espetar que guardasse suas desculpas e lhe recriminar que tivessem assaltado seu navio sem motivo e assassinado a todos aqueles homens, Christina sabia que para proteger a seu marido e a sua família teria que seguir interpretando o papel de rapariga assustada e sorrindo como uma parva, que era o que tinha feito no momento de sua captura. Os últimos dois dias tinham sido os mais longos de sua vida. Horrorizada pela matança gratuita dos homens de seu marido, tinha vivido a cada segundo temerosa de que mudassem de idéia. Tinha que sobreviver durante o tempo suficiente para informar a alguém do acontecido. Era imprescindível vingar aquelas mortes.

O capitão inglês tinha mitigado o tédio da longa travessia por mar interrogando-a sobre as atividades de seu pai e seu marido. Quando não gostava da resposta, golpeava-a. Sua arrogância, não obstante, tinha virado em favor de Christina, pois era evidente que na realidade não acreditava que ela possuísse informação valiosa. A maioria dos homens considerava as mulheres seres inferiores, e os ingleses, com seu altivo sentimento de superioridade, eram ainda piores.

Christina tinha se informado de muitas mais coisas das que tinha revelado. Os homens falavam sem disfarces em sua presença, sobre tudo de noite. Ela tinha descoberto que acabavam de estar no castelo do Inverlochy, o bastão nas Highlands do senhor do Badenoch, Comyn o Vermelho. A escolta dos highlanders estava integrada em sua maior parte por membros do clã Comyn e seus parentes do clã MacDougall.

Quando chegaram ao castelo do Galloway, conduziram a Christina à praça dos ingleses no Dumfries enquanto os highlanders se dirigiam ao castelo do Dalswinton para aguardar a chegada de seu senhor.

Estava virtualmente segura de que tramavam alguma ação nefasta relacionada com o conde de Carrick, Robert de Bruce. Um dos guardas do Comyn tinha mencionado de passagem que estava preso em uma prisão inglesa, mas isso era tudo o que ela tinha conseguido ouvir. Esperava averiguar algo mais de boca de lorde Seagrave.

Resistiu o impulso de levar a mão à cara, que tinha inchada e arroxeado, e dizer a lorde Seagrave exatamente onde podia meter sua compaixão. Seus machucados desapareceriam, e suas probabilidades de escapar seriam mais altas se eles a subestimavam. Antes morreria que trair seu marido. Os últimos meses tinham despertado nela uma força e um valor que não sabia que possuía. Se mostrasses intimidada, era unicamente por interpretar um papel. Assim, em vez de replicar com raiva, agachou a cabeça e disse: —Meu pai é um súdito leal do rei. O que seu homem insinua… —inclinou-se para ele e sussurrou—: É traição.

Esperava haver dado a sua voz o toque justo de surpresa e inocência.

Ele sorriu com indulgência, como em deferência a seu simples intelecto feminino.

—Esquecestes que seu pai esteve na prisão por traição não faz muito tempo?

Christina abriu muito os olhos.

—Certamente que não, milorde. Por isso mesmo posso lhe garantir sua lealdade para o rei. Embora diga que o trataram com toda cortesia - mentiu— não tem o menor desejo de voltar. —Baixou a voz com uma atitude de cumplicidade—. Acredito que é porque sentia falta de seu uísque e os bolos de maçã de seu cozinheiro. —Franziu o sobrecenho de maneira forçada—. Tem maçãs na Inglaterra?

Quando o comandante a olhou como se fosse parva de arremate, ela esperou não ter carregado muito as tintas.

—Temo que sim.

—Então talvez fossem as ameixas. Estão demais de ricas. Têm ameixas também?

A lorde Seagrave começava a esgotar a paciência. Aquela mulher tinha intercalado seus dois interrogatórios com bate-papos sobre comida, móveis e música, para grande irritação do comandante.

—Remetemos uma mensagem a seu pai, mas não respondeu ainda. Por quê?

Estava entrando em terreno perigoso. O valor de Christina como refém diminuiria de forma considerável se os ingleses descobrissem que seu pai não iria resgatá-la.

—Talvez esteja de viagem. Retornou o mensageiro que enviaram a meu marido?

—Ainda não - disse ele com o sobrecenho enrugado.

De novo chamou alguém na porta, mas Christina se acostumou às interrupções constantes. Durante a hora que ele levava tentando interrogá-la nesse dia, um desfile de homens tinha passado pelo aposento.

Um soldado jovem entrou e entregou uma carta sem explicação alguma. Lorde Seagrave devia estar esperando-a, pois a abriu e a leu com rapidez. O sorriso matreiro que lhe arqueou os lábios despertou a curiosidade de Christina.

—partiram os homens? —perguntou lorde Seagrave.

—Não - respondeu o jovem cavalheiro—. Digo se acontecer, senhor?

Christina ficou de pé, sem dissimular sua emoção.

—Posso voltar para mi… quarto. —O quarto reduzido e sem janelas na torre mal era digna desse nome.

Ele a olhou com dureza.

—Não terminamos. Esperes aqui, em seguida volto. —Deixou-a sozinha e fechou a porta atrás de si.

Christina ficou carrancuda até que viu o pergaminho desdobrado sobre a mesa. Arrepiou-lhe o pêlo dos braços. Não acreditou em seus olhos. O comandante deixou a carta.

Com o coração desbocado, inclinou-se sobre a mesa e virou os documentos para coloca-los de cara para ela. Primeiro examinou a página superior e viu que estava escrita em francês.

Afogou um grito e a leu de novo para assegurar-se de que a tinha entendido bem. Era do Comyn o Vermelho para o rei Eduardo, e lhe informava da traição de Bruce, a prova da qual se anexava a seguir. Christina levantou apressadamente a primeira folha de pergaminho e viu um documento lacrado, em latim. Embora continha muitos detalhe, ao que parece se tratava de um pacto entre o Comyn e Bruce contra o rei Eduardo. E agora Comyn pretendia voltar-se contra Bruce e exibir seu acordo como prova de traição.

Ouvindo passos sonoros do outro lado da porta, Christina devolveu os documentos a seu lugar e se reclinou em sua cadeira, tentando serenar seu pulso e atenuar o rubor de nervosismo que lhe tingia as bochechas.

O coração pulsava com força enquanto obrigava a sua mente a responder às perguntas do comandante da forma mais desatinada possível enquanto planejava sua fuga.

Não podia esperar que a resgatassem tendo em conta que essa mensagem seria despachada a Londres a qualquer momento. Embora não conhecesse bem a área, sabia que o castelo de Bruce no Annandale, Lochmaben, encontrava-se perto. Não sabia como chegaria até ali, mas tinha que tentar.

Se essa carta chegasse às mãos do rei Eduardo, Robert Bruce logo seguiria ao Wallace à tumba.


Capítulo 25

Era uma noite perfeita para uma incursão: escura e brumosa, sem uma lua prateada que os delatasse. A escuridão seria sua primeira arma, e a velocidade e a surpresa, a segunda. Atacar depressa e com força era a principal estratégia de todos os piratas. Nem código cavalheiresco, nem regras.

Tor e a equipe, ocultos no bosque, atrás do pequeno castelo de estilo normando erguido em um montículo, aguardavam as altas horas da madrugada enquanto vigiavam todos os movimentos dos soldados ingleses.

Depois da longa viagem pelo mar do norte de Skye até Galloway, no rincão sul-ocidental da Escócia, era uma tortura para ele ter que esperar, sabendo que sua esposa se achava a somente umas centenas de pés dali. Não queria nem imaginar o que ela devia estar suportando nesse momento. Também se negava a considerar a possibilidade de que não seguisse com vida. Tinha que concentrar-se em seu encargo. Assaltar um castelo ocupado por uma guarnição inglesa inteira não era tarefa fácil.

Mas podia levar a cabo.

Era célebre o ataque surpresa por meio do qual Wallace tinha tomado a praça inglesa no castelo do Ardrossan, no Ayr, e Tor tinha decidido empregar uma tática similar. Com perto de uma vintena de homens e sem máquinas de assédio, irromper em turba pelas portas ficava descartado, assim teriam que recorrer ao sigilo e às manobras de distração.

Supunham que Christina estivesse presa na torre de pedra de planta quadrada construída no alto do montículo de terra, de quarenta pés. Para chegar até ali, teriam que atravessar as duas linhas de defesa características disse tipo de fortificação: o fosso que circundava todo o complexo e a paliçada que se levantava do outro lado.

À frente de oito homens da equipe de Bruce, cruzaria o fosso e a paliçada da parte posterior do castelo, em frente da ponte levadiça exterior. Uma vez dentro, separariam-se para procurar Christina, enquanto outros preparavam a fuga. MacRuairi estava convencido de que podia tira-la da torre quando tivessem conseguido entrar, independentemente de onde a tivessem encerrada. Ao Tor bastava jogar uma olhada a seu semblante para acreditar. Seton e Boyd também o acompanhariam. Necessitava homens acostumados no combate corpo a corpo que soubessem dar morte de forma silenciosa, com adagas ou com as mãos nuas.

Disporiam de meia hora para encontrá-la e matar aos guardas antes que Gordon e o resto da equipe atraíssem a atenção dos ingleses para eles para que os outros pudessem sair. MacSorley estaria esperando no exterior com seus guardas do clã MacLeod quando baixassem a ponte.

A luz do interior da torre se apagou quase por completo. A atividade dos soldados ingleses se reduzira. Somente um ou outro som de um animal ou o sussurro das folhagens rompia o silêncio. Tinha chegado o momento.

Tor se ajoelhou na terra e nas folhas, rodeado pelos membros da equipe, para lhe da as últimas instruções.

—Já sabes o que deve fazer, Falcão? —perguntou ao MacSorley, que encabeçaria aos do clã do MacLeod.

Tor tinha tomado um risco ao levar guerreiros adicionais, mas como precaução acrescentada se guardara de chamar os membros da equipe por seus nomes. Tinha ocorrido à idéia de utilizar nomes de guerra quando tinha ouvido Boyd empregar o apelido com que MacSorley se referia a ele ante a Christina.

O gigantesco escandinavo desdobrou um grande sorriso, e o branco de seus dentes reluziu em seu rosto com o resto sumido na escuridão.

—Sim, capitão. Ir por sua senhora e nos assegurar de que esses condenados ingleses não se esqueçam desta noite por toda sua vida.

De qualquer óptica minimamente racional, atacar uma guarnição de cem soldados ingleses com uma vintena de homens parecia uma missão suicida. Mesmo assim, Tor confiava no seu êxito. A destreza da unidade de elite de Bruce tinha superado inclusive suas próprias expectativas. Juntos formavam uma força digna de ter em conta. Sentia-se como se estivesse a ponto de viver um momento transcendental, como disposto a fazer história. Criava-se uma nova era de guerreiros, a era dos highlanders.

Esses malditos ingleses não sabiam o que os esperava.

Assaltar uma praça inglesa os converteria a todos em traidores aos olhos de Eduardo, mas eram conscientes disso quando foram à chamada de Bruce. A incógnita de que Lamberton e Bruce aprovariam ou não aquela operação precipitada e não autorizada não era algo que preocupasse ao Tor. A vida de Christina estava em jogo; ele faria o que tinha que ser feito.

Tor e os oito membros da guarda de Bruce que o acompanhavam avançaram sem fazer o menor ruído por entre as sombras para o fosso que rodeava o montículo. Por meio de gestos, indicou que colassem o corpo a terra e se mantivessem muito pegos ao chão. Quando chegaram na borda do fosso, aguardaram até certificar-se de que o sentinela no alto do montículo não pudesse vê-los antes de descer. Como era inverno, o profundo fosso continha alguns pés de água, ou, melhor dizendo, de um lodo frio e negro que desprendia um aroma mofado a plantas podres. Cuidando de proteger a pólvora do Gordon, caminharam pela lama e ao chegar ao outro extremo subiram à borda para chegar à paliçada formada por estacas bicudas.

Essa era a parte mais delicada da missão. Teriam que escalar os postes de madeira de dez pés de altura sem que os descobrissem os guardas situados no montículo, por cima deles, nem o soldado que fazia a ronda por aquela seção do recinto. Tinham escolhido um lance da paliçada oculto à vista por um volumoso edifício que se erguia no pátio exterior do castelo - provavelmente as cozinhas, a julgar pela quantidade de fumaça que tinham visto sair dali horas antes—, mas de todos os modos durante alguns minutos estariam expostos ao perigo.

Tor foi o primeiro a entrar. Lançou um gancho preso a uma corda entre dois postes e puxou a corda até que o gancho de ferro se enganchou.

O coração lhe pulsava a toda velocidade. Com os sentidos totalmente em alerta, esperou o momento certo. Quando o soldado passou, Tor subiu impulsionado pela corda, encarapitou-se nos postes e se deixou cair são e salvo do outro lado.

Estava dentro.

Quando o soldado passou de novo, sua costa encontrou com o aço da adaga do MacKay concebida especialmente com esse fim. A folha se alargava para o punho e pelo outro lado se estreitava até uma ponta aguçada que lhe atravessou a cota de malha até os pulmões. O soldado desabou aos pés de Tor sem soltar nem um gemido. MacRuairi o chamava «morte silenciosa» e tinha ensinado aos homens a encontrar o ponto exato em que cravar a arma. Era uma técnica extremamente eficaz para ações encobertas como naquela em que o som mais leve podia ter conseqüências nefastas.

Um a menos, mas ainda ficavam aproximadamente noventa e nove.

Poucos minutos depois, os outros oito homens estavam junto a ele; tinham conseguido passar ilesos por cima da paliçada.

Tor fez ao Gordon um sinal com a cabeça, e a equipe se dividiu: MacRuairi, Seton e Boyd foram com ele; MacGregor, MacLean, Lamont e MacKay foram com o Gordon.

À frente de sua equipe, Tor rodeou o montículo de terra até a parte detrás. Para acessar a torre da comemoração, teriam que arrastar-se costa acima sem que os vissem. Em vez de avançar um atrás de outro, espaçaram-se entre si de modo que, quando chegassem ao topo, estivessem em posição de matar aos guardas. Mas a sincronização era fundamental. Deviam chegar ao alto da colina e sossegar aos dois guardas que faziam ronda pelo perímetro antes que pusessem de sobreaviso aos sentinelas que custodiavam a entrada da torre que servia de moradia, em que estava Christine.

A terra e a erva seca do pequeno morro que subiam pouco a pouco, fazendo força com os cotovelos e os antebraços, estavam escorregadias e cobertas de barro. Detiveram-se uns pés do topo e se comunicaram de um homem a outro por gestos. Tor ergueu a mão: cinco, quatro, três, dois…

Saíram da escuridão e se equilibraram sobre os guardas despreparados, como seres espectrais. As facas desceram de forma inesperada e letal. Os sentinelas postos na frente da porta exterior da torre foram os seguintes. Noventa e cinco. Tor sentiu que a emoção da batalha o percorria com uma intensidade cada vez maior conforme se aproximava mais e mais a sua esposa. O plano ia dar resultado.

A seguir chegavam o salão, cheio de soldados que dormiam. Nada lhe teria agradado mais que massacrá-los a todos, mas isso teria que esperar. Primeiro tinha que tirar Christina dali. Dispunha-se a entrar na torre quando ouviu um grito procedente do pátio inferior que lhe gelou o sangue.

Amaldiçoou entre dentes, pois sabia que suas possibilidades de êxito tinham passado de boas a péssimas em um piscar de olhos. A vantagem que para eles era a escuridão e o fator surpresa se esfumou. Tor esperava com toda sua alma que o alarido não tivesse sido proferido de seus homens.

Agora, para tirar Christina do castelo, teriam que abrir caminho lutando contra a guarnição de soldados que dormia no salão, a somente alguns passos dali. A fortaleza inteira já ficava em movimento enquanto o alvoroço de baixo aumentava. Não havia tempo a perder.

Tor estava a ponto de ordenar aos homens que entrassem quando, pela extremidade do olho, viu algo que o fez deter-se.

MacRuairi também percebeu isso.

—Parece tratar-se de uma moça, capitão - sussurrou.

Com o sobrecenho franzido, Tor estudou a figura coberta com uma capa que lutava com o guarda que vigiava a porta. O pulso lhe acelerou e o coração deu um tombo repentino contra as costelas. Não se tratava de qualquer moça, mas sim de sua moça. Pelo visto sua mulher tinha decidido não esperar que a resgatassem. Por que não se admirava com isso?

Soltou um juramento e arrancou a correr escada abaixo para o pátio. Levou ambas as mãos às costas e desembainhou a espada.

Um selvagem grito de guerra brotou de seus pulmões e deixou gelados aos soldados de baixo. Um momento depois, Gordon respondeu a sua chamada com outro bramido.

*

Por sorte de Christina, os soldados ingleses gostava de beber.

Quase tinha conseguido cruzar o salão quando um soldado que ela acreditava que estava desmaiado em um estupor alcoólico a agarrou enquanto passava junto à mesa e a sentou sobre os joelhos. Christina passou a mão pela boca, tentando livrar do desagradável sabor do beijo que lhe tinha dado nos lábios. Mas supunha que deixar-se manusear um pouco por um bêbado era um preço que valia a pena pagar pela liberdade. Riu, afastando-o com um tapa com atitude brincalhona, e lhe tinha passado outra taça de vinho antes de baixar-se de seus joelhos, murmurando que tinha outras obrigações que atender.

Fez uma careta de pesar ao pensar na roupa de criada que levava. Esperava não ter batido muito forte na moça, mas tinha que estar segura de que demoraria um momento para voltar em si. Quando a criada tinha aberto a porta para lhe levar o jantar, Christina a tinha surpreendido com um golpe de candelabro na nuca. Tinha «tomado emprestada» a túnica e o brat, esperando que ninguém se fixasse em que ia arrastando os oito centímetros de saia que sobravam, e depois, com tiras de lençóis, atou os pés e mãos da criada e a amordaçou. Desse modo, embora despertasse, não poderia alertar a ninguém.

Lorde Seagrave, a quem jamais teria passado pela cabeça que uma mulher tentasse fugir, acreditava que bastaria passar o ferrolho à porta, por isso não tinha posto um guarda. Foi um descuido de que acabaria por arrepender-se.

Com a esperança de acautelar a perseguição de algum outro soldado amoroso, Christina agarrou uma bandeja e uma jarra vazia, e, fingindo que estava recolhendo as mesas, passou diretamente entre os sentinelas da entrada, baixou a escada e cruzou a ponte para o pátio inferior. Depois de desfazer-se dos objetos de cenário, escondeu-se entre as sombras atrás das cavalariças próximas às portas, esperando uma ocasião para escapulir se confundindo entre os aldeãos. Entretanto, o guarda tinha fechado as portas pouco depois de que ela chegasse. Pugnou por não cair no desespero, pois sabia que não as abririam de novo antes da manhã.

Quanto demoraria em dar conta de que escapara? alguém sentiria falta da criada? Tinha apertado o suficiente suas ataduras?

Havia tantas coisas que podiam sair mau… Rezou por que se produzisse um milagre.

Em vez disso, poucas horas depois - por culpa de um gatinho curioso com o miado mais estridente que ela jamais tinha ouvido—, descobriram-na. Por mais que se empenhasse em afugentar à molesta bola de pelo, esta retornava uma e outra vez. Um soldado viu o gato e decidiu investigar o que ocorria ao ver que o bichinho se negava a lhe fazer caso.

Ela notou que alguém a tirava com brutalidade de seu esconderijo e se encontrou frente a frente com um cavalheiro jovem. De baixa estatura e de costas largas, tinha um rosto chato e traços toscos, mas em seus olhos apreciava um brilho de inteligência. Por sorte, tinha bebido bastante vinho.

—O que fazes oculta na escuridão? —inquiriu.

Christina se esforçou por discorrer uma explicação acreditável enquanto notava os batimentos do coração de seu coração na garganta.

—Pois… —Um sorriso forçado de inocência apareceu em seus lábios enquanto pestanejava com paquera—. Vou encontrar-me com alguém.

Essa mutreta feminina fracassou estrepitosamente. O olhar do guarda se fez mais penetrante.

—Com quem?

—Com o Edward - se apressou a responder ela. Seguro que haveria algum Edward por ali. As pessoas sempre punham nomes de reis em seus filhos, e Edward Plantageneta reinava fazia mais de trinta anos.

—Edward que mais?

Cáspita! Tinha que haver mais de um, estava claro. Ao ver que ela titubeava, o guarda a arrastou até a luz de uma tocha e chamou os outros três soldados que custodiavam nas portas.

—Algum de vós conhece esta empregada?

Um deles a conhecia. Era um soldado que esteve a bordo da galera, com ela.

—É a moça que capturamos -disse— A filha de Fraser.

Não! Tendo conseguido chegar até ali, não suportava pensar que não ia conseguir. Era sua única oportunidade. Seus guardiães não voltariam a relaxar tanto as medidas de segurança. Tentou soltar-se, mas a mão do soldado a aferrava como uma tenaz.

—Por favor - suplicou—. Tenho que voltar para meus afazeres…

Um alarido aterrorizante troou o ar quente da noite. Todos se voltaram para o montículo e a torre.

Christina conteve o fôlego.

O soldado lhe soltou o braço, mas ela se aproximou de novo a ele, para proteger-se instintivamente de algo muito mais horripilante que os ingleses.

As portas do inferno se abriram para deixar sair a um exército de demônios. Os quatro guerreiros espectrais que caíram sobre eles se assemelhavam a seres de pesadelo. Vestidos de negro dos pés a cabeça para confundir-se com a noite, de uma estatura e uma musculatura sobrenaturais, baixaram a escada com passo trepidante, espadas em alto, preparados para descarregar a fúria do muito mesmo diabo com cada cutilada de seu temível aço.

Em vez de sobreveste e cota de malha, levavam espartilhos de guerra negros e saias escuras de quadros rodeadas ao corpo de forma estranha com cinturões. Sob os espantosos elmos com protetor nasal, seus rostos estavam melados, não da pintura azul de glasto dos antigos gaélicos, mas sim de cinza. Somente um brilho branco rasgava a escuridão.

«Deus bendito, os monstros estão sorrindo!»

Christina não podia afastar o olhar do aterrorizante guerreiro que dirigia o ataque relâmpago. Havia algo…

Um calafrio lhe desceu pelas costas no instante em que o identificou. Embora estivesse virtualmente irreconhecível, ela o conhecia.

Seu marido tinha ido a seu resgate.

Os ingleses não sabiam o que fazer. Enquanto os soldados permaneciam paralisados, Christina, consciente do perigo, separou-se da trajetória da investida dos guerreiros. Apenas tinha se afastado uns passos quando o caos estalou —literalmente— em torno deles.

Uma série de estampidos ensurdecedores sacudiu a noite: detonações horríveis que semeavam o terror. Ela nunca tinha ouvido nada parecido. Soavam como trovões, mas o céu estava totalmente limpo.

Ouviu o zumbido de flechas que voavam sobre sua cabeça, e os quatro soldados que vigiavam as portas caíram em rápida sucessão. Um momento depois, um guerreiro com um arco à costas saltou do telhado das cavalariças, porta se abriram, a ponte desceu, e mais guerreiros de seu marido irromperam no tumulto que reinava no pátio do castelo.

Os soldados corriam de um lado a outro, saíam dos barracões e desciam da torre para ver o que estava ocorrendo.

*

Tor e seus homens lutavam como possessos, atravessando com a espada a todo aquele que se interpor em seu caminho. A rapidez e a ferocidade do ataque eram assombrosas. Os ingleses, aturdidos, não eram rival para eles.

Christina viu perecer ao cruel capitão que tinha assassinado aos homens de Tor e a tinha mantido presa, virtualmente partido em dois por um poderoso talho da enorme espada de seu marido.

Desviou o olhar, pois não tinha estômago para presenciar a morte de ninguém, inclusive quando era merecida.

O céu se iluminou, e as chamas prenderam ao redor deles. Os animais se uniram à correria humana que tentava escapar. Christina esteve a ponto de ser atropelada por um cavalo, mas uma mão firme a levantou e a pôs fora de perigo.

Tor. Antes que Christina pudesse deitar-se em seus braços, ele a fez girar para um lado enquanto, com uma mão, atirava um golpe de espada a um soldado que se aproximou dela por trás.

Mas o caos começava a remeter. Seu marido e seus homens tinham despachado já à maioria dos soldados havia no pátio. Uma nova onda de ingleses desceu em turba a escada da torre, mas quando cruzaram a ponte sobre o fosso, os guerreiros de Tor estavam esperando-os para dar conta deles um a um. Ao precaver-se do que ocorria, alguém —certamente lorde Seagrave— deu a ordem de retirada da torre. Os homens que ficaram no pátio foram deixados a sua sorte quando a porta da torre se fechou.

Christina abraçou a seu marido, com o rosto contra seu peito, muito aliviada para que importasse que estivesse coberto de barro e imundície.

—Não estava segura de que chegasse a tempo.

Ele a afastou ligeiramente, levantou-lhe o queixo com sua mão embainhada em uma manopla e lhe deu um beijo tão selvagem e frenético que a deixou sem fôlego e atordoada por uns instantes. Entretanto, Christina não se atrevia a ter ilusões.

Ele interrompeu o beijo e a olhou aos olhos.

—Eu temia que fosse muito tarde. Encontra-te bem?

Ela assentiu, e as lágrimas apareceram em seus olhos. Uma só olhada ao Tor bastou para que todo o medo, o espanto e o desespero que tinha acumulado em seu interior nos últimos dias estalasse em uma corrente de pranto.

—foi horrível. Seus homens… —Soluçou—. O navio… Todos mortos.

Os lábios de Tor adotaram uma expressão séria sob a máscara de aço.

—Sei. Chist - a sossegou, tentando tranqüilizá-la—. Já me contará isso mais tarde. —Levantou-lhe o rosto para a luz e proferiu uma maldição ao ver os hematomas em torno da bochecha e do o olho—. Quem te fez isto? Matarei-o.

—Já o fez - repôs ela, assinalando ao capitão.

—Tenho que te tirar daqui. Está em condições de montar a cavalo?

Christina assentiu com um ardor e um nó na garganta que lhe impedia de falar.

—Bem. Um de meus homens está juntando cavalos fora da paliçada; levarei-te com ele. Estará a salvo até que terminemos aqui.

Tinha a intenção de tomar também a torre. Considerando o que os ingleses tinham feito a seus homens, ela sabia que não teria piedade.

—Não há tempo para isso. Tem que me levar até o conde de Carrick quanto antes. Rogo por que esteja no Lochmaben.

—Bruce? O que necessita dele?

Falou-lhe dos documentos que tinha lido, e não fez falta que lhe explicasse as possíveis repercussões.

—Está segura?

Christina fez um gesto afirmativo.

—Terá que interceptar aos mensageiros antes que cheguem onde está Eduardo.

—Viu-os partir?

—Isso eu creio. Dois homens partiram a cavalo antes do almoço.

—Ingleses?

Christina assentiu.

—Poderão prosseguir sua viagem com menos dificuldades que os homens do Comyn quando chegarem à fronteira.

—Eu me ocupo dos mensageiros.

Dirigiu-se a um dos guerreiros vestidos de negro e lhe disse algo. O homem reuniu a três guerreiros mais, subiram no lombo de suas cavalgaduras e puseram-se em marcha.

Uns minutos mais tarde, Christina cavalgava junto com o Tor, rapidamente, em direção ao Lochmaben.

*

Robert de Bruce, conde de Carrick e senhor do Annandale, escutou o relato de Christina com incredulidade crescente, e logo com ira mal contida. Que não pusesse em julgamento a veracidade de suas palavras confirmava que esse documento tão perigoso, o tratado que tinha assinado com o Comyn, era autêntico.

—Matarei-o - disse, com os olhos azuis escurecidos pela raiva—. Sabia que não era de confiança.

—Então por que confiaram nele? —perguntou Tor.

Semelhante desacerto não encaixava com a imagem que se formara do aspirante a governar Escócia. Bruce o tinha surpreendido. Assim que o tinha visto, Tor tinha identificado nele o único traço que teria impressionado a qualquer Highlanders: Bruce era um guerreiro. A diferença da maioria dos nobres escoceses, dava a impressão de sentir-se tão cômodo no campo de batalha como no Parlamento.

O conde tinha um olhar ardiloso e dizia as coisas sem disfarces; algo insólito para um político. Embora não restava dúvida de que era um homem orgulhoso, felizmente parecia desdenhar a pompa ao que era tão aficionada a nobreza das Lowlands. O brat forrado de pele e o pesado broche de ouro que levava a pescoço eram os únicos sinais visíveis de sua riqueza. Se tinha notado o pó e a sujeira que recobriam ao Tor e a seus homens, não tinha dado o menor indício disso, e os tinha feito passar ao salão em seguida.

Bruce baixou a voz para responder à pergunta de Tor. Embora lhe tivesse assegurado que podiam falar com inteira liberdade no salão, não era demais ser precavidos.

—Teria sido mais fácil vencer a Eduardo com uma Escócia unida. Além disso, esperava poder evitar uma guerra civil. Não acreditava capaz de confessar sua própria traição para delatar a mim. Comyn tem mais fé que eu na gratidão de Eduardo. —Olhou ao Tor com fixidez—. A quem enviaram atrás dos mensageiros?

—Aos melhores homens - respondeu ele—. Lamont encabeça a equipe; encontrarão-os.

Bruce lhe sustentou o olhar e, ao perceber que a segurança com que falava era sincera, assentiu.

—O que ides fazer, milorde? —perguntou Christina.

—Não sei - disse Bruce em um tom solene—, mas Comyn terá que prestar contas pelo que tentou hoje. —Como acima de tudo era um cavalheiro galante, Bruce deixou a um lado a ira e se inclinou sobre a mão dela para lhe plantar um casto beijo nos nódulos — Estou em dívida com você, lady Christina, uma dívida que jamais poderei lhe pagar. —voltou-se para Tor—. Espero que seu marido seja consciente de quão afortunado é por ter uma esposa que não só é bela, mas sim também possui talentos inesperados e extremamente úteis. Dissestes as palavras desse documento melhor que meus tabeliães. —Seus olhos cintilaram—. Possivelmente deveria toma-la a meu serviço.

Christina, encantada com a adulação, ruborizou-se de prazer ante a admiração sincera que destilava no rosto do conde; um rosto muito arrumado, diga-se passagem, embora deixasse de sê-lo se não lhe soltava a mão. Talvez isso de cavalheirismo não estivesses do todo mal.

—Sou consciente disso - balbuciou Tor entre dentes—. E temo que os talentos de Christina estejam reservados para seu marido.

A aspereza de seu tom fez que Christina franzisse o sobrecenhopois não compreendia o porquê de sua irritação. Bruce, pelo contrário, compreendia-o perfeitamente. Riu e lhe soltou a mão.

—Agradeço-lhe o serviço que me emprestastes hoje, moça. Se algum dia necessitarem algo, não têm mais que me pedir isso Christina ficou um pouco mais rubra e lhe devolveu o sorriso.

—Se não lhe importar, quereria apelar agora mesmo a essa generosidade que me ofereces. Um banho me sentaria uma maravilha.

—Disporei que lhe preparem isso no ato.

Christina dirigiu ao Tor um olhar inquisitivo.

—Vá -disse ele—. Eu irei em seguida.

Ela assentiu e saiu do salão depois da criada. Os dois homem a observaram afastar-se.

—saístes ganhando com nosso acordo - comentou Bruce com malícia.

Era certo, mas Tor não tinha por que dizer-lhe.

—Não me queixo.

—decidistes aceitar a encomenda.

—Com algumas condições. —Na presença de Christina tinham falado em francês, mas tinham ido inconscientemente ao gaélico quando ela se fora; outro ponto a favor de Bruce.

O conde o olhou com receio.

—Que condições?

—Obedeceremos a suas ordens, mas eu tenho que estar no comando da equipe. Para que uma guarda destas características seja eficaz, devo gozar de autonomia e de uma autoridade absoluta sobre o terreno.

Bruce refletiu durante longo momento, ao que parece não muito agradado por suas exigências.

—Assim que eu lhe digo o que necessito e vocês decidem como levá-lo a cabo?

Tor deu de ombros. Essa era uma forma de vê-lo.

Ao cabo de uns minutos mais, Bruce, a contra gosto, assentiu em sinal de consentimento.

—Não é que não esteja impressionado pelo que seus homens e vocês têm feito, mas a próxima vez procure me avisar antes de atacar uma praça inglesa.

Tor sorriu.

—Farei o possível, mas o que ocorre é que não dispúnhamos de tempo. Os ingleses tinham em seu poder um bem muito valioso para mim.

—Alguma outra condição?

—Embora meus homens e eu estejamos presos a seu código cavalheiresco, e embora lhe façamos o trabalho sujo, não obedecerei nenhuma ordem que me obrigue a matar mulheres ou meninos.

—Alegra-me ouvir isso - disse Bruce com expressão sardônica—. Embora lhe encomendarei missões perigosas e desagradáveis, dou-lhe minha palavra de que não lhe pedirei nada que não esteja disposto a fazer eu mesmo.

Surpreendentemente, Tor advertiu que falava sério. Sua admiração pelo elogiado cavalheiro cresceu grandemente. Em um princípio, a decisão de Tor de dirigir a equipe não obedecia tanto a seu desejo de unir-se a Bruce como de derrotar a Eduardo. Entretanto, o jovem conde lhe tinha causado uma magnífica impressão. Bruce não era um aristocrata de pouca subida, a não ser um guerreiro nobre decidido a recuperar um reino. A diferença de quase todos aqueles que se regiam pelas regras cavalheirescas, Bruce não assustava sujar as mãos. Era uma qualidade que seria necessária se queria ter a menor possibilidade de êxito. Para ganhar aquela guerra, teria que arrastar-se pelo barro.

Tor o olhou aos olhos.

—E Comyn? Querem que me ocupe dele?

Bruce não fingiu ter interpretado mal a pergunta. Seu caminho ao trono não só estava obstaculizado pelo rei Eduardo, mas também pelo Comyn o Vermelho, possivelmente o nobre mais poderoso daquelas terras.

—Não. Eu mesmo me encarregarei do Comyn.

Tor assentiu, consciente de que as primeiras hostilidades de uma longa guerra estavam a ponto de começar.

—Vá - disse Bruce—. Atendas a sua esposa. —Sorriu—. Embora lhe aconselho que primeiro que tome um bom banho e mudes de roupa.

Tor torceu a boca.

—Sábia recomendação. —Talvez fosse mais fácil convencer a sua esposa de que o perdoasse se não fedesse a pântano.

—E outra coisa, MacLeod. —Tor se voltou, e Bruce lhe dirigiu um olhar severo e significativo—. Estejas preparado.

—Sim, milorde - respondeu Tor com uma inclinação da cabeça—. A suas ordens.

*

Os efeitos relaxantes do banho se dissiparam quando levaram a água. Christina tinha posto uma túnica e um vestido limpos que lhe tinha emprestado a esposa de Bruce, lady Elizabeth de Burgh. Quase sem reparar na decoração luxuosa que a rodeava, aguardava ansiosa, sentada em uma cadeira frente à chaminé, secando os cabelos, sem saber o que aconteceria quando seu marido aparecesse por fim.

Mostrou-se muito aliviado ao vê-la, mas Christina intuía que devia estar furioso com ela por haver partido. Esperava poder lhe fazer compreender que não havia alternativa, que os dois estariam melhor separados. Sabia que tinha sido uma covardia abandoná-lo sem lhe dar explicações, mas aquela primeira despedida tinha sido muito dura; não tinha nenhuma vontade de dizer adeus cara a cara.

Por que Tor demorava tanto?

Quando a porta se abriu finalmente uns minutos depois, o motivo da tardança ficou evidente. Ela ficou sem fôlego e notou uma opressão tão forte no peito que era quase um ardor. igual a ela, Tor tinha tomado um banho. Seu cabelo castanho com reflexos dourados reluzia à luz do fogo, e um aroma fresco de sabão flutuava no ar quente.

Christina sentiu o coração dar um tombo. Por que tinha Tor que lhe complicar a vida estando sempre tão absurdamente arrumado?

Seus olhares se encontraram. Ela abriu a boca com a intenção de desculpar-se, mas, para sua surpresa, viu-se apanhada em um apaixonado abraço.

—Por Deus santo, Christina, deu-me um susto de morte! —Tor deu um beijo no cocuruto a sua esposa e a estreitou com mais força entre seus braços—. Acreditava que tinha te perdido…

Seu tom soava diferente. Falava com uma voz mais suave, rouca pela emoção. Ela não queria ter ilusões vãs. Nada tinha mudado. Tor tinha ido em seu resgate, mas isso era algo que já tinha feito antes. desta vez ela não se deixaria levar por suas fantasias românticas. Aquilo não significava que ele a amasse.

Aspirou profundamente, desejando reter seu aroma quente e masculino, antes de obrigar-se a si mesmo a afastar-se dele.

—Suponho que estas desejando saber o que aconteceu com seus homens - disse—. Foi espantoso. —Os olhos se encheram de lágrimas—. Todos morreram…

Tor curvou os lábios em uma expressão séria.

—Morreram fazendo aquilo para o qual estavam treinados, Christina, o que mais amavam. O objetivo na vida de um highlander é morrer em batalha. Para um guerreiro, é a máxima honra.

Christina nunca conseguiria entender. Os guerreiros eram feitos de uma massa diferente.

—me conte o que aconteceu pediu Tor com delicadeza.

Explicou-lhe que os navios os tinham seguido e os tinham assaltado sem provocação prévia. Seu marido a escutou sem interrompê-la, sorrindo ao ouvir como seus homens a tinham rodeado e a tinham protegido com seu corpo.

—Talvez se eu não tivesse…

—Não - a cortou Tor—. Teriam morrido embora não estivesse ali. Ninguém teria podido prever o que ia acontecer. Meus homens realizam essa rota várias vezes ao mês; os assaltos no mar são muito pouco freqüentes. Imagino que os MacDougall reconheceram minha insígnia e decidiram prosseguir com seus esforços por acabar comigo.

—Eram os MacDougall que estavam atrás dos ataques?

Tor assentiu.

Isso significava que…

—alcançamos ao irmão John antes que pudesse divulgar o que tinha averiguado.

—Assim é. —Graças a Deus. Ao menos ela não seria responsável por isso—. O que não sabes é que meu novo tabelião era sobrinho de John do Lorne, e que meu tabelião anterior não tinha sofrido um acidente.

Que horror! Christina mordeu o lábio; ainda lhe custava assimilar a traição de seu amigo. Ao notar que Tor a observava, levantou o olhar para ele.

—E quando o deixaram…?

Ele a olhou fixamente.

—Tinha-nos visto.

Christina fez um gesto para indicar que tinha compreendido. Não podia ser de outra maneira. O tabelião sabia ao que se expos, o que lhe aconteceria se o capturavam. Mesmo assim, o coração lhe encheu de tristeza por sua morte.

Ao perceber sua aflição, Tor lhe afastou uma mecha de cabelo do rosto e acariciou devagar sua bochecha arroxeada com o dorso do dedo.

—Não sofreu. E acredito que lamentava ter te envolvido em sua traição. Sentia um afeto autêntico por ti.

A ternura das carícias a confundiu, igual a suas palavras amáveis. Por que tinha que lhe pôr as coisas tão difíceis? Ela so queria passar o mau gole quanto antes. Afastou o rosto da mão de Tor e recuou um passo.

—Não deveria ter te deixado desse modo.

—Não, não deveria.

—Fui uma covarde por não me despedir. Mas… temia… temia que me faltassem as forças.

—por que me deixou, Tina?

Algo em sua voz fez que o coração lhe desse um salto. Não. Negava-se a imaginar sentimentos que não existiam.

—Porque não suportaria passar o resto de meus dias com alguém que jamais poderia me amar - respondeu sem olhá-lo—, que não me deixaria formar parte de sua vida porque não me quer ou não me valoriza.

—Entendo - disse ele sem alterar-se—. Se todo isso era certo, tinha motivos de sobra para partir.

Tinha? Ela cravou o olhar em seus olhos inescrutáveis. É obvio que os tinha. Tor devia ter concluído também que seu matrimônio não levava a nenhuma parte. Ardiam-lhe as vísceras. Por que doía tanto a verdade? O que haveria ao Tor fingir que se importava ao menos um pouco? Baixou o olhar para que ele não visse seus olhos chorosos. De algum modo conseguiu articular as palavras, embora cada uma delas lhe engasgasse: —Se me levar a Iona na travessia de volta, não voltarei a te incomodar.

—Temo que não posso fazer isso —repôs ele com suavidade.

Christina notava em seu interior uma dor cada vez mais intensa, como um ferro candente contra a pele em carne viva.

—É obvio. Estará ocupado com sua equipe e o conde. Possivelmente possa dispor que um navio me leve…

—Não.

A firmeza da negativa a impulsionou a olhá-lo por fim.

—Não irá a Iona - disse Tor.

Christina ficou perplexa.

—Mas jurou que se algum dia eu desejasse ir, deixaria me retirar a lona com minha irmã.

Tor deu de ombros.

—Mudei de idéia.

—Não pode. Fez um juramento.

Tor sorriu ante sua indignação. Isso era algo tão inesperado para a Christina, dadas as circunstâncias, que não sabia o que fazer. Como podia ele ser tão cruel para burlar-se dela desse modo?

Entretanto, quando se fixou em seus olhos, o que viu neles fez que seu coração deixasse de pulsar.

Aproveitando-se de seu desconcerto, lhe rodeou a cintura com o braço e a atraiu para si, moldando o corpo de Christina ao dele. Beijou-a com delicadeza, docemente, com uma emoção quase reverencial.

—Farei o que seja necessário para que permaneça a meu lado - disse.

Todo rastro de hilaridade tinha desaparecido de seu semblante, e ela leu a incerteza em seu olhar.

Mas se Tor jamais sentia incerteza por nada…

—Não te entendo.

desta vez foi ele quem se afastou. Passou os dedos pelos cabelos, que seguiam úmidos. Caíam-lhe em ondas deliciosamente por debaixo das orelhas.

—Isto não eu não entendo bem.

Ela aguardou que continuasse, não muito segura do que se referia com «isto».

Tor respirou fundo.

—Quando me dei conta de que podia te perder, foi como se algo dentro de mim mudasse de repente. Como se tudo o que acreditava saber de repente se virou do avesso.

Embora Tor parecesse estar sofrendo o inexprimível, ela não teve piedade dele.

—A que te refere?

—Desde que meus pais morreram e eu passei a ser chefe, acreditava que tinha que ser diferente, que a única maneira de cumprir meu dever para com meu clã era desterrar toda emoção. Mas ao me esforçar por conseguir, esqueci-me do que significa viver. Você devolveu a calidez a minha vida - acrescentou, lhe roçando a bochecha com a parte posterior do dedo—. Acreditava que não necessitava a ninguém, mas estava equivocado. Necessito a ti, Tina. Sem ti, não tenho nada mais que uma vida fria e vazia.

Fez uma pausa, e Christina ficou contemplando-o.

—Por ser alguém quem não se dá bem falar de seus sentimentos, está fazendo maravilhas.

Ele sorriu, aliviado.

—Então já ouviste o suficiente?

Christina negou com a cabeça.

—Sei que me levei como um imbecil. —Ela não o contradisse—. Existem coisas pelas que não tenho direito a te pedir que me perdoe. Não posso alegar nada em minha defesa salvo que estava convencido de que tinha que fazer tudo sozinho. Sei que você tentava me ajudar. Além disso, não foi a única que se deixou enganar por aquele modesto tabelião. Sim, valorizo-te. Sempre te valorizei, embora possivelmente não soubesse até que ponto. Nunca me tinha dado conta que uma mulher pudesse ser tabelião, mas demonstraste que me equivocara. Rhuairi diz que seus cálculos são impecáveis. E, depois do que tem feito hoje… Graças a ti, Bruce viverá para lutar o dia de amanhã. —O orgulho que brilhava em seus olhos não podia ser fingido—. Perdoe-me, Tina. Retorna a casa comigo e me dê outra oportunidade.

Ela tinha o coração a ponto de estalar. Não havia nada que desejasse mais que apoiar a cabeça em seu peito e render-se à esperança que lhe brindava. Mas sua mente resistia a deixar-se convencer tão facilmente. Não poderia suportar outro frio rechaço como o da última vez.

—Como posso estar segura de que não reagirá exatamente da mesma maneira quando voltar a fazer algo que te desgoste?

Tor a olhou com apreensão.

—Tem pensado me desgostar muito freqüentemente?

Ela franziu os lábios e levantou o queixo.

—Pode ser que sim. Não vou conformar sendo sua esposa unicamente no quarto. Temo que vou pôr-me exigente contigo.

—Como de exigente? —perguntou ele como se lhe estivessem arrancando um molar.

—Muito. E se acessar a retornar, as coisas serão diferentes.

Ele a olhou com expressão de abatimento.

—Não vais facilitar-me as coisas, verdade?

—Temo que não. —Tor agachou a cabeça para animá-la a continuar—. De vez em quando, talvez queira que demonstre seu afeto diante dos membros de seu clã.

Ele fez um gesto de dor.

—Seguro que isso não será nece…

—Um olhar terno, possivelmente um beijo rápido. Nada que te custe muito esforço.

—Não é você quem terá que agüentar os comentários do MacSorley junto à fogueira.

—Estou segura de que é o bastante homem para suportar —disse ela sem mostrar a menor compaixão. Os guerreiros temíveis não deviam choramingar—. E de vez em quando possivelmente goste de te dar minha opinião sobre os temas de suas conversas.

—Sempre e quando estiver de acordo comigo.

—Inclusive quando essas opiniões não coincidam com as tuas.

Tor torceu os lábios.

—Em particular poderá me contradizer quanto queira.

Christina assentiu.

—Parece-me razoável.

—É tudo? —inquiriu Tor, com o aspecto de um réu que ia caminho do patíbulo.

Ela sacudiu a cabeça e levantou o olhar para ele, esperando que sua voz não delatasse o vulnerável que se sentia.

—Exijo também seu coração.

—É teu — disse Tor sem vacilar. Christina reprimiu o impulso de mover-se.

Tor pôs cara de sofrimento.

—Me vais obrigar-me a dizer, verdade? —perguntou.

Ela fez um gesto afirmativo.

—Temo que sim. É importante que o ouça de sua boca se tiver que te acreditar.

—É uma mulher cruel.

—Cruel, não. Desumana. —Sorriu com picardia—. Aprendi com o melhor.

Então Tor fez algo que Christina jamais teria imaginado que lhe veria fazer, algo que não esqueceria em toda a vida. Seu marido, o chefe orgulhoso, o rei de seu clã, o guerreiro maior de sua época, pegou sua mão e fincou um joelho em terra, ante ela.

—Amo-te, Tina. Talvez não seja o cavalheiro pelo qual suspirava, mas se voltar para meu lado te prometo que me pugnarei por te demonstrar meu amor todos os dias do resto de nossas vidas.

As lágrimas escorregavam pelas bochechas de Christina.

—Diz de coração?

Um sorriso irônico se desenhou no arrumado rosto de Tor.

—Tendo em conta minha posição neste momento, acredita que é necessária a pergunta? —Seu sorriso se alargou—. Sim, carinho. Digo de coração. Amo-te com toda minha alma.

Ela sabia que Tor nunca tinha pronunciado essas palavras antes.

—Dará-me outra oportunidade?

Christina moveu a cabeça afirmativamente.

Com um gemido de alívio, Tor a estreitou entre seus braços e não a soltou até que demonstrou esse amor. Uma e outra vez.


Epílogo


Ah, quão nobre é a liberdade!

John Barbour,

A gestão de Roberto de Bruce


Perto da abadia do Scone,

Perthshire, 27 de março de 1306


Os primeiros raios da alvorada apareciam por cima do horizonte. Como se Deus erguesse a mão para benzer em pessoa a cerimônia, um facho de luz brilhante e alaranjada atravessara como dedos o círculo de pedras. Esse espetacular efeito se viu realçado pelo lamento assustador das gaitas de fole que fendia o ar fresco desse dia da primavera. Não importava que o monumento em si fosse pagão: sua majestosidade prevalecia sobre tais considerações. Era um vínculo com o passado remoto da Escócia, um símbolo de força e continuidade, tão misterioso como os homens que se dispunham a ajoelhar-se ante o recém coroado rei da Escócia para lhe oferecer sua lealdade… e sua vida.


Christina, que se achava entre as testemunhas da cerimônia secreta que se estava celebrando entre pedras pagãs, não acreditava que pudesse haver um marco mais apropriado. Naturalmente, seu marido teria preferido que permanecesse a salvo no Skye, mas ela não se teria perdido aquilo por nada do mundo. Ganhou com acréscimo o direito a estar ali e não pensava deixar que ele o esquecesse.

Seu descobrimento tinha dado lugar ao enfrentamento final entre o Bruce e Comyn, e, posteriormente, a aquela cerimônia. Fazia pouco mais de sete semanas, Bruce tinha matado a seu adversário, Comyn o Vermelho, em frente ao altar da igreja do Greyfriars. A cruz ardente se propagou por toda Escócia, chamando a todos seus guerreiros a unir-se sob o estandarte de Bruce. Fazia só dois dias, na abadia do Scone, cenário histórico da coroação dos reis da Escócia, Robert de Bruce tinha sido proclamado rei da Escócia, embora sem a antiga pedra do Scone, roubada pelo rei Eduardo dez anos atrás.

Havia menos testemunhas dos que Bruce esperava. Três dos nove bispos — entre eles Lamberton, o mais influente— estavam presentes, e dos treze condados, somente os senhores do Atholl, Menteith, Lennox e Mar tinham ido à convocatória. Era especialmente destacável a ausência do jovem conde do Fife, quem tinha por nascimento o direito e a obrigação de coroar aos reis da Escócia. Sem a presença do Fife, alguns poriam em julgamento a legitimidade do ato. Entretanto, o jovem conde permanecia na Inglaterra, prisioneiro do rei Eduardo, e a tentativa de levá-lo até ali tinha fracassado.


Bruce estava de pé ante a pedra maior, embelezado com as vestimentas reais e um aro de ouro na cabeça, enquanto o sol se levantava como uma auréola sobre ele.

—Não podemos esperar mais — disse ao Tor—. Teremos que seguir adiante sem eles.

—Chegarão — assegurou Tor com firmeza—. Dêem-lhe dez minutos mais.

Não fez falta nem a metade desse tempo: quando ainda não tinham transcorrido cinco minutos, três figuras apareceram sobre o topo de uma colina que se levantava para o sul, galopando para eles. Entre o estrondoso tamborilar dos cascos dos cavalos, os três recém chegados irromperam no centro do círculo.

Christina reconheceu entre aquelas figuras a dois dos homens de seu marido, um dos quais era Lachlan MacRuairi. A terceira era uma mulher. Christina sorriu ao precaver-se de que tinham completado sua missão com êxito. Embora o jovem conde do Fife não estivesse ali, sua irmã tinha ido em seu lugar.

MacRuairi se aproximou para ajudá-la a desmontar, mas a dama — uma condessa, neste caso—, lhe jogando um olhar desdenhoso, desembarcou de um salto sem lhe dar a mão. A expressão sombria no rosto do MacRuairi gelou o sangue a Christina. Depois de passar andando régio junto ao ameaçador highlander, a condessa se dirigiu a toda pressa para o rei para prostrar-se ante

ele. O capuz de sua capa caiu para trás, deixando ao descoberto longos cabelos de cor loiro platino, uma paradoxo de suavidade que contrastava com a férrea determinação de suas feições pronunciadas. Christina viu que era jovem, talvez poucos anos mais velha que ela, com uns traços marcados, mais chamativos que belos.

—Excelência - disse com uma voz rouca e transbordante de orgulho—, vim assim que me foi possível. Espero não ter chegado muito tarde.

Bruce lhe dedicou um sorriso tão cálida que Christina se perguntou se seriam certos os rumores de que no passado tinham mantido uma relação amorosa.

—Não, Bela, não é muito tarde. Nunca é muito tarde, e menos ainda quando arriscastes tanto por vir.

Bruce não era o único que estava assombrado pela valentia da jovem condessa. Lady Isabella MacDuff tinha desafiado a seu marido e ao rei para ir a aquela entrevista. E não só era a irmã do conde do Fife, mas também a esposa do conde de Buchan, John Comyn, primo do Comyn o Vermelho e seguidor leal do rei Eduardo. Christina estava convencida de que se a Eduardo lhe apresentasse a oportunidade, faria pagar caro sua ousadia à condessa.

Pela segunda vez em um par de dias, presenciou a coroação do Robert de Bruce como rei da Escócia, embora nessa ocasião fosse lady Isabella quem lhe rodeou o aro de ouro à cabeça.


—Beannachd Do Righ Alban — disse a condessa quando teve terminado. «Que Deus abençõe ao rei da Escócia.»

Mais tarde, levaram rapidamente à condessa rebelde ao palácio para que se reunisse com a esposa e as irmãs de Bruce.

Ao ir a cavalo ao encontro de Bruce, Isabella MacDuff tinha escolhido seu caminho e já não poderia retornar ao lado de seu marido nem da filha que tinha deixado pra trás. De forma inconsciente, Christina levou a mão ao ventre, incapaz de imaginar-se tamanho sacrifício. Embora tivesse confirmado suas suspeitas fazia somente uns dias, já albergava um profundo carinho para o menino que estava gerando.

Por fim, chegou o momento da cerimônia que ela estivera esperando.

Um por um, os guerreiros de elite da guarda de highlanders de Bruce saíram à frente. Inclusive à luz do dia apresentavam um aspecto temível. Se não os tivesse conhecido no transcurso dos últimos dois meses, Christina teria acreditado que não eram reais, a não ser personagens míticos ou produtos de sua imaginação. Todos vestidos de negro e com seu elmo escuro, cujo protetor nasal lhe tampava boa parte do rosto, os guerreiros secretos foram chamados um após o outro por seus nomes códigos para que se ajoelhassem ante a enorme espada de Bruce. O apelido de MacSorley era «Falcão»; o de MacRuairi, «Víbora»; o de MacKay, «Santo»; o de Boyd, «Incursionador»; o de Lamont, «Caçador»; o de MacLean, «Golpeador»; o de MacGregor, «Flecha»; o de Seton, «Dragão», e o de Gordon, «Templário».


O último guerreiro do grupo era o que ela esteve esperando. Os homens se negaram a lhe revelar que nome tinham decidido pôr em seu marido.

—Chefe — chamou Bruce.

Christina sentiu que o coração lhe dava um tombo, comovida pela grande honra que os guerreiros tinham conferido a seu marido. Embora procedessem de clãs diferentes, Tor os tinha unido para formar um novo: MacLeomhann, «filho do Leão». Seria um clã que não estaria apoiado no parentesco, e sim em um objetivo comum: a liberdade e —como simbolizava a nova tatuagem de um leão rampante que seu marido luzia no braço— a restauração de um escocês no trono da Escócia.

Christina viu relampejar os olhos de seu marido sob o aço de seu elmo e soube que ouvir seu apelido também tinha emocionado a ele.

Com um nó na garganta, Christina observou a seu marido avançar e prostrar-se ante seu rei. Nunca se havia sentido tão orgulhosa dele. Era consciente do perigo que corria, mas a aventura em que ele e seus homens estavam a ponto de embarcar-se mudaria o rumo da história. Manter em segredo suas atividades seria complicado, mas por sorte ele tinha um irmão gêmeo que poderia ocupar seu lugar enquanto estivesse longe de casa.

«longe de casa.» Ambos teriam que fazer sacrifícios nos altares daquela guerra.

Mas quando Tor agachou a cabeça e a folha da espada de Bruce lhe tocou o ombro, Christina soube que tinha encontrado algo muito melhor que o cavalheiro de seus sonhos; tinha encontrado a um highlander que tinha conquistado seu coração e um amor que duraria toda a vida.

Os dez guerreiros formaram um círculo em torno de seu rei. Com as espadas em alto por cima de sua cabeça, gritaram: —Airson an Leomhann! —«Pelo Leão!», uma divisa que acabaria por semear o medo no coração de muitos homens.

A operação Leão Rampante30 tinha começado.


Fim


Nota da Autora A maioria dos personagens principais da história estão baseados livremente em figuras históricas reais. «Tor» foi o primeiro chefe e fundador do clã MacLeod (e sexto bisavô de Rory MacLeod, de ‘O Highlander Indomável’ ). Entretanto, em princípios do século XIV, os clãs tal e como os concebemos hoje em dia estavam ainda em matilhas. Inclusive o termo «highlander» é provavelmente um anacronismo — segundo o dicionário Oxford, a palavra highlandman aparece pela primeira vez em um texto por volta do ano 1425—, mas tanto autores de ficção (Nigel Tranter) como de não ficção (G. W. S. Barrow) empregam-na no mesmo contexto histórico. Suponho que, igual a mim, chegaram à conclusão de que não havia uma alternativa melhor. Por outro lado, que graça teria ler uma novela romântica ambientada em Escócia em que não aparece nenhum highlander?

Os dois ramos do clã MacLeod, os MacLeod de Harris e os MacLeod de Lewis, são conhecidos respectivamente como «Siol Thormoid» e «Siol Thorcuil» («semente de Tormod» e «semente de Torquil», em sentido literal). As últimas investigações sobre a genealogia dos MacLeod desmentem a crença anterior de que Tormod e Torquil eram irmãos, e em troca parecem indicar que Torquil foi neto de Tormod (e filho de Murdoch). Setecentos anos depois, é impossível riscar a genealogia com exatidão. Decidi me ater à versão tradicional, tanto por simplicidade como porque é a que mantém o chefe atual do clã MacLeod no lugar da Web de Dunvegan. De forma similar, a descendência de Tor por linha paterna do rei da Noruega e do rei de Man descrita no primeiro capítulo também está simplificada em grande medida e é objeto de controvérsia.

A maioria dos genealogistas coincide em que Tor se casou duas vezes e em que sua segunda esposa foi Christina Fraser, irmã do Alexander (seguidor de Bruce, a quem estava muito unido, e que mais tarde se desposaria sua irmã Mary) e de Simon, o primeiro senhor de Lovat. O pai de Christina esteve detido na Inglaterra durante uma temporada, mas diferente do que se conta na novela, sua família se encontrava ali com ele. Cabe supor que Christina e seus irmãos passaram um tempo na corte inglesa.

As alianças forjadas pelo Tor através do matrimônio ilustram à perfeição a mudança que se estava produzindo naquela época nas ilhas Ocidentais, que eram um reino marítimo independente de estar sob o domínio da Escócia. O primeiro enlace de Tor foi com uma família influente da costa ocidental, e o segundo com a filha de um nobre escocês.

O ataque de Skye por parte do conde do Ross ocorreu em realidade duas décadas antes da novela, em 1262. Foi tão brutal como o hei descrito, assassinato de meninos incluído. A morte dos pais de Tor durante a incursão, não obstante, é um fato fictício.

Segundo algumas lendas, Torquil MacLeod se fez com suas terras no Lewis matando a todos os membros varões do clã Nicolson (afogando-os no Minch) e casando-se depois com a filha herdeira. Como supus que isto seria algo excessivo para o gosto da maioria dos leitores, decidi dar um toque mais romântico à história.

O trasfondo político da primeira guerra da Independência da Escócia é, por dizer com suavidade, extremamente complicado. Aos interessados em conhecer mais a fundo aquela época, recomendo encarecidamente o livro Robert de Bruce do G. W. S. Barrow (Edinburgh University Press, 2005). Para quem quer ler uma série de novelas históricas e amenas ambientadas nesse período The Bruce Trilogy do Nigel Tranter (Hodder Headline, 1985); é um clássico.

A relação entre Bruce e Wallace foi muito mais complexa que a que descrevo no livro. Ambos desejavam expulsar aos ingleses da Escócia, mas Wallace aspirava a restaurar no trono à família Balliol, enquanto que Bruce queria a coroa para si. Tal como assinala Tor quando o critica no primeiro capítulo, Bruce se passava repetidamente do bando dos «patriotas» ao dos ingleses e vice versa. No geral, seus atos podem explicar-se em função de quem apoiavam os Balliol/Comyn; normalmente ele estava no lado contrário.

Passei nas pontas dos pés pelo que é provavelmente o momento mais importante na vida de Bruce: o assassinato de seu rival, Comyn o Vermelho, ante o altar da igreja do Greyfriars. Os relatos de quão feitos culminaram com o assassinato diferem enormemente entre si. Uma das versões «românticas» (hoje desacreditada) fala de um pacto com o Comyn e de mensageiros que levavam a Eduardo prova da traição de Bruce, mas que foram interceptados. Decidi aproveitar esta história porque minha heroína encaixava bem nela, mas também porque me encontrei com o mesmo problema que muitos dos primeiros cronistas da vida de Bruce: como explicar o ato decididamente anti heroico de um grande herói. Era evidente que Comyn se interpunha entre o Bruce e o trono, mas embora tira-lo meio era «necessário», o assassinato de um rival não causa boa impressão, olhe como se olhe. O fato de tê-lo matado em uma igreja e de ter violado com isso seu direito de asilo agravava muito as coisas. Por causa deste crime, Bruce esteve excomungado durante quase vinte anos. Escócia ficou debaixo de interdição também durante um tempo.

O assalto ao castelo do Dumfries se produziu em realidade depois de que Bruce matasse a Comyn, não antes, como acontece na novela. Atacar Dumfries foi o primeiro ato de rebeldia de Bruce contra o rei Eduardo. O governador do castelo naquela época era sir Richard Siward, não Seagrave. Entretanto, é verdade que Seagrave esteve destinado na Escócia durante anos.

Uma das maiores lacunas em meu conhecimento da história daquela época era a importância real que tiveram os descendentes do rei Somerled: os MacDonald (senhores de Islay), os MacRuairi (senhores do Garmoran) e os MacDougall (senhores de Argyll). «MacSorley» é o nome com que se conhece coletivamente aos descendentes de Somerled. Sabia da importância dos MacDonald (mais tarde senhores das Ilhas), mas desconhecia por completo a dos MacRuairi e os MacDougall. Estes últimos eram certamente o clã mais poderoso naquela época, mas foram a menos guerras de Independência. Nossos velhos amigos, os Campbell, foram os mais beneficiados com sua desgraça. Os MacRuairi desapareceram poucas décadas mais tarde.

Contava Bruce de verdade com «forças especiais», uma guarda de highlanders que utilizava como exército pessoal? A resposta breve é não, mas existem alguns paralelismos interessantes. As semelhanças com uma unidade de forças especiais são fictícias, mas é verdade que Bruce tinha uma «mesnada» ou séquito pessoal ao que pertenciam Robert Boyd e partidários deles como Christopher Seton, Alexander Fraser (irmão de Christina), Thomas Randolf, Edward Bruce e Neil Campbell. Este último, junto com Alexander Seton e Thomas Há, assinou um documento no que se comprometia a defender e apoiar Bruce até o final. Em um desses descobrimentos fantásticos que se fazem por acaso, encontrei uma referência ao Donald», filho de Alistair (em quem está apoiado o personagem de MacSorley), que dirigiu a um grupo seleto de highlanders (uma «tropa de ilhéus»), por ordem de Angus Og, com o fim de ajudar e proteger Bruce em 1306. Impressionante, não é?

O que está claro é que, já no início, Bruce reconheceu a importância das Highlands Ocidentais. Na transcendental batalha de Bannockburn, em 1314, Bruce lutou contra os ingleses à frente de uma divisão de highlanders e ilhéus. Em teoria, muitos dos membros da «Guarda das Highlands» combateram ao seu lado (incluindo Tor). E quando Bruce viveu seu momento mais difícil em sua luta por ocupar o trono, foram os highlanders e os ilhéus que foram em sua ajuda. Mas isso já é parte de outra história.

 

 

Notas


[1] O bìrlinn, vulgarmente conhecido como a fhada de longa duração (“Navio de longa duração”), foi construído de tijolo e pode ser navegado ou remado. It had a single mast with a square sail. Tinha um único mastro com uma vela quadrangular. Smaller vessels of this type might have as few as 12 oars, with the larger having as many as 40. As embarcações menores deste tipo pode ter apenas 12 remos, e o maior ter tantos como 40. For over 400 years, down to the 17th century, the bìrlinn or long-fhada was the dominant vessel in the Hebrides. Por mais de 400 anos, até o século 17, o bìrlinn ou fhada longa era a embarcação dominante nas Hébridas
[2] Chrétien de Troyes (c. 1135 – c. 1191) foi um poeta e trovador francês do final do século XII. Foi um dos primeiros autores de romances de cavalaria, sendo também considerado o primeiro grande novelista em língua francesa. Suas obras inspiraram a literatura em toda a Europa Ocidental durante a Idade Média. Sua obra é a primeira a mencionar temas tão conhecidos hoje como a busca do Santo Graal e o amor entre Lancelote e a rainha Genebra. A obra de Chrétien inclui cinco grandes poemas em versos octasilábicos. Destes, quatro estão completos: Erec e Enida (c. 1170), Cligès (c. 1176), Ivain, o Cavaleiro do Leão e Lancelote, o Cavaleiro da Carreta, os dois últimos escritos simultaneamente entre 1178 e 1181.
[3] Meleagant (também grafado Malagant ou Maleagant) é um vilão da lenda arthuriana. Originalmente um cavaleiro da Távola Redonda filho do rei Bagdemagus de Gorre, sua reivindicação à fama decorre de ter sido o seqüestrador de Guinevere. Sua primeira aparição ocorre em Lancelote, o Cavaleiro da Carreta por Chrétien de Troyes, onde leva Guinevere para seu castelo indevassável. A rainha é resgatada por Lancelote e Gawain; esta também é a primeira aparição de Lancelote na lenda arthuriana. Meleagant supostamente teria sido criado com base em Melwas, vilão das primeiras histórias galesas, o qual captura Guinevere na Vida de Gildas. Nesta obra, o rei Melwas captura a rainha e a leva para sua fortaleza em Glastonbury. Arthur a localiza após um ano de buscas e se prepara para atacar o castelo, mas Gildas negocia seu retorno em segurança.
[4] Casaco medieval que se colocava sobre a armadura
[5] Que segue, que acompanha; partidário; sectário, seguidor. S.m. Membro de um bando ou partido; prosélito, assecla.
[6] Maça de guerra:
[7] Machado de guerra:
[8] São Columba (7 de Dezembro de 521 a 9 de Junho de 597) também conhecido como Columba de Iona, ou, em Gaélico, Colm Cille ou Columcille (“pomba da Igreja”). Foi a grande figura missionária da Escócia. Monge irlandês (gaélico), reintroduziu o Cristianismo entre os Pictos medievais. É dito como sendo o primeiro a ter avistado Nessie, o monstro do lago Ness.
[9] Marzipã, marzipan ou maçapão é um doce de origem árabe, preparado a partir de uma pasta feita de amêndoas moídas, açúcar e claras de ovos, que pode ser moldada em praticamente qualquer formato. Também podem ser adicionadas essências.
[10] Clàrsach ou Cláirseach (dependendo irlandês gaélico ou gaélico escocês grafias), é o gaélico palavra genérica para “uma harpa , como derivado do irlandês médio . In English , the word is used to refer specifically to a variety of small Irish and Scottish harps. Em Inglês, a palavra é usada para se referir especificamente a uma variedade de pequenas e gaitas escocesas irlandês.
[11] “é um contador de histórias tradicional irlandesa. Grafias Alternatate incluem seanachaí, senachaí senachie e Shanachie. A palavra é uma forma latinizada do seanachaidh língua irlandesa ou seanchuidh. Vem da palavra irlandesa “seanachas” ou “seanchus” significado “histórico” ou “folclore”.
[12] Cuirm era uma espécie de cerveja fabricada pela Gael . It was a powerful, intoxicating liquor made from barley , and being of course used at all feasts, the word cuirm came ultimately to mean a feast itself. Era inebriante, feita de licor poderoso da cevada , e sendo, obviamente, utilizado em todas as festas, a cuirm palavra veio a significar em última análise, uma festa em si. It is supposed by some to have been the same as whisky , but the process of brewing being so much easier and cheaper than distilling , it was more probably a strong kind of beer. Supõe-se por alguns de ter sido o mesmo que o uísque mas o processo de fabricação de cerveja é muito mais fácil e mais barato do que a destilação.
[13] Vestido com abotoamento frontal e nas mangas
[14] A tradução correta para Gall-Ghàidheil ou qualquer uma das variantes de grafia é “Foreign Gaels” e não é utilizado especificamente para se referir aos estrangeiros nórdicos. It is a general term to describe a particular ethnic grouping of foreigners of which the Norse formed part. É um termo geral para descrever um grupo étnico específico de estrangeiros de que os nórdicos faziam parte. This term is subject to a large range of variations depending on chronological and geographical differences in the Gaelic language , ie Gall Gaidel , Gall Gaidhel , Gall Gaidheal , Gall Gaedil , Gall Gaedhil , Gall Gaedhel , Gall Goidel , etc. The modern term in Irish however, is Gall-Ghaeil , while the Scottish Gaelic is Gall-Ghàidheil . [ 1 ] Este termo está sujeito a uma grande gama de variações dependendo cronológica e geográfica diferenças na língua gaélica. O termo moderno em irlandês no entanto, é Gall-Ghaeil, enquanto o gaélico escocês é Gall-Ghàidheil.
[15] Whisky em gaélico escocês.
[16] Colchão fino de palha.
[17] Banshee é um ente fantástico da mitologia celta (Irlanda) que é conhecida como Bean Nighe na mitologia escocesa. As Banshee provêm da família das fadas, e é a forma mais obscura delas. Quando alguém avistava uma Banshee sabia mal seu fim estava próximo: os dias restantes de sua vida podiam ser contados pelos gritos da Banshee: cada grito era um dia de vida e, se apenas um grito fosse ouvido, naquela mesma noite estaria morto.
[18] Forte em gaélico
[19] Yule é a festa sagrada mais importante do ano teutônico. Começa em 20 de dezembro e dura doze dias, sendo o décimo segundo o primeiro dia do ano.
[20] Bardo dos habitantes das Terras Altas da Escócia, responsável por preservar e repetir as tradições das tribos.
[21] Narrativa medieval sobre mitos gaélicos
[22] Waternish é uma península de uns doze quilômetros de comprimento na ilha de Skye.
[23] Warwolf (Lobo de Guerra) considera-se a maior catapulta da história. Construiu-se na Escócia por ordem do rei Eduardo da Inglaterra, durante o assédio do castelo de Stirling, durante as guerras pela independência escocesa.
[24] Muro cercado defensivo característico dos castelos escoceses durante a Idade Média.
[25] Os brogues eram sapatos de solados planos de um couro muito flexível.
[26] Torre fortificada de duplas paredes e circular própria da Escócia.
[27] Sucessor; segundo ao mando entre as dinastias reais gaélicas.
[28] adj. || (tipogr.) diz-se do formato que tem a folha de impressão apenas dobrada em duas: Formato, volume infólio. , s. m. livro ou volume infólio: F. lat. In… +folium (folha).
[29] O Wyvern ou Guiver (também conhecido como wyverns, na sua grafia Inglês, ou drakontas - e às vezes até chamado por alguns corredores de vento) são criaturas lendárias pertencentes à mitologia medieval , em forma de grandes répteis alados da família de dragões nível inferior, mas são capazes de lançar feitiços.
[30] Leão rampante: firmado em suas patas traseiras. Em posição de ataque.

Capítulo 21

Era a última hora da tarde quando Tor retornou ao castelo. Embora tivesse desejado permanecer junto ao leito de sua esposa doente, assim que lhe asseguraram que se encontrava bem tinha ido ocupar-se de assuntos que não admitiam mais demora.

Que ele recordasse, era a primeira vez que se sentia contrariado ante a chamada do dever. Mas, além de tentar descobrir a um possível espião, tinha recebido uma mensagem inquietante de MacDonald no que lhe exigia que tomasse medidas. Embora aquilo certamente prejudicasse ao equilíbrio da equipe que tanto esforço havia tido alcançar, era inevitável.

Além disso, se ficava nesse aposento um minuto mais, corria o risco de esquecer-se de quão doente esteve Christina e lhe fazer sentir em suas próprias carnes o medo que ele tinha passado por sua culpa.

Desejava apagar para sempre de sua mente o momento em que ela se desabou no chão. Por um angustiante instante, tinha acreditado que estivesse morta. Não tinha recuperado o fôlego até que tinha notado o pulso acelerado sob seus dedos e a respiração tênue, mas constante contra sua bochecha. Sua sensação de pânico diminuiu um pouco mais quando a curandeira a examinou e comunicou a Tor que somente era um pouco de febre.

Somente. Não havia «somente» quando se tratava de sua esposa. Furioso pelo engano da anciã, aterrorizou-a ameaçando reduzir na metade os anos que ficavam, que, por certo não eram muitos.

Tor nunca havia se sentido assim. Christina despertava nele um forte instinto protetor que não sabia que tinha. Como seu marido, era seu dever mantê-la a salvo, mas o que sentia ia mais à frente do dever.

Sempre tinha sido capaz de deixar os sentimentos a um lado e fechar sua mente como uma armadilha de aço. Mas com a Christina não ficava tão simples. Havia algo nela que lhe tocava a fibra sensível, que lhe chegava muito fundo. Era delicada, amável e generosa, possuía uma mente ágil, um entusiasmo e uma alegria de viver contagiosos, mas também uma profundidade e uma têmpera maiores do que ele tinha pensado em princípio. Encarava-lhe, desafiava-o… e se preocupava com ele.

Era um remanso de doçura para um homem que somente tinha conhecido o conflito. E, por mais que se esforçasse Tor não podia manter distância.

Subiu a escada pesadamente e, de forma maquinal, observou a zona. Os guardas estavam em seus postos ao longo dos parapeitos de pedra e no seteiro - uma pequena obra em forma de caixa encostada à muralha do castelo— que sobressaía por cima das portas. Um punhado de mulheres extraía água do poço. Os criados tiravam bandejas e pratos do salão, e Christina estava…

Caiu-lhe a alma aos pés quando fixou o olhar na figura que caminhava entre as almenas. Ficou furioso, uma sensação a qual começava a acostumar-se. Que demônios fazia ela ali fora? Devia estar descansando, não perambulando por aí, exposta ao ar frio do exterior e ainda por cima com o cabelo úmido, Por Deus santo. Acaso não sabia que podia agarrar um resfriado?

Ela se voltou para ele e o saudou com um gesto. Baixou a mão devagar quando Tor se aproximou.

Tinha visto a expressão de seu rosto. Mordendo o lábio, retrocedeu uns passos, mas seu olhar apaziguador não serviu absolutamente para nada.

—Retornaste - disse em um tom exageradamente alegre—. Não te vi vir para aqui.

Sem abrir a boca nem diminuir o passo, ele se equilibrou para ela e a levantou.

Christina soltou um grito afogado de surpresa, mas ele manteve o olhar à frente, pois não se atrevia a olhá-la. Nesses momentos, seu controle sobre si mesmo pendia de um fio. Sentia um ardor no peito.

—Está exagerando-disse ela com suavidade, para aplacar a uma besta raivosa—. Encontro-me bem.

—Não fale-grunhiu ele com os dentes apertados e a ira a flor de pele—. Não fale.

Com um profundo suspiro de resignação, jogou os braços ao seu pescoço e apoiou a bochecha no peito de Tor. Uma enorme onda de calidez abriu passo através da raiva. Invadiu-o uma incrível sensação de… ternura. Que diabos estava lhe passando?

Não sabia e lhe dava igual, de modo que a atraiu para si um pouco mais.

O silêncio se impôs no grande salão quando ele entrou com ela em braços e se dirigiu ao corredor. Era consciente dos olhares de curiosidade que atraía, mas lhe importavam um nada. Se aos pressente deu a impressão de que seu chefe tinha perdido a cabeça, certamente tinham razão.

minutos depois, chegou ao quarto de Christina. Fechou a porta de uma patada e ficou ali de pé durante um momento, com uma estranha relutância a depositá-la sobre a cama. Finalmente o fez e se sentou a seu lado.

Pouco a pouco, notou que relaxava o corpo. Empurrou-lhe o queixo para cima com sua diminuta mão para obrigá-lo a olhá-la aos olhos.

—Sinto muito. Não era minha intenção te dar motivo de preocupação.

—Tem o cabelo molhado - disse ele, como se assim explicasse algo.

—tomei um banho.

—Poderia te resfriar.

Ela teve o descaramento de deixar que lhe notasse que estava reprimindo um sorriso.

—Isso não é mais que uma tolice própria de babás. Saí muitas vezes com o cabelo molhado e nunca adoeci por isso. Somente foi uma ligeira febre; estou bem, de verdade. Morag diz que já não tenho que guardar repouso.

Tor esticou a mandíbula.

—O que saberá Morag de uma pequenina como você? É tão robusta e teimosa como uma mula velha das Highlands.

desta vez ela sorriu abertamente.

—Pode ser que eu não seja tão alta como vós, mas tenho uma compleição forte. —escureceu o rosto—. Embora em alguma ocasião tenha desejado não tê-la.

Tor admirou-se esse comentário. Então lhe veio algo à memória.

—Contou-me que sua irmã esteve doente quando pequenas.

Ela assentiu.

—Beatrix sempre foi uma menina doentia. Eu quase nunca me punha má. Parecia-me tão injusto… Freqüentemente desejava poder ser eu quem caísse doente em lugar dela.

—Não é assim como funcionam as coisas - repôs ele com delicadeza—. Não devemos nos sentir culpados pelos dons que recebemos ao nascer-acrescentou sem pensar.

Ela inclinou a cabeça e lhe escrutinou o rosto.

—Você se sente culpado por ser o gêmeo mais velho.

De forma instintiva, encerrou-se em si mesmo e apagou toda expressão de seu semblante. Entretanto, o ligeiro olhar de recriminação que lhe dirigiu Christina lhe fez recordar o acordo ao que tinham chegado. Respirou fundo, perguntando-se em que diabos estivera pensando.

—Talvez um pouco quando eramos meninos. Parecia-me injusto que me tocasse ser chefe por uma diferença de minutos. Mas aprendi a aceitar que a vida nunca é justa e que devemos interpretar o papel que nos corresponde.

Ela ergueu o olhar para ele com um amplo sorriso nos lábios.

—Bom, não foi tão difícil, verdade?

Tor replicou entre dentes que era como se lhe cravassem agulhas candentes sob as unhas, mas isso a fez rir.

—Logo estará tagarelando sem parar como o pequeno Iain.

Ele pôs os olhos em branco.

—Deus não o queira. Esse moleque nunca fecha o bico.

trocaram um olhar de divertida cumplicidade que em seguida se transformou em outra coisa, em algo tórrido e selvagem que alagava seus sentidos.

Ele era plenamente consciente da situação em que se encontravam. A cama, as pernas tocando-se, o tênue aroma floral do sabão na pele recém lavada dele, a careta sensual em sua boca luxuriosa…

Sentiu um calor repentino na virilha. O desejo se apoderou dele com uma força irrefreável. Apressava-o. Atraía-o para ela. Fazia que lhe custasse recordar que Christina necessitava repouso.

O estranho torvelinho de emoções dos últimos dias ainda estava muito recente. Ele não podia pensar em outra coisa que em afundar-se nela para fazê-las desaparecer.

Inclinou-se para sua esposa. Tinha a boca a somente um palmo da sua. Ouviu que lhe agitava a respiração. Os lábios de Christina se abriram, incitantes.

Tor quase podia perceber seu sabor…

«Maldição. Controla-te.» separou-se dela, obrigando-se a ter presente que ainda estava muito fraca.

—Descansa um pouco. Depois passarei para ver como te encontra.

Ela fez carinha de sapeca. Seus olhos negros lhe esquadrinharam o rosto.

—Acaso não quer…? —Então baixou o olhar, e o sorriso pícaro que lhe curvou a boca fez que a Tor lhe arrepiasse o pêlo da nuca—. Já vejo que sim que quer - disse ela com voz áspera, lhe pondo a mão sobre a coxa. O músculo se esticou por reflexo. O contato daquela pequena palma queimava ao Tor como um ferro incandescente através do linho de seu leine, a escassos centímetros do lugar onde ele ansiava senti-la—. Por favor, fica - sussurrou Christina.

Sua mão se deslizou pela coxa dele, aproximando-se. A Tor lhe acelerou o pulso. Quase podia senti-la acariciando-o, estirando com movimentos largos e enérgicos de sua mão minúscula e delicada. Apertou os dentes, armando-se de valor para resistir a seu contato.

Estava a ponto de negar quando ela acrescentou:

—Necessito-te.

Nesse simples rogo, ele ouviu o eco dos medos que o tinham afligido nos últimos dias. Seus olhos se encontraram. Viu o rubor rosado nas bochechas de Christina, um rubor saudável.

—Não quero te fazer dano — disse com brutalidade.

O olhar dela se suavizou com um brilho de emoção que lhe encolheu o coração.

—Não vais fazer me dano.

Roçou-lhe o membro com os nódulos e ele soltou um grunhido, fechando os olhos enquanto uma ardente onda de desejo o percorria.

Agarrou-lhe a mão para evitar que seus dedos se fechassem em torno dele, embora nesse momento não houvesse nada no mundo que desejasse mais.

—me prometa que se começar a te sentir mal, avisará-me.

O sorriso travesso apareceu de novo ao rosto de Christina.

—Temo que tenho toda a intenção de me sentir mal, muito, muito mal. —inclinou-se para ele e apertou a boca contra sua mandíbula, justo ao lado da orelha—. E totalmente satisfeita.

Tor tinha chegado ao limite de sua boa vontade. Soltando-lhe o pulso, voltou a cabeça para aprisionar os lábios entre os seus e lhe escapou um gemido quando a mão dela o rodeou por fim. Uma sensação de alívio o alagou.

Deus, adorava beijar sua dama. Seus lábios eram muito suaves e tinham sabor de mel morno. Deslizou a língua pelo interior de sua boca em longas e lânguidas lambidas, tomando seu tempo para saborear e explorar. Sua sede dela era insaciável, e se entregou ao simples prazer de beijá-la que durante tanto tempo se privou.

Os ofegos entrecortados de Christina o excitavam ainda mais, ao igual ao roce brincalhão de sua mão. A pressão do linho o estava matando. Nada devia interpor-se entre eles.

Afastou-se de repente, interrompendo o beijo. O miado de recriminação que ela emitiu o fez sorrir. Parecia uma gatinha a quem tinham tirado sua terrina de leite. Tor ficou de pé. Ela abriu a boca para protestar, pois acreditava que ele pretendia partir, mas se deteve quando viu que abria o broche que segurava o brat ao pescoço.

Longe de dissimular sua admiração quando ele se despojou do objeto, devorou-o com os olhos, passeando o olhar por seu peito, seu abdômen e a extensão de seu longo e largo membro. O desejo manifesto em seu olhar minava a concentração de Tor. Quando Christina lambeu os lábios de forma inconsciente, por pouco não lhe dobraram os joelhos.

Voltou-se ligeiramente, e ela contemplou seu flanco. As sobrancelhas lhe juntaram.

—O que é essa marca?

Como não estava acostumado a que ninguém lhe examinasse o traseiro, esqueceu-se disso.

—Uma tatuagem azul feita com glasto. Fizeram-me isso quando nasci.

Ela assentiu.

—Tinha ouvido falar deles, mas nunca tinha visto um. É uma tradição em seu clã?

Interessante ideia, pensou ele.

—Não, era para me identificar como o primogênito. Não se pode eliminar. —Sorriu - Suponho que pensaram que era mais difícil que me cerceassem o traseiro a que me cortassem um braço ou uma perna.

Ela fez uma careta.

—Deixa-me ver?

Ele se aproximou, e os músculos se contraíram quando sentiu a suave ponta do dedo de Christina seguir o risco da tatuagem.

—Mor - disse. E a seguir traduziu—: Grande. —Um sorriso pícaro lhe desenhou nos lábios—. Muito apropriado.

—Garota má - a repreendeu Tor. Ela sabia perfeitamente que mor era um apelativo com que se estava acostumado a designar mais velho, do mesmo modo que og designava ao mais novo.

—Eu gosto do desenho.

—É irlandês - disse ele, rígido. Sentia como se seu membro estivesse a ponto de explodir por causa daquela exploração inocente.

—Doeu-te?

—Não que eu recorde. —Que introduziram agulhas quentes sob a pele não era a metade de doloroso do que estava fazendo nesse instante.

Tentando dominar seu desejo, sentou-se na borda da cama e a fez girar de modo que ficasse de pé frente a ele. Agora era sua vez de explorar. Ajudou-a com os broches e os laços até um ponto em que ela pudesse seguir por si mesmo.

—te dispa para mim, Tina - lhe ordenou—. Devagar.

As bochechas se tingiram de vermelho, mas fez o que pedia. Despiu-se, sustentando o olhar de Tor em todo momento.

Ele se acalorava cada vez mais à medida que a roupa caía ao chão: a capa, a túnica, as sapatilhas, as meias. Para quando chegou ao vestido, saltava à vista que já era toda uma perita. Pouco a pouco, o levantou por cima dos joelhos, as coxas… Deteve-se justo antes de revelar o doce centro de sua feminilidade.

Os músculos de Tor se esticaram sob sua pele excessivamente tirante, e, respirando com força, fixou na Christina seu olhar ardente. Ela o provocava e incitava, até que ele soltou um grunhido de impaciência. Justo quando ele se dispunha a lhe arrancar o maldito objeto, ela ergueu a barra até o ventre. Tor aspirou bruscamente, reprimindo o impulso de estender o braço para tocá-la, pois sabia que estaria quente e úmida de paixão.

Ela levantou o vestido mais e mais até que Tor espiou a delicada curva inferior de seus peitos.

Christina se deteve e ele conteve o fôlego até que lhe mostrou os formosos e turgentes Montes de carne coroados por mamilos muito duros e erguidos.

Tirou o vestido por cima da cabeça, atirou-o ao chão e ficou de pé ante ele, total e belamente nua. Os últimos raios de sol penetravam pela única janela, banhando-a em um resplendor quente e sensual.

Era maravilhosa. Um pequeno, compacto e delicioso pacote de feminilidade. Longas ondas de cabelo negro e sedoso lhe caíam sobre os ombros. Pernas torneadas, quadris curvilíneos, uma cintura estreita e seios grandes e empinados que convidavam a afundar o rosto entre eles e chorar de prazer, todo isso envolto na pele mais impecável, cremosa e suave que ele jamais vira ou tocara.

—Vêm aqui — ordenou ele, sem reconhecer sua própria voz, rouca e carregada de uma intensidade que nunca tinha ouvido antes.

Ela, obedientemente, aproximou-se até ficar diante dele. Tor sabia que se sentia envergonhada, mas não teve contemplações. Cravou nela os olhos com dureza.

—Antes tenho que me assegurar de que esteja bem.

Ela o olhou, vacilante.

—Seriamente?

Tor assentiu.

—Terá que te deitar para que examine… —Incapaz de resistir a tentação um segundo mais, deslizou a mão sobre a aveludada curva de seu quadril—. Cada palmo de seu corpo.

Ela arregalou os olhos antes de avivar-se, ansiosa.

Estendeu-se no leito em um esbanjamento de sensualidade para o olhar.

Tor se colocou em cima dela, com os joelhos em cada lado para poder mover-se livremente acima e abaixo. Começou pela boca, roçando os lábios com os seus, e percorreu a mandíbula até a orelha com movimentos rápidos da língua. Beijou-lhe o pescoço e afundou o rosto na sedosa suavidade de seu cabelo, que ainda estava úmido. As mechas espessas e escuras despediam um intenso aroma de lavanda.

Christina se retorceu debaixo de Tor, que ansiava apertar sua pele ardente contra a sua, sentir o delicioso estremecimento a seu contato. Ainda não. Como um penitente, torturava a si mesmo. Ia fazer lentamente e saborear cada instante.

Continuou examinando-a, explorando cada polegada daquela pele lisa como a de um bebê com a boca e a língua: o pescoço, os braços, o pulso e… Seus incríveis seios.

Entreteve-se ali um momento, lambendo e chupando no mais profundo da boca, fazendo girar a ponta ereta entre os dentes e a língua até que ela arqueou as costas e soltou um grito de desespero.

Deixando-a ofegante, deslizou a boca pela suave planície de seu ventre até os quadris, e dali à parte interior de suas pernas. Seu aroma o fazia enlouquecer; despertava todos seus instintos primários.

Ela tremia presa de um desejo que nem sequer sabia que tinha. Mas lhe ensinaria.

O membro inchou ainda mais.

Separou-lhe as pernas a beijos e rodeou os ombros com elas. Seu rosto estava a somente uns poucos centímetros.

Ouviu o repentino grito afogado de Christina quando ela compreendeu o que pretendia. Instintivamente, tentou fechar as pernas, mas somente conseguiu atraí-lo mais para si.

Tor riscou círculos com a língua pela parte interior das coxas até que o corpo de Christina se relaxou de novo. Ato seguido a roçou com o nariz de forma brincalhona e exalou seu fôlego sobre sua umidade até que ela ficou trêmula.

Já se tinha castigado o bastante. Não podia esperar mais.

—me olhe, Tina - lhe indicou, obrigando-a a dirigir o olhar para seus olhos—. Quero que me olhe enquanto te provo.

Ela emitiu um ofego ansioso, tendo deixado muito atrás as vontades de protestar. O corpo lhe tremia, faminto dele. Sustentando-lhe o olhar, percorreu-a com a língua, com o tato delicado de uma pluma. Christina sofreu um espasmo ao senti-lo, mas ele a segurou com firmeza pelo traseiro.

—Tem um sabor delicioso, minha doce moça. —Lambeu-a de novo, esta vez com mais força, deixando que notasse totalmente o contato de sua língua—. Como a nata mais deliciosa. Vou te lamber inteira.

*

Christina se sentia como se tivesse morrido e tivesse ido ao céu da luxúria. Tor quase lhe tinha feito perder a razão ao beijá-la por todo o corpo, mas quando ela tinha baixado o olhar para ver sua cabeleira dourada entre suas pernas e tinha caido na conta do que ia fazer lhe…

O pulso lhe tinha disparado com espera erótica; maravilhava-a que ele queria beijá-la em sua parte mais íntima. Paralisaram-lhe todos os músculos. Ela permanecia à espera do que ia ocorrer, intuindo que seria algo novidadeiro e fantástico. Não podia nem imaginá-lo.

A corrente de prazer que desatou o primeiro toque de sua língua lhe fez dar um salto. A segunda lhe provocou um calafrio.

OH, Deus.

Ela gemeu seu nome uma e outra vez incapaz de conter a força das intensas sensações desencadeadas por seu beijo perverso.

Tor a lambeu de novo, acariciando-a com a língua, descrevendo círculos, pinçando em seu interior com passadas largas e carinhosas até que ela acreditou que ia morrer de prazer.

Foi incrível. Não podia pensar mais que na boca e a língua de Tor, naquilo tão sensual que lhe estava fazendo.

A virilha começou a lhe palpitar mais depressa. Meneou os quadris contra a boca dele, desejando mais pressão, mais fricção.

E ele as deu. Levantou-a para si e apertou sua boca depravadamente talentosa contra ela.

Christina sentia o roce abrasivo de seu queixo enquanto Tor a devorava com seus beijos e sua língua voraz. Aquilo era muito.

Os espasmos se apropriaram dela, e estalou em lascas candentes de um êxtase abrasador. Mas, em vez de soltá-la, ele a agarrou contra si, recebendo seu prazer na boca.

Seu corpo ainda se convulsionava quando Tor a liberou. Olhou-a com os olhos entreabertos enquanto se estendia sobre Christina, estreitava-a contra seu corpo e se introduzia devagar nela. Sua pele, ainda sensível, notava uma leve dor com cada grosso lance.

Quando ele esteve dentro de tudo, não se moveu. Simplesmente a abraçou com mais ternura que nunca, aninhando-se contra o largo escudo de seu peito como se o mero contato fora suficiente.

Era.

Ela se derreteu contra ele, desfrutando da sensação de todos esses músculos que a rodeavam, de sua virilidade que a enchia.

E do coração dele, pulsando junto ao dele.

A emoção lhe oprimiu o peito. Era o momento mais emotivo de sua vida. Nunca tinha imaginado que pudesse sentir-se tão unida a alguém.

Permaneceram assim um longo momento, olhando-se nos olhos, em silêncio, salvo pelos sonoros batimentos do coração de seus corações, que palpitavam ao uníssono.

Então ele começou a mover-se. Devagar. Sem afastar o olhar de seus olhos, sujeitando-a com uma intensidade que fazia que o coração lhe golpeasse com força contra as costelas.

Empurrava e retrocedia com um vaivém longo e lânguido, como se dispor de todo o tempo do mundo. Como se eles fossem o mundo. Tor entrava e saía, detendo-se na parte mais profunda, e lhe arrancou um ofego de surpresa ao entrar ainda mais nela.

Pouco a pouco, começou a acelerar o ritmo, a penetrar com um pouco mais de ímpeto, a afundar-se um pouco mais. Pele com pele, seus corpos se deslizavam juntos de forma perfeitamente compassada.

Ela notou que as sensações se avivavam de novo, embora dessa vez fossem diferentes, menos violentas, mas mais intensas e poderosas. Não só se apoderaram de sua virilha, mas sim de todo seu ser.

Viu que o rosto de Tor se esticava, que apertava a mandíbula, que os músculos de seus ombros se inchavam. Tinha a pele quente e a fronte brilhante de suor.

Seus corpos se balançavam. Ele movia os quadris em círculos, com embates mais rápidos. Apertava-se contra ela até fazê-la resfolegar, até fazer que o coração lhe pulsasse a toda velocidade, e que as palpitações entre suas pernas se tornassem frenéticas.

Ele seguia lhe sustentando o olhar, e seus olhos de um azul cristalino destilavam uma emoção intensa que ela nunca tinha visto antes. Não era luxúria a não ser um pouco mais profundo, mais significativo. Ela não se atrevia a fazer-se ilusões.

—goze comigo, Tina - lhe disse ele grosseiramente.

e o fez. A respiração se entrecortou, as costas lhe arqueou, e seu prazer culminou, não com uma explosão violenta, a não ser em uma lenta rendição que começou muito dentro e se propagou para fora com uma fulgurante corrente de sensações.

E ele gozou com ela, deixando-se levar pela onda de seu clímax.

Nesse instante para Christina pareceu que seus sonhos estavam tão perto que quase podia tocá-los com a ponta dos dedos.

*

Um longo momento depois de que se apagassem os últimos ecos de seu clímax, Tor jazia na cama com Christina profundamente adormecida junto a ele. Estava-lhe custando enfocar o que acabava de ocorrer de uma perspectiva adequada.

Intenso. Esta palavra ficava muito pequena para descrevê-lo. Cataclísmico. Demolidor. Estas se aproximavam mais.

Não tinha idéia de que copular pudesse ser assim.

O peito ardia de ternura para a diminuta jovem feita um novelo a seu lado como um filhote. Depois do falecimento de seus pais e os longos anos que tinha convivido com a guerra e a morte, acreditava ter se protegido contra esse tipo de sentimentos. Seu autocontrole e sua falta de emoções eram o que o fazia destacar como chefe e como guerreiro, mas sentia que as capas de gelo se fundiam sob o calor do… amor de Christina.

Seu irmão estava no certo: ela o amava. Tor o notava nos olhos, no modo em que o tocava, em sua forma de beijá-lo.

E não podia negar que a moça lhe inspirava uma ternura especial, e isso o preocupava. Podia sentir algo por ela e mesmo assim antepor o bem de seu clã? Nunca antes tinha acreditado possível. Os sentimentos só complicavam as coisas, faziam-no mais vulnerável, e esse era um risco que nenhum guerreiro podia correr. Teve ocasião de comprová-lo quando MacDougall o tinha enfrentado e quando tinha visto Christina na aldeia. Passasse o que acontecesse, sabia que não podia permitir que sua debilidade por sua esposa interferisse em seu dever.

Ela, adormecida, emitiu um suave som de satisfação. Tor suspirou, apoiou a bochecha em sua cabeleira cálida e sedosa, e aspirou seu aroma doce e feminino. Uma sensação de complacência percorreu seus musculos esgotados. Ela era tão miúda, tão suave… Delicada e frágil. Evitar machucá-la seria toda uma provação, mas Tor jurou esforçar-se ao máximo por fazê-la feliz.


Capítulo 22


Christina estava recostada sobre o peito de Tor, com o infolio de pele sobre seu ventre nu e as pernas envoltas nos lençóis enrugados. O reluzente sol da manhã entrava em torrentes pela janela que tinha a portinha aberta, lhe proporcionando luz de sobra para ler.

Ou ao menos para tentar, pois seu irritante marido não deixava de interrompê-la. Quando chegou à parte em que Lancelot se rebaixava a montar em uma carreta para salvar a sua dama, ouviu o som inconfundível de uma gargalhada.

Baixou o livro e se voltou para lhe lançar um olhar sério.

—Se for danificar a história, não penso seguir lendo.

—Esses cavalheiros e seus ridículos códigos - disse com um desprezo indissimulado—. Parece-lhe o cúmulo da desonra viajar em uma carreta? —Sacudiu a cabeça—. Diabos, eu me arrastaria por um monte de esterco para te salvar.

A Christina tremeu as comissuras dos lábios. Custava-lhe seguir zangada quando o ouvia dizer coisas como aquela. Quem ia pensar que um monte de esterco poderia ser tão romântico?

Ergueu-se para lhe plantar um beijo rápido.

—Que terno.

—Terno? —escureceu o olhar—. Não tenho um cabelo de terno.

Para demonstrar atraiu-a sobre seu peito e a beijou de forma muito mais apaixonada. O livro caiu entre eles quando ela, aproveitando-se de sua posição e da considerável ereção de Tor, deu a volta em cima dele.

Com os joelhos a cada lado de seu corpo, fez que Tor a penetrasse, suspirando de agrado conforme ele a enchia. E como a enchia! Adorava senti-lo em seu interior, longo e grosso. Em efeito, tinha aprendido a apreciar seu tamanho e agora compreendia por que aquela criada a tinha prevenido desse modo no Finlaggan.

Com um gemido, lhe agarrou os seios com suas mãos grandes e ásperas, e começou a apertar e beliscar os mamilos entre os dedos enquanto ela o montava. Começou devagar e foi movendo-se mais depressa até encontrar seu ritmo.

Arqueou as costas sobre as mãos dele, deixando cair à cabeça para trás ao tempo que se erguia, levantando o torso tudo que pôde antes de inclinar-se de novo sobre ele, descrevendo círculos sensuais com os quadris.

Seus corpos se moviam ao uníssono com toda facilidade e fluidez. Na cama, não ficava nada a se interpor entre eles: nem acanhamento nem desconforto. Tinham alcançado a união perfeita de dois amantes.

Quando ela estava a ponto de culminar, ele baixou a mão e acariciou esse ponto deliciosamente sensível com o dedo, intensificando o prazer de Christina justo como sabia que gostava.

Ela se estremeceu, gritando, sacudida pelos espasmos. Ainda sentia um comichão quando ele a agarrou pelos quadris e se afundou no mais profundo dela, chegando a sua vez ao clímax.

Com delicadeza, sujeitou-lhe o rosto entre as mãos e a beijou de novo.

—Pareceu-te bastante terno?

—Sim. Prefiro mil vezes montar sobre ti que sobre uma carreta. —Soltou uma risadinha e, depois de aninhar-se contra ele, tirou o livro dentre os lençóis.

—E agora, quer que acabe o capítulo ou não? —perguntou lhe dirigindo um olhar severo, como se fosse um menino levado.

Tor torceu os lábios.

—Já que estamos não vejo por que não.

Ela não se deixou enganar por sua fingida indiferença. face ao evidente desdém de Tor para o código cavalheiresco, Christina sabia que estava gostando do relato.

Conseguiu ler o resto do capítulo sem mais interrupções, mas quando terminou, ele se levantou da cama (a contra gosto, pareceu a ela) para vestir-se.

Christina o observou sem dissimular seu interesse. Embora levasse duas semanas despertando em seus braços, não tinha perdido nem um ápice de seu entusiasmo. Depois daquela primeira vez, Tor tinha dormido a seu lado todas as noites. Embora o Natal tivesse sido há uma semana, cada dia era como um presente para ela. Duvidava que chegasse a cansar-se jamais de despertar junto a ele ou de contemplar seu magnífico corpo enquanto fazia suas abluções matutinas, consciente de que apenas alguns minutos antes estivera entre seus braços.

Seu marido tinha suavizado sua atitude com ela; disso não cabia a menor duvida. Já não se mostrava tão distante e indiferente, e se esforçava por abrir-se mais a ela, como tinha prometido, em que pese que não era fácil. Dada a brutalidade que tinha imperado em sua vida e as circunstâncias em que tinham morrido seus pais, não lhe custava entender por que.

Despertar em seus braços todas as manhãs tinha proporcionado algo da intimidade que desejava, mas ainda faltava algo. Seguia havendo uma barreira entre eles. Era como se Tor levasse duas vidas: uma com ela e outra diferente com todos outros.

Sabia tão pouco de suas atividades como antes. Mesmo assim, fixou-se no propósito de ser paciente. Tinha que lhe dar uma oportunidade.

Tor se vestiu a toda pressa; lavou os dentes enxaguando-se com vinho branco e esfregando com um tecido fino e uma massa de hortelã e sal; passou um pente pelo cabelo, Passou a água da bacia no rosto e se secou com o tecido adequado para isso. Entretanto, a água fria não levou os sinais de inquietação gravadas em seu semblante.

Estava aflito por algo. Como Christina o conhecia melhor que antes, tinha aprendido a decifrar seus gestos quase imperceptíveis: uma ligeira tensão da boca, a ruga na testa e um olhar distante.

—O que ocorre? —perguntou-lhe—. O que te preocupa?

Eram os rumores das crescentes desavenças entre Bruce e Comyn, a crescente ameaça de uma guerra entre Escócia e Inglaterra? Agora que sabia que ele tinha batalhado por ressuscitar seu clã a partir das cinzas da destruição, compreendia suas razões para querer evitar a guerra e manter-se neutro.

Com um sorriso, ele sacudiu a cabeça, sinal de que não tinha a menor intenção de contar-lhe, Christina lutou por conter a onda de decepção que a invadiu, não só pela falta de confiança - ou porque ele se confiou a outros—, mas sim porque temia que a visse como um brinquedo frágil que necessitava que o protegessem e o tivessem entre algodões.

«É questão de tempo», recordou-se. E tinham toda uma vida juntos em frente.

—Só é um assunto que estive pensando. —voltou-se para olhá-la nos olhos—. É possível que passe fora o resto da semana.

desta vez ela não pôde evitar sentir-se desiludida, embora fizesse o possível por dissimulá-lo. Sabia que devia estar agradecida pelas semanas que tinham estado juntos, mas não lhe bastava isso. Tornou-se ambiciosa. Quanto mais tempo passava com ele, mais tempo desejava.

Não lhe perguntou aonde ia, pois não queria ficar com pior humor quando ele se negasse a dizer. Mas, de repente, lhe ocorreu uma possibilidade. Deus bendito, tinha chegado o dia que tanto temia, o dia em que ele zarparia para ir à guerra?

*

Ao Tor a perspicácia de Christina respeito a seu estado de ânimo já não lhe surpreendia embora lhe incomodasse ser tão transparente para ela. Era certo que algo lhe preocupava. Não podia seguir demorando com o que MacDonald tinha ordenado.

Por desgraça, ela também era transparente para ele, por isso Tor sabia que sua reticência a feria. O acordo que tão cuidadosamente tinham estabelecido estava vindo abaixo. Embora ela fingisse entender por que ele não podia lhe explicar o que fazia; quanto mais se estreitavam seus laços, maior era o abismo que os separava.

O que mais surpreendia ao Tor era que em realidade tinha vontades de contar. Tinha guardado tudo dentro de si durante anos. Ao afrouxar a tampa, anos de pressão acumulada ameaçavam estalando. Certamente tinha cometido um engano ao fazer uma exceção, embora não podia negar que falar das coisas ajudava a limpar a cabeça.

Ela colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e encolheu as pernas, envolvendo-as joelhos na manta.

—averiguaste quem foi o responsável pelo ataque? —perguntou em um tom inexpressivo.

Tor não se deixou enganar por sua atitude despreocupada; sabia o que encerrava essa pergunta. Embora ela já não o interrogasse sobre o lugar aonde ia, isso não significava que não lhe interessasse saber. Seus lábios se curvaram para baixo com dureza.

—Não.

MacSorley e MacRuairi tinham retornado pouco depois de partir, com uma tripulação em extremo insuficiente, à caça de quatro navios de guerra que tinham seguido de longe até que uma das galeras ficou atrasada. Tinham-na assaltado com facilidade, mas nem sequer a habilidade considerável do MacRuairi para extrair informação lhe tinha revelado o nome da pessoa para a que trabalhavam.

—Ainda não - precisou—, mas o averiguarei. Assim que encontre ao infiltrado… —interrompeu-se, sentindo-se como se lhe tivessem atirado uma machadada. Nunca na vida tinha metido a pata dessa maneira. Talvez Christina não se desse conta. Sim, claro…

Ela afogou um grito.

—Acredita que há um espião?

—Parece provável - respondeu ele devagar, furioso consigo mesmo—. Todos os ataques se produziram quando eu estava fora, ou quando se supunha que estava. É muita casualidade para atribuí-la ao azar.

—Sabe quem é o espião?

—Não, ainda não. Poderia ser qualquer. Qualquer - repetiu—. Quando saio do castelo, não o faço precisamente em segredo, mas meus homens estão alerta a algo fora do comum ocorra, e estão tomando precauções. —Examinavam todas as mensagens e levavam a ele tudo o que consideravam suspeito. Vigiavam aos guardas (em especial aos que tinham sido recrutados recentemente) e ao pessoal do castelo, incluídos o tabelião e ao Rhuairi. Entretanto, depois de ver como o clérigo tinha protegido a Christina, suas suspeitas iniciais lhe pareceram infundadas.

Quase podia ler os pensamentos que se amontoavam na mente de Christina. Talvez o lapso tivesse sido o melhor que podia acontecer, disse a si mesmo. Terei que caçar a cobra com toda cautela para que não escapasse, e podia resultar perigoso. Mais valia que ela estivesse em guarda.

—Só poucos de meus guardas de máxima confiança estão à corrente disto, Christina. Lembre-se que a situação é grave e potencialmente perigosa. Espero não ter me equivocado ao depositar minha confiança em ti.

Ela sacudiu a cabeça com veemência.

—É obvio que não. —Sorriu—. Obrigado por me contar isso. Inclinou a cabeça—. É por isso que te parte?

—Em parte. Meus homens estarão atentos se por acaso acontece algo incomum no castelo, embora duvide que essa gente tente nada tão pouco tempo depois do último ataque. Mas não quero que saia do castelo durante minha ausência. Não esqueça sua promessa. —Não era necessário lhe explicar que não devia misturar-se em seus assuntos.

—Mas vou me aborrecer - protestou ela.

Tor tentou não sorrir ao fixar-se em sua expressão de despeito.

—Acreditava que estava trabalhando em um estandarte novo para o salão.

Christina entrecerrou os olhos.

—Sabe perfeitamente que é um desastre. Sou uma negação com a agulha.

Ele soltou uma risadinha.

—Estou seguro de que encontrará alguma atividade em que ocupar seu tempo.

—Se não tivesse enviado a seu irmão e a sua mulher ao exílio, teria a alguém com quem conversar.

Aquele era um tema delicado. Christina não entendia que seu marido estivesse empenhado em castigar seu irmão…, embora em realidade não o estivesse. Não era de se admirar. Ela tinha muito bom coração e não estava acostumada a tomar as decisões difíceis às que Tor se enfrentava diariamente como chefe.

—Janet estará aqui.

Como havia um possível espião entre eles, Tor tinha chegado à conclusão de que era muito arriscado que ela seguisse indo e vindo do castelo ao broch. Os homens tinham que arrumar-se somente com a comida… e se queixavam disso.

Christina arqueou uma sobrancelha.

—Quer que trave amizade com sua amante?

—ex-amante -a corrigiu ele—, mas segue sendo uma amiga. Dê-lhe uma oportunidade, gostarás dela.

Ela fez um ruído abafado parecido a um bufo.

—Os homens não entendem nada. Duvido muito que queira ser amiga minha.

Embora Tor não tivesse a menor ideia de por que, não pretendia entender as complexidades da mente feminina.

Agachou-se para beijá-la com suavidade. O beijo foi mais longo do que ele queria, mas quando levantou a cabeça, viu que havia valido a pena. Os lábios vermelhos entreabertos e um pouco inchados, as pálpebras entreabertas, o olhar aturdido, as bochechas rosadas… Maldita seja, adorava o aspecto que tinha quando a beijava.

—Voltarei antes que te dê conta.

*

Christina tinha conseguido distrair Tor de seus problemas, mas não durante muito tempo. «Maldito Bruce. Dane-se MacDonald.» Detestava os enganos de todo tipo. Aqueles homens formavam uma equipe e mereciam saber a verdade. Para que uma guarda secreta como essa cumprisse seu encargo, a autoridade máxima em relação às decisões que se atinham ao grupo devia ficar ao cargo do líder da equipe. Se ele estivesse ao mando, diria a Bruce e ao MacDonald exatamente onde podiam meter-se suas «ordens». Mas em pouco menos de três semanas, MacSorley seria o líder e a decisão estaria em suas mãos. Entretanto, nem sequer o corpulento escandinavo sabia o que estava a ponto de acontecer.

Era a última prova da Perdição, que fora postergada por sua volta antes do tempo a Dunvegan.

Os homens se congregaram em torno dele enquanto explicava sua missão. Tinha levado mais de dois meses, mas Tor por fim tinha conseguido lhes fechar a boca.

—Não podem estar falando sério. —Seton foi o primeiro que teve a audácia de dizer o que outros pensavam.

O olhar que Tor lhe jogou parecia indicar justamente o contrário.

—Foi o desafio final para o Fianna do Finn MacCool.

—Mas isso não é mais que uma lenda - protestou MacGregor—. Ninguém poderia proteger-se de tantas lanças enterrado até a cintura e com somente um escudo para cobrir-se.

Tor sorriu.

—Não têm por que te preocupar. Vou modificar a prova do Finn. Poderão colocar o elmo e a cota de malha, e não lhe atirarão todas as lanças de uma vez.

Ouviu algumas gargalhadas. Ao que parece suas modificações não fora suficiente para os convencer.

—Pode fazer—atravessou Campbell—. Um guerreiro destro pode apanhar facilmente dez lanças ou mais. O mais importante é dominar o medo.

—A ti isso será fácil - repôs MacGregor—. Cresceram esquivando das lanças que lhe atiravam à cabeça. Todos vimos o que és capaz de fazer com elas.

Campbell olhou ao Tor aos olhos e assentiu em sinal de aprovação.

—Verão-me em ação - comentou.

Os homens dedicaram às horas seguintes a exercitar-se. Campbell lançava as lanças - o que agradeceram atrás de alguns erros deliberados— e logo, uma vez que agarraram o truque, passaram a treinar com uma lança que tinha a ponta de aço afiada envolta em um pedaço de couro. Por último, cada um deles se enfrentou ao exercício autêntico. Além de Seton, que recebeu um forte golpe no ombro, todos conseguiram apanhar ao menos dez lanças seguidas, e alguns deles umas quantas mais. Campbell estava no certo: quando se conseguia dominar o medo, não era tão difícil. E nenhum deles tinha medo de nada.

Tor escavou o buraco enquanto os homens se adestravam. Dado a provocação que tinha exposto, pensou que era o minimo que podia fazer. Com uma profundidade que chegava à cintura e um par de pés de diâmetro, o fosso era estreito, mas o bastante grande para que eles pudessem girar para os lados, embora com muita dificuldade.

MacSorley foi o primeiro em entrar enquanto os outros formavam um círculo ao redor dele, a uns vinte passos de distância.

Tirou todas as armas que levava presas com correias a seu volumoso peito, mas ia protegido com a cota, o elmo e o escudo.

Tor ergueu a mão para assinalar o começo.

—Se houver uma só gota de sangue, não valerá a prova.

MacSorley assentiu.

—Entendido.

—Preparado?

—Sim.

Tor fez um sinal ao Lamont, o homem situado a sua direita, e as lanças começaram a sair voando do perímetro do círculo. Um por um, esperando uns segundos entre um e outro, os homens as jogavam no alvo vivo no centro.

MacSorley encontrou seu ritmo em seguida, alternando entre apanhar as lanças e aparar os golpes com o escudo. Tor foi o último em atirar sua lança, que foi a que esteve mais perto de acertar no alvo, mas MacSorley a desviou no último instante com seu escudo. Como seu birlinn, a madeira forrada de pele tinha pintado no anverso uma águia pescadora de aspecto feroz.

Ao final, havia nove lanças no chão ao redor do MacSorley e uma cravada em seu escudo. Mas tinha conseguido, e assim que os outros viram que podia fazer, apressaram-se a seguir seu exemplo.

O último em baixar ao fosso foi Campbell. A tensão se dissipou com o triunfo de cada aspirante, e enquanto Campbell se preparava para seu turno, outros inclusive intercambiavam brincadeiras.

Tor cravou nele o olhar.

—Preparado?

Campbell assentiu com a expressão severa. Tor fez o sinal, e as lanças começaram a sair. Como se tratava do último homem, os outros guerreiros se acostumaram e os intervalos entre os lançamentos seguiam uma pauta ordenada.

Uma pauta que Tor rompeu.

Quando MacGregor, que estava a sua esquerda, soltou sua lança, Tor jogou a sua ao mesmo tempo.

Tal como tinham feito seus predecessores, Campbell tinha se adaptado a um ritmo. Apanhou com facilidade a lança do MacGregor mas não estava preparado para a de Tor. Sem tempo para colocar seu escudo em posição, inclinou-se a um lado no último momento, apenas o suficiente para evitar que a lança o alcançasse no peito. Entretanto, esta lhe roçou o braço antes de cravar-se no chão, alguns pés atrás dele.

Depois de uns instantes de atordoamento geral, Tor ouviu um suspiro de alívio coletivo a seu redor.

—Foi por um triz - disse MacGregor.

Por toda resposta, MacSorley sacudiu a cabeça com pesar.

Tor não disse nada. Como outros, estava contemplando como a manga da cota do Campbell se manchava de sangue.

Campbell fixou o olhar nele.

—Sinto muito, moço - disse Tor em voz baixa.

Campbell afastou o olhar e fez um gesto afirmativo. Conhecia as regras.

—Recolherei minhas coisas.

Sem acrescentar uma palavra, saiu do buraco ajudando-se com os braços e se encaminhou para a broch. Outros o olharam afastar-se com um silêncio cheio de estupefação.

Foi Seton quem se dirigiu primeiro ao Tor.

—Não posso acreditar que o deixem partir. Necessitamo-lo. Não há outro explorador como ele em toda Escócia… ou no resto do mundo, de fato.

—Não fez a prova —replicou Tor, embora não tinha por que dar explicações.

O rosto de Seton avermelhou de raiva.

—Porque vocês têm feito armadilha.

O estalo de silêncio que seguiu a estas palavras foi ensurdecedor. Os highlanders sabiam algo que aquele cavalheiro inglês ignorava.

—Se eu me regesse pelo código ao que estas referindo, estaria morto pelo que acabas de dizer.

Seton apertou os dentes; precaveu-se de seu engano.

—Na guerra não existem armadilhas, e se querem formar parte desta equipe, mais vale que coloquem isso na cabeça quanto antes. Este guarda tem que estar preparada para tudo, e Campbell confiou demais. Se nos confiarmos, morreremos todos.

MacSorley lhe dirigiu um olhar estranho, e Tor se deu conta de que tinha cometido um engano: ele não formava parte desse «nós».

—O capitão tem razão - disse MacGregor—. Todos nos confiamos. Campbell não deveria ser o único em pagar as conseqüências. Voltarei a me submeter à prova com ele.

Tor o olhou longamente, impressionado pelo profundo vínculo que se forjou entre aqueles dois membros de clãs que antes se enfrentavam. Embora discutissem como inimigos, atrás da retórica agressiva havia uma amizade. Amaldiçoou em seu foro interno o injusto da situação, mas seu tom ao falar não delatou seus pensamentos.

—Campbell teve sua oportunidade. Deveremos nos arrumar sem ele. Boyd e Lamont são exploradores excelentes; que eles ocupem seu lugar. —Percorreu com o olhar o círculo de homens, todos eles furiosos, para que sua mensagem ficasse bem claro—. Não há mais que falar. Tomei minha decisão.

Conscientes de que protestar seria inútil, os homens se dispersaram. Não gostavam da decisão mas a acatavam, com diferentes graus de indignação. Como era de esperar, MacGregor o evitou durante o resto do dia.

Campbell se despediu com solenidade e, quando chegou o momento, Tor o acompanhou em solitário à galera que o levaria de volta a terra firme.

—Levas tudo? —perguntou.

Campbell assentiu.

—Sinto muito, moço. Desejaria que as coisas não tivessem que ser assim.

O rosto do Campbell era uma máscara de pétrea resignação.

—Sim, capitão, compreendo-o.

—Como está o braço?

—Está bem. —Instintivamente, Campbell levou a mão à parte superior do braço, não o esquerdo, que tinha ferido pela lança, a não ser o direito, no que Tor lhe tinha tatuado em segredo um sinal a altas horas da noite anterior.

Embora outros não soubessem a verdade, Campbell era um deles.

—Se alguma vez estiveres em apuros…

Campbell moveu a cabeça afirmativamente.

—Sei o que devo fazer.

Tor o agarrou do braço e lhe deu um apertão firme.

—Bs roimh geill.

—Antes morrer que render-se — respondeu Campbell com ferocidade. Depois de jogar uma última olhada a broch, embarcou de um salto e se fez ao mar.

Tor o observou afastar-se.

«Agora há dez.»


Capítulo 23


Tor levava poucos dias fora quando Christina começou a sentir os efeitos de sua inquietação. Tal como suspeitava, lady Janet não interessava cercar uma amizade com ela. Mostrava-se cortês, mas Christina estava convencida de que os sentimentos que a outra mulher ainda albergava para Tor lhe impediam de ir mais à frente.

Christina não podia culpá-la por isso.

Como dispunha de tempo de sobra, havia-se aficionado a dar longas caminhadas pelo perímetro da muralha. Além de seus passeios matinais com o irmão John, agora saía a caminhar também depois do jantar.

Adorava erguer o olhar para o céu nas noites limpas, embora não fossem muito freqüentes durante o inverno na «ilha da Bruma». As estrelas pareciam tão próximas ali que quase tinha a sensação de que se estendia o braço poderia agarrar uma.

Aquela era uma dessas noites e, apesar de fazia mais frio que de costume - inclusive para janeiro—, ela permaneceu um momento entre as almenas, contemplando primeiro o firmamento e logo o mar. era fascinante e provocador ver as cintilantes ondas negras com cristas de espuma branca rompendo-se contra o escarpado rochoso.

Baixou o olhar para o embarcadouro e ficou imóvel. Percorreu-a um calafrio. O birlinn aterrorizante com o falcão gravado na proa estava atracado ao lado das outras embarcações.

De repente, veio-lhe à memória o dia que tinha visto o Rhuairi no mole. Cabia a possibilidade de que o senescal fosse o espião?

Suas suspeitas aumentaram quando o homem em quem pensava saiu a toda pressa do grande salão, cruzou o pátio e baixou a escada que conduzia ao molhe. Como Christina estava oculta nas sombras, o homem não reparou em sua presença. Ela se inclinou sobre a mureta, mas não alcançou ver o que ocorria debaixo. Um momento depois, não obstante, Rhuairi subiu correndo a escada e voltou sobre seus passos para o interior do salão.

para Christina o coração pulsava com força. Permaneceu aninhada na escuridão um momento mais, sem saber o que fazer. O que acabava de presenciar podia ser um ato totalmente inocente. Mas por que se comportou ele de um modo tão estranho naquele dia e tinha negado ter recebido uma mensagem?

Seu primeiro impulso foi segui-lo, mas recordou a advertência de Tor. Não queria que ela se envolvesse. Se Rhuairi fosse o espião, seria perigoso que a surpreendesse seguindo-o. Christina teria que aguardar que seu marido retornasse para lhe expor suas suspeitas.

Esperava que para então não fosse muito tarde.

*

Lady Christina não se precavera de que alguém a observava. O irmão John MacDougall, sobrinho e xará de John do Lorne, não podia saber de ciência certa o que estava pensando, mas tinha que correr o risco. Seu instinto de sobrevivência tinha prevalecido nos últimos dias e o tinha impulsionado a preparar-se para partir. Se queria averiguar o que trazia MacLeod entre as mãos, devia fazê-lo já, e o mensageiro secreto do senescal lhe tinha dado uma idéia.

Suspeitava fazia um tempo que ela sabia ler, e suas suspeitas se viram confirmadas quando percebeu que alguém tinha corrigido os livros. Não queria implicá-la nesse assunto, mas por outro lado, pensou, estava-lhe fazendo um favor. MacLeod não gostava. Essa besta selvagem e desumana não sabia apreciar a jóia que tinha por esposa. Entretanto, também saltava à vista que sua jovem esposa o idolatrava. Talvez aquilo a obrigaria a vê-lo como era na realidade.

Ou assim esperava.

Arrependia-se de ter permitido que seu tio o metesse nisso: a espionagem teria que ser posta nas mãos de quem tivesse estômago para o engano. Embora, na realidade, não tinha escolha. Igual MacLeod, seu tio não era um homem ao que convinha desafiar.

*

Transcorreram dois dias mais, e Tor não tinha retornado. Enquanto isso, as suspeitas de Christina a corroíam por dentro. No dia anterior, tinha entrado nos aposentos principais com o irmão John, e Rhuairi, sobressaltado, tinha juntado seus papéis e se retirado com um rubor de culpabilidade no rosto. O tabelião também se fixou na estranha conduta do senescal e tinha feito um comentário sobre o nervosismo crescente do Rhuairi.

Tendo bem presente a promessa que tinha feito a seu marido, Christina tinha respondido que não tinha notado nada. Detestava não poder confiar em seu amigo. Embora o irmão John fosse a última pessoa do mundo de quem suspeitaria, Tor tinha advertido que não confiasse em ninguém.

Pensou em mandar a seu marido uma nota, mas não tinha nenhuma prova. Além disso, não poderia enviar sem que Rhuairi se inteirasse. Como não tinha alternativa, aguardou… Até a tarde seguinte.

Como era seu costume depois do jantar, estava caminhando ao redor da muralha quando viu de novo ao Rhuairi sair apressadamente do grande salão. dessa vez, entretanto, em lugar de receber a um mensageiro, subiu a bordo de um birlinn que o esperava e zarpou de volta ao mar aberto, não para a aldeia.

Admirada, Christina se dispunha a entrar no castelo quando o irmão John, com o rosto avermelhado, e esteve a ponto de atropelá-la.

Ele se desculpou, com ar transtornado.

—Por ventura vistes ao senescal?

—Sim - assentiu ela—. Se foi há alguns minutos.

—Cáspita!

Christina sorriu ao comprovar que o irmão John se apropriou de sua expressão favorita.

—Ocorre algo?

Mostrou-lhe uma folha de pergaminho.

—Caiu isso de Rhuairi, e pela pressa que tinha, pareceu-me que talvez fosse algo importante. Mas esta noite devo ir à aldeia a ver o pai Patrick.

