Biblio VT
Andrew
30
EU ANINHO O rosto dela em minhas mãos.
— A gente não precisa entender tudo isso já — digo, beijando-a nos lábios. — Eu tô fedendo a bosta de vaca e preciso de um banho. Espero que isso não seja brochante demais e que você queira tomar banho comigo.
A expressão pensativa de Camryn se dissolve no sorriso que eu queria provocar.
Eu a pego no colo, segurando sua bunda, e ela cruza as pernas ao redor da minha cintura, com os braços nos meus ombros. Assim que sinto sua língua quente na minha boca, começo a levá-la para o chuveiro comigo, nós dois já tirando as camisetas antes de passar pela porta do banheiro.
~~~
O primeiro lugar aonde vamos depois que escurece é o Old Point Bar. Ao entrarmos somos recebidos por uma Carla empolgada, que praticamente remove dois caras grandões do caminho aos empurrões para me alcançar, de braços abertos. Nós nos abraçamos.
— É tão bom ver você de novo! — Carla exclama, por cima da música alta. — Deixa eu te olhar! — Ela dá um passo para trás e me examina de alto a baixo. — Continua bonitão como sempre.
Ela se vira para Camryn, agora. Depois olha pra mim e novamente para Camryn.
— Hã-hã, eu sabia que ele não ia largar de você. — Ela puxa Camryn para um abraço apertado. — Eu falei pro Eddie, depois que vocês foram embora — Carla continua, olhando de um para o outro —, que ela tinha vindo pra ficar. Eddie concordou, é claro. Ele disse que a próxima vez que você viesse pra cá, Camryn estaria com você. Tentou me convencer a apostar dinheiro nisso. — Ela aponta para mim e pisca. — Você sabe como Eddie era.
Em dois segundos, sinto meu coração afundar até os pés.
— “Era”? — pergunto, desconfiado, com medo da resposta dela.
Carla não deixa de sorrir, um pouco, talvez, mas quase não deixa de sorrir.
— Sinto muito, Andrew, mas Eddie morreu em março. Dizem que foi um derrame.
Eu fico sem ar e me sento num banquinho do bar que está ao meu lado. Percebo Camryn chegando perto de mim. Só consigo olhar para o chão.
— Ah, não, não faz isso, tá me ouvindo? — Carla pede. — Você conhecia Eddie melhor do que ninguém. Ele não chorou nem quando perdeu o filho. Lembra? Tocou guitarra a noite toda em homenagem ao Robert.
A mão de Camryn segura a minha. Eu não ergo os olhos até que Carla dá a volta no balcão e pega dois copos e uma garrafa de uísque da prateleira de vidro atrás dela. Ela põe os copos na minha frente e começa a servir.
— Ele sempre dizia — Carla continua — que, se morresse antes da gente, ia preferir ser acordado do Outro Lado por pessoas dançando sobre o túmulo dele, e não chorando em volta. Agora bebe. O uísque favorito dele. Eddie não iria querer outra coisa.
Carla tem razão. Mesmo assim, e mesmo sabendo que Eddie detestaria que qualquer um chorasse por ele, não consigo fechar o buraco sem fundo que sinto no coração, agora. Olho para Camryn ao meu lado e vejo que ela está tentando não chorar, com os olhos rasos d’água. Mas ela sorri, e sinto sua mão apertando a minha de leve. Camryn pega um dos uísques que Carla serviu e espera que eu pegue o outro. Estendo a mão sobre o balcão e seguro o copo.
— Ao Eddie — digo.
— Ao Eddie — Camryn repete.
Nós batemos os copos, sorrimos um para o outro e bebemos.
Nosso momento sério termina rapidamente quando Camryn bate o copo de boca para baixo no balcão. Ela faz a cara mais enojada e chocada que já vi uma garota fazer e solta um som como se sua garganta estivesse pegando fogo.
Carla ri e tira o copo do balcão, limpando o lugar com um trapo.
— Eu não falei que era bom, só falei que era do Eddie.
Até eu preciso admitir que aquela bosta é horrorosa. Engasga-gato horroroso da porra. Não sei como Eddie aguentou bebê-lo todos esses anos.
— Vocês dois ainda cantam juntos? — Carla pergunta.
Camryn se senta no banquinho vazio ao meu lado e responde primeiro: — Sim, a gente tem cantado muito.
Carla olha para nós dois, desconfiada, pegando meu copo e guardando-o sob o balcão.
— Têm cantado muito há quanto tempo? E por que não vi vocês por aqui antes?
Eu suspiro fundo e apoio as mãos no balcão para ficar mais confortável.
— Bom, depois que a gente saiu daqui, fomos pra Galveston e eu meio que fui parar no hospital por causa daquele tumor.
— Você meio que foi parar no hospital? — Carla repete, e eu me pergunto se a espertinha não é parente distante daquele policial da Flórida. Ela aponta severamente para mim, mas está falando com Camryn. — A gente falou pra ele ir pro médico, mas ele não ouve.
— Vocês também sabiam? — Camryn pergunta.
Carla balança a cabeça.
— A gente sabia, sim. Mas esse cara é teimoso feito uma mula.
— Nisso eu concordo com você — Camryn diz, com um traço de riso na voz.
Eu balanço a cabeça e me afasto novamente do balcão.
— Bom, antes que vocês duas juntem forças contra mim — digo —, obviamente eu tô vivo. Depois, Camryn e eu tivemos uns problemas sérios, mas conseguimos superar numa boa. — Eu sorrio para ela com ternura.
— Parece que vocês fecharam um ciclo — Carla diz e chama a nossa atenção ao mesmo tempo. — Espero que toquem esta noite. Eddie adoraria estar no palco com vocês pela última vez.
Camryn e eu nos entreolhamos rapidamente.
— Eu topo — ela diz.
— Eu também.
Carla bate palmas.
— Tudo bem, então! Podem se apresentar a hora que quiserem. A única banda que ia tocar hoje cancelou.
Ficamos no balcão com Carla por uma hora antes de finalmente subir ao palco. E embora o bar não esteja muito cheio hoje, tocamos para uma plateia animada. Começamos com nosso dueto tradicional, “Barton Hollow”. Parece adequado que seja o primeiro número, já que foi em Old Point que o tocamos juntos pela primeira vez. Tocamos várias canções antes de finalmente chegar a “Laugh, I Nearly Died”, que eu anuncio antes ser em homenagem a Eddie Johnson. Canto sem Camryn e com um substituto de Eddie, um creole simpático chamado Alfred.
Pouco depois da meia-noite, Camryn e eu nos despedimos de Carla e do Old Point Bar. Mas, bem ao estilo de Nova Orleans, não vamos para a cama cedo, ficamos na rua e curtimos feito gente grande. Passamos primeiro no d.b.a., depois no bar onde Camryn me ensinou como se joga bilhar, naquela noite. Já faz quase um ano que estivemos ali e fomos jogados na rua depois de uma briga; espero que não se lembrem de mim. Às duas da manhã, depois de vários jogos e vários drinques, como da última vez, estou ajudando Camryn a entrar no elevador do hotel, porque ela mal se aguenta em pé.
— Você tá bem, amor? — pergunto, rindo, ajeitando meu braço na sua cintura.
Sua cabeça balança de um lado para o outro.
— Não, não tô bem. E é lógico que você ri.
— Aaah, desculpa — eu digo, mas sou sincero só em parte. — Não tô rindo de você, só imaginando se vamos dormir ao lado da privada de novo.
Ela geme, embora eu ache que é seu jeito de protestar comigo, e não de manifestar desconforto. Eu a seguro melhor quando a porta do elevador se abre e ando com ela pelo corredor até nosso quarto. Eu a levo até a cama, tiro toda a sua roupa, menos a calcinha, e a ajudo a vestir um top. Ela encosta a cabeça no travesseiro e eu começo a cobri-la com o lençol. Mas aí lembro que, bêbada assim, qualquer coisa além da calcinha e do top vai fazê-la suar muito, levando-a a perder todo o álcool que bebeu esta noite.
Só por segurança, pego o cestinho de lixo de perto da TV e o coloco ao lado da cama, no chão. Depois vou para o banheiro, molho um pano com água fria e torço na pia. Mas quando volto para a cama para limpar o rosto e a testa de Camryn, ela já está capotada.
~~~
Quando acordo na manhã seguinte, fico surpreso ao ver que ela acordou antes de mim.
— Bom dia, amor — ela diz tão baixinho que é quase um sussurro.
Abrindo os olhos, eu a vejo deitada de lado, virada para mim, com o rosto encostado no travesseiro. Seus olhos azuis estão quentes e vibrantes, não com o olhar cansado de ressaca que eu esperava.
— Por que tá acordada tão cedo? — pergunto, passando os dedos na sua bochecha.
— Não sei — ela diz. — Eu mesma fiquei um pouco surpresa.
— Como se sente?
— Tô ótima.
Passo o braço em sua cintura e puxo seu corpo para junto do meu, trançando nossas pernas nuas. Ela passa a ponta do dedo nos músculos definidos do meu peito. Seu toque faz minha pele ficar arrepiada.
Estudo seus olhos, sua boca e deixo as pontas dos meus dedos seguirem cada caminho que meus olhos fazem. Eu a acho tão linda. Linda pra cacete. Ela passa seus dedos nos meus e depois os beija, um por um, e aproxima ainda mais seu corpo. Algo está diferente nela.
— Tem certeza de que você tá bem? — pergunto.
Um sorriso terno aquece seus olhos e ela balança a cabeça. Então encosta os lábios nos meus, apertando os seios com força no meu peito. Seus mamilos estão duros. Eu fico de pau duro antes mesmo de sentir sua mão segurando minha ereção. Ela lambe a ponta da minha língua antes de fechar a boca ao redor da minha, e eu abraço seu corpo num gesto possessivo. Ela se aperta contra mim lá embaixo, com a maciez de sua pele e sua umidade que sinto tão facilmente através da calcinha fina de algodão. Sem interromper o beijo faminto, enfio os dedos nos lados de sua calcinha e a tiro. Empurro o quadril contra ela, apertando meu pau inchado no seu calor.
Eu rolo por cima dela e a olho nos olhos. Mas não digo uma palavra. Não digo o quanto ela está molhada, nem a obrigo a me olhar. Não a domino com palavras, gestos ou exigências. Só olho em seus olhos e sei que este é um momento em que palavras não são necessárias.
Beijo seus lábios suavemente de novo, os cantos de sua boca, o contorno de seu maxilar. Abrindo-lhe os lábios com a língua, eu a beijo muito suavemente e seguro meu pau, esfregando-o nela. Sinto suas ancas se aproximarem de mim, me comunicando o quanto ela me quer dentro de si. Não quero provocá-la desta vez, nem negar o que ela precisa, por isso enfio só um pouco e a vejo perder o controle do seu olhar, seus olhos tremendo, seus lábios se abrindo. Forçando o pau mais para dentro, sinto suas pernas tremendo em volta de mim. Ela geme baixinho, mordendo o lábio inferior. Eu a beijo de novo e finalmente meto fundo nela, até onde consigo. Mantenho o pau ali, curtindo as convulsões de suas pernas, o tremor de suas mãos que se agarram em mim, seus dedos afundando nas minhas costas.
Eu entro nela com mais força, mexendo os quadris. Uma fina camada de suor começa a se formar nos nossos corpos. Quero lambê-lo, mas não paro. Não consigo parar...
Levanto o corpo o suficiente para que nossos peitos não se toquem e pego uma de suas pernas das minhas costas, segurando-a atrás do joelho, empurrando-a para baixo para poder ir mais fundo. Penetro nela com mais força, empurrando a coxa contra a cama. Ela diz meu nome, suas mãos agarrando meu peito, mas ela me larga e afunda os dedos no alto do colchão, acima de sua cabeça. Eu olho com desejo seus seios balançando para cima e para baixo sobre seu peito e meto com mais força ainda, me curvando para chupar seus mamilos e depois mordê-los.
Minha visão fica embaçada. Ela geme alto e depois começa a murmurar. O murmúrio me deixa louco. Eu largo sua coxa e sinto meu corpo se aproximando dela de novo, seus seios esmagados no meu peito, seus braços apertando forte minhas costas. Sinto suas unhas cravadas dolorosamente na minha carne. Ela movimenta os quadris contra os meus, e minha boca bate com força na dela. Quando começo a gozar, meu beijo fica mais faminto. Tremores percorrem meu corpo, eu gemo na sua boca e minhas arremetidas violentas se reduzem a um rebolado suave. Camryn prende meu lábio inferior nos dentes e eu a beijo com delicadeza, ainda balançando os quadris contra ela até terminar.
Eu desabo sobre o peito dela. Minha pulsação irregular tenta voltar ao ritmo certo, e sinto o sangue latejando nos dedos das mãos e dos pés e castigando a veia da minha têmpora. Encosto a lateral do rosto em seus seios nus, de boca aberta, minha respiração escapando irregular dos lábios. Seus dedos atravessam meu cabelo úmido.
Ficamos juntos assim ali a manhã toda, sem dizer uma palavra.
31
NÃO ME LEMBRO de ter pegado no sono. Quando abro os olhos, o relógio ao lado da cabeceira diz que são 11h10. E percebo que me sinto nu não por estar sem roupa, mas sim porque Camryn não está na cama comigo.
Ela está sentada na sacada da janela, de short e camiseta, sem sutiã. Está olhando pela janela.
— Acho que a gente devia ir embora — ela anuncia, sem tirar os olhos da brilhante paisagem de Nova Orleans.
Eu me sento na cama com o lençol enrolado na cintura.
— Quer ir embora de Nova Orleans? — pergunto, confuso. — Mas você não disse que a gente foi embora cedo demais, da outra vez?
— Sim — ela diz, mas ainda sem se virar. — Da primeira vez a gente foi embora cedo demais, mas não podemos ficar aqui mais tempo, agora, pra compensar.
— Mas por que você quer ir embora? A gente só ficou um dia.
Ela se vira para me encarar. Há algo como sentimento ou firmeza em seus olhos, mas não consigo saber qual dos dois, ou se são os dois.
Depois de uma longa hesitação, ela diz:
— Andrew, sei que pode parecer bobagem, mas acho que se a gente ficar aqui... eu...
Eu me levanto da cama e visto a cueca que encontro no chão.
— O que tá acontecendo? — pergunto, me aproximando dela.
Ela olha para mim.
— Eu só acho que... bom, quando a gente chegou aqui, ontem, eu só conseguia pensar no que este lugar significava pra gente julho passado. Me dei conta de que eu ficava imaginando os momentos que passaram, tentando revivê-los...
— Mas não são exatamente os mesmos — digo, tendo uma ideia.
Ela leva um segundo, mas finalmente diz, balançando um pouco a cabeça:
— É. Acho que o problema é que este lugar é uma lembrança tão importante... Porra, Andrew, eu nem sei o que tô dizendo! — Sua expressão pensativa se dissolve em frustração.
Eu puxo uma cadeira da mesa diante da janela, me sento, me debruçando para a frente e pondo as mãos fechadas entre os joelhos, e olho para ela. Começo a acrescentar algo à sua explicação, mas ela é mais rápida.
— Talvez a gente nunca mais devesse voltar aqui.
Eu não esperava que ela dissesse isso.
— Por quê?
Ela aperta as palmas das mãos na sacada para erguer o corpo, com os ombros rígidos e as costas encurvadas. A confusão e a incerteza começam a desaparecer de seu rosto à medida que os segundos passam e ela começa a entender.
— Tipo, sabe, não importa o que você faça, mesmo se tentar reproduzir uma experiência em cada detalhe, ela nunca vai ser do jeito que foi quando aconteceu naturalmente da primeira vez. — Ela olha pelo quarto, pensativa. — Quando eu era criança, Cole e eu sempre brincávamos no bosque atrás da nossa velha casa. São minhas melhores lembranças. A gente construiu uma casa na árvore lá. — Ela me olha e ri um pouco, expirando. — Bom, não era bem uma casa na árvore, só umas tábuas pregadas no meio de dois galhos. Mas era a nossa casa na árvore, e tínhamos orgulho dela. E a gente brincava nela e naquele bosque todo dia depois da aula. — Seu rosto se ilumina quando ela lembra esse momento de sua infância. Mas então seu sorriso começa a desaparecer. — A gente se mudou de lá pra casa onde minha mãe mora agora, e eu sempre pensei naquele bosque, na nossa casa na árvore e nos momentos divertidos que passamos juntos ali. Eu ficava sentada sozinha no meu quarto, ou então tava dirigindo pra algum lugar, e me perdia tanto nessas lembranças que conseguia sentir as mesmas emoções, exatamente como senti há tantos anos. — Ela põe a mão no peito, com os dedos abertos. — Eu voltei pra lá um dia — ela continua. — Fiquei tão viciada naquela nostalgia que achei que poderia intensificar a sensação se eu fosse pra lá, se ficasse no lugar onde ficava a casa na árvore, se me sentasse no chão, no lugar onde me sentava e riscava o chão com um pauzinho, deixando mensagens secretas para Cole ler quando chegava antes dele. Mas não foi a mesma coisa, Andrew.
Eu a observo e a escuto atentamente.
— Não foi a mesma coisa — ela repete com voz distante. — Fiquei tão decepcionada. E parti naquele dia com um buraco no coração ainda maior do que aquele que eu tinha quando fui pra lá tentar preenchê-lo. E todo dia depois disso, sempre que tento visualizar tudo aquilo, como eu fazia antes, não consigo mais. Eu destruí essa lembrança voltando lá. Sem perceber até que fosse tarde demais, eu substituí a lembrança pelo vazio daquele dia.
Eu conheço exatamente essa sensação de nostalgia. Acho que todos a sentem em algum momento de suas vidas, mas não explico nem conto minhas próprias experiências com ela. Em vez disso, continuo a escutar.
— A manhã toda fiquei enganando meu cérebro, tentando convencê-lo de que não estamos realmente neste quarto. Que o bar aonde a gente foi ontem não era o Old Point. Que a notícia triste sobre Eddie foi só um sonho que eu tive. — Ela me olha nos olhos. — Quero ir embora antes de destruir esta lembrança também.
Ela tem razão. Está coberta de razão.
Mas estou começando a me perguntar se...
— Camryn, por que você tava tentando reviver aquilo? — Odeio o que vou dizer a seguir. — Você não tá feliz com as coisas como estão? Com a gente?
Sua cabeça se ergue bruscamente, seus olhos incrédulos. Mas então seu semblante relaxa e ela diz:
— Meu Deus, não é isso, Andrew. — Ela se afasta da sacada e entra no meio das minhas pernas abertas. — Não é nada disso. Acho que foi só porque a gente veio pra cá que eu comecei, no meu subconsciente, a tentar recriar uma das experiências mais memoráveis da minha vida. — Ela apoia as mãos nos meus ombros, e eu seguro os lados de sua cintura, olhando para ela. Não poderia estar mais aliviado pela sua resposta.
Sorrio, me levanto com ela e digo:
— Bom, sugiro que a gente suma daqui antes que seu cérebro descubra que você tá zoando com ele.
Ela dá uma risadinha.
Eu me afasto dela e imediatamente começo a jogar nossas coisas nas mochilas. Depois aponto para o banheiro.
— Não esquece nada. — Seu sorriso aumenta e ela corre imediatamente para o banheiro. Em poucos minutos frenéticos, nossas malas estão feitas. Temos duas mochilas, uma guitarra e um violão, e sem olhar para trás, saímos do quarto. Nenhum dos dois olha nem de relance para a porta do quarto ao lado, que não ocupamos desta vez. Quando chegamos ao saguão, vou até o balcão da recepção e peço reembolso pela semana que paguei adiantado. A recepcionista pega meu cartão de crédito e faz o estorno enquanto eu entrego a chave do quarto.
Camryn espera impacientemente ao meu lado.
— Para de olhar pras coisas — exijo, sabendo que ela está pondo sua lembrança em risco.
Ela ri baixinho e fecha os olhos com força por um momento.
— Obrigada por se hospedarem no Holiday Inn Nova Orleans — a recepcionista diz, quando nos afastamos do balcão. — Esperamos vê-los de volta.
— Holiday Inn? — eu finjo. — Não, este é o... Embassy Suites de... Gulfport. É, aqui é o Mississippi. Qual o seu problema, moça?
A funcionária faz uma careta e arregala os olhos, mas não responde, e nós saímos do prédio.
Camryn entra na brincadeira quando saímos e começamos a pôr tudo no Chevelle:
— Sugiro que a gente passe reto por Nova Orleans, quando chegar na Louisiana.
Fingir que estamos num lugar diferente não é tão difícil quanto pensei que seria, na verdade.
— Combinado — digo, fechando a porta do meu lado. — A gente pode passar reto por Galveston, também, se você quiser.
— Não, precisamos visitar sua mãe — ela diz. — Depois podemos ir pra qualquer lugar.
Eu engato a marcha e digo, antes de sair do estacionamento:
— Mas isso não impede que a gente pare em algum lugar a caminho de Galveston.
Ela estufa os lábios, balançando a cabeça afirmativamente.
— É verdade. — Em seguida, me olha como que dizendo: Agora vamos embora daqui.
~~~
Pegamos o caminho mais longo saindo de Nova Orleans e vamos para noroeste passando por Baton Rouge e Shreveport, e finalmente cruzamos a divisa do Texas e chegamos a Longview. Paramos para abastecer em Tyler e dirigimos de lá até Dallas, onde Camryn insiste em parar no West Village para comprar um “chapéu de vaqueira di verdadi” (suas palavras, não minhas).
— Num dá pra viajá pelo Texas sem tá vistida de texana! — ela disse, antes que eu concordasse em levá-la.
Eu não uso chapéu nem botas de vaqueiro, mas devo dizer que o visual fica bem nela.
E paramos por uma noite em La Grange, onde tomamos uns drinques e assistimos à apresentação de um ótimo grupo de country-rock. E na noite seguinte vamos pro Gilley’s, onde Camryn monta El Torro, o touro mecânico, com aquele chapéu sexy de vaqueira, é claro. E mais tarde, quando voltamos para o hotel, como sou um puta dum tarado, finjo que sou o touro mecânico e deixo Camryn me montar. Usando o chapéu de vaqueira, naturalmente.
Dois dias depois, nos vemos a cerca de uma hora de Lubbock, parados no acostamento, com um pneu estourado. Acho que eu deveria ter verificado os quatro naquele posto de gasolina em Tyler.
— Que bosta, amor — eu reclamo, agachado perto do pneu estraçalhado. — Não tenho outro estepe.
Camryn se apoia na lateral do carro, cruzando os braços sobre o peito. O suor brilha em seu rosto e na pele do decote. Está um calor do cacete. Não há nenhuma árvore nem abrigo de espécie alguma num raio de quilômetros. Estamos rodeados por uma paisagem quase completamente plana e estéril de terra batida. Já faz muito tempo que não vou tão para o interior do Texas, e estou começando a me lembrar do motivo.
Fico de pé e me sento no capô do carro.
— Me dá seu celular — digo.
— Vai chamar um guincho? — ela pergunta, depois de pegar o celular do banco da frente e entregá-lo na minha mão.
Passo o dedo pelo display, virando duas telas para encontrar o aplicativo das Páginas Amarelas.
— É a única coisa que a gente pode fazer. — Eu digito “socorro automotivo” e escolho um dos resultados.
— Só espero que ele venha mesmo, desta vez — ela comenta.
O serviço de socorro automotivo responde, e enquanto estou falando com o cara, dizendo qual o tipo de pneu de que preciso, noto Camryn enfiando o corpo na janelinha de trás do carro e saindo dela com aquele chapéu sexy de vaqueira, provavelmente para se proteger do sol.
Ela dá a volta no capô e se senta ao meu lado.
— Tá, valeu, cara — digo ao telefone e desligo. — Ele disse que vai levar pelo menos uma hora pra chegar aqui. — Deixo o celular sobre o capô e sorrio para ela. — Sabe, era só você cortar as pernas daquele jeans que tá na sua mochila e transformá-lo num shortinho, tirar o sutiã e usar só o top, que...
Ela põe um dedo sobre os meus lábios.
— De jeito nenhum — ela diz. — Nem pense nisso.
Ficamos em silêncio por um momento, olhando para o nada ao nosso redor. Parece que está ficando mais quente, mas acho que é porque estamos sentados ao sol, no capô de um carro preto que absorve o calor como uma esponja. De vez em quando, um ventinho gostoso roça nossos rostos.
— Andrew? — Ela tira o chapéu e o coloca na minha cabeça, depois deita as costas no para-brisa. Ela põe as mãos atrás da cabeça e dobra os joelhos. — Número cinco na nossa lista de promessas: se eu morrer antes de você, quero ser enterrada naquele vestido que compramos na feirinha, e descalça. Ah, e nada de sombra azul estilo anos 80 nos olhos, nem de sobrancelha desenhada. — Ela inclina a cabeça para o lado e olha para mim.
— Mas pensei que você quisesse casar comigo usando aquele vestido.
Ela estreita os olhos, desviando-os do sol.
— É, quero, mas também quero ser enterrada com ele. Tem gente que acredita que quando a pessoa morre, ela revive seus momentos mais felizes na vida após a morte. Um dos meus vai ser o dia em que eu me casar com você. Então é bom já levar o vestido.
Eu sorrio para ela.
Tiro o chapéu e me deito ao seu lado, apertando minha cabeça perto o suficiente da dela para pôr o chapéu sobre as duas e nos proteger do sol. Depois de equilibrá-lo, digo:
— Número seis: se eu morrer antes de você, quero que toquem “Dust in the Wind” no meu funeral.
Ela vira a cabeça para me olhar, com cuidado para não derrubar o chapéu.
— De novo isso? Você tá começando a me fazer detestar um belo clássico do rock, Andrew.
Rio um pouco.
— Eu sei, mas é que eu vi o episódio de Highlander em que a mulher do cara, Tessa, morre. Tocaram essa música ao fundo. Nunca mais consegui tirar da cabeça.
Ela sorri e enxuga o suor da testa.
— Prometo — ela diz. — Mas já que estamos falando disso, quero acrescentar o número sete. Você já viu Ghost — Do Outro Lado da Vida?
Olho rapidamente para ela.
— Bom, vi. Acho que todo mundo já viu esse filme. A menos que tenha 16 anos de idade. Porra, tô surpreso que você tenha visto. — Eu lhe dou uma cotovelada de leve.
Ela ri.
— Culpa da minha mãe — ela admite. — Ghost e Dirty Dancing — Ritmo Quente eu já viu umas cem vezes. Ela era doida pelo Patrick Swayze e, quando criança, eu era a única pessoa do sexo feminino pra quem ela podia dizer o quanto ele era gostoso. Bom, então você já viu. Número sete: se alguém te matar, trata de voltar, como o Sam do filme, e me ajudar a achar seu assassino.
Eu rio e balanço a cabeça, derrubando acidentalmente o chapéu por um momento.
— Que lance é esse que você tem com filmes? Deixa pra lá. Tá, prometo voltar pra puxar seu pé.
— É bom mesmo! — ela exclama, rindo alto. — Além do mais, eu sei que vou ser uma daquelas pessoas que acham que os entes queridos continuam por perto depois de morrer. Seria bom me dar mais motivo pra acreditar.
Não sei bem como vou fazer isso, mas tudo bem. Vou tentar, porra.
— Prometo se você prometer — digo.
— Como sempre.
— Número oito — eu continuo —, não me enterre num lugar frio.
— Concordo plenamente. O mesmo vale pra mim!
Ela enxuga mais suor do rosto e eu me levanto do capô, estendendo a mão para ela.
— Vamos ficar dentro do carro, longe do sol.
Ela pega minha mão e eu a ajudo a descer.
Duas horas depois, o guincho ainda não apareceu e está começando a escurecer. Parece que vamos poder ver o pôr do sol juntos na paisagem deserta do Texas.
— Eu sabia — Camryn diz. — Qual o problema desses guinchos?
E assim que ela diz isso, um par de faróis ofuscantes aparece na estrada vindo na nossa direção. Muito aliviados, saímos para recebê-lo, e a primeira coisa que eu noto é a mesma que Camryn nota. O cara poderia ser uma cópia de Billy Frank. Ela e eu nos entreolhamos, mas não comentamos em voz alta.
— Querem que eu reboque ou só o pneu? — ele pergunta, puxando as alças do seu macacão de jeans.
— Só o pneu — eu digo, seguindo-o para a traseira do guincho.
— Bom, não tenho tempo pra ficar aqui enquanto você troca — ele diz, cuspindo tabaco na estrada. — Vocês vão ficar bem?
— Vamos, sim. Mas espera um momento. — Eu levanto o dedo e enfio o corpo no carro para virar a chave na ignição. Quando o motor parte sem problemas, eu o desligo e volto até ele. — Só queria ter certeza de que tá funcionando.
Pago ao sósia de Billy e fico olhando as lanternas traseiras do guincho sumindo no horizonte escuro à medida que ele se afasta. Quando volto para o carro, onde deixei o pneu, levo um puta susto ao ver Camryn já erguendo o carro com o macaco.
— Porra, essa é a minha garota!
Ela sorri para mim, mas continua trabalhando, com a trança loura jogada sobre um ombro.
— Não é tão difícil — ela diz, rolando agora o novo pneu para perto, depois de conseguir tirar as porcas do antigo sozinha. Acho que tô ficando de pau duro. Não, peraí, já tô mesmo de pau duro.
— Não, não é, de fato — respondo finalmente, com um sorriso ainda maior.
Alguns minutos depois, ela baixa o carro e joga o macaco no porta-malas. Eu carrego o pneu furado para ela e também o jogo lá dentro.
Entramos no carro e ficamos parados.
Tudo está tão silencioso. Enormes faixas de cirros violeta e azuis estão amontoados no céu, estendendo-se bem além do horizonte. À medida que o calor do dia diminui, a brisa suave do anoitecer entra pelas janelas abertas do carro. O crepúsculo está lindo. Para ser sincero, eu nunca tinha prestado muita atenção em um. Talvez seja a companhia.
E não sei ao certo o que está acontecendo entre nós agora, mas seja o que for, estamos tão sintonizados um com o outro que ambos sentimos isso. Eu olho para ela. Ela olha para mim.
— Pronta pra voltar? — pergunto.
— Sim. — Ela fica em silêncio, olhando pelo para-brisa, perdida em pensamentos. Então se vira para mim, com mais certeza do que há alguns segundos. — É, acho que tô pronta pra ir pra casa. — Ela sorri.
E pela primeira vez desde que saí de Galveston sozinho naquele dia, ou que Camryn subiu no ônibus em Raleigh naquela noite, nós finalmente nos sentimos... realizados.
Camryn
32
ACHO QUE A gente fechou mesmo um ciclo. Mas preciso dizer, agora que estamos finalmente de volta a Galveston, depois de sete meses, que a sensação é diferente, desta vez. Não estou preocupada por estar aqui, nem com medo de que meu tempo junto com Andrew esteja acabando. Não estou esperando que uma tragédia médica ressurja a qualquer momento. É bom estar aqui. E quando paramos no estacionamento do prédio dele, sinto satisfação. Posso até me imaginar morando aqui. Mas até aí, também consigo me imaginar morando em Raleigh. Acho que isso significa, talvez, que nós estamos prontos para parar de viajar. Só por um tempinho. Nunca definitivamente, como eu já disse a Andrew, mas por tempo suficiente para nos recuperarmos da estrada.
Andrew concorda.
— É — ele diz, pegando nossas mochilas do banco de trás. — Sabe de uma coisa? — Ele devolve as mochilas para o mesmo lugar e olha por cima do carro para mim.
— O quê? — eu pergunto, curiosa.
Ele está sorrindo com o olhar.
— Você tem razão de não querer ficar na estrada tanto tempo a ponto de a gente se cansar dela, e nem ficar num só lugar por tempo demais pelo mesmo motivo. — Ele para e estende os braços por cima do carro. — A gente podia viajar na primavera ou no verão, deixar o outono e o inverno pra ficar em casa e levar uma vidinha família nas férias... minha mãe ficou bem chateada porque a gente não passou o Natal ou o Dia de Ação de Graças com ela.
Eu balanço a cabeça.
— É uma boa ideia. E como é um saco viajar no frio, faz muito sentido.
Nós nos olhamos por cima do carro por um longo momento, até que eu interrompo as engrenagens que estão girando nas nossas cabeças e digo:
— Bom, pega as mochilas. A gente pode conversar lá dentro. Você precisa olhar a Georgia.
— Ah, a Georgia tá bem — ele diz, mexendo novamente no banco de trás. — Minha mãe vem sempre regar.
Eu pego o violão, a guitarra e a minha bolsa. Quando entramos no apartamento de Andrew, sinto exatamente o cheiro que senti na primeira vez que entrei ali: de apartamento vazio. E como Andrew disse, Georgia está viva e bem.
Eu praticamente desabo no sofá, exausta, estendendo as pernas para fora pela lateral.
— Mas o próximo lugar que a gente for — Andrew diz, passando atrás do sofá — vai ser longe daqui. — Eu ouço seu chaveiro tilintar sobre o balcão da cozinha.
Ergo o corpo e pergunto:
— Longe quanto?
— Na Europa, na América do Sul — ele diz com um sorrisão, voltando para a sala. — Você disse que quer conhecer a Itália, o Brasil e todos aqueles lugares. Sugiro que a gente escolha um e vá pra lá.
Uma carga de energia atravessa o meu corpo. Eu fico de pé e olho para ele, agora tão empolgada com a ideia que mal consigo me conter.
— Sério?
Ele balança a cabeça com um sorriso gigante de lábios fechados.
— Porra, pra manter a tradição, a gente podia até escrever todos os lugares que queremos visitar em papeizinhos, pôr num chapéu e sortear um.
Eu dou um berro. Um berro mesmo! Encosto as mãos no peito.
— Isso é perfeito, Andrew!
Ele se senta no sofá, agora, apoiando os dois pés na mesinha de centro, com os joelhos dobrados. Eu não consigo sentar. Fico onde estou, olhando para seu rosto sorridente.
— Claro que precisamos continuar faturando — ele diz. — Temos muito dinheiro no banco, mas viajar pro exterior com certeza vai acabar com ele mais rápido.
— Mal posso esperar pra arranjar um emprego — digo, e esse comentário estimula a minha memória. — Andrew, você já me disse pra ser totalmente sincera com você a respeito de onde eu quero morar.
Isso chama a atenção dele.
— Onde você quer morar?
Penso nisso por um momento e respondo:
— Por enquanto, acho que em Raleigh, mas só porque gostaria de ficar perto de Natalie e da minha mãe, e porque sei que posso arrumar emprego facilmente no trabalho da Natalie. A chefe dela disse que gostou de mim e pediu que eu preenchesse uma ficha e...
Andrew me interrompe.
— Não precisa explicar seus motivos. — Ele estende a mão para mim e eu me sento em seu colo, de frente para ele. Não tinha me dado conta de que estava falando mais que uma matraca, de nervoso. Só não queria que ele se sentisse obrigado a nada.
Ele sorri para mim e abraça a minha cintura.
— Minha pergunta — ele continua — é o que, exatamente, significa “por enquanto” pra você?
— Bom... essa é a parte difícil.