—Não sabem do que se trata?

Ele sacudiu a cabeça.

—Não é algo que eu tenha escrito.

A Christina lhe acelerou um pouco o pulso, e todos seus instintos ficaram alerta. Estendeu a mão.

—Não faz falta que postergues sua visita à aldeia - disse sem controlar de todo o tom agudo de sua voz—. Eu o entregarei ao Rhuairi quando voltar.

O tabelião titubeou.

—Estas segura? Provavelmente o necessitará assim que retorne, e talvez seja muito tarde.

—Não me importa - respondeu ela—. Não estou cansada.

—Espero que não se trate de nada grave, embora o certo é que Rhuairi parecia um pouco mais nervoso que de costume. —Um leve sorriso se desenhou nos lábios do jovem tabelião, e toda a vacilação que sentia se esfumou. Deu-lhe o pergaminho e acrescentou—: Por outra parte, tinha prometido ao pai Patrick, e suponho que isto estará em suas mãos.

Christina, que sabia a que se referia, alegrava-se de que ele não alcançasse a ver o rubor de culpabilidade que lhe tingia as bochechas. Como estivera esperando alguma indicação de Tor, ainda não tinha contado a ninguém que sabia ler. Conhecia o modo em que funcionava a mente de seu marido, por isso imaginava que ele considerava mais seguro guardar essa informação até que descobrisse ao espião.

—Pergunto-me o que acontece ao Rhuairi - disse o irmão John, como ausente—. Ultimamente tem uma atitude tão circunspeta…

—Estou segura de que não é nada importante - mentiu Christina, tentando não sentir-se culpada. Esperava que o irmão John a perdoasse, mas não podia arriscar-se a expressar suas suspeitas em voz alta.

—Obrigado, milady. E agora, se não se importar, devo partir.

—Veremo-nos pela manhã — disse ela, e o observou cruzar a porta que dava ao mar e descer para o embarcadouro.

Resistindo o impulso de abrir a nota ali mesmo, a guardou entre as dobras de sua capa e se dirigiu rapidamente à intimidade de seu quarto. Ali, à luz das velas, desdobrou com cuidado a pequena folha de pergaminho.

O coração lhe pulsava a toda velocidade. Aquela podia ser a prova que esteve procurando. Sentiu uma pontada de culpabilidade, mas a sacudiu em seguida. Se a mensagem não fosse importante, Tor nunca se inteiraria. Mas se era, daria-lhe obrigado por isso. Podia lhe proibir que se misturasse, raciocinou, mas não que observasse o que ocorria diante de seu nariz.

Reconheceu imediatamente a tosca letra do Rhuairi, embora a nota não estivesse assinada. Era breve e concisa, mas fez que lhe gelasse o sangue com uma gélida onda de pavor. Tinha encontrado sua prova, e era muito pior do que tinha acreditado.

«Paradeiro do MacLeod confirmado. Tragam reforços. Atacaremos a meia-noite.»

Deus santo, que horas era? sete? oito? Tinha o coração desbocado. O que podia fazer? Tinha que encontrar uma maneira de acautelá-lo, antes que fosse muito tarde.

*

Tor estava sentado em uma pedra grande e plaina frente à entrada da broch, com uma jarra de cuirm na mão, contemplando os últimos raios rosados do sol extinguirem-se depois do horizonte.

Embora Campbell se fora fizesse quase uma semana, a equipe ainda não se recuperara da perda de um dos seus. Ele sabia que devia estar agradado por isso, pois era uma prova de que o treinamento tinha sido um êxito, mas não estava. A marcha de um membro da equipe, independentemente do motivo, ardia-lhe.

Resmungou uma blasfêmia e tomou um gole longo da forte cerveja antes de deixar a taça vazia na pedra com um golpe.

—Ai - disse MacSorley, que tinha saído da broch para sentar-se junto a ele—. Está um pouco amarga a cerveja, ou é bem o sabor do remorso?

—Não sigas por aí - lhe advertiu Tor—. Não estou de humor para sua língua afiada.

MacSorley bebeu um gole de sua própria taça. Ficaram sentados em silencio durante um momento antes que ele falasse de novo.

—Eles perdoarão. Dêem-lhe tempo.

Depois da partida do Campbell, a brecha entre o Tor e os homens se alargou. Uma vez mais, voltara a estar firmemente instalado no papel de líder, o homem obrigado a tomar decisões duras e impopulares. Formava parte da equipe, mas estava à margem. Entretanto, não era isso o que lhe incomodava. Quão único queria era acabar de uma vez por todas com esse maldito assunto.

—ides contar logo? —perguntou-lhe MacSorley em voz baixa—. Somente restam duas semanas.

A mandíbula de Tor se esticou. dessa vez o outro homem tinha dado no alvo.

—Não, ainda não.

Todo rastro de jovialidade desapareceu do rosto do MacSorley, que se endureceu com uma severa expressão de raiva.

—antes de zarpar, merecem saber que não ides os capitanear quando tiver terminado aqui.

Suas palavras se aproximavam muito ao que pensava Tor, mas não queria as ouvir nesse momento. Olhou ao MacSorley entreabrindo os olhos de forma ameaçadora.

—Tome cuidado, escandinavo. Ainda não estais ao mando.

MacSorley não se intimidou ante sua advertência, embora Tor tampouco esperasse que o fizesse. O viking era quase tão temerário como loquaz.

—Sabes no que acredito? —Tor fingiu não tê-lo ouvido, com o olhar fixo na fileira de árvores, no outro lado do claro—. Acredito que não queres dizer porque desejas capitaneá-los, e lhe chateia a má maneira se sentir incapaz de fazê-lo. Mas cedo ou tarde terá que descer do burro, MacLeod. —Não disse «capitão». A Tor não aconteceu inadvertido o desprezo—. A guerra é iminente, e um dia destes, certamente antes do que pensa, teras que escolher. Esta equipe precisa de ti - disse com suavidade—. A Escócia lhe necessita.

Ao diabo com Escócia; seu dever era para com seu clã.

—Falam como o condenado de seu primo.

—Angus Og é um homem sábio. Pense. —Dito isto, deixou-o por fim em paz.

Que MacSorley fosse ao Hades! Tor não necessitava sua opinião. Fazia sua própria análise, e muitas vezes. Embora MacSorley estivesse certo, nada tinha mudado. Seguia sendo injustificável implicar a seu clã em uma guerra que não supunha uma ameaça para eles.

Duas semanas mais, pensou. Duas semanas mais, e teria completado com seu compromisso. O risco de que o descobrissem - e a traição que cometia ao adestrar homens para que lutassem pelo Bruce— ficaria para trás. Teria respeitado sua parte do trato ao treinar aos homens e teria conseguido tirar de cima ao Nicolson.

As águas voltariam para seu leito, por mais que fosse uma tortura para ele pensar que seus homens lutariam sem ele: ocuparia de novo uma posição de neutralidade na guerra da Escócia e no conflito entre o MacDougall e MacDonald.

Por mais que ele quisesse que as coisas fossem de outra maneira, suas obrigações para com seu clã eram sempre em primeiro.

*

Christina sabia que aquela era a oportunidade perfeita que esteve esperando para fazer algo importante.

Lembrando-se de quão categórico tinha sido Tor em relação à possibilidade de que ela saísse do castelo, foi em busca de lady Janet ou Colyne —pois lhe constava que Tor confiava em ambos—, mas não encontrou a nenhum dos dois. Como não se atrevia a envolver a ninguém mais, sabia que teria que lidar com ele por si mesmo. Não estava segura de que se encontrasse na broch, mas a julgar pela mensagem, parecia provável.

Foi mais fácil do que esperava. A única dificuldade surgiu quando tentou embarcar em um birlinn com destino à aldeia. O guarda do molhe se negou em um princípio a deixá-la partir. Ela não tinha a menor ideia do que fazer até que recordou a promessa de seu marido. Pelo visto, tinha mantido sua palavra de informar a seus homens em relação à condição que tinha imposto para casar-se com ele, já que, quando recordou ao guarda que devia haver um birlinn ao seu dispor para quando desejasse ir, ele cedeu.

Deixou que um punhado de guardas a acompanhasse à igreja, mas a seguir insistiu em que podia continuar sozinha a partir de ali. Uma vez que partiram, ela retornou ao bosque, voltando sobre os passos que a tinham levado até a broch a primeira vez. Estava escuro e não se atreveu a levar consigo uma tocha, mas por sorte a lua estava quase cheia e seu brilho era bastante intenso para atravessar o tênue manto de névoa que turvava o ar fresco da noite. Estava muito preocupada para ter medo; seu maior temor era não lembrar-se de como chegar ali.

Caminhava devagar e com determinação, mantendo a cabeça encurvada para ver por onde pisava. O chão era irregular, por isso tropeçou mais de uma vez. Mas já quase estava ali. Ao cabo de poucos minutos se encontraria perto do lugar do bosque do que tinha espiado a Tor e a seus homens.

Deteve-se e deu uma olhada para trás para assegurar-se de que ninguém a seguia. Não viu mais que as silhuetas escuras e ameaçadoras das árvores. Mesmo assim, não podia desterrar a sensação de que alguém a observava. Tudo estava totalmente tranqüilo…, muito tranqüilo.

De repente, viu-se imobilizada contra um peito revestido de aço e notou o fio inconfundivelmente frio de uma adaga contra o pescoço.

—Seu nome, moça - lhe grunhiu uma voz ao ouvido.

Essa vez não se tratava de seu marido.

—Lady Christina - gaguejou—. A esposa do chefe dos MacLeod.

Ele soltou um juramento, obrigou-a a dar volta e lhe tirou o capuz com brutalidade.

Christina se encontrava frente ao olhar furioso de sir Alexander Seton. Aproveitando-se de sua surpresa, dedicou-lhe uma reverência e disse: —Sir Alex, passou muito tempo.

—Milady. —inclinou-se automaticamente, como correspondia a um cavalheiro galante, fossem quais fossem as circunstâncias—. O que fazes aqui fora?

—Um dos homens de meu marido o traiu e interceptei uma mensagem. Planejam atacar esta noite, assim tinha que lhe avisar.

Ele endureceu sua expressão.

—Estás segura?

Christina assentiu.

Sir Alex a olhou com curiosidade.

—Espero que estejas certa.

Assim que tinha pronunciado estas sinistras palavras, um objeto alongado e metálico - um utensílio de lavoura, possivelmente?— emergiu das sombras, atrás de sua cabeça, e desceu com violência sobre o elmo de aço. Com um gemido de dor, sir Alex se desabou aos pés de Christina, reduzido a um vulto coberto de malha.

Ela espiou pela extremidade do olho algo que se movia, e uma figura com uma capa negra apareceu das trevas. Christina abriu a boca para gritar, mas era muito tarde. Um objeto contundente lhe golpeou a nuca. Teve a muito estranha impressão de ouvir alguém murmurar « sinto muito » antes que a escuridão a envolvesse.

Os sons não muito aprazíveis de uma bofetada e o exabrupto «maldito néscio inglês» a fizeram voltar a si. Em um princípio pareceu que a voz se dirigia a ela, mas ao abrir os olhos viu um guerreiro gigantesco e de aspecto aterrorizante que, inclinado sobre sir Alex, tentava despertá-lo.

Ela o tinha visto antes. Moreno, de sobrancelhas grossas e um rosto mais agreste que arrumado, parecia um homem que tinha participado de muitas brigas de tabernas a altas horas da noite. Então o recordou: era o guerreiro que tinha levantado aquela pedra enorme como se não pesasse virtualmente nada.

Deve ter deixado escapar um som, porque o guerreiro se afastou imediatamente de sir Alex e se aproximou dela.

—Está bem, moça?

—Isso acredito. —Ajudou-a a levantar-se. Depois de um momento de enjôo, a cabeça limpou em seguida. Ao levar mãos à nuca, apalpou um pequeno galo, mas por sorte não havia sangue. Sentia sobre si o olhar penetrante do homem—. E sir Alex? Ele encontra-se bem? —perguntou.

O guerreiro entrecerrou os olhos.

—Conhece o inglês?

Ela caiu em si de que não lhe havia dito quem era.

—Sou lady Christina Fraser.

Se isto o surpreendeu, dissimulou-o muito bem.

—A mulher do MacLeod?

Ela assentiu.

—E vocês são…?

Depois de titubear por um instante, ele respondeu:

—Incursionador. —Pelo visto, não queria lhe revelar seu nome nem se incomodou em lhe explicar por que.

—São da zona fronteiriça? —Ao advertir uma faísca de desconcerto em seus olhos, Christina supôs que tinha deduzido acertadamente a origem do sotaque.

—O que fazem vocês aqui? —inquiriu ele, trocando de tema—. O que ocorreu?

Recordou tudo de repente e se levantou de um salto, presa do pânico. Quanto tempo esteve inconsciente?

—Que horas são? —perguntou freneticamente. Antes que o homem pudesse responder, ela o agarrou pela parte dianteira de sua cota de malha. Ele não se moveu um centímetro. O que acontecia com esses guerreiros das Highlands? Por que tinham todos corpos do tamanho de montanhas?

—Explicarei-lhe isso tudo, mas não fica tempo… Deve me levar até meu marido.

Embora isso não parecesse fazer muita graça ao homem, seu tom o convenceu da urgência da situação.

—Estás em condições de andar?

Ela assentiu, e ele a ajudou a ficar de pé. Sir Alex era um homem corpulento, mas aquele «Incursionador» o levantou e o jogou ao ombro como um saco de farinha, sem muita delicadeza, por outra parte. Dava a impressão de que não sentia afeto pelo jovem cavalheiro. Sem dizer uma palavra mais, guiou-a através das árvores.

Quando saíram na clareira que se estendia ao pé da broch, gritou como um mocho, o que evidentemente era algum tipo de sinal. E apesar da noite estava avançada, havia um punhado de homens exercitando-se com armas diversas: espadas e tochas, pareceu a ela. Uma figura estava de pé ante a entrada, e pelas dimensões de sua sombra ela soube que era seu marido. Invadiu-a um grande alívio ao saber que tinha chegado a tempo. Tinha conseguido.

Tor foi a seu encontro e ela arrancou a correr para ele. Outros se juntaram ao redor para averiguar o que estava passando.

—Christina? —perguntou ele, com a voz aguda pela incredulidade—. O que ocorreu? O que faz aqui? Acreditava te ter advertido que não voltasse nunca para este lugar.

Ela ouviu a chispada de ira e se jogou em seus braços antes que estalasse. Ele a estreitou contra si de forma mecânica, mas afastou o olhar dela durante o tempo suficiente para ver o homenzarrão atirar a sir Alex a seus pés. Christina respirou aliviada ao advertir que o jovem cavalheiro se movia.

Tor soltou um juramento e a agarrou pelos ombros, olhando a de marco em marco.

—Têm-lhe feito mal?

Ela negou com a cabeça.

—Tenho um galo na cabeça, isso é tudo. Este homem, Incursionador, encontrou-nos. —Tor arqueou uma sobrancelha com expressão inquisitiva, mas o musculoso guerreiro se limitou a encolher os ombros como dando a entender que já explicaria mais tarde.

—Quem te fez isto? —A voz de Tor soou mais fria e letal do que ela a tinha ouvido nunca.

—Não sei, mas tem que me escutar. Não fica muito tempo. —devido a sua ânsia por contar-lhe o que saiu de sua boca foi uma corrente de palavras confusas e embaralhadas. Ao precaver-se da crescente impaciência de Tor, simplesmente lhe entregou a nota—. É a letra do Rhuairi - disse, sem saber até que ponto seria inteligível—. Ele sabe que está aqui e planeja lançar um ataque nesta noite.

—Parece a letra do Rhuairi, mas não tem pés nem cabeça.

Christina não alcançou a perguntar por que. Tor chamou a alguém em voz muito alta, e em pouco momento dois homens saíram da broch. Ela empalideceu ao reconhecer ao Rhuairi e ao Colyne.

Se Rhuairi era o espião, que fazia ali? Deveria ter posto terra por meio fazia tempo.

Esteve tão convencida de que tinha descoberto a verdade que inclusive quando surgiu a possibilidade de que não fosse assim, custou-lhe assimilá-lo.

Rhuairi se aproximou para ler a nota. Deu uma olhada rápida antes de devolver ao Tor.

—É uma boa imitação de minha letra, mas eu não escrevi isto.

Embora Tor falasse em um tom enganosamente sereno, Christina percebia a tormenta que estalava.

—Como diz que conseguiste esta nota?

Contou sua conversa com o irmão John.

—E disse que iria à aldeia? —perguntou Tor.

Christina assentiu, e ele proferiu uma maldição. O olhar que lhe lançou não destilava gratidão, a não ser escárnio, como se não pudesse acreditar que ela fosse tão estúpida.

—Quando? —inquiriu, sacudindo-a pelos ombros—. Quanto tempo estivestes inconsciente?

Ela abriu muito os olhos, totalmente desconcertada ante aquela reação tão diferente da que tinha imaginado.

—Não… não sei —gaguejou—. Uma hora, talvez mais.

Tor se voltou para o Incursionador em busca de uma confirmação.

—Eu tinha saído de ronda pelo este, e Seton pelo oeste. Como o inglês não respondeu a minha chamada, fui em sua busca. Pode ter sido uma hora, possivelmente mais.

—E não lhe ocorreu ir à caça de quem fez isso, seja quem é?

Incursionador apertou os lábios, que formaram uma linha tensa.

—Pareceu-me mais importante não deixar sozinha à moça e lhe trazer aqui.

Apesar da evidência de que a tinham enganado era evidente, Christina se negava a acreditar.

Tinha que haver alguma explicação.

—Equivoca-te a respeito ao irmão John. Não pode ter sido ele. —«Ele não me faria uma coisa assim», pensou—. Não disse a ele que sei ler.

—Está totalmente segura disso? —O olhar que lhe jogou seu marido teria podido cortar um diamante—. Reza por que esteja certa. Não tem idéia do que pode ter feito.

Sem lhe dirigir uma palavra mais, ordenou a dois dos homens que fossem ao povoado através do bosque para ver o que averiguavam, e a outros que preparassem o birlinn para navegar de retorno ao Dunvegan.

Christina estava petrificada de espanto. Tinha conduzido ao espião diretamente até seu marido? «Sinto muito.» A voz na escuridão de repente cobrou sentido. Ficou com vontade de tapar as orelhas com as mãos para não ouvir a verdade. «Deus santo, tem que ser de um engano. Por favor, que seja um engano.»

*

Tor aguardava com ar sério a que Lamont e MacLean retornassem do povoado. Mas já sabia o que tinha acontecido. O tabelião tinha seguido a Christina pelo bosque e se partira fazia um bom momento. Embora estivesse escuro, Tor tinha que supor que John tinha visto o suficiente para pôr em perigo a missão de seus homens.

A intromissão de Christina tinha posto em grave risco tanto a seu clã como a guarda secreta de Bruce. Vinte anos de guerra e esforços por restabelecer seu clã, e agora a vida de seus membros e a sua própria pendiam de um fio. Se o tabelião o relacionava com o Bruce e o rei Eduardo conseguia capturá-lo, sua vida não valeria nada. Mas ele não seria a única vítima. Seu clã cairia com ele, e se o tabelião tinha reconhecido a alguns dos integrantes da guarda secreta de Bruce, também teriam um alvo sobre a cabeça.

Como tinha podido permitir que ocorresse algo assim? Isso era impróprio dele. Tinha querido acreditar que ele e Christina eram diferentes. Acaso não tinha aprendido nada com a morte de seus pais?

Isto era exatamente o que queria evitar.

Era um maldito idiota. Pensava que Christina tinha entendido. Tinha sido um engano confiar nela. Ao tentar agradá-la, tinha falhado com sua guarda e tinha deixado que ela soubesse muito. Tinha permitido que uma mulher se interpusesse entre ele e seu dever para com seu clã.

Estava tão furioso que não se atrevia a lhe falar ou a olhá-la sequer. Entretanto, era perfeitamente consciente de que estava ali, sentada no assoalho, com os olhos exageradamente abertos e pálida. Fez-se forte e não deixou que o tremor de seus lábios ou as ligeiras sacudidas de seus ombros o comovessem. Nunca voltaria a comover-se por ela.

O pulso martelava nos ouvidos, por isso mal ouviu os homens quando retornaram e corroboraram o que ele já sabia. O tabelião tinha desaparecido. Ninguém o tinha visto partir, mas Tor não podia evitar supor que alguém o tinha ajudado a fugir.

Tinha a mandíbula apertada com tal força que notava que as veias do pescoço lhe tinham inchado. Ordenou com voz ensurdecedora que aparelhassem os navios. Tinha que encontrar ao traidor antes que transmitisse a informação que tinha averiguado. O fracasso não era uma opção.

Os homens limparam os aposentos principais. Tor repartiu instruções de último momento a Colyne e a Murdoch a fim de que preparassem o castelo para a guerra e se levantou para partir. O aposento ficou vazio salvo por sua esposa.

Ela deveria tê-lo deixado partir sem mais, mas nunca sabia quando deter-se. Agarrou-o pelo braço, e ele sentiu que a leve pressão de sua mão lhe queimava como um ferro em vermelho vivo, na pele, no peito. Entretanto, precaver-se de que sua debilidade por ela aumentara não fez a não ser avivar sua ira.

—Sinto muito - sussurrou Christina, retorcendo as mãos e olhando-o com olhos grandes e suplicantes—. Somente tentava ajudar.

Tor permaneceu totalmente imóvel, face à voragem desatada em seu interior. Seu rosto não demonstrava nem um traço de emoção. Não deixaria que seus rogos fizessem uma fresta nele. dessa vez não. Nunca voltaria a permitir que sua esposa ou ninguém interferisse em seu dever.

—Ajudar? —Soltou uma gargalhada para magoar—. Ao que parece é difícil pra ti compreender, mas não quero nem necessito sua ajuda. É minha esposa, Por Deus, não um de meus homens. Adverti-a que não te entremetesse. Pedi-te que nunca, sob nenhuma circunstância, aproximasse-te de novo ao broch. Sua «ajuda» pôs em grave perigo a meu clã, aos homens que estive treinando e a minha pessoa. Se não encontrarmos o tabelião, o rei Eduardo porá a minha cabeça um preço bastante alto para que inclusive meus aliados mais leais se voltem contra mim. Não tem idéia do que tem feito.

Embora Christina parecesse a ponto de desmoronar-se, ficou rígida para ouvir essas palavras.

—É verdade, dado que nunca te me dignaste dizer nada.

Tor se pugnou por manter o controle. Somente ela ousaria fazer recriminações depois do que acabava de ocorrer. Seu olhar se escureceu cortante como seu resistente tom de voz.

—E por uma boa razão, considerando o que tem feito. É justamente por isso que não queria que te implicasse. Deveria ter sido mais ardiloso e não ter revelado nada deste assunto.

A ousadia temporária de Christina veio abaixo quando começou a cair na conta da gravidade de seus atos.

—Tem todo direito de estar zangado, mas acreditava que corria perigo. Jamais teria imaginado que o irmão John tramasse algo assim. Tomei todas as precauções…

—Que obviamente não foram suficientes.

Os olhos de Christina se arrasaram em lágrimas. Inclinou-se para apoiar-se em Tor, mas ele ficou perfeitamente erguido. Tinha que fazer um esforço para não mover-se, para não sucumbir ao desejo urgente de estreitá-la entre seus braços e sacudi-la… ou beijá-la até que se fosse a dor que lhe oprimia o peito. Ele não era como os outros, maldita seja; supunha que devia ser insensível. Não era disso do que se apreciava? Não era isso o que o convertia em um grande líder e guerreiro? Apesar de tudo, o pranto de Christina corroía sua férrea determinação como o ácido.

—Juro que não voltará a ocorrer - murmurou ela.

Tor tinha que deixar bem claro como seriam exatamente as coisas a partir desse momento. Fixou nela um olhar duro e implacável.

—É obvio que não voltará a ocorrer, pois jamais te contarei uma maldita coisa mais.

Ela se separou dele, como se tivesse gritado, embora o havia dito com uma tranqüilidade glacial.

—Está zangado - sussurrou ela—. Não fala sério. —Dava a impressão de estar tentando convencer-se a si mesmo.

O olhar que lhe lançou teria gelado a lava do inferno.

—Nunca na minha vida falei mais a sério. —Tinha cometido um engano, mas estava resolvido a não repeti-lo. Era tão responsável como ela do acontecido. Tinha permitido que ela o convertesse em parte de sua pequena fantasia. Mas isso acabou—. Já te disse exatamente o que espero de ti: que fiscalize o castelo, que dê a luz a meus filhos e que deixe todo o resto em minhas mãos. Não espere nada mais que isso.

Christina estremeceu, profundamente ferida. Quem era esse homem desumano e inflexível? Nunca tinha falado dessa maneira; nem sequer na primeira ocasião em que o tinha visto tinha parecido tão frio e distante. Tão isento compaixão.

«Não fala sério — disse —. Está zangado.» Entretanto, a sombra de uma dúvida aninhou em seu coração.

Esforçou-se por lhe sustentar o olhar, decidida a não deixar-se intimidar. Tor não devia falar assim. Ela tinha errado, mas por um bom motivo, e suas intenções eram puras.

—Mereço sua ira, mas não seu desprezo. Não trabalhei de forma precipitada, nem era meu desejo que isto acontecesse. Sou vítima de um engano. Tem que saber que eu jamais faria algo para te prejudicar. —Fez uma pausa, antes de acrescentar em voz baixa—Amo-te.

Aguardou que Tor reagisse a sua declaração sincera, mas ele guardou um silêncio sepulcral, displicente, indiferente, magnânimo como um rei. O único indício de que a tinha ouvido era uma ligeira palidez em torno da boca.

Christina não esperava que ele correspondesse a seus sentimentos… ou sim?

Escapou-lhe uma lágrima. Custava-lhe falar pelo nó que tinha na garganta. Por que se estava comportando assim? Comportava-se dessa forma com todos outros, mas não com ela. Era o mesmo homem a quem tinha lido relatos na cama?

—Não faça isto. Não me separe de seu lado. Não mereço que me trate como se não significasse nada para ti. —Tentou tragar saliva, mas lhe doía—. Você não é assim.

Ele a olhou aos olhos, rebatendo-a em silêncio. Se ela tivesse percebido ira em sua expressão, teria mantido a esperança, mas no olhar frio e firme de seus olhos azul celeste não havia o menor indício de emoção. Christina retrocedeu um passo, como se o estivesse vendo pela primeira vez.

—Este é meu verdadeiro eu. Não sou seu condenado Lancelot. Isto não é uma fantasia romântica, e nada do que faça vai mudar isso, por muito boas que sejam suas intenções.

Ela soltou um grito afogado, como se Tor acabasse de lhe cravar uma adaga no coração. Seu rosto ficou lívido. Tor tinha arrojado luz sobre seus sonhos mais profundos e escuros para depois pisoteá-los. Tão transparente era Christina? Via ele suas tentativas por agradá-lo como um patética tentativa de conquistar seu coração? Encolheu-se de vergonha, pensando que talvez tivesse razão.

—Não sei a que te refere - disse por orgulho.

«Por favor, que não seja pena isso que percebo em seus olhos.»

—Crie que não me dei conta de como me olha, que não sei o que quer de mim? Mas não posso te dar o que desejas. É jovem, e tem a cabeça cheia de fantasias sobre cavalheiros e aventuras românticas. Sou um valente chefe das Highlands que só deve lealdade a seu clã.

—Então não há lugar para mim?

—Não na forma em que você deseja.

—As coisas não têm que ser assim.

Tor não moveu um só músculo do rosto.

—Sim, têm que ser assim.

—Você quer que seja - disse ela com raiva—. Quer estar sozinho para não sofrer se perder a alguém e para não ter que depender de ninguém. Começo a acreditar o que se diz de ti. Mas não é invencível. É um homem. As pessoas necessitam umas das outras, embora dêem passos em falso. Seu pai se equivocou ao te inculcar a idéia contrária. —Ao ver que tremia a mandíbula de Tor se perguntou se não tinha ido muito longe.

—Não sabe do que falas - acusou ele—. Estou seguro de que isto é um engano.

O coração deu um tombo a Christina quando compreendeu a que se referia. O engano era seu matrimônio.

Não dizia seriamente. Sem dúvida tinha tido algum desejo de casar-se com ela… ou não? Ninguém o tinha obrigado a nada. Por muito que lhe doesse, tinha que saber a verdade.

—por que te casou comigo?

Ele se voltou, e por sua atitude vacilante Christina soube que não queria responder a sua pergunta.

Sentia tal opressão no peito que mal podia respirar.

—Que importância tem isso agora? —inquiriu mordaz—. Para que manter as ilusões entre nós?

Tor lhe lançou um olhar severo, pois não tinha gostado de seu sarcasmo.

—Tu eras parte de meu acordo com o MacDonald. Casar-me contigo foi o preço que paguei em troca da paz. Embora, depois do que ocorreu hoje, é possível que perdi isso.

Christina sentiu que o coração lhe rompia em um milhão de pedacinhos que se dispersaram no chão, a seus pés.

Umas lágrimas grossas e quentes lhe escorreram pelas bochechas.

—E treinar esses homens também formava parte do trato?

Áspero e impassível, contou-lhe de maneira sucinta o que ela desejava saber desde o começo, lhe deixando meridianamente claro o que tinha posto em perigo com seus atos. Ela o escutou enquanto explicava os termos de seu acordo com o MacDonald, sua negativa inicial a adestrar aos homens e a oferta posterior de MacDonald que ele não tinha podido rechaçar.

«Nunca teve desejo de casar-se comigo.» O que o tinha feito mudar de idéia não tinha sido seu sentido da honra nem que albergasse sentimentos especiais para ela, a não ser seu dever para com seu clã. E ela tinha feito quão único Tor jamais poderia lhe perdoar: interpor-se entre seu clã e ele. Sentiu náuseas ao compreender a ameaça que tinha atraído sobre ele sem querer. Por culpa dela, a segurança do clã e todo aquilo pelo que Tor tinha lutado desde a morte de seus pais estavam em perigo.

Nunca voltaria a confiar nela. Ela sabia o muito que lhe havia custado baixar a guarda só um pouco, e que tomaria acontecido como um fracasso pessoal. Christina tornava realidade seu pior temor: que o fato de estreitar laços com alguém prejudicasse a seu clã. A promessa das últimas semanas se desvaneceu. Tor tinha se afastado dela, desta vez para sempre.

—E agora? —perguntou Christina—. Sente o mesmo que antes?

Pareceu-lhe que a determinação em seu olhar fraquejava por uns instantes, mas não foi mais que um efeito da luz das velas.

—Que importância tem isso? É minha esposa.

Foi o golpe de graça. As fantasias de Christina lhe tinham impedido de ver a realidade. Pela primeira vez, viu as coisas com claridade. Tor tinha razão: nunca poderia lhe dar o que ela queria. Sempre haveria uma parte dele que lhe estaria vedada. Embora sentisse algo por ela, jamais o reconheceria. Não a amava; nunca a amaria. Ela tinha se enganado, inventando desculpas, convencendo-se de que, debaixo aquela aparência fria, ele a queria, de que somente mantinha essa aparência para proteger-se, de que simplesmente não sabia como demonstrar seus sentimentos.

Mas se equivocava. Tentar lhe arrancar uma amostra de emoção era como tentar tirar água de uma pedra espremendo-a. Ela não pretendia encher uma taça, somente conseguir umas gotas. Mas ele nem sequer era capaz de lhe oferecer isso.

E Christina se fartou de tentar. Entregou-se a ele por completo, mas isso não tinha sido suficiente. Nunca seria.

Enxugou as lágrimas dos olhos. Assim seriam as coisas entre eles. Sempre. Nunca seria nada especial. Essa sensação não tinha sido nada a não ser fruto de sua imaginação. Tor não era seu Lancelot, a não ser um desumano chefe das Highlands que devia a seu clã.

Ouviram golpes na porta.

—Estamos preparados, capitão - disse MacSorley.

Tor se dirigiu à porta.

—Sinto muito - disse ela por última vez.

—Muito tarde para desculpar-se- replicou ele, impávido—. Se quer ajudar, reza para que encontre seu amigo antes que faça cair a ira de Eduardo sobre todos nós.

A opressão no peito de Christina aumentou enquanto o via partir, tentando gravar cada detalhe na memória, sabendo em seu coração o que sua cabeça ainda ignorava.

—Adeus… —sussurrou, ao tempo que a porta se fechava atrás dele.

Percebeu de que o havia dito com toda sinceridade. Talvez fosse inevitável. Um matrimônio apoiado no engano estava condenado desde o começo. Mas não podia continuar assim, fingindo, dando-se contra um muro de pedra. Talvez ele tivesse suavizado as barreiras entre eles, mas seguiam estando ali; sempre estariam. Sempre viveriam em mundos separados. Ela não se conformava com isso.

Queria —não, merecia— algo melhor. Tor não era o único que tinha direito a ser feliz.

O irônico era que lhe tinha aberto os olhos. Christina já não era a jovem assustada que se encolhia quando seu pai lhe levantava a mão, nem o cachorrinho amoroso que se contentava com qualquer sobra de carinho que seu marido se dignasse lhe jogar. Tinha muito que oferecer. Sabia ler e escrever, fazer cálculos mentais complexos, acondicionar um torreão escuro para convertê-lo em um lar e, sobre tudo, amar com toda sua alma. Se ele era incapaz de ver isso, ele perdia.

O pai Stephen tinha razão. Ela merecia a alguém que soubesse apreciar suas qualidades e querê-la por isso, que não lhe desse as costas cada vez que cometesse um erro. Queria ser importante para alguém. Talvez fosse uma aspiração pouco realista, mas a alternativa era muito pior. A vida que Tor podia lhe dar não só lhe romperia o coração, mas sim lhe quebraria o espírito. Ela podia viver com o coração quebrado, mas não sem sua alma.

Respirou fundo e secou as lágrimas dos olhos. Somente podia fazer uma coisa.


Capítulo 24


Christina, aninhada no birlinn, observava os ameaçadores muros de pedra do castelo do Dunvegan esfumar-se na bruma da manhã, e seu coração quebrado se desmoronou um pouco mais. Ao longo dos últimos meses, tinha chegado a sentir apego pelo velho montão de pedras que formavam o imponente castelo e pelos taciturnos ocupantes de seu grande salão. Ficaria terrivelmente com saudades.

Também sentiria muita falta de Tor. Seus olhos, que acreditava incapazes de derramar mais lágrimas, encheram-se de novo, mas ela os enxugou com determinação. Tinha tomado sua decisão e teria que ater-se a todas as conseqüências.

Acabou. Ia deixá-lo. Abandonar ao homem que amava. Ia obrigar a seu marido a respeitar sua promessa de deixá-la retirar-se ao convento de Iona, uma promessa que ela sabia que Tor não acreditava jamais que teria que cumprir. Detestava fugir desse modo, mas não estava segura de que ele mantivesse sua palavra desse-lhe oportunidade de opor-se.

Quando tinha descoberto que já havia um birlinn preparado para navegar rumo à ilha do Mull, Christina tinha pedido à tripulação que a levasse primeiro a Iona. Embora isso os obrigasse a dar uma pequena volta, era mais simples que aparelhar outra embarcação. Christina, que não tinha tido tempo de dispor de seus pertences para a partida, tinha embarcado com pouco mais que uma muda de roupa e alguns mimos pessoais. Mhairi recolheria o resto de suas coisas e as mandaria a Iona antes de retornar junto a sua família no Touchfraser. Não levou consigo seu prezado livro. O relato não fazia mais que infundir a jovem falsas esperanças e sonhos impossíveis.

Havia dito aos guardas que a acompanhavam que ia visitar sua irmã, mas sabia que não tinham acreditado de tudo. Ao contrário deles, não tinha um elmo de aço que ocultasse seus olhos inchados e seu rosto manchado de lágrimas.

Foi uma travessia rude, pois o mar estava agitado. Christina estava sentada sozinha, perto da proa, coberta com uma capa e peles, sentindo-se mais desventurada que nunca, e não pelo vento ou o frio.

Em mais de uma ocasião esteve a ponto de indicar aos guardas que virassem de volta, mas afugentava suas dúvidas sobre a conveniência de partir repetindo em seu foro interno que romper o vínculo entre eles seria o melhor para Tor também. O matrimônio não desejado por ele so lhe tinha ocasionado problemas. Talvez sua partida lhe ajudasse a sair do embrulho em que ela o tinha metido.

Não obstante, saber que sua decisão era a correta não fazia que fosse mais fácil. Uma parte dela desejava ser capaz de contentar-se com meia vida, mas Christina sabia que o que ele podia lhe oferecer nunca a satisfaria e que jamais deixaria de pressioná-lo para que lhe brindasse com algo mais. Ele, por sua parte, trataria-a cada vez mais com maior frieza até que ela acabasse por odiá-lo… e por odiar-se a si mesma.

Não, era melhor assim. Sua infelicidade e desespero desapareceriam com o tempo. Embora o certo fosse que, no momento, longe de diminuir, pioravam conforme avançava o dia e o navio se afastava do lugar mais parecido a um lar que ela tinha conhecido.

Levavam navegando algumas horas, percorrendo o trajeto inverso ao que ela tinha feito há apenas uns meses. Reconheceu alguns das ilhotas que vira durante a viagem para o norte: Rum, Eigg e Muck. Embora o céu estivesse nublado e cinza, a bruma limpou o suficiente para que de quando em quando vislumbrasse a costa escocesa a sua esquerda. Logo se encontrariam entre o Coll e Mull, e justo ao sul estaria a ilha Iona. Se o vento não amainasse, ela logo estaria instalada a salvo entre as paredes do famoso convento junto com Beatrix. Desfrutaria da segurança que procurava, mas sem as ilusões.

Tão absorta estava em seu sofrimento que demorou um momento em ver que algo ia mau. As ordens enérgicas do Murdoch, o escudeiro de Tor e capitão de sua guarda, ressonavam de forma cada vez mais premente.

—O que ocorre? —perguntou-lhe Christina ao jovem guerreiro que ia sentado no banco situado em frente ao dela.

—Estou seguro de que não é nada, milady. —Assinalou para trás, e ela alcançou a divisar as velas de dois navios ao longe—. Essas galeras estiveram nos seguindo perto de uma hora. O capitão rodeará a ilha da Staffa a toda velocidade e estou seguro que conseguiremos burlá-los.

—Parecem galeras bastante grandes - observou ela em um tom cauteloso.

—Os assaltos no mar não são freqüentes, milady. Realizamos esta rota com regularidade e rara vez sofremos contratempos.

Assaltos? Face à afirmação do homem de que certamente não era nada, Christina sentiu que lhe acelerava o pulso, arrancando-a de sua letargia. Minutos depois, Murdoch gritou aos tripulantes que se agarrassem forte, e a embarcação virou bruscamente à esquerda para circunavegar a pequena ilha com suas estranhas formações rochosas. Ela nunca tinha visto nada parecido aquelas colunas hexagonais de rocha negra, mas não dedicou um segundo às estudar, pois estava muito nervosa, olhando para trás, com a esperança de que o veleiro que os seguia passasse, e tentando evitar o pânico quando viu que continuavam atrás deles.

Embora soubesse que o guerreiro que tinha ao lado estava ocupado remando, não pôde deixar de comentar:

—Parece-me que ainda nos seguem.

Ele não passou por cima do temor que destilava sua voz. Christina advertiu que não queria assustá-la, mas tampouco subtrair a importância do que estava acontecendo.

—Tentaremos deixá-los para trás.

«Tentaremos.» Mas ela sabia tão bem como ele que somente era questão de tempo que os navios maiores lhe alcançassem. Em condições de vento forte, o birlinn era mais veloz, mas a galera tinha quase o dobro de remos.

—São piratas?

O homem torceu a boca com expressão sombria. Os navios se aproximavam e se achavam já a poucas centenas de milhas.

—Algo pior -respondeu—. Ao que parece um deles é inglês.

—O que é que querem?

Ele sacudiu a cabeça.

—Ignoro, milady.

—Todos a coberto! —bramou de repente Murdoch.

Christina se viu derrubada de um empurrão, e um teto de escudos se formou sobre sua cabeça, poucos segundos antes que ouvisse o tamborilar surdo e arrepiante das flechas que choviam sobre eles. Estava tão aflita que demorou um momento em compreender o que ocorria.

—por que nos atacam? —perguntou, mas os homens estavam muito ocupados tentando evitar a seus perseguidores e contra-atacar com suas próprias flechas para lhe responder.

—Rendeis-vos - gritou uma voz ao longe, e Christina soube que procedia de um dos navios.

Não fez falta ouvir a soez resposta do Murdoch para saber o que fariam os homens de Tor. Eles viviam para lutar. Inclusive naquele momento ela percebia sua ânsia por entrar em ação. Render-se não estava em seu caráter. Antes preferiam a morte.

Entretanto, Christina não ia permitir se podia evitar. Tinha que fazer algo.

—Não - disse, abrindo passo por entre os escudos para captar a atenção do capitão—. Façam o que lhe pede, Murdoch. Ao menos tentem averiguar o que querem.

O rosto do Murdoch se converteu em uma máscara de fúria. Saltava à vista que nunca antes tinha recebido ordens de uma mulher e queria fazer caso omisso dela. Fugir de um combate ia contra sua natureza de guerreiro, mas, por outro lado, sabia que estava obrigado a proteger a sua senhora. Christina respirou aliviada quando Murdoch afastou o olhar dela e, dirigindo-se a vozes ao navio mais próximo -que ainda estava a certa distância—, fez o que lhe pedia.

—O que ocultam filhos do Leod? —foi à resposta.

«Sabem quem somos», pensou ela. Deviam ter reconhecido a insígnia: as três pernas recobertas de malha dobradas formando um triângulo, que denotavam que o clã descendia dos reis do Man, e um birlinn negro, símbolo de sua ascendência escandinava, sobre campo de gules e azur.

—nos entreguem a metade e lhe deixaremos partir em paz - acrescentou outro homem.

«Deus santo, acreditam que transportamos riquezas! Não são mais que piratas ingleses.»

—Não temos nada que possa lhes interessar - replicou Murdoch—. Não levamos moedas nem mercadorias valiosas a bordo.

Ficou claro que seus perseguidores não tinham acreditado quando lançaram contra eles outra chuva de flechas. Christina se viu empurrada de novo sob o toldo de escudos e já não voltou a intervir. Não serviria de nada, pois estavam decididos a roubar. Seu pai falava freqüentemente das atrocidades dos ingleses, assim por que se surpreendia?

Notou que o navio se movia de novo enquanto os homens manobravam para encontrar a rajada de vento que lhe permitisse ficar fora do alcance das flechas e escapar.

Desde debaixo dos escudos, Christina ouviu gemer a um homem que tinha perto e soube que uma das flechas dos assaltantes tinha dado no alvo.

Afogou um grito de espanto tapando a boca com o punho. Estava tão assustada que não sabia o que fazer. Com o rosto apoiado sobre os joelhos, tentou isolar do fragor horrível que a rodeava. Esteve a ponto de cair pela amurada quando a embarcação foi investida pelo outro lado. O estrondo soava cada vez mais forte; mais gritos, mais flecha, o som de um gancho de ferro de metal jogado para prender os dois navios entre si, seguido pelo balanço provocado pelo movimento dos homens e o entrechocar de espadas quando a batalha começou em um estrépito de aço e morte. Christina via a muralha de pernas dos homens que a rodeavam, e sabia que morreriam protegendo-a.

Os guardas de seu marido figuravam entre os melhores guerreiros das ilhas, mas eram somente uma vintena, enquanto que o inimigo os quadruplicava em número, a julgar pelo tamanho de suas embarcações.

Os sons eram dilaceradores: gemidos de dor, rangidos de ossos, alaridos de agonia. A bílis lhe subiu pela garganta enquanto os homens caíam em torno dela. Homens que conhecia. O terror se apropriou de Christina quase por completo. Aquilo era muito.

Tinha vontade de desmaiar, mas não queria envergonhar aqueles homens que pereciam enquanto tentavam mantê-la a salvo. Em troca, esforçou-se por não cair no atordoamento.

Cada minuto que passava era insuportável. Embora os guardas do MacLeod lutassem com galhardia, acabaram por sucumbir ante a superioridade numérica do inimigo. Quão guerreiros a rodeavam começaram a cair. Olhou a Murdoch nos olhos quando se desabou sobre ela e compreendeu sua intenção. Pugnando por reprimir um grito, ocultou-se sob o escudo de seu corpo ensangüentado.

Ainda pior que os sons da batalha foi o silêncio que se impôs quando terminou, pois sabia que todos tinham morrido.

—Afastem os cadáveres - ouviu dizer um homem—. Vejamos o que é o que estavam tão ansiosos por proteger.

Os últimos esforços do Murdoch tinham sido inúteis. Um momento depois, alguém a tirou de forma brusca de seu esconderijo.

—É uma moça - disse o homem, lhe tirando o capuz—. E bastante bonita, por certo.

Um aroma denso como a cobre a afligiu. Deu uma olhada em redor, aos restos da matança e os rostos conhecidos foi demais e vomitou sobre as grebas e os escarpes de aço do homem que a segurava.

Este proferiu um juramento e atirou uma bofetada com o dorso da mão.

—Zorra estúpida!

—Como te chamas?

Christina limpou a boca e levantou o olhar para o homem que tinha falado. Sob a viseira de aço de seu elmo, seus olhos se cravaram nela como duas adagas negras. Pela qualidade de sua malha e a sobreveste fina que levava sobre o peito, supôs que era o cabeça dos ingleses.

Ela ergueu o queixo e lhe sustentou o olhar.

—Christina, esposa do chefe dos MacLeod. —O nome do temido chefe não impressionou absolutamente ao altivo inglês. O desdém que destilava seu rosto cruel e curtido não impediu a Christina acrescentar—: Com que autoridade assalta este navio e assassinam estes homens?

A julgar pela expressão do homem, não tinha gostado de seu tom desafiante.

—a de Eduardo, rei da Inglaterra, senhor da Irlanda, príncipe de Gales e duque da Aquitania pela graça de Deus. Seus homens opuseram resistência - mentiu descaradamente. Afastou sua atenção dela e se dirigiu ao soldado que a tinha agarrado pelo braço—. Não lhe entretenham muito. —O líder inglês percorreu com o olhar a outros homens que o rodeavam—. E o mesmo digo a todo aquele que deseje uma parte dos despojos. Aqui não há nada. Quando tiverem terminado, queimem tudo.

Christina conteve outra arcada ao compreender o que pretendiam fazer. Iriam violentá-la e logo matá-la, a fim de que não ficassem testemunhas de seu crime. A esposa de um chefe das Highlands não valia nada para eles. Néscios! Tor os caçariam quando se inteirasse do ocorrido.

A segunda nave tinha ancorado ao outro lado do birlinn. Ao fixar-se na roupa e as armaduras de seus ocupantes, Christina viu que se tratava de highlanders. Escrutinou aqueles rostos ásperos e selvagens em busca do menor raio de piedade, mas não o encontrou. De repente um homem deu um passo adiante. Seu olhar era penetrante. Parecia familiar.

—Acredito que a moça pode nos ser útil, capitão.

O líder dos ingleses se voltou para quem tinha falado com somente um pouco menos de desprezo do que tinha mostrado a ela.

—E que é você?

—Arthur Campbell.

—Campbell? Não é seu irmão um dos companheiros de Bruce?

Sem dúvida por isso o tinha reconhecido Christina. Recordava a sir Colin Campbell do Finlaggan. Arthur, embora vinte anos mais jovem que seu diferente irmão, assemelhava-se a ele.

—Sim, e outros dois irmãos e eu somos leais ao senhor do Badenoch. Comyn o Vermelho.

Não era incomum que as famílias estivessem divididas. O capitão inglês aceitou sua explicação, e Campbell prosseguiu: —A moça se casou recentemente com o chefe dos MacLeod; um matrimônio por amor, conforme dizem. —Ela reprimiu uma gargalhada aguda de histeria que lhe subiu à garganta—. Estará ansioso por recuperá-la. Possivelmente ela possa nos ajudar a persuadi-lo de que nossa causa é justa. —O capitão não parecia muito convencido. Como a maioria dos ingleses, cometia o engano de subestimar aos «bárbaros» das Highlands—. Também é a filha de Andrew Fraser - adicionou.

Isso fez que o capitão prestasse atenção. Olhou-a, entreabrindo os olhos.

—É isso certo?

Christina assentiu, depois de decidir que o mais prudente era não mencionar que a ameaça de acabar com sua vida não daria muito resultado com seu pai.

Um sorriso se estendeu lentamente em seu rosto cruel.

—tragam-me isso - ordenou ao homem que ainda a segurava—. Talvez possa nos ser útil, apesar de tudo. E se não… —deu de ombros.

Ela soube o que significava esse gesto.

Embora sem dúvida a motivação de Arthur Campbell não tinha sido ajudá-la, lhe dedicou um olhar de gratidão, mas ele já tinha desaparecido entre a multidão de guardas que tripulavam a segunda galera. Entretanto, sua oportuna intervenção não tinha sido mais que uma salvação temporária; seu pai não moveria um dedo para socorrê-la. Quanto a Tor…

Não lhe restava dúvida de que sairia em sua busca. Embora não a amasse, consideraria que era seu dever protegê-la. Mas descobriria a tempo o que tinha acontecido?

*

O êxito deveria ter melhor sabor na sua boca. A equipe havia retornado a demonstrar que suas habilidades eram do que mais valiosas, da perícia do Lamont como rastreador até os dotes de marinheiro do MacSorley, passando pelos instintos do MacRuairi, que os tinham levado a dirigir-se para o Dunstaffnage. Tor duvidava que tivesse conseguido sem eles. Apesar de tudo, durante a viagem - inclusive quando tinham alcançado ao irmão John e MacRuairi o tinha «persuadido» de que lhe revelasse para quem trabalhava— Tor não podia desterrar a tristeza que o envolvia como uma nuvem negra.

A intromissão de Christina poderia ter estragado tudo, mas ela so queria ajudar. Ele não podia reprovar-lhe. Tinham-na enganado e simplesmente tinha tentado fazer o correto. A culpa era dele, por lhe contar mais do que devia. Não permitiria que isso voltasse a ocorrer. Faria o que tivesse que fazer. Repetiu a si mesmo inumeráveis vezes. Por que não podia deixar de ver em sua mente a expressão abatida de Christina?

Afrouxou a cota, tentando aliviar o persistente desconforto que sentia no peito.

Queria deixar para trás o passado. Quando os homens partissem, ele esperava poder virar a página e voltar para um certo estado de normalidade…, se é que tal coisa era possível com Christina. Nada tinha sido normal do momento em que tinha pousado os olhos nela pela primeira vez.

Duas noites depois de sua partida, Tor subiu a escada do molhe, depois de ter coroado sua missão com um êxito terminante. Tinha impedido que o tabelião divulgasse a informação e tinha averiguado quem era o responsável pelos últimos ataques lançados contra Dunvegan. John MacDougall do Lorne ganhou um inimigo poderoso, e Angus Og MacDonald tinha um novo aliado contra seu traiçoeiro parente. Tor já não se manteria à margem do conflito entre os dois influentes clãs ilhéus.

Enquanto se aproximava do grande salão, pensava no que diria para sua esposa para acabar com a discórdia entre eles, mas imediatamente intuiu que algo ia mau. O lugar estava muito escuro, muito tranqüilo. Era como se um pano mortuário cobrisse tudo.

Rhuairi e Colyne foram a seu encontro a passo veloz. Ao ver sua expressão, ele soube que foram lhe dar uma má notícia.

—O que acontece? —quis saber.

Eles se olharam, nervosos, mas Colyne foi o primeiro em falar.

—Trata-se da senhora, RI tuath.

Um calafrio lhe percorreu as costas. Obrigou-se a manter um tom sereno, Apesar de que todos seus músculos se esticaram em um estado de máxima alerta.

—Está doente?

Colyne sacudiu a cabeça.

—Não, chefe - respondeu Rhuairi—. Se foi.

Zumbiram-lhe os ouvidos como se alguém acabasse de lhe golpear o elmo com uma espada. Demorou uns momentos em compreender o que o senescal havia dito. Agarrou ao Rhuairi pelo broche de seu brat de quadros.

—Como que se foi?

Tor escutou a explicação do senescal de que ela partiu na companhia dos homens que se dirigiam ao Mull com uma mescla de incredulidade e um pânico crescente conforme assimilava o ocorrido. Christina tinha aproveitado sua estúpida promessa de permitir que se retirasse a um convento. A ele jamais teria passado pela cabeça que ela chegaria a fazê-lo algum dia, embora em realidade não soubesse por que. Tinha-lhe dado uma saída; por que lhe surpreendia que ela a tivesse utilizado?

Deus sabia que não lhe tinha dado nenhuma razão para ficar. Ela não tinha feito outra coisa que tentar agradá-lo desde que se casaram. Tinha-lhe entregue seu coração, e não tinha dado nada em troca. Comportou-se como um bastardo insensível e tinha acabado por afugentá-la.

Estava sozinho. Não era isso o que queria? Não sentir nada a não ser um vazio em seu interior? Mas não era um vazio o que sentia, a não ser uma dor aguda e lacerante. Sentia-se como se acabassem de lhe cravar uma espada no peito e lhe tivessem esmigalhado as vísceras.

Uma vida inteira de solidão se abria ante ele. Uma vida em que somente teriam a guerra e suas responsabilidades para com seu clã. Uma vida de infelicidade.

Deus santo, o que tinha feito?

Deveria estar furioso porque ela se atrevera a abandoná-lo. Os highlanders eram célebres por seu orgulho, e ele não era uma exceção. Entretanto, unicamente podia pensar no dano que devia ter feito para que chegasse a esse extremo. Sentia-se doente somente de pensar. Tinha que recuperá-la. Não porque fosse sua mulher - porque lhe pertencesse —mas sim porque seu lugar era ali a seu lado.

Não sabia por que albergava sentimentos tão intensos, mas teria que demonstrar-lhe custasse o que custasse.

Continuou caminhando até o salão, com os dois homens seguindo-o a toda pressa. Uns poucos membros do clã dormiam ao calor do fogo, mas a maioria estava sentada em silencio em torno das longas mesas. O ambiente estava tal como ele tinha deixado, mas parecia diferente. Lôbrega, como se toda a alegria se apagou. Seus cães ergueram a cabeça quando entrou. Em vez de correr a recebê-lo, dirigiram-lhe um olhar de desilusão e apoiaram de novo a cabeça sobre suas patas.

—Onde está Murdoch? —perguntou com impaciência.

Ambos os homens o olharam, desanimados. Colyne sacudiu a cabeça.

—Com os homens que foram zarpar para o Mull. Não retornaram.

—Como que não retornaram? —estalou Tor—. Até tendo em conta o tempo acrescentado da viagem a Iona, deveriam ter retornado ontem.

Nenhum dos dois respondeu. De repente, o estômago de Tor deu um tombo, como se tivesse tragado um bocado de carne putrefata. O pânico começou a crescer em seu interior, mas o reprimiu. Christina estava bem. Tinha que haver uma explicação. Mas Rhuairi não tinha terminado.

—Chegou isto para você faz menos de uma hora. O mensageiro disse que ninguém devia vê-lo exceto você.

Tor o abriu, atendido por uma negra premonição.

Parou-lhe o coração e seu rosto ficou lívido quando leu as palavras escritas na parte de pergaminho, palavras que iriam mudar sua a vida.

«Homens mortos. Os ingleses capturaram a sua dama. Dumfries. Não demorem.»

«Não demorem.» Tinham assassinado seus homens e tinham a intenção de matar a ela também.

A perda de seus homens o punha furioso. Tinha vontades de estrangular a alguém. Mas ao pensar que Christina corria perigo…

A bílis lhe queimou a garganta. Embora sempre tivesse acreditado que não tinha medo de nada, um medo maior que jamais sentira se deu procuração dele; um medo escuro que lhe consumia a alma e corroía como o ácido a cobertura de aço de seu coração. Sentia-se como em carne viva. Nu. E mais apavorado do que estivera em toda sua vida.

Se inteirar-se da ida de Christina o tinha arrancado de seu estupor emocional, a notícia de que tinha caído prisioneira dos ingleses foi como um brilho de lucidez que o obrigou a aceitar a verdade.

Amava-a.

Muito tarde compreendeu o insensato que tinha sido. Sua obstinação em orgulhar-se por sua crença de que era imune às emoções tinha impedido de ver o que estava ali desde o começo. Essa era a razão pela que nunca deixava de pensar nela. A razão pela que procurava pretextos para passar tempo em sua companhia. A razão pela que lhe fazer o amor provocava uma sensação tão diferente. Era o que fazia que se sentisse feliz simplesmente ao estreitá-la entre seus braços durante horas e escutar sua voz enquanto lia essas ridículas histórias românticas. Era o motivo pelo que desejava despertar a seu lado todos os dias pelo resto de sua vida. Era o motivo pelo que lhe saltava o coração quando entrava em um aposento e ela levantava o olhar para ele, com um amplo sorriso desenhando-se o no rosto.

Ela havia devolvido a calidez a sua vida, tinha quebrado a muralha de gelo que tinha erigido em seu interior e mergulhou até o mais profundo para encontrar emoções que levavam muito tempo enterradas.

Mas talvez já não tivesse ocasião de dizer-lhe.

Imagens longamente reprimidas desfilaram ante seus olhos. O corpo nu e maltratado de sua mãe coberto de hematomas e sangue, com uma expressão de terror fixada para sempre em seu olhar. E logo recordou o resto: como tinha se jogado sobre ela e se negara a permitir que os homens de seu pai a levassem; quanto tinha chorado; como a dor o tinha abrasado e destroçado por dentro, igual a agora.

Não podia ocorrer isso a ela também. A idéia de não voltar a vê-la jamais…, de não voltar a tocá-la…, de não aspirar nunca mais seu aroma suave e floral era insuportável. Não podia perdê-la.

Algo estalou em seu interior. Raiva. Loucura. Uma determinação obsessiva por encontrá-la e devolver o golpe com a espada da vingança. Jurou que encontraria a cada um dos responsáveis pelo assassinato de seus homens, e se haviam tocado um só cabelo da sedosa e negra cabeleira de Christina, asseguraria-se de que sofressem uma morte lenta e dolorosa.

Os escudeiros de Eduardo tinham cometido um engano de fatais conseqüências. Ao matar aos homens de Tor e capturar a sua esposa, os ingleses tinham feito que a guerra da Escócia passasse a ser a guerra de Tor.

O caminho que devia seguir estava claro. De momento começou a fazer preparativos para reunir-se com os homens na broch. Necessitaria-os se queria ter alguma possibilidade de resgatar Christina. Surpreendentemente, reconhecer isto para seus adentros não lhe custou o menor esforço. Antes de partir, entregou ao Rhuairi uma mensagem breve para que o despachasse ao MacDonald: «Estamos preparados».

Tinha tomado uma decisão. Não haveria volta atrás.


—Peço-lhe desculpas pelas maneiras do capitão, lady Christina. Ao que parece se excedeu um pouco em seu zelo por lhe interrogar.

Um pouco? Christina olhou fixamente ao comandante inglês ricamente vestido e impecavelmente arrumado, que estava sentado de frente a ela nos luxuosos aposentos principais do castelo do Dumfries. Seus olhos delatavam que não o lamentava absolutamente. Entretanto, bater em uma mulher —embora fosse escocesa— era pouco cavalheiresco. Lorde Seagrave, com sua sobreveste impoluta bordada em branco e dourado e sua malha reluzente, deu-lhe a impressão de ser o tipo de homem a quem não gostava de manchar as mãos com os aspectos mais desagradáveis de suas responsabilidades como comandante da guarnição inglesa no castelo do Dumfries, no Galloway. Perto de cinqüenta anos, era um dos comandantes mais velhos do rei em Escócia e tinha participado de quase todas as lutas principais da última década.

Embora tivesse vontade de lhe espetar que guardasse suas desculpas e lhe recriminar que tivessem assaltado seu navio sem motivo e assassinado a todos aqueles homens, Christina sabia que para proteger a seu marido e a sua família teria que seguir interpretando o papel de rapariga assustada e sorrindo como uma parva, que era o que tinha feito no momento de sua captura. Os últimos dois dias tinham sido os mais longos de sua vida. Horrorizada pela matança gratuita dos homens de seu marido, tinha vivido a cada segundo temerosa de que mudassem de idéia. Tinha que sobreviver durante o tempo suficiente para informar a alguém do acontecido. Era imprescindível vingar aquelas mortes.

O capitão inglês tinha mitigado o tédio da longa travessia por mar interrogando-a sobre as atividades de seu pai e seu marido. Quando não gostava da resposta, golpeava-a. Sua arrogância, não obstante, tinha virado em favor de Christina, pois era evidente que na realidade não acreditava que ela possuísse informação valiosa. A maioria dos homens considerava as mulheres seres inferiores, e os ingleses, com seu altivo sentimento de superioridade, eram ainda piores.

Christina tinha se informado de muitas mais coisas das que tinha revelado. Os homens falavam sem disfarces em sua presença, sobre tudo de noite. Ela tinha descoberto que acabavam de estar no castelo do Inverlochy, o bastão nas Highlands do senhor do Badenoch, Comyn o Vermelho. A escolta dos highlanders estava integrada em sua maior parte por membros do clã Comyn e seus parentes do clã MacDougall.

Quando chegaram ao castelo do Galloway, conduziram a Christina à praça dos ingleses no Dumfries enquanto os highlanders se dirigiam ao castelo do Dalswinton para aguardar a chegada de seu senhor.

Estava virtualmente segura de que tramavam alguma ação nefasta relacionada com o conde de Carrick, Robert de Bruce. Um dos guardas do Comyn tinha mencionado de passagem que estava preso em uma prisão inglesa, mas isso era tudo o que ela tinha conseguido ouvir. Esperava averiguar algo mais de boca de lorde Seagrave.

Resistiu o impulso de levar a mão à cara, que tinha inchada e arroxeado, e dizer a lorde Seagrave exatamente onde podia meter sua compaixão. Seus machucados desapareceriam, e suas probabilidades de escapar seriam mais altas se eles a subestimavam. Antes morreria que trair seu marido. Os últimos meses tinham despertado nela uma força e um valor que não sabia que possuía. Se mostrasses intimidada, era unicamente por interpretar um papel. Assim, em vez de replicar com raiva, agachou a cabeça e disse: —Meu pai é um súdito leal do rei. O que seu homem insinua… —inclinou-se para ele e sussurrou—: É traição.

Esperava haver dado a sua voz o toque justo de surpresa e inocência.

Ele sorriu com indulgência, como em deferência a seu simples intelecto feminino.

—Esquecestes que seu pai esteve na prisão por traição não faz muito tempo?

Christina abriu muito os olhos.

—Certamente que não, milorde. Por isso mesmo posso lhe garantir sua lealdade para o rei. Embora diga que o trataram com toda cortesia - mentiu— não tem o menor desejo de voltar. —Baixou a voz com uma atitude de cumplicidade—. Acredito que é porque sentia falta de seu uísque e os bolos de maçã de seu cozinheiro. —Franziu o sobrecenho de maneira forçada—. Tem maçãs na Inglaterra?

Quando o comandante a olhou como se fosse parva de arremate, ela esperou não ter carregado muito as tintas.

—Temo que sim.

—Então talvez fossem as ameixas. Estão demais de ricas. Têm ameixas também?

A lorde Seagrave começava a esgotar a paciência. Aquela mulher tinha intercalado seus dois interrogatórios com bate-papos sobre comida, móveis e música, para grande irritação do comandante.

—Remetemos uma mensagem a seu pai, mas não respondeu ainda. Por quê?

Estava entrando em terreno perigoso. O valor de Christina como refém diminuiria de forma considerável se os ingleses descobrissem que seu pai não iria resgatá-la.

—Talvez esteja de viagem. Retornou o mensageiro que enviaram a meu marido?

—Ainda não - disse ele com o sobrecenho enrugado.

De novo chamou alguém na porta, mas Christina se acostumou às interrupções constantes. Durante a hora que ele levava tentando interrogá-la nesse dia, um desfile de homens tinha passado pelo aposento.

Um soldado jovem entrou e entregou uma carta sem explicação alguma. Lorde Seagrave devia estar esperando-a, pois a abriu e a leu com rapidez. O sorriso matreiro que lhe arqueou os lábios despertou a curiosidade de Christina.

—partiram os homens? —perguntou lorde Seagrave.

—Não - respondeu o jovem cavalheiro—. Digo se acontecer, senhor?

Christina ficou de pé, sem dissimular sua emoção.

—Posso voltar para mi… quarto. —O quarto reduzido e sem janelas na torre mal era digna desse nome.

Ele a olhou com dureza.

—Não terminamos. Esperes aqui, em seguida volto. —Deixou-a sozinha e fechou a porta atrás de si.

Christina ficou carrancuda até que viu o pergaminho desdobrado sobre a mesa. Arrepiou-lhe o pêlo dos braços. Não acreditou em seus olhos. O comandante deixou a carta.

Com o coração desbocado, inclinou-se sobre a mesa e virou os documentos para coloca-los de cara para ela. Primeiro examinou a página superior e viu que estava escrita em francês.

Afogou um grito e a leu de novo para assegurar-se de que a tinha entendido bem. Era do Comyn o Vermelho para o rei Eduardo, e lhe informava da traição de Bruce, a prova da qual se anexava a seguir. Christina levantou apressadamente a primeira folha de pergaminho e viu um documento lacrado, em latim. Embora continha muitos detalhe, ao que parece se tratava de um pacto entre o Comyn e Bruce contra o rei Eduardo. E agora Comyn pretendia voltar-se contra Bruce e exibir seu acordo como prova de traição.

Ouvindo passos sonoros do outro lado da porta, Christina devolveu os documentos a seu lugar e se reclinou em sua cadeira, tentando serenar seu pulso e atenuar o rubor de nervosismo que lhe tingia as bochechas.

O coração pulsava com força enquanto obrigava a sua mente a responder às perguntas do comandante da forma mais desatinada possível enquanto planejava sua fuga.

Não podia esperar que a resgatassem tendo em conta que essa mensagem seria despachada a Londres a qualquer momento. Embora não conhecesse bem a área, sabia que o castelo de Bruce no Annandale, Lochmaben, encontrava-se perto. Não sabia como chegaria até ali, mas tinha que tentar.

Se essa carta chegasse às mãos do rei Eduardo, Robert Bruce logo seguiria ao Wallace à tumba.


Capítulo 25

Era uma noite perfeita para uma incursão: escura e brumosa, sem uma lua prateada que os delatasse. A escuridão seria sua primeira arma, e a velocidade e a surpresa, a segunda. Atacar depressa e com força era a principal estratégia de todos os piratas. Nem código cavalheiresco, nem regras.

Tor e a equipe, ocultos no bosque, atrás do pequeno castelo de estilo normando erguido em um montículo, aguardavam as altas horas da madrugada enquanto vigiavam todos os movimentos dos soldados ingleses.

Depois da longa viagem pelo mar do norte de Skye até Galloway, no rincão sul-ocidental da Escócia, era uma tortura para ele ter que esperar, sabendo que sua esposa se achava a somente umas centenas de pés dali. Não queria nem imaginar o que ela devia estar suportando nesse momento. Também se negava a considerar a possibilidade de que não seguisse com vida. Tinha que concentrar-se em seu encargo. Assaltar um castelo ocupado por uma guarnição inglesa inteira não era tarefa fácil.

Mas podia levar a cabo.

Era célebre o ataque surpresa por meio do qual Wallace tinha tomado a praça inglesa no castelo do Ardrossan, no Ayr, e Tor tinha decidido empregar uma tática similar. Com perto de uma vintena de homens e sem máquinas de assédio, irromper em turba pelas portas ficava descartado, assim teriam que recorrer ao sigilo e às manobras de distração.

Supunham que Christina estivesse presa na torre de pedra de planta quadrada construída no alto do montículo de terra, de quarenta pés. Para chegar até ali, teriam que atravessar as duas linhas de defesa características disse tipo de fortificação: o fosso que circundava todo o complexo e a paliçada que se levantava do outro lado.

À frente de oito homens da equipe de Bruce, cruzaria o fosso e a paliçada da parte posterior do castelo, em frente da ponte levadiça exterior. Uma vez dentro, separariam-se para procurar Christina, enquanto outros preparavam a fuga. MacRuairi estava convencido de que podia tira-la da torre quando tivessem conseguido entrar, independentemente de onde a tivessem encerrada. Ao Tor bastava jogar uma olhada a seu semblante para acreditar. Seton e Boyd também o acompanhariam. Necessitava homens acostumados no combate corpo a corpo que soubessem dar morte de forma silenciosa, com adagas ou com as mãos nuas.

Disporiam de meia hora para encontrá-la e matar aos guardas antes que Gordon e o resto da equipe atraíssem a atenção dos ingleses para eles para que os outros pudessem sair. MacSorley estaria esperando no exterior com seus guardas do clã MacLeod quando baixassem a ponte.

A luz do interior da torre se apagou quase por completo. A atividade dos soldados ingleses se reduzira. Somente um ou outro som de um animal ou o sussurro das folhagens rompia o silêncio. Tinha chegado o momento.

Tor se ajoelhou na terra e nas folhas, rodeado pelos membros da equipe, para lhe da as últimas instruções.

—Já sabes o que deve fazer, Falcão? —perguntou ao MacSorley, que encabeçaria aos do clã do MacLeod.

Tor tinha tomado um risco ao levar guerreiros adicionais, mas como precaução acrescentada se guardara de chamar os membros da equipe por seus nomes. Tinha ocorrido à idéia de utilizar nomes de guerra quando tinha ouvido Boyd empregar o apelido com que MacSorley se referia a ele ante a Christina.

O gigantesco escandinavo desdobrou um grande sorriso, e o branco de seus dentes reluziu em seu rosto com o resto sumido na escuridão.

—Sim, capitão. Ir por sua senhora e nos assegurar de que esses condenados ingleses não se esqueçam desta noite por toda sua vida.

De qualquer óptica minimamente racional, atacar uma guarnição de cem soldados ingleses com uma vintena de homens parecia uma missão suicida. Mesmo assim, Tor confiava no seu êxito. A destreza da unidade de elite de Bruce tinha superado inclusive suas próprias expectativas. Juntos formavam uma força digna de ter em conta. Sentia-se como se estivesse a ponto de viver um momento transcendental, como disposto a fazer história. Criava-se uma nova era de guerreiros, a era dos highlanders.

Esses malditos ingleses não sabiam o que os esperava.

Assaltar uma praça inglesa os converteria a todos em traidores aos olhos de Eduardo, mas eram conscientes disso quando foram à chamada de Bruce. A incógnita de que Lamberton e Bruce aprovariam ou não aquela operação precipitada e não autorizada não era algo que preocupasse ao Tor. A vida de Christina estava em jogo; ele faria o que tinha que ser feito.

Tor e os oito membros da guarda de Bruce que o acompanhavam avançaram sem fazer o menor ruído por entre as sombras para o fosso que rodeava o montículo. Por meio de gestos, indicou que colassem o corpo a terra e se mantivessem muito pegos ao chão. Quando chegaram na borda do fosso, aguardaram até certificar-se de que o sentinela no alto do montículo não pudesse vê-los antes de descer. Como era inverno, o profundo fosso continha alguns pés de água, ou, melhor dizendo, de um lodo frio e negro que desprendia um aroma mofado a plantas podres. Cuidando de proteger a pólvora do Gordon, caminharam pela lama e ao chegar ao outro extremo subiram à borda para chegar à paliçada formada por estacas bicudas.

Essa era a parte mais delicada da missão. Teriam que escalar os postes de madeira de dez pés de altura sem que os descobrissem os guardas situados no montículo, por cima deles, nem o soldado que fazia a ronda por aquela seção do recinto. Tinham escolhido um lance da paliçada oculto à vista por um volumoso edifício que se erguia no pátio exterior do castelo - provavelmente as cozinhas, a julgar pela quantidade de fumaça que tinham visto sair dali horas antes—, mas de todos os modos durante alguns minutos estariam expostos ao perigo.

Tor foi o primeiro a entrar. Lançou um gancho preso a uma corda entre dois postes e puxou a corda até que o gancho de ferro se enganchou.

O coração lhe pulsava a toda velocidade. Com os sentidos totalmente em alerta, esperou o momento certo. Quando o soldado passou, Tor subiu impulsionado pela corda, encarapitou-se nos postes e se deixou cair são e salvo do outro lado.

Estava dentro.

Quando o soldado passou de novo, sua costa encontrou com o aço da adaga do MacKay concebida especialmente com esse fim. A folha se alargava para o punho e pelo outro lado se estreitava até uma ponta aguçada que lhe atravessou a cota de malha até os pulmões. O soldado desabou aos pés de Tor sem soltar nem um gemido. MacRuairi o chamava «morte silenciosa» e tinha ensinado aos homens a encontrar o ponto exato em que cravar a arma. Era uma técnica extremamente eficaz para ações encobertas como naquela em que o som mais leve podia ter conseqüências nefastas.

Um a menos, mas ainda ficavam aproximadamente noventa e nove.

Poucos minutos depois, os outros oito homens estavam junto a ele; tinham conseguido passar ilesos por cima da paliçada.

Tor fez ao Gordon um sinal com a cabeça, e a equipe se dividiu: MacRuairi, Seton e Boyd foram com ele; MacGregor, MacLean, Lamont e MacKay foram com o Gordon.

À frente de sua equipe, Tor rodeou o montículo de terra até a parte detrás. Para acessar a torre da comemoração, teriam que arrastar-se costa acima sem que os vissem. Em vez de avançar um atrás de outro, espaçaram-se entre si de modo que, quando chegassem ao topo, estivessem em posição de matar aos guardas. Mas a sincronização era fundamental. Deviam chegar ao alto da colina e sossegar aos dois guardas que faziam ronda pelo perímetro antes que pusessem de sobreaviso aos sentinelas que custodiavam a entrada da torre que servia de moradia, em que estava Christine.

A terra e a erva seca do pequeno morro que subiam pouco a pouco, fazendo força com os cotovelos e os antebraços, estavam escorregadias e cobertas de barro. Detiveram-se uns pés do topo e se comunicaram de um homem a outro por gestos. Tor ergueu a mão: cinco, quatro, três, dois…

Saíram da escuridão e se equilibraram sobre os guardas despreparados, como seres espectrais. As facas desceram de forma inesperada e letal. Os sentinelas postos na frente da porta exterior da torre foram os seguintes. Noventa e cinco. Tor sentiu que a emoção da batalha o percorria com uma intensidade cada vez maior conforme se aproximava mais e mais a sua esposa. O plano ia dar resultado.

A seguir chegavam o salão, cheio de soldados que dormiam. Nada lhe teria agradado mais que massacrá-los a todos, mas isso teria que esperar. Primeiro tinha que tirar Christina dali. Dispunha-se a entrar na torre quando ouviu um grito procedente do pátio inferior que lhe gelou o sangue.

Amaldiçoou entre dentes, pois sabia que suas possibilidades de êxito tinham passado de boas a péssimas em um piscar de olhos. A vantagem que para eles era a escuridão e o fator surpresa se esfumou. Tor esperava com toda sua alma que o alarido não tivesse sido proferido de seus homens.

Agora, para tirar Christina do castelo, teriam que abrir caminho lutando contra a guarnição de soldados que dormia no salão, a somente alguns passos dali. A fortaleza inteira já ficava em movimento enquanto o alvoroço de baixo aumentava. Não havia tempo a perder.

Tor estava a ponto de ordenar aos homens que entrassem quando, pela extremidade do olho, viu algo que o fez deter-se.

MacRuairi também percebeu isso.

—Parece tratar-se de uma moça, capitão - sussurrou.

Com o sobrecenho franzido, Tor estudou a figura coberta com uma capa que lutava com o guarda que vigiava a porta. O pulso lhe acelerou e o coração deu um tombo repentino contra as costelas. Não se tratava de qualquer moça, mas sim de sua moça. Pelo visto sua mulher tinha decidido não esperar que a resgatassem. Por que não se admirava com isso?

Soltou um juramento e arrancou a correr escada abaixo para o pátio. Levou ambas as mãos às costas e desembainhou a espada.

Um selvagem grito de guerra brotou de seus pulmões e deixou gelados aos soldados de baixo. Um momento depois, Gordon respondeu a sua chamada com outro bramido.

*

Por sorte de Christina, os soldados ingleses gostava de beber.

Quase tinha conseguido cruzar o salão quando um soldado que ela acreditava que estava desmaiado em um estupor alcoólico a agarrou enquanto passava junto à mesa e a sentou sobre os joelhos. Christina passou a mão pela boca, tentando livrar do desagradável sabor do beijo que lhe tinha dado nos lábios. Mas supunha que deixar-se manusear um pouco por um bêbado era um preço que valia a pena pagar pela liberdade. Riu, afastando-o com um tapa com atitude brincalhona, e lhe tinha passado outra taça de vinho antes de baixar-se de seus joelhos, murmurando que tinha outras obrigações que atender.

Fez uma careta de pesar ao pensar na roupa de criada que levava. Esperava não ter batido muito forte na moça, mas tinha que estar segura de que demoraria um momento para voltar em si. Quando a criada tinha aberto a porta para lhe levar o jantar, Christina a tinha surpreendido com um golpe de candelabro na nuca. Tinha «tomado emprestada» a túnica e o brat, esperando que ninguém se fixasse em que ia arrastando os oito centímetros de saia que sobravam, e depois, com tiras de lençóis, atou os pés e mãos da criada e a amordaçou. Desse modo, embora despertasse, não poderia alertar a ninguém.

Lorde Seagrave, a quem jamais teria passado pela cabeça que uma mulher tentasse fugir, acreditava que bastaria passar o ferrolho à porta, por isso não tinha posto um guarda. Foi um descuido de que acabaria por arrepender-se.

Com a esperança de acautelar a perseguição de algum outro soldado amoroso, Christina agarrou uma bandeja e uma jarra vazia, e, fingindo que estava recolhendo as mesas, passou diretamente entre os sentinelas da entrada, baixou a escada e cruzou a ponte para o pátio inferior. Depois de desfazer-se dos objetos de cenário, escondeu-se entre as sombras atrás das cavalariças próximas às portas, esperando uma ocasião para escapulir se confundindo entre os aldeãos. Entretanto, o guarda tinha fechado as portas pouco depois de que ela chegasse. Pugnou por não cair no desespero, pois sabia que não as abririam de novo antes da manhã.

Quanto demoraria em dar conta de que escapara? alguém sentiria falta da criada? Tinha apertado o suficiente suas ataduras?

Havia tantas coisas que podiam sair mau… Rezou por que se produzisse um milagre.

Em vez disso, poucas horas depois - por culpa de um gatinho curioso com o miado mais estridente que ela jamais tinha ouvido—, descobriram-na. Por mais que se empenhasse em afugentar à molesta bola de pelo, esta retornava uma e outra vez. Um soldado viu o gato e decidiu investigar o que ocorria ao ver que o bichinho se negava a lhe fazer caso.

Ela notou que alguém a tirava com brutalidade de seu esconderijo e se encontrou frente a frente com um cavalheiro jovem. De baixa estatura e de costas largas, tinha um rosto chato e traços toscos, mas em seus olhos apreciava um brilho de inteligência. Por sorte, tinha bebido bastante vinho.

—O que fazes oculta na escuridão? —inquiriu.

Christina se esforçou por discorrer uma explicação acreditável enquanto notava os batimentos do coração de seu coração na garganta.

—Pois… —Um sorriso forçado de inocência apareceu em seus lábios enquanto pestanejava com paquera—. Vou encontrar-me com alguém.

Essa mutreta feminina fracassou estrepitosamente. O olhar do guarda se fez mais penetrante.

—Com quem?

—Com o Edward - se apressou a responder ela. Seguro que haveria algum Edward por ali. As pessoas sempre punham nomes de reis em seus filhos, e Edward Plantageneta reinava fazia mais de trinta anos.

—Edward que mais?

Cáspita! Tinha que haver mais de um, estava claro. Ao ver que ela titubeava, o guarda a arrastou até a luz de uma tocha e chamou os outros três soldados que custodiavam nas portas.

—Algum de vós conhece esta empregada?

Um deles a conhecia. Era um soldado que esteve a bordo da galera, com ela.

—É a moça que capturamos -disse— A filha de Fraser.

Não! Tendo conseguido chegar até ali, não suportava pensar que não ia conseguir. Era sua única oportunidade. Seus guardiães não voltariam a relaxar tanto as medidas de segurança. Tentou soltar-se, mas a mão do soldado a aferrava como uma tenaz.

—Por favor - suplicou—. Tenho que voltar para meus afazeres…

Um alarido aterrorizante troou o ar quente da noite. Todos se voltaram para o montículo e a torre.

Christina conteve o fôlego.

O soldado lhe soltou o braço, mas ela se aproximou de novo a ele, para proteger-se instintivamente de algo muito mais horripilante que os ingleses.

As portas do inferno se abriram para deixar sair a um exército de demônios. Os quatro guerreiros espectrais que caíram sobre eles se assemelhavam a seres de pesadelo. Vestidos de negro dos pés a cabeça para confundir-se com a noite, de uma estatura e uma musculatura sobrenaturais, baixaram a escada com passo trepidante, espadas em alto, preparados para descarregar a fúria do muito mesmo diabo com cada cutilada de seu temível aço.

Em vez de sobreveste e cota de malha, levavam espartilhos de guerra negros e saias escuras de quadros rodeadas ao corpo de forma estranha com cinturões. Sob os espantosos elmos com protetor nasal, seus rostos estavam melados, não da pintura azul de glasto dos antigos gaélicos, mas sim de cinza. Somente um brilho branco rasgava a escuridão.

«Deus bendito, os monstros estão sorrindo!»

Christina não podia afastar o olhar do aterrorizante guerreiro que dirigia o ataque relâmpago. Havia algo…

Um calafrio lhe desceu pelas costas no instante em que o identificou. Embora estivesse virtualmente irreconhecível, ela o conhecia.

Seu marido tinha ido a seu resgate.

Os ingleses não sabiam o que fazer. Enquanto os soldados permaneciam paralisados, Christina, consciente do perigo, separou-se da trajetória da investida dos guerreiros. Apenas tinha se afastado uns passos quando o caos estalou —literalmente— em torno deles.

Uma série de estampidos ensurdecedores sacudiu a noite: detonações horríveis que semeavam o terror. Ela nunca tinha ouvido nada parecido. Soavam como trovões, mas o céu estava totalmente limpo.

Ouviu o zumbido de flechas que voavam sobre sua cabeça, e os quatro soldados que vigiavam as portas caíram em rápida sucessão. Um momento depois, um guerreiro com um arco à costas saltou do telhado das cavalariças, porta se abriram, a ponte desceu, e mais guerreiros de seu marido irromperam no tumulto que reinava no pátio do castelo.

Os soldados corriam de um lado a outro, saíam dos barracões e desciam da torre para ver o que estava ocorrendo.

*

Tor e seus homens lutavam como possessos, atravessando com a espada a todo aquele que se interpor em seu caminho. A rapidez e a ferocidade do ataque eram assombrosas. Os ingleses, aturdidos, não eram rival para eles.

Christina viu perecer ao cruel capitão que tinha assassinado aos homens de Tor e a tinha mantido presa, virtualmente partido em dois por um poderoso talho da enorme espada de seu marido.

Desviou o olhar, pois não tinha estômago para presenciar a morte de ninguém, inclusive quando era merecida.

O céu se iluminou, e as chamas prenderam ao redor deles. Os animais se uniram à correria humana que tentava escapar. Christina esteve a ponto de ser atropelada por um cavalo, mas uma mão firme a levantou e a pôs fora de perigo.

Tor. Antes que Christina pudesse deitar-se em seus braços, ele a fez girar para um lado enquanto, com uma mão, atirava um golpe de espada a um soldado que se aproximou dela por trás.

Mas o caos começava a remeter. Seu marido e seus homens tinham despachado já à maioria dos soldados havia no pátio. Uma nova onda de ingleses desceu em turba a escada da torre, mas quando cruzaram a ponte sobre o fosso, os guerreiros de Tor estavam esperando-os para dar conta deles um a um. Ao precaver-se do que ocorria, alguém —certamente lorde Seagrave— deu a ordem de retirada da torre. Os homens que ficaram no pátio foram deixados a sua sorte quando a porta da torre se fechou.

Christina abraçou a seu marido, com o rosto contra seu peito, muito aliviada para que importasse que estivesse coberto de barro e imundície.

—Não estava segura de que chegasse a tempo.

Ele a afastou ligeiramente, levantou-lhe o queixo com sua mão embainhada em uma manopla e lhe deu um beijo tão selvagem e frenético que a deixou sem fôlego e atordoada por uns instantes. Entretanto, Christina não se atrevia a ter ilusões.

Ele interrompeu o beijo e a olhou aos olhos.

—Eu temia que fosse muito tarde. Encontra-te bem?

Ela assentiu, e as lágrimas apareceram em seus olhos. Uma só olhada ao Tor bastou para que todo o medo, o espanto e o desespero que tinha acumulado em seu interior nos últimos dias estalasse em uma corrente de pranto.

—foi horrível. Seus homens… —Soluçou—. O navio… Todos mortos.

Os lábios de Tor adotaram uma expressão séria sob a máscara de aço.

—Sei. Chist - a sossegou, tentando tranqüilizá-la—. Já me contará isso mais tarde. —Levantou-lhe o rosto para a luz e proferiu uma maldição ao ver os hematomas em torno da bochecha e do o olho—. Quem te fez isto? Matarei-o.

—Já o fez - repôs ela, assinalando ao capitão.

—Tenho que te tirar daqui. Está em condições de montar a cavalo?

Christina assentiu com um ardor e um nó na garganta que lhe impedia de falar.

—Bem. Um de meus homens está juntando cavalos fora da paliçada; levarei-te com ele. Estará a salvo até que terminemos aqui.

Tinha a intenção de tomar também a torre. Considerando o que os ingleses tinham feito a seus homens, ela sabia que não teria piedade.

—Não há tempo para isso. Tem que me levar até o conde de Carrick quanto antes. Rogo por que esteja no Lochmaben.

—Bruce? O que necessita dele?

Falou-lhe dos documentos que tinha lido, e não fez falta que lhe explicasse as possíveis repercussões.

—Está segura?

Christina fez um gesto afirmativo.

—Terá que interceptar aos mensageiros antes que cheguem onde está Eduardo.

—Viu-os partir?

—Isso eu creio. Dois homens partiram a cavalo antes do almoço.

—Ingleses?

Christina assentiu.

—Poderão prosseguir sua viagem com menos dificuldades que os homens do Comyn quando chegarem à fronteira.

—Eu me ocupo dos mensageiros.

Dirigiu-se a um dos guerreiros vestidos de negro e lhe disse algo. O homem reuniu a três guerreiros mais, subiram no lombo de suas cavalgaduras e puseram-se em marcha.

Uns minutos mais tarde, Christina cavalgava junto com o Tor, rapidamente, em direção ao Lochmaben.

*

Robert de Bruce, conde de Carrick e senhor do Annandale, escutou o relato de Christina com incredulidade crescente, e logo com ira mal contida. Que não pusesse em julgamento a veracidade de suas palavras confirmava que esse documento tão perigoso, o tratado que tinha assinado com o Comyn, era autêntico.

—Matarei-o - disse, com os olhos azuis escurecidos pela raiva—. Sabia que não era de confiança.

—Então por que confiaram nele? —perguntou Tor.

Semelhante desacerto não encaixava com a imagem que se formara do aspirante a governar Escócia. Bruce o tinha surpreendido. Assim que o tinha visto, Tor tinha identificado nele o único traço que teria impressionado a qualquer Highlanders: Bruce era um guerreiro. A diferença da maioria dos nobres escoceses, dava a impressão de sentir-se tão cômodo no campo de batalha como no Parlamento.

O conde tinha um olhar ardiloso e dizia as coisas sem disfarces; algo insólito para um político. Embora não restava dúvida de que era um homem orgulhoso, felizmente parecia desdenhar a pompa ao que era tão aficionada a nobreza das Lowlands. O brat forrado de pele e o pesado broche de ouro que levava a pescoço eram os únicos sinais visíveis de sua riqueza. Se tinha notado o pó e a sujeira que recobriam ao Tor e a seus homens, não tinha dado o menor indício disso, e os tinha feito passar ao salão em seguida.

Bruce baixou a voz para responder à pergunta de Tor. Embora lhe tivesse assegurado que podiam falar com inteira liberdade no salão, não era demais ser precavidos.

—Teria sido mais fácil vencer a Eduardo com uma Escócia unida. Além disso, esperava poder evitar uma guerra civil. Não acreditava capaz de confessar sua própria traição para delatar a mim. Comyn tem mais fé que eu na gratidão de Eduardo. —Olhou ao Tor com fixidez—. A quem enviaram atrás dos mensageiros?

—Aos melhores homens - respondeu ele—. Lamont encabeça a equipe; encontrarão-os.

Bruce lhe sustentou o olhar e, ao perceber que a segurança com que falava era sincera, assentiu.

—O que ides fazer, milorde? —perguntou Christina.

—Não sei - disse Bruce em um tom solene—, mas Comyn terá que prestar contas pelo que tentou hoje. —Como acima de tudo era um cavalheiro galante, Bruce deixou a um lado a ira e se inclinou sobre a mão dela para lhe plantar um casto beijo nos nódulos — Estou em dívida com você, lady Christina, uma dívida que jamais poderei lhe pagar. —voltou-se para Tor—. Espero que seu marido seja consciente de quão afortunado é por ter uma esposa que não só é bela, mas sim também possui talentos inesperados e extremamente úteis. Dissestes as palavras desse documento melhor que meus tabeliães. —Seus olhos cintilaram—. Possivelmente deveria toma-la a meu serviço.

Christina, encantada com a adulação, ruborizou-se de prazer ante a admiração sincera que destilava no rosto do conde; um rosto muito arrumado, diga-se passagem, embora deixasse de sê-lo se não lhe soltava a mão. Talvez isso de cavalheirismo não estivesses do todo mal.

—Sou consciente disso - balbuciou Tor entre dentes—. E temo que os talentos de Christina estejam reservados para seu marido.

A aspereza de seu tom fez que Christina franzisse o sobrecenhopois não compreendia o porquê de sua irritação. Bruce, pelo contrário, compreendia-o perfeitamente. Riu e lhe soltou a mão.

—Agradeço-lhe o serviço que me emprestastes hoje, moça. Se algum dia necessitarem algo, não têm mais que me pedir isso Christina ficou um pouco mais rubra e lhe devolveu o sorriso.

—Se não lhe importar, quereria apelar agora mesmo a essa generosidade que me ofereces. Um banho me sentaria uma maravilha.

—Disporei que lhe preparem isso no ato.

Christina dirigiu ao Tor um olhar inquisitivo.

—Vá -disse ele—. Eu irei em seguida.

Ela assentiu e saiu do salão depois da criada. Os dois homem a observaram afastar-se.

—saístes ganhando com nosso acordo - comentou Bruce com malícia.

Era certo, mas Tor não tinha por que dizer-lhe.

—Não me queixo.

—decidistes aceitar a encomenda.

—Com algumas condições. —Na presença de Christina tinham falado em francês, mas tinham ido inconscientemente ao gaélico quando ela se fora; outro ponto a favor de Bruce.

O conde o olhou com receio.

—Que condições?

—Obedeceremos a suas ordens, mas eu tenho que estar no comando da equipe. Para que uma guarda destas características seja eficaz, devo gozar de autonomia e de uma autoridade absoluta sobre o terreno.

Bruce refletiu durante longo momento, ao que parece não muito agradado por suas exigências.

—Assim que eu lhe digo o que necessito e vocês decidem como levá-lo a cabo?

Tor deu de ombros. Essa era uma forma de vê-lo.

Ao cabo de uns minutos mais, Bruce, a contra gosto, assentiu em sinal de consentimento.

—Não é que não esteja impressionado pelo que seus homens e vocês têm feito, mas a próxima vez procure me avisar antes de atacar uma praça inglesa.

Tor sorriu.

—Farei o possível, mas o que ocorre é que não dispúnhamos de tempo. Os ingleses tinham em seu poder um bem muito valioso para mim.

—Alguma outra condição?

—Embora meus homens e eu estejamos presos a seu código cavalheiresco, e embora lhe façamos o trabalho sujo, não obedecerei nenhuma ordem que me obrigue a matar mulheres ou meninos.

—Alegra-me ouvir isso - disse Bruce com expressão sardônica—. Embora lhe encomendarei missões perigosas e desagradáveis, dou-lhe minha palavra de que não lhe pedirei nada que não esteja disposto a fazer eu mesmo.

Surpreendentemente, Tor advertiu que falava sério. Sua admiração pelo elogiado cavalheiro cresceu grandemente. Em um princípio, a decisão de Tor de dirigir a equipe não obedecia tanto a seu desejo de unir-se a Bruce como de derrotar a Eduardo. Entretanto, o jovem conde lhe tinha causado uma magnífica impressão. Bruce não era um aristocrata de pouca subida, a não ser um guerreiro nobre decidido a recuperar um reino. A diferença de quase todos aqueles que se regiam pelas regras cavalheirescas, Bruce não assustava sujar as mãos. Era uma qualidade que seria necessária se queria ter a menor possibilidade de êxito. Para ganhar aquela guerra, teria que arrastar-se pelo barro.

Tor o olhou aos olhos.

—E Comyn? Querem que me ocupe dele?

Bruce não fingiu ter interpretado mal a pergunta. Seu caminho ao trono não só estava obstaculizado pelo rei Eduardo, mas também pelo Comyn o Vermelho, possivelmente o nobre mais poderoso daquelas terras.

—Não. Eu mesmo me encarregarei do Comyn.

Tor assentiu, consciente de que as primeiras hostilidades de uma longa guerra estavam a ponto de começar.

—Vá - disse Bruce—. Atendas a sua esposa. —Sorriu—. Embora lhe aconselho que primeiro que tome um bom banho e mudes de roupa.

Tor torceu a boca.

—Sábia recomendação. —Talvez fosse mais fácil convencer a sua esposa de que o perdoasse se não fedesse a pântano.

—E outra coisa, MacLeod. —Tor se voltou, e Bruce lhe dirigiu um olhar severo e significativo—. Estejas preparado.

—Sim, milorde - respondeu Tor com uma inclinação da cabeça—. A suas ordens.

*

Os efeitos relaxantes do banho se dissiparam quando levaram a água. Christina tinha posto uma túnica e um vestido limpos que lhe tinha emprestado a esposa de Bruce, lady Elizabeth de Burgh. Quase sem reparar na decoração luxuosa que a rodeava, aguardava ansiosa, sentada em uma cadeira frente à chaminé, secando os cabelos, sem saber o que aconteceria quando seu marido aparecesse por fim.

Mostrou-se muito aliviado ao vê-la, mas Christina intuía que devia estar furioso com ela por haver partido. Esperava poder lhe fazer compreender que não havia alternativa, que os dois estariam melhor separados. Sabia que tinha sido uma covardia abandoná-lo sem lhe dar explicações, mas aquela primeira despedida tinha sido muito dura; não tinha nenhuma vontade de dizer adeus cara a cara.

Por que Tor demorava tanto?

Quando a porta se abriu finalmente uns minutos depois, o motivo da tardança ficou evidente. Ela ficou sem fôlego e notou uma opressão tão forte no peito que era quase um ardor. igual a ela, Tor tinha tomado um banho. Seu cabelo castanho com reflexos dourados reluzia à luz do fogo, e um aroma fresco de sabão flutuava no ar quente.

Christina sentiu o coração dar um tombo. Por que tinha Tor que lhe complicar a vida estando sempre tão absurdamente arrumado?

Seus olhares se encontraram. Ela abriu a boca com a intenção de desculpar-se, mas, para sua surpresa, viu-se apanhada em um apaixonado abraço.

—Por Deus santo, Christina, deu-me um susto de morte! —Tor deu um beijo no cocuruto a sua esposa e a estreitou com mais força entre seus braços—. Acreditava que tinha te perdido…

Seu tom soava diferente. Falava com uma voz mais suave, rouca pela emoção. Ela não queria ter ilusões vãs. Nada tinha mudado. Tor tinha ido em seu resgate, mas isso era algo que já tinha feito antes. desta vez ela não se deixaria levar por suas fantasias românticas. Aquilo não significava que ele a amasse.

Aspirou profundamente, desejando reter seu aroma quente e masculino, antes de obrigar-se a si mesmo a afastar-se dele.

—Suponho que estas desejando saber o que aconteceu com seus homens - disse—. Foi espantoso. —Os olhos se encheram de lágrimas—. Todos morreram…

Tor curvou os lábios em uma expressão séria.

—Morreram fazendo aquilo para o qual estavam treinados, Christina, o que mais amavam. O objetivo na vida de um highlander é morrer em batalha. Para um guerreiro, é a máxima honra.

Christina nunca conseguiria entender. Os guerreiros eram feitos de uma massa diferente.

—me conte o que aconteceu pediu Tor com delicadeza.

Explicou-lhe que os navios os tinham seguido e os tinham assaltado sem provocação prévia. Seu marido a escutou sem interrompê-la, sorrindo ao ouvir como seus homens a tinham rodeado e a tinham protegido com seu corpo.

—Talvez se eu não tivesse…

—Não - a cortou Tor—. Teriam morrido embora não estivesse ali. Ninguém teria podido prever o que ia acontecer. Meus homens realizam essa rota várias vezes ao mês; os assaltos no mar são muito pouco freqüentes. Imagino que os MacDougall reconheceram minha insígnia e decidiram prosseguir com seus esforços por acabar comigo.

—Eram os MacDougall que estavam atrás dos ataques?

Tor assentiu.

Isso significava que…

—alcançamos ao irmão John antes que pudesse divulgar o que tinha averiguado.

—Assim é. —Graças a Deus. Ao menos ela não seria responsável por isso—. O que não sabes é que meu novo tabelião era sobrinho de John do Lorne, e que meu tabelião anterior não tinha sofrido um acidente.

Que horror! Christina mordeu o lábio; ainda lhe custava assimilar a traição de seu amigo. Ao notar que Tor a observava, levantou o olhar para ele.

—E quando o deixaram…?

Ele a olhou fixamente.

—Tinha-nos visto.

Christina fez um gesto para indicar que tinha compreendido. Não podia ser de outra maneira. O tabelião sabia ao que se expos, o que lhe aconteceria se o capturavam. Mesmo assim, o coração lhe encheu de tristeza por sua morte.

Ao perceber sua aflição, Tor lhe afastou uma mecha de cabelo do rosto e acariciou devagar sua bochecha arroxeada com o dorso do dedo.

—Não sofreu. E acredito que lamentava ter te envolvido em sua traição. Sentia um afeto autêntico por ti.

A ternura das carícias a confundiu, igual a suas palavras amáveis. Por que tinha que lhe pôr as coisas tão difíceis? Ela so queria passar o mau gole quanto antes. Afastou o rosto da mão de Tor e recuou um passo.

—Não deveria ter te deixado desse modo.

—Não, não deveria.

—Fui uma covarde por não me despedir. Mas… temia… temia que me faltassem as forças.

—por que me deixou, Tina?

Algo em sua voz fez que o coração lhe desse um salto. Não. Negava-se a imaginar sentimentos que não existiam.

—Porque não suportaria passar o resto de meus dias com alguém que jamais poderia me amar - respondeu sem olhá-lo—, que não me deixaria formar parte de sua vida porque não me quer ou não me valoriza.

—Entendo - disse ele sem alterar-se—. Se todo isso era certo, tinha motivos de sobra para partir.

Tinha? Ela cravou o olhar em seus olhos inescrutáveis. É obvio que os tinha. Tor devia ter concluído também que seu matrimônio não levava a nenhuma parte. Ardiam-lhe as vísceras. Por que doía tanto a verdade? O que haveria ao Tor fingir que se importava ao menos um pouco? Baixou o olhar para que ele não visse seus olhos chorosos. De algum modo conseguiu articular as palavras, embora cada uma delas lhe engasgasse: —Se me levar a Iona na travessia de volta, não voltarei a te incomodar.

—Temo que não posso fazer isso —repôs ele com suavidade.

Christina notava em seu interior uma dor cada vez mais intensa, como um ferro candente contra a pele em carne viva.

—É obvio. Estará ocupado com sua equipe e o conde. Possivelmente possa dispor que um navio me leve…

—Não.

A firmeza da negativa a impulsionou a olhá-lo por fim.

—Não irá a Iona - disse Tor.

Christina ficou perplexa.

—Mas jurou que se algum dia eu desejasse ir, deixaria me retirar a lona com minha irmã.

Tor deu de ombros.

—Mudei de idéia.

—Não pode. Fez um juramento.

Tor sorriu ante sua indignação. Isso era algo tão inesperado para a Christina, dadas as circunstâncias, que não sabia o que fazer. Como podia ele ser tão cruel para burlar-se dela desse modo?

Entretanto, quando se fixou em seus olhos, o que viu neles fez que seu coração deixasse de pulsar.

Aproveitando-se de seu desconcerto, lhe rodeou a cintura com o braço e a atraiu para si, moldando o corpo de Christina ao dele. Beijou-a com delicadeza, docemente, com uma emoção quase reverencial.

—Farei o que seja necessário para que permaneça a meu lado - disse.

Todo rastro de hilaridade tinha desaparecido de seu semblante, e ela leu a incerteza em seu olhar.

Mas se Tor jamais sentia incerteza por nada…

—Não te entendo.

desta vez foi ele quem se afastou. Passou os dedos pelos cabelos, que seguiam úmidos. Caíam-lhe em ondas deliciosamente por debaixo das orelhas.

—Isto não eu não entendo bem.

Ela aguardou que continuasse, não muito segura do que se referia com «isto».

Tor respirou fundo.

—Quando me dei conta de que podia te perder, foi como se algo dentro de mim mudasse de repente. Como se tudo o que acreditava saber de repente se virou do avesso.

Embora Tor parecesse estar sofrendo o inexprimível, ela não teve piedade dele.

—A que te refere?

—Desde que meus pais morreram e eu passei a ser chefe, acreditava que tinha que ser diferente, que a única maneira de cumprir meu dever para com meu clã era desterrar toda emoção. Mas ao me esforçar por conseguir, esqueci-me do que significa viver. Você devolveu a calidez a minha vida - acrescentou, lhe roçando a bochecha com a parte posterior do dedo—. Acreditava que não necessitava a ninguém, mas estava equivocado. Necessito a ti, Tina. Sem ti, não tenho nada mais que uma vida fria e vazia.

Fez uma pausa, e Christina ficou contemplando-o.

—Por ser alguém quem não se dá bem falar de seus sentimentos, está fazendo maravilhas.

Ele sorriu, aliviado.

—Então já ouviste o suficiente?

Christina negou com a cabeça.

—Sei que me levei como um imbecil. —Ela não o contradisse—. Existem coisas pelas que não tenho direito a te pedir que me perdoe. Não posso alegar nada em minha defesa salvo que estava convencido de que tinha que fazer tudo sozinho. Sei que você tentava me ajudar. Além disso, não foi a única que se deixou enganar por aquele modesto tabelião. Sim, valorizo-te. Sempre te valorizei, embora possivelmente não soubesse até que ponto. Nunca me tinha dado conta que uma mulher pudesse ser tabelião, mas demonstraste que me equivocara. Rhuairi diz que seus cálculos são impecáveis. E, depois do que tem feito hoje… Graças a ti, Bruce viverá para lutar o dia de amanhã. —O orgulho que brilhava em seus olhos não podia ser fingido—. Perdoe-me, Tina. Retorna a casa comigo e me dê outra oportunidade.

Ela tinha o coração a ponto de estalar. Não havia nada que desejasse mais que apoiar a cabeça em seu peito e render-se à esperança que lhe brindava. Mas sua mente resistia a deixar-se convencer tão facilmente. Não poderia suportar outro frio rechaço como o da última vez.

—Como posso estar segura de que não reagirá exatamente da mesma maneira quando voltar a fazer algo que te desgoste?

Tor a olhou com apreensão.

—Tem pensado me desgostar muito freqüentemente?

Ela franziu os lábios e levantou o queixo.

—Pode ser que sim. Não vou conformar sendo sua esposa unicamente no quarto. Temo que vou pôr-me exigente contigo.

—Como de exigente? —perguntou ele como se lhe estivessem arrancando um molar.

—Muito. E se acessar a retornar, as coisas serão diferentes.

Ele a olhou com expressão de abatimento.

—Não vais facilitar-me as coisas, verdade?

—Temo que não. —Tor agachou a cabeça para animá-la a continuar—. De vez em quando, talvez queira que demonstre seu afeto diante dos membros de seu clã.

Ele fez um gesto de dor.

—Seguro que isso não será nece…

—Um olhar terno, possivelmente um beijo rápido. Nada que te custe muito esforço.

—Não é você quem terá que agüentar os comentários do MacSorley junto à fogueira.

—Estou segura de que é o bastante homem para suportar —disse ela sem mostrar a menor compaixão. Os guerreiros temíveis não deviam choramingar—. E de vez em quando possivelmente goste de te dar minha opinião sobre os temas de suas conversas.

—Sempre e quando estiver de acordo comigo.

—Inclusive quando essas opiniões não coincidam com as tuas.

Tor torceu os lábios.

—Em particular poderá me contradizer quanto queira.

Christina assentiu.

—Parece-me razoável.

—É tudo? —inquiriu Tor, com o aspecto de um réu que ia caminho do patíbulo.

Ela sacudiu a cabeça e levantou o olhar para ele, esperando que sua voz não delatasse o vulnerável que se sentia.

—Exijo também seu coração.

—É teu — disse Tor sem vacilar. Christina reprimiu o impulso de mover-se.

Tor pôs cara de sofrimento.

—Me vais obrigar-me a dizer, verdade? —perguntou.

Ela fez um gesto afirmativo.

—Temo que sim. É importante que o ouça de sua boca se tiver que te acreditar.

—É uma mulher cruel.

—Cruel, não. Desumana. —Sorriu com picardia—. Aprendi com o melhor.

Então Tor fez algo que Christina jamais teria imaginado que lhe veria fazer, algo que não esqueceria em toda a vida. Seu marido, o chefe orgulhoso, o rei de seu clã, o guerreiro maior de sua época, pegou sua mão e fincou um joelho em terra, ante ela.

—Amo-te, Tina. Talvez não seja o cavalheiro pelo qual suspirava, mas se voltar para meu lado te prometo que me pugnarei por te demonstrar meu amor todos os dias do resto de nossas vidas.

As lágrimas escorregavam pelas bochechas de Christina.

—Diz de coração?

Um sorriso irônico se desenhou no arrumado rosto de Tor.

—Tendo em conta minha posição neste momento, acredita que é necessária a pergunta? —Seu sorriso se alargou—. Sim, carinho. Digo de coração. Amo-te com toda minha alma.

Ela sabia que Tor nunca tinha pronunciado essas palavras antes.

—Dará-me outra oportunidade?

Christina moveu a cabeça afirmativamente.

Com um gemido de alívio, Tor a estreitou entre seus braços e não a soltou até que demonstrou esse amor. Uma e outra vez.


Epílogo


Ah, quão nobre é a liberdade!

John Barbour,

A gestão de Roberto de Bruce


Perto da abadia do Scone,

Perthshire, 27 de março de 1306


Os primeiros raios da alvorada apareciam por cima do horizonte. Como se Deus erguesse a mão para benzer em pessoa a cerimônia, um facho de luz brilhante e alaranjada atravessara como dedos o círculo de pedras. Esse espetacular efeito se viu realçado pelo lamento assustador das gaitas de fole que fendia o ar fresco desse dia da primavera. Não importava que o monumento em si fosse pagão: sua majestosidade prevalecia sobre tais considerações. Era um vínculo com o passado remoto da Escócia, um símbolo de força e continuidade, tão misterioso como os homens que se dispunham a ajoelhar-se ante o recém coroado rei da Escócia para lhe oferecer sua lealdade… e sua vida.


Christina, que se achava entre as testemunhas da cerimônia secreta que se estava celebrando entre pedras pagãs, não acreditava que pudesse haver um marco mais apropriado. Naturalmente, seu marido teria preferido que permanecesse a salvo no Skye, mas ela não se teria perdido aquilo por nada do mundo. Ganhou com acréscimo o direito a estar ali e não pensava deixar que ele o esquecesse.

Seu descobrimento tinha dado lugar ao enfrentamento final entre o Bruce e Comyn, e, posteriormente, a aquela cerimônia. Fazia pouco mais de sete semanas, Bruce tinha matado a seu adversário, Comyn o Vermelho, em frente ao altar da igreja do Greyfriars. A cruz ardente se propagou por toda Escócia, chamando a todos seus guerreiros a unir-se sob o estandarte de Bruce. Fazia só dois dias, na abadia do Scone, cenário histórico da coroação dos reis da Escócia, Robert de Bruce tinha sido proclamado rei da Escócia, embora sem a antiga pedra do Scone, roubada pelo rei Eduardo dez anos atrás.

Havia menos testemunhas dos que Bruce esperava. Três dos nove bispos — entre eles Lamberton, o mais influente— estavam presentes, e dos treze condados, somente os senhores do Atholl, Menteith, Lennox e Mar tinham ido à convocatória. Era especialmente destacável a ausência do jovem conde do Fife, quem tinha por nascimento o direito e a obrigação de coroar aos reis da Escócia. Sem a presença do Fife, alguns poriam em julgamento a legitimidade do ato. Entretanto, o jovem conde permanecia na Inglaterra, prisioneiro do rei Eduardo, e a tentativa de levá-lo até ali tinha fracassado.


Bruce estava de pé ante a pedra maior, embelezado com as vestimentas reais e um aro de ouro na cabeça, enquanto o sol se levantava como uma auréola sobre ele.

—Não podemos esperar mais — disse ao Tor—. Teremos que seguir adiante sem eles.

—Chegarão — assegurou Tor com firmeza—. Dêem-lhe dez minutos mais.

Não fez falta nem a metade desse tempo: quando ainda não tinham transcorrido cinco minutos, três figuras apareceram sobre o topo de uma colina que se levantava para o sul, galopando para eles. Entre o estrondoso tamborilar dos cascos dos cavalos, os três recém chegados irromperam no centro do círculo.

Christina reconheceu entre aquelas figuras a dois dos homens de seu marido, um dos quais era Lachlan MacRuairi. A terceira era uma mulher. Christina sorriu ao precaver-se de que tinham completado sua missão com êxito. Embora o jovem conde do Fife não estivesse ali, sua irmã tinha ido em seu lugar.

MacRuairi se aproximou para ajudá-la a desmontar, mas a dama — uma condessa, neste caso—, lhe jogando um olhar desdenhoso, desembarcou de um salto sem lhe dar a mão. A expressão sombria no rosto do MacRuairi gelou o sangue a Christina. Depois de passar andando régio junto ao ameaçador highlander, a condessa se dirigiu a toda pressa para o rei para prostrar-se ante

ele. O capuz de sua capa caiu para trás, deixando ao descoberto longos cabelos de cor loiro platino, uma paradoxo de suavidade que contrastava com a férrea determinação de suas feições pronunciadas. Christina viu que era jovem, talvez poucos anos mais velha que ela, com uns traços marcados, mais chamativos que belos.

—Excelência - disse com uma voz rouca e transbordante de orgulho—, vim assim que me foi possível. Espero não ter chegado muito tarde.

Bruce lhe dedicou um sorriso tão cálida que Christina se perguntou se seriam certos os rumores de que no passado tinham mantido uma relação amorosa.

—Não, Bela, não é muito tarde. Nunca é muito tarde, e menos ainda quando arriscastes tanto por vir.

Bruce não era o único que estava assombrado pela valentia da jovem condessa. Lady Isabella MacDuff tinha desafiado a seu marido e ao rei para ir a aquela entrevista. E não só era a irmã do conde do Fife, mas também a esposa do conde de Buchan, John Comyn, primo do Comyn o Vermelho e seguidor leal do rei Eduardo. Christina estava convencida de que se a Eduardo lhe apresentasse a oportunidade, faria pagar caro sua ousadia à condessa.

Pela segunda vez em um par de dias, presenciou a coroação do Robert de Bruce como rei da Escócia, embora nessa ocasião fosse lady Isabella quem lhe rodeou o aro de ouro à cabeça.


—Beannachd Do Righ Alban — disse a condessa quando teve terminado. «Que Deus abençõe ao rei da Escócia.»

Mais tarde, levaram rapidamente à condessa rebelde ao palácio para que se reunisse com a esposa e as irmãs de Bruce.

Ao ir a cavalo ao encontro de Bruce, Isabella MacDuff tinha escolhido seu caminho e já não poderia retornar ao lado de seu marido nem da filha que tinha deixado pra trás. De forma inconsciente, Christina levou a mão ao ventre, incapaz de imaginar-se tamanho sacrifício. Embora tivesse confirmado suas suspeitas fazia somente uns dias, já albergava um profundo carinho para o menino que estava gerando.

Por fim, chegou o momento da cerimônia que ela estivera esperando.

Um por um, os guerreiros de elite da guarda de highlanders de Bruce saíram à frente. Inclusive à luz do dia apresentavam um aspecto temível. Se não os tivesse conhecido no transcurso dos últimos dois meses, Christina teria acreditado que não eram reais, a não ser personagens míticos ou produtos de sua imaginação. Todos vestidos de negro e com seu elmo escuro, cujo protetor nasal lhe tampava boa parte do rosto, os guerreiros secretos foram chamados um após o outro por seus nomes códigos para que se ajoelhassem ante a enorme espada de Bruce. O apelido de MacSorley era «Falcão»; o de MacRuairi, «Víbora»; o de MacKay, «Santo»; o de Boyd, «Incursionador»; o de Lamont, «Caçador»; o de MacLean, «Golpeador»; o de MacGregor, «Flecha»; o de Seton, «Dragão», e o de Gordon, «Templário».


O último guerreiro do grupo era o que ela esteve esperando. Os homens se negaram a lhe revelar que nome tinham decidido pôr em seu marido.

—Chefe — chamou Bruce.

Christina sentiu que o coração lhe dava um tombo, comovida pela grande honra que os guerreiros tinham conferido a seu marido. Embora procedessem de clãs diferentes, Tor os tinha unido para formar um novo: MacLeomhann, «filho do Leão». Seria um clã que não estaria apoiado no parentesco, e sim em um objetivo comum: a liberdade e —como simbolizava a nova tatuagem de um leão rampante que seu marido luzia no braço— a restauração de um escocês no trono da Escócia.

Christina viu relampejar os olhos de seu marido sob o aço de seu elmo e soube que ouvir seu apelido também tinha emocionado a ele.

Com um nó na garganta, Christina observou a seu marido avançar e prostrar-se ante seu rei. Nunca se havia sentido tão orgulhosa dele. Era consciente do perigo que corria, mas a aventura em que ele e seus homens estavam a ponto de embarcar-se mudaria o rumo da história. Manter em segredo suas atividades seria complicado, mas por sorte ele tinha um irmão gêmeo que poderia ocupar seu lugar enquanto estivesse longe de casa.

«longe de casa.» Ambos teriam que fazer sacrifícios nos altares daquela guerra.

Mas quando Tor agachou a cabeça e a folha da espada de Bruce lhe tocou o ombro, Christina soube que tinha encontrado algo muito melhor que o cavalheiro de seus sonhos; tinha encontrado a um highlander que tinha conquistado seu coração e um amor que duraria toda a vida.

Os dez guerreiros formaram um círculo em torno de seu rei. Com as espadas em alto por cima de sua cabeça, gritaram: —Airson an Leomhann! —«Pelo Leão!», uma divisa que acabaria por semear o medo no coração de muitos homens.

A operação Leão Rampante30 tinha começado.


Fim


Nota da Autora A maioria dos personagens principais da história estão baseados livremente em figuras históricas reais. «Tor» foi o primeiro chefe e fundador do clã MacLeod (e sexto bisavô de Rory MacLeod, de ‘O Highlander Indomável’ ). Entretanto, em princípios do século XIV, os clãs tal e como os concebemos hoje em dia estavam ainda em matilhas. Inclusive o termo «highlander» é provavelmente um anacronismo — segundo o dicionário Oxford, a palavra highlandman aparece pela primeira vez em um texto por volta do ano 1425—, mas tanto autores de ficção (Nigel Tranter) como de não ficção (G. W. S. Barrow) empregam-na no mesmo contexto histórico. Suponho que, igual a mim, chegaram à conclusão de que não havia uma alternativa melhor. Por outro lado, que graça teria ler uma novela romântica ambientada em Escócia em que não aparece nenhum highlander?

Os dois ramos do clã MacLeod, os MacLeod de Harris e os MacLeod de Lewis, são conhecidos respectivamente como «Siol Thormoid» e «Siol Thorcuil» («semente de Tormod» e «semente de Torquil», em sentido literal). As últimas investigações sobre a genealogia dos MacLeod desmentem a crença anterior de que Tormod e Torquil eram irmãos, e em troca parecem indicar que Torquil foi neto de Tormod (e filho de Murdoch). Setecentos anos depois, é impossível riscar a genealogia com exatidão. Decidi me ater à versão tradicional, tanto por simplicidade como porque é a que mantém o chefe atual do clã MacLeod no lugar da Web de Dunvegan. De forma similar, a descendência de Tor por linha paterna do rei da Noruega e do rei de Man descrita no primeiro capítulo também está simplificada em grande medida e é objeto de controvérsia.

A maioria dos genealogistas coincide em que Tor se casou duas vezes e em que sua segunda esposa foi Christina Fraser, irmã do Alexander (seguidor de Bruce, a quem estava muito unido, e que mais tarde se desposaria sua irmã Mary) e de Simon, o primeiro senhor de Lovat. O pai de Christina esteve detido na Inglaterra durante uma temporada, mas diferente do que se conta na novela, sua família se encontrava ali com ele. Cabe supor que Christina e seus irmãos passaram um tempo na corte inglesa.

As alianças forjadas pelo Tor através do matrimônio ilustram à perfeição a mudança que se estava produzindo naquela época nas ilhas Ocidentais, que eram um reino marítimo independente de estar sob o domínio da Escócia. O primeiro enlace de Tor foi com uma família influente da costa ocidental, e o segundo com a filha de um nobre escocês.

O ataque de Skye por parte do conde do Ross ocorreu em realidade duas décadas antes da novela, em 1262. Foi tão brutal como o hei descrito, assassinato de meninos incluído. A morte dos pais de Tor durante a incursão, não obstante, é um fato fictício.

Segundo algumas lendas, Torquil MacLeod se fez com suas terras no Lewis matando a todos os membros varões do clã Nicolson (afogando-os no Minch) e casando-se depois com a filha herdeira. Como supus que isto seria algo excessivo para o gosto da maioria dos leitores, decidi dar um toque mais romântico à história.

O trasfondo político da primeira guerra da Independência da Escócia é, por dizer com suavidade, extremamente complicado. Aos interessados em conhecer mais a fundo aquela época, recomendo encarecidamente o livro Robert de Bruce do G. W. S. Barrow (Edinburgh University Press, 2005). Para quem quer ler uma série de novelas históricas e amenas ambientadas nesse período The Bruce Trilogy do Nigel Tranter (Hodder Headline, 1985); é um clássico.

A relação entre Bruce e Wallace foi muito mais complexa que a que descrevo no livro. Ambos desejavam expulsar aos ingleses da Escócia, mas Wallace aspirava a restaurar no trono à família Balliol, enquanto que Bruce queria a coroa para si. Tal como assinala Tor quando o critica no primeiro capítulo, Bruce se passava repetidamente do bando dos «patriotas» ao dos ingleses e vice versa. No geral, seus atos podem explicar-se em função de quem apoiavam os Balliol/Comyn; normalmente ele estava no lado contrário.

Passei nas pontas dos pés pelo que é provavelmente o momento mais importante na vida de Bruce: o assassinato de seu rival, Comyn o Vermelho, ante o altar da igreja do Greyfriars. Os relatos de quão feitos culminaram com o assassinato diferem enormemente entre si. Uma das versões «românticas» (hoje desacreditada) fala de um pacto com o Comyn e de mensageiros que levavam a Eduardo prova da traição de Bruce, mas que foram interceptados. Decidi aproveitar esta história porque minha heroína encaixava bem nela, mas também porque me encontrei com o mesmo problema que muitos dos primeiros cronistas da vida de Bruce: como explicar o ato decididamente anti heroico de um grande herói. Era evidente que Comyn se interpunha entre o Bruce e o trono, mas embora tira-lo meio era «necessário», o assassinato de um rival não causa boa impressão, olhe como se olhe. O fato de tê-lo matado em uma igreja e de ter violado com isso seu direito de asilo agravava muito as coisas. Por causa deste crime, Bruce esteve excomungado durante quase vinte anos. Escócia ficou debaixo de interdição também durante um tempo.

O assalto ao castelo do Dumfries se produziu em realidade depois de que Bruce matasse a Comyn, não antes, como acontece na novela. Atacar Dumfries foi o primeiro ato de rebeldia de Bruce contra o rei Eduardo. O governador do castelo naquela época era sir Richard Siward, não Seagrave. Entretanto, é verdade que Seagrave esteve destinado na Escócia durante anos.

Uma das maiores lacunas em meu conhecimento da história daquela época era a importância real que tiveram os descendentes do rei Somerled: os MacDonald (senhores de Islay), os MacRuairi (senhores do Garmoran) e os MacDougall (senhores de Argyll). «MacSorley» é o nome com que se conhece coletivamente aos descendentes de Somerled. Sabia da importância dos MacDonald (mais tarde senhores das Ilhas), mas desconhecia por completo a dos MacRuairi e os MacDougall. Estes últimos eram certamente o clã mais poderoso naquela época, mas foram a menos guerras de Independência. Nossos velhos amigos, os Campbell, foram os mais beneficiados com sua desgraça. Os MacRuairi desapareceram poucas décadas mais tarde.

Contava Bruce de verdade com «forças especiais», uma guarda de highlanders que utilizava como exército pessoal? A resposta breve é não, mas existem alguns paralelismos interessantes. As semelhanças com uma unidade de forças especiais são fictícias, mas é verdade que Bruce tinha uma «mesnada» ou séquito pessoal ao que pertenciam Robert Boyd e partidários deles como Christopher Seton, Alexander Fraser (irmão de Christina), Thomas Randolf, Edward Bruce e Neil Campbell. Este último, junto com Alexander Seton e Thomas Há, assinou um documento no que se comprometia a defender e apoiar Bruce até o final. Em um desses descobrimentos fantásticos que se fazem por acaso, encontrei uma referência ao Donald», filho de Alistair (em quem está apoiado o personagem de MacSorley), que dirigiu a um grupo seleto de highlanders (uma «tropa de ilhéus»), por ordem de Angus Og, com o fim de ajudar e proteger Bruce em 1306. Impressionante, não é?

O que está claro é que, já no início, Bruce reconheceu a importância das Highlands Ocidentais. Na transcendental batalha de Bannockburn, em 1314, Bruce lutou contra os ingleses à frente de uma divisão de highlanders e ilhéus. Em teoria, muitos dos membros da «Guarda das Highlands» combateram ao seu lado (incluindo Tor). E quando Bruce viveu seu momento mais difícil em sua luta por ocupar o trono, foram os highlanders e os ilhéus que foram em sua ajuda. Mas isso já é parte de outra história.

 

 

Notas


[1] O bìrlinn, vulgarmente conhecido como a fhada de longa duração (“Navio de longa duração”), foi construído de tijolo e pode ser navegado ou remado. It had a single mast with a square sail. Tinha um único mastro com uma vela quadrangular. Smaller vessels of this type might have as few as 12 oars, with the larger having as many as 40. As embarcações menores deste tipo pode ter apenas 12 remos, e o maior ter tantos como 40. For over 400 years, down to the 17th century, the bìrlinn or long-fhada was the dominant vessel in the Hebrides. Por mais de 400 anos, até o século 17, o bìrlinn ou fhada longa era a embarcação dominante nas Hébridas
[2] Chrétien de Troyes (c. 1135 – c. 1191) foi um poeta e trovador francês do final do século XII. Foi um dos primeiros autores de romances de cavalaria, sendo também considerado o primeiro grande novelista em língua francesa. Suas obras inspiraram a literatura em toda a Europa Ocidental durante a Idade Média. Sua obra é a primeira a mencionar temas tão conhecidos hoje como a busca do Santo Graal e o amor entre Lancelote e a rainha Genebra. A obra de Chrétien inclui cinco grandes poemas em versos octasilábicos. Destes, quatro estão completos: Erec e Enida (c. 1170), Cligès (c. 1176), Ivain, o Cavaleiro do Leão e Lancelote, o Cavaleiro da Carreta, os dois últimos escritos simultaneamente entre 1178 e 1181.
[3] Meleagant (também grafado Malagant ou Maleagant) é um vilão da lenda arthuriana. Originalmente um cavaleiro da Távola Redonda filho do rei Bagdemagus de Gorre, sua reivindicação à fama decorre de ter sido o seqüestrador de Guinevere. Sua primeira aparição ocorre em Lancelote, o Cavaleiro da Carreta por Chrétien de Troyes, onde leva Guinevere para seu castelo indevassável. A rainha é resgatada por Lancelote e Gawain; esta também é a primeira aparição de Lancelote na lenda arthuriana. Meleagant supostamente teria sido criado com base em Melwas, vilão das primeiras histórias galesas, o qual captura Guinevere na Vida de Gildas. Nesta obra, o rei Melwas captura a rainha e a leva para sua fortaleza em Glastonbury. Arthur a localiza após um ano de buscas e se prepara para atacar o castelo, mas Gildas negocia seu retorno em segurança.
[4] Casaco medieval que se colocava sobre a armadura
[5] Que segue, que acompanha; partidário; sectário, seguidor. S.m. Membro de um bando ou partido; prosélito, assecla.
[6] Maça de guerra:
[7] Machado de guerra:
[8] São Columba (7 de Dezembro de 521 a 9 de Junho de 597) também conhecido como Columba de Iona, ou, em Gaélico, Colm Cille ou Columcille (“pomba da Igreja”). Foi a grande figura missionária da Escócia. Monge irlandês (gaélico), reintroduziu o Cristianismo entre os Pictos medievais. É dito como sendo o primeiro a ter avistado Nessie, o monstro do lago Ness.
[9] Marzipã, marzipan ou maçapão é um doce de origem árabe, preparado a partir de uma pasta feita de amêndoas moídas, açúcar e claras de ovos, que pode ser moldada em praticamente qualquer formato. Também podem ser adicionadas essências.
[10] Clàrsach ou Cláirseach (dependendo irlandês gaélico ou gaélico escocês grafias), é o gaélico palavra genérica para “uma harpa , como derivado do irlandês médio . In English , the word is used to refer specifically to a variety of small Irish and Scottish harps. Em Inglês, a palavra é usada para se referir especificamente a uma variedade de pequenas e gaitas escocesas irlandês.
[11] “é um contador de histórias tradicional irlandesa. Grafias Alternatate incluem seanachaí, senachaí senachie e Shanachie. A palavra é uma forma latinizada do seanachaidh língua irlandesa ou seanchuidh. Vem da palavra irlandesa “seanachas” ou “seanchus” significado “histórico” ou “folclore”.
[12] Cuirm era uma espécie de cerveja fabricada pela Gael . It was a powerful, intoxicating liquor made from barley , and being of course used at all feasts, the word cuirm came ultimately to mean a feast itself. Era inebriante, feita de licor poderoso da cevada , e sendo, obviamente, utilizado em todas as festas, a cuirm palavra veio a significar em última análise, uma festa em si. It is supposed by some to have been the same as whisky , but the process of brewing being so much easier and cheaper than distilling , it was more probably a strong kind of beer. Supõe-se por alguns de ter sido o mesmo que o uísque mas o processo de fabricação de cerveja é muito mais fácil e mais barato do que a destilação.
[13] Vestido com abotoamento frontal e nas mangas
[14] A tradução correta para Gall-Ghàidheil ou qualquer uma das variantes de grafia é “Foreign Gaels” e não é utilizado especificamente para se referir aos estrangeiros nórdicos. It is a general term to describe a particular ethnic grouping of foreigners of which the Norse formed part. É um termo geral para descrever um grupo étnico específico de estrangeiros de que os nórdicos faziam parte. This term is subject to a large range of variations depending on chronological and geographical differences in the Gaelic language , ie Gall Gaidel , Gall Gaidhel , Gall Gaidheal , Gall Gaedil , Gall Gaedhil , Gall Gaedhel , Gall Goidel , etc. The modern term in Irish however, is Gall-Ghaeil , while the Scottish Gaelic is Gall-Ghàidheil . [ 1 ] Este termo está sujeito a uma grande gama de variações dependendo cronológica e geográfica diferenças na língua gaélica. O termo moderno em irlandês no entanto, é Gall-Ghaeil, enquanto o gaélico escocês é Gall-Ghàidheil.
[15] Whisky em gaélico escocês.
[16] Colchão fino de palha.
[17] Banshee é um ente fantástico da mitologia celta (Irlanda) que é conhecida como Bean Nighe na mitologia escocesa. As Banshee provêm da família das fadas, e é a forma mais obscura delas. Quando alguém avistava uma Banshee sabia mal seu fim estava próximo: os dias restantes de sua vida podiam ser contados pelos gritos da Banshee: cada grito era um dia de vida e, se apenas um grito fosse ouvido, naquela mesma noite estaria morto.
[18] Forte em gaélico
[19] Yule é a festa sagrada mais importante do ano teutônico. Começa em 20 de dezembro e dura doze dias, sendo o décimo segundo o primeiro dia do ano.
[20] Bardo dos habitantes das Terras Altas da Escócia, responsável por preservar e repetir as tradições das tribos.
[21] Narrativa medieval sobre mitos gaélicos
[22] Waternish é uma península de uns doze quilômetros de comprimento na ilha de Skye.
[23] Warwolf (Lobo de Guerra) considera-se a maior catapulta da história. Construiu-se na Escócia por ordem do rei Eduardo da Inglaterra, durante o assédio do castelo de Stirling, durante as guerras pela independência escocesa.
[24] Muro cercado defensivo característico dos castelos escoceses durante a Idade Média.
[25] Os brogues eram sapatos de solados planos de um couro muito flexível.
[26] Torre fortificada de duplas paredes e circular própria da Escócia.
[27] Sucessor; segundo ao mando entre as dinastias reais gaélicas.
[28] adj. || (tipogr.) diz-se do formato que tem a folha de impressão apenas dobrada em duas: Formato, volume infólio. , s. m. livro ou volume infólio: F. lat. In… +folium (folha).
[29] O Wyvern ou Guiver (também conhecido como wyverns, na sua grafia Inglês, ou drakontas - e às vezes até chamado por alguns corredores de vento) são criaturas lendárias pertencentes à mitologia medieval , em forma de grandes répteis alados da família de dragões nível inferior, mas são capazes de lançar feitiços.
[30] Leão rampante: firmado em suas patas traseiras. Em posição de ataque.

Capítulo 21

Era a última hora da tarde quando Tor retornou ao castelo. Embora tivesse desejado permanecer junto ao leito de sua esposa doente, assim que lhe asseguraram que se encontrava bem tinha ido ocupar-se de assuntos que não admitiam mais demora.

Que ele recordasse, era a primeira vez que se sentia contrariado ante a chamada do dever. Mas, além de tentar descobrir a um possível espião, tinha recebido uma mensagem inquietante de MacDonald no que lhe exigia que tomasse medidas. Embora aquilo certamente prejudicasse ao equilíbrio da equipe que tanto esforço havia tido alcançar, era inevitável.

Além disso, se ficava nesse aposento um minuto mais, corria o risco de esquecer-se de quão doente esteve Christina e lhe fazer sentir em suas próprias carnes o medo que ele tinha passado por sua culpa.

Desejava apagar para sempre de sua mente o momento em que ela se desabou no chão. Por um angustiante instante, tinha acreditado que estivesse morta. Não tinha recuperado o fôlego até que tinha notado o pulso acelerado sob seus dedos e a respiração tênue, mas constante contra sua bochecha. Sua sensação de pânico diminuiu um pouco mais quando a curandeira a examinou e comunicou a Tor que somente era um pouco de febre.

Somente. Não havia «somente» quando se tratava de sua esposa. Furioso pelo engano da anciã, aterrorizou-a ameaçando reduzir na metade os anos que ficavam, que, por certo não eram muitos.

Tor nunca havia se sentido assim. Christina despertava nele um forte instinto protetor que não sabia que tinha. Como seu marido, era seu dever mantê-la a salvo, mas o que sentia ia mais à frente do dever.

Sempre tinha sido capaz de deixar os sentimentos a um lado e fechar sua mente como uma armadilha de aço. Mas com a Christina não ficava tão simples. Havia algo nela que lhe tocava a fibra sensível, que lhe chegava muito fundo. Era delicada, amável e generosa, possuía uma mente ágil, um entusiasmo e uma alegria de viver contagiosos, mas também uma profundidade e uma têmpera maiores do que ele tinha pensado em princípio. Encarava-lhe, desafiava-o… e se preocupava com ele.

Era um remanso de doçura para um homem que somente tinha conhecido o conflito. E, por mais que se esforçasse Tor não podia manter distância.

Subiu a escada pesadamente e, de forma maquinal, observou a zona. Os guardas estavam em seus postos ao longo dos parapeitos de pedra e no seteiro - uma pequena obra em forma de caixa encostada à muralha do castelo— que sobressaía por cima das portas. Um punhado de mulheres extraía água do poço. Os criados tiravam bandejas e pratos do salão, e Christina estava…

Caiu-lhe a alma aos pés quando fixou o olhar na figura que caminhava entre as almenas. Ficou furioso, uma sensação a qual começava a acostumar-se. Que demônios fazia ela ali fora? Devia estar descansando, não perambulando por aí, exposta ao ar frio do exterior e ainda por cima com o cabelo úmido, Por Deus santo. Acaso não sabia que podia agarrar um resfriado?

Ela se voltou para ele e o saudou com um gesto. Baixou a mão devagar quando Tor se aproximou.

Tinha visto a expressão de seu rosto. Mordendo o lábio, retrocedeu uns passos, mas seu olhar apaziguador não serviu absolutamente para nada.

—Retornaste - disse em um tom exageradamente alegre—. Não te vi vir para aqui.

Sem abrir a boca nem diminuir o passo, ele se equilibrou para ela e a levantou.

Christina soltou um grito afogado de surpresa, mas ele manteve o olhar à frente, pois não se atrevia a olhá-la. Nesses momentos, seu controle sobre si mesmo pendia de um fio. Sentia um ardor no peito.

—Está exagerando-disse ela com suavidade, para aplacar a uma besta raivosa—. Encontro-me bem.

—Não fale-grunhiu ele com os dentes apertados e a ira a flor de pele—. Não fale.

Com um profundo suspiro de resignação, jogou os braços ao seu pescoço e apoiou a bochecha no peito de Tor. Uma enorme onda de calidez abriu passo através da raiva. Invadiu-o uma incrível sensação de… ternura. Que diabos estava lhe passando?

Não sabia e lhe dava igual, de modo que a atraiu para si um pouco mais.

O silêncio se impôs no grande salão quando ele entrou com ela em braços e se dirigiu ao corredor. Era consciente dos olhares de curiosidade que atraía, mas lhe importavam um nada. Se aos pressente deu a impressão de que seu chefe tinha perdido a cabeça, certamente tinham razão.

minutos depois, chegou ao quarto de Christina. Fechou a porta de uma patada e ficou ali de pé durante um momento, com uma estranha relutância a depositá-la sobre a cama. Finalmente o fez e se sentou a seu lado.

Pouco a pouco, notou que relaxava o corpo. Empurrou-lhe o queixo para cima com sua diminuta mão para obrigá-lo a olhá-la aos olhos.

—Sinto muito. Não era minha intenção te dar motivo de preocupação.

—Tem o cabelo molhado - disse ele, como se assim explicasse algo.

—tomei um banho.

—Poderia te resfriar.

Ela teve o descaramento de deixar que lhe notasse que estava reprimindo um sorriso.

—Isso não é mais que uma tolice própria de babás. Saí muitas vezes com o cabelo molhado e nunca adoeci por isso. Somente foi uma ligeira febre; estou bem, de verdade. Morag diz que já não tenho que guardar repouso.

Tor esticou a mandíbula.

—O que saberá Morag de uma pequenina como você? É tão robusta e teimosa como uma mula velha das Highlands.

desta vez ela sorriu abertamente.

—Pode ser que eu não seja tão alta como vós, mas tenho uma compleição forte. —escureceu o rosto—. Embora em alguma ocasião tenha desejado não tê-la.

Tor admirou-se esse comentário. Então lhe veio algo à memória.

—Contou-me que sua irmã esteve doente quando pequenas.

Ela assentiu.

—Beatrix sempre foi uma menina doentia. Eu quase nunca me punha má. Parecia-me tão injusto… Freqüentemente desejava poder ser eu quem caísse doente em lugar dela.

—Não é assim como funcionam as coisas - repôs ele com delicadeza—. Não devemos nos sentir culpados pelos dons que recebemos ao nascer-acrescentou sem pensar.

Ela inclinou a cabeça e lhe escrutinou o rosto.

—Você se sente culpado por ser o gêmeo mais velho.

De forma instintiva, encerrou-se em si mesmo e apagou toda expressão de seu semblante. Entretanto, o ligeiro olhar de recriminação que lhe dirigiu Christina lhe fez recordar o acordo ao que tinham chegado. Respirou fundo, perguntando-se em que diabos estivera pensando.

—Talvez um pouco quando eramos meninos. Parecia-me injusto que me tocasse ser chefe por uma diferença de minutos. Mas aprendi a aceitar que a vida nunca é justa e que devemos interpretar o papel que nos corresponde.

Ela ergueu o olhar para ele com um amplo sorriso nos lábios.

—Bom, não foi tão difícil, verdade?

Tor replicou entre dentes que era como se lhe cravassem agulhas candentes sob as unhas, mas isso a fez rir.

—Logo estará tagarelando sem parar como o pequeno Iain.

Ele pôs os olhos em branco.

—Deus não o queira. Esse moleque nunca fecha o bico.

trocaram um olhar de divertida cumplicidade que em seguida se transformou em outra coisa, em algo tórrido e selvagem que alagava seus sentidos.

Ele era plenamente consciente da situação em que se encontravam. A cama, as pernas tocando-se, o tênue aroma floral do sabão na pele recém lavada dele, a careta sensual em sua boca luxuriosa…

Sentiu um calor repentino na virilha. O desejo se apoderou dele com uma força irrefreável. Apressava-o. Atraía-o para ela. Fazia que lhe custasse recordar que Christina necessitava repouso.

O estranho torvelinho de emoções dos últimos dias ainda estava muito recente. Ele não podia pensar em outra coisa que em afundar-se nela para fazê-las desaparecer.

Inclinou-se para sua esposa. Tinha a boca a somente um palmo da sua. Ouviu que lhe agitava a respiração. Os lábios de Christina se abriram, incitantes.

Tor quase podia perceber seu sabor…

«Maldição. Controla-te.» separou-se dela, obrigando-se a ter presente que ainda estava muito fraca.

—Descansa um pouco. Depois passarei para ver como te encontra.

Ela fez carinha de sapeca. Seus olhos negros lhe esquadrinharam o rosto.

—Acaso não quer…? —Então baixou o olhar, e o sorriso pícaro que lhe curvou a boca fez que a Tor lhe arrepiasse o pêlo da nuca—. Já vejo que sim que quer - disse ela com voz áspera, lhe pondo a mão sobre a coxa. O músculo se esticou por reflexo. O contato daquela pequena palma queimava ao Tor como um ferro incandescente através do linho de seu leine, a escassos centímetros do lugar onde ele ansiava senti-la—. Por favor, fica - sussurrou Christina.

Sua mão se deslizou pela coxa dele, aproximando-se. A Tor lhe acelerou o pulso. Quase podia senti-la acariciando-o, estirando com movimentos largos e enérgicos de sua mão minúscula e delicada. Apertou os dentes, armando-se de valor para resistir a seu contato.

Estava a ponto de negar quando ela acrescentou:

—Necessito-te.

Nesse simples rogo, ele ouviu o eco dos medos que o tinham afligido nos últimos dias. Seus olhos se encontraram. Viu o rubor rosado nas bochechas de Christina, um rubor saudável.

—Não quero te fazer dano — disse com brutalidade.

O olhar dela se suavizou com um brilho de emoção que lhe encolheu o coração.

—Não vais fazer me dano.

Roçou-lhe o membro com os nódulos e ele soltou um grunhido, fechando os olhos enquanto uma ardente onda de desejo o percorria.

Agarrou-lhe a mão para evitar que seus dedos se fechassem em torno dele, embora nesse momento não houvesse nada no mundo que desejasse mais.

—me prometa que se começar a te sentir mal, avisará-me.

O sorriso travesso apareceu de novo ao rosto de Christina.

—Temo que tenho toda a intenção de me sentir mal, muito, muito mal. —inclinou-se para ele e apertou a boca contra sua mandíbula, justo ao lado da orelha—. E totalmente satisfeita.

Tor tinha chegado ao limite de sua boa vontade. Soltando-lhe o pulso, voltou a cabeça para aprisionar os lábios entre os seus e lhe escapou um gemido quando a mão dela o rodeou por fim. Uma sensação de alívio o alagou.

Deus, adorava beijar sua dama. Seus lábios eram muito suaves e tinham sabor de mel morno. Deslizou a língua pelo interior de sua boca em longas e lânguidas lambidas, tomando seu tempo para saborear e explorar. Sua sede dela era insaciável, e se entregou ao simples prazer de beijá-la que durante tanto tempo se privou.

Os ofegos entrecortados de Christina o excitavam ainda mais, ao igual ao roce brincalhão de sua mão. A pressão do linho o estava matando. Nada devia interpor-se entre eles.

Afastou-se de repente, interrompendo o beijo. O miado de recriminação que ela emitiu o fez sorrir. Parecia uma gatinha a quem tinham tirado sua terrina de leite. Tor ficou de pé. Ela abriu a boca para protestar, pois acreditava que ele pretendia partir, mas se deteve quando viu que abria o broche que segurava o brat ao pescoço.

Longe de dissimular sua admiração quando ele se despojou do objeto, devorou-o com os olhos, passeando o olhar por seu peito, seu abdômen e a extensão de seu longo e largo membro. O desejo manifesto em seu olhar minava a concentração de Tor. Quando Christina lambeu os lábios de forma inconsciente, por pouco não lhe dobraram os joelhos.

Voltou-se ligeiramente, e ela contemplou seu flanco. As sobrancelhas lhe juntaram.

—O que é essa marca?

Como não estava acostumado a que ninguém lhe examinasse o traseiro, esqueceu-se disso.

—Uma tatuagem azul feita com glasto. Fizeram-me isso quando nasci.

Ela assentiu.

—Tinha ouvido falar deles, mas nunca tinha visto um. É uma tradição em seu clã?

Interessante ideia, pensou ele.

—Não, era para me identificar como o primogênito. Não se pode eliminar. —Sorriu - Suponho que pensaram que era mais difícil que me cerceassem o traseiro a que me cortassem um braço ou uma perna.

Ela fez uma careta.

—Deixa-me ver?

Ele se aproximou, e os músculos se contraíram quando sentiu a suave ponta do dedo de Christina seguir o risco da tatuagem.

—Mor - disse. E a seguir traduziu—: Grande. —Um sorriso pícaro lhe desenhou nos lábios—. Muito apropriado.

—Garota má - a repreendeu Tor. Ela sabia perfeitamente que mor era um apelativo com que se estava acostumado a designar mais velho, do mesmo modo que og designava ao mais novo.

—Eu gosto do desenho.

—É irlandês - disse ele, rígido. Sentia como se seu membro estivesse a ponto de explodir por causa daquela exploração inocente.

—Doeu-te?

—Não que eu recorde. —Que introduziram agulhas quentes sob a pele não era a metade de doloroso do que estava fazendo nesse instante.

Tentando dominar seu desejo, sentou-se na borda da cama e a fez girar de modo que ficasse de pé frente a ele. Agora era sua vez de explorar. Ajudou-a com os broches e os laços até um ponto em que ela pudesse seguir por si mesmo.

—te dispa para mim, Tina - lhe ordenou—. Devagar.

As bochechas se tingiram de vermelho, mas fez o que pedia. Despiu-se, sustentando o olhar de Tor em todo momento.

Ele se acalorava cada vez mais à medida que a roupa caía ao chão: a capa, a túnica, as sapatilhas, as meias. Para quando chegou ao vestido, saltava à vista que já era toda uma perita. Pouco a pouco, o levantou por cima dos joelhos, as coxas… Deteve-se justo antes de revelar o doce centro de sua feminilidade.

Os músculos de Tor se esticaram sob sua pele excessivamente tirante, e, respirando com força, fixou na Christina seu olhar ardente. Ela o provocava e incitava, até que ele soltou um grunhido de impaciência. Justo quando ele se dispunha a lhe arrancar o maldito objeto, ela ergueu a barra até o ventre. Tor aspirou bruscamente, reprimindo o impulso de estender o braço para tocá-la, pois sabia que estaria quente e úmida de paixão.

Ela levantou o vestido mais e mais até que Tor espiou a delicada curva inferior de seus peitos.

Christina se deteve e ele conteve o fôlego até que lhe mostrou os formosos e turgentes Montes de carne coroados por mamilos muito duros e erguidos.

Tirou o vestido por cima da cabeça, atirou-o ao chão e ficou de pé ante ele, total e belamente nua. Os últimos raios de sol penetravam pela única janela, banhando-a em um resplendor quente e sensual.

Era maravilhosa. Um pequeno, compacto e delicioso pacote de feminilidade. Longas ondas de cabelo negro e sedoso lhe caíam sobre os ombros. Pernas torneadas, quadris curvilíneos, uma cintura estreita e seios grandes e empinados que convidavam a afundar o rosto entre eles e chorar de prazer, todo isso envolto na pele mais impecável, cremosa e suave que ele jamais vira ou tocara.

—Vêm aqui — ordenou ele, sem reconhecer sua própria voz, rouca e carregada de uma intensidade que nunca tinha ouvido antes.

Ela, obedientemente, aproximou-se até ficar diante dele. Tor sabia que se sentia envergonhada, mas não teve contemplações. Cravou nela os olhos com dureza.

—Antes tenho que me assegurar de que esteja bem.

Ela o olhou, vacilante.

—Seriamente?

Tor assentiu.

—Terá que te deitar para que examine… —Incapaz de resistir a tentação um segundo mais, deslizou a mão sobre a aveludada curva de seu quadril—. Cada palmo de seu corpo.

Ela arregalou os olhos antes de avivar-se, ansiosa.

Estendeu-se no leito em um esbanjamento de sensualidade para o olhar.

Tor se colocou em cima dela, com os joelhos em cada lado para poder mover-se livremente acima e abaixo. Começou pela boca, roçando os lábios com os seus, e percorreu a mandíbula até a orelha com movimentos rápidos da língua. Beijou-lhe o pescoço e afundou o rosto na sedosa suavidade de seu cabelo, que ainda estava úmido. As mechas espessas e escuras despediam um intenso aroma de lavanda.

Christina se retorceu debaixo de Tor, que ansiava apertar sua pele ardente contra a sua, sentir o delicioso estremecimento a seu contato. Ainda não. Como um penitente, torturava a si mesmo. Ia fazer lentamente e saborear cada instante.

Continuou examinando-a, explorando cada polegada daquela pele lisa como a de um bebê com a boca e a língua: o pescoço, os braços, o pulso e… Seus incríveis seios.

Entreteve-se ali um momento, lambendo e chupando no mais profundo da boca, fazendo girar a ponta ereta entre os dentes e a língua até que ela arqueou as costas e soltou um grito de desespero.

Deixando-a ofegante, deslizou a boca pela suave planície de seu ventre até os quadris, e dali à parte interior de suas pernas. Seu aroma o fazia enlouquecer; despertava todos seus instintos primários.

Ela tremia presa de um desejo que nem sequer sabia que tinha. Mas lhe ensinaria.

O membro inchou ainda mais.

Separou-lhe as pernas a beijos e rodeou os ombros com elas. Seu rosto estava a somente uns poucos centímetros.

Ouviu o repentino grito afogado de Christina quando ela compreendeu o que pretendia. Instintivamente, tentou fechar as pernas, mas somente conseguiu atraí-lo mais para si.

Tor riscou círculos com a língua pela parte interior das coxas até que o corpo de Christina se relaxou de novo. Ato seguido a roçou com o nariz de forma brincalhona e exalou seu fôlego sobre sua umidade até que ela ficou trêmula.

Já se tinha castigado o bastante. Não podia esperar mais.

—me olhe, Tina - lhe indicou, obrigando-a a dirigir o olhar para seus olhos—. Quero que me olhe enquanto te provo.

Ela emitiu um ofego ansioso, tendo deixado muito atrás as vontades de protestar. O corpo lhe tremia, faminto dele. Sustentando-lhe o olhar, percorreu-a com a língua, com o tato delicado de uma pluma. Christina sofreu um espasmo ao senti-lo, mas ele a segurou com firmeza pelo traseiro.

—Tem um sabor delicioso, minha doce moça. —Lambeu-a de novo, esta vez com mais força, deixando que notasse totalmente o contato de sua língua—. Como a nata mais deliciosa. Vou te lamber inteira.

*

Christina se sentia como se tivesse morrido e tivesse ido ao céu da luxúria. Tor quase lhe tinha feito perder a razão ao beijá-la por todo o corpo, mas quando ela tinha baixado o olhar para ver sua cabeleira dourada entre suas pernas e tinha caido na conta do que ia fazer lhe…

O pulso lhe tinha disparado com espera erótica; maravilhava-a que ele queria beijá-la em sua parte mais íntima. Paralisaram-lhe todos os músculos. Ela permanecia à espera do que ia ocorrer, intuindo que seria algo novidadeiro e fantástico. Não podia nem imaginá-lo.

A corrente de prazer que desatou o primeiro toque de sua língua lhe fez dar um salto. A segunda lhe provocou um calafrio.

OH, Deus.

Ela gemeu seu nome uma e outra vez incapaz de conter a força das intensas sensações desencadeadas por seu beijo perverso.

Tor a lambeu de novo, acariciando-a com a língua, descrevendo círculos, pinçando em seu interior com passadas largas e carinhosas até que ela acreditou que ia morrer de prazer.

Foi incrível. Não podia pensar mais que na boca e a língua de Tor, naquilo tão sensual que lhe estava fazendo.

A virilha começou a lhe palpitar mais depressa. Meneou os quadris contra a boca dele, desejando mais pressão, mais fricção.

E ele as deu. Levantou-a para si e apertou sua boca depravadamente talentosa contra ela.

Christina sentia o roce abrasivo de seu queixo enquanto Tor a devorava com seus beijos e sua língua voraz. Aquilo era muito.

Os espasmos se apropriaram dela, e estalou em lascas candentes de um êxtase abrasador. Mas, em vez de soltá-la, ele a agarrou contra si, recebendo seu prazer na boca.

Seu corpo ainda se convulsionava quando Tor a liberou. Olhou-a com os olhos entreabertos enquanto se estendia sobre Christina, estreitava-a contra seu corpo e se introduzia devagar nela. Sua pele, ainda sensível, notava uma leve dor com cada grosso lance.

Quando ele esteve dentro de tudo, não se moveu. Simplesmente a abraçou com mais ternura que nunca, aninhando-se contra o largo escudo de seu peito como se o mero contato fora suficiente.

Era.

Ela se derreteu contra ele, desfrutando da sensação de todos esses músculos que a rodeavam, de sua virilidade que a enchia.

E do coração dele, pulsando junto ao dele.

A emoção lhe oprimiu o peito. Era o momento mais emotivo de sua vida. Nunca tinha imaginado que pudesse sentir-se tão unida a alguém.

Permaneceram assim um longo momento, olhando-se nos olhos, em silêncio, salvo pelos sonoros batimentos do coração de seus corações, que palpitavam ao uníssono.

Então ele começou a mover-se. Devagar. Sem afastar o olhar de seus olhos, sujeitando-a com uma intensidade que fazia que o coração lhe golpeasse com força contra as costelas.

Empurrava e retrocedia com um vaivém longo e lânguido, como se dispor de todo o tempo do mundo. Como se eles fossem o mundo. Tor entrava e saía, detendo-se na parte mais profunda, e lhe arrancou um ofego de surpresa ao entrar ainda mais nela.

Pouco a pouco, começou a acelerar o ritmo, a penetrar com um pouco mais de ímpeto, a afundar-se um pouco mais. Pele com pele, seus corpos se deslizavam juntos de forma perfeitamente compassada.

Ela notou que as sensações se avivavam de novo, embora dessa vez fossem diferentes, menos violentas, mas mais intensas e poderosas. Não só se apoderaram de sua virilha, mas sim de todo seu ser.

Viu que o rosto de Tor se esticava, que apertava a mandíbula, que os músculos de seus ombros se inchavam. Tinha a pele quente e a fronte brilhante de suor.

Seus corpos se balançavam. Ele movia os quadris em círculos, com embates mais rápidos. Apertava-se contra ela até fazê-la resfolegar, até fazer que o coração lhe pulsasse a toda velocidade, e que as palpitações entre suas pernas se tornassem frenéticas.

Ele seguia lhe sustentando o olhar, e seus olhos de um azul cristalino destilavam uma emoção intensa que ela nunca tinha visto antes. Não era luxúria a não ser um pouco mais profundo, mais significativo. Ela não se atrevia a fazer-se ilusões.

—goze comigo, Tina - lhe disse ele grosseiramente.

e o fez. A respiração se entrecortou, as costas lhe arqueou, e seu prazer culminou, não com uma explosão violenta, a não ser em uma lenta rendição que começou muito dentro e se propagou para fora com uma fulgurante corrente de sensações.

E ele gozou com ela, deixando-se levar pela onda de seu clímax.

Nesse instante para Christina pareceu que seus sonhos estavam tão perto que quase podia tocá-los com a ponta dos dedos.

*

Um longo momento depois de que se apagassem os últimos ecos de seu clímax, Tor jazia na cama com Christina profundamente adormecida junto a ele. Estava-lhe custando enfocar o que acabava de ocorrer de uma perspectiva adequada.

Intenso. Esta palavra ficava muito pequena para descrevê-lo. Cataclísmico. Demolidor. Estas se aproximavam mais.

Não tinha idéia de que copular pudesse ser assim.

O peito ardia de ternura para a diminuta jovem feita um novelo a seu lado como um filhote. Depois do falecimento de seus pais e os longos anos que tinha convivido com a guerra e a morte, acreditava ter se protegido contra esse tipo de sentimentos. Seu autocontrole e sua falta de emoções eram o que o fazia destacar como chefe e como guerreiro, mas sentia que as capas de gelo se fundiam sob o calor do… amor de Christina.

Seu irmão estava no certo: ela o amava. Tor o notava nos olhos, no modo em que o tocava, em sua forma de beijá-lo.

E não podia negar que a moça lhe inspirava uma ternura especial, e isso o preocupava. Podia sentir algo por ela e mesmo assim antepor o bem de seu clã? Nunca antes tinha acreditado possível. Os sentimentos só complicavam as coisas, faziam-no mais vulnerável, e esse era um risco que nenhum guerreiro podia correr. Teve ocasião de comprová-lo quando MacDougall o tinha enfrentado e quando tinha visto Christina na aldeia. Passasse o que acontecesse, sabia que não podia permitir que sua debilidade por sua esposa interferisse em seu dever.

Ela, adormecida, emitiu um suave som de satisfação. Tor suspirou, apoiou a bochecha em sua cabeleira cálida e sedosa, e aspirou seu aroma doce e feminino. Uma sensação de complacência percorreu seus musculos esgotados. Ela era tão miúda, tão suave… Delicada e frágil. Evitar machucá-la seria toda uma provação, mas Tor jurou esforçar-se ao máximo por fazê-la feliz.


Capítulo 22


Christina estava recostada sobre o peito de Tor, com o infolio de pele sobre seu ventre nu e as pernas envoltas nos lençóis enrugados. O reluzente sol da manhã entrava em torrentes pela janela que tinha a portinha aberta, lhe proporcionando luz de sobra para ler.

Ou ao menos para tentar, pois seu irritante marido não deixava de interrompê-la. Quando chegou à parte em que Lancelot se rebaixava a montar em uma carreta para salvar a sua dama, ouviu o som inconfundível de uma gargalhada.

Baixou o livro e se voltou para lhe lançar um olhar sério.

—Se for danificar a história, não penso seguir lendo.

—Esses cavalheiros e seus ridículos códigos - disse com um desprezo indissimulado—. Parece-lhe o cúmulo da desonra viajar em uma carreta? —Sacudiu a cabeça—. Diabos, eu me arrastaria por um monte de esterco para te salvar.

A Christina tremeu as comissuras dos lábios. Custava-lhe seguir zangada quando o ouvia dizer coisas como aquela. Quem ia pensar que um monte de esterco poderia ser tão romântico?

Ergueu-se para lhe plantar um beijo rápido.

—Que terno.

—Terno? —escureceu o olhar—. Não tenho um cabelo de terno.

Para demonstrar atraiu-a sobre seu peito e a beijou de forma muito mais apaixonada. O livro caiu entre eles quando ela, aproveitando-se de sua posição e da considerável ereção de Tor, deu a volta em cima dele.

Com os joelhos a cada lado de seu corpo, fez que Tor a penetrasse, suspirando de agrado conforme ele a enchia. E como a enchia! Adorava senti-lo em seu interior, longo e grosso. Em efeito, tinha aprendido a apreciar seu tamanho e agora compreendia por que aquela criada a tinha prevenido desse modo no Finlaggan.

Com um gemido, lhe agarrou os seios com suas mãos grandes e ásperas, e começou a apertar e beliscar os mamilos entre os dedos enquanto ela o montava. Começou devagar e foi movendo-se mais depressa até encontrar seu ritmo.

Arqueou as costas sobre as mãos dele, deixando cair à cabeça para trás ao tempo que se erguia, levantando o torso tudo que pôde antes de inclinar-se de novo sobre ele, descrevendo círculos sensuais com os quadris.

Seus corpos se moviam ao uníssono com toda facilidade e fluidez. Na cama, não ficava nada a se interpor entre eles: nem acanhamento nem desconforto. Tinham alcançado a união perfeita de dois amantes.

Quando ela estava a ponto de culminar, ele baixou a mão e acariciou esse ponto deliciosamente sensível com o dedo, intensificando o prazer de Christina justo como sabia que gostava.

Ela se estremeceu, gritando, sacudida pelos espasmos. Ainda sentia um comichão quando ele a agarrou pelos quadris e se afundou no mais profundo dela, chegando a sua vez ao clímax.

Com delicadeza, sujeitou-lhe o rosto entre as mãos e a beijou de novo.

—Pareceu-te bastante terno?

—Sim. Prefiro mil vezes montar sobre ti que sobre uma carreta. —Soltou uma risadinha e, depois de aninhar-se contra ele, tirou o livro dentre os lençóis.

—E agora, quer que acabe o capítulo ou não? —perguntou lhe dirigindo um olhar severo, como se fosse um menino levado.

Tor torceu os lábios.

—Já que estamos não vejo por que não.

Ela não se deixou enganar por sua fingida indiferença. face ao evidente desdém de Tor para o código cavalheiresco, Christina sabia que estava gostando do relato.

Conseguiu ler o resto do capítulo sem mais interrupções, mas quando terminou, ele se levantou da cama (a contra gosto, pareceu a ela) para vestir-se.

Christina o observou sem dissimular seu interesse. Embora levasse duas semanas despertando em seus braços, não tinha perdido nem um ápice de seu entusiasmo. Depois daquela primeira vez, Tor tinha dormido a seu lado todas as noites. Embora o Natal tivesse sido há uma semana, cada dia era como um presente para ela. Duvidava que chegasse a cansar-se jamais de despertar junto a ele ou de contemplar seu magnífico corpo enquanto fazia suas abluções matutinas, consciente de que apenas alguns minutos antes estivera entre seus braços.

Seu marido tinha suavizado sua atitude com ela; disso não cabia a menor duvida. Já não se mostrava tão distante e indiferente, e se esforçava por abrir-se mais a ela, como tinha prometido, em que pese que não era fácil. Dada a brutalidade que tinha imperado em sua vida e as circunstâncias em que tinham morrido seus pais, não lhe custava entender por que.

Despertar em seus braços todas as manhãs tinha proporcionado algo da intimidade que desejava, mas ainda faltava algo. Seguia havendo uma barreira entre eles. Era como se Tor levasse duas vidas: uma com ela e outra diferente com todos outros.

Sabia tão pouco de suas atividades como antes. Mesmo assim, fixou-se no propósito de ser paciente. Tinha que lhe dar uma oportunidade.

Tor se vestiu a toda pressa; lavou os dentes enxaguando-se com vinho branco e esfregando com um tecido fino e uma massa de hortelã e sal; passou um pente pelo cabelo, Passou a água da bacia no rosto e se secou com o tecido adequado para isso. Entretanto, a água fria não levou os sinais de inquietação gravadas em seu semblante.

Estava aflito por algo. Como Christina o conhecia melhor que antes, tinha aprendido a decifrar seus gestos quase imperceptíveis: uma ligeira tensão da boca, a ruga na testa e um olhar distante.

—O que ocorre? —perguntou-lhe—. O que te preocupa?

Eram os rumores das crescentes desavenças entre Bruce e Comyn, a crescente ameaça de uma guerra entre Escócia e Inglaterra? Agora que sabia que ele tinha batalhado por ressuscitar seu clã a partir das cinzas da destruição, compreendia suas razões para querer evitar a guerra e manter-se neutro.

Com um sorriso, ele sacudiu a cabeça, sinal de que não tinha a menor intenção de contar-lhe, Christina lutou por conter a onda de decepção que a invadiu, não só pela falta de confiança - ou porque ele se confiou a outros—, mas sim porque temia que a visse como um brinquedo frágil que necessitava que o protegessem e o tivessem entre algodões.

«É questão de tempo», recordou-se. E tinham toda uma vida juntos em frente.

—Só é um assunto que estive pensando. —voltou-se para olhá-la nos olhos—. É possível que passe fora o resto da semana.

desta vez ela não pôde evitar sentir-se desiludida, embora fizesse o possível por dissimulá-lo. Sabia que devia estar agradecida pelas semanas que tinham estado juntos, mas não lhe bastava isso. Tornou-se ambiciosa. Quanto mais tempo passava com ele, mais tempo desejava.

Não lhe perguntou aonde ia, pois não queria ficar com pior humor quando ele se negasse a dizer. Mas, de repente, lhe ocorreu uma possibilidade. Deus bendito, tinha chegado o dia que tanto temia, o dia em que ele zarparia para ir à guerra?

*

Ao Tor a perspicácia de Christina respeito a seu estado de ânimo já não lhe surpreendia embora lhe incomodasse ser tão transparente para ela. Era certo que algo lhe preocupava. Não podia seguir demorando com o que MacDonald tinha ordenado.

Por desgraça, ela também era transparente para ele, por isso Tor sabia que sua reticência a feria. O acordo que tão cuidadosamente tinham estabelecido estava vindo abaixo. Embora ela fingisse entender por que ele não podia lhe explicar o que fazia; quanto mais se estreitavam seus laços, maior era o abismo que os separava.

O que mais surpreendia ao Tor era que em realidade tinha vontades de contar. Tinha guardado tudo dentro de si durante anos. Ao afrouxar a tampa, anos de pressão acumulada ameaçavam estalando. Certamente tinha cometido um engano ao fazer uma exceção, embora não podia negar que falar das coisas ajudava a limpar a cabeça.

Ela colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e encolheu as pernas, envolvendo-as joelhos na manta.

—averiguaste quem foi o responsável pelo ataque? —perguntou em um tom inexpressivo.

Tor não se deixou enganar por sua atitude despreocupada; sabia o que encerrava essa pergunta. Embora ela já não o interrogasse sobre o lugar aonde ia, isso não significava que não lhe interessasse saber. Seus lábios se curvaram para baixo com dureza.

—Não.

MacSorley e MacRuairi tinham retornado pouco depois de partir, com uma tripulação em extremo insuficiente, à caça de quatro navios de guerra que tinham seguido de longe até que uma das galeras ficou atrasada. Tinham-na assaltado com facilidade, mas nem sequer a habilidade considerável do MacRuairi para extrair informação lhe tinha revelado o nome da pessoa para a que trabalhavam.

—Ainda não - precisou—, mas o averiguarei. Assim que encontre ao infiltrado… —interrompeu-se, sentindo-se como se lhe tivessem atirado uma machadada. Nunca na vida tinha metido a pata dessa maneira. Talvez Christina não se desse conta. Sim, claro…

Ela afogou um grito.

—Acredita que há um espião?

—Parece provável - respondeu ele devagar, furioso consigo mesmo—. Todos os ataques se produziram quando eu estava fora, ou quando se supunha que estava. É muita casualidade para atribuí-la ao azar.

—Sabe quem é o espião?

—Não, ainda não. Poderia ser qualquer. Qualquer - repetiu—. Quando saio do castelo, não o faço precisamente em segredo, mas meus homens estão alerta a algo fora do comum ocorra, e estão tomando precauções. —Examinavam todas as mensagens e levavam a ele tudo o que consideravam suspeito. Vigiavam aos guardas (em especial aos que tinham sido recrutados recentemente) e ao pessoal do castelo, incluídos o tabelião e ao Rhuairi. Entretanto, depois de ver como o clérigo tinha protegido a Christina, suas suspeitas iniciais lhe pareceram infundadas.

Quase podia ler os pensamentos que se amontoavam na mente de Christina. Talvez o lapso tivesse sido o melhor que podia acontecer, disse a si mesmo. Terei que caçar a cobra com toda cautela para que não escapasse, e podia resultar perigoso. Mais valia que ela estivesse em guarda.

—Só poucos de meus guardas de máxima confiança estão à corrente disto, Christina. Lembre-se que a situação é grave e potencialmente perigosa. Espero não ter me equivocado ao depositar minha confiança em ti.

Ela sacudiu a cabeça com veemência.

—É obvio que não. —Sorriu—. Obrigado por me contar isso. Inclinou a cabeça—. É por isso que te parte?

—Em parte. Meus homens estarão atentos se por acaso acontece algo incomum no castelo, embora duvide que essa gente tente nada tão pouco tempo depois do último ataque. Mas não quero que saia do castelo durante minha ausência. Não esqueça sua promessa. —Não era necessário lhe explicar que não devia misturar-se em seus assuntos.

—Mas vou me aborrecer - protestou ela.

Tor tentou não sorrir ao fixar-se em sua expressão de despeito.

—Acreditava que estava trabalhando em um estandarte novo para o salão.

Christina entrecerrou os olhos.

—Sabe perfeitamente que é um desastre. Sou uma negação com a agulha.

Ele soltou uma risadinha.

—Estou seguro de que encontrará alguma atividade em que ocupar seu tempo.

—Se não tivesse enviado a seu irmão e a sua mulher ao exílio, teria a alguém com quem conversar.

Aquele era um tema delicado. Christina não entendia que seu marido estivesse empenhado em castigar seu irmão…, embora em realidade não o estivesse. Não era de se admirar. Ela tinha muito bom coração e não estava acostumada a tomar as decisões difíceis às que Tor se enfrentava diariamente como chefe.

—Janet estará aqui.

Como havia um possível espião entre eles, Tor tinha chegado à conclusão de que era muito arriscado que ela seguisse indo e vindo do castelo ao broch. Os homens tinham que arrumar-se somente com a comida… e se queixavam disso.

Christina arqueou uma sobrancelha.

—Quer que trave amizade com sua amante?

—ex-amante -a corrigiu ele—, mas segue sendo uma amiga. Dê-lhe uma oportunidade, gostarás dela.

Ela fez um ruído abafado parecido a um bufo.

—Os homens não entendem nada. Duvido muito que queira ser amiga minha.

Embora Tor não tivesse a menor ideia de por que, não pretendia entender as complexidades da mente feminina.

Agachou-se para beijá-la com suavidade. O beijo foi mais longo do que ele queria, mas quando levantou a cabeça, viu que havia valido a pena. Os lábios vermelhos entreabertos e um pouco inchados, as pálpebras entreabertas, o olhar aturdido, as bochechas rosadas… Maldita seja, adorava o aspecto que tinha quando a beijava.

—Voltarei antes que te dê conta.

*

Christina tinha conseguido distrair Tor de seus problemas, mas não durante muito tempo. «Maldito Bruce. Dane-se MacDonald.» Detestava os enganos de todo tipo. Aqueles homens formavam uma equipe e mereciam saber a verdade. Para que uma guarda secreta como essa cumprisse seu encargo, a autoridade máxima em relação às decisões que se atinham ao grupo devia ficar ao cargo do líder da equipe. Se ele estivesse ao mando, diria a Bruce e ao MacDonald exatamente onde podiam meter-se suas «ordens». Mas em pouco menos de três semanas, MacSorley seria o líder e a decisão estaria em suas mãos. Entretanto, nem sequer o corpulento escandinavo sabia o que estava a ponto de acontecer.

Era a última prova da Perdição, que fora postergada por sua volta antes do tempo a Dunvegan.

Os homens se congregaram em torno dele enquanto explicava sua missão. Tinha levado mais de dois meses, mas Tor por fim tinha conseguido lhes fechar a boca.

—Não podem estar falando sério. —Seton foi o primeiro que teve a audácia de dizer o que outros pensavam.

O olhar que Tor lhe jogou parecia indicar justamente o contrário.

—Foi o desafio final para o Fianna do Finn MacCool.

—Mas isso não é mais que uma lenda - protestou MacGregor—. Ninguém poderia proteger-se de tantas lanças enterrado até a cintura e com somente um escudo para cobrir-se.

Tor sorriu.

—Não têm por que te preocupar. Vou modificar a prova do Finn. Poderão colocar o elmo e a cota de malha, e não lhe atirarão todas as lanças de uma vez.

Ouviu algumas gargalhadas. Ao que parece suas modificações não fora suficiente para os convencer.

—Pode fazer—atravessou Campbell—. Um guerreiro destro pode apanhar facilmente dez lanças ou mais. O mais importante é dominar o medo.

—A ti isso será fácil - repôs MacGregor—. Cresceram esquivando das lanças que lhe atiravam à cabeça. Todos vimos o que és capaz de fazer com elas.

Campbell olhou ao Tor aos olhos e assentiu em sinal de aprovação.

—Verão-me em ação - comentou.

Os homens dedicaram às horas seguintes a exercitar-se. Campbell lançava as lanças - o que agradeceram atrás de alguns erros deliberados— e logo, uma vez que agarraram o truque, passaram a treinar com uma lança que tinha a ponta de aço afiada envolta em um pedaço de couro. Por último, cada um deles se enfrentou ao exercício autêntico. Além de Seton, que recebeu um forte golpe no ombro, todos conseguiram apanhar ao menos dez lanças seguidas, e alguns deles umas quantas mais. Campbell estava no certo: quando se conseguia dominar o medo, não era tão difícil. E nenhum deles tinha medo de nada.

Tor escavou o buraco enquanto os homens se adestravam. Dado a provocação que tinha exposto, pensou que era o minimo que podia fazer. Com uma profundidade que chegava à cintura e um par de pés de diâmetro, o fosso era estreito, mas o bastante grande para que eles pudessem girar para os lados, embora com muita dificuldade.

MacSorley foi o primeiro em entrar enquanto os outros formavam um círculo ao redor dele, a uns vinte passos de distância.

Tirou todas as armas que levava presas com correias a seu volumoso peito, mas ia protegido com a cota, o elmo e o escudo.

Tor ergueu a mão para assinalar o começo.

—Se houver uma só gota de sangue, não valerá a prova.

MacSorley assentiu.

—Entendido.

—Preparado?

—Sim.

Tor fez um sinal ao Lamont, o homem situado a sua direita, e as lanças começaram a sair voando do perímetro do círculo. Um por um, esperando uns segundos entre um e outro, os homens as jogavam no alvo vivo no centro.

MacSorley encontrou seu ritmo em seguida, alternando entre apanhar as lanças e aparar os golpes com o escudo. Tor foi o último em atirar sua lança, que foi a que esteve mais perto de acertar no alvo, mas MacSorley a desviou no último instante com seu escudo. Como seu birlinn, a madeira forrada de pele tinha pintado no anverso uma águia pescadora de aspecto feroz.

Ao final, havia nove lanças no chão ao redor do MacSorley e uma cravada em seu escudo. Mas tinha conseguido, e assim que os outros viram que podia fazer, apressaram-se a seguir seu exemplo.

O último em baixar ao fosso foi Campbell. A tensão se dissipou com o triunfo de cada aspirante, e enquanto Campbell se preparava para seu turno, outros inclusive intercambiavam brincadeiras.

Tor cravou nele o olhar.

—Preparado?

Campbell assentiu com a expressão severa. Tor fez o sinal, e as lanças começaram a sair. Como se tratava do último homem, os outros guerreiros se acostumaram e os intervalos entre os lançamentos seguiam uma pauta ordenada.

Uma pauta que Tor rompeu.

Quando MacGregor, que estava a sua esquerda, soltou sua lança, Tor jogou a sua ao mesmo tempo.

Tal como tinham feito seus predecessores, Campbell tinha se adaptado a um ritmo. Apanhou com facilidade a lança do MacGregor mas não estava preparado para a de Tor. Sem tempo para colocar seu escudo em posição, inclinou-se a um lado no último momento, apenas o suficiente para evitar que a lança o alcançasse no peito. Entretanto, esta lhe roçou o braço antes de cravar-se no chão, alguns pés atrás dele.

Depois de uns instantes de atordoamento geral, Tor ouviu um suspiro de alívio coletivo a seu redor.

—Foi por um triz - disse MacGregor.

Por toda resposta, MacSorley sacudiu a cabeça com pesar.

Tor não disse nada. Como outros, estava contemplando como a manga da cota do Campbell se manchava de sangue.

Campbell fixou o olhar nele.

—Sinto muito, moço - disse Tor em voz baixa.

Campbell afastou o olhar e fez um gesto afirmativo. Conhecia as regras.

—Recolherei minhas coisas.

Sem acrescentar uma palavra, saiu do buraco ajudando-se com os braços e se encaminhou para a broch. Outros o olharam afastar-se com um silêncio cheio de estupefação.

Foi Seton quem se dirigiu primeiro ao Tor.

—Não posso acreditar que o deixem partir. Necessitamo-lo. Não há outro explorador como ele em toda Escócia… ou no resto do mundo, de fato.

—Não fez a prova —replicou Tor, embora não tinha por que dar explicações.

O rosto de Seton avermelhou de raiva.

—Porque vocês têm feito armadilha.

O estalo de silêncio que seguiu a estas palavras foi ensurdecedor. Os highlanders sabiam algo que aquele cavalheiro inglês ignorava.

—Se eu me regesse pelo código ao que estas referindo, estaria morto pelo que acabas de dizer.

Seton apertou os dentes; precaveu-se de seu engano.

—Na guerra não existem armadilhas, e se querem formar parte desta equipe, mais vale que coloquem isso na cabeça quanto antes. Este guarda tem que estar preparada para tudo, e Campbell confiou demais. Se nos confiarmos, morreremos todos.

MacSorley lhe dirigiu um olhar estranho, e Tor se deu conta de que tinha cometido um engano: ele não formava parte desse «nós».

—O capitão tem razão - disse MacGregor—. Todos nos confiamos. Campbell não deveria ser o único em pagar as conseqüências. Voltarei a me submeter à prova com ele.

Tor o olhou longamente, impressionado pelo profundo vínculo que se forjou entre aqueles dois membros de clãs que antes se enfrentavam. Embora discutissem como inimigos, atrás da retórica agressiva havia uma amizade. Amaldiçoou em seu foro interno o injusto da situação, mas seu tom ao falar não delatou seus pensamentos.

—Campbell teve sua oportunidade. Deveremos nos arrumar sem ele. Boyd e Lamont são exploradores excelentes; que eles ocupem seu lugar. —Percorreu com o olhar o círculo de homens, todos eles furiosos, para que sua mensagem ficasse bem claro—. Não há mais que falar. Tomei minha decisão.

Conscientes de que protestar seria inútil, os homens se dispersaram. Não gostavam da decisão mas a acatavam, com diferentes graus de indignação. Como era de esperar, MacGregor o evitou durante o resto do dia.

Campbell se despediu com solenidade e, quando chegou o momento, Tor o acompanhou em solitário à galera que o levaria de volta a terra firme.

—Levas tudo? —perguntou.

Campbell assentiu.

—Sinto muito, moço. Desejaria que as coisas não tivessem que ser assim.

O rosto do Campbell era uma máscara de pétrea resignação.

—Sim, capitão, compreendo-o.

—Como está o braço?

—Está bem. —Instintivamente, Campbell levou a mão à parte superior do braço, não o esquerdo, que tinha ferido pela lança, a não ser o direito, no que Tor lhe tinha tatuado em segredo um sinal a altas horas da noite anterior.

Embora outros não soubessem a verdade, Campbell era um deles.

—Se alguma vez estiveres em apuros…

Campbell moveu a cabeça afirmativamente.

—Sei o que devo fazer.

Tor o agarrou do braço e lhe deu um apertão firme.

—Bs roimh geill.

—Antes morrer que render-se — respondeu Campbell com ferocidade. Depois de jogar uma última olhada a broch, embarcou de um salto e se fez ao mar.

Tor o observou afastar-se.

«Agora há dez.»


Capítulo 23


Tor levava poucos dias fora quando Christina começou a sentir os efeitos de sua inquietação. Tal como suspeitava, lady Janet não interessava cercar uma amizade com ela. Mostrava-se cortês, mas Christina estava convencida de que os sentimentos que a outra mulher ainda albergava para Tor lhe impediam de ir mais à frente.

Christina não podia culpá-la por isso.

Como dispunha de tempo de sobra, havia-se aficionado a dar longas caminhadas pelo perímetro da muralha. Além de seus passeios matinais com o irmão John, agora saía a caminhar também depois do jantar.

Adorava erguer o olhar para o céu nas noites limpas, embora não fossem muito freqüentes durante o inverno na «ilha da Bruma». As estrelas pareciam tão próximas ali que quase tinha a sensação de que se estendia o braço poderia agarrar uma.

Aquela era uma dessas noites e, apesar de fazia mais frio que de costume - inclusive para janeiro—, ela permaneceu um momento entre as almenas, contemplando primeiro o firmamento e logo o mar. era fascinante e provocador ver as cintilantes ondas negras com cristas de espuma branca rompendo-se contra o escarpado rochoso.

Baixou o olhar para o embarcadouro e ficou imóvel. Percorreu-a um calafrio. O birlinn aterrorizante com o falcão gravado na proa estava atracado ao lado das outras embarcações.

De repente, veio-lhe à memória o dia que tinha visto o Rhuairi no mole. Cabia a possibilidade de que o senescal fosse o espião?

Suas suspeitas aumentaram quando o homem em quem pensava saiu a toda pressa do grande salão, cruzou o pátio e baixou a escada que conduzia ao molhe. Como Christina estava oculta nas sombras, o homem não reparou em sua presença. Ela se inclinou sobre a mureta, mas não alcançou ver o que ocorria debaixo. Um momento depois, não obstante, Rhuairi subiu correndo a escada e voltou sobre seus passos para o interior do salão.

para Christina o coração pulsava com força. Permaneceu aninhada na escuridão um momento mais, sem saber o que fazer. O que acabava de presenciar podia ser um ato totalmente inocente. Mas por que se comportou ele de um modo tão estranho naquele dia e tinha negado ter recebido uma mensagem?

Seu primeiro impulso foi segui-lo, mas recordou a advertência de Tor. Não queria que ela se envolvesse. Se Rhuairi fosse o espião, seria perigoso que a surpreendesse seguindo-o. Christina teria que aguardar que seu marido retornasse para lhe expor suas suspeitas.

Esperava que para então não fosse muito tarde.

*

Lady Christina não se precavera de que alguém a observava. O irmão John MacDougall, sobrinho e xará de John do Lorne, não podia saber de ciência certa o que estava pensando, mas tinha que correr o risco. Seu instinto de sobrevivência tinha prevalecido nos últimos dias e o tinha impulsionado a preparar-se para partir. Se queria averiguar o que trazia MacLeod entre as mãos, devia fazê-lo já, e o mensageiro secreto do senescal lhe tinha dado uma idéia.

Suspeitava fazia um tempo que ela sabia ler, e suas suspeitas se viram confirmadas quando percebeu que alguém tinha corrigido os livros. Não queria implicá-la nesse assunto, mas por outro lado, pensou, estava-lhe fazendo um favor. MacLeod não gostava. Essa besta selvagem e desumana não sabia apreciar a jóia que tinha por esposa. Entretanto, também saltava à vista que sua jovem esposa o idolatrava. Talvez aquilo a obrigaria a vê-lo como era na realidade.

Ou assim esperava.

Arrependia-se de ter permitido que seu tio o metesse nisso: a espionagem teria que ser posta nas mãos de quem tivesse estômago para o engano. Embora, na realidade, não tinha escolha. Igual MacLeod, seu tio não era um homem ao que convinha desafiar.

*

Transcorreram dois dias mais, e Tor não tinha retornado. Enquanto isso, as suspeitas de Christina a corroíam por dentro. No dia anterior, tinha entrado nos aposentos principais com o irmão John, e Rhuairi, sobressaltado, tinha juntado seus papéis e se retirado com um rubor de culpabilidade no rosto. O tabelião também se fixou na estranha conduta do senescal e tinha feito um comentário sobre o nervosismo crescente do Rhuairi.

Tendo bem presente a promessa que tinha feito a seu marido, Christina tinha respondido que não tinha notado nada. Detestava não poder confiar em seu amigo. Embora o irmão John fosse a última pessoa do mundo de quem suspeitaria, Tor tinha advertido que não confiasse em ninguém.

Pensou em mandar a seu marido uma nota, mas não tinha nenhuma prova. Além disso, não poderia enviar sem que Rhuairi se inteirasse. Como não tinha alternativa, aguardou… Até a tarde seguinte.

Como era seu costume depois do jantar, estava caminhando ao redor da muralha quando viu de novo ao Rhuairi sair apressadamente do grande salão. dessa vez, entretanto, em lugar de receber a um mensageiro, subiu a bordo de um birlinn que o esperava e zarpou de volta ao mar aberto, não para a aldeia.

Admirada, Christina se dispunha a entrar no castelo quando o irmão John, com o rosto avermelhado, e esteve a ponto de atropelá-la.

Ele se desculpou, com ar transtornado.

—Por ventura vistes ao senescal?

—Sim - assentiu ela—. Se foi há alguns minutos.

—Cáspita!

Christina sorriu ao comprovar que o irmão John se apropriou de sua expressão favorita.

—Ocorre algo?

Mostrou-lhe uma folha de pergaminho.

—Caiu isso de Rhuairi, e pela pressa que tinha, pareceu-me que talvez fosse algo importante. Mas esta noite devo ir à aldeia a ver o pai Patrick.

—Não sabem do que se trata?

Ele sacudiu a cabeça.

—Não é algo que eu tenha escrito.

A Christina lhe acelerou um pouco o pulso, e todos seus instintos ficaram alerta. Estendeu a mão.

—Não faz falta que postergues sua visita à aldeia - disse sem controlar de todo o tom agudo de sua voz—. Eu o entregarei ao Rhuairi quando voltar.

O tabelião titubeou.

—Estas segura? Provavelmente o necessitará assim que retorne, e talvez seja muito tarde.

—Não me importa - respondeu ela—. Não estou cansada.

—Espero que não se trate de nada grave, embora o certo é que Rhuairi parecia um pouco mais nervoso que de costume. —Um leve sorriso se desenhou nos lábios do jovem tabelião, e toda a vacilação que sentia se esfumou. Deu-lhe o pergaminho e acrescentou—: Por outra parte, tinha prometido ao pai Patrick, e suponho que isto estará em suas mãos.

Christina, que sabia a que se referia, alegrava-se de que ele não alcançasse a ver o rubor de culpabilidade que lhe tingia as bochechas. Como estivera esperando alguma indicação de Tor, ainda não tinha contado a ninguém que sabia ler. Conhecia o modo em que funcionava a mente de seu marido, por isso imaginava que ele considerava mais seguro guardar essa informação até que descobrisse ao espião.

—Pergunto-me o que acontece ao Rhuairi - disse o irmão John, como ausente—. Ultimamente tem uma atitude tão circunspeta…

—Estou segura de que não é nada importante - mentiu Christina, tentando não sentir-se culpada. Esperava que o irmão John a perdoasse, mas não podia arriscar-se a expressar suas suspeitas em voz alta.

—Obrigado, milady. E agora, se não se importar, devo partir.

—Veremo-nos pela manhã — disse ela, e o observou cruzar a porta que dava ao mar e descer para o embarcadouro.

Resistindo o impulso de abrir a nota ali mesmo, a guardou entre as dobras de sua capa e se dirigiu rapidamente à intimidade de seu quarto. Ali, à luz das velas, desdobrou com cuidado a pequena folha de pergaminho.

O coração lhe pulsava a toda velocidade. Aquela podia ser a prova que esteve procurando. Sentiu uma pontada de culpabilidade, mas a sacudiu em seguida. Se a mensagem não fosse importante, Tor nunca se inteiraria. Mas se era, daria-lhe obrigado por isso. Podia lhe proibir que se misturasse, raciocinou, mas não que observasse o que ocorria diante de seu nariz.

Reconheceu imediatamente a tosca letra do Rhuairi, embora a nota não estivesse assinada. Era breve e concisa, mas fez que lhe gelasse o sangue com uma gélida onda de pavor. Tinha encontrado sua prova, e era muito pior do que tinha acreditado.

«Paradeiro do MacLeod confirmado. Tragam reforços. Atacaremos a meia-noite.»

Deus santo, que horas era? sete? oito? Tinha o coração desbocado. O que podia fazer? Tinha que encontrar uma maneira de acautelá-lo, antes que fosse muito tarde.

*

Tor estava sentado em uma pedra grande e plaina frente à entrada da broch, com uma jarra de cuirm na mão, contemplando os últimos raios rosados do sol extinguirem-se depois do horizonte.

Embora Campbell se fora fizesse quase uma semana, a equipe ainda não se recuperara da perda de um dos seus. Ele sabia que devia estar agradado por isso, pois era uma prova de que o treinamento tinha sido um êxito, mas não estava. A marcha de um membro da equipe, independentemente do motivo, ardia-lhe.

Resmungou uma blasfêmia e tomou um gole longo da forte cerveja antes de deixar a taça vazia na pedra com um golpe.

—Ai - disse MacSorley, que tinha saído da broch para sentar-se junto a ele—. Está um pouco amarga a cerveja, ou é bem o sabor do remorso?

—Não sigas por aí - lhe advertiu Tor—. Não estou de humor para sua língua afiada.

MacSorley bebeu um gole de sua própria taça. Ficaram sentados em silencio durante um momento antes que ele falasse de novo.

—Eles perdoarão. Dêem-lhe tempo.

Depois da partida do Campbell, a brecha entre o Tor e os homens se alargou. Uma vez mais, voltara a estar firmemente instalado no papel de líder, o homem obrigado a tomar decisões duras e impopulares. Formava parte da equipe, mas estava à margem. Entretanto, não era isso o que lhe incomodava. Quão único queria era acabar de uma vez por todas com esse maldito assunto.

—ides contar logo? —perguntou-lhe MacSorley em voz baixa—. Somente restam duas semanas.

A mandíbula de Tor se esticou. dessa vez o outro homem tinha dado no alvo.

—Não, ainda não.

Todo rastro de jovialidade desapareceu do rosto do MacSorley, que se endureceu com uma severa expressão de raiva.

—antes de zarpar, merecem saber que não ides os capitanear quando tiver terminado aqui.

Suas palavras se aproximavam muito ao que pensava Tor, mas não queria as ouvir nesse momento. Olhou ao MacSorley entreabrindo os olhos de forma ameaçadora.

—Tome cuidado, escandinavo. Ainda não estais ao mando.

MacSorley não se intimidou ante sua advertência, embora Tor tampouco esperasse que o fizesse. O viking era quase tão temerário como loquaz.

—Sabes no que acredito? —Tor fingiu não tê-lo ouvido, com o olhar fixo na fileira de árvores, no outro lado do claro—. Acredito que não queres dizer porque desejas capitaneá-los, e lhe chateia a má maneira se sentir incapaz de fazê-lo. Mas cedo ou tarde terá que descer do burro, MacLeod. —Não disse «capitão». A Tor não aconteceu inadvertido o desprezo—. A guerra é iminente, e um dia destes, certamente antes do que pensa, teras que escolher. Esta equipe precisa de ti - disse com suavidade—. A Escócia lhe necessita.

Ao diabo com Escócia; seu dever era para com seu clã.

—Falam como o condenado de seu primo.

—Angus Og é um homem sábio. Pense. —Dito isto, deixou-o por fim em paz.

Que MacSorley fosse ao Hades! Tor não necessitava sua opinião. Fazia sua própria análise, e muitas vezes. Embora MacSorley estivesse certo, nada tinha mudado. Seguia sendo injustificável implicar a seu clã em uma guerra que não supunha uma ameaça para eles.

Duas semanas mais, pensou. Duas semanas mais, e teria completado com seu compromisso. O risco de que o descobrissem - e a traição que cometia ao adestrar homens para que lutassem pelo Bruce— ficaria para trás. Teria respeitado sua parte do trato ao treinar aos homens e teria conseguido tirar de cima ao Nicolson.

As águas voltariam para seu leito, por mais que fosse uma tortura para ele pensar que seus homens lutariam sem ele: ocuparia de novo uma posição de neutralidade na guerra da Escócia e no conflito entre o MacDougall e MacDonald.

Por mais que ele quisesse que as coisas fossem de outra maneira, suas obrigações para com seu clã eram sempre em primeiro.

*

Christina sabia que aquela era a oportunidade perfeita que esteve esperando para fazer algo importante.

Lembrando-se de quão categórico tinha sido Tor em relação à possibilidade de que ela saísse do castelo, foi em busca de lady Janet ou Colyne —pois lhe constava que Tor confiava em ambos—, mas não encontrou a nenhum dos dois. Como não se atrevia a envolver a ninguém mais, sabia que teria que lidar com ele por si mesmo. Não estava segura de que se encontrasse na broch, mas a julgar pela mensagem, parecia provável.

Foi mais fácil do que esperava. A única dificuldade surgiu quando tentou embarcar em um birlinn com destino à aldeia. O guarda do molhe se negou em um princípio a deixá-la partir. Ela não tinha a menor ideia do que fazer até que recordou a promessa de seu marido. Pelo visto, tinha mantido sua palavra de informar a seus homens em relação à condição que tinha imposto para casar-se com ele, já que, quando recordou ao guarda que devia haver um birlinn ao seu dispor para quando desejasse ir, ele cedeu.

Deixou que um punhado de guardas a acompanhasse à igreja, mas a seguir insistiu em que podia continuar sozinha a partir de ali. Uma vez que partiram, ela retornou ao bosque, voltando sobre os passos que a tinham levado até a broch a primeira vez. Estava escuro e não se atreveu a levar consigo uma tocha, mas por sorte a lua estava quase cheia e seu brilho era bastante intenso para atravessar o tênue manto de névoa que turvava o ar fresco da noite. Estava muito preocupada para ter medo; seu maior temor era não lembrar-se de como chegar ali.

Caminhava devagar e com determinação, mantendo a cabeça encurvada para ver por onde pisava. O chão era irregular, por isso tropeçou mais de uma vez. Mas já quase estava ali. Ao cabo de poucos minutos se encontraria perto do lugar do bosque do que tinha espiado a Tor e a seus homens.

Deteve-se e deu uma olhada para trás para assegurar-se de que ninguém a seguia. Não viu mais que as silhuetas escuras e ameaçadoras das árvores. Mesmo assim, não podia desterrar a sensação de que alguém a observava. Tudo estava totalmente tranqüilo…, muito tranqüilo.

De repente, viu-se imobilizada contra um peito revestido de aço e notou o fio inconfundivelmente frio de uma adaga contra o pescoço.

—Seu nome, moça - lhe grunhiu uma voz ao ouvido.

Essa vez não se tratava de seu marido.

—Lady Christina - gaguejou—. A esposa do chefe dos MacLeod.

Ele soltou um juramento, obrigou-a a dar volta e lhe tirou o capuz com brutalidade.

Christina se encontrava frente ao olhar furioso de sir Alexander Seton. Aproveitando-se de sua surpresa, dedicou-lhe uma reverência e disse: —Sir Alex, passou muito tempo.

—Milady. —inclinou-se automaticamente, como correspondia a um cavalheiro galante, fossem quais fossem as circunstâncias—. O que fazes aqui fora?

—Um dos homens de meu marido o traiu e interceptei uma mensagem. Planejam atacar esta noite, assim tinha que lhe avisar.

Ele endureceu sua expressão.

—Estás segura?

Christina assentiu.

Sir Alex a olhou com curiosidade.

—Espero que estejas certa.

Assim que tinha pronunciado estas sinistras palavras, um objeto alongado e metálico - um utensílio de lavoura, possivelmente?— emergiu das sombras, atrás de sua cabeça, e desceu com violência sobre o elmo de aço. Com um gemido de dor, sir Alex se desabou aos pés de Christina, reduzido a um vulto coberto de malha.

Ela espiou pela extremidade do olho algo que se movia, e uma figura com uma capa negra apareceu das trevas. Christina abriu a boca para gritar, mas era muito tarde. Um objeto contundente lhe golpeou a nuca. Teve a muito estranha impressão de ouvir alguém murmurar « sinto muito » antes que a escuridão a envolvesse.

Os sons não muito aprazíveis de uma bofetada e o exabrupto «maldito néscio inglês» a fizeram voltar a si. Em um princípio pareceu que a voz se dirigia a ela, mas ao abrir os olhos viu um guerreiro gigantesco e de aspecto aterrorizante que, inclinado sobre sir Alex, tentava despertá-lo.

Ela o tinha visto antes. Moreno, de sobrancelhas grossas e um rosto mais agreste que arrumado, parecia um homem que tinha participado de muitas brigas de tabernas a altas horas da noite. Então o recordou: era o guerreiro que tinha levantado aquela pedra enorme como se não pesasse virtualmente nada.

Deve ter deixado escapar um som, porque o guerreiro se afastou imediatamente de sir Alex e se aproximou dela.

—Está bem, moça?

—Isso acredito. —Ajudou-a a levantar-se. Depois de um momento de enjôo, a cabeça limpou em seguida. Ao levar mãos à nuca, apalpou um pequeno galo, mas por sorte não havia sangue. Sentia sobre si o olhar penetrante do homem—. E sir Alex? Ele encontra-se bem? —perguntou.

O guerreiro entrecerrou os olhos.

—Conhece o inglês?

Ela caiu em si de que não lhe havia dito quem era.

—Sou lady Christina Fraser.

Se isto o surpreendeu, dissimulou-o muito bem.

—A mulher do MacLeod?

Ela assentiu.

—E vocês são…?

Depois de titubear por um instante, ele respondeu:

—Incursionador. —Pelo visto, não queria lhe revelar seu nome nem se incomodou em lhe explicar por que.

—São da zona fronteiriça? —Ao advertir uma faísca de desconcerto em seus olhos, Christina supôs que tinha deduzido acertadamente a origem do sotaque.

—O que fazem vocês aqui? —inquiriu ele, trocando de tema—. O que ocorreu?

Recordou tudo de repente e se levantou de um salto, presa do pânico. Quanto tempo esteve inconsciente?

—Que horas são? —perguntou freneticamente. Antes que o homem pudesse responder, ela o agarrou pela parte dianteira de sua cota de malha. Ele não se moveu um centímetro. O que acontecia com esses guerreiros das Highlands? Por que tinham todos corpos do tamanho de montanhas?

—Explicarei-lhe isso tudo, mas não fica tempo… Deve me levar até meu marido.

Embora isso não parecesse fazer muita graça ao homem, seu tom o convenceu da urgência da situação.

—Estás em condições de andar?

Ela assentiu, e ele a ajudou a ficar de pé. Sir Alex era um homem corpulento, mas aquele «Incursionador» o levantou e o jogou ao ombro como um saco de farinha, sem muita delicadeza, por outra parte. Dava a impressão de que não sentia afeto pelo jovem cavalheiro. Sem dizer uma palavra mais, guiou-a através das árvores.

Quando saíram na clareira que se estendia ao pé da broch, gritou como um mocho, o que evidentemente era algum tipo de sinal. E apesar da noite estava avançada, havia um punhado de homens exercitando-se com armas diversas: espadas e tochas, pareceu a ela. Uma figura estava de pé ante a entrada, e pelas dimensões de sua sombra ela soube que era seu marido. Invadiu-a um grande alívio ao saber que tinha chegado a tempo. Tinha conseguido.

Tor foi a seu encontro e ela arrancou a correr para ele. Outros se juntaram ao redor para averiguar o que estava passando.

—Christina? —perguntou ele, com a voz aguda pela incredulidade—. O que ocorreu? O que faz aqui? Acreditava te ter advertido que não voltasse nunca para este lugar.

Ela ouviu a chispada de ira e se jogou em seus braços antes que estalasse. Ele a estreitou contra si de forma mecânica, mas afastou o olhar dela durante o tempo suficiente para ver o homenzarrão atirar a sir Alex a seus pés. Christina respirou aliviada ao advertir que o jovem cavalheiro se movia.

Tor soltou um juramento e a agarrou pelos ombros, olhando a de marco em marco.

—Têm-lhe feito mal?

Ela negou com a cabeça.

—Tenho um galo na cabeça, isso é tudo. Este homem, Incursionador, encontrou-nos. —Tor arqueou uma sobrancelha com expressão inquisitiva, mas o musculoso guerreiro se limitou a encolher os ombros como dando a entender que já explicaria mais tarde.

—Quem te fez isto? —A voz de Tor soou mais fria e letal do que ela a tinha ouvido nunca.

—Não sei, mas tem que me escutar. Não fica muito tempo. —devido a sua ânsia por contar-lhe o que saiu de sua boca foi uma corrente de palavras confusas e embaralhadas. Ao precaver-se da crescente impaciência de Tor, simplesmente lhe entregou a nota—. É a letra do Rhuairi - disse, sem saber até que ponto seria inteligível—. Ele sabe que está aqui e planeja lançar um ataque nesta noite.

—Parece a letra do Rhuairi, mas não tem pés nem cabeça.

Christina não alcançou a perguntar por que. Tor chamou a alguém em voz muito alta, e em pouco momento dois homens saíram da broch. Ela empalideceu ao reconhecer ao Rhuairi e ao Colyne.

Se Rhuairi era o espião, que fazia ali? Deveria ter posto terra por meio fazia tempo.

Esteve tão convencida de que tinha descoberto a verdade que inclusive quando surgiu a possibilidade de que não fosse assim, custou-lhe assimilá-lo.

Rhuairi se aproximou para ler a nota. Deu uma olhada rápida antes de devolver ao Tor.

—É uma boa imitação de minha letra, mas eu não escrevi isto.

Embora Tor falasse em um tom enganosamente sereno, Christina percebia a tormenta que estalava.

—Como diz que conseguiste esta nota?

Contou sua conversa com o irmão John.

—E disse que iria à aldeia? —perguntou Tor.

Christina assentiu, e ele proferiu uma maldição. O olhar que lhe lançou não destilava gratidão, a não ser escárnio, como se não pudesse acreditar que ela fosse tão estúpida.

—Quando? —inquiriu, sacudindo-a pelos ombros—. Quanto tempo estivestes inconsciente?

Ela abriu muito os olhos, totalmente desconcertada ante aquela reação tão diferente da que tinha imaginado.

—Não… não sei —gaguejou—. Uma hora, talvez mais.

Tor se voltou para o Incursionador em busca de uma confirmação.

—Eu tinha saído de ronda pelo este, e Seton pelo oeste. Como o inglês não respondeu a minha chamada, fui em sua busca. Pode ter sido uma hora, possivelmente mais.

—E não lhe ocorreu ir à caça de quem fez isso, seja quem é?

Incursionador apertou os lábios, que formaram uma linha tensa.

—Pareceu-me mais importante não deixar sozinha à moça e lhe trazer aqui.

Apesar da evidência de que a tinham enganado era evidente, Christina se negava a acreditar.

Tinha que haver alguma explicação.

—Equivoca-te a respeito ao irmão John. Não pode ter sido ele. —«Ele não me faria uma coisa assim», pensou—. Não disse a ele que sei ler.

—Está totalmente segura disso? —O olhar que lhe jogou seu marido teria podido cortar um diamante—. Reza por que esteja certa. Não tem idéia do que pode ter feito.

Sem lhe dirigir uma palavra mais, ordenou a dois dos homens que fossem ao povoado através do bosque para ver o que averiguavam, e a outros que preparassem o birlinn para navegar de retorno ao Dunvegan.

Christina estava petrificada de espanto. Tinha conduzido ao espião diretamente até seu marido? «Sinto muito.» A voz na escuridão de repente cobrou sentido. Ficou com vontade de tapar as orelhas com as mãos para não ouvir a verdade. «Deus santo, tem que ser de um engano. Por favor, que seja um engano.»

*

Tor aguardava com ar sério a que Lamont e MacLean retornassem do povoado. Mas já sabia o que tinha acontecido. O tabelião tinha seguido a Christina pelo bosque e se partira fazia um bom momento. Embora estivesse escuro, Tor tinha que supor que John tinha visto o suficiente para pôr em perigo a missão de seus homens.

A intromissão de Christina tinha posto em grave risco tanto a seu clã como a guarda secreta de Bruce. Vinte anos de guerra e esforços por restabelecer seu clã, e agora a vida de seus membros e a sua própria pendiam de um fio. Se o tabelião o relacionava com o Bruce e o rei Eduardo conseguia capturá-lo, sua vida não valeria nada. Mas ele não seria a única vítima. Seu clã cairia com ele, e se o tabelião tinha reconhecido a alguns dos integrantes da guarda secreta de Bruce, também teriam um alvo sobre a cabeça.

Como tinha podido permitir que ocorresse algo assim? Isso era impróprio dele. Tinha querido acreditar que ele e Christina eram diferentes. Acaso não tinha aprendido nada com a morte de seus pais?

Isto era exatamente o que queria evitar.

Era um maldito idiota. Pensava que Christina tinha entendido. Tinha sido um engano confiar nela. Ao tentar agradá-la, tinha falhado com sua guarda e tinha deixado que ela soubesse muito. Tinha permitido que uma mulher se interpusesse entre ele e seu dever para com seu clã.

Estava tão furioso que não se atrevia a lhe falar ou a olhá-la sequer. Entretanto, era perfeitamente consciente de que estava ali, sentada no assoalho, com os olhos exageradamente abertos e pálida. Fez-se forte e não deixou que o tremor de seus lábios ou as ligeiras sacudidas de seus ombros o comovessem. Nunca voltaria a comover-se por ela.

O pulso martelava nos ouvidos, por isso mal ouviu os homens quando retornaram e corroboraram o que ele já sabia. O tabelião tinha desaparecido. Ninguém o tinha visto partir, mas Tor não podia evitar supor que alguém o tinha ajudado a fugir.

Tinha a mandíbula apertada com tal força que notava que as veias do pescoço lhe tinham inchado. Ordenou com voz ensurdecedora que aparelhassem os navios. Tinha que encontrar ao traidor antes que transmitisse a informação que tinha averiguado. O fracasso não era uma opção.

Os homens limparam os aposentos principais. Tor repartiu instruções de último momento a Colyne e a Murdoch a fim de que preparassem o castelo para a guerra e se levantou para partir. O aposento ficou vazio salvo por sua esposa.

Ela deveria tê-lo deixado partir sem mais, mas nunca sabia quando deter-se. Agarrou-o pelo braço, e ele sentiu que a leve pressão de sua mão lhe queimava como um ferro em vermelho vivo, na pele, no peito. Entretanto, precaver-se de que sua debilidade por ela aumentara não fez a não ser avivar sua ira.

—Sinto muito - sussurrou Christina, retorcendo as mãos e olhando-o com olhos grandes e suplicantes—. Somente tentava ajudar.

Tor permaneceu totalmente imóvel, face à voragem desatada em seu interior. Seu rosto não demonstrava nem um traço de emoção. Não deixaria que seus rogos fizessem uma fresta nele. dessa vez não. Nunca voltaria a permitir que sua esposa ou ninguém interferisse em seu dever.

—Ajudar? —Soltou uma gargalhada para magoar—. Ao que parece é difícil pra ti compreender, mas não quero nem necessito sua ajuda. É minha esposa, Por Deus, não um de meus homens. Adverti-a que não te entremetesse. Pedi-te que nunca, sob nenhuma circunstância, aproximasse-te de novo ao broch. Sua «ajuda» pôs em grave perigo a meu clã, aos homens que estive treinando e a minha pessoa. Se não encontrarmos o tabelião, o rei Eduardo porá a minha cabeça um preço bastante alto para que inclusive meus aliados mais leais se voltem contra mim. Não tem idéia do que tem feito.

Embora Christina parecesse a ponto de desmoronar-se, ficou rígida para ouvir essas palavras.

—É verdade, dado que nunca te me dignaste dizer nada.

Tor se pugnou por manter o controle. Somente ela ousaria fazer recriminações depois do que acabava de ocorrer. Seu olhar se escureceu cortante como seu resistente tom de voz.

—E por uma boa razão, considerando o que tem feito. É justamente por isso que não queria que te implicasse. Deveria ter sido mais ardiloso e não ter revelado nada deste assunto.

A ousadia temporária de Christina veio abaixo quando começou a cair na conta da gravidade de seus atos.

—Tem todo direito de estar zangado, mas acreditava que corria perigo. Jamais teria imaginado que o irmão John tramasse algo assim. Tomei todas as precauções…

—Que obviamente não foram suficientes.

Os olhos de Christina se arrasaram em lágrimas. Inclinou-se para apoiar-se em Tor, mas ele ficou perfeitamente erguido. Tinha que fazer um esforço para não mover-se, para não sucumbir ao desejo urgente de estreitá-la entre seus braços e sacudi-la… ou beijá-la até que se fosse a dor que lhe oprimia o peito. Ele não era como os outros, maldita seja; supunha que devia ser insensível. Não era disso do que se apreciava? Não era isso o que o convertia em um grande líder e guerreiro? Apesar de tudo, o pranto de Christina corroía sua férrea determinação como o ácido.

—Juro que não voltará a ocorrer - murmurou ela.

Tor tinha que deixar bem claro como seriam exatamente as coisas a partir desse momento. Fixou nela um olhar duro e implacável.

—É obvio que não voltará a ocorrer, pois jamais te contarei uma maldita coisa mais.

Ela se separou dele, como se tivesse gritado, embora o havia dito com uma tranqüilidade glacial.

—Está zangado - sussurrou ela—. Não fala sério. —Dava a impressão de estar tentando convencer-se a si mesmo.

O olhar que lhe lançou teria gelado a lava do inferno.

—Nunca na minha vida falei mais a sério. —Tinha cometido um engano, mas estava resolvido a não repeti-lo. Era tão responsável como ela do acontecido. Tinha permitido que ela o convertesse em parte de sua pequena fantasia. Mas isso acabou—. Já te disse exatamente o que espero de ti: que fiscalize o castelo, que dê a luz a meus filhos e que deixe todo o resto em minhas mãos. Não espere nada mais que isso.

Christina estremeceu, profundamente ferida. Quem era esse homem desumano e inflexível? Nunca tinha falado dessa maneira; nem sequer na primeira ocasião em que o tinha visto tinha parecido tão frio e distante. Tão isento compaixão.

«Não fala sério — disse —. Está zangado.» Entretanto, a sombra de uma dúvida aninhou em seu coração.

Esforçou-se por lhe sustentar o olhar, decidida a não deixar-se intimidar. Tor não devia falar assim. Ela tinha errado, mas por um bom motivo, e suas intenções eram puras.

—Mereço sua ira, mas não seu desprezo. Não trabalhei de forma precipitada, nem era meu desejo que isto acontecesse. Sou vítima de um engano. Tem que saber que eu jamais faria algo para te prejudicar. —Fez uma pausa, antes de acrescentar em voz baixa—Amo-te.

Aguardou que Tor reagisse a sua declaração sincera, mas ele guardou um silêncio sepulcral, displicente, indiferente, magnânimo como um rei. O único indício de que a tinha ouvido era uma ligeira palidez em torno da boca.

Christina não esperava que ele correspondesse a seus sentimentos… ou sim?

Escapou-lhe uma lágrima. Custava-lhe falar pelo nó que tinha na garganta. Por que se estava comportando assim? Comportava-se dessa forma com todos outros, mas não com ela. Era o mesmo homem a quem tinha lido relatos na cama?

—Não faça isto. Não me separe de seu lado. Não mereço que me trate como se não significasse nada para ti. —Tentou tragar saliva, mas lhe doía—. Você não é assim.

Ele a olhou aos olhos, rebatendo-a em silêncio. Se ela tivesse percebido ira em sua expressão, teria mantido a esperança, mas no olhar frio e firme de seus olhos azul celeste não havia o menor indício de emoção. Christina retrocedeu um passo, como se o estivesse vendo pela primeira vez.

—Este é meu verdadeiro eu. Não sou seu condenado Lancelot. Isto não é uma fantasia romântica, e nada do que faça vai mudar isso, por muito boas que sejam suas intenções.

Ela soltou um grito afogado, como se Tor acabasse de lhe cravar uma adaga no coração. Seu rosto ficou lívido. Tor tinha arrojado luz sobre seus sonhos mais profundos e escuros para depois pisoteá-los. Tão transparente era Christina? Via ele suas tentativas por agradá-lo como um patética tentativa de conquistar seu coração? Encolheu-se de vergonha, pensando que talvez tivesse razão.

—Não sei a que te refere - disse por orgulho.

«Por favor, que não seja pena isso que percebo em seus olhos.»

—Crie que não me dei conta de como me olha, que não sei o que quer de mim? Mas não posso te dar o que desejas. É jovem, e tem a cabeça cheia de fantasias sobre cavalheiros e aventuras românticas. Sou um valente chefe das Highlands que só deve lealdade a seu clã.

—Então não há lugar para mim?

—Não na forma em que você deseja.

—As coisas não têm que ser assim.

Tor não moveu um só músculo do rosto.

—Sim, têm que ser assim.

—Você quer que seja - disse ela com raiva—. Quer estar sozinho para não sofrer se perder a alguém e para não ter que depender de ninguém. Começo a acreditar o que se diz de ti. Mas não é invencível. É um homem. As pessoas necessitam umas das outras, embora dêem passos em falso. Seu pai se equivocou ao te inculcar a idéia contrária. —Ao ver que tremia a mandíbula de Tor se perguntou se não tinha ido muito longe.

—Não sabe do que falas - acusou ele—. Estou seguro de que isto é um engano.

O coração deu um tombo a Christina quando compreendeu a que se referia. O engano era seu matrimônio.

Não dizia seriamente. Sem dúvida tinha tido algum desejo de casar-se com ela… ou não? Ninguém o tinha obrigado a nada. Por muito que lhe doesse, tinha que saber a verdade.

—por que te casou comigo?

Ele se voltou, e por sua atitude vacilante Christina soube que não queria responder a sua pergunta.

Sentia tal opressão no peito que mal podia respirar.

—Que importância tem isso agora? —inquiriu mordaz—. Para que manter as ilusões entre nós?

Tor lhe lançou um olhar severo, pois não tinha gostado de seu sarcasmo.

—Tu eras parte de meu acordo com o MacDonald. Casar-me contigo foi o preço que paguei em troca da paz. Embora, depois do que ocorreu hoje, é possível que perdi isso.

Christina sentiu que o coração lhe rompia em um milhão de pedacinhos que se dispersaram no chão, a seus pés.

Umas lágrimas grossas e quentes lhe escorreram pelas bochechas.

—E treinar esses homens também formava parte do trato?

Áspero e impassível, contou-lhe de maneira sucinta o que ela desejava saber desde o começo, lhe deixando meridianamente claro o que tinha posto em perigo com seus atos. Ela o escutou enquanto explicava os termos de seu acordo com o MacDonald, sua negativa inicial a adestrar aos homens e a oferta posterior de MacDonald que ele não tinha podido rechaçar.

«Nunca teve desejo de casar-se comigo.» O que o tinha feito mudar de idéia não tinha sido seu sentido da honra nem que albergasse sentimentos especiais para ela, a não ser seu dever para com seu clã. E ela tinha feito quão único Tor jamais poderia lhe perdoar: interpor-se entre seu clã e ele. Sentiu náuseas ao compreender a ameaça que tinha atraído sobre ele sem querer. Por culpa dela, a segurança do clã e todo aquilo pelo que Tor tinha lutado desde a morte de seus pais estavam em perigo.

Nunca voltaria a confiar nela. Ela sabia o muito que lhe havia custado baixar a guarda só um pouco, e que tomaria acontecido como um fracasso pessoal. Christina tornava realidade seu pior temor: que o fato de estreitar laços com alguém prejudicasse a seu clã. A promessa das últimas semanas se desvaneceu. Tor tinha se afastado dela, desta vez para sempre.

—E agora? —perguntou Christina—. Sente o mesmo que antes?

Pareceu-lhe que a determinação em seu olhar fraquejava por uns instantes, mas não foi mais que um efeito da luz das velas.

—Que importância tem isso? É minha esposa.

Foi o golpe de graça. As fantasias de Christina lhe tinham impedido de ver a realidade. Pela primeira vez, viu as coisas com claridade. Tor tinha razão: nunca poderia lhe dar o que ela queria. Sempre haveria uma parte dele que lhe estaria vedada. Embora sentisse algo por ela, jamais o reconheceria. Não a amava; nunca a amaria. Ela tinha se enganado, inventando desculpas, convencendo-se de que, debaixo aquela aparência fria, ele a queria, de que somente mantinha essa aparência para proteger-se, de que simplesmente não sabia como demonstrar seus sentimentos.

Mas se equivocava. Tentar lhe arrancar uma amostra de emoção era como tentar tirar água de uma pedra espremendo-a. Ela não pretendia encher uma taça, somente conseguir umas gotas. Mas ele nem sequer era capaz de lhe oferecer isso.

E Christina se fartou de tentar. Entregou-se a ele por completo, mas isso não tinha sido suficiente. Nunca seria.

Enxugou as lágrimas dos olhos. Assim seriam as coisas entre eles. Sempre. Nunca seria nada especial. Essa sensação não tinha sido nada a não ser fruto de sua imaginação. Tor não era seu Lancelot, a não ser um desumano chefe das Highlands que devia a seu clã.

Ouviram golpes na porta.

—Estamos preparados, capitão - disse MacSorley.

Tor se dirigiu à porta.

—Sinto muito - disse ela por última vez.

—Muito tarde para desculpar-se- replicou ele, impávido—. Se quer ajudar, reza para que encontre seu amigo antes que faça cair a ira de Eduardo sobre todos nós.

A opressão no peito de Christina aumentou enquanto o via partir, tentando gravar cada detalhe na memória, sabendo em seu coração o que sua cabeça ainda ignorava.

—Adeus… —sussurrou, ao tempo que a porta se fechava atrás dele.

Percebeu de que o havia dito com toda sinceridade. Talvez fosse inevitável. Um matrimônio apoiado no engano estava condenado desde o começo. Mas não podia continuar assim, fingindo, dando-se contra um muro de pedra. Talvez ele tivesse suavizado as barreiras entre eles, mas seguiam estando ali; sempre estariam. Sempre viveriam em mundos separados. Ela não se conformava com isso.

Queria —não, merecia— algo melhor. Tor não era o único que tinha direito a ser feliz.

O irônico era que lhe tinha aberto os olhos. Christina já não era a jovem assustada que se encolhia quando seu pai lhe levantava a mão, nem o cachorrinho amoroso que se contentava com qualquer sobra de carinho que seu marido se dignasse lhe jogar. Tinha muito que oferecer. Sabia ler e escrever, fazer cálculos mentais complexos, acondicionar um torreão escuro para convertê-lo em um lar e, sobre tudo, amar com toda sua alma. Se ele era incapaz de ver isso, ele perdia.

O pai Stephen tinha razão. Ela merecia a alguém que soubesse apreciar suas qualidades e querê-la por isso, que não lhe desse as costas cada vez que cometesse um erro. Queria ser importante para alguém. Talvez fosse uma aspiração pouco realista, mas a alternativa era muito pior. A vida que Tor podia lhe dar não só lhe romperia o coração, mas sim lhe quebraria o espírito. Ela podia viver com o coração quebrado, mas não sem sua alma.

Respirou fundo e secou as lágrimas dos olhos. Somente podia fazer uma coisa.


Capítulo 24


Christina, aninhada no birlinn, observava os ameaçadores muros de pedra do castelo do Dunvegan esfumar-se na bruma da manhã, e seu coração quebrado se desmoronou um pouco mais. Ao longo dos últimos meses, tinha chegado a sentir apego pelo velho montão de pedras que formavam o imponente castelo e pelos taciturnos ocupantes de seu grande salão. Ficaria terrivelmente com saudades.

Também sentiria muita falta de Tor. Seus olhos, que acreditava incapazes de derramar mais lágrimas, encheram-se de novo, mas ela os enxugou com determinação. Tinha tomado sua decisão e teria que ater-se a todas as conseqüências.

Acabou. Ia deixá-lo. Abandonar ao homem que amava. Ia obrigar a seu marido a respeitar sua promessa de deixá-la retirar-se ao convento de Iona, uma promessa que ela sabia que Tor não acreditava jamais que teria que cumprir. Detestava fugir desse modo, mas não estava segura de que ele mantivesse sua palavra desse-lhe oportunidade de opor-se.

Quando tinha descoberto que já havia um birlinn preparado para navegar rumo à ilha do Mull, Christina tinha pedido à tripulação que a levasse primeiro a Iona. Embora isso os obrigasse a dar uma pequena volta, era mais simples que aparelhar outra embarcação. Christina, que não tinha tido tempo de dispor de seus pertences para a partida, tinha embarcado com pouco mais que uma muda de roupa e alguns mimos pessoais. Mhairi recolheria o resto de suas coisas e as mandaria a Iona antes de retornar junto a sua família no Touchfraser. Não levou consigo seu prezado livro. O relato não fazia mais que infundir a jovem falsas esperanças e sonhos impossíveis.

Havia dito aos guardas que a acompanhavam que ia visitar sua irmã, mas sabia que não tinham acreditado de tudo. Ao contrário deles, não tinha um elmo de aço que ocultasse seus olhos inchados e seu rosto manchado de lágrimas.

Foi uma travessia rude, pois o mar estava agitado. Christina estava sentada sozinha, perto da proa, coberta com uma capa e peles, sentindo-se mais desventurada que nunca, e não pelo vento ou o frio.

Em mais de uma ocasião esteve a ponto de indicar aos guardas que virassem de volta, mas afugentava suas dúvidas sobre a conveniência de partir repetindo em seu foro interno que romper o vínculo entre eles seria o melhor para Tor também. O matrimônio não desejado por ele so lhe tinha ocasionado problemas. Talvez sua partida lhe ajudasse a sair do embrulho em que ela o tinha metido.

Não obstante, saber que sua decisão era a correta não fazia que fosse mais fácil. Uma parte dela desejava ser capaz de contentar-se com meia vida, mas Christina sabia que o que ele podia lhe oferecer nunca a satisfaria e que jamais deixaria de pressioná-lo para que lhe brindasse com algo mais. Ele, por sua parte, trataria-a cada vez mais com maior frieza até que ela acabasse por odiá-lo… e por odiar-se a si mesma.

Não, era melhor assim. Sua infelicidade e desespero desapareceriam com o tempo. Embora o certo fosse que, no momento, longe de diminuir, pioravam conforme avançava o dia e o navio se afastava do lugar mais parecido a um lar que ela tinha conhecido.

Levavam navegando algumas horas, percorrendo o trajeto inverso ao que ela tinha feito há apenas uns meses. Reconheceu alguns das ilhotas que vira durante a viagem para o norte: Rum, Eigg e Muck. Embora o céu estivesse nublado e cinza, a bruma limpou o suficiente para que de quando em quando vislumbrasse a costa escocesa a sua esquerda. Logo se encontrariam entre o Coll e Mull, e justo ao sul estaria a ilha Iona. Se o vento não amainasse, ela logo estaria instalada a salvo entre as paredes do famoso convento junto com Beatrix. Desfrutaria da segurança que procurava, mas sem as ilusões.

Tão absorta estava em seu sofrimento que demorou um momento em ver que algo ia mau. As ordens enérgicas do Murdoch, o escudeiro de Tor e capitão de sua guarda, ressonavam de forma cada vez mais premente.

—O que ocorre? —perguntou-lhe Christina ao jovem guerreiro que ia sentado no banco situado em frente ao dela.

—Estou seguro de que não é nada, milady. —Assinalou para trás, e ela alcançou a divisar as velas de dois navios ao longe—. Essas galeras estiveram nos seguindo perto de uma hora. O capitão rodeará a ilha da Staffa a toda velocidade e estou seguro que conseguiremos burlá-los.

—Parecem galeras bastante grandes - observou ela em um tom cauteloso.

—Os assaltos no mar não são freqüentes, milady. Realizamos esta rota com regularidade e rara vez sofremos contratempos.

Assaltos? Face à afirmação do homem de que certamente não era nada, Christina sentiu que lhe acelerava o pulso, arrancando-a de sua letargia. Minutos depois, Murdoch gritou aos tripulantes que se agarrassem forte, e a embarcação virou bruscamente à esquerda para circunavegar a pequena ilha com suas estranhas formações rochosas. Ela nunca tinha visto nada parecido aquelas colunas hexagonais de rocha negra, mas não dedicou um segundo às estudar, pois estava muito nervosa, olhando para trás, com a esperança de que o veleiro que os seguia passasse, e tentando evitar o pânico quando viu que continuavam atrás deles.

Embora soubesse que o guerreiro que tinha ao lado estava ocupado remando, não pôde deixar de comentar:

—Parece-me que ainda nos seguem.

Ele não passou por cima do temor que destilava sua voz. Christina advertiu que não queria assustá-la, mas tampouco subtrair a importância do que estava acontecendo.

—Tentaremos deixá-los para trás.

«Tentaremos.» Mas ela sabia tão bem como ele que somente era questão de tempo que os navios maiores lhe alcançassem. Em condições de vento forte, o birlinn era mais veloz, mas a galera tinha quase o dobro de remos.

—São piratas?

O homem torceu a boca com expressão sombria. Os navios se aproximavam e se achavam já a poucas centenas de milhas.

—Algo pior -respondeu—. Ao que parece um deles é inglês.

—O que é que querem?

Ele sacudiu a cabeça.

—Ignoro, milady.

—Todos a coberto! —bramou de repente Murdoch.

Christina se viu derrubada de um empurrão, e um teto de escudos se formou sobre sua cabeça, poucos segundos antes que ouvisse o tamborilar surdo e arrepiante das flechas que choviam sobre eles. Estava tão aflita que demorou um momento em compreender o que ocorria.

—por que nos atacam? —perguntou, mas os homens estavam muito ocupados tentando evitar a seus perseguidores e contra-atacar com suas próprias flechas para lhe responder.

—Rendeis-vos - gritou uma voz ao longe, e Christina soube que procedia de um dos navios.

Não fez falta ouvir a soez resposta do Murdoch para saber o que fariam os homens de Tor. Eles viviam para lutar. Inclusive naquele momento ela percebia sua ânsia por entrar em ação. Render-se não estava em seu caráter. Antes preferiam a morte.

Entretanto, Christina não ia permitir se podia evitar. Tinha que fazer algo.

—Não - disse, abrindo passo por entre os escudos para captar a atenção do capitão—. Façam o que lhe pede, Murdoch. Ao menos tentem averiguar o que querem.

O rosto do Murdoch se converteu em uma máscara de fúria. Saltava à vista que nunca antes tinha recebido ordens de uma mulher e queria fazer caso omisso dela. Fugir de um combate ia contra sua natureza de guerreiro, mas, por outro lado, sabia que estava obrigado a proteger a sua senhora. Christina respirou aliviada quando Murdoch afastou o olhar dela e, dirigindo-se a vozes ao navio mais próximo -que ainda estava a certa distância—, fez o que lhe pedia.

—O que ocultam filhos do Leod? —foi à resposta.

«Sabem quem somos», pensou ela. Deviam ter reconhecido a insígnia: as três pernas recobertas de malha dobradas formando um triângulo, que denotavam que o clã descendia dos reis do Man, e um birlinn negro, símbolo de sua ascendência escandinava, sobre campo de gules e azur.

—nos entreguem a metade e lhe deixaremos partir em paz - acrescentou outro homem.

«Deus santo, acreditam que transportamos riquezas! Não são mais que piratas ingleses.»

—Não temos nada que possa lhes interessar - replicou Murdoch—. Não levamos moedas nem mercadorias valiosas a bordo.

Ficou claro que seus perseguidores não tinham acreditado quando lançaram contra eles outra chuva de flechas. Christina se viu empurrada de novo sob o toldo de escudos e já não voltou a intervir. Não serviria de nada, pois estavam decididos a roubar. Seu pai falava freqüentemente das atrocidades dos ingleses, assim por que se surpreendia?

Notou que o navio se movia de novo enquanto os homens manobravam para encontrar a rajada de vento que lhe permitisse ficar fora do alcance das flechas e escapar.

Desde debaixo dos escudos, Christina ouviu gemer a um homem que tinha perto e soube que uma das flechas dos assaltantes tinha dado no alvo.

Afogou um grito de espanto tapando a boca com o punho. Estava tão assustada que não sabia o que fazer. Com o rosto apoiado sobre os joelhos, tentou isolar do fragor horrível que a rodeava. Esteve a ponto de cair pela amurada quando a embarcação foi investida pelo outro lado. O estrondo soava cada vez mais forte; mais gritos, mais flecha, o som de um gancho de ferro de metal jogado para prender os dois navios entre si, seguido pelo balanço provocado pelo movimento dos homens e o entrechocar de espadas quando a batalha começou em um estrépito de aço e morte. Christina via a muralha de pernas dos homens que a rodeavam, e sabia que morreriam protegendo-a.

Os guardas de seu marido figuravam entre os melhores guerreiros das ilhas, mas eram somente uma vintena, enquanto que o inimigo os quadruplicava em número, a julgar pelo tamanho de suas embarcações.

Os sons eram dilaceradores: gemidos de dor, rangidos de ossos, alaridos de agonia. A bílis lhe subiu pela garganta enquanto os homens caíam em torno dela. Homens que conhecia. O terror se apropriou de Christina quase por completo. Aquilo era muito.

Tinha vontade de desmaiar, mas não queria envergonhar aqueles homens que pereciam enquanto tentavam mantê-la a salvo. Em troca, esforçou-se por não cair no atordoamento.

Cada minuto que passava era insuportável. Embora os guardas do MacLeod lutassem com galhardia, acabaram por sucumbir ante a superioridade numérica do inimigo. Quão guerreiros a rodeavam começaram a cair. Olhou a Murdoch nos olhos quando se desabou sobre ela e compreendeu sua intenção. Pugnando por reprimir um grito, ocultou-se sob o escudo de seu corpo ensangüentado.

Ainda pior que os sons da batalha foi o silêncio que se impôs quando terminou, pois sabia que todos tinham morrido.

—Afastem os cadáveres - ouviu dizer um homem—. Vejamos o que é o que estavam tão ansiosos por proteger.

Os últimos esforços do Murdoch tinham sido inúteis. Um momento depois, alguém a tirou de forma brusca de seu esconderijo.

—É uma moça - disse o homem, lhe tirando o capuz—. E bastante bonita, por certo.

Um aroma denso como a cobre a afligiu. Deu uma olhada em redor, aos restos da matança e os rostos conhecidos foi demais e vomitou sobre as grebas e os escarpes de aço do homem que a segurava.

Este proferiu um juramento e atirou uma bofetada com o dorso da mão.

—Zorra estúpida!

—Como te chamas?

Christina limpou a boca e levantou o olhar para o homem que tinha falado. Sob a viseira de aço de seu elmo, seus olhos se cravaram nela como duas adagas negras. Pela qualidade de sua malha e a sobreveste fina que levava sobre o peito, supôs que era o cabeça dos ingleses.

Ela ergueu o queixo e lhe sustentou o olhar.

—Christina, esposa do chefe dos MacLeod. —O nome do temido chefe não impressionou absolutamente ao altivo inglês. O desdém que destilava seu rosto cruel e curtido não impediu a Christina acrescentar—: Com que autoridade assalta este navio e assassinam estes homens?

A julgar pela expressão do homem, não tinha gostado de seu tom desafiante.

—a de Eduardo, rei da Inglaterra, senhor da Irlanda, príncipe de Gales e duque da Aquitania pela graça de Deus. Seus homens opuseram resistência - mentiu descaradamente. Afastou sua atenção dela e se dirigiu ao soldado que a tinha agarrado pelo braço—. Não lhe entretenham muito. —O líder inglês percorreu com o olhar a outros homens que o rodeavam—. E o mesmo digo a todo aquele que deseje uma parte dos despojos. Aqui não há nada. Quando tiverem terminado, queimem tudo.

Christina conteve outra arcada ao compreender o que pretendiam fazer. Iriam violentá-la e logo matá-la, a fim de que não ficassem testemunhas de seu crime. A esposa de um chefe das Highlands não valia nada para eles. Néscios! Tor os caçariam quando se inteirasse do ocorrido.

A segunda nave tinha ancorado ao outro lado do birlinn. Ao fixar-se na roupa e as armaduras de seus ocupantes, Christina viu que se tratava de highlanders. Escrutinou aqueles rostos ásperos e selvagens em busca do menor raio de piedade, mas não o encontrou. De repente um homem deu um passo adiante. Seu olhar era penetrante. Parecia familiar.

—Acredito que a moça pode nos ser útil, capitão.

O líder dos ingleses se voltou para quem tinha falado com somente um pouco menos de desprezo do que tinha mostrado a ela.

—E que é você?

—Arthur Campbell.

—Campbell? Não é seu irmão um dos companheiros de Bruce?

Sem dúvida por isso o tinha reconhecido Christina. Recordava a sir Colin Campbell do Finlaggan. Arthur, embora vinte anos mais jovem que seu diferente irmão, assemelhava-se a ele.

—Sim, e outros dois irmãos e eu somos leais ao senhor do Badenoch. Comyn o Vermelho.

Não era incomum que as famílias estivessem divididas. O capitão inglês aceitou sua explicação, e Campbell prosseguiu: —A moça se casou recentemente com o chefe dos MacLeod; um matrimônio por amor, conforme dizem. —Ela reprimiu uma gargalhada aguda de histeria que lhe subiu à garganta—. Estará ansioso por recuperá-la. Possivelmente ela possa nos ajudar a persuadi-lo de que nossa causa é justa. —O capitão não parecia muito convencido. Como a maioria dos ingleses, cometia o engano de subestimar aos «bárbaros» das Highlands—. Também é a filha de Andrew Fraser - adicionou.

Isso fez que o capitão prestasse atenção. Olhou-a, entreabrindo os olhos.

—É isso certo?

Christina assentiu, depois de decidir que o mais prudente era não mencionar que a ameaça de acabar com sua vida não daria muito resultado com seu pai.

Um sorriso se estendeu lentamente em seu rosto cruel.

—tragam-me isso - ordenou ao homem que ainda a segurava—. Talvez possa nos ser útil, apesar de tudo. E se não… —deu de ombros.

Ela soube o que significava esse gesto.

Embora sem dúvida a motivação de Arthur Campbell não tinha sido ajudá-la, lhe dedicou um olhar de gratidão, mas ele já tinha desaparecido entre a multidão de guardas que tripulavam a segunda galera. Entretanto, sua oportuna intervenção não tinha sido mais que uma salvação temporária; seu pai não moveria um dedo para socorrê-la. Quanto a Tor…

Não lhe restava dúvida de que sairia em sua busca. Embora não a amasse, consideraria que era seu dever protegê-la. Mas descobriria a tempo o que tinha acontecido?

*

O êxito deveria ter melhor sabor na sua boca. A equipe havia retornado a demonstrar que suas habilidades eram do que mais valiosas, da perícia do Lamont como rastreador até os dotes de marinheiro do MacSorley, passando pelos instintos do MacRuairi, que os tinham levado a dirigir-se para o Dunstaffnage. Tor duvidava que tivesse conseguido sem eles. Apesar de tudo, durante a viagem - inclusive quando tinham alcançado ao irmão John e MacRuairi o tinha «persuadido» de que lhe revelasse para quem trabalhava— Tor não podia desterrar a tristeza que o envolvia como uma nuvem negra.

A intromissão de Christina poderia ter estragado tudo, mas ela so queria ajudar. Ele não podia reprovar-lhe. Tinham-na enganado e simplesmente tinha tentado fazer o correto. A culpa era dele, por lhe contar mais do que devia. Não permitiria que isso voltasse a ocorrer. Faria o que tivesse que fazer. Repetiu a si mesmo inumeráveis vezes. Por que não podia deixar de ver em sua mente a expressão abatida de Christina?

Afrouxou a cota, tentando aliviar o persistente desconforto que sentia no peito.

Queria deixar para trás o passado. Quando os homens partissem, ele esperava poder virar a página e voltar para um certo estado de normalidade…, se é que tal coisa era possível com Christina. Nada tinha sido normal do momento em que tinha pousado os olhos nela pela primeira vez.

Duas noites depois de sua partida, Tor subiu a escada do molhe, depois de ter coroado sua missão com um êxito terminante. Tinha impedido que o tabelião divulgasse a informação e tinha averiguado quem era o responsável pelos últimos ataques lançados contra Dunvegan. John MacDougall do Lorne ganhou um inimigo poderoso, e Angus Og MacDonald tinha um novo aliado contra seu traiçoeiro parente. Tor já não se manteria à margem do conflito entre os dois influentes clãs ilhéus.

Enquanto se aproximava do grande salão, pensava no que diria para sua esposa para acabar com a discórdia entre eles, mas imediatamente intuiu que algo ia mau. O lugar estava muito escuro, muito tranqüilo. Era como se um pano mortuário cobrisse tudo.

Rhuairi e Colyne foram a seu encontro a passo veloz. Ao ver sua expressão, ele soube que foram lhe dar uma má notícia.

—O que acontece? —quis saber.

Eles se olharam, nervosos, mas Colyne foi o primeiro em falar.

—Trata-se da senhora, RI tuath.

Um calafrio lhe percorreu as costas. Obrigou-se a manter um tom sereno, Apesar de que todos seus músculos se esticaram em um estado de máxima alerta.

—Está doente?

Colyne sacudiu a cabeça.

—Não, chefe - respondeu Rhuairi—. Se foi.

Zumbiram-lhe os ouvidos como se alguém acabasse de lhe golpear o elmo com uma espada. Demorou uns momentos em compreender o que o senescal havia dito. Agarrou ao Rhuairi pelo broche de seu brat de quadros.

—Como que se foi?

Tor escutou a explicação do senescal de que ela partiu na companhia dos homens que se dirigiam ao Mull com uma mescla de incredulidade e um pânico crescente conforme assimilava o ocorrido. Christina tinha aproveitado sua estúpida promessa de permitir que se retirasse a um convento. A ele jamais teria passado pela cabeça que ela chegaria a fazê-lo algum dia, embora em realidade não soubesse por que. Tinha-lhe dado uma saída; por que lhe surpreendia que ela a tivesse utilizado?

Deus sabia que não lhe tinha dado nenhuma razão para ficar. Ela não tinha feito outra coisa que tentar agradá-lo desde que se casaram. Tinha-lhe entregue seu coração, e não tinha dado nada em troca. Comportou-se como um bastardo insensível e tinha acabado por afugentá-la.

Estava sozinho. Não era isso o que queria? Não sentir nada a não ser um vazio em seu interior? Mas não era um vazio o que sentia, a não ser uma dor aguda e lacerante. Sentia-se como se acabassem de lhe cravar uma espada no peito e lhe tivessem esmigalhado as vísceras.

Uma vida inteira de solidão se abria ante ele. Uma vida em que somente teriam a guerra e suas responsabilidades para com seu clã. Uma vida de infelicidade.

Deus santo, o que tinha feito?

Deveria estar furioso porque ela se atrevera a abandoná-lo. Os highlanders eram célebres por seu orgulho, e ele não era uma exceção. Entretanto, unicamente podia pensar no dano que devia ter feito para que chegasse a esse extremo. Sentia-se doente somente de pensar. Tinha que recuperá-la. Não porque fosse sua mulher - porque lhe pertencesse —mas sim porque seu lugar era ali a seu lado.

Não sabia por que albergava sentimentos tão intensos, mas teria que demonstrar-lhe custasse o que custasse.

Continuou caminhando até o salão, com os dois homens seguindo-o a toda pressa. Uns poucos membros do clã dormiam ao calor do fogo, mas a maioria estava sentada em silencio em torno das longas mesas. O ambiente estava tal como ele tinha deixado, mas parecia diferente. Lôbrega, como se toda a alegria se apagou. Seus cães ergueram a cabeça quando entrou. Em vez de correr a recebê-lo, dirigiram-lhe um olhar de desilusão e apoiaram de novo a cabeça sobre suas patas.

—Onde está Murdoch? —perguntou com impaciência.

Ambos os homens o olharam, desanimados. Colyne sacudiu a cabeça.

—Com os homens que foram zarpar para o Mull. Não retornaram.

—Como que não retornaram? —estalou Tor—. Até tendo em conta o tempo acrescentado da viagem a Iona, deveriam ter retornado ontem.

Nenhum dos dois respondeu. De repente, o estômago de Tor deu um tombo, como se tivesse tragado um bocado de carne putrefata. O pânico começou a crescer em seu interior, mas o reprimiu. Christina estava bem. Tinha que haver uma explicação. Mas Rhuairi não tinha terminado.

—Chegou isto para você faz menos de uma hora. O mensageiro disse que ninguém devia vê-lo exceto você.

Tor o abriu, atendido por uma negra premonição.

Parou-lhe o coração e seu rosto ficou lívido quando leu as palavras escritas na parte de pergaminho, palavras que iriam mudar sua a vida.

«Homens mortos. Os ingleses capturaram a sua dama. Dumfries. Não demorem.»

«Não demorem.» Tinham assassinado seus homens e tinham a intenção de matar a ela também.

A perda de seus homens o punha furioso. Tinha vontades de estrangular a alguém. Mas ao pensar que Christina corria perigo…

A bílis lhe queimou a garganta. Embora sempre tivesse acreditado que não tinha medo de nada, um medo maior que jamais sentira se deu procuração dele; um medo escuro que lhe consumia a alma e corroía como o ácido a cobertura de aço de seu coração. Sentia-se como em carne viva. Nu. E mais apavorado do que estivera em toda sua vida.

Se inteirar-se da ida de Christina o tinha arrancado de seu estupor emocional, a notícia de que tinha caído prisioneira dos ingleses foi como um brilho de lucidez que o obrigou a aceitar a verdade.

Amava-a.

Muito tarde compreendeu o insensato que tinha sido. Sua obstinação em orgulhar-se por sua crença de que era imune às emoções tinha impedido de ver o que estava ali desde o começo. Essa era a razão pela que nunca deixava de pensar nela. A razão pela que procurava pretextos para passar tempo em sua companhia. A razão pela que lhe fazer o amor provocava uma sensação tão diferente. Era o que fazia que se sentisse feliz simplesmente ao estreitá-la entre seus braços durante horas e escutar sua voz enquanto lia essas ridículas histórias românticas. Era o motivo pelo que desejava despertar a seu lado todos os dias pelo resto de sua vida. Era o motivo pelo que lhe saltava o coração quando entrava em um aposento e ela levantava o olhar para ele, com um amplo sorriso desenhando-se o no rosto.

Ela havia devolvido a calidez a sua vida, tinha quebrado a muralha de gelo que tinha erigido em seu interior e mergulhou até o mais profundo para encontrar emoções que levavam muito tempo enterradas.

Mas talvez já não tivesse ocasião de dizer-lhe.

Imagens longamente reprimidas desfilaram ante seus olhos. O corpo nu e maltratado de sua mãe coberto de hematomas e sangue, com uma expressão de terror fixada para sempre em seu olhar. E logo recordou o resto: como tinha se jogado sobre ela e se negara a permitir que os homens de seu pai a levassem; quanto tinha chorado; como a dor o tinha abrasado e destroçado por dentro, igual a agora.

Não podia ocorrer isso a ela também. A idéia de não voltar a vê-la jamais…, de não voltar a tocá-la…, de não aspirar nunca mais seu aroma suave e floral era insuportável. Não podia perdê-la.

Algo estalou em seu interior. Raiva. Loucura. Uma determinação obsessiva por encontrá-la e devolver o golpe com a espada da vingança. Jurou que encontraria a cada um dos responsáveis pelo assassinato de seus homens, e se haviam tocado um só cabelo da sedosa e negra cabeleira de Christina, asseguraria-se de que sofressem uma morte lenta e dolorosa.

Os escudeiros de Eduardo tinham cometido um engano de fatais conseqüências. Ao matar aos homens de Tor e capturar a sua esposa, os ingleses tinham feito que a guerra da Escócia passasse a ser a guerra de Tor.

O caminho que devia seguir estava claro. De momento começou a fazer preparativos para reunir-se com os homens na broch. Necessitaria-os se queria ter alguma possibilidade de resgatar Christina. Surpreendentemente, reconhecer isto para seus adentros não lhe custou o menor esforço. Antes de partir, entregou ao Rhuairi uma mensagem breve para que o despachasse ao MacDonald: «Estamos preparados».

Tinha tomado uma decisão. Não haveria volta atrás.


—Peço-lhe desculpas pelas maneiras do capitão, lady Christina. Ao que parece se excedeu um pouco em seu zelo por lhe interrogar.

Um pouco? Christina olhou fixamente ao comandante inglês ricamente vestido e impecavelmente arrumado, que estava sentado de frente a ela nos luxuosos aposentos principais do castelo do Dumfries. Seus olhos delatavam que não o lamentava absolutamente. Entretanto, bater em uma mulher —embora fosse escocesa— era pouco cavalheiresco. Lorde Seagrave, com sua sobreveste impoluta bordada em branco e dourado e sua malha reluzente, deu-lhe a impressão de ser o tipo de homem a quem não gostava de manchar as mãos com os aspectos mais desagradáveis de suas responsabilidades como comandante da guarnição inglesa no castelo do Dumfries, no Galloway. Perto de cinqüenta anos, era um dos comandantes mais velhos do rei em Escócia e tinha participado de quase todas as lutas principais da última década.

Embora tivesse vontade de lhe espetar que guardasse suas desculpas e lhe recriminar que tivessem assaltado seu navio sem motivo e assassinado a todos aqueles homens, Christina sabia que para proteger a seu marido e a sua família teria que seguir interpretando o papel de rapariga assustada e sorrindo como uma parva, que era o que tinha feito no momento de sua captura. Os últimos dois dias tinham sido os mais longos de sua vida. Horrorizada pela matança gratuita dos homens de seu marido, tinha vivido a cada segundo temerosa de que mudassem de idéia. Tinha que sobreviver durante o tempo suficiente para informar a alguém do acontecido. Era imprescindível vingar aquelas mortes.

O capitão inglês tinha mitigado o tédio da longa travessia por mar interrogando-a sobre as atividades de seu pai e seu marido. Quando não gostava da resposta, golpeava-a. Sua arrogância, não obstante, tinha virado em favor de Christina, pois era evidente que na realidade não acreditava que ela possuísse informação valiosa. A maioria dos homens considerava as mulheres seres inferiores, e os ingleses, com seu altivo sentimento de superioridade, eram ainda piores.

Christina tinha se informado de muitas mais coisas das que tinha revelado. Os homens falavam sem disfarces em sua presença, sobre tudo de noite. Ela tinha descoberto que acabavam de estar no castelo do Inverlochy, o bastão nas Highlands do senhor do Badenoch, Comyn o Vermelho. A escolta dos highlanders estava integrada em sua maior parte por membros do clã Comyn e seus parentes do clã MacDougall.

Quando chegaram ao castelo do Galloway, conduziram a Christina à praça dos ingleses no Dumfries enquanto os highlanders se dirigiam ao castelo do Dalswinton para aguardar a chegada de seu senhor.

Estava virtualmente segura de que tramavam alguma ação nefasta relacionada com o conde de Carrick, Robert de Bruce. Um dos guardas do Comyn tinha mencionado de passagem que estava preso em uma prisão inglesa, mas isso era tudo o que ela tinha conseguido ouvir. Esperava averiguar algo mais de boca de lorde Seagrave.

Resistiu o impulso de levar a mão à cara, que tinha inchada e arroxeado, e dizer a lorde Seagrave exatamente onde podia meter sua compaixão. Seus machucados desapareceriam, e suas probabilidades de escapar seriam mais altas se eles a subestimavam. Antes morreria que trair seu marido. Os últimos meses tinham despertado nela uma força e um valor que não sabia que possuía. Se mostrasses intimidada, era unicamente por interpretar um papel. Assim, em vez de replicar com raiva, agachou a cabeça e disse: —Meu pai é um súdito leal do rei. O que seu homem insinua… —inclinou-se para ele e sussurrou—: É traição.

Esperava haver dado a sua voz o toque justo de surpresa e inocência.

Ele sorriu com indulgência, como em deferência a seu simples intelecto feminino.

—Esquecestes que seu pai esteve na prisão por traição não faz muito tempo?

Christina abriu muito os olhos.

—Certamente que não, milorde. Por isso mesmo posso lhe garantir sua lealdade para o rei. Embora diga que o trataram com toda cortesia - mentiu— não tem o menor desejo de voltar. —Baixou a voz com uma atitude de cumplicidade—. Acredito que é porque sentia falta de seu uísque e os bolos de maçã de seu cozinheiro. —Franziu o sobrecenho de maneira forçada—. Tem maçãs na Inglaterra?

Quando o comandante a olhou como se fosse parva de arremate, ela esperou não ter carregado muito as tintas.

—Temo que sim.

—Então talvez fossem as ameixas. Estão demais de ricas. Têm ameixas também?

A lorde Seagrave começava a esgotar a paciência. Aquela mulher tinha intercalado seus dois interrogatórios com bate-papos sobre comida, móveis e música, para grande irritação do comandante.

—Remetemos uma mensagem a seu pai, mas não respondeu ainda. Por quê?