Ele inclina a cabeça para o lado, me olhando com curiosidade, as covinhas mal aparecendo em suas bochechas.
Finalmente, eu digo de uma vez:
— Acho que a gente não deve gastar todo o dinheiro numa casa, porque não quero ficar lá pra sempre. E se fizermos isso, não vamos ter muito dinheiro pra gastar quando quisermos ir pra Europa ou qualquer lugar, e trabalhar ganhando salário mínimo não vai ajudar a poupar muito.
Ele me olha de lado.
— Peraí. Espero que você não queira morar na casa da sua mãe. A gente precisa de privacidade. Quero poder te catar de quatro por cima da mesa da sala quando eu quiser.
Eu rio e aperto as coxas ao redor dele, por brincadeira.
— Você é tão safado! Mas não, com certeza não quero morar com a minha mãe.
— Bom, se você não quer comprar uma casa e não quer morar com sua mãe, a única opção que resta é alugar, e isso custa muito caro também.
Fico constrangida, porque chegamos ao ponto em que preciso falar do dinheiro de Andrew como se fosse meu também, e duvido que um dia eu vá me acostumar com isso.
Eu desvio o olhar.
— Lembra quando você disse que a gente podia comprar uma casinha em algum lugar?
— Lembro — ele diz, e seus olhos brilham mais, como se ele já soubesse o que vou dizer.
— Bom, a gente podia, quem sabe, comprar uma casa bem pequena ou um apartamento com dinheiro vivo, só o suficiente pra nós... sei lá, algo bom e barato, e ainda sobraria muito dinheiro no banco pras nossas viagens. Não vamos pagar aluguel, e só vamos precisar pagar todo mês contas e coisas assim, e podemos custear isso trabalhando e tocando em bares, sem mexer nas nossas economias.
Por que ele está sorrindo como o gato da Alice?!
Sinto minha cabeça afundando no meio dos ombros, meu rosto ficando quente.
— Qual é a graça?! — pergunto, apertando as mãos no seu peito e tentando não rir.
— Graça nenhuma. Só gostei de ver que você finalmente entendeu que o que é meu é seu. — Ele aperta os dedos na minha cintura.
— Se você tá dizendo — eu balbucio, tentando esconder o rubor do meu rosto, fingindo estar ofendida.
— Ei — ele diz, balançando meus quadris —, não faz isso. Termina o que você tava dizendo.
Depois de uma longa pausa, eu continuo:
— E quando a gente partir pro destino do papelzinho no chapéu, Natalie pode tomar conta da casa. Ou! — eu aponto para cima. — Quando finalmente encontrarmos aquele lugar sossegado na praia que você sonhou pra morar, podemos vender nossa casa em Raleigh ou alugá-la pra ter uma renda extra. Talvez até alugar pra Natalie e Blake!
Posso ver que algo está acontecendo dentro da mente dele. Seu sorriso continua suave e ele nunca tira os olhos de mim. Mas está tão quieto, até que finalmente quebra o silêncio e diz:
— Parece que você pensou muito nisso. Quanto tempo levou pra planejar tudo?
Só agora me dou conta de que foi muito tempo. Penso no dia em que comecei a tentar organizar nosso futuro, quando decidi oficialmente que queria ter uma casa e estava cansada da estrada.
Andrew espera pacientemente que eu responda, sempre com um olhar suave e pensativo, sua maneira de me lembrar constantemente de que nada que eu possa lhe dizer jamais criará qualquer negatividade entre nós.
— Foi na estrada, depois que partimos de Mobile — digo. — Quando falei que eu queria conhecer a Itália, a França e o Brasil um dia. Quando eu disse que nunca ia querer parar de viajar pra sempre. Daquela noite em diante, fiquei determinada a planejar tudo. Como a gente faria tudo isso. — Meu olhar vaga. — Eu infringi as regras e planejei tudo.
Ele se inclina para a frente e beija meus lábios.
— Às vezes planejar é necessário — ele diz. — Você fez um bom trabalho. Acho que o plano todo tá perfeito. — E então ele me agarra com um beijo apaixonado.
Quando o beijo termina, eu o olho por um momento, com seu rosto nas mãos.
— Mas quero me casar com você aqui — conto, e os olhos dele se iluminam. — Não quero que a sua mãe se sinta excluída, sabe? Na verdade, ela é o único motivo de eu me sentir culpada por querer ir morar em Raleigh. E me sinto ainda pior porque ela tava planejando aquele chá de bebê e a gente nem...
— Ela vai gostar disso — ele aprova, me interrompendo antes que eu comece a matraquear de novo. — Eu adorei.
Ele me beija de novo.
Andrew
33
EU NÃO PODERIA ter pedido um dia mais perfeito. O clima está perfeito. Os planos para o casamento que não fizemos se encaixaram perfeitamente. Eu liguei para a minha mãe ontem e pedi que nos encontrasse na praia da Ilha de Galveston. Ela chegou a tempo, sem fazer ideia do motivo do convite.
Eu levanto a mão quando a vejo, acenando para chamá-la, e assim que ela nos vê, entende tudo. Seu rosto se abre num sorriso enorme, e é fácil se contagiar.
— Ah, vocês dois — minha mãe diz, se aproximando —, não acredito que finalmente vão fazer isso. Estou... estou tão... — Lágrimas escorrem do seu rosto e ela as enxuga, rindo e chorando ao mesmo tempo.
Camryn, descalça e com aquele vestido vintage cor de marfim que encontrou na feirinha, abre os braços e abraça minha mãe.
— Oh, Marna, não chore, por favor — ela pede, embora eu ache que é mais uma súplica, porque ver minha mãe chorando a está deixando com um nó na garganta.
— Mais alguém vem? — minha mãe pergunta depois.
— Você é nossa convidada de honra exclusiva — digo orgulhosamente.
— É — Camryn acrescenta —, é só você e o reverendo aqui.
Minha mãe passa por nós para abraçar também o reverendo Reed. Ela frequenta a igreja dele há nove anos — tentou me levar junto um milhão de vezes, mas eu não sou muito de igreja. Mas pensei, quem melhor do que ele pra casar a gente?
E enquanto o reverendo Reed está diante de nós na praia, com sua Bíblia gasta nas mãos e dizendo algumas palavras, tudo o que consigo ver ou ouvir é Camryn de pé na minha frente, com suas mãos nas minhas. A brisa passa pelos fios soltos do seu cabelo, livres daquela trança dourada sobre seu ombro que eu amo tanto. Adoro seu sorriso, seus olhos azuis e sua pele macia. Quero beijá-la agora e acabar com isso. Eu aperto os dedos de leve sobre suas mãos e a puxo mais para perto. O vento sopra seu vestido longo, fazendo-o aderir ao seu corpo de violão. Eu contenho o sorriso quando noto um cacho do cabelo entrando em sua boca. Ela tenta disfarçadamente tirá-lo com a língua, sem atrair atenção para si.
Sabendo que ela não quer criar nenhum tipo de interrupção, nem para algo simples assim, eu afasto o cacho para ela.
Sinto que somos as duas únicas pessoas do mundo.
Quando chega a hora de dizermos nossos votos, eu sei que nenhum dos dois escreveu nada, nem teve muito tempo para pensar no que queria dizer. E assim, praticamente da mesma forma que costumamos fazer tudo, nós fazemos e pronto.
Eu aperto mais suas mãos entre nós e digo:
— Camryn, você é a outra metade da minha alma, e eu vou te amar hoje e todo dia pelo resto das nossas vidas. Prometo que se um dia você me esquecer, lerei para você, como Noah lia para Allie. Prometo que, quando ficarmos velhos e nossos ossos doerem, nunca dormiremos em quartos separados, e que se você morrer antes de mim, será enterrada com esse vestido. Prometo assombrar você como Patrick Swayze assombrou Demi Moore. — Seus olhos começam a se encher de água. Eu acaricio as palmas das mãos dela com meus polegares. — Prometo que nunca vamos acordar um dia, daqui a anos, e nos perguntar por que desperdiçamos nossas vidas sem fazer nada, e que seja qual for a dificuldade que enfrentemos, eu sempre, sempre estarei com você. Prometo ser espontâneo, sempre baixar o volume da música quando você adormecer, e cantar a música das uvas-passas quando você estiver triste. Prometo sempre amar você, em qualquer lugar do mundo ou de nossas vidas em que estejamos. Porque você é a outra metade de mim, sem a qual eu sei que não consigo viver.
Lágrimas escorrem dos seus olhos. Ela leva um instante para se recompor.
E então ela diz:
— Andrew, prometo nunca te manter vivo por aparelhos, deixando você sofrer, se eu sentir no fundo do meu coração que sua vida acabou. Prometo que, se um dia você se perder ou desaparecer, eu... nunca vou parar de te procurar. Jamais. — Isso me faz sorrir. — Prometo que quando você morrer, vou mandar que toquem “Dust in the Wind” no funeral, e você não será enterrado num lugar frio. Prometo sempre te contar tudo, por mais que eu me sinta envergonhada ou culpada, e confiar em você quando me pedir pra fazer alguma coisa, porque sei que tudo o que você faz tem um propósito. Prometo ficar sempre ao seu lado e nunca deixar que você enfrente nada sozinho. Prometo amar você para sempre nesta vida e aonde quer que formos depois da morte, porque eu sei que não consigo viver em nenhuma vida, a menos que você também esteja nela.
O pastor Reed me diz:
— Andrew Parrish, aceita Camryn Bennett como sua legítima esposa, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-a e respeitando-a pelo resto da vida?
— Aceito — afirmo, pondo a aliança que comprei em Chicago no dedo dela. Ela fica discretamente sem fôlego.
Então ele se vira para Camryn e pergunta:
— Camryn Bennett, aceita Andrew Parrish como seu legítimo esposo, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-o e respeitando-o pelo resto da vida?
— Aceito.
Finalmente, eu entrego a ela a minha aliança, porque estava escondendo as duas dela até este momento, e ela a põe no meu dedo. O pastor Reed conclui, incluindo aquelas aguardadas sete palavras — “Eu agora os declaro marido e mulher” — e então me dá permissão para beijar minha esposa. É tudo o que queríamos fazer desde que a cerimônia começou, e agora que podemos, ficamos só nos olhando, perdidos nos olhos um do outro, nos vendo numa luz diferente, muito mais brilhante do que desde que nos conhecemos no Kansas, naquele ônibus. Sinto meus olhos começarem a arder e a tomo em meus braços e esmago minha boca sobre a dela. Ela soluça durante o beijo e eu aperto suas costas, erguendo seus pés descalços completamente da areia e rodopiando com ela. Minha mãe está chorando feito um bebê. Eu sinto que nunca mais vou parar de sorrir.
Camryn é a minha esposa.
Camryn
Eu acabo de me tornar Camryn Parrish. Não consigo nem entender as emoções que estou sentindo. Estou chorando, mas meio que rindo por dentro ao mesmo tempo. Me sinto empolgada, porém ansiosa. Olho de novo para esta aliança que ele acaba de pôr no meu dedo e sei que ele gastou muito dinheiro nela. Então olho para a dele, quase idêntica à minha, mas numa versão masculina, e não consigo ficar brava com ele. Não consigo. Ouço Marna soluçando atrás de mim, e não posso deixar de ir até ela e abraçá-la de novo.
— Bem-vinda à família — ela diz com a voz embargada.
— Obrigada. — Eu sorrio e enxugo as lágrimas.
Andrew passa o braço na minha cintura e o pastor se junta a nós. Quando Marna e ele começam a pôr a conversa em dia, Andrew e eu nos afastamos um pouco, e ele não consegue parar de me olhar. Eu fico vermelha.
— O que foi? — pergunto.
Ele balança a cabeça, com um sorriso radiante.
— Eu te amo — ele diz, e fico com vontade de chorar de novo, mas consigo me controlar.
— Eu também te amo.
Passamos a lua de mel no nosso apartamento, quebrando a tradição. Porque queremos esperar até nossa primeira viagem ao exterior para fazer uma verdadeira lua de mel.
— Onde você acha que será? — ele pergunta.
Estamos sentados na varanda, em duas cadeiras de praia, tomando cerveja e ouvindo a música ao vivo que vem da praia ou do parque, de algum lugar distante.
— Não sei — respondo, tomando um gole no gargalo. — Quer fazer uma aposta?
Andrew esfrega o lábio inferior com o polegar.
— Hmmm. — Ele pensa a respeito, tomando mais um gole de cerveja, e então diz: — Acho que o primeiro país que vamos tirar daquele chapéu vai ser... — ele estufa os lábios — ...o Brasil.
— Brasil, é? Legal. Mas eu não sei — tenho a estranha sensação de que vai ser mais alguma coisa tipo a Itália.
— É mesmo?
— Sim.
Ambos tomamos um gole ao mesmo tempo.
— Talvez a gente devesse apostar alguma coisa — ele diz, com a covinha da bochecha direita ficando mais funda.
— Uma aposta, é? Tá, eu topo.
— Tudo bem. Se for o Brasil, você vai ter que ir comigo pra praia, bem no estilo do Rio de Janeiro. — Seu sorriso é malicioso.
Eu levo um minuto para entender o que ele está dizendo, e quando a ficha cai, sinto o ar noturno nos meus dentes ao abrir a boca.
— Sem. Chance!
Andrew ri.
— Não vou ficar saltitando de topless em público!
Ele joga a cabeça para trás e ri mais alto.
— Não, acho que elas não fazem isso lá, amor — ele explica. — Quero dizer que você vai ter que usar um daqueles biquínis brasileiros. Nada daquelas porras tipo tô-com-vergonha que você usou na Flórida. Você tem um corpo legal. — Ele toma mais um gole e deixa a garrafa sobre a mesa à nossa frente.
Eu penso por um momento, mordendo a bochecha por dentro.
— Fechado — concordo.
Parecendo um pouco surpreso por me ver concordar tão facilmente, ele balança a cabeça.
— E se for a Itália — digo, também com um sorrisinho —, você vai ter que fazer uma serenata pra mim na escadaria da Piazza di Spagna... na língua local. — Eu cruzo uma perna sobre a outra. Eu sabia que a última parte ia pirar aquela cabecinha sexy dele.
— Você não tá falando sério — ele argumenta. — Como é que eu vou fazer uma porra dessas?
— Sei lá — respondo. — Acho que, se eu ganhar, você vai ter que dar um jeito.
Ele balança a cabeça e faz uma careta pensativa.
— Tudo bem. Tá apostado.
34
RALEIGH, CAROLINA DO NORTE — Junho
— Surpresa! — Várias vozes gritam quando entro na nossa nova casa.
Realmente surpresa, eu tenho um sobressalto e ponho a mão no peito. Natalie está bem no meio, com Blake ao seu lado. Meus amigos do meu Starbucks favorito e a irmã de Blake, Sarah, que conheci há duas semanas, quando Andrew e eu voltamos, estão todos aqui.
— Uau, a gente tá comemorando o quê? — pergunto, ainda tentando recuperar um pouco o fôlego, porque eles quase me mataram de susto. Eu me viro para Andrew. Ele está sorrindo, portanto é óbvio que teve algo a ver com tudo isso.
Natalie, agora com luzes ruivas no cabelo, me puxa para um abraço.
— É sua festa oficial de boas-vindas. — Ela dá um sorrisinho para mim e olha para Andrew. — Por que você acha que eu tava fazendo tão pouco caso da sua volta nos últimos dias?
— Você não fez pouco caso — comento.
— Tá, talvez não tenha dado pra perceber — ela admite —, mas por favor, Cam, você não notou que eu tava escondendo alguma coisa?
Acho que ela tem razão, pensando bem. Ela parecia contente por eu ter voltado, mas não eufórica, como ficaria normalmente. Acho que eu só imaginei que talvez Blake finalmente a tivesse domado um pouco.
Eu me viro para Andrew de novo.
— Mas a gente não tem nem móveis.
— Ah, tem, sim! — Natalie diz, me puxando pelo pulso.
Ela me arrasta para a sala de estar, onde oito pufes gigantes estão espalhados pelo chão. No meio da sala estão quatro caixotes de leite amarrados com uma tábua em cima, que eu presumo que sejam a mesinha de centro. A eletricidade nem foi ligada ainda, mas na “mesinha de centro” estão três velas apagadas sobre tampas de latas de biscoitos, prontas para quando escurecer, daqui a algumas horas.
Eu apenas rio.
— Eu tô adorando! — comento com Andrew. — Proponho que a gente desencane totalmente dos móveis e mantenha esse tema dos pufes gigantes retrô! — Claro que estou brincando, e Andrew sabe disso.
Ele se joga no pufe mais próximo e estica as pernas no chão, refestelando-se no vinil acolchoado.
— Eu até me viro com eles, mas a gente vai precisar de uma cama, com certeza. — Eu me sento no pufe ao lado e me ajeito. Todos fazem o mesmo, enquanto Natalie e Blake vão para a cozinha.
Andrew e eu encontramos aquela casinha cinco dias depois que chegamos. Querendo sair da casa da minha mãe tão rápido quanto humanamente possível, ele passou horas na internet e olhando anúncios de imobiliárias, mesmo enquanto eu fazia corpo mole e só relaxava depois da longa viagem desde Galveston. Praticamente deixei Andrew se ocupar da procura da casa. Ele me mostrava fotos e eu dava minha opinião. Mas aquela casa era perfeita. Foi a terceira que visitamos pessoalmente (e nem acho que o fato de ele tê-la adorado tenha algo a ver com ele ter acidentalmente visto minha mãe seminua quando ela achou que não estivéssemos em casa). O preço era ótimo porque os antigos donos, que já tinham se mudado havia quatro meses, queriam vendê-la logo e encerrar o assunto. Acabamos conseguindo comprá-la por vinte mil a menos do que seu real valor, e isentamos os antigos donos de fazer qualquer conserto antes de fechar o negócio. Como pagamos com dinheiro vivo, tudo aconteceu muito rápido.
Hoje é oficialmente nosso primeiro dia como os novos proprietários.
Trouxemos muitas coisas de Galveston, alugamos um pequeno reboque de mudanças, que lotamos com tudo o que coubesse dentro. Mas logo vamos ter que voltar para buscar os móveis. Infelizmente, Andrew está irredutível quanto a conservar a velha poltrona fedida do pai dele, mas prometeu mandar limpá-la. E é bom que mande mesmo!
Natalie e Blake voltam para a sala, cada um trazendo três garrafas de cerveja, que começam a distribuir.
— Obrigada, mas eu não quero — digo.
Natalie parece ficar arrasada, projetando o lábio inferior e me olhando. Ela está usando uma camiseta branca apertada que deixa seus seios empinados.
— Quero distância de cerveja por no mínimo uma semana, Nat — eu explico.
Ela torce o nariz, mas depois dá de ombros e diz:
— Sobra mais pra mim!
Depois que Blake passa uma cerveja para Andrew, ele se dirige para o último pufe que sobrou, mas Natalie corre e chega antes dele. Assim, ele se senta em cima dela. Enquanto eles estão se engalfinhando, Natalie dá uma risada esquisita, e eu vejo de soslaio a expressão no rosto de Andrew.
— Shenzi — ele sussurra, e balança a cabeça, tomando um gole de cerveja.
Eu rio baixinho, agora sabendo o que Andrew quis dizer a primeira vez que a chamou assim. Pesquisei no Google logo depois e descobri que esse é o nome da hiena desbocada de O Rei Leão.
— Vocês prometeram me contar sobre a viagem — Natalie diz, agora sentada no pufe, no meio das pernas de Blake.
Todos olham para mim e Andrew.
— Já te contei bastante coisa, Nat.
— É, mas não contou nada pra gente — diz Lea, minha amiga que trabalha no Starbucks.
Alicia, que trabalha com ela, acrescenta:
— Eu já caí na estrada com a minha mãe e meu irmão, mas com certeza deve ter sido totalmente diferente da sua viagem.
— E você ainda não me contou o que aconteceu na Flórida — Natalie diz. Ela toma um gole de sua cerveja e deixa a garrafa ao seu lado no chão, apoiando em seguida os braços sobre as pernas de Blake. Ele a beija no pescoço.
Eu me encolho toda por dentro só de pensar na Flórida, mas percebo que é porque Andrew, na verdade, é que poderia ficar constrangido com o que aconteceu. Por um segundo, não consigo nem encará-lo, pois me sinto culpada por ter tocado no assunto com Natalie. Não dei nenhum detalhe, só mencionei que um lance muito sinistro aconteceu enquanto estávamos ali.
Quando finalmente olho para Andrew, percebo que ele não está com raiva de mim. Ele pisca e também deixa sua cerveja no chão, ao seu lado.
— A Flórida — ele começa, para minha surpresa. — Essa provavelmente foi a pior etapa da viagem, se não foi também a mais estranha. Mesmo assim, tem algumas partes que não me desagradaram tanto.
Não faço ideia de onde ele quer chegar com isso.
Todos estão olhando para Andrew, agora, especialmente Natalie, cujos olhos estão esbugalhados de antecipação.
— Conhecemos uma moçada que convidou a gente pra uma balada com eles numa parte pouco acessível da praia. E a gente foi. E se divertiu. Mas aí as coisas ficaram esquisitas.
— Esquisitas como? — Natalie interrompe.
— Esquisitas tipo LSD ou sei lá que porra.
Os olhos de Natalie se abrem ainda mais e ficam ferozes quando ela me olha.
— Você tomou LSD? Que porra de ideia foi essa, Cam?
Eu balanço a cabeça.
— Não, claro que não tomei de propósito. Eles drogaram a gente!
Os olhos de todos estão arregalados como os de Natalie, agora.
— É — Andrew continua. — A gente nem sabe direito o que era, mas ficamos completamente chapados.
— Eu já levei um “boa noite Cinderela” uma vez — conta a irmã de Blake, Sarah.
Ela aparenta ter uns 18 anos.
Blake tem um sobressalto e levanta o corpo, fazendo Natalie bater os dentes no gargalo da garrafa.
— Quê? — ele pergunta, soltando fogo pelos olhos.
— Ah, você não sabia? — Sarah diz docemente, como se tivesse apenas esquecido de contar.
Obviamente, teria sido melhor não ter contado.
— Aaai! — Natalie choraminga, com a mão na boca.
— Desculpa — Blake diz. Ele beija sua bochecha e se vira para a irmã. — Sarah, quem foi que te dopou, porra? E não me enrola. É melhor você me contar... aconteceu alguma coisa? — O medo está estampado no seu rosto.
Sarah revira os olhos.
— Não. Não aconteceu nada, porque Kayla tava lá e me trouxe pra casa. E não, eu não sei quem foi, Blake, então fica frio aí, por favor. — Depois ela se vira na nossa direção. — Vocês tavam dizendo?
— Eu vou com você, cara — Andrew diz para Blake. — Se você descobrir quem foi, é só avisar. Isso é muita sacanagem.
Eu dou uma leve cotovelada em Andrew. Ele entende e diz:
— Bom, preciso dizer que a Flórida foi uma experiência, mas que nunca mais quero repetir.
Andrew não diz nada sobre a piranha nojenta que tentou fazer um boquete nele. Fico feliz por isso, porque seria uma conversa constrangedora. Isso sem falar que Natalie ia se divertir um monte com uma informação dessas. Ficamos sentados nos pufes e conversamos com nossos amigos por algumas horas, até umas oito da noite, quando Blake precisa levar Sarah para casa. Pouco depois que os três saem, o resto vai embora, e Andrew e eu ficamos sozinhos no nosso primeiro lar oficial como recém-casados.
Ele volta da cozinha com uma vela na mão, depois de acendê-la no fogão. O gás foi ligado antes. Então ele usa a chama para acender as outras, sobre a mesa.
— A gente vai dormir no chão? — pergunto, olhando para ele.
— Não — ele responde, afastando-se das velas. Ele puxa todos os pufes para o meio da sala e os junta, criando uma cama improvisada, depois bate nela com a palma da mão. — Por enquanto, vai ter que ser assim. Eu não vou dormir no chão. Acordo todo entrevado.
Eu sorrio.
— Isto é estranho, não? — comento, olhando ao redor para as paredes nuas da nossa casa, imaginando que tipo de fotografias ou quadros ficariam bem nelas.
— O que, não ter móveis nem eletricidade? Você já deveria estar acostumada. — Ele dá uma risadinha.
Eu me levanto do pufe perto da parede e me sento na cama que ele fez. Estendo a mão para a mesa e fico cutucando a cera quente de uma vela, deixando que me queime, depois esfrie e se molde à ponta do meu dedo.
— Não, quero dizer esta casa. A gente. Tudo, na verdade.
— Estranho de um jeito bom, espero.
— É claro — confirmo, sorrindo para ele.
O silêncio enche a casa. A luz das velas projeta grandes sombras dançantes nas paredes. A casa cheira a água sanitária, desinfetante e outros produtos de limpeza, embora fracamente.
— Andrew, obrigada por vir morar aqui.
Finalmente, ele se senta ao meu lado e ambos olhamos as chamas por um momento.
— Onde mais eu poderia estar, se não junto com você?
— Você sabe do que eu tô falando — respondo. Passo a palma da mão por cima de uma chama, só para sentir o calor na minha pele e ver o quanto consigo aproximá-la sem me queimar.
— Eu sei — ele admite —, mas mesmo assim.
Eu afasto a mão e olho para ele; seu rosto parece delicado no brilho alaranjado das velas, mesmo com a barba por fazer que está começando a aparecer de novo.
— Camryn, preciso contar uma coisa pra você.
Instantaneamente, meu coração fica apertado no peito com o modo como ele falou.
— O quê... isto é, como assim, precisa me contar uma coisa? — Estou tão nervosa. Não sei por quê.
Andrew dobra os joelhos e apoia os antebraços sobre eles. Ele olha de novo para as chamas uma vez, só por alguns segundos, mas até alguns segundos é tempo demais.
— Andrew? — viro completamente o corpo para encará-lo.
Noto que seu pomo de adão se mexe quando ele engole em seco. Ele me olha nos olhos.
— Eu tô sentindo dores de cabeça — ele começa, e meu coração afunda até o estômago. Sinto que vou vomitar. — Só desde segunda, mas marquei uma consulta com um médico daqui. Foi recomendação da sua mãe.
Eu a odeio na hora por esconder isso de mim. Minhas mãos estão tremendo.
— Pedi pra sua mãe não contar nada pra você porque queria que o lance da casa acontecesse tranquilamente...
— Você devia ter me contado.
Ele tenta pegar minha mão, mas sem perceber eu a puxo e fico de pé.
— Por que você escondeu isso de mim?! — Eu estou zonza.
Andrew fica de pé também, mas mantém distância.
— Já te falei — ele diz. — Eu não queria...
— Não quero saber! Você devia ter me contado!
Eu cruzo os braços sobre a barriga e me curvo um pouco para a frente. Estou surpresa de ainda não ter vomitado. Meus nervos estão tão em frangalhos que é como se estivessem realmente se partindo dentro de mim.
— Isso não pode estar acontecendo... — Finalmente, escondo o rosto nas mãos e começo a soluçar. — Por que isso tá acontecendo, porra?!
Andrew está ao meu lado em segundos. Eu sinto seus braços me envolverem. Ele puxa meu corpo trêmulo para o seu peito e me abraça. Apertado.
— Essas dores não querem dizer nada — Andrew afirma. — Sinceramente, não me sinto como da outra vez, Camryn. Tenho dores de cabeça, sim, mas são diferentes.
Quando domino os soluços o suficiente e sinto que vou conseguir falar sem engasgar, levanto a cabeça para olhá-lo.
Ele segura meu rosto com as mãos e sorri fracamente para mim.
— Eu sabia que você ia reagir assim, amor — ele continua baixinho. — Não quero que fique estressada pelos próximos quatro dias, até minha consulta na segunda. — Ele continua me olhando nos olhos. — Eu não tô sentindo a mesma coisa. Se concentra nisso, porque tô dizendo a verdade.
— Você tá? — pergunto. — Ou tá dizendo isso pra não me deixar preocupada? — Eu já enfiei na cabeça que o que ele está fazendo é exatamente a segunda opção. Me afasto dele e começo a andar de um lado para o outro, de braços cruzados, com uma mão sobre a boca. Não consigo parar de tremer.
— Não tô mentindo pra você. Eu vou ficar bem. Sinto que vou ficar bem, e você precisa acreditar.
Eu me viro para encará-lo de novo.
— Não consigo mais viver assim, Andrew. Não quero.
Ele inclina um pouco a cabeça; seu olhar é pensativo, curioso, preocupado.
Eu sei que ele quer que eu explique melhor o que falei, mas eu não posso. Não posso, porque as coisas que quero dizer só o deixariam chateado e magoado. E seriam apenas palavras. Palavras resultantes da dor e da raiva e de uma parte de mim que quer olhar na cara de Deus, ou seja lá quem ou o que for, e mandá-Lo pro inferno.
Eu preciso me acalmar. Preciso parar e respirar.
Eu faço exatamente isso.
— Camryn?
— Você vai ficar bem — afirmo com sinceridade. — Eu sei que você vai ficar bem.
Ele volta para perto de mim, me beija na testa e diz:
— Eu vou.
Andrew
35
OS ÚLTIMOS QUATRO dias foram estressantes. Embora Camryn tivesse dito que continuaria pensando positivo e que não se deixaria afetar, ela andou diferente. Seus nervos estão em frangalhos. Por duas vezes a ouvi chorando no banheiro e vomitando. Desde que contei sobre as dores de cabeça, na terça à noite, ela está agindo de um jeito bem parecido com a forma como agiu antes de partirmos para visitar Aidan e Michelle em Chicago: fingindo sorrisos e rindo forçado quando algo supostamente seria engraçado. Ela não é a mesma. Preocupado e lembrando o que aconteceu depois do aborto, com os comprimidos, perguntei à queima-roupa se ela teve mais algum “momento de fraqueza”.
Camryn diz que não, e eu acredito.
Mas nada vai consertá-la desta vez, a não ser sairmos hoje deste hospital com os resultados dos meus testes negativos.
Caso contrário... bem, não quero pensar nisso.
Estou mais preocupado com ela do que comigo mesmo.
Pediram que Camryn esperasse em outra sala enquanto faziam a tomografia. Percebo que ela queria discutir com a enfermeira, mas faz o que pediram. E, como da última vez, parece que já estou aqui há horas, me sentindo um pouco claustrofóbico no túnel desta máquina enorme e barulhenta. Fique bem parado, o técnico me pediu. Tente não se mexer, senão vamos ter que refazer o exame. Nem preciso dizer que fiquei praticamente sem respirar por 15 minutos.
Quando a tomografia acabou, tirei os tampões de ouvido e os joguei no cesto de lixo.
Camryn quase perdeu as estribeiras quando a enfermeira que veio me liberar disse que só saberíamos de alguma coisa na quarta-feira.
— Você tá de brincadeira comigo! — Os olhos de Camryn estavam animalescos. Iam e voltavam entre mim e a enfermeira, esperando que um de nós pudesse fazer alguma coisa.
Eu olhei para a enfermeira.
— Tem algum jeito de a gente saber o resultado ainda hoje?
Percebendo, só de olhar para a expressão de Camryn, que ela não iria ceder, a enfermeira suspirou e disse:
— Vão sentar na sala de espera, vou ver se consigo convencer o dr. Adams a dar uma olhada agora.
Quatro horas depois, estávamos sentados no consultório do dr. Adams.
— Não vejo nenhuma anormalidade — o doutor declarou, e eu senti a mão de Camryn afrouxar o aperto mortal em que prendia a minha. — Mas, considerando seu histórico, acho que seria do seu interesse se consultar comigo uma vez por mês pelos próximos meses e ficar atento de qualquer alteração que considerar importante.
— Mas o senhor falou que não viu nada — Camryn disse, apertando minha mão de novo.
— Não, mas ainda acho que isso seria do interesse de Andrew. Só por segurança. Assim, se alguma coisa surgir, vamos detectá-la bem cedo.
— Tá dizendo que alguma coisa vai surgir?
Eu queria rir da sutil cara de frustração do médico, mas em vez disso olhei para Camryn, que estava à minha esquerda, e falei:
— Não, ele não tá dizendo isso. Fica calma. Tá tudo bem. Viu? Eu falei que ia ficar tudo bem.
E daquele dia em diante, só pude torcer para que eu estivesse dizendo a verdade.
Camryn
36
MUITOS MESES DEPOIS...
Andrew me escreveu outra carta, em algum momento do nosso primeiro mês na nova casa. Acho que já a li umas cem vezes. Em geral eu choro, mas também me pego sorrindo muito. Ele disse que queria que eu a lesse uma vez por semana para marcar mais uma semana que passava sem nada acontecer, em que tudo continuava bem. E eu fiz isso. Costumava lê-la no domingo à noite, depois que ele já tinha pegado no sono ao meu lado na cama. Mas às vezes, quando eu adormecia antes dele, na manhã seguinte tirava a carta de dentro do livro ao lado da cama e a lia antes que ele acordasse. E como em todas as vezes anteriores, eu olhava para ele dormindo, depois de lê-la, e torcia por mais uma semana.
Andrew sempre me intrigou. O modo como sua mente funcionava. O modo como ele conseguia me olhar sem dizer nada e fazer com que eu me sentisse a pessoa mais importante do mundo. Sempre me intrigou como ele conseguia ser sempre tão otimista, mesmo quando o mundo estava desmoronando ao seu redor. E como ele sempre fazia uma luz brilhar nos recantos mais sombrios da minha mente, quando eu achava que nunca mais veria outra luz ali.
Claro que ele tinha maus dias, “momentos de fraqueza”, mas jamais conheci alguém nem de longe como ele. E sei que jamais vou conhecer.
Talvez no fundo eu seja uma pessoa fraca, na verdade. Talvez, se não fosse por Andrew, eu não fosse a pessoa que sou hoje. Às vezes me pergunto o que seria de mim se eu jamais o tivesse conhecido, se ele não tivesse aparecido para me salvar daquela viagem de ônibus perigosa e imprudente que decidi fazer sozinha. Eu me pergunto o que teria acontecido comigo se ele não gostasse de mim o suficiente para me ajudar a superar o meu momento de fraqueza. Odeio pensar em mim assim, mas às vezes é preciso simplesmente enfrentar a realidade, enxergar como as coisas são e como elas poderiam ter sido, por causa das nossas ações. Acredito de coração que, se não fosse por Andrew, talvez eu nem estivesse aqui hoje.
Os últimos meses foram muito difíceis para nós, mas ao mesmo tempo foram cheios de vida, empolgação, amor e esperança.
A vida é uma coisa misteriosa e muitas vezes injusta. Mas acho que aprendi, no tempo que passei com Andrew, que ela também pode ser maravilhosa, e que em geral, quando acontece uma coisa que parece injusta, é só o jeito de a a vida abrir espaço para coisas melhores que virão. Gosto de pensar assim. Me dá forças quando mais preciso.
E no momento, eu preciso muito.
Tento olhar para cima, para o relógio no alto da parede branca e estéril da sala, mas mal consigo enxergar os ponteiros com minha visão embaçada. Quero saber há quanto tempo estou aqui. Estou exausta e enfraquecida mental e fisicamente e não aguento mais. Eu engulo o nó na garganta e sinto que minha boca está seca como uma lixa. Enxugo uma lágrima do meu olho. Mas só uma. Na verdade, não chorei muito. Porque a dor estava tão insuportável, antes, que praticamente secou todas as minhas lágrimas.