Estava entrando em terreno perigoso. O valor de Christina como refém diminuiria de forma considerável se os ingleses descobrissem que seu pai não iria resgatá-la.

—Talvez esteja de viagem. Retornou o mensageiro que enviaram a meu marido?

—Ainda não - disse ele com o sobrecenho enrugado.

De novo chamou alguém na porta, mas Christina se acostumou às interrupções constantes. Durante a hora que ele levava tentando interrogá-la nesse dia, um desfile de homens tinha passado pelo aposento.

Um soldado jovem entrou e entregou uma carta sem explicação alguma. Lorde Seagrave devia estar esperando-a, pois a abriu e a leu com rapidez. O sorriso matreiro que lhe arqueou os lábios despertou a curiosidade de Christina.

—partiram os homens? —perguntou lorde Seagrave.

—Não - respondeu o jovem cavalheiro—. Digo se acontecer, senhor?

Christina ficou de pé, sem dissimular sua emoção.

—Posso voltar para mi… quarto. —O quarto reduzido e sem janelas na torre mal era digna desse nome.

Ele a olhou com dureza.

—Não terminamos. Esperes aqui, em seguida volto. —Deixou-a sozinha e fechou a porta atrás de si.

Christina ficou carrancuda até que viu o pergaminho desdobrado sobre a mesa. Arrepiou-lhe o pêlo dos braços. Não acreditou em seus olhos. O comandante deixou a carta.

Com o coração desbocado, inclinou-se sobre a mesa e virou os documentos para coloca-los de cara para ela. Primeiro examinou a página superior e viu que estava escrita em francês.

Afogou um grito e a leu de novo para assegurar-se de que a tinha entendido bem. Era do Comyn o Vermelho para o rei Eduardo, e lhe informava da traição de Bruce, a prova da qual se anexava a seguir. Christina levantou apressadamente a primeira folha de pergaminho e viu um documento lacrado, em latim. Embora continha muitos detalhe, ao que parece se tratava de um pacto entre o Comyn e Bruce contra o rei Eduardo. E agora Comyn pretendia voltar-se contra Bruce e exibir seu acordo como prova de traição.

Ouvindo passos sonoros do outro lado da porta, Christina devolveu os documentos a seu lugar e se reclinou em sua cadeira, tentando serenar seu pulso e atenuar o rubor de nervosismo que lhe tingia as bochechas.

O coração pulsava com força enquanto obrigava a sua mente a responder às perguntas do comandante da forma mais desatinada possível enquanto planejava sua fuga.

Não podia esperar que a resgatassem tendo em conta que essa mensagem seria despachada a Londres a qualquer momento. Embora não conhecesse bem a área, sabia que o castelo de Bruce no Annandale, Lochmaben, encontrava-se perto. Não sabia como chegaria até ali, mas tinha que tentar.

Se essa carta chegasse às mãos do rei Eduardo, Robert Bruce logo seguiria ao Wallace à tumba.


Capítulo 25

Era uma noite perfeita para uma incursão: escura e brumosa, sem uma lua prateada que os delatasse. A escuridão seria sua primeira arma, e a velocidade e a surpresa, a segunda. Atacar depressa e com força era a principal estratégia de todos os piratas. Nem código cavalheiresco, nem regras.

Tor e a equipe, ocultos no bosque, atrás do pequeno castelo de estilo normando erguido em um montículo, aguardavam as altas horas da madrugada enquanto vigiavam todos os movimentos dos soldados ingleses.

Depois da longa viagem pelo mar do norte de Skye até Galloway, no rincão sul-ocidental da Escócia, era uma tortura para ele ter que esperar, sabendo que sua esposa se achava a somente umas centenas de pés dali. Não queria nem imaginar o que ela devia estar suportando nesse momento. Também se negava a considerar a possibilidade de que não seguisse com vida. Tinha que concentrar-se em seu encargo. Assaltar um castelo ocupado por uma guarnição inglesa inteira não era tarefa fácil.

Mas podia levar a cabo.

Era célebre o ataque surpresa por meio do qual Wallace tinha tomado a praça inglesa no castelo do Ardrossan, no Ayr, e Tor tinha decidido empregar uma tática similar. Com perto de uma vintena de homens e sem máquinas de assédio, irromper em turba pelas portas ficava descartado, assim teriam que recorrer ao sigilo e às manobras de distração.

Supunham que Christina estivesse presa na torre de pedra de planta quadrada construída no alto do montículo de terra, de quarenta pés. Para chegar até ali, teriam que atravessar as duas linhas de defesa características disse tipo de fortificação: o fosso que circundava todo o complexo e a paliçada que se levantava do outro lado.

À frente de oito homens da equipe de Bruce, cruzaria o fosso e a paliçada da parte posterior do castelo, em frente da ponte levadiça exterior. Uma vez dentro, separariam-se para procurar Christina, enquanto outros preparavam a fuga. MacRuairi estava convencido de que podia tira-la da torre quando tivessem conseguido entrar, independentemente de onde a tivessem encerrada. Ao Tor bastava jogar uma olhada a seu semblante para acreditar. Seton e Boyd também o acompanhariam. Necessitava homens acostumados no combate corpo a corpo que soubessem dar morte de forma silenciosa, com adagas ou com as mãos nuas.

Disporiam de meia hora para encontrá-la e matar aos guardas antes que Gordon e o resto da equipe atraíssem a atenção dos ingleses para eles para que os outros pudessem sair. MacSorley estaria esperando no exterior com seus guardas do clã MacLeod quando baixassem a ponte.

A luz do interior da torre se apagou quase por completo. A atividade dos soldados ingleses se reduzira. Somente um ou outro som de um animal ou o sussurro das folhagens rompia o silêncio. Tinha chegado o momento.

Tor se ajoelhou na terra e nas folhas, rodeado pelos membros da equipe, para lhe da as últimas instruções.

—Já sabes o que deve fazer, Falcão? —perguntou ao MacSorley, que encabeçaria aos do clã do MacLeod.

Tor tinha tomado um risco ao levar guerreiros adicionais, mas como precaução acrescentada se guardara de chamar os membros da equipe por seus nomes. Tinha ocorrido à idéia de utilizar nomes de guerra quando tinha ouvido Boyd empregar o apelido com que MacSorley se referia a ele ante a Christina.

O gigantesco escandinavo desdobrou um grande sorriso, e o branco de seus dentes reluziu em seu rosto com o resto sumido na escuridão.

—Sim, capitão. Ir por sua senhora e nos assegurar de que esses condenados ingleses não se esqueçam desta noite por toda sua vida.

De qualquer óptica minimamente racional, atacar uma guarnição de cem soldados ingleses com uma vintena de homens parecia uma missão suicida. Mesmo assim, Tor confiava no seu êxito. A destreza da unidade de elite de Bruce tinha superado inclusive suas próprias expectativas. Juntos formavam uma força digna de ter em conta. Sentia-se como se estivesse a ponto de viver um momento transcendental, como disposto a fazer história. Criava-se uma nova era de guerreiros, a era dos highlanders.

Esses malditos ingleses não sabiam o que os esperava.

Assaltar uma praça inglesa os converteria a todos em traidores aos olhos de Eduardo, mas eram conscientes disso quando foram à chamada de Bruce. A incógnita de que Lamberton e Bruce aprovariam ou não aquela operação precipitada e não autorizada não era algo que preocupasse ao Tor. A vida de Christina estava em jogo; ele faria o que tinha que ser feito.

Tor e os oito membros da guarda de Bruce que o acompanhavam avançaram sem fazer o menor ruído por entre as sombras para o fosso que rodeava o montículo. Por meio de gestos, indicou que colassem o corpo a terra e se mantivessem muito pegos ao chão. Quando chegaram na borda do fosso, aguardaram até certificar-se de que o sentinela no alto do montículo não pudesse vê-los antes de descer. Como era inverno, o profundo fosso continha alguns pés de água, ou, melhor dizendo, de um lodo frio e negro que desprendia um aroma mofado a plantas podres. Cuidando de proteger a pólvora do Gordon, caminharam pela lama e ao chegar ao outro extremo subiram à borda para chegar à paliçada formada por estacas bicudas.

Essa era a parte mais delicada da missão. Teriam que escalar os postes de madeira de dez pés de altura sem que os descobrissem os guardas situados no montículo, por cima deles, nem o soldado que fazia a ronda por aquela seção do recinto. Tinham escolhido um lance da paliçada oculto à vista por um volumoso edifício que se erguia no pátio exterior do castelo - provavelmente as cozinhas, a julgar pela quantidade de fumaça que tinham visto sair dali horas antes—, mas de todos os modos durante alguns minutos estariam expostos ao perigo.

Tor foi o primeiro a entrar. Lançou um gancho preso a uma corda entre dois postes e puxou a corda até que o gancho de ferro se enganchou.

O coração lhe pulsava a toda velocidade. Com os sentidos totalmente em alerta, esperou o momento certo. Quando o soldado passou, Tor subiu impulsionado pela corda, encarapitou-se nos postes e se deixou cair são e salvo do outro lado.

Estava dentro.

Quando o soldado passou de novo, sua costa encontrou com o aço da adaga do MacKay concebida especialmente com esse fim. A folha se alargava para o punho e pelo outro lado se estreitava até uma ponta aguçada que lhe atravessou a cota de malha até os pulmões. O soldado desabou aos pés de Tor sem soltar nem um gemido. MacRuairi o chamava «morte silenciosa» e tinha ensinado aos homens a encontrar o ponto exato em que cravar a arma. Era uma técnica extremamente eficaz para ações encobertas como naquela em que o som mais leve podia ter conseqüências nefastas.

Um a menos, mas ainda ficavam aproximadamente noventa e nove.

Poucos minutos depois, os outros oito homens estavam junto a ele; tinham conseguido passar ilesos por cima da paliçada.

Tor fez ao Gordon um sinal com a cabeça, e a equipe se dividiu: MacRuairi, Seton e Boyd foram com ele; MacGregor, MacLean, Lamont e MacKay foram com o Gordon.

À frente de sua equipe, Tor rodeou o montículo de terra até a parte detrás. Para acessar a torre da comemoração, teriam que arrastar-se costa acima sem que os vissem. Em vez de avançar um atrás de outro, espaçaram-se entre si de modo que, quando chegassem ao topo, estivessem em posição de matar aos guardas. Mas a sincronização era fundamental. Deviam chegar ao alto da colina e sossegar aos dois guardas que faziam ronda pelo perímetro antes que pusessem de sobreaviso aos sentinelas que custodiavam a entrada da torre que servia de moradia, em que estava Christine.

A terra e a erva seca do pequeno morro que subiam pouco a pouco, fazendo força com os cotovelos e os antebraços, estavam escorregadias e cobertas de barro. Detiveram-se uns pés do topo e se comunicaram de um homem a outro por gestos. Tor ergueu a mão: cinco, quatro, três, dois…

Saíram da escuridão e se equilibraram sobre os guardas despreparados, como seres espectrais. As facas desceram de forma inesperada e letal. Os sentinelas postos na frente da porta exterior da torre foram os seguintes. Noventa e cinco. Tor sentiu que a emoção da batalha o percorria com uma intensidade cada vez maior conforme se aproximava mais e mais a sua esposa. O plano ia dar resultado.

A seguir chegavam o salão, cheio de soldados que dormiam. Nada lhe teria agradado mais que massacrá-los a todos, mas isso teria que esperar. Primeiro tinha que tirar Christina dali. Dispunha-se a entrar na torre quando ouviu um grito procedente do pátio inferior que lhe gelou o sangue.

Amaldiçoou entre dentes, pois sabia que suas possibilidades de êxito tinham passado de boas a péssimas em um piscar de olhos. A vantagem que para eles era a escuridão e o fator surpresa se esfumou. Tor esperava com toda sua alma que o alarido não tivesse sido proferido de seus homens.

Agora, para tirar Christina do castelo, teriam que abrir caminho lutando contra a guarnição de soldados que dormia no salão, a somente alguns passos dali. A fortaleza inteira já ficava em movimento enquanto o alvoroço de baixo aumentava. Não havia tempo a perder.

Tor estava a ponto de ordenar aos homens que entrassem quando, pela extremidade do olho, viu algo que o fez deter-se.

MacRuairi também percebeu isso.

—Parece tratar-se de uma moça, capitão - sussurrou.

Com o sobrecenho franzido, Tor estudou a figura coberta com uma capa que lutava com o guarda que vigiava a porta. O pulso lhe acelerou e o coração deu um tombo repentino contra as costelas. Não se tratava de qualquer moça, mas sim de sua moça. Pelo visto sua mulher tinha decidido não esperar que a resgatassem. Por que não se admirava com isso?

Soltou um juramento e arrancou a correr escada abaixo para o pátio. Levou ambas as mãos às costas e desembainhou a espada.

Um selvagem grito de guerra brotou de seus pulmões e deixou gelados aos soldados de baixo. Um momento depois, Gordon respondeu a sua chamada com outro bramido.

*

Por sorte de Christina, os soldados ingleses gostava de beber.

Quase tinha conseguido cruzar o salão quando um soldado que ela acreditava que estava desmaiado em um estupor alcoólico a agarrou enquanto passava junto à mesa e a sentou sobre os joelhos. Christina passou a mão pela boca, tentando livrar do desagradável sabor do beijo que lhe tinha dado nos lábios. Mas supunha que deixar-se manusear um pouco por um bêbado era um preço que valia a pena pagar pela liberdade. Riu, afastando-o com um tapa com atitude brincalhona, e lhe tinha passado outra taça de vinho antes de baixar-se de seus joelhos, murmurando que tinha outras obrigações que atender.

Fez uma careta de pesar ao pensar na roupa de criada que levava. Esperava não ter batido muito forte na moça, mas tinha que estar segura de que demoraria um momento para voltar em si. Quando a criada tinha aberto a porta para lhe levar o jantar, Christina a tinha surpreendido com um golpe de candelabro na nuca. Tinha «tomado emprestada» a túnica e o brat, esperando que ninguém se fixasse em que ia arrastando os oito centímetros de saia que sobravam, e depois, com tiras de lençóis, atou os pés e mãos da criada e a amordaçou. Desse modo, embora despertasse, não poderia alertar a ninguém.

Lorde Seagrave, a quem jamais teria passado pela cabeça que uma mulher tentasse fugir, acreditava que bastaria passar o ferrolho à porta, por isso não tinha posto um guarda. Foi um descuido de que acabaria por arrepender-se.

Com a esperança de acautelar a perseguição de algum outro soldado amoroso, Christina agarrou uma bandeja e uma jarra vazia, e, fingindo que estava recolhendo as mesas, passou diretamente entre os sentinelas da entrada, baixou a escada e cruzou a ponte para o pátio inferior. Depois de desfazer-se dos objetos de cenário, escondeu-se entre as sombras atrás das cavalariças próximas às portas, esperando uma ocasião para escapulir se confundindo entre os aldeãos. Entretanto, o guarda tinha fechado as portas pouco depois de que ela chegasse. Pugnou por não cair no desespero, pois sabia que não as abririam de novo antes da manhã.

Quanto demoraria em dar conta de que escapara? alguém sentiria falta da criada? Tinha apertado o suficiente suas ataduras?

Havia tantas coisas que podiam sair mau… Rezou por que se produzisse um milagre.

Em vez disso, poucas horas depois - por culpa de um gatinho curioso com o miado mais estridente que ela jamais tinha ouvido—, descobriram-na. Por mais que se empenhasse em afugentar à molesta bola de pelo, esta retornava uma e outra vez. Um soldado viu o gato e decidiu investigar o que ocorria ao ver que o bichinho se negava a lhe fazer caso.

Ela notou que alguém a tirava com brutalidade de seu esconderijo e se encontrou frente a frente com um cavalheiro jovem. De baixa estatura e de costas largas, tinha um rosto chato e traços toscos, mas em seus olhos apreciava um brilho de inteligência. Por sorte, tinha bebido bastante vinho.

—O que fazes oculta na escuridão? —inquiriu.

Christina se esforçou por discorrer uma explicação acreditável enquanto notava os batimentos do coração de seu coração na garganta.

—Pois… —Um sorriso forçado de inocência apareceu em seus lábios enquanto pestanejava com paquera—. Vou encontrar-me com alguém.

Essa mutreta feminina fracassou estrepitosamente. O olhar do guarda se fez mais penetrante.

—Com quem?

—Com o Edward - se apressou a responder ela. Seguro que haveria algum Edward por ali. As pessoas sempre punham nomes de reis em seus filhos, e Edward Plantageneta reinava fazia mais de trinta anos.

—Edward que mais?

Cáspita! Tinha que haver mais de um, estava claro. Ao ver que ela titubeava, o guarda a arrastou até a luz de uma tocha e chamou os outros três soldados que custodiavam nas portas.

—Algum de vós conhece esta empregada?

Um deles a conhecia. Era um soldado que esteve a bordo da galera, com ela.

—É a moça que capturamos -disse— A filha de Fraser.

Não! Tendo conseguido chegar até ali, não suportava pensar que não ia conseguir. Era sua única oportunidade. Seus guardiães não voltariam a relaxar tanto as medidas de segurança. Tentou soltar-se, mas a mão do soldado a aferrava como uma tenaz.

—Por favor - suplicou—. Tenho que voltar para meus afazeres…

Um alarido aterrorizante troou o ar quente da noite. Todos se voltaram para o montículo e a torre.

Christina conteve o fôlego.

O soldado lhe soltou o braço, mas ela se aproximou de novo a ele, para proteger-se instintivamente de algo muito mais horripilante que os ingleses.

As portas do inferno se abriram para deixar sair a um exército de demônios. Os quatro guerreiros espectrais que caíram sobre eles se assemelhavam a seres de pesadelo. Vestidos de negro dos pés a cabeça para confundir-se com a noite, de uma estatura e uma musculatura sobrenaturais, baixaram a escada com passo trepidante, espadas em alto, preparados para descarregar a fúria do muito mesmo diabo com cada cutilada de seu temível aço.

Em vez de sobreveste e cota de malha, levavam espartilhos de guerra negros e saias escuras de quadros rodeadas ao corpo de forma estranha com cinturões. Sob os espantosos elmos com protetor nasal, seus rostos estavam melados, não da pintura azul de glasto dos antigos gaélicos, mas sim de cinza. Somente um brilho branco rasgava a escuridão.

«Deus bendito, os monstros estão sorrindo!»

Christina não podia afastar o olhar do aterrorizante guerreiro que dirigia o ataque relâmpago. Havia algo…

Um calafrio lhe desceu pelas costas no instante em que o identificou. Embora estivesse virtualmente irreconhecível, ela o conhecia.

Seu marido tinha ido a seu resgate.

Os ingleses não sabiam o que fazer. Enquanto os soldados permaneciam paralisados, Christina, consciente do perigo, separou-se da trajetória da investida dos guerreiros. Apenas tinha se afastado uns passos quando o caos estalou —literalmente— em torno deles.

Uma série de estampidos ensurdecedores sacudiu a noite: detonações horríveis que semeavam o terror. Ela nunca tinha ouvido nada parecido. Soavam como trovões, mas o céu estava totalmente limpo.

Ouviu o zumbido de flechas que voavam sobre sua cabeça, e os quatro soldados que vigiavam as portas caíram em rápida sucessão. Um momento depois, um guerreiro com um arco à costas saltou do telhado das cavalariças, porta se abriram, a ponte desceu, e mais guerreiros de seu marido irromperam no tumulto que reinava no pátio do castelo.

Os soldados corriam de um lado a outro, saíam dos barracões e desciam da torre para ver o que estava ocorrendo.

*

Tor e seus homens lutavam como possessos, atravessando com a espada a todo aquele que se interpor em seu caminho. A rapidez e a ferocidade do ataque eram assombrosas. Os ingleses, aturdidos, não eram rival para eles.

Christina viu perecer ao cruel capitão que tinha assassinado aos homens de Tor e a tinha mantido presa, virtualmente partido em dois por um poderoso talho da enorme espada de seu marido.

Desviou o olhar, pois não tinha estômago para presenciar a morte de ninguém, inclusive quando era merecida.

O céu se iluminou, e as chamas prenderam ao redor deles. Os animais se uniram à correria humana que tentava escapar. Christina esteve a ponto de ser atropelada por um cavalo, mas uma mão firme a levantou e a pôs fora de perigo.

Tor. Antes que Christina pudesse deitar-se em seus braços, ele a fez girar para um lado enquanto, com uma mão, atirava um golpe de espada a um soldado que se aproximou dela por trás.

Mas o caos começava a remeter. Seu marido e seus homens tinham despachado já à maioria dos soldados havia no pátio. Uma nova onda de ingleses desceu em turba a escada da torre, mas quando cruzaram a ponte sobre o fosso, os guerreiros de Tor estavam esperando-os para dar conta deles um a um. Ao precaver-se do que ocorria, alguém —certamente lorde Seagrave— deu a ordem de retirada da torre. Os homens que ficaram no pátio foram deixados a sua sorte quando a porta da torre se fechou.

Christina abraçou a seu marido, com o rosto contra seu peito, muito aliviada para que importasse que estivesse coberto de barro e imundície.

—Não estava segura de que chegasse a tempo.

Ele a afastou ligeiramente, levantou-lhe o queixo com sua mão embainhada em uma manopla e lhe deu um beijo tão selvagem e frenético que a deixou sem fôlego e atordoada por uns instantes. Entretanto, Christina não se atrevia a ter ilusões.

Ele interrompeu o beijo e a olhou aos olhos.

—Eu temia que fosse muito tarde. Encontra-te bem?

Ela assentiu, e as lágrimas apareceram em seus olhos. Uma só olhada ao Tor bastou para que todo o medo, o espanto e o desespero que tinha acumulado em seu interior nos últimos dias estalasse em uma corrente de pranto.

—foi horrível. Seus homens… —Soluçou—. O navio… Todos mortos.

Os lábios de Tor adotaram uma expressão séria sob a máscara de aço.

—Sei. Chist - a sossegou, tentando tranqüilizá-la—. Já me contará isso mais tarde. —Levantou-lhe o rosto para a luz e proferiu uma maldição ao ver os hematomas em torno da bochecha e do o olho—. Quem te fez isto? Matarei-o.

—Já o fez - repôs ela, assinalando ao capitão.

—Tenho que te tirar daqui. Está em condições de montar a cavalo?

Christina assentiu com um ardor e um nó na garganta que lhe impedia de falar.

—Bem. Um de meus homens está juntando cavalos fora da paliçada; levarei-te com ele. Estará a salvo até que terminemos aqui.

Tinha a intenção de tomar também a torre. Considerando o que os ingleses tinham feito a seus homens, ela sabia que não teria piedade.

—Não há tempo para isso. Tem que me levar até o conde de Carrick quanto antes. Rogo por que esteja no Lochmaben.

—Bruce? O que necessita dele?

Falou-lhe dos documentos que tinha lido, e não fez falta que lhe explicasse as possíveis repercussões.

—Está segura?

Christina fez um gesto afirmativo.

—Terá que interceptar aos mensageiros antes que cheguem onde está Eduardo.

—Viu-os partir?

—Isso eu creio. Dois homens partiram a cavalo antes do almoço.

—Ingleses?

Christina assentiu.

—Poderão prosseguir sua viagem com menos dificuldades que os homens do Comyn quando chegarem à fronteira.

—Eu me ocupo dos mensageiros.

Dirigiu-se a um dos guerreiros vestidos de negro e lhe disse algo. O homem reuniu a três guerreiros mais, subiram no lombo de suas cavalgaduras e puseram-se em marcha.

Uns minutos mais tarde, Christina cavalgava junto com o Tor, rapidamente, em direção ao Lochmaben.

*

Robert de Bruce, conde de Carrick e senhor do Annandale, escutou o relato de Christina com incredulidade crescente, e logo com ira mal contida. Que não pusesse em julgamento a veracidade de suas palavras confirmava que esse documento tão perigoso, o tratado que tinha assinado com o Comyn, era autêntico.

—Matarei-o - disse, com os olhos azuis escurecidos pela raiva—. Sabia que não era de confiança.

—Então por que confiaram nele? —perguntou Tor.

Semelhante desacerto não encaixava com a imagem que se formara do aspirante a governar Escócia. Bruce o tinha surpreendido. Assim que o tinha visto, Tor tinha identificado nele o único traço que teria impressionado a qualquer Highlanders: Bruce era um guerreiro. A diferença da maioria dos nobres escoceses, dava a impressão de sentir-se tão cômodo no campo de batalha como no Parlamento.

O conde tinha um olhar ardiloso e dizia as coisas sem disfarces; algo insólito para um político. Embora não restava dúvida de que era um homem orgulhoso, felizmente parecia desdenhar a pompa ao que era tão aficionada a nobreza das Lowlands. O brat forrado de pele e o pesado broche de ouro que levava a pescoço eram os únicos sinais visíveis de sua riqueza. Se tinha notado o pó e a sujeira que recobriam ao Tor e a seus homens, não tinha dado o menor indício disso, e os tinha feito passar ao salão em seguida.

Bruce baixou a voz para responder à pergunta de Tor. Embora lhe tivesse assegurado que podiam falar com inteira liberdade no salão, não era demais ser precavidos.

—Teria sido mais fácil vencer a Eduardo com uma Escócia unida. Além disso, esperava poder evitar uma guerra civil. Não acreditava capaz de confessar sua própria traição para delatar a mim. Comyn tem mais fé que eu na gratidão de Eduardo. —Olhou ao Tor com fixidez—. A quem enviaram atrás dos mensageiros?

—Aos melhores homens - respondeu ele—. Lamont encabeça a equipe; encontrarão-os.

Bruce lhe sustentou o olhar e, ao perceber que a segurança com que falava era sincera, assentiu.

—O que ides fazer, milorde? —perguntou Christina.

—Não sei - disse Bruce em um tom solene—, mas Comyn terá que prestar contas pelo que tentou hoje. —Como acima de tudo era um cavalheiro galante, Bruce deixou a um lado a ira e se inclinou sobre a mão dela para lhe plantar um casto beijo nos nódulos — Estou em dívida com você, lady Christina, uma dívida que jamais poderei lhe pagar. —voltou-se para Tor—. Espero que seu marido seja consciente de quão afortunado é por ter uma esposa que não só é bela, mas sim também possui talentos inesperados e extremamente úteis. Dissestes as palavras desse documento melhor que meus tabeliães. —Seus olhos cintilaram—. Possivelmente deveria toma-la a meu serviço.

Christina, encantada com a adulação, ruborizou-se de prazer ante a admiração sincera que destilava no rosto do conde; um rosto muito arrumado, diga-se passagem, embora deixasse de sê-lo se não lhe soltava a mão. Talvez isso de cavalheirismo não estivesses do todo mal.

—Sou consciente disso - balbuciou Tor entre dentes—. E temo que os talentos de Christina estejam reservados para seu marido.

A aspereza de seu tom fez que Christina franzisse o sobrecenhopois não compreendia o porquê de sua irritação. Bruce, pelo contrário, compreendia-o perfeitamente. Riu e lhe soltou a mão.

—Agradeço-lhe o serviço que me emprestastes hoje, moça. Se algum dia necessitarem algo, não têm mais que me pedir isso Christina ficou um pouco mais rubra e lhe devolveu o sorriso.

—Se não lhe importar, quereria apelar agora mesmo a essa generosidade que me ofereces. Um banho me sentaria uma maravilha.

—Disporei que lhe preparem isso no ato.

Christina dirigiu ao Tor um olhar inquisitivo.

—Vá -disse ele—. Eu irei em seguida.

Ela assentiu e saiu do salão depois da criada. Os dois homem a observaram afastar-se.

—saístes ganhando com nosso acordo - comentou Bruce com malícia.

Era certo, mas Tor não tinha por que dizer-lhe.

—Não me queixo.

—decidistes aceitar a encomenda.

—Com algumas condições. —Na presença de Christina tinham falado em francês, mas tinham ido inconscientemente ao gaélico quando ela se fora; outro ponto a favor de Bruce.

O conde o olhou com receio.

—Que condições?

—Obedeceremos a suas ordens, mas eu tenho que estar no comando da equipe. Para que uma guarda destas características seja eficaz, devo gozar de autonomia e de uma autoridade absoluta sobre o terreno.

Bruce refletiu durante longo momento, ao que parece não muito agradado por suas exigências.

—Assim que eu lhe digo o que necessito e vocês decidem como levá-lo a cabo?

Tor deu de ombros. Essa era uma forma de vê-lo.

Ao cabo de uns minutos mais, Bruce, a contra gosto, assentiu em sinal de consentimento.

—Não é que não esteja impressionado pelo que seus homens e vocês têm feito, mas a próxima vez procure me avisar antes de atacar uma praça inglesa.

Tor sorriu.

—Farei o possível, mas o que ocorre é que não dispúnhamos de tempo. Os ingleses tinham em seu poder um bem muito valioso para mim.

—Alguma outra condição?

—Embora meus homens e eu estejamos presos a seu código cavalheiresco, e embora lhe façamos o trabalho sujo, não obedecerei nenhuma ordem que me obrigue a matar mulheres ou meninos.

—Alegra-me ouvir isso - disse Bruce com expressão sardônica—. Embora lhe encomendarei missões perigosas e desagradáveis, dou-lhe minha palavra de que não lhe pedirei nada que não esteja disposto a fazer eu mesmo.

Surpreendentemente, Tor advertiu que falava sério. Sua admiração pelo elogiado cavalheiro cresceu grandemente. Em um princípio, a decisão de Tor de dirigir a equipe não obedecia tanto a seu desejo de unir-se a Bruce como de derrotar a Eduardo. Entretanto, o jovem conde lhe tinha causado uma magnífica impressão. Bruce não era um aristocrata de pouca subida, a não ser um guerreiro nobre decidido a recuperar um reino. A diferença de quase todos aqueles que se regiam pelas regras cavalheirescas, Bruce não assustava sujar as mãos. Era uma qualidade que seria necessária se queria ter a menor possibilidade de êxito. Para ganhar aquela guerra, teria que arrastar-se pelo barro.

Tor o olhou aos olhos.

—E Comyn? Querem que me ocupe dele?

Bruce não fingiu ter interpretado mal a pergunta. Seu caminho ao trono não só estava obstaculizado pelo rei Eduardo, mas também pelo Comyn o Vermelho, possivelmente o nobre mais poderoso daquelas terras.

—Não. Eu mesmo me encarregarei do Comyn.

Tor assentiu, consciente de que as primeiras hostilidades de uma longa guerra estavam a ponto de começar.

—Vá - disse Bruce—. Atendas a sua esposa. —Sorriu—. Embora lhe aconselho que primeiro que tome um bom banho e mudes de roupa.

Tor torceu a boca.

—Sábia recomendação. —Talvez fosse mais fácil convencer a sua esposa de que o perdoasse se não fedesse a pântano.

—E outra coisa, MacLeod. —Tor se voltou, e Bruce lhe dirigiu um olhar severo e significativo—. Estejas preparado.

—Sim, milorde - respondeu Tor com uma inclinação da cabeça—. A suas ordens.

*

Os efeitos relaxantes do banho se dissiparam quando levaram a água. Christina tinha posto uma túnica e um vestido limpos que lhe tinha emprestado a esposa de Bruce, lady Elizabeth de Burgh. Quase sem reparar na decoração luxuosa que a rodeava, aguardava ansiosa, sentada em uma cadeira frente à chaminé, secando os cabelos, sem saber o que aconteceria quando seu marido aparecesse por fim.

Mostrou-se muito aliviado ao vê-la, mas Christina intuía que devia estar furioso com ela por haver partido. Esperava poder lhe fazer compreender que não havia alternativa, que os dois estariam melhor separados. Sabia que tinha sido uma covardia abandoná-lo sem lhe dar explicações, mas aquela primeira despedida tinha sido muito dura; não tinha nenhuma vontade de dizer adeus cara a cara.

Por que Tor demorava tanto?

Quando a porta se abriu finalmente uns minutos depois, o motivo da tardança ficou evidente. Ela ficou sem fôlego e notou uma opressão tão forte no peito que era quase um ardor. igual a ela, Tor tinha tomado um banho. Seu cabelo castanho com reflexos dourados reluzia à luz do fogo, e um aroma fresco de sabão flutuava no ar quente.

Christina sentiu o coração dar um tombo. Por que tinha Tor que lhe complicar a vida estando sempre tão absurdamente arrumado?

Seus olhares se encontraram. Ela abriu a boca com a intenção de desculpar-se, mas, para sua surpresa, viu-se apanhada em um apaixonado abraço.

—Por Deus santo, Christina, deu-me um susto de morte! —Tor deu um beijo no cocuruto a sua esposa e a estreitou com mais força entre seus braços—. Acreditava que tinha te perdido…

Seu tom soava diferente. Falava com uma voz mais suave, rouca pela emoção. Ela não queria ter ilusões vãs. Nada tinha mudado. Tor tinha ido em seu resgate, mas isso era algo que já tinha feito antes. desta vez ela não se deixaria levar por suas fantasias românticas. Aquilo não significava que ele a amasse.

Aspirou profundamente, desejando reter seu aroma quente e masculino, antes de obrigar-se a si mesmo a afastar-se dele.

—Suponho que estas desejando saber o que aconteceu com seus homens - disse—. Foi espantoso. —Os olhos se encheram de lágrimas—. Todos morreram…

Tor curvou os lábios em uma expressão séria.

—Morreram fazendo aquilo para o qual estavam treinados, Christina, o que mais amavam. O objetivo na vida de um highlander é morrer em batalha. Para um guerreiro, é a máxima honra.

Christina nunca conseguiria entender. Os guerreiros eram feitos de uma massa diferente.

—me conte o que aconteceu pediu Tor com delicadeza.

Explicou-lhe que os navios os tinham seguido e os tinham assaltado sem provocação prévia. Seu marido a escutou sem interrompê-la, sorrindo ao ouvir como seus homens a tinham rodeado e a tinham protegido com seu corpo.

—Talvez se eu não tivesse…

—Não - a cortou Tor—. Teriam morrido embora não estivesse ali. Ninguém teria podido prever o que ia acontecer. Meus homens realizam essa rota várias vezes ao mês; os assaltos no mar são muito pouco freqüentes. Imagino que os MacDougall reconheceram minha insígnia e decidiram prosseguir com seus esforços por acabar comigo.

—Eram os MacDougall que estavam atrás dos ataques?

Tor assentiu.

Isso significava que…

—alcançamos ao irmão John antes que pudesse divulgar o que tinha averiguado.

—Assim é. —Graças a Deus. Ao menos ela não seria responsável por isso—. O que não sabes é que meu novo tabelião era sobrinho de John do Lorne, e que meu tabelião anterior não tinha sofrido um acidente.

Que horror! Christina mordeu o lábio; ainda lhe custava assimilar a traição de seu amigo. Ao notar que Tor a observava, levantou o olhar para ele.

—E quando o deixaram…?

Ele a olhou fixamente.

—Tinha-nos visto.

Christina fez um gesto para indicar que tinha compreendido. Não podia ser de outra maneira. O tabelião sabia ao que se expos, o que lhe aconteceria se o capturavam. Mesmo assim, o coração lhe encheu de tristeza por sua morte.

Ao perceber sua aflição, Tor lhe afastou uma mecha de cabelo do rosto e acariciou devagar sua bochecha arroxeada com o dorso do dedo.

—Não sofreu. E acredito que lamentava ter te envolvido em sua traição. Sentia um afeto autêntico por ti.

A ternura das carícias a confundiu, igual a suas palavras amáveis. Por que tinha que lhe pôr as coisas tão difíceis? Ela so queria passar o mau gole quanto antes. Afastou o rosto da mão de Tor e recuou um passo.

—Não deveria ter te deixado desse modo.

—Não, não deveria.

—Fui uma covarde por não me despedir. Mas… temia… temia que me faltassem as forças.

—por que me deixou, Tina?

Algo em sua voz fez que o coração lhe desse um salto. Não. Negava-se a imaginar sentimentos que não existiam.

—Porque não suportaria passar o resto de meus dias com alguém que jamais poderia me amar - respondeu sem olhá-lo—, que não me deixaria formar parte de sua vida porque não me quer ou não me valoriza.

—Entendo - disse ele sem alterar-se—. Se todo isso era certo, tinha motivos de sobra para partir.

Tinha? Ela cravou o olhar em seus olhos inescrutáveis. É obvio que os tinha. Tor devia ter concluído também que seu matrimônio não levava a nenhuma parte. Ardiam-lhe as vísceras. Por que doía tanto a verdade? O que haveria ao Tor fingir que se importava ao menos um pouco? Baixou o olhar para que ele não visse seus olhos chorosos. De algum modo conseguiu articular as palavras, embora cada uma delas lhe engasgasse: —Se me levar a Iona na travessia de volta, não voltarei a te incomodar.

—Temo que não posso fazer isso —repôs ele com suavidade.

Christina notava em seu interior uma dor cada vez mais intensa, como um ferro candente contra a pele em carne viva.

—É obvio. Estará ocupado com sua equipe e o conde. Possivelmente possa dispor que um navio me leve…

—Não.

A firmeza da negativa a impulsionou a olhá-lo por fim.

—Não irá a Iona - disse Tor.

Christina ficou perplexa.

—Mas jurou que se algum dia eu desejasse ir, deixaria me retirar a lona com minha irmã.

Tor deu de ombros.

—Mudei de idéia.

—Não pode. Fez um juramento.

Tor sorriu ante sua indignação. Isso era algo tão inesperado para a Christina, dadas as circunstâncias, que não sabia o que fazer. Como podia ele ser tão cruel para burlar-se dela desse modo?

Entretanto, quando se fixou em seus olhos, o que viu neles fez que seu coração deixasse de pulsar.

Aproveitando-se de seu desconcerto, lhe rodeou a cintura com o braço e a atraiu para si, moldando o corpo de Christina ao dele. Beijou-a com delicadeza, docemente, com uma emoção quase reverencial.

—Farei o que seja necessário para que permaneça a meu lado - disse.

Todo rastro de hilaridade tinha desaparecido de seu semblante, e ela leu a incerteza em seu olhar.

Mas se Tor jamais sentia incerteza por nada…

—Não te entendo.

desta vez foi ele quem se afastou. Passou os dedos pelos cabelos, que seguiam úmidos. Caíam-lhe em ondas deliciosamente por debaixo das orelhas.

—Isto não eu não entendo bem.

Ela aguardou que continuasse, não muito segura do que se referia com «isto».

Tor respirou fundo.

—Quando me dei conta de que podia te perder, foi como se algo dentro de mim mudasse de repente. Como se tudo o que acreditava saber de repente se virou do avesso.

Embora Tor parecesse estar sofrendo o inexprimível, ela não teve piedade dele.

—A que te refere?

—Desde que meus pais morreram e eu passei a ser chefe, acreditava que tinha que ser diferente, que a única maneira de cumprir meu dever para com meu clã era desterrar toda emoção. Mas ao me esforçar por conseguir, esqueci-me do que significa viver. Você devolveu a calidez a minha vida - acrescentou, lhe roçando a bochecha com a parte posterior do dedo—. Acreditava que não necessitava a ninguém, mas estava equivocado. Necessito a ti, Tina. Sem ti, não tenho nada mais que uma vida fria e vazia.

Fez uma pausa, e Christina ficou contemplando-o.

—Por ser alguém quem não se dá bem falar de seus sentimentos, está fazendo maravilhas.

Ele sorriu, aliviado.

—Então já ouviste o suficiente?

Christina negou com a cabeça.

—Sei que me levei como um imbecil. —Ela não o contradisse—. Existem coisas pelas que não tenho direito a te pedir que me perdoe. Não posso alegar nada em minha defesa salvo que estava convencido de que tinha que fazer tudo sozinho. Sei que você tentava me ajudar. Além disso, não foi a única que se deixou enganar por aquele modesto tabelião. Sim, valorizo-te. Sempre te valorizei, embora possivelmente não soubesse até que ponto. Nunca me tinha dado conta que uma mulher pudesse ser tabelião, mas demonstraste que me equivocara. Rhuairi diz que seus cálculos são impecáveis. E, depois do que tem feito hoje… Graças a ti, Bruce viverá para lutar o dia de amanhã. —O orgulho que brilhava em seus olhos não podia ser fingido—. Perdoe-me, Tina. Retorna a casa comigo e me dê outra oportunidade.

Ela tinha o coração a ponto de estalar. Não havia nada que desejasse mais que apoiar a cabeça em seu peito e render-se à esperança que lhe brindava. Mas sua mente resistia a deixar-se convencer tão facilmente. Não poderia suportar outro frio rechaço como o da última vez.

—Como posso estar segura de que não reagirá exatamente da mesma maneira quando voltar a fazer algo que te desgoste?

Tor a olhou com apreensão.

—Tem pensado me desgostar muito freqüentemente?

Ela franziu os lábios e levantou o queixo.

—Pode ser que sim. Não vou conformar sendo sua esposa unicamente no quarto. Temo que vou pôr-me exigente contigo.

—Como de exigente? —perguntou ele como se lhe estivessem arrancando um molar.

—Muito. E se acessar a retornar, as coisas serão diferentes.

Ele a olhou com expressão de abatimento.

—Não vais facilitar-me as coisas, verdade?

—Temo que não. —Tor agachou a cabeça para animá-la a continuar—. De vez em quando, talvez queira que demonstre seu afeto diante dos membros de seu clã.

Ele fez um gesto de dor.

—Seguro que isso não será nece…

—Um olhar terno, possivelmente um beijo rápido. Nada que te custe muito esforço.

—Não é você quem terá que agüentar os comentários do MacSorley junto à fogueira.

—Estou segura de que é o bastante homem para suportar —disse ela sem mostrar a menor compaixão. Os guerreiros temíveis não deviam choramingar—. E de vez em quando possivelmente goste de te dar minha opinião sobre os temas de suas conversas.

—Sempre e quando estiver de acordo comigo.

—Inclusive quando essas opiniões não coincidam com as tuas.

Tor torceu os lábios.

—Em particular poderá me contradizer quanto queira.

Christina assentiu.

—Parece-me razoável.

—É tudo? —inquiriu Tor, com o aspecto de um réu que ia caminho do patíbulo.

Ela sacudiu a cabeça e levantou o olhar para ele, esperando que sua voz não delatasse o vulnerável que se sentia.

—Exijo também seu coração.

—É teu — disse Tor sem vacilar. Christina reprimiu o impulso de mover-se.

Tor pôs cara de sofrimento.

—Me vais obrigar-me a dizer, verdade? —perguntou.

Ela fez um gesto afirmativo.

—Temo que sim. É importante que o ouça de sua boca se tiver que te acreditar.

—É uma mulher cruel.

—Cruel, não. Desumana. —Sorriu com picardia—. Aprendi com o melhor.

Então Tor fez algo que Christina jamais teria imaginado que lhe veria fazer, algo que não esqueceria em toda a vida. Seu marido, o chefe orgulhoso, o rei de seu clã, o guerreiro maior de sua época, pegou sua mão e fincou um joelho em terra, ante ela.

—Amo-te, Tina. Talvez não seja o cavalheiro pelo qual suspirava, mas se voltar para meu lado te prometo que me pugnarei por te demonstrar meu amor todos os dias do resto de nossas vidas.

As lágrimas escorregavam pelas bochechas de Christina.

—Diz de coração?

Um sorriso irônico se desenhou no arrumado rosto de Tor.

—Tendo em conta minha posição neste momento, acredita que é necessária a pergunta? —Seu sorriso se alargou—. Sim, carinho. Digo de coração. Amo-te com toda minha alma.

Ela sabia que Tor nunca tinha pronunciado essas palavras antes.

—Dará-me outra oportunidade?

Christina moveu a cabeça afirmativamente.

Com um gemido de alívio, Tor a estreitou entre seus braços e não a soltou até que demonstrou esse amor. Uma e outra vez.


Epílogo


Ah, quão nobre é a liberdade!

John Barbour,

A gestão de Roberto de Bruce


Perto da abadia do Scone,

Perthshire, 27 de março de 1306


Os primeiros raios da alvorada apareciam por cima do horizonte. Como se Deus erguesse a mão para benzer em pessoa a cerimônia, um facho de luz brilhante e alaranjada atravessara como dedos o círculo de pedras. Esse espetacular efeito se viu realçado pelo lamento assustador das gaitas de fole que fendia o ar fresco desse dia da primavera. Não importava que o monumento em si fosse pagão: sua majestosidade prevalecia sobre tais considerações. Era um vínculo com o passado remoto da Escócia, um símbolo de força e continuidade, tão misterioso como os homens que se dispunham a ajoelhar-se ante o recém coroado rei da Escócia para lhe oferecer sua lealdade… e sua vida.


Christina, que se achava entre as testemunhas da cerimônia secreta que se estava celebrando entre pedras pagãs, não acreditava que pudesse haver um marco mais apropriado. Naturalmente, seu marido teria preferido que permanecesse a salvo no Skye, mas ela não se teria perdido aquilo por nada do mundo. Ganhou com acréscimo o direito a estar ali e não pensava deixar que ele o esquecesse.

Seu descobrimento tinha dado lugar ao enfrentamento final entre o Bruce e Comyn, e, posteriormente, a aquela cerimônia. Fazia pouco mais de sete semanas, Bruce tinha matado a seu adversário, Comyn o Vermelho, em frente ao altar da igreja do Greyfriars. A cruz ardente se propagou por toda Escócia, chamando a todos seus guerreiros a unir-se sob o estandarte de Bruce. Fazia só dois dias, na abadia do Scone, cenário histórico da coroação dos reis da Escócia, Robert de Bruce tinha sido proclamado rei da Escócia, embora sem a antiga pedra do Scone, roubada pelo rei Eduardo dez anos atrás.

Havia menos testemunhas dos que Bruce esperava. Três dos nove bispos — entre eles Lamberton, o mais influente— estavam presentes, e dos treze condados, somente os senhores do Atholl, Menteith, Lennox e Mar tinham ido à convocatória. Era especialmente destacável a ausência do jovem conde do Fife, quem tinha por nascimento o direito e a obrigação de coroar aos reis da Escócia. Sem a presença do Fife, alguns poriam em julgamento a legitimidade do ato. Entretanto, o jovem conde permanecia na Inglaterra, prisioneiro do rei Eduardo, e a tentativa de levá-lo até ali tinha fracassado.


Bruce estava de pé ante a pedra maior, embelezado com as vestimentas reais e um aro de ouro na cabeça, enquanto o sol se levantava como uma auréola sobre ele.

—Não podemos esperar mais — disse ao Tor—. Teremos que seguir adiante sem eles.

—Chegarão — assegurou Tor com firmeza—. Dêem-lhe dez minutos mais.

Não fez falta nem a metade desse tempo: quando ainda não tinham transcorrido cinco minutos, três figuras apareceram sobre o topo de uma colina que se levantava para o sul, galopando para eles. Entre o estrondoso tamborilar dos cascos dos cavalos, os três recém chegados irromperam no centro do círculo.

Christina reconheceu entre aquelas figuras a dois dos homens de seu marido, um dos quais era Lachlan MacRuairi. A terceira era uma mulher. Christina sorriu ao precaver-se de que tinham completado sua missão com êxito. Embora o jovem conde do Fife não estivesse ali, sua irmã tinha ido em seu lugar.

MacRuairi se aproximou para ajudá-la a desmontar, mas a dama — uma condessa, neste caso—, lhe jogando um olhar desdenhoso, desembarcou de um salto sem lhe dar a mão. A expressão sombria no rosto do MacRuairi gelou o sangue a Christina. Depois de passar andando régio junto ao ameaçador highlander, a condessa se dirigiu a toda pressa para o rei para prostrar-se ante

ele. O capuz de sua capa caiu para trás, deixando ao descoberto longos cabelos de cor loiro platino, uma paradoxo de suavidade que contrastava com a férrea determinação de suas feições pronunciadas. Christina viu que era jovem, talvez poucos anos mais velha que ela, com uns traços marcados, mais chamativos que belos.

—Excelência - disse com uma voz rouca e transbordante de orgulho—, vim assim que me foi possível. Espero não ter chegado muito tarde.

Bruce lhe dedicou um sorriso tão cálida que Christina se perguntou se seriam certos os rumores de que no passado tinham mantido uma relação amorosa.

—Não, Bela, não é muito tarde. Nunca é muito tarde, e menos ainda quando arriscastes tanto por vir.

Bruce não era o único que estava assombrado pela valentia da jovem condessa. Lady Isabella MacDuff tinha desafiado a seu marido e ao rei para ir a aquela entrevista. E não só era a irmã do conde do Fife, mas também a esposa do conde de Buchan, John Comyn, primo do Comyn o Vermelho e seguidor leal do rei Eduardo. Christina estava convencida de que se a Eduardo lhe apresentasse a oportunidade, faria pagar caro sua ousadia à condessa.

Pela segunda vez em um par de dias, presenciou a coroação do Robert de Bruce como rei da Escócia, embora nessa ocasião fosse lady Isabella quem lhe rodeou o aro de ouro à cabeça.


—Beannachd Do Righ Alban — disse a condessa quando teve terminado. «Que Deus abençõe ao rei da Escócia.»

Mais tarde, levaram rapidamente à condessa rebelde ao palácio para que se reunisse com a esposa e as irmãs de Bruce.

Ao ir a cavalo ao encontro de Bruce, Isabella MacDuff tinha escolhido seu caminho e já não poderia retornar ao lado de seu marido nem da filha que tinha deixado pra trás. De forma inconsciente, Christina levou a mão ao ventre, incapaz de imaginar-se tamanho sacrifício. Embora tivesse confirmado suas suspeitas fazia somente uns dias, já albergava um profundo carinho para o menino que estava gerando.

Por fim, chegou o momento da cerimônia que ela estivera esperando.

Um por um, os guerreiros de elite da guarda de highlanders de Bruce saíram à frente. Inclusive à luz do dia apresentavam um aspecto temível. Se não os tivesse conhecido no transcurso dos últimos dois meses, Christina teria acreditado que não eram reais, a não ser personagens míticos ou produtos de sua imaginação. Todos vestidos de negro e com seu elmo escuro, cujo protetor nasal lhe tampava boa parte do rosto, os guerreiros secretos foram chamados um após o outro por seus nomes códigos para que se ajoelhassem ante a enorme espada de Bruce. O apelido de MacSorley era «Falcão»; o de MacRuairi, «Víbora»; o de MacKay, «Santo»; o de Boyd, «Incursionador»; o de Lamont, «Caçador»; o de MacLean, «Golpeador»; o de MacGregor, «Flecha»; o de Seton, «Dragão», e o de Gordon, «Templário».


O último guerreiro do grupo era o que ela esteve esperando. Os homens se negaram a lhe revelar que nome tinham decidido pôr em seu marido.

—Chefe — chamou Bruce.

Christina sentiu que o coração lhe dava um tombo, comovida pela grande honra que os guerreiros tinham conferido a seu marido. Embora procedessem de clãs diferentes, Tor os tinha unido para formar um novo: MacLeomhann, «filho do Leão». Seria um clã que não estaria apoiado no parentesco, e sim em um objetivo comum: a liberdade e —como simbolizava a nova tatuagem de um leão rampante que seu marido luzia no braço— a restauração de um escocês no trono da Escócia.

Christina viu relampejar os olhos de seu marido sob o aço de seu elmo e soube que ouvir seu apelido também tinha emocionado a ele.

Com um nó na garganta, Christina observou a seu marido avançar e prostrar-se ante seu rei. Nunca se havia sentido tão orgulhosa dele. Era consciente do perigo que corria, mas a aventura em que ele e seus homens estavam a ponto de embarcar-se mudaria o rumo da história. Manter em segredo suas atividades seria complicado, mas por sorte ele tinha um irmão gêmeo que poderia ocupar seu lugar enquanto estivesse longe de casa.

«longe de casa.» Ambos teriam que fazer sacrifícios nos altares daquela guerra.

Mas quando Tor agachou a cabeça e a folha da espada de Bruce lhe tocou o ombro, Christina soube que tinha encontrado algo muito melhor que o cavalheiro de seus sonhos; tinha encontrado a um highlander que tinha conquistado seu coração e um amor que duraria toda a vida.

Os dez guerreiros formaram um círculo em torno de seu rei. Com as espadas em alto por cima de sua cabeça, gritaram: —Airson an Leomhann! —«Pelo Leão!», uma divisa que acabaria por semear o medo no coração de muitos homens.

A operação Leão Rampante30 tinha começado.


Fim


Nota da Autora A maioria dos personagens principais da história estão baseados livremente em figuras históricas reais. «Tor» foi o primeiro chefe e fundador do clã MacLeod (e sexto bisavô de Rory MacLeod, de ‘O Highlander Indomável’ ). Entretanto, em princípios do século XIV, os clãs tal e como os concebemos hoje em dia estavam ainda em matilhas. Inclusive o termo «highlander» é provavelmente um anacronismo — segundo o dicionário Oxford, a palavra highlandman aparece pela primeira vez em um texto por volta do ano 1425—, mas tanto autores de ficção (Nigel Tranter) como de não ficção (G. W. S. Barrow) empregam-na no mesmo contexto histórico. Suponho que, igual a mim, chegaram à conclusão de que não havia uma alternativa melhor. Por outro lado, que graça teria ler uma novela romântica ambientada em Escócia em que não aparece nenhum highlander?

Os dois ramos do clã MacLeod, os MacLeod de Harris e os MacLeod de Lewis, são conhecidos respectivamente como «Siol Thormoid» e «Siol Thorcuil» («semente de Tormod» e «semente de Torquil», em sentido literal). As últimas investigações sobre a genealogia dos MacLeod desmentem a crença anterior de que Tormod e Torquil eram irmãos, e em troca parecem indicar que Torquil foi neto de Tormod (e filho de Murdoch). Setecentos anos depois, é impossível riscar a genealogia com exatidão. Decidi me ater à versão tradicional, tanto por simplicidade como porque é a que mantém o chefe atual do clã MacLeod no lugar da Web de Dunvegan. De forma similar, a descendência de Tor por linha paterna do rei da Noruega e do rei de Man descrita no primeiro capítulo também está simplificada em grande medida e é objeto de controvérsia.

A maioria dos genealogistas coincide em que Tor se casou duas vezes e em que sua segunda esposa foi Christina Fraser, irmã do Alexander (seguidor de Bruce, a quem estava muito unido, e que mais tarde se desposaria sua irmã Mary) e de Simon, o primeiro senhor de Lovat. O pai de Christina esteve detido na Inglaterra durante uma temporada, mas diferente do que se conta na novela, sua família se encontrava ali com ele. Cabe supor que Christina e seus irmãos passaram um tempo na corte inglesa.

As alianças forjadas pelo Tor através do matrimônio ilustram à perfeição a mudança que se estava produzindo naquela época nas ilhas Ocidentais, que eram um reino marítimo independente de estar sob o domínio da Escócia. O primeiro enlace de Tor foi com uma família influente da costa ocidental, e o segundo com a filha de um nobre escocês.

O ataque de Skye por parte do conde do Ross ocorreu em realidade duas décadas antes da novela, em 1262. Foi tão brutal como o hei descrito, assassinato de meninos incluído. A morte dos pais de Tor durante a incursão, não obstante, é um fato fictício.

Segundo algumas lendas, Torquil MacLeod se fez com suas terras no Lewis matando a todos os membros varões do clã Nicolson (afogando-os no Minch) e casando-se depois com a filha herdeira. Como supus que isto seria algo excessivo para o gosto da maioria dos leitores, decidi dar um toque mais romântico à história.

O trasfondo político da primeira guerra da Independência da Escócia é, por dizer com suavidade, extremamente complicado. Aos interessados em conhecer mais a fundo aquela época, recomendo encarecidamente o livro Robert de Bruce do G. W. S. Barrow (Edinburgh University Press, 2005). Para quem quer ler uma série de novelas históricas e amenas ambientadas nesse período The Bruce Trilogy do Nigel Tranter (Hodder Headline, 1985); é um clássico.

A relação entre Bruce e Wallace foi muito mais complexa que a que descrevo no livro. Ambos desejavam expulsar aos ingleses da Escócia, mas Wallace aspirava a restaurar no trono à família Balliol, enquanto que Bruce queria a coroa para si. Tal como assinala Tor quando o critica no primeiro capítulo, Bruce se passava repetidamente do bando dos «patriotas» ao dos ingleses e vice versa. No geral, seus atos podem explicar-se em função de quem apoiavam os Balliol/Comyn; normalmente ele estava no lado contrário.

Passei nas pontas dos pés pelo que é provavelmente o momento mais importante na vida de Bruce: o assassinato de seu rival, Comyn o Vermelho, ante o altar da igreja do Greyfriars. Os relatos de quão feitos culminaram com o assassinato diferem enormemente entre si. Uma das versões «românticas» (hoje desacreditada) fala de um pacto com o Comyn e de mensageiros que levavam a Eduardo prova da traição de Bruce, mas que foram interceptados. Decidi aproveitar esta história porque minha heroína encaixava bem nela, mas também porque me encontrei com o mesmo problema que muitos dos primeiros cronistas da vida de Bruce: como explicar o ato decididamente anti heroico de um grande herói. Era evidente que Comyn se interpunha entre o Bruce e o trono, mas embora tira-lo meio era «necessário», o assassinato de um rival não causa boa impressão, olhe como se olhe. O fato de tê-lo matado em uma igreja e de ter violado com isso seu direito de asilo agravava muito as coisas. Por causa deste crime, Bruce esteve excomungado durante quase vinte anos. Escócia ficou debaixo de interdição também durante um tempo.

O assalto ao castelo do Dumfries se produziu em realidade depois de que Bruce matasse a Comyn, não antes, como acontece na novela. Atacar Dumfries foi o primeiro ato de rebeldia de Bruce contra o rei Eduardo. O governador do castelo naquela época era sir Richard Siward, não Seagrave. Entretanto, é verdade que Seagrave esteve destinado na Escócia durante anos.

Uma das maiores lacunas em meu conhecimento da história daquela época era a importância real que tiveram os descendentes do rei Somerled: os MacDonald (senhores de Islay), os MacRuairi (senhores do Garmoran) e os MacDougall (senhores de Argyll). «MacSorley» é o nome com que se conhece coletivamente aos descendentes de Somerled. Sabia da importância dos MacDonald (mais tarde senhores das Ilhas), mas desconhecia por completo a dos MacRuairi e os MacDougall. Estes últimos eram certamente o clã mais poderoso naquela época, mas foram a menos guerras de Independência. Nossos velhos amigos, os Campbell, foram os mais beneficiados com sua desgraça. Os MacRuairi desapareceram poucas décadas mais tarde.

Contava Bruce de verdade com «forças especiais», uma guarda de highlanders que utilizava como exército pessoal? A resposta breve é não, mas existem alguns paralelismos interessantes. As semelhanças com uma unidade de forças especiais são fictícias, mas é verdade que Bruce tinha uma «mesnada» ou séquito pessoal ao que pertenciam Robert Boyd e partidários deles como Christopher Seton, Alexander Fraser (irmão de Christina), Thomas Randolf, Edward Bruce e Neil Campbell. Este último, junto com Alexander Seton e Thomas Há, assinou um documento no que se comprometia a defender e apoiar Bruce até o final. Em um desses descobrimentos fantásticos que se fazem por acaso, encontrei uma referência ao Donald», filho de Alistair (em quem está apoiado o personagem de MacSorley), que dirigiu a um grupo seleto de highlanders (uma «tropa de ilhéus»), por ordem de Angus Og, com o fim de ajudar e proteger Bruce em 1306. Impressionante, não é?

O que está claro é que, já no início, Bruce reconheceu a importância das Highlands Ocidentais. Na transcendental batalha de Bannockburn, em 1314, Bruce lutou contra os ingleses à frente de uma divisão de highlanders e ilhéus. Em teoria, muitos dos membros da «Guarda das Highlands» combateram ao seu lado (incluindo Tor). E quando Bruce viveu seu momento mais difícil em sua luta por ocupar o trono, foram os highlanders e os ilhéus que foram em sua ajuda. Mas isso já é parte de outra história.

 

 

Notas


[1] O bìrlinn, vulgarmente conhecido como a fhada de longa duração (“Navio de longa duração”), foi construído de tijolo e pode ser navegado ou remado. It had a single mast with a square sail. Tinha um único mastro com uma vela quadrangular. Smaller vessels of this type might have as few as 12 oars, with the larger having as many as 40. As embarcações menores deste tipo pode ter apenas 12 remos, e o maior ter tantos como 40. For over 400 years, down to the 17th century, the bìrlinn or long-fhada was the dominant vessel in the Hebrides. Por mais de 400 anos, até o século 17, o bìrlinn ou fhada longa era a embarcação dominante nas Hébridas
[2] Chrétien de Troyes (c. 1135 – c. 1191) foi um poeta e trovador francês do final do século XII. Foi um dos primeiros autores de romances de cavalaria, sendo também considerado o primeiro grande novelista em língua francesa. Suas obras inspiraram a literatura em toda a Europa Ocidental durante a Idade Média. Sua obra é a primeira a mencionar temas tão conhecidos hoje como a busca do Santo Graal e o amor entre Lancelote e a rainha Genebra. A obra de Chrétien inclui cinco grandes poemas em versos octasilábicos. Destes, quatro estão completos: Erec e Enida (c. 1170), Cligès (c. 1176), Ivain, o Cavaleiro do Leão e Lancelote, o Cavaleiro da Carreta, os dois últimos escritos simultaneamente entre 1178 e 1181.
[3] Meleagant (também grafado Malagant ou Maleagant) é um vilão da lenda arthuriana. Originalmente um cavaleiro da Távola Redonda filho do rei Bagdemagus de Gorre, sua reivindicação à fama decorre de ter sido o seqüestrador de Guinevere. Sua primeira aparição ocorre em Lancelote, o Cavaleiro da Carreta por Chrétien de Troyes, onde leva Guinevere para seu castelo indevassável. A rainha é resgatada por Lancelote e Gawain; esta também é a primeira aparição de Lancelote na lenda arthuriana. Meleagant supostamente teria sido criado com base em Melwas, vilão das primeiras histórias galesas, o qual captura Guinevere na Vida de Gildas. Nesta obra, o rei Melwas captura a rainha e a leva para sua fortaleza em Glastonbury. Arthur a localiza após um ano de buscas e se prepara para atacar o castelo, mas Gildas negocia seu retorno em segurança.
[4] Casaco medieval que se colocava sobre a armadura
[5] Que segue, que acompanha; partidário; sectário, seguidor. S.m. Membro de um bando ou partido; prosélito, assecla.
[6] Maça de guerra:
[7] Machado de guerra:
[8] São Columba (7 de Dezembro de 521 a 9 de Junho de 597) também conhecido como Columba de Iona, ou, em Gaélico, Colm Cille ou Columcille (“pomba da Igreja”). Foi a grande figura missionária da Escócia. Monge irlandês (gaélico), reintroduziu o Cristianismo entre os Pictos medievais. É dito como sendo o primeiro a ter avistado Nessie, o monstro do lago Ness.
[9] Marzipã, marzipan ou maçapão é um doce de origem árabe, preparado a partir de uma pasta feita de amêndoas moídas, açúcar e claras de ovos, que pode ser moldada em praticamente qualquer formato. Também podem ser adicionadas essências.
[10] Clàrsach ou Cláirseach (dependendo irlandês gaélico ou gaélico escocês grafias), é o gaélico palavra genérica para “uma harpa , como derivado do irlandês médio . In English , the word is used to refer specifically to a variety of small Irish and Scottish harps. Em Inglês, a palavra é usada para se referir especificamente a uma variedade de pequenas e gaitas escocesas irlandês.
[11] “é um contador de histórias tradicional irlandesa. Grafias Alternatate incluem seanachaí, senachaí senachie e Shanachie. A palavra é uma forma latinizada do seanachaidh língua irlandesa ou seanchuidh. Vem da palavra irlandesa “seanachas” ou “seanchus” significado “histórico” ou “folclore”.
[12] Cuirm era uma espécie de cerveja fabricada pela Gael . It was a powerful, intoxicating liquor made from barley , and being of course used at all feasts, the word cuirm came ultimately to mean a feast itself. Era inebriante, feita de licor poderoso da cevada , e sendo, obviamente, utilizado em todas as festas, a cuirm palavra veio a significar em última análise, uma festa em si. It is supposed by some to have been the same as whisky , but the process of brewing being so much easier and cheaper than distilling , it was more probably a strong kind of beer. Supõe-se por alguns de ter sido o mesmo que o uísque mas o processo de fabricação de cerveja é muito mais fácil e mais barato do que a destilação.
[13] Vestido com abotoamento frontal e nas mangas
[14] A tradução correta para Gall-Ghàidheil ou qualquer uma das variantes de grafia é “Foreign Gaels” e não é utilizado especificamente para se referir aos estrangeiros nórdicos. It is a general term to describe a particular ethnic grouping of foreigners of which the Norse formed part. É um termo geral para descrever um grupo étnico específico de estrangeiros de que os nórdicos faziam parte. This term is subject to a large range of variations depending on chronological and geographical differences in the Gaelic language , ie Gall Gaidel , Gall Gaidhel , Gall Gaidheal , Gall Gaedil , Gall Gaedhil , Gall Gaedhel , Gall Goidel , etc. The modern term in Irish however, is Gall-Ghaeil , while the Scottish Gaelic is Gall-Ghàidheil . [ 1 ] Este termo está sujeito a uma grande gama de variações dependendo cronológica e geográfica diferenças na língua gaélica. O termo moderno em irlandês no entanto, é Gall-Ghaeil, enquanto o gaélico escocês é Gall-Ghàidheil.
[15] Whisky em gaélico escocês.
[16] Colchão fino de palha.
[17] Banshee é um ente fantástico da mitologia celta (Irlanda) que é conhecida como Bean Nighe na mitologia escocesa. As Banshee provêm da família das fadas, e é a forma mais obscura delas. Quando alguém avistava uma Banshee sabia mal seu fim estava próximo: os dias restantes de sua vida podiam ser contados pelos gritos da Banshee: cada grito era um dia de vida e, se apenas um grito fosse ouvido, naquela mesma noite estaria morto.
[18] Forte em gaélico
[19] Yule é a festa sagrada mais importante do ano teutônico. Começa em 20 de dezembro e dura doze dias, sendo o décimo segundo o primeiro dia do ano.
[20] Bardo dos habitantes das Terras Altas da Escócia, responsável por preservar e repetir as tradições das tribos.
[21] Narrativa medieval sobre mitos gaélicos
[22] Waternish é uma península de uns doze quilômetros de comprimento na ilha de Skye.
[23] Warwolf (Lobo de Guerra) considera-se a maior catapulta da história. Construiu-se na Escócia por ordem do rei Eduardo da Inglaterra, durante o assédio do castelo de Stirling, durante as guerras pela independência escocesa.
[24] Muro cercado defensivo característico dos castelos escoceses durante a Idade Média.
[25] Os brogues eram sapatos de solados planos de um couro muito flexível.
[26] Torre fortificada de duplas paredes e circular própria da Escócia.
[27] Sucessor; segundo ao mando entre as dinastias reais gaélicas.
[28] adj. || (tipogr.) diz-se do formato que tem a folha de impressão apenas dobrada em duas: Formato, volume infólio. , s. m. livro ou volume infólio: F. lat. In… +folium (folha).
[29] O Wyvern ou Guiver (também conhecido como wyverns, na sua grafia Inglês, ou drakontas - e às vezes até chamado por alguns corredores de vento) são criaturas lendárias pertencentes à mitologia medieval , em forma de grandes répteis alados da família de dragões nível inferior, mas são capazes de lançar feitiços.
[30] Leão rampante: firmado em suas patas traseiras. Em posição de ataque.

Capítulo 21

Era a última hora da tarde quando Tor retornou ao castelo. Embora tivesse desejado permanecer junto ao leito de sua esposa doente, assim que lhe asseguraram que se encontrava bem tinha ido ocupar-se de assuntos que não admitiam mais demora.

Que ele recordasse, era a primeira vez que se sentia contrariado ante a chamada do dever. Mas, além de tentar descobrir a um possível espião, tinha recebido uma mensagem inquietante de MacDonald no que lhe exigia que tomasse medidas. Embora aquilo certamente prejudicasse ao equilíbrio da equipe que tanto esforço havia tido alcançar, era inevitável.

Além disso, se ficava nesse aposento um minuto mais, corria o risco de esquecer-se de quão doente esteve Christina e lhe fazer sentir em suas próprias carnes o medo que ele tinha passado por sua culpa.

Desejava apagar para sempre de sua mente o momento em que ela se desabou no chão. Por um angustiante instante, tinha acreditado que estivesse morta. Não tinha recuperado o fôlego até que tinha notado o pulso acelerado sob seus dedos e a respiração tênue, mas constante contra sua bochecha. Sua sensação de pânico diminuiu um pouco mais quando a curandeira a examinou e comunicou a Tor que somente era um pouco de febre.

Somente. Não havia «somente» quando se tratava de sua esposa. Furioso pelo engano da anciã, aterrorizou-a ameaçando reduzir na metade os anos que ficavam, que, por certo não eram muitos.

Tor nunca havia se sentido assim. Christina despertava nele um forte instinto protetor que não sabia que tinha. Como seu marido, era seu dever mantê-la a salvo, mas o que sentia ia mais à frente do dever.

Sempre tinha sido capaz de deixar os sentimentos a um lado e fechar sua mente como uma armadilha de aço. Mas com a Christina não ficava tão simples. Havia algo nela que lhe tocava a fibra sensível, que lhe chegava muito fundo. Era delicada, amável e generosa, possuía uma mente ágil, um entusiasmo e uma alegria de viver contagiosos, mas também uma profundidade e uma têmpera maiores do que ele tinha pensado em princípio. Encarava-lhe, desafiava-o… e se preocupava com ele.

Era um remanso de doçura para um homem que somente tinha conhecido o conflito. E, por mais que se esforçasse Tor não podia manter distância.

Subiu a escada pesadamente e, de forma maquinal, observou a zona. Os guardas estavam em seus postos ao longo dos parapeitos de pedra e no seteiro - uma pequena obra em forma de caixa encostada à muralha do castelo— que sobressaía por cima das portas. Um punhado de mulheres extraía água do poço. Os criados tiravam bandejas e pratos do salão, e Christina estava…

Caiu-lhe a alma aos pés quando fixou o olhar na figura que caminhava entre as almenas. Ficou furioso, uma sensação a qual começava a acostumar-se. Que demônios fazia ela ali fora? Devia estar descansando, não perambulando por aí, exposta ao ar frio do exterior e ainda por cima com o cabelo úmido, Por Deus santo. Acaso não sabia que podia agarrar um resfriado?

Ela se voltou para ele e o saudou com um gesto. Baixou a mão devagar quando Tor se aproximou.

Tinha visto a expressão de seu rosto. Mordendo o lábio, retrocedeu uns passos, mas seu olhar apaziguador não serviu absolutamente para nada.

—Retornaste - disse em um tom exageradamente alegre—. Não te vi vir para aqui.

Sem abrir a boca nem diminuir o passo, ele se equilibrou para ela e a levantou.

Christina soltou um grito afogado de surpresa, mas ele manteve o olhar à frente, pois não se atrevia a olhá-la. Nesses momentos, seu controle sobre si mesmo pendia de um fio. Sentia um ardor no peito.

—Está exagerando-disse ela com suavidade, para aplacar a uma besta raivosa—. Encontro-me bem.

—Não fale-grunhiu ele com os dentes apertados e a ira a flor de pele—. Não fale.

Com um profundo suspiro de resignação, jogou os braços ao seu pescoço e apoiou a bochecha no peito de Tor. Uma enorme onda de calidez abriu passo através da raiva. Invadiu-o uma incrível sensação de… ternura. Que diabos estava lhe passando?

Não sabia e lhe dava igual, de modo que a atraiu para si um pouco mais.

O silêncio se impôs no grande salão quando ele entrou com ela em braços e se dirigiu ao corredor. Era consciente dos olhares de curiosidade que atraía, mas lhe importavam um nada. Se aos pressente deu a impressão de que seu chefe tinha perdido a cabeça, certamente tinham razão.

minutos depois, chegou ao quarto de Christina. Fechou a porta de uma patada e ficou ali de pé durante um momento, com uma estranha relutância a depositá-la sobre a cama. Finalmente o fez e se sentou a seu lado.

Pouco a pouco, notou que relaxava o corpo. Empurrou-lhe o queixo para cima com sua diminuta mão para obrigá-lo a olhá-la aos olhos.

—Sinto muito. Não era minha intenção te dar motivo de preocupação.

—Tem o cabelo molhado - disse ele, como se assim explicasse algo.

—tomei um banho.

—Poderia te resfriar.

Ela teve o descaramento de deixar que lhe notasse que estava reprimindo um sorriso.

—Isso não é mais que uma tolice própria de babás. Saí muitas vezes com o cabelo molhado e nunca adoeci por isso. Somente foi uma ligeira febre; estou bem, de verdade. Morag diz que já não tenho que guardar repouso.

Tor esticou a mandíbula.

—O que saberá Morag de uma pequenina como você? É tão robusta e teimosa como uma mula velha das Highlands.

desta vez ela sorriu abertamente.

—Pode ser que eu não seja tão alta como vós, mas tenho uma compleição forte. —escureceu o rosto—. Embora em alguma ocasião tenha desejado não tê-la.

Tor admirou-se esse comentário. Então lhe veio algo à memória.

—Contou-me que sua irmã esteve doente quando pequenas.

Ela assentiu.

—Beatrix sempre foi uma menina doentia. Eu quase nunca me punha má. Parecia-me tão injusto… Freqüentemente desejava poder ser eu quem caísse doente em lugar dela.

—Não é assim como funcionam as coisas - repôs ele com delicadeza—. Não devemos nos sentir culpados pelos dons que recebemos ao nascer-acrescentou sem pensar.

Ela inclinou a cabeça e lhe escrutinou o rosto.

—Você se sente culpado por ser o gêmeo mais velho.

De forma instintiva, encerrou-se em si mesmo e apagou toda expressão de seu semblante. Entretanto, o ligeiro olhar de recriminação que lhe dirigiu Christina lhe fez recordar o acordo ao que tinham chegado. Respirou fundo, perguntando-se em que diabos estivera pensando.

—Talvez um pouco quando eramos meninos. Parecia-me injusto que me tocasse ser chefe por uma diferença de minutos. Mas aprendi a aceitar que a vida nunca é justa e que devemos interpretar o papel que nos corresponde.

Ela ergueu o olhar para ele com um amplo sorriso nos lábios.

—Bom, não foi tão difícil, verdade?

Tor replicou entre dentes que era como se lhe cravassem agulhas candentes sob as unhas, mas isso a fez rir.

—Logo estará tagarelando sem parar como o pequeno Iain.

Ele pôs os olhos em branco.

—Deus não o queira. Esse moleque nunca fecha o bico.

trocaram um olhar de divertida cumplicidade que em seguida se transformou em outra coisa, em algo tórrido e selvagem que alagava seus sentidos.

Ele era plenamente consciente da situação em que se encontravam. A cama, as pernas tocando-se, o tênue aroma floral do sabão na pele recém lavada dele, a careta sensual em sua boca luxuriosa…

Sentiu um calor repentino na virilha. O desejo se apoderou dele com uma força irrefreável. Apressava-o. Atraía-o para ela. Fazia que lhe custasse recordar que Christina necessitava repouso.

O estranho torvelinho de emoções dos últimos dias ainda estava muito recente. Ele não podia pensar em outra coisa que em afundar-se nela para fazê-las desaparecer.

Inclinou-se para sua esposa. Tinha a boca a somente um palmo da sua. Ouviu que lhe agitava a respiração. Os lábios de Christina se abriram, incitantes.

Tor quase podia perceber seu sabor…

«Maldição. Controla-te.» separou-se dela, obrigando-se a ter presente que ainda estava muito fraca.

—Descansa um pouco. Depois passarei para ver como te encontra.

Ela fez carinha de sapeca. Seus olhos negros lhe esquadrinharam o rosto.

—Acaso não quer…? —Então baixou o olhar, e o sorriso pícaro que lhe curvou a boca fez que a Tor lhe arrepiasse o pêlo da nuca—. Já vejo que sim que quer - disse ela com voz áspera, lhe pondo a mão sobre a coxa. O músculo se esticou por reflexo. O contato daquela pequena palma queimava ao Tor como um ferro incandescente através do linho de seu leine, a escassos centímetros do lugar onde ele ansiava senti-la—. Por favor, fica - sussurrou Christina.

Sua mão se deslizou pela coxa dele, aproximando-se. A Tor lhe acelerou o pulso. Quase podia senti-la acariciando-o, estirando com movimentos largos e enérgicos de sua mão minúscula e delicada. Apertou os dentes, armando-se de valor para resistir a seu contato.

Estava a ponto de negar quando ela acrescentou:

—Necessito-te.

Nesse simples rogo, ele ouviu o eco dos medos que o tinham afligido nos últimos dias. Seus olhos se encontraram. Viu o rubor rosado nas bochechas de Christina, um rubor saudável.

—Não quero te fazer dano — disse com brutalidade.

O olhar dela se suavizou com um brilho de emoção que lhe encolheu o coração.

—Não vais fazer me dano.

Roçou-lhe o membro com os nódulos e ele soltou um grunhido, fechando os olhos enquanto uma ardente onda de desejo o percorria.

Agarrou-lhe a mão para evitar que seus dedos se fechassem em torno dele, embora nesse momento não houvesse nada no mundo que desejasse mais.

—me prometa que se começar a te sentir mal, avisará-me.

O sorriso travesso apareceu de novo ao rosto de Christina.

—Temo que tenho toda a intenção de me sentir mal, muito, muito mal. —inclinou-se para ele e apertou a boca contra sua mandíbula, justo ao lado da orelha—. E totalmente satisfeita.

Tor tinha chegado ao limite de sua boa vontade. Soltando-lhe o pulso, voltou a cabeça para aprisionar os lábios entre os seus e lhe escapou um gemido quando a mão dela o rodeou por fim. Uma sensação de alívio o alagou.

Deus, adorava beijar sua dama. Seus lábios eram muito suaves e tinham sabor de mel morno. Deslizou a língua pelo interior de sua boca em longas e lânguidas lambidas, tomando seu tempo para saborear e explorar. Sua sede dela era insaciável, e se entregou ao simples prazer de beijá-la que durante tanto tempo se privou.

Os ofegos entrecortados de Christina o excitavam ainda mais, ao igual ao roce brincalhão de sua mão. A pressão do linho o estava matando. Nada devia interpor-se entre eles.

Afastou-se de repente, interrompendo o beijo. O miado de recriminação que ela emitiu o fez sorrir. Parecia uma gatinha a quem tinham tirado sua terrina de leite. Tor ficou de pé. Ela abriu a boca para protestar, pois acreditava que ele pretendia partir, mas se deteve quando viu que abria o broche que segurava o brat ao pescoço.

Longe de dissimular sua admiração quando ele se despojou do objeto, devorou-o com os olhos, passeando o olhar por seu peito, seu abdômen e a extensão de seu longo e largo membro. O desejo manifesto em seu olhar minava a concentração de Tor. Quando Christina lambeu os lábios de forma inconsciente, por pouco não lhe dobraram os joelhos.

Voltou-se ligeiramente, e ela contemplou seu flanco. As sobrancelhas lhe juntaram.

—O que é essa marca?

Como não estava acostumado a que ninguém lhe examinasse o traseiro, esqueceu-se disso.

—Uma tatuagem azul feita com glasto. Fizeram-me isso quando nasci.

Ela assentiu.

—Tinha ouvido falar deles, mas nunca tinha visto um. É uma tradição em seu clã?

Interessante ideia, pensou ele.

—Não, era para me identificar como o primogênito. Não se pode eliminar. —Sorriu - Suponho que pensaram que era mais difícil que me cerceassem o traseiro a que me cortassem um braço ou uma perna.

Ela fez uma careta.

—Deixa-me ver?

Ele se aproximou, e os músculos se contraíram quando sentiu a suave ponta do dedo de Christina seguir o risco da tatuagem.

—Mor - disse. E a seguir traduziu—: Grande. —Um sorriso pícaro lhe desenhou nos lábios—. Muito apropriado.

—Garota má - a repreendeu Tor. Ela sabia perfeitamente que mor era um apelativo com que se estava acostumado a designar mais velho, do mesmo modo que og designava ao mais novo.

—Eu gosto do desenho.

—É irlandês - disse ele, rígido. Sentia como se seu membro estivesse a ponto de explodir por causa daquela exploração inocente.

—Doeu-te?

—Não que eu recorde. —Que introduziram agulhas quentes sob a pele não era a metade de doloroso do que estava fazendo nesse instante.

Tentando dominar seu desejo, sentou-se na borda da cama e a fez girar de modo que ficasse de pé frente a ele. Agora era sua vez de explorar. Ajudou-a com os broches e os laços até um ponto em que ela pudesse seguir por si mesmo.

—te dispa para mim, Tina - lhe ordenou—. Devagar.

As bochechas se tingiram de vermelho, mas fez o que pedia. Despiu-se, sustentando o olhar de Tor em todo momento.

Ele se acalorava cada vez mais à medida que a roupa caía ao chão: a capa, a túnica, as sapatilhas, as meias. Para quando chegou ao vestido, saltava à vista que já era toda uma perita. Pouco a pouco, o levantou por cima dos joelhos, as coxas… Deteve-se justo antes de revelar o doce centro de sua feminilidade.

Os músculos de Tor se esticaram sob sua pele excessivamente tirante, e, respirando com força, fixou na Christina seu olhar ardente. Ela o provocava e incitava, até que ele soltou um grunhido de impaciência. Justo quando ele se dispunha a lhe arrancar o maldito objeto, ela ergueu a barra até o ventre. Tor aspirou bruscamente, reprimindo o impulso de estender o braço para tocá-la, pois sabia que estaria quente e úmida de paixão.

Ela levantou o vestido mais e mais até que Tor espiou a delicada curva inferior de seus peitos.

Christina se deteve e ele conteve o fôlego até que lhe mostrou os formosos e turgentes Montes de carne coroados por mamilos muito duros e erguidos.

Tirou o vestido por cima da cabeça, atirou-o ao chão e ficou de pé ante ele, total e belamente nua. Os últimos raios de sol penetravam pela única janela, banhando-a em um resplendor quente e sensual.

Era maravilhosa. Um pequeno, compacto e delicioso pacote de feminilidade. Longas ondas de cabelo negro e sedoso lhe caíam sobre os ombros. Pernas torneadas, quadris curvilíneos, uma cintura estreita e seios grandes e empinados que convidavam a afundar o rosto entre eles e chorar de prazer, todo isso envolto na pele mais impecável, cremosa e suave que ele jamais vira ou tocara.

—Vêm aqui — ordenou ele, sem reconhecer sua própria voz, rouca e carregada de uma intensidade que nunca tinha ouvido antes.

Ela, obedientemente, aproximou-se até ficar diante dele. Tor sabia que se sentia envergonhada, mas não teve contemplações. Cravou nela os olhos com dureza.

—Antes tenho que me assegurar de que esteja bem.

Ela o olhou, vacilante.

—Seriamente?

Tor assentiu.

—Terá que te deitar para que examine… —Incapaz de resistir a tentação um segundo mais, deslizou a mão sobre a aveludada curva de seu quadril—. Cada palmo de seu corpo.

Ela arregalou os olhos antes de avivar-se, ansiosa.

Estendeu-se no leito em um esbanjamento de sensualidade para o olhar.

Tor se colocou em cima dela, com os joelhos em cada lado para poder mover-se livremente acima e abaixo. Começou pela boca, roçando os lábios com os seus, e percorreu a mandíbula até a orelha com movimentos rápidos da língua. Beijou-lhe o pescoço e afundou o rosto na sedosa suavidade de seu cabelo, que ainda estava úmido. As mechas espessas e escuras despediam um intenso aroma de lavanda.

Christina se retorceu debaixo de Tor, que ansiava apertar sua pele ardente contra a sua, sentir o delicioso estremecimento a seu contato. Ainda não. Como um penitente, torturava a si mesmo. Ia fazer lentamente e saborear cada instante.

Continuou examinando-a, explorando cada polegada daquela pele lisa como a de um bebê com a boca e a língua: o pescoço, os braços, o pulso e… Seus incríveis seios.

Entreteve-se ali um momento, lambendo e chupando no mais profundo da boca, fazendo girar a ponta ereta entre os dentes e a língua até que ela arqueou as costas e soltou um grito de desespero.

Deixando-a ofegante, deslizou a boca pela suave planície de seu ventre até os quadris, e dali à parte interior de suas pernas. Seu aroma o fazia enlouquecer; despertava todos seus instintos primários.

Ela tremia presa de um desejo que nem sequer sabia que tinha. Mas lhe ensinaria.

O membro inchou ainda mais.

Separou-lhe as pernas a beijos e rodeou os ombros com elas. Seu rosto estava a somente uns poucos centímetros.

Ouviu o repentino grito afogado de Christina quando ela compreendeu o que pretendia. Instintivamente, tentou fechar as pernas, mas somente conseguiu atraí-lo mais para si.

Tor riscou círculos com a língua pela parte interior das coxas até que o corpo de Christina se relaxou de novo. Ato seguido a roçou com o nariz de forma brincalhona e exalou seu fôlego sobre sua umidade até que ela ficou trêmula.

Já se tinha castigado o bastante. Não podia esperar mais.

—me olhe, Tina - lhe indicou, obrigando-a a dirigir o olhar para seus olhos—. Quero que me olhe enquanto te provo.

Ela emitiu um ofego ansioso, tendo deixado muito atrás as vontades de protestar. O corpo lhe tremia, faminto dele. Sustentando-lhe o olhar, percorreu-a com a língua, com o tato delicado de uma pluma. Christina sofreu um espasmo ao senti-lo, mas ele a segurou com firmeza pelo traseiro.

—Tem um sabor delicioso, minha doce moça. —Lambeu-a de novo, esta vez com mais força, deixando que notasse totalmente o contato de sua língua—. Como a nata mais deliciosa. Vou te lamber inteira.

*

Christina se sentia como se tivesse morrido e tivesse ido ao céu da luxúria. Tor quase lhe tinha feito perder a razão ao beijá-la por todo o corpo, mas quando ela tinha baixado o olhar para ver sua cabeleira dourada entre suas pernas e tinha caido na conta do que ia fazer lhe…

O pulso lhe tinha disparado com espera erótica; maravilhava-a que ele queria beijá-la em sua parte mais íntima. Paralisaram-lhe todos os músculos. Ela permanecia à espera do que ia ocorrer, intuindo que seria algo novidadeiro e fantástico. Não podia nem imaginá-lo.

A corrente de prazer que desatou o primeiro toque de sua língua lhe fez dar um salto. A segunda lhe provocou um calafrio.

OH, Deus.

Ela gemeu seu nome uma e outra vez incapaz de conter a força das intensas sensações desencadeadas por seu beijo perverso.

Tor a lambeu de novo, acariciando-a com a língua, descrevendo círculos, pinçando em seu interior com passadas largas e carinhosas até que ela acreditou que ia morrer de prazer.

Foi incrível. Não podia pensar mais que na boca e a língua de Tor, naquilo tão sensual que lhe estava fazendo.

A virilha começou a lhe palpitar mais depressa. Meneou os quadris contra a boca dele, desejando mais pressão, mais fricção.

E ele as deu. Levantou-a para si e apertou sua boca depravadamente talentosa contra ela.

Christina sentia o roce abrasivo de seu queixo enquanto Tor a devorava com seus beijos e sua língua voraz. Aquilo era muito.

Os espasmos se apropriaram dela, e estalou em lascas candentes de um êxtase abrasador. Mas, em vez de soltá-la, ele a agarrou contra si, recebendo seu prazer na boca.

Seu corpo ainda se convulsionava quando Tor a liberou. Olhou-a com os olhos entreabertos enquanto se estendia sobre Christina, estreitava-a contra seu corpo e se introduzia devagar nela. Sua pele, ainda sensível, notava uma leve dor com cada grosso lance.

Quando ele esteve dentro de tudo, não se moveu. Simplesmente a abraçou com mais ternura que nunca, aninhando-se contra o largo escudo de seu peito como se o mero contato fora suficiente.

Era.

Ela se derreteu contra ele, desfrutando da sensação de todos esses músculos que a rodeavam, de sua virilidade que a enchia.

E do coração dele, pulsando junto ao dele.

A emoção lhe oprimiu o peito. Era o momento mais emotivo de sua vida. Nunca tinha imaginado que pudesse sentir-se tão unida a alguém.

Permaneceram assim um longo momento, olhando-se nos olhos, em silêncio, salvo pelos sonoros batimentos do coração de seus corações, que palpitavam ao uníssono.

Então ele começou a mover-se. Devagar. Sem afastar o olhar de seus olhos, sujeitando-a com uma intensidade que fazia que o coração lhe golpeasse com força contra as costelas.

Empurrava e retrocedia com um vaivém longo e lânguido, como se dispor de todo o tempo do mundo. Como se eles fossem o mundo. Tor entrava e saía, detendo-se na parte mais profunda, e lhe arrancou um ofego de surpresa ao entrar ainda mais nela.

Pouco a pouco, começou a acelerar o ritmo, a penetrar com um pouco mais de ímpeto, a afundar-se um pouco mais. Pele com pele, seus corpos se deslizavam juntos de forma perfeitamente compassada.

Ela notou que as sensações se avivavam de novo, embora dessa vez fossem diferentes, menos violentas, mas mais intensas e poderosas. Não só se apoderaram de sua virilha, mas sim de todo seu ser.

Viu que o rosto de Tor se esticava, que apertava a mandíbula, que os músculos de seus ombros se inchavam. Tinha a pele quente e a fronte brilhante de suor.

Seus corpos se balançavam. Ele movia os quadris em círculos, com embates mais rápidos. Apertava-se contra ela até fazê-la resfolegar, até fazer que o coração lhe pulsasse a toda velocidade, e que as palpitações entre suas pernas se tornassem frenéticas.

Ele seguia lhe sustentando o olhar, e seus olhos de um azul cristalino destilavam uma emoção intensa que ela nunca tinha visto antes. Não era luxúria a não ser um pouco mais profundo, mais significativo. Ela não se atrevia a fazer-se ilusões.

—goze comigo, Tina - lhe disse ele grosseiramente.

e o fez. A respiração se entrecortou, as costas lhe arqueou, e seu prazer culminou, não com uma explosão violenta, a não ser em uma lenta rendição que começou muito dentro e se propagou para fora com uma fulgurante corrente de sensações.

E ele gozou com ela, deixando-se levar pela onda de seu clímax.

Nesse instante para Christina pareceu que seus sonhos estavam tão perto que quase podia tocá-los com a ponta dos dedos.

*

Um longo momento depois de que se apagassem os últimos ecos de seu clímax, Tor jazia na cama com Christina profundamente adormecida junto a ele. Estava-lhe custando enfocar o que acabava de ocorrer de uma perspectiva adequada.

Intenso. Esta palavra ficava muito pequena para descrevê-lo. Cataclísmico. Demolidor. Estas se aproximavam mais.

Não tinha idéia de que copular pudesse ser assim.

O peito ardia de ternura para a diminuta jovem feita um novelo a seu lado como um filhote. Depois do falecimento de seus pais e os longos anos que tinha convivido com a guerra e a morte, acreditava ter se protegido contra esse tipo de sentimentos. Seu autocontrole e sua falta de emoções eram o que o fazia destacar como chefe e como guerreiro, mas sentia que as capas de gelo se fundiam sob o calor do… amor de Christina.

Seu irmão estava no certo: ela o amava. Tor o notava nos olhos, no modo em que o tocava, em sua forma de beijá-lo.

E não podia negar que a moça lhe inspirava uma ternura especial, e isso o preocupava. Podia sentir algo por ela e mesmo assim antepor o bem de seu clã? Nunca antes tinha acreditado possível. Os sentimentos só complicavam as coisas, faziam-no mais vulnerável, e esse era um risco que nenhum guerreiro podia correr. Teve ocasião de comprová-lo quando MacDougall o tinha enfrentado e quando tinha visto Christina na aldeia. Passasse o que acontecesse, sabia que não podia permitir que sua debilidade por sua esposa interferisse em seu dever.

Ela, adormecida, emitiu um suave som de satisfação. Tor suspirou, apoiou a bochecha em sua cabeleira cálida e sedosa, e aspirou seu aroma doce e feminino. Uma sensação de complacência percorreu seus musculos esgotados. Ela era tão miúda, tão suave… Delicada e frágil. Evitar machucá-la seria toda uma provação, mas Tor jurou esforçar-se ao máximo por fazê-la feliz.


Capítulo 22


Christina estava recostada sobre o peito de Tor, com o infolio de pele sobre seu ventre nu e as pernas envoltas nos lençóis enrugados. O reluzente sol da manhã entrava em torrentes pela janela que tinha a portinha aberta, lhe proporcionando luz de sobra para ler.

Ou ao menos para tentar, pois seu irritante marido não deixava de interrompê-la. Quando chegou à parte em que Lancelot se rebaixava a montar em uma carreta para salvar a sua dama, ouviu o som inconfundível de uma gargalhada.

Baixou o livro e se voltou para lhe lançar um olhar sério.

—Se for danificar a história, não penso seguir lendo.

—Esses cavalheiros e seus ridículos códigos - disse com um desprezo indissimulado—. Parece-lhe o cúmulo da desonra viajar em uma carreta? —Sacudiu a cabeça—. Diabos, eu me arrastaria por um monte de esterco para te salvar.

A Christina tremeu as comissuras dos lábios. Custava-lhe seguir zangada quando o ouvia dizer coisas como aquela. Quem ia pensar que um monte de esterco poderia ser tão romântico?

Ergueu-se para lhe plantar um beijo rápido.

—Que terno.

—Terno? —escureceu o olhar—. Não tenho um cabelo de terno.

Para demonstrar atraiu-a sobre seu peito e a beijou de forma muito mais apaixonada. O livro caiu entre eles quando ela, aproveitando-se de sua posição e da considerável ereção de Tor, deu a volta em cima dele.

Com os joelhos a cada lado de seu corpo, fez que Tor a penetrasse, suspirando de agrado conforme ele a enchia. E como a enchia! Adorava senti-lo em seu interior, longo e grosso. Em efeito, tinha aprendido a apreciar seu tamanho e agora compreendia por que aquela criada a tinha prevenido desse modo no Finlaggan.

Com um gemido, lhe agarrou os seios com suas mãos grandes e ásperas, e começou a apertar e beliscar os mamilos entre os dedos enquanto ela o montava. Começou devagar e foi movendo-se mais depressa até encontrar seu ritmo.

Arqueou as costas sobre as mãos dele, deixando cair à cabeça para trás ao tempo que se erguia, levantando o torso tudo que pôde antes de inclinar-se de novo sobre ele, descrevendo círculos sensuais com os quadris.

Seus corpos se moviam ao uníssono com toda facilidade e fluidez. Na cama, não ficava nada a se interpor entre eles: nem acanhamento nem desconforto. Tinham alcançado a união perfeita de dois amantes.

Quando ela estava a ponto de culminar, ele baixou a mão e acariciou esse ponto deliciosamente sensível com o dedo, intensificando o prazer de Christina justo como sabia que gostava.

Ela se estremeceu, gritando, sacudida pelos espasmos. Ainda sentia um comichão quando ele a agarrou pelos quadris e se afundou no mais profundo dela, chegando a sua vez ao clímax.

Com delicadeza, sujeitou-lhe o rosto entre as mãos e a beijou de novo.

—Pareceu-te bastante terno?

—Sim. Prefiro mil vezes montar sobre ti que sobre uma carreta. —Soltou uma risadinha e, depois de aninhar-se contra ele, tirou o livro dentre os lençóis.

—E agora, quer que acabe o capítulo ou não? —perguntou lhe dirigindo um olhar severo, como se fosse um menino levado.

Tor torceu os lábios.

—Já que estamos não vejo por que não.

Ela não se deixou enganar por sua fingida indiferença. face ao evidente desdém de Tor para o código cavalheiresco, Christina sabia que estava gostando do relato.

Conseguiu ler o resto do capítulo sem mais interrupções, mas quando terminou, ele se levantou da cama (a contra gosto, pareceu a ela) para vestir-se.

Christina o observou sem dissimular seu interesse. Embora levasse duas semanas despertando em seus braços, não tinha perdido nem um ápice de seu entusiasmo. Depois daquela primeira vez, Tor tinha dormido a seu lado todas as noites. Embora o Natal tivesse sido há uma semana, cada dia era como um presente para ela. Duvidava que chegasse a cansar-se jamais de despertar junto a ele ou de contemplar seu magnífico corpo enquanto fazia suas abluções matutinas, consciente de que apenas alguns minutos antes estivera entre seus braços.

Seu marido tinha suavizado sua atitude com ela; disso não cabia a menor duvida. Já não se mostrava tão distante e indiferente, e se esforçava por abrir-se mais a ela, como tinha prometido, em que pese que não era fácil. Dada a brutalidade que tinha imperado em sua vida e as circunstâncias em que tinham morrido seus pais, não lhe custava entender por que.

Despertar em seus braços todas as manhãs tinha proporcionado algo da intimidade que desejava, mas ainda faltava algo. Seguia havendo uma barreira entre eles. Era como se Tor levasse duas vidas: uma com ela e outra diferente com todos outros.

Sabia tão pouco de suas atividades como antes. Mesmo assim, fixou-se no propósito de ser paciente. Tinha que lhe dar uma oportunidade.

Tor se vestiu a toda pressa; lavou os dentes enxaguando-se com vinho branco e esfregando com um tecido fino e uma massa de hortelã e sal; passou um pente pelo cabelo, Passou a água da bacia no rosto e se secou com o tecido adequado para isso. Entretanto, a água fria não levou os sinais de inquietação gravadas em seu semblante.

Estava aflito por algo. Como Christina o conhecia melhor que antes, tinha aprendido a decifrar seus gestos quase imperceptíveis: uma ligeira tensão da boca, a ruga na testa e um olhar distante.

—O que ocorre? —perguntou-lhe—. O que te preocupa?

Eram os rumores das crescentes desavenças entre Bruce e Comyn, a crescente ameaça de uma guerra entre Escócia e Inglaterra? Agora que sabia que ele tinha batalhado por ressuscitar seu clã a partir das cinzas da destruição, compreendia suas razões para querer evitar a guerra e manter-se neutro.

Com um sorriso, ele sacudiu a cabeça, sinal de que não tinha a menor intenção de contar-lhe, Christina lutou por conter a onda de decepção que a invadiu, não só pela falta de confiança - ou porque ele se confiou a outros—, mas sim porque temia que a visse como um brinquedo frágil que necessitava que o protegessem e o tivessem entre algodões.

«É questão de tempo», recordou-se. E tinham toda uma vida juntos em frente.

—Só é um assunto que estive pensando. —voltou-se para olhá-la nos olhos—. É possível que passe fora o resto da semana.

desta vez ela não pôde evitar sentir-se desiludida, embora fizesse o possível por dissimulá-lo. Sabia que devia estar agradecida pelas semanas que tinham estado juntos, mas não lhe bastava isso. Tornou-se ambiciosa. Quanto mais tempo passava com ele, mais tempo desejava.

Não lhe perguntou aonde ia, pois não queria ficar com pior humor quando ele se negasse a dizer. Mas, de repente, lhe ocorreu uma possibilidade. Deus bendito, tinha chegado o dia que tanto temia, o dia em que ele zarparia para ir à guerra?

*

Ao Tor a perspicácia de Christina respeito a seu estado de ânimo já não lhe surpreendia embora lhe incomodasse ser tão transparente para ela. Era certo que algo lhe preocupava. Não podia seguir demorando com o que MacDonald tinha ordenado.

Por desgraça, ela também era transparente para ele, por isso Tor sabia que sua reticência a feria. O acordo que tão cuidadosamente tinham estabelecido estava vindo abaixo. Embora ela fingisse entender por que ele não podia lhe explicar o que fazia; quanto mais se estreitavam seus laços, maior era o abismo que os separava.

O que mais surpreendia ao Tor era que em realidade tinha vontades de contar. Tinha guardado tudo dentro de si durante anos. Ao afrouxar a tampa, anos de pressão acumulada ameaçavam estalando. Certamente tinha cometido um engano ao fazer uma exceção, embora não podia negar que falar das coisas ajudava a limpar a cabeça.

Ela colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e encolheu as pernas, envolvendo-as joelhos na manta.

—averiguaste quem foi o responsável pelo ataque? —perguntou em um tom inexpressivo.

Tor não se deixou enganar por sua atitude despreocupada; sabia o que encerrava essa pergunta. Embora ela já não o interrogasse sobre o lugar aonde ia, isso não significava que não lhe interessasse saber. Seus lábios se curvaram para baixo com dureza.

—Não.

MacSorley e MacRuairi tinham retornado pouco depois de partir, com uma tripulação em extremo insuficiente, à caça de quatro navios de guerra que tinham seguido de longe até que uma das galeras ficou atrasada. Tinham-na assaltado com facilidade, mas nem sequer a habilidade considerável do MacRuairi para extrair informação lhe tinha revelado o nome da pessoa para a que trabalhavam.

—Ainda não - precisou—, mas o averiguarei. Assim que encontre ao infiltrado… —interrompeu-se, sentindo-se como se lhe tivessem atirado uma machadada. Nunca na vida tinha metido a pata dessa maneira. Talvez Christina não se desse conta. Sim, claro…

Ela afogou um grito.

—Acredita que há um espião?

—Parece provável - respondeu ele devagar, furioso consigo mesmo—. Todos os ataques se produziram quando eu estava fora, ou quando se supunha que estava. É muita casualidade para atribuí-la ao azar.

—Sabe quem é o espião?

—Não, ainda não. Poderia ser qualquer. Qualquer - repetiu—. Quando saio do castelo, não o faço precisamente em segredo, mas meus homens estão alerta a algo fora do comum ocorra, e estão tomando precauções. —Examinavam todas as mensagens e levavam a ele tudo o que consideravam suspeito. Vigiavam aos guardas (em especial aos que tinham sido recrutados recentemente) e ao pessoal do castelo, incluídos o tabelião e ao Rhuairi. Entretanto, depois de ver como o clérigo tinha protegido a Christina, suas suspeitas iniciais lhe pareceram infundadas.

Quase podia ler os pensamentos que se amontoavam na mente de Christina. Talvez o lapso tivesse sido o melhor que podia acontecer, disse a si mesmo. Terei que caçar a cobra com toda cautela para que não escapasse, e podia resultar perigoso. Mais valia que ela estivesse em guarda.

—Só poucos de meus guardas de máxima confiança estão à corrente disto, Christina. Lembre-se que a situação é grave e potencialmente perigosa. Espero não ter me equivocado ao depositar minha confiança em ti.

Ela sacudiu a cabeça com veemência.

—É obvio que não. —Sorriu—. Obrigado por me contar isso. Inclinou a cabeça—. É por isso que te parte?

—Em parte. Meus homens estarão atentos se por acaso acontece algo incomum no castelo, embora duvide que essa gente tente nada tão pouco tempo depois do último ataque. Mas não quero que saia do castelo durante minha ausência. Não esqueça sua promessa. —Não era necessário lhe explicar que não devia misturar-se em seus assuntos.

—Mas vou me aborrecer - protestou ela.

Tor tentou não sorrir ao fixar-se em sua expressão de despeito.

—Acreditava que estava trabalhando em um estandarte novo para o salão.

Christina entrecerrou os olhos.

—Sabe perfeitamente que é um desastre. Sou uma negação com a agulha.

Ele soltou uma risadinha.

—Estou seguro de que encontrará alguma atividade em que ocupar seu tempo.

—Se não tivesse enviado a seu irmão e a sua mulher ao exílio, teria a alguém com quem conversar.

Aquele era um tema delicado. Christina não entendia que seu marido estivesse empenhado em castigar seu irmão…, embora em realidade não o estivesse. Não era de se admirar. Ela tinha muito bom coração e não estava acostumada a tomar as decisões difíceis às que Tor se enfrentava diariamente como chefe.

—Janet estará aqui.

Como havia um possível espião entre eles, Tor tinha chegado à conclusão de que era muito arriscado que ela seguisse indo e vindo do castelo ao broch. Os homens tinham que arrumar-se somente com a comida… e se queixavam disso.

Christina arqueou uma sobrancelha.

—Quer que trave amizade com sua amante?

—ex-amante -a corrigiu ele—, mas segue sendo uma amiga. Dê-lhe uma oportunidade, gostarás dela.

Ela fez um ruído abafado parecido a um bufo.

—Os homens não entendem nada. Duvido muito que queira ser amiga minha.

Embora Tor não tivesse a menor ideia de por que, não pretendia entender as complexidades da mente feminina.

Agachou-se para beijá-la com suavidade. O beijo foi mais longo do que ele queria, mas quando levantou a cabeça, viu que havia valido a pena. Os lábios vermelhos entreabertos e um pouco inchados, as pálpebras entreabertas, o olhar aturdido, as bochechas rosadas… Maldita seja, adorava o aspecto que tinha quando a beijava.

—Voltarei antes que te dê conta.

*

Christina tinha conseguido distrair Tor de seus problemas, mas não durante muito tempo. «Maldito Bruce. Dane-se MacDonald.» Detestava os enganos de todo tipo. Aqueles homens formavam uma equipe e mereciam saber a verdade. Para que uma guarda secreta como essa cumprisse seu encargo, a autoridade máxima em relação às decisões que se atinham ao grupo devia ficar ao cargo do líder da equipe. Se ele estivesse ao mando, diria a Bruce e ao MacDonald exatamente onde podiam meter-se suas «ordens». Mas em pouco menos de três semanas, MacSorley seria o líder e a decisão estaria em suas mãos. Entretanto, nem sequer o corpulento escandinavo sabia o que estava a ponto de acontecer.

Era a última prova da Perdição, que fora postergada por sua volta antes do tempo a Dunvegan.

Os homens se congregaram em torno dele enquanto explicava sua missão. Tinha levado mais de dois meses, mas Tor por fim tinha conseguido lhes fechar a boca.

—Não podem estar falando sério. —Seton foi o primeiro que teve a audácia de dizer o que outros pensavam.

O olhar que Tor lhe jogou parecia indicar justamente o contrário.

—Foi o desafio final para o Fianna do Finn MacCool.

—Mas isso não é mais que uma lenda - protestou MacGregor—. Ninguém poderia proteger-se de tantas lanças enterrado até a cintura e com somente um escudo para cobrir-se.

Tor sorriu.

—Não têm por que te preocupar. Vou modificar a prova do Finn. Poderão colocar o elmo e a cota de malha, e não lhe atirarão todas as lanças de uma vez.

Ouviu algumas gargalhadas. Ao que parece suas modificações não fora suficiente para os convencer.

—Pode fazer—atravessou Campbell—. Um guerreiro destro pode apanhar facilmente dez lanças ou mais. O mais importante é dominar o medo.

—A ti isso será fácil - repôs MacGregor—. Cresceram esquivando das lanças que lhe atiravam à cabeça. Todos vimos o que és capaz de fazer com elas.

Campbell olhou ao Tor aos olhos e assentiu em sinal de aprovação.

—Verão-me em ação - comentou.

Os homens dedicaram às horas seguintes a exercitar-se. Campbell lançava as lanças - o que agradeceram atrás de alguns erros deliberados— e logo, uma vez que agarraram o truque, passaram a treinar com uma lança que tinha a ponta de aço afiada envolta em um pedaço de couro. Por último, cada um deles se enfrentou ao exercício autêntico. Além de Seton, que recebeu um forte golpe no ombro, todos conseguiram apanhar ao menos dez lanças seguidas, e alguns deles umas quantas mais. Campbell estava no certo: quando se conseguia dominar o medo, não era tão difícil. E nenhum deles tinha medo de nada.

Tor escavou o buraco enquanto os homens se adestravam. Dado a provocação que tinha exposto, pensou que era o minimo que podia fazer. Com uma profundidade que chegava à cintura e um par de pés de diâmetro, o fosso era estreito, mas o bastante grande para que eles pudessem girar para os lados, embora com muita dificuldade.

MacSorley foi o primeiro em entrar enquanto os outros formavam um círculo ao redor dele, a uns vinte passos de distância.

Tirou todas as armas que levava presas com correias a seu volumoso peito, mas ia protegido com a cota, o elmo e o escudo.

Tor ergueu a mão para assinalar o começo.

—Se houver uma só gota de sangue, não valerá a prova.

MacSorley assentiu.

—Entendido.

—Preparado?

—Sim.

Tor fez um sinal ao Lamont, o homem situado a sua direita, e as lanças começaram a sair voando do perímetro do círculo. Um por um, esperando uns segundos entre um e outro, os homens as jogavam no alvo vivo no centro.

MacSorley encontrou seu ritmo em seguida, alternando entre apanhar as lanças e aparar os golpes com o escudo. Tor foi o último em atirar sua lança, que foi a que esteve mais perto de acertar no alvo, mas MacSorley a desviou no último instante com seu escudo. Como seu birlinn, a madeira forrada de pele tinha pintado no anverso uma águia pescadora de aspecto feroz.

Ao final, havia nove lanças no chão ao redor do MacSorley e uma cravada em seu escudo. Mas tinha conseguido, e assim que os outros viram que podia fazer, apressaram-se a seguir seu exemplo.

O último em baixar ao fosso foi Campbell. A tensão se dissipou com o triunfo de cada aspirante, e enquanto Campbell se preparava para seu turno, outros inclusive intercambiavam brincadeiras.

Tor cravou nele o olhar.

—Preparado?

Campbell assentiu com a expressão severa. Tor fez o sinal, e as lanças começaram a sair. Como se tratava do último homem, os outros guerreiros se acostumaram e os intervalos entre os lançamentos seguiam uma pauta ordenada.

Uma pauta que Tor rompeu.

Quando MacGregor, que estava a sua esquerda, soltou sua lança, Tor jogou a sua ao mesmo tempo.

Tal como tinham feito seus predecessores, Campbell tinha se adaptado a um ritmo. Apanhou com facilidade a lança do MacGregor mas não estava preparado para a de Tor. Sem tempo para colocar seu escudo em posição, inclinou-se a um lado no último momento, apenas o suficiente para evitar que a lança o alcançasse no peito. Entretanto, esta lhe roçou o braço antes de cravar-se no chão, alguns pés atrás dele.

Depois de uns instantes de atordoamento geral, Tor ouviu um suspiro de alívio coletivo a seu redor.

—Foi por um triz - disse MacGregor.

Por toda resposta, MacSorley sacudiu a cabeça com pesar.

Tor não disse nada. Como outros, estava contemplando como a manga da cota do Campbell se manchava de sangue.

Campbell fixou o olhar nele.

—Sinto muito, moço - disse Tor em voz baixa.

Campbell afastou o olhar e fez um gesto afirmativo. Conhecia as regras.

—Recolherei minhas coisas.

Sem acrescentar uma palavra, saiu do buraco ajudando-se com os braços e se encaminhou para a broch. Outros o olharam afastar-se com um silêncio cheio de estupefação.

Foi Seton quem se dirigiu primeiro ao Tor.

—Não posso acreditar que o deixem partir. Necessitamo-lo. Não há outro explorador como ele em toda Escócia… ou no resto do mundo, de fato.

—Não fez a prova —replicou Tor, embora não tinha por que dar explicações.

O rosto de Seton avermelhou de raiva.

—Porque vocês têm feito armadilha.

O estalo de silêncio que seguiu a estas palavras foi ensurdecedor. Os highlanders sabiam algo que aquele cavalheiro inglês ignorava.

—Se eu me regesse pelo código ao que estas referindo, estaria morto pelo que acabas de dizer.

Seton apertou os dentes; precaveu-se de seu engano.

—Na guerra não existem armadilhas, e se querem formar parte desta equipe, mais vale que coloquem isso na cabeça quanto antes. Este guarda tem que estar preparada para tudo, e Campbell confiou demais. Se nos confiarmos, morreremos todos.

MacSorley lhe dirigiu um olhar estranho, e Tor se deu conta de que tinha cometido um engano: ele não formava parte desse «nós».

—O capitão tem razão - disse MacGregor—. Todos nos confiamos. Campbell não deveria ser o único em pagar as conseqüências. Voltarei a me submeter à prova com ele.

Tor o olhou longamente, impressionado pelo profundo vínculo que se forjou entre aqueles dois membros de clãs que antes se enfrentavam. Embora discutissem como inimigos, atrás da retórica agressiva havia uma amizade. Amaldiçoou em seu foro interno o injusto da situação, mas seu tom ao falar não delatou seus pensamentos.

—Campbell teve sua oportunidade. Deveremos nos arrumar sem ele. Boyd e Lamont são exploradores excelentes; que eles ocupem seu lugar. —Percorreu com o olhar o círculo de homens, todos eles furiosos, para que sua mensagem ficasse bem claro—. Não há mais que falar. Tomei minha decisão.

Conscientes de que protestar seria inútil, os homens se dispersaram. Não gostavam da decisão mas a acatavam, com diferentes graus de indignação. Como era de esperar, MacGregor o evitou durante o resto do dia.

Campbell se despediu com solenidade e, quando chegou o momento, Tor o acompanhou em solitário à galera que o levaria de volta a terra firme.

—Levas tudo? —perguntou.

Campbell assentiu.

—Sinto muito, moço. Desejaria que as coisas não tivessem que ser assim.

O rosto do Campbell era uma máscara de pétrea resignação.

—Sim, capitão, compreendo-o.

—Como está o braço?

—Está bem. —Instintivamente, Campbell levou a mão à parte superior do braço, não o esquerdo, que tinha ferido pela lança, a não ser o direito, no que Tor lhe tinha tatuado em segredo um sinal a altas horas da noite anterior.

Embora outros não soubessem a verdade, Campbell era um deles.

—Se alguma vez estiveres em apuros…

Campbell moveu a cabeça afirmativamente.

—Sei o que devo fazer.

Tor o agarrou do braço e lhe deu um apertão firme.

—Bs roimh geill.

—Antes morrer que render-se — respondeu Campbell com ferocidade. Depois de jogar uma última olhada a broch, embarcou de um salto e se fez ao mar.

Tor o observou afastar-se.

«Agora há dez.»


Capítulo 23


Tor levava poucos dias fora quando Christina começou a sentir os efeitos de sua inquietação. Tal como suspeitava, lady Janet não interessava cercar uma amizade com ela. Mostrava-se cortês, mas Christina estava convencida de que os sentimentos que a outra mulher ainda albergava para Tor lhe impediam de ir mais à frente.

Christina não podia culpá-la por isso.

Como dispunha de tempo de sobra, havia-se aficionado a dar longas caminhadas pelo perímetro da muralha. Além de seus passeios matinais com o irmão John, agora saía a caminhar também depois do jantar.

Adorava erguer o olhar para o céu nas noites limpas, embora não fossem muito freqüentes durante o inverno na «ilha da Bruma». As estrelas pareciam tão próximas ali que quase tinha a sensação de que se estendia o braço poderia agarrar uma.

Aquela era uma dessas noites e, apesar de fazia mais frio que de costume - inclusive para janeiro—, ela permaneceu um momento entre as almenas, contemplando primeiro o firmamento e logo o mar. era fascinante e provocador ver as cintilantes ondas negras com cristas de espuma branca rompendo-se contra o escarpado rochoso.

Baixou o olhar para o embarcadouro e ficou imóvel. Percorreu-a um calafrio. O birlinn aterrorizante com o falcão gravado na proa estava atracado ao lado das outras embarcações.

De repente, veio-lhe à memória o dia que tinha visto o Rhuairi no mole. Cabia a possibilidade de que o senescal fosse o espião?

Suas suspeitas aumentaram quando o homem em quem pensava saiu a toda pressa do grande salão, cruzou o pátio e baixou a escada que conduzia ao molhe. Como Christina estava oculta nas sombras, o homem não reparou em sua presença. Ela se inclinou sobre a mureta, mas não alcançou ver o que ocorria debaixo. Um momento depois, não obstante, Rhuairi subiu correndo a escada e voltou sobre seus passos para o interior do salão.

para Christina o coração pulsava com força. Permaneceu aninhada na escuridão um momento mais, sem saber o que fazer. O que acabava de presenciar podia ser um ato totalmente inocente. Mas por que se comportou ele de um modo tão estranho naquele dia e tinha negado ter recebido uma mensagem?

Seu primeiro impulso foi segui-lo, mas recordou a advertência de Tor. Não queria que ela se envolvesse. Se Rhuairi fosse o espião, seria perigoso que a surpreendesse seguindo-o. Christina teria que aguardar que seu marido retornasse para lhe expor suas suspeitas.

Esperava que para então não fosse muito tarde.

*

Lady Christina não se precavera de que alguém a observava. O irmão John MacDougall, sobrinho e xará de John do Lorne, não podia saber de ciência certa o que estava pensando, mas tinha que correr o risco. Seu instinto de sobrevivência tinha prevalecido nos últimos dias e o tinha impulsionado a preparar-se para partir. Se queria averiguar o que trazia MacLeod entre as mãos, devia fazê-lo já, e o mensageiro secreto do senescal lhe tinha dado uma idéia.

Suspeitava fazia um tempo que ela sabia ler, e suas suspeitas se viram confirmadas quando percebeu que alguém tinha corrigido os livros. Não queria implicá-la nesse assunto, mas por outro lado, pensou, estava-lhe fazendo um favor. MacLeod não gostava. Essa besta selvagem e desumana não sabia apreciar a jóia que tinha por esposa. Entretanto, também saltava à vista que sua jovem esposa o idolatrava. Talvez aquilo a obrigaria a vê-lo como era na realidade.

Ou assim esperava.

Arrependia-se de ter permitido que seu tio o metesse nisso: a espionagem teria que ser posta nas mãos de quem tivesse estômago para o engano. Embora, na realidade, não tinha escolha. Igual MacLeod, seu tio não era um homem ao que convinha desafiar.

*

Transcorreram dois dias mais, e Tor não tinha retornado. Enquanto isso, as suspeitas de Christina a corroíam por dentro. No dia anterior, tinha entrado nos aposentos principais com o irmão John, e Rhuairi, sobressaltado, tinha juntado seus papéis e se retirado com um rubor de culpabilidade no rosto. O tabelião também se fixou na estranha conduta do senescal e tinha feito um comentário sobre o nervosismo crescente do Rhuairi.

Tendo bem presente a promessa que tinha feito a seu marido, Christina tinha respondido que não tinha notado nada. Detestava não poder confiar em seu amigo. Embora o irmão John fosse a última pessoa do mundo de quem suspeitaria, Tor tinha advertido que não confiasse em ninguém.

Pensou em mandar a seu marido uma nota, mas não tinha nenhuma prova. Além disso, não poderia enviar sem que Rhuairi se inteirasse. Como não tinha alternativa, aguardou… Até a tarde seguinte.

Como era seu costume depois do jantar, estava caminhando ao redor da muralha quando viu de novo ao Rhuairi sair apressadamente do grande salão. dessa vez, entretanto, em lugar de receber a um mensageiro, subiu a bordo de um birlinn que o esperava e zarpou de volta ao mar aberto, não para a aldeia.

Admirada, Christina se dispunha a entrar no castelo quando o irmão John, com o rosto avermelhado, e esteve a ponto de atropelá-la.

Ele se desculpou, com ar transtornado.

—Por ventura vistes ao senescal?

—Sim - assentiu ela—. Se foi há alguns minutos.

—Cáspita!

Christina sorriu ao comprovar que o irmão John se apropriou de sua expressão favorita.

—Ocorre algo?

Mostrou-lhe uma folha de pergaminho.

—Caiu isso de Rhuairi, e pela pressa que tinha, pareceu-me que talvez fosse algo importante. Mas esta noite devo ir à aldeia a ver o pai Patrick.

—Não sabem do que se trata?

Ele sacudiu a cabeça.

—Não é algo que eu tenha escrito.

A Christina lhe acelerou um pouco o pulso, e todos seus instintos ficaram alerta. Estendeu a mão.

—Não faz falta que postergues sua visita à aldeia - disse sem controlar de todo o tom agudo de sua voz—. Eu o entregarei ao Rhuairi quando voltar.

O tabelião titubeou.

—Estas segura? Provavelmente o necessitará assim que retorne, e talvez seja muito tarde.

—Não me importa - respondeu ela—. Não estou cansada.

—Espero que não se trate de nada grave, embora o certo é que Rhuairi parecia um pouco mais nervoso que de costume. —Um leve sorriso se desenhou nos lábios do jovem tabelião, e toda a vacilação que sentia se esfumou. Deu-lhe o pergaminho e acrescentou—: Por outra parte, tinha prometido ao pai Patrick, e suponho que isto estará em suas mãos.

Christina, que sabia a que se referia, alegrava-se de que ele não alcançasse a ver o rubor de culpabilidade que lhe tingia as bochechas. Como estivera esperando alguma indicação de Tor, ainda não tinha contado a ninguém que sabia ler. Conhecia o modo em que funcionava a mente de seu marido, por isso imaginava que ele considerava mais seguro guardar essa informação até que descobrisse ao espião.

—Pergunto-me o que acontece ao Rhuairi - disse o irmão John, como ausente—. Ultimamente tem uma atitude tão circunspeta…

—Estou segura de que não é nada importante - mentiu Christina, tentando não sentir-se culpada. Esperava que o irmão John a perdoasse, mas não podia arriscar-se a expressar suas suspeitas em voz alta.

—Obrigado, milady. E agora, se não se importar, devo partir.

—Veremo-nos pela manhã — disse ela, e o observou cruzar a porta que dava ao mar e descer para o embarcadouro.

Resistindo o impulso de abrir a nota ali mesmo, a guardou entre as dobras de sua capa e se dirigiu rapidamente à intimidade de seu quarto. Ali, à luz das velas, desdobrou com cuidado a pequena folha de pergaminho.

O coração lhe pulsava a toda velocidade. Aquela podia ser a prova que esteve procurando. Sentiu uma pontada de culpabilidade, mas a sacudiu em seguida. Se a mensagem não fosse importante, Tor nunca se inteiraria. Mas se era, daria-lhe obrigado por isso. Podia lhe proibir que se misturasse, raciocinou, mas não que observasse o que ocorria diante de seu nariz.

Reconheceu imediatamente a tosca letra do Rhuairi, embora a nota não estivesse assinada. Era breve e concisa, mas fez que lhe gelasse o sangue com uma gélida onda de pavor. Tinha encontrado sua prova, e era muito pior do que tinha acreditado.

«Paradeiro do MacLeod confirmado. Tragam reforços. Atacaremos a meia-noite.»

Deus santo, que horas era? sete? oito? Tinha o coração desbocado. O que podia fazer? Tinha que encontrar uma maneira de acautelá-lo, antes que fosse muito tarde.

*

Tor estava sentado em uma pedra grande e plaina frente à entrada da broch, com uma jarra de cuirm na mão, contemplando os últimos raios rosados do sol extinguirem-se depois do horizonte.

Embora Campbell se fora fizesse quase uma semana, a equipe ainda não se recuperara da perda de um dos seus. Ele sabia que devia estar agradado por isso, pois era uma prova de que o treinamento tinha sido um êxito, mas não estava. A marcha de um membro da equipe, independentemente do motivo, ardia-lhe.

Resmungou uma blasfêmia e tomou um gole longo da forte cerveja antes de deixar a taça vazia na pedra com um golpe.

—Ai - disse MacSorley, que tinha saído da broch para sentar-se junto a ele—. Está um pouco amarga a cerveja, ou é bem o sabor do remorso?

—Não sigas por aí - lhe advertiu Tor—. Não estou de humor para sua língua afiada.

MacSorley bebeu um gole de sua própria taça. Ficaram sentados em silencio durante um momento antes que ele falasse de novo.

—Eles perdoarão. Dêem-lhe tempo.

Depois da partida do Campbell, a brecha entre o Tor e os homens se alargou. Uma vez mais, voltara a estar firmemente instalado no papel de líder, o homem obrigado a tomar decisões duras e impopulares. Formava parte da equipe, mas estava à margem. Entretanto, não era isso o que lhe incomodava. Quão único queria era acabar de uma vez por todas com esse maldito assunto.

—ides contar logo? —perguntou-lhe MacSorley em voz baixa—. Somente restam duas semanas.

A mandíbula de Tor se esticou. dessa vez o outro homem tinha dado no alvo.

—Não, ainda não.

Todo rastro de jovialidade desapareceu do rosto do MacSorley, que se endureceu com uma severa expressão de raiva.

—antes de zarpar, merecem saber que não ides os capitanear quando tiver terminado aqui.

Suas palavras se aproximavam muito ao que pensava Tor, mas não queria as ouvir nesse momento. Olhou ao MacSorley entreabrindo os olhos de forma ameaçadora.

—Tome cuidado, escandinavo. Ainda não estais ao mando.

MacSorley não se intimidou ante sua advertência, embora Tor tampouco esperasse que o fizesse. O viking era quase tão temerário como loquaz.

—Sabes no que acredito? —Tor fingiu não tê-lo ouvido, com o olhar fixo na fileira de árvores, no outro lado do claro—. Acredito que não queres dizer porque desejas capitaneá-los, e lhe chateia a má maneira se sentir incapaz de fazê-lo. Mas cedo ou tarde terá que descer do burro, MacLeod. —Não disse «capitão». A Tor não aconteceu inadvertido o desprezo—. A guerra é iminente, e um dia destes, certamente antes do que pensa, teras que escolher. Esta equipe precisa de ti - disse com suavidade—. A Escócia lhe necessita.

Ao diabo com Escócia; seu dever era para com seu clã.

—Falam como o condenado de seu primo.

—Angus Og é um homem sábio. Pense. —Dito isto, deixou-o por fim em paz.

Que MacSorley fosse ao Hades! Tor não necessitava sua opinião. Fazia sua própria análise, e muitas vezes. Embora MacSorley estivesse certo, nada tinha mudado. Seguia sendo injustificável implicar a seu clã em uma guerra que não supunha uma ameaça para eles.

Duas semanas mais, pensou. Duas semanas mais, e teria completado com seu compromisso. O risco de que o descobrissem - e a traição que cometia ao adestrar homens para que lutassem pelo Bruce— ficaria para trás. Teria respeitado sua parte do trato ao treinar aos homens e teria conseguido tirar de cima ao Nicolson.

As águas voltariam para seu leito, por mais que fosse uma tortura para ele pensar que seus homens lutariam sem ele: ocuparia de novo uma posição de neutralidade na guerra da Escócia e no conflito entre o MacDougall e MacDonald.

Por mais que ele quisesse que as coisas fossem de outra maneira, suas obrigações para com seu clã eram sempre em primeiro.

*

Christina sabia que aquela era a oportunidade perfeita que esteve esperando para fazer algo importante.

Lembrando-se de quão categórico tinha sido Tor em relação à possibilidade de que ela saísse do castelo, foi em busca de lady Janet ou Colyne —pois lhe constava que Tor confiava em ambos—, mas não encontrou a nenhum dos dois. Como não se atrevia a envolver a ninguém mais, sabia que teria que lidar com ele por si mesmo. Não estava segura de que se encontrasse na broch, mas a julgar pela mensagem, parecia provável.

Foi mais fácil do que esperava. A única dificuldade surgiu quando tentou embarcar em um birlinn com destino à aldeia. O guarda do molhe se negou em um princípio a deixá-la partir. Ela não tinha a menor ideia do que fazer até que recordou a promessa de seu marido. Pelo visto, tinha mantido sua palavra de informar a seus homens em relação à condição que tinha imposto para casar-se com ele, já que, quando recordou ao guarda que devia haver um birlinn ao seu dispor para quando desejasse ir, ele cedeu.

Deixou que um punhado de guardas a acompanhasse à igreja, mas a seguir insistiu em que podia continuar sozinha a partir de ali. Uma vez que partiram, ela retornou ao bosque, voltando sobre os passos que a tinham levado até a broch a primeira vez. Estava escuro e não se atreveu a levar consigo uma tocha, mas por sorte a lua estava quase cheia e seu brilho era bastante intenso para atravessar o tênue manto de névoa que turvava o ar fresco da noite. Estava muito preocupada para ter medo; seu maior temor era não lembrar-se de como chegar ali.

Caminhava devagar e com determinação, mantendo a cabeça encurvada para ver por onde pisava. O chão era irregular, por isso tropeçou mais de uma vez. Mas já quase estava ali. Ao cabo de poucos minutos se encontraria perto do lugar do bosque do que tinha espiado a Tor e a seus homens.

Deteve-se e deu uma olhada para trás para assegurar-se de que ninguém a seguia. Não viu mais que as silhuetas escuras e ameaçadoras das árvores. Mesmo assim, não podia desterrar a sensação de que alguém a observava. Tudo estava totalmente tranqüilo…, muito tranqüilo.

De repente, viu-se imobilizada contra um peito revestido de aço e notou o fio inconfundivelmente frio de uma adaga contra o pescoço.

—Seu nome, moça - lhe grunhiu uma voz ao ouvido.

Essa vez não se tratava de seu marido.

—Lady Christina - gaguejou—. A esposa do chefe dos MacLeod.

Ele soltou um juramento, obrigou-a a dar volta e lhe tirou o capuz com brutalidade.

Christina se encontrava frente ao olhar furioso de sir Alexander Seton. Aproveitando-se de sua surpresa, dedicou-lhe uma reverência e disse: —Sir Alex, passou muito tempo.

—Milady. —inclinou-se automaticamente, como correspondia a um cavalheiro galante, fossem quais fossem as circunstâncias—. O que fazes aqui fora?

—Um dos homens de meu marido o traiu e interceptei uma mensagem. Planejam atacar esta noite, assim tinha que lhe avisar.

Ele endureceu sua expressão.

—Estás segura?

Christina assentiu.

Sir Alex a olhou com curiosidade.

—Espero que estejas certa.

Assim que tinha pronunciado estas sinistras palavras, um objeto alongado e metálico - um utensílio de lavoura, possivelmente?— emergiu das sombras, atrás de sua cabeça, e desceu com violência sobre o elmo de aço. Com um gemido de dor, sir Alex se desabou aos pés de Christina, reduzido a um vulto coberto de malha.

Ela espiou pela extremidade do olho algo que se movia, e uma figura com uma capa negra apareceu das trevas. Christina abriu a boca para gritar, mas era muito tarde. Um objeto contundente lhe golpeou a nuca. Teve a muito estranha impressão de ouvir alguém murmurar « sinto muito » antes que a escuridão a envolvesse.

Os sons não muito aprazíveis de uma bofetada e o exabrupto «maldito néscio inglês» a fizeram voltar a si. Em um princípio pareceu que a voz se dirigia a ela, mas ao abrir os olhos viu um guerreiro gigantesco e de aspecto aterrorizante que, inclinado sobre sir Alex, tentava despertá-lo.

Ela o tinha visto antes. Moreno, de sobrancelhas grossas e um rosto mais agreste que arrumado, parecia um homem que tinha participado de muitas brigas de tabernas a altas horas da noite. Então o recordou: era o guerreiro que tinha levantado aquela pedra enorme como se não pesasse virtualmente nada.

Deve ter deixado escapar um som, porque o guerreiro se afastou imediatamente de sir Alex e se aproximou dela.

—Está bem, moça?

—Isso acredito. —Ajudou-a a levantar-se. Depois de um momento de enjôo, a cabeça limpou em seguida. Ao levar mãos à nuca, apalpou um pequeno galo, mas por sorte não havia sangue. Sentia sobre si o olhar penetrante do homem—. E sir Alex? Ele encontra-se bem? —perguntou.

O guerreiro entrecerrou os olhos.

—Conhece o inglês?

Ela caiu em si de que não lhe havia dito quem era.

—Sou lady Christina Fraser.

Se isto o surpreendeu, dissimulou-o muito bem.

—A mulher do MacLeod?

Ela assentiu.

—E vocês são…?

Depois de titubear por um instante, ele respondeu:

—Incursionador. —Pelo visto, não queria lhe revelar seu nome nem se incomodou em lhe explicar por que.

—São da zona fronteiriça? —Ao advertir uma faísca de desconcerto em seus olhos, Christina supôs que tinha deduzido acertadamente a origem do sotaque.

—O que fazem vocês aqui? —inquiriu ele, trocando de tema—. O que ocorreu?

Recordou tudo de repente e se levantou de um salto, presa do pânico. Quanto tempo esteve inconsciente?

—Que horas são? —perguntou freneticamente. Antes que o homem pudesse responder, ela o agarrou pela parte dianteira de sua cota de malha. Ele não se moveu um centímetro. O que acontecia com esses guerreiros das Highlands? Por que tinham todos corpos do tamanho de montanhas?

—Explicarei-lhe isso tudo, mas não fica tempo… Deve me levar até meu marido.

Embora isso não parecesse fazer muita graça ao homem, seu tom o convenceu da urgência da situação.

—Estás em condições de andar?

Ela assentiu, e ele a ajudou a ficar de pé. Sir Alex era um homem corpulento, mas aquele «Incursionador» o levantou e o jogou ao ombro como um saco de farinha, sem muita delicadeza, por outra parte. Dava a impressão de que não sentia afeto pelo jovem cavalheiro. Sem dizer uma palavra mais, guiou-a através das árvores.

Quando saíram na clareira que se estendia ao pé da broch, gritou como um mocho, o que evidentemente era algum tipo de sinal. E apesar da noite estava avançada, havia um punhado de homens exercitando-se com armas diversas: espadas e tochas, pareceu a ela. Uma figura estava de pé ante a entrada, e pelas dimensões de sua sombra ela soube que era seu marido. Invadiu-a um grande alívio ao saber que tinha chegado a tempo. Tinha conseguido.

Tor foi a seu encontro e ela arrancou a correr para ele. Outros se juntaram ao redor para averiguar o que estava passando.

—Christina? —perguntou ele, com a voz aguda pela incredulidade—. O que ocorreu? O que faz aqui? Acreditava te ter advertido que não voltasse nunca para este lugar.

Ela ouviu a chispada de ira e se jogou em seus braços antes que estalasse. Ele a estreitou contra si de forma mecânica, mas afastou o olhar dela durante o tempo suficiente para ver o homenzarrão atirar a sir Alex a seus pés. Christina respirou aliviada ao advertir que o jovem cavalheiro se movia.

Tor soltou um juramento e a agarrou pelos ombros, olhando a de marco em marco.

—Têm-lhe feito mal?

Ela negou com a cabeça.

—Tenho um galo na cabeça, isso é tudo. Este homem, Incursionador, encontrou-nos. —Tor arqueou uma sobrancelha com expressão inquisitiva, mas o musculoso guerreiro se limitou a encolher os ombros como dando a entender que já explicaria mais tarde.

—Quem te fez isto? —A voz de Tor soou mais fria e letal do que ela a tinha ouvido nunca.

—Não sei, mas tem que me escutar. Não fica muito tempo. —devido a sua ânsia por contar-lhe o que saiu de sua boca foi uma corrente de palavras confusas e embaralhadas. Ao precaver-se da crescente impaciência de Tor, simplesmente lhe entregou a nota—. É a letra do Rhuairi - disse, sem saber até que ponto seria inteligível—. Ele sabe que está aqui e planeja lançar um ataque nesta noite.

—Parece a letra do Rhuairi, mas não tem pés nem cabeça.

Christina não alcançou a perguntar por que. Tor chamou a alguém em voz muito alta, e em pouco momento dois homens saíram da broch. Ela empalideceu ao reconhecer ao Rhuairi e ao Colyne.

Se Rhuairi era o espião, que fazia ali? Deveria ter posto terra por meio fazia tempo.

Esteve tão convencida de que tinha descoberto a verdade que inclusive quando surgiu a possibilidade de que não fosse assim, custou-lhe assimilá-lo.

Rhuairi se aproximou para ler a nota. Deu uma olhada rápida antes de devolver ao Tor.

—É uma boa imitação de minha letra, mas eu não escrevi isto.

Embora Tor falasse em um tom enganosamente sereno, Christina percebia a tormenta que estalava.

—Como diz que conseguiste esta nota?

Contou sua conversa com o irmão John.

—E disse que iria à aldeia? —perguntou Tor.

Christina assentiu, e ele proferiu uma maldição. O olhar que lhe lançou não destilava gratidão, a não ser escárnio, como se não pudesse acreditar que ela fosse tão estúpida.

—Quando? —inquiriu, sacudindo-a pelos ombros—. Quanto tempo estivestes inconsciente?

Ela abriu muito os olhos, totalmente desconcertada ante aquela reação tão diferente da que tinha imaginado.

—Não… não sei —gaguejou—. Uma hora, talvez mais.

Tor se voltou para o Incursionador em busca de uma confirmação.

—Eu tinha saído de ronda pelo este, e Seton pelo oeste. Como o inglês não respondeu a minha chamada, fui em sua busca. Pode ter sido uma hora, possivelmente mais.

—E não lhe ocorreu ir à caça de quem fez isso, seja quem é?

Incursionador apertou os lábios, que formaram uma linha tensa.

—Pareceu-me mais importante não deixar sozinha à moça e lhe trazer aqui.

Apesar da evidência de que a tinham enganado era evidente, Christina se negava a acreditar.

Tinha que haver alguma explicação.

—Equivoca-te a respeito ao irmão John. Não pode ter sido ele. —«Ele não me faria uma coisa assim», pensou—. Não disse a ele que sei ler.

—Está totalmente segura disso? —O olhar que lhe jogou seu marido teria podido cortar um diamante—. Reza por que esteja certa. Não tem idéia do que pode ter feito.

Sem lhe dirigir uma palavra mais, ordenou a dois dos homens que fossem ao povoado através do bosque para ver o que averiguavam, e a outros que preparassem o birlinn para navegar de retorno ao Dunvegan.

Christina estava petrificada de espanto. Tinha conduzido ao espião diretamente até seu marido? «Sinto muito.» A voz na escuridão de repente cobrou sentido. Ficou com vontade de tapar as orelhas com as mãos para não ouvir a verdade. «Deus santo, tem que ser de um engano. Por favor, que seja um engano.»

*

Tor aguardava com ar sério a que Lamont e MacLean retornassem do povoado. Mas já sabia o que tinha acontecido. O tabelião tinha seguido a Christina pelo bosque e se partira fazia um bom momento. Embora estivesse escuro, Tor tinha que supor que John tinha visto o suficiente para pôr em perigo a missão de seus homens.

A intromissão de Christina tinha posto em grave risco tanto a seu clã como a guarda secreta de Bruce. Vinte anos de guerra e esforços por restabelecer seu clã, e agora a vida de seus membros e a sua própria pendiam de um fio. Se o tabelião o relacionava com o Bruce e o rei Eduardo conseguia capturá-lo, sua vida não valeria nada. Mas ele não seria a única vítima. Seu clã cairia com ele, e se o tabelião tinha reconhecido a alguns dos integrantes da guarda secreta de Bruce, também teriam um alvo sobre a cabeça.

Como tinha podido permitir que ocorresse algo assim? Isso era impróprio dele. Tinha querido acreditar que ele e Christina eram diferentes. Acaso não tinha aprendido nada com a morte de seus pais?

Isto era exatamente o que queria evitar.

Era um maldito idiota. Pensava que Christina tinha entendido. Tinha sido um engano confiar nela. Ao tentar agradá-la, tinha falhado com sua guarda e tinha deixado que ela soubesse muito. Tinha permitido que uma mulher se interpusesse entre ele e seu dever para com seu clã.

Estava tão furioso que não se atrevia a lhe falar ou a olhá-la sequer. Entretanto, era perfeitamente consciente de que estava ali, sentada no assoalho, com os olhos exageradamente abertos e pálida. Fez-se forte e não deixou que o tremor de seus lábios ou as ligeiras sacudidas de seus ombros o comovessem. Nunca voltaria a comover-se por ela.

O pulso martelava nos ouvidos, por isso mal ouviu os homens quando retornaram e corroboraram o que ele já sabia. O tabelião tinha desaparecido. Ninguém o tinha visto partir, mas Tor não podia evitar supor que alguém o tinha ajudado a fugir.

Tinha a mandíbula apertada com tal força que notava que as veias do pescoço lhe tinham inchado. Ordenou com voz ensurdecedora que aparelhassem os navios. Tinha que encontrar ao traidor antes que transmitisse a informação que tinha averiguado. O fracasso não era uma opção.

Os homens limparam os aposentos principais. Tor repartiu instruções de último momento a Colyne e a Murdoch a fim de que preparassem o castelo para a guerra e se levantou para partir. O aposento ficou vazio salvo por sua esposa.

Ela deveria tê-lo deixado partir sem mais, mas nunca sabia quando deter-se. Agarrou-o pelo braço, e ele sentiu que a leve pressão de sua mão lhe queimava como um ferro em vermelho vivo, na pele, no peito. Entretanto, precaver-se de que sua debilidade por ela aumentara não fez a não ser avivar sua ira.

—Sinto muito - sussurrou Christina, retorcendo as mãos e olhando-o com olhos grandes e suplicantes—. Somente tentava ajudar.

Tor permaneceu totalmente imóvel, face à voragem desatada em seu interior. Seu rosto não demonstrava nem um traço de emoção. Não deixaria que seus rogos fizessem uma fresta nele. dessa vez não. Nunca voltaria a permitir que sua esposa ou ninguém interferisse em seu dever.

—Ajudar? —Soltou uma gargalhada para magoar—. Ao que parece é difícil pra ti compreender, mas não quero nem necessito sua ajuda. É minha esposa, Por Deus, não um de meus homens. Adverti-a que não te entremetesse. Pedi-te que nunca, sob nenhuma circunstância, aproximasse-te de novo ao broch. Sua «ajuda» pôs em grave perigo a meu clã, aos homens que estive treinando e a minha pessoa. Se não encontrarmos o tabelião, o rei Eduardo porá a minha cabeça um preço bastante alto para que inclusive meus aliados mais leais se voltem contra mim. Não tem idéia do que tem feito.

Embora Christina parecesse a ponto de desmoronar-se, ficou rígida para ouvir essas palavras.

—É verdade, dado que nunca te me dignaste dizer nada.

Tor se pugnou por manter o controle. Somente ela ousaria fazer recriminações depois do que acabava de ocorrer. Seu olhar se escureceu cortante como seu resistente tom de voz.

—E por uma boa razão, considerando o que tem feito. É justamente por isso que não queria que te implicasse. Deveria ter sido mais ardiloso e não ter revelado nada deste assunto.

A ousadia temporária de Christina veio abaixo quando começou a cair na conta da gravidade de seus atos.

—Tem todo direito de estar zangado, mas acreditava que corria perigo. Jamais teria imaginado que o irmão John tramasse algo assim. Tomei todas as precauções…

—Que obviamente não foram suficientes.

Os olhos de Christina se arrasaram em lágrimas. Inclinou-se para apoiar-se em Tor, mas ele ficou perfeitamente erguido. Tinha que fazer um esforço para não mover-se, para não sucumbir ao desejo urgente de estreitá-la entre seus braços e sacudi-la… ou beijá-la até que se fosse a dor que lhe oprimia o peito. Ele não era como os outros, maldita seja; supunha que devia ser insensível. Não era disso do que se apreciava? Não era isso o que o convertia em um grande líder e guerreiro? Apesar de tudo, o pranto de Christina corroía sua férrea determinação como o ácido.

—Juro que não voltará a ocorrer - murmurou ela.

Tor tinha que deixar bem claro como seriam exatamente as coisas a partir desse momento. Fixou nela um olhar duro e implacável.

—É obvio que não voltará a ocorrer, pois jamais te contarei uma maldita coisa mais.

Ela se separou dele, como se tivesse gritado, embora o havia dito com uma tranqüilidade glacial.

—Está zangado - sussurrou ela—. Não fala sério. —Dava a impressão de estar tentando convencer-se a si mesmo.

O olhar que lhe lançou teria gelado a lava do inferno.

—Nunca na minha vida falei mais a sério. —Tinha cometido um engano, mas estava resolvido a não repeti-lo. Era tão responsável como ela do acontecido. Tinha permitido que ela o convertesse em parte de sua pequena fantasia. Mas isso acabou—. Já te disse exatamente o que espero de ti: que fiscalize o castelo, que dê a luz a meus filhos e que deixe todo o resto em minhas mãos. Não espere nada mais que isso.

Christina estremeceu, profundamente ferida. Quem era esse homem desumano e inflexível? Nunca tinha falado dessa maneira; nem sequer na primeira ocasião em que o tinha visto tinha parecido tão frio e distante. Tão isento compaixão.

«Não fala sério — disse —. Está zangado.» Entretanto, a sombra de uma dúvida aninhou em seu coração.

Esforçou-se por lhe sustentar o olhar, decidida a não deixar-se intimidar. Tor não devia falar assim. Ela tinha errado, mas por um bom motivo, e suas intenções eram puras.

—Mereço sua ira, mas não seu desprezo. Não trabalhei de forma precipitada, nem era meu desejo que isto acontecesse. Sou vítima de um engano. Tem que saber que eu jamais faria algo para te prejudicar. —Fez uma pausa, antes de acrescentar em voz baixa—Amo-te.

Aguardou que Tor reagisse a sua declaração sincera, mas ele guardou um silêncio sepulcral, displicente, indiferente, magnânimo como um rei. O único indício de que a tinha ouvido era uma ligeira palidez em torno da boca.

Christina não esperava que ele correspondesse a seus sentimentos… ou sim?

Escapou-lhe uma lágrima. Custava-lhe falar pelo nó que tinha na garganta. Por que se estava comportando assim? Comportava-se dessa forma com todos outros, mas não com ela. Era o mesmo homem a quem tinha lido relatos na cama?

—Não faça isto. Não me separe de seu lado. Não mereço que me trate como se não significasse nada para ti. —Tentou tragar saliva, mas lhe doía—. Você não é assim.

Ele a olhou aos olhos, rebatendo-a em silêncio. Se ela tivesse percebido ira em sua expressão, teria mantido a esperança, mas no olhar frio e firme de seus olhos azul celeste não havia o menor indício de emoção. Christina retrocedeu um passo, como se o estivesse vendo pela primeira vez.

—Este é meu verdadeiro eu. Não sou seu condenado Lancelot. Isto não é uma fantasia romântica, e nada do que faça vai mudar isso, por muito boas que sejam suas intenções.

Ela soltou um grito afogado, como se Tor acabasse de lhe cravar uma adaga no coração. Seu rosto ficou lívido. Tor tinha arrojado luz sobre seus sonhos mais profundos e escuros para depois pisoteá-los. Tão transparente era Christina? Via ele suas tentativas por agradá-lo como um patética tentativa de conquistar seu coração? Encolheu-se de vergonha, pensando que talvez tivesse razão.

—Não sei a que te refere - disse por orgulho.

«Por favor, que não seja pena isso que percebo em seus olhos.»

—Crie que não me dei conta de como me olha, que não sei o que quer de mim? Mas não posso te dar o que desejas. É jovem, e tem a cabeça cheia de fantasias sobre cavalheiros e aventuras românticas. Sou um valente chefe das Highlands que só deve lealdade a seu clã.

—Então não há lugar para mim?

—Não na forma em que você deseja.

—As coisas não têm que ser assim.

Tor não moveu um só músculo do rosto.

—Sim, têm que ser assim.

—Você quer que seja - disse ela com raiva—. Quer estar sozinho para não sofrer se perder a alguém e para não ter que depender de ninguém. Começo a acreditar o que se diz de ti. Mas não é invencível. É um homem. As pessoas necessitam umas das outras, embora dêem passos em falso. Seu pai se equivocou ao te inculcar a idéia contrária. —Ao ver que tremia a mandíbula de Tor se perguntou se não tinha ido muito longe.

—Não sabe do que falas - acusou ele—. Estou seguro de que isto é um engano.

O coração deu um tombo a Christina quando compreendeu a que se referia. O engano era seu matrimônio.

Não dizia seriamente. Sem dúvida tinha tido algum desejo de casar-se com ela… ou não? Ninguém o tinha obrigado a nada. Por muito que lhe doesse, tinha que saber a verdade.

—por que te casou comigo?

Ele se voltou, e por sua atitude vacilante Christina soube que não queria responder a sua pergunta.

Sentia tal opressão no peito que mal podia respirar.

—Que importância tem isso agora? —inquiriu mordaz—. Para que manter as ilusões entre nós?

Tor lhe lançou um olhar severo, pois não tinha gostado de seu sarcasmo.

—Tu eras parte de meu acordo com o MacDonald. Casar-me contigo foi o preço que paguei em troca da paz. Embora, depois do que ocorreu hoje, é possível que perdi isso.

Christina sentiu que o coração lhe rompia em um milhão de pedacinhos que se dispersaram no chão, a seus pés.

Umas lágrimas grossas e quentes lhe escorreram pelas bochechas.

—E treinar esses homens também formava parte do trato?

Áspero e impassível, contou-lhe de maneira sucinta o que ela desejava saber desde o começo, lhe deixando meridianamente claro o que tinha posto em perigo com seus atos. Ela o escutou enquanto explicava os termos de seu acordo com o MacDonald, sua negativa inicial a adestrar aos homens e a oferta posterior de MacDonald que ele não tinha podido rechaçar.

«Nunca teve desejo de casar-se comigo.» O que o tinha feito mudar de idéia não tinha sido seu sentido da honra nem que albergasse sentimentos especiais para ela, a não ser seu dever para com seu clã. E ela tinha feito quão único Tor jamais poderia lhe perdoar: interpor-se entre seu clã e ele. Sentiu náuseas ao compreender a ameaça que tinha atraído sobre ele sem querer. Por culpa dela, a segurança do clã e todo aquilo pelo que Tor tinha lutado desde a morte de seus pais estavam em perigo.

Nunca voltaria a confiar nela. Ela sabia o muito que lhe havia custado baixar a guarda só um pouco, e que tomaria acontecido como um fracasso pessoal. Christina tornava realidade seu pior temor: que o fato de estreitar laços com alguém prejudicasse a seu clã. A promessa das últimas semanas se desvaneceu. Tor tinha se afastado dela, desta vez para sempre.

—E agora? —perguntou Christina—. Sente o mesmo que antes?

Pareceu-lhe que a determinação em seu olhar fraquejava por uns instantes, mas não foi mais que um efeito da luz das velas.

—Que importância tem isso? É minha esposa.

Foi o golpe de graça. As fantasias de Christina lhe tinham impedido de ver a realidade. Pela primeira vez, viu as coisas com claridade. Tor tinha razão: nunca poderia lhe dar o que ela queria. Sempre haveria uma parte dele que lhe estaria vedada. Embora sentisse algo por ela, jamais o reconheceria. Não a amava; nunca a amaria. Ela tinha se enganado, inventando desculpas, convencendo-se de que, debaixo aquela aparência fria, ele a queria, de que somente mantinha essa aparência para proteger-se, de que simplesmente não sabia como demonstrar seus sentimentos.

Mas se equivocava. Tentar lhe arrancar uma amostra de emoção era como tentar tirar água de uma pedra espremendo-a. Ela não pretendia encher uma taça, somente conseguir umas gotas. Mas ele nem sequer era capaz de lhe oferecer isso.

E Christina se fartou de tentar. Entregou-se a ele por completo, mas isso não tinha sido suficiente. Nunca seria.

Enxugou as lágrimas dos olhos. Assim seriam as coisas entre eles. Sempre. Nunca seria nada especial. Essa sensação não tinha sido nada a não ser fruto de sua imaginação. Tor não era seu Lancelot, a não ser um desumano chefe das Highlands que devia a seu clã.

Ouviram golpes na porta.

—Estamos preparados, capitão - disse MacSorley.

Tor se dirigiu à porta.

—Sinto muito - disse ela por última vez.

—Muito tarde para desculpar-se- replicou ele, impávido—. Se quer ajudar, reza para que encontre seu amigo antes que faça cair a ira de Eduardo sobre todos nós.

A opressão no peito de Christina aumentou enquanto o via partir, tentando gravar cada detalhe na memória, sabendo em seu coração o que sua cabeça ainda ignorava.

—Adeus… —sussurrou, ao tempo que a porta se fechava atrás dele.

Percebeu de que o havia dito com toda sinceridade. Talvez fosse inevitável. Um matrimônio apoiado no engano estava condenado desde o começo. Mas não podia continuar assim, fingindo, dando-se contra um muro de pedra. Talvez ele tivesse suavizado as barreiras entre eles, mas seguiam estando ali; sempre estariam. Sempre viveriam em mundos separados. Ela não se conformava com isso.

Queria —não, merecia— algo melhor. Tor não era o único que tinha direito a ser feliz.

O irônico era que lhe tinha aberto os olhos. Christina já não era a jovem assustada que se encolhia quando seu pai lhe levantava a mão, nem o cachorrinho amoroso que se contentava com qualquer sobra de carinho que seu marido se dignasse lhe jogar. Tinha muito que oferecer. Sabia ler e escrever, fazer cálculos mentais complexos, acondicionar um torreão escuro para convertê-lo em um lar e, sobre tudo, amar com toda sua alma. Se ele era incapaz de ver isso, ele perdia.

O pai Stephen tinha razão. Ela merecia a alguém que soubesse apreciar suas qualidades e querê-la por isso, que não lhe desse as costas cada vez que cometesse um erro. Queria ser importante para alguém. Talvez fosse uma aspiração pouco realista, mas a alternativa era muito pior. A vida que Tor podia lhe dar não só lhe romperia o coração, mas sim lhe quebraria o espírito. Ela podia viver com o coração quebrado, mas não sem sua alma.

Respirou fundo e secou as lágrimas dos olhos. Somente podia fazer uma coisa.


Capítulo 24


Christina, aninhada no birlinn, observava os ameaçadores muros de pedra do castelo do Dunvegan esfumar-se na bruma da manhã, e seu coração quebrado se desmoronou um pouco mais. Ao longo dos últimos meses, tinha chegado a sentir apego pelo velho montão de pedras que formavam o imponente castelo e pelos taciturnos ocupantes de seu grande salão. Ficaria terrivelmente com saudades.

Também sentiria muita falta de Tor. Seus olhos, que acreditava incapazes de derramar mais lágrimas, encheram-se de novo, mas ela os enxugou com determinação. Tinha tomado sua decisão e teria que ater-se a todas as conseqüências.

Acabou. Ia deixá-lo. Abandonar ao homem que amava. Ia obrigar a seu marido a respeitar sua promessa de deixá-la retirar-se ao convento de Iona, uma promessa que ela sabia que Tor não acreditava jamais que teria que cumprir. Detestava fugir desse modo, mas não estava segura de que ele mantivesse sua palavra desse-lhe oportunidade de opor-se.

Quando tinha descoberto que já havia um birlinn preparado para navegar rumo à ilha do Mull, Christina tinha pedido à tripulação que a levasse primeiro a Iona. Embora isso os obrigasse a dar uma pequena volta, era mais simples que aparelhar outra embarcação. Christina, que não tinha tido tempo de dispor de seus pertences para a partida, tinha embarcado com pouco mais que uma muda de roupa e alguns mimos pessoais. Mhairi recolheria o resto de suas coisas e as mandaria a Iona antes de retornar junto a sua família no Touchfraser. Não levou consigo seu prezado livro. O relato não fazia mais que infundir a jovem falsas esperanças e sonhos impossíveis.

Havia dito aos guardas que a acompanhavam que ia visitar sua irmã, mas sabia que não tinham acreditado de tudo. Ao contrário deles, não tinha um elmo de aço que ocultasse seus olhos inchados e seu rosto manchado de lágrimas.

Foi uma travessia rude, pois o mar estava agitado. Christina estava sentada sozinha, perto da proa, coberta com uma capa e peles, sentindo-se mais desventurada que nunca, e não pelo vento ou o frio.

Em mais de uma ocasião esteve a ponto de indicar aos guardas que virassem de volta, mas afugentava suas dúvidas sobre a conveniência de partir repetindo em seu foro interno que romper o vínculo entre eles seria o melhor para Tor também. O matrimônio não desejado por ele so lhe tinha ocasionado problemas. Talvez sua partida lhe ajudasse a sair do embrulho em que ela o tinha metido.

Não obstante, saber que sua decisão era a correta não fazia que fosse mais fácil. Uma parte dela desejava ser capaz de contentar-se com meia vida, mas Christina sabia que o que ele podia lhe oferecer nunca a satisfaria e que jamais deixaria de pressioná-lo para que lhe brindasse com algo mais. Ele, por sua parte, trataria-a cada vez mais com maior frieza até que ela acabasse por odiá-lo… e por odiar-se a si mesma.

Não, era melhor assim. Sua infelicidade e desespero desapareceriam com o tempo. Embora o certo fosse que, no momento, longe de diminuir, pioravam conforme avançava o dia e o navio se afastava do lugar mais parecido a um lar que ela tinha conhecido.

Levavam navegando algumas horas, percorrendo o trajeto inverso ao que ela tinha feito há apenas uns meses. Reconheceu alguns das ilhotas que vira durante a viagem para o norte: Rum, Eigg e Muck. Embora o céu estivesse nublado e cinza, a bruma limpou o suficiente para que de quando em quando vislumbrasse a costa escocesa a sua esquerda. Logo se encontrariam entre o Coll e Mull, e justo ao sul estaria a ilha Iona. Se o vento não amainasse, ela logo estaria instalada a salvo entre as paredes do famoso convento junto com Beatrix. Desfrutaria da segurança que procurava, mas sem as ilusões.

Tão absorta estava em seu sofrimento que demorou um momento em ver que algo ia mau. As ordens enérgicas do Murdoch, o escudeiro de Tor e capitão de sua guarda, ressonavam de forma cada vez mais premente.

—O que ocorre? —perguntou-lhe Christina ao jovem guerreiro que ia sentado no banco situado em frente ao dela.

—Estou seguro de que não é nada, milady. —Assinalou para trás, e ela alcançou a divisar as velas de dois navios ao longe—. Essas galeras estiveram nos seguindo perto de uma hora. O capitão rodeará a ilha da Staffa a toda velocidade e estou seguro que conseguiremos burlá-los.

—Parecem galeras bastante grandes - observou ela em um tom cauteloso.

—Os assaltos no mar não são freqüentes, milady. Realizamos esta rota com regularidade e rara vez sofremos contratempos.

Assaltos? Face à afirmação do homem de que certamente não era nada, Christina sentiu que lhe acelerava o pulso, arrancando-a de sua letargia. Minutos depois, Murdoch gritou aos tripulantes que se agarrassem forte, e a embarcação virou bruscamente à esquerda para circunavegar a pequena ilha com suas estranhas formações rochosas. Ela nunca tinha visto nada parecido aquelas colunas hexagonais de rocha negra, mas não dedicou um segundo às estudar, pois estava muito nervosa, olhando para trás, com a esperança de que o veleiro que os seguia passasse, e tentando evitar o pânico quando viu que continuavam atrás deles.

Embora soubesse que o guerreiro que tinha ao lado estava ocupado remando, não pôde deixar de comentar:

—Parece-me que ainda nos seguem.

Ele não passou por cima do temor que destilava sua voz. Christina advertiu que não queria assustá-la, mas tampouco subtrair a importância do que estava acontecendo.

—Tentaremos deixá-los para trás.

«Tentaremos.» Mas ela sabia tão bem como ele que somente era questão de tempo que os navios maiores lhe alcançassem. Em condições de vento forte, o birlinn era mais veloz, mas a galera tinha quase o dobro de remos.

—São piratas?

O homem torceu a boca com expressão sombria. Os navios se aproximavam e se achavam já a poucas centenas de milhas.

—Algo pior -respondeu—. Ao que parece um deles é inglês.

—O que é que querem?

Ele sacudiu a cabeça.

—Ignoro, milady.

—Todos a coberto! —bramou de repente Murdoch.

Christina se viu derrubada de um empurrão, e um teto de escudos se formou sobre sua cabeça, poucos segundos antes que ouvisse o tamborilar surdo e arrepiante das flechas que choviam sobre eles. Estava tão aflita que demorou um momento em compreender o que ocorria.

—por que nos atacam? —perguntou, mas os homens estavam muito ocupados tentando evitar a seus perseguidores e contra-atacar com suas próprias flechas para lhe responder.

—Rendeis-vos - gritou uma voz ao longe, e Christina soube que procedia de um dos navios.

Não fez falta ouvir a soez resposta do Murdoch para saber o que fariam os homens de Tor. Eles viviam para lutar. Inclusive naquele momento ela percebia sua ânsia por entrar em ação. Render-se não estava em seu caráter. Antes preferiam a morte.

Entretanto, Christina não ia permitir se podia evitar. Tinha que fazer algo.

—Não - disse, abrindo passo por entre os escudos para captar a atenção do capitão—. Façam o que lhe pede, Murdoch. Ao menos tentem averiguar o que querem.

O rosto do Murdoch se converteu em uma máscara de fúria. Saltava à vista que nunca antes tinha recebido ordens de uma mulher e queria fazer caso omisso dela. Fugir de um combate ia contra sua natureza de guerreiro, mas, por outro lado, sabia que estava obrigado a proteger a sua senhora. Christina respirou aliviada quando Murdoch afastou o olhar dela e, dirigindo-se a vozes ao navio mais próximo -que ainda estava a certa distância—, fez o que lhe pedia.

—O que ocultam filhos do Leod? —foi à resposta.

«Sabem quem somos», pensou ela. Deviam ter reconhecido a insígnia: as três pernas recobertas de malha dobradas formando um triângulo, que denotavam que o clã descendia dos reis do Man, e um birlinn negro, símbolo de sua ascendência escandinava, sobre campo de gules e azur.

—nos entreguem a metade e lhe deixaremos partir em paz - acrescentou outro homem.

«Deus santo, acreditam que transportamos riquezas! Não são mais que piratas ingleses.»

—Não temos nada que possa lhes interessar - replicou Murdoch—. Não levamos moedas nem mercadorias valiosas a bordo.

Ficou claro que seus perseguidores não tinham acreditado quando lançaram contra eles outra chuva de flechas. Christina se viu empurrada de novo sob o toldo de escudos e já não voltou a intervir. Não serviria de nada, pois estavam decididos a roubar. Seu pai falava freqüentemente das atrocidades dos ingleses, assim por que se surpreendia?

Notou que o navio se movia de novo enquanto os homens manobravam para encontrar a rajada de vento que lhe permitisse ficar fora do alcance das flechas e escapar.

Desde debaixo dos escudos, Christina ouviu gemer a um homem que tinha perto e soube que uma das flechas dos assaltantes tinha dado no alvo.

Afogou um grito de espanto tapando a boca com o punho. Estava tão assustada que não sabia o que fazer. Com o rosto apoiado sobre os joelhos, tentou isolar do fragor horrível que a rodeava. Esteve a ponto de cair pela amurada quando a embarcação foi investida pelo outro lado. O estrondo soava cada vez mais forte; mais gritos, mais flecha, o som de um gancho de ferro de metal jogado para prender os dois navios entre si, seguido pelo balanço provocado pelo movimento dos homens e o entrechocar de espadas quando a batalha começou em um estrépito de aço e morte. Christina via a muralha de pernas dos homens que a rodeavam, e sabia que morreriam protegendo-a.

Os guardas de seu marido figuravam entre os melhores guerreiros das ilhas, mas eram somente uma vintena, enquanto que o inimigo os quadruplicava em número, a julgar pelo tamanho de suas embarcações.

Os sons eram dilaceradores: gemidos de dor, rangidos de ossos, alaridos de agonia. A bílis lhe subiu pela garganta enquanto os homens caíam em torno dela. Homens que conhecia. O terror se apropriou de Christina quase por completo. Aquilo era muito.

Tinha vontade de desmaiar, mas não queria envergonhar aqueles homens que pereciam enquanto tentavam mantê-la a salvo. Em troca, esforçou-se por não cair no atordoamento.

Cada minuto que passava era insuportável. Embora os guardas do MacLeod lutassem com galhardia, acabaram por sucumbir ante a superioridade numérica do inimigo. Quão guerreiros a rodeavam começaram a cair. Olhou a Murdoch nos olhos quando se desabou sobre ela e compreendeu sua intenção. Pugnando por reprimir um grito, ocultou-se sob o escudo de seu corpo ensangüentado.

Ainda pior que os sons da batalha foi o silêncio que se impôs quando terminou, pois sabia que todos tinham morrido.

—Afastem os cadáveres - ouviu dizer um homem—. Vejamos o que é o que estavam tão ansiosos por proteger.

Os últimos esforços do Murdoch tinham sido inúteis. Um momento depois, alguém a tirou de forma brusca de seu esconderijo.

—É uma moça - disse o homem, lhe tirando o capuz—. E bastante bonita, por certo.

Um aroma denso como a cobre a afligiu. Deu uma olhada em redor, aos restos da matança e os rostos conhecidos foi demais e vomitou sobre as grebas e os escarpes de aço do homem que a segurava.

Este proferiu um juramento e atirou uma bofetada com o dorso da mão.

—Zorra estúpida!

—Como te chamas?

Christina limpou a boca e levantou o olhar para o homem que tinha falado. Sob a viseira de aço de seu elmo, seus olhos se cravaram nela como duas adagas negras. Pela qualidade de sua malha e a sobreveste fina que levava sobre o peito, supôs que era o cabeça dos ingleses.

Ela ergueu o queixo e lhe sustentou o olhar.

—Christina, esposa do chefe dos MacLeod. —O nome do temido chefe não impressionou absolutamente ao altivo inglês. O desdém que destilava seu rosto cruel e curtido não impediu a Christina acrescentar—: Com que autoridade assalta este navio e assassinam estes homens?

A julgar pela expressão do homem, não tinha gostado de seu tom desafiante.

—a de Eduardo, rei da Inglaterra, senhor da Irlanda, príncipe de Gales e duque da Aquitania pela graça de Deus. Seus homens opuseram resistência - mentiu descaradamente. Afastou sua atenção dela e se dirigiu ao soldado que a tinha agarrado pelo braço—. Não lhe entretenham muito. —O líder inglês percorreu com o olhar a outros homens que o rodeavam—. E o mesmo digo a todo aquele que deseje uma parte dos despojos. Aqui não há nada. Quando tiverem terminado, queimem tudo.

Christina conteve outra arcada ao compreender o que pretendiam fazer. Iriam violentá-la e logo matá-la, a fim de que não ficassem testemunhas de seu crime. A esposa de um chefe das Highlands não valia nada para eles. Néscios! Tor os caçariam quando se inteirasse do ocorrido.

A segunda nave tinha ancorado ao outro lado do birlinn. Ao fixar-se na roupa e as armaduras de seus ocupantes, Christina viu que se tratava de highlanders. Escrutinou aqueles rostos ásperos e selvagens em busca do menor raio de piedade, mas não o encontrou. De repente um homem deu um passo adiante. Seu olhar era penetrante. Parecia familiar.

—Acredito que a moça pode nos ser útil, capitão.

O líder dos ingleses se voltou para quem tinha falado com somente um pouco menos de desprezo do que tinha mostrado a ela.

—E que é você?

—Arthur Campbell.

—Campbell? Não é seu irmão um dos companheiros de Bruce?

Sem dúvida por isso o tinha reconhecido Christina. Recordava a sir Colin Campbell do Finlaggan. Arthur, embora vinte anos mais jovem que seu diferente irmão, assemelhava-se a ele.

—Sim, e outros dois irmãos e eu somos leais ao senhor do Badenoch. Comyn o Vermelho.

Não era incomum que as famílias estivessem divididas. O capitão inglês aceitou sua explicação, e Campbell prosseguiu: —A moça se casou recentemente com o chefe dos MacLeod; um matrimônio por amor, conforme dizem. —Ela reprimiu uma gargalhada aguda de histeria que lhe subiu à garganta—. Estará ansioso por recuperá-la. Possivelmente ela possa nos ajudar a persuadi-lo de que nossa causa é justa. —O capitão não parecia muito convencido. Como a maioria dos ingleses, cometia o engano de subestimar aos «bárbaros» das Highlands—. Também é a filha de Andrew Fraser - adicionou.

Isso fez que o capitão prestasse atenção. Olhou-a, entreabrindo os olhos.

—É isso certo?

Christina assentiu, depois de decidir que o mais prudente era não mencionar que a ameaça de acabar com sua vida não daria muito resultado com seu pai.

Um sorriso se estendeu lentamente em seu rosto cruel.

—tragam-me isso - ordenou ao homem que ainda a segurava—. Talvez possa nos ser útil, apesar de tudo. E se não… —deu de ombros.

Ela soube o que significava esse gesto.

Embora sem dúvida a motivação de Arthur Campbell não tinha sido ajudá-la, lhe dedicou um olhar de gratidão, mas ele já tinha desaparecido entre a multidão de guardas que tripulavam a segunda galera. Entretanto, sua oportuna intervenção não tinha sido mais que uma salvação temporária; seu pai não moveria um dedo para socorrê-la. Quanto a Tor…

Não lhe restava dúvida de que sairia em sua busca. Embora não a amasse, consideraria que era seu dever protegê-la. Mas descobriria a tempo o que tinha acontecido?

*

O êxito deveria ter melhor sabor na sua boca. A equipe havia retornado a demonstrar que suas habilidades eram do que mais valiosas, da perícia do Lamont como rastreador até os dotes de marinheiro do MacSorley, passando pelos instintos do MacRuairi, que os tinham levado a dirigir-se para o Dunstaffnage. Tor duvidava que tivesse conseguido sem eles. Apesar de tudo, durante a viagem - inclusive quando tinham alcançado ao irmão John e MacRuairi o tinha «persuadido» de que lhe revelasse para quem trabalhava— Tor não podia desterrar a tristeza que o envolvia como uma nuvem negra.

A intromissão de Christina poderia ter estragado tudo, mas ela so queria ajudar. Ele não podia reprovar-lhe. Tinham-na enganado e simplesmente tinha tentado fazer o correto. A culpa era dele, por lhe contar mais do que devia. Não permitiria que isso voltasse a ocorrer. Faria o que tivesse que fazer. Repetiu a si mesmo inumeráveis vezes. Por que não podia deixar de ver em sua mente a expressão abatida de Christina?

Afrouxou a cota, tentando aliviar o persistente desconforto que sentia no peito.

Queria deixar para trás o passado. Quando os homens partissem, ele esperava poder virar a página e voltar para um certo estado de normalidade…, se é que tal coisa era possível com Christina. Nada tinha sido normal do momento em que tinha pousado os olhos nela pela primeira vez.

Duas noites depois de sua partida, Tor subiu a escada do molhe, depois de ter coroado sua missão com um êxito terminante. Tinha impedido que o tabelião divulgasse a informação e tinha averiguado quem era o responsável pelos últimos ataques lançados contra Dunvegan. John MacDougall do Lorne ganhou um inimigo poderoso, e Angus Og MacDonald tinha um novo aliado contra seu traiçoeiro parente. Tor já não se manteria à margem do conflito entre os dois influentes clãs ilhéus.

Enquanto se aproximava do grande salão, pensava no que diria para sua esposa para acabar com a discórdia entre eles, mas imediatamente intuiu que algo ia mau. O lugar estava muito escuro, muito tranqüilo. Era como se um pano mortuário cobrisse tudo.

Rhuairi e Colyne foram a seu encontro a passo veloz. Ao ver sua expressão, ele soube que foram lhe dar uma má notícia.

—O que acontece? —quis saber.

Eles se olharam, nervosos, mas Colyne foi o primeiro em falar.

—Trata-se da senhora, RI tuath.

Um calafrio lhe percorreu as costas. Obrigou-se a manter um tom sereno, Apesar de que todos seus músculos se esticaram em um estado de máxima alerta.

—Está doente?

Colyne sacudiu a cabeça.

—Não, chefe - respondeu Rhuairi—. Se foi.

Zumbiram-lhe os ouvidos como se alguém acabasse de lhe golpear o elmo com uma espada. Demorou uns momentos em compreender o que o senescal havia dito. Agarrou ao Rhuairi pelo broche de seu brat de quadros.

—Como que se foi?

Tor escutou a explicação do senescal de que ela partiu na companhia dos homens que se dirigiam ao Mull com uma mescla de incredulidade e um pânico crescente conforme assimilava o ocorrido. Christina tinha aproveitado sua estúpida promessa de permitir que se retirasse a um convento. A ele jamais teria passado pela cabeça que ela chegaria a fazê-lo algum dia, embora em realidade não soubesse por que. Tinha-lhe dado uma saída; por que lhe surpreendia que ela a tivesse utilizado?

Deus sabia que não lhe tinha dado nenhuma razão para ficar. Ela não tinha feito outra coisa que tentar agradá-lo desde que se casaram. Tinha-lhe entregue seu coração, e não tinha dado nada em troca. Comportou-se como um bastardo insensível e tinha acabado por afugentá-la.

Estava sozinho. Não era isso o que queria? Não sentir nada a não ser um vazio em seu interior? Mas não era um vazio o que sentia, a não ser uma dor aguda e lacerante. Sentia-se como se acabassem de lhe cravar uma espada no peito e lhe tivessem esmigalhado as vísceras.

Uma vida inteira de solidão se abria ante ele. Uma vida em que somente teriam a guerra e suas responsabilidades para com seu clã. Uma vida de infelicidade.

Deus santo, o que tinha feito?

Deveria estar furioso porque ela se atrevera a abandoná-lo. Os highlanders eram célebres por seu orgulho, e ele não era uma exceção. Entretanto, unicamente podia pensar no dano que devia ter feito para que chegasse a esse extremo. Sentia-se doente somente de pensar. Tinha que recuperá-la. Não porque fosse sua mulher - porque lhe pertencesse —mas sim porque seu lugar era ali a seu lado.

Não sabia por que albergava sentimentos tão intensos, mas teria que demonstrar-lhe custasse o que custasse.

Continuou caminhando até o salão, com os dois homens seguindo-o a toda pressa. Uns poucos membros do clã dormiam ao calor do fogo, mas a maioria estava sentada em silencio em torno das longas mesas. O ambiente estava tal como ele tinha deixado, mas parecia diferente. Lôbrega, como se toda a alegria se apagou. Seus cães ergueram a cabeça quando entrou. Em vez de correr a recebê-lo, dirigiram-lhe um olhar de desilusão e apoiaram de novo a cabeça sobre suas patas.

—Onde está Murdoch? —perguntou com impaciência.

Ambos os homens o olharam, desanimados. Colyne sacudiu a cabeça.

—Com os homens que foram zarpar para o Mull. Não retornaram.

—Como que não retornaram? —estalou Tor—. Até tendo em conta o tempo acrescentado da viagem a Iona, deveriam ter retornado ontem.

Nenhum dos dois respondeu. De repente, o estômago de Tor deu um tombo, como se tivesse tragado um bocado de carne putrefata. O pânico começou a crescer em seu interior, mas o reprimiu. Christina estava bem. Tinha que haver uma explicação. Mas Rhuairi não tinha terminado.

—Chegou isto para você faz menos de uma hora. O mensageiro disse que ninguém devia vê-lo exceto você.

Tor o abriu, atendido por uma negra premonição.

Parou-lhe o coração e seu rosto ficou lívido quando leu as palavras escritas na parte de pergaminho, palavras que iriam mudar sua a vida.

«Homens mortos. Os ingleses capturaram a sua dama. Dumfries. Não demorem.»

«Não demorem.» Tinham assassinado seus homens e tinham a intenção de matar a ela também.

A perda de seus homens o punha furioso. Tinha vontades de estrangular a alguém. Mas ao pensar que Christina corria perigo…

A bílis lhe queimou a garganta. Embora sempre tivesse acreditado que não tinha medo de nada, um medo maior que jamais sentira se deu procuração dele; um medo escuro que lhe consumia a alma e corroía como o ácido a cobertura de aço de seu coração. Sentia-se como em carne viva. Nu. E mais apavorado do que estivera em toda sua vida.

Se inteirar-se da ida de Christina o tinha arrancado de seu estupor emocional, a notícia de que tinha caído prisioneira dos ingleses foi como um brilho de lucidez que o obrigou a aceitar a verdade.

Amava-a.

Muito tarde compreendeu o insensato que tinha sido. Sua obstinação em orgulhar-se por sua crença de que era imune às emoções tinha impedido de ver o que estava ali desde o começo. Essa era a razão pela que nunca deixava de pensar nela. A razão pela que procurava pretextos para passar tempo em sua companhia. A razão pela que lhe fazer o amor provocava uma sensação tão diferente. Era o que fazia que se sentisse feliz simplesmente ao estreitá-la entre seus braços durante horas e escutar sua voz enquanto lia essas ridículas histórias românticas. Era o motivo pelo que desejava despertar a seu lado todos os dias pelo resto de sua vida. Era o motivo pelo que lhe saltava o coração quando entrava em um aposento e ela levantava o olhar para ele, com um amplo sorriso desenhando-se o no rosto.

Ela havia devolvido a calidez a sua vida, tinha quebrado a muralha de gelo que tinha erigido em seu interior e mergulhou até o mais profundo para encontrar emoções que levavam muito tempo enterradas.

Mas talvez já não tivesse ocasião de dizer-lhe.

Imagens longamente reprimidas desfilaram ante seus olhos. O corpo nu e maltratado de sua mãe coberto de hematomas e sangue, com uma expressão de terror fixada para sempre em seu olhar. E logo recordou o resto: como tinha se jogado sobre ela e se negara a permitir que os homens de seu pai a levassem; quanto tinha chorado; como a dor o tinha abrasado e destroçado por dentro, igual a agora.

Não podia ocorrer isso a ela também. A idéia de não voltar a vê-la jamais…, de não voltar a tocá-la…, de não aspirar nunca mais seu aroma suave e floral era insuportável. Não podia perdê-la.

Algo estalou em seu interior. Raiva. Loucura. Uma determinação obsessiva por encontrá-la e devolver o golpe com a espada da vingança. Jurou que encontraria a cada um dos responsáveis pelo assassinato de seus homens, e se haviam tocado um só cabelo da sedosa e negra cabeleira de Christina, asseguraria-se de que sofressem uma morte lenta e dolorosa.

Os escudeiros de Eduardo tinham cometido um engano de fatais conseqüências. Ao matar aos homens de Tor e capturar a sua esposa, os ingleses tinham feito que a guerra da Escócia passasse a ser a guerra de Tor.

O caminho que devia seguir estava claro. De momento começou a fazer preparativos para reunir-se com os homens na broch. Necessitaria-os se queria ter alguma possibilidade de resgatar Christina. Surpreendentemente, reconhecer isto para seus adentros não lhe custou o menor esforço. Antes de partir, entregou ao Rhuairi uma mensagem breve para que o despachasse ao MacDonald: «Estamos preparados».

Tinha tomado uma decisão. Não haveria volta atrás.


—Peço-lhe desculpas pelas maneiras do capitão, lady Christina. Ao que parece se excedeu um pouco em seu zelo por lhe interrogar.

Um pouco? Christina olhou fixamente ao comandante inglês ricamente vestido e impecavelmente arrumado, que estava sentado de frente a ela nos luxuosos aposentos principais do castelo do Dumfries. Seus olhos delatavam que não o lamentava absolutamente. Entretanto, bater em uma mulher —embora fosse escocesa— era pouco cavalheiresco. Lorde Seagrave, com sua sobreveste impoluta bordada em branco e dourado e sua malha reluzente, deu-lhe a impressão de ser o tipo de homem a quem não gostava de manchar as mãos com os aspectos mais desagradáveis de suas responsabilidades como comandante da guarnição inglesa no castelo do Dumfries, no Galloway. Perto de cinqüenta anos, era um dos comandantes mais velhos do rei em Escócia e tinha participado de quase todas as lutas principais da última década.

Embora tivesse vontade de lhe espetar que guardasse suas desculpas e lhe recriminar que tivessem assaltado seu navio sem motivo e assassinado a todos aqueles homens, Christina sabia que para proteger a seu marido e a sua família teria que seguir interpretando o papel de rapariga assustada e sorrindo como uma parva, que era o que tinha feito no momento de sua captura. Os últimos dois dias tinham sido os mais longos de sua vida. Horrorizada pela matança gratuita dos homens de seu marido, tinha vivido a cada segundo temerosa de que mudassem de idéia. Tinha que sobreviver durante o tempo suficiente para informar a alguém do acontecido. Era imprescindível vingar aquelas mortes.

O capitão inglês tinha mitigado o tédio da longa travessia por mar interrogando-a sobre as atividades de seu pai e seu marido. Quando não gostava da resposta, golpeava-a. Sua arrogância, não obstante, tinha virado em favor de Christina, pois era evidente que na realidade não acreditava que ela possuísse informação valiosa. A maioria dos homens considerava as mulheres seres inferiores, e os ingleses, com seu altivo sentimento de superioridade, eram ainda piores.

Christina tinha se informado de muitas mais coisas das que tinha revelado. Os homens falavam sem disfarces em sua presença, sobre tudo de noite. Ela tinha descoberto que acabavam de estar no castelo do Inverlochy, o bastão nas Highlands do senhor do Badenoch, Comyn o Vermelho. A escolta dos highlanders estava integrada em sua maior parte por membros do clã Comyn e seus parentes do clã MacDougall.

Quando chegaram ao castelo do Galloway, conduziram a Christina à praça dos ingleses no Dumfries enquanto os highlanders se dirigiam ao castelo do Dalswinton para aguardar a chegada de seu senhor.

Estava virtualmente segura de que tramavam alguma ação nefasta relacionada com o conde de Carrick, Robert de Bruce. Um dos guardas do Comyn tinha mencionado de passagem que estava preso em uma prisão inglesa, mas isso era tudo o que ela tinha conseguido ouvir. Esperava averiguar algo mais de boca de lorde Seagrave.

Resistiu o impulso de levar a mão à cara, que tinha inchada e arroxeado, e dizer a lorde Seagrave exatamente onde podia meter sua compaixão. Seus machucados desapareceriam, e suas probabilidades de escapar seriam mais altas se eles a subestimavam. Antes morreria que trair seu marido. Os últimos meses tinham despertado nela uma força e um valor que não sabia que possuía. Se mostrasses intimidada, era unicamente por interpretar um papel. Assim, em vez de replicar com raiva, agachou a cabeça e disse: —Meu pai é um súdito leal do rei. O que seu homem insinua… —inclinou-se para ele e sussurrou—: É traição.

Esperava haver dado a sua voz o toque justo de surpresa e inocência.

Ele sorriu com indulgência, como em deferência a seu simples intelecto feminino.

—Esquecestes que seu pai esteve na prisão por traição não faz muito tempo?

Christina abriu muito os olhos.

—Certamente que não, milorde. Por isso mesmo posso lhe garantir sua lealdade para o rei. Embora diga que o trataram com toda cortesia - mentiu— não tem o menor desejo de voltar. —Baixou a voz com uma atitude de cumplicidade—. Acredito que é porque sentia falta de seu uísque e os bolos de maçã de seu cozinheiro. —Franziu o sobrecenho de maneira forçada—. Tem maçãs na Inglaterra?

Quando o comandante a olhou como se fosse parva de arremate, ela esperou não ter carregado muito as tintas.

—Temo que sim.

—Então talvez fossem as ameixas. Estão demais de ricas. Têm ameixas também?

A lorde Seagrave começava a esgotar a paciência. Aquela mulher tinha intercalado seus dois interrogatórios com bate-papos sobre comida, móveis e música, para grande irritação do comandante.

—Remetemos uma mensagem a seu pai, mas não respondeu ainda. Por quê?

Estava entrando em terreno perigoso. O valor de Christina como refém diminuiria de forma considerável se os ingleses descobrissem que seu pai não iria resgatá-la.

—Talvez esteja de viagem. Retornou o mensageiro que enviaram a meu marido?

—Ainda não - disse ele com o sobrecenho enrugado.

De novo chamou alguém na porta, mas Christina se acostumou às interrupções constantes. Durante a hora que ele levava tentando interrogá-la nesse dia, um desfile de homens tinha passado pelo aposento.

Um soldado jovem entrou e entregou uma carta sem explicação alguma. Lorde Seagrave devia estar esperando-a, pois a abriu e a leu com rapidez. O sorriso matreiro que lhe arqueou os lábios despertou a curiosidade de Christina.

—partiram os homens? —perguntou lorde Seagrave.

—Não - respondeu o jovem cavalheiro—. Digo se acontecer, senhor?

Christina ficou de pé, sem dissimular sua emoção.

—Posso voltar para mi… quarto. —O quarto reduzido e sem janelas na torre mal era digna desse nome.

Ele a olhou com dureza.

—Não terminamos. Esperes aqui, em seguida volto. —Deixou-a sozinha e fechou a porta atrás de si.

Christina ficou carrancuda até que viu o pergaminho desdobrado sobre a mesa. Arrepiou-lhe o pêlo dos braços. Não acreditou em seus olhos. O comandante deixou a carta.

Com o coração desbocado, inclinou-se sobre a mesa e virou os documentos para coloca-los de cara para ela. Primeiro examinou a página superior e viu que estava escrita em francês.

Afogou um grito e a leu de novo para assegurar-se de que a tinha entendido bem. Era do Comyn o Vermelho para o rei Eduardo, e lhe informava da traição de Bruce, a prova da qual se anexava a seguir. Christina levantou apressadamente a primeira folha de pergaminho e viu um documento lacrado, em latim. Embora continha muitos detalhe, ao que parece se tratava de um pacto entre o Comyn e Bruce contra o rei Eduardo. E agora Comyn pretendia voltar-se contra Bruce e exibir seu acordo como prova de traição.

Ouvindo passos sonoros do outro lado da porta, Christina devolveu os documentos a seu lugar e se reclinou em sua cadeira, tentando serenar seu pulso e atenuar o rubor de nervosismo que lhe tingia as bochechas.

O coração pulsava com força enquanto obrigava a sua mente a responder às perguntas do comandante da forma mais desatinada possível enquanto planejava sua fuga.

Não podia esperar que a resgatassem tendo em conta que essa mensagem seria despachada a Londres a qualquer momento. Embora não conhecesse bem a área, sabia que o castelo de Bruce no Annandale, Lochmaben, encontrava-se perto. Não sabia como chegaria até ali, mas tinha que tentar.

Se essa carta chegasse às mãos do rei Eduardo, Robert Bruce logo seguiria ao Wallace à tumba.


Capítulo 25

Era uma noite perfeita para uma incursão: escura e brumosa, sem uma lua prateada que os delatasse. A escuridão seria sua primeira arma, e a velocidade e a surpresa, a segunda. Atacar depressa e com força era a principal estratégia de todos os piratas. Nem código cavalheiresco, nem regras.

Tor e a equipe, ocultos no bosque, atrás do pequeno castelo de estilo normando erguido em um montículo, aguardavam as altas horas da madrugada enquanto vigiavam todos os movimentos dos soldados ingleses.

Depois da longa viagem pelo mar do norte de Skye até Galloway, no rincão sul-ocidental da Escócia, era uma tortura para ele ter que esperar, sabendo que sua esposa se achava a somente umas centenas de pés dali. Não queria nem imaginar o que ela devia estar suportando nesse momento. Também se negava a considerar a possibilidade de que não seguisse com vida. Tinha que concentrar-se em seu encargo. Assaltar um castelo ocupado por uma guarnição inglesa inteira não era tarefa fácil.

Mas podia levar a cabo.

Era célebre o ataque surpresa por meio do qual Wallace tinha tomado a praça inglesa no castelo do Ardrossan, no Ayr, e Tor tinha decidido empregar uma tática similar. Com perto de uma vintena de homens e sem máquinas de assédio, irromper em turba pelas portas ficava descartado, assim teriam que recorrer ao sigilo e às manobras de distração.

Supunham que Christina estivesse presa na torre de pedra de planta quadrada construída no alto do montículo de terra, de quarenta pés. Para chegar até ali, teriam que atravessar as duas linhas de defesa características disse tipo de fortificação: o fosso que circundava todo o complexo e a paliçada que se levantava do outro lado.

À frente de oito homens da equipe de Bruce, cruzaria o fosso e a paliçada da parte posterior do castelo, em frente da ponte levadiça exterior. Uma vez dentro, separariam-se para procurar Christina, enquanto outros preparavam a fuga. MacRuairi estava convencido de que podia tira-la da torre quando tivessem conseguido entrar, independentemente de onde a tivessem encerrada. Ao Tor bastava jogar uma olhada a seu semblante para acreditar. Seton e Boyd também o acompanhariam. Necessitava homens acostumados no combate corpo a corpo que soubessem dar morte de forma silenciosa, com adagas ou com as mãos nuas.

Disporiam de meia hora para encontrá-la e matar aos guardas antes que Gordon e o resto da equipe atraíssem a atenção dos ingleses para eles para que os outros pudessem sair. MacSorley estaria esperando no exterior com seus guardas do clã MacLeod quando baixassem a ponte.

A luz do interior da torre se apagou quase por completo. A atividade dos soldados ingleses se reduzira. Somente um ou outro som de um animal ou o sussurro das folhagens rompia o silêncio. Tinha chegado o momento.

Tor se ajoelhou na terra e nas folhas, rodeado pelos membros da equipe, para lhe da as últimas instruções.

—Já sabes o que deve fazer, Falcão? —perguntou ao MacSorley, que encabeçaria aos do clã do MacLeod.

Tor tinha tomado um risco ao levar guerreiros adicionais, mas como precaução acrescentada se guardara de chamar os membros da equipe por seus nomes. Tinha ocorrido à idéia de utilizar nomes de guerra quando tinha ouvido Boyd empregar o apelido com que MacSorley se referia a ele ante a Christina.

O gigantesco escandinavo desdobrou um grande sorriso, e o branco de seus dentes reluziu em seu rosto com o resto sumido na escuridão.

—Sim, capitão. Ir por sua senhora e nos assegurar de que esses condenados ingleses não se esqueçam desta noite por toda sua vida.

De qualquer óptica minimamente racional, atacar uma guarnição de cem soldados ingleses com uma vintena de homens parecia uma missão suicida. Mesmo assim, Tor confiava no seu êxito. A destreza da unidade de elite de Bruce tinha superado inclusive suas próprias expectativas. Juntos formavam uma força digna de ter em conta. Sentia-se como se estivesse a ponto de viver um momento transcendental, como disposto a fazer história. Criava-se uma nova era de guerreiros, a era dos highlanders.

Esses malditos ingleses não sabiam o que os esperava.

Assaltar uma praça inglesa os converteria a todos em traidores aos olhos de Eduardo, mas eram conscientes disso quando foram à chamada de Bruce. A incógnita de que Lamberton e Bruce aprovariam ou não aquela operação precipitada e não autorizada não era algo que preocupasse ao Tor. A vida de Christina estava em jogo; ele faria o que tinha que ser feito.

Tor e os oito membros da guarda de Bruce que o acompanhavam avançaram sem fazer o menor ruído por entre as sombras para o fosso que rodeava o montículo. Por meio de gestos, indicou que colassem o corpo a terra e se mantivessem muito pegos ao chão. Quando chegaram na borda do fosso, aguardaram até certificar-se de que o sentinela no alto do montículo não pudesse vê-los antes de descer. Como era inverno, o profundo fosso continha alguns pés de água, ou, melhor dizendo, de um lodo frio e negro que desprendia um aroma mofado a plantas podres. Cuidando de proteger a pólvora do Gordon, caminharam pela lama e ao chegar ao outro extremo subiram à borda para chegar à paliçada formada por estacas bicudas.

Essa era a parte mais delicada da missão. Teriam que escalar os postes de madeira de dez pés de altura sem que os descobrissem os guardas situados no montículo, por cima deles, nem o soldado que fazia a ronda por aquela seção do recinto. Tinham escolhido um lance da paliçada oculto à vista por um volumoso edifício que se erguia no pátio exterior do castelo - provavelmente as cozinhas, a julgar pela quantidade de fumaça que tinham visto sair dali horas antes—, mas de todos os modos durante alguns minutos estariam expostos ao perigo.

Tor foi o primeiro a entrar. Lançou um gancho preso a uma corda entre dois postes e puxou a corda até que o gancho de ferro se enganchou.

O coração lhe pulsava a toda velocidade. Com os sentidos totalmente em alerta, esperou o momento certo. Quando o soldado passou, Tor subiu impulsionado pela corda, encarapitou-se nos postes e se deixou cair são e salvo do outro lado.

Estava dentro.

Quando o soldado passou de novo, sua costa encontrou com o aço da adaga do MacKay concebida especialmente com esse fim. A folha se alargava para o punho e pelo outro lado se estreitava até uma ponta aguçada que lhe atravessou a cota de malha até os pulmões. O soldado desabou aos pés de Tor sem soltar nem um gemido. MacRuairi o chamava «morte silenciosa» e tinha ensinado aos homens a encontrar o ponto exato em que cravar a arma. Era uma técnica extremamente eficaz para ações encobertas como naquela em que o som mais leve podia ter conseqüências nefastas.

Um a menos, mas ainda ficavam aproximadamente noventa e nove.

Poucos minutos depois, os outros oito homens estavam junto a ele; tinham conseguido passar ilesos por cima da paliçada.

Tor fez ao Gordon um sinal com a cabeça, e a equipe se dividiu: MacRuairi, Seton e Boyd foram com ele; MacGregor, MacLean, Lamont e MacKay foram com o Gordon.

À frente de sua equipe, Tor rodeou o montículo de terra até a parte detrás. Para acessar a torre da comemoração, teriam que arrastar-se costa acima sem que os vissem. Em vez de avançar um atrás de outro, espaçaram-se entre si de modo que, quando chegassem ao topo, estivessem em posição de matar aos guardas. Mas a sincronização era fundamental. Deviam chegar ao alto da colina e sossegar aos dois guardas que faziam ronda pelo perímetro antes que pusessem de sobreaviso aos sentinelas que custodiavam a entrada da torre que servia de moradia, em que estava Christine.

A terra e a erva seca do pequeno morro que subiam pouco a pouco, fazendo força com os cotovelos e os antebraços, estavam escorregadias e cobertas de barro. Detiveram-se uns pés do topo e se comunicaram de um homem a outro por gestos. Tor ergueu a mão: cinco, quatro, três, dois…

Saíram da escuridão e se equilibraram sobre os guardas despreparados, como seres espectrais. As facas desceram de forma inesperada e letal. Os sentinelas postos na frente da porta exterior da torre foram os seguintes. Noventa e cinco. Tor sentiu que a emoção da batalha o percorria com uma intensidade cada vez maior conforme se aproximava mais e mais a sua esposa. O plano ia dar resultado.

A seguir chegavam o salão, cheio de soldados que dormiam. Nada lhe teria agradado mais que massacrá-los a todos, mas isso teria que esperar. Primeiro tinha que tirar Christina dali. Dispunha-se a entrar na torre quando ouviu um grito procedente do pátio inferior que lhe gelou o sangue.

Amaldiçoou entre dentes, pois sabia que suas possibilidades de êxito tinham passado de boas a péssimas em um piscar de olhos. A vantagem que para eles era a escuridão e o fator surpresa se esfumou. Tor esperava com toda sua alma que o alarido não tivesse sido proferido de seus homens.

Agora, para tirar Christina do castelo, teriam que abrir caminho lutando contra a guarnição de soldados que dormia no salão, a somente alguns passos dali. A fortaleza inteira já ficava em movimento enquanto o alvoroço de baixo aumentava. Não havia tempo a perder.

Tor estava a ponto de ordenar aos homens que entrassem quando, pela extremidade do olho, viu algo que o fez deter-se.

MacRuairi também percebeu isso.

—Parece tratar-se de uma moça, capitão - sussurrou.

Com o sobrecenho franzido, Tor estudou a figura coberta com uma capa que lutava com o guarda que vigiava a porta. O pulso lhe acelerou e o coração deu um tombo repentino contra as costelas. Não se tratava de qualquer moça, mas sim de sua moça. Pelo visto sua mulher tinha decidido não esperar que a resgatassem. Por que não se admirava com isso?

Soltou um juramento e arrancou a correr escada abaixo para o pátio. Levou ambas as mãos às costas e desembainhou a espada.

Um selvagem grito de guerra brotou de seus pulmões e deixou gelados aos soldados de baixo. Um momento depois, Gordon respondeu a sua chamada com outro bramido.

*

Por sorte de Christina, os soldados ingleses gostava de beber.

Quase tinha conseguido cruzar o salão quando um soldado que ela acreditava que estava desmaiado em um estupor alcoólico a agarrou enquanto passava junto à mesa e a sentou sobre os joelhos. Christina passou a mão pela boca, tentando livrar do desagradável sabor do beijo que lhe tinha dado nos lábios. Mas supunha que deixar-se manusear um pouco por um bêbado era um preço que valia a pena pagar pela liberdade. Riu, afastando-o com um tapa com atitude brincalhona, e lhe tinha passado outra taça de vinho antes de baixar-se de seus joelhos, murmurando que tinha outras obrigações que atender.

Fez uma careta de pesar ao pensar na roupa de criada que levava. Esperava não ter batido muito forte na moça, mas tinha que estar segura de que demoraria um momento para voltar em si. Quando a criada tinha aberto a porta para lhe levar o jantar, Christina a tinha surpreendido com um golpe de candelabro na nuca. Tinha «tomado emprestada» a túnica e o brat, esperando que ninguém se fixasse em que ia arrastando os oito centímetros de saia que sobravam, e depois, com tiras de lençóis, atou os pés e mãos da criada e a amordaçou. Desse modo, embora despertasse, não poderia alertar a ninguém.

Lorde Seagrave, a quem jamais teria passado pela cabeça que uma mulher tentasse fugir, acreditava que bastaria passar o ferrolho à porta, por isso não tinha posto um guarda. Foi um descuido de que acabaria por arrepender-se.

Com a esperança de acautelar a perseguição de algum outro soldado amoroso, Christina agarrou uma bandeja e uma jarra vazia, e, fingindo que estava recolhendo as mesas, passou diretamente entre os sentinelas da entrada, baixou a escada e cruzou a ponte para o pátio inferior. Depois de desfazer-se dos objetos de cenário, escondeu-se entre as sombras atrás das cavalariças próximas às portas, esperando uma ocasião para escapulir se confundindo entre os aldeãos. Entretanto, o guarda tinha fechado as portas pouco depois de que ela chegasse. Pugnou por não cair no desespero, pois sabia que não as abririam de novo antes da manhã.

Quanto demoraria em dar conta de que escapara? alguém sentiria falta da criada? Tinha apertado o suficiente suas ataduras?

Havia tantas coisas que podiam sair mau… Rezou por que se produzisse um milagre.

Em vez disso, poucas horas depois - por culpa de um gatinho curioso com o miado mais estridente que ela jamais tinha ouvido—, descobriram-na. Por mais que se empenhasse em afugentar à molesta bola de pelo, esta retornava uma e outra vez. Um soldado viu o gato e decidiu investigar o que ocorria ao ver que o bichinho se negava a lhe fazer caso.

Ela notou que alguém a tirava com brutalidade de seu esconderijo e se encontrou frente a frente com um cavalheiro jovem. De baixa estatura e de costas largas, tinha um rosto chato e traços toscos, mas em seus olhos apreciava um brilho de inteligência. Por sorte, tinha bebido bastante vinho.

—O que fazes oculta na escuridão? —inquiriu.

Christina se esforçou por discorrer uma explicação acreditável enquanto notava os batimentos do coração de seu coração na garganta.

—Pois… —Um sorriso forçado de inocência apareceu em seus lábios enquanto pestanejava com paquera—. Vou encontrar-me com alguém.

Essa mutreta feminina fracassou estrepitosamente. O olhar do guarda se fez mais penetrante.

—Com quem?

—Com o Edward - se apressou a responder ela. Seguro que haveria algum Edward por ali. As pessoas sempre punham nomes de reis em seus filhos, e Edward Plantageneta reinava fazia mais de trinta anos.

—Edward que mais?

Cáspita! Tinha que haver mais de um, estava claro. Ao ver que ela titubeava, o guarda a arrastou até a luz de uma tocha e chamou os outros três soldados que custodiavam nas portas.

—Algum de vós conhece esta empregada?

Um deles a conhecia. Era um soldado que esteve a bordo da galera, com ela.

—É a moça que capturamos -disse— A filha de Fraser.

Não! Tendo conseguido chegar até ali, não suportava pensar que não ia conseguir. Era sua única oportunidade. Seus guardiães não voltariam a relaxar tanto as medidas de segurança. Tentou soltar-se, mas a mão do soldado a aferrava como uma tenaz.

—Por favor - suplicou—. Tenho que voltar para meus afazeres…

Um alarido aterrorizante troou o ar quente da noite. Todos se voltaram para o montículo e a torre.

Christina conteve o fôlego.

O soldado lhe soltou o braço, mas ela se aproximou de novo a ele, para proteger-se instintivamente de algo muito mais horripilante que os ingleses.

As portas do inferno se abriram para deixar sair a um exército de demônios. Os quatro guerreiros espectrais que caíram sobre eles se assemelhavam a seres de pesadelo. Vestidos de negro dos pés a cabeça para confundir-se com a noite, de uma estatura e uma musculatura sobrenaturais, baixaram a escada com passo trepidante, espadas em alto, preparados para descarregar a fúria do muito mesmo diabo com cada cutilada de seu temível aço.

Em vez de sobreveste e cota de malha, levavam espartilhos de guerra negros e saias escuras de quadros rodeadas ao corpo de forma estranha com cinturões. Sob os espantosos elmos com protetor nasal, seus rostos estavam melados, não da pintura azul de glasto dos antigos gaélicos, mas sim de cinza. Somente um brilho branco rasgava a escuridão.

«Deus bendito, os monstros estão sorrindo!»

Christina não podia afastar o olhar do aterrorizante guerreiro que dirigia o ataque relâmpago. Havia algo…

Um calafrio lhe desceu pelas costas no instante em que o identificou. Embora estivesse virtualmente irreconhecível, ela o conhecia.

Seu marido tinha ido a seu resgate.

Os ingleses não sabiam o que fazer. Enquanto os soldados permaneciam paralisados, Christina, consciente do perigo, separou-se da trajetória da investida dos guerreiros. Apenas tinha se afastado uns passos quando o caos estalou —literalmente— em torno deles.

Uma série de estampidos ensurdecedores sacudiu a noite: detonações horríveis que semeavam o terror. Ela nunca tinha ouvido nada parecido. Soavam como trovões, mas o céu estava totalmente limpo.

Ouviu o zumbido de flechas que voavam sobre sua cabeça, e os quatro soldados que vigiavam as portas caíram em rápida sucessão. Um momento depois, um guerreiro com um arco à costas saltou do telhado das cavalariças, porta se abriram, a ponte desceu, e mais guerreiros de seu marido irromperam no tumulto que reinava no pátio do castelo.

Os soldados corriam de um lado a outro, saíam dos barracões e desciam da torre para ver o que estava ocorrendo.

*

Tor e seus homens lutavam como possessos, atravessando com a espada a todo aquele que se interpor em seu caminho. A rapidez e a ferocidade do ataque eram assombrosas. Os ingleses, aturdidos, não eram rival para eles.

Christina viu perecer ao cruel capitão que tinha assassinado aos homens de Tor e a tinha mantido presa, virtualmente partido em dois por um poderoso talho da enorme espada de seu marido.

Desviou o olhar, pois não tinha estômago para presenciar a morte de ninguém, inclusive quando era merecida.

O céu se iluminou, e as chamas prenderam ao redor deles. Os animais se uniram à correria humana que tentava escapar. Christina esteve a ponto de ser atropelada por um cavalo, mas uma mão firme a levantou e a pôs fora de perigo.

Tor. Antes que Christina pudesse deitar-se em seus braços, ele a fez girar para um lado enquanto, com uma mão, atirava um golpe de espada a um soldado que se aproximou dela por trás.

Mas o caos começava a remeter. Seu marido e seus homens tinham despachado já à maioria dos soldados havia no pátio. Uma nova onda de ingleses desceu em turba a escada da torre, mas quando cruzaram a ponte sobre o fosso, os guerreiros de Tor estavam esperando-os para dar conta deles um a um. Ao precaver-se do que ocorria, alguém —certamente lorde Seagrave— deu a ordem de retirada da torre. Os homens que ficaram no pátio foram deixados a sua sorte quando a porta da torre se fechou.

Christina abraçou a seu marido, com o rosto contra seu peito, muito aliviada para que importasse que estivesse coberto de barro e imundície.

—Não estava segura de que chegasse a tempo.

Ele a afastou ligeiramente, levantou-lhe o queixo com sua mão embainhada em uma manopla e lhe deu um beijo tão selvagem e frenético que a deixou sem fôlego e atordoada por uns instantes. Entretanto, Christina não se atrevia a ter ilusões.

Ele interrompeu o beijo e a olhou aos olhos.

—Eu temia que fosse muito tarde. Encontra-te bem?

Ela assentiu, e as lágrimas apareceram em seus olhos. Uma só olhada ao Tor bastou para que todo o medo, o espanto e o desespero que tinha acumulado em seu interior nos últimos dias estalasse em uma corrente de pranto.

—foi horrível. Seus homens… —Soluçou—. O navio… Todos mortos.

Os lábios de Tor adotaram uma expressão séria sob a máscara de aço.

—Sei. Chist - a sossegou, tentando tranqüilizá-la—. Já me contará isso mais tarde. —Levantou-lhe o rosto para a luz e proferiu uma maldição ao ver os hematomas em torno da bochecha e do o olho—. Quem te fez isto? Matarei-o.

—Já o fez - repôs ela, assinalando ao capitão.

—Tenho que te tirar daqui. Está em condições de montar a cavalo?

Christina assentiu com um ardor e um nó na garganta que lhe impedia de falar.

—Bem. Um de meus homens está juntando cavalos fora da paliçada; levarei-te com ele. Estará a salvo até que terminemos aqui.

Tinha a intenção de tomar também a torre. Considerando o que os ingleses tinham feito a seus homens, ela sabia que não teria piedade.

—Não há tempo para isso. Tem que me levar até o conde de Carrick quanto antes. Rogo por que esteja no Lochmaben.

—Bruce? O que necessita dele?

Falou-lhe dos documentos que tinha lido, e não fez falta que lhe explicasse as possíveis repercussões.

—Está segura?

Christina fez um gesto afirmativo.

—Terá que interceptar aos mensageiros antes que cheguem onde está Eduardo.

—Viu-os partir?

—Isso eu creio. Dois homens partiram a cavalo antes do almoço.

—Ingleses?

Christina assentiu.

—Poderão prosseguir sua viagem com menos dificuldades que os homens do Comyn quando chegarem à fronteira.

—Eu me ocupo dos mensageiros.

Dirigiu-se a um dos guerreiros vestidos de negro e lhe disse algo. O homem reuniu a três guerreiros mais, subiram no lombo de suas cavalgaduras e puseram-se em marcha.

Uns minutos mais tarde, Christina cavalgava junto com o Tor, rapidamente, em direção ao Lochmaben.

*

Robert de Bruce, conde de Carrick e senhor do Annandale, escutou o relato de Christina com incredulidade crescente, e logo com ira mal contida. Que não pusesse em julgamento a veracidade de suas palavras confirmava que esse documento tão perigoso, o tratado que tinha assinado com o Comyn, era autêntico.

—Matarei-o - disse, com os olhos azuis escurecidos pela raiva—. Sabia que não era de confiança.

—Então por que confiaram nele? —perguntou Tor.

Semelhante desacerto não encaixava com a imagem que se formara do aspirante a governar Escócia. Bruce o tinha surpreendido. Assim que o tinha visto, Tor tinha identificado nele o único traço que teria impressionado a qualquer Highlanders: Bruce era um guerreiro. A diferença da maioria dos nobres escoceses, dava a impressão de sentir-se tão cômodo no campo de batalha como no Parlamento.

O conde tinha um olhar ardiloso e dizia as coisas sem disfarces; algo insólito para um político. Embora não restava dúvida de que era um homem orgulhoso, felizmente parecia desdenhar a pompa ao que era tão aficionada a nobreza das Lowlands. O brat forrado de pele e o pesado broche de ouro que levava a pescoço eram os únicos sinais visíveis de sua riqueza. Se tinha notado o pó e a sujeira que recobriam ao Tor e a seus homens, não tinha dado o menor indício disso, e os tinha feito passar ao salão em seguida.

Bruce baixou a voz para responder à pergunta de Tor. Embora lhe tivesse assegurado que podiam falar com inteira liberdade no salão, não era demais ser precavidos.

—Teria sido mais fácil vencer a Eduardo com uma Escócia unida. Além disso, esperava poder evitar uma guerra civil. Não acreditava capaz de confessar sua própria traição para delatar a mim. Comyn tem mais fé que eu na gratidão de Eduardo. —Olhou ao Tor com fixidez—. A quem enviaram atrás dos mensageiros?

—Aos melhores homens - respondeu ele—. Lamont encabeça a equipe; encontrarão-os.

Bruce lhe sustentou o olhar e, ao perceber que a segurança com que falava era sincera, assentiu.

—O que ides fazer, milorde? —perguntou Christina.

—Não sei - disse Bruce em um tom solene—, mas Comyn terá que prestar contas pelo que tentou hoje. —Como acima de tudo era um cavalheiro galante, Bruce deixou a um lado a ira e se inclinou sobre a mão dela para lhe plantar um casto beijo nos nódulos — Estou em dívida com você, lady Christina, uma dívida que jamais poderei lhe pagar. —voltou-se para Tor—. Espero que seu marido seja consciente de quão afortunado é por ter uma esposa que não só é bela, mas sim também possui talentos inesperados e extremamente úteis. Dissestes as palavras desse documento melhor que meus tabeliães. —Seus olhos cintilaram—. Possivelmente deveria toma-la a meu serviço.

Christina, encantada com a adulação, ruborizou-se de prazer ante a admiração sincera que destilava no rosto do conde; um rosto muito arrumado, diga-se passagem, embora deixasse de sê-lo se não lhe soltava a mão. Talvez isso de cavalheirismo não estivesses do todo mal.

—Sou consciente disso - balbuciou Tor entre dentes—. E temo que os talentos de Christina estejam reservados para seu marido.

A aspereza de seu tom fez que Christina franzisse o sobrecenhopois não compreendia o porquê de sua irritação. Bruce, pelo contrário, compreendia-o perfeitamente. Riu e lhe soltou a mão.

—Agradeço-lhe o serviço que me emprestastes hoje, moça. Se algum dia necessitarem algo, não têm mais que me pedir isso Christina ficou um pouco mais rubra e lhe devolveu o sorriso.

—Se não lhe importar, quereria apelar agora mesmo a essa generosidade que me ofereces. Um banho me sentaria uma maravilha.

—Disporei que lhe preparem isso no ato.

Christina dirigiu ao Tor um olhar inquisitivo.

—Vá -disse ele—. Eu irei em seguida.

Ela assentiu e saiu do salão depois da criada. Os dois homem a observaram afastar-se.

—saístes ganhando com nosso acordo - comentou Bruce com malícia.

Era certo, mas Tor não tinha por que dizer-lhe.

—Não me queixo.

—decidistes aceitar a encomenda.

—Com algumas condições. —Na presença de Christina tinham falado em francês, mas tinham ido inconscientemente ao gaélico quando ela se fora; outro ponto a favor de Bruce.

O conde o olhou com receio.

—Que condições?

—Obedeceremos a suas ordens, mas eu tenho que estar no comando da equipe. Para que uma guarda destas características seja eficaz, devo gozar de autonomia e de uma autoridade absoluta sobre o terreno.

Bruce refletiu durante longo momento, ao que parece não muito agradado por suas exigências.

—Assim que eu lhe digo o que necessito e vocês decidem como levá-lo a cabo?

Tor deu de ombros. Essa era uma forma de vê-lo.

Ao cabo de uns minutos mais, Bruce, a contra gosto, assentiu em sinal de consentimento.

—Não é que não esteja impressionado pelo que seus homens e vocês têm feito, mas a próxima vez procure me avisar antes de atacar uma praça inglesa.

Tor sorriu.

—Farei o possível, mas o que ocorre é que não dispúnhamos de tempo. Os ingleses tinham em seu poder um bem muito valioso para mim.

—Alguma outra condição?

—Embora meus homens e eu estejamos presos a seu código cavalheiresco, e embora lhe façamos o trabalho sujo, não obedecerei nenhuma ordem que me obrigue a matar mulheres ou meninos.

—Alegra-me ouvir isso - disse Bruce com expressão sardônica—. Embora lhe encomendarei missões perigosas e desagradáveis, dou-lhe minha palavra de que não lhe pedirei nada que não esteja disposto a fazer eu mesmo.

Surpreendentemente, Tor advertiu que falava sério. Sua admiração pelo elogiado cavalheiro cresceu grandemente. Em um princípio, a decisão de Tor de dirigir a equipe não obedecia tanto a seu desejo de unir-se a Bruce como de derrotar a Eduardo. Entretanto, o jovem conde lhe tinha causado uma magnífica impressão. Bruce não era um aristocrata de pouca subida, a não ser um guerreiro nobre decidido a recuperar um reino. A diferença de quase todos aqueles que se regiam pelas regras cavalheirescas, Bruce não assustava sujar as mãos. Era uma qualidade que seria necessária se queria ter a menor possibilidade de êxito. Para ganhar aquela guerra, teria que arrastar-se pelo barro.

Tor o olhou aos olhos.

—E Comyn? Querem que me ocupe dele?

Bruce não fingiu ter interpretado mal a pergunta. Seu caminho ao trono não só estava obstaculizado pelo rei Eduardo, mas também pelo Comyn o Vermelho, possivelmente o nobre mais poderoso daquelas terras.

—Não. Eu mesmo me encarregarei do Comyn.

Tor assentiu, consciente de que as primeiras hostilidades de uma longa guerra estavam a ponto de começar.

—Vá - disse Bruce—. Atendas a sua esposa. —Sorriu—. Embora lhe aconselho que primeiro que tome um bom banho e mudes de roupa.

Tor torceu a boca.

—Sábia recomendação. —Talvez fosse mais fácil convencer a sua esposa de que o perdoasse se não fedesse a pântano.

—E outra coisa, MacLeod. —Tor se voltou, e Bruce lhe dirigiu um olhar severo e significativo—. Estejas preparado.

—Sim, milorde - respondeu Tor com uma inclinação da cabeça—. A suas ordens.

*

Os efeitos relaxantes do banho se dissiparam quando levaram a água. Christina tinha posto uma túnica e um vestido limpos que lhe tinha emprestado a esposa de Bruce, lady Elizabeth de Burgh. Quase sem reparar na decoração luxuosa que a rodeava, aguardava ansiosa, sentada em uma cadeira frente à chaminé, secando os cabelos, sem saber o que aconteceria quando seu marido aparecesse por fim.

Mostrou-se muito aliviado ao vê-la, mas Christina intuía que devia estar furioso com ela por haver partido. Esperava poder lhe fazer compreender que não havia alternativa, que os dois estariam melhor separados. Sabia que tinha sido uma covardia abandoná-lo sem lhe dar explicações, mas aquela primeira despedida tinha sido muito dura; não tinha nenhuma vontade de dizer adeus cara a cara.

Por que Tor demorava tanto?

Quando a porta se abriu finalmente uns minutos depois, o motivo da tardança ficou evidente. Ela ficou sem fôlego e notou uma opressão tão forte no peito que era quase um ardor. igual a ela, Tor tinha tomado um banho. Seu cabelo castanho com reflexos dourados reluzia à luz do fogo, e um aroma fresco de sabão flutuava no ar quente.

Christina sentiu o coração dar um tombo. Por que tinha Tor que lhe complicar a vida estando sempre tão absurdamente arrumado?

Seus olhares se encontraram. Ela abriu a boca com a intenção de desculpar-se, mas, para sua surpresa, viu-se apanhada em um apaixonado abraço.

—Por Deus santo, Christina, deu-me um susto de morte! —Tor deu um beijo no cocuruto a sua esposa e a estreitou com mais força entre seus braços—. Acreditava que tinha te perdido…

Seu tom soava diferente. Falava com uma voz mais suave, rouca pela emoção. Ela não queria ter ilusões vãs. Nada tinha mudado. Tor tinha ido em seu resgate, mas isso era algo que já tinha feito antes. desta vez ela não se deixaria levar por suas fantasias românticas. Aquilo não significava que ele a amasse.

Aspirou profundamente, desejando reter seu aroma quente e masculino, antes de obrigar-se a si mesmo a afastar-se dele.

—Suponho que estas desejando saber o que aconteceu com seus homens - disse—. Foi espantoso. —Os olhos se encheram de lágrimas—. Todos morreram…

Tor curvou os lábios em uma expressão séria.

—Morreram fazendo aquilo para o qual estavam treinados, Christina, o que mais amavam. O objetivo na vida de um highlander é morrer em batalha. Para um guerreiro, é a máxima honra.

Christina nunca conseguiria entender. Os guerreiros eram feitos de uma massa diferente.

—me conte o que aconteceu pediu Tor com delicadeza.

Explicou-lhe que os navios os tinham seguido e os tinham assaltado sem provocação prévia. Seu marido a escutou sem interrompê-la, sorrindo ao ouvir como seus homens a tinham rodeado e a tinham protegido com seu corpo.

—Talvez se eu não tivesse…

—Não - a cortou Tor—. Teriam morrido embora não estivesse ali. Ninguém teria podido prever o que ia acontecer. Meus homens realizam essa rota várias vezes ao mês; os assaltos no mar são muito pouco freqüentes. Imagino que os MacDougall reconheceram minha insígnia e decidiram prosseguir com seus esforços por acabar comigo.

—Eram os MacDougall que estavam atrás dos ataques?

Tor assentiu.

Isso significava que…

—alcançamos ao irmão John antes que pudesse divulgar o que tinha averiguado.

—Assim é. —Graças a Deus. Ao menos ela não seria responsável por isso—. O que não sabes é que meu novo tabelião era sobrinho de John do Lorne, e que meu tabelião anterior não tinha sofrido um acidente.

Que horror! Christina mordeu o lábio; ainda lhe custava assimilar a traição de seu amigo. Ao notar que Tor a observava, levantou o olhar para ele.

—E quando o deixaram…?

Ele a olhou fixamente.

—Tinha-nos visto.

Christina fez um gesto para indicar que tinha compreendido. Não podia ser de outra maneira. O tabelião sabia ao que se expos, o que lhe aconteceria se o capturavam. Mesmo assim, o coração lhe encheu de tristeza por sua morte.

Ao perceber sua aflição, Tor lhe afastou uma mecha de cabelo do rosto e acariciou devagar sua bochecha arroxeada com o dorso do dedo.

—Não sofreu. E acredito que lamentava ter te envolvido em sua traição. Sentia um afeto autêntico por ti.

A ternura das carícias a confundiu, igual a suas palavras amáveis. Por que tinha que lhe pôr as coisas tão difíceis? Ela so queria passar o mau gole quanto antes. Afastou o rosto da mão de Tor e recuou um passo.

—Não deveria ter te deixado desse modo.

—Não, não deveria.

—Fui uma covarde por não me despedir. Mas… temia… temia que me faltassem as forças.

—por que me deixou, Tina?

Algo em sua voz fez que o coração lhe desse um salto. Não. Negava-se a imaginar sentimentos que não existiam.

—Porque não suportaria passar o resto de meus dias com alguém que jamais poderia me amar - respondeu sem olhá-lo—, que não me deixaria formar parte de sua vida porque não me quer ou não me valoriza.

—Entendo - disse ele sem alterar-se—. Se todo isso era certo, tinha motivos de sobra para partir.

Tinha? Ela cravou o olhar em seus olhos inescrutáveis. É obvio que os tinha. Tor devia ter concluído também que seu matrimônio não levava a nenhuma parte. Ardiam-lhe as vísceras. Por que doía tanto a verdade? O que haveria ao Tor fingir que se importava ao menos um pouco? Baixou o olhar para que ele não visse seus olhos chorosos. De algum modo conseguiu articular as palavras, embora cada uma delas lhe engasgasse: —Se me levar a Iona na travessia de volta, não voltarei a te incomodar.

—Temo que não posso fazer isso —repôs ele com suavidade.

Christina notava em seu interior uma dor cada vez mais intensa, como um ferro candente contra a pele em carne viva.

—É obvio. Estará ocupado com sua equipe e o conde. Possivelmente possa dispor que um navio me leve…

—Não.

A firmeza da negativa a impulsionou a olhá-lo por fim.

—Não irá a Iona - disse Tor.

Christina ficou perplexa.

—Mas jurou que se algum dia eu desejasse ir, deixaria me retirar a lona com minha irmã.

Tor deu de ombros.

—Mudei de idéia.

—Não pode. Fez um juramento.

Tor sorriu ante sua indignação. Isso era algo tão inesperado para a Christina, dadas as circunstâncias, que não sabia o que fazer. Como podia ele ser tão cruel para burlar-se dela desse modo?

Entretanto, quando se fixou em seus olhos, o que viu neles fez que seu coração deixasse de pulsar.

Aproveitando-se de seu desconcerto, lhe rodeou a cintura com o braço e a atraiu para si, moldando o corpo de Christina ao dele. Beijou-a com delicadeza, docemente, com uma emoção quase reverencial.

—Farei o que seja necessário para que permaneça a meu lado - disse.

Todo rastro de hilaridade tinha desaparecido de seu semblante, e ela leu a incerteza em seu olhar.

Mas se Tor jamais sentia incerteza por nada…

—Não te entendo.

desta vez foi ele quem se afastou. Passou os dedos pelos cabelos, que seguiam úmidos. Caíam-lhe em ondas deliciosamente por debaixo das orelhas.

—Isto não eu não entendo bem.

Ela aguardou que continuasse, não muito segura do que se referia com «isto».

Tor respirou fundo.

—Quando me dei conta de que podia te perder, foi como se algo dentro de mim mudasse de repente. Como se tudo o que acreditava saber de repente se virou do avesso.

Embora Tor parecesse estar sofrendo o inexprimível, ela não teve piedade dele.

—A que te refere?

—Desde que meus pais morreram e eu passei a ser chefe, acreditava que tinha que ser diferente, que a única maneira de cumprir meu dever para com meu clã era desterrar toda emoção. Mas ao me esforçar por conseguir, esqueci-me do que significa viver. Você devolveu a calidez a minha vida - acrescentou, lhe roçando a bochecha com a parte posterior do dedo—. Acreditava que não necessitava a ninguém, mas estava equivocado. Necessito a ti, Tina. Sem ti, não tenho nada mais que uma vida fria e vazia.

Fez uma pausa, e Christina ficou contemplando-o.

—Por ser alguém quem não se dá bem falar de seus sentimentos, está fazendo maravilhas.

Ele sorriu, aliviado.

—Então já ouviste o suficiente?

Christina negou com a cabeça.

—Sei que me levei como um imbecil. —Ela não o contradisse—. Existem coisas pelas que não tenho direito a te pedir que me perdoe. Não posso alegar nada em minha defesa salvo que estava convencido de que tinha que fazer tudo sozinho. Sei que você tentava me ajudar. Além disso, não foi a única que se deixou enganar por aquele modesto tabelião. Sim, valorizo-te. Sempre te valorizei, embora possivelmente não soubesse até que ponto. Nunca me tinha dado conta que uma mulher pudesse ser tabelião, mas demonstraste que me equivocara. Rhuairi diz que seus cálculos são impecáveis. E, depois do que tem feito hoje… Graças a ti, Bruce viverá para lutar o dia de amanhã. —O orgulho que brilhava em seus olhos não podia ser fingido—. Perdoe-me, Tina. Retorna a casa comigo e me dê outra oportunidade.

Ela tinha o coração a ponto de estalar. Não havia nada que desejasse mais que apoiar a cabeça em seu peito e render-se à esperança que lhe brindava. Mas sua mente resistia a deixar-se convencer tão facilmente. Não poderia suportar outro frio rechaço como o da última vez.

—Como posso estar segura de que não reagirá exatamente da mesma maneira quando voltar a fazer algo que te desgoste?

Tor a olhou com apreensão.

—Tem pensado me desgostar muito freqüentemente?

Ela franziu os lábios e levantou o queixo.

—Pode ser que sim. Não vou conformar sendo sua esposa unicamente no quarto. Temo que vou pôr-me exigente contigo.

—Como de exigente? —perguntou ele como se lhe estivessem arrancando um molar.

—Muito. E se acessar a retornar, as coisas serão diferentes.

Ele a olhou com expressão de abatimento.

—Não vais facilitar-me as coisas, verdade?

—Temo que não. —Tor agachou a cabeça para animá-la a continuar—. De vez em quando, talvez queira que demonstre seu afeto diante dos membros de seu clã.

Ele fez um gesto de dor.

—Seguro que isso não será nece…

—Um olhar terno, possivelmente um beijo rápido. Nada que te custe muito esforço.

—Não é você quem terá que agüentar os comentários do MacSorley junto à fogueira.

—Estou segura de que é o bastante homem para suportar —disse ela sem mostrar a menor compaixão. Os guerreiros temíveis não deviam choramingar—. E de vez em quando possivelmente goste de te dar minha opinião sobre os temas de suas conversas.

—Sempre e quando estiver de acordo comigo.

—Inclusive quando essas opiniões não coincidam com as tuas.

Tor torceu os lábios.

—Em particular poderá me contradizer quanto queira.

Christina assentiu.

—Parece-me razoável.

—É tudo? —inquiriu Tor, com o aspecto de um réu que ia caminho do patíbulo.

Ela sacudiu a cabeça e levantou o olhar para ele, esperando que sua voz não delatasse o vulnerável que se sentia.

—Exijo também seu coração.

—É teu — disse Tor sem vacilar. Christina reprimiu o impulso de mover-se.

Tor pôs cara de sofrimento.

—Me vais obrigar-me a dizer, verdade? —perguntou.

Ela fez um gesto afirmativo.

—Temo que sim. É importante que o ouça de sua boca se tiver que te acreditar.

—É uma mulher cruel.

—Cruel, não. Desumana. —Sorriu com picardia—. Aprendi com o melhor.

Então Tor fez algo que Christina jamais teria imaginado que lhe veria fazer, algo que não esqueceria em toda a vida. Seu marido, o chefe orgulhoso, o rei de seu clã, o guerreiro maior de sua época, pegou sua mão e fincou um joelho em terra, ante ela.

—Amo-te, Tina. Talvez não seja o cavalheiro pelo qual suspirava, mas se voltar para meu lado te prometo que me pugnarei por te demonstrar meu amor todos os dias do resto de nossas vidas.

As lágrimas escorregavam pelas bochechas de Christina.

—Diz de coração?

Um sorriso irônico se desenhou no arrumado rosto de Tor.

—Tendo em conta minha posição neste momento, acredita que é necessária a pergunta? —Seu sorriso se alargou—. Sim, carinho. Digo de coração. Amo-te com toda minha alma.

Ela sabia que Tor nunca tinha pronunciado essas palavras antes.

—Dará-me outra oportunidade?

Christina moveu a cabeça afirmativamente.

Com um gemido de alívio, Tor a estreitou entre seus braços e não a soltou até que demonstrou esse amor. Uma e outra vez.


Epílogo


Ah, quão nobre é a liberdade!

John Barbour,

A gestão de Roberto de Bruce


Perto da abadia do Scone,

Perthshire, 27 de março de 1306


Os primeiros raios da alvorada apareciam por cima do horizonte. Como se Deus erguesse a mão para benzer em pessoa a cerimônia, um facho de luz brilhante e alaranjada atravessara como dedos o círculo de pedras. Esse espetacular efeito se viu realçado pelo lamento assustador das gaitas de fole que fendia o ar fresco desse dia da primavera. Não importava que o monumento em si fosse pagão: sua majestosidade prevalecia sobre tais considerações. Era um vínculo com o passado remoto da Escócia, um símbolo de força e continuidade, tão misterioso como os homens que se dispunham a ajoelhar-se ante o recém coroado rei da Escócia para lhe oferecer sua lealdade… e sua vida.


Christina, que se achava entre as testemunhas da cerimônia secreta que se estava celebrando entre pedras pagãs, não acreditava que pudesse haver um marco mais apropriado. Naturalmente, seu marido teria preferido que permanecesse a salvo no Skye, mas ela não se teria perdido aquilo por nada do mundo. Ganhou com acréscimo o direito a estar ali e não pensava deixar que ele o esquecesse.

Seu descobrimento tinha dado lugar ao enfrentamento final entre o Bruce e Comyn, e, posteriormente, a aquela cerimônia. Fazia pouco mais de sete semanas, Bruce tinha matado a seu adversário, Comyn o Vermelho, em frente ao altar da igreja do Greyfriars. A cruz ardente se propagou por toda Escócia, chamando a todos seus guerreiros a unir-se sob o estandarte de Bruce. Fazia só dois dias, na abadia do Scone, cenário histórico da coroação dos reis da Escócia, Robert de Bruce tinha sido proclamado rei da Escócia, embora sem a antiga pedra do Scone, roubada pelo rei Eduardo dez anos atrás.

Havia menos testemunhas dos que Bruce esperava. Três dos nove bispos — entre eles Lamberton, o mais influente— estavam presentes, e dos treze condados, somente os senhores do Atholl, Menteith, Lennox e Mar tinham ido à convocatória. Era especialmente destacável a ausência do jovem conde do Fife, quem tinha por nascimento o direito e a obrigação de coroar aos reis da Escócia. Sem a presença do Fife, alguns poriam em julgamento a legitimidade do ato. Entretanto, o jovem conde permanecia na Inglaterra, prisioneiro do rei Eduardo, e a tentativa de levá-lo até ali tinha fracassado.


Bruce estava de pé ante a pedra maior, embelezado com as vestimentas reais e um aro de ouro na cabeça, enquanto o sol se levantava como uma auréola sobre ele.

—Não podemos esperar mais — disse ao Tor—. Teremos que seguir adiante sem eles.

—Chegarão — assegurou Tor com firmeza—. Dêem-lhe dez minutos mais.

Não fez falta nem a metade desse tempo: quando ainda não tinham transcorrido cinco minutos, três figuras apareceram sobre o topo de uma colina que se levantava para o sul, galopando para eles. Entre o estrondoso tamborilar dos cascos dos cavalos, os três recém chegados irromperam no centro do círculo.

Christina reconheceu entre aquelas figuras a dois dos homens de seu marido, um dos quais era Lachlan MacRuairi. A terceira era uma mulher. Christina sorriu ao precaver-se de que tinham completado sua missão com êxito. Embora o jovem conde do Fife não estivesse ali, sua irmã tinha ido em seu lugar.

MacRuairi se aproximou para ajudá-la a desmontar, mas a dama — uma condessa, neste caso—, lhe jogando um olhar desdenhoso, desembarcou de um salto sem lhe dar a mão. A expressão sombria no rosto do MacRuairi gelou o sangue a Christina. Depois de passar andando régio junto ao ameaçador highlander, a condessa se dirigiu a toda pressa para o rei para prostrar-se ante

ele. O capuz de sua capa caiu para trás, deixando ao descoberto longos cabelos de cor loiro platino, uma paradoxo de suavidade que contrastava com a férrea determinação de suas feições pronunciadas. Christina viu que era jovem, talvez poucos anos mais velha que ela, com uns traços marcados, mais chamativos que belos.

—Excelência - disse com uma voz rouca e transbordante de orgulho—, vim assim que me foi possível. Espero não ter chegado muito tarde.

Bruce lhe dedicou um sorriso tão cálida que Christina se perguntou se seriam certos os rumores de que no passado tinham mantido uma relação amorosa.

—Não, Bela, não é muito tarde. Nunca é muito tarde, e menos ainda quando arriscastes tanto por vir.

Bruce não era o único que estava assombrado pela valentia da jovem condessa. Lady Isabella MacDuff tinha desafiado a seu marido e ao rei para ir a aquela entrevista. E não só era a irmã do conde do Fife, mas também a esposa do conde de Buchan, John Comyn, primo do Comyn o Vermelho e seguidor leal do rei Eduardo. Christina estava convencida de que se a Eduardo lhe apresentasse a oportunidade, faria pagar caro sua ousadia à condessa.

Pela segunda vez em um par de dias, presenciou a coroação do Robert de Bruce como rei da Escócia, embora nessa ocasião fosse lady Isabella quem lhe rodeou o aro de ouro à cabeça.


—Beannachd Do Righ Alban — disse a condessa quando teve terminado. «Que Deus abençõe ao rei da Escócia.»

Mais tarde, levaram rapidamente à condessa rebelde ao palácio para que se reunisse com a esposa e as irmãs de Bruce.

Ao ir a cavalo ao encontro de Bruce, Isabella MacDuff tinha escolhido seu caminho e já não poderia retornar ao lado de seu marido nem da filha que tinha deixado pra trás. De forma inconsciente, Christina levou a mão ao ventre, incapaz de imaginar-se tamanho sacrifício. Embora tivesse confirmado suas suspeitas fazia somente uns dias, já albergava um profundo carinho para o menino que estava gerando.

Por fim, chegou o momento da cerimônia que ela estivera esperando.

Um por um, os guerreiros de elite da guarda de highlanders de Bruce saíram à frente. Inclusive à luz do dia apresentavam um aspecto temível. Se não os tivesse conhecido no transcurso dos últimos dois meses, Christina teria acreditado que não eram reais, a não ser personagens míticos ou produtos de sua imaginação. Todos vestidos de negro e com seu elmo escuro, cujo protetor nasal lhe tampava boa parte do rosto, os guerreiros secretos foram chamados um após o outro por seus nomes códigos para que se ajoelhassem ante a enorme espada de Bruce. O apelido de MacSorley era «Falcão»; o de MacRuairi, «Víbora»; o de MacKay, «Santo»; o de Boyd, «Incursionador»; o de Lamont, «Caçador»; o de MacLean, «Golpeador»; o de MacGregor, «Flecha»; o de Seton, «Dragão», e o de Gordon, «Templário».


O último guerreiro do grupo era o que ela esteve esperando. Os homens se negaram a lhe revelar que nome tinham decidido pôr em seu marido.

—Chefe — chamou Bruce.

Christina sentiu que o coração lhe dava um tombo, comovida pela grande honra que os guerreiros tinham conferido a seu marido. Embora procedessem de clãs diferentes, Tor os tinha unido para formar um novo: MacLeomhann, «filho do Leão». Seria um clã que não estaria apoiado no parentesco, e sim em um objetivo comum: a liberdade e —como simbolizava a nova tatuagem de um leão rampante que seu marido luzia no braço— a restauração de um escocês no trono da Escócia.

Christina viu relampejar os olhos de seu marido sob o aço de seu elmo e soube que ouvir seu apelido também tinha emocionado a ele.

Com um nó na garganta, Christina observou a seu marido avançar e prostrar-se ante seu rei. Nunca se havia sentido tão orgulhosa dele. Era consciente do perigo que corria, mas a aventura em que ele e seus homens estavam a ponto de embarcar-se mudaria o rumo da história. Manter em segredo suas atividades seria complicado, mas por sorte ele tinha um irmão gêmeo que poderia ocupar seu lugar enquanto estivesse longe de casa.

«longe de casa.» Ambos teriam que fazer sacrifícios nos altares daquela guerra.

Mas quando Tor agachou a cabeça e a folha da espada de Bruce lhe tocou o ombro, Christina soube que tinha encontrado algo muito melhor que o cavalheiro de seus sonhos; tinha encontrado a um highlander que tinha conquistado seu coração e um amor que duraria toda a vida.

Os dez guerreiros formaram um círculo em torno de seu rei. Com as espadas em alto por cima de sua cabeça, gritaram: —Airson an Leomhann! —«Pelo Leão!», uma divisa que acabaria por semear o medo no coração de muitos homens.

A operação Leão Rampante30 tinha começado.


Fim


Nota da Autora A maioria dos personagens principais da história estão baseados livremente em figuras históricas reais. «Tor» foi o primeiro chefe e fundador do clã MacLeod (e sexto bisavô de Rory MacLeod, de ‘O Highlander Indomável’ ). Entretanto, em princípios do século XIV, os clãs tal e como os concebemos hoje em dia estavam ainda em matilhas. Inclusive o termo «highlander» é provavelmente um anacronismo — segundo o dicionário Oxford, a palavra highlandman aparece pela primeira vez em um texto por volta do ano 1425—, mas tanto autores de ficção (Nigel Tranter) como de não ficção (G. W. S. Barrow) empregam-na no mesmo contexto histórico. Suponho que, igual a mim, chegaram à conclusão de que não havia uma alternativa melhor. Por outro lado, que graça teria ler uma novela romântica ambientada em Escócia em que não aparece nenhum highlander?

Os dois ramos do clã MacLeod, os MacLeod de Harris e os MacLeod de Lewis, são conhecidos respectivamente como «Siol Thormoid» e «Siol Thorcuil» («semente de Tormod» e «semente de Torquil», em sentido literal). As últimas investigações sobre a genealogia dos MacLeod desmentem a crença anterior de que Tormod e Torquil eram irmãos, e em troca parecem indicar que Torquil foi neto de Tormod (e filho de Murdoch). Setecentos anos depois, é impossível riscar a genealogia com exatidão. Decidi me ater à versão tradicional, tanto por simplicidade como porque é a que mantém o chefe atual do clã MacLeod no lugar da Web de Dunvegan. De forma similar, a descendência de Tor por linha paterna do rei da Noruega e do rei de Man descrita no primeiro capítulo também está simplificada em grande medida e é objeto de controvérsia.

A maioria dos genealogistas coincide em que Tor se casou duas vezes e em que sua segunda esposa foi Christina Fraser, irmã do Alexander (seguidor de Bruce, a quem estava muito unido, e que mais tarde se desposaria sua irmã Mary) e de Simon, o primeiro senhor de Lovat. O pai de Christina esteve detido na Inglaterra durante uma temporada, mas diferente do que se conta na novela, sua família se encontrava ali com ele. Cabe supor que Christina e seus irmãos passaram um tempo na corte inglesa.

As alianças forjadas pelo Tor através do matrimônio ilustram à perfeição a mudança que se estava produzindo naquela época nas ilhas Ocidentais, que eram um reino marítimo independente de estar sob o domínio da Escócia. O primeiro enlace de Tor foi com uma família influente da costa ocidental, e o segundo com a filha de um nobre escocês.

O ataque de Skye por parte do conde do Ross ocorreu em realidade duas décadas antes da novela, em 1262. Foi tão brutal como o hei descrito, assassinato de meninos incluído. A morte dos pais de Tor durante a incursão, não obstante, é um fato fictício.

Segundo algumas lendas, Torquil MacLeod se fez com suas terras no Lewis matando a todos os membros varões do clã Nicolson (afogando-os no Minch) e casando-se depois com a filha herdeira. Como supus que isto seria algo excessivo para o gosto da maioria dos leitores, decidi dar um toque mais romântico à história.

O trasfondo político da primeira guerra da Independência da Escócia é, por dizer com suavidade, extremamente complicado. Aos interessados em conhecer mais a fundo aquela época, recomendo encarecidamente o livro Robert de Bruce do G. W. S. Barrow (Edinburgh University Press, 2005). Para quem quer ler uma série de novelas históricas e amenas ambientadas nesse período The Bruce Trilogy do Nigel Tranter (Hodder Headline, 1985); é um clássico.

A relação entre Bruce e Wallace foi muito mais complexa que a que descrevo no livro. Ambos desejavam expulsar aos ingleses da Escócia, mas Wallace aspirava a restaurar no trono à família Balliol, enquanto que Bruce queria a coroa para si. Tal como assinala Tor quando o critica no primeiro capítulo, Bruce se passava repetidamente do bando dos «patriotas» ao dos ingleses e vice versa. No geral, seus atos podem explicar-se em função de quem apoiavam os Balliol/Comyn; normalmente ele estava no lado contrário.

Passei nas pontas dos pés pelo que é provavelmente o momento mais importante na vida de Bruce: o assassinato de seu rival, Comyn o Vermelho, ante o altar da igreja do Greyfriars. Os relatos de quão feitos culminaram com o assassinato diferem enormemente entre si. Uma das versões «românticas» (hoje desacreditada) fala de um pacto com o Comyn e de mensageiros que levavam a Eduardo prova da traição de Bruce, mas que foram interceptados. Decidi aproveitar esta história porque minha heroína encaixava bem nela, mas também porque me encontrei com o mesmo problema que muitos dos primeiros cronistas da vida de Bruce: como explicar o ato decididamente anti heroico de um grande herói. Era evidente que Comyn se interpunha entre o Bruce e o trono, mas embora tira-lo meio era «necessário», o assassinato de um rival não causa boa impressão, olhe como se olhe. O fato de tê-lo matado em uma igreja e de ter violado com isso seu direito de asilo agravava muito as coisas. Por causa deste crime, Bruce esteve excomungado durante quase vinte anos. Escócia ficou debaixo de interdição também durante um tempo.

O assalto ao castelo do Dumfries se produziu em realidade depois de que Bruce matasse a Comyn, não antes, como acontece na novela. Atacar Dumfries foi o primeiro ato de rebeldia de Bruce contra o rei Eduardo. O governador do castelo naquela época era sir Richard Siward, não Seagrave. Entretanto, é verdade que Seagrave esteve destinado na Escócia durante anos.

Uma das maiores lacunas em meu conhecimento da história daquela época era a importância real que tiveram os descendentes do rei Somerled: os MacDonald (senhores de Islay), os MacRuairi (senhores do Garmoran) e os MacDougall (senhores de Argyll). «MacSorley» é o nome com que se conhece coletivamente aos descendentes de Somerled. Sabia da importância dos MacDonald (mais tarde senhores das Ilhas), mas desconhecia por completo a dos MacRuairi e os MacDougall. Estes últimos eram certamente o clã mais poderoso naquela época, mas foram a menos guerras de Independência. Nossos velhos amigos, os Campbell, foram os mais beneficiados com sua desgraça. Os MacRuairi desapareceram poucas décadas mais tarde.

Contava Bruce de verdade com «forças especiais», uma guarda de highlanders que utilizava como exército pessoal? A resposta breve é não, mas existem alguns paralelismos interessantes. As semelhanças com uma unidade de forças especiais são fictícias, mas é verdade que Bruce tinha uma «mesnada» ou séquito pessoal ao que pertenciam Robert Boyd e partidários deles como Christopher Seton, Alexander Fraser (irmão de Christina), Thomas Randolf, Edward Bruce e Neil Campbell. Este último, junto com Alexander Seton e Thomas Há, assinou um documento no que se comprometia a defender e apoiar Bruce até o final. Em um desses descobrimentos fantásticos que se fazem por acaso, encontrei uma referência ao Donald», filho de Alistair (em quem está apoiado o personagem de MacSorley), que dirigiu a um grupo seleto de highlanders (uma «tropa de ilhéus»), por ordem de Angus Og, com o fim de ajudar e proteger Bruce em 1306. Impressionante, não é?

O que está claro é que, já no início, Bruce reconheceu a importância das Highlands Ocidentais. Na transcendental batalha de Bannockburn, em 1314, Bruce lutou contra os ingleses à frente de uma divisão de highlanders e ilhéus. Em teoria, muitos dos membros da «Guarda das Highlands» combateram ao seu lado (incluindo Tor). E quando Bruce viveu seu momento mais difícil em sua luta por ocupar o trono, foram os highlanders e os ilhéus que foram em sua ajuda. Mas isso já é parte de outra história.

 

 

Notas


[1] O bìrlinn, vulgarmente conhecido como a fhada de longa duração (“Navio de longa duração”), foi construído de tijolo e pode ser navegado ou remado. It had a single mast with a square sail. Tinha um único mastro com uma vela quadrangular. Smaller vessels of this type might have as few as 12 oars, with the larger having as many as 40. As embarcações menores deste tipo pode ter apenas 12 remos, e o maior ter tantos como 40. For over 400 years, down to the 17th century, the bìrlinn or long-fhada was the dominant vessel in the Hebrides. Por mais de 400 anos, até o século 17, o bìrlinn ou fhada longa era a embarcação dominante nas Hébridas
[2] Chrétien de Troyes (c. 1135 – c. 1191) foi um poeta e trovador francês do final do século XII. Foi um dos primeiros autores de romances de cavalaria, sendo também considerado o primeiro grande novelista em língua francesa. Suas obras inspiraram a literatura em toda a Europa Ocidental durante a Idade Média. Sua obra é a primeira a mencionar temas tão conhecidos hoje como a busca do Santo Graal e o amor entre Lancelote e a rainha Genebra. A obra de Chrétien inclui cinco grandes poemas em versos octasilábicos. Destes, quatro estão completos: Erec e Enida (c. 1170), Cligès (c. 1176), Ivain, o Cavaleiro do Leão e Lancelote, o Cavaleiro da Carreta, os dois últimos escritos simultaneamente entre 1178 e 1181.
[3] Meleagant (também grafado Malagant ou Maleagant) é um vilão da lenda arthuriana. Originalmente um cavaleiro da Távola Redonda filho do rei Bagdemagus de Gorre, sua reivindicação à fama decorre de ter sido o seqüestrador de Guinevere. Sua primeira aparição ocorre em Lancelote, o Cavaleiro da Carreta por Chrétien de Troyes, onde leva Guinevere para seu castelo indevassável. A rainha é resgatada por Lancelote e Gawain; esta também é a primeira aparição de Lancelote na lenda arthuriana. Meleagant supostamente teria sido criado com base em Melwas, vilão das primeiras histórias galesas, o qual captura Guinevere na Vida de Gildas. Nesta obra, o rei Melwas captura a rainha e a leva para sua fortaleza em Glastonbury. Arthur a localiza após um ano de buscas e se prepara para atacar o castelo, mas Gildas negocia seu retorno em segurança.
[4] Casaco medieval que se colocava sobre a armadura
[5] Que segue, que acompanha; partidário; sectário, seguidor. S.m. Membro de um bando ou partido; prosélito, assecla.
[6] Maça de guerra:
[7] Machado de guerra:
[8] São Columba (7 de Dezembro de 521 a 9 de Junho de 597) também conhecido como Columba de Iona, ou, em Gaélico, Colm Cille ou Columcille (“pomba da Igreja”). Foi a grande figura missionária da Escócia. Monge irlandês (gaélico), reintroduziu o Cristianismo entre os Pictos medievais. É dito como sendo o primeiro a ter avistado Nessie, o monstro do lago Ness.
[9] Marzipã, marzipan ou maçapão é um doce de origem árabe, preparado a partir de uma pasta feita de amêndoas moídas, açúcar e claras de ovos, que pode ser moldada em praticamente qualquer formato. Também podem ser adicionadas essências.
[10] Clàrsach ou Cláirseach (dependendo irlandês gaélico ou gaélico escocês grafias), é o gaélico palavra genérica para “uma harpa , como derivado do irlandês médio . In English , the word is used to refer specifically to a variety of small Irish and Scottish harps. Em Inglês, a palavra é usada para se referir especificamente a uma variedade de pequenas e gaitas escocesas irlandês.
[11] “é um contador de histórias tradicional irlandesa. Grafias Alternatate incluem seanachaí, senachaí senachie e Shanachie. A palavra é uma forma latinizada do seanachaidh língua irlandesa ou seanchuidh. Vem da palavra irlandesa “seanachas” ou “seanchus” significado “histórico” ou “folclore”.
[12] Cuirm era uma espécie de cerveja fabricada pela Gael . It was a powerful, intoxicating liquor made from barley , and being of course used at all feasts, the word cuirm came ultimately to mean a feast itself. Era inebriante, feita de licor poderoso da cevada , e sendo, obviamente, utilizado em todas as festas, a cuirm palavra veio a significar em última análise, uma festa em si. It is supposed by some to have been the same as whisky , but the process of brewing being so much easier and cheaper than distilling , it was more probably a strong kind of beer. Supõe-se por alguns de ter sido o mesmo que o uísque mas o processo de fabricação de cerveja é muito mais fácil e mais barato do que a destilação.
[13] Vestido com abotoamento frontal e nas mangas
[14] A tradução correta para Gall-Ghàidheil ou qualquer uma das variantes de grafia é “Foreign Gaels” e não é utilizado especificamente para se referir aos estrangeiros nórdicos. It is a general term to describe a particular ethnic grouping of foreigners of which the Norse formed part. É um termo geral para descrever um grupo étnico específico de estrangeiros de que os nórdicos faziam parte. This term is subject to a large range of variations depending on chronological and geographical differences in the Gaelic language , ie Gall Gaidel , Gall Gaidhel , Gall Gaidheal , Gall Gaedil , Gall Gaedhil , Gall Gaedhel , Gall Goidel , etc. The modern term in Irish however, is Gall-Ghaeil , while the Scottish Gaelic is Gall-Ghàidheil . [ 1 ] Este termo está sujeito a uma grande gama de variações dependendo cronológica e geográfica diferenças na língua gaélica. O termo moderno em irlandês no entanto, é Gall-Ghaeil, enquanto o gaélico escocês é Gall-Ghàidheil.
[15] Whisky em gaélico escocês.
[16] Colchão fino de palha.
[17] Banshee é um ente fantástico da mitologia celta (Irlanda) que é conhecida como Bean Nighe na mitologia escocesa. As Banshee provêm da família das fadas, e é a forma mais obscura delas. Quando alguém avistava uma Banshee sabia mal seu fim estava próximo: os dias restantes de sua vida podiam ser contados pelos gritos da Banshee: cada grito era um dia de vida e, se apenas um grito fosse ouvido, naquela mesma noite estaria morto.
[18] Forte em gaélico
[19] Yule é a festa sagrada mais importante do ano teutônico. Começa em 20 de dezembro e dura doze dias, sendo o décimo segundo o primeiro dia do ano.
[20] Bardo dos habitantes das Terras Altas da Escócia, responsável por preservar e repetir as tradições das tribos.
[21] Narrativa medieval sobre mitos gaélicos
[22] Waternish é uma península de uns doze quilômetros de comprimento na ilha de Skye.
[23] Warwolf (Lobo de Guerra) considera-se a maior catapulta da história. Construiu-se na Escócia por ordem do rei Eduardo da Inglaterra, durante o assédio do castelo de Stirling, durante as guerras pela independência escocesa.
[24] Muro cercado defensivo característico dos castelos escoceses durante a Idade Média.
[25] Os brogues eram sapatos de solados planos de um couro muito flexível.
[26] Torre fortificada de duplas paredes e circular própria da Escócia.
[27] Sucessor; segundo ao mando entre as dinastias reais gaélicas.
[28] adj. || (tipogr.) diz-se do formato que tem a folha de impressão apenas dobrada em duas: Formato, volume infólio. , s. m. livro ou volume infólio: F. lat. In… +folium (folha).
[29] O Wyvern ou Guiver (também conhecido como wyverns, na sua grafia Inglês, ou drakontas - e às vezes até chamado por alguns corredores de vento) são criaturas lendárias pertencentes à mitologia medieval , em forma de grandes répteis alados da família de dragões nível inferior, mas são capazes de lançar feitiços.
[30] Leão rampante: firmado em suas patas traseiras. Em posição de ataque.