Eu não vou conseguir. Sinto que a qualquer momento vou querer simplesmente desistir. Quero dizer pra todos que estão na sala que vão embora, que me deixem em paz e parem de me olhar como se minha alma estivesse doente. Ela está! Está, porra! Mas ninguém aqui pode curá-la.
O que mais sinto é entorpecimento. Não consigo sentir mais nada. Mas as paredes do hospital estão começando a se fechar ao meu redor, me deixando um tanto claustrofóbica. Mas quanto à dor e à angústia, não sinto nada. Eu me pergunto se vou ficar entorpecida para sempre.
— Você precisa tentar fazer força — Andrew recomenda ao meu lado, segurando a minha mão.
Eu viro a cabeça bruscamente para olhá-lo e discuto:
— Mas eu não tô sentindo minha cintura! Como posso fazer força se não consigo sentir que tô fazendo força! — Acho que só tenho força para expelir essas palavras entre meus dentes cerrados.
Ele sorri e beija minha testa suada.
— Você consegue — assegura a dra. Ball, do meio das minhas pernas.
Eu fecho os olhos, aperto a mão de Andrew e faço força. Eu acho. Abro os olhos e me permito respirar.
— Eu fiz força? Tá dando certo?
Meu Deus, tomara que eu não solte um peido! Ai meu Deus, ia ser um puta dum mico!
— Você tá indo muito bem, amor.
Andrew olha para a obstetra, agora, esperando.
— Mais algumas vezes vão ser suficientes — a obstetra me tranquiliza.
Odiando as palavras dela, solto um suspiro frustrado e jogo com força a cabeça contra o travesseiro.
— Tenta de novo, amor — Andrew pede delicadamente, sem jamais perder a calma, embora toda vez que o vejo olhar para a obstetra eu perceba um traço de preocupação oculta em seu rosto.
Eu ergo as costas do travesseiro novamente e tento fazer força, mas como de costume, não sei dizer se estou mesmo fazendo força ou só achando que estou. Andrew põe um braço nas minhas costas para me ajudar a ficar erguida, e eu me apoio nele e faço força de novo, fechando os olhos tão apertado que sinto que eles estão afundando no meu crânio. Meus dentes estão cerrados e à mostra. O suor escorre da minha testa.
Eu grito algo incompreensível quando paro de fazer força e consigo respirar de novo.
E sinto alguma coisa. Opa... não é dor — a epidural me curou disso —, mas a pressão do bebê com certeza eu senti. Se eu não soubesse que é impossível, acharia que alguém acabou de enfiar algo descomunal na minha vagina. Meus olhos ficam cada vez mais arregalados.
— A cabeça do bebê saiu — ouço a obstetra dizer, e depois ouço um barulho nojento quando ela limpa a garganta do bebê com um bulbo de sucção.
Andrew quer olhar; vejo seu pescoço se esticar como o de uma tartaruga, tentando ver melhor, mas ele não quer sair do meu lado.
— Só mais umas vezes, Camryn — a dra. Ball repete.
Eu faço força de novo, me esforçando ainda mais, agora que sei que está dando certo mesmo.
Ela puxa os ombros do bebê para fora.
Eu faço força mais uma vez e nosso bebê nasce.
— Você foi ótima — a obstetra elogia, enquanto limpa melhor a garganta do bebê.
Andrew beija a minha bochecha e minha testa, e afasta meu cabelo empapado do meu rosto e do pescoço. Alguns segundos depois, o choro do bebê enche a sala de sorrisos e empolgação. Eu caio no choro, soluçando tanto que todo o meu corpo treme descontroladamente de emoção.
E então a obstetra anuncia:
— É menina.
Andrew e eu mal conseguimos tirar os olhos dela, até que pedem que ele corte o cordão umbilical. Ele sai de perto de mim, mas sorri orgulhosamente ao ir para o outro lado e fazer as honras. Parece incapaz de decidir para quem ele quer olhar mais, se para mim ou para nossa filha. Eu sorrio e volto a encostar a cabeça no travesseiro, completamente esgotada. Finalmente consigo enxergar o relógio de parede. Ele diz que fiquei em trabalho de parto por mais de 16 horas.
Sinto mais pressão, cutucões e puxões entre minhas pernas enquanto a obstetra faz coisas sobre as quais, francamente, não quero saber nada. Fico só olhando para o teto por um momento, perdida nos momentos dos últimos nove meses, até que ouço nossa bebê gritando do outro lado da sala e novamente levanto a cabeça tão rápido que quase destronco o pescoço.
Andrew fica por perto enquanto uma das enfermeiras a limpa e começa a embrulhá-la em cobertores. Ele olha para mim e diz:
— Bom, ela tem os seus pulmões, amor — e enfia dois dedos nos ouvidos. Eu sorrio e olho para os dois, tentando não pensar nos puxões que continuo sentindo lá embaixo. E então Andrew volta para o lado da cama.
Ele beija meus lábios e sussurra:
— Suada. Parece que você correu uma maratona. Sem maquiagem. Numa camisola de hospital. E mesmo assim consegue ser bonita.
E apesar de tudo isso, mesmo assim ele consegue me deixar vermelha.
Levanto a mão da qual sai o tubo do soro e seguro o rosto dele, puxando-o para mim.
— Conseguimos — eu murmuro perto dos seus lábios.
Ele me beija delicadamente de novo, e então a enfermeira se aproxima com nossa filha no colo.
— Quem quer segurá-la primeiro? — ela pergunta.
Andrew e eu nos entreolhamos, mas ele faz menção de dar passagem para que a enfermeira possa entregá-la para mim.
— Não — eu insisto. — Você primeiro.
Só um pouco dividido a respeito disso, Andrew finalmente cede e estende os braços para pegá-la. A enfermeira a coloca cuidadosamente no colo dele e se afasta assim que percebe que ele a está segurando firme. De início, ele parece desajeitado e infantil, com medo de derrubá-la ou de não a estar segurando direito, mas logo fica mais à vontade.
— Loura — ele anuncia perto de mim, sorrindo de orelha a orelha, com os olhos verdes levemente marejados de lágrimas. — E cabeluda também!
Ainda estou tão exausta que só consigo reagir com um sorriso.
Andrew olha para ela, toca suas bochechinhas com os nós dos dedos e lhe beija a testa. Depois de alguns momentos, ele a coloca nos meus braços pela primeira vez. E assim que fico frente a frente com minha menina, eu desmorono de novo. Mal consigo enxergar em meio a tantas lágrimas.
— Ela é tão perfeita — digo, sem tirar os olhos dela. Estou quase com medo de tirar, como se desviando o olhar por um segundo ela vá sumir, ou eu vá acordar de um sonho. — Perfeita — murmuro e beijo seu narizinho.
Andrew
37
TODOS OS PARENTES, tanto meus quanto de Camryn, estão na sala de espera — menos o pai e o irmão de Camryn. Ninguém sabe ainda se é menino ou menina. Camryn e eu não quisemos saber durante toda a gravidez. Decidimos deixar que ela nos surpreendesse. E nos surpreendeu.
Antes de deixar a família entrar para vê-las, fico com Camryn no quarto particular para onde nos transferem logo após o parto. Estamos ali há um tempinho, esperando que as enfermeiras tragam a bebê de volta depois de fazer o que elas fazem, seja lá o que for. Eu a pego no colo depois que a enfermeira verifica a pulseira de identificação de Camryn e a compara com a que “Bebê Parrish” está usando no tornozelinho. Eu também verifico, antes de deixar a enfermeira sair. E examino bem a bebê. Hoje em dia, todo cuidado é pouco, e eu vou controlar pra ver se eles trazem sempre o mesmo bebê que levaram. Mas não há como confundir aquela cabeleira loura e aquela vozinha estridente, mas de gelar o sangue, que me põe em submissão absoluta. Se ela soubesse falar, eu faria tudo o que ela pedisse sem pensar duas vezes. Me dá a mamadeira! Sim, senhora! Troca a minha fralda! É pra já! Pisa no pé daquela enfermeira que me enrolou feito um burrito! Tudo bem, garotinha!
Camryn a segura perto do tórax, deixando que ela mame no peito.
Ela descobriu que estava grávida de novo um dia antes de mudarmos para a nova casa. Mas ela só me contou depois da minha consulta no médico, na segunda-feira seguinte. Ela disse que estava com medo, acho que da mesma forma que fiquei com medo de contar a ela imediatamente que eu estava sentindo dores de cabeça. Mas depois disso, conversamos muito sobre as coisas que faríamos diferente, desta vez. Uma dessas coisas foi sua decisão de amamentar. Na primeira gravidez, Camryn não ficou muito empolgada com a ideia de ter um bebê sugando seus seios, especialmente porque talvez precisasse amamentá-la em público. Na época, eu só concordava com o que ela queria e não tentava fazê-la mudar de ideia. Eu não tinha nenhum motivo para isso, na verdade.
Mas desta vez, quando Camryn tocou no assunto de novo, ela disse:
— Quer saber, amor? Andei lendo muito sobre gravidez e os benefícios da amamentação, e não quero nem saber o que os outros vão pensar. Eu sinto que quero e devo fazer isso.
E eu disse:
— Então também acho que você deve.
Eu me sento ao lado dela. Fiquei feliz por ela ter tomado essa decisão sozinha, sem que eu desse palpite. Ei, contanto que eu não comece a ter fetiche por lactação e ela não queira que eu prove, o que ela decidir tá bom pra mim.
— Eu li que a maioria dos bebês nasce com olhos azuis — Camryn diz, olhando para a bebezinha —, mas acho que mais tarde ela vai ter os seus olhos verdes.
Eu afago a cabeça da nossa filha de leve com as pontas dos dedos.
— Talvez. — Não consigo parar de olhar para as duas, minha linda mulher e minha preciosa filhinha. Sinto que entrei em outro mundo, muito mais brilhante do que jamais imaginei. Eu realmente não achava que poderia ser mais feliz do que eu era com Camryn. Não achava isso possível.
Acho que Camryn ainda está um pouco em choque.
— O que você tá pensando? — pergunto, sem parar de sorrir ternamente.
Seus olhos cansados se abrandam quando ela me olha.
— Você tinha razão — ela diz.
A bebê faz um barulhinho de sucção, tão fraco que mal o ouço, mas percebo que estou prestando atenção em cada ruído e movimento dela.
Camryn continua:
— Você disse que eu não ia perdê-la, desta vez. Você disse que o tumor não ia voltar. Disse que ia dar tudo certo. E deu. — Ela olha para a bebê por um momento, afagando sua sobrancelha com o dedo, e então para mim de novo. — Obrigada por estar certo.
Eu me levanto da cadeira, seguro seu queixo e levanto sua cabeça para poder beijá-la na boca.
Alguém bate de leve na porta e ela se abre devagar. A cabeça da minha mãe aparece.
— Entra — eu digo, chamando-a com um gesto.
A porta larga se abre completamente, e tanta gente entra no quarto em fila indiana que eu paro de contar depois de Aidan e Michelle, que está grávida de cinco meses.
Nós nos abraçamos, todos passando os braços ao meu redor, mas tentando dar uma olhada na bebê ao mesmo tempo.
— Parabéns, mano — Aidan diz, me dando tapinhas nas costas. — Eu tava sentindo que você ia ser pai antes de mim. — Ele acaricia a barriga redonda de Michelle. Ela afasta sua mão de um jeito bem-humorado e o avisa para não enfiar mais o dedo no seu umbigo. Depois me abraça e se aproxima de Camryn na cama.
— Nós vamos ter um menino — Aidan conta.
— É mesmo? — exclamo. — Que legal.
A notícia também chama a atenção de Camryn, mas Michelle fala primeiro.
— Ele não tem certeza — ela diz. — Só acha que sabe.
Camryn ri baixinho e diz:
— Pode acreditar, se um dos irmãos Parrish diz que vai ter um menino ou uma menina, provavelmente vai acertar.
— Tudo bem, veremos — Michelle desconversa, ainda incrédula.
Eu olho para o meu irmão, e já vi essa expressão confiante. É, eles vão mesmo ter um menino.
— Ai meu Deus — ouço Natalie dizer baixinho em algum lugar do quarto —, o cobertor é cor-de-rosa. Isso significa o que eu tô pensando? — Ela leva as mãos ao rosto, cobrindo a boca com os dedos cheios de anéis. Na verdade, estou surpreso por vê-la tão calma. Blake está ao lado dela, em silêncio, como sempre.
Camryn olha primeiro para mim, eu sinalizo com a cabeça minha autorização e ela diz a todos:
— Sim, esta é a nossa filha.
Todas as mulheres migram imediatamente até a cama. A mãe de Camryn estende os braços, querendo ser a primeira a segurá-la no colo, e Camryn cobre o seio com a camisola e a entrega cuidadosamente.
— Oh, ela é tão linda, Camryn — Nancy elogia. Seu cabelo oxigenado está preso num coque malfeito no alto da cabeça. Seus olhos são tão azuis quanto os de Camryn. Elas se parecem mesmo. — Ela é perfeita. Minha netinha perfeita. — O padrasto de Camryn, Roger, parece apavorado, apoiado na parede, sozinho. Não sei se é porque esse tipo de situação o deixa constrangido ou porque se deu conta de que agora está casado com uma avó. Eu rio por dentro.
Asher me abraça a seguir.
— Se fosse menino, eu ia me preocupar em ter outro como você à solta por aí. — Ele sorri e me cutuca com o cotovelo.
— Bom, pode esperar, maninho — eu retruco, sugando ar entre os dentes —, você é o próximo da fila, e outro igual a você é tão ruim quanto outro igual a mim.
— Não sei não — ele rebate.
— É, tem razão. Pra isso você precisa de uma namorada. Acho que não vai precisar se preocupar com essa possibilidade tão cedo.
— Cara, eu tenho namorada.
— Quem é? Lara Croft? Ou alguma desenhada por Luis Royo? — eu rio.
— Deixa quieto, cara — ele diz, cruzando os braços e balançando a cabeça, mas sei que é preciso bem mais para deixá-lo puto. Se eu não tirasse um sarrinho, ele ia achar que eu estava doente.
— Tio Asher — eu digo, para me redimir mesmo assim. — Até que soa bem.
Ele faz que sim com a cabeça, pensativo, e concorda:
— É, também acho.
Nancy passa nossa filha para minha mãe, em seguida. Eu nunca a vi tão orgulhosa. Seus olhos passam de mim para a bebê, indo e voltando.
— Ela tem seu nariz e seus lábios, Andrew — minha mãe afirma.
— E o cabelo e os pulmões de Camryn — eu lembro.
Natalie está no pé da cama agora, e está agitada, com as mãos à frente do corpo. Minha mãe percebe o quanto ela está ansiosa para pegar a bebê, por isso beija a cabeça da neta e a passa para Natalie.
— Espero que você tenha lavado as mãos, Nat — Camryn diz da cama.
— Eu lavei! — Natalie responde, e em seguida ignora Camryn e começa a falar com minha filha, embora ela esteja dormindo: — Oh, você é a coisinha mais linda que eu já vi — sua voz ficando mais alta à medida que ela fica mais emocionada. Então ela olha Camryn nos olhos e diz, séria: — Meu Deus, eu quero um também.
Blake arregala os olhos, e acho que para de respirar. Quando olho para ele de novo, alguns minutos depois, vejo que já está ao lado de Roger, encostado na parede.
Brenda, a tia de Camryn, é a próxima a pegar a bebê no colo, e depois uma de suas primas. Depois que Michelle a segura por alguns minutos, derramando elogios à sua beleza, ela a devolve para Camryn. Eu me sento novamente na cadeira ao seu lado.
— Então, já escolheram um nome? — minha mãe pergunta.
Camryn e eu nos entreolhamos, e ambos estamos pensando a mesma coisa.
— Ainda não — Camryn responde, e é só o que ela diz. Eu sei que devo ser o único no quarto que percebe na hora o que a questão do nome causou: Camryn não conseguiu evitar pensar em Lily. Mas ela deixa esse momento passar e beija a bochecha da nossa bebê, obviamente tão orgulhosa do que tem, apesar do que perdeu.
A maioria dos parentes vai embora antes de escurecer, mas nossas mães ficam até um pouco mais tarde, se conhecendo melhor. É a primeira vez que elas se encontram oficialmente. E por fim vão embora, pouco depois das sete, quando a enfermeira entra no quarto para dar uma olhada na bebê e em Camryn.
Quando nós três ficamos a sós de novo, eu reduzo a iluminação do quarto, deixando só a luz do banheiro acesa. Nossa filha dorme profundamente no colo de Camryn. Eu sei que minha mulher está cansada, completamente exausta, mas ela não consegue largar a bebê para também dormir um pouco. Eu me ofereci para pegá-la para que ela possa dormir, mas Camryn insiste em ficar acordada.
Eu olho para as duas por um instante, um momento tão perfeito, e então me aproximo e me sento na beira da cama, perto delas.
Camryn olha para mim, depois mais uma vez para nosso anjinho adormecido.
— Lily — eu digo simplesmente.
Camryn volta a me olhar, confusa.
Eu balanço a cabeça devagar, como que para dizer: Sim, você ouviu certo, e toco a cabecinha macia da nossa bebê de novo.
— Lembra o que eu disse? Em Chicago, quando encontrei os comprimidos?
Ela balança a cabeça negativamente.
Desta vez, eu toco o rosto de Camryn, correndo os dedos por um lado dele e depois pelo outro.
— Eu disse que Lily ainda não tava pronta. — Fico em silêncio e depois acrescento, com um sorriso: — Mesma alma, outro corpo.
Algum pensamento brilha nos olhos de Camryn. Ela inclina a cabeça um pouco para o lado, me olhando, intrigada. E então olha de novo para a bebê e não ergue mais o olhar pelo que parece uma eternidade.
Quando ela levanta a cabeça, lágrimas estão escorrendo pelo seu rosto.
— Você acha? — ela pergunta, esperançosa.
— Sim. Eu acho.
Ela começa a chorar mais copiosamente e aperta com delicadeza a bebê Lily contra os seios, ninando-a. Então olha para mim e balança a cabeça várias vezes.
— Lily — ela murmura baixinho, beijando-lhe o alto da cabeça.
Na manhã seguinte, eu me espreguiço na cadeira ao lado da cama de Camryn, onde peguei no sono na noite anterior. Eu a ouço falando em voz baixa no quarto e, como todas as outras vezes, finjo ainda estar dormindo enquanto ela lê a carta que escrevi meses atrás.
Camryn
38
Querida Camryn,
Eu sei que você está com medo. Eu estaria mentindo se dissesse que não estou com um pouco de medo também, mas preciso acreditar que desta vez vai ficar tudo bem. E vai ficar.
Nós passamos por tanta coisa juntos. Mais do que a maioria das pessoas, em tão pouco tempo. Mas em qualquer situação, a única coisa que nunca mudou é que ainda estamos juntos. A morte não conseguiu me tirar de você. A fraqueza não conseguiu me fazer ver você de forma negativa. As drogas e as merdas que vêm com elas não conseguiram tirar você de mim, nem voltar você contra mim. Acho que podemos afirmar com toda a segurança que somos indestrutíveis.
Talvez tudo isso tenha sido um teste. Sim, eu penso muito a respeito e me convenci disso. Muita gente prefere ignorar o Destino. Alguns têm tudo o que já quiseram ou precisaram ao alcance das mãos, mas abusam disso. Outros passam reto pela sua única oportunidade porque nunca abrem os olhos por tempo suficiente para ver que ela está ali. Mas você e eu, até antes de nos conhecermos, corríamos todos os riscos, tomávamos nossas próprias decisões sem dar ouvidos aos outros ao nosso redor nos dizendo, de tantas maneiras, que o que fazíamos estava errado. Não, porra, nós fazíamos do nosso jeito, por mais imprudente, louco ou fora do convencional que fosse. Parecia que quanto mais avançávamos e lutávamos, mais árduos ficavam os obstáculos. Porque precisávamos provar que nós somos os caras.
E eu sei que fizemos exatamente isso.
Camryn, quero que você leia esta carta para si mesma uma vez por semana. Não importa que dia ou que hora, apenas leia. Cada vez que você a abrir, quero que veja que mais uma semana se passou e você continua grávida. Eu continuo com saúde. Nós ainda estamos juntos. Quero que você pense em nós três, você, eu e nosso filho ou filha, viajando pela Europa e pela América do Sul. Só visualize isso. Porque nós vamos fazer isso. Eu prometo.
Você é tudo pra mim, e quero que continue forte e não deixe que seu medo do passado contamine o caminho para o nosso futuro. Vai dar tudo certo desta vez, Camryn, vai, sim, juro pra você.
Apenas confie em mim.
Até semana que vem...
Com amor,
Andrew
Eu ergo os olhos da carta na minha mão, deixando-a ao meu lado na cama, presa entre meus dedos. Lily dorme profundamente ao meu lado no berço do hospital. Andrew precisou ser convincente para que eu finalmente concordasse em colocá-la ali, em vez de segurá-la no colo a noite inteira. Mas acordei várias vezes para verificar se ela ainda estava respirando. Eu verifico de novo, agora. Não consigo evitar; acho que vou fazer isso por meses.
Finalmente, eu dobro a carta de Andrew mais uma vez nas mesmas dobras gastas. Provavelmente, ele acha que vou parar de lê-la, agora que Lily nasceu. Mas não vou. Nunca parei de ler a primeira carta que ele me escreveu, embora ele não saiba. Algumas coisas eu guardo só pra mim.
— Pronta pra botar aqueles destinos no chapéu? — Andrew diz.
Eu me pergunto há quanto tempo ele está acordado. Olho para ele e sorrio.
— Vamos esperar mais uns meses.
Ele balança a cabeça e se levanta da cadeira.
— Como conseguiu dormir assim? — pergunto. — Devia ter ido pro sofá. — Eu olho para o pequeno sofá perto da janela.
Andrew estica os braços para os lados e estala as costas e o pescoço. Ele não responde.
— Acho que finalmente vamos poder pegar todas aquelas coisas do primeiro chá de bebê na casa da minha mãe e trazer pra nossa casa — digo.
Andrew abre um sorriso maroto.
— Peraí, você já fez isso, certo?
Ele se espreguiça um pouco mais.
— Tecnicamente, não fui eu. Ontem, Natalie, Blake e sua mãe levaram tudo pra lá depois que a gente foi pro hospital, e já arrumaram tudo.
Eu não quis fazer isso durante a gravidez. Era só mais uma maneira de me preocupar em pôr o carro na frente dos bois e depois perder outro bebê. Pelo mesmo motivo, me recusei a saber o sexo do bebê antes que nascesse. Eu não queria me concentrar nem contar com nada disso como da outra vez. Achava que podia dar azar. No fundo, Andrew não concordava com isso, mas nunca disse nada, nem tentou me fazer mudar de ideia.
— E, como você provavelmente pode imaginar — ele continua —, como Michelle e minha mãe estão aqui, vai ter muito mais coisas além dos presentes do chá de bebê te esperando em casa.
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No dia seguinte, quando Andrew abre a porta da nossa casa e eu entro com Lily no colo, vejo de cara que ele me disse a verdade. A casa está impecável. Eu jamais conseguiria deixá-la tão limpa. Quando Andrew me leva para a sala pelo corredor, ao passar vejo de relance um receptor de babá eletrônica no balcão da cozinha, outro sobre a mesinha de centro da sala, outro sobre a pia do banheiro, e finalmente, o terminal principal no quarto de Lily quando entro.
Eu fico sem fôlego, arregalando os olhos.
— Uau, Andrew, olha o que eles fizeram!
Lily se mexe no meu colo, provavelmente reagindo à empolgação na minha voz, mas logo se aquieta de novo.
O berço está encostado numa parede, com um lindo móbile musical do Ursinho Puff acima. Um jogo com gaveteiro e trocador ocupa a outra parede, perto da janela. Andrew abre as gavetas e mostra que cada uma está cheia de roupinhas, cobertores, panos, meinhas e várias outras coisas. Ele abre o armário e eu vejo dezenas de vestidinhos e conjuntos. Há tantos pacotes de fraldas empilhados ao lado do trocador que acho que nunca mais vamos comprar fraldas. Claro que sei que é só otimismo da minha parte.
Andrew me leva de volta ao corredor e abre o armário ao lado do banheiro para me mostrar um andador, um balanço infantil e uma espécie de estranho trepa-trepa, todos ainda nas caixas.
— Vou ter que montar isso tudo quando ela tiver idade pra usar — ele explica. — Mas ainda vai demorar um pouco.
— Acha que vai conseguir sozinho? — pergunto, brincando.
Ele empina o queixo e diz:
— Sem nem ler as instruções.
Eu só rio por dentro.
Então ele me leva para o nosso quarto. Há um bercinho branco perto da cama, do meu lado.
— Comprei pra você — ele conta, sorrindo com orgulho. — Sei que ainda vai demorar muito pra você conseguir deixá-la sozinha no quarto, então imaginei que ia precisar de um bercinho.
Ele está ficando vermelho. Eu me aproximo e beijo o canto de sua boca.
— Você tá certo. Obrigada.
Lily começa a se mexer de novo, e desta vez acorda. Andrew a pega do meu colo.
— Deixa que eu troco a fralda dela — ele diz.
Eu a entrego, deito no sentido da largura da nossa cama e fico observando. Ele a deita na cama também e solta seus cobertores. Os gritos mais bonitinhos, mas altíssimos, saem de seus pulmões. Os bracinhos e as pernas se agitam rigidamente. A cabecinha toda fica roxa feito uma beterraba. Mas Andrew não se abala. E quando abre a fralda dela, não fica enojado com a surpresa que ela deixou. Admito que fico surpresa com a facilidade que ele já demonstra em ser pai.
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Voltei a trabalhar na Bath and Body Works quando terminou a minha licença-maternidade, mas agora só por meio período. Minha chefe, Janelle, é maravilhosa, e gosta tanto de mim que me deu um aumento de um dólar quando contei que estava grávida. Só eu e Natalie trabalhamos lá, agora; Natalie faz período integral e assumiu boa parte do meu trabalho acumulado nas seis semanas em que estive de folga. Mas ela não liga. Diz que está economizando para comprar a casa própria. Ela e Blake parecem se curtir muito, sempre que os vejo juntos. Para ser sincera, nunca vi Natalie tão feliz. Eu achava que ela era feliz quando estava com Damon, mas estou percebendo que aquilo devia ser só tolerância e baixa autoestima. Blake é diferente. Acho que eles vão dar certo.
Andrew começou a trabalhar numa mecânica e funilaria umas três semanas depois que mudamos para a nossa casa. Seu conhecimento de carros lhe garantiu um lugar privilegiado na folha de pagamentos. Com certeza está ganhando mais do que eu, mas tenta me valorizar dizendo: “Isso não é porra nenhuma comparado a empurrar minha menina pra fora da sua...” Eu sempre o interrompo aí.
Desnecessário, Andrew. Mas obrigada!
Creche é coisa de rico, na minha opinião. Sinceramente, não acho que alguém que ganha salário mínimo possa pagar. O casal trabalharia só pra pagar a creche, o que não faz sentido. Além disso, Andrew e eu concordamos que não queremos deixar nossa filha na mão de estranhos. Por isso combinei com Janelle trabalhar só meio período à noite, quando Andrew está em casa, e um fim de semana sim, outro não.
Estamos vivendo bem e dando conta de tudo, como se tivéssemos levado a vida inteira desse jeito. Nosso saldo bancário pode ter seis dígitos, mas sabemos que é melhor devolver tudo o que conseguimos às nossas economias e gastar o mínimo possível. Além dos nossos empregos, Andrew e eu nos apresentamos com frequência, nas noites de sábado em que não estou trabalhando, no bar que o irmão de Blake, Rob, abriu na cidade. Algo aconteceu com o Underground e Rob precisou fechá-lo. Os boatos são de que Rob escapou por pouco de ser condenado à prisão. Acho que foi porque ele não tinha autorização para ter um bar, não sei. Mas Blake é o gerente do novo bar, e nas noites em que Andrew e eu tocamos lá, ganhamos metade do couvert artístico, que é mais do que já ganhamos tocando em qualquer outro bar, menos no de Aidan. Sábado passado faturamos oitocentas pratas.
É mais dinheiro entrando nas nossas economias para nossos planos futuros de ir aonde aquele chapéu nos mandar.
E, embora Andrew sempre ponha todo o seu coração e sua alma em cada apresentação, como sempre fez, agora percebo que, quando estamos no palco juntos, ele fica ansioso para terminar, para irmos pegar Lily na casa da minha mãe ou de quem teve a sorte de ficar com ela por aquelas poucas horas à noite.
Andrew tem tanto jeito com Lily. Ele não para de me surpreender. Levanta no meio da noite tantas vezes quanto eu para trocá-la, e às vezes até fica acordado comigo enquanto dou de mamar. Mas também tem seus momentos masculinos, portanto não é totalmente o Sr. Perfeitinho. Ao que parece, ele não é completamente imune a fraldas cagadas, e esta manhã mesmo o peguei com ânsia de vômito enquanto tentava trocá-la. Eu ri, mas fiquei com tanta pena que não pude deixar de assumir a tarefa. Ele saiu do quarto cobrindo a boca e o nariz com a camiseta.
E... bem, não quero tirar conclusões precipitadas, mas acho que Lily pode ter amolecido Andrew a ponto de ele gostar de Natalie, agora. Só um pouquinho, talvez. Não sei, mas sempre que Nat está aqui, segurando Lily no colo e fazendo-a sorrir, falando com ela do seu jeito animado, Andrew parece achar legal. Quando Lily completou três meses, eu sinceramente já nem lembrava a última vez que Andrew chamou Natalie de hiena pelas costas, ou fez aquela cara exasperada para mim quando ela não estava olhando.
Ele ainda faz careta quando ela diz que é madrinha da Lily, mas... um passo de cada vez. Ele chega lá.
Andrew
39
9 DE FEVEREIRO — primeiro aniversário de Lily — Aidan e Michelle chegaram! — ouço Camryn anunciar da sala.
Eu fecho o último botão nas costas do vestido de Lily e a pego pela mão. Mas ela não gosta quando seguro a mão dela e sempre se desvencilha e segura meu dedo indicador.
— Vem, bebê — eu chamo, olhando para ela. — O tio Aidan e a tia Michelle vieram ver a aniversariante.
Juro que ela entende o que estou dizendo.
Ela aperta meu dedo com toda a força, dá uma risadinha e um passão para a frente, como se eu fosse lerdo demais para acompanhá-la. Todo encurvado, eu dou passinhos rápidos e avanço pelo corredor, deixando que ela corra com suas perninhas roliças à minha frente. Quando Lily começa a cair ao fazer a curva, eu seguro sua mão, levanto-a um pouco do chão e deixo que se equilibre de novo. Ela começou a andar com dez meses. Sua primeira palavra foi “mamá”, quando tinha seis meses. Com sete meses, ela falou “papá”, e eu me derreti ao ouvi-la me chamar assim pela primeira vez.
E Camryn tinha razão — ela tem olhos verdes como os meus.
— Lily! — Michelle exclama dramaticamente, agachando-se para tomá-la nos braços. — Meu Deus do céu, você tá enorme! — Ela a beija nas bochechas, na testa e no nariz, e Lily gargalha sem parar. — Nham nham nham! — Michelle acrescenta, fingindo morder as bochechas.
Eu olho para Aidan, que está com meu sobrinho, Avery, colado ao corpo. Faço menção de pegá-lo, mas ele é tímido e se encolhe sobre o peito de Aidan. Eu recuo, torcendo para que ele não chore. Aidan tenta convencê-lo.
— Ele já tá andando? — Camryn pergunta, de pé ao meu lado.
Michelle segue Lily para a sala, onde uma nuvem de balões de hélio cor-de-rosa e azuis se acumula no forro. Quando Lily percebe que não vai conseguir alcançar os balões, desiste e vai direto para a sua pilha de presentes no chão.
Aidan entrega dois embrulhos a Camryn, e vamos todos para perto de Michelle e Lily na sala. Camryn põe os presentes junto com os outros.
— Ele tá tentando — Aidan responde, falando dos progressos de Avery. — Já anda se segurando no sofá, mas ainda não sente vontade de se soltar.
— Meu Deus, ele parece com você, mano — comento. — Coitadinho.
Aidan me daria um soco no estômago, se estivesse com as mãos livres.
— Ele é lindo — Camryn elogia, estendendo os braços para pegá-lo.
Claro que é, mas eu preciso zoar o meu irmão.
Avery primeiro a olha como se ela fosse louca, mas depois se vinga de mim por falar merda sobre seu pai, pulando direto no colo de Camryn sem problemas.
Aidan ri.
Nancy e Roger, Natalie e Blake, Sarah e seu namorado, que já tem um filho com uma ex-namorada, aparecem todos praticamente ao mesmo tempo. Depois, nossos vizinhos, Mason e Lori, um jovem casal com um filho de dois anos, chegam trazendo presentes. Lily, como a pequena exibicionista que é, apoia as mãos e a cabeça no tapete, empinando a bundinha enfraldada no ar. Então finge cair e diz “Oh-oh”, fazendo todos caírem na risada.
— Olha só esse cabelo louro encaracolado — Michelle diz. — O cabelo de Camryn era tão clarinho assim quando ela era bebê? — pergunta para a mãe de Camryn, que está sentada ao seu lado.
Nancy balança a cabeça.
— Sim, era assim mesmo.
Mais tarde, depois que todos chegam, Lily pode abrir seus presentes e, como sua mãe, canta, dança e faz um show para todos. E depois de soprar a velinha (na verdade, eu meio que soprei por ela), ela praticamente toma um banho de bolo e cobertura roxa. Seu cabelo e seus cílios estão melecados, tem bolo até dentro do nariz dela. Camryn tenta, em vão, evitar que ela faça bagunça demais, mas acaba desistindo e deixando Lily se divertir.
Lily capota depois de tanta empolgação, bem antes que o último convidado saia.
— Acho que foi o banho — Camryn sussurra para mim enquanto a olhamos no berço.
Eu pego Camryn pela mão e a levo comigo, encostando a porta do quarto de Lily, mas deixando uma fresta.
Ficamos juntos no sofá vendo um filme pelas duas horas seguintes, depois Camryn me beija e vai tomar banho.
Eu desligo a TV, me levanto do sofá e olho ao meu redor na sala. Ouço a água do chuveiro correndo e os carros passando lá fora. Penso na conversa que tive com meu chefe ontem, quando ele me disse que já estou no emprego há quase dois anos e tenho duas semanas de férias vencidas. Mas eu sei que duas semanas não são suficientes para que eu e Camryn façamos as coisas que queremos fazer. Essa questão do emprego é a única coisa que não chegamos a resolver, decidir o que faremos quando quisermos sair de Raleigh por um mês ou mais. Não queremos perder nossos empregos, mas acabamos chegando pelo menos a uma conclusão: é um sacrifício que estamos dispostos a fazer, e vamos ter que fazer para realizar nossos sonhos de viajar pelo mundo e não virar vítimas daquela vida cotidiana monótona que tanto tememos.