Capítulo 21

Era a última hora da tarde quando Tor retornou ao castelo. Embora tivesse desejado permanecer junto ao leito de sua esposa doente, assim que lhe asseguraram que se encontrava bem tinha ido ocupar-se de assuntos que não admitiam mais demora.

Que ele recordasse, era a primeira vez que se sentia contrariado ante a chamada do dever. Mas, além de tentar descobrir a um possível espião, tinha recebido uma mensagem inquietante de MacDonald no que lhe exigia que tomasse medidas. Embora aquilo certamente prejudicasse ao equilíbrio da equipe que tanto esforço havia tido alcançar, era inevitável.

Além disso, se ficava nesse aposento um minuto mais, corria o risco de esquecer-se de quão doente esteve Christina e lhe fazer sentir em suas próprias carnes o medo que ele tinha passado por sua culpa.

Desejava apagar para sempre de sua mente o momento em que ela se desabou no chão. Por um angustiante instante, tinha acreditado que estivesse morta. Não tinha recuperado o fôlego até que tinha notado o pulso acelerado sob seus dedos e a respiração tênue, mas constante contra sua bochecha. Sua sensação de pânico diminuiu um pouco mais quando a curandeira a examinou e comunicou a Tor que somente era um pouco de febre.

Somente. Não havia «somente» quando se tratava de sua esposa. Furioso pelo engano da anciã, aterrorizou-a ameaçando reduzir na metade os anos que ficavam, que, por certo não eram muitos.

Tor nunca havia se sentido assim. Christina despertava nele um forte instinto protetor que não sabia que tinha. Como seu marido, era seu dever mantê-la a salvo, mas o que sentia ia mais à frente do dever.

Sempre tinha sido capaz de deixar os sentimentos a um lado e fechar sua mente como uma armadilha de aço. Mas com a Christina não ficava tão simples. Havia algo nela que lhe tocava a fibra sensível, que lhe chegava muito fundo. Era delicada, amável e generosa, possuía uma mente ágil, um entusiasmo e uma alegria de viver contagiosos, mas também uma profundidade e uma têmpera maiores do que ele tinha pensado em princípio. Encarava-lhe, desafiava-o… e se preocupava com ele.

Era um remanso de doçura para um homem que somente tinha conhecido o conflito. E, por mais que se esforçasse Tor não podia manter distância.

Subiu a escada pesadamente e, de forma maquinal, observou a zona. Os guardas estavam em seus postos ao longo dos parapeitos de pedra e no seteiro - uma pequena obra em forma de caixa encostada à muralha do castelo— que sobressaía por cima das portas. Um punhado de mulheres extraía água do poço. Os criados tiravam bandejas e pratos do salão, e Christina estava…

Caiu-lhe a alma aos pés quando fixou o olhar na figura que caminhava entre as almenas. Ficou furioso, uma sensação a qual começava a acostumar-se. Que demônios fazia ela ali fora? Devia estar descansando, não perambulando por aí, exposta ao ar frio do exterior e ainda por cima com o cabelo úmido, Por Deus santo. Acaso não sabia que podia agarrar um resfriado?

Ela se voltou para ele e o saudou com um gesto. Baixou a mão devagar quando Tor se aproximou.

Tinha visto a expressão de seu rosto. Mordendo o lábio, retrocedeu uns passos, mas seu olhar apaziguador não serviu absolutamente para nada.

—Retornaste - disse em um tom exageradamente alegre—. Não te vi vir para aqui.

Sem abrir a boca nem diminuir o passo, ele se equilibrou para ela e a levantou.

Christina soltou um grito afogado de surpresa, mas ele manteve o olhar à frente, pois não se atrevia a olhá-la. Nesses momentos, seu controle sobre si mesmo pendia de um fio. Sentia um ardor no peito.

—Está exagerando-disse ela com suavidade, para aplacar a uma besta raivosa—. Encontro-me bem.

—Não fale-grunhiu ele com os dentes apertados e a ira a flor de pele—. Não fale.

Com um profundo suspiro de resignação, jogou os braços ao seu pescoço e apoiou a bochecha no peito de Tor. Uma enorme onda de calidez abriu passo através da raiva. Invadiu-o uma incrível sensação de… ternura. Que diabos estava lhe passando?

Não sabia e lhe dava igual, de modo que a atraiu para si um pouco mais.

O silêncio se impôs no grande salão quando ele entrou com ela em braços e se dirigiu ao corredor. Era consciente dos olhares de curiosidade que atraía, mas lhe importavam um nada. Se aos pressente deu a impressão de que seu chefe tinha perdido a cabeça, certamente tinham razão.

minutos depois, chegou ao quarto de Christina. Fechou a porta de uma patada e ficou ali de pé durante um momento, com uma estranha relutância a depositá-la sobre a cama. Finalmente o fez e se sentou a seu lado.

Pouco a pouco, notou que relaxava o corpo. Empurrou-lhe o queixo para cima com sua diminuta mão para obrigá-lo a olhá-la aos olhos.

—Sinto muito. Não era minha intenção te dar motivo de preocupação.

—Tem o cabelo molhado - disse ele, como se assim explicasse algo.

—tomei um banho.

—Poderia te resfriar.

Ela teve o descaramento de deixar que lhe notasse que estava reprimindo um sorriso.

—Isso não é mais que uma tolice própria de babás. Saí muitas vezes com o cabelo molhado e nunca adoeci por isso. Somente foi uma ligeira febre; estou bem, de verdade. Morag diz que já não tenho que guardar repouso.

Tor esticou a mandíbula.

—O que saberá Morag de uma pequenina como você? É tão robusta e teimosa como uma mula velha das Highlands.

desta vez ela sorriu abertamente.

—Pode ser que eu não seja tão alta como vós, mas tenho uma compleição forte. —escureceu o rosto—. Embora em alguma ocasião tenha desejado não tê-la.

Tor admirou-se esse comentário. Então lhe veio algo à memória.

—Contou-me que sua irmã esteve doente quando pequenas.

Ela assentiu.

—Beatrix sempre foi uma menina doentia. Eu quase nunca me punha má. Parecia-me tão injusto… Freqüentemente desejava poder ser eu quem caísse doente em lugar dela.

—Não é assim como funcionam as coisas - repôs ele com delicadeza—. Não devemos nos sentir culpados pelos dons que recebemos ao nascer-acrescentou sem pensar.

Ela inclinou a cabeça e lhe escrutinou o rosto.

—Você se sente culpado por ser o gêmeo mais velho.

De forma instintiva, encerrou-se em si mesmo e apagou toda expressão de seu semblante. Entretanto, o ligeiro olhar de recriminação que lhe dirigiu Christina lhe fez recordar o acordo ao que tinham chegado. Respirou fundo, perguntando-se em que diabos estivera pensando.

—Talvez um pouco quando eramos meninos. Parecia-me injusto que me tocasse ser chefe por uma diferença de minutos. Mas aprendi a aceitar que a vida nunca é justa e que devemos interpretar o papel que nos corresponde.

Ela ergueu o olhar para ele com um amplo sorriso nos lábios.

—Bom, não foi tão difícil, verdade?

Tor replicou entre dentes que era como se lhe cravassem agulhas candentes sob as unhas, mas isso a fez rir.

—Logo estará tagarelando sem parar como o pequeno Iain.

Ele pôs os olhos em branco.

—Deus não o queira. Esse moleque nunca fecha o bico.

trocaram um olhar de divertida cumplicidade que em seguida se transformou em outra coisa, em algo tórrido e selvagem que alagava seus sentidos.

Ele era plenamente consciente da situação em que se encontravam. A cama, as pernas tocando-se, o tênue aroma floral do sabão na pele recém lavada dele, a careta sensual em sua boca luxuriosa…

Sentiu um calor repentino na virilha. O desejo se apoderou dele com uma força irrefreável. Apressava-o. Atraía-o para ela. Fazia que lhe custasse recordar que Christina necessitava repouso.

O estranho torvelinho de emoções dos últimos dias ainda estava muito recente. Ele não podia pensar em outra coisa que em afundar-se nela para fazê-las desaparecer.

Inclinou-se para sua esposa. Tinha a boca a somente um palmo da sua. Ouviu que lhe agitava a respiração. Os lábios de Christina se abriram, incitantes.

Tor quase podia perceber seu sabor…

«Maldição. Controla-te.» separou-se dela, obrigando-se a ter presente que ainda estava muito fraca.

—Descansa um pouco. Depois passarei para ver como te encontra.

Ela fez carinha de sapeca. Seus olhos negros lhe esquadrinharam o rosto.

—Acaso não quer…? —Então baixou o olhar, e o sorriso pícaro que lhe curvou a boca fez que a Tor lhe arrepiasse o pêlo da nuca—. Já vejo que sim que quer - disse ela com voz áspera, lhe pondo a mão sobre a coxa. O músculo se esticou por reflexo. O contato daquela pequena palma queimava ao Tor como um ferro incandescente através do linho de seu leine, a escassos centímetros do lugar onde ele ansiava senti-la—. Por favor, fica - sussurrou Christina.

Sua mão se deslizou pela coxa dele, aproximando-se. A Tor lhe acelerou o pulso. Quase podia senti-la acariciando-o, estirando com movimentos largos e enérgicos de sua mão minúscula e delicada. Apertou os dentes, armando-se de valor para resistir a seu contato.

Estava a ponto de negar quando ela acrescentou:

—Necessito-te.

Nesse simples rogo, ele ouviu o eco dos medos que o tinham afligido nos últimos dias. Seus olhos se encontraram. Viu o rubor rosado nas bochechas de Christina, um rubor saudável.

—Não quero te fazer dano — disse com brutalidade.

O olhar dela se suavizou com um brilho de emoção que lhe encolheu o coração.

—Não vais fazer me dano.

Roçou-lhe o membro com os nódulos e ele soltou um grunhido, fechando os olhos enquanto uma ardente onda de desejo o percorria.

Agarrou-lhe a mão para evitar que seus dedos se fechassem em torno dele, embora nesse momento não houvesse nada no mundo que desejasse mais.

—me prometa que se começar a te sentir mal, avisará-me.

O sorriso travesso apareceu de novo ao rosto de Christina.

—Temo que tenho toda a intenção de me sentir mal, muito, muito mal. —inclinou-se para ele e apertou a boca contra sua mandíbula, justo ao lado da orelha—. E totalmente satisfeita.

Tor tinha chegado ao limite de sua boa vontade. Soltando-lhe o pulso, voltou a cabeça para aprisionar os lábios entre os seus e lhe escapou um gemido quando a mão dela o rodeou por fim. Uma sensação de alívio o alagou.

Deus, adorava beijar sua dama. Seus lábios eram muito suaves e tinham sabor de mel morno. Deslizou a língua pelo interior de sua boca em longas e lânguidas lambidas, tomando seu tempo para saborear e explorar. Sua sede dela era insaciável, e se entregou ao simples prazer de beijá-la que durante tanto tempo se privou.

Os ofegos entrecortados de Christina o excitavam ainda mais, ao igual ao roce brincalhão de sua mão. A pressão do linho o estava matando. Nada devia interpor-se entre eles.

Afastou-se de repente, interrompendo o beijo. O miado de recriminação que ela emitiu o fez sorrir. Parecia uma gatinha a quem tinham tirado sua terrina de leite. Tor ficou de pé. Ela abriu a boca para protestar, pois acreditava que ele pretendia partir, mas se deteve quando viu que abria o broche que segurava o brat ao pescoço.

Longe de dissimular sua admiração quando ele se despojou do objeto, devorou-o com os olhos, passeando o olhar por seu peito, seu abdômen e a extensão de seu longo e largo membro. O desejo manifesto em seu olhar minava a concentração de Tor. Quando Christina lambeu os lábios de forma inconsciente, por pouco não lhe dobraram os joelhos.

Voltou-se ligeiramente, e ela contemplou seu flanco. As sobrancelhas lhe juntaram.

—O que é essa marca?

Como não estava acostumado a que ninguém lhe examinasse o traseiro, esqueceu-se disso.

—Uma tatuagem azul feita com glasto. Fizeram-me isso quando nasci.

Ela assentiu.

—Tinha ouvido falar deles, mas nunca tinha visto um. É uma tradição em seu clã?

Interessante ideia, pensou ele.

—Não, era para me identificar como o primogênito. Não se pode eliminar. —Sorriu - Suponho que pensaram que era mais difícil que me cerceassem o traseiro a que me cortassem um braço ou uma perna.

Ela fez uma careta.

—Deixa-me ver?

Ele se aproximou, e os músculos se contraíram quando sentiu a suave ponta do dedo de Christina seguir o risco da tatuagem.

—Mor - disse. E a seguir traduziu—: Grande. —Um sorriso pícaro lhe desenhou nos lábios—. Muito apropriado.

—Garota má - a repreendeu Tor. Ela sabia perfeitamente que mor era um apelativo com que se estava acostumado a designar mais velho, do mesmo modo que og designava ao mais novo.

—Eu gosto do desenho.

—É irlandês - disse ele, rígido. Sentia como se seu membro estivesse a ponto de explodir por causa daquela exploração inocente.

—Doeu-te?

—Não que eu recorde. —Que introduziram agulhas quentes sob a pele não era a metade de doloroso do que estava fazendo nesse instante.

Tentando dominar seu desejo, sentou-se na borda da cama e a fez girar de modo que ficasse de pé frente a ele. Agora era sua vez de explorar. Ajudou-a com os broches e os laços até um ponto em que ela pudesse seguir por si mesmo.

—te dispa para mim, Tina - lhe ordenou—. Devagar.

As bochechas se tingiram de vermelho, mas fez o que pedia. Despiu-se, sustentando o olhar de Tor em todo momento.

Ele se acalorava cada vez mais à medida que a roupa caía ao chão: a capa, a túnica, as sapatilhas, as meias. Para quando chegou ao vestido, saltava à vista que já era toda uma perita. Pouco a pouco, o levantou por cima dos joelhos, as coxas… Deteve-se justo antes de revelar o doce centro de sua feminilidade.

Os músculos de Tor se esticaram sob sua pele excessivamente tirante, e, respirando com força, fixou na Christina seu olhar ardente. Ela o provocava e incitava, até que ele soltou um grunhido de impaciência. Justo quando ele se dispunha a lhe arrancar o maldito objeto, ela ergueu a barra até o ventre. Tor aspirou bruscamente, reprimindo o impulso de estender o braço para tocá-la, pois sabia que estaria quente e úmida de paixão.

Ela levantou o vestido mais e mais até que Tor espiou a delicada curva inferior de seus peitos.

Christina se deteve e ele conteve o fôlego até que lhe mostrou os formosos e turgentes Montes de carne coroados por mamilos muito duros e erguidos.

Tirou o vestido por cima da cabeça, atirou-o ao chão e ficou de pé ante ele, total e belamente nua. Os últimos raios de sol penetravam pela única janela, banhando-a em um resplendor quente e sensual.

Era maravilhosa. Um pequeno, compacto e delicioso pacote de feminilidade. Longas ondas de cabelo negro e sedoso lhe caíam sobre os ombros. Pernas torneadas, quadris curvilíneos, uma cintura estreita e seios grandes e empinados que convidavam a afundar o rosto entre eles e chorar de prazer, todo isso envolto na pele mais impecável, cremosa e suave que ele jamais vira ou tocara.

—Vêm aqui — ordenou ele, sem reconhecer sua própria voz, rouca e carregada de uma intensidade que nunca tinha ouvido antes.

Ela, obedientemente, aproximou-se até ficar diante dele. Tor sabia que se sentia envergonhada, mas não teve contemplações. Cravou nela os olhos com dureza.

—Antes tenho que me assegurar de que esteja bem.

Ela o olhou, vacilante.

—Seriamente?

Tor assentiu.

—Terá que te deitar para que examine… —Incapaz de resistir a tentação um segundo mais, deslizou a mão sobre a aveludada curva de seu quadril—. Cada palmo de seu corpo.

Ela arregalou os olhos antes de avivar-se, ansiosa.

Estendeu-se no leito em um esbanjamento de sensualidade para o olhar.

Tor se colocou em cima dela, com os joelhos em cada lado para poder mover-se livremente acima e abaixo. Começou pela boca, roçando os lábios com os seus, e percorreu a mandíbula até a orelha com movimentos rápidos da língua. Beijou-lhe o pescoço e afundou o rosto na sedosa suavidade de seu cabelo, que ainda estava úmido. As mechas espessas e escuras despediam um intenso aroma de lavanda.

Christina se retorceu debaixo de Tor, que ansiava apertar sua pele ardente contra a sua, sentir o delicioso estremecimento a seu contato. Ainda não. Como um penitente, torturava a si mesmo. Ia fazer lentamente e saborear cada instante.

Continuou examinando-a, explorando cada polegada daquela pele lisa como a de um bebê com a boca e a língua: o pescoço, os braços, o pulso e… Seus incríveis seios.

Entreteve-se ali um momento, lambendo e chupando no mais profundo da boca, fazendo girar a ponta ereta entre os dentes e a língua até que ela arqueou as costas e soltou um grito de desespero.

Deixando-a ofegante, deslizou a boca pela suave planície de seu ventre até os quadris, e dali à parte interior de suas pernas. Seu aroma o fazia enlouquecer; despertava todos seus instintos primários.

Ela tremia presa de um desejo que nem sequer sabia que tinha. Mas lhe ensinaria.

O membro inchou ainda mais.

Separou-lhe as pernas a beijos e rodeou os ombros com elas. Seu rosto estava a somente uns poucos centímetros.

Ouviu o repentino grito afogado de Christina quando ela compreendeu o que pretendia. Instintivamente, tentou fechar as pernas, mas somente conseguiu atraí-lo mais para si.

Tor riscou círculos com a língua pela parte interior das coxas até que o corpo de Christina se relaxou de novo. Ato seguido a roçou com o nariz de forma brincalhona e exalou seu fôlego sobre sua umidade até que ela ficou trêmula.

Já se tinha castigado o bastante. Não podia esperar mais.

—me olhe, Tina - lhe indicou, obrigando-a a dirigir o olhar para seus olhos—. Quero que me olhe enquanto te provo.

Ela emitiu um ofego ansioso, tendo deixado muito atrás as vontades de protestar. O corpo lhe tremia, faminto dele. Sustentando-lhe o olhar, percorreu-a com a língua, com o tato delicado de uma pluma. Christina sofreu um espasmo ao senti-lo, mas ele a segurou com firmeza pelo traseiro.

—Tem um sabor delicioso, minha doce moça. —Lambeu-a de novo, esta vez com mais força, deixando que notasse totalmente o contato de sua língua—. Como a nata mais deliciosa. Vou te lamber inteira.

*

Christina se sentia como se tivesse morrido e tivesse ido ao céu da luxúria. Tor quase lhe tinha feito perder a razão ao beijá-la por todo o corpo, mas quando ela tinha baixado o olhar para ver sua cabeleira dourada entre suas pernas e tinha caido na conta do que ia fazer lhe…

O pulso lhe tinha disparado com espera erótica; maravilhava-a que ele queria beijá-la em sua parte mais íntima. Paralisaram-lhe todos os músculos. Ela permanecia à espera do que ia ocorrer, intuindo que seria algo novidadeiro e fantástico. Não podia nem imaginá-lo.

A corrente de prazer que desatou o primeiro toque de sua língua lhe fez dar um salto. A segunda lhe provocou um calafrio.

OH, Deus.

Ela gemeu seu nome uma e outra vez incapaz de conter a força das intensas sensações desencadeadas por seu beijo perverso.

Tor a lambeu de novo, acariciando-a com a língua, descrevendo círculos, pinçando em seu interior com passadas largas e carinhosas até que ela acreditou que ia morrer de prazer.

Foi incrível. Não podia pensar mais que na boca e a língua de Tor, naquilo tão sensual que lhe estava fazendo.

A virilha começou a lhe palpitar mais depressa. Meneou os quadris contra a boca dele, desejando mais pressão, mais fricção.

E ele as deu. Levantou-a para si e apertou sua boca depravadamente talentosa contra ela.

Christina sentia o roce abrasivo de seu queixo enquanto Tor a devorava com seus beijos e sua língua voraz. Aquilo era muito.

Os espasmos se apropriaram dela, e estalou em lascas candentes de um êxtase abrasador. Mas, em vez de soltá-la, ele a agarrou contra si, recebendo seu prazer na boca.

Seu corpo ainda se convulsionava quando Tor a liberou. Olhou-a com os olhos entreabertos enquanto se estendia sobre Christina, estreitava-a contra seu corpo e se introduzia devagar nela. Sua pele, ainda sensível, notava uma leve dor com cada grosso lance.

Quando ele esteve dentro de tudo, não se moveu. Simplesmente a abraçou com mais ternura que nunca, aninhando-se contra o largo escudo de seu peito como se o mero contato fora suficiente.

Era.

Ela se derreteu contra ele, desfrutando da sensação de todos esses músculos que a rodeavam, de sua virilidade que a enchia.

E do coração dele, pulsando junto ao dele.

A emoção lhe oprimiu o peito. Era o momento mais emotivo de sua vida. Nunca tinha imaginado que pudesse sentir-se tão unida a alguém.

Permaneceram assim um longo momento, olhando-se nos olhos, em silêncio, salvo pelos sonoros batimentos do coração de seus corações, que palpitavam ao uníssono.

Então ele começou a mover-se. Devagar. Sem afastar o olhar de seus olhos, sujeitando-a com uma intensidade que fazia que o coração lhe golpeasse com força contra as costelas.

Empurrava e retrocedia com um vaivém longo e lânguido, como se dispor de todo o tempo do mundo. Como se eles fossem o mundo. Tor entrava e saía, detendo-se na parte mais profunda, e lhe arrancou um ofego de surpresa ao entrar ainda mais nela.

Pouco a pouco, começou a acelerar o ritmo, a penetrar com um pouco mais de ímpeto, a afundar-se um pouco mais. Pele com pele, seus corpos se deslizavam juntos de forma perfeitamente compassada.

Ela notou que as sensações se avivavam de novo, embora dessa vez fossem diferentes, menos violentas, mas mais intensas e poderosas. Não só se apoderaram de sua virilha, mas sim de todo seu ser.

Viu que o rosto de Tor se esticava, que apertava a mandíbula, que os músculos de seus ombros se inchavam. Tinha a pele quente e a fronte brilhante de suor.

Seus corpos se balançavam. Ele movia os quadris em círculos, com embates mais rápidos. Apertava-se contra ela até fazê-la resfolegar, até fazer que o coração lhe pulsasse a toda velocidade, e que as palpitações entre suas pernas se tornassem frenéticas.

Ele seguia lhe sustentando o olhar, e seus olhos de um azul cristalino destilavam uma emoção intensa que ela nunca tinha visto antes. Não era luxúria a não ser um pouco mais profundo, mais significativo. Ela não se atrevia a fazer-se ilusões.

—goze comigo, Tina - lhe disse ele grosseiramente.

e o fez. A respiração se entrecortou, as costas lhe arqueou, e seu prazer culminou, não com uma explosão violenta, a não ser em uma lenta rendição que começou muito dentro e se propagou para fora com uma fulgurante corrente de sensações.

E ele gozou com ela, deixando-se levar pela onda de seu clímax.

Nesse instante para Christina pareceu que seus sonhos estavam tão perto que quase podia tocá-los com a ponta dos dedos.

*

Um longo momento depois de que se apagassem os últimos ecos de seu clímax, Tor jazia na cama com Christina profundamente adormecida junto a ele. Estava-lhe custando enfocar o que acabava de ocorrer de uma perspectiva adequada.

Intenso. Esta palavra ficava muito pequena para descrevê-lo. Cataclísmico. Demolidor. Estas se aproximavam mais.

Não tinha idéia de que copular pudesse ser assim.

O peito ardia de ternura para a diminuta jovem feita um novelo a seu lado como um filhote. Depois do falecimento de seus pais e os longos anos que tinha convivido com a guerra e a morte, acreditava ter se protegido contra esse tipo de sentimentos. Seu autocontrole e sua falta de emoções eram o que o fazia destacar como chefe e como guerreiro, mas sentia que as capas de gelo se fundiam sob o calor do… amor de Christina.

Seu irmão estava no certo: ela o amava. Tor o notava nos olhos, no modo em que o tocava, em sua forma de beijá-lo.

E não podia negar que a moça lhe inspirava uma ternura especial, e isso o preocupava. Podia sentir algo por ela e mesmo assim antepor o bem de seu clã? Nunca antes tinha acreditado possível. Os sentimentos só complicavam as coisas, faziam-no mais vulnerável, e esse era um risco que nenhum guerreiro podia correr. Teve ocasião de comprová-lo quando MacDougall o tinha enfrentado e quando tinha visto Christina na aldeia. Passasse o que acontecesse, sabia que não podia permitir que sua debilidade por sua esposa interferisse em seu dever.

Ela, adormecida, emitiu um suave som de satisfação. Tor suspirou, apoiou a bochecha em sua cabeleira cálida e sedosa, e aspirou seu aroma doce e feminino. Uma sensação de complacência percorreu seus musculos esgotados. Ela era tão miúda, tão suave… Delicada e frágil. Evitar machucá-la seria toda uma provação, mas Tor jurou esforçar-se ao máximo por fazê-la feliz.


Capítulo 22


Christina estava recostada sobre o peito de Tor, com o infolio de pele sobre seu ventre nu e as pernas envoltas nos lençóis enrugados. O reluzente sol da manhã entrava em torrentes pela janela que tinha a portinha aberta, lhe proporcionando luz de sobra para ler.

Ou ao menos para tentar, pois seu irritante marido não deixava de interrompê-la. Quando chegou à parte em que Lancelot se rebaixava a montar em uma carreta para salvar a sua dama, ouviu o som inconfundível de uma gargalhada.

Baixou o livro e se voltou para lhe lançar um olhar sério.

—Se for danificar a história, não penso seguir lendo.

—Esses cavalheiros e seus ridículos códigos - disse com um desprezo indissimulado—. Parece-lhe o cúmulo da desonra viajar em uma carreta? —Sacudiu a cabeça—. Diabos, eu me arrastaria por um monte de esterco para te salvar.

A Christina tremeu as comissuras dos lábios. Custava-lhe seguir zangada quando o ouvia dizer coisas como aquela. Quem ia pensar que um monte de esterco poderia ser tão romântico?

Ergueu-se para lhe plantar um beijo rápido.

—Que terno.

—Terno? —escureceu o olhar—. Não tenho um cabelo de terno.

Para demonstrar atraiu-a sobre seu peito e a beijou de forma muito mais apaixonada. O livro caiu entre eles quando ela, aproveitando-se de sua posição e da considerável ereção de Tor, deu a volta em cima dele.

Com os joelhos a cada lado de seu corpo, fez que Tor a penetrasse, suspirando de agrado conforme ele a enchia. E como a enchia! Adorava senti-lo em seu interior, longo e grosso. Em efeito, tinha aprendido a apreciar seu tamanho e agora compreendia por que aquela criada a tinha prevenido desse modo no Finlaggan.

Com um gemido, lhe agarrou os seios com suas mãos grandes e ásperas, e começou a apertar e beliscar os mamilos entre os dedos enquanto ela o montava. Começou devagar e foi movendo-se mais depressa até encontrar seu ritmo.

Arqueou as costas sobre as mãos dele, deixando cair à cabeça para trás ao tempo que se erguia, levantando o torso tudo que pôde antes de inclinar-se de novo sobre ele, descrevendo círculos sensuais com os quadris.

Seus corpos se moviam ao uníssono com toda facilidade e fluidez. Na cama, não ficava nada a se interpor entre eles: nem acanhamento nem desconforto. Tinham alcançado a união perfeita de dois amantes.

Quando ela estava a ponto de culminar, ele baixou a mão e acariciou esse ponto deliciosamente sensível com o dedo, intensificando o prazer de Christina justo como sabia que gostava.

Ela se estremeceu, gritando, sacudida pelos espasmos. Ainda sentia um comichão quando ele a agarrou pelos quadris e se afundou no mais profundo dela, chegando a sua vez ao clímax.

Com delicadeza, sujeitou-lhe o rosto entre as mãos e a beijou de novo.

—Pareceu-te bastante terno?

—Sim. Prefiro mil vezes montar sobre ti que sobre uma carreta. —Soltou uma risadinha e, depois de aninhar-se contra ele, tirou o livro dentre os lençóis.

—E agora, quer que acabe o capítulo ou não? —perguntou lhe dirigindo um olhar severo, como se fosse um menino levado.

Tor torceu os lábios.

—Já que estamos não vejo por que não.

Ela não se deixou enganar por sua fingida indiferença. face ao evidente desdém de Tor para o código cavalheiresco, Christina sabia que estava gostando do relato.

Conseguiu ler o resto do capítulo sem mais interrupções, mas quando terminou, ele se levantou da cama (a contra gosto, pareceu a ela) para vestir-se.

Christina o observou sem dissimular seu interesse. Embora levasse duas semanas despertando em seus braços, não tinha perdido nem um ápice de seu entusiasmo. Depois daquela primeira vez, Tor tinha dormido a seu lado todas as noites. Embora o Natal tivesse sido há uma semana, cada dia era como um presente para ela. Duvidava que chegasse a cansar-se jamais de despertar junto a ele ou de contemplar seu magnífico corpo enquanto fazia suas abluções matutinas, consciente de que apenas alguns minutos antes estivera entre seus braços.

Seu marido tinha suavizado sua atitude com ela; disso não cabia a menor duvida. Já não se mostrava tão distante e indiferente, e se esforçava por abrir-se mais a ela, como tinha prometido, em que pese que não era fácil. Dada a brutalidade que tinha imperado em sua vida e as circunstâncias em que tinham morrido seus pais, não lhe custava entender por que.

Despertar em seus braços todas as manhãs tinha proporcionado algo da intimidade que desejava, mas ainda faltava algo. Seguia havendo uma barreira entre eles. Era como se Tor levasse duas vidas: uma com ela e outra diferente com todos outros.

Sabia tão pouco de suas atividades como antes. Mesmo assim, fixou-se no propósito de ser paciente. Tinha que lhe dar uma oportunidade.

Tor se vestiu a toda pressa; lavou os dentes enxaguando-se com vinho branco e esfregando com um tecido fino e uma massa de hortelã e sal; passou um pente pelo cabelo, Passou a água da bacia no rosto e se secou com o tecido adequado para isso. Entretanto, a água fria não levou os sinais de inquietação gravadas em seu semblante.

Estava aflito por algo. Como Christina o conhecia melhor que antes, tinha aprendido a decifrar seus gestos quase imperceptíveis: uma ligeira tensão da boca, a ruga na testa e um olhar distante.

—O que ocorre? —perguntou-lhe—. O que te preocupa?

Eram os rumores das crescentes desavenças entre Bruce e Comyn, a crescente ameaça de uma guerra entre Escócia e Inglaterra? Agora que sabia que ele tinha batalhado por ressuscitar seu clã a partir das cinzas da destruição, compreendia suas razões para querer evitar a guerra e manter-se neutro.

Com um sorriso, ele sacudiu a cabeça, sinal de que não tinha a menor intenção de contar-lhe, Christina lutou por conter a onda de decepção que a invadiu, não só pela falta de confiança - ou porque ele se confiou a outros—, mas sim porque temia que a visse como um brinquedo frágil que necessitava que o protegessem e o tivessem entre algodões.

«É questão de tempo», recordou-se. E tinham toda uma vida juntos em frente.

—Só é um assunto que estive pensando. —voltou-se para olhá-la nos olhos—. É possível que passe fora o resto da semana.

desta vez ela não pôde evitar sentir-se desiludida, embora fizesse o possível por dissimulá-lo. Sabia que devia estar agradecida pelas semanas que tinham estado juntos, mas não lhe bastava isso. Tornou-se ambiciosa. Quanto mais tempo passava com ele, mais tempo desejava.

Não lhe perguntou aonde ia, pois não queria ficar com pior humor quando ele se negasse a dizer. Mas, de repente, lhe ocorreu uma possibilidade. Deus bendito, tinha chegado o dia que tanto temia, o dia em que ele zarparia para ir à guerra?

*

Ao Tor a perspicácia de Christina respeito a seu estado de ânimo já não lhe surpreendia embora lhe incomodasse ser tão transparente para ela. Era certo que algo lhe preocupava. Não podia seguir demorando com o que MacDonald tinha ordenado.

Por desgraça, ela também era transparente para ele, por isso Tor sabia que sua reticência a feria. O acordo que tão cuidadosamente tinham estabelecido estava vindo abaixo. Embora ela fingisse entender por que ele não podia lhe explicar o que fazia; quanto mais se estreitavam seus laços, maior era o abismo que os separava.

O que mais surpreendia ao Tor era que em realidade tinha vontades de contar. Tinha guardado tudo dentro de si durante anos. Ao afrouxar a tampa, anos de pressão acumulada ameaçavam estalando. Certamente tinha cometido um engano ao fazer uma exceção, embora não podia negar que falar das coisas ajudava a limpar a cabeça.

Ela colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e encolheu as pernas, envolvendo-as joelhos na manta.

—averiguaste quem foi o responsável pelo ataque? —perguntou em um tom inexpressivo.

Tor não se deixou enganar por sua atitude despreocupada; sabia o que encerrava essa pergunta. Embora ela já não o interrogasse sobre o lugar aonde ia, isso não significava que não lhe interessasse saber. Seus lábios se curvaram para baixo com dureza.

—Não.

MacSorley e MacRuairi tinham retornado pouco depois de partir, com uma tripulação em extremo insuficiente, à caça de quatro navios de guerra que tinham seguido de longe até que uma das galeras ficou atrasada. Tinham-na assaltado com facilidade, mas nem sequer a habilidade considerável do MacRuairi para extrair informação lhe tinha revelado o nome da pessoa para a que trabalhavam.

—Ainda não - precisou—, mas o averiguarei. Assim que encontre ao infiltrado… —interrompeu-se, sentindo-se como se lhe tivessem atirado uma machadada. Nunca na vida tinha metido a pata dessa maneira. Talvez Christina não se desse conta. Sim, claro…

Ela afogou um grito.

—Acredita que há um espião?

—Parece provável - respondeu ele devagar, furioso consigo mesmo—. Todos os ataques se produziram quando eu estava fora, ou quando se supunha que estava. É muita casualidade para atribuí-la ao azar.

—Sabe quem é o espião?

—Não, ainda não. Poderia ser qualquer. Qualquer - repetiu—. Quando saio do castelo, não o faço precisamente em segredo, mas meus homens estão alerta a algo fora do comum ocorra, e estão tomando precauções. —Examinavam todas as mensagens e levavam a ele tudo o que consideravam suspeito. Vigiavam aos guardas (em especial aos que tinham sido recrutados recentemente) e ao pessoal do castelo, incluídos o tabelião e ao Rhuairi. Entretanto, depois de ver como o clérigo tinha protegido a Christina, suas suspeitas iniciais lhe pareceram infundadas.

Quase podia ler os pensamentos que se amontoavam na mente de Christina. Talvez o lapso tivesse sido o melhor que podia acontecer, disse a si mesmo. Terei que caçar a cobra com toda cautela para que não escapasse, e podia resultar perigoso. Mais valia que ela estivesse em guarda.

—Só poucos de meus guardas de máxima confiança estão à corrente disto, Christina. Lembre-se que a situação é grave e potencialmente perigosa. Espero não ter me equivocado ao depositar minha confiança em ti.

Ela sacudiu a cabeça com veemência.

—É obvio que não. —Sorriu—. Obrigado por me contar isso. Inclinou a cabeça—. É por isso que te parte?

—Em parte. Meus homens estarão atentos se por acaso acontece algo incomum no castelo, embora duvide que essa gente tente nada tão pouco tempo depois do último ataque. Mas não quero que saia do castelo durante minha ausência. Não esqueça sua promessa. —Não era necessário lhe explicar que não devia misturar-se em seus assuntos.

—Mas vou me aborrecer - protestou ela.

Tor tentou não sorrir ao fixar-se em sua expressão de despeito.

—Acreditava que estava trabalhando em um estandarte novo para o salão.

Christina entrecerrou os olhos.

—Sabe perfeitamente que é um desastre. Sou uma negação com a agulha.

Ele soltou uma risadinha.

—Estou seguro de que encontrará alguma atividade em que ocupar seu tempo.

—Se não tivesse enviado a seu irmão e a sua mulher ao exílio, teria a alguém com quem conversar.

Aquele era um tema delicado. Christina não entendia que seu marido estivesse empenhado em castigar seu irmão…, embora em realidade não o estivesse. Não era de se admirar. Ela tinha muito bom coração e não estava acostumada a tomar as decisões difíceis às que Tor se enfrentava diariamente como chefe.

—Janet estará aqui.

Como havia um possível espião entre eles, Tor tinha chegado à conclusão de que era muito arriscado que ela seguisse indo e vindo do castelo ao broch. Os homens tinham que arrumar-se somente com a comida… e se queixavam disso.

Christina arqueou uma sobrancelha.

—Quer que trave amizade com sua amante?

—ex-amante -a corrigiu ele—, mas segue sendo uma amiga. Dê-lhe uma oportunidade, gostarás dela.

Ela fez um ruído abafado parecido a um bufo.

—Os homens não entendem nada. Duvido muito que queira ser amiga minha.

Embora Tor não tivesse a menor ideia de por que, não pretendia entender as complexidades da mente feminina.

Agachou-se para beijá-la com suavidade. O beijo foi mais longo do que ele queria, mas quando levantou a cabeça, viu que havia valido a pena. Os lábios vermelhos entreabertos e um pouco inchados, as pálpebras entreabertas, o olhar aturdido, as bochechas rosadas… Maldita seja, adorava o aspecto que tinha quando a beijava.

—Voltarei antes que te dê conta.

*

Christina tinha conseguido distrair Tor de seus problemas, mas não durante muito tempo. «Maldito Bruce. Dane-se MacDonald.» Detestava os enganos de todo tipo. Aqueles homens formavam uma equipe e mereciam saber a verdade. Para que uma guarda secreta como essa cumprisse seu encargo, a autoridade máxima em relação às decisões que se atinham ao grupo devia ficar ao cargo do líder da equipe. Se ele estivesse ao mando, diria a Bruce e ao MacDonald exatamente onde podiam meter-se suas «ordens». Mas em pouco menos de três semanas, MacSorley seria o líder e a decisão estaria em suas mãos. Entretanto, nem sequer o corpulento escandinavo sabia o que estava a ponto de acontecer.

Era a última prova da Perdição, que fora postergada por sua volta antes do tempo a Dunvegan.

Os homens se congregaram em torno dele enquanto explicava sua missão. Tinha levado mais de dois meses, mas Tor por fim tinha conseguido lhes fechar a boca.

—Não podem estar falando sério. —Seton foi o primeiro que teve a audácia de dizer o que outros pensavam.

O olhar que Tor lhe jogou parecia indicar justamente o contrário.

—Foi o desafio final para o Fianna do Finn MacCool.

—Mas isso não é mais que uma lenda - protestou MacGregor—. Ninguém poderia proteger-se de tantas lanças enterrado até a cintura e com somente um escudo para cobrir-se.

Tor sorriu.

—Não têm por que te preocupar. Vou modificar a prova do Finn. Poderão colocar o elmo e a cota de malha, e não lhe atirarão todas as lanças de uma vez.

Ouviu algumas gargalhadas. Ao que parece suas modificações não fora suficiente para os convencer.

—Pode fazer—atravessou Campbell—. Um guerreiro destro pode apanhar facilmente dez lanças ou mais. O mais importante é dominar o medo.

—A ti isso será fácil - repôs MacGregor—. Cresceram esquivando das lanças que lhe atiravam à cabeça. Todos vimos o que és capaz de fazer com elas.

Campbell olhou ao Tor aos olhos e assentiu em sinal de aprovação.

—Verão-me em ação - comentou.

Os homens dedicaram às horas seguintes a exercitar-se. Campbell lançava as lanças - o que agradeceram atrás de alguns erros deliberados— e logo, uma vez que agarraram o truque, passaram a treinar com uma lança que tinha a ponta de aço afiada envolta em um pedaço de couro. Por último, cada um deles se enfrentou ao exercício autêntico. Além de Seton, que recebeu um forte golpe no ombro, todos conseguiram apanhar ao menos dez lanças seguidas, e alguns deles umas quantas mais. Campbell estava no certo: quando se conseguia dominar o medo, não era tão difícil. E nenhum deles tinha medo de nada.

Tor escavou o buraco enquanto os homens se adestravam. Dado a provocação que tinha exposto, pensou que era o minimo que podia fazer. Com uma profundidade que chegava à cintura e um par de pés de diâmetro, o fosso era estreito, mas o bastante grande para que eles pudessem girar para os lados, embora com muita dificuldade.

MacSorley foi o primeiro em entrar enquanto os outros formavam um círculo ao redor dele, a uns vinte passos de distância.

Tirou todas as armas que levava presas com correias a seu volumoso peito, mas ia protegido com a cota, o elmo e o escudo.

Tor ergueu a mão para assinalar o começo.

—Se houver uma só gota de sangue, não valerá a prova.

MacSorley assentiu.

—Entendido.

—Preparado?

—Sim.

Tor fez um sinal ao Lamont, o homem situado a sua direita, e as lanças começaram a sair voando do perímetro do círculo. Um por um, esperando uns segundos entre um e outro, os homens as jogavam no alvo vivo no centro.

MacSorley encontrou seu ritmo em seguida, alternando entre apanhar as lanças e aparar os golpes com o escudo. Tor foi o último em atirar sua lança, que foi a que esteve mais perto de acertar no alvo, mas MacSorley a desviou no último instante com seu escudo. Como seu birlinn, a madeira forrada de pele tinha pintado no anverso uma águia pescadora de aspecto feroz.

Ao final, havia nove lanças no chão ao redor do MacSorley e uma cravada em seu escudo. Mas tinha conseguido, e assim que os outros viram que podia fazer, apressaram-se a seguir seu exemplo.

O último em baixar ao fosso foi Campbell. A tensão se dissipou com o triunfo de cada aspirante, e enquanto Campbell se preparava para seu turno, outros inclusive intercambiavam brincadeiras.

Tor cravou nele o olhar.

—Preparado?

Campbell assentiu com a expressão severa. Tor fez o sinal, e as lanças começaram a sair. Como se tratava do último homem, os outros guerreiros se acostumaram e os intervalos entre os lançamentos seguiam uma pauta ordenada.

Uma pauta que Tor rompeu.

Quando MacGregor, que estava a sua esquerda, soltou sua lança, Tor jogou a sua ao mesmo tempo.

Tal como tinham feito seus predecessores, Campbell tinha se adaptado a um ritmo. Apanhou com facilidade a lança do MacGregor mas não estava preparado para a de Tor. Sem tempo para colocar seu escudo em posição, inclinou-se a um lado no último momento, apenas o suficiente para evitar que a lança o alcançasse no peito. Entretanto, esta lhe roçou o braço antes de cravar-se no chão, alguns pés atrás dele.

Depois de uns instantes de atordoamento geral, Tor ouviu um suspiro de alívio coletivo a seu redor.

—Foi por um triz - disse MacGregor.

Por toda resposta, MacSorley sacudiu a cabeça com pesar.

Tor não disse nada. Como outros, estava contemplando como a manga da cota do Campbell se manchava de sangue.

Campbell fixou o olhar nele.

—Sinto muito, moço - disse Tor em voz baixa.

Campbell afastou o olhar e fez um gesto afirmativo. Conhecia as regras.

—Recolherei minhas coisas.

Sem acrescentar uma palavra, saiu do buraco ajudando-se com os braços e se encaminhou para a broch. Outros o olharam afastar-se com um silêncio cheio de estupefação.

Foi Seton quem se dirigiu primeiro ao Tor.

—Não posso acreditar que o deixem partir. Necessitamo-lo. Não há outro explorador como ele em toda Escócia… ou no resto do mundo, de fato.

—Não fez a prova —replicou Tor, embora não tinha por que dar explicações.

O rosto de Seton avermelhou de raiva.

—Porque vocês têm feito armadilha.

O estalo de silêncio que seguiu a estas palavras foi ensurdecedor. Os highlanders sabiam algo que aquele cavalheiro inglês ignorava.

—Se eu me regesse pelo código ao que estas referindo, estaria morto pelo que acabas de dizer.

Seton apertou os dentes; precaveu-se de seu engano.

—Na guerra não existem armadilhas, e se querem formar parte desta equipe, mais vale que coloquem isso na cabeça quanto antes. Este guarda tem que estar preparada para tudo, e Campbell confiou demais. Se nos confiarmos, morreremos todos.

MacSorley lhe dirigiu um olhar estranho, e Tor se deu conta de que tinha cometido um engano: ele não formava parte desse «nós».

—O capitão tem razão - disse MacGregor—. Todos nos confiamos. Campbell não deveria ser o único em pagar as conseqüências. Voltarei a me submeter à prova com ele.

Tor o olhou longamente, impressionado pelo profundo vínculo que se forjou entre aqueles dois membros de clãs que antes se enfrentavam. Embora discutissem como inimigos, atrás da retórica agressiva havia uma amizade. Amaldiçoou em seu foro interno o injusto da situação, mas seu tom ao falar não delatou seus pensamentos.

—Campbell teve sua oportunidade. Deveremos nos arrumar sem ele. Boyd e Lamont são exploradores excelentes; que eles ocupem seu lugar. —Percorreu com o olhar o círculo de homens, todos eles furiosos, para que sua mensagem ficasse bem claro—. Não há mais que falar. Tomei minha decisão.

Conscientes de que protestar seria inútil, os homens se dispersaram. Não gostavam da decisão mas a acatavam, com diferentes graus de indignação. Como era de esperar, MacGregor o evitou durante o resto do dia.

Campbell se despediu com solenidade e, quando chegou o momento, Tor o acompanhou em solitário à galera que o levaria de volta a terra firme.

—Levas tudo? —perguntou.

Campbell assentiu.

—Sinto muito, moço. Desejaria que as coisas não tivessem que ser assim.

O rosto do Campbell era uma máscara de pétrea resignação.

—Sim, capitão, compreendo-o.

—Como está o braço?

—Está bem. —Instintivamente, Campbell levou a mão à parte superior do braço, não o esquerdo, que tinha ferido pela lança, a não ser o direito, no que Tor lhe tinha tatuado em segredo um sinal a altas horas da noite anterior.

Embora outros não soubessem a verdade, Campbell era um deles.

—Se alguma vez estiveres em apuros…

Campbell moveu a cabeça afirmativamente.

—Sei o que devo fazer.

Tor o agarrou do braço e lhe deu um apertão firme.

—Bs roimh geill.

—Antes morrer que render-se — respondeu Campbell com ferocidade. Depois de jogar uma última olhada a broch, embarcou de um salto e se fez ao mar.

Tor o observou afastar-se.

«Agora há dez.»


Capítulo 23


Tor levava poucos dias fora quando Christina começou a sentir os efeitos de sua inquietação. Tal como suspeitava, lady Janet não interessava cercar uma amizade com ela. Mostrava-se cortês, mas Christina estava convencida de que os sentimentos que a outra mulher ainda albergava para Tor lhe impediam de ir mais à frente.

Christina não podia culpá-la por isso.

Como dispunha de tempo de sobra, havia-se aficionado a dar longas caminhadas pelo perímetro da muralha. Além de seus passeios matinais com o irmão John, agora saía a caminhar também depois do jantar.

Adorava erguer o olhar para o céu nas noites limpas, embora não fossem muito freqüentes durante o inverno na «ilha da Bruma». As estrelas pareciam tão próximas ali que quase tinha a sensação de que se estendia o braço poderia agarrar uma.

Aquela era uma dessas noites e, apesar de fazia mais frio que de costume - inclusive para janeiro—, ela permaneceu um momento entre as almenas, contemplando primeiro o firmamento e logo o mar. era fascinante e provocador ver as cintilantes ondas negras com cristas de espuma branca rompendo-se contra o escarpado rochoso.

Baixou o olhar para o embarcadouro e ficou imóvel. Percorreu-a um calafrio. O birlinn aterrorizante com o falcão gravado na proa estava atracado ao lado das outras embarcações.

De repente, veio-lhe à memória o dia que tinha visto o Rhuairi no mole. Cabia a possibilidade de que o senescal fosse o espião?

Suas suspeitas aumentaram quando o homem em quem pensava saiu a toda pressa do grande salão, cruzou o pátio e baixou a escada que conduzia ao molhe. Como Christina estava oculta nas sombras, o homem não reparou em sua presença. Ela se inclinou sobre a mureta, mas não alcançou ver o que ocorria debaixo. Um momento depois, não obstante, Rhuairi subiu correndo a escada e voltou sobre seus passos para o interior do salão.

para Christina o coração pulsava com força. Permaneceu aninhada na escuridão um momento mais, sem saber o que fazer. O que acabava de presenciar podia ser um ato totalmente inocente. Mas por que se comportou ele de um modo tão estranho naquele dia e tinha negado ter recebido uma mensagem?

Seu primeiro impulso foi segui-lo, mas recordou a advertência de Tor. Não queria que ela se envolvesse. Se Rhuairi fosse o espião, seria perigoso que a surpreendesse seguindo-o. Christina teria que aguardar que seu marido retornasse para lhe expor suas suspeitas.

Esperava que para então não fosse muito tarde.

*

Lady Christina não se precavera de que alguém a observava. O irmão John MacDougall, sobrinho e xará de John do Lorne, não podia saber de ciência certa o que estava pensando, mas tinha que correr o risco. Seu instinto de sobrevivência tinha prevalecido nos últimos dias e o tinha impulsionado a preparar-se para partir. Se queria averiguar o que trazia MacLeod entre as mãos, devia fazê-lo já, e o mensageiro secreto do senescal lhe tinha dado uma idéia.

Suspeitava fazia um tempo que ela sabia ler, e suas suspeitas se viram confirmadas quando percebeu que alguém tinha corrigido os livros. Não queria implicá-la nesse assunto, mas por outro lado, pensou, estava-lhe fazendo um favor. MacLeod não gostava. Essa besta selvagem e desumana não sabia apreciar a jóia que tinha por esposa. Entretanto, também saltava à vista que sua jovem esposa o idolatrava. Talvez aquilo a obrigaria a vê-lo como era na realidade.

Ou assim esperava.

Arrependia-se de ter permitido que seu tio o metesse nisso: a espionagem teria que ser posta nas mãos de quem tivesse estômago para o engano. Embora, na realidade, não tinha escolha. Igual MacLeod, seu tio não era um homem ao que convinha desafiar.

*

Transcorreram dois dias mais, e Tor não tinha retornado. Enquanto isso, as suspeitas de Christina a corroíam por dentro. No dia anterior, tinha entrado nos aposentos principais com o irmão John, e Rhuairi, sobressaltado, tinha juntado seus papéis e se retirado com um rubor de culpabilidade no rosto. O tabelião também se fixou na estranha conduta do senescal e tinha feito um comentário sobre o nervosismo crescente do Rhuairi.

Tendo bem presente a promessa que tinha feito a seu marido, Christina tinha respondido que não tinha notado nada. Detestava não poder confiar em seu amigo. Embora o irmão John fosse a última pessoa do mundo de quem suspeitaria, Tor tinha advertido que não confiasse em ninguém.

Pensou em mandar a seu marido uma nota, mas não tinha nenhuma prova. Além disso, não poderia enviar sem que Rhuairi se inteirasse. Como não tinha alternativa, aguardou… Até a tarde seguinte.

Como era seu costume depois do jantar, estava caminhando ao redor da muralha quando viu de novo ao Rhuairi sair apressadamente do grande salão. dessa vez, entretanto, em lugar de receber a um mensageiro, subiu a bordo de um birlinn que o esperava e zarpou de volta ao mar aberto, não para a aldeia.

Admirada, Christina se dispunha a entrar no castelo quando o irmão John, com o rosto avermelhado, e esteve a ponto de atropelá-la.

Ele se desculpou, com ar transtornado.

—Por ventura vistes ao senescal?

—Sim - assentiu ela—. Se foi há alguns minutos.

—Cáspita!

Christina sorriu ao comprovar que o irmão John se apropriou de sua expressão favorita.

—Ocorre algo?

Mostrou-lhe uma folha de pergaminho.

—Caiu isso de Rhuairi, e pela pressa que tinha, pareceu-me que talvez fosse algo importante. Mas esta noite devo ir à aldeia a ver o pai Patrick.

—Não sabem do que se trata?

Ele sacudiu a cabeça.

—Não é algo que eu tenha escrito.

A Christina lhe acelerou um pouco o pulso, e todos seus instintos ficaram alerta. Estendeu a mão.

—Não faz falta que postergues sua visita à aldeia - disse sem controlar de todo o tom agudo de sua voz—. Eu o entregarei ao Rhuairi quando voltar.

O tabelião titubeou.

—Estas segura? Provavelmente o necessitará assim que retorne, e talvez seja muito tarde.

—Não me importa - respondeu ela—. Não estou cansada.

—Espero que não se trate de nada grave, embora o certo é que Rhuairi parecia um pouco mais nervoso que de costume. —Um leve sorriso se desenhou nos lábios do jovem tabelião, e toda a vacilação que sentia se esfumou. Deu-lhe o pergaminho e acrescentou—: Por outra parte, tinha prometido ao pai Patrick, e suponho que isto estará em suas mãos.

Christina, que sabia a que se referia, alegrava-se de que ele não alcançasse a ver o rubor de culpabilidade que lhe tingia as bochechas. Como estivera esperando alguma indicação de Tor, ainda não tinha contado a ninguém que sabia ler. Conhecia o modo em que funcionava a mente de seu marido, por isso imaginava que ele considerava mais seguro guardar essa informação até que descobrisse ao espião.

—Pergunto-me o que acontece ao Rhuairi - disse o irmão John, como ausente—. Ultimamente tem uma atitude tão circunspeta…

—Estou segura de que não é nada importante - mentiu Christina, tentando não sentir-se culpada. Esperava que o irmão John a perdoasse, mas não podia arriscar-se a expressar suas suspeitas em voz alta.

—Obrigado, milady. E agora, se não se importar, devo partir.

—Veremo-nos pela manhã — disse ela, e o observou cruzar a porta que dava ao mar e descer para o embarcadouro.

Resistindo o impulso de abrir a nota ali mesmo, a guardou entre as dobras de sua capa e se dirigiu rapidamente à intimidade de seu quarto. Ali, à luz das velas, desdobrou com cuidado a pequena folha de pergaminho.

O coração lhe pulsava a toda velocidade. Aquela podia ser a prova que esteve procurando. Sentiu uma pontada de culpabilidade, mas a sacudiu em seguida. Se a mensagem não fosse importante, Tor nunca se inteiraria. Mas se era, daria-lhe obrigado por isso. Podia lhe proibir que se misturasse, raciocinou, mas não que observasse o que ocorria diante de seu nariz.

Reconheceu imediatamente a tosca letra do Rhuairi, embora a nota não estivesse assinada. Era breve e concisa, mas fez que lhe gelasse o sangue com uma gélida onda de pavor. Tinha encontrado sua prova, e era muito pior do que tinha acreditado.

«Paradeiro do MacLeod confirmado. Tragam reforços. Atacaremos a meia-noite.»

Deus santo, que horas era? sete? oito? Tinha o coração desbocado. O que podia fazer? Tinha que encontrar uma maneira de acautelá-lo, antes que fosse muito tarde.

*

Tor estava sentado em uma pedra grande e plaina frente à entrada da broch, com uma jarra de cuirm na mão, contemplando os últimos raios rosados do sol extinguirem-se depois do horizonte.

Embora Campbell se fora fizesse quase uma semana, a equipe ainda não se recuperara da perda de um dos seus. Ele sabia que devia estar agradado por isso, pois era uma prova de que o treinamento tinha sido um êxito, mas não estava. A marcha de um membro da equipe, independentemente do motivo, ardia-lhe.

Resmungou uma blasfêmia e tomou um gole longo da forte cerveja antes de deixar a taça vazia na pedra com um golpe.

—Ai - disse MacSorley, que tinha saído da broch para sentar-se junto a ele—. Está um pouco amarga a cerveja, ou é bem o sabor do remorso?

—Não sigas por aí - lhe advertiu Tor—. Não estou de humor para sua língua afiada.

MacSorley bebeu um gole de sua própria taça. Ficaram sentados em silencio durante um momento antes que ele falasse de novo.

—Eles perdoarão. Dêem-lhe tempo.

Depois da partida do Campbell, a brecha entre o Tor e os homens se alargou. Uma vez mais, voltara a estar firmemente instalado no papel de líder, o homem obrigado a tomar decisões duras e impopulares. Formava parte da equipe, mas estava à margem. Entretanto, não era isso o que lhe incomodava. Quão único queria era acabar de uma vez por todas com esse maldito assunto.

—ides contar logo? —perguntou-lhe MacSorley em voz baixa—. Somente restam duas semanas.

A mandíbula de Tor se esticou. dessa vez o outro homem tinha dado no alvo.

—Não, ainda não.

Todo rastro de jovialidade desapareceu do rosto do MacSorley, que se endureceu com uma severa expressão de raiva.

—antes de zarpar, merecem saber que não ides os capitanear quando tiver terminado aqui.

Suas palavras se aproximavam muito ao que pensava Tor, mas não queria as ouvir nesse momento. Olhou ao MacSorley entreabrindo os olhos de forma ameaçadora.

—Tome cuidado, escandinavo. Ainda não estais ao mando.

MacSorley não se intimidou ante sua advertência, embora Tor tampouco esperasse que o fizesse. O viking era quase tão temerário como loquaz.

—Sabes no que acredito? —Tor fingiu não tê-lo ouvido, com o olhar fixo na fileira de árvores, no outro lado do claro—. Acredito que não queres dizer porque desejas capitaneá-los, e lhe chateia a má maneira se sentir incapaz de fazê-lo. Mas cedo ou tarde terá que descer do burro, MacLeod. —Não disse «capitão». A Tor não aconteceu inadvertido o desprezo—. A guerra é iminente, e um dia destes, certamente antes do que pensa, teras que escolher. Esta equipe precisa de ti - disse com suavidade—. A Escócia lhe necessita.

Ao diabo com Escócia; seu dever era para com seu clã.

—Falam como o condenado de seu primo.

—Angus Og é um homem sábio. Pense. —Dito isto, deixou-o por fim em paz.

Que MacSorley fosse ao Hades! Tor não necessitava sua opinião. Fazia sua própria análise, e muitas vezes. Embora MacSorley estivesse certo, nada tinha mudado. Seguia sendo injustificável implicar a seu clã em uma guerra que não supunha uma ameaça para eles.

Duas semanas mais, pensou. Duas semanas mais, e teria completado com seu compromisso. O risco de que o descobrissem - e a traição que cometia ao adestrar homens para que lutassem pelo Bruce— ficaria para trás. Teria respeitado sua parte do trato ao treinar aos homens e teria conseguido tirar de cima ao Nicolson.

As águas voltariam para seu leito, por mais que fosse uma tortura para ele pensar que seus homens lutariam sem ele: ocuparia de novo uma posição de neutralidade na guerra da Escócia e no conflito entre o MacDougall e MacDonald.

Por mais que ele quisesse que as coisas fossem de outra maneira, suas obrigações para com seu clã eram sempre em primeiro.

*

Christina sabia que aquela era a oportunidade perfeita que esteve esperando para fazer algo importante.

Lembrando-se de quão categórico tinha sido Tor em relação à possibilidade de que ela saísse do castelo, foi em busca de lady Janet ou Colyne —pois lhe constava que Tor confiava em ambos—, mas não encontrou a nenhum dos dois. Como não se atrevia a envolver a ninguém mais, sabia que teria que lidar com ele por si mesmo. Não estava segura de que se encontrasse na broch, mas a julgar pela mensagem, parecia provável.

Foi mais fácil do que esperava. A única dificuldade surgiu quando tentou embarcar em um birlinn com destino à aldeia. O guarda do molhe se negou em um princípio a deixá-la partir. Ela não tinha a menor ideia do que fazer até que recordou a promessa de seu marido. Pelo visto, tinha mantido sua palavra de informar a seus homens em relação à condição que tinha imposto para casar-se com ele, já que, quando recordou ao guarda que devia haver um birlinn ao seu dispor para quando desejasse ir, ele cedeu.

Deixou que um punhado de guardas a acompanhasse à igreja, mas a seguir insistiu em que podia continuar sozinha a partir de ali. Uma vez que partiram, ela retornou ao bosque, voltando sobre os passos que a tinham levado até a broch a primeira vez. Estava escuro e não se atreveu a levar consigo uma tocha, mas por sorte a lua estava quase cheia e seu brilho era bastante intenso para atravessar o tênue manto de névoa que turvava o ar fresco da noite. Estava muito preocupada para ter medo; seu maior temor era não lembrar-se de como chegar ali.

Caminhava devagar e com determinação, mantendo a cabeça encurvada para ver por onde pisava. O chão era irregular, por isso tropeçou mais de uma vez. Mas já quase estava ali. Ao cabo de poucos minutos se encontraria perto do lugar do bosque do que tinha espiado a Tor e a seus homens.

Deteve-se e deu uma olhada para trás para assegurar-se de que ninguém a seguia. Não viu mais que as silhuetas escuras e ameaçadoras das árvores. Mesmo assim, não podia desterrar a sensação de que alguém a observava. Tudo estava totalmente tranqüilo…, muito tranqüilo.

De repente, viu-se imobilizada contra um peito revestido de aço e notou o fio inconfundivelmente frio de uma adaga contra o pescoço.

—Seu nome, moça - lhe grunhiu uma voz ao ouvido.

Essa vez não se tratava de seu marido.

—Lady Christina - gaguejou—. A esposa do chefe dos MacLeod.

Ele soltou um juramento, obrigou-a a dar volta e lhe tirou o capuz com brutalidade.

Christina se encontrava frente ao olhar furioso de sir Alexander Seton. Aproveitando-se de sua surpresa, dedicou-lhe uma reverência e disse: —Sir Alex, passou muito tempo.

—Milady. —inclinou-se automaticamente, como correspondia a um cavalheiro galante, fossem quais fossem as circunstâncias—. O que fazes aqui fora?

—Um dos homens de meu marido o traiu e interceptei uma mensagem. Planejam atacar esta noite, assim tinha que lhe avisar.

Ele endureceu sua expressão.

—Estás segura?

Christina assentiu.

Sir Alex a olhou com curiosidade.

—Espero que estejas certa.

Assim que tinha pronunciado estas sinistras palavras, um objeto alongado e metálico - um utensílio de lavoura, possivelmente?— emergiu das sombras, atrás de sua cabeça, e desceu com violência sobre o elmo de aço. Com um gemido de dor, sir Alex se desabou aos pés de Christina, reduzido a um vulto coberto de malha.

Ela espiou pela extremidade do olho algo que se movia, e uma figura com uma capa negra apareceu das trevas. Christina abriu a boca para gritar, mas era muito tarde. Um objeto contundente lhe golpeou a nuca. Teve a muito estranha impressão de ouvir alguém murmurar « sinto muito » antes que a escuridão a envolvesse.

Os sons não muito aprazíveis de uma bofetada e o exabrupto «maldito néscio inglês» a fizeram voltar a si. Em um princípio pareceu que a voz se dirigia a ela, mas ao abrir os olhos viu um guerreiro gigantesco e de aspecto aterrorizante que, inclinado sobre sir Alex, tentava despertá-lo.

Ela o tinha visto antes. Moreno, de sobrancelhas grossas e um rosto mais agreste que arrumado, parecia um homem que tinha participado de muitas brigas de tabernas a altas horas da noite. Então o recordou: era o guerreiro que tinha levantado aquela pedra enorme como se não pesasse virtualmente nada.

Deve ter deixado escapar um som, porque o guerreiro se afastou imediatamente de sir Alex e se aproximou dela.

—Está bem, moça?

—Isso acredito. —Ajudou-a a levantar-se. Depois de um momento de enjôo, a cabeça limpou em seguida. Ao levar mãos à nuca, apalpou um pequeno galo, mas por sorte não havia sangue. Sentia sobre si o olhar penetrante do homem—. E sir Alex? Ele encontra-se bem? —perguntou.

O guerreiro entrecerrou os olhos.

—Conhece o inglês?

Ela caiu em si de que não lhe havia dito quem era.

—Sou lady Christina Fraser.

Se isto o surpreendeu, dissimulou-o muito bem.

—A mulher do MacLeod?

Ela assentiu.

—E vocês são…?

Depois de titubear por um instante, ele respondeu:

—Incursionador. —Pelo visto, não queria lhe revelar seu nome nem se incomodou em lhe explicar por que.

—São da zona fronteiriça? —Ao advertir uma faísca de desconcerto em seus olhos, Christina supôs que tinha deduzido acertadamente a origem do sotaque.

—O que fazem vocês aqui? —inquiriu ele, trocando de tema—. O que ocorreu?

Recordou tudo de repente e se levantou de um salto, presa do pânico. Quanto tempo esteve inconsciente?

—Que horas são? —perguntou freneticamente. Antes que o homem pudesse responder, ela o agarrou pela parte dianteira de sua cota de malha. Ele não se moveu um centímetro. O que acontecia com esses guerreiros das Highlands? Por que tinham todos corpos do tamanho de montanhas?

—Explicarei-lhe isso tudo, mas não fica tempo… Deve me levar até meu marido.

Embora isso não parecesse fazer muita graça ao homem, seu tom o convenceu da urgência da situação.

—Estás em condições de andar?

Ela assentiu, e ele a ajudou a ficar de pé. Sir Alex era um homem corpulento, mas aquele «Incursionador» o levantou e o jogou ao ombro como um saco de farinha, sem muita delicadeza, por outra parte. Dava a impressão de que não sentia afeto pelo jovem cavalheiro. Sem dizer uma palavra mais, guiou-a através das árvores.

Quando saíram na clareira que se estendia ao pé da broch, gritou como um mocho, o que evidentemente era algum tipo de sinal. E apesar da noite estava avançada, havia um punhado de homens exercitando-se com armas diversas: espadas e tochas, pareceu a ela. Uma figura estava de pé ante a entrada, e pelas dimensões de sua sombra ela soube que era seu marido. Invadiu-a um grande alívio ao saber que tinha chegado a tempo. Tinha conseguido.

Tor foi a seu encontro e ela arrancou a correr para ele. Outros se juntaram ao redor para averiguar o que estava passando.

—Christina? —perguntou ele, com a voz aguda pela incredulidade—. O que ocorreu? O que faz aqui? Acreditava te ter advertido que não voltasse nunca para este lugar.

Ela ouviu a chispada de ira e se jogou em seus braços antes que estalasse. Ele a estreitou contra si de forma mecânica, mas afastou o olhar dela durante o tempo suficiente para ver o homenzarrão atirar a sir Alex a seus pés. Christina respirou aliviada ao advertir que o jovem cavalheiro se movia.

Tor soltou um juramento e a agarrou pelos ombros, olhando a de marco em marco.

—Têm-lhe feito mal?

Ela negou com a cabeça.

—Tenho um galo na cabeça, isso é tudo. Este homem, Incursionador, encontrou-nos. —Tor arqueou uma sobrancelha com expressão inquisitiva, mas o musculoso guerreiro se limitou a encolher os ombros como dando a entender que já explicaria mais tarde.

—Quem te fez isto? —A voz de Tor soou mais fria e letal do que ela a tinha ouvido nunca.

—Não sei, mas tem que me escutar. Não fica muito tempo. —devido a sua ânsia por contar-lhe o que saiu de sua boca foi uma corrente de palavras confusas e embaralhadas. Ao precaver-se da crescente impaciência de Tor, simplesmente lhe entregou a nota—. É a letra do Rhuairi - disse, sem saber até que ponto seria inteligível—. Ele sabe que está aqui e planeja lançar um ataque nesta noite.

—Parece a letra do Rhuairi, mas não tem pés nem cabeça.

Christina não alcançou a perguntar por que. Tor chamou a alguém em voz muito alta, e em pouco momento dois homens saíram da broch. Ela empalideceu ao reconhecer ao Rhuairi e ao Colyne.

Se Rhuairi era o espião, que fazia ali? Deveria ter posto terra por meio fazia tempo.

Esteve tão convencida de que tinha descoberto a verdade que inclusive quando surgiu a possibilidade de que não fosse assim, custou-lhe assimilá-lo.

Rhuairi se aproximou para ler a nota. Deu uma olhada rápida antes de devolver ao Tor.

—É uma boa imitação de minha letra, mas eu não escrevi isto.

Embora Tor falasse em um tom enganosamente sereno, Christina percebia a tormenta que estalava.

—Como diz que conseguiste esta nota?

Contou sua conversa com o irmão John.

—E disse que iria à aldeia? —perguntou Tor.

Christina assentiu, e ele proferiu uma maldição. O olhar que lhe lançou não destilava gratidão, a não ser escárnio, como se não pudesse acreditar que ela fosse tão estúpida.

—Quando? —inquiriu, sacudindo-a pelos ombros—. Quanto tempo estivestes inconsciente?

Ela abriu muito os olhos, totalmente desconcertada ante aquela reação tão diferente da que tinha imaginado.

—Não… não sei —gaguejou—. Uma hora, talvez mais.

Tor se voltou para o Incursionador em busca de uma confirmação.

—Eu tinha saído de ronda pelo este, e Seton pelo oeste. Como o inglês não respondeu a minha chamada, fui em sua busca. Pode ter sido uma hora, possivelmente mais.

—E não lhe ocorreu ir à caça de quem fez isso, seja quem é?

Incursionador apertou os lábios, que formaram uma linha tensa.

—Pareceu-me mais importante não deixar sozinha à moça e lhe trazer aqui.

Apesar da evidência de que a tinham enganado era evidente, Christina se negava a acreditar.

Tinha que haver alguma explicação.

—Equivoca-te a respeito ao irmão John. Não pode ter sido ele. —«Ele não me faria uma coisa assim», pensou—. Não disse a ele que sei ler.

—Está totalmente segura disso? —O olhar que lhe jogou seu marido teria podido cortar um diamante—. Reza por que esteja certa. Não tem idéia do que pode ter feito.

Sem lhe dirigir uma palavra mais, ordenou a dois dos homens que fossem ao povoado através do bosque para ver o que averiguavam, e a outros que preparassem o birlinn para navegar de retorno ao Dunvegan.

Christina estava petrificada de espanto. Tinha conduzido ao espião diretamente até seu marido? «Sinto muito.» A voz na escuridão de repente cobrou sentido. Ficou com vontade de tapar as orelhas com as mãos para não ouvir a verdade. «Deus santo, tem que ser de um engano. Por favor, que seja um engano.»

*

Tor aguardava com ar sério a que Lamont e MacLean retornassem do povoado. Mas já sabia o que tinha acontecido. O tabelião tinha seguido a Christina pelo bosque e se partira fazia um bom momento. Embora estivesse escuro, Tor tinha que supor que John tinha visto o suficiente para pôr em perigo a missão de seus homens.

A intromissão de Christina tinha posto em grave risco tanto a seu clã como a guarda secreta de Bruce. Vinte anos de guerra e esforços por restabelecer seu clã, e agora a vida de seus membros e a sua própria pendiam de um fio. Se o tabelião o relacionava com o Bruce e o rei Eduardo conseguia capturá-lo, sua vida não valeria nada. Mas ele não seria a única vítima. Seu clã cairia com ele, e se o tabelião tinha reconhecido a alguns dos integrantes da guarda secreta de Bruce, também teriam um alvo sobre a cabeça.

Como tinha podido permitir que ocorresse algo assim? Isso era impróprio dele. Tinha querido acreditar que ele e Christina eram diferentes. Acaso não tinha aprendido nada com a morte de seus pais?

Isto era exatamente o que queria evitar.

Era um maldito idiota. Pensava que Christina tinha entendido. Tinha sido um engano confiar nela. Ao tentar agradá-la, tinha falhado com sua guarda e tinha deixado que ela soubesse muito. Tinha permitido que uma mulher se interpusesse entre ele e seu dever para com seu clã.

Estava tão furioso que não se atrevia a lhe falar ou a olhá-la sequer. Entretanto, era perfeitamente consciente de que estava ali, sentada no assoalho, com os olhos exageradamente abertos e pálida. Fez-se forte e não deixou que o tremor de seus lábios ou as ligeiras sacudidas de seus ombros o comovessem. Nunca voltaria a comover-se por ela.

O pulso martelava nos ouvidos, por isso mal ouviu os homens quando retornaram e corroboraram o que ele já sabia. O tabelião tinha desaparecido. Ninguém o tinha visto partir, mas Tor não podia evitar supor que alguém o tinha ajudado a fugir.

Tinha a mandíbula apertada com tal força que notava que as veias do pescoço lhe tinham inchado. Ordenou com voz ensurdecedora que aparelhassem os navios. Tinha que encontrar ao traidor antes que transmitisse a informação que tinha averiguado. O fracasso não era uma opção.

Os homens limparam os aposentos principais. Tor repartiu instruções de último momento a Colyne e a Murdoch a fim de que preparassem o castelo para a guerra e se levantou para partir. O aposento ficou vazio salvo por sua esposa.

Ela deveria tê-lo deixado partir sem mais, mas nunca sabia quando deter-se. Agarrou-o pelo braço, e ele sentiu que a leve pressão de sua mão lhe queimava como um ferro em vermelho vivo, na pele, no peito. Entretanto, precaver-se de que sua debilidade por ela aumentara não fez a não ser avivar sua ira.

—Sinto muito - sussurrou Christina, retorcendo as mãos e olhando-o com olhos grandes e suplicantes—. Somente tentava ajudar.

Tor permaneceu totalmente imóvel, face à voragem desatada em seu interior. Seu rosto não demonstrava nem um traço de emoção. Não deixaria que seus rogos fizessem uma fresta nele. dessa vez não. Nunca voltaria a permitir que sua esposa ou ninguém interferisse em seu dever.

—Ajudar? —Soltou uma gargalhada para magoar—. Ao que parece é difícil pra ti compreender, mas não quero nem necessito sua ajuda. É minha esposa, Por Deus, não um de meus homens. Adverti-a que não te entremetesse. Pedi-te que nunca, sob nenhuma circunstância, aproximasse-te de novo ao broch. Sua «ajuda» pôs em grave perigo a meu clã, aos homens que estive treinando e a minha pessoa. Se não encontrarmos o tabelião, o rei Eduardo porá a minha cabeça um preço bastante alto para que inclusive meus aliados mais leais se voltem contra mim. Não tem idéia do que tem feito.

Embora Christina parecesse a ponto de desmoronar-se, ficou rígida para ouvir essas palavras.

—É verdade, dado que nunca te me dignaste dizer nada.

Tor se pugnou por manter o controle. Somente ela ousaria fazer recriminações depois do que acabava de ocorrer. Seu olhar se escureceu cortante como seu resistente tom de voz.

—E por uma boa razão, considerando o que tem feito. É justamente por isso que não queria que te implicasse. Deveria ter sido mais ardiloso e não ter revelado nada deste assunto.

A ousadia temporária de Christina veio abaixo quando começou a cair na conta da gravidade de seus atos.

—Tem todo direito de estar zangado, mas acreditava que corria perigo. Jamais teria imaginado que o irmão John tramasse algo assim. Tomei todas as precauções…

—Que obviamente não foram suficientes.

Os olhos de Christina se arrasaram em lágrimas. Inclinou-se para apoiar-se em Tor, mas ele ficou perfeitamente erguido. Tinha que fazer um esforço para não mover-se, para não sucumbir ao desejo urgente de estreitá-la entre seus braços e sacudi-la… ou beijá-la até que se fosse a dor que lhe oprimia o peito. Ele não era como os outros, maldita seja; supunha que devia ser insensível. Não era disso do que se apreciava? Não era isso o que o convertia em um grande líder e guerreiro? Apesar de tudo, o pranto de Christina corroía sua férrea determinação como o ácido.

—Juro que não voltará a ocorrer - murmurou ela.

Tor tinha que deixar bem claro como seriam exatamente as coisas a partir desse momento. Fixou nela um olhar duro e implacável.

—É obvio que não voltará a ocorrer, pois jamais te contarei uma maldita coisa mais.

Ela se separou dele, como se tivesse gritado, embora o havia dito com uma tranqüilidade glacial.

—Está zangado - sussurrou ela—. Não fala sério. —Dava a impressão de estar tentando convencer-se a si mesmo.

O olhar que lhe lançou teria gelado a lava do inferno.

—Nunca na minha vida falei mais a sério. —Tinha cometido um engano, mas estava resolvido a não repeti-lo. Era tão responsável como ela do acontecido. Tinha permitido que ela o convertesse em parte de sua pequena fantasia. Mas isso acabou—. Já te disse exatamente o que espero de ti: que fiscalize o castelo, que dê a luz a meus filhos e que deixe todo o resto em minhas mãos. Não espere nada mais que isso.

Christina estremeceu, profundamente ferida. Quem era esse homem desumano e inflexível? Nunca tinha falado dessa maneira; nem sequer na primeira ocasião em que o tinha visto tinha parecido tão frio e distante. Tão isento compaixão.

«Não fala sério — disse —. Está zangado.» Entretanto, a sombra de uma dúvida aninhou em seu coração.

Esforçou-se por lhe sustentar o olhar, decidida a não deixar-se intimidar. Tor não devia falar assim. Ela tinha errado, mas por um bom motivo, e suas intenções eram puras.

—Mereço sua ira, mas não seu desprezo. Não trabalhei de forma precipitada, nem era meu desejo que isto acontecesse. Sou vítima de um engano. Tem que saber que eu jamais faria algo para te prejudicar. —Fez uma pausa, antes de acrescentar em voz baixa—Amo-te.

Aguardou que Tor reagisse a sua declaração sincera, mas ele guardou um silêncio sepulcral, displicente, indiferente, magnânimo como um rei. O único indício de que a tinha ouvido era uma ligeira palidez em torno da boca.

Christina não esperava que ele correspondesse a seus sentimentos… ou sim?

Escapou-lhe uma lágrima. Custava-lhe falar pelo nó que tinha na garganta. Por que se estava comportando assim? Comportava-se dessa forma com todos outros, mas não com ela. Era o mesmo homem a quem tinha lido relatos na cama?

—Não faça isto. Não me separe de seu lado. Não mereço que me trate como se não significasse nada para ti. —Tentou tragar saliva, mas lhe doía—. Você não é assim.

Ele a olhou aos olhos, rebatendo-a em silêncio. Se ela tivesse percebido ira em sua expressão, teria mantido a esperança, mas no olhar frio e firme de seus olhos azul celeste não havia o menor indício de emoção. Christina retrocedeu um passo, como se o estivesse vendo pela primeira vez.

—Este é meu verdadeiro eu. Não sou seu condenado Lancelot. Isto não é uma fantasia romântica, e nada do que faça vai mudar isso, por muito boas que sejam suas intenções.

Ela soltou um grito afogado, como se Tor acabasse de lhe cravar uma adaga no coração. Seu rosto ficou lívido. Tor tinha arrojado luz sobre seus sonhos mais profundos e escuros para depois pisoteá-los. Tão transparente era Christina? Via ele suas tentativas por agradá-lo como um patética tentativa de conquistar seu coração? Encolheu-se de vergonha, pensando que talvez tivesse razão.

—Não sei a que te refere - disse por orgulho.

«Por favor, que não seja pena isso que percebo em seus olhos.»

—Crie que não me dei conta de como me olha, que não sei o que quer de mim? Mas não posso te dar o que desejas. É jovem, e tem a cabeça cheia de fantasias sobre cavalheiros e aventuras românticas. Sou um valente chefe das Highlands que só deve lealdade a seu clã.

—Então não há lugar para mim?

—Não na forma em que você deseja.

—As coisas não têm que ser assim.

Tor não moveu um só músculo do rosto.

—Sim, têm que ser assim.

—Você quer que seja - disse ela com raiva—. Quer estar sozinho para não sofrer se perder a alguém e para não ter que depender de ninguém. Começo a acreditar o que se diz de ti. Mas não é invencível. É um homem. As pessoas necessitam umas das outras, embora dêem passos em falso. Seu pai se equivocou ao te inculcar a idéia contrária. —Ao ver que tremia a mandíbula de Tor se perguntou se não tinha ido muito longe.

—Não sabe do que falas - acusou ele—. Estou seguro de que isto é um engano.

O coração deu um tombo a Christina quando compreendeu a que se referia. O engano era seu matrimônio.

Não dizia seriamente. Sem dúvida tinha tido algum desejo de casar-se com ela… ou não? Ninguém o tinha obrigado a nada. Por muito que lhe doesse, tinha que saber a verdade.

—por que te casou comigo?

Ele se voltou, e por sua atitude vacilante Christina soube que não queria responder a sua pergunta.

Sentia tal opressão no peito que mal podia respirar.

—Que importância tem isso agora? —inquiriu mordaz—. Para que manter as ilusões entre nós?

Tor lhe lançou um olhar severo, pois não tinha gostado de seu sarcasmo.

—Tu eras parte de meu acordo com o MacDonald. Casar-me contigo foi o preço que paguei em troca da paz. Embora, depois do que ocorreu hoje, é possível que perdi isso.

Christina sentiu que o coração lhe rompia em um milhão de pedacinhos que se dispersaram no chão, a seus pés.

Umas lágrimas grossas e quentes lhe escorreram pelas bochechas.

—E treinar esses homens também formava parte do trato?

Áspero e impassível, contou-lhe de maneira sucinta o que ela desejava saber desde o começo, lhe deixando meridianamente claro o que tinha posto em perigo com seus atos. Ela o escutou enquanto explicava os termos de seu acordo com o MacDonald, sua negativa inicial a adestrar aos homens e a oferta posterior de MacDonald que ele não tinha podido rechaçar.

«Nunca teve desejo de casar-se comigo.» O que o tinha feito mudar de idéia não tinha sido seu sentido da honra nem que albergasse sentimentos especiais para ela, a não ser seu dever para com seu clã. E ela tinha feito quão único Tor jamais poderia lhe perdoar: interpor-se entre seu clã e ele. Sentiu náuseas ao compreender a ameaça que tinha atraído sobre ele sem querer. Por culpa dela, a segurança do clã e todo aquilo pelo que Tor tinha lutado desde a morte de seus pais estavam em perigo.

Nunca voltaria a confiar nela. Ela sabia o muito que lhe havia custado baixar a guarda só um pouco, e que tomaria acontecido como um fracasso pessoal. Christina tornava realidade seu pior temor: que o fato de estreitar laços com alguém prejudicasse a seu clã. A promessa das últimas semanas se desvaneceu. Tor tinha se afastado dela, desta vez para sempre.

—E agora? —perguntou Christina—. Sente o mesmo que antes?

Pareceu-lhe que a determinação em seu olhar fraquejava por uns instantes, mas não foi mais que um efeito da luz das velas.

—Que importância tem isso? É minha esposa.

Foi o golpe de graça. As fantasias de Christina lhe tinham impedido de ver a realidade. Pela primeira vez, viu as coisas com claridade. Tor tinha razão: nunca poderia lhe dar o que ela queria. Sempre haveria uma parte dele que lhe estaria vedada. Embora sentisse algo por ela, jamais o reconheceria. Não a amava; nunca a amaria. Ela tinha se enganado, inventando desculpas, convencendo-se de que, debaixo aquela aparência fria, ele a queria, de que somente mantinha essa aparência para proteger-se, de que simplesmente não sabia como demonstrar seus sentimentos.

Mas se equivocava. Tentar lhe arrancar uma amostra de emoção era como tentar tirar água de uma pedra espremendo-a. Ela não pretendia encher uma taça, somente conseguir umas gotas. Mas ele nem sequer era capaz de lhe oferecer isso.

E Christina se fartou de tentar. Entregou-se a ele por completo, mas isso não tinha sido suficiente. Nunca seria.

Enxugou as lágrimas dos olhos. Assim seriam as coisas entre eles. Sempre. Nunca seria nada especial. Essa sensação não tinha sido nada a não ser fruto de sua imaginação. Tor não era seu Lancelot, a não ser um desumano chefe das Highlands que devia a seu clã.

Ouviram golpes na porta.

—Estamos preparados, capitão - disse MacSorley.

Tor se dirigiu à porta.

—Sinto muito - disse ela por última vez.

—Muito tarde para desculpar-se- replicou ele, impávido—. Se quer ajudar, reza para que encontre seu amigo antes que faça cair a ira de Eduardo sobre todos nós.

A opressão no peito de Christina aumentou enquanto o via partir, tentando gravar cada detalhe na memória, sabendo em seu coração o que sua cabeça ainda ignorava.

—Adeus… —sussurrou, ao tempo que a porta se fechava atrás dele.

Percebeu de que o havia dito com toda sinceridade. Talvez fosse inevitável. Um matrimônio apoiado no engano estava condenado desde o começo. Mas não podia continuar assim, fingindo, dando-se contra um muro de pedra. Talvez ele tivesse suavizado as barreiras entre eles, mas seguiam estando ali; sempre estariam. Sempre viveriam em mundos separados. Ela não se conformava com isso.

Queria —não, merecia— algo melhor. Tor não era o único que tinha direito a ser feliz.

O irônico era que lhe tinha aberto os olhos. Christina já não era a jovem assustada que se encolhia quando seu pai lhe levantava a mão, nem o cachorrinho amoroso que se contentava com qualquer sobra de carinho que seu marido se dignasse lhe jogar. Tinha muito que oferecer. Sabia ler e escrever, fazer cálculos mentais complexos, acondicionar um torreão escuro para convertê-lo em um lar e, sobre tudo, amar com toda sua alma. Se ele era incapaz de ver isso, ele perdia.

O pai Stephen tinha razão. Ela merecia a alguém que soubesse apreciar suas qualidades e querê-la por isso, que não lhe desse as costas cada vez que cometesse um erro. Queria ser importante para alguém. Talvez fosse uma aspiração pouco realista, mas a alternativa era muito pior. A vida que Tor podia lhe dar não só lhe romperia o coração, mas sim lhe quebraria o espírito. Ela podia viver com o coração quebrado, mas não sem sua alma.

Respirou fundo e secou as lágrimas dos olhos. Somente podia fazer uma coisa.


Capítulo 24


Christina, aninhada no birlinn, observava os ameaçadores muros de pedra do castelo do Dunvegan esfumar-se na bruma da manhã, e seu coração quebrado se desmoronou um pouco mais. Ao longo dos últimos meses, tinha chegado a sentir apego pelo velho montão de pedras que formavam o imponente castelo e pelos taciturnos ocupantes de seu grande salão. Ficaria terrivelmente com saudades.

Também sentiria muita falta de Tor. Seus olhos, que acreditava incapazes de derramar mais lágrimas, encheram-se de novo, mas ela os enxugou com determinação. Tinha tomado sua decisão e teria que ater-se a todas as conseqüências.

Acabou. Ia deixá-lo. Abandonar ao homem que amava. Ia obrigar a seu marido a respeitar sua promessa de deixá-la retirar-se ao convento de Iona, uma promessa que ela sabia que Tor não acreditava jamais que teria que cumprir. Detestava fugir desse modo, mas não estava segura de que ele mantivesse sua palavra desse-lhe oportunidade de opor-se.

Quando tinha descoberto que já havia um birlinn preparado para navegar rumo à ilha do Mull, Christina tinha pedido à tripulação que a levasse primeiro a Iona. Embora isso os obrigasse a dar uma pequena volta, era mais simples que aparelhar outra embarcação. Christina, que não tinha tido tempo de dispor de seus pertences para a partida, tinha embarcado com pouco mais que uma muda de roupa e alguns mimos pessoais. Mhairi recolheria o resto de suas coisas e as mandaria a Iona antes de retornar junto a sua família no Touchfraser. Não levou consigo seu prezado livro. O relato não fazia mais que infundir a jovem falsas esperanças e sonhos impossíveis.

Havia dito aos guardas que a acompanhavam que ia visitar sua irmã, mas sabia que não tinham acreditado de tudo. Ao contrário deles, não tinha um elmo de aço que ocultasse seus olhos inchados e seu rosto manchado de lágrimas.

Foi uma travessia rude, pois o mar estava agitado. Christina estava sentada sozinha, perto da proa, coberta com uma capa e peles, sentindo-se mais desventurada que nunca, e não pelo vento ou o frio.

Em mais de uma ocasião esteve a ponto de indicar aos guardas que virassem de volta, mas afugentava suas dúvidas sobre a conveniência de partir repetindo em seu foro interno que romper o vínculo entre eles seria o melhor para Tor também. O matrimônio não desejado por ele so lhe tinha ocasionado problemas. Talvez sua partida lhe ajudasse a sair do embrulho em que ela o tinha metido.

Não obstante, saber que sua decisão era a correta não fazia que fosse mais fácil. Uma parte dela desejava ser capaz de contentar-se com meia vida, mas Christina sabia que o que ele podia lhe oferecer nunca a satisfaria e que jamais deixaria de pressioná-lo para que lhe brindasse com algo mais. Ele, por sua parte, trataria-a cada vez mais com maior frieza até que ela acabasse por odiá-lo… e por odiar-se a si mesma.

Não, era melhor assim. Sua infelicidade e desespero desapareceriam com o tempo. Embora o certo fosse que, no momento, longe de diminuir, pioravam conforme avançava o dia e o navio se afastava do lugar mais parecido a um lar que ela tinha conhecido.

Levavam navegando algumas horas, percorrendo o trajeto inverso ao que ela tinha feito há apenas uns meses. Reconheceu alguns das ilhotas que vira durante a viagem para o norte: Rum, Eigg e Muck. Embora o céu estivesse nublado e cinza, a bruma limpou o suficiente para que de quando em quando vislumbrasse a costa escocesa a sua esquerda. Logo se encontrariam entre o Coll e Mull, e justo ao sul estaria a ilha Iona. Se o vento não amainasse, ela logo estaria instalada a salvo entre as paredes do famoso convento junto com Beatrix. Desfrutaria da segurança que procurava, mas sem as ilusões.

Tão absorta estava em seu sofrimento que demorou um momento em ver que algo ia mau. As ordens enérgicas do Murdoch, o escudeiro de Tor e capitão de sua guarda, ressonavam de forma cada vez mais premente.

—O que ocorre? —perguntou-lhe Christina ao jovem guerreiro que ia sentado no banco situado em frente ao dela.

—Estou seguro de que não é nada, milady. —Assinalou para trás, e ela alcançou a divisar as velas de dois navios ao longe—. Essas galeras estiveram nos seguindo perto de uma hora. O capitão rodeará a ilha da Staffa a toda velocidade e estou seguro que conseguiremos burlá-los.

—Parecem galeras bastante grandes - observou ela em um tom cauteloso.

—Os assaltos no mar não são freqüentes, milady. Realizamos esta rota com regularidade e rara vez sofremos contratempos.

Assaltos? Face à afirmação do homem de que certamente não era nada, Christina sentiu que lhe acelerava o pulso, arrancando-a de sua letargia. Minutos depois, Murdoch gritou aos tripulantes que se agarrassem forte, e a embarcação virou bruscamente à esquerda para circunavegar a pequena ilha com suas estranhas formações rochosas. Ela nunca tinha visto nada parecido aquelas colunas hexagonais de rocha negra, mas não dedicou um segundo às estudar, pois estava muito nervosa, olhando para trás, com a esperança de que o veleiro que os seguia passasse, e tentando evitar o pânico quando viu que continuavam atrás deles.

Embora soubesse que o guerreiro que tinha ao lado estava ocupado remando, não pôde deixar de comentar:

—Parece-me que ainda nos seguem.

Ele não passou por cima do temor que destilava sua voz. Christina advertiu que não queria assustá-la, mas tampouco subtrair a importância do que estava acontecendo.

—Tentaremos deixá-los para trás.

«Tentaremos.» Mas ela sabia tão bem como ele que somente era questão de tempo que os navios maiores lhe alcançassem. Em condições de vento forte, o birlinn era mais veloz, mas a galera tinha quase o dobro de remos.

—São piratas?

O homem torceu a boca com expressão sombria. Os navios se aproximavam e se achavam já a poucas centenas de milhas.

—Algo pior -respondeu—. Ao que parece um deles é inglês.

—O que é que querem?

Ele sacudiu a cabeça.

—Ignoro, milady.

—Todos a coberto! —bramou de repente Murdoch.

Christina se viu derrubada de um empurrão, e um teto de escudos se formou sobre sua cabeça, poucos segundos antes que ouvisse o tamborilar surdo e arrepiante das flechas que choviam sobre eles. Estava tão aflita que demorou um momento em compreender o que ocorria.

—por que nos atacam? —perguntou, mas os homens estavam muito ocupados tentando evitar a seus perseguidores e contra-atacar com suas próprias flechas para lhe responder.

—Rendeis-vos - gritou uma voz ao longe, e Christina soube que procedia de um dos navios.

Não fez falta ouvir a soez resposta do Murdoch para saber o que fariam os homens de Tor. Eles viviam para lutar. Inclusive naquele momento ela percebia sua ânsia por entrar em ação. Render-se não estava em seu caráter. Antes preferiam a morte.

Entretanto, Christina não ia permitir se podia evitar. Tinha que fazer algo.

—Não - disse, abrindo passo por entre os escudos para captar a atenção do capitão—. Façam o que lhe pede, Murdoch. Ao menos tentem averiguar o que querem.

O rosto do Murdoch se converteu em uma máscara de fúria. Saltava à vista que nunca antes tinha recebido ordens de uma mulher e queria fazer caso omisso dela. Fugir de um combate ia contra sua natureza de guerreiro, mas, por outro lado, sabia que estava obrigado a proteger a sua senhora. Christina respirou aliviada quando Murdoch afastou o olhar dela e, dirigindo-se a vozes ao navio mais próximo -que ainda estava a certa distância—, fez o que lhe pedia.

—O que ocultam filhos do Leod? —foi à resposta.

«Sabem quem somos», pensou ela. Deviam ter reconhecido a insígnia: as três pernas recobertas de malha dobradas formando um triângulo, que denotavam que o clã descendia dos reis do Man, e um birlinn negro, símbolo de sua ascendência escandinava, sobre campo de gules e azur.

—nos entreguem a metade e lhe deixaremos partir em paz - acrescentou outro homem.

«Deus santo, acreditam que transportamos riquezas! Não são mais que piratas ingleses.»

—Não temos nada que possa lhes interessar - replicou Murdoch—. Não levamos moedas nem mercadorias valiosas a bordo.

Ficou claro que seus perseguidores não tinham acreditado quando lançaram contra eles outra chuva de flechas. Christina se viu empurrada de novo sob o toldo de escudos e já não voltou a intervir. Não serviria de nada, pois estavam decididos a roubar. Seu pai falava freqüentemente das atrocidades dos ingleses, assim por que se surpreendia?

Notou que o navio se movia de novo enquanto os homens manobravam para encontrar a rajada de vento que lhe permitisse ficar fora do alcance das flechas e escapar.

Desde debaixo dos escudos, Christina ouviu gemer a um homem que tinha perto e soube que uma das flechas dos assaltantes tinha dado no alvo.

Afogou um grito de espanto tapando a boca com o punho. Estava tão assustada que não sabia o que fazer. Com o rosto apoiado sobre os joelhos, tentou isolar do fragor horrível que a rodeava. Esteve a ponto de cair pela amurada quando a embarcação foi investida pelo outro lado. O estrondo soava cada vez mais forte; mais gritos, mais flecha, o som de um gancho de ferro de metal jogado para prender os dois navios entre si, seguido pelo balanço provocado pelo movimento dos homens e o entrechocar de espadas quando a batalha começou em um estrépito de aço e morte. Christina via a muralha de pernas dos homens que a rodeavam, e sabia que morreriam protegendo-a.

Os guardas de seu marido figuravam entre os melhores guerreiros das ilhas, mas eram somente uma vintena, enquanto que o inimigo os quadruplicava em número, a julgar pelo tamanho de suas embarcações.

Os sons eram dilaceradores: gemidos de dor, rangidos de ossos, alaridos de agonia. A bílis lhe subiu pela garganta enquanto os homens caíam em torno dela. Homens que conhecia. O terror se apropriou de Christina quase por completo. Aquilo era muito.

Tinha vontade de desmaiar, mas não queria envergonhar aqueles homens que pereciam enquanto tentavam mantê-la a salvo. Em troca, esforçou-se por não cair no atordoamento.

Cada minuto que passava era insuportável. Embora os guardas do MacLeod lutassem com galhardia, acabaram por sucumbir ante a superioridade numérica do inimigo. Quão guerreiros a rodeavam começaram a cair. Olhou a Murdoch nos olhos quando se desabou sobre ela e compreendeu sua intenção. Pugnando por reprimir um grito, ocultou-se sob o escudo de seu corpo ensangüentado.

Ainda pior que os sons da batalha foi o silêncio que se impôs quando terminou, pois sabia que todos tinham morrido.

—Afastem os cadáveres - ouviu dizer um homem—. Vejamos o que é o que estavam tão ansiosos por proteger.

Os últimos esforços do Murdoch tinham sido inúteis. Um momento depois, alguém a tirou de forma brusca de seu esconderijo.

—É uma moça - disse o homem, lhe tirando o capuz—. E bastante bonita, por certo.

Um aroma denso como a cobre a afligiu. Deu uma olhada em redor, aos restos da matança e os rostos conhecidos foi demais e vomitou sobre as grebas e os escarpes de aço do homem que a segurava.

Este proferiu um juramento e atirou uma bofetada com o dorso da mão.

—Zorra estúpida!

—Como te chamas?

Christina limpou a boca e levantou o olhar para o homem que tinha falado. Sob a viseira de aço de seu elmo, seus olhos se cravaram nela como duas adagas negras. Pela qualidade de sua malha e a sobreveste fina que levava sobre o peito, supôs que era o cabeça dos ingleses.

Ela ergueu o queixo e lhe sustentou o olhar.

—Christina, esposa do chefe dos MacLeod. —O nome do temido chefe não impressionou absolutamente ao altivo inglês. O desdém que destilava seu rosto cruel e curtido não impediu a Christina acrescentar—: Com que autoridade assalta este navio e assassinam estes homens?

A julgar pela expressão do homem, não tinha gostado de seu tom desafiante.

—a de Eduardo, rei da Inglaterra, senhor da Irlanda, príncipe de Gales e duque da Aquitania pela graça de Deus. Seus homens opuseram resistência - mentiu descaradamente. Afastou sua atenção dela e se dirigiu ao soldado que a tinha agarrado pelo braço—. Não lhe entretenham muito. —O líder inglês percorreu com o olhar a outros homens que o rodeavam—. E o mesmo digo a todo aquele que deseje uma parte dos despojos. Aqui não há nada. Quando tiverem terminado, queimem tudo.

Christina conteve outra arcada ao compreender o que pretendiam fazer. Iriam violentá-la e logo matá-la, a fim de que não ficassem testemunhas de seu crime. A esposa de um chefe das Highlands não valia nada para eles. Néscios! Tor os caçariam quando se inteirasse do ocorrido.

A segunda nave tinha ancorado ao outro lado do birlinn. Ao fixar-se na roupa e as armaduras de seus ocupantes, Christina viu que se tratava de highlanders. Escrutinou aqueles rostos ásperos e selvagens em busca do menor raio de piedade, mas não o encontrou. De repente um homem deu um passo adiante. Seu olhar era penetrante. Parecia familiar.

—Acredito que a moça pode nos ser útil, capitão.

O líder dos ingleses se voltou para quem tinha falado com somente um pouco menos de desprezo do que tinha mostrado a ela.

—E que é você?

—Arthur Campbell.

—Campbell? Não é seu irmão um dos companheiros de Bruce?

Sem dúvida por isso o tinha reconhecido Christina. Recordava a sir Colin Campbell do Finlaggan. Arthur, embora vinte anos mais jovem que seu diferente irmão, assemelhava-se a ele.

—Sim, e outros dois irmãos e eu somos leais ao senhor do Badenoch. Comyn o Vermelho.

Não era incomum que as famílias estivessem divididas. O capitão inglês aceitou sua explicação, e Campbell prosseguiu: —A moça se casou recentemente com o chefe dos MacLeod; um matrimônio por amor, conforme dizem. —Ela reprimiu uma gargalhada aguda de histeria que lhe subiu à garganta—. Estará ansioso por recuperá-la. Possivelmente ela possa nos ajudar a persuadi-lo de que nossa causa é justa. —O capitão não parecia muito convencido. Como a maioria dos ingleses, cometia o engano de subestimar aos «bárbaros» das Highlands—. Também é a filha de Andrew Fraser - adicionou.

Isso fez que o capitão prestasse atenção. Olhou-a, entreabrindo os olhos.

—É isso certo?

Christina assentiu, depois de decidir que o mais prudente era não mencionar que a ameaça de acabar com sua vida não daria muito resultado com seu pai.

Um sorriso se estendeu lentamente em seu rosto cruel.

—tragam-me isso - ordenou ao homem que ainda a segurava—. Talvez possa nos ser útil, apesar de tudo. E se não… —deu de ombros.

Ela soube o que significava esse gesto.

Embora sem dúvida a motivação de Arthur Campbell não tinha sido ajudá-la, lhe dedicou um olhar de gratidão, mas ele já tinha desaparecido entre a multidão de guardas que tripulavam a segunda galera. Entretanto, sua oportuna intervenção não tinha sido mais que uma salvação temporária; seu pai não moveria um dedo para socorrê-la. Quanto a Tor…

Não lhe restava dúvida de que sairia em sua busca. Embora não a amasse, consideraria que era seu dever protegê-la. Mas descobriria a tempo o que tinha acontecido?

*

O êxito deveria ter melhor sabor na sua boca. A equipe havia retornado a demonstrar que suas habilidades eram do que mais valiosas, da perícia do Lamont como rastreador até os dotes de marinheiro do MacSorley, passando pelos instintos do MacRuairi, que os tinham levado a dirigir-se para o Dunstaffnage. Tor duvidava que tivesse conseguido sem eles. Apesar de tudo, durante a viagem - inclusive quando tinham alcançado ao irmão John e MacRuairi o tinha «persuadido» de que lhe revelasse para quem trabalhava— Tor não podia desterrar a tristeza que o envolvia como uma nuvem negra.

A intromissão de Christina poderia ter estragado tudo, mas ela so queria ajudar. Ele não podia reprovar-lhe. Tinham-na enganado e simplesmente tinha tentado fazer o correto. A culpa era dele, por lhe contar mais do que devia. Não permitiria que isso voltasse a ocorrer. Faria o que tivesse que fazer. Repetiu a si mesmo inumeráveis vezes. Por que não podia deixar de ver em sua mente a expressão abatida de Christina?

Afrouxou a cota, tentando aliviar o persistente desconforto que sentia no peito.

Queria deixar para trás o passado. Quando os homens partissem, ele esperava poder virar a página e voltar para um certo estado de normalidade…, se é que tal coisa era possível com Christina. Nada tinha sido normal do momento em que tinha pousado os olhos nela pela primeira vez.

Duas noites depois de sua partida, Tor subiu a escada do molhe, depois de ter coroado sua missão com um êxito terminante. Tinha impedido que o tabelião divulgasse a informação e tinha averiguado quem era o responsável pelos últimos ataques lançados contra Dunvegan. John MacDougall do Lorne ganhou um inimigo poderoso, e Angus Og MacDonald tinha um novo aliado contra seu traiçoeiro parente. Tor já não se manteria à margem do conflito entre os dois influentes clãs ilhéus.

Enquanto se aproximava do grande salão, pensava no que diria para sua esposa para acabar com a discórdia entre eles, mas imediatamente intuiu que algo ia mau. O lugar estava muito escuro, muito tranqüilo. Era como se um pano mortuário cobrisse tudo.

Rhuairi e Colyne foram a seu encontro a passo veloz. Ao ver sua expressão, ele soube que foram lhe dar uma má notícia.

—O que acontece? —quis saber.

Eles se olharam, nervosos, mas Colyne foi o primeiro em falar.

—Trata-se da senhora, RI tuath.

Um calafrio lhe percorreu as costas. Obrigou-se a manter um tom sereno, Apesar de que todos seus músculos se esticaram em um estado de máxima alerta.

—Está doente?

Colyne sacudiu a cabeça.

—Não, chefe - respondeu Rhuairi—. Se foi.

Zumbiram-lhe os ouvidos como se alguém acabasse de lhe golpear o elmo com uma espada. Demorou uns momentos em compreender o que o senescal havia dito. Agarrou ao Rhuairi pelo broche de seu brat de quadros.

—Como que se foi?

Tor escutou a explicação do senescal de que ela partiu na companhia dos homens que se dirigiam ao Mull com uma mescla de incredulidade e um pânico crescente conforme assimilava o ocorrido. Christina tinha aproveitado sua estúpida promessa de permitir que se retirasse a um convento. A ele jamais teria passado pela cabeça que ela chegaria a fazê-lo algum dia, embora em realidade não soubesse por que. Tinha-lhe dado uma saída; por que lhe surpreendia que ela a tivesse utilizado?

Deus sabia que não lhe tinha dado nenhuma razão para ficar. Ela não tinha feito outra coisa que tentar agradá-lo desde que se casaram. Tinha-lhe entregue seu coração, e não tinha dado nada em troca. Comportou-se como um bastardo insensível e tinha acabado por afugentá-la.

Estava sozinho. Não era isso o que queria? Não sentir nada a não ser um vazio em seu interior? Mas não era um vazio o que sentia, a não ser uma dor aguda e lacerante. Sentia-se como se acabassem de lhe cravar uma espada no peito e lhe tivessem esmigalhado as vísceras.

Uma vida inteira de solidão se abria ante ele. Uma vida em que somente teriam a guerra e suas responsabilidades para com seu clã. Uma vida de infelicidade.

Deus santo, o que tinha feito?

Deveria estar furioso porque ela se atrevera a abandoná-lo. Os highlanders eram célebres por seu orgulho, e ele não era uma exceção. Entretanto, unicamente podia pensar no dano que devia ter feito para que chegasse a esse extremo. Sentia-se doente somente de pensar. Tinha que recuperá-la. Não porque fosse sua mulher - porque lhe pertencesse —mas sim porque seu lugar era ali a seu lado.

Não sabia por que albergava sentimentos tão intensos, mas teria que demonstrar-lhe custasse o que custasse.

Continuou caminhando até o salão, com os dois homens seguindo-o a toda pressa. Uns poucos membros do clã dormiam ao calor do fogo, mas a maioria estava sentada em silencio em torno das longas mesas. O ambiente estava tal como ele tinha deixado, mas parecia diferente. Lôbrega, como se toda a alegria se apagou. Seus cães ergueram a cabeça quando entrou. Em vez de correr a recebê-lo, dirigiram-lhe um olhar de desilusão e apoiaram de novo a cabeça sobre suas patas.

—Onde está Murdoch? —perguntou com impaciência.

Ambos os homens o olharam, desanimados. Colyne sacudiu a cabeça.

—Com os homens que foram zarpar para o Mull. Não retornaram.

—Como que não retornaram? —estalou Tor—. Até tendo em conta o tempo acrescentado da viagem a Iona, deveriam ter retornado ontem.

Nenhum dos dois respondeu. De repente, o estômago de Tor deu um tombo, como se tivesse tragado um bocado de carne putrefata. O pânico começou a crescer em seu interior, mas o reprimiu. Christina estava bem. Tinha que haver uma explicação. Mas Rhuairi não tinha terminado.

—Chegou isto para você faz menos de uma hora. O mensageiro disse que ninguém devia vê-lo exceto você.

Tor o abriu, atendido por uma negra premonição.

Parou-lhe o coração e seu rosto ficou lívido quando leu as palavras escritas na parte de pergaminho, palavras que iriam mudar sua a vida.

«Homens mortos. Os ingleses capturaram a sua dama. Dumfries. Não demorem.»

«Não demorem.» Tinham assassinado seus homens e tinham a intenção de matar a ela também.

A perda de seus homens o punha furioso. Tinha vontades de estrangular a alguém. Mas ao pensar que Christina corria perigo…

A bílis lhe queimou a garganta. Embora sempre tivesse acreditado que não tinha medo de nada, um medo maior que jamais sentira se deu procuração dele; um medo escuro que lhe consumia a alma e corroía como o ácido a cobertura de aço de seu coração. Sentia-se como em carne viva. Nu. E mais apavorado do que estivera em toda sua vida.

Se inteirar-se da ida de Christina o tinha arrancado de seu estupor emocional, a notícia de que tinha caído prisioneira dos ingleses foi como um brilho de lucidez que o obrigou a aceitar a verdade.

Amava-a.

Muito tarde compreendeu o insensato que tinha sido. Sua obstinação em orgulhar-se por sua crença de que era imune às emoções tinha impedido de ver o que estava ali desde o começo. Essa era a razão pela que nunca deixava de pensar nela. A razão pela que procurava pretextos para passar tempo em sua companhia. A razão pela que lhe fazer o amor provocava uma sensação tão diferente. Era o que fazia que se sentisse feliz simplesmente ao estreitá-la entre seus braços durante horas e escutar sua voz enquanto lia essas ridículas histórias românticas. Era o motivo pelo que desejava despertar a seu lado todos os dias pelo resto de sua vida. Era o motivo pelo que lhe saltava o coração quando entrava em um aposento e ela levantava o olhar para ele, com um amplo sorriso desenhando-se o no rosto.

Ela havia devolvido a calidez a sua vida, tinha quebrado a muralha de gelo que tinha erigido em seu interior e mergulhou até o mais profundo para encontrar emoções que levavam muito tempo enterradas.

Mas talvez já não tivesse ocasião de dizer-lhe.

Imagens longamente reprimidas desfilaram ante seus olhos. O corpo nu e maltratado de sua mãe coberto de hematomas e sangue, com uma expressão de terror fixada para sempre em seu olhar. E logo recordou o resto: como tinha se jogado sobre ela e se negara a permitir que os homens de seu pai a levassem; quanto tinha chorado; como a dor o tinha abrasado e destroçado por dentro, igual a agora.

Não podia ocorrer isso a ela também. A idéia de não voltar a vê-la jamais…, de não voltar a tocá-la…, de não aspirar nunca mais seu aroma suave e floral era insuportável. Não podia perdê-la.

Algo estalou em seu interior. Raiva. Loucura. Uma determinação obsessiva por encontrá-la e devolver o golpe com a espada da vingança. Jurou que encontraria a cada um dos responsáveis pelo assassinato de seus homens, e se haviam tocado um só cabelo da sedosa e negra cabeleira de Christina, asseguraria-se de que sofressem uma morte lenta e dolorosa.

Os escudeiros de Eduardo tinham cometido um engano de fatais conseqüências. Ao matar aos homens de Tor e capturar a sua esposa, os ingleses tinham feito que a guerra da Escócia passasse a ser a guerra de Tor.

O caminho que devia seguir estava claro. De momento começou a fazer preparativos para reunir-se com os homens na broch. Necessitaria-os se queria ter alguma possibilidade de resgatar Christina. Surpreendentemente, reconhecer isto para seus adentros não lhe custou o menor esforço. Antes de partir, entregou ao Rhuairi uma mensagem breve para que o despachasse ao MacDonald: «Estamos preparados».

Tinha tomado uma decisão. Não haveria volta atrás.


—Peço-lhe desculpas pelas maneiras do capitão, lady Christina. Ao que parece se excedeu um pouco em seu zelo por lhe interrogar.

Um pouco? Christina olhou fixamente ao comandante inglês ricamente vestido e impecavelmente arrumado, que estava sentado de frente a ela nos luxuosos aposentos principais do castelo do Dumfries. Seus olhos delatavam que não o lamentava absolutamente. Entretanto, bater em uma mulher —embora fosse escocesa— era pouco cavalheiresco. Lorde Seagrave, com sua sobreveste impoluta bordada em branco e dourado e sua malha reluzente, deu-lhe a impressão de ser o tipo de homem a quem não gostava de manchar as mãos com os aspectos mais desagradáveis de suas responsabilidades como comandante da guarnição inglesa no castelo do Dumfries, no Galloway. Perto de cinqüenta anos, era um dos comandantes mais velhos do rei em Escócia e tinha participado de quase todas as lutas principais da última década.

Embora tivesse vontade de lhe espetar que guardasse suas desculpas e lhe recriminar que tivessem assaltado seu navio sem motivo e assassinado a todos aqueles homens, Christina sabia que para proteger a seu marido e a sua família teria que seguir interpretando o papel de rapariga assustada e sorrindo como uma parva, que era o que tinha feito no momento de sua captura. Os últimos dois dias tinham sido os mais longos de sua vida. Horrorizada pela matança gratuita dos homens de seu marido, tinha vivido a cada segundo temerosa de que mudassem de idéia. Tinha que sobreviver durante o tempo suficiente para informar a alguém do acontecido. Era imprescindível vingar aquelas mortes.

O capitão inglês tinha mitigado o tédio da longa travessia por mar interrogando-a sobre as atividades de seu pai e seu marido. Quando não gostava da resposta, golpeava-a. Sua arrogância, não obstante, tinha virado em favor de Christina, pois era evidente que na realidade não acreditava que ela possuísse informação valiosa. A maioria dos homens considerava as mulheres seres inferiores, e os ingleses, com seu altivo sentimento de superioridade, eram ainda piores.

Christina tinha se informado de muitas mais coisas das que tinha revelado. Os homens falavam sem disfarces em sua presença, sobre tudo de noite. Ela tinha descoberto que acabavam de estar no castelo do Inverlochy, o bastão nas Highlands do senhor do Badenoch, Comyn o Vermelho. A escolta dos highlanders estava integrada em sua maior parte por membros do clã Comyn e seus parentes do clã MacDougall.

Quando chegaram ao castelo do Galloway, conduziram a Christina à praça dos ingleses no Dumfries enquanto os highlanders se dirigiam ao castelo do Dalswinton para aguardar a chegada de seu senhor.

Estava virtualmente segura de que tramavam alguma ação nefasta relacionada com o conde de Carrick, Robert de Bruce. Um dos guardas do Comyn tinha mencionado de passagem que estava preso em uma prisão inglesa, mas isso era tudo o que ela tinha conseguido ouvir. Esperava averiguar algo mais de boca de lorde Seagrave.

Resistiu o impulso de levar a mão à cara, que tinha inchada e arroxeado, e dizer a lorde Seagrave exatamente onde podia meter sua compaixão. Seus machucados desapareceriam, e suas probabilidades de escapar seriam mais altas se eles a subestimavam. Antes morreria que trair seu marido. Os últimos meses tinham despertado nela uma força e um valor que não sabia que possuía. Se mostrasses intimidada, era unicamente por interpretar um papel. Assim, em vez de replicar com raiva, agachou a cabeça e disse: —Meu pai é um súdito leal do rei. O que seu homem insinua… —inclinou-se para ele e sussurrou—: É traição.

Esperava haver dado a sua voz o toque justo de surpresa e inocência.

Ele sorriu com indulgência, como em deferência a seu simples intelecto feminino.

—Esquecestes que seu pai esteve na prisão por traição não faz muito tempo?

Christina abriu muito os olhos.

—Certamente que não, milorde. Por isso mesmo posso lhe garantir sua lealdade para o rei. Embora diga que o trataram com toda cortesia - mentiu— não tem o menor desejo de voltar. —Baixou a voz com uma atitude de cumplicidade—. Acredito que é porque sentia falta de seu uísque e os bolos de maçã de seu cozinheiro. —Franziu o sobrecenho de maneira forçada—. Tem maçãs na Inglaterra?

Quando o comandante a olhou como se fosse parva de arremate, ela esperou não ter carregado muito as tintas.

—Temo que sim.

—Então talvez fossem as ameixas. Estão demais de ricas. Têm ameixas também?

A lorde Seagrave começava a esgotar a paciência. Aquela mulher tinha intercalado seus dois interrogatórios com bate-papos sobre comida, móveis e música, para grande irritação do comandante.

—Remetemos uma mensagem a seu pai, mas não respondeu ainda. Por quê?

Estava entrando em terreno perigoso. O valor de Christina como refém diminuiria de forma considerável se os ingleses descobrissem que seu pai não iria resgatá-la.

—Talvez esteja de viagem. Retornou o mensageiro que enviaram a meu marido?

—Ainda não - disse ele com o sobrecenho enrugado.

De novo chamou alguém na porta, mas Christina se acostumou às interrupções constantes. Durante a hora que ele levava tentando interrogá-la nesse dia, um desfile de homens tinha passado pelo aposento.

Um soldado jovem entrou e entregou uma carta sem explicação alguma. Lorde Seagrave devia estar esperando-a, pois a abriu e a leu com rapidez. O sorriso matreiro que lhe arqueou os lábios despertou a curiosidade de Christina.

—partiram os homens? —perguntou lorde Seagrave.

—Não - respondeu o jovem cavalheiro—. Digo se acontecer, senhor?

Christina ficou de pé, sem dissimular sua emoção.

—Posso voltar para mi… quarto. —O quarto reduzido e sem janelas na torre mal era digna desse nome.

Ele a olhou com dureza.

—Não terminamos. Esperes aqui, em seguida volto. —Deixou-a sozinha e fechou a porta atrás de si.

Christina ficou carrancuda até que viu o pergaminho desdobrado sobre a mesa. Arrepiou-lhe o pêlo dos braços. Não acreditou em seus olhos. O comandante deixou a carta.

Com o coração desbocado, inclinou-se sobre a mesa e virou os documentos para coloca-los de cara para ela. Primeiro examinou a página superior e viu que estava escrita em francês.

Afogou um grito e a leu de novo para assegurar-se de que a tinha entendido bem. Era do Comyn o Vermelho para o rei Eduardo, e lhe informava da traição de Bruce, a prova da qual se anexava a seguir. Christina levantou apressadamente a primeira folha de pergaminho e viu um documento lacrado, em latim. Embora continha muitos detalhe, ao que parece se tratava de um pacto entre o Comyn e Bruce contra o rei Eduardo. E agora Comyn pretendia voltar-se contra Bruce e exibir seu acordo como prova de traição.

Ouvindo passos sonoros do outro lado da porta, Christina devolveu os documentos a seu lugar e se reclinou em sua cadeira, tentando serenar seu pulso e atenuar o rubor de nervosismo que lhe tingia as bochechas.

O coração pulsava com força enquanto obrigava a sua mente a responder às perguntas do comandante da forma mais desatinada possível enquanto planejava sua fuga.

Não podia esperar que a resgatassem tendo em conta que essa mensagem seria despachada a Londres a qualquer momento. Embora não conhecesse bem a área, sabia que o castelo de Bruce no Annandale, Lochmaben, encontrava-se perto. Não sabia como chegaria até ali, mas tinha que tentar.

Se essa carta chegasse às mãos do rei Eduardo, Robert Bruce logo seguiria ao Wallace à tumba.


Capítulo 25

Era uma noite perfeita para uma incursão: escura e brumosa, sem uma lua prateada que os delatasse. A escuridão seria sua primeira arma, e a velocidade e a surpresa, a segunda. Atacar depressa e com força era a principal estratégia de todos os piratas. Nem código cavalheiresco, nem regras.

Tor e a equipe, ocultos no bosque, atrás do pequeno castelo de estilo normando erguido em um montículo, aguardavam as altas horas da madrugada enquanto vigiavam todos os movimentos dos soldados ingleses.

Depois da longa viagem pelo mar do norte de Skye até Galloway, no rincão sul-ocidental da Escócia, era uma tortura para ele ter que esperar, sabendo que sua esposa se achava a somente umas centenas de pés dali. Não queria nem imaginar o que ela devia estar suportando nesse momento. Também se negava a considerar a possibilidade de que não seguisse com vida. Tinha que concentrar-se em seu encargo. Assaltar um castelo ocupado por uma guarnição inglesa inteira não era tarefa fácil.

Mas podia levar a cabo.

Era célebre o ataque surpresa por meio do qual Wallace tinha tomado a praça inglesa no castelo do Ardrossan, no Ayr, e Tor tinha decidido empregar uma tática similar. Com perto de uma vintena de homens e sem máquinas de assédio, irromper em turba pelas portas ficava descartado, assim teriam que recorrer ao sigilo e às manobras de distração.

Supunham que Christina estivesse presa na torre de pedra de planta quadrada construída no alto do montículo de terra, de quarenta pés. Para chegar até ali, teriam que atravessar as duas linhas de defesa características disse tipo de fortificação: o fosso que circundava todo o complexo e a paliçada que se levantava do outro lado.

À frente de oito homens da equipe de Bruce, cruzaria o fosso e a paliçada da parte posterior do castelo, em frente da ponte levadiça exterior. Uma vez dentro, separariam-se para procurar Christina, enquanto outros preparavam a fuga. MacRuairi estava convencido de que podia tira-la da torre quando tivessem conseguido entrar, independentemente de onde a tivessem encerrada. Ao Tor bastava jogar uma olhada a seu semblante para acreditar. Seton e Boyd também o acompanhariam. Necessitava homens acostumados no combate corpo a corpo que soubessem dar morte de forma silenciosa, com adagas ou com as mãos nuas.

Disporiam de meia hora para encontrá-la e matar aos guardas antes que Gordon e o resto da equipe atraíssem a atenção dos ingleses para eles para que os outros pudessem sair. MacSorley estaria esperando no exterior com seus guardas do clã MacLeod quando baixassem a ponte.

A luz do interior da torre se apagou quase por completo. A atividade dos soldados ingleses se reduzira. Somente um ou outro som de um animal ou o sussurro das folhagens rompia o silêncio. Tinha chegado o momento.

Tor se ajoelhou na terra e nas folhas, rodeado pelos membros da equipe, para lhe da as últimas instruções.

—Já sabes o que deve fazer, Falcão? —perguntou ao MacSorley, que encabeçaria aos do clã do MacLeod.

Tor tinha tomado um risco ao levar guerreiros adicionais, mas como precaução acrescentada se guardara de chamar os membros da equipe por seus nomes. Tinha ocorrido à idéia de utilizar nomes de guerra quando tinha ouvido Boyd empregar o apelido com que MacSorley se referia a ele ante a Christina.

O gigantesco escandinavo desdobrou um grande sorriso, e o branco de seus dentes reluziu em seu rosto com o resto sumido na escuridão.

—Sim, capitão. Ir por sua senhora e nos assegurar de que esses condenados ingleses não se esqueçam desta noite por toda sua vida.

De qualquer óptica minimamente racional, atacar uma guarnição de cem soldados ingleses com uma vintena de homens parecia uma missão suicida. Mesmo assim, Tor confiava no seu êxito. A destreza da unidade de elite de Bruce tinha superado inclusive suas próprias expectativas. Juntos formavam uma força digna de ter em conta. Sentia-se como se estivesse a ponto de viver um momento transcendental, como disposto a fazer história. Criava-se uma nova era de guerreiros, a era dos highlanders.

Esses malditos ingleses não sabiam o que os esperava.

Assaltar uma praça inglesa os converteria a todos em traidores aos olhos de Eduardo, mas eram conscientes disso quando foram à chamada de Bruce. A incógnita de que Lamberton e Bruce aprovariam ou não aquela operação precipitada e não autorizada não era algo que preocupasse ao Tor. A vida de Christina estava em jogo; ele faria o que tinha que ser feito.

Tor e os oito membros da guarda de Bruce que o acompanhavam avançaram sem fazer o menor ruído por entre as sombras para o fosso que rodeava o montículo. Por meio de gestos, indicou que colassem o corpo a terra e se mantivessem muito pegos ao chão. Quando chegaram na borda do fosso, aguardaram até certificar-se de que o sentinela no alto do montículo não pudesse vê-los antes de descer. Como era inverno, o profundo fosso continha alguns pés de água, ou, melhor dizendo, de um lodo frio e negro que desprendia um aroma mofado a plantas podres. Cuidando de proteger a pólvora do Gordon, caminharam pela lama e ao chegar ao outro extremo subiram à borda para chegar à paliçada formada por estacas bicudas.

Essa era a parte mais delicada da missão. Teriam que escalar os postes de madeira de dez pés de altura sem que os descobrissem os guardas situados no montículo, por cima deles, nem o soldado que fazia a ronda por aquela seção do recinto. Tinham escolhido um lance da paliçada oculto à vista por um volumoso edifício que se erguia no pátio exterior do castelo - provavelmente as cozinhas, a julgar pela quantidade de fumaça que tinham visto sair dali horas antes—, mas de todos os modos durante alguns minutos estariam expostos ao perigo.

Tor foi o primeiro a entrar. Lançou um gancho preso a uma corda entre dois postes e puxou a corda até que o gancho de ferro se enganchou.

O coração lhe pulsava a toda velocidade. Com os sentidos totalmente em alerta, esperou o momento certo. Quando o soldado passou, Tor subiu impulsionado pela corda, encarapitou-se nos postes e se deixou cair são e salvo do outro lado.

Estava dentro.

Quando o soldado passou de novo, sua costa encontrou com o aço da adaga do MacKay concebida especialmente com esse fim. A folha se alargava para o punho e pelo outro lado se estreitava até uma ponta aguçada que lhe atravessou a cota de malha até os pulmões. O soldado desabou aos pés de Tor sem soltar nem um gemido. MacRuairi o chamava «morte silenciosa» e tinha ensinado aos homens a encontrar o ponto exato em que cravar a arma. Era uma técnica extremamente eficaz para ações encobertas como naquela em que o som mais leve podia ter conseqüências nefastas.

Um a menos, mas ainda ficavam aproximadamente noventa e nove.

Poucos minutos depois, os outros oito homens estavam junto a ele; tinham conseguido passar ilesos por cima da paliçada.

Tor fez ao Gordon um sinal com a cabeça, e a equipe se dividiu: MacRuairi, Seton e Boyd foram com ele; MacGregor, MacLean, Lamont e MacKay foram com o Gordon.

À frente de sua equipe, Tor rodeou o montículo de terra até a parte detrás. Para acessar a torre da comemoração, teriam que arrastar-se costa acima sem que os vissem. Em vez de avançar um atrás de outro, espaçaram-se entre si de modo que, quando chegassem ao topo, estivessem em posição de matar aos guardas. Mas a sincronização era fundamental. Deviam chegar ao alto da colina e sossegar aos dois guardas que faziam ronda pelo perímetro antes que pusessem de sobreaviso aos sentinelas que custodiavam a entrada da torre que servia de moradia, em que estava Christine.

A terra e a erva seca do pequeno morro que subiam pouco a pouco, fazendo força com os cotovelos e os antebraços, estavam escorregadias e cobertas de barro. Detiveram-se uns pés do topo e se comunicaram de um homem a outro por gestos. Tor ergueu a mão: cinco, quatro, três, dois…

Saíram da escuridão e se equilibraram sobre os guardas despreparados, como seres espectrais. As facas desceram de forma inesperada e letal. Os sentinelas postos na frente da porta exterior da torre foram os seguintes. Noventa e cinco. Tor sentiu que a emoção da batalha o percorria com uma intensidade cada vez maior conforme se aproximava mais e mais a sua esposa. O plano ia dar resultado.

A seguir chegavam o salão, cheio de soldados que dormiam. Nada lhe teria agradado mais que massacrá-los a todos, mas isso teria que esperar. Primeiro tinha que tirar Christina dali. Dispunha-se a entrar na torre quando ouviu um grito procedente do pátio inferior que lhe gelou o sangue.

Amaldiçoou entre dentes, pois sabia que suas possibilidades de êxito tinham passado de boas a péssimas em um piscar de olhos. A vantagem que para eles era a escuridão e o fator surpresa se esfumou. Tor esperava com toda sua alma que o alarido não tivesse sido proferido de seus homens.

Agora, para tirar Christina do castelo, teriam que abrir caminho lutando contra a guarnição de soldados que dormia no salão, a somente alguns passos dali. A fortaleza inteira já ficava em movimento enquanto o alvoroço de baixo aumentava. Não havia tempo a perder.

Tor estava a ponto de ordenar aos homens que entrassem quando, pela extremidade do olho, viu algo que o fez deter-se.

MacRuairi também percebeu isso.

—Parece tratar-se de uma moça, capitão - sussurrou.

Com o sobrecenho franzido, Tor estudou a figura coberta com uma capa que lutava com o guarda que vigiava a porta. O pulso lhe acelerou e o coração deu um tombo repentino contra as costelas. Não se tratava de qualquer moça, mas sim de sua moça. Pelo visto sua mulher tinha decidido não esperar que a resgatassem. Por que não se admirava com isso?

Soltou um juramento e arrancou a correr escada abaixo para o pátio. Levou ambas as mãos às costas e desembainhou a espada.

Um selvagem grito de guerra brotou de seus pulmões e deixou gelados aos soldados de baixo. Um momento depois, Gordon respondeu a sua chamada com outro bramido.

*

Por sorte de Christina, os soldados ingleses gostava de beber.

Quase tinha conseguido cruzar o salão quando um soldado que ela acreditava que estava desmaiado em um estupor alcoólico a agarrou enquanto passava junto à mesa e a sentou sobre os joelhos. Christina passou a mão pela boca, tentando livrar do desagradável sabor do beijo que lhe tinha dado nos lábios. Mas supunha que deixar-se manusear um pouco por um bêbado era um preço que valia a pena pagar pela liberdade. Riu, afastando-o com um tapa com atitude brincalhona, e lhe tinha passado outra taça de vinho antes de baixar-se de seus joelhos, murmurando que tinha outras obrigações que atender.

Fez uma careta de pesar ao pensar na roupa de criada que levava. Esperava não ter batido muito forte na moça, mas tinha que estar segura de que demoraria um momento para voltar em si. Quando a criada tinha aberto a porta para lhe levar o jantar, Christina a tinha surpreendido com um golpe de candelabro na nuca. Tinha «tomado emprestada» a túnica e o brat, esperando que ninguém se fixasse em que ia arrastando os oito centímetros de saia que sobravam, e depois, com tiras de lençóis, atou os pés e mãos da criada e a amordaçou. Desse modo, embora despertasse, não poderia alertar a ninguém.

Lorde Seagrave, a quem jamais teria passado pela cabeça que uma mulher tentasse fugir, acreditava que bastaria passar o ferrolho à porta, por isso não tinha posto um guarda. Foi um descuido de que acabaria por arrepender-se.

Com a esperança de acautelar a perseguição de algum outro soldado amoroso, Christina agarrou uma bandeja e uma jarra vazia, e, fingindo que estava recolhendo as mesas, passou diretamente entre os sentinelas da entrada, baixou a escada e cruzou a ponte para o pátio inferior. Depois de desfazer-se dos objetos de cenário, escondeu-se entre as sombras atrás das cavalariças próximas às portas, esperando uma ocasião para escapulir se confundindo entre os aldeãos. Entretanto, o guarda tinha fechado as portas pouco depois de que ela chegasse. Pugnou por não cair no desespero, pois sabia que não as abririam de novo antes da manhã.

Quanto demoraria em dar conta de que escapara? alguém sentiria falta da criada? Tinha apertado o suficiente suas ataduras?

Havia tantas coisas que podiam sair mau… Rezou por que se produzisse um milagre.

Em vez disso, poucas horas depois - por culpa de um gatinho curioso com o miado mais estridente que ela jamais tinha ouvido—, descobriram-na. Por mais que se empenhasse em afugentar à molesta bola de pelo, esta retornava uma e outra vez. Um soldado viu o gato e decidiu investigar o que ocorria ao ver que o bichinho se negava a lhe fazer caso.

Ela notou que alguém a tirava com brutalidade de seu esconderijo e se encontrou frente a frente com um cavalheiro jovem. De baixa estatura e de costas largas, tinha um rosto chato e traços toscos, mas em seus olhos apreciava um brilho de inteligência. Por sorte, tinha bebido bastante vinho.

—O que fazes oculta na escuridão? —inquiriu.

Christina se esforçou por discorrer uma explicação acreditável enquanto notava os batimentos do coração de seu coração na garganta.

—Pois… —Um sorriso forçado de inocência apareceu em seus lábios enquanto pestanejava com paquera—. Vou encontrar-me com alguém.

Essa mutreta feminina fracassou estrepitosamente. O olhar do guarda se fez mais penetrante.

—Com quem?

—Com o Edward - se apressou a responder ela. Seguro que haveria algum Edward por ali. As pessoas sempre punham nomes de reis em seus filhos, e Edward Plantageneta reinava fazia mais de trinta anos.

—Edward que mais?

Cáspita! Tinha que haver mais de um, estava claro. Ao ver que ela titubeava, o guarda a arrastou até a luz de uma tocha e chamou os outros três soldados que custodiavam nas portas.

—Algum de vós conhece esta empregada?

Um deles a conhecia. Era um soldado que esteve a bordo da galera, com ela.

—É a moça que capturamos -disse— A filha de Fraser.

Não! Tendo conseguido chegar até ali, não suportava pensar que não ia conseguir. Era sua única oportunidade. Seus guardiães não voltariam a relaxar tanto as medidas de segurança. Tentou soltar-se, mas a mão do soldado a aferrava como uma tenaz.

—Por favor - suplicou—. Tenho que voltar para meus afazeres…

Um alarido aterrorizante troou o ar quente da noite. Todos se voltaram para o montículo e a torre.

Christina conteve o fôlego.

O soldado lhe soltou o braço, mas ela se aproximou de novo a ele, para proteger-se instintivamente de algo muito mais horripilante que os ingleses.

As portas do inferno se abriram para deixar sair a um exército de demônios. Os quatro guerreiros espectrais que caíram sobre eles se assemelhavam a seres de pesadelo. Vestidos de negro dos pés a cabeça para confundir-se com a noite, de uma estatura e uma musculatura sobrenaturais, baixaram a escada com passo trepidante, espadas em alto, preparados para descarregar a fúria do muito mesmo diabo com cada cutilada de seu temível aço.

Em vez de sobreveste e cota de malha, levavam espartilhos de guerra negros e saias escuras de quadros rodeadas ao corpo de forma estranha com cinturões. Sob os espantosos elmos com protetor nasal, seus rostos estavam melados, não da pintura azul de glasto dos antigos gaélicos, mas sim de cinza. Somente um brilho branco rasgava a escuridão.

«Deus bendito, os monstros estão sorrindo!»

Christina não podia afastar o olhar do aterrorizante guerreiro que dirigia o ataque relâmpago. Havia algo…

Um calafrio lhe desceu pelas costas no instante em que o identificou. Embora estivesse virtualmente irreconhecível, ela o conhecia.

Seu marido tinha ido a seu resgate.

Os ingleses não sabiam o que fazer. Enquanto os soldados permaneciam paralisados, Christina, consciente do perigo, separou-se da trajetória da investida dos guerreiros. Apenas tinha se afastado uns passos quando o caos estalou —literalmente— em torno deles.

Uma série de estampidos ensurdecedores sacudiu a noite: detonações horríveis que semeavam o terror. Ela nunca tinha ouvido nada parecido. Soavam como trovões, mas o céu estava totalmente limpo.

Ouviu o zumbido de flechas que voavam sobre sua cabeça, e os quatro soldados que vigiavam as portas caíram em rápida sucessão. Um momento depois, um guerreiro com um arco à costas saltou do telhado das cavalariças, porta se abriram, a ponte desceu, e mais guerreiros de seu marido irromperam no tumulto que reinava no pátio do castelo.

Os soldados corriam de um lado a outro, saíam dos barracões e desciam da torre para ver o que estava ocorrendo.

*

Tor e seus homens lutavam como possessos, atravessando com a espada a todo aquele que se interpor em seu caminho. A rapidez e a ferocidade do ataque eram assombrosas. Os ingleses, aturdidos, não eram rival para eles.

Christina viu perecer ao cruel capitão que tinha assassinado aos homens de Tor e a tinha mantido presa, virtualmente partido em dois por um poderoso talho da enorme espada de seu marido.

Desviou o olhar, pois não tinha estômago para presenciar a morte de ninguém, inclusive quando era merecida.

O céu se iluminou, e as chamas prenderam ao redor deles. Os animais se uniram à correria humana que tentava escapar. Christina esteve a ponto de ser atropelada por um cavalo, mas uma mão firme a levantou e a pôs fora de perigo.

Tor. Antes que Christina pudesse deitar-se em seus braços, ele a fez girar para um lado enquanto, com uma mão, atirava um golpe de espada a um soldado que se aproximou dela por trás.

Mas o caos começava a remeter. Seu marido e seus homens tinham despachado já à maioria dos soldados havia no pátio. Uma nova onda de ingleses desceu em turba a escada da torre, mas quando cruzaram a ponte sobre o fosso, os guerreiros de Tor estavam esperando-os para dar conta deles um a um. Ao precaver-se do que ocorria, alguém —certamente lorde Seagrave— deu a ordem de retirada da torre. Os homens que ficaram no pátio foram deixados a sua sorte quando a porta da torre se fechou.

Christina abraçou a seu marido, com o rosto contra seu peito, muito aliviada para que importasse que estivesse coberto de barro e imundície.

—Não estava segura de que chegasse a tempo.

Ele a afastou ligeiramente, levantou-lhe o queixo com sua mão embainhada em uma manopla e lhe deu um beijo tão selvagem e frenético que a deixou sem fôlego e atordoada por uns instantes. Entretanto, Christina não se atrevia a ter ilusões.

Ele interrompeu o beijo e a olhou aos olhos.

—Eu temia que fosse muito tarde. Encontra-te bem?

Ela assentiu, e as lágrimas apareceram em seus olhos. Uma só olhada ao Tor bastou para que todo o medo, o espanto e o desespero que tinha acumulado em seu interior nos últimos dias estalasse em uma corrente de pranto.

—foi horrível. Seus homens… —Soluçou—. O navio… Todos mortos.

Os lábios de Tor adotaram uma expressão séria sob a máscara de aço.

—Sei. Chist - a sossegou, tentando tranqüilizá-la—. Já me contará isso mais tarde. —Levantou-lhe o rosto para a luz e proferiu uma maldição ao ver os hematomas em torno da bochecha e do o olho—. Quem te fez isto? Matarei-o.

—Já o fez - repôs ela, assinalando ao capitão.

—Tenho que te tirar daqui. Está em condições de montar a cavalo?

Christina assentiu com um ardor e um nó na garganta que lhe impedia de falar.

—Bem. Um de meus homens está juntando cavalos fora da paliçada; levarei-te com ele. Estará a salvo até que terminemos aqui.

Tinha a intenção de tomar também a torre. Considerando o que os ingleses tinham feito a seus homens, ela sabia que não teria piedade.

—Não há tempo para isso. Tem que me levar até o conde de Carrick quanto antes. Rogo por que esteja no Lochmaben.

—Bruce? O que necessita dele?

Falou-lhe dos documentos que tinha lido, e não fez falta que lhe explicasse as possíveis repercussões.

—Está segura?

Christina fez um gesto afirmativo.

—Terá que interceptar aos mensageiros antes que cheguem onde está Eduardo.

—Viu-os partir?

—Isso eu creio. Dois homens partiram a cavalo antes do almoço.

—Ingleses?

Christina assentiu.

—Poderão prosseguir sua viagem com menos dificuldades que os homens do Comyn quando chegarem à fronteira.

—Eu me ocupo dos mensageiros.

Dirigiu-se a um dos guerreiros vestidos de negro e lhe disse algo. O homem reuniu a três guerreiros mais, subiram no lombo de suas cavalgaduras e puseram-se em marcha.

Uns minutos mais tarde, Christina cavalgava junto com o Tor, rapidamente, em direção ao Lochmaben.

*

Robert de Bruce, conde de Carrick e senhor do Annandale, escutou o relato de Christina com incredulidade crescente, e logo com ira mal contida. Que não pusesse em julgamento a veracidade de suas palavras confirmava que esse documento tão perigoso, o tratado que tinha assinado com o Comyn, era autêntico.

—Matarei-o - disse, com os olhos azuis escurecidos pela raiva—. Sabia que não era de confiança.

—Então por que confiaram nele? —perguntou Tor.

Semelhante desacerto não encaixava com a imagem que se formara do aspirante a governar Escócia. Bruce o tinha surpreendido. Assim que o tinha visto, Tor tinha identificado nele o único traço que teria impressionado a qualquer Highlanders: Bruce era um guerreiro. A diferença da maioria dos nobres escoceses, dava a impressão de sentir-se tão cômodo no campo de batalha como no Parlamento.

O conde tinha um olhar ardiloso e dizia as coisas sem disfarces; algo insólito para um político. Embora não restava dúvida de que era um homem orgulhoso, felizmente parecia desdenhar a pompa ao que era tão aficionada a nobreza das Lowlands. O brat forrado de pele e o pesado broche de ouro que levava a pescoço eram os únicos sinais visíveis de sua riqueza. Se tinha notado o pó e a sujeira que recobriam ao Tor e a seus homens, não tinha dado o menor indício disso, e os tinha feito passar ao salão em seguida.

Bruce baixou a voz para responder à pergunta de Tor. Embora lhe tivesse assegurado que podiam falar com inteira liberdade no salão, não era demais ser precavidos.

—Teria sido mais fácil vencer a Eduardo com uma Escócia unida. Além disso, esperava poder evitar uma guerra civil. Não acreditava capaz de confessar sua própria traição para delatar a mim. Comyn tem mais fé que eu na gratidão de Eduardo. —Olhou ao Tor com fixidez—. A quem enviaram atrás dos mensageiros?

—Aos melhores homens - respondeu ele—. Lamont encabeça a equipe; encontrarão-os.

Bruce lhe sustentou o olhar e, ao perceber que a segurança com que falava era sincera, assentiu.

—O que ides fazer, milorde? —perguntou Christina.

—Não sei - disse Bruce em um tom solene—, mas Comyn terá que prestar contas pelo que tentou hoje. —Como acima de tudo era um cavalheiro galante, Bruce deixou a um lado a ira e se inclinou sobre a mão dela para lhe plantar um casto beijo nos nódulos — Estou em dívida com você, lady Christina, uma dívida que jamais poderei lhe pagar. —voltou-se para Tor—. Espero que seu marido seja consciente de quão afortunado é por ter uma esposa que não só é bela, mas sim também possui talentos inesperados e extremamente úteis. Dissestes as palavras desse documento melhor que meus tabeliães. —Seus olhos cintilaram—. Possivelmente deveria toma-la a meu serviço.

Christina, encantada com a adulação, ruborizou-se de prazer ante a admiração sincera que destilava no rosto do conde; um rosto muito arrumado, diga-se passagem, embora deixasse de sê-lo se não lhe soltava a mão. Talvez isso de cavalheirismo não estivesses do todo mal.

—Sou consciente disso - balbuciou Tor entre dentes—. E temo que os talentos de Christina estejam reservados para seu marido.

A aspereza de seu tom fez que Christina franzisse o sobrecenhopois não compreendia o porquê de sua irritação. Bruce, pelo contrário, compreendia-o perfeitamente. Riu e lhe soltou a mão.

—Agradeço-lhe o serviço que me emprestastes hoje, moça. Se algum dia necessitarem algo, não têm mais que me pedir isso Christina ficou um pouco mais rubra e lhe devolveu o sorriso.

—Se não lhe importar, quereria apelar agora mesmo a essa generosidade que me ofereces. Um banho me sentaria uma maravilha.

—Disporei que lhe preparem isso no ato.

Christina dirigiu ao Tor um olhar inquisitivo.

—Vá -disse ele—. Eu irei em seguida.

Ela assentiu e saiu do salão depois da criada. Os dois homem a observaram afastar-se.

—saístes ganhando com nosso acordo - comentou Bruce com malícia.

Era certo, mas Tor não tinha por que dizer-lhe.

—Não me queixo.

—decidistes aceitar a encomenda.

—Com algumas condições. —Na presença de Christina tinham falado em francês, mas tinham ido inconscientemente ao gaélico quando ela se fora; outro ponto a favor de Bruce.

O conde o olhou com receio.

—Que condições?

—Obedeceremos a suas ordens, mas eu tenho que estar no comando da equipe. Para que uma guarda destas características seja eficaz, devo gozar de autonomia e de uma autoridade absoluta sobre o terreno.

Bruce refletiu durante longo momento, ao que parece não muito agradado por suas exigências.

—Assim que eu lhe digo o que necessito e vocês decidem como levá-lo a cabo?

Tor deu de ombros. Essa era uma forma de vê-lo.

Ao cabo de uns minutos mais, Bruce, a contra gosto, assentiu em sinal de consentimento.

—Não é que não esteja impressionado pelo que seus homens e vocês têm feito, mas a próxima vez procure me avisar antes de atacar uma praça inglesa.

Tor sorriu.

—Farei o possível, mas o que ocorre é que não dispúnhamos de tempo. Os ingleses tinham em seu poder um bem muito valioso para mim.

—Alguma outra condição?

—Embora meus homens e eu estejamos presos a seu código cavalheiresco, e embora lhe façamos o trabalho sujo, não obedecerei nenhuma ordem que me obrigue a matar mulheres ou meninos.

—Alegra-me ouvir isso - disse Bruce com expressão sardônica—. Embora lhe encomendarei missões perigosas e desagradáveis, dou-lhe minha palavra de que não lhe pedirei nada que não esteja disposto a fazer eu mesmo.

Surpreendentemente, Tor advertiu que falava sério. Sua admiração pelo elogiado cavalheiro cresceu grandemente. Em um princípio, a decisão de Tor de dirigir a equipe não obedecia tanto a seu desejo de unir-se a Bruce como de derrotar a Eduardo. Entretanto, o jovem conde lhe tinha causado uma magnífica impressão. Bruce não era um aristocrata de pouca subida, a não ser um guerreiro nobre decidido a recuperar um reino. A diferença de quase todos aqueles que se regiam pelas regras cavalheirescas, Bruce não assustava sujar as mãos. Era uma qualidade que seria necessária se queria ter a menor possibilidade de êxito. Para ganhar aquela guerra, teria que arrastar-se pelo barro.

Tor o olhou aos olhos.

—E Comyn? Querem que me ocupe dele?

Bruce não fingiu ter interpretado mal a pergunta. Seu caminho ao trono não só estava obstaculizado pelo rei Eduardo, mas também pelo Comyn o Vermelho, possivelmente o nobre mais poderoso daquelas terras.

—Não. Eu mesmo me encarregarei do Comyn.

Tor assentiu, consciente de que as primeiras hostilidades de uma longa guerra estavam a ponto de começar.

—Vá - disse Bruce—. Atendas a sua esposa. —Sorriu—. Embora lhe aconselho que primeiro que tome um bom banho e mudes de roupa.

Tor torceu a boca.

—Sábia recomendação. —Talvez fosse mais fácil convencer a sua esposa de que o perdoasse se não fedesse a pântano.

—E outra coisa, MacLeod. —Tor se voltou, e Bruce lhe dirigiu um olhar severo e significativo—. Estejas preparado.

—Sim, milorde - respondeu Tor com uma inclinação da cabeça—. A suas ordens.

*

Os efeitos relaxantes do banho se dissiparam quando levaram a água. Christina tinha posto uma túnica e um vestido limpos que lhe tinha emprestado a esposa de Bruce, lady Elizabeth de Burgh. Quase sem reparar na decoração luxuosa que a rodeava, aguardava ansiosa, sentada em uma cadeira frente à chaminé, secando os cabelos, sem saber o que aconteceria quando seu marido aparecesse por fim.

Mostrou-se muito aliviado ao vê-la, mas Christina intuía que devia estar furioso com ela por haver partido. Esperava poder lhe fazer compreender que não havia alternativa, que os dois estariam melhor separados. Sabia que tinha sido uma covardia abandoná-lo sem lhe dar explicações, mas aquela primeira despedida tinha sido muito dura; não tinha nenhuma vontade de dizer adeus cara a cara.

Por que Tor demorava tanto?

Quando a porta se abriu finalmente uns minutos depois, o motivo da tardança ficou evidente. Ela ficou sem fôlego e notou uma opressão tão forte no peito que era quase um ardor. igual a ela, Tor tinha tomado um banho. Seu cabelo castanho com reflexos dourados reluzia à luz do fogo, e um aroma fresco de sabão flutuava no ar quente.

Christina sentiu o coração dar um tombo. Por que tinha Tor que lhe complicar a vida estando sempre tão absurdamente arrumado?

Seus olhares se encontraram. Ela abriu a boca com a intenção de desculpar-se, mas, para sua surpresa, viu-se apanhada em um apaixonado abraço.

—Por Deus santo, Christina, deu-me um susto de morte! —Tor deu um beijo no cocuruto a sua esposa e a estreitou com mais força entre seus braços—. Acreditava que tinha te perdido…

Seu tom soava diferente. Falava com uma voz mais suave, rouca pela emoção. Ela não queria ter ilusões vãs. Nada tinha mudado. Tor tinha ido em seu resgate, mas isso era algo que já tinha feito antes. desta vez ela não se deixaria levar por suas fantasias românticas. Aquilo não significava que ele a amasse.

Aspirou profundamente, desejando reter seu aroma quente e masculino, antes de obrigar-se a si mesmo a afastar-se dele.

—Suponho que estas desejando saber o que aconteceu com seus homens - disse—. Foi espantoso. —Os olhos se encheram de lágrimas—. Todos morreram…

Tor curvou os lábios em uma expressão séria.

—Morreram fazendo aquilo para o qual estavam treinados, Christina, o que mais amavam. O objetivo na vida de um highlander é morrer em batalha. Para um guerreiro, é a máxima honra.

Christina nunca conseguiria entender. Os guerreiros eram feitos de uma massa diferente.

—me conte o que aconteceu pediu Tor com delicadeza.

Explicou-lhe que os navios os tinham seguido e os tinham assaltado sem provocação prévia. Seu marido a escutou sem interrompê-la, sorrindo ao ouvir como seus homens a tinham rodeado e a tinham protegido com seu corpo.

—Talvez se eu não tivesse…

—Não - a cortou Tor—. Teriam morrido embora não estivesse ali. Ninguém teria podido prever o que ia acontecer. Meus homens realizam essa rota várias vezes ao mês; os assaltos no mar são muito pouco freqüentes. Imagino que os MacDougall reconheceram minha insígnia e decidiram prosseguir com seus esforços por acabar comigo.

—Eram os MacDougall que estavam atrás dos ataques?

Tor assentiu.

Isso significava que…

—alcançamos ao irmão John antes que pudesse divulgar o que tinha averiguado.

—Assim é. —Graças a Deus. Ao menos ela não seria responsável por isso—. O que não sabes é que meu novo tabelião era sobrinho de John do Lorne, e que meu tabelião anterior não tinha sofrido um acidente.

Que horror! Christina mordeu o lábio; ainda lhe custava assimilar a traição de seu amigo. Ao notar que Tor a observava, levantou o olhar para ele.

—E quando o deixaram…?

Ele a olhou fixamente.

—Tinha-nos visto.

Christina fez um gesto para indicar que tinha compreendido. Não podia ser de outra maneira. O tabelião sabia ao que se expos, o que lhe aconteceria se o capturavam. Mesmo assim, o coração lhe encheu de tristeza por sua morte.

Ao perceber sua aflição, Tor lhe afastou uma mecha de cabelo do rosto e acariciou devagar sua bochecha arroxeada com o dorso do dedo.

—Não sofreu. E acredito que lamentava ter te envolvido em sua traição. Sentia um afeto autêntico por ti.

A ternura das carícias a confundiu, igual a suas palavras amáveis. Por que tinha que lhe pôr as coisas tão difíceis? Ela so queria passar o mau gole quanto antes. Afastou o rosto da mão de Tor e recuou um passo.

—Não deveria ter te deixado desse modo.

—Não, não deveria.

—Fui uma covarde por não me despedir. Mas… temia… temia que me faltassem as forças.

—por que me deixou, Tina?

Algo em sua voz fez que o coração lhe desse um salto. Não. Negava-se a imaginar sentimentos que não existiam.

—Porque não suportaria passar o resto de meus dias com alguém que jamais poderia me amar - respondeu sem olhá-lo—, que não me deixaria formar parte de sua vida porque não me quer ou não me valoriza.

—Entendo - disse ele sem alterar-se—. Se todo isso era certo, tinha motivos de sobra para partir.

Tinha? Ela cravou o olhar em seus olhos inescrutáveis. É obvio que os tinha. Tor devia ter concluído também que seu matrimônio não levava a nenhuma parte. Ardiam-lhe as vísceras. Por que doía tanto a verdade? O que haveria ao Tor fingir que se importava ao menos um pouco? Baixou o olhar para que ele não visse seus olhos chorosos. De algum modo conseguiu articular as palavras, embora cada uma delas lhe engasgasse: —Se me levar a Iona na travessia de volta, não voltarei a te incomodar.

—Temo que não posso fazer isso —repôs ele com suavidade.

Christina notava em seu interior uma dor cada vez mais intensa, como um ferro candente contra a pele em carne viva.

—É obvio. Estará ocupado com sua equipe e o conde. Possivelmente possa dispor que um navio me leve…

—Não.

A firmeza da negativa a impulsionou a olhá-lo por fim.

—Não irá a Iona - disse Tor.

Christina ficou perplexa.

—Mas jurou que se algum dia eu desejasse ir, deixaria me retirar a lona com minha irmã.

Tor deu de ombros.

—Mudei de idéia.

—Não pode. Fez um juramento.

Tor sorriu ante sua indignação. Isso era algo tão inesperado para a Christina, dadas as circunstâncias, que não sabia o que fazer. Como podia ele ser tão cruel para burlar-se dela desse modo?

Entretanto, quando se fixou em seus olhos, o que viu neles fez que seu coração deixasse de pulsar.

Aproveitando-se de seu desconcerto, lhe rodeou a cintura com o braço e a atraiu para si, moldando o corpo de Christina ao dele. Beijou-a com delicadeza, docemente, com uma emoção quase reverencial.

—Farei o que seja necessário para que permaneça a meu lado - disse.

Todo rastro de hilaridade tinha desaparecido de seu semblante, e ela leu a incerteza em seu olhar.

Mas se Tor jamais sentia incerteza por nada…

—Não te entendo.

desta vez foi ele quem se afastou. Passou os dedos pelos cabelos, que seguiam úmidos. Caíam-lhe em ondas deliciosamente por debaixo das orelhas.

—Isto não eu não entendo bem.

Ela aguardou que continuasse, não muito segura do que se referia com «isto».

Tor respirou fundo.

—Quando me dei conta de que podia te perder, foi como se algo dentro de mim mudasse de repente. Como se tudo o que acreditava saber de repente se virou do avesso.

Embora Tor parecesse estar sofrendo o inexprimível, ela não teve piedade dele.

—A que te refere?

—Desde que meus pais morreram e eu passei a ser chefe, acreditava que tinha que ser diferente, que a única maneira de cumprir meu dever para com meu clã era desterrar toda emoção. Mas ao me esforçar por conseguir, esqueci-me do que significa viver. Você devolveu a calidez a minha vida - acrescentou, lhe roçando a bochecha com a parte posterior do dedo—. Acreditava que não necessitava a ninguém, mas estava equivocado. Necessito a ti, Tina. Sem ti, não tenho nada mais que uma vida fria e vazia.

Fez uma pausa, e Christina ficou contemplando-o.

—Por ser alguém quem não se dá bem falar de seus sentimentos, está fazendo maravilhas.

Ele sorriu, aliviado.

—Então já ouviste o suficiente?

Christina negou com a cabeça.

—Sei que me levei como um imbecil. —Ela não o contradisse—. Existem coisas pelas que não tenho direito a te pedir que me perdoe. Não posso alegar nada em minha defesa salvo que estava convencido de que tinha que fazer tudo sozinho. Sei que você tentava me ajudar. Além disso, não foi a única que se deixou enganar por aquele modesto tabelião. Sim, valorizo-te. Sempre te valorizei, embora possivelmente não soubesse até que ponto. Nunca me tinha dado conta que uma mulher pudesse ser tabelião, mas demonstraste que me equivocara. Rhuairi diz que seus cálculos são impecáveis. E, depois do que tem feito hoje… Graças a ti, Bruce viverá para lutar o dia de amanhã. —O orgulho que brilhava em seus olhos não podia ser fingido—. Perdoe-me, Tina. Retorna a casa comigo e me dê outra oportunidade.

Ela tinha o coração a ponto de estalar. Não havia nada que desejasse mais que apoiar a cabeça em seu peito e render-se à esperança que lhe brindava. Mas sua mente resistia a deixar-se convencer tão facilmente. Não poderia suportar outro frio rechaço como o da última vez.

—Como posso estar segura de que não reagirá exatamente da mesma maneira quando voltar a fazer algo que te desgoste?

Tor a olhou com apreensão.

—Tem pensado me desgostar muito freqüentemente?

Ela franziu os lábios e levantou o queixo.

—Pode ser que sim. Não vou conformar sendo sua esposa unicamente no quarto. Temo que vou pôr-me exigente contigo.

—Como de exigente? —perguntou ele como se lhe estivessem arrancando um molar.

—Muito. E se acessar a retornar, as coisas serão diferentes.

Ele a olhou com expressão de abatimento.

—Não vais facilitar-me as coisas, verdade?

—Temo que não. —Tor agachou a cabeça para animá-la a continuar—. De vez em quando, talvez queira que demonstre seu afeto diante dos membros de seu clã.

Ele fez um gesto de dor.

—Seguro que isso não será nece…

—Um olhar terno, possivelmente um beijo rápido. Nada que te custe muito esforço.

—Não é você quem terá que agüentar os comentários do MacSorley junto à fogueira.

—Estou segura de que é o bastante homem para suportar —disse ela sem mostrar a menor compaixão. Os guerreiros temíveis não deviam choramingar—. E de vez em quando possivelmente goste de te dar minha opinião sobre os temas de suas conversas.

—Sempre e quando estiver de acordo comigo.

—Inclusive quando essas opiniões não coincidam com as tuas.

Tor torceu os lábios.

—Em particular poderá me contradizer quanto queira.

Christina assentiu.

—Parece-me razoável.

—É tudo? —inquiriu Tor, com o aspecto de um réu que ia caminho do patíbulo.

Ela sacudiu a cabeça e levantou o olhar para ele, esperando que sua voz não delatasse o vulnerável que se sentia.

—Exijo também seu coração.

—É teu — disse Tor sem vacilar. Christina reprimiu o impulso de mover-se.

Tor pôs cara de sofrimento.

—Me vais obrigar-me a dizer, verdade? —perguntou.

Ela fez um gesto afirmativo.

—Temo que sim. É importante que o ouça de sua boca se tiver que te acreditar.

—É uma mulher cruel.

—Cruel, não. Desumana. —Sorriu com picardia—. Aprendi com o melhor.

Então Tor fez algo que Christina jamais teria imaginado que lhe veria fazer, algo que não esqueceria em toda a vida. Seu marido, o chefe orgulhoso, o rei de seu clã, o guerreiro maior de sua época, pegou sua mão e fincou um joelho em terra, ante ela.

—Amo-te, Tina. Talvez não seja o cavalheiro pelo qual suspirava, mas se voltar para meu lado te prometo que me pugnarei por te demonstrar meu amor todos os dias do resto de nossas vidas.

As lágrimas escorregavam pelas bochechas de Christina.

—Diz de coração?

Um sorriso irônico se desenhou no arrumado rosto de Tor.

—Tendo em conta minha posição neste momento, acredita que é necessária a pergunta? —Seu sorriso se alargou—. Sim, carinho. Digo de coração. Amo-te com toda minha alma.

Ela sabia que Tor nunca tinha pronunciado essas palavras antes.

—Dará-me outra oportunidade?

Christina moveu a cabeça afirmativamente.

Com um gemido de alívio, Tor a estreitou entre seus braços e não a soltou até que demonstrou esse amor. Uma e outra vez.


Epílogo


Ah, quão nobre é a liberdade!

John Barbour,

A gestão de Roberto de Bruce


Perto da abadia do Scone,

Perthshire, 27 de março de 1306


Os primeiros raios da alvorada apareciam por cima do horizonte. Como se Deus erguesse a mão para benzer em pessoa a cerimônia, um facho de luz brilhante e alaranjada atravessara como dedos o círculo de pedras. Esse espetacular efeito se viu realçado pelo lamento assustador das gaitas de fole que fendia o ar fresco desse dia da primavera. Não importava que o monumento em si fosse pagão: sua majestosidade prevalecia sobre tais considerações. Era um vínculo com o passado remoto da Escócia, um símbolo de força e continuidade, tão misterioso como os homens que se dispunham a ajoelhar-se ante o recém coroado rei da Escócia para lhe oferecer sua lealdade… e sua vida.


Christina, que se achava entre as testemunhas da cerimônia secreta que se estava celebrando entre pedras pagãs, não acreditava que pudesse haver um marco mais apropriado. Naturalmente, seu marido teria preferido que permanecesse a salvo no Skye, mas ela não se teria perdido aquilo por nada do mundo. Ganhou com acréscimo o direito a estar ali e não pensava deixar que ele o esquecesse.

Seu descobrimento tinha dado lugar ao enfrentamento final entre o Bruce e Comyn, e, posteriormente, a aquela cerimônia. Fazia pouco mais de sete semanas, Bruce tinha matado a seu adversário, Comyn o Vermelho, em frente ao altar da igreja do Greyfriars. A cruz ardente se propagou por toda Escócia, chamando a todos seus guerreiros a unir-se sob o estandarte de Bruce. Fazia só dois dias, na abadia do Scone, cenário histórico da coroação dos reis da Escócia, Robert de Bruce tinha sido proclamado rei da Escócia, embora sem a antiga pedra do Scone, roubada pelo rei Eduardo dez anos atrás.

Havia menos testemunhas dos que Bruce esperava. Três dos nove bispos — entre eles Lamberton, o mais influente— estavam presentes, e dos treze condados, somente os senhores do Atholl, Menteith, Lennox e Mar tinham ido à convocatória. Era especialmente destacável a ausência do jovem conde do Fife, quem tinha por nascimento o direito e a obrigação de coroar aos reis da Escócia. Sem a presença do Fife, alguns poriam em julgamento a legitimidade do ato. Entretanto, o jovem conde permanecia na Inglaterra, prisioneiro do rei Eduardo, e a tentativa de levá-lo até ali tinha fracassado.


Bruce estava de pé ante a pedra maior, embelezado com as vestimentas reais e um aro de ouro na cabeça, enquanto o sol se levantava como uma auréola sobre ele.

—Não podemos esperar mais — disse ao Tor—. Teremos que seguir adiante sem eles.

—Chegarão — assegurou Tor com firmeza—. Dêem-lhe dez minutos mais.

Não fez falta nem a metade desse tempo: quando ainda não tinham transcorrido cinco minutos, três figuras apareceram sobre o topo de uma colina que se levantava para o sul, galopando para eles. Entre o estrondoso tamborilar dos cascos dos cavalos, os três recém chegados irromperam no centro do círculo.

Christina reconheceu entre aquelas figuras a dois dos homens de seu marido, um dos quais era Lachlan MacRuairi. A terceira era uma mulher. Christina sorriu ao precaver-se de que tinham completado sua missão com êxito. Embora o jovem conde do Fife não estivesse ali, sua irmã tinha ido em seu lugar.

MacRuairi se aproximou para ajudá-la a desmontar, mas a dama — uma condessa, neste caso—, lhe jogando um olhar desdenhoso, desembarcou de um salto sem lhe dar a mão. A expressão sombria no rosto do MacRuairi gelou o sangue a Christina. Depois de passar andando régio junto ao ameaçador highlander, a condessa se dirigiu a toda pressa para o rei para prostrar-se ante

ele. O capuz de sua capa caiu para trás, deixando ao descoberto longos cabelos de cor loiro platino, uma paradoxo de suavidade que contrastava com a férrea determinação de suas feições pronunciadas. Christina viu que era jovem, talvez poucos anos mais velha que ela, com uns traços marcados, mais chamativos que belos.

—Excelência - disse com uma voz rouca e transbordante de orgulho—, vim assim que me foi possível. Espero não ter chegado muito tarde.

Bruce lhe dedicou um sorriso tão cálida que Christina se perguntou se seriam certos os rumores de que no passado tinham mantido uma relação amorosa.

—Não, Bela, não é muito tarde. Nunca é muito tarde, e menos ainda quando arriscastes tanto por vir.

Bruce não era o único que estava assombrado pela valentia da jovem condessa. Lady Isabella MacDuff tinha desafiado a seu marido e ao rei para ir a aquela entrevista. E não só era a irmã do conde do Fife, mas também a esposa do conde de Buchan, John Comyn, primo do Comyn o Vermelho e seguidor leal do rei Eduardo. Christina estava convencida de que se a Eduardo lhe apresentasse a oportunidade, faria pagar caro sua ousadia à condessa.

Pela segunda vez em um par de dias, presenciou a coroação do Robert de Bruce como rei da Escócia, embora nessa ocasião fosse lady Isabella quem lhe rodeou o aro de ouro à cabeça.


—Beannachd Do Righ Alban — disse a condessa quando teve terminado. «Que Deus abençõe ao rei da Escócia.»

Mais tarde, levaram rapidamente à condessa rebelde ao palácio para que se reunisse com a esposa e as irmãs de Bruce.

Ao ir a cavalo ao encontro de Bruce, Isabella MacDuff tinha escolhido seu caminho e já não poderia retornar ao lado de seu marido nem da filha que tinha deixado pra trás. De forma inconsciente, Christina levou a mão ao ventre, incapaz de imaginar-se tamanho sacrifício. Embora tivesse confirmado suas suspeitas fazia somente uns dias, já albergava um profundo carinho para o menino que estava gerando.

Por fim, chegou o momento da cerimônia que ela estivera esperando.

Um por um, os guerreiros de elite da guarda de highlanders de Bruce saíram à frente. Inclusive à luz do dia apresentavam um aspecto temível. Se não os tivesse conhecido no transcurso dos últimos dois meses, Christina teria acreditado que não eram reais, a não ser personagens míticos ou produtos de sua imaginação. Todos vestidos de negro e com seu elmo escuro, cujo protetor nasal lhe tampava boa parte do rosto, os guerreiros secretos foram chamados um após o outro por seus nomes códigos para que se ajoelhassem ante a enorme espada de Bruce. O apelido de MacSorley era «Falcão»; o de MacRuairi, «Víbora»; o de MacKay, «Santo»; o de Boyd, «Incursionador»; o de Lamont, «Caçador»; o de MacLean, «Golpeador»; o de MacGregor, «Flecha»; o de Seton, «Dragão», e o de Gordon, «Templário».


O último guerreiro do grupo era o que ela esteve esperando. Os homens se negaram a lhe revelar que nome tinham decidido pôr em seu marido.

—Chefe — chamou Bruce.

Christina sentiu que o coração lhe dava um tombo, comovida pela grande honra que os guerreiros tinham conferido a seu marido. Embora procedessem de clãs diferentes, Tor os tinha unido para formar um novo: MacLeomhann, «filho do Leão». Seria um clã que não estaria apoiado no parentesco, e sim em um objetivo comum: a liberdade e —como simbolizava a nova tatuagem de um leão rampante que seu marido luzia no braço— a restauração de um escocês no trono da Escócia.

Christina viu relampejar os olhos de seu marido sob o aço de seu elmo e soube que ouvir seu apelido também tinha emocionado a ele.

Com um nó na garganta, Christina observou a seu marido avançar e prostrar-se ante seu rei. Nunca se havia sentido tão orgulhosa dele. Era consciente do perigo que corria, mas a aventura em que ele e seus homens estavam a ponto de embarcar-se mudaria o rumo da história. Manter em segredo suas atividades seria complicado, mas por sorte ele tinha um irmão gêmeo que poderia ocupar seu lugar enquanto estivesse longe de casa.

«longe de casa.» Ambos teriam que fazer sacrifícios nos altares daquela guerra.

Mas quando Tor agachou a cabeça e a folha da espada de Bruce lhe tocou o ombro, Christina soube que tinha encontrado algo muito melhor que o cavalheiro de seus sonhos; tinha encontrado a um highlander que tinha conquistado seu coração e um amor que duraria toda a vida.

Os dez guerreiros formaram um círculo em torno de seu rei. Com as espadas em alto por cima de sua cabeça, gritaram: —Airson an Leomhann! —«Pelo Leão!», uma divisa que acabaria por semear o medo no coração de muitos homens.

A operação Leão Rampante30 tinha começado.


Fim


Nota da Autora A maioria dos personagens principais da história estão baseados livremente em figuras históricas reais. «Tor» foi o primeiro chefe e fundador do clã MacLeod (e sexto bisavô de Rory MacLeod, de ‘O Highlander Indomável’ ). Entretanto, em princípios do século XIV, os clãs tal e como os concebemos hoje em dia estavam ainda em matilhas. Inclusive o termo «highlander» é provavelmente um anacronismo — segundo o dicionário Oxford, a palavra highlandman aparece pela primeira vez em um texto por volta do ano 1425—, mas tanto autores de ficção (Nigel Tranter) como de não ficção (G. W. S. Barrow) empregam-na no mesmo contexto histórico. Suponho que, igual a mim, chegaram à conclusão de que não havia uma alternativa melhor. Por outro lado, que graça teria ler uma novela romântica ambientada em Escócia em que não aparece nenhum highlander?

Os dois ramos do clã MacLeod, os MacLeod de Harris e os MacLeod de Lewis, são conhecidos respectivamente como «Siol Thormoid» e «Siol Thorcuil» («semente de Tormod» e «semente de Torquil», em sentido literal). As últimas investigações sobre a genealogia dos MacLeod desmentem a crença anterior de que Tormod e Torquil eram irmãos, e em troca parecem indicar que Torquil foi neto de Tormod (e filho de Murdoch). Setecentos anos depois, é impossível riscar a genealogia com exatidão. Decidi me ater à versão tradicional, tanto por simplicidade como porque é a que mantém o chefe atual do clã MacLeod no lugar da Web de Dunvegan. De forma similar, a descendência de Tor por linha paterna do rei da Noruega e do rei de Man descrita no primeiro capítulo também está simplificada em grande medida e é objeto de controvérsia.

A maioria dos genealogistas coincide em que Tor se casou duas vezes e em que sua segunda esposa foi Christina Fraser, irmã do Alexander (seguidor de Bruce, a quem estava muito unido, e que mais tarde se desposaria sua irmã Mary) e de Simon, o primeiro senhor de Lovat. O pai de Christina esteve detido na Inglaterra durante uma temporada, mas diferente do que se conta na novela, sua família se encontrava ali com ele. Cabe supor que Christina e seus irmãos passaram um tempo na corte inglesa.

As alianças forjadas pelo Tor através do matrimônio ilustram à perfeição a mudança que se estava produzindo naquela época nas ilhas Ocidentais, que eram um reino marítimo independente de estar sob o domínio da Escócia. O primeiro enlace de Tor foi com uma família influente da costa ocidental, e o segundo com a filha de um nobre escocês.

O ataque de Skye por parte do conde do Ross ocorreu em realidade duas décadas antes da novela, em 1262. Foi tão brutal como o hei descrito, assassinato de meninos incluído. A morte dos pais de Tor durante a incursão, não obstante, é um fato fictício.

Segundo algumas lendas, Torquil MacLeod se fez com suas terras no Lewis matando a todos os membros varões do clã Nicolson (afogando-os no Minch) e casando-se depois com a filha herdeira. Como supus que isto seria algo excessivo para o gosto da maioria dos leitores, decidi dar um toque mais romântico à história.

O trasfondo político da primeira guerra da Independência da Escócia é, por dizer com suavidade, extremamente complicado. Aos interessados em conhecer mais a fundo aquela época, recomendo encarecidamente o livro Robert de Bruce do G. W. S. Barrow (Edinburgh University Press, 2005). Para quem quer ler uma série de novelas históricas e amenas ambientadas nesse período The Bruce Trilogy do Nigel Tranter (Hodder Headline, 1985); é um clássico.

A relação entre Bruce e Wallace foi muito mais complexa que a que descrevo no livro. Ambos desejavam expulsar aos ingleses da Escócia, mas Wallace aspirava a restaurar no trono à família Balliol, enquanto que Bruce queria a coroa para si. Tal como assinala Tor quando o critica no primeiro capítulo, Bruce se passava repetidamente do bando dos «patriotas» ao dos ingleses e vice versa. No geral, seus atos podem explicar-se em função de quem apoiavam os Balliol/Comyn; normalmente ele estava no lado contrário.

Passei nas pontas dos pés pelo que é provavelmente o momento mais importante na vida de Bruce: o assassinato de seu rival, Comyn o Vermelho, ante o altar da igreja do Greyfriars. Os relatos de quão feitos culminaram com o assassinato diferem enormemente entre si. Uma das versões «românticas» (hoje desacreditada) fala de um pacto com o Comyn e de mensageiros que levavam a Eduardo prova da traição de Bruce, mas que foram interceptados. Decidi aproveitar esta história porque minha heroína encaixava bem nela, mas também porque me encontrei com o mesmo problema que muitos dos primeiros cronistas da vida de Bruce: como explicar o ato decididamente anti heroico de um grande herói. Era evidente que Comyn se interpunha entre o Bruce e o trono, mas embora tira-lo meio era «necessário», o assassinato de um rival não causa boa impressão, olhe como se olhe. O fato de tê-lo matado em uma igreja e de ter violado com isso seu direito de asilo agravava muito as coisas. Por causa deste crime, Bruce esteve excomungado durante quase vinte anos. Escócia ficou debaixo de interdição também durante um tempo.

O assalto ao castelo do Dumfries se produziu em realidade depois de que Bruce matasse a Comyn, não antes, como acontece na novela. Atacar Dumfries foi o primeiro ato de rebeldia de Bruce contra o rei Eduardo. O governador do castelo naquela época era sir Richard Siward, não Seagrave. Entretanto, é verdade que Seagrave esteve destinado na Escócia durante anos.

Uma das maiores lacunas em meu conhecimento da história daquela época era a importância real que tiveram os descendentes do rei Somerled: os MacDonald (senhores de Islay), os MacRuairi (senhores do Garmoran) e os MacDougall (senhores de Argyll). «MacSorley» é o nome com que se conhece coletivamente aos descendentes de Somerled. Sabia da importância dos MacDonald (mais tarde senhores das Ilhas), mas desconhecia por completo a dos MacRuairi e os MacDougall. Estes últimos eram certamente o clã mais poderoso naquela época, mas foram a menos guerras de Independência. Nossos velhos amigos, os Campbell, foram os mais beneficiados com sua desgraça. Os MacRuairi desapareceram poucas décadas mais tarde.

Contava Bruce de verdade com «forças especiais», uma guarda de highlanders que utilizava como exército pessoal? A resposta breve é não, mas existem alguns paralelismos interessantes. As semelhanças com uma unidade de forças especiais são fictícias, mas é verdade que Bruce tinha uma «mesnada» ou séquito pessoal ao que pertenciam Robert Boyd e partidários deles como Christopher Seton, Alexander Fraser (irmão de Christina), Thomas Randolf, Edward Bruce e Neil Campbell. Este último, junto com Alexander Seton e Thomas Há, assinou um documento no que se comprometia a defender e apoiar Bruce até o final. Em um desses descobrimentos fantásticos que se fazem por acaso, encontrei uma referência ao Donald», filho de Alistair (em quem está apoiado o personagem de MacSorley), que dirigiu a um grupo seleto de highlanders (uma «tropa de ilhéus»), por ordem de Angus Og, com o fim de ajudar e proteger Bruce em 1306. Impressionante, não é?

O que está claro é que, já no início, Bruce reconheceu a importância das Highlands Ocidentais. Na transcendental batalha de Bannockburn, em 1314, Bruce lutou contra os ingleses à frente de uma divisão de highlanders e ilhéus. Em teoria, muitos dos membros da «Guarda das Highlands» combateram ao seu lado (incluindo Tor). E quando Bruce viveu seu momento mais difícil em sua luta por ocupar o trono, foram os highlanders e os ilhéus que foram em sua ajuda. Mas isso já é parte de outra história.

 

 

Notas


[1] O bìrlinn, vulgarmente conhecido como a fhada de longa duração (“Navio de longa duração”), foi construído de tijolo e pode ser navegado ou remado. It had a single mast with a square sail. Tinha um único mastro com uma vela quadrangular. Smaller vessels of this type might have as few as 12 oars, with the larger having as many as 40. As embarcações menores deste tipo pode ter apenas 12 remos, e o maior ter tantos como 40. For over 400 years, down to the 17th century, the bìrlinn or long-fhada was the dominant vessel in the Hebrides. Por mais de 400 anos, até o século 17, o bìrlinn ou fhada longa era a embarcação dominante nas Hébridas
[2] Chrétien de Troyes (c. 1135 – c. 1191) foi um poeta e trovador francês do final do século XII. Foi um dos primeiros autores de romances de cavalaria, sendo também considerado o primeiro grande novelista em língua francesa. Suas obras inspiraram a literatura em toda a Europa Ocidental durante a Idade Média. Sua obra é a primeira a mencionar temas tão conhecidos hoje como a busca do Santo Graal e o amor entre Lancelote e a rainha Genebra. A obra de Chrétien inclui cinco grandes poemas em versos octasilábicos. Destes, quatro estão completos: Erec e Enida (c. 1170), Cligès (c. 1176), Ivain, o Cavaleiro do Leão e Lancelote, o Cavaleiro da Carreta, os dois últimos escritos simultaneamente entre 1178 e 1181.
[3] Meleagant (também grafado Malagant ou Maleagant) é um vilão da lenda arthuriana. Originalmente um cavaleiro da Távola Redonda filho do rei Bagdemagus de Gorre, sua reivindicação à fama decorre de ter sido o seqüestrador de Guinevere. Sua primeira aparição ocorre em Lancelote, o Cavaleiro da Carreta por Chrétien de Troyes, onde leva Guinevere para seu castelo indevassável. A rainha é resgatada por Lancelote e Gawain; esta também é a primeira aparição de Lancelote na lenda arthuriana. Meleagant supostamente teria sido criado com base em Melwas, vilão das primeiras histórias galesas, o qual captura Guinevere na Vida de Gildas. Nesta obra, o rei Melwas captura a rainha e a leva para sua fortaleza em Glastonbury. Arthur a localiza após um ano de buscas e se prepara para atacar o castelo, mas Gildas negocia seu retorno em segurança.
[4] Casaco medieval que se colocava sobre a armadura
[5] Que segue, que acompanha; partidário; sectário, seguidor. S.m. Membro de um bando ou partido; prosélito, assecla.
[6] Maça de guerra:
[7] Machado de guerra:
[8] São Columba (7 de Dezembro de 521 a 9 de Junho de 597) também conhecido como Columba de Iona, ou, em Gaélico, Colm Cille ou Columcille (“pomba da Igreja”). Foi a grande figura missionária da Escócia. Monge irlandês (gaélico), reintroduziu o Cristianismo entre os Pictos medievais. É dito como sendo o primeiro a ter avistado Nessie, o monstro do lago Ness.
[9] Marzipã, marzipan ou maçapão é um doce de origem árabe, preparado a partir de uma pasta feita de amêndoas moídas, açúcar e claras de ovos, que pode ser moldada em praticamente qualquer formato. Também podem ser adicionadas essências.
[10] Clàrsach ou Cláirseach (dependendo irlandês gaélico ou gaélico escocês grafias), é o gaélico palavra genérica para “uma harpa , como derivado do irlandês médio . In English , the word is used to refer specifically to a variety of small Irish and Scottish harps. Em Inglês, a palavra é usada para se referir especificamente a uma variedade de pequenas e gaitas escocesas irlandês.
[11] “é um contador de histórias tradicional irlandesa. Grafias Alternatate incluem seanachaí, senachaí senachie e Shanachie. A palavra é uma forma latinizada do seanachaidh língua irlandesa ou seanchuidh. Vem da palavra irlandesa “seanachas” ou “seanchus” significado “histórico” ou “folclore”.
[12] Cuirm era uma espécie de cerveja fabricada pela Gael . It was a powerful, intoxicating liquor made from barley , and being of course used at all feasts, the word cuirm came ultimately to mean a feast itself. Era inebriante, feita de licor poderoso da cevada , e sendo, obviamente, utilizado em todas as festas, a cuirm palavra veio a significar em última análise, uma festa em si. It is supposed by some to have been the same as whisky , but the process of brewing being so much easier and cheaper than distilling , it was more probably a strong kind of beer. Supõe-se por alguns de ter sido o mesmo que o uísque mas o processo de fabricação de cerveja é muito mais fácil e mais barato do que a destilação.
[13] Vestido com abotoamento frontal e nas mangas
[14] A tradução correta para Gall-Ghàidheil ou qualquer uma das variantes de grafia é “Foreign Gaels” e não é utilizado especificamente para se referir aos estrangeiros nórdicos. It is a general term to describe a particular ethnic grouping of foreigners of which the Norse formed part. É um termo geral para descrever um grupo étnico específico de estrangeiros de que os nórdicos faziam parte. This term is subject to a large range of variations depending on chronological and geographical differences in the Gaelic language , ie Gall Gaidel , Gall Gaidhel , Gall Gaidheal , Gall Gaedil , Gall Gaedhil , Gall Gaedhel , Gall Goidel , etc. The modern term in Irish however, is Gall-Ghaeil , while the Scottish Gaelic is Gall-Ghàidheil . [ 1 ] Este termo está sujeito a uma grande gama de variações dependendo cronológica e geográfica diferenças na língua gaélica. O termo moderno em irlandês no entanto, é Gall-Ghaeil, enquanto o gaélico escocês é Gall-Ghàidheil.
[15] Whisky em gaélico escocês.
[16] Colchão fino de palha.
[17] Banshee é um ente fantástico da mitologia celta (Irlanda) que é conhecida como Bean Nighe na mitologia escocesa. As Banshee provêm da família das fadas, e é a forma mais obscura delas. Quando alguém avistava uma Banshee sabia mal seu fim estava próximo: os dias restantes de sua vida podiam ser contados pelos gritos da Banshee: cada grito era um dia de vida e, se apenas um grito fosse ouvido, naquela mesma noite estaria morto.
[18] Forte em gaélico
[19] Yule é a festa sagrada mais importante do ano teutônico. Começa em 20 de dezembro e dura doze dias, sendo o décimo segundo o primeiro dia do ano.
[20] Bardo dos habitantes das Terras Altas da Escócia, responsável por preservar e repetir as tradições das tribos.
[21] Narrativa medieval sobre mitos gaélicos
[22] Waternish é uma península de uns doze quilômetros de comprimento na ilha de Skye.
[23] Warwolf (Lobo de Guerra) considera-se a maior catapulta da história. Construiu-se na Escócia por ordem do rei Eduardo da Inglaterra, durante o assédio do castelo de Stirling, durante as guerras pela independência escocesa.
[24] Muro cercado defensivo característico dos castelos escoceses durante a Idade Média.
[25] Os brogues eram sapatos de solados planos de um couro muito flexível.
[26] Torre fortificada de duplas paredes e circular própria da Escócia.
[27] Sucessor; segundo ao mando entre as dinastias reais gaélicas.
[28] adj. || (tipogr.) diz-se do formato que tem a folha de impressão apenas dobrada em duas: Formato, volume infólio. , s. m. livro ou volume infólio: F. lat. In… +folium (folha).
[29] O Wyvern ou Guiver (também conhecido como wyverns, na sua grafia Inglês, ou drakontas - e às vezes até chamado por alguns corredores de vento) são criaturas lendárias pertencentes à mitologia medieval , em forma de grandes répteis alados da família de dragões nível inferior, mas são capazes de lançar feitiços.
[30] Leão rampante: firmado em suas patas traseiras. Em posição de ataque.

Capítulo 21

Era a última hora da tarde quando Tor retornou ao castelo. Embora tivesse desejado permanecer junto ao leito de sua esposa doente, assim que lhe asseguraram que se encontrava bem tinha ido ocupar-se de assuntos que não admitiam mais demora.

Que ele recordasse, era a primeira vez que se sentia contrariado ante a chamada do dever. Mas, além de tentar descobrir a um possível espião, tinha recebido uma mensagem inquietante de MacDonald no que lhe exigia que tomasse medidas. Embora aquilo certamente prejudicasse ao equilíbrio da equipe que tanto esforço havia tido alcançar, era inevitável.

Além disso, se ficava nesse aposento um minuto mais, corria o risco de esquecer-se de quão doente esteve Christina e lhe fazer sentir em suas próprias carnes o medo que ele tinha passado por sua culpa.

Desejava apagar para sempre de sua mente o momento em que ela se desabou no chão. Por um angustiante instante, tinha acreditado que estivesse morta. Não tinha recuperado o fôlego até que tinha notado o pulso acelerado sob seus dedos e a respiração tênue, mas constante contra sua bochecha. Sua sensação de pânico diminuiu um pouco mais quando a curandeira a examinou e comunicou a Tor que somente era um pouco de febre.

Somente. Não havia «somente» quando se tratava de sua esposa. Furioso pelo engano da anciã, aterrorizou-a ameaçando reduzir na metade os anos que ficavam, que, por certo não eram muitos.

Tor nunca havia se sentido assim. Christina despertava nele um forte instinto protetor que não sabia que tinha. Como seu marido, era seu dever mantê-la a salvo, mas o que sentia ia mais à frente do dever.

Sempre tinha sido capaz de deixar os sentimentos a um lado e fechar sua mente como uma armadilha de aço. Mas com a Christina não ficava tão simples. Havia algo nela que lhe tocava a fibra sensível, que lhe chegava muito fundo. Era delicada, amável e generosa, possuía uma mente ágil, um entusiasmo e uma alegria de viver contagiosos, mas também uma profundidade e uma têmpera maiores do que ele tinha pensado em princípio. Encarava-lhe, desafiava-o… e se preocupava com ele.

Era um remanso de doçura para um homem que somente tinha conhecido o conflito. E, por mais que se esforçasse Tor não podia manter distância.

Subiu a escada pesadamente e, de forma maquinal, observou a zona. Os guardas estavam em seus postos ao longo dos parapeitos de pedra e no seteiro - uma pequena obra em forma de caixa encostada à muralha do castelo— que sobressaía por cima das portas. Um punhado de mulheres extraía água do poço. Os criados tiravam bandejas e pratos do salão, e Christina estava…

Caiu-lhe a alma aos pés quando fixou o olhar na figura que caminhava entre as almenas. Ficou furioso, uma sensação a qual começava a acostumar-se. Que demônios fazia ela ali fora? Devia estar descansando, não perambulando por aí, exposta ao ar frio do exterior e ainda por cima com o cabelo úmido, Por Deus santo. Acaso não sabia que podia agarrar um resfriado?

Ela se voltou para ele e o saudou com um gesto. Baixou a mão devagar quando Tor se aproximou.

Tinha visto a expressão de seu rosto. Mordendo o lábio, retrocedeu uns passos, mas seu olhar apaziguador não serviu absolutamente para nada.

—Retornaste - disse em um tom exageradamente alegre—. Não te vi vir para aqui.

Sem abrir a boca nem diminuir o passo, ele se equilibrou para ela e a levantou.

Christina soltou um grito afogado de surpresa, mas ele manteve o olhar à frente, pois não se atrevia a olhá-la. Nesses momentos, seu controle sobre si mesmo pendia de um fio. Sentia um ardor no peito.

—Está exagerando-disse ela com suavidade, para aplacar a uma besta raivosa—. Encontro-me bem.

—Não fale-grunhiu ele com os dentes apertados e a ira a flor de pele—. Não fale.

Com um profundo suspiro de resignação, jogou os braços ao seu pescoço e apoiou a bochecha no peito de Tor. Uma enorme onda de calidez abriu passo através da raiva. Invadiu-o uma incrível sensação de… ternura. Que diabos estava lhe passando?

Não sabia e lhe dava igual, de modo que a atraiu para si um pouco mais.

O silêncio se impôs no grande salão quando ele entrou com ela em braços e se dirigiu ao corredor. Era consciente dos olhares de curiosidade que atraía, mas lhe importavam um nada. Se aos pressente deu a impressão de que seu chefe tinha perdido a cabeça, certamente tinham razão.

minutos depois, chegou ao quarto de Christina. Fechou a porta de uma patada e ficou ali de pé durante um momento, com uma estranha relutância a depositá-la sobre a cama. Finalmente o fez e se sentou a seu lado.

Pouco a pouco, notou que relaxava o corpo. Empurrou-lhe o queixo para cima com sua diminuta mão para obrigá-lo a olhá-la aos olhos.

—Sinto muito. Não era minha intenção te dar motivo de preocupação.

—Tem o cabelo molhado - disse ele, como se assim explicasse algo.

—tomei um banho.

—Poderia te resfriar.

Ela teve o descaramento de deixar que lhe notasse que estava reprimindo um sorriso.

—Isso não é mais que uma tolice própria de babás. Saí muitas vezes com o cabelo molhado e nunca adoeci por isso. Somente foi uma ligeira febre; estou bem, de verdade. Morag diz que já não tenho que guardar repouso.

Tor esticou a mandíbula.

—O que saberá Morag de uma pequenina como você? É tão robusta e teimosa como uma mula velha das Highlands.

desta vez ela sorriu abertamente.

—Pode ser que eu não seja tão alta como vós, mas tenho uma compleição forte. —escureceu o rosto—. Embora em alguma ocasião tenha desejado não tê-la.

Tor admirou-se esse comentário. Então lhe veio algo à memória.

—Contou-me que sua irmã esteve doente quando pequenas.

Ela assentiu.

—Beatrix sempre foi uma menina doentia. Eu quase nunca me punha má. Parecia-me tão injusto… Freqüentemente desejava poder ser eu quem caísse doente em lugar dela.

—Não é assim como funcionam as coisas - repôs ele com delicadeza—. Não devemos nos sentir culpados pelos dons que recebemos ao nascer-acrescentou sem pensar.

Ela inclinou a cabeça e lhe escrutinou o rosto.

—Você se sente culpado por ser o gêmeo mais velho.

De forma instintiva, encerrou-se em si mesmo e apagou toda expressão de seu semblante. Entretanto, o ligeiro olhar de recriminação que lhe dirigiu Christina lhe fez recordar o acordo ao que tinham chegado. Respirou fundo, perguntando-se em que diabos estivera pensando.

—Talvez um pouco quando eramos meninos. Parecia-me injusto que me tocasse ser chefe por uma diferença de minutos. Mas aprendi a aceitar que a vida nunca é justa e que devemos interpretar o papel que nos corresponde.

Ela ergueu o olhar para ele com um amplo sorriso nos lábios.

—Bom, não foi tão difícil, verdade?

Tor replicou entre dentes que era como se lhe cravassem agulhas candentes sob as unhas, mas isso a fez rir.

—Logo estará tagarelando sem parar como o pequeno Iain.

Ele pôs os olhos em branco.

—Deus não o queira. Esse moleque nunca fecha o bico.

trocaram um olhar de divertida cumplicidade que em seguida se transformou em outra coisa, em algo tórrido e selvagem que alagava seus sentidos.

Ele era plenamente consciente da situação em que se encontravam. A cama, as pernas tocando-se, o tênue aroma floral do sabão na pele recém lavada dele, a careta sensual em sua boca luxuriosa…

Sentiu um calor repentino na virilha. O desejo se apoderou dele com uma força irrefreável. Apressava-o. Atraía-o para ela. Fazia que lhe custasse recordar que Christina necessitava repouso.

O estranho torvelinho de emoções dos últimos dias ainda estava muito recente. Ele não podia pensar em outra coisa que em afundar-se nela para fazê-las desaparecer.

Inclinou-se para sua esposa. Tinha a boca a somente um palmo da sua. Ouviu que lhe agitava a respiração. Os lábios de Christina se abriram, incitantes.

Tor quase podia perceber seu sabor…

«Maldição. Controla-te.» separou-se dela, obrigando-se a ter presente que ainda estava muito fraca.

—Descansa um pouco. Depois passarei para ver como te encontra.

Ela fez carinha de sapeca. Seus olhos negros lhe esquadrinharam o rosto.

—Acaso não quer…? —Então baixou o olhar, e o sorriso pícaro que lhe curvou a boca fez que a Tor lhe arrepiasse o pêlo da nuca—. Já vejo que sim que quer - disse ela com voz áspera, lhe pondo a mão sobre a coxa. O músculo se esticou por reflexo. O contato daquela pequena palma queimava ao Tor como um ferro incandescente através do linho de seu leine, a escassos centímetros do lugar onde ele ansiava senti-la—. Por favor, fica - sussurrou Christina.

Sua mão se deslizou pela coxa dele, aproximando-se. A Tor lhe acelerou o pulso. Quase podia senti-la acariciando-o, estirando com movimentos largos e enérgicos de sua mão minúscula e delicada. Apertou os dentes, armando-se de valor para resistir a seu contato.

Estava a ponto de negar quando ela acrescentou:

—Necessito-te.

Nesse simples rogo, ele ouviu o eco dos medos que o tinham afligido nos últimos dias. Seus olhos se encontraram. Viu o rubor rosado nas bochechas de Christina, um rubor saudável.

—Não quero te fazer dano — disse com brutalidade.

O olhar dela se suavizou com um brilho de emoção que lhe encolheu o coração.

—Não vais fazer me dano.

Roçou-lhe o membro com os nódulos e ele soltou um grunhido, fechando os olhos enquanto uma ardente onda de desejo o percorria.

Agarrou-lhe a mão para evitar que seus dedos se fechassem em torno dele, embora nesse momento não houvesse nada no mundo que desejasse mais.

—me prometa que se começar a te sentir mal, avisará-me.

O sorriso travesso apareceu de novo ao rosto de Christina.

—Temo que tenho toda a intenção de me sentir mal, muito, muito mal. —inclinou-se para ele e apertou a boca contra sua mandíbula, justo ao lado da orelha—. E totalmente satisfeita.

Tor tinha chegado ao limite de sua boa vontade. Soltando-lhe o pulso, voltou a cabeça para aprisionar os lábios entre os seus e lhe escapou um gemido quando a mão dela o rodeou por fim. Uma sensação de alívio o alagou.

Deus, adorava beijar sua dama. Seus lábios eram muito suaves e tinham sabor de mel morno. Deslizou a língua pelo interior de sua boca em longas e lânguidas lambidas, tomando seu tempo para saborear e explorar. Sua sede dela era insaciável, e se entregou ao simples prazer de beijá-la que durante tanto tempo se privou.

Os ofegos entrecortados de Christina o excitavam ainda mais, ao igual ao roce brincalhão de sua mão. A pressão do linho o estava matando. Nada devia interpor-se entre eles.

Afastou-se de repente, interrompendo o beijo. O miado de recriminação que ela emitiu o fez sorrir. Parecia uma gatinha a quem tinham tirado sua terrina de leite. Tor ficou de pé. Ela abriu a boca para protestar, pois acreditava que ele pretendia partir, mas se deteve quando viu que abria o broche que segurava o brat ao pescoço.

Longe de dissimular sua admiração quando ele se despojou do objeto, devorou-o com os olhos, passeando o olhar por seu peito, seu abdômen e a extensão de seu longo e largo membro. O desejo manifesto em seu olhar minava a concentração de Tor. Quando Christina lambeu os lábios de forma inconsciente, por pouco não lhe dobraram os joelhos.

Voltou-se ligeiramente, e ela contemplou seu flanco. As sobrancelhas lhe juntaram.

—O que é essa marca?

Como não estava acostumado a que ninguém lhe examinasse o traseiro, esqueceu-se disso.

—Uma tatuagem azul feita com glasto. Fizeram-me isso quando nasci.

Ela assentiu.

—Tinha ouvido falar deles, mas nunca tinha visto um. É uma tradição em seu clã?

Interessante ideia, pensou ele.

—Não, era para me identificar como o primogênito. Não se pode eliminar. —Sorriu - Suponho que pensaram que era mais difícil que me cerceassem o traseiro a que me cortassem um braço ou uma perna.

Ela fez uma careta.

—Deixa-me ver?

Ele se aproximou, e os músculos se contraíram quando sentiu a suave ponta do dedo de Christina seguir o risco da tatuagem.

—Mor - disse. E a seguir traduziu—: Grande. —Um sorriso pícaro lhe desenhou nos lábios—. Muito apropriado.

—Garota má - a repreendeu Tor. Ela sabia perfeitamente que mor era um apelativo com que se estava acostumado a designar mais velho, do mesmo modo que og designava ao mais novo.

—Eu gosto do desenho.

—É irlandês - disse ele, rígido. Sentia como se seu membro estivesse a ponto de explodir por causa daquela exploração inocente.

—Doeu-te?

—Não que eu recorde. —Que introduziram agulhas quentes sob a pele não era a metade de doloroso do que estava fazendo nesse instante.

Tentando dominar seu desejo, sentou-se na borda da cama e a fez girar de modo que ficasse de pé frente a ele. Agora era sua vez de explorar. Ajudou-a com os broches e os laços até um ponto em que ela pudesse seguir por si mesmo.

—te dispa para mim, Tina - lhe ordenou—. Devagar.

As bochechas se tingiram de vermelho, mas fez o que pedia. Despiu-se, sustentando o olhar de Tor em todo momento.

Ele se acalorava cada vez mais à medida que a roupa caía ao chão: a capa, a túnica, as sapatilhas, as meias. Para quando chegou ao vestido, saltava à vista que já era toda uma perita. Pouco a pouco, o levantou por cima dos joelhos, as coxas… Deteve-se justo antes de revelar o doce centro de sua feminilidade.

Os músculos de Tor se esticaram sob sua pele excessivamente tirante, e, respirando com força, fixou na Christina seu olhar ardente. Ela o provocava e incitava, até que ele soltou um grunhido de impaciência. Justo quando ele se dispunha a lhe arrancar o maldito objeto, ela ergueu a barra até o ventre. Tor aspirou bruscamente, reprimindo o impulso de estender o braço para tocá-la, pois sabia que estaria quente e úmida de paixão.

Ela levantou o vestido mais e mais até que Tor espiou a delicada curva inferior de seus peitos.

Christina se deteve e ele conteve o fôlego até que lhe mostrou os formosos e turgentes Montes de carne coroados por mamilos muito duros e erguidos.

Tirou o vestido por cima da cabeça, atirou-o ao chão e ficou de pé ante ele, total e belamente nua. Os últimos raios de sol penetravam pela única janela, banhando-a em um resplendor quente e sensual.

Era maravilhosa. Um pequeno, compacto e delicioso pacote de feminilidade. Longas ondas de cabelo negro e sedoso lhe caíam sobre os ombros. Pernas torneadas, quadris curvilíneos, uma cintura estreita e seios grandes e empinados que convidavam a afundar o rosto entre eles e chorar de prazer, todo isso envolto na pele mais impecável, cremosa e suave que ele jamais vira ou tocara.

—Vêm aqui — ordenou ele, sem reconhecer sua própria voz, rouca e carregada de uma intensidade que nunca tinha ouvido antes.

Ela, obedientemente, aproximou-se até ficar diante dele. Tor sabia que se sentia envergonhada, mas não teve contemplações. Cravou nela os olhos com dureza.

—Antes tenho que me assegurar de que esteja bem.

Ela o olhou, vacilante.

—Seriamente?

Tor assentiu.

—Terá que te deitar para que examine… —Incapaz de resistir a tentação um segundo mais, deslizou a mão sobre a aveludada curva de seu quadril—. Cada palmo de seu corpo.

Ela arregalou os olhos antes de avivar-se, ansiosa.

Estendeu-se no leito em um esbanjamento de sensualidade para o olhar.

Tor se colocou em cima dela, com os joelhos em cada lado para poder mover-se livremente acima e abaixo. Começou pela boca, roçando os lábios com os seus, e percorreu a mandíbula até a orelha com movimentos rápidos da língua. Beijou-lhe o pescoço e afundou o rosto na sedosa suavidade de seu cabelo, que ainda estava úmido. As mechas espessas e escuras despediam um intenso aroma de lavanda.

Christina se retorceu debaixo de Tor, que ansiava apertar sua pele ardente contra a sua, sentir o delicioso estremecimento a seu contato. Ainda não. Como um penitente, torturava a si mesmo. Ia fazer lentamente e saborear cada instante.

Continuou examinando-a, explorando cada polegada daquela pele lisa como a de um bebê com a boca e a língua: o pescoço, os braços, o pulso e… Seus incríveis seios.

Entreteve-se ali um momento, lambendo e chupando no mais profundo da boca, fazendo girar a ponta ereta entre os dentes e a língua até que ela arqueou as costas e soltou um grito de desespero.

Deixando-a ofegante, deslizou a boca pela suave planície de seu ventre até os quadris, e dali à parte interior de suas pernas. Seu aroma o fazia enlouquecer; despertava todos seus instintos primários.

Ela tremia presa de um desejo que nem sequer sabia que tinha. Mas lhe ensinaria.

O membro inchou ainda mais.

Separou-lhe as pernas a beijos e rodeou os ombros com elas. Seu rosto estava a somente uns poucos centímetros.

Ouviu o repentino grito afogado de Christina quando ela compreendeu o que pretendia. Instintivamente, tentou fechar as pernas, mas somente conseguiu atraí-lo mais para si.

Tor riscou círculos com a língua pela parte interior das coxas até que o corpo de Christina se relaxou de novo. Ato seguido a roçou com o nariz de forma brincalhona e exalou seu fôlego sobre sua umidade até que ela ficou trêmula.

Já se tinha castigado o bastante. Não podia esperar mais.

—me olhe, Tina - lhe indicou, obrigando-a a dirigir o olhar para seus olhos—. Quero que me olhe enquanto te provo.

Ela emitiu um ofego ansioso, tendo deixado muito atrás as vontades de protestar. O corpo lhe tremia, faminto dele. Sustentando-lhe o olhar, percorreu-a com a língua, com o tato delicado de uma pluma. Christina sofreu um espasmo ao senti-lo, mas ele a segurou com firmeza pelo traseiro.

—Tem um sabor delicioso, minha doce moça. —Lambeu-a de novo, esta vez com mais força, deixando que notasse totalmente o contato de sua língua—. Como a nata mais deliciosa. Vou te lamber inteira.

*

Christina se sentia como se tivesse morrido e tivesse ido ao céu da luxúria. Tor quase lhe tinha feito perder a razão ao beijá-la por todo o corpo, mas quando ela tinha baixado o olhar para ver sua cabeleira dourada entre suas pernas e tinha caido na conta do que ia fazer lhe…

O pulso lhe tinha disparado com espera erótica; maravilhava-a que ele queria beijá-la em sua parte mais íntima. Paralisaram-lhe todos os músculos. Ela permanecia à espera do que ia ocorrer, intuindo que seria algo novidadeiro e fantástico. Não podia nem imaginá-lo.

A corrente de prazer que desatou o primeiro toque de sua língua lhe fez dar um salto. A segunda lhe provocou um calafrio.

OH, Deus.

Ela gemeu seu nome uma e outra vez incapaz de conter a força das intensas sensações desencadeadas por seu beijo perverso.

Tor a lambeu de novo, acariciando-a com a língua, descrevendo círculos, pinçando em seu interior com passadas largas e carinhosas até que ela acreditou que ia morrer de prazer.

Foi incrível. Não podia pensar mais que na boca e a língua de Tor, naquilo tão sensual que lhe estava fazendo.

A virilha começou a lhe palpitar mais depressa. Meneou os quadris contra a boca dele, desejando mais pressão, mais fricção.

E ele as deu. Levantou-a para si e apertou sua boca depravadamente talentosa contra ela.

Christina sentia o roce abrasivo de seu queixo enquanto Tor a devorava com seus beijos e sua língua voraz. Aquilo era muito.

Os espasmos se apropriaram dela, e estalou em lascas candentes de um êxtase abrasador. Mas, em vez de soltá-la, ele a agarrou contra si, recebendo seu prazer na boca.

Seu corpo ainda se convulsionava quando Tor a liberou. Olhou-a com os olhos entreabertos enquanto se estendia sobre Christina, estreitava-a contra seu corpo e se introduzia devagar nela. Sua pele, ainda sensível, notava uma leve dor com cada grosso lance.

Quando ele esteve dentro de tudo, não se moveu. Simplesmente a abraçou com mais ternura que nunca, aninhando-se contra o largo escudo de seu peito como se o mero contato fora suficiente.

Era.

Ela se derreteu contra ele, desfrutando da sensação de todos esses músculos que a rodeavam, de sua virilidade que a enchia.

E do coração dele, pulsando junto ao dele.

A emoção lhe oprimiu o peito. Era o momento mais emotivo de sua vida. Nunca tinha imaginado que pudesse sentir-se tão unida a alguém.

Permaneceram assim um longo momento, olhando-se nos olhos, em silêncio, salvo pelos sonoros batimentos do coração de seus corações, que palpitavam ao uníssono.

Então ele começou a mover-se. Devagar. Sem afastar o olhar de seus olhos, sujeitando-a com uma intensidade que fazia que o coração lhe golpeasse com força contra as costelas.

Empurrava e retrocedia com um vaivém longo e lânguido, como se dispor de todo o tempo do mundo. Como se eles fossem o mundo. Tor entrava e saía, detendo-se na parte mais profunda, e lhe arrancou um ofego de surpresa ao entrar ainda mais nela.

Pouco a pouco, começou a acelerar o ritmo, a penetrar com um pouco mais de ímpeto, a afundar-se um pouco mais. Pele com pele, seus corpos se deslizavam juntos de forma perfeitamente compassada.

Ela notou que as sensações se avivavam de novo, embora dessa vez fossem diferentes, menos violentas, mas mais intensas e poderosas. Não só se apoderaram de sua virilha, mas sim de todo seu ser.

Viu que o rosto de Tor se esticava, que apertava a mandíbula, que os músculos de seus ombros se inchavam. Tinha a pele quente e a fronte brilhante de suor.

Seus corpos se balançavam. Ele movia os quadris em círculos, com embates mais rápidos. Apertava-se contra ela até fazê-la resfolegar, até fazer que o coração lhe pulsasse a toda velocidade, e que as palpitações entre suas pernas se tornassem frenéticas.

Ele seguia lhe sustentando o olhar, e seus olhos de um azul cristalino destilavam uma emoção intensa que ela nunca tinha visto antes. Não era luxúria a não ser um pouco mais profundo, mais significativo. Ela não se atrevia a fazer-se ilusões.

—goze comigo, Tina - lhe disse ele grosseiramente.

e o fez. A respiração se entrecortou, as costas lhe arqueou, e seu prazer culminou, não com uma explosão violenta, a não ser em uma lenta rendição que começou muito dentro e se propagou para fora com uma fulgurante corrente de sensações.

E ele gozou com ela, deixando-se levar pela onda de seu clímax.

Nesse instante para Christina pareceu que seus sonhos estavam tão perto que quase podia tocá-los com a ponta dos dedos.

*

Um longo momento depois de que se apagassem os últimos ecos de seu clímax, Tor jazia na cama com Christina profundamente adormecida junto a ele. Estava-lhe custando enfocar o que acabava de ocorrer de uma perspectiva adequada.

Intenso. Esta palavra ficava muito pequena para descrevê-lo. Cataclísmico. Demolidor. Estas se aproximavam mais.

Não tinha idéia de que copular pudesse ser assim.

O peito ardia de ternura para a diminuta jovem feita um novelo a seu lado como um filhote. Depois do falecimento de seus pais e os longos anos que tinha convivido com a guerra e a morte, acreditava ter se protegido contra esse tipo de sentimentos. Seu autocontrole e sua falta de emoções eram o que o fazia destacar como chefe e como guerreiro, mas sentia que as capas de gelo se fundiam sob o calor do… amor de Christina.

Seu irmão estava no certo: ela o amava. Tor o notava nos olhos, no modo em que o tocava, em sua forma de beijá-lo.

E não podia negar que a moça lhe inspirava uma ternura especial, e isso o preocupava. Podia sentir algo por ela e mesmo assim antepor o bem de seu clã? Nunca antes tinha acreditado possível. Os sentimentos só complicavam as coisas, faziam-no mais vulnerável, e esse era um risco que nenhum guerreiro podia correr. Teve ocasião de comprová-lo quando MacDougall o tinha enfrentado e quando tinha visto Christina na aldeia. Passasse o que acontecesse, sabia que não podia permitir que sua debilidade por sua esposa interferisse em seu dever.

Ela, adormecida, emitiu um suave som de satisfação. Tor suspirou, apoiou a bochecha em sua cabeleira cálida e sedosa, e aspirou seu aroma doce e feminino. Uma sensação de complacência percorreu seus musculos esgotados. Ela era tão miúda, tão suave… Delicada e frágil. Evitar machucá-la seria toda uma provação, mas Tor jurou esforçar-se ao máximo por fazê-la feliz.


Capítulo 22


Christina estava recostada sobre o peito de Tor, com o infolio de pele sobre seu ventre nu e as pernas envoltas nos lençóis enrugados. O reluzente sol da manhã entrava em torrentes pela janela que tinha a portinha aberta, lhe proporcionando luz de sobra para ler.

Ou ao menos para tentar, pois seu irritante marido não deixava de interrompê-la. Quando chegou à parte em que Lancelot se rebaixava a montar em uma carreta para salvar a sua dama, ouviu o som inconfundível de uma gargalhada.

Baixou o livro e se voltou para lhe lançar um olhar sério.

—Se for danificar a história, não penso seguir lendo.

—Esses cavalheiros e seus ridículos códigos - disse com um desprezo indissimulado—. Parece-lhe o cúmulo da desonra viajar em uma carreta? —Sacudiu a cabeça—. Diabos, eu me arrastaria por um monte de esterco para te salvar.

A Christina tremeu as comissuras dos lábios. Custava-lhe seguir zangada quando o ouvia dizer coisas como aquela. Quem ia pensar que um monte de esterco poderia ser tão romântico?

Ergueu-se para lhe plantar um beijo rápido.

—Que terno.

—Terno? —escureceu o olhar—. Não tenho um cabelo de terno.

Para demonstrar atraiu-a sobre seu peito e a beijou de forma muito mais apaixonada. O livro caiu entre eles quando ela, aproveitando-se de sua posição e da considerável ereção de Tor, deu a volta em cima dele.

Com os joelhos a cada lado de seu corpo, fez que Tor a penetrasse, suspirando de agrado conforme ele a enchia. E como a enchia! Adorava senti-lo em seu interior, longo e grosso. Em efeito, tinha aprendido a apreciar seu tamanho e agora compreendia por que aquela criada a tinha prevenido desse modo no Finlaggan.

Com um gemido, lhe agarrou os seios com suas mãos grandes e ásperas, e começou a apertar e beliscar os mamilos entre os dedos enquanto ela o montava. Começou devagar e foi movendo-se mais depressa até encontrar seu ritmo.

Arqueou as costas sobre as mãos dele, deixando cair à cabeça para trás ao tempo que se erguia, levantando o torso tudo que pôde antes de inclinar-se de novo sobre ele, descrevendo círculos sensuais com os quadris.

Seus corpos se moviam ao uníssono com toda facilidade e fluidez. Na cama, não ficava nada a se interpor entre eles: nem acanhamento nem desconforto. Tinham alcançado a união perfeita de dois amantes.

Quando ela estava a ponto de culminar, ele baixou a mão e acariciou esse ponto deliciosamente sensível com o dedo, intensificando o prazer de Christina justo como sabia que gostava.

Ela se estremeceu, gritando, sacudida pelos espasmos. Ainda sentia um comichão quando ele a agarrou pelos quadris e se afundou no mais profundo dela, chegando a sua vez ao clímax.

Com delicadeza, sujeitou-lhe o rosto entre as mãos e a beijou de novo.

—Pareceu-te bastante terno?

—Sim. Prefiro mil vezes montar sobre ti que sobre uma carreta. —Soltou uma risadinha e, depois de aninhar-se contra ele, tirou o livro dentre os lençóis.

—E agora, quer que acabe o capítulo ou não? —perguntou lhe dirigindo um olhar severo, como se fosse um menino levado.

Tor torceu os lábios.

—Já que estamos não vejo por que não.

Ela não se deixou enganar por sua fingida indiferença. face ao evidente desdém de Tor para o código cavalheiresco, Christina sabia que estava gostando do relato.

Conseguiu ler o resto do capítulo sem mais interrupções, mas quando terminou, ele se levantou da cama (a contra gosto, pareceu a ela) para vestir-se.

Christina o observou sem dissimular seu interesse. Embora levasse duas semanas despertando em seus braços, não tinha perdido nem um ápice de seu entusiasmo. Depois daquela primeira vez, Tor tinha dormido a seu lado todas as noites. Embora o Natal tivesse sido há uma semana, cada dia era como um presente para ela. Duvidava que chegasse a cansar-se jamais de despertar junto a ele ou de contemplar seu magnífico corpo enquanto fazia suas abluções matutinas, consciente de que apenas alguns minutos antes estivera entre seus braços.

Seu marido tinha suavizado sua atitude com ela; disso não cabia a menor duvida. Já não se mostrava tão distante e indiferente, e se esforçava por abrir-se mais a ela, como tinha prometido, em que pese que não era fácil. Dada a brutalidade que tinha imperado em sua vida e as circunstâncias em que tinham morrido seus pais, não lhe custava entender por que.

Despertar em seus braços todas as manhãs tinha proporcionado algo da intimidade que desejava, mas ainda faltava algo. Seguia havendo uma barreira entre eles. Era como se Tor levasse duas vidas: uma com ela e outra diferente com todos outros.

Sabia tão pouco de suas atividades como antes. Mesmo assim, fixou-se no propósito de ser paciente. Tinha que lhe dar uma oportunidade.

Tor se vestiu a toda pressa; lavou os dentes enxaguando-se com vinho branco e esfregando com um tecido fino e uma massa de hortelã e sal; passou um pente pelo cabelo, Passou a água da bacia no rosto e se secou com o tecido adequado para isso. Entretanto, a água fria não levou os sinais de inquietação gravadas em seu semblante.

Estava aflito por algo. Como Christina o conhecia melhor que antes, tinha aprendido a decifrar seus gestos quase imperceptíveis: uma ligeira tensão da boca, a ruga na testa e um olhar distante.

—O que ocorre? —perguntou-lhe—. O que te preocupa?

Eram os rumores das crescentes desavenças entre Bruce e Comyn, a crescente ameaça de uma guerra entre Escócia e Inglaterra? Agora que sabia que ele tinha batalhado por ressuscitar seu clã a partir das cinzas da destruição, compreendia suas razões para querer evitar a guerra e manter-se neutro.

Com um sorriso, ele sacudiu a cabeça, sinal de que não tinha a menor intenção de contar-lhe, Christina lutou por conter a onda de decepção que a invadiu, não só pela falta de confiança - ou porque ele se confiou a outros—, mas sim porque temia que a visse como um brinquedo frágil que necessitava que o protegessem e o tivessem entre algodões.

«É questão de tempo», recordou-se. E tinham toda uma vida juntos em frente.

—Só é um assunto que estive pensando. —voltou-se para olhá-la nos olhos—. É possível que passe fora o resto da semana.

desta vez ela não pôde evitar sentir-se desiludida, embora fizesse o possível por dissimulá-lo. Sabia que devia estar agradecida pelas semanas que tinham estado juntos, mas não lhe bastava isso. Tornou-se ambiciosa. Quanto mais tempo passava com ele, mais tempo desejava.

Não lhe perguntou aonde ia, pois não queria ficar com pior humor quando ele se negasse a dizer. Mas, de repente, lhe ocorreu uma possibilidade. Deus bendito, tinha chegado o dia que tanto temia, o dia em que ele zarparia para ir à guerra?

*

Ao Tor a perspicácia de Christina respeito a seu estado de ânimo já não lhe surpreendia embora lhe incomodasse ser tão transparente para ela. Era certo que algo lhe preocupava. Não podia seguir demorando com o que MacDonald tinha ordenado.

Por desgraça, ela também era transparente para ele, por isso Tor sabia que sua reticência a feria. O acordo que tão cuidadosamente tinham estabelecido estava vindo abaixo. Embora ela fingisse entender por que ele não podia lhe explicar o que fazia; quanto mais se estreitavam seus laços, maior era o abismo que os separava.

O que mais surpreendia ao Tor era que em realidade tinha vontades de contar. Tinha guardado tudo dentro de si durante anos. Ao afrouxar a tampa, anos de pressão acumulada ameaçavam estalando. Certamente tinha cometido um engano ao fazer uma exceção, embora não podia negar que falar das coisas ajudava a limpar a cabeça.

Ela colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e encolheu as pernas, envolvendo-as joelhos na manta.

—averiguaste quem foi o responsável pelo ataque? —perguntou em um tom inexpressivo.

Tor não se deixou enganar por sua atitude despreocupada; sabia o que encerrava essa pergunta. Embora ela já não o interrogasse sobre o lugar aonde ia, isso não significava que não lhe interessasse saber. Seus lábios se curvaram para baixo com dureza.

—Não.

MacSorley e MacRuairi tinham retornado pouco depois de partir, com uma tripulação em extremo insuficiente, à caça de quatro navios de guerra que tinham seguido de longe até que uma das galeras ficou atrasada. Tinham-na assaltado com facilidade, mas nem sequer a habilidade considerável do MacRuairi para extrair informação lhe tinha revelado o nome da pessoa para a que trabalhavam.

—Ainda não - precisou—, mas o averiguarei. Assim que encontre ao infiltrado… —interrompeu-se, sentindo-se como se lhe tivessem atirado uma machadada. Nunca na vida tinha metido a pata dessa maneira. Talvez Christina não se desse conta. Sim, claro…

Ela afogou um grito.

—Acredita que há um espião?

—Parece provável - respondeu ele devagar, furioso consigo mesmo—. Todos os ataques se produziram quando eu estava fora, ou quando se supunha que estava. É muita casualidade para atribuí-la ao azar.

—Sabe quem é o espião?

—Não, ainda não. Poderia ser qualquer. Qualquer - repetiu—. Quando saio do castelo, não o faço precisamente em segredo, mas meus homens estão alerta a algo fora do comum ocorra, e estão tomando precauções. —Examinavam todas as mensagens e levavam a ele tudo o que consideravam suspeito. Vigiavam aos guardas (em especial aos que tinham sido recrutados recentemente) e ao pessoal do castelo, incluídos o tabelião e ao Rhuairi. Entretanto, depois de ver como o clérigo tinha protegido a Christina, suas suspeitas iniciais lhe pareceram infundadas.

Quase podia ler os pensamentos que se amontoavam na mente de Christina. Talvez o lapso tivesse sido o melhor que podia acontecer, disse a si mesmo. Terei que caçar a cobra com toda cautela para que não escapasse, e podia resultar perigoso. Mais valia que ela estivesse em guarda.

—Só poucos de meus guardas de máxima confiança estão à corrente disto, Christina. Lembre-se que a situação é grave e potencialmente perigosa. Espero não ter me equivocado ao depositar minha confiança em ti.

Ela sacudiu a cabeça com veemência.

—É obvio que não. —Sorriu—. Obrigado por me contar isso. Inclinou a cabeça—. É por isso que te parte?

—Em parte. Meus homens estarão atentos se por acaso acontece algo incomum no castelo, embora duvide que essa gente tente nada tão pouco tempo depois do último ataque. Mas não quero que saia do castelo durante minha ausência. Não esqueça sua promessa. —Não era necessário lhe explicar que não devia misturar-se em seus assuntos.

—Mas vou me aborrecer - protestou ela.

Tor tentou não sorrir ao fixar-se em sua expressão de despeito.

—Acreditava que estava trabalhando em um estandarte novo para o salão.

Christina entrecerrou os olhos.

—Sabe perfeitamente que é um desastre. Sou uma negação com a agulha.

Ele soltou uma risadinha.

—Estou seguro de que encontrará alguma atividade em que ocupar seu tempo.

—Se não tivesse enviado a seu irmão e a sua mulher ao exílio, teria a alguém com quem conversar.

Aquele era um tema delicado. Christina não entendia que seu marido estivesse empenhado em castigar seu irmão…, embora em realidade não o estivesse. Não era de se admirar. Ela tinha muito bom coração e não estava acostumada a tomar as decisões difíceis às que Tor se enfrentava diariamente como chefe.

—Janet estará aqui.

Como havia um possível espião entre eles, Tor tinha chegado à conclusão de que era muito arriscado que ela seguisse indo e vindo do castelo ao broch. Os homens tinham que arrumar-se somente com a comida… e se queixavam disso.

Christina arqueou uma sobrancelha.

—Quer que trave amizade com sua amante?

—ex-amante -a corrigiu ele—, mas segue sendo uma amiga. Dê-lhe uma oportunidade, gostarás dela.

Ela fez um ruído abafado parecido a um bufo.

—Os homens não entendem nada. Duvido muito que queira ser amiga minha.

Embora Tor não tivesse a menor ideia de por que, não pretendia entender as complexidades da mente feminina.

Agachou-se para beijá-la com suavidade. O beijo foi mais longo do que ele queria, mas quando levantou a cabeça, viu que havia valido a pena. Os lábios vermelhos entreabertos e um pouco inchados, as pálpebras entreabertas, o olhar aturdido, as bochechas rosadas… Maldita seja, adorava o aspecto que tinha quando a beijava.

—Voltarei antes que te dê conta.

*

Christina tinha conseguido distrair Tor de seus problemas, mas não durante muito tempo. «Maldito Bruce. Dane-se MacDonald.» Detestava os enganos de todo tipo. Aqueles homens formavam uma equipe e mereciam saber a verdade. Para que uma guarda secreta como essa cumprisse seu encargo, a autoridade máxima em relação às decisões que se atinham ao grupo devia ficar ao cargo do líder da equipe. Se ele estivesse ao mando, diria a Bruce e ao MacDonald exatamente onde podiam meter-se suas «ordens». Mas em pouco menos de três semanas, MacSorley seria o líder e a decisão estaria em suas mãos. Entretanto, nem sequer o corpulento escandinavo sabia o que estava a ponto de acontecer.

Era a última prova da Perdição, que fora postergada por sua volta antes do tempo a Dunvegan.

Os homens se congregaram em torno dele enquanto explicava sua missão. Tinha levado mais de dois meses, mas Tor por fim tinha conseguido lhes fechar a boca.

—Não podem estar falando sério. —Seton foi o primeiro que teve a audácia de dizer o que outros pensavam.

O olhar que Tor lhe jogou parecia indicar justamente o contrário.

—Foi o desafio final para o Fianna do Finn MacCool.

—Mas isso não é mais que uma lenda - protestou MacGregor—. Ninguém poderia proteger-se de tantas lanças enterrado até a cintura e com somente um escudo para cobrir-se.

Tor sorriu.

—Não têm por que te preocupar. Vou modificar a prova do Finn. Poderão colocar o elmo e a cota de malha, e não lhe atirarão todas as lanças de uma vez.

Ouviu algumas gargalhadas. Ao que parece suas modificações não fora suficiente para os convencer.

—Pode fazer—atravessou Campbell—. Um guerreiro destro pode apanhar facilmente dez lanças ou mais. O mais importante é dominar o medo.

—A ti isso será fácil - repôs MacGregor—. Cresceram esquivando das lanças que lhe atiravam à cabeça. Todos vimos o que és capaz de fazer com elas.

Campbell olhou ao Tor aos olhos e assentiu em sinal de aprovação.

—Verão-me em ação - comentou.

Os homens dedicaram às horas seguintes a exercitar-se. Campbell lançava as lanças - o que agradeceram atrás de alguns erros deliberados— e logo, uma vez que agarraram o truque, passaram a treinar com uma lança que tinha a ponta de aço afiada envolta em um pedaço de couro. Por último, cada um deles se enfrentou ao exercício autêntico. Além de Seton, que recebeu um forte golpe no ombro, todos conseguiram apanhar ao menos dez lanças seguidas, e alguns deles umas quantas mais. Campbell estava no certo: quando se conseguia dominar o medo, não era tão difícil. E nenhum deles tinha medo de nada.

Tor escavou o buraco enquanto os homens se adestravam. Dado a provocação que tinha exposto, pensou que era o minimo que podia fazer. Com uma profundidade que chegava à cintura e um par de pés de diâmetro, o fosso era estreito, mas o bastante grande para que eles pudessem girar para os lados, embora com muita dificuldade.

MacSorley foi o primeiro em entrar enquanto os outros formavam um círculo ao redor dele, a uns vinte passos de distância.

Tirou todas as armas que levava presas com correias a seu volumoso peito, mas ia protegido com a cota, o elmo e o escudo.

Tor ergueu a mão para assinalar o começo.

—Se houver uma só gota de sangue, não valerá a prova.

MacSorley assentiu.

—Entendido.

—Preparado?

—Sim.

Tor fez um sinal ao Lamont, o homem situado a sua direita, e as lanças começaram a sair voando do perímetro do círculo. Um por um, esperando uns segundos entre um e outro, os homens as jogavam no alvo vivo no centro.

MacSorley encontrou seu ritmo em seguida, alternando entre apanhar as lanças e aparar os golpes com o escudo. Tor foi o último em atirar sua lança, que foi a que esteve mais perto de acertar no alvo, mas MacSorley a desviou no último instante com seu escudo. Como seu birlinn, a madeira forrada de pele tinha pintado no anverso uma águia pescadora de aspecto feroz.

Ao final, havia nove lanças no chão ao redor do MacSorley e uma cravada em seu escudo. Mas tinha conseguido, e assim que os outros viram que podia fazer, apressaram-se a seguir seu exemplo.

O último em baixar ao fosso foi Campbell. A tensão se dissipou com o triunfo de cada aspirante, e enquanto Campbell se preparava para seu turno, outros inclusive intercambiavam brincadeiras.

Tor cravou nele o olhar.

—Preparado?

Campbell assentiu com a expressão severa. Tor fez o sinal, e as lanças começaram a sair. Como se tratava do último homem, os outros guerreiros se acostumaram e os intervalos entre os lançamentos seguiam uma pauta ordenada.

Uma pauta que Tor rompeu.

Quando MacGregor, que estava a sua esquerda, soltou sua lança, Tor jogou a sua ao mesmo tempo.

Tal como tinham feito seus predecessores, Campbell tinha se adaptado a um ritmo. Apanhou com facilidade a lança do MacGregor mas não estava preparado para a de Tor. Sem tempo para colocar seu escudo em posição, inclinou-se a um lado no último momento, apenas o suficiente para evitar que a lança o alcançasse no peito. Entretanto, esta lhe roçou o braço antes de cravar-se no chão, alguns pés atrás dele.

Depois de uns instantes de atordoamento geral, Tor ouviu um suspiro de alívio coletivo a seu redor.

—Foi por um triz - disse MacGregor.

Por toda resposta, MacSorley sacudiu a cabeça com pesar.

Tor não disse nada. Como outros, estava contemplando como a manga da cota do Campbell se manchava de sangue.

Campbell fixou o olhar nele.

—Sinto muito, moço - disse Tor em voz baixa.

Campbell afastou o olhar e fez um gesto afirmativo. Conhecia as regras.

—Recolherei minhas coisas.

Sem acrescentar uma palavra, saiu do buraco ajudando-se com os braços e se encaminhou para a broch. Outros o olharam afastar-se com um silêncio cheio de estupefação.

Foi Seton quem se dirigiu primeiro ao Tor.

—Não posso acreditar que o deixem partir. Necessitamo-lo. Não há outro explorador como ele em toda Escócia… ou no resto do mundo, de fato.

—Não fez a prova —replicou Tor, embora não tinha por que dar explicações.

O rosto de Seton avermelhou de raiva.

—Porque vocês têm feito armadilha.

O estalo de silêncio que seguiu a estas palavras foi ensurdecedor. Os highlanders sabiam algo que aquele cavalheiro inglês ignorava.

—Se eu me regesse pelo código ao que estas referindo, estaria morto pelo que acabas de dizer.

Seton apertou os dentes; precaveu-se de seu engano.

—Na guerra não existem armadilhas, e se querem formar parte desta equipe, mais vale que coloquem isso na cabeça quanto antes. Este guarda tem que estar preparada para tudo, e Campbell confiou demais. Se nos confiarmos, morreremos todos.

MacSorley lhe dirigiu um olhar estranho, e Tor se deu conta de que tinha cometido um engano: ele não formava parte desse «nós».

—O capitão tem razão - disse MacGregor—. Todos nos confiamos. Campbell não deveria ser o único em pagar as conseqüências. Voltarei a me submeter à prova com ele.

Tor o olhou longamente, impressionado pelo profundo vínculo que se forjou entre aqueles dois membros de clãs que antes se enfrentavam. Embora discutissem como inimigos, atrás da retórica agressiva havia uma amizade. Amaldiçoou em seu foro interno o injusto da situação, mas seu tom ao falar não delatou seus pensamentos.

—Campbell teve sua oportunidade. Deveremos nos arrumar sem ele. Boyd e Lamont são exploradores excelentes; que eles ocupem seu lugar. —Percorreu com o olhar o círculo de homens, todos eles furiosos, para que sua mensagem ficasse bem claro—. Não há mais que falar. Tomei minha decisão.

Conscientes de que protestar seria inútil, os homens se dispersaram. Não gostavam da decisão mas a acatavam, com diferentes graus de indignação. Como era de esperar, MacGregor o evitou durante o resto do dia.

Campbell se despediu com solenidade e, quando chegou o momento, Tor o acompanhou em solitário à galera que o levaria de volta a terra firme.

—Levas tudo? —perguntou.

Campbell assentiu.

—Sinto muito, moço. Desejaria que as coisas não tivessem que ser assim.

O rosto do Campbell era uma máscara de pétrea resignação.

—Sim, capitão, compreendo-o.

—Como está o braço?

—Está bem. —Instintivamente, Campbell levou a mão à parte superior do braço, não o esquerdo, que tinha ferido pela lança, a não ser o direito, no que Tor lhe tinha tatuado em segredo um sinal a altas horas da noite anterior.

Embora outros não soubessem a verdade, Campbell era um deles.

—Se alguma vez estiveres em apuros…

Campbell moveu a cabeça afirmativamente.

—Sei o que devo fazer.

Tor o agarrou do braço e lhe deu um apertão firme.

—Bs roimh geill.

—Antes morrer que render-se — respondeu Campbell com ferocidade. Depois de jogar uma última olhada a broch, embarcou de um salto e se fez ao mar.

Tor o observou afastar-se.

«Agora há dez.»


Capítulo 23


Tor levava poucos dias fora quando Christina começou a sentir os efeitos de sua inquietação. Tal como suspeitava, lady Janet não interessava cercar uma amizade com ela. Mostrava-se cortês, mas Christina estava convencida de que os sentimentos que a outra mulher ainda albergava para Tor lhe impediam de ir mais à frente.

Christina não podia culpá-la por isso.

Como dispunha de tempo de sobra, havia-se aficionado a dar longas caminhadas pelo perímetro da muralha. Além de seus passeios matinais com o irmão John, agora saía a caminhar também depois do jantar.

Adorava erguer o olhar para o céu nas noites limpas, embora não fossem muito freqüentes durante o inverno na «ilha da Bruma». As estrelas pareciam tão próximas ali que quase tinha a sensação de que se estendia o braço poderia agarrar uma.

Aquela era uma dessas noites e, apesar de fazia mais frio que de costume - inclusive para janeiro—, ela permaneceu um momento entre as almenas, contemplando primeiro o firmamento e logo o mar. era fascinante e provocador ver as cintilantes ondas negras com cristas de espuma branca rompendo-se contra o escarpado rochoso.

Baixou o olhar para o embarcadouro e ficou imóvel. Percorreu-a um calafrio. O birlinn aterrorizante com o falcão gravado na proa estava atracado ao lado das outras embarcações.

De repente, veio-lhe à memória o dia que tinha visto o Rhuairi no mole. Cabia a possibilidade de que o senescal fosse o espião?

Suas suspeitas aumentaram quando o homem em quem pensava saiu a toda pressa do grande salão, cruzou o pátio e baixou a escada que conduzia ao molhe. Como Christina estava oculta nas sombras, o homem não reparou em sua presença. Ela se inclinou sobre a mureta, mas não alcançou ver o que ocorria debaixo. Um momento depois, não obstante, Rhuairi subiu correndo a escada e voltou sobre seus passos para o interior do salão.

para Christina o coração pulsava com força. Permaneceu aninhada na escuridão um momento mais, sem saber o que fazer. O que acabava de presenciar podia ser um ato totalmente inocente. Mas por que se comportou ele de um modo tão estranho naquele dia e tinha negado ter recebido uma mensagem?

Seu primeiro impulso foi segui-lo, mas recordou a advertência de Tor. Não queria que ela se envolvesse. Se Rhuairi fosse o espião, seria perigoso que a surpreendesse seguindo-o. Christina teria que aguardar que seu marido retornasse para lhe expor suas suspeitas.

Esperava que para então não fosse muito tarde.

*

Lady Christina não se precavera de que alguém a observava. O irmão John MacDougall, sobrinho e xará de John do Lorne, não podia saber de ciência certa o que estava pensando, mas tinha que correr o risco. Seu instinto de sobrevivência tinha prevalecido nos últimos dias e o tinha impulsionado a preparar-se para partir. Se queria averiguar o que trazia MacLeod entre as mãos, devia fazê-lo já, e o mensageiro secreto do senescal lhe tinha dado uma idéia.

Suspeitava fazia um tempo que ela sabia ler, e suas suspeitas se viram confirmadas quando percebeu que alguém tinha corrigido os livros. Não queria implicá-la nesse assunto, mas por outro lado, pensou, estava-lhe fazendo um favor. MacLeod não gostava. Essa besta selvagem e desumana não sabia apreciar a jóia que tinha por esposa. Entretanto, também saltava à vista que sua jovem esposa o idolatrava. Talvez aquilo a obrigaria a vê-lo como era na realidade.

Ou assim esperava.

Arrependia-se de ter permitido que seu tio o metesse nisso: a espionagem teria que ser posta nas mãos de quem tivesse estômago para o engano. Embora, na realidade, não tinha escolha. Igual MacLeod, seu tio não era um homem ao que convinha desafiar.

*

Transcorreram dois dias mais, e Tor não tinha retornado. Enquanto isso, as suspeitas de Christina a corroíam por dentro. No dia anterior, tinha entrado nos aposentos principais com o irmão John, e Rhuairi, sobressaltado, tinha juntado seus papéis e se retirado com um rubor de culpabilidade no rosto. O tabelião também se fixou na estranha conduta do senescal e tinha feito um comentário sobre o nervosismo crescente do Rhuairi.

Tendo bem presente a promessa que tinha feito a seu marido, Christina tinha respondido que não tinha notado nada. Detestava não poder confiar em seu amigo. Embora o irmão John fosse a última pessoa do mundo de quem suspeitaria, Tor tinha advertido que não confiasse em ninguém.

Pensou em mandar a seu marido uma nota, mas não tinha nenhuma prova. Além disso, não poderia enviar sem que Rhuairi se inteirasse. Como não tinha alternativa, aguardou… Até a tarde seguinte.

Como era seu costume depois do jantar, estava caminhando ao redor da muralha quando viu de novo ao Rhuairi sair apressadamente do grande salão. dessa vez, entretanto, em lugar de receber a um mensageiro, subiu a bordo de um birlinn que o esperava e zarpou de volta ao mar aberto, não para a aldeia.

Admirada, Christina se dispunha a entrar no castelo quando o irmão John, com o rosto avermelhado, e esteve a ponto de atropelá-la.

Ele se desculpou, com ar transtornado.

—Por ventura vistes ao senescal?

—Sim - assentiu ela—. Se foi há alguns minutos.

—Cáspita!

Christina sorriu ao comprovar que o irmão John se apropriou de sua expressão favorita.

—Ocorre algo?

Mostrou-lhe uma folha de pergaminho.

—Caiu isso de Rhuairi, e pela pressa que tinha, pareceu-me que talvez fosse algo importante. Mas esta noite devo ir à aldeia a ver o pai Patrick.

—Não sabem do que se trata?

Ele sacudiu a cabeça.

—Não é algo que eu tenha escrito.

A Christina lhe acelerou um pouco o pulso, e todos seus instintos ficaram alerta. Estendeu a mão.

—Não faz falta que postergues sua visita à aldeia - disse sem controlar de todo o tom agudo de sua voz—. Eu o entregarei ao Rhuairi quando voltar.

O tabelião titubeou.

—Estas segura? Provavelmente o necessitará assim que retorne, e talvez seja muito tarde.

—Não me importa - respondeu ela—. Não estou cansada.

—Espero que não se trate de nada grave, embora o certo é que Rhuairi parecia um pouco mais nervoso que de costume. —Um leve sorriso se desenhou nos lábios do jovem tabelião, e toda a vacilação que sentia se esfumou. Deu-lhe o pergaminho e acrescentou—: Por outra parte, tinha prometido ao pai Patrick, e suponho que isto estará em suas mãos.

Christina, que sabia a que se referia, alegrava-se de que ele não alcançasse a ver o rubor de culpabilidade que lhe tingia as bochechas. Como estivera esperando alguma indicação de Tor, ainda não tinha contado a ninguém que sabia ler. Conhecia o modo em que funcionava a mente de seu marido, por isso imaginava que ele considerava mais seguro guardar essa informação até que descobrisse ao espião.

—Pergunto-me o que acontece ao Rhuairi - disse o irmão John, como ausente—. Ultimamente tem uma atitude tão circunspeta…

—Estou segura de que não é nada importante - mentiu Christina, tentando não sentir-se culpada. Esperava que o irmão John a perdoasse, mas não podia arriscar-se a expressar suas suspeitas em voz alta.

—Obrigado, milady. E agora, se não se importar, devo partir.

—Veremo-nos pela manhã — disse ela, e o observou cruzar a porta que dava ao mar e descer para o embarcadouro.

Resistindo o impulso de abrir a nota ali mesmo, a guardou entre as dobras de sua capa e se dirigiu rapidamente à intimidade de seu quarto. Ali, à luz das velas, desdobrou com cuidado a pequena folha de pergaminho.

O coração lhe pulsava a toda velocidade. Aquela podia ser a prova que esteve procurando. Sentiu uma pontada de culpabilidade, mas a sacudiu em seguida. Se a mensagem não fosse importante, Tor nunca se inteiraria. Mas se era, daria-lhe obrigado por isso. Podia lhe proibir que se misturasse, raciocinou, mas não que observasse o que ocorria diante de seu nariz.

Reconheceu imediatamente a tosca letra do Rhuairi, embora a nota não estivesse assinada. Era breve e concisa, mas fez que lhe gelasse o sangue com uma gélida onda de pavor. Tinha encontrado sua prova, e era muito pior do que tinha acreditado.

«Paradeiro do MacLeod confirmado. Tragam reforços. Atacaremos a meia-noite.»

Deus santo, que horas era? sete? oito? Tinha o coração desbocado. O que podia fazer? Tinha que encontrar uma maneira de acautelá-lo, antes que fosse muito tarde.

*

Tor estava sentado em uma pedra grande e plaina frente à entrada da broch, com uma jarra de cuirm na mão, contemplando os últimos raios rosados do sol extinguirem-se depois do horizonte.

Embora Campbell se fora fizesse quase uma semana, a equipe ainda não se recuperara da perda de um dos seus. Ele sabia que devia estar agradado por isso, pois era uma prova de que o treinamento tinha sido um êxito, mas não estava. A marcha de um membro da equipe, independentemente do motivo, ardia-lhe.

Resmungou uma blasfêmia e tomou um gole longo da forte cerveja antes de deixar a taça vazia na pedra com um golpe.

—Ai - disse MacSorley, que tinha saído da broch para sentar-se junto a ele—. Está um pouco amarga a cerveja, ou é bem o sabor do remorso?

—Não sigas por aí - lhe advertiu Tor—. Não estou de humor para sua língua afiada.

MacSorley bebeu um gole de sua própria taça. Ficaram sentados em silencio durante um momento antes que ele falasse de novo.

—Eles perdoarão. Dêem-lhe tempo.

Depois da partida do Campbell, a brecha entre o Tor e os homens se alargou. Uma vez mais, voltara a estar firmemente instalado no papel de líder, o homem obrigado a tomar decisões duras e impopulares. Formava parte da equipe, mas estava à margem. Entretanto, não era isso o que lhe incomodava. Quão único queria era acabar de uma vez por todas com esse maldito assunto.

—ides contar logo? —perguntou-lhe MacSorley em voz baixa—. Somente restam duas semanas.

A mandíbula de Tor se esticou. dessa vez o outro homem tinha dado no alvo.

—Não, ainda não.

Todo rastro de jovialidade desapareceu do rosto do MacSorley, que se endureceu com uma severa expressão de raiva.

—antes de zarpar, merecem saber que não ides os capitanear quando tiver terminado aqui.

Suas palavras se aproximavam muito ao que pensava Tor, mas não queria as ouvir nesse momento. Olhou ao MacSorley entreabrindo os olhos de forma ameaçadora.

—Tome cuidado, escandinavo. Ainda não estais ao mando.

MacSorley não se intimidou ante sua advertência, embora Tor tampouco esperasse que o fizesse. O viking era quase tão temerário como loquaz.

—Sabes no que acredito? —Tor fingiu não tê-lo ouvido, com o olhar fixo na fileira de árvores, no outro lado do claro—. Acredito que não queres dizer porque desejas capitaneá-los, e lhe chateia a má maneira se sentir incapaz de fazê-lo. Mas cedo ou tarde terá que descer do burro, MacLeod. —Não disse «capitão». A Tor não aconteceu inadvertido o desprezo—. A guerra é iminente, e um dia destes, certamente antes do que pensa, teras que escolher. Esta equipe precisa de ti - disse com suavidade—. A Escócia lhe necessita.

Ao diabo com Escócia; seu dever era para com seu clã.

—Falam como o condenado de seu primo.

—Angus Og é um homem sábio. Pense. —Dito isto, deixou-o por fim em paz.

Que MacSorley fosse ao Hades! Tor não necessitava sua opinião. Fazia sua própria análise, e muitas vezes. Embora MacSorley estivesse certo, nada tinha mudado. Seguia sendo injustificável implicar a seu clã em uma guerra que não supunha uma ameaça para eles.

Duas semanas mais, pensou. Duas semanas mais, e teria completado com seu compromisso. O risco de que o descobrissem - e a traição que cometia ao adestrar homens para que lutassem pelo Bruce— ficaria para trás. Teria respeitado sua parte do trato ao treinar aos homens e teria conseguido tirar de cima ao Nicolson.

As águas voltariam para seu leito, por mais que fosse uma tortura para ele pensar que seus homens lutariam sem ele: ocuparia de novo uma posição de neutralidade na guerra da Escócia e no conflito entre o MacDougall e MacDonald.

Por mais que ele quisesse que as coisas fossem de outra maneira, suas obrigações para com seu clã eram sempre em primeiro.

*

Christina sabia que aquela era a oportunidade perfeita que esteve esperando para fazer algo importante.

Lembrando-se de quão categórico tinha sido Tor em relação à possibilidade de que ela saísse do castelo, foi em busca de lady Janet ou Colyne —pois lhe constava que Tor confiava em ambos—, mas não encontrou a nenhum dos dois. Como não se atrevia a envolver a ninguém mais, sabia que teria que lidar com ele por si mesmo. Não estava segura de que se encontrasse na broch, mas a julgar pela mensagem, parecia provável.

Foi mais fácil do que esperava. A única dificuldade surgiu quando tentou embarcar em um birlinn com destino à aldeia. O guarda do molhe se negou em um princípio a deixá-la partir. Ela não tinha a menor ideia do que fazer até que recordou a promessa de seu marido. Pelo visto, tinha mantido sua palavra de informar a seus homens em relação à condição que tinha imposto para casar-se com ele, já que, quando recordou ao guarda que devia haver um birlinn ao seu dispor para quando desejasse ir, ele cedeu.