Sabemos que não vamos ficar nesses empregos para sempre. E, bem, é para ser assim mesmo.
Mas eu disse ao meu chefe que sim, que eu iria tirar aquelas férias nos próximos meses. Decidi não avisá-lo que iria largar o emprego sem antes falar com Camryn hoje à noite.
Eu me levanto do sofá, pego um bloco de anotações da gaveta da mesinha do computador e me sento à mesa da cozinha com ele. E começo a escrever os nomes dos vários lugares que Camryn e eu já dissemos que queríamos conhecer: França, Irlanda, Escócia, Brasil, Jamaica... Escrevo até formar um monte de tiras de papel no meio da mesa. Enquanto estou dobrando uma por uma e jogando no chapéu de vaqueira de Camryn, ouço o chuveiro sendo fechado no banheiro.
Ela aparece na cozinha com o cabelo molhado colado nas costas.
— O que você tá fazendo? — ela pergunta, mas entende antes que eu consiga responder. Ela se senta ao meu lado. E sorri. Ótimo sinal.
— Talvez a gente devesse partir em maio ou junho — sugiro.
Ela passa o pente no cabelo molhado algumas vezes e parece pensar a respeito. Depois deixa o pente sobre a mesa.
— Você acha que Lily tá pronta pra isso? — ela pergunta.
Eu balanço a cabeça.
— Sim, acho que tá. Já tá andando. A gente disse que ia esperar pelo menos até ela começar a andar.
Camryn balança a cabeça também, ainda pensando a respeito, mas não parece ter dúvidas.
— Precisamos começar cedo com ela.
Com certeza, não somos como as outras famílias. Muitos pais rejeitariam completamente a ideia de viajar para o exterior com um bebê, só por viajar. Mas nós não. Admito que não é para todos, mas para nós, é a única coisa a fazer. Claro que nossas “viagens além” não serão como as épocas que Camryn e eu passamos na estrada nos EUA. Dirigir por aí sem destino por horas, dias e semanas a fio com um bebê no carro não é totalmente factível — Lily iria detestar. Não, essas viagens consistirão mais em ficar parados em cidades que queremos explorar, e não ir de uma cidade a outra sem parar muito para descansar. E, infelizmente, não levaremos o Chevelle.
Camryn puxa o chapéu para perto de si e mexe a mão dentro dele.
— Você pôs todos os países que escrevemos na lista? — ela pergunta.
— Claro.
Ela estreita os olhos, brincalhona.
— Tá mentindo.
— Quê? Não, eu pus todos mesmo.
Ela chuta a minha canela com o pé descalço por baixo da mesa.
— Você tá de onda com a minha cara, Andrew.
Então ela começa a pegar as tiras de papel, desdobrando e lendo uma por uma.
— Jamaica. — Ela põe a tira na mesa. — França. — Ela põe por cima da outra. — Irlanda. Brasil. Bahamas. Ilhas Virgens. México. — Uma a uma, ela empilha as tiras.
Depois de várias, ela pega a última, mantendo-a dobrada entre os dedos, e rosna para mim.
— Algo me diz que aqui não tá escrito “Itália”. — Ela está se esforçando tanto para não sorrir.
Realmente não sei por que achei que isso iria dar certo.
Enquanto tento não rir e continuar sério, ela desdobra o papel e lê: — Austrália. — Ela põe a tira no alto da pilha. — Eu deveria castigar você por tentar trapacear — ela reclama, erguendo o queixo e cruzando os braços teimosamente sobre o peito.
— Ah, por favor — eu digo, incapaz de me manter sério. — Pelo menos eu não pus mais algumas tiras com o nome “Brasil”. — Eu rio.
— Mas pensou em fazer isso, não pensou?!
Faço uma careta com seu berro, e ambos olhamos para o corredor, para o quarto onde Lily está dormindo.
Camryn se debruça um pouco sobre a mesa e cochicha entre os dentes: — Eu vou te punir. Nada de sexo por uma semana. — Ela se afasta de novo, apoiando as costas na cadeira, com um sorrisinho.
Tá, agora esse negócio perdeu a graça.
Eu engulo meu orgulho, hesito e digo:
— Vai, você não tá falando sério. Você gosta tanto quanto eu.
— Claro que gosto. Mas você nunca ouviu dizer que as mulheres têm a capacidade mágica de ficar mais tempo na seca? Eu me viro sozinha.
— Você tá blefando — acuso, descrente.
Ela balança a cabeça de leve, com um brilho nos olhos que diz blefando-o-cacete, e isso está me deixando nervoso.
— O que você vai fazer pra se redimir, então?
Eu levanto um lado da boca num sorriso.
— O que você quiser. — Faço uma pausa, levanto um dedo e acrescento, antes que seja tarde demais: — Bem, contanto que não seja degradante, nojento ou injusto.
Com o sorriso aumentando, Camryn se levanta lentamente da cadeira. Eu observo todos os seus movimentos com a maior atenção, em parte temendo perder alguma coisa. Ela enfia os polegares no elástico da calcinha e me provoca com a ideia de tirá-la.
Puta que me pariu... sério? Você chama isso de punição?
Tento manter minha compostura, fingindo que seus gestos não me afetaram de forma alguma, quando na verdade não é preciso praticamente nada para me deixar louco por ela.
Ela se afasta de mim.
— Tá indo pra onde? — pergunto.
— Me virar sozinha.
— Oi?
— Você me ouviu.
Tá, ouvi, mas... não era pra acontecer isso.
— Mas... qual é a minha punição?
Ela para só o tempo suficiente para se virar e olhar para trás.
— Você vai ficar assistindo.
— Peraí... o quê?
Eu começo a segui-la. Bruxa do mal.
Ela vai para a sala e se deita, com a cabeça apoiada no braço do sofá e uma perna por cima do encosto.
Bruxa do mal. Do mal!
Ela me olha com ar sedutor e basta isso; assim que nossos olhares se cruzam, subo em cima dela, esmagando minha boca sobre a dela.
— Sem chance, amor — sussurro febrilmente em sua boca, e a beijo com mais força ainda.
Sua mão agarra a minha camiseta, sua língua se enrola apaixonadamente na minha.
E então Lily começa a chorar.
Eu paro. Camryn para. Nós nos entreolhamos por um momento, os dois frustrados, mas não conseguimos deixar de sorrir. Lily tem sono pesado e já quase não acorda mais durante a noite, mas de alguma forma sua intervenção, esta noite, não me surpreende.
— Eu vou desta vez — ela diz, se levantando do sofá.
Fico de pé, passando a mão no alto da cabeça.
Depois que ela desaparece no corredor, volto para a cozinha e me sento à mesa para rabiscar “Itália” em outra tira de papel. Eu a jogo no chapéu, dobro todas as outras e jogo dentro também.
Em minutos, a casa está em silêncio, depois que Camryn faz Lily dormir. Ela se senta na cadeira ao meu lado de novo, erguendo as pernas e cruzando-as sobre o assento. Apoiando um cotovelo na mesa, ela segura o queixo com a mão e me olha com um sorriso meigo, como se tivesse algo em mente.
— Andrew, você acha mesmo que a gente consegue fazer isso?
— Fazer o quê, exatamente?
Ela apoia os braços na mesa à sua frente, entrelaçando os dedos.
— Viajar com Lily.
Eu fico em silêncio e me apoio no encosto da cadeira.
— Sim, eu acho que a gente consegue. Você não?
Seu sorriso enfraquece.
— Camryn, você não quer mais viajar?
Ela balança a cabeça.
— Não, não é isso, juro. Só tô com muito medo. Nunca conheci pessoalmente ninguém que tentou uma coisa dessas. É assustador, só isso. E se a gente estiver se iludindo? Vai ver que as pessoas normais não fazem esse tipo de coisa por um motivo.
De início, fiquei preocupado. Tive a sensação de que talvez ela tivesse mudado de ideia, e embora eu aceitasse o que ela quisesse, uma parte de mim ficaria decepcionada por algum tempo.
Eu me encosto e apoio os braços sobre a mesa diante de mim, como Camryn. Meu olhar fica meigo quando olho para ela.
— Eu sei que a gente consegue. Contanto que seja o que nós dois queremos igualmente, que nenhum dos dois só esteja fazendo porque acha que é o que o outro quer, então sim, Camryn, eu sei que a gente consegue. Dinheiro a gente tem. Lily só vai entrar na escola daqui a anos. Nada nos impede.
— É isso que você quer realmente? — ela pergunta. — Jura que não tem uma parte de você que só tá indo adiante com isso por minha causa?
Eu balanço a cabeça.
— Não. Mas se eu não quisesse tanto quanto você, faria assim mesmo porque é o que você quer. Mas não, eu quero de verdade.
Aquele sorriso fraco dela se fortalece de novo.
— E você tem razão — eu continuo —, é assustador, admito. Não seria tanto se fôssemos só eu e você, mas pense por um segundo. Se não fizermos isso, o que mais vamos fazer?
Camryn desvia o olhar, pensativa. Ela dá de ombros e diz: — Trabalhar e criar uma família aqui, acho.
— Exatamente. Esse medo é a linha tênue que nos separa deles. — Faço um gesto amplo para indicar quem são “eles”, o tipo de gente do mundo que não queremos nos tornar. Camryn entende; vejo isso em seu rosto. E não estou dizendo que pessoas que decidem ficar num só lugar a vida toda e criar uma família estão erradas. São as pessoas que não querem viver assim, que sonham em ser algo mais, fazer algo mais, mas nunca vão atrás disso porque deixam que o medo as impeça antes mesmo de começarem.
— Mas o que a gente vai fazer? — ela pergunta.
— O que a gente quiser. Você sabe disso.
— Tá, mas eu digo depois. Daqui a cinco, dez anos, o que vamos fazer com nossas vidas, com a vida de Lily? Por mais que eu adore a ideia de fazer isso pra sempre, não consigo imaginar que seja realística. Uma hora nosso dinheiro vai acabar. Lily vai ter que ir pra escola. Aí vamos parar aqui de novo e ficar como eles do mesmo jeito.
Eu balanço a cabeça e sorrio.
— Corrigindo, esse medo e essas desculpas são a linha tênue. Amor, a gente vai ficar bem. Lily vai ficar bem. Vamos fazer o que quisermos, ir aonde quisermos e aproveitar a vida, sem nos acomodarmos numa vida que nenhum de nós realmente quer. O que tiver que acontecer, se o dinheiro começar a faltar, se a gente não conseguir trabalhar pra repor, se Lily precisar estudar e a gente tiver que decidir ficar num só lugar por muito tempo, mesmo se esse lugar for aqui, nesta casa, vamos fazer o que tivermos que fazer. Mas agora — eu aponto severamente para a mesa —, neste momento, não é com essas coisas que precisamos nos preocupar.
Ela sorri.
— Tá. Eu só queria ter certeza.
Eu balanço a cabeça e empurro o chapéu na direção dela com o dedo.
— Você escolhe primeiro — eu digo.
Ela começa a mexer dentro dele, mas para e estreita os olhos para mim.
— Você pôs a Itália aqui dentro?
— Pus, sim. Juro.
Sabendo que estou dizendo a verdade dessa vez, Camryn enfia mais a mão no chapéu e remexe as tiras de papel com os dedos. Ela tira uma e a segura no punho fechado.
— Bem, tá esperando o quê? — pergunto.
Ela põe sua mão na minha e diz:
— Quero que você leia.
Eu balanço a cabeça, tomo o papelzinho dela e o desdobro cuidadosamente. Leio só para mim primeiro, deixando minha imaginação explodir com visões de nós três lá. Eu estava tão fissurado em ganhar a aposta com o Brasil que nem pensei muito nos outros países, mas agora que perdi, é fácil imaginar.
— E então? — ela está ficando impaciente.
Eu sorrio e jogo a tira de papel sobre a mesa, com o nome para cima.
— Jamaica — anuncio. — Pelo jeito, nós dois perdemos a aposta.
Camryn abre um enorme sorriso. Aquela tirinha de papel sobre a mesa diante de nós é tão mais do que apenas papel e tinta. Ela acaba de pôr em movimento o resto de nossa vida juntos.
Camryn
40
E COMO FOI fantástica e maravilhosa essa vida.
Lembro como se fosse ontem o dia em que partimos, no fim da primavera, para a Jamaica. Lily usava um vestido amarelo e duas presilhas florais no cabelo. Ela não chorou nem deu trabalho no voo para Montego Bay. Foi um anjinho. E quando chegamos nesse primeiro destino, assim que descemos do avião e pisamos em outro país, tudo se tornou real.
Foi então que Andrew e eu ficamos... diferentes.
Mas eu já vou falar disso.
Foi há muito tempo, e eu quero começar do princípio.
Por dois meses, até o dia em que subimos naquele avião, eu continuei com medo de fazer isso. Por mais que eu quisesse fazer, por mais vezes que dissesse a mim mesma que Andrew tinha razão e que eu não precisava me preocupar, eu sempre me preocupava, é claro. Tanto que, dois dias antes da partida, quase dei pra trás.
Mas aí me lembrei da época quando Andrew e eu nos conhecemos, quando ele me fez enfiar suas roupas naquela mochila, logo isso:
— Então, pra onde a gente vai primeiro? — perguntei, dobrando uma camisa que ele me deu para pôr na mochila, a primeira da pilha.
Ele ainda estava fuçando no closet.
— Não, não — ele disse lá de dentro; sua voz chegava meio abafada —, nada de planejamento, Camryn. Vamos só pegar o carro e rodar. Nada de mapas, nem planos, nem... — Ele pôs a cabeça para fora do closet e sua voz ficou mais clara. — O que você tá fazendo?
Ergui o olhar, com a segunda camisa da pilha já meio dobrada.
— Dobrando suas camisas.
Ouvi um tum-tum quando ele deixou cair um par de tênis pretos e saiu do closet. Quando chegou, me olhou como se eu tivesse feito algo errado e tirou a camisa dobrada das minhas mãos.
— Não seja tão perfeitinha, gata; só enfia tudo na mochila.
Um momento aparentemente insignificante que compartilhamos, mas foi isso, no fim das contas, que me deu a coragem para subir naquele avião. Eu sabia que, se eu ficasse, se continuasse a pensar demais em tudo, a única coisa que eu iria conseguir seria deixar o medo controlar a minha, a nossa vida toda, daquele momento em diante.
E sempre que revejo nossa vida agora, a única coisa que ainda me apavora é saber que faltou muito pouco para que passássemos o resto da vida na Carolina do Norte.
Ficamos três semanas na Jamaica, adoramos tanto que nem queríamos ir embora. Mas sabíamos que tínhamos tanta coisa mais a fazer, tantos lugares para ver. E assim, uma noite, depois de nos enturmar na praia com os locais, Andrew enfiou a mão no saquinho (trocamos o chapéu de vaqueira por um saquinho roxo de uísque Crown Royal, muito mais fácil de carregar) e tirou o Japão. Do outro lado do oceano...
Isso era algo que não havíamos previsto.
Nem é preciso dizer que abandonamos completamente a ideia do saquinho e de sortear países, depois dessa. Passamos a escolher a próxima etapa de acordo com a nossa localização: Venezuela, Panamá, Peru e finalmente o Brasil. Visitamos todos eles, passando o maior tempo, dois meses, em Temuco, no Chile, e evitando a todo custo lugares conhecidos por serem mais perigosos para viajantes, cidades e até países inteiros em qualquer situação de conflito. E, em todo lugar que visitamos, nos sentimos cada vez mais parte de cada cultura. Comendo os pratos típicos. Participando de eventos. Aprendendo os idiomas. Só algumas frases essenciais aqui e ali eram o máximo que Andrew e eu conseguíamos aprender.
E nós voltávamos para os EUA nos feriados. Dia de Ação de Graças em Raleigh. Natal em Galveston. Ano-novo em Chicago. E, claro, também passamos o segundo aniversário de Lily em Raleigh. Nós a levamos ao pediatra para um checkup e para pôr as vacinas em dia. E, sim, Andrew também fazia checkups e, como a filha, tinha uma saúde de ferro.
Pouco antes da primavera, Andrew concordou com a ideia de deixar Natalie e Blake alugarem nossa casa. Era meio perfeito, na verdade. Eles estavam procurando uma casa, e nós precisávamos do dinheiro, e isso também nos livrou de pagar as contas. Ainda tínhamos muito dinheiro no banco, mas viajar tanto estava começando a abrir um buraco na nossa conta. Mas começamos a pegar as manhas de como economizar no exterior, fazendo uso de pousadas, hotéis baratos e casas de veraneio ainda mais baratas. Não precisávamos de luxo, só de um lugar seguro e limpo para Lily.
Mas acho que o que nos fazia economizar mais era que nunca viajávamos para lugar nenhum como turistas. Não comprávamos lembrancinhas nem nada de que não precisássemos. Não estávamos ali para acompanhar visitantes em passeios com guias ou gastar dinheiro fazendo tudo o que quem planeja uma viagem de férias faz. Comprávamos só o necessário, e de vez em quando torrávamos algum dinheiro em comida boa ou num brinquedo novo para Lily, quando ela se cansava do que tinha.
E também cantávamos para ganhar um dinheirinho extra, às vezes, mas, com Lily, nunca nos apresentávamos juntos. Como não ousávamos nem pensar em deixar Lily aos cuidados de alguém, nem mesmo por alguns minutos, eu parei de cantar completamente, e Andrew tocou violão e cantou por uns tempos sozinho. Mas no fim ele parou também. Países estrangeiros. Estilos diferentes de música. Idiomas completamente diferentes. Não demoramos muito para perceber que nossa música não era tão eficaz nesses lugares como na nossa pátria.
Alguns meses depois do segundo aniversário de Lily, Andrew e eu decidimos que estava na hora de partir. Queríamos viajar o máximo possível antes que fosse preciso parar em algum lugar para que Lily pudesse começar a estudar. E eu estava pronta para conhecer a Europa. Assim, com o verão se aproximando, Portugal se tornou nosso destino seguinte.
Andrew e eu “crescemos” no dia em que descemos daquele avião na Jamaica. Foi isso que eu quis dizer quando falei que ficamos diferentes. Claro que Lily nos pôs bastante nos eixos quando nasceu, mas quando descemos do avião e sentimos a brisa nos nossos rostos, não só eu finalmente descobri que o ar é diferente mesmo em outros países, mas nós descobrimos que era real. Estávamos muito longe de casa com a nossa filha, e por mais que nos divertíssemos, daquele dia em diante, jamais poderíamos baixar a guarda.
Nós crescemos.
Andrew
41
EU PENSO MUITO na minha vida de antes, até antes de conhecer Camryn, e vejo que é meio assustador o quanto mudei. Eu era o que ela denomina um “galinha” no colegial. E, tudo bem, continuei meio galinha depois do colegial — ela sabe de todas as mulheres com as quais já transei. Das festas que eu frequentava. Sabe praticamente tudo a meu respeito. De qualquer forma, penso muito no meu passado, mas não sinto saudade. A não ser de vez em quando, contando lembranças da infância com meus irmãos, sinto aquela nostalgia da qual Camryn falava na nossa segunda vez em Nova Orleans.
Não me arrependo de nada que fiz no passado, por mais que tenha chutado o balde às vezes, mas tampouco faria de novo. Consegui sobreviver àquela vida e faturar uma linda esposa e uma filha que realmente não mereço.
Fiquei sabendo ontem que Aidan e Michelle, depois de dois filhos e anos de casamento, estão se divorciando. Odeio que estejam passando por isso, mas acho que nem todo mundo nasceu para ficar junto com alguém, como Camryn e eu. Eu me pergunto se eles não teriam conseguido se não se matassem tanto de trabalhar. Aquele bar consumia o meu irmão, e Michelle também era consumida pelo seu emprego. Camryn e eu conversamos sobre como eles pareciam estar se distanciando, já na primeira visita de Camryn, antes que Lily nascesse.
— Eles só trabalham — Camryn comentou uma noite, ano passado. — Trabalham, cuidam de Avery e Molly, veem TV e vão dormir.
Eu balancei a cabeça contemplativamente.
— É, que bom que a gente não acabou assim.
— Também acho.
Asher, por outro lado, tem um doce de garota chamada Lea. E me orgulho em dizer que um dia eles decidiram espontaneamente se mudar para Madri. Meu irmão caçula se deu muito bem profissionalmente, conseguindo um emprego de engenheiro de sistemas de informática que lhe permitia mudar de país. Ele não precisava ir. Poderia ficar em Wyoming, mas, pelo jeito, ele é mais parecido comigo do que eu pensava. Por sorte, Lea tem os mesmos interesses e a mesma determinação que ele; senão o relacionamento dos dois acabaria mais parecido com o de Aidan e Michelle do que com o meu com Camryn. E ouvi dizer que Lea ganha uma grana preta vendendo vestidos feitos à mão pela internet. Camryn pensou em tentar alguma coisa assim, até que se deu conta de que precisaria costurar.
Com eles morando em Madri, nós já tínhamos um lugar para ficar quando também fomos para lá. Asher insistia que não precisávamos pagar aluguel, mas nós pagamos assim mesmo. Camryn não queria ficar “na aba”, como ela mesma disse.
— Um dólar — Asher negociou, só para contentá-la.
— Não — Camryn rebateu. — Seis dólares e 84 centavos por semana, nem um centavo a menos.
Asher riu.
— Você é meio esquisita, mulher. Tudo bem. Seis dólares e 84 centavos por semana.
No início, só íamos ficar com meu irmão por umas semanas, mas uma noite, Camryn e eu tivemos uma conversa séria.
— Andrew, acho que talvez a gente devesse ficar aqui por uns tempos. Aqui em Madri. Ou talvez voltar pra Raleigh. Eu não quero, mas...
Eu olhei para ela, curioso, mas ao mesmo tempo era aparente, para mim, que estávamos pensando da mesma forma.
— Eu sei o que você tá pensando — admiti. — Não é tão fácil quanto a gente queria que fosse, viajar com Lily.
— Não, não é. — Ela olhou para longe, pensativa, e sua expressão ficou mais dura. — Você acha que a gente agiu certo? Indo com ela pra tantos lugares?
Finalmente, ela olhou para mim de novo. Pude ver pela sua expressão que ela torcia para que eu dissesse que sim, que agimos certo.
— Claro que sim — eu afirmei, com convicção. — Era o que a gente queria fazer quando partimos no primeiro dia. Não temos arrependimentos. Claro, precisamos fazer as coisas de outro jeito em nome da segurança dela, evitar vários lugares que queríamos visitar e ficar parados mais tempo do que queríamos para que ela não sofresse com mudanças bruscas, mas agimos certo.
Camryn sorriu suavemente.
— E talvez tenhamos despertado nela o amor pelas viagens. — Camryn fica vermelha. — Não sei...
— Não, acho que você tem razão.
— Então, o que você acha que devemos fazer?
Ficamos com Asher e Lea por três meses antes de partir de novo. Tínhamos uma última parada a fazer antes de voltar para os EUA: lá. Camryn finalmente admitiu o motivo de seu desejo persistente de ir para lá. Seu pai a levou para lá uma vez numa viagem de negócios, quando ela tinha 15 anos. Foram só ela e ele. E aquela foi a última vez que ela se sentiu sua garotinha. Eles passaram muito tempo juntos. Ele passou mais tempo com ela do que trabalhando.
— Tem certeza de que é uma boa ideia? — perguntei, antes de partirmos para Roma. — E se você voltar pra lá e estragar a lembrança, como a do bosque da sua infância?
— É um risco que eu tô disposta a correr — ela disse, pondo as roupas de Lily na nossa mala. — Além disso, não tô indo reviver aqueles seis dias com meu pai, vou pra lembrar aqueles seis dias com meu pai. Não tenho como estragar uma coisa que não lembro direito.
Quando chegamos lá, testemunhei Camryn lembrando tudo. Ela pegou Lily e se sentou com ela na escadaria da Piazza di Spagna, imagino que da mesma forma que seu pai fez quando a levou ali.
— A gente te ama muito — Camryn disse para Lily. — Você sabe disso, não sabe? — Ela apertou a mão de nossa filha.
Lily sorriu e beijou a mãe na bochecha.
— Eu te amo, mamãe.
Então Lily se sentou entre as pernas de Camryn enquanto a mãe passava os dedos pelo cabelo louro dela, fazendo uma trança e deixando-a sobre o ombro, como a dela.
Eu sorri e fiquei olhando, pensando num dia há tanto tempo:
— Vai ser um lance de amizade, acho — ela disse. — Sabe, duas pessoas fazendo uma refeição juntas.
— Ah — eu disse, sorrindo discretamente. — Então agora somos amigos?
— Claro — ela respondeu, obviamente pega desprevenida pela minha reação. — Acho que somos tipo amigos, pelo menos até Wyoming.
Eu estiquei o braço e lhe ofereci minha mão, e, relutantemente, ela apertou.
— Amigos até Wyoming, então — eu concordei, mas sabia que ela precisava ser minha. Mais do que até Wyoming. Para sempre seria suficiente.
Ainda pira minha cabeça pensar em como chegamos longe.
Depois de quase três anos na estrada, finalmente estava na hora de ir para casa.
Voltamos para Raleigh, para nossa humilde casinha. Natalie e Blake a desocuparam e foram morar do outro lado da cidade. Mais tarde, Lily começou a ir para a escola, e nos anos seguintes, fomos felizes, mas havia sempre uma parte de nós que parecia vazia. Vi minha garotinha se transformar numa linda jovem com sonhos e metas e aspirações na vida que rivalizam com os meus e de Camryn. Gosto de pensar que nós — Camryn e eu — levamos o crédito pelo que Lily se tornou. Mas, ao mesmo tempo, Lily é uma pessoa única, e eu acho que ela seria assim mesmo sem nossa ajuda.
Eu não poderia estar mais orgulhoso.
Parece que faz tanto tempo. E, bem, acho que faz. Mas, até hoje, lembro o dia em que conheci Camryn naquele ônibus no Kansas, algo ainda está tão nítido e vivo na minha mente que sinto que eu poderia estender a mão e tocar. E pensar que, se nós dois não tivéssemos partido como partimos, mandando a sociedade e seus julgamentos praquele lugar, jamais teríamos nos conhecido. Se Camryn se deixasse dominar pelo medo do desconhecido, poderíamos nunca ter tomado aquele avião para a Jamaica. Nós realmente vivemos nossas vidas da forma que nós queríamos viver, não da forma que o mundo esperava que vivêssemos. Corremos riscos, escolhemos o caminho fora do convencional, não deixamos a opinião dos outros sobre nossas escolhas atrapalhar nossos sonhos, e nos recusamos a continuar fazendo por tempo demais qualquer coisa que não nos agradasse. Claro, fazíamos o tempo todo coisas que não queríamos fazer, porque era necessário — trabalhamos em lanchonetes por algum tempo, por exemplo —, mas nunca deixamos nenhuma dessas coisas controlar nossas vidas. Encontramos uma saída, no fim das contas, em vez de nos deixarmos derrotar. Porque só temos uma vida. Temos só uma chance de fazê-la valer a pena. Nós pegamos essa chance e agarramos com unhas e dentes.
E acho que nos saímos bem pra caramba.
Sinceramente, não sei o que mais dizer. Não que nossa vida tenha acabado, agora que nossa história parece chegar ao fim. Não. Com certeza, está longe de terminar. Camryn e eu ainda temos tanta coisa a fazer, tantos lugares para ver, tantas regras da vida para desafiar.
Hoje é o primeiro dia do resto das nossas vidas. É um dia especial, para Lily, para nós, para tudo o que nós três representamos. Nossa história acabou, sim, mas nossa jornada não, porque nós vamos viver entre o agora e o sempre até morrer.
Epílogo
Quinze anos depois
Lily
— Lily Parrish! — A sra. Morrison chama o meu nome do palco montado no auditório. Ouço meus amigos e parentes gritando na multidão, depois assobios e palmas.
Eu seguro meu capelo sobre a cabeça enquanto subo os degraus de madeira. Ele não se encaixa bem. Papai tirou sarro de mim, dizendo que minha cabeça tem um formato esquisito e que isso é culpa de mamãe, porque não posso ter puxado dele.
Enquanto ando pelo palco, mais assobios, gritos e palmas enchem o auditório. Meu coração está batendo forte. Estou tão emocionada. Acho que estou com um sorriso enorme há uns vinte minutos.
A diretora Hanover me entrega o meu diploma e eu o recebo. As palmas ficam mais altas. Olho para meus pais na primeira fila, de pé ao lado das cadeiras, com os olhos brilhando e animados pela empolgação. Minha mãe me manda beijos. Papai pisca para mim e bate palmas. Estão tão orgulhosos que tenho até vontade de chorar. Eu não estaria aqui, se não fosse por eles. Não poderia pedir pais melhores.
Depois que a cerimônia de formatura acaba, eu e meu namorado, Gavin, abrimos caminho na multidão até meus pais.
Mamãe me abraça forte e beija a minha cabeça.
— Você conseguiu, Lily! — Ela me aperta. — Eu tô tão orgulhosa! —Ouço o choro em sua voz.
— Mãe, não chora. Vai borrar seu rímel.
Ela passa os dedos embaixo dos olhos.
Papai me abraça a seguir.
— Parabêns, bebê.
Eu fico na ponta dos pés e beijo sua bochecha.
— Obrigada, papai. — Então ele me puxa para o seu lado e põe a mão na minha cintura, de um jeito protetor.
Meu pai fuzila Gavin com os olhos, examinando-o de alto a baixo, como sempre fez nestes dois anos que estamos juntos. Mas, desta vez, é tudo brincadeira. Em parte, pelo menos. Papai levou um ano para sair do pé de Gavin e confiar nele o suficiente para nos deixar sair sem ele ou mamãe junto. Constrangedor. Mas o excesso de proteção nunca conseguiu afugentar Gavin, e acho que só isso já deu aos meus pais mais motivos para respeitá-lo.
Ele é realmente um ótimo sujeito, e acho que no fundo meus pais sabem disso.
— Parabéns, Gavin — meu pai cumprimenta, apertando a mão dele.
— Obrigado. — Gavin ainda fica meio apavorado com meu pai. Eu acho isso bonitinho.
Meus pais dão uma enorme festa de formatura para mim em casa, e vem todo mundo. Todo mundo mesmo. Tem gente aqui que não vejo há anos: tio Asher e tia Lea vieram da Espanha! O tio Aidan também veio, com meus primos Avery e Molly e sua nova esposa, Alice. Minhas avós, Marna e naná Nancy (ela se recusa a ser chamada de VÓ) também vieram. A naná não está muito bem. Ela tem esclerose múltipla.
— Meu Deus, garota, você vai me abandonar! — exclama minha melhor amiga, Zoey, vindo me encontrar. Nós crescemos juntas, como a mãe dela, Natalie, cresceu com a minha mãe aqui em Raleigh.
— Pois é! Odeio isso, mas você sabe que vou te visitar! — Eu a abraço forte.
— É, mas vou sentir falta de você pra caramba.
— Já falei — respondo —, você sempre pode se mudar pra Boston pra ficar mais perto.
Ela revira os olhos, o cabelo caindo sobre os ombros quando ela se senta num banquinho da cozinha.
— Bem, não só eu não vou me mudar pra Boston com você, mas pelo jeito também não vou ficar na Carolina do Norte por muito tempo mais.
— Como assim? — pergunto, surpresa.
Eu me sento no banquinho ao lado dela. Meu tio Cole entra na cozinha com algumas garrafas vazias de cerveja nas mãos. Ele joga tudo no lixo.
Zoey suspira, apoia o cotovelo no balcão e começa a enrolar alguns fios de cabelo nos dedos.
— Meus pais vão se mudar pra São Francisco.
— Quê? Sério? — Mal posso acreditar.
— Sim.
Não sei dizer se ela está decepcionada ou simplesmente ainda não sabe o que pensar.
— Bom, mas isso é muito legal — eu digo, esperando encorajá-la. — Você não quer se mudar?
Zoey tira o braço do balcão e cruza as pernas.
— Nem sei o que eu acho, Lil. É muito longe de casa. Não é no fim da rua.
— É verdade, mas é São Francisco! Eu adoraria ir pra lá.
Ela sorri um pouco.
Tio Cole, alto e misterioso como sempre, pega mais três garrafas de cerveja da geladeira e as segura entre os dedos pelos gargalos. Ele sorri para mim ao passar e volta para a sala de estar cheia de gente.
Ele é irado. Assim que chegou, me deu um cartão de parabéns com duzentos paus dentro.
— Zoey, eu acho ótimo. E, sinceramente, mal posso esperar pra visitar minha melhor amiga na Califórnia. É. Dá gosto até falar isso. Califórnia. — Eu faço um gesto dramático com as mãos.
Ela ri.
— Vou sentir muito a sua falta, Lil.
— Eu também.
A mãe dela entra na cozinha, com o pai, Blake, logo atrás.
— Já contou a novidade pra Lily? — a mãe dela pergunta, mexendo na geladeira.
— Sim, acabei de contar.
— O que você acha, Lily? — a mãe dela pergunta.
O pai de Zoey beija a cabeça dela, pega uma cerveja da mãe e sai, provavelmente para fumar.
— Tô empolgada por ela — respondo. — Eu vou me mudar pra Boston pra fazer faculdade. Ela tá mudando pra Califórnia. Podemos não estar mais juntas do jeito que crescemos, mas tem alguma coisa em não ficar parada no mesmo lugar pra sempre que faz tudo parecer certo.
— Você com certeza é filha de Andrew e Camryn Parrish, não dá pra negar — a mãe dela diz, sorrindo.
Eu sorrio orgulhosamente e pulo do banquinho, voltando com ela e Zoey para a sala de estar.
— Um brinde! — meu pai diz no meio da sala, levantando sua cerveja. Ele olha para mim. Temos os mesmos olhos verdes. — À nossa garotinha, Lily. Que você possa mostrar a todos na faculdade como se faz!
Todos bebem.
— A Lily!
Eu passo o dia todo, até anoitecer, com meus amigos e parentes e, claro, Gavin, que eu amo tanto. Somos tão parecidos. Nos conhecemos logo depois que ele se mudou do Arizona para cá. O armário dele no colégio ficava perto do meu, e ele acabou fazendo quase todas as aulas comigo. Zoey foi pra cima dele primeiro, o que não é surpresa, do jeito que ela é namoradeira. Lembro que ela me disse, no primeiro dia de aula dele:
— Ele vai ser meu. Espera pra ver. — E eu nunca tive nenhuma intenção de interferir, mas pelo jeito Zoey era demais para alguém como Gavin. Mas acho que talvez eu possa dar crédito a Zoey por Gavin e eu acabarmos juntos. Se não fosse por ela, talvez ele não tivesse nada que o obrigasse a falar comigo para fugir dela.
Zoey o esqueceu assim que ele deixou óbvio que era em mim que ele estava interessado.
E é muito esquisito, também, porque Gavin e eu somos tão parecidos que é quase como se o destino tivesse nos unido. Nós dois queríamos fazer a mesma faculdade. Gostamos das mesmas músicas, filmes, livros e seriados de TV. Ambos adoramos arte e história e já nos perguntamos, em momentos diferentes da vida, como seria viajar pela África. Gavin se interessa por arqueologia. Eu me interesso pela preservação de artefatos arqueológicos.
Gavin não foi meu primeiro namorado nem foi o primeiro que beijei, mas foi meu primeiro em todo o resto. Não consigo imaginar passar a vida com ninguém além dele.
Espero que sejamos como meus pais. É, torço mesmo por isso.
~~~
Depois da formatura, passei o verão com meus pais. E não desperdicei um minuto desse tempo com eles, porque eu sabia que seria curto. No outono, me mudei pra faculdade, e mamãe e papai — bem, eles tinham planos tão grandiosos quanto os meus. Acho que eles fizeram um excelente trabalho me criando, mas eu sabia que quando me mudasse e começasse a viver por minha conta na faculdade e com Gavin, meus pais partiriam para realizar o sonho de suas vidas.
Estou tão feliz por eles. Sinto falta deles todo dia, mas estou tão feliz.
Eles nunca se esquecem de me mandar cartas — não e-mails, cartas escritas à mão mesmo. Guardo todas elas, desde as enviadas da Argentina, Brasil, Costa Rica e Paraguai, até as que chegaram da Escócia, Irlanda, Dinamarca e lugares de toda a Europa. Adoro ter pais assim, tão livres de espírito, motivados e apaixonados pelo mundo. Eu os admiro. Pelas histórias que eles me contam da época em que eram um pouco mais velhos do que eu, percebo que a vida deles, mesmo antes que se conhecessem, começou complicada, mas no fim tudo se encaixou. Minha mãe me falou do seu passado, de quanto ela era depressiva. Não entrou em muitos detalhes, e eu sempre soube que havia coisas que ela não contava. Mas ela queria que eu soubesse que ela e meu pai sempre me apoiarão, não importa o que aconteça ou que decisões eu tome.
Acho que ela temia que eu tomasse as mesmas decisões erradas que ela tomou em alguns momentos difíceis, mas, sinceramente, não consigo me imaginar infeliz.
Mamãe também me contou como conheceu papai. Num ônibus de viagem, imagine. Eu só ri. Mas sempre que penso neles e nas coisas que enfrentaram juntos, não consigo deixar de ficar admirada.
De acordo com mamãe, meu pai era um pouco selvagem, naquela época. Ela disse que o fato de ele ser assim foi o principal motivo de sua demora em aceitar Gavin. Ela também não entrou em detalhes sobre isso, mas... caramba, meu pai devia ser mesmo... Eca! Deixa pra lá.
Mas eu aprendi tanto com meus pais. Eles me ensinaram como a vida é preciosa e que nunca se deve deixar passar em branco um segundo dela, porque qualquer segundo pode ser o último. Meu pai sempre me disse para ser eu mesma, defender aquilo em que acredito, e dizer o que eu penso, não o que os outros pensam. Ele disse que as pessoas vão tentar me tornar como elas, mas para eu não cair nessa, porque quando eu der por mim, serei como elas. Minha mãe, bem, fazia questão que eu soubesse que há muito mais coisas no mundo além de empregos ruins, contas a pagar e se tornar um escravo da sociedade. Ela fez questão que eu entendesse que não importava o que qualquer um dissesse, eu não precisava viver de um jeito que eu não quisesse. Eu escolho o meu caminho. Eu torno minha vida memorável, para que ela não suma no meio de tantas outras vidas vazias ao meu redor. No fim das contas, a escolha é minha e somente minha. Vai ser difícil às vezes, posso ter que fritar hambúrgueres e limpar privadas por algum tempo, vou perder pessoas que amo, e nem todo dia será brilhante como o anterior. Mas contanto que eu nunca deixe as dificuldades me abaterem completamente, um dia vou fazer exatamente o que eu quero. E não importa o que aconteça, ou quem eu perca, não vou ficar triste para sempre.
Mas acho que a principal coisa que aprendi dos meus pais foi a amar. Eles me amam incondicionalmente, é claro, mas falo do modo como se amam. Conheço muitos casais casados — a maioria dos pais dos meus amigos ainda está casada —, mas nunca vi duas pessoas mais devotadas uma à outra do que meu pai e minha mãe. Eles foram inseparáveis por toda a minha vida. Só me lembro de umas poucas discussões entre os dois, mas nunca os ouvi brigar. Nunca. Não sei o que torna o casamento deles tão forte, mas espero que, seja o que for, eu tenha herdado um pouco dessa magia.
Gavin entra no meu quarto, fechando a porta atrás de si. Ele se senta na beira da minha cama.
— Outra carta dos seus pais?
Eu balanço a cabeça.
— Onde eles estão, agora?
— No Peru — digo, olhando de novo para a carta. — Eles adoram aquele lado do mundo.
Sinto a mão dele no meu joelho para me consolar.
— Você tá preocupada com eles.
Eu balanço a cabeça mais uma vez, lentamente.
— Tô, como sempre, mas me preocupo mais quando eles estão lá. Alguns lugares são muito perigosos. Não quero que eles acabem como...
Gavin segura meu queixo com a mão.
— Eles vão ficar bem, você sabe que vão.
Talvez ele tenha razão. Meus pais já estão mochilando pelo mundo há dois anos, e o pior perigo que encontraram — bem, pelo que me contam — foi que meu pai foi roubado uma vez, e outra vez houve um problema com os passaportes deles. Mas tudo pode acontecer, especialmente com os dois sozinhos assim, só com as mochilas na estrada.
Pelo jeito, puxei muito à minha mãe na tendência para me preocupar.
— Daqui a dois anos, eles vão estar preocupados assim com você — Gavin acrescenta, e em seguida beija meus lábios.
— Acho que sim — digo, sorrindo para ele, que se levanta da cama. — Provavelmente minha mãe nem vai dormir mais, imaginando que algum leão me devorou.
Gavin abre um sorriso torto.
Seis meses atrás, decidimos que queremos mesmo ir para a África depois da faculdade. Quando nos conhecemos, não era bem uma ideia, e sim uma coisa de que falamos numa conversa casual. Mas agora se tornou nossa meta. Pelo menos por enquanto. Muita coisa pode mudar em dois anos.
Eu dobro a carta, guardo no envelope desbotado e deixo sobre o criado-mudo.
Gavin estende a mão para mim.
— Pronta? — ele pergunta, e eu seguro sua mão e me levanto com ele.
Saio do quarto para comemorar o aniversário de Gavin com nossos amigos, e antes de sair para o corredor, olho mais uma vez para a carta, antes de fechar a porta devagar atrás de mim.
Andrew
30
EU ANINHO O rosto dela em minhas mãos.
— A gente não precisa entender tudo isso já — digo, beijando-a nos lábios. — Eu tô fedendo a bosta de vaca e preciso de um banho. Espero que isso não seja brochante demais e que você queira tomar banho comigo.
A expressão pensativa de Camryn se dissolve no sorriso que eu queria provocar.
Eu a pego no colo, segurando sua bunda, e ela cruza as pernas ao redor da minha cintura, com os braços nos meus ombros. Assim que sinto sua língua quente na minha boca, começo a levá-la para o chuveiro comigo, nós dois já tirando as camisetas antes de passar pela porta do banheiro.
~~~
O primeiro lugar aonde vamos depois que escurece é o Old Point Bar. Ao entrarmos somos recebidos por uma Carla empolgada, que praticamente remove dois caras grandões do caminho aos empurrões para me alcançar, de braços abertos. Nós nos abraçamos.
— É tão bom ver você de novo! — Carla exclama, por cima da música alta. — Deixa eu te olhar! — Ela dá um passo para trás e me examina de alto a baixo. — Continua bonitão como sempre.
Ela se vira para Camryn, agora. Depois olha pra mim e novamente para Camryn.
— Hã-hã, eu sabia que ele não ia largar de você. — Ela puxa Camryn para um abraço apertado. — Eu falei pro Eddie, depois que vocês foram embora — Carla continua, olhando de um para o outro —, que ela tinha vindo pra ficar. Eddie concordou, é claro. Ele disse que a próxima vez que você viesse pra cá, Camryn estaria com você. Tentou me convencer a apostar dinheiro nisso. — Ela aponta para mim e pisca. — Você sabe como Eddie era.
Em dois segundos, sinto meu coração afundar até os pés.
— “Era”? — pergunto, desconfiado, com medo da resposta dela.
Carla não deixa de sorrir, um pouco, talvez, mas quase não deixa de sorrir.
— Sinto muito, Andrew, mas Eddie morreu em março. Dizem que foi um derrame.
Eu fico sem ar e me sento num banquinho do bar que está ao meu lado. Percebo Camryn chegando perto de mim. Só consigo olhar para o chão.
— Ah, não, não faz isso, tá me ouvindo? — Carla pede. — Você conhecia Eddie melhor do que ninguém. Ele não chorou nem quando perdeu o filho. Lembra? Tocou guitarra a noite toda em homenagem ao Robert.
A mão de Camryn segura a minha. Eu não ergo os olhos até que Carla dá a volta no balcão e pega dois copos e uma garrafa de uísque da prateleira de vidro atrás dela. Ela põe os copos na minha frente e começa a servir.
— Ele sempre dizia — Carla continua — que, se morresse antes da gente, ia preferir ser acordado do Outro Lado por pessoas dançando sobre o túmulo dele, e não chorando em volta. Agora bebe. O uísque favorito dele. Eddie não iria querer outra coisa.
Carla tem razão. Mesmo assim, e mesmo sabendo que Eddie detestaria que qualquer um chorasse por ele, não consigo fechar o buraco sem fundo que sinto no coração, agora. Olho para Camryn ao meu lado e vejo que ela está tentando não chorar, com os olhos rasos d’água. Mas ela sorri, e sinto sua mão apertando a minha de leve. Camryn pega um dos uísques que Carla serviu e espera que eu pegue o outro. Estendo a mão sobre o balcão e seguro o copo.
— Ao Eddie — digo.
— Ao Eddie — Camryn repete.
Nós batemos os copos, sorrimos um para o outro e bebemos.
Nosso momento sério termina rapidamente quando Camryn bate o copo de boca para baixo no balcão. Ela faz a cara mais enojada e chocada que já vi uma garota fazer e solta um som como se sua garganta estivesse pegando fogo.
Carla ri e tira o copo do balcão, limpando o lugar com um trapo.
— Eu não falei que era bom, só falei que era do Eddie.
Até eu preciso admitir que aquela bosta é horrorosa. Engasga-gato horroroso da porra. Não sei como Eddie aguentou bebê-lo todos esses anos.
— Vocês dois ainda cantam juntos? — Carla pergunta.
Camryn se senta no banquinho vazio ao meu lado e responde primeiro: — Sim, a gente tem cantado muito.
Carla olha para nós dois, desconfiada, pegando meu copo e guardando-o sob o balcão.
— Têm cantado muito há quanto tempo? E por que não vi vocês por aqui antes?
Eu suspiro fundo e apoio as mãos no balcão para ficar mais confortável.
— Bom, depois que a gente saiu daqui, fomos pra Galveston e eu meio que fui parar no hospital por causa daquele tumor.
— Você meio que foi parar no hospital? — Carla repete, e eu me pergunto se a espertinha não é parente distante daquele policial da Flórida. Ela aponta severamente para mim, mas está falando com Camryn. — A gente falou pra ele ir pro médico, mas ele não ouve.
— Vocês também sabiam? — Camryn pergunta.
Carla balança a cabeça.
— A gente sabia, sim. Mas esse cara é teimoso feito uma mula.
— Nisso eu concordo com você — Camryn diz, com um traço de riso na voz.
Eu balanço a cabeça e me afasto novamente do balcão.
— Bom, antes que vocês duas juntem forças contra mim — digo —, obviamente eu tô vivo. Depois, Camryn e eu tivemos uns problemas sérios, mas conseguimos superar numa boa. — Eu sorrio para ela com ternura.
— Parece que vocês fecharam um ciclo — Carla diz e chama a nossa atenção ao mesmo tempo. — Espero que toquem esta noite. Eddie adoraria estar no palco com vocês pela última vez.
Camryn e eu nos entreolhamos rapidamente.
— Eu topo — ela diz.
— Eu também.
Carla bate palmas.
— Tudo bem, então! Podem se apresentar a hora que quiserem. A única banda que ia tocar hoje cancelou.
Ficamos no balcão com Carla por uma hora antes de finalmente subir ao palco. E embora o bar não esteja muito cheio hoje, tocamos para uma plateia animada. Começamos com nosso dueto tradicional, “Barton Hollow”. Parece adequado que seja o primeiro número, já que foi em Old Point que o tocamos juntos pela primeira vez. Tocamos várias canções antes de finalmente chegar a “Laugh, I Nearly Died”, que eu anuncio antes ser em homenagem a Eddie Johnson. Canto sem Camryn e com um substituto de Eddie, um creole simpático chamado Alfred.
Pouco depois da meia-noite, Camryn e eu nos despedimos de Carla e do Old Point Bar. Mas, bem ao estilo de Nova Orleans, não vamos para a cama cedo, ficamos na rua e curtimos feito gente grande. Passamos primeiro no d.b.a., depois no bar onde Camryn me ensinou como se joga bilhar, naquela noite. Já faz quase um ano que estivemos ali e fomos jogados na rua depois de uma briga; espero que não se lembrem de mim. Às duas da manhã, depois de vários jogos e vários drinques, como da última vez, estou ajudando Camryn a entrar no elevador do hotel, porque ela mal se aguenta em pé.
— Você tá bem, amor? — pergunto, rindo, ajeitando meu braço na sua cintura.
Sua cabeça balança de um lado para o outro.
— Não, não tô bem. E é lógico que você ri.
— Aaah, desculpa — eu digo, mas sou sincero só em parte. — Não tô rindo de você, só imaginando se vamos dormir ao lado da privada de novo.
Ela geme, embora eu ache que é seu jeito de protestar comigo, e não de manifestar desconforto. Eu a seguro melhor quando a porta do elevador se abre e ando com ela pelo corredor até nosso quarto. Eu a levo até a cama, tiro toda a sua roupa, menos a calcinha, e a ajudo a vestir um top. Ela encosta a cabeça no travesseiro e eu começo a cobri-la com o lençol. Mas aí lembro que, bêbada assim, qualquer coisa além da calcinha e do top vai fazê-la suar muito, levando-a a perder todo o álcool que bebeu esta noite.
Só por segurança, pego o cestinho de lixo de perto da TV e o coloco ao lado da cama, no chão. Depois vou para o banheiro, molho um pano com água fria e torço na pia. Mas quando volto para a cama para limpar o rosto e a testa de Camryn, ela já está capotada.
~~~
Quando acordo na manhã seguinte, fico surpreso ao ver que ela acordou antes de mim.
— Bom dia, amor — ela diz tão baixinho que é quase um sussurro.
Abrindo os olhos, eu a vejo deitada de lado, virada para mim, com o rosto encostado no travesseiro. Seus olhos azuis estão quentes e vibrantes, não com o olhar cansado de ressaca que eu esperava.
— Por que tá acordada tão cedo? — pergunto, passando os dedos na sua bochecha.
— Não sei — ela diz. — Eu mesma fiquei um pouco surpresa.
— Como se sente?
— Tô ótima.
Passo o braço em sua cintura e puxo seu corpo para junto do meu, trançando nossas pernas nuas. Ela passa a ponta do dedo nos músculos definidos do meu peito. Seu toque faz minha pele ficar arrepiada.
Estudo seus olhos, sua boca e deixo as pontas dos meus dedos seguirem cada caminho que meus olhos fazem. Eu a acho tão linda. Linda pra cacete. Ela passa seus dedos nos meus e depois os beija, um por um, e aproxima ainda mais seu corpo. Algo está diferente nela.
— Tem certeza de que você tá bem? — pergunto.
Um sorriso terno aquece seus olhos e ela balança a cabeça. Então encosta os lábios nos meus, apertando os seios com força no meu peito. Seus mamilos estão duros. Eu fico de pau duro antes mesmo de sentir sua mão segurando minha ereção. Ela lambe a ponta da minha língua antes de fechar a boca ao redor da minha, e eu abraço seu corpo num gesto possessivo. Ela se aperta contra mim lá embaixo, com a maciez de sua pele e sua umidade que sinto tão facilmente através da calcinha fina de algodão. Sem interromper o beijo faminto, enfio os dedos nos lados de sua calcinha e a tiro. Empurro o quadril contra ela, apertando meu pau inchado no seu calor.
Eu rolo por cima dela e a olho nos olhos. Mas não digo uma palavra. Não digo o quanto ela está molhada, nem a obrigo a me olhar. Não a domino com palavras, gestos ou exigências. Só olho em seus olhos e sei que este é um momento em que palavras não são necessárias.
Beijo seus lábios suavemente de novo, os cantos de sua boca, o contorno de seu maxilar. Abrindo-lhe os lábios com a língua, eu a beijo muito suavemente e seguro meu pau, esfregando-o nela. Sinto suas ancas se aproximarem de mim, me comunicando o quanto ela me quer dentro de si. Não quero provocá-la desta vez, nem negar o que ela precisa, por isso enfio só um pouco e a vejo perder o controle do seu olhar, seus olhos tremendo, seus lábios se abrindo. Forçando o pau mais para dentro, sinto suas pernas tremendo em volta de mim. Ela geme baixinho, mordendo o lábio inferior. Eu a beijo de novo e finalmente meto fundo nela, até onde consigo. Mantenho o pau ali, curtindo as convulsões de suas pernas, o tremor de suas mãos que se agarram em mim, seus dedos afundando nas minhas costas.
Eu entro nela com mais força, mexendo os quadris. Uma fina camada de suor começa a se formar nos nossos corpos. Quero lambê-lo, mas não paro. Não consigo parar...
Levanto o corpo o suficiente para que nossos peitos não se toquem e pego uma de suas pernas das minhas costas, segurando-a atrás do joelho, empurrando-a para baixo para poder ir mais fundo. Penetro nela com mais força, empurrando a coxa contra a cama. Ela diz meu nome, suas mãos agarrando meu peito, mas ela me larga e afunda os dedos no alto do colchão, acima de sua cabeça. Eu olho com desejo seus seios balançando para cima e para baixo sobre seu peito e meto com mais força ainda, me curvando para chupar seus mamilos e depois mordê-los.
Minha visão fica embaçada. Ela geme alto e depois começa a murmurar. O murmúrio me deixa louco. Eu largo sua coxa e sinto meu corpo se aproximando dela de novo, seus seios esmagados no meu peito, seus braços apertando forte minhas costas. Sinto suas unhas cravadas dolorosamente na minha carne. Ela movimenta os quadris contra os meus, e minha boca bate com força na dela. Quando começo a gozar, meu beijo fica mais faminto. Tremores percorrem meu corpo, eu gemo na sua boca e minhas arremetidas violentas se reduzem a um rebolado suave. Camryn prende meu lábio inferior nos dentes e eu a beijo com delicadeza, ainda balançando os quadris contra ela até terminar.
Eu desabo sobre o peito dela. Minha pulsação irregular tenta voltar ao ritmo certo, e sinto o sangue latejando nos dedos das mãos e dos pés e castigando a veia da minha têmpora. Encosto a lateral do rosto em seus seios nus, de boca aberta, minha respiração escapando irregular dos lábios. Seus dedos atravessam meu cabelo úmido.
Ficamos juntos assim ali a manhã toda, sem dizer uma palavra.
31
NÃO ME LEMBRO de ter pegado no sono. Quando abro os olhos, o relógio ao lado da cabeceira diz que são 11h10. E percebo que me sinto nu não por estar sem roupa, mas sim porque Camryn não está na cama comigo.
Ela está sentada na sacada da janela, de short e camiseta, sem sutiã. Está olhando pela janela.
— Acho que a gente devia ir embora — ela anuncia, sem tirar os olhos da brilhante paisagem de Nova Orleans.
Eu me sento na cama com o lençol enrolado na cintura.
— Quer ir embora de Nova Orleans? — pergunto, confuso. — Mas você não disse que a gente foi embora cedo demais, da outra vez?
— Sim — ela diz, mas ainda sem se virar. — Da primeira vez a gente foi embora cedo demais, mas não podemos ficar aqui mais tempo, agora, pra compensar.
— Mas por que você quer ir embora? A gente só ficou um dia.
Ela se vira para me encarar. Há algo como sentimento ou firmeza em seus olhos, mas não consigo saber qual dos dois, ou se são os dois.
Depois de uma longa hesitação, ela diz:
— Andrew, sei que pode parecer bobagem, mas acho que se a gente ficar aqui... eu...
Eu me levanto da cama e visto a cueca que encontro no chão.
— O que tá acontecendo? — pergunto, me aproximando dela.
Ela olha para mim.
— Eu só acho que... bom, quando a gente chegou aqui, ontem, eu só conseguia pensar no que este lugar significava pra gente julho passado. Me dei conta de que eu ficava imaginando os momentos que passaram, tentando revivê-los...
— Mas não são exatamente os mesmos — digo, tendo uma ideia.
Ela leva um segundo, mas finalmente diz, balançando um pouco a cabeça:
— É. Acho que o problema é que este lugar é uma lembrança tão importante... Porra, Andrew, eu nem sei o que tô dizendo! — Sua expressão pensativa se dissolve em frustração.
Eu puxo uma cadeira da mesa diante da janela, me sento, me debruçando para a frente e pondo as mãos fechadas entre os joelhos, e olho para ela. Começo a acrescentar algo à sua explicação, mas ela é mais rápida.
— Talvez a gente nunca mais devesse voltar aqui.
Eu não esperava que ela dissesse isso.
— Por quê?
Ela aperta as palmas das mãos na sacada para erguer o corpo, com os ombros rígidos e as costas encurvadas. A confusão e a incerteza começam a desaparecer de seu rosto à medida que os segundos passam e ela começa a entender.
— Tipo, sabe, não importa o que você faça, mesmo se tentar reproduzir uma experiência em cada detalhe, ela nunca vai ser do jeito que foi quando aconteceu naturalmente da primeira vez. — Ela olha pelo quarto, pensativa. — Quando eu era criança, Cole e eu sempre brincávamos no bosque atrás da nossa velha casa. São minhas melhores lembranças. A gente construiu uma casa na árvore lá. — Ela me olha e ri um pouco, expirando. — Bom, não era bem uma casa na árvore, só umas tábuas pregadas no meio de dois galhos. Mas era a nossa casa na árvore, e tínhamos orgulho dela. E a gente brincava nela e naquele bosque todo dia depois da aula. — Seu rosto se ilumina quando ela lembra esse momento de sua infância. Mas então seu sorriso começa a desaparecer. — A gente se mudou de lá pra casa onde minha mãe mora agora, e eu sempre pensei naquele bosque, na nossa casa na árvore e nos momentos divertidos que passamos juntos ali. Eu ficava sentada sozinha no meu quarto, ou então tava dirigindo pra algum lugar, e me perdia tanto nessas lembranças que conseguia sentir as mesmas emoções, exatamente como senti há tantos anos. — Ela põe a mão no peito, com os dedos abertos. — Eu voltei pra lá um dia — ela continua. — Fiquei tão viciada naquela nostalgia que achei que poderia intensificar a sensação se eu fosse pra lá, se ficasse no lugar onde ficava a casa na árvore, se me sentasse no chão, no lugar onde me sentava e riscava o chão com um pauzinho, deixando mensagens secretas para Cole ler quando chegava antes dele. Mas não foi a mesma coisa, Andrew.
Eu a observo e a escuto atentamente.
— Não foi a mesma coisa — ela repete com voz distante. — Fiquei tão decepcionada. E parti naquele dia com um buraco no coração ainda maior do que aquele que eu tinha quando fui pra lá tentar preenchê-lo. E todo dia depois disso, sempre que tento visualizar tudo aquilo, como eu fazia antes, não consigo mais. Eu destruí essa lembrança voltando lá. Sem perceber até que fosse tarde demais, eu substituí a lembrança pelo vazio daquele dia.
Eu conheço exatamente essa sensação de nostalgia. Acho que todos a sentem em algum momento de suas vidas, mas não explico nem conto minhas próprias experiências com ela. Em vez disso, continuo a escutar.
— A manhã toda fiquei enganando meu cérebro, tentando convencê-lo de que não estamos realmente neste quarto. Que o bar aonde a gente foi ontem não era o Old Point. Que a notícia triste sobre Eddie foi só um sonho que eu tive. — Ela me olha nos olhos. — Quero ir embora antes de destruir esta lembrança também.
Ela tem razão. Está coberta de razão.
Mas estou começando a me perguntar se...
— Camryn, por que você tava tentando reviver aquilo? — Odeio o que vou dizer a seguir. — Você não tá feliz com as coisas como estão? Com a gente?
Sua cabeça se ergue bruscamente, seus olhos incrédulos. Mas então seu semblante relaxa e ela diz:
— Meu Deus, não é isso, Andrew. — Ela se afasta da sacada e entra no meio das minhas pernas abertas. — Não é nada disso. Acho que foi só porque a gente veio pra cá que eu comecei, no meu subconsciente, a tentar recriar uma das experiências mais memoráveis da minha vida. — Ela apoia as mãos nos meus ombros, e eu seguro os lados de sua cintura, olhando para ela. Não poderia estar mais aliviado pela sua resposta.
Sorrio, me levanto com ela e digo:
— Bom, sugiro que a gente suma daqui antes que seu cérebro descubra que você tá zoando com ele.
Ela dá uma risadinha.
Eu me afasto dela e imediatamente começo a jogar nossas coisas nas mochilas. Depois aponto para o banheiro.
— Não esquece nada. — Seu sorriso aumenta e ela corre imediatamente para o banheiro. Em poucos minutos frenéticos, nossas malas estão feitas. Temos duas mochilas, uma guitarra e um violão, e sem olhar para trás, saímos do quarto. Nenhum dos dois olha nem de relance para a porta do quarto ao lado, que não ocupamos desta vez. Quando chegamos ao saguão, vou até o balcão da recepção e peço reembolso pela semana que paguei adiantado. A recepcionista pega meu cartão de crédito e faz o estorno enquanto eu entrego a chave do quarto.
Camryn espera impacientemente ao meu lado.
— Para de olhar pras coisas — exijo, sabendo que ela está pondo sua lembrança em risco.
Ela ri baixinho e fecha os olhos com força por um momento.
— Obrigada por se hospedarem no Holiday Inn Nova Orleans — a recepcionista diz, quando nos afastamos do balcão. — Esperamos vê-los de volta.
— Holiday Inn? — eu finjo. — Não, este é o... Embassy Suites de... Gulfport. É, aqui é o Mississippi. Qual o seu problema, moça?
A funcionária faz uma careta e arregala os olhos, mas não responde, e nós saímos do prédio.
Camryn entra na brincadeira quando saímos e começamos a pôr tudo no Chevelle:
— Sugiro que a gente passe reto por Nova Orleans, quando chegar na Louisiana.
Fingir que estamos num lugar diferente não é tão difícil quanto pensei que seria, na verdade.
— Combinado — digo, fechando a porta do meu lado. — A gente pode passar reto por Galveston, também, se você quiser.
— Não, precisamos visitar sua mãe — ela diz. — Depois podemos ir pra qualquer lugar.
Eu engato a marcha e digo, antes de sair do estacionamento:
— Mas isso não impede que a gente pare em algum lugar a caminho de Galveston.
Ela estufa os lábios, balançando a cabeça afirmativamente.
— É verdade. — Em seguida, me olha como que dizendo: Agora vamos embora daqui.
~~~
Pegamos o caminho mais longo saindo de Nova Orleans e vamos para noroeste passando por Baton Rouge e Shreveport, e finalmente cruzamos a divisa do Texas e chegamos a Longview. Paramos para abastecer em Tyler e dirigimos de lá até Dallas, onde Camryn insiste em parar no West Village para comprar um “chapéu de vaqueira di verdadi” (suas palavras, não minhas).
— Num dá pra viajá pelo Texas sem tá vistida de texana! — ela disse, antes que eu concordasse em levá-la.
Eu não uso chapéu nem botas de vaqueiro, mas devo dizer que o visual fica bem nela.
E paramos por uma noite em La Grange, onde tomamos uns drinques e assistimos à apresentação de um ótimo grupo de country-rock. E na noite seguinte vamos pro Gilley’s, onde Camryn monta El Torro, o touro mecânico, com aquele chapéu sexy de vaqueira, é claro. E mais tarde, quando voltamos para o hotel, como sou um puta dum tarado, finjo que sou o touro mecânico e deixo Camryn me montar. Usando o chapéu de vaqueira, naturalmente.
Dois dias depois, nos vemos a cerca de uma hora de Lubbock, parados no acostamento, com um pneu estourado. Acho que eu deveria ter verificado os quatro naquele posto de gasolina em Tyler.
— Que bosta, amor — eu reclamo, agachado perto do pneu estraçalhado. — Não tenho outro estepe.
Camryn se apoia na lateral do carro, cruzando os braços sobre o peito. O suor brilha em seu rosto e na pele do decote. Está um calor do cacete. Não há nenhuma árvore nem abrigo de espécie alguma num raio de quilômetros. Estamos rodeados por uma paisagem quase completamente plana e estéril de terra batida. Já faz muito tempo que não vou tão para o interior do Texas, e estou começando a me lembrar do motivo.
Fico de pé e me sento no capô do carro.
— Me dá seu celular — digo.
— Vai chamar um guincho? — ela pergunta, depois de pegar o celular do banco da frente e entregá-lo na minha mão.
Passo o dedo pelo display, virando duas telas para encontrar o aplicativo das Páginas Amarelas.
— É a única coisa que a gente pode fazer. — Eu digito “socorro automotivo” e escolho um dos resultados.
— Só espero que ele venha mesmo, desta vez — ela comenta.
O serviço de socorro automotivo responde, e enquanto estou falando com o cara, dizendo qual o tipo de pneu de que preciso, noto Camryn enfiando o corpo na janelinha de trás do carro e saindo dela com aquele chapéu sexy de vaqueira, provavelmente para se proteger do sol.
Ela dá a volta no capô e se senta ao meu lado.
— Tá, valeu, cara — digo ao telefone e desligo. — Ele disse que vai levar pelo menos uma hora pra chegar aqui. — Deixo o celular sobre o capô e sorrio para ela. — Sabe, era só você cortar as pernas daquele jeans que tá na sua mochila e transformá-lo num shortinho, tirar o sutiã e usar só o top, que...
Ela põe um dedo sobre os meus lábios.
— De jeito nenhum — ela diz. — Nem pense nisso.
Ficamos em silêncio por um momento, olhando para o nada ao nosso redor. Parece que está ficando mais quente, mas acho que é porque estamos sentados ao sol, no capô de um carro preto que absorve o calor como uma esponja. De vez em quando, um ventinho gostoso roça nossos rostos.
— Andrew? — Ela tira o chapéu e o coloca na minha cabeça, depois deita as costas no para-brisa. Ela põe as mãos atrás da cabeça e dobra os joelhos. — Número cinco na nossa lista de promessas: se eu morrer antes de você, quero ser enterrada naquele vestido que compramos na feirinha, e descalça. Ah, e nada de sombra azul estilo anos 80 nos olhos, nem de sobrancelha desenhada. — Ela inclina a cabeça para o lado e olha para mim.
— Mas pensei que você quisesse casar comigo usando aquele vestido.
Ela estreita os olhos, desviando-os do sol.
— É, quero, mas também quero ser enterrada com ele. Tem gente que acredita que quando a pessoa morre, ela revive seus momentos mais felizes na vida após a morte. Um dos meus vai ser o dia em que eu me casar com você. Então é bom já levar o vestido.
Eu sorrio para ela.
Tiro o chapéu e me deito ao seu lado, apertando minha cabeça perto o suficiente da dela para pôr o chapéu sobre as duas e nos proteger do sol. Depois de equilibrá-lo, digo:
— Número seis: se eu morrer antes de você, quero que toquem “Dust in the Wind” no meu funeral.
Ela vira a cabeça para me olhar, com cuidado para não derrubar o chapéu.
— De novo isso? Você tá começando a me fazer detestar um belo clássico do rock, Andrew.
Rio um pouco.
— Eu sei, mas é que eu vi o episódio de Highlander em que a mulher do cara, Tessa, morre. Tocaram essa música ao fundo. Nunca mais consegui tirar da cabeça.
Ela sorri e enxuga o suor da testa.
— Prometo — ela diz. — Mas já que estamos falando disso, quero acrescentar o número sete. Você já viu Ghost — Do Outro Lado da Vida?
Olho rapidamente para ela.
— Bom, vi. Acho que todo mundo já viu esse filme. A menos que tenha 16 anos de idade. Porra, tô surpreso que você tenha visto. — Eu lhe dou uma cotovelada de leve.
Ela ri.
— Culpa da minha mãe — ela admite. — Ghost e Dirty Dancing — Ritmo Quente eu já viu umas cem vezes. Ela era doida pelo Patrick Swayze e, quando criança, eu era a única pessoa do sexo feminino pra quem ela podia dizer o quanto ele era gostoso. Bom, então você já viu. Número sete: se alguém te matar, trata de voltar, como o Sam do filme, e me ajudar a achar seu assassino.
Eu rio e balanço a cabeça, derrubando acidentalmente o chapéu por um momento.
— Que lance é esse que você tem com filmes? Deixa pra lá. Tá, prometo voltar pra puxar seu pé.
— É bom mesmo! — ela exclama, rindo alto. — Além do mais, eu sei que vou ser uma daquelas pessoas que acham que os entes queridos continuam por perto depois de morrer. Seria bom me dar mais motivo pra acreditar.
Não sei bem como vou fazer isso, mas tudo bem. Vou tentar, porra.
— Prometo se você prometer — digo.
— Como sempre.
— Número oito — eu continuo —, não me enterre num lugar frio.
— Concordo plenamente. O mesmo vale pra mim!
Ela enxuga mais suor do rosto e eu me levanto do capô, estendendo a mão para ela.
— Vamos ficar dentro do carro, longe do sol.
Ela pega minha mão e eu a ajudo a descer.
Duas horas depois, o guincho ainda não apareceu e está começando a escurecer. Parece que vamos poder ver o pôr do sol juntos na paisagem deserta do Texas.
— Eu sabia — Camryn diz. — Qual o problema desses guinchos?
E assim que ela diz isso, um par de faróis ofuscantes aparece na estrada vindo na nossa direção. Muito aliviados, saímos para recebê-lo, e a primeira coisa que eu noto é a mesma que Camryn nota. O cara poderia ser uma cópia de Billy Frank. Ela e eu nos entreolhamos, mas não comentamos em voz alta.
— Querem que eu reboque ou só o pneu? — ele pergunta, puxando as alças do seu macacão de jeans.
— Só o pneu — eu digo, seguindo-o para a traseira do guincho.
— Bom, não tenho tempo pra ficar aqui enquanto você troca — ele diz, cuspindo tabaco na estrada. — Vocês vão ficar bem?
— Vamos, sim. Mas espera um momento. — Eu levanto o dedo e enfio o corpo no carro para virar a chave na ignição. Quando o motor parte sem problemas, eu o desligo e volto até ele. — Só queria ter certeza de que tá funcionando.
Pago ao sósia de Billy e fico olhando as lanternas traseiras do guincho sumindo no horizonte escuro à medida que ele se afasta. Quando volto para o carro, onde deixei o pneu, levo um puta susto ao ver Camryn já erguendo o carro com o macaco.
— Porra, essa é a minha garota!
Ela sorri para mim, mas continua trabalhando, com a trança loura jogada sobre um ombro.
— Não é tão difícil — ela diz, rolando agora o novo pneu para perto, depois de conseguir tirar as porcas do antigo sozinha. Acho que tô ficando de pau duro. Não, peraí, já tô mesmo de pau duro.
— Não, não é, de fato — respondo finalmente, com um sorriso ainda maior.
Alguns minutos depois, ela baixa o carro e joga o macaco no porta-malas. Eu carrego o pneu furado para ela e também o jogo lá dentro.
Entramos no carro e ficamos parados.
Tudo está tão silencioso. Enormes faixas de cirros violeta e azuis estão amontoados no céu, estendendo-se bem além do horizonte. À medida que o calor do dia diminui, a brisa suave do anoitecer entra pelas janelas abertas do carro. O crepúsculo está lindo. Para ser sincero, eu nunca tinha prestado muita atenção em um. Talvez seja a companhia.
E não sei ao certo o que está acontecendo entre nós agora, mas seja o que for, estamos tão sintonizados um com o outro que ambos sentimos isso. Eu olho para ela. Ela olha para mim.
— Pronta pra voltar? — pergunto.
— Sim. — Ela fica em silêncio, olhando pelo para-brisa, perdida em pensamentos. Então se vira para mim, com mais certeza do que há alguns segundos. — É, acho que tô pronta pra ir pra casa. — Ela sorri.
E pela primeira vez desde que saí de Galveston sozinho naquele dia, ou que Camryn subiu no ônibus em Raleigh naquela noite, nós finalmente nos sentimos... realizados.
Camryn
32
ACHO QUE A gente fechou mesmo um ciclo. Mas preciso dizer, agora que estamos finalmente de volta a Galveston, depois de sete meses, que a sensação é diferente, desta vez. Não estou preocupada por estar aqui, nem com medo de que meu tempo junto com Andrew esteja acabando. Não estou esperando que uma tragédia médica ressurja a qualquer momento. É bom estar aqui. E quando paramos no estacionamento do prédio dele, sinto satisfação. Posso até me imaginar morando aqui. Mas até aí, também consigo me imaginar morando em Raleigh. Acho que isso significa, talvez, que nós estamos prontos para parar de viajar. Só por um tempinho. Nunca definitivamente, como eu já disse a Andrew, mas por tempo suficiente para nos recuperarmos da estrada.
Andrew concorda.
— É — ele diz, pegando nossas mochilas do banco de trás. — Sabe de uma coisa? — Ele devolve as mochilas para o mesmo lugar e olha por cima do carro para mim.
— O quê? — eu pergunto, curiosa.
Ele está sorrindo com o olhar.
— Você tem razão de não querer ficar na estrada tanto tempo a ponto de a gente se cansar dela, e nem ficar num só lugar por tempo demais pelo mesmo motivo. — Ele para e estende os braços por cima do carro. — A gente podia viajar na primavera ou no verão, deixar o outono e o inverno pra ficar em casa e levar uma vidinha família nas férias... minha mãe ficou bem chateada porque a gente não passou o Natal ou o Dia de Ação de Graças com ela.
Eu balanço a cabeça.
— É uma boa ideia. E como é um saco viajar no frio, faz muito sentido.
Nós nos olhamos por cima do carro por um longo momento, até que eu interrompo as engrenagens que estão girando nas nossas cabeças e digo:
— Bom, pega as mochilas. A gente pode conversar lá dentro. Você precisa olhar a Georgia.
— Ah, a Georgia tá bem — ele diz, mexendo novamente no banco de trás. — Minha mãe vem sempre regar.
Eu pego o violão, a guitarra e a minha bolsa. Quando entramos no apartamento de Andrew, sinto exatamente o cheiro que senti na primeira vez que entrei ali: de apartamento vazio. E como Andrew disse, Georgia está viva e bem.
Eu praticamente desabo no sofá, exausta, estendendo as pernas para fora pela lateral.
— Mas o próximo lugar que a gente for — Andrew diz, passando atrás do sofá — vai ser longe daqui. — Eu ouço seu chaveiro tilintar sobre o balcão da cozinha.
Ergo o corpo e pergunto:
— Longe quanto?
— Na Europa, na América do Sul — ele diz com um sorrisão, voltando para a sala. — Você disse que quer conhecer a Itália, o Brasil e todos aqueles lugares. Sugiro que a gente escolha um e vá pra lá.
Uma carga de energia atravessa o meu corpo. Eu fico de pé e olho para ele, agora tão empolgada com a ideia que mal consigo me conter.
— Sério?
Ele balança a cabeça com um sorriso gigante de lábios fechados.
— Porra, pra manter a tradição, a gente podia até escrever todos os lugares que queremos visitar em papeizinhos, pôr num chapéu e sortear um.
Eu dou um berro. Um berro mesmo! Encosto as mãos no peito.
— Isso é perfeito, Andrew!
Ele se senta no sofá, agora, apoiando os dois pés na mesinha de centro, com os joelhos dobrados. Eu não consigo sentar. Fico onde estou, olhando para seu rosto sorridente.
— Claro que precisamos continuar faturando — ele diz. — Temos muito dinheiro no banco, mas viajar pro exterior com certeza vai acabar com ele mais rápido.
— Mal posso esperar pra arranjar um emprego — digo, e esse comentário estimula a minha memória. — Andrew, você já me disse pra ser totalmente sincera com você a respeito de onde eu quero morar.
Isso chama a atenção dele.
— Onde você quer morar?
Penso nisso por um momento e respondo:
— Por enquanto, acho que em Raleigh, mas só porque gostaria de ficar perto de Natalie e da minha mãe, e porque sei que posso arrumar emprego facilmente no trabalho da Natalie. A chefe dela disse que gostou de mim e pediu que eu preenchesse uma ficha e...
Andrew me interrompe.
— Não precisa explicar seus motivos. — Ele estende a mão para mim e eu me sento em seu colo, de frente para ele. Não tinha me dado conta de que estava falando mais que uma matraca, de nervoso. Só não queria que ele se sentisse obrigado a nada.
Ele sorri para mim e abraça a minha cintura.
— Minha pergunta — ele continua — é o que, exatamente, significa “por enquanto” pra você?
— Bom... essa é a parte difícil.
Ele inclina a cabeça para o lado, me olhando com curiosidade, as covinhas mal aparecendo em suas bochechas.
Finalmente, eu digo de uma vez:
— Acho que a gente não deve gastar todo o dinheiro numa casa, porque não quero ficar lá pra sempre. E se fizermos isso, não vamos ter muito dinheiro pra gastar quando quisermos ir pra Europa ou qualquer lugar, e trabalhar ganhando salário mínimo não vai ajudar a poupar muito.
Ele me olha de lado.
— Peraí. Espero que você não queira morar na casa da sua mãe. A gente precisa de privacidade. Quero poder te catar de quatro por cima da mesa da sala quando eu quiser.
Eu rio e aperto as coxas ao redor dele, por brincadeira.
— Você é tão safado! Mas não, com certeza não quero morar com a minha mãe.
— Bom, se você não quer comprar uma casa e não quer morar com sua mãe, a única opção que resta é alugar, e isso custa muito caro também.
Fico constrangida, porque chegamos ao ponto em que preciso falar do dinheiro de Andrew como se fosse meu também, e duvido que um dia eu vá me acostumar com isso.
Eu desvio o olhar.
— Lembra quando você disse que a gente podia comprar uma casinha em algum lugar?
— Lembro — ele diz, e seus olhos brilham mais, como se ele já soubesse o que vou dizer.
— Bom, a gente podia, quem sabe, comprar uma casa bem pequena ou um apartamento com dinheiro vivo, só o suficiente pra nós... sei lá, algo bom e barato, e ainda sobraria muito dinheiro no banco pras nossas viagens. Não vamos pagar aluguel, e só vamos precisar pagar todo mês contas e coisas assim, e podemos custear isso trabalhando e tocando em bares, sem mexer nas nossas economias.
Por que ele está sorrindo como o gato da Alice?!
Sinto minha cabeça afundando no meio dos ombros, meu rosto ficando quente.
— Qual é a graça?! — pergunto, apertando as mãos no seu peito e tentando não rir.
— Graça nenhuma. Só gostei de ver que você finalmente entendeu que o que é meu é seu. — Ele aperta os dedos na minha cintura.
— Se você tá dizendo — eu balbucio, tentando esconder o rubor do meu rosto, fingindo estar ofendida.
— Ei — ele diz, balançando meus quadris —, não faz isso. Termina o que você tava dizendo.
Depois de uma longa pausa, eu continuo:
— E quando a gente partir pro destino do papelzinho no chapéu, Natalie pode tomar conta da casa. Ou! — eu aponto para cima. — Quando finalmente encontrarmos aquele lugar sossegado na praia que você sonhou pra morar, podemos vender nossa casa em Raleigh ou alugá-la pra ter uma renda extra. Talvez até alugar pra Natalie e Blake!
Posso ver que algo está acontecendo dentro da mente dele. Seu sorriso continua suave e ele nunca tira os olhos de mim. Mas está tão quieto, até que finalmente quebra o silêncio e diz:
— Parece que você pensou muito nisso. Quanto tempo levou pra planejar tudo?
Só agora me dou conta de que foi muito tempo. Penso no dia em que comecei a tentar organizar nosso futuro, quando decidi oficialmente que queria ter uma casa e estava cansada da estrada.
Andrew espera pacientemente que eu responda, sempre com um olhar suave e pensativo, sua maneira de me lembrar constantemente de que nada que eu possa lhe dizer jamais criará qualquer negatividade entre nós.
— Foi na estrada, depois que partimos de Mobile — digo. — Quando falei que eu queria conhecer a Itália, a França e o Brasil um dia. Quando eu disse que nunca ia querer parar de viajar pra sempre. Daquela noite em diante, fiquei determinada a planejar tudo. Como a gente faria tudo isso. — Meu olhar vaga. — Eu infringi as regras e planejei tudo.
Ele se inclina para a frente e beija meus lábios.
— Às vezes planejar é necessário — ele diz. — Você fez um bom trabalho. Acho que o plano todo tá perfeito. — E então ele me agarra com um beijo apaixonado.
Quando o beijo termina, eu o olho por um momento, com seu rosto nas mãos.
— Mas quero me casar com você aqui — conto, e os olhos dele se iluminam. — Não quero que a sua mãe se sinta excluída, sabe? Na verdade, ela é o único motivo de eu me sentir culpada por querer ir morar em Raleigh. E me sinto ainda pior porque ela tava planejando aquele chá de bebê e a gente nem...
— Ela vai gostar disso — ele aprova, me interrompendo antes que eu comece a matraquear de novo. — Eu adorei.
Ele me beija de novo.
Andrew
33
EU NÃO PODERIA ter pedido um dia mais perfeito. O clima está perfeito. Os planos para o casamento que não fizemos se encaixaram perfeitamente. Eu liguei para a minha mãe ontem e pedi que nos encontrasse na praia da Ilha de Galveston. Ela chegou a tempo, sem fazer ideia do motivo do convite.
Eu levanto a mão quando a vejo, acenando para chamá-la, e assim que ela nos vê, entende tudo. Seu rosto se abre num sorriso enorme, e é fácil se contagiar.
— Ah, vocês dois — minha mãe diz, se aproximando —, não acredito que finalmente vão fazer isso. Estou... estou tão... — Lágrimas escorrem do seu rosto e ela as enxuga, rindo e chorando ao mesmo tempo.
Camryn, descalça e com aquele vestido vintage cor de marfim que encontrou na feirinha, abre os braços e abraça minha mãe.
— Oh, Marna, não chore, por favor — ela pede, embora eu ache que é mais uma súplica, porque ver minha mãe chorando a está deixando com um nó na garganta.
— Mais alguém vem? — minha mãe pergunta depois.
— Você é nossa convidada de honra exclusiva — digo orgulhosamente.
— É — Camryn acrescenta —, é só você e o reverendo aqui.
Minha mãe passa por nós para abraçar também o reverendo Reed. Ela frequenta a igreja dele há nove anos — tentou me levar junto um milhão de vezes, mas eu não sou muito de igreja. Mas pensei, quem melhor do que ele pra casar a gente?
E enquanto o reverendo Reed está diante de nós na praia, com sua Bíblia gasta nas mãos e dizendo algumas palavras, tudo o que consigo ver ou ouvir é Camryn de pé na minha frente, com suas mãos nas minhas. A brisa passa pelos fios soltos do seu cabelo, livres daquela trança dourada sobre seu ombro que eu amo tanto. Adoro seu sorriso, seus olhos azuis e sua pele macia. Quero beijá-la agora e acabar com isso. Eu aperto os dedos de leve sobre suas mãos e a puxo mais para perto. O vento sopra seu vestido longo, fazendo-o aderir ao seu corpo de violão. Eu contenho o sorriso quando noto um cacho do cabelo entrando em sua boca. Ela tenta disfarçadamente tirá-lo com a língua, sem atrair atenção para si.
Sabendo que ela não quer criar nenhum tipo de interrupção, nem para algo simples assim, eu afasto o cacho para ela.
Sinto que somos as duas únicas pessoas do mundo.
Quando chega a hora de dizermos nossos votos, eu sei que nenhum dos dois escreveu nada, nem teve muito tempo para pensar no que queria dizer. E assim, praticamente da mesma forma que costumamos fazer tudo, nós fazemos e pronto.
Eu aperto mais suas mãos entre nós e digo:
— Camryn, você é a outra metade da minha alma, e eu vou te amar hoje e todo dia pelo resto das nossas vidas. Prometo que se um dia você me esquecer, lerei para você, como Noah lia para Allie. Prometo que, quando ficarmos velhos e nossos ossos doerem, nunca dormiremos em quartos separados, e que se você morrer antes de mim, será enterrada com esse vestido. Prometo assombrar você como Patrick Swayze assombrou Demi Moore. — Seus olhos começam a se encher de água. Eu acaricio as palmas das mãos dela com meus polegares. — Prometo que nunca vamos acordar um dia, daqui a anos, e nos perguntar por que desperdiçamos nossas vidas sem fazer nada, e que seja qual for a dificuldade que enfrentemos, eu sempre, sempre estarei com você. Prometo ser espontâneo, sempre baixar o volume da música quando você adormecer, e cantar a música das uvas-passas quando você estiver triste. Prometo sempre amar você, em qualquer lugar do mundo ou de nossas vidas em que estejamos. Porque você é a outra metade de mim, sem a qual eu sei que não consigo viver.
Lágrimas escorrem dos seus olhos. Ela leva um instante para se recompor.
E então ela diz:
— Andrew, prometo nunca te manter vivo por aparelhos, deixando você sofrer, se eu sentir no fundo do meu coração que sua vida acabou. Prometo que, se um dia você se perder ou desaparecer, eu... nunca vou parar de te procurar. Jamais. — Isso me faz sorrir. — Prometo que quando você morrer, vou mandar que toquem “Dust in the Wind” no funeral, e você não será enterrado num lugar frio. Prometo sempre te contar tudo, por mais que eu me sinta envergonhada ou culpada, e confiar em você quando me pedir pra fazer alguma coisa, porque sei que tudo o que você faz tem um propósito. Prometo ficar sempre ao seu lado e nunca deixar que você enfrente nada sozinho. Prometo amar você para sempre nesta vida e aonde quer que formos depois da morte, porque eu sei que não consigo viver em nenhuma vida, a menos que você também esteja nela.
O pastor Reed me diz:
— Andrew Parrish, aceita Camryn Bennett como sua legítima esposa, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-a e respeitando-a pelo resto da vida?
— Aceito — afirmo, pondo a aliança que comprei em Chicago no dedo dela. Ela fica discretamente sem fôlego.
Então ele se vira para Camryn e pergunta:
— Camryn Bennett, aceita Andrew Parrish como seu legítimo esposo, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-o e respeitando-o pelo resto da vida?
— Aceito.
Finalmente, eu entrego a ela a minha aliança, porque estava escondendo as duas dela até este momento, e ela a põe no meu dedo. O pastor Reed conclui, incluindo aquelas aguardadas sete palavras — “Eu agora os declaro marido e mulher” — e então me dá permissão para beijar minha esposa. É tudo o que queríamos fazer desde que a cerimônia começou, e agora que podemos, ficamos só nos olhando, perdidos nos olhos um do outro, nos vendo numa luz diferente, muito mais brilhante do que desde que nos conhecemos no Kansas, naquele ônibus. Sinto meus olhos começarem a arder e a tomo em meus braços e esmago minha boca sobre a dela. Ela soluça durante o beijo e eu aperto suas costas, erguendo seus pés descalços completamente da areia e rodopiando com ela. Minha mãe está chorando feito um bebê. Eu sinto que nunca mais vou parar de sorrir.
Camryn é a minha esposa.
Camryn
Eu acabo de me tornar Camryn Parrish. Não consigo nem entender as emoções que estou sentindo. Estou chorando, mas meio que rindo por dentro ao mesmo tempo. Me sinto empolgada, porém ansiosa. Olho de novo para esta aliança que ele acaba de pôr no meu dedo e sei que ele gastou muito dinheiro nela. Então olho para a dele, quase idêntica à minha, mas numa versão masculina, e não consigo ficar brava com ele. Não consigo. Ouço Marna soluçando atrás de mim, e não posso deixar de ir até ela e abraçá-la de novo.
— Bem-vinda à família — ela diz com a voz embargada.
— Obrigada. — Eu sorrio e enxugo as lágrimas.
Andrew passa o braço na minha cintura e o pastor se junta a nós. Quando Marna e ele começam a pôr a conversa em dia, Andrew e eu nos afastamos um pouco, e ele não consegue parar de me olhar. Eu fico vermelha.
— O que foi? — pergunto.
Ele balança a cabeça, com um sorriso radiante.
— Eu te amo — ele diz, e fico com vontade de chorar de novo, mas consigo me controlar.
— Eu também te amo.
Passamos a lua de mel no nosso apartamento, quebrando a tradição. Porque queremos esperar até nossa primeira viagem ao exterior para fazer uma verdadeira lua de mel.
— Onde você acha que será? — ele pergunta.
Estamos sentados na varanda, em duas cadeiras de praia, tomando cerveja e ouvindo a música ao vivo que vem da praia ou do parque, de algum lugar distante.
— Não sei — respondo, tomando um gole no gargalo. — Quer fazer uma aposta?
Andrew esfrega o lábio inferior com o polegar.
— Hmmm. — Ele pensa a respeito, tomando mais um gole de cerveja, e então diz: — Acho que o primeiro país que vamos tirar daquele chapéu vai ser... — ele estufa os lábios — ...o Brasil.
— Brasil, é? Legal. Mas eu não sei — tenho a estranha sensação de que vai ser mais alguma coisa tipo a Itália.
— É mesmo?
— Sim.
Ambos tomamos um gole ao mesmo tempo.
— Talvez a gente devesse apostar alguma coisa — ele diz, com a covinha da bochecha direita ficando mais funda.
— Uma aposta, é? Tá, eu topo.
— Tudo bem. Se for o Brasil, você vai ter que ir comigo pra praia, bem no estilo do Rio de Janeiro. — Seu sorriso é malicioso.
Eu levo um minuto para entender o que ele está dizendo, e quando a ficha cai, sinto o ar noturno nos meus dentes ao abrir a boca.
— Sem. Chance!
Andrew ri.
— Não vou ficar saltitando de topless em público!
Ele joga a cabeça para trás e ri mais alto.
— Não, acho que elas não fazem isso lá, amor — ele explica. — Quero dizer que você vai ter que usar um daqueles biquínis brasileiros. Nada daquelas porras tipo tô-com-vergonha que você usou na Flórida. Você tem um corpo legal. — Ele toma mais um gole e deixa a garrafa sobre a mesa à nossa frente.
Eu penso por um momento, mordendo a bochecha por dentro.
— Fechado — concordo.
Parecendo um pouco surpreso por me ver concordar tão facilmente, ele balança a cabeça.
— E se for a Itália — digo, também com um sorrisinho —, você vai ter que fazer uma serenata pra mim na escadaria da Piazza di Spagna... na língua local. — Eu cruzo uma perna sobre a outra. Eu sabia que a última parte ia pirar aquela cabecinha sexy dele.
— Você não tá falando sério — ele argumenta. — Como é que eu vou fazer uma porra dessas?
— Sei lá — respondo. — Acho que, se eu ganhar, você vai ter que dar um jeito.
Ele balança a cabeça e faz uma careta pensativa.
— Tudo bem. Tá apostado.
34
RALEIGH, CAROLINA DO NORTE — Junho
— Surpresa! — Várias vozes gritam quando entro na nossa nova casa.
Realmente surpresa, eu tenho um sobressalto e ponho a mão no peito. Natalie está bem no meio, com Blake ao seu lado. Meus amigos do meu Starbucks favorito e a irmã de Blake, Sarah, que conheci há duas semanas, quando Andrew e eu voltamos, estão todos aqui.
— Uau, a gente tá comemorando o quê? — pergunto, ainda tentando recuperar um pouco o fôlego, porque eles quase me mataram de susto. Eu me viro para Andrew. Ele está sorrindo, portanto é óbvio que teve algo a ver com tudo isso.
Natalie, agora com luzes ruivas no cabelo, me puxa para um abraço.
— É sua festa oficial de boas-vindas. — Ela dá um sorrisinho para mim e olha para Andrew. — Por que você acha que eu tava fazendo tão pouco caso da sua volta nos últimos dias?
— Você não fez pouco caso — comento.
— Tá, talvez não tenha dado pra perceber — ela admite —, mas por favor, Cam, você não notou que eu tava escondendo alguma coisa?
Acho que ela tem razão, pensando bem. Ela parecia contente por eu ter voltado, mas não eufórica, como ficaria normalmente. Acho que eu só imaginei que talvez Blake finalmente a tivesse domado um pouco.
Eu me viro para Andrew de novo.
— Mas a gente não tem nem móveis.
— Ah, tem, sim! — Natalie diz, me puxando pelo pulso.
Ela me arrasta para a sala de estar, onde oito pufes gigantes estão espalhados pelo chão. No meio da sala estão quatro caixotes de leite amarrados com uma tábua em cima, que eu presumo que sejam a mesinha de centro. A eletricidade nem foi ligada ainda, mas na “mesinha de centro” estão três velas apagadas sobre tampas de latas de biscoitos, prontas para quando escurecer, daqui a algumas horas.
Eu apenas rio.
— Eu tô adorando! — comento com Andrew. — Proponho que a gente desencane totalmente dos móveis e mantenha esse tema dos pufes gigantes retrô! — Claro que estou brincando, e Andrew sabe disso.
Ele se joga no pufe mais próximo e estica as pernas no chão, refestelando-se no vinil acolchoado.
— Eu até me viro com eles, mas a gente vai precisar de uma cama, com certeza. — Eu me sento no pufe ao lado e me ajeito. Todos fazem o mesmo, enquanto Natalie e Blake vão para a cozinha.
Andrew e eu encontramos aquela casinha cinco dias depois que chegamos. Querendo sair da casa da minha mãe tão rápido quanto humanamente possível, ele passou horas na internet e olhando anúncios de imobiliárias, mesmo enquanto eu fazia corpo mole e só relaxava depois da longa viagem desde Galveston. Praticamente deixei Andrew se ocupar da procura da casa. Ele me mostrava fotos e eu dava minha opinião. Mas aquela casa era perfeita. Foi a terceira que visitamos pessoalmente (e nem acho que o fato de ele tê-la adorado tenha algo a ver com ele ter acidentalmente visto minha mãe seminua quando ela achou que não estivéssemos em casa). O preço era ótimo porque os antigos donos, que já tinham se mudado havia quatro meses, queriam vendê-la logo e encerrar o assunto. Acabamos conseguindo comprá-la por vinte mil a menos do que seu real valor, e isentamos os antigos donos de fazer qualquer conserto antes de fechar o negócio. Como pagamos com dinheiro vivo, tudo aconteceu muito rápido.
Hoje é oficialmente nosso primeiro dia como os novos proprietários.
Trouxemos muitas coisas de Galveston, alugamos um pequeno reboque de mudanças, que lotamos com tudo o que coubesse dentro. Mas logo vamos ter que voltar para buscar os móveis. Infelizmente, Andrew está irredutível quanto a conservar a velha poltrona fedida do pai dele, mas prometeu mandar limpá-la. E é bom que mande mesmo!
Natalie e Blake voltam para a sala, cada um trazendo três garrafas de cerveja, que começam a distribuir.
— Obrigada, mas eu não quero — digo.
Natalie parece ficar arrasada, projetando o lábio inferior e me olhando. Ela está usando uma camiseta branca apertada que deixa seus seios empinados.
— Quero distância de cerveja por no mínimo uma semana, Nat — eu explico.
Ela torce o nariz, mas depois dá de ombros e diz:
— Sobra mais pra mim!
Depois que Blake passa uma cerveja para Andrew, ele se dirige para o último pufe que sobrou, mas Natalie corre e chega antes dele. Assim, ele se senta em cima dela. Enquanto eles estão se engalfinhando, Natalie dá uma risada esquisita, e eu vejo de soslaio a expressão no rosto de Andrew.
— Shenzi — ele sussurra, e balança a cabeça, tomando um gole de cerveja.
Eu rio baixinho, agora sabendo o que Andrew quis dizer a primeira vez que a chamou assim. Pesquisei no Google logo depois e descobri que esse é o nome da hiena desbocada de O Rei Leão.
— Vocês prometeram me contar sobre a viagem — Natalie diz, agora sentada no pufe, no meio das pernas de Blake.
Todos olham para mim e Andrew.
— Já te contei bastante coisa, Nat.
— É, mas não contou nada pra gente — diz Lea, minha amiga que trabalha no Starbucks.
Alicia, que trabalha com ela, acrescenta:
— Eu já caí na estrada com a minha mãe e meu irmão, mas com certeza deve ter sido totalmente diferente da sua viagem.
— E você ainda não me contou o que aconteceu na Flórida — Natalie diz. Ela toma um gole de sua cerveja e deixa a garrafa ao seu lado no chão, apoiando em seguida os braços sobre as pernas de Blake. Ele a beija no pescoço.
Eu me encolho toda por dentro só de pensar na Flórida, mas percebo que é porque Andrew, na verdade, é que poderia ficar constrangido com o que aconteceu. Por um segundo, não consigo nem encará-lo, pois me sinto culpada por ter tocado no assunto com Natalie. Não dei nenhum detalhe, só mencionei que um lance muito sinistro aconteceu enquanto estávamos ali.
Quando finalmente olho para Andrew, percebo que ele não está com raiva de mim. Ele pisca e também deixa sua cerveja no chão, ao seu lado.
— A Flórida — ele começa, para minha surpresa. — Essa provavelmente foi a pior etapa da viagem, se não foi também a mais estranha. Mesmo assim, tem algumas partes que não me desagradaram tanto.
Não faço ideia de onde ele quer chegar com isso.
Todos estão olhando para Andrew, agora, especialmente Natalie, cujos olhos estão esbugalhados de antecipação.
— Conhecemos uma moçada que convidou a gente pra uma balada com eles numa parte pouco acessível da praia. E a gente foi. E se divertiu. Mas aí as coisas ficaram esquisitas.
— Esquisitas como? — Natalie interrompe.
— Esquisitas tipo LSD ou sei lá que porra.
Os olhos de Natalie se abrem ainda mais e ficam ferozes quando ela me olha.
— Você tomou LSD? Que porra de ideia foi essa, Cam?
Eu balanço a cabeça.
— Não, claro que não tomei de propósito. Eles drogaram a gente!
Os olhos de todos estão arregalados como os de Natalie, agora.
— É — Andrew continua. — A gente nem sabe direito o que era, mas ficamos completamente chapados.
— Eu já levei um “boa noite Cinderela” uma vez — conta a irmã de Blake, Sarah.
Ela aparenta ter uns 18 anos.
Blake tem um sobressalto e levanta o corpo, fazendo Natalie bater os dentes no gargalo da garrafa.
— Quê? — ele pergunta, soltando fogo pelos olhos.
— Ah, você não sabia? — Sarah diz docemente, como se tivesse apenas esquecido de contar.
Obviamente, teria sido melhor não ter contado.
— Aaai! — Natalie choraminga, com a mão na boca.
— Desculpa — Blake diz. Ele beija sua bochecha e se vira para a irmã. — Sarah, quem foi que te dopou, porra? E não me enrola. É melhor você me contar... aconteceu alguma coisa? — O medo está estampado no seu rosto.
Sarah revira os olhos.
— Não. Não aconteceu nada, porque Kayla tava lá e me trouxe pra casa. E não, eu não sei quem foi, Blake, então fica frio aí, por favor. — Depois ela se vira na nossa direção. — Vocês tavam dizendo?
— Eu vou com você, cara — Andrew diz para Blake. — Se você descobrir quem foi, é só avisar. Isso é muita sacanagem.
Eu dou uma leve cotovelada em Andrew. Ele entende e diz:
— Bom, preciso dizer que a Flórida foi uma experiência, mas que nunca mais quero repetir.
Andrew não diz nada sobre a piranha nojenta que tentou fazer um boquete nele. Fico feliz por isso, porque seria uma conversa constrangedora. Isso sem falar que Natalie ia se divertir um monte com uma informação dessas. Ficamos sentados nos pufes e conversamos com nossos amigos por algumas horas, até umas oito da noite, quando Blake precisa levar Sarah para casa. Pouco depois que os três saem, o resto vai embora, e Andrew e eu ficamos sozinhos no nosso primeiro lar oficial como recém-casados.
Ele volta da cozinha com uma vela na mão, depois de acendê-la no fogão. O gás foi ligado antes. Então ele usa a chama para acender as outras, sobre a mesa.
— A gente vai dormir no chão? — pergunto, olhando para ele.
— Não — ele responde, afastando-se das velas. Ele puxa todos os pufes para o meio da sala e os junta, criando uma cama improvisada, depois bate nela com a palma da mão. — Por enquanto, vai ter que ser assim. Eu não vou dormir no chão. Acordo todo entrevado.
Eu sorrio.
— Isto é estranho, não? — comento, olhando ao redor para as paredes nuas da nossa casa, imaginando que tipo de fotografias ou quadros ficariam bem nelas.
— O que, não ter móveis nem eletricidade? Você já deveria estar acostumada. — Ele dá uma risadinha.
Eu me levanto do pufe perto da parede e me sento na cama que ele fez. Estendo a mão para a mesa e fico cutucando a cera quente de uma vela, deixando que me queime, depois esfrie e se molde à ponta do meu dedo.
— Não, quero dizer esta casa. A gente. Tudo, na verdade.
— Estranho de um jeito bom, espero.
— É claro — confirmo, sorrindo para ele.
O silêncio enche a casa. A luz das velas projeta grandes sombras dançantes nas paredes. A casa cheira a água sanitária, desinfetante e outros produtos de limpeza, embora fracamente.
— Andrew, obrigada por vir morar aqui.
Finalmente, ele se senta ao meu lado e ambos olhamos as chamas por um momento.
— Onde mais eu poderia estar, se não junto com você?
— Você sabe do que eu tô falando — respondo. Passo a palma da mão por cima de uma chama, só para sentir o calor na minha pele e ver o quanto consigo aproximá-la sem me queimar.
— Eu sei — ele admite —, mas mesmo assim.
Eu afasto a mão e olho para ele; seu rosto parece delicado no brilho alaranjado das velas, mesmo com a barba por fazer que está começando a aparecer de novo.
— Camryn, preciso contar uma coisa pra você.
Instantaneamente, meu coração fica apertado no peito com o modo como ele falou.
— O quê... isto é, como assim, precisa me contar uma coisa? — Estou tão nervosa. Não sei por quê.
Andrew dobra os joelhos e apoia os antebraços sobre eles. Ele olha de novo para as chamas uma vez, só por alguns segundos, mas até alguns segundos é tempo demais.
— Andrew? — viro completamente o corpo para encará-lo.
Noto que seu pomo de adão se mexe quando ele engole em seco. Ele me olha nos olhos.
— Eu tô sentindo dores de cabeça — ele começa, e meu coração afunda até o estômago. Sinto que vou vomitar. — Só desde segunda, mas marquei uma consulta com um médico daqui. Foi recomendação da sua mãe.
Eu a odeio na hora por esconder isso de mim. Minhas mãos estão tremendo.
— Pedi pra sua mãe não contar nada pra você porque queria que o lance da casa acontecesse tranquilamente...
— Você devia ter me contado.
Ele tenta pegar minha mão, mas sem perceber eu a puxo e fico de pé.
— Por que você escondeu isso de mim?! — Eu estou zonza.
Andrew fica de pé também, mas mantém distância.
— Já te falei — ele diz. — Eu não queria...
— Não quero saber! Você devia ter me contado!
Eu cruzo os braços sobre a barriga e me curvo um pouco para a frente. Estou surpresa de ainda não ter vomitado. Meus nervos estão tão em frangalhos que é como se estivessem realmente se partindo dentro de mim.
— Isso não pode estar acontecendo... — Finalmente, escondo o rosto nas mãos e começo a soluçar. — Por que isso tá acontecendo, porra?!
Andrew está ao meu lado em segundos. Eu sinto seus braços me envolverem. Ele puxa meu corpo trêmulo para o seu peito e me abraça. Apertado.
— Essas dores não querem dizer nada — Andrew afirma. — Sinceramente, não me sinto como da outra vez, Camryn. Tenho dores de cabeça, sim, mas são diferentes.
Quando domino os soluços o suficiente e sinto que vou conseguir falar sem engasgar, levanto a cabeça para olhá-lo.
Ele segura meu rosto com as mãos e sorri fracamente para mim.
— Eu sabia que você ia reagir assim, amor — ele continua baixinho. — Não quero que fique estressada pelos próximos quatro dias, até minha consulta na segunda. — Ele continua me olhando nos olhos. — Eu não tô sentindo a mesma coisa. Se concentra nisso, porque tô dizendo a verdade.
— Você tá? — pergunto. — Ou tá dizendo isso pra não me deixar preocupada? — Eu já enfiei na cabeça que o que ele está fazendo é exatamente a segunda opção. Me afasto dele e começo a andar de um lado para o outro, de braços cruzados, com uma mão sobre a boca. Não consigo parar de tremer.
— Não tô mentindo pra você. Eu vou ficar bem. Sinto que vou ficar bem, e você precisa acreditar.
Eu me viro para encará-lo de novo.
— Não consigo mais viver assim, Andrew. Não quero.
Ele inclina um pouco a cabeça; seu olhar é pensativo, curioso, preocupado.
Eu sei que ele quer que eu explique melhor o que falei, mas eu não posso. Não posso, porque as coisas que quero dizer só o deixariam chateado e magoado. E seriam apenas palavras. Palavras resultantes da dor e da raiva e de uma parte de mim que quer olhar na cara de Deus, ou seja lá quem ou o que for, e mandá-Lo pro inferno.
Eu preciso me acalmar. Preciso parar e respirar.
Eu faço exatamente isso.
— Camryn?
— Você vai ficar bem — afirmo com sinceridade. — Eu sei que você vai ficar bem.
Ele volta para perto de mim, me beija na testa e diz:
— Eu vou.
Andrew
35
OS ÚLTIMOS QUATRO dias foram estressantes. Embora Camryn tivesse dito que continuaria pensando positivo e que não se deixaria afetar, ela andou diferente. Seus nervos estão em frangalhos. Por duas vezes a ouvi chorando no banheiro e vomitando. Desde que contei sobre as dores de cabeça, na terça à noite, ela está agindo de um jeito bem parecido com a forma como agiu antes de partirmos para visitar Aidan e Michelle em Chicago: fingindo sorrisos e rindo forçado quando algo supostamente seria engraçado. Ela não é a mesma. Preocupado e lembrando o que aconteceu depois do aborto, com os comprimidos, perguntei à queima-roupa se ela teve mais algum “momento de fraqueza”.
Camryn diz que não, e eu acredito.
Mas nada vai consertá-la desta vez, a não ser sairmos hoje deste hospital com os resultados dos meus testes negativos.
Caso contrário... bem, não quero pensar nisso.
Estou mais preocupado com ela do que comigo mesmo.
Pediram que Camryn esperasse em outra sala enquanto faziam a tomografia. Percebo que ela queria discutir com a enfermeira, mas faz o que pediram. E, como da última vez, parece que já estou aqui há horas, me sentindo um pouco claustrofóbico no túnel desta máquina enorme e barulhenta. Fique bem parado, o técnico me pediu. Tente não se mexer, senão vamos ter que refazer o exame. Nem preciso dizer que fiquei praticamente sem respirar por 15 minutos.
Quando a tomografia acabou, tirei os tampões de ouvido e os joguei no cesto de lixo.
Camryn quase perdeu as estribeiras quando a enfermeira que veio me liberar disse que só saberíamos de alguma coisa na quarta-feira.
— Você tá de brincadeira comigo! — Os olhos de Camryn estavam animalescos. Iam e voltavam entre mim e a enfermeira, esperando que um de nós pudesse fazer alguma coisa.
Eu olhei para a enfermeira.
— Tem algum jeito de a gente saber o resultado ainda hoje?
Percebendo, só de olhar para a expressão de Camryn, que ela não iria ceder, a enfermeira suspirou e disse:
— Vão sentar na sala de espera, vou ver se consigo convencer o dr. Adams a dar uma olhada agora.
Quatro horas depois, estávamos sentados no consultório do dr. Adams.
— Não vejo nenhuma anormalidade — o doutor declarou, e eu senti a mão de Camryn afrouxar o aperto mortal em que prendia a minha. — Mas, considerando seu histórico, acho que seria do seu interesse se consultar comigo uma vez por mês pelos próximos meses e ficar atento de qualquer alteração que considerar importante.
— Mas o senhor falou que não viu nada — Camryn disse, apertando minha mão de novo.
— Não, mas ainda acho que isso seria do interesse de Andrew. Só por segurança. Assim, se alguma coisa surgir, vamos detectá-la bem cedo.
— Tá dizendo que alguma coisa vai surgir?
Eu queria rir da sutil cara de frustração do médico, mas em vez disso olhei para Camryn, que estava à minha esquerda, e falei:
— Não, ele não tá dizendo isso. Fica calma. Tá tudo bem. Viu? Eu falei que ia ficar tudo bem.
E daquele dia em diante, só pude torcer para que eu estivesse dizendo a verdade.
Camryn
36
MUITOS MESES DEPOIS...
Andrew me escreveu outra carta, em algum momento do nosso primeiro mês na nova casa. Acho que já a li umas cem vezes. Em geral eu choro, mas também me pego sorrindo muito. Ele disse que queria que eu a lesse uma vez por semana para marcar mais uma semana que passava sem nada acontecer, em que tudo continuava bem. E eu fiz isso. Costumava lê-la no domingo à noite, depois que ele já tinha pegado no sono ao meu lado na cama. Mas às vezes, quando eu adormecia antes dele, na manhã seguinte tirava a carta de dentro do livro ao lado da cama e a lia antes que ele acordasse. E como em todas as vezes anteriores, eu olhava para ele dormindo, depois de lê-la, e torcia por mais uma semana.
Andrew sempre me intrigou. O modo como sua mente funcionava. O modo como ele conseguia me olhar sem dizer nada e fazer com que eu me sentisse a pessoa mais importante do mundo. Sempre me intrigou como ele conseguia ser sempre tão otimista, mesmo quando o mundo estava desmoronando ao seu redor. E como ele sempre fazia uma luz brilhar nos recantos mais sombrios da minha mente, quando eu achava que nunca mais veria outra luz ali.
Claro que ele tinha maus dias, “momentos de fraqueza”, mas jamais conheci alguém nem de longe como ele. E sei que jamais vou conhecer.
Talvez no fundo eu seja uma pessoa fraca, na verdade. Talvez, se não fosse por Andrew, eu não fosse a pessoa que sou hoje. Às vezes me pergunto o que seria de mim se eu jamais o tivesse conhecido, se ele não tivesse aparecido para me salvar daquela viagem de ônibus perigosa e imprudente que decidi fazer sozinha. Eu me pergunto o que teria acontecido comigo se ele não gostasse de mim o suficiente para me ajudar a superar o meu momento de fraqueza. Odeio pensar em mim assim, mas às vezes é preciso simplesmente enfrentar a realidade, enxergar como as coisas são e como elas poderiam ter sido, por causa das nossas ações. Acredito de coração que, se não fosse por Andrew, talvez eu nem estivesse aqui hoje.
Os últimos meses foram muito difíceis para nós, mas ao mesmo tempo foram cheios de vida, empolgação, amor e esperança.
A vida é uma coisa misteriosa e muitas vezes injusta. Mas acho que aprendi, no tempo que passei com Andrew, que ela também pode ser maravilhosa, e que em geral, quando acontece uma coisa que parece injusta, é só o jeito de a a vida abrir espaço para coisas melhores que virão. Gosto de pensar assim. Me dá forças quando mais preciso.
E no momento, eu preciso muito.
Tento olhar para cima, para o relógio no alto da parede branca e estéril da sala, mas mal consigo enxergar os ponteiros com minha visão embaçada. Quero saber há quanto tempo estou aqui. Estou exausta e enfraquecida mental e fisicamente e não aguento mais. Eu engulo o nó na garganta e sinto que minha boca está seca como uma lixa. Enxugo uma lágrima do meu olho. Mas só uma. Na verdade, não chorei muito. Porque a dor estava tão insuportável, antes, que praticamente secou todas as minhas lágrimas.
Eu não vou conseguir. Sinto que a qualquer momento vou querer simplesmente desistir. Quero dizer pra todos que estão na sala que vão embora, que me deixem em paz e parem de me olhar como se minha alma estivesse doente. Ela está! Está, porra! Mas ninguém aqui pode curá-la.
O que mais sinto é entorpecimento. Não consigo sentir mais nada. Mas as paredes do hospital estão começando a se fechar ao meu redor, me deixando um tanto claustrofóbica. Mas quanto à dor e à angústia, não sinto nada. Eu me pergunto se vou ficar entorpecida para sempre.
— Você precisa tentar fazer força — Andrew recomenda ao meu lado, segurando a minha mão.
Eu viro a cabeça bruscamente para olhá-lo e discuto:
— Mas eu não tô sentindo minha cintura! Como posso fazer força se não consigo sentir que tô fazendo força! — Acho que só tenho força para expelir essas palavras entre meus dentes cerrados.
Ele sorri e beija minha testa suada.
— Você consegue — assegura a dra. Ball, do meio das minhas pernas.
Eu fecho os olhos, aperto a mão de Andrew e faço força. Eu acho. Abro os olhos e me permito respirar.
— Eu fiz força? Tá dando certo?
Meu Deus, tomara que eu não solte um peido! Ai meu Deus, ia ser um puta dum mico!
— Você tá indo muito bem, amor.
Andrew olha para a obstetra, agora, esperando.
— Mais algumas vezes vão ser suficientes — a obstetra me tranquiliza.
Odiando as palavras dela, solto um suspiro frustrado e jogo com força a cabeça contra o travesseiro.
— Tenta de novo, amor — Andrew pede delicadamente, sem jamais perder a calma, embora toda vez que o vejo olhar para a obstetra eu perceba um traço de preocupação oculta em seu rosto.
Eu ergo as costas do travesseiro novamente e tento fazer força, mas como de costume, não sei dizer se estou mesmo fazendo força ou só achando que estou. Andrew põe um braço nas minhas costas para me ajudar a ficar erguida, e eu me apoio nele e faço força de novo, fechando os olhos tão apertado que sinto que eles estão afundando no meu crânio. Meus dentes estão cerrados e à mostra. O suor escorre da minha testa.
Eu grito algo incompreensível quando paro de fazer força e consigo respirar de novo.
E sinto alguma coisa. Opa... não é dor — a epidural me curou disso —, mas a pressão do bebê com certeza eu senti. Se eu não soubesse que é impossível, acharia que alguém acabou de enfiar algo descomunal na minha vagina. Meus olhos ficam cada vez mais arregalados.
— A cabeça do bebê saiu — ouço a obstetra dizer, e depois ouço um barulho nojento quando ela limpa a garganta do bebê com um bulbo de sucção.
Andrew quer olhar; vejo seu pescoço se esticar como o de uma tartaruga, tentando ver melhor, mas ele não quer sair do meu lado.
— Só mais umas vezes, Camryn — a dra. Ball repete.
Eu faço força de novo, me esforçando ainda mais, agora que sei que está dando certo mesmo.
Ela puxa os ombros do bebê para fora.
Eu faço força mais uma vez e nosso bebê nasce.
— Você foi ótima — a obstetra elogia, enquanto limpa melhor a garganta do bebê.
Andrew beija a minha bochecha e minha testa, e afasta meu cabelo empapado do meu rosto e do pescoço. Alguns segundos depois, o choro do bebê enche a sala de sorrisos e empolgação. Eu caio no choro, soluçando tanto que todo o meu corpo treme descontroladamente de emoção.
E então a obstetra anuncia:
— É menina.
Andrew e eu mal conseguimos tirar os olhos dela, até que pedem que ele corte o cordão umbilical. Ele sai de perto de mim, mas sorri orgulhosamente ao ir para o outro lado e fazer as honras. Parece incapaz de decidir para quem ele quer olhar mais, se para mim ou para nossa filha. Eu sorrio e volto a encostar a cabeça no travesseiro, completamente esgotada. Finalmente consigo enxergar o relógio de parede. Ele diz que fiquei em trabalho de parto por mais de 16 horas.
Sinto mais pressão, cutucões e puxões entre minhas pernas enquanto a obstetra faz coisas sobre as quais, francamente, não quero saber nada. Fico só olhando para o teto por um momento, perdida nos momentos dos últimos nove meses, até que ouço nossa bebê gritando do outro lado da sala e novamente levanto a cabeça tão rápido que quase destronco o pescoço.
Andrew fica por perto enquanto uma das enfermeiras a limpa e começa a embrulhá-la em cobertores. Ele olha para mim e diz:
— Bom, ela tem os seus pulmões, amor — e enfia dois dedos nos ouvidos. Eu sorrio e olho para os dois, tentando não pensar nos puxões que continuo sentindo lá embaixo. E então Andrew volta para o lado da cama.
Ele beija meus lábios e sussurra:
— Suada. Parece que você correu uma maratona. Sem maquiagem. Numa camisola de hospital. E mesmo assim consegue ser bonita.
E apesar de tudo isso, mesmo assim ele consegue me deixar vermelha.
Levanto a mão da qual sai o tubo do soro e seguro o rosto dele, puxando-o para mim.
— Conseguimos — eu murmuro perto dos seus lábios.
Ele me beija delicadamente de novo, e então a enfermeira se aproxima com nossa filha no colo.
— Quem quer segurá-la primeiro? — ela pergunta.
Andrew e eu nos entreolhamos, mas ele faz menção de dar passagem para que a enfermeira possa entregá-la para mim.
— Não — eu insisto. — Você primeiro.
Só um pouco dividido a respeito disso, Andrew finalmente cede e estende os braços para pegá-la. A enfermeira a coloca cuidadosamente no colo dele e se afasta assim que percebe que ele a está segurando firme. De início, ele parece desajeitado e infantil, com medo de derrubá-la ou de não a estar segurando direito, mas logo fica mais à vontade.
— Loura — ele anuncia perto de mim, sorrindo de orelha a orelha, com os olhos verdes levemente marejados de lágrimas. — E cabeluda também!
Ainda estou tão exausta que só consigo reagir com um sorriso.
Andrew olha para ela, toca suas bochechinhas com os nós dos dedos e lhe beija a testa. Depois de alguns momentos, ele a coloca nos meus braços pela primeira vez. E assim que fico frente a frente com minha menina, eu desmorono de novo. Mal consigo enxergar em meio a tantas lágrimas.
— Ela é tão perfeita — digo, sem tirar os olhos dela. Estou quase com medo de tirar, como se desviando o olhar por um segundo ela vá sumir, ou eu vá acordar de um sonho. — Perfeita — murmuro e beijo seu narizinho.
Andrew
37
TODOS OS PARENTES, tanto meus quanto de Camryn, estão na sala de espera — menos o pai e o irmão de Camryn. Ninguém sabe ainda se é menino ou menina. Camryn e eu não quisemos saber durante toda a gravidez. Decidimos deixar que ela nos surpreendesse. E nos surpreendeu.
Antes de deixar a família entrar para vê-las, fico com Camryn no quarto particular para onde nos transferem logo após o parto. Estamos ali há um tempinho, esperando que as enfermeiras tragam a bebê de volta depois de fazer o que elas fazem, seja lá o que for. Eu a pego no colo depois que a enfermeira verifica a pulseira de identificação de Camryn e a compara com a que “Bebê Parrish” está usando no tornozelinho. Eu também verifico, antes de deixar a enfermeira sair. E examino bem a bebê. Hoje em dia, todo cuidado é pouco, e eu vou controlar pra ver se eles trazem sempre o mesmo bebê que levaram. Mas não há como confundir aquela cabeleira loura e aquela vozinha estridente, mas de gelar o sangue, que me põe em submissão absoluta. Se ela soubesse falar, eu faria tudo o que ela pedisse sem pensar duas vezes. Me dá a mamadeira! Sim, senhora! Troca a minha fralda! É pra já! Pisa no pé daquela enfermeira que me enrolou feito um burrito! Tudo bem, garotinha!
Camryn a segura perto do tórax, deixando que ela mame no peito.
Ela descobriu que estava grávida de novo um dia antes de mudarmos para a nova casa. Mas ela só me contou depois da minha consulta no médico, na segunda-feira seguinte. Ela disse que estava com medo, acho que da mesma forma que fiquei com medo de contar a ela imediatamente que eu estava sentindo dores de cabeça. Mas depois disso, conversamos muito sobre as coisas que faríamos diferente, desta vez. Uma dessas coisas foi sua decisão de amamentar. Na primeira gravidez, Camryn não ficou muito empolgada com a ideia de ter um bebê sugando seus seios, especialmente porque talvez precisasse amamentá-la em público. Na época, eu só concordava com o que ela queria e não tentava fazê-la mudar de ideia. Eu não tinha nenhum motivo para isso, na verdade.
Mas desta vez, quando Camryn tocou no assunto de novo, ela disse:
— Quer saber, amor? Andei lendo muito sobre gravidez e os benefícios da amamentação, e não quero nem saber o que os outros vão pensar. Eu sinto que quero e devo fazer isso.
E eu disse:
— Então também acho que você deve.
Eu me sento ao lado dela. Fiquei feliz por ela ter tomado essa decisão sozinha, sem que eu desse palpite. Ei, contanto que eu não comece a ter fetiche por lactação e ela não queira que eu prove, o que ela decidir tá bom pra mim.
— Eu li que a maioria dos bebês nasce com olhos azuis — Camryn diz, olhando para a bebezinha —, mas acho que mais tarde ela vai ter os seus olhos verdes.
Eu afago a cabeça da nossa filha de leve com as pontas dos dedos.
— Talvez. — Não consigo parar de olhar para as duas, minha linda mulher e minha preciosa filhinha. Sinto que entrei em outro mundo, muito mais brilhante do que jamais imaginei. Eu realmente não achava que poderia ser mais feliz do que eu era com Camryn. Não achava isso possível.
Acho que Camryn ainda está um pouco em choque.
— O que você tá pensando? — pergunto, sem parar de sorrir ternamente.
Seus olhos cansados se abrandam quando ela me olha.
— Você tinha razão — ela diz.
A bebê faz um barulhinho de sucção, tão fraco que mal o ouço, mas percebo que estou prestando atenção em cada ruído e movimento dela.
Camryn continua:
— Você disse que eu não ia perdê-la, desta vez. Você disse que o tumor não ia voltar. Disse que ia dar tudo certo. E deu. — Ela olha para a bebê por um momento, afagando sua sobrancelha com o dedo, e então para mim de novo. — Obrigada por estar certo.
Eu me levanto da cadeira, seguro seu queixo e levanto sua cabeça para poder beijá-la na boca.
Alguém bate de leve na porta e ela se abre devagar. A cabeça da minha mãe aparece.
— Entra — eu digo, chamando-a com um gesto.
A porta larga se abre completamente, e tanta gente entra no quarto em fila indiana que eu paro de contar depois de Aidan e Michelle, que está grávida de cinco meses.
Nós nos abraçamos, todos passando os braços ao meu redor, mas tentando dar uma olhada na bebê ao mesmo tempo.
— Parabéns, mano — Aidan diz, me dando tapinhas nas costas. — Eu tava sentindo que você ia ser pai antes de mim. — Ele acaricia a barriga redonda de Michelle. Ela afasta sua mão de um jeito bem-humorado e o avisa para não enfiar mais o dedo no seu umbigo. Depois me abraça e se aproxima de Camryn na cama.
— Nós vamos ter um menino — Aidan conta.
— É mesmo? — exclamo. — Que legal.
A notícia também chama a atenção de Camryn, mas Michelle fala primeiro.
— Ele não tem certeza — ela diz. — Só acha que sabe.
Camryn ri baixinho e diz:
— Pode acreditar, se um dos irmãos Parrish diz que vai ter um menino ou uma menina, provavelmente vai acertar.
— Tudo bem, veremos — Michelle desconversa, ainda incrédula.
Eu olho para o meu irmão, e já vi essa expressão confiante. É, eles vão mesmo ter um menino.
— Ai meu Deus — ouço Natalie dizer baixinho em algum lugar do quarto —, o cobertor é cor-de-rosa. Isso significa o que eu tô pensando? — Ela leva as mãos ao rosto, cobrindo a boca com os dedos cheios de anéis. Na verdade, estou surpreso por vê-la tão calma. Blake está ao lado dela, em silêncio, como sempre.
Camryn olha primeiro para mim, eu sinalizo com a cabeça minha autorização e ela diz a todos:
— Sim, esta é a nossa filha.
Todas as mulheres migram imediatamente até a cama. A mãe de Camryn estende os braços, querendo ser a primeira a segurá-la no colo, e Camryn cobre o seio com a camisola e a entrega cuidadosamente.
— Oh, ela é tão linda, Camryn — Nancy elogia. Seu cabelo oxigenado está preso num coque malfeito no alto da cabeça. Seus olhos são tão azuis quanto os de Camryn. Elas se parecem mesmo. — Ela é perfeita. Minha netinha perfeita. — O padrasto de Camryn, Roger, parece apavorado, apoiado na parede, sozinho. Não sei se é porque esse tipo de situação o deixa constrangido ou porque se deu conta de que agora está casado com uma avó. Eu rio por dentro.
Asher me abraça a seguir.
— Se fosse menino, eu ia me preocupar em ter outro como você à solta por aí. — Ele sorri e me cutuca com o cotovelo.
— Bom, pode esperar, maninho — eu retruco, sugando ar entre os dentes —, você é o próximo da fila, e outro igual a você é tão ruim quanto outro igual a mim.
— Não sei não — ele rebate.
— É, tem razão. Pra isso você precisa de uma namorada. Acho que não vai precisar se preocupar com essa possibilidade tão cedo.
— Cara, eu tenho namorada.
— Quem é? Lara Croft? Ou alguma desenhada por Luis Royo? — eu rio.
— Deixa quieto, cara — ele diz, cruzando os braços e balançando a cabeça, mas sei que é preciso bem mais para deixá-lo puto. Se eu não tirasse um sarrinho, ele ia achar que eu estava doente.
— Tio Asher — eu digo, para me redimir mesmo assim. — Até que soa bem.
Ele faz que sim com a cabeça, pensativo, e concorda:
— É, também acho.
Nancy passa nossa filha para minha mãe, em seguida. Eu nunca a vi tão orgulhosa. Seus olhos passam de mim para a bebê, indo e voltando.
— Ela tem seu nariz e seus lábios, Andrew — minha mãe afirma.
— E o cabelo e os pulmões de Camryn — eu lembro.
Natalie está no pé da cama agora, e está agitada, com as mãos à frente do corpo. Minha mãe percebe o quanto ela está ansiosa para pegar a bebê, por isso beija a cabeça da neta e a passa para Natalie.
— Espero que você tenha lavado as mãos, Nat — Camryn diz da cama.
— Eu lavei! — Natalie responde, e em seguida ignora Camryn e começa a falar com minha filha, embora ela esteja dormindo: — Oh, você é a coisinha mais linda que eu já vi — sua voz ficando mais alta à medida que ela fica mais emocionada. Então ela olha Camryn nos olhos e diz, séria: — Meu Deus, eu quero um também.
Blake arregala os olhos, e acho que para de respirar. Quando olho para ele de novo, alguns minutos depois, vejo que já está ao lado de Roger, encostado na parede.
Brenda, a tia de Camryn, é a próxima a pegar a bebê no colo, e depois uma de suas primas. Depois que Michelle a segura por alguns minutos, derramando elogios à sua beleza, ela a devolve para Camryn. Eu me sento novamente na cadeira ao seu lado.
— Então, já escolheram um nome? — minha mãe pergunta.
Camryn e eu nos entreolhamos, e ambos estamos pensando a mesma coisa.
— Ainda não — Camryn responde, e é só o que ela diz. Eu sei que devo ser o único no quarto que percebe na hora o que a questão do nome causou: Camryn não conseguiu evitar pensar em Lily. Mas ela deixa esse momento passar e beija a bochecha da nossa bebê, obviamente tão orgulhosa do que tem, apesar do que perdeu.
A maioria dos parentes vai embora antes de escurecer, mas nossas mães ficam até um pouco mais tarde, se conhecendo melhor. É a primeira vez que elas se encontram oficialmente. E por fim vão embora, pouco depois das sete, quando a enfermeira entra no quarto para dar uma olhada na bebê e em Camryn.
Quando nós três ficamos a sós de novo, eu reduzo a iluminação do quarto, deixando só a luz do banheiro acesa. Nossa filha dorme profundamente no colo de Camryn. Eu sei que minha mulher está cansada, completamente exausta, mas ela não consegue largar a bebê para também dormir um pouco. Eu me ofereci para pegá-la para que ela possa dormir, mas Camryn insiste em ficar acordada.
Eu olho para as duas por um instante, um momento tão perfeito, e então me aproximo e me sento na beira da cama, perto delas.
Camryn olha para mim, depois mais uma vez para nosso anjinho adormecido.
— Lily — eu digo simplesmente.
Camryn volta a me olhar, confusa.
Eu balanço a cabeça devagar, como que para dizer: Sim, você ouviu certo, e toco a cabecinha macia da nossa bebê de novo.
— Lembra o que eu disse? Em Chicago, quando encontrei os comprimidos?
Ela balança a cabeça negativamente.
Desta vez, eu toco o rosto de Camryn, correndo os dedos por um lado dele e depois pelo outro.
— Eu disse que Lily ainda não tava pronta. — Fico em silêncio e depois acrescento, com um sorriso: — Mesma alma, outro corpo.
Algum pensamento brilha nos olhos de Camryn. Ela inclina a cabeça um pouco para o lado, me olhando, intrigada. E então olha de novo para a bebê e não ergue mais o olhar pelo que parece uma eternidade.
Quando ela levanta a cabeça, lágrimas estão escorrendo pelo seu rosto.
— Você acha? — ela pergunta, esperançosa.
— Sim. Eu acho.
Ela começa a chorar mais copiosamente e aperta com delicadeza a bebê Lily contra os seios, ninando-a. Então olha para mim e balança a cabeça várias vezes.
— Lily — ela murmura baixinho, beijando-lhe o alto da cabeça.
Na manhã seguinte, eu me espreguiço na cadeira ao lado da cama de Camryn, onde peguei no sono na noite anterior. Eu a ouço falando em voz baixa no quarto e, como todas as outras vezes, finjo ainda estar dormindo enquanto ela lê a carta que escrevi meses atrás.
Camryn
38
Querida Camryn,
Eu sei que você está com medo. Eu estaria mentindo se dissesse que não estou com um pouco de medo também, mas preciso acreditar que desta vez vai ficar tudo bem. E vai ficar.
Nós passamos por tanta coisa juntos. Mais do que a maioria das pessoas, em tão pouco tempo. Mas em qualquer situação, a única coisa que nunca mudou é que ainda estamos juntos. A morte não conseguiu me tirar de você. A fraqueza não conseguiu me fazer ver você de forma negativa. As drogas e as merdas que vêm com elas não conseguiram tirar você de mim, nem voltar você contra mim. Acho que podemos afirmar com toda a segurança que somos indestrutíveis.
Talvez tudo isso tenha sido um teste. Sim, eu penso muito a respeito e me convenci disso. Muita gente prefere ignorar o Destino. Alguns têm tudo o que já quiseram ou precisaram ao alcance das mãos, mas abusam disso. Outros passam reto pela sua única oportunidade porque nunca abrem os olhos por tempo suficiente para ver que ela está ali. Mas você e eu, até antes de nos conhecermos, corríamos todos os riscos, tomávamos nossas próprias decisões sem dar ouvidos aos outros ao nosso redor nos dizendo, de tantas maneiras, que o que fazíamos estava errado. Não, porra, nós fazíamos do nosso jeito, por mais imprudente, louco ou fora do convencional que fosse. Parecia que quanto mais avançávamos e lutávamos, mais árduos ficavam os obstáculos. Porque precisávamos provar que nós somos os caras.
E eu sei que fizemos exatamente isso.
Camryn, quero que você leia esta carta para si mesma uma vez por semana. Não importa que dia ou que hora, apenas leia. Cada vez que você a abrir, quero que veja que mais uma semana se passou e você continua grávida. Eu continuo com saúde. Nós ainda estamos juntos. Quero que você pense em nós três, você, eu e nosso filho ou filha, viajando pela Europa e pela América do Sul. Só visualize isso. Porque nós vamos fazer isso. Eu prometo.
Você é tudo pra mim, e quero que continue forte e não deixe que seu medo do passado contamine o caminho para o nosso futuro. Vai dar tudo certo desta vez, Camryn, vai, sim, juro pra você.
Apenas confie em mim.
Até semana que vem...
Com amor,
Andrew
Eu ergo os olhos da carta na minha mão, deixando-a ao meu lado na cama, presa entre meus dedos. Lily dorme profundamente ao meu lado no berço do hospital. Andrew precisou ser convincente para que eu finalmente concordasse em colocá-la ali, em vez de segurá-la no colo a noite inteira. Mas acordei várias vezes para verificar se ela ainda estava respirando. Eu verifico de novo, agora. Não consigo evitar; acho que vou fazer isso por meses.
Finalmente, eu dobro a carta de Andrew mais uma vez nas mesmas dobras gastas. Provavelmente, ele acha que vou parar de lê-la, agora que Lily nasceu. Mas não vou. Nunca parei de ler a primeira carta que ele me escreveu, embora ele não saiba. Algumas coisas eu guardo só pra mim.
— Pronta pra botar aqueles destinos no chapéu? — Andrew diz.
Eu me pergunto há quanto tempo ele está acordado. Olho para ele e sorrio.
— Vamos esperar mais uns meses.
Ele balança a cabeça e se levanta da cadeira.
— Como conseguiu dormir assim? — pergunto. — Devia ter ido pro sofá. — Eu olho para o pequeno sofá perto da janela.
Andrew estica os braços para os lados e estala as costas e o pescoço. Ele não responde.
— Acho que finalmente vamos poder pegar todas aquelas coisas do primeiro chá de bebê na casa da minha mãe e trazer pra nossa casa — digo.
Andrew abre um sorriso maroto.
— Peraí, você já fez isso, certo?
Ele se espreguiça um pouco mais.
— Tecnicamente, não fui eu. Ontem, Natalie, Blake e sua mãe levaram tudo pra lá depois que a gente foi pro hospital, e já arrumaram tudo.
Eu não quis fazer isso durante a gravidez. Era só mais uma maneira de me preocupar em pôr o carro na frente dos bois e depois perder outro bebê. Pelo mesmo motivo, me recusei a saber o sexo do bebê antes que nascesse. Eu não queria me concentrar nem contar com nada disso como da outra vez. Achava que podia dar azar. No fundo, Andrew não concordava com isso, mas nunca disse nada, nem tentou me fazer mudar de ideia.
— E, como você provavelmente pode imaginar — ele continua —, como Michelle e minha mãe estão aqui, vai ter muito mais coisas além dos presentes do chá de bebê te esperando em casa.
~~~
No dia seguinte, quando Andrew abre a porta da nossa casa e eu entro com Lily no colo, vejo de cara que ele me disse a verdade. A casa está impecável. Eu jamais conseguiria deixá-la tão limpa. Quando Andrew me leva para a sala pelo corredor, ao passar vejo de relance um receptor de babá eletrônica no balcão da cozinha, outro sobre a mesinha de centro da sala, outro sobre a pia do banheiro, e finalmente, o terminal principal no quarto de Lily quando entro.
Eu fico sem fôlego, arregalando os olhos.
— Uau, Andrew, olha o que eles fizeram!
Lily se mexe no meu colo, provavelmente reagindo à empolgação na minha voz, mas logo se aquieta de novo.
O berço está encostado numa parede, com um lindo móbile musical do Ursinho Puff acima. Um jogo com gaveteiro e trocador ocupa a outra parede, perto da janela. Andrew abre as gavetas e mostra que cada uma está cheia de roupinhas, cobertores, panos, meinhas e várias outras coisas. Ele abre o armário e eu vejo dezenas de vestidinhos e conjuntos. Há tantos pacotes de fraldas empilhados ao lado do trocador que acho que nunca mais vamos comprar fraldas. Claro que sei que é só otimismo da minha parte.
Andrew me leva de volta ao corredor e abre o armário ao lado do banheiro para me mostrar um andador, um balanço infantil e uma espécie de estranho trepa-trepa, todos ainda nas caixas.
— Vou ter que montar isso tudo quando ela tiver idade pra usar — ele explica. — Mas ainda vai demorar um pouco.
— Acha que vai conseguir sozinho? — pergunto, brincando.
Ele empina o queixo e diz:
— Sem nem ler as instruções.
Eu só rio por dentro.
Então ele me leva para o nosso quarto. Há um bercinho branco perto da cama, do meu lado.
— Comprei pra você — ele conta, sorrindo com orgulho. — Sei que ainda vai demorar muito pra você conseguir deixá-la sozinha no quarto, então imaginei que ia precisar de um bercinho.
Ele está ficando vermelho. Eu me aproximo e beijo o canto de sua boca.
— Você tá certo. Obrigada.
Lily começa a se mexer de novo, e desta vez acorda. Andrew a pega do meu colo.
— Deixa que eu troco a fralda dela — ele diz.
Eu a entrego, deito no sentido da largura da nossa cama e fico observando. Ele a deita na cama também e solta seus cobertores. Os gritos mais bonitinhos, mas altíssimos, saem de seus pulmões. Os bracinhos e as pernas se agitam rigidamente. A cabecinha toda fica roxa feito uma beterraba. Mas Andrew não se abala. E quando abre a fralda dela, não fica enojado com a surpresa que ela deixou. Admito que fico surpresa com a facilidade que ele já demonstra em ser pai.
~~~
Voltei a trabalhar na Bath and Body Works quando terminou a minha licença-maternidade, mas agora só por meio período. Minha chefe, Janelle, é maravilhosa, e gosta tanto de mim que me deu um aumento de um dólar quando contei que estava grávida. Só eu e Natalie trabalhamos lá, agora; Natalie faz período integral e assumiu boa parte do meu trabalho acumulado nas seis semanas em que estive de folga. Mas ela não liga. Diz que está economizando para comprar a casa própria. Ela e Blake parecem se curtir muito, sempre que os vejo juntos. Para ser sincera, nunca vi Natalie tão feliz. Eu achava que ela era feliz quando estava com Damon, mas estou percebendo que aquilo devia ser só tolerância e baixa autoestima. Blake é diferente. Acho que eles vão dar certo.
Andrew começou a trabalhar numa mecânica e funilaria umas três semanas depois que mudamos para a nossa casa. Seu conhecimento de carros lhe garantiu um lugar privilegiado na folha de pagamentos. Com certeza está ganhando mais do que eu, mas tenta me valorizar dizendo: “Isso não é porra nenhuma comparado a empurrar minha menina pra fora da sua...” Eu sempre o interrompo aí.
Desnecessário, Andrew. Mas obrigada!
Creche é coisa de rico, na minha opinião. Sinceramente, não acho que alguém que ganha salário mínimo possa pagar. O casal trabalharia só pra pagar a creche, o que não faz sentido. Além disso, Andrew e eu concordamos que não queremos deixar nossa filha na mão de estranhos. Por isso combinei com Janelle trabalhar só meio período à noite, quando Andrew está em casa, e um fim de semana sim, outro não.
Estamos vivendo bem e dando conta de tudo, como se tivéssemos levado a vida inteira desse jeito. Nosso saldo bancário pode ter seis dígitos, mas sabemos que é melhor devolver tudo o que conseguimos às nossas economias e gastar o mínimo possível. Além dos nossos empregos, Andrew e eu nos apresentamos com frequência, nas noites de sábado em que não estou trabalhando, no bar que o irmão de Blake, Rob, abriu na cidade. Algo aconteceu com o Underground e Rob precisou fechá-lo. Os boatos são de que Rob escapou por pouco de ser condenado à prisão. Acho que foi porque ele não tinha autorização para ter um bar, não sei. Mas Blake é o gerente do novo bar, e nas noites em que Andrew e eu tocamos lá, ganhamos metade do couvert artístico, que é mais do que já ganhamos tocando em qualquer outro bar, menos no de Aidan. Sábado passado faturamos oitocentas pratas.
É mais dinheiro entrando nas nossas economias para nossos planos futuros de ir aonde aquele chapéu nos mandar.
E, embora Andrew sempre ponha todo o seu coração e sua alma em cada apresentação, como sempre fez, agora percebo que, quando estamos no palco juntos, ele fica ansioso para terminar, para irmos pegar Lily na casa da minha mãe ou de quem teve a sorte de ficar com ela por aquelas poucas horas à noite.
Andrew tem tanto jeito com Lily. Ele não para de me surpreender. Levanta no meio da noite tantas vezes quanto eu para trocá-la, e às vezes até fica acordado comigo enquanto dou de mamar. Mas também tem seus momentos masculinos, portanto não é totalmente o Sr. Perfeitinho. Ao que parece, ele não é completamente imune a fraldas cagadas, e esta manhã mesmo o peguei com ânsia de vômito enquanto tentava trocá-la. Eu ri, mas fiquei com tanta pena que não pude deixar de assumir a tarefa. Ele saiu do quarto cobrindo a boca e o nariz com a camiseta.
E... bem, não quero tirar conclusões precipitadas, mas acho que Lily pode ter amolecido Andrew a ponto de ele gostar de Natalie, agora. Só um pouquinho, talvez. Não sei, mas sempre que Nat está aqui, segurando Lily no colo e fazendo-a sorrir, falando com ela do seu jeito animado, Andrew parece achar legal. Quando Lily completou três meses, eu sinceramente já nem lembrava a última vez que Andrew chamou Natalie de hiena pelas costas, ou fez aquela cara exasperada para mim quando ela não estava olhando.
Ele ainda faz careta quando ela diz que é madrinha da Lily, mas... um passo de cada vez. Ele chega lá.
Andrew
39
9 DE FEVEREIRO — primeiro aniversário de Lily — Aidan e Michelle chegaram! — ouço Camryn anunciar da sala.
Eu fecho o último botão nas costas do vestido de Lily e a pego pela mão. Mas ela não gosta quando seguro a mão dela e sempre se desvencilha e segura meu dedo indicador.
— Vem, bebê — eu chamo, olhando para ela. — O tio Aidan e a tia Michelle vieram ver a aniversariante.
Juro que ela entende o que estou dizendo.
Ela aperta meu dedo com toda a força, dá uma risadinha e um passão para a frente, como se eu fosse lerdo demais para acompanhá-la. Todo encurvado, eu dou passinhos rápidos e avanço pelo corredor, deixando que ela corra com suas perninhas roliças à minha frente. Quando Lily começa a cair ao fazer a curva, eu seguro sua mão, levanto-a um pouco do chão e deixo que se equilibre de novo. Ela começou a andar com dez meses. Sua primeira palavra foi “mamá”, quando tinha seis meses. Com sete meses, ela falou “papá”, e eu me derreti ao ouvi-la me chamar assim pela primeira vez.
E Camryn tinha razão — ela tem olhos verdes como os meus.
— Lily! — Michelle exclama dramaticamente, agachando-se para tomá-la nos braços. — Meu Deus do céu, você tá enorme! — Ela a beija nas bochechas, na testa e no nariz, e Lily gargalha sem parar. — Nham nham nham! — Michelle acrescenta, fingindo morder as bochechas.
Eu olho para Aidan, que está com meu sobrinho, Avery, colado ao corpo. Faço menção de pegá-lo, mas ele é tímido e se encolhe sobre o peito de Aidan. Eu recuo, torcendo para que ele não chore. Aidan tenta convencê-lo.
— Ele já tá andando? — Camryn pergunta, de pé ao meu lado.
Michelle segue Lily para a sala, onde uma nuvem de balões de hélio cor-de-rosa e azuis se acumula no forro. Quando Lily percebe que não vai conseguir alcançar os balões, desiste e vai direto para a sua pilha de presentes no chão.
Aidan entrega dois embrulhos a Camryn, e vamos todos para perto de Michelle e Lily na sala. Camryn põe os presentes junto com os outros.
— Ele tá tentando — Aidan responde, falando dos progressos de Avery. — Já anda se segurando no sofá, mas ainda não sente vontade de se soltar.
— Meu Deus, ele parece com você, mano — comento. — Coitadinho.
Aidan me daria um soco no estômago, se estivesse com as mãos livres.
— Ele é lindo — Camryn elogia, estendendo os braços para pegá-lo.
Claro que é, mas eu preciso zoar o meu irmão.
Avery primeiro a olha como se ela fosse louca, mas depois se vinga de mim por falar merda sobre seu pai, pulando direto no colo de Camryn sem problemas.
Aidan ri.
Nancy e Roger, Natalie e Blake, Sarah e seu namorado, que já tem um filho com uma ex-namorada, aparecem todos praticamente ao mesmo tempo. Depois, nossos vizinhos, Mason e Lori, um jovem casal com um filho de dois anos, chegam trazendo presentes. Lily, como a pequena exibicionista que é, apoia as mãos e a cabeça no tapete, empinando a bundinha enfraldada no ar. Então finge cair e diz “Oh-oh”, fazendo todos caírem na risada.
— Olha só esse cabelo louro encaracolado — Michelle diz. — O cabelo de Camryn era tão clarinho assim quando ela era bebê? — pergunta para a mãe de Camryn, que está sentada ao seu lado.
Nancy balança a cabeça.
— Sim, era assim mesmo.
Mais tarde, depois que todos chegam, Lily pode abrir seus presentes e, como sua mãe, canta, dança e faz um show para todos. E depois de soprar a velinha (na verdade, eu meio que soprei por ela), ela praticamente toma um banho de bolo e cobertura roxa. Seu cabelo e seus cílios estão melecados, tem bolo até dentro do nariz dela. Camryn tenta, em vão, evitar que ela faça bagunça demais, mas acaba desistindo e deixando Lily se divertir.
Lily capota depois de tanta empolgação, bem antes que o último convidado saia.
— Acho que foi o banho — Camryn sussurra para mim enquanto a olhamos no berço.
Eu pego Camryn pela mão e a levo comigo, encostando a porta do quarto de Lily, mas deixando uma fresta.
Ficamos juntos no sofá vendo um filme pelas duas horas seguintes, depois Camryn me beija e vai tomar banho.
Eu desligo a TV, me levanto do sofá e olho ao meu redor na sala. Ouço a água do chuveiro correndo e os carros passando lá fora. Penso na conversa que tive com meu chefe ontem, quando ele me disse que já estou no emprego há quase dois anos e tenho duas semanas de férias vencidas. Mas eu sei que duas semanas não são suficientes para que eu e Camryn façamos as coisas que queremos fazer. Essa questão do emprego é a única coisa que não chegamos a resolver, decidir o que faremos quando quisermos sair de Raleigh por um mês ou mais. Não queremos perder nossos empregos, mas acabamos chegando pelo menos a uma conclusão: é um sacrifício que estamos dispostos a fazer, e vamos ter que fazer para realizar nossos sonhos de viajar pelo mundo e não virar vítimas daquela vida cotidiana monótona que tanto tememos.
Sabemos que não vamos ficar nesses empregos para sempre. E, bem, é para ser assim mesmo.
Mas eu disse ao meu chefe que sim, que eu iria tirar aquelas férias nos próximos meses. Decidi não avisá-lo que iria largar o emprego sem antes falar com Camryn hoje à noite.
Eu me levanto do sofá, pego um bloco de anotações da gaveta da mesinha do computador e me sento à mesa da cozinha com ele. E começo a escrever os nomes dos vários lugares que Camryn e eu já dissemos que queríamos conhecer: França, Irlanda, Escócia, Brasil, Jamaica... Escrevo até formar um monte de tiras de papel no meio da mesa. Enquanto estou dobrando uma por uma e jogando no chapéu de vaqueira de Camryn, ouço o chuveiro sendo fechado no banheiro.
Ela aparece na cozinha com o cabelo molhado colado nas costas.
— O que você tá fazendo? — ela pergunta, mas entende antes que eu consiga responder. Ela se senta ao meu lado. E sorri. Ótimo sinal.
— Talvez a gente devesse partir em maio ou junho — sugiro.
Ela passa o pente no cabelo molhado algumas vezes e parece pensar a respeito. Depois deixa o pente sobre a mesa.
— Você acha que Lily tá pronta pra isso? — ela pergunta.
Eu balanço a cabeça.
— Sim, acho que tá. Já tá andando. A gente disse que ia esperar pelo menos até ela começar a andar.
Camryn balança a cabeça também, ainda pensando a respeito, mas não parece ter dúvidas.
— Precisamos começar cedo com ela.
Com certeza, não somos como as outras famílias. Muitos pais rejeitariam completamente a ideia de viajar para o exterior com um bebê, só por viajar. Mas nós não. Admito que não é para todos, mas para nós, é a única coisa a fazer. Claro que nossas “viagens além” não serão como as épocas que Camryn e eu passamos na estrada nos EUA. Dirigir por aí sem destino por horas, dias e semanas a fio com um bebê no carro não é totalmente factível — Lily iria detestar. Não, essas viagens consistirão mais em ficar parados em cidades que queremos explorar, e não ir de uma cidade a outra sem parar muito para descansar. E, infelizmente, não levaremos o Chevelle.
Camryn puxa o chapéu para perto de si e mexe a mão dentro dele.
— Você pôs todos os países que escrevemos na lista? — ela pergunta.
— Claro.
Ela estreita os olhos, brincalhona.
— Tá mentindo.
— Quê? Não, eu pus todos mesmo.
Ela chuta a minha canela com o pé descalço por baixo da mesa.
— Você tá de onda com a minha cara, Andrew.
Então ela começa a pegar as tiras de papel, desdobrando e lendo uma por uma.
— Jamaica. — Ela põe a tira na mesa. — França. — Ela põe por cima da outra. — Irlanda. Brasil. Bahamas. Ilhas Virgens. México. — Uma a uma, ela empilha as tiras.
Depois de várias, ela pega a última, mantendo-a dobrada entre os dedos, e rosna para mim.
— Algo me diz que aqui não tá escrito “Itália”. — Ela está se esforçando tanto para não sorrir.
Realmente não sei por que achei que isso iria dar certo.
Enquanto tento não rir e continuar sério, ela desdobra o papel e lê: — Austrália. — Ela põe a tira no alto da pilha. — Eu deveria castigar você por tentar trapacear — ela reclama, erguendo o queixo e cruzando os braços teimosamente sobre o peito.
— Ah, por favor — eu digo, incapaz de me manter sério. — Pelo menos eu não pus mais algumas tiras com o nome “Brasil”. — Eu rio.
— Mas pensou em fazer isso, não pensou?!
Faço uma careta com seu berro, e ambos olhamos para o corredor, para o quarto onde Lily está dormindo.
Camryn se debruça um pouco sobre a mesa e cochicha entre os dentes: — Eu vou te punir. Nada de sexo por uma semana. — Ela se afasta de novo, apoiando as costas na cadeira, com um sorrisinho.
Tá, agora esse negócio perdeu a graça.
Eu engulo meu orgulho, hesito e digo:
— Vai, você não tá falando sério. Você gosta tanto quanto eu.
— Claro que gosto. Mas você nunca ouviu dizer que as mulheres têm a capacidade mágica de ficar mais tempo na seca? Eu me viro sozinha.
— Você tá blefando — acuso, descrente.
Ela balança a cabeça de leve, com um brilho nos olhos que diz blefando-o-cacete, e isso está me deixando nervoso.
— O que você vai fazer pra se redimir, então?
Eu levanto um lado da boca num sorriso.
— O que você quiser. — Faço uma pausa, levanto um dedo e acrescento, antes que seja tarde demais: — Bem, contanto que não seja degradante, nojento ou injusto.
Com o sorriso aumentando, Camryn se levanta lentamente da cadeira. Eu observo todos os seus movimentos com a maior atenção, em parte temendo perder alguma coisa. Ela enfia os polegares no elástico da calcinha e me provoca com a ideia de tirá-la.
Puta que me pariu... sério? Você chama isso de punição?
Tento manter minha compostura, fingindo que seus gestos não me afetaram de forma alguma, quando na verdade não é preciso praticamente nada para me deixar louco por ela.
Ela se afasta de mim.
— Tá indo pra onde? — pergunto.
— Me virar sozinha.
— Oi?
— Você me ouviu.
Tá, ouvi, mas... não era pra acontecer isso.
— Mas... qual é a minha punição?
Ela para só o tempo suficiente para se virar e olhar para trás.
— Você vai ficar assistindo.
— Peraí... o quê?
Eu começo a segui-la. Bruxa do mal.
Ela vai para a sala e se deita, com a cabeça apoiada no braço do sofá e uma perna por cima do encosto.
Bruxa do mal. Do mal!
Ela me olha com ar sedutor e basta isso; assim que nossos olhares se cruzam, subo em cima dela, esmagando minha boca sobre a dela.
— Sem chance, amor — sussurro febrilmente em sua boca, e a beijo com mais força ainda.
Sua mão agarra a minha camiseta, sua língua se enrola apaixonadamente na minha.
E então Lily começa a chorar.
Eu paro. Camryn para. Nós nos entreolhamos por um momento, os dois frustrados, mas não conseguimos deixar de sorrir. Lily tem sono pesado e já quase não acorda mais durante a noite, mas de alguma forma sua intervenção, esta noite, não me surpreende.
— Eu vou desta vez — ela diz, se levantando do sofá.
Fico de pé, passando a mão no alto da cabeça.
Depois que ela desaparece no corredor, volto para a cozinha e me sento à mesa para rabiscar “Itália” em outra tira de papel. Eu a jogo no chapéu, dobro todas as outras e jogo dentro também.
Em minutos, a casa está em silêncio, depois que Camryn faz Lily dormir. Ela se senta na cadeira ao meu lado de novo, erguendo as pernas e cruzando-as sobre o assento. Apoiando um cotovelo na mesa, ela segura o queixo com a mão e me olha com um sorriso meigo, como se tivesse algo em mente.
— Andrew, você acha mesmo que a gente consegue fazer isso?
— Fazer o quê, exatamente?
Ela apoia os braços na mesa à sua frente, entrelaçando os dedos.
— Viajar com Lily.
Eu fico em silêncio e me apoio no encosto da cadeira.
— Sim, eu acho que a gente consegue. Você não?
Seu sorriso enfraquece.
— Camryn, você não quer mais viajar?
Ela balança a cabeça.
— Não, não é isso, juro. Só tô com muito medo. Nunca conheci pessoalmente ninguém que tentou uma coisa dessas. É assustador, só isso. E se a gente estiver se iludindo? Vai ver que as pessoas normais não fazem esse tipo de coisa por um motivo.
De início, fiquei preocupado. Tive a sensação de que talvez ela tivesse mudado de ideia, e embora eu aceitasse o que ela quisesse, uma parte de mim ficaria decepcionada por algum tempo.
Eu me encosto e apoio os braços sobre a mesa diante de mim, como Camryn. Meu olhar fica meigo quando olho para ela.
— Eu sei que a gente consegue. Contanto que seja o que nós dois queremos igualmente, que nenhum dos dois só esteja fazendo porque acha que é o que o outro quer, então sim, Camryn, eu sei que a gente consegue. Dinheiro a gente tem. Lily só vai entrar na escola daqui a anos. Nada nos impede.
— É isso que você quer realmente? — ela pergunta. — Jura que não tem uma parte de você que só tá indo adiante com isso por minha causa?
Eu balanço a cabeça.
— Não. Mas se eu não quisesse tanto quanto você, faria assim mesmo porque é o que você quer. Mas não, eu quero de verdade.
Aquele sorriso fraco dela se fortalece de novo.
— E você tem razão — eu continuo —, é assustador, admito. Não seria tanto se fôssemos só eu e você, mas pense por um segundo. Se não fizermos isso, o que mais vamos fazer?
Camryn desvia o olhar, pensativa. Ela dá de ombros e diz: — Trabalhar e criar uma família aqui, acho.
— Exatamente. Esse medo é a linha tênue que nos separa deles. — Faço um gesto amplo para indicar quem são “eles”, o tipo de gente do mundo que não queremos nos tornar. Camryn entende; vejo isso em seu rosto. E não estou dizendo que pessoas que decidem ficar num só lugar a vida toda e criar uma família estão erradas. São as pessoas que não querem viver assim, que sonham em ser algo mais, fazer algo mais, mas nunca vão atrás disso porque deixam que o medo as impeça antes mesmo de começarem.
— Mas o que a gente vai fazer? — ela pergunta.
— O que a gente quiser. Você sabe disso.
— Tá, mas eu digo depois. Daqui a cinco, dez anos, o que vamos fazer com nossas vidas, com a vida de Lily? Por mais que eu adore a ideia de fazer isso pra sempre, não consigo imaginar que seja realística. Uma hora nosso dinheiro vai acabar. Lily vai ter que ir pra escola. Aí vamos parar aqui de novo e ficar como eles do mesmo jeito.
Eu balanço a cabeça e sorrio.
— Corrigindo, esse medo e essas desculpas são a linha tênue. Amor, a gente vai ficar bem. Lily vai ficar bem. Vamos fazer o que quisermos, ir aonde quisermos e aproveitar a vida, sem nos acomodarmos numa vida que nenhum de nós realmente quer. O que tiver que acontecer, se o dinheiro começar a faltar, se a gente não conseguir trabalhar pra repor, se Lily precisar estudar e a gente tiver que decidir ficar num só lugar por muito tempo, mesmo se esse lugar for aqui, nesta casa, vamos fazer o que tivermos que fazer. Mas agora — eu aponto severamente para a mesa —, neste momento, não é com essas coisas que precisamos nos preocupar.
Ela sorri.
— Tá. Eu só queria ter certeza.
Eu balanço a cabeça e empurro o chapéu na direção dela com o dedo.
— Você escolhe primeiro — eu digo.
Ela começa a mexer dentro dele, mas para e estreita os olhos para mim.
— Você pôs a Itália aqui dentro?
— Pus, sim. Juro.
Sabendo que estou dizendo a verdade dessa vez, Camryn enfia mais a mão no chapéu e remexe as tiras de papel com os dedos. Ela tira uma e a segura no punho fechado.
— Bem, tá esperando o quê? — pergunto.
Ela põe sua mão na minha e diz:
— Quero que você leia.
Eu balanço a cabeça, tomo o papelzinho dela e o desdobro cuidadosamente. Leio só para mim primeiro, deixando minha imaginação explodir com visões de nós três lá. Eu estava tão fissurado em ganhar a aposta com o Brasil que nem pensei muito nos outros países, mas agora que perdi, é fácil imaginar.
— E então? — ela está ficando impaciente.
Eu sorrio e jogo a tira de papel sobre a mesa, com o nome para cima.
— Jamaica — anuncio. — Pelo jeito, nós dois perdemos a aposta.
Camryn abre um enorme sorriso. Aquela tirinha de papel sobre a mesa diante de nós é tão mais do que apenas papel e tinta. Ela acaba de pôr em movimento o resto de nossa vida juntos.
Camryn
40
E COMO FOI fantástica e maravilhosa essa vida.
Lembro como se fosse ontem o dia em que partimos, no fim da primavera, para a Jamaica. Lily usava um vestido amarelo e duas presilhas florais no cabelo. Ela não chorou nem deu trabalho no voo para Montego Bay. Foi um anjinho. E quando chegamos nesse primeiro destino, assim que descemos do avião e pisamos em outro país, tudo se tornou real.
Foi então que Andrew e eu ficamos... diferentes.
Mas eu já vou falar disso.
Foi há muito tempo, e eu quero começar do princípio.
Por dois meses, até o dia em que subimos naquele avião, eu continuei com medo de fazer isso. Por mais que eu quisesse fazer, por mais vezes que dissesse a mim mesma que Andrew tinha razão e que eu não precisava me preocupar, eu sempre me preocupava, é claro. Tanto que, dois dias antes da partida, quase dei pra trás.
Mas aí me lembrei da época quando Andrew e eu nos conhecemos, quando ele me fez enfiar suas roupas naquela mochila, logo isso:
— Então, pra onde a gente vai primeiro? — perguntei, dobrando uma camisa que ele me deu para pôr na mochila, a primeira da pilha.
Ele ainda estava fuçando no closet.
— Não, não — ele disse lá de dentro; sua voz chegava meio abafada —, nada de planejamento, Camryn. Vamos só pegar o carro e rodar. Nada de mapas, nem planos, nem... — Ele pôs a cabeça para fora do closet e sua voz ficou mais clara. — O que você tá fazendo?
Ergui o olhar, com a segunda camisa da pilha já meio dobrada.
— Dobrando suas camisas.
Ouvi um tum-tum quando ele deixou cair um par de tênis pretos e saiu do closet. Quando chegou, me olhou como se eu tivesse feito algo errado e tirou a camisa dobrada das minhas mãos.
— Não seja tão perfeitinha, gata; só enfia tudo na mochila.
Um momento aparentemente insignificante que compartilhamos, mas foi isso, no fim das contas, que me deu a coragem para subir naquele avião. Eu sabia que, se eu ficasse, se continuasse a pensar demais em tudo, a única coisa que eu iria conseguir seria deixar o medo controlar a minha, a nossa vida toda, daquele momento em diante.
E sempre que revejo nossa vida agora, a única coisa que ainda me apavora é saber que faltou muito pouco para que passássemos o resto da vida na Carolina do Norte.
Ficamos três semanas na Jamaica, adoramos tanto que nem queríamos ir embora. Mas sabíamos que tínhamos tanta coisa mais a fazer, tantos lugares para ver. E assim, uma noite, depois de nos enturmar na praia com os locais, Andrew enfiou a mão no saquinho (trocamos o chapéu de vaqueira por um saquinho roxo de uísque Crown Royal, muito mais fácil de carregar) e tirou o Japão. Do outro lado do oceano...
Isso era algo que não havíamos previsto.
Nem é preciso dizer que abandonamos completamente a ideia do saquinho e de sortear países, depois dessa. Passamos a escolher a próxima etapa de acordo com a nossa localização: Venezuela, Panamá, Peru e finalmente o Brasil. Visitamos todos eles, passando o maior tempo, dois meses, em Temuco, no Chile, e evitando a todo custo lugares conhecidos por serem mais perigosos para viajantes, cidades e até países inteiros em qualquer situação de conflito. E, em todo lugar que visitamos, nos sentimos cada vez mais parte de cada cultura. Comendo os pratos típicos. Participando de eventos. Aprendendo os idiomas. Só algumas frases essenciais aqui e ali eram o máximo que Andrew e eu conseguíamos aprender.
E nós voltávamos para os EUA nos feriados. Dia de Ação de Graças em Raleigh. Natal em Galveston. Ano-novo em Chicago. E, claro, também passamos o segundo aniversário de Lily em Raleigh. Nós a levamos ao pediatra para um checkup e para pôr as vacinas em dia. E, sim, Andrew também fazia checkups e, como a filha, tinha uma saúde de ferro.
Pouco antes da primavera, Andrew concordou com a ideia de deixar Natalie e Blake alugarem nossa casa. Era meio perfeito, na verdade. Eles estavam procurando uma casa, e nós precisávamos do dinheiro, e isso também nos livrou de pagar as contas. Ainda tínhamos muito dinheiro no banco, mas viajar tanto estava começando a abrir um buraco na nossa conta. Mas começamos a pegar as manhas de como economizar no exterior, fazendo uso de pousadas, hotéis baratos e casas de veraneio ainda mais baratas. Não precisávamos de luxo, só de um lugar seguro e limpo para Lily.
Mas acho que o que nos fazia economizar mais era que nunca viajávamos para lugar nenhum como turistas. Não comprávamos lembrancinhas nem nada de que não precisássemos. Não estávamos ali para acompanhar visitantes em passeios com guias ou gastar dinheiro fazendo tudo o que quem planeja uma viagem de férias faz. Comprávamos só o necessário, e de vez em quando torrávamos algum dinheiro em comida boa ou num brinquedo novo para Lily, quando ela se cansava do que tinha.
E também cantávamos para ganhar um dinheirinho extra, às vezes, mas, com Lily, nunca nos apresentávamos juntos. Como não ousávamos nem pensar em deixar Lily aos cuidados de alguém, nem mesmo por alguns minutos, eu parei de cantar completamente, e Andrew tocou violão e cantou por uns tempos sozinho. Mas no fim ele parou também. Países estrangeiros. Estilos diferentes de música. Idiomas completamente diferentes. Não demoramos muito para perceber que nossa música não era tão eficaz nesses lugares como na nossa pátria.
Alguns meses depois do segundo aniversário de Lily, Andrew e eu decidimos que estava na hora de partir. Queríamos viajar o máximo possível antes que fosse preciso parar em algum lugar para que Lily pudesse começar a estudar. E eu estava pronta para conhecer a Europa. Assim, com o verão se aproximando, Portugal se tornou nosso destino seguinte.
Andrew e eu “crescemos” no dia em que descemos daquele avião na Jamaica. Foi isso que eu quis dizer quando falei que ficamos diferentes. Claro que Lily nos pôs bastante nos eixos quando nasceu, mas quando descemos do avião e sentimos a brisa nos nossos rostos, não só eu finalmente descobri que o ar é diferente mesmo em outros países, mas nós descobrimos que era real. Estávamos muito longe de casa com a nossa filha, e por mais que nos divertíssemos, daquele dia em diante, jamais poderíamos baixar a guarda.
Nós crescemos.
Andrew
41
EU PENSO MUITO na minha vida de antes, até antes de conhecer Camryn, e vejo que é meio assustador o quanto mudei. Eu era o que ela denomina um “galinha” no colegial. E, tudo bem, continuei meio galinha depois do colegial — ela sabe de todas as mulheres com as quais já transei. Das festas que eu frequentava. Sabe praticamente tudo a meu respeito. De qualquer forma, penso muito no meu passado, mas não sinto saudade. A não ser de vez em quando, contando lembranças da infância com meus irmãos, sinto aquela nostalgia da qual Camryn falava na nossa segunda vez em Nova Orleans.
Não me arrependo de nada que fiz no passado, por mais que tenha chutado o balde às vezes, mas tampouco faria de novo. Consegui sobreviver àquela vida e faturar uma linda esposa e uma filha que realmente não mereço.
Fiquei sabendo ontem que Aidan e Michelle, depois de dois filhos e anos de casamento, estão se divorciando. Odeio que estejam passando por isso, mas acho que nem todo mundo nasceu para ficar junto com alguém, como Camryn e eu. Eu me pergunto se eles não teriam conseguido se não se matassem tanto de trabalhar. Aquele bar consumia o meu irmão, e Michelle também era consumida pelo seu emprego. Camryn e eu conversamos sobre como eles pareciam estar se distanciando, já na primeira visita de Camryn, antes que Lily nascesse.
— Eles só trabalham — Camryn comentou uma noite, ano passado. — Trabalham, cuidam de Avery e Molly, veem TV e vão dormir.
Eu balancei a cabeça contemplativamente.
— É, que bom que a gente não acabou assim.
— Também acho.
Asher, por outro lado, tem um doce de garota chamada Lea. E me orgulho em dizer que um dia eles decidiram espontaneamente se mudar para Madri. Meu irmão caçula se deu muito bem profissionalmente, conseguindo um emprego de engenheiro de sistemas de informática que lhe permitia mudar de país. Ele não precisava ir. Poderia ficar em Wyoming, mas, pelo jeito, ele é mais parecido comigo do que eu pensava. Por sorte, Lea tem os mesmos interesses e a mesma determinação que ele; senão o relacionamento dos dois acabaria mais parecido com o de Aidan e Michelle do que com o meu com Camryn. E ouvi dizer que Lea ganha uma grana preta vendendo vestidos feitos à mão pela internet. Camryn pensou em tentar alguma coisa assim, até que se deu conta de que precisaria costurar.
Com eles morando em Madri, nós já tínhamos um lugar para ficar quando também fomos para lá. Asher insistia que não precisávamos pagar aluguel, mas nós pagamos assim mesmo. Camryn não queria ficar “na aba”, como ela mesma disse.
— Um dólar — Asher negociou, só para contentá-la.
— Não — Camryn rebateu. — Seis dólares e 84 centavos por semana, nem um centavo a menos.
Asher riu.
— Você é meio esquisita, mulher. Tudo bem. Seis dólares e 84 centavos por semana.
No início, só íamos ficar com meu irmão por umas semanas, mas uma noite, Camryn e eu tivemos uma conversa séria.
— Andrew, acho que talvez a gente devesse ficar aqui por uns tempos. Aqui em Madri. Ou talvez voltar pra Raleigh. Eu não quero, mas...
Eu olhei para ela, curioso, mas ao mesmo tempo era aparente, para mim, que estávamos pensando da mesma forma.
— Eu sei o que você tá pensando — admiti. — Não é tão fácil quanto a gente queria que fosse, viajar com Lily.
— Não, não é. — Ela olhou para longe, pensativa, e sua expressão ficou mais dura. — Você acha que a gente agiu certo? Indo com ela pra tantos lugares?
Finalmente, ela olhou para mim de novo. Pude ver pela sua expressão que ela torcia para que eu dissesse que sim, que agimos certo.
— Claro que sim — eu afirmei, com convicção. — Era o que a gente queria fazer quando partimos no primeiro dia. Não temos arrependimentos. Claro, precisamos fazer as coisas de outro jeito em nome da segurança dela, evitar vários lugares que queríamos visitar e ficar parados mais tempo do que queríamos para que ela não sofresse com mudanças bruscas, mas agimos certo.
Camryn sorriu suavemente.
— E talvez tenhamos despertado nela o amor pelas viagens. — Camryn fica vermelha. — Não sei...
— Não, acho que você tem razão.
— Então, o que você acha que devemos fazer?
Ficamos com Asher e Lea por três meses antes de partir de novo. Tínhamos uma última parada a fazer antes de voltar para os EUA: lá. Camryn finalmente admitiu o motivo de seu desejo persistente de ir para lá. Seu pai a levou para lá uma vez numa viagem de negócios, quando ela tinha 15 anos. Foram só ela e ele. E aquela foi a última vez que ela se sentiu sua garotinha. Eles passaram muito tempo juntos. Ele passou mais tempo com ela do que trabalhando.
— Tem certeza de que é uma boa ideia? — perguntei, antes de partirmos para Roma. — E se você voltar pra lá e estragar a lembrança, como a do bosque da sua infância?
— É um risco que eu tô disposta a correr — ela disse, pondo as roupas de Lily na nossa mala. — Além disso, não tô indo reviver aqueles seis dias com meu pai, vou pra lembrar aqueles seis dias com meu pai. Não tenho como estragar uma coisa que não lembro direito.
Quando chegamos lá, testemunhei Camryn lembrando tudo. Ela pegou Lily e se sentou com ela na escadaria da Piazza di Spagna, imagino que da mesma forma que seu pai fez quando a levou ali.
— A gente te ama muito — Camryn disse para Lily. — Você sabe disso, não sabe? — Ela apertou a mão de nossa filha.
Lily sorriu e beijou a mãe na bochecha.
— Eu te amo, mamãe.
Então Lily se sentou entre as pernas de Camryn enquanto a mãe passava os dedos pelo cabelo louro dela, fazendo uma trança e deixando-a sobre o ombro, como a dela.
Eu sorri e fiquei olhando, pensando num dia há tanto tempo:
— Vai ser um lance de amizade, acho — ela disse. — Sabe, duas pessoas fazendo uma refeição juntas.
— Ah — eu disse, sorrindo discretamente. — Então agora somos amigos?
— Claro — ela respondeu, obviamente pega desprevenida pela minha reação. — Acho que somos tipo amigos, pelo menos até Wyoming.
Eu estiquei o braço e lhe ofereci minha mão, e, relutantemente, ela apertou.
— Amigos até Wyoming, então — eu concordei, mas sabia que ela precisava ser minha. Mais do que até Wyoming. Para sempre seria suficiente.
Ainda pira minha cabeça pensar em como chegamos longe.
Depois de quase três anos na estrada, finalmente estava na hora de ir para casa.
Voltamos para Raleigh, para nossa humilde casinha. Natalie e Blake a desocuparam e foram morar do outro lado da cidade. Mais tarde, Lily começou a ir para a escola, e nos anos seguintes, fomos felizes, mas havia sempre uma parte de nós que parecia vazia. Vi minha garotinha se transformar numa linda jovem com sonhos e metas e aspirações na vida que rivalizam com os meus e de Camryn. Gosto de pensar que nós — Camryn e eu — levamos o crédito pelo que Lily se tornou. Mas, ao mesmo tempo, Lily é uma pessoa única, e eu acho que ela seria assim mesmo sem nossa ajuda.
Eu não poderia estar mais orgulhoso.
Parece que faz tanto tempo. E, bem, acho que faz. Mas, até hoje, lembro o dia em que conheci Camryn naquele ônibus no Kansas, algo ainda está tão nítido e vivo na minha mente que sinto que eu poderia estender a mão e tocar. E pensar que, se nós dois não tivéssemos partido como partimos, mandando a sociedade e seus julgamentos praquele lugar, jamais teríamos nos conhecido. Se Camryn se deixasse dominar pelo medo do desconhecido, poderíamos nunca ter tomado aquele avião para a Jamaica. Nós realmente vivemos nossas vidas da forma que nós queríamos viver, não da forma que o mundo esperava que vivêssemos. Corremos riscos, escolhemos o caminho fora do convencional, não deixamos a opinião dos outros sobre nossas escolhas atrapalhar nossos sonhos, e nos recusamos a continuar fazendo por tempo demais qualquer coisa que não nos agradasse. Claro, fazíamos o tempo todo coisas que não queríamos fazer, porque era necessário — trabalhamos em lanchonetes por algum tempo, por exemplo —, mas nunca deixamos nenhuma dessas coisas controlar nossas vidas. Encontramos uma saída, no fim das contas, em vez de nos deixarmos derrotar. Porque só temos uma vida. Temos só uma chance de fazê-la valer a pena. Nós pegamos essa chance e agarramos com unhas e dentes.
E acho que nos saímos bem pra caramba.
Sinceramente, não sei o que mais dizer. Não que nossa vida tenha acabado, agora que nossa história parece chegar ao fim. Não. Com certeza, está longe de terminar. Camryn e eu ainda temos tanta coisa a fazer, tantos lugares para ver, tantas regras da vida para desafiar.
Hoje é o primeiro dia do resto das nossas vidas. É um dia especial, para Lily, para nós, para tudo o que nós três representamos. Nossa história acabou, sim, mas nossa jornada não, porque nós vamos viver entre o agora e o sempre até morrer.
Epílogo
Quinze anos depois
Lily
— Lily Parrish! — A sra. Morrison chama o meu nome do palco montado no auditório. Ouço meus amigos e parentes gritando na multidão, depois assobios e palmas.
Eu seguro meu capelo sobre a cabeça enquanto subo os degraus de madeira. Ele não se encaixa bem. Papai tirou sarro de mim, dizendo que minha cabeça tem um formato esquisito e que isso é culpa de mamãe, porque não posso ter puxado dele.
Enquanto ando pelo palco, mais assobios, gritos e palmas enchem o auditório. Meu coração está batendo forte. Estou tão emocionada. Acho que estou com um sorriso enorme há uns vinte minutos.
A diretora Hanover me entrega o meu diploma e eu o recebo. As palmas ficam mais altas. Olho para meus pais na primeira fila, de pé ao lado das cadeiras, com os olhos brilhando e animados pela empolgação. Minha mãe me manda beijos. Papai pisca para mim e bate palmas. Estão tão orgulhosos que tenho até vontade de chorar. Eu não estaria aqui, se não fosse por eles. Não poderia pedir pais melhores.
Depois que a cerimônia de formatura acaba, eu e meu namorado, Gavin, abrimos caminho na multidão até meus pais.
Mamãe me abraça forte e beija a minha cabeça.
— Você conseguiu, Lily! — Ela me aperta. — Eu tô tão orgulhosa! —Ouço o choro em sua voz.
— Mãe, não chora. Vai