Deixou que um punhado de guardas a acompanhasse à igreja, mas a seguir insistiu em que podia continuar sozinha a partir de ali. Uma vez que partiram, ela retornou ao bosque, voltando sobre os passos que a tinham levado até a broch a primeira vez. Estava escuro e não se atreveu a levar consigo uma tocha, mas por sorte a lua estava quase cheia e seu brilho era bastante intenso para atravessar o tênue manto de névoa que turvava o ar fresco da noite. Estava muito preocupada para ter medo; seu maior temor era não lembrar-se de como chegar ali.

Caminhava devagar e com determinação, mantendo a cabeça encurvada para ver por onde pisava. O chão era irregular, por isso tropeçou mais de uma vez. Mas já quase estava ali. Ao cabo de poucos minutos se encontraria perto do lugar do bosque do que tinha espiado a Tor e a seus homens.

Deteve-se e deu uma olhada para trás para assegurar-se de que ninguém a seguia. Não viu mais que as silhuetas escuras e ameaçadoras das árvores. Mesmo assim, não podia desterrar a sensação de que alguém a observava. Tudo estava totalmente tranqüilo…, muito tranqüilo.

De repente, viu-se imobilizada contra um peito revestido de aço e notou o fio inconfundivelmente frio de uma adaga contra o pescoço.

—Seu nome, moça - lhe grunhiu uma voz ao ouvido.

Essa vez não se tratava de seu marido.

—Lady Christina - gaguejou—. A esposa do chefe dos MacLeod.

Ele soltou um juramento, obrigou-a a dar volta e lhe tirou o capuz com brutalidade.

Christina se encontrava frente ao olhar furioso de sir Alexander Seton. Aproveitando-se de sua surpresa, dedicou-lhe uma reverência e disse: —Sir Alex, passou muito tempo.

—Milady. —inclinou-se automaticamente, como correspondia a um cavalheiro galante, fossem quais fossem as circunstâncias—. O que fazes aqui fora?

—Um dos homens de meu marido o traiu e interceptei uma mensagem. Planejam atacar esta noite, assim tinha que lhe avisar.

Ele endureceu sua expressão.

—Estás segura?

Christina assentiu.

Sir Alex a olhou com curiosidade.

—Espero que estejas certa.

Assim que tinha pronunciado estas sinistras palavras, um objeto alongado e metálico - um utensílio de lavoura, possivelmente?— emergiu das sombras, atrás de sua cabeça, e desceu com violência sobre o elmo de aço. Com um gemido de dor, sir Alex se desabou aos pés de Christina, reduzido a um vulto coberto de malha.

Ela espiou pela extremidade do olho algo que se movia, e uma figura com uma capa negra apareceu das trevas. Christina abriu a boca para gritar, mas era muito tarde. Um objeto contundente lhe golpeou a nuca. Teve a muito estranha impressão de ouvir alguém murmurar « sinto muito » antes que a escuridão a envolvesse.

Os sons não muito aprazíveis de uma bofetada e o exabrupto «maldito néscio inglês» a fizeram voltar a si. Em um princípio pareceu que a voz se dirigia a ela, mas ao abrir os olhos viu um guerreiro gigantesco e de aspecto aterrorizante que, inclinado sobre sir Alex, tentava despertá-lo.

Ela o tinha visto antes. Moreno, de sobrancelhas grossas e um rosto mais agreste que arrumado, parecia um homem que tinha participado de muitas brigas de tabernas a altas horas da noite. Então o recordou: era o guerreiro que tinha levantado aquela pedra enorme como se não pesasse virtualmente nada.

Deve ter deixado escapar um som, porque o guerreiro se afastou imediatamente de sir Alex e se aproximou dela.

—Está bem, moça?

—Isso acredito. —Ajudou-a a levantar-se. Depois de um momento de enjôo, a cabeça limpou em seguida. Ao levar mãos à nuca, apalpou um pequeno galo, mas por sorte não havia sangue. Sentia sobre si o olhar penetrante do homem—. E sir Alex? Ele encontra-se bem? —perguntou.

O guerreiro entrecerrou os olhos.

—Conhece o inglês?

Ela caiu em si de que não lhe havia dito quem era.

—Sou lady Christina Fraser.

Se isto o surpreendeu, dissimulou-o muito bem.

—A mulher do MacLeod?

Ela assentiu.

—E vocês são…?

Depois de titubear por um instante, ele respondeu:

—Incursionador. —Pelo visto, não queria lhe revelar seu nome nem se incomodou em lhe explicar por que.

—São da zona fronteiriça? —Ao advertir uma faísca de desconcerto em seus olhos, Christina supôs que tinha deduzido acertadamente a origem do sotaque.

—O que fazem vocês aqui? —inquiriu ele, trocando de tema—. O que ocorreu?

Recordou tudo de repente e se levantou de um salto, presa do pânico. Quanto tempo esteve inconsciente?

—Que horas são? —perguntou freneticamente. Antes que o homem pudesse responder, ela o agarrou pela parte dianteira de sua cota de malha. Ele não se moveu um centímetro. O que acontecia com esses guerreiros das Highlands? Por que tinham todos corpos do tamanho de montanhas?

—Explicarei-lhe isso tudo, mas não fica tempo… Deve me levar até meu marido.

Embora isso não parecesse fazer muita graça ao homem, seu tom o convenceu da urgência da situação.

—Estás em condições de andar?

Ela assentiu, e ele a ajudou a ficar de pé. Sir Alex era um homem corpulento, mas aquele «Incursionador» o levantou e o jogou ao ombro como um saco de farinha, sem muita delicadeza, por outra parte. Dava a impressão de que não sentia afeto pelo jovem cavalheiro. Sem dizer uma palavra mais, guiou-a através das árvores.

Quando saíram na clareira que se estendia ao pé da broch, gritou como um mocho, o que evidentemente era algum tipo de sinal. E apesar da noite estava avançada, havia um punhado de homens exercitando-se com armas diversas: espadas e tochas, pareceu a ela. Uma figura estava de pé ante a entrada, e pelas dimensões de sua sombra ela soube que era seu marido. Invadiu-a um grande alívio ao saber que tinha chegado a tempo. Tinha conseguido.

Tor foi a seu encontro e ela arrancou a correr para ele. Outros se juntaram ao redor para averiguar o que estava passando.

—Christina? —perguntou ele, com a voz aguda pela incredulidade—. O que ocorreu? O que faz aqui? Acreditava te ter advertido que não voltasse nunca para este lugar.

Ela ouviu a chispada de ira e se jogou em seus braços antes que estalasse. Ele a estreitou contra si de forma mecânica, mas afastou o olhar dela durante o tempo suficiente para ver o homenzarrão atirar a sir Alex a seus pés. Christina respirou aliviada ao advertir que o jovem cavalheiro se movia.

Tor soltou um juramento e a agarrou pelos ombros, olhando a de marco em marco.

—Têm-lhe feito mal?

Ela negou com a cabeça.

—Tenho um galo na cabeça, isso é tudo. Este homem, Incursionador, encontrou-nos. —Tor arqueou uma sobrancelha com expressão inquisitiva, mas o musculoso guerreiro se limitou a encolher os ombros como dando a entender que já explicaria mais tarde.

—Quem te fez isto? —A voz de Tor soou mais fria e letal do que ela a tinha ouvido nunca.

—Não sei, mas tem que me escutar. Não fica muito tempo. —devido a sua ânsia por contar-lhe o que saiu de sua boca foi uma corrente de palavras confusas e embaralhadas. Ao precaver-se da crescente impaciência de Tor, simplesmente lhe entregou a nota—. É a letra do Rhuairi - disse, sem saber até que ponto seria inteligível—. Ele sabe que está aqui e planeja lançar um ataque nesta noite.

—Parece a letra do Rhuairi, mas não tem pés nem cabeça.

Christina não alcançou a perguntar por que. Tor chamou a alguém em voz muito alta, e em pouco momento dois homens saíram da broch. Ela empalideceu ao reconhecer ao Rhuairi e ao Colyne.

Se Rhuairi era o espião, que fazia ali? Deveria ter posto terra por meio fazia tempo.

Esteve tão convencida de que tinha descoberto a verdade que inclusive quando surgiu a possibilidade de que não fosse assim, custou-lhe assimilá-lo.

Rhuairi se aproximou para ler a nota. Deu uma olhada rápida antes de devolver ao Tor.

—É uma boa imitação de minha letra, mas eu não escrevi isto.

Embora Tor falasse em um tom enganosamente sereno, Christina percebia a tormenta que estalava.

—Como diz que conseguiste esta nota?

Contou sua conversa com o irmão John.

—E disse que iria à aldeia? —perguntou Tor.

Christina assentiu, e ele proferiu uma maldição. O olhar que lhe lançou não destilava gratidão, a não ser escárnio, como se não pudesse acreditar que ela fosse tão estúpida.

—Quando? —inquiriu, sacudindo-a pelos ombros—. Quanto tempo estivestes inconsciente?

Ela abriu muito os olhos, totalmente desconcertada ante aquela reação tão diferente da que tinha imaginado.

—Não… não sei —gaguejou—. Uma hora, talvez mais.

Tor se voltou para o Incursionador em busca de uma confirmação.

—Eu tinha saído de ronda pelo este, e Seton pelo oeste. Como o inglês não respondeu a minha chamada, fui em sua busca. Pode ter sido uma hora, possivelmente mais.

—E não lhe ocorreu ir à caça de quem fez isso, seja quem é?

Incursionador apertou os lábios, que formaram uma linha tensa.

—Pareceu-me mais importante não deixar sozinha à moça e lhe trazer aqui.

Apesar da evidência de que a tinham enganado era evidente, Christina se negava a acreditar.

Tinha que haver alguma explicação.

—Equivoca-te a respeito ao irmão John. Não pode ter sido ele. —«Ele não me faria uma coisa assim», pensou—. Não disse a ele que sei ler.

—Está totalmente segura disso? —O olhar que lhe jogou seu marido teria podido cortar um diamante—. Reza por que esteja certa. Não tem idéia do que pode ter feito.

Sem lhe dirigir uma palavra mais, ordenou a dois dos homens que fossem ao povoado através do bosque para ver o que averiguavam, e a outros que preparassem o birlinn para navegar de retorno ao Dunvegan.

Christina estava petrificada de espanto. Tinha conduzido ao espião diretamente até seu marido? «Sinto muito.» A voz na escuridão de repente cobrou sentido. Ficou com vontade de tapar as orelhas com as mãos para não ouvir a verdade. «Deus santo, tem que ser de um engano. Por favor, que seja um engano.»

*

Tor aguardava com ar sério a que Lamont e MacLean retornassem do povoado. Mas já sabia o que tinha acontecido. O tabelião tinha seguido a Christina pelo bosque e se partira fazia um bom momento. Embora estivesse escuro, Tor tinha que supor que John tinha visto o suficiente para pôr em perigo a missão de seus homens.

A intromissão de Christina tinha posto em grave risco tanto a seu clã como a guarda secreta de Bruce. Vinte anos de guerra e esforços por restabelecer seu clã, e agora a vida de seus membros e a sua própria pendiam de um fio. Se o tabelião o relacionava com o Bruce e o rei Eduardo conseguia capturá-lo, sua vida não valeria nada. Mas ele não seria a única vítima. Seu clã cairia com ele, e se o tabelião tinha reconhecido a alguns dos integrantes da guarda secreta de Bruce, também teriam um alvo sobre a cabeça.

Como tinha podido permitir que ocorresse algo assim? Isso era impróprio dele. Tinha querido acreditar que ele e Christina eram diferentes. Acaso não tinha aprendido nada com a morte de seus pais?

Isto era exatamente o que queria evitar.

Era um maldito idiota. Pensava que Christina tinha entendido. Tinha sido um engano confiar nela. Ao tentar agradá-la, tinha falhado com sua guarda e tinha deixado que ela soubesse muito. Tinha permitido que uma mulher se interpusesse entre ele e seu dever para com seu clã.

Estava tão furioso que não se atrevia a lhe falar ou a olhá-la sequer. Entretanto, era perfeitamente consciente de que estava ali, sentada no assoalho, com os olhos exageradamente abertos e pálida. Fez-se forte e não deixou que o tremor de seus lábios ou as ligeiras sacudidas de seus ombros o comovessem. Nunca voltaria a comover-se por ela.

O pulso martelava nos ouvidos, por isso mal ouviu os homens quando retornaram e corroboraram o que ele já sabia. O tabelião tinha desaparecido. Ninguém o tinha visto partir, mas Tor não podia evitar supor que alguém o tinha ajudado a fugir.

Tinha a mandíbula apertada com tal força que notava que as veias do pescoço lhe tinham inchado. Ordenou com voz ensurdecedora que aparelhassem os navios. Tinha que encontrar ao traidor antes que transmitisse a informação que tinha averiguado. O fracasso não era uma opção.

Os homens limparam os aposentos principais. Tor repartiu instruções de último momento a Colyne e a Murdoch a fim de que preparassem o castelo para a guerra e se levantou para partir. O aposento ficou vazio salvo por sua esposa.

Ela deveria tê-lo deixado partir sem mais, mas nunca sabia quando deter-se. Agarrou-o pelo braço, e ele sentiu que a leve pressão de sua mão lhe queimava como um ferro em vermelho vivo, na pele, no peito. Entretanto, precaver-se de que sua debilidade por ela aumentara não fez a não ser avivar sua ira.

—Sinto muito - sussurrou Christina, retorcendo as mãos e olhando-o com olhos grandes e suplicantes—. Somente tentava ajudar.

Tor permaneceu totalmente imóvel, face à voragem desatada em seu interior. Seu rosto não demonstrava nem um traço de emoção. Não deixaria que seus rogos fizessem uma fresta nele. dessa vez não. Nunca voltaria a permitir que sua esposa ou ninguém interferisse em seu dever.

—Ajudar? —Soltou uma gargalhada para magoar—. Ao que parece é difícil pra ti compreender, mas não quero nem necessito sua ajuda. É minha esposa, Por Deus, não um de meus homens. Adverti-a que não te entremetesse. Pedi-te que nunca, sob nenhuma circunstância, aproximasse-te de novo ao broch. Sua «ajuda» pôs em grave perigo a meu clã, aos homens que estive treinando e a minha pessoa. Se não encontrarmos o tabelião, o rei Eduardo porá a minha cabeça um preço bastante alto para que inclusive meus aliados mais leais se voltem contra mim. Não tem idéia do que tem feito.

Embora Christina parecesse a ponto de desmoronar-se, ficou rígida para ouvir essas palavras.

—É verdade, dado que nunca te me dignaste dizer nada.

Tor se pugnou por manter o controle. Somente ela ousaria fazer recriminações depois do que acabava de ocorrer. Seu olhar se escureceu cortante como seu resistente tom de voz.

—E por uma boa razão, considerando o que tem feito. É justamente por isso que não queria que te implicasse. Deveria ter sido mais ardiloso e não ter revelado nada deste assunto.

A ousadia temporária de Christina veio abaixo quando começou a cair na conta da gravidade de seus atos.

—Tem todo direito de estar zangado, mas acreditava que corria perigo. Jamais teria imaginado que o irmão John tramasse algo assim. Tomei todas as precauções…

—Que obviamente não foram suficientes.

Os olhos de Christina se arrasaram em lágrimas. Inclinou-se para apoiar-se em Tor, mas ele ficou perfeitamente erguido. Tinha que fazer um esforço para não mover-se, para não sucumbir ao desejo urgente de estreitá-la entre seus braços e sacudi-la… ou beijá-la até que se fosse a dor que lhe oprimia o peito. Ele não era como os outros, maldita seja; supunha que devia ser insensível. Não era disso do que se apreciava? Não era isso o que o convertia em um grande líder e guerreiro? Apesar de tudo, o pranto de Christina corroía sua férrea determinação como o ácido.

—Juro que não voltará a ocorrer - murmurou ela.

Tor tinha que deixar bem claro como seriam exatamente as coisas a partir desse momento. Fixou nela um olhar duro e implacável.

—É obvio que não voltará a ocorrer, pois jamais te contarei uma maldita coisa mais.

Ela se separou dele, como se tivesse gritado, embora o havia dito com uma tranqüilidade glacial.

—Está zangado - sussurrou ela—. Não fala sério. —Dava a impressão de estar tentando convencer-se a si mesmo.

O olhar que lhe lançou teria gelado a lava do inferno.

—Nunca na minha vida falei mais a sério. —Tinha cometido um engano, mas estava resolvido a não repeti-lo. Era tão responsável como ela do acontecido. Tinha permitido que ela o convertesse em parte de sua pequena fantasia. Mas isso acabou—. Já te disse exatamente o que espero de ti: que fiscalize o castelo, que dê a luz a meus filhos e que deixe todo o resto em minhas mãos. Não espere nada mais que isso.

Christina estremeceu, profundamente ferida. Quem era esse homem desumano e inflexível? Nunca tinha falado dessa maneira; nem sequer na primeira ocasião em que o tinha visto tinha parecido tão frio e distante. Tão isento compaixão.

«Não fala sério — disse —. Está zangado.» Entretanto, a sombra de uma dúvida aninhou em seu coração.

Esforçou-se por lhe sustentar o olhar, decidida a não deixar-se intimidar. Tor não devia falar assim. Ela tinha errado, mas por um bom motivo, e suas intenções eram puras.

—Mereço sua ira, mas não seu desprezo. Não trabalhei de forma precipitada, nem era meu desejo que isto acontecesse. Sou vítima de um engano. Tem que saber que eu jamais faria algo para te prejudicar. —Fez uma pausa, antes de acrescentar em voz baixa—Amo-te.

Aguardou que Tor reagisse a sua declaração sincera, mas ele guardou um silêncio sepulcral, displicente, indiferente, magnânimo como um rei. O único indício de que a tinha ouvido era uma ligeira palidez em torno da boca.

Christina não esperava que ele correspondesse a seus sentimentos… ou sim?

Escapou-lhe uma lágrima. Custava-lhe falar pelo nó que tinha na garganta. Por que se estava comportando assim? Comportava-se dessa forma com todos outros, mas não com ela. Era o mesmo homem a quem tinha lido relatos na cama?

—Não faça isto. Não me separe de seu lado. Não mereço que me trate como se não significasse nada para ti. —Tentou tragar saliva, mas lhe doía—. Você não é assim.

Ele a olhou aos olhos, rebatendo-a em silêncio. Se ela tivesse percebido ira em sua expressão, teria mantido a esperança, mas no olhar frio e firme de seus olhos azul celeste não havia o menor indício de emoção. Christina retrocedeu um passo, como se o estivesse vendo pela primeira vez.

—Este é meu verdadeiro eu. Não sou seu condenado Lancelot. Isto não é uma fantasia romântica, e nada do que faça vai mudar isso, por muito boas que sejam suas intenções.

Ela soltou um grito afogado, como se Tor acabasse de lhe cravar uma adaga no coração. Seu rosto ficou lívido. Tor tinha arrojado luz sobre seus sonhos mais profundos e escuros para depois pisoteá-los. Tão transparente era Christina? Via ele suas tentativas por agradá-lo como um patética tentativa de conquistar seu coração? Encolheu-se de vergonha, pensando que talvez tivesse razão.

—Não sei a que te refere - disse por orgulho.

«Por favor, que não seja pena isso que percebo em seus olhos.»

—Crie que não me dei conta de como me olha, que não sei o que quer de mim? Mas não posso te dar o que desejas. É jovem, e tem a cabeça cheia de fantasias sobre cavalheiros e aventuras românticas. Sou um valente chefe das Highlands que só deve lealdade a seu clã.

—Então não há lugar para mim?

—Não na forma em que você deseja.

—As coisas não têm que ser assim.

Tor não moveu um só músculo do rosto.

—Sim, têm que ser assim.

—Você quer que seja - disse ela com raiva—. Quer estar sozinho para não sofrer se perder a alguém e para não ter que depender de ninguém. Começo a acreditar o que se diz de ti. Mas não é invencível. É um homem. As pessoas necessitam umas das outras, embora dêem passos em falso. Seu pai se equivocou ao te inculcar a idéia contrária. —Ao ver que tremia a mandíbula de Tor se perguntou se não tinha ido muito longe.

—Não sabe do que falas - acusou ele—. Estou seguro de que isto é um engano.

O coração deu um tombo a Christina quando compreendeu a que se referia. O engano era seu matrimônio.

Não dizia seriamente. Sem dúvida tinha tido algum desejo de casar-se com ela… ou não? Ninguém o tinha obrigado a nada. Por muito que lhe doesse, tinha que saber a verdade.

—por que te casou comigo?

Ele se voltou, e por sua atitude vacilante Christina soube que não queria responder a sua pergunta.

Sentia tal opressão no peito que mal podia respirar.

—Que importância tem isso agora? —inquiriu mordaz—. Para que manter as ilusões entre nós?

Tor lhe lançou um olhar severo, pois não tinha gostado de seu sarcasmo.

—Tu eras parte de meu acordo com o MacDonald. Casar-me contigo foi o preço que paguei em troca da paz. Embora, depois do que ocorreu hoje, é possível que perdi isso.

Christina sentiu que o coração lhe rompia em um milhão de pedacinhos que se dispersaram no chão, a seus pés.

Umas lágrimas grossas e quentes lhe escorreram pelas bochechas.

—E treinar esses homens também formava parte do trato?

Áspero e impassível, contou-lhe de maneira sucinta o que ela desejava saber desde o começo, lhe deixando meridianamente claro o que tinha posto em perigo com seus atos. Ela o escutou enquanto explicava os termos de seu acordo com o MacDonald, sua negativa inicial a adestrar aos homens e a oferta posterior de MacDonald que ele não tinha podido rechaçar.

«Nunca teve desejo de casar-se comigo.» O que o tinha feito mudar de idéia não tinha sido seu sentido da honra nem que albergasse sentimentos especiais para ela, a não ser seu dever para com seu clã. E ela tinha feito quão único Tor jamais poderia lhe perdoar: interpor-se entre seu clã e ele. Sentiu náuseas ao compreender a ameaça que tinha atraído sobre ele sem querer. Por culpa dela, a segurança do clã e todo aquilo pelo que Tor tinha lutado desde a morte de seus pais estavam em perigo.

Nunca voltaria a confiar nela. Ela sabia o muito que lhe havia custado baixar a guarda só um pouco, e que tomaria acontecido como um fracasso pessoal. Christina tornava realidade seu pior temor: que o fato de estreitar laços com alguém prejudicasse a seu clã. A promessa das últimas semanas se desvaneceu. Tor tinha se afastado dela, desta vez para sempre.

—E agora? —perguntou Christina—. Sente o mesmo que antes?

Pareceu-lhe que a determinação em seu olhar fraquejava por uns instantes, mas não foi mais que um efeito da luz das velas.

—Que importância tem isso? É minha esposa.

Foi o golpe de graça. As fantasias de Christina lhe tinham impedido de ver a realidade. Pela primeira vez, viu as coisas com claridade. Tor tinha razão: nunca poderia lhe dar o que ela queria. Sempre haveria uma parte dele que lhe estaria vedada. Embora sentisse algo por ela, jamais o reconheceria. Não a amava; nunca a amaria. Ela tinha se enganado, inventando desculpas, convencendo-se de que, debaixo aquela aparência fria, ele a queria, de que somente mantinha essa aparência para proteger-se, de que simplesmente não sabia como demonstrar seus sentimentos.

Mas se equivocava. Tentar lhe arrancar uma amostra de emoção era como tentar tirar água de uma pedra espremendo-a. Ela não pretendia encher uma taça, somente conseguir umas gotas. Mas ele nem sequer era capaz de lhe oferecer isso.

E Christina se fartou de tentar. Entregou-se a ele por completo, mas isso não tinha sido suficiente. Nunca seria.

Enxugou as lágrimas dos olhos. Assim seriam as coisas entre eles. Sempre. Nunca seria nada especial. Essa sensação não tinha sido nada a não ser fruto de sua imaginação. Tor não era seu Lancelot, a não ser um desumano chefe das Highlands que devia a seu clã.

Ouviram golpes na porta.

—Estamos preparados, capitão - disse MacSorley.

Tor se dirigiu à porta.

—Sinto muito - disse ela por última vez.

—Muito tarde para desculpar-se- replicou ele, impávido—. Se quer ajudar, reza para que encontre seu amigo antes que faça cair a ira de Eduardo sobre todos nós.

A opressão no peito de Christina aumentou enquanto o via partir, tentando gravar cada detalhe na memória, sabendo em seu coração o que sua cabeça ainda ignorava.

—Adeus… —sussurrou, ao tempo que a porta se fechava atrás dele.

Percebeu de que o havia dito com toda sinceridade. Talvez fosse inevitável. Um matrimônio apoiado no engano estava condenado desde o começo. Mas não podia continuar assim, fingindo, dando-se contra um muro de pedra. Talvez ele tivesse suavizado as barreiras entre eles, mas seguiam estando ali; sempre estariam. Sempre viveriam em mundos separados. Ela não se conformava com isso.

Queria —não, merecia— algo melhor. Tor não era o único que tinha direito a ser feliz.

O irônico era que lhe tinha aberto os olhos. Christina já não era a jovem assustada que se encolhia quando seu pai lhe levantava a mão, nem o cachorrinho amoroso que se contentava com qualquer sobra de carinho que seu marido se dignasse lhe jogar. Tinha muito que oferecer. Sabia ler e escrever, fazer cálculos mentais complexos, acondicionar um torreão escuro para convertê-lo em um lar e, sobre tudo, amar com toda sua alma. Se ele era incapaz de ver isso, ele perdia.

O pai Stephen tinha razão. Ela merecia a alguém que soubesse apreciar suas qualidades e querê-la por isso, que não lhe desse as costas cada vez que cometesse um erro. Queria ser importante para alguém. Talvez fosse uma aspiração pouco realista, mas a alternativa era muito pior. A vida que Tor podia lhe dar não só lhe romperia o coração, mas sim lhe quebraria o espírito. Ela podia viver com o coração quebrado, mas não sem sua alma.

Respirou fundo e secou as lágrimas dos olhos. Somente podia fazer uma coisa.


Capítulo 24


Christina, aninhada no birlinn, observava os ameaçadores muros de pedra do castelo do Dunvegan esfumar-se na bruma da manhã, e seu coração quebrado se desmoronou um pouco mais. Ao longo dos últimos meses, tinha chegado a sentir apego pelo velho montão de pedras que formavam o imponente castelo e pelos taciturnos ocupantes de seu grande salão. Ficaria terrivelmente com saudades.

Também sentiria muita falta de Tor. Seus olhos, que acreditava incapazes de derramar mais lágrimas, encheram-se de novo, mas ela os enxugou com determinação. Tinha tomado sua decisão e teria que ater-se a todas as conseqüências.

Acabou. Ia deixá-lo. Abandonar ao homem que amava. Ia obrigar a seu marido a respeitar sua promessa de deixá-la retirar-se ao convento de Iona, uma promessa que ela sabia que Tor não acreditava jamais que teria que cumprir. Detestava fugir desse modo, mas não estava segura de que ele mantivesse sua palavra desse-lhe oportunidade de opor-se.

Quando tinha descoberto que já havia um birlinn preparado para navegar rumo à ilha do Mull, Christina tinha pedido à tripulação que a levasse primeiro a Iona. Embora isso os obrigasse a dar uma pequena volta, era mais simples que aparelhar outra embarcação. Christina, que não tinha tido tempo de dispor de seus pertences para a partida, tinha embarcado com pouco mais que uma muda de roupa e alguns mimos pessoais. Mhairi recolheria o resto de suas coisas e as mandaria a Iona antes de retornar junto a sua família no Touchfraser. Não levou consigo seu prezado livro. O relato não fazia mais que infundir a jovem falsas esperanças e sonhos impossíveis.

Havia dito aos guardas que a acompanhavam que ia visitar sua irmã, mas sabia que não tinham acreditado de tudo. Ao contrário deles, não tinha um elmo de aço que ocultasse seus olhos inchados e seu rosto manchado de lágrimas.

Foi uma travessia rude, pois o mar estava agitado. Christina estava sentada sozinha, perto da proa, coberta com uma capa e peles, sentindo-se mais desventurada que nunca, e não pelo vento ou o frio.

Em mais de uma ocasião esteve a ponto de indicar aos guardas que virassem de volta, mas afugentava suas dúvidas sobre a conveniência de partir repetindo em seu foro interno que romper o vínculo entre eles seria o melhor para Tor também. O matrimônio não desejado por ele so lhe tinha ocasionado problemas. Talvez sua partida lhe ajudasse a sair do embrulho em que ela o tinha metido.

Não obstante, saber que sua decisão era a correta não fazia que fosse mais fácil. Uma parte dela desejava ser capaz de contentar-se com meia vida, mas Christina sabia que o que ele podia lhe oferecer nunca a satisfaria e que jamais deixaria de pressioná-lo para que lhe brindasse com algo mais. Ele, por sua parte, trataria-a cada vez mais com maior frieza até que ela acabasse por odiá-lo… e por odiar-se a si mesma.

Não, era melhor assim. Sua infelicidade e desespero desapareceriam com o tempo. Embora o certo fosse que, no momento, longe de diminuir, pioravam conforme avançava o dia e o navio se afastava do lugar mais parecido a um lar que ela tinha conhecido.

Levavam navegando algumas horas, percorrendo o trajeto inverso ao que ela tinha feito há apenas uns meses. Reconheceu alguns das ilhotas que vira durante a viagem para o norte: Rum, Eigg e Muck. Embora o céu estivesse nublado e cinza, a bruma limpou o suficiente para que de quando em quando vislumbrasse a costa escocesa a sua esquerda. Logo se encontrariam entre o Coll e Mull, e justo ao sul estaria a ilha Iona. Se o vento não amainasse, ela logo estaria instalada a salvo entre as paredes do famoso convento junto com Beatrix. Desfrutaria da segurança que procurava, mas sem as ilusões.

Tão absorta estava em seu sofrimento que demorou um momento em ver que algo ia mau. As ordens enérgicas do Murdoch, o escudeiro de Tor e capitão de sua guarda, ressonavam de forma cada vez mais premente.

—O que ocorre? —perguntou-lhe Christina ao jovem guerreiro que ia sentado no banco situado em frente ao dela.

—Estou seguro de que não é nada, milady. —Assinalou para trás, e ela alcançou a divisar as velas de dois navios ao longe—. Essas galeras estiveram nos seguindo perto de uma hora. O capitão rodeará a ilha da Staffa a toda velocidade e estou seguro que conseguiremos burlá-los.

—Parecem galeras bastante grandes - observou ela em um tom cauteloso.

—Os assaltos no mar não são freqüentes, milady. Realizamos esta rota com regularidade e rara vez sofremos contratempos.

Assaltos? Face à afirmação do homem de que certamente não era nada, Christina sentiu que lhe acelerava o pulso, arrancando-a de sua letargia. Minutos depois, Murdoch gritou aos tripulantes que se agarrassem forte, e a embarcação virou bruscamente à esquerda para circunavegar a pequena ilha com suas estranhas formações rochosas. Ela nunca tinha visto nada parecido aquelas colunas hexagonais de rocha negra, mas não dedicou um segundo às estudar, pois estava muito nervosa, olhando para trás, com a esperança de que o veleiro que os seguia passasse, e tentando evitar o pânico quando viu que continuavam atrás deles.

Embora soubesse que o guerreiro que tinha ao lado estava ocupado remando, não pôde deixar de comentar:

—Parece-me que ainda nos seguem.

Ele não passou por cima do temor que destilava sua voz. Christina advertiu que não queria assustá-la, mas tampouco subtrair a importância do que estava acontecendo.

—Tentaremos deixá-los para trás.

«Tentaremos.» Mas ela sabia tão bem como ele que somente era questão de tempo que os navios maiores lhe alcançassem. Em condições de vento forte, o birlinn era mais veloz, mas a galera tinha quase o dobro de remos.

—São piratas?

O homem torceu a boca com expressão sombria. Os navios se aproximavam e se achavam já a poucas centenas de milhas.

—Algo pior -respondeu—. Ao que parece um deles é inglês.

—O que é que querem?

Ele sacudiu a cabeça.

—Ignoro, milady.

—Todos a coberto! —bramou de repente Murdoch.

Christina se viu derrubada de um empurrão, e um teto de escudos se formou sobre sua cabeça, poucos segundos antes que ouvisse o tamborilar surdo e arrepiante das flechas que choviam sobre eles. Estava tão aflita que demorou um momento em compreender o que ocorria.

—por que nos atacam? —perguntou, mas os homens estavam muito ocupados tentando evitar a seus perseguidores e contra-atacar com suas próprias flechas para lhe responder.

—Rendeis-vos - gritou uma voz ao longe, e Christina soube que procedia de um dos navios.

Não fez falta ouvir a soez resposta do Murdoch para saber o que fariam os homens de Tor. Eles viviam para lutar. Inclusive naquele momento ela percebia sua ânsia por entrar em ação. Render-se não estava em seu caráter. Antes preferiam a morte.

Entretanto, Christina não ia permitir se podia evitar. Tinha que fazer algo.

—Não - disse, abrindo passo por entre os escudos para captar a atenção do capitão—. Façam o que lhe pede, Murdoch. Ao menos tentem averiguar o que querem.

O rosto do Murdoch se converteu em uma máscara de fúria. Saltava à vista que nunca antes tinha recebido ordens de uma mulher e queria fazer caso omisso dela. Fugir de um combate ia contra sua natureza de guerreiro, mas, por outro lado, sabia que estava obrigado a proteger a sua senhora. Christina respirou aliviada quando Murdoch afastou o olhar dela e, dirigindo-se a vozes ao navio mais próximo -que ainda estava a certa distância—, fez o que lhe pedia.

—O que ocultam filhos do Leod? —foi à resposta.

«Sabem quem somos», pensou ela. Deviam ter reconhecido a insígnia: as três pernas recobertas de malha dobradas formando um triângulo, que denotavam que o clã descendia dos reis do Man, e um birlinn negro, símbolo de sua ascendência escandinava, sobre campo de gules e azur.

—nos entreguem a metade e lhe deixaremos partir em paz - acrescentou outro homem.

«Deus santo, acreditam que transportamos riquezas! Não são mais que piratas ingleses.»

—Não temos nada que possa lhes interessar - replicou Murdoch—. Não levamos moedas nem mercadorias valiosas a bordo.

Ficou claro que seus perseguidores não tinham acreditado quando lançaram contra eles outra chuva de flechas. Christina se viu empurrada de novo sob o toldo de escudos e já não voltou a intervir. Não serviria de nada, pois estavam decididos a roubar. Seu pai falava freqüentemente das atrocidades dos ingleses, assim por que se surpreendia?

Notou que o navio se movia de novo enquanto os homens manobravam para encontrar a rajada de vento que lhe permitisse ficar fora do alcance das flechas e escapar.

Desde debaixo dos escudos, Christina ouviu gemer a um homem que tinha perto e soube que uma das flechas dos assaltantes tinha dado no alvo.

Afogou um grito de espanto tapando a boca com o punho. Estava tão assustada que não sabia o que fazer. Com o rosto apoiado sobre os joelhos, tentou isolar do fragor horrível que a rodeava. Esteve a ponto de cair pela amurada quando a embarcação foi investida pelo outro lado. O estrondo soava cada vez mais forte; mais gritos, mais flecha, o som de um gancho de ferro de metal jogado para prender os dois navios entre si, seguido pelo balanço provocado pelo movimento dos homens e o entrechocar de espadas quando a batalha começou em um estrépito de aço e morte. Christina via a muralha de pernas dos homens que a rodeavam, e sabia que morreriam protegendo-a.

Os guardas de seu marido figuravam entre os melhores guerreiros das ilhas, mas eram somente uma vintena, enquanto que o inimigo os quadruplicava em número, a julgar pelo tamanho de suas embarcações.

Os sons eram dilaceradores: gemidos de dor, rangidos de ossos, alaridos de agonia. A bílis lhe subiu pela garganta enquanto os homens caíam em torno dela. Homens que conhecia. O terror se apropriou de Christina quase por completo. Aquilo era muito.

Tinha vontade de desmaiar, mas não queria envergonhar aqueles homens que pereciam enquanto tentavam mantê-la a salvo. Em troca, esforçou-se por não cair no atordoamento.

Cada minuto que passava era insuportável. Embora os guardas do MacLeod lutassem com galhardia, acabaram por sucumbir ante a superioridade numérica do inimigo. Quão guerreiros a rodeavam começaram a cair. Olhou a Murdoch nos olhos quando se desabou sobre ela e compreendeu sua intenção. Pugnando por reprimir um grito, ocultou-se sob o escudo de seu corpo ensangüentado.

Ainda pior que os sons da batalha foi o silêncio que se impôs quando terminou, pois sabia que todos tinham morrido.

—Afastem os cadáveres - ouviu dizer um homem—. Vejamos o que é o que estavam tão ansiosos por proteger.

Os últimos esforços do Murdoch tinham sido inúteis. Um momento depois, alguém a tirou de forma brusca de seu esconderijo.

—É uma moça - disse o homem, lhe tirando o capuz—. E bastante bonita, por certo.

Um aroma denso como a cobre a afligiu. Deu uma olhada em redor, aos restos da matança e os rostos conhecidos foi demais e vomitou sobre as grebas e os escarpes de aço do homem que a segurava.

Este proferiu um juramento e atirou uma bofetada com o dorso da mão.

—Zorra estúpida!

—Como te chamas?

Christina limpou a boca e levantou o olhar para o homem que tinha falado. Sob a viseira de aço de seu elmo, seus olhos se cravaram nela como duas adagas negras. Pela qualidade de sua malha e a sobreveste fina que levava sobre o peito, supôs que era o cabeça dos ingleses.

Ela ergueu o queixo e lhe sustentou o olhar.

—Christina, esposa do chefe dos MacLeod. —O nome do temido chefe não impressionou absolutamente ao altivo inglês. O desdém que destilava seu rosto cruel e curtido não impediu a Christina acrescentar—: Com que autoridade assalta este navio e assassinam estes homens?

A julgar pela expressão do homem, não tinha gostado de seu tom desafiante.

—a de Eduardo, rei da Inglaterra, senhor da Irlanda, príncipe de Gales e duque da Aquitania pela graça de Deus. Seus homens opuseram resistência - mentiu descaradamente. Afastou sua atenção dela e se dirigiu ao soldado que a tinha agarrado pelo braço—. Não lhe entretenham muito. —O líder inglês percorreu com o olhar a outros homens que o rodeavam—. E o mesmo digo a todo aquele que deseje uma parte dos despojos. Aqui não há nada. Quando tiverem terminado, queimem tudo.

Christina conteve outra arcada ao compreender o que pretendiam fazer. Iriam violentá-la e logo matá-la, a fim de que não ficassem testemunhas de seu crime. A esposa de um chefe das Highlands não valia nada para eles. Néscios! Tor os caçariam quando se inteirasse do ocorrido.

A segunda nave tinha ancorado ao outro lado do birlinn. Ao fixar-se na roupa e as armaduras de seus ocupantes, Christina viu que se tratava de highlanders. Escrutinou aqueles rostos ásperos e selvagens em busca do menor raio de piedade, mas não o encontrou. De repente um homem deu um passo adiante. Seu olhar era penetrante. Parecia familiar.

—Acredito que a moça pode nos ser útil, capitão.

O líder dos ingleses se voltou para quem tinha falado com somente um pouco menos de desprezo do que tinha mostrado a ela.

—E que é você?

—Arthur Campbell.

—Campbell? Não é seu irmão um dos companheiros de Bruce?

Sem dúvida por isso o tinha reconhecido Christina. Recordava a sir Colin Campbell do Finlaggan. Arthur, embora vinte anos mais jovem que seu diferente irmão, assemelhava-se a ele.

—Sim, e outros dois irmãos e eu somos leais ao senhor do Badenoch. Comyn o Vermelho.

Não era incomum que as famílias estivessem divididas. O capitão inglês aceitou sua explicação, e Campbell prosseguiu: —A moça se casou recentemente com o chefe dos MacLeod; um matrimônio por amor, conforme dizem. —Ela reprimiu uma gargalhada aguda de histeria que lhe subiu à garganta—. Estará ansioso por recuperá-la. Possivelmente ela possa nos ajudar a persuadi-lo de que nossa causa é justa. —O capitão não parecia muito convencido. Como a maioria dos ingleses, cometia o engano de subestimar aos «bárbaros» das Highlands—. Também é a filha de Andrew Fraser - adicionou.

Isso fez que o capitão prestasse atenção. Olhou-a, entreabrindo os olhos.

—É isso certo?

Christina assentiu, depois de decidir que o mais prudente era não mencionar que a ameaça de acabar com sua vida não daria muito resultado com seu pai.

Um sorriso se estendeu lentamente em seu rosto cruel.

—tragam-me isso - ordenou ao homem que ainda a segurava—. Talvez possa nos ser útil, apesar de tudo. E se não… —deu de ombros.

Ela soube o que significava esse gesto.

Embora sem dúvida a motivação de Arthur Campbell não tinha sido ajudá-la, lhe dedicou um olhar de gratidão, mas ele já tinha desaparecido entre a multidão de guardas que tripulavam a segunda galera. Entretanto, sua oportuna intervenção não tinha sido mais que uma salvação temporária; seu pai não moveria um dedo para socorrê-la. Quanto a Tor…

Não lhe restava dúvida de que sairia em sua busca. Embora não a amasse, consideraria que era seu dever protegê-la. Mas descobriria a tempo o que tinha acontecido?

*

O êxito deveria ter melhor sabor na sua boca. A equipe havia retornado a demonstrar que suas habilidades eram do que mais valiosas, da perícia do Lamont como rastreador até os dotes de marinheiro do MacSorley, passando pelos instintos do MacRuairi, que os tinham levado a dirigir-se para o Dunstaffnage. Tor duvidava que tivesse conseguido sem eles. Apesar de tudo, durante a viagem - inclusive quando tinham alcançado ao irmão John e MacRuairi o tinha «persuadido» de que lhe revelasse para quem trabalhava— Tor não podia desterrar a tristeza que o envolvia como uma nuvem negra.

A intromissão de Christina poderia ter estragado tudo, mas ela so queria ajudar. Ele não podia reprovar-lhe. Tinham-na enganado e simplesmente tinha tentado fazer o correto. A culpa era dele, por lhe contar mais do que devia. Não permitiria que isso voltasse a ocorrer. Faria o que tivesse que fazer. Repetiu a si mesmo inumeráveis vezes. Por que não podia deixar de ver em sua mente a expressão abatida de Christina?

Afrouxou a cota, tentando aliviar o persistente desconforto que sentia no peito.

Queria deixar para trás o passado. Quando os homens partissem, ele esperava poder virar a página e voltar para um certo estado de normalidade…, se é que tal coisa era possível com Christina. Nada tinha sido normal do momento em que tinha pousado os olhos nela pela primeira vez.

Duas noites depois de sua partida, Tor subiu a escada do molhe, depois de ter coroado sua missão com um êxito terminante. Tinha impedido que o tabelião divulgasse a informação e tinha averiguado quem era o responsável pelos últimos ataques lançados contra Dunvegan. John MacDougall do Lorne ganhou um inimigo poderoso, e Angus Og MacDonald tinha um novo aliado contra seu traiçoeiro parente. Tor já não se manteria à margem do conflito entre os dois influentes clãs ilhéus.

Enquanto se aproximava do grande salão, pensava no que diria para sua esposa para acabar com a discórdia entre eles, mas imediatamente intuiu que algo ia mau. O lugar estava muito escuro, muito tranqüilo. Era como se um pano mortuário cobrisse tudo.

Rhuairi e Colyne foram a seu encontro a passo veloz. Ao ver sua expressão, ele soube que foram lhe dar uma má notícia.

—O que acontece? —quis saber.

Eles se olharam, nervosos, mas Colyne foi o primeiro em falar.

—Trata-se da senhora, RI tuath.

Um calafrio lhe percorreu as costas. Obrigou-se a manter um tom sereno, Apesar de que todos seus músculos se esticaram em um estado de máxima alerta.

—Está doente?

Colyne sacudiu a cabeça.

—Não, chefe - respondeu Rhuairi—. Se foi.

Zumbiram-lhe os ouvidos como se alguém acabasse de lhe golpear o elmo com uma espada. Demorou uns momentos em compreender o que o senescal havia dito. Agarrou ao Rhuairi pelo broche de seu brat de quadros.

—Como que se foi?

Tor escutou a explicação do senescal de que ela partiu na companhia dos homens que se dirigiam ao Mull com uma mescla de incredulidade e um pânico crescente conforme assimilava o ocorrido. Christina tinha aproveitado sua estúpida promessa de permitir que se retirasse a um convento. A ele jamais teria passado pela cabeça que ela chegaria a fazê-lo algum dia, embora em realidade não soubesse por que. Tinha-lhe dado uma saída; por que lhe surpreendia que ela a tivesse utilizado?

Deus sabia que não lhe tinha dado nenhuma razão para ficar. Ela não tinha feito outra coisa que tentar agradá-lo desde que se casaram. Tinha-lhe entregue seu coração, e não tinha dado nada em troca. Comportou-se como um bastardo insensível e tinha acabado por afugentá-la.

Estava sozinho. Não era isso o que queria? Não sentir nada a não ser um vazio em seu interior? Mas não era um vazio o que sentia, a não ser uma dor aguda e lacerante. Sentia-se como se acabassem de lhe cravar uma espada no peito e lhe tivessem esmigalhado as vísceras.

Uma vida inteira de solidão se abria ante ele. Uma vida em que somente teriam a guerra e suas responsabilidades para com seu clã. Uma vida de infelicidade.

Deus santo, o que tinha feito?

Deveria estar furioso porque ela se atrevera a abandoná-lo. Os highlanders eram célebres por seu orgulho, e ele não era uma exceção. Entretanto, unicamente podia pensar no dano que devia ter feito para que chegasse a esse extremo. Sentia-se doente somente de pensar. Tinha que recuperá-la. Não porque fosse sua mulher - porque lhe pertencesse —mas sim porque seu lugar era ali a seu lado.

Não sabia por que albergava sentimentos tão intensos, mas teria que demonstrar-lhe custasse o que custasse.

Continuou caminhando até o salão, com os dois homens seguindo-o a toda pressa. Uns poucos membros do clã dormiam ao calor do fogo, mas a maioria estava sentada em silencio em torno das longas mesas. O ambiente estava tal como ele tinha deixado, mas parecia diferente. Lôbrega, como se toda a alegria se apagou. Seus cães ergueram a cabeça quando entrou. Em vez de correr a recebê-lo, dirigiram-lhe um olhar de desilusão e apoiaram de novo a cabeça sobre suas patas.

—Onde está Murdoch? —perguntou com impaciência.

Ambos os homens o olharam, desanimados. Colyne sacudiu a cabeça.

—Com os homens que foram zarpar para o Mull. Não retornaram.

—Como que não retornaram? —estalou Tor—. Até tendo em conta o tempo acrescentado da viagem a Iona, deveriam ter retornado ontem.

Nenhum dos dois respondeu. De repente, o estômago de Tor deu um tombo, como se tivesse tragado um bocado de carne putrefata. O pânico começou a crescer em seu interior, mas o reprimiu. Christina estava bem. Tinha que haver uma explicação. Mas Rhuairi não tinha terminado.

—Chegou isto para você faz menos de uma hora. O mensageiro disse que ninguém devia vê-lo exceto você.

Tor o abriu, atendido por uma negra premonição.

Parou-lhe o coração e seu rosto ficou lívido quando leu as palavras escritas na parte de pergaminho, palavras que iriam mudar sua a vida.

«Homens mortos. Os ingleses capturaram a sua dama. Dumfries. Não demorem.»

«Não demorem.» Tinham assassinado seus homens e tinham a intenção de matar a ela também.

A perda de seus homens o punha furioso. Tinha vontades de estrangular a alguém. Mas ao pensar que Christina corria perigo…

A bílis lhe queimou a garganta. Embora sempre tivesse acreditado que não tinha medo de nada, um medo maior que jamais sentira se deu procuração dele; um medo escuro que lhe consumia a alma e corroía como o ácido a cobertura de aço de seu coração. Sentia-se como em carne viva. Nu. E mais apavorado do que estivera em toda sua vida.

Se inteirar-se da ida de Christina o tinha arrancado de seu estupor emocional, a notícia de que tinha caído prisioneira dos ingleses foi como um brilho de lucidez que o obrigou a aceitar a verdade.

Amava-a.

Muito tarde compreendeu o insensato que tinha sido. Sua obstinação em orgulhar-se por sua crença de que era imune às emoções tinha impedido de ver o que estava ali desde o começo. Essa era a razão pela que nunca deixava de pensar nela. A razão pela que procurava pretextos para passar tempo em sua companhia. A razão pela que lhe fazer o amor provocava uma sensação tão diferente. Era o que fazia que se sentisse feliz simplesmente ao estreitá-la entre seus braços durante horas e escutar sua voz enquanto lia essas ridículas histórias românticas. Era o motivo pelo que desejava despertar a seu lado todos os dias pelo resto de sua vida. Era o motivo pelo que lhe saltava o coração quando entrava em um aposento e ela levantava o olhar para ele, com um amplo sorriso desenhando-se o no rosto.

Ela havia devolvido a calidez a sua vida, tinha quebrado a muralha de gelo que tinha erigido em seu interior e mergulhou até o mais profundo para encontrar emoções que levavam muito tempo enterradas.

Mas talvez já não tivesse ocasião de dizer-lhe.

Imagens longamente reprimidas desfilaram ante seus olhos. O corpo nu e maltratado de sua mãe coberto de hematomas e sangue, com uma expressão de terror fixada para sempre em seu olhar. E logo recordou o resto: como tinha se jogado sobre ela e se negara a permitir que os homens de seu pai a levassem; quanto tinha chorado; como a dor o tinha abrasado e destroçado por dentro, igual a agora.

Não podia ocorrer isso a ela também. A idéia de não voltar a vê-la jamais…, de não voltar a tocá-la…, de não aspirar nunca mais seu aroma suave e floral era insuportável. Não podia perdê-la.

Algo estalou em seu interior. Raiva. Loucura. Uma determinação obsessiva por encontrá-la e devolver o golpe com a espada da vingança. Jurou que encontraria a cada um dos responsáveis pelo assassinato de seus homens, e se haviam tocado um só cabelo da sedosa e negra cabeleira de Christina, asseguraria-se de que sofressem uma morte lenta e dolorosa.

Os escudeiros de Eduardo tinham cometido um engano de fatais conseqüências. Ao matar aos homens de Tor e capturar a sua esposa, os ingleses tinham feito que a guerra da Escócia passasse a ser a guerra de Tor.

O caminho que devia seguir estava claro. De momento começou a fazer preparativos para reunir-se com os homens na broch. Necessitaria-os se queria ter alguma possibilidade de resgatar Christina. Surpreendentemente, reconhecer isto para seus adentros não lhe custou o menor esforço. Antes de partir, entregou ao Rhuairi uma mensagem breve para que o despachasse ao MacDonald: «Estamos preparados».

Tinha tomado uma decisão. Não haveria volta atrás.


—Peço-lhe desculpas pelas maneiras do capitão, lady Christina. Ao que parece se excedeu um pouco em seu zelo por lhe interrogar.

Um pouco? Christina olhou fixamente ao comandante inglês ricamente vestido e impecavelmente arrumado, que estava sentado de frente a ela nos luxuosos aposentos principais do castelo do Dumfries. Seus olhos delatavam que não o lamentava absolutamente. Entretanto, bater em uma mulher —embora fosse escocesa— era pouco cavalheiresco. Lorde Seagrave, com sua sobreveste impoluta bordada em branco e dourado e sua malha reluzente, deu-lhe a impressão de ser o tipo de homem a quem não gostava de manchar as mãos com os aspectos mais desagradáveis de suas responsabilidades como comandante da guarnição inglesa no castelo do Dumfries, no Galloway. Perto de cinqüenta anos, era um dos comandantes mais velhos do rei em Escócia e tinha participado de quase todas as lutas principais da última década.

Embora tivesse vontade de lhe espetar que guardasse suas desculpas e lhe recriminar que tivessem assaltado seu navio sem motivo e assassinado a todos aqueles homens, Christina sabia que para proteger a seu marido e a sua família teria que seguir interpretando o papel de rapariga assustada e sorrindo como uma parva, que era o que tinha feito no momento de sua captura. Os últimos dois dias tinham sido os mais longos de sua vida. Horrorizada pela matança gratuita dos homens de seu marido, tinha vivido a cada segundo temerosa de que mudassem de idéia. Tinha que sobreviver durante o tempo suficiente para informar a alguém do acontecido. Era imprescindível vingar aquelas mortes.

O capitão inglês tinha mitigado o tédio da longa travessia por mar interrogando-a sobre as atividades de seu pai e seu marido. Quando não gostava da resposta, golpeava-a. Sua arrogância, não obstante, tinha virado em favor de Christina, pois era evidente que na realidade não acreditava que ela possuísse informação valiosa. A maioria dos homens considerava as mulheres seres inferiores, e os ingleses, com seu altivo sentimento de superioridade, eram ainda piores.

Christina tinha se informado de muitas mais coisas das que tinha revelado. Os homens falavam sem disfarces em sua presença, sobre tudo de noite. Ela tinha descoberto que acabavam de estar no castelo do Inverlochy, o bastão nas Highlands do senhor do Badenoch, Comyn o Vermelho. A escolta dos highlanders estava integrada em sua maior parte por membros do clã Comyn e seus parentes do clã MacDougall.

Quando chegaram ao castelo do Galloway, conduziram a Christina à praça dos ingleses no Dumfries enquanto os highlanders se dirigiam ao castelo do Dalswinton para aguardar a chegada de seu senhor.

Estava virtualmente segura de que tramavam alguma ação nefasta relacionada com o conde de Carrick, Robert de Bruce. Um dos guardas do Comyn tinha mencionado de passagem que estava preso em uma prisão inglesa, mas isso era tudo o que ela tinha conseguido ouvir. Esperava averiguar algo mais de boca de lorde Seagrave.

Resistiu o impulso de levar a mão à cara, que tinha inchada e arroxeado, e dizer a lorde Seagrave exatamente onde podia meter sua compaixão. Seus machucados desapareceriam, e suas probabilidades de escapar seriam mais altas se eles a subestimavam. Antes morreria que trair seu marido. Os últimos meses tinham despertado nela uma força e um valor que não sabia que possuía. Se mostrasses intimidada, era unicamente por interpretar um papel. Assim, em vez de replicar com raiva, agachou a cabeça e disse: —Meu pai é um súdito leal do rei. O que seu homem insinua… —inclinou-se para ele e sussurrou—: É traição.

Esperava haver dado a sua voz o toque justo de surpresa e inocência.

Ele sorriu com indulgência, como em deferência a seu simples intelecto feminino.

—Esquecestes que seu pai esteve na prisão por traição não faz muito tempo?

Christina abriu muito os olhos.

—Certamente que não, milorde. Por isso mesmo posso lhe garantir sua lealdade para o rei. Embora diga que o trataram com toda cortesia - mentiu— não tem o menor desejo de voltar. —Baixou a voz com uma atitude de cumplicidade—. Acredito que é porque sentia falta de seu uísque e os bolos de maçã de seu cozinheiro. —Franziu o sobrecenho de maneira forçada—. Tem maçãs na Inglaterra?

Quando o comandante a olhou como se fosse parva de arremate, ela esperou não ter carregado muito as tintas.

—Temo que sim.

—Então talvez fossem as ameixas. Estão demais de ricas. Têm ameixas também?

A lorde Seagrave começava a esgotar a paciência. Aquela mulher tinha intercalado seus dois interrogatórios com bate-papos sobre comida, móveis e música, para grande irritação do comandante.

—Remetemos uma mensagem a seu pai, mas não respondeu ainda. Por quê?

Estava entrando em terreno perigoso. O valor de Christina como refém diminuiria de forma considerável se os ingleses descobrissem que seu pai não iria resgatá-la.

—Talvez esteja de viagem. Retornou o mensageiro que enviaram a meu marido?

—Ainda não - disse ele com o sobrecenho enrugado.

De novo chamou alguém na porta, mas Christina se acostumou às interrupções constantes. Durante a hora que ele levava tentando interrogá-la nesse dia, um desfile de homens tinha passado pelo aposento.

Um soldado jovem entrou e entregou uma carta sem explicação alguma. Lorde Seagrave devia estar esperando-a, pois a abriu e a leu com rapidez. O sorriso matreiro que lhe arqueou os lábios despertou a curiosidade de Christina.

—partiram os homens? —perguntou lorde Seagrave.

—Não - respondeu o jovem cavalheiro—. Digo se acontecer, senhor?

Christina ficou de pé, sem dissimular sua emoção.

—Posso voltar para mi… quarto. —O quarto reduzido e sem janelas na torre mal era digna desse nome.

Ele a olhou com dureza.

—Não terminamos. Esperes aqui, em seguida volto. —Deixou-a sozinha e fechou a porta atrás de si.

Christina ficou carrancuda até que viu o pergaminho desdobrado sobre a mesa. Arrepiou-lhe o pêlo dos braços. Não acreditou em seus olhos. O comandante deixou a carta.

Com o coração desbocado, inclinou-se sobre a mesa e virou os documentos para coloca-los de cara para ela. Primeiro examinou a página superior e viu que estava escrita em francês.

Afogou um grito e a leu de novo para assegurar-se de que a tinha entendido bem. Era do Comyn o Vermelho para o rei Eduardo, e lhe informava da traição de Bruce, a prova da qual se anexava a seguir. Christina levantou apressadamente a primeira folha de pergaminho e viu um documento lacrado, em latim. Embora continha muitos detalhe, ao que parece se tratava de um pacto entre o Comyn e Bruce contra o rei Eduardo. E agora Comyn pretendia voltar-se contra Bruce e exibir seu acordo como prova de traição.

Ouvindo passos sonoros do outro lado da porta, Christina devolveu os documentos a seu lugar e se reclinou em sua cadeira, tentando serenar seu pulso e atenuar o rubor de nervosismo que lhe tingia as bochechas.

O coração pulsava com força enquanto obrigava a sua mente a responder às perguntas do comandante da forma mais desatinada possível enquanto planejava sua fuga.

Não podia esperar que a resgatassem tendo em conta que essa mensagem seria despachada a Londres a qualquer momento. Embora não conhecesse bem a área, sabia que o castelo de Bruce no Annandale, Lochmaben, encontrava-se perto. Não sabia como chegaria até ali, mas tinha que tentar.

Se essa carta chegasse às mãos do rei Eduardo, Robert Bruce logo seguiria ao Wallace à tumba.


Capítulo 25

Era uma noite perfeita para uma incursão: escura e brumosa, sem uma lua prateada que os delatasse. A escuridão seria sua primeira arma, e a velocidade e a surpresa, a segunda. Atacar depressa e com força era a principal estratégia de todos os piratas. Nem código cavalheiresco, nem regras.

Tor e a equipe, ocultos no bosque, atrás do pequeno castelo de estilo normando erguido em um montículo, aguardavam as altas horas da madrugada enquanto vigiavam todos os movimentos dos soldados ingleses.

Depois da longa viagem pelo mar do norte de Skye até Galloway, no rincão sul-ocidental da Escócia, era uma tortura para ele ter que esperar, sabendo que sua esposa se achava a somente umas centenas de pés dali. Não queria nem imaginar o que ela devia estar suportando nesse momento. Também se negava a considerar a possibilidade de que não seguisse com vida. Tinha que concentrar-se em seu encargo. Assaltar um castelo ocupado por uma guarnição inglesa inteira não era tarefa fácil.

Mas podia levar a cabo.

Era célebre o ataque surpresa por meio do qual Wallace tinha tomado a praça inglesa no castelo do Ardrossan, no Ayr, e Tor tinha decidido empregar uma tática similar. Com perto de uma vintena de homens e sem máquinas de assédio, irromper em turba pelas portas ficava descartado, assim teriam que recorrer ao sigilo e às manobras de distração.

Supunham que Christina estivesse presa na torre de pedra de planta quadrada construída no alto do montículo de terra, de quarenta pés. Para chegar até ali, teriam que atravessar as duas linhas de defesa características disse tipo de fortificação: o fosso que circundava todo o complexo e a paliçada que se levantava do outro lado.

À frente de oito homens da equipe de Bruce, cruzaria o fosso e a paliçada da parte posterior do castelo, em frente da ponte levadiça exterior. Uma vez dentro, separariam-se para procurar Christina, enquanto outros preparavam a fuga. MacRuairi estava convencido de que podia tira-la da torre quando tivessem conseguido entrar, independentemente de onde a tivessem encerrada. Ao Tor bastava jogar uma olhada a seu semblante para acreditar. Seton e Boyd também o acompanhariam. Necessitava homens acostumados no combate corpo a corpo que soubessem dar morte de forma silenciosa, com adagas ou com as mãos nuas.

Disporiam de meia hora para encontrá-la e matar aos guardas antes que Gordon e o resto da equipe atraíssem a atenção dos ingleses para eles para que os outros pudessem sair. MacSorley estaria esperando no exterior com seus guardas do clã MacLeod quando baixassem a ponte.

A luz do interior da torre se apagou quase por completo. A atividade dos soldados ingleses se reduzira. Somente um ou outro som de um animal ou o sussurro das folhagens rompia o silêncio. Tinha chegado o momento.

Tor se ajoelhou na terra e nas folhas, rodeado pelos membros da equipe, para lhe da as últimas instruções.

—Já sabes o que deve fazer, Falcão? —perguntou ao MacSorley, que encabeçaria aos do clã do MacLeod.

Tor tinha tomado um risco ao levar guerreiros adicionais, mas como precaução acrescentada se guardara de chamar os membros da equipe por seus nomes. Tinha ocorrido à idéia de utilizar nomes de guerra quando tinha ouvido Boyd empregar o apelido com que MacSorley se referia a ele ante a Christina.

O gigantesco escandinavo desdobrou um grande sorriso, e o branco de seus dentes reluziu em seu rosto com o resto sumido na escuridão.

—Sim, capitão. Ir por sua senhora e nos assegurar de que esses condenados ingleses não se esqueçam desta noite por toda sua vida.

De qualquer óptica minimamente racional, atacar uma guarnição de cem soldados ingleses com uma vintena de homens parecia uma missão suicida. Mesmo assim, Tor confiava no seu êxito. A destreza da unidade de elite de Bruce tinha superado inclusive suas próprias expectativas. Juntos formavam uma força digna de ter em conta. Sentia-se como se estivesse a ponto de viver um momento transcendental, como disposto a fazer história. Criava-se uma nova era de guerreiros, a era dos highlanders.

Esses malditos ingleses não sabiam o que os esperava.

Assaltar uma praça inglesa os converteria a todos em traidores aos olhos de Eduardo, mas eram conscientes disso quando foram à chamada de Bruce. A incógnita de que Lamberton e Bruce aprovariam ou não aquela operação precipitada e não autorizada não era algo que preocupasse ao Tor. A vida de Christina estava em jogo; ele faria o que tinha que ser feito.

Tor e os oito membros da guarda de Bruce que o acompanhavam avançaram sem fazer o menor ruído por entre as sombras para o fosso que rodeava o montículo. Por meio de gestos, indicou que colassem o corpo a terra e se mantivessem muito pegos ao chão. Quando chegaram na borda do fosso, aguardaram até certificar-se de que o sentinela no alto do montículo não pudesse vê-los antes de descer. Como era inverno, o profundo fosso continha alguns pés de água, ou, melhor dizendo, de um lodo frio e negro que desprendia um aroma mofado a plantas podres. Cuidando de proteger a pólvora do Gordon, caminharam pela lama e ao chegar ao outro extremo subiram à borda para chegar à paliçada formada por estacas bicudas.

Essa era a parte mais delicada da missão. Teriam que escalar os postes de madeira de dez pés de altura sem que os descobrissem os guardas situados no montículo, por cima deles, nem o soldado que fazia a ronda por aquela seção do recinto. Tinham escolhido um lance da paliçada oculto à vista por um volumoso edifício que se erguia no pátio exterior do castelo - provavelmente as cozinhas, a julgar pela quantidade de fumaça que tinham visto sair dali horas antes—, mas de todos os modos durante alguns minutos estariam expostos ao perigo.

Tor foi o primeiro a entrar. Lançou um gancho preso a uma corda entre dois postes e puxou a corda até que o gancho de ferro se enganchou.

O coração lhe pulsava a toda velocidade. Com os sentidos totalmente em alerta, esperou o momento certo. Quando o soldado passou, Tor subiu impulsionado pela corda, encarapitou-se nos postes e se deixou cair são e salvo do outro lado.

Estava dentro.

Quando o soldado passou de novo, sua costa encontrou com o aço da adaga do MacKay concebida especialmente com esse fim. A folha se alargava para o punho e pelo outro lado se estreitava até uma ponta aguçada que lhe atravessou a cota de malha até os pulmões. O soldado desabou aos pés de Tor sem soltar nem um gemido. MacRuairi o chamava «morte silenciosa» e tinha ensinado aos homens a encontrar o ponto exato em que cravar a arma. Era uma técnica extremamente eficaz para ações encobertas como naquela em que o som mais leve podia ter conseqüências nefastas.

Um a menos, mas ainda ficavam aproximadamente noventa e nove.

Poucos minutos depois, os outros oito homens estavam junto a ele; tinham conseguido passar ilesos por cima da paliçada.

Tor fez ao Gordon um sinal com a cabeça, e a equipe se dividiu: MacRuairi, Seton e Boyd foram com ele; MacGregor, MacLean, Lamont e MacKay foram com o Gordon.

À frente de sua equipe, Tor rodeou o montículo de terra até a parte detrás. Para acessar a torre da comemoração, teriam que arrastar-se costa acima sem que os vissem. Em vez de avançar um atrás de outro, espaçaram-se entre si de modo que, quando chegassem ao topo, estivessem em posição de matar aos guardas. Mas a sincronização era fundamental. Deviam chegar ao alto da colina e sossegar aos dois guardas que faziam ronda pelo perímetro antes que pusessem de sobreaviso aos sentinelas que custodiavam a entrada da torre que servia de moradia, em que estava Christine.

A terra e a erva seca do pequeno morro que subiam pouco a pouco, fazendo força com os cotovelos e os antebraços, estavam escorregadias e cobertas de barro. Detiveram-se uns pés do topo e se comunicaram de um homem a outro por gestos. Tor ergueu a mão: cinco, quatro, três, dois…

Saíram da escuridão e se equilibraram sobre os guardas despreparados, como seres espectrais. As facas desceram de forma inesperada e letal. Os sentinelas postos na frente da porta exterior da torre foram os seguintes. Noventa e cinco. Tor sentiu que a emoção da batalha o percorria com uma intensidade cada vez maior conforme se aproximava mais e mais a sua esposa. O plano ia dar resultado.

A seguir chegavam o salão, cheio de soldados que dormiam. Nada lhe teria agradado mais que massacrá-los a todos, mas isso teria que esperar. Primeiro tinha que tirar Christina dali. Dispunha-se a entrar na torre quando ouviu um grito procedente do pátio inferior que lhe gelou o sangue.

Amaldiçoou entre dentes, pois sabia que suas possibilidades de êxito tinham passado de boas a péssimas em um piscar de olhos. A vantagem que para eles era a escuridão e o fator surpresa se esfumou. Tor esperava com toda sua alma que o alarido não tivesse sido proferido de seus homens.

Agora, para tirar Christina do castelo, teriam que abrir caminho lutando contra a guarnição de soldados que dormia no salão, a somente alguns passos dali. A fortaleza inteira já ficava em movimento enquanto o alvoroço de baixo aumentava. Não havia tempo a perder.

Tor estava a ponto de ordenar aos homens que entrassem quando, pela extremidade do olho, viu algo que o fez deter-se.

MacRuairi também percebeu isso.

—Parece tratar-se de uma moça, capitão - sussurrou.

Com o sobrecenho franzido, Tor estudou a figura coberta com uma capa que lutava com o guarda que vigiava a porta. O pulso lhe acelerou e o coração deu um tombo repentino contra as costelas. Não se tratava de qualquer moça, mas sim de sua moça. Pelo visto sua mulher tinha decidido não esperar que a resgatassem. Por que não se admirava com isso?

Soltou um juramento e arrancou a correr escada abaixo para o pátio. Levou ambas as mãos às costas e desembainhou a espada.

Um selvagem grito de guerra brotou de seus pulmões e deixou gelados aos soldados de baixo. Um momento depois, Gordon respondeu a sua chamada com outro bramido.

*

Por sorte de Christina, os soldados ingleses gostava de beber.

Quase tinha conseguido cruzar o salão quando um soldado que ela acreditava que estava desmaiado em um estupor alcoólico a agarrou enquanto passava junto à mesa e a sentou sobre os joelhos. Christina passou a mão pela boca, tentando livrar do desagradável sabor do beijo que lhe tinha dado nos lábios. Mas supunha que deixar-se manusear um pouco por um bêbado era um preço que valia a pena pagar pela liberdade. Riu, afastando-o com um tapa com atitude brincalhona, e lhe tinha passado outra taça de vinho antes de baixar-se de seus joelhos, murmurando que tinha outras obrigações que atender.

Fez uma careta de pesar ao pensar na roupa de criada que levava. Esperava não ter batido muito forte na moça, mas tinha que estar segura de que demoraria um momento para voltar em si. Quando a criada tinha aberto a porta para lhe levar o jantar, Christina a tinha surpreendido com um golpe de candelabro na nuca. Tinha «tomado emprestada» a túnica e o brat, esperando que ninguém se fixasse em que ia arrastando os oito centímetros de saia que sobravam, e depois, com tiras de lençóis, atou os pés e mãos da criada e a amordaçou. Desse modo, embora despertasse, não poderia alertar a ninguém.

Lorde Seagrave, a quem jamais teria passado pela cabeça que uma mulher tentasse fugir, acreditava que bastaria passar o ferrolho à porta, por isso não tinha posto um guarda. Foi um descuido de que acabaria por arrepender-se.

Com a esperança de acautelar a perseguição de algum outro soldado amoroso, Christina agarrou uma bandeja e uma jarra vazia, e, fingindo que estava recolhendo as mesas, passou diretamente entre os sentinelas da entrada, baixou a escada e cruzou a ponte para o pátio inferior. Depois de desfazer-se dos objetos de cenário, escondeu-se entre as sombras atrás das cavalariças próximas às portas, esperando uma ocasião para escapulir se confundindo entre os aldeãos. Entretanto, o guarda tinha fechado as portas pouco depois de que ela chegasse. Pugnou por não cair no desespero, pois sabia que não as abririam de novo antes da manhã.

Quanto demoraria em dar conta de que escapara? alguém sentiria falta da criada? Tinha apertado o suficiente suas ataduras?

Havia tantas coisas que podiam sair mau… Rezou por que se produzisse um milagre.

Em vez disso, poucas horas depois - por culpa de um gatinho curioso com o miado mais estridente que ela jamais tinha ouvido—, descobriram-na. Por mais que se empenhasse em afugentar à molesta bola de pelo, esta retornava uma e outra vez. Um soldado viu o gato e decidiu investigar o que ocorria ao ver que o bichinho se negava a lhe fazer caso.

Ela notou que alguém a tirava com brutalidade de seu esconderijo e se encontrou frente a frente com um cavalheiro jovem. De baixa estatura e de costas largas, tinha um rosto chato e traços toscos, mas em seus olhos apreciava um brilho de inteligência. Por sorte, tinha bebido bastante vinho.

—O que fazes oculta na escuridão? —inquiriu.

Christina se esforçou por discorrer uma explicação acreditável enquanto notava os batimentos do coração de seu coração na garganta.

—Pois… —Um sorriso forçado de inocência apareceu em seus lábios enquanto pestanejava com paquera—. Vou encontrar-me com alguém.

Essa mutreta feminina fracassou estrepitosamente. O olhar do guarda se fez mais penetrante.

—Com quem?

—Com o Edward - se apressou a responder ela. Seguro que haveria algum Edward por ali. As pessoas sempre punham nomes de reis em seus filhos, e Edward Plantageneta reinava fazia mais de trinta anos.

—Edward que mais?

Cáspita! Tinha que haver mais de um, estava claro. Ao ver que ela titubeava, o guarda a arrastou até a luz de uma tocha e chamou os outros três soldados que custodiavam nas portas.

—Algum de vós conhece esta empregada?

Um deles a conhecia. Era um soldado que esteve a bordo da galera, com ela.

—É a moça que capturamos -disse— A filha de Fraser.

Não! Tendo conseguido chegar até ali, não suportava pensar que não ia conseguir. Era sua única oportunidade. Seus guardiães não voltariam a relaxar tanto as medidas de segurança. Tentou soltar-se, mas a mão do soldado a aferrava como uma tenaz.

—Por favor - suplicou—. Tenho que voltar para meus afazeres…

Um alarido aterrorizante troou o ar quente da noite. Todos se voltaram para o montículo e a torre.

Christina conteve o fôlego.

O soldado lhe soltou o braço, mas ela se aproximou de novo a ele, para proteger-se instintivamente de algo muito mais horripilante que os ingleses.

As portas do inferno se abriram para deixar sair a um exército de demônios. Os quatro guerreiros espectrais que caíram sobre eles se assemelhavam a seres de pesadelo. Vestidos de negro dos pés a cabeça para confundir-se com a noite, de uma estatura e uma musculatura sobrenaturais, baixaram a escada com passo trepidante, espadas em alto, preparados para descarregar a fúria do muito mesmo diabo com cada cutilada de seu temível aço.

Em vez de sobreveste e cota de malha, levavam espartilhos de guerra negros e saias escuras de quadros rodeadas ao corpo de forma estranha com cinturões. Sob os espantosos elmos com protetor nasal, seus rostos estavam melados, não da pintura azul de glasto dos antigos gaélicos, mas sim de cinza. Somente um brilho branco rasgava a escuridão.

«Deus bendito, os monstros estão sorrindo!»

Christina não podia afastar o olhar do aterrorizante guerreiro que dirigia o ataque relâmpago. Havia algo…

Um calafrio lhe desceu pelas costas no instante em que o identificou. Embora estivesse virtualmente irreconhecível, ela o conhecia.

Seu marido tinha ido a seu resgate.

Os ingleses não sabiam o que fazer. Enquanto os soldados permaneciam paralisados, Christina, consciente do perigo, separou-se da trajetória da investida dos guerreiros. Apenas tinha se afastado uns passos quando o caos estalou —literalmente— em torno deles.

Uma série de estampidos ensurdecedores sacudiu a noite: detonações horríveis que semeavam o terror. Ela nunca tinha ouvido nada parecido. Soavam como trovões, mas o céu estava totalmente limpo.

Ouviu o zumbido de flechas que voavam sobre sua cabeça, e os quatro soldados que vigiavam as portas caíram em rápida sucessão. Um momento depois, um guerreiro com um arco à costas saltou do telhado das cavalariças, porta se abriram, a ponte desceu, e mais guerreiros de seu marido irromperam no tumulto que reinava no pátio do castelo.

Os soldados corriam de um lado a outro, saíam dos barracões e desciam da torre para ver o que estava ocorrendo.

*

Tor e seus homens lutavam como possessos, atravessando com a espada a todo aquele que se interpor em seu caminho. A rapidez e a ferocidade do ataque eram assombrosas. Os ingleses, aturdidos, não eram rival para eles.

Christina viu perecer ao cruel capitão que tinha assassinado aos homens de Tor e a tinha mantido presa, virtualmente partido em dois por um poderoso talho da enorme espada de seu marido.

Desviou o olhar, pois não tinha estômago para presenciar a morte de ninguém, inclusive quando era merecida.

O céu se iluminou, e as chamas prenderam ao redor deles. Os animais se uniram à correria humana que tentava escapar. Christina esteve a ponto de ser atropelada por um cavalo, mas uma mão firme a levantou e a pôs fora de perigo.

Tor. Antes que Christina pudesse deitar-se em seus braços, ele a fez girar para um lado enquanto, com uma mão, atirava um golpe de espada a um soldado que se aproximou dela por trás.

Mas o caos começava a remeter. Seu marido e seus homens tinham despachado já à maioria dos soldados havia no pátio. Uma nova onda de ingleses desceu em turba a escada da torre, mas quando cruzaram a ponte sobre o fosso, os guerreiros de Tor estavam esperando-os para dar conta deles um a um. Ao precaver-se do que ocorria, alguém —certamente lorde Seagrave— deu a ordem de retirada da torre. Os homens que ficaram no pátio foram deixados a sua sorte quando a porta da torre se fechou.

Christina abraçou a seu marido, com o rosto contra seu peito, muito aliviada para que importasse que estivesse coberto de barro e imundície.

—Não estava segura de que chegasse a tempo.

Ele a afastou ligeiramente, levantou-lhe o queixo com sua mão embainhada em uma manopla e lhe deu um beijo tão selvagem e frenético que a deixou sem fôlego e atordoada por uns instantes. Entretanto, Christina não se atrevia a ter ilusões.

Ele interrompeu o beijo e a olhou aos olhos.

—Eu temia que fosse muito tarde. Encontra-te bem?

Ela assentiu, e as lágrimas apareceram em seus olhos. Uma só olhada ao Tor bastou para que todo o medo, o espanto e o desespero que tinha acumulado em seu interior nos últimos dias estalasse em uma corrente de pranto.

—foi horrível. Seus homens… —Soluçou—. O navio… Todos mortos.

Os lábios de Tor adotaram uma expressão séria sob a máscara de aço.

—Sei. Chist - a sossegou, tentando tranqüilizá-la—. Já me contará isso mais tarde. —Levantou-lhe o rosto para a luz e proferiu uma maldição ao ver os hematomas em torno da bochecha e do o olho—. Quem te fez isto? Matarei-o.

—Já o fez - repôs ela, assinalando ao capitão.

—Tenho que te tirar daqui. Está em condições de montar a cavalo?

Christina assentiu com um ardor e um nó na garganta que lhe impedia de falar.

—Bem. Um de meus homens está juntando cavalos fora da paliçada; levarei-te com ele. Estará a salvo até que terminemos aqui.

Tinha a intenção de tomar também a torre. Considerando o que os ingleses tinham feito a seus homens, ela sabia que não teria piedade.

—Não há tempo para isso. Tem que me levar até o conde de Carrick quanto antes. Rogo por que esteja no Lochmaben.

—Bruce? O que necessita dele?

Falou-lhe dos documentos que tinha lido, e não fez falta que lhe explicasse as possíveis repercussões.

—Está segura?

Christina fez um gesto afirmativo.

—Terá que interceptar aos mensageiros antes que cheguem onde está Eduardo.

—Viu-os partir?

—Isso eu creio. Dois homens partiram a cavalo antes do almoço.

—Ingleses?

Christina assentiu.

—Poderão prosseguir sua viagem com menos dificuldades que os homens do Comyn quando chegarem à fronteira.

—Eu me ocupo dos mensageiros.

Dirigiu-se a um dos guerreiros vestidos de negro e lhe disse algo. O homem reuniu a três guerreiros mais, subiram no lombo de suas cavalgaduras e puseram-se em marcha.

Uns minutos mais tarde, Christina cavalgava junto com o Tor, rapidamente, em direção ao Lochmaben.

*

Robert de Bruce, conde de Carrick e senhor do Annandale, escutou o relato de Christina com incredulidade crescente, e logo com ira mal contida. Que não pusesse em julgamento a veracidade de suas palavras confirmava que esse documento tão perigoso, o tratado que tinha assinado com o Comyn, era autêntico.

—Matarei-o - disse, com os olhos azuis escurecidos pela raiva—. Sabia que não era de confiança.

—Então por que confiaram nele? —perguntou Tor.

Semelhante desacerto não encaixava com a imagem que se formara do aspirante a governar Escócia. Bruce o tinha surpreendido. Assim que o tinha visto, Tor tinha identificado nele o único traço que teria impressionado a qualquer Highlanders: Bruce era um guerreiro. A diferença da maioria dos nobres escoceses, dava a impressão de sentir-se tão cômodo no campo de batalha como no Parlamento.

O conde tinha um olhar ardiloso e dizia as coisas sem disfarces; algo insólito para um político. Embora não restava dúvida de que era um homem orgulhoso, felizmente parecia desdenhar a pompa ao que era tão aficionada a nobreza das Lowlands. O brat forrado de pele e o pesado broche de ouro que levava a pescoço eram os únicos sinais visíveis de sua riqueza. Se tinha notado o pó e a sujeira que recobriam ao Tor e a seus homens, não tinha dado o menor indício disso, e os tinha feito passar ao salão em seguida.

Bruce baixou a voz para responder à pergunta de Tor. Embora lhe tivesse assegurado que podiam falar com inteira liberdade no salão, não era demais ser precavidos.

—Teria sido mais fácil vencer a Eduardo com uma Escócia unida. Além disso, esperava poder evitar uma guerra civil. Não acreditava capaz de confessar sua própria traição para delatar a mim. Comyn tem mais fé que eu na gratidão de Eduardo. —Olhou ao Tor com fixidez—. A quem enviaram atrás dos mensageiros?

—Aos melhores homens - respondeu ele—. Lamont encabeça a equipe; encontrarão-os.

Bruce lhe sustentou o olhar e, ao perceber que a segurança com que falava era sincera, assentiu.

—O que ides fazer, milorde? —perguntou Christina.

—Não sei - disse Bruce em um tom solene—, mas Comyn terá que prestar contas pelo que tentou hoje. —Como acima de tudo era um cavalheiro galante, Bruce deixou a um lado a ira e se inclinou sobre a mão dela para lhe plantar um casto beijo nos nódulos — Estou em dívida com você, lady Christina, uma dívida que jamais poderei lhe pagar. —voltou-se para Tor—. Espero que seu marido seja consciente de quão afortunado é por ter uma esposa que não só é bela, mas sim também possui talentos inesperados e extremamente úteis. Dissestes as palavras desse documento melhor que meus tabeliães. —Seus olhos cintilaram—. Possivelmente deveria toma-la a meu serviço.

Christina, encantada com a adulação, ruborizou-se de prazer ante a admiração sincera que destilava no rosto do conde; um rosto muito arrumado, diga-se passagem, embora deixasse de sê-lo se não lhe soltava a mão. Talvez isso de cavalheirismo não estivesses do todo mal.

—Sou consciente disso - balbuciou Tor entre dentes—. E temo que os talentos de Christina estejam reservados para seu marido.

A aspereza de seu tom fez que Christina franzisse o sobrecenhopois não compreendia o porquê de sua irritação. Bruce, pelo contrário, compreendia-o perfeitamente. Riu e lhe soltou a mão.

—Agradeço-lhe o serviço que me emprestastes hoje, moça. Se algum dia necessitarem algo, não têm mais que me pedir isso Christina ficou um pouco mais rubra e lhe devolveu o sorriso.

—Se não lhe importar, quereria apelar agora mesmo a essa generosidade que me ofereces. Um banho me sentaria uma maravilha.

—Disporei que lhe preparem isso no ato.

Christina dirigiu ao Tor um olhar inquisitivo.

—Vá -disse ele—. Eu irei em seguida.

Ela assentiu e saiu do salão depois da criada. Os dois homem a observaram afastar-se.

—saístes ganhando com nosso acordo - comentou Bruce com malícia.

Era certo, mas Tor não tinha por que dizer-lhe.

—Não me queixo.

—decidistes aceitar a encomenda.

—Com algumas condições. —Na presença de Christina tinham falado em francês, mas tinham ido inconscientemente ao gaélico quando ela se fora; outro ponto a favor de Bruce.

O conde o olhou com receio.

—Que condições?

—Obedeceremos a suas ordens, mas eu tenho que estar no comando da equipe. Para que uma guarda destas características seja eficaz, devo gozar de autonomia e de uma autoridade absoluta sobre o terreno.

Bruce refletiu durante longo momento, ao que parece não muito agradado por suas exigências.

—Assim que eu lhe digo o que necessito e vocês decidem como levá-lo a cabo?

Tor deu de ombros. Essa era uma forma de vê-lo.

Ao cabo de uns minutos mais, Bruce, a contra gosto, assentiu em sinal de consentimento.

—Não é que não esteja impressionado pelo que seus homens e vocês têm feito, mas a próxima vez procure me avisar antes de atacar uma praça inglesa.

Tor sorriu.

—Farei o possível, mas o que ocorre é que não dispúnhamos de tempo. Os ingleses tinham em seu poder um bem muito valioso para mim.

—Alguma outra condição?

—Embora meus homens e eu estejamos presos a seu código cavalheiresco, e embora lhe façamos o trabalho sujo, não obedecerei nenhuma ordem que me obrigue a matar mulheres ou meninos.

—Alegra-me ouvir isso - disse Bruce com expressão sardônica—. Embora lhe encomendarei missões perigosas e desagradáveis, dou-lhe minha palavra de que não lhe pedirei nada que não esteja disposto a fazer eu mesmo.

Surpreendentemente, Tor advertiu que falava sério. Sua admiração pelo elogiado cavalheiro cresceu grandemente. Em um princípio, a decisão de Tor de dirigir a equipe não obedecia tanto a seu desejo de unir-se a Bruce como de derrotar a Eduardo. Entretanto, o jovem conde lhe tinha causado uma magnífica impressão. Bruce não era um aristocrata de pouca subida, a não ser um guerreiro nobre decidido a recuperar um reino. A diferença de quase todos aqueles que se regiam pelas regras cavalheirescas, Bruce não assustava sujar as mãos. Era uma qualidade que seria necessária se queria ter a menor possibilidade de êxito. Para ganhar aquela guerra, teria que arrastar-se pelo barro.

Tor o olhou aos olhos.

—E Comyn? Querem que me ocupe dele?

Bruce não fingiu ter interpretado mal a pergunta. Seu caminho ao trono não só estava obstaculizado pelo rei Eduardo, mas também pelo Comyn o Vermelho, possivelmente o nobre mais poderoso daquelas terras.

—Não. Eu mesmo me encarregarei do Comyn.

Tor assentiu, consciente de que as primeiras hostilidades de uma longa guerra estavam a ponto de começar.

—Vá - disse Bruce—. Atendas a sua esposa. —Sorriu—. Embora lhe aconselho que primeiro que tome um bom banho e mudes de roupa.

Tor torceu a boca.

—Sábia recomendação. —Talvez fosse mais fácil convencer a sua esposa de que o perdoasse se não fedesse a pântano.

—E outra coisa, MacLeod. —Tor se voltou, e Bruce lhe dirigiu um olhar severo e significativo—. Estejas preparado.

—Sim, milorde - respondeu Tor com uma inclinação da cabeça—. A suas ordens.

*

Os efeitos relaxantes do banho se dissiparam quando levaram a água. Christina tinha posto uma túnica e um vestido limpos que lhe tinha emprestado a esposa de Bruce, lady Elizabeth de Burgh. Quase sem reparar na decoração luxuosa que a rodeava, aguardava ansiosa, sentada em uma cadeira frente à chaminé, secando os cabelos, sem saber o que aconteceria quando seu marido aparecesse por fim.

Mostrou-se muito aliviado ao vê-la, mas Christina intuía que devia estar furioso com ela por haver partido. Esperava poder lhe fazer compreender que não havia alternativa, que os dois estariam melhor separados. Sabia que tinha sido uma covardia abandoná-lo sem lhe dar explicações, mas aquela primeira despedida tinha sido muito dura; não tinha nenhuma vontade de dizer adeus cara a cara.

Por que Tor demorava tanto?

Quando a porta se abriu finalmente uns minutos depois, o motivo da tardança ficou evidente. Ela ficou sem fôlego e notou uma opressão tão forte no peito que era quase um ardor. igual a ela, Tor tinha tomado um banho. Seu cabelo castanho com reflexos dourados reluzia à luz do fogo, e um aroma fresco de sabão flutuava no ar quente.

Christina sentiu o coração dar um tombo. Por que tinha Tor que lhe complicar a vida estando sempre tão absurdamente arrumado?

Seus olhares se encontraram. Ela abriu a boca com a intenção de desculpar-se, mas, para sua surpresa, viu-se apanhada em um apaixonado abraço.

—Por Deus santo, Christina, deu-me um susto de morte! —Tor deu um beijo no cocuruto a sua esposa e a estreitou com mais força entre seus braços—. Acreditava que tinha te perdido…

Seu tom soava diferente. Falava com uma voz mais suave, rouca pela emoção. Ela não queria ter ilusões vãs. Nada tinha mudado. Tor tinha ido em seu resgate, mas isso era algo que já tinha feito antes. desta vez ela não se deixaria levar por suas fantasias românticas. Aquilo não significava que ele a amasse.

Aspirou profundamente, desejando reter seu aroma quente e masculino, antes de obrigar-se a si mesmo a afastar-se dele.

—Suponho que estas desejando saber o que aconteceu com seus homens - disse—. Foi espantoso. —Os olhos se encheram de lágrimas—. Todos morreram…

Tor curvou os lábios em uma expressão séria.

—Morreram fazendo aquilo para o qual estavam treinados, Christina, o que mais amavam. O objetivo na vida de um highlander é morrer em batalha. Para um guerreiro, é a máxima honra.

Christina nunca conseguiria entender. Os guerreiros eram feitos de uma massa diferente.

—me conte o que aconteceu pediu Tor com delicadeza.

Explicou-lhe que os navios os tinham seguido e os tinham assaltado sem provocação prévia. Seu marido a escutou sem interrompê-la, sorrindo ao ouvir como seus homens a tinham rodeado e a tinham protegido com seu corpo.

—Talvez se eu não tivesse…

—Não - a cortou Tor—. Teriam morrido embora não estivesse ali. Ninguém teria podido prever o que ia acontecer. Meus homens realizam essa rota várias vezes ao mês; os assaltos no mar são muito pouco freqüentes. Imagino que os MacDougall reconheceram minha insígnia e decidiram prosseguir com seus esforços por acabar comigo.

—Eram os MacDougall que estavam atrás dos ataques?

Tor assentiu.

Isso significava que…

—alcançamos ao irmão John antes que pudesse divulgar o que tinha averiguado.

—Assim é. —Graças a Deus. Ao menos ela não seria responsável por isso—. O que não sabes é que meu novo tabelião era sobrinho de John do Lorne, e que meu tabelião anterior não tinha sofrido um acidente.

Que horror! Christina mordeu o lábio; ainda lhe custava assimilar a traição de seu amigo. Ao notar que Tor a observava, levantou o olhar para ele.

—E quando o deixaram…?

Ele a olhou fixamente.

—Tinha-nos visto.

Christina fez um gesto para indicar que tinha compreendido. Não podia ser de outra maneira. O tabelião sabia ao que se expos, o que lhe aconteceria se o capturavam. Mesmo assim, o coração lhe encheu de tristeza por sua morte.

Ao perceber sua aflição, Tor lhe afastou uma mecha de cabelo do rosto e acariciou devagar sua bochecha arroxeada com o dorso do dedo.

—Não sofreu. E acredito que lamentava ter te envolvido em sua traição. Sentia um afeto autêntico por ti.

A ternura das carícias a confundiu, igual a suas palavras amáveis. Por que tinha que lhe pôr as coisas tão difíceis? Ela so queria passar o mau gole quanto antes. Afastou o rosto da mão de Tor e recuou um passo.

—Não deveria ter te deixado desse modo.

—Não, não deveria.

—Fui uma covarde por não me despedir. Mas… temia… temia que me faltassem as forças.

—por que me deixou, Tina?

Algo em sua voz fez que o coração lhe desse um salto. Não. Negava-se a imaginar sentimentos que não existiam.

—Porque não suportaria passar o resto de meus dias com alguém que jamais poderia me amar - respondeu sem olhá-lo—, que não me deixaria formar parte de sua vida porque não me quer ou não me valoriza.

—Entendo - disse ele sem alterar-se—. Se todo isso era certo, tinha motivos de sobra para partir.

Tinha? Ela cravou o olhar em seus olhos inescrutáveis. É obvio que os tinha. Tor devia ter concluído também que seu matrimônio não levava a nenhuma parte. Ardiam-lhe as vísceras. Por que doía tanto a verdade? O que haveria ao Tor fingir que se importava ao menos um pouco? Baixou o olhar para que ele não visse seus olhos chorosos. De algum modo conseguiu articular as palavras, embora cada uma delas lhe engasgasse: —Se me levar a Iona na travessia de volta, não voltarei a te incomodar.

—Temo que não posso fazer isso —repôs ele com suavidade.

Christina notava em seu interior uma dor cada vez mais intensa, como um ferro candente contra a pele em carne viva.

—É obvio. Estará ocupado com sua equipe e o conde. Possivelmente possa dispor que um navio me leve…

—Não.

A firmeza da negativa a impulsionou a olhá-lo por fim.

—Não irá a Iona - disse Tor.

Christina ficou perplexa.

—Mas jurou que se algum dia eu desejasse ir, deixaria me retirar a lona com minha irmã.

Tor deu de ombros.

—Mudei de idéia.

—Não pode. Fez um juramento.

Tor sorriu ante sua indignação. Isso era algo tão inesperado para a Christina, dadas as circunstâncias, que não sabia o que fazer. Como podia ele ser tão cruel para burlar-se dela desse modo?

Entretanto, quando se fixou em seus olhos, o que viu neles fez que seu coração deixasse de pulsar.

Aproveitando-se de seu desconcerto, lhe rodeou a cintura com o braço e a atraiu para si, moldando o corpo de Christina ao dele. Beijou-a com delicadeza, docemente, com uma emoção quase reverencial.

—Farei o que seja necessário para que permaneça a meu lado - disse.

Todo rastro de hilaridade tinha desaparecido de seu semblante, e ela leu a incerteza em seu olhar.

Mas se Tor jamais sentia incerteza por nada…

—Não te entendo.

desta vez foi ele quem se afastou. Passou os dedos pelos cabelos, que seguiam úmidos. Caíam-lhe em ondas deliciosamente por debaixo das orelhas.

—Isto não eu não entendo bem.

Ela aguardou que continuasse, não muito segura do que se referia com «isto».

Tor respirou fundo.

—Quando me dei conta de que podia te perder, foi como se algo dentro de mim mudasse de repente. Como se tudo o que acreditava saber de repente se virou do avesso.

Embora Tor parecesse estar sofrendo o inexprimível, ela não teve piedade dele.

—A que te refere?

—Desde que meus pais morreram e eu passei a ser chefe, acreditava que tinha que ser diferente, que a única maneira de cumprir meu dever para com meu clã era desterrar toda emoção. Mas ao me esforçar por conseguir, esqueci-me do que significa viver. Você devolveu a calidez a minha vida - acrescentou, lhe roçando a bochecha com a parte posterior do dedo—. Acreditava que não necessitava a ninguém, mas estava equivocado. Necessito a ti, Tina. Sem ti, não tenho nada mais que uma vida fria e vazia.

Fez uma pausa, e Christina ficou contemplando-o.

—Por ser alguém quem não se dá bem falar de seus sentimentos, está fazendo maravilhas.

Ele sorriu, aliviado.

—Então já ouviste o suficiente?

Christina negou com a cabeça.

—Sei que me levei como um imbecil. —Ela não o contradisse—. Existem coisas pelas que não tenho direito a te pedir que me perdoe. Não posso alegar nada em minha defesa salvo que estava convencido de que tinha que fazer tudo sozinho. Sei que você tentava me ajudar. Além disso, não foi a única que se deixou enganar por aquele modesto tabelião. Sim, valorizo-te. Sempre te valorizei, embora possivelmente não soubesse até que ponto. Nunca me tinha dado conta que uma mulher pudesse ser tabelião, mas demonstraste que me equivocara. Rhuairi diz que seus cálculos são impecáveis. E, depois do que tem feito hoje… Graças a ti, Bruce viverá para lutar o dia de amanhã. —O orgulho que brilhava em seus olhos não podia ser fingido—. Perdoe-me, Tina. Retorna a casa comigo e me dê outra oportunidade.

Ela tinha o coração a ponto de estalar. Não havia nada que desejasse mais que apoiar a cabeça em seu peito e render-se à esperança que lhe brindava. Mas sua mente resistia a deixar-se convencer tão facilmente. Não poderia suportar outro frio rechaço como o da última vez.

—Como posso estar segura de que não reagirá exatamente da mesma maneira quando voltar a fazer algo que te desgoste?

Tor a olhou com apreensão.

—Tem pensado me desgostar muito freqüentemente?

Ela franziu os lábios e levantou o queixo.

—Pode ser que sim. Não vou conformar sendo sua esposa unicamente no quarto. Temo que vou pôr-me exigente contigo.

—Como de exigente? —perguntou ele como se lhe estivessem arrancando um molar.

—Muito. E se acessar a retornar, as coisas serão diferentes.

Ele a olhou com expressão de abatimento.

—Não vais facilitar-me as coisas, verdade?

—Temo que não. —Tor agachou a cabeça para animá-la a continuar—. De vez em quando, talvez queira que demonstre seu afeto diante dos membros de seu clã.

Ele fez um gesto de dor.

—Seguro que isso não será nece…

—Um olhar terno, possivelmente um beijo rápido. Nada que te custe muito esforço.

—Não é você quem terá que agüentar os comentários do MacSorley junto à fogueira.

—Estou segura de que é o bastante homem para suportar —disse ela sem mostrar a menor compaixão. Os guerreiros temíveis não deviam choramingar—. E de vez em quando possivelmente goste de te dar minha opinião sobre os temas de suas conversas.

—Sempre e quando estiver de acordo comigo.

—Inclusive quando essas opiniões não coincidam com as tuas.

Tor torceu os lábios.

—Em particular poderá me contradizer quanto queira.

Christina assentiu.

—Parece-me razoável.

—É tudo? —inquiriu Tor, com o aspecto de um réu que ia caminho do patíbulo.

Ela sacudiu a cabeça e levantou o olhar para ele, esperando que sua voz não delatasse o vulnerável que se sentia.

—Exijo também seu coração.

—É teu — disse Tor sem vacilar. Christina reprimiu o impulso de mover-se.

Tor pôs cara de sofrimento.

—Me vais obrigar-me a dizer, verdade? —perguntou.

Ela fez um gesto afirmativo.

—Temo que sim. É importante que o ouça de sua boca se tiver que te acreditar.

—É uma mulher cruel.

—Cruel, não. Desumana. —Sorriu com picardia—. Aprendi com o melhor.

Então Tor fez algo que Christina jamais teria imaginado que lhe veria fazer, algo que não esqueceria em toda a vida. Seu marido, o chefe orgulhoso, o rei de seu clã, o guerreiro maior de sua época, pegou sua mão e fincou um joelho em terra, ante ela.

—Amo-te, Tina. Talvez não seja o cavalheiro pelo qual suspirava, mas se voltar para meu lado te prometo que me pugnarei por te demonstrar meu amor todos os dias do resto de nossas vidas.

As lágrimas escorregavam pelas bochechas de Christina.

—Diz de coração?

Um sorriso irônico se desenhou no arrumado rosto de Tor.

—Tendo em conta minha posição neste momento, acredita que é necessária a pergunta? —Seu sorriso se alargou—. Sim, carinho. Digo de coração. Amo-te com toda minha alma.

Ela sabia que Tor nunca tinha pronunciado essas palavras antes.

—Dará-me outra oportunidade?

Christina moveu a cabeça afirmativamente.

Com um gemido de alívio, Tor a estreitou entre seus braços e não a soltou até que demonstrou esse amor. Uma e outra vez.


Epílogo


Ah, quão nobre é a liberdade!

John Barbour,

A gestão de Roberto de Bruce


Perto da abadia do Scone,

Perthshire, 27 de março de 1306


Os primeiros raios da alvorada apareciam por cima do horizonte. Como se Deus erguesse a mão para benzer em pessoa a cerimônia, um facho de luz brilhante e alaranjada atravessara como dedos o círculo de pedras. Esse espetacular efeito se viu realçado pelo lamento assustador das gaitas de fole que fendia o ar fresco desse dia da primavera. Não importava que o monumento em si fosse pagão: sua majestosidade prevalecia sobre tais considerações. Era um vínculo com o passado remoto da Escócia, um símbolo de força e continuidade, tão misterioso como os homens que se dispunham a ajoelhar-se ante o recém coroado rei da Escócia para lhe oferecer sua lealdade… e sua vida.


Christina, que se achava entre as testemunhas da cerimônia secreta que se estava celebrando entre pedras pagãs, não acreditava que pudesse haver um marco mais apropriado. Naturalmente, seu marido teria preferido que permanecesse a salvo no Skye, mas ela não se teria perdido aquilo por nada do mundo. Ganhou com acréscimo o direito a estar ali e não pensava deixar que ele o esquecesse.

Seu descobrimento tinha dado lugar ao enfrentamento final entre o Bruce e Comyn, e, posteriormente, a aquela cerimônia. Fazia pouco mais de sete semanas, Bruce tinha matado a seu adversário, Comyn o Vermelho, em frente ao altar da igreja do Greyfriars. A cruz ardente se propagou por toda Escócia, chamando a todos seus guerreiros a unir-se sob o estandarte de Bruce. Fazia só dois dias, na abadia do Scone, cenário histórico da coroação dos reis da Escócia, Robert de Bruce tinha sido proclamado rei da Escócia, embora sem a antiga pedra do Scone, roubada pelo rei Eduardo dez anos atrás.

Havia menos testemunhas dos que Bruce esperava. Três dos nove bispos — entre eles Lamberton, o mais influente— estavam presentes, e dos treze condados, somente os senhores do Atholl, Menteith, Lennox e Mar tinham ido à convocatória. Era especialmente destacável a ausência do jovem conde do Fife, quem tinha por nascimento o direito e a obrigação de coroar aos reis da Escócia. Sem a presença do Fife, alguns poriam em julgamento a legitimidade do ato. Entretanto, o jovem conde permanecia na Inglaterra, prisioneiro do rei Eduardo, e a tentativa de levá-lo até ali tinha fracassado.


Bruce estava de pé ante a pedra maior, embelezado com as vestimentas reais e um aro de ouro na cabeça, enquanto o sol se levantava como uma auréola sobre ele.

—Não podemos esperar mais — disse ao Tor—. Teremos que seguir adiante sem eles.

—Chegarão — assegurou Tor com firmeza—. Dêem-lhe dez minutos mais.

Não fez falta nem a metade desse tempo: quando ainda não tinham transcorrido cinco minutos, três figuras apareceram sobre o topo de uma colina que se levantava para o sul, galopando para eles. Entre o estrondoso tamborilar dos cascos dos cavalos, os três recém chegados irromperam no centro do círculo.

Christina reconheceu entre aquelas figuras a dois dos homens de seu marido, um dos quais era Lachlan MacRuairi. A terceira era uma mulher. Christina sorriu ao precaver-se de que tinham completado sua missão com êxito. Embora o jovem conde do Fife não estivesse ali, sua irmã tinha ido em seu lugar.

MacRuairi se aproximou para ajudá-la a desmontar, mas a dama — uma condessa, neste caso—, lhe jogando um olhar desdenhoso, desembarcou de um salto sem lhe dar a mão. A expressão sombria no rosto do MacRuairi gelou o sangue a Christina. Depois de passar andando régio junto ao ameaçador highlander, a condessa se dirigiu a toda pressa para o rei para prostrar-se ante

ele. O capuz de sua capa caiu para trás, deixando ao descoberto longos cabelos de cor loiro platino, uma paradoxo de suavidade que contrastava com a férrea determinação de suas feições pronunciadas. Christina viu que era jovem, talvez poucos anos mais velha que ela, com uns traços marcados, mais chamativos que belos.

—Excelência - disse com uma voz rouca e transbordante de orgulho—, vim assim que me foi possível. Espero não ter chegado muito tarde.

Bruce lhe dedicou um sorriso tão cálida que Christina se perguntou se seriam certos os rumores de que no passado tinham mantido uma relação amorosa.

—Não, Bela, não é muito tarde. Nunca é muito tarde, e menos ainda quando arriscastes tanto por vir.

Bruce não era o único que estava assombrado pela valentia da jovem condessa. Lady Isabella MacDuff tinha desafiado a seu marido e ao rei para ir a aquela entrevista. E não só era a irmã do conde do Fife, mas também a esposa do conde de Buchan, John Comyn, primo do Comyn o Vermelho e seguidor leal do rei Eduardo. Christina estava convencida de que se a Eduardo lhe apresentasse a oportunidade, faria pagar caro sua ousadia à condessa.

Pela segunda vez em um par de dias, presenciou a coroação do Robert de Bruce como rei da Escócia, embora nessa ocasião fosse lady Isabella quem lhe rodeou o aro de ouro à cabeça.


—Beannachd Do Righ Alban — disse a condessa quando teve terminado. «Que Deus abençõe ao rei da Escócia.»

Mais tarde, levaram rapidamente à condessa rebelde ao palácio para que se reunisse com a esposa e as irmãs de Bruce.

Ao ir a cavalo ao encontro de Bruce, Isabella MacDuff tinha escolhido seu caminho e já não poderia retornar ao lado de seu marido nem da filha que tinha deixado pra trás. De forma inconsciente, Christina levou a mão ao ventre, incapaz de imaginar-se tamanho sacrifício. Embora tivesse confirmado suas suspeitas fazia somente uns dias, já albergava um profundo carinho para o menino que estava gerando.

Por fim, chegou o momento da cerimônia que ela estivera esperando.

Um por um, os guerreiros de elite da guarda de highlanders de Bruce saíram à frente. Inclusive à luz do dia apresentavam um aspecto temível. Se não os tivesse conhecido no transcurso dos últimos dois meses, Christina teria acreditado que não eram reais, a não ser personagens míticos ou produtos de sua imaginação. Todos vestidos de negro e com seu elmo escuro, cujo protetor nasal lhe tampava boa parte do rosto, os guerreiros secretos foram chamados um após o outro por seus nomes códigos para que se ajoelhassem ante a enorme espada de Bruce. O apelido de MacSorley era «Falcão»; o de MacRuairi, «Víbora»; o de MacKay, «Santo»; o de Boyd, «Incursionador»; o de Lamont, «Caçador»; o de MacLean, «Golpeador»; o de MacGregor, «Flecha»; o de Seton, «Dragão», e o de Gordon, «Templário».


O último guerreiro do grupo era o que ela esteve esperando. Os homens se negaram a lhe revelar que nome tinham decidido pôr em seu marido.

—Chefe — chamou Bruce.

Christina sentiu que o coração lhe dava um tombo, comovida pela grande honra que os guerreiros tinham conferido a seu marido. Embora procedessem de clãs diferentes, Tor os tinha unido para formar um novo: MacLeomhann, «filho do Leão». Seria um clã que não estaria apoiado no parentesco, e sim em um objetivo comum: a liberdade e —como simbolizava a nova tatuagem de um leão rampante que seu marido luzia no braço— a restauração de um escocês no trono da Escócia.

Christina viu relampejar os olhos de seu marido sob o aço de seu elmo e soube que ouvir seu apelido também tinha emocionado a ele.

Com um nó na garganta, Christina observou a seu marido avançar e prostrar-se ante seu rei. Nunca se havia sentido tão orgulhosa dele. Era consciente do perigo que corria, mas a aventura em que ele e seus homens estavam a ponto de embarcar-se mudaria o rumo da história. Manter em segredo suas atividades seria complicado, mas por sorte ele tinha um irmão gêmeo que poderia ocupar seu lugar enquanto estivesse longe de casa.

«longe de casa.» Ambos teriam que fazer sacrifícios nos altares daquela guerra.

Mas quando Tor agachou a cabeça e a folha da espada de Bruce lhe tocou o ombro, Christina soube que tinha encontrado algo muito melhor que o cavalheiro de seus sonhos; tinha encontrado a um highlander que tinha conquistado seu coração e um amor que duraria toda a vida.

Os dez guerreiros formaram um círculo em torno de seu rei. Com as espadas em alto por cima de sua cabeça, gritaram: —Airson an Leomhann! —«Pelo Leão!», uma divisa que acabaria por semear o medo no coração de muitos homens.

A operação Leão Rampante30 tinha começado.


Fim


Nota da Autora A maioria dos personagens principais da história estão baseados livremente em figuras históricas reais. «Tor» foi o primeiro chefe e fundador do clã MacLeod (e sexto bisavô de Rory MacLeod, de ‘O Highlander Indomável’ ). Entretanto, em princípios do século XIV, os clãs tal e como os concebemos hoje em dia estavam ainda em matilhas. Inclusive o termo «highlander» é provavelmente um anacronismo — segundo o dicionário Oxford, a palavra highlandman aparece pela primeira vez em um texto por volta do ano 1425—, mas tanto autores de ficção (Nigel Tranter) como de não ficção (G. W. S. Barrow) empregam-na no mesmo contexto histórico. Suponho que, igual a mim, chegaram à conclusão de que não havia uma alternativa melhor. Por outro lado, que graça teria ler uma novela romântica ambientada em Escócia em que não aparece nenhum highlander?

Os dois ramos do clã MacLeod, os MacLeod de Harris e os MacLeod de Lewis, são conhecidos respectivamente como «Siol Thormoid» e «Siol Thorcuil» («semente de Tormod» e «semente de Torquil», em sentido literal). As últimas investigações sobre a genealogia dos MacLeod desmentem a crença anterior de que Tormod e Torquil eram irmãos, e em troca parecem indicar que Torquil foi neto de Tormod (e filho de Murdoch). Setecentos anos depois, é impossível riscar a genealogia com exatidão. Decidi me ater à versão tradicional, tanto por simplicidade como porque é a que mantém o chefe atual do clã MacLeod no lugar da Web de Dunvegan. De forma similar, a descendência de Tor por linha paterna do rei da Noruega e do rei de Man descrita no primeiro capítulo também está simplificada em grande medida e é objeto de controvérsia.

A maioria dos genealogistas coincide em que Tor se casou duas vezes e em que sua segunda esposa foi Christina Fraser, irmã do Alexander (seguidor de Bruce, a quem estava muito unido, e que mais tarde se desposaria sua irmã Mary) e de Simon, o primeiro senhor de Lovat. O pai de Christina esteve detido na Inglaterra durante uma temporada, mas diferente do que se conta na novela, sua família se encontrava ali com ele. Cabe supor que Christina e seus irmãos passaram um tempo na corte inglesa.

As alianças forjadas pelo Tor através do matrimônio ilustram à perfeição a mudança que se estava produzindo naquela época nas ilhas Ocidentais, que eram um reino marítimo independente de estar sob o domínio da Escócia. O primeiro enlace de Tor foi com uma família influente da costa ocidental, e o segundo com a filha de um nobre escocês.

O ataque de Skye por parte do conde do Ross ocorreu em realidade duas décadas antes da novela, em 1262. Foi tão brutal como o hei descrito, assassinato de meninos incluído. A morte dos pais de Tor durante a incursão, não obstante, é um fato fictício.

Segundo algumas lendas, Torquil MacLeod se fez com suas terras no Lewis matando a todos os membros varões do clã Nicolson (afogando-os no Minch) e casando-se depois com a filha herdeira. Como supus que isto seria algo excessivo para o gosto da maioria dos leitores, decidi dar um toque mais romântico à história.

O trasfondo político da primeira guerra da Independência da Escócia é, por dizer com suavidade, extremamente complicado. Aos interessados em conhecer mais a fundo aquela época, recomendo encarecidamente o livro Robert de Bruce do G. W. S. Barrow (Edinburgh University Press, 2005). Para quem quer ler uma série de novelas históricas e amenas ambientadas nesse período The Bruce Trilogy do Nigel Tranter (Hodder Headline, 1985); é um clássico.

A relação entre Bruce e Wallace foi muito mais complexa que a que descrevo no livro. Ambos desejavam expulsar aos ingleses da Escócia, mas Wallace aspirava a restaurar no trono à família Balliol, enquanto que Bruce queria a coroa para si. Tal como assinala Tor quando o critica no primeiro capítulo, Bruce se passava repetidamente do bando dos «patriotas» ao dos ingleses e vice versa. No geral, seus atos podem explicar-se em função de quem apoiavam os Balliol/Comyn; normalmente ele estava no lado contrário.

Passei nas pontas dos pés pelo que é provavelmente o momento mais importante na vida de Bruce: o assassinato de seu rival, Comyn o Vermelho, ante o altar da igreja do Greyfriars. Os relatos de quão feitos culminaram com o assassinato diferem enormemente entre si. Uma das versões «românticas» (hoje desacreditada) fala de um pacto com o Comyn e de mensageiros que levavam a Eduardo prova da traição de Bruce, mas que foram interceptados. Decidi aproveitar esta história porque minha heroína encaixava bem nela, mas também porque me encontrei com o mesmo problema que muitos dos primeiros cronistas da vida de Bruce: como explicar o ato decididamente anti heroico de um grande herói. Era evidente que Comyn se interpunha entre o Bruce e o trono, mas embora tira-lo meio era «necessário», o assassinato de um rival não causa boa impressão, olhe como se olhe. O fato de tê-lo matado em uma igreja e de ter violado com isso seu direito de asilo agravava muito as coisas. Por causa deste crime, Bruce esteve excomungado durante quase vinte anos. Escócia ficou debaixo de interdição também durante um tempo.

O assalto ao castelo do Dumfries se produziu em realidade depois de que Bruce matasse a Comyn, não antes, como acontece na novela. Atacar Dumfries foi o primeiro ato de rebeldia de Bruce contra o rei Eduardo. O governador do castelo naquela época era sir Richard Siward, não Seagrave. Entretanto, é verdade que Seagrave esteve destinado na Escócia durante anos.

Uma das maiores lacunas em meu conhecimento da história daquela época era a importância real que tiveram os descendentes do rei Somerled: os MacDonald (senhores de Islay), os MacRuairi (senhores do Garmoran) e os MacDougall (senhores de Argyll). «MacSorley» é o nome com que se conhece coletivamente aos descendentes de Somerled. Sabia da importância dos MacDonald (mais tarde senhores das Ilhas), mas desconhecia por completo a dos MacRuairi e os MacDougall. Estes últimos eram certamente o clã mais poderoso naquela época, mas foram a menos guerras de Independência. Nossos velhos amigos, os Campbell, foram os mais beneficiados com sua desgraça. Os MacRuairi desapareceram poucas décadas mais tarde.

Contava Bruce de verdade com «forças especiais», uma guarda de highlanders que utilizava como exército pessoal? A resposta breve é não, mas existem alguns paralelismos interessantes. As semelhanças com uma unidade de forças especiais são fictícias, mas é verdade que Bruce tinha uma «mesnada» ou séquito pessoal ao que pertenciam Robert Boyd e partidários deles como Christopher Seton, Alexander Fraser (irmão de Christina), Thomas Randolf, Edward Bruce e Neil Campbell. Este último, junto com Alexander Seton e Thomas Há, assinou um documento no que se comprometia a defender e apoiar Bruce até o final. Em um desses descobrimentos fantásticos que se fazem por acaso, encontrei uma referência ao Donald», filho de Alistair (em quem está apoiado o personagem de MacSorley), que dirigiu a um grupo seleto de highlanders (uma «tropa de ilhéus»), por ordem de Angus Og, com o fim de ajudar e proteger Bruce em 1306. Impressionante, não é?

O que está claro é que, já no início, Bruce reconheceu a importância das Highlands Ocidentais. Na transcendental batalha de Bannockburn, em 1314, Bruce lutou contra os ingleses à frente de uma divisão de highlanders e ilhéus. Em teoria, muitos dos membros da «Guarda das Highlands» combateram ao seu lado (incluindo Tor). E quando Bruce viveu seu momento mais difícil em sua luta por ocupar o trono, foram os highlanders e os ilhéus que foram em sua ajuda. Mas isso já é parte de outra história.

 

 

 

Notas


[1] O bìrlinn, vulgarmente conhecido como a fhada de longa duração (“Navio de longa duração”), foi construído de tijolo e pode ser navegado ou remado. It had a single mast with a square sail. Tinha um único mastro com uma vela quadrangular. Smaller vessels of this type might have as few as 12 oars, with the larger having as many as 40. As embarcações menores deste tipo pode ter apenas 12 remos, e o maior ter tantos como 40. For over 400 years, down to the 17th century, the bìrlinn or long-fhada was the dominant vessel in the Hebrides. Por mais de 400 anos, até o século 17, o bìrlinn ou fhada longa era a embarcação dominante nas Hébridas
[2] Chrétien de Troyes (c. 1135 – c. 1191) foi um poeta e trovador francês do final do século XII. Foi um dos primeiros autores de romances de cavalaria, sendo também considerado o primeiro grande novelista em língua francesa. Suas obras inspiraram a literatura em toda a Europa Ocidental durante a Idade Média. Sua obra é a primeira a mencionar temas tão conhecidos hoje como a busca do Santo Graal e o amor entre Lancelote e a rainha Genebra. A obra de Chrétien inclui cinco grandes poemas em versos octasilábicos. Destes, quatro estão completos: Erec e Enida (c. 1170), Cligès (c. 1176), Ivain, o Cavaleiro do Leão e Lancelote, o Cavaleiro da Carreta, os dois últimos escritos simultaneamente entre 1178 e 1181.
[3] Meleagant (também grafado Malagant ou Maleagant) é um vilão da lenda arthuriana. Originalmente um cavaleiro da Távola Redonda filho do rei Bagdemagus de Gorre, sua reivindicação à fama decorre de ter sido o seqüestrador de Guinevere. Sua primeira aparição ocorre em Lancelote, o Cavaleiro da Carreta por Chrétien de Troyes, onde leva Guinevere para seu castelo indevassável. A rainha é resgatada por Lancelote e Gawain; esta também é a primeira aparição de Lancelote na lenda arthuriana. Meleagant supostamente teria sido criado com base em Melwas, vilão das primeiras histórias galesas, o qual captura Guinevere na Vida de Gildas. Nesta obra, o rei Melwas captura a rainha e a leva para sua fortaleza em Glastonbury. Arthur a localiza após um ano de buscas e se prepara para atacar o castelo, mas Gildas negocia seu retorno em segurança.
[4] Casaco medieval que se colocava sobre a armadura
[5] Que segue, que acompanha; partidário; sectário, seguidor. S.m. Membro de um bando ou partido; prosélito, assecla.
[6] Maça de guerra:
[7] Machado de guerra:
[8] São Columba (7 de Dezembro de 521 a 9 de Junho de 597) também conhecido como Columba de Iona, ou, em Gaélico, Colm Cille ou Columcille (“pomba da Igreja”). Foi a grande figura missionária da Escócia. Monge irlandês (gaélico), reintroduziu o Cristianismo entre os Pictos medievais. É dito como sendo o primeiro a ter avistado Nessie, o monstro do lago Ness.
[9] Marzipã, marzipan ou maçapão é um doce de origem árabe, preparado a partir de uma pasta feita de amêndoas moídas, açúcar e claras de ovos, que pode ser moldada em praticamente qualquer formato. Também podem ser adicionadas essências.
[10] Clàrsach ou Cláirseach (dependendo irlandês gaélico ou gaélico escocês grafias), é o gaélico palavra genérica para “uma harpa , como derivado do irlandês médio . In English , the word is used to refer specifically to a variety of small Irish and Scottish harps. Em Inglês, a palavra é usada para se referir especificamente a uma variedade de pequenas e gaitas escocesas irlandês.
[11] “é um contador de histórias tradicional irlandesa. Grafias Alternatate incluem seanachaí, senachaí senachie e Shanachie. A palavra é uma forma latinizada do seanachaidh língua irlandesa ou seanchuidh. Vem da palavra irlandesa “seanachas” ou “seanchus” significado “histórico” ou “folclore”.
[12] Cuirm era uma espécie de cerveja fabricada pela Gael . It was a powerful, intoxicating liquor made from barley , and being of course used at all feasts, the word cuirm came ultimately to mean a feast itself. Era inebriante, feita de licor poderoso da cevada , e sendo, obviamente, utilizado em todas as festas, a cuirm palavra veio a significar em última análise, uma festa em si. It is supposed by some to have been the same as whisky , but the process of brewing being so much easier and cheaper than distilling , it was more probably a strong kind of beer. Supõe-se por alguns de ter sido o mesmo que o uísque mas o processo de fabricação de cerveja é muito mais fácil e mais barato do que a destilação.
[13] Vestido com abotoamento frontal e nas mangas
[14] A tradução correta para Gall-Ghàidheil ou qualquer uma das variantes de grafia é “Foreign Gaels” e não é utilizado especificamente para se referir aos estrangeiros nórdicos. It is a general term to describe a particular ethnic grouping of foreigners of which the Norse formed part. É um termo geral para descrever um grupo étnico específico de estrangeiros de que os nórdicos faziam parte. This term is subject to a large range of variations depending on chronological and geographical differences in the Gaelic language , ie Gall Gaidel , Gall Gaidhel , Gall Gaidheal , Gall Gaedil , Gall Gaedhil , Gall Gaedhel , Gall Goidel , etc. The modern term in Irish however, is Gall-Ghaeil , while the Scottish Gaelic is Gall-Ghàidheil . [ 1 ] Este termo está sujeito a uma grande gama de variações dependendo cronológica e geográfica diferenças na língua gaélica. O termo moderno em irlandês no entanto, é Gall-Ghaeil, enquanto o gaélico escocês é Gall-Ghàidheil.
[15] Whisky em gaélico escocês.
[16] Colchão fino de palha.
[17] Banshee é um ente fantástico da mitologia celta (Irlanda) que é conhecida como Bean Nighe na mitologia escocesa. As Banshee provêm da família das fadas, e é a forma mais obscura delas. Quando alguém avistava uma Banshee sabia mal seu fim estava próximo: os dias restantes de sua vida podiam ser contados pelos gritos da Banshee: cada grito era um dia de vida e, se apenas um grito fosse ouvido, naquela mesma noite estaria morto.
[18] Forte em gaélico
[19] Yule é a festa sagrada mais importante do ano teutônico. Começa em 20 de dezembro e dura doze dias, sendo o décimo segundo o primeiro dia do ano.
[20] Bardo dos habitantes das Terras Altas da Escócia, responsável por preservar e repetir as tradições das tribos.
[21] Narrativa medieval sobre mitos gaélicos
[22] Waternish é uma península de uns doze quilômetros de comprimento na ilha de Skye.
[23] Warwolf (Lobo de Guerra) considera-se a maior catapulta da história. Construiu-se na Escócia por ordem do rei Eduardo da Inglaterra, durante o assédio do castelo de Stirling, durante as guerras pela independência escocesa.
[24] Muro cercado defensivo característico dos castelos escoceses durante a Idade Média.
[25] Os brogues eram sapatos de solados planos de um couro muito flexível.
[26] Torre fortificada de duplas paredes e circular própria da Escócia.
[27] Sucessor; segundo ao mando entre as dinastias reais gaélicas.
[28] adj. || (tipogr.) diz-se do formato que tem a folha de impressão apenas dobrada em duas: Formato, volume infólio. , s. m. livro ou volume infólio: F. lat. In… +folium (folha).
[29] O Wyvern ou Guiver (também conhecido como wyverns, na sua grafia Inglês, ou drakontas - e às vezes até chamado por alguns corredores de vento) são criaturas lendárias pertencentes à mitologia medieval , em forma de grandes répteis alados da família de dragões nível inferior, mas são capazes de lançar feitiços.
[30] Leão rampante: firmado em suas patas traseiras. Em posição de ataque.

 

 

                                                   Monica McCarty         

 

 

 

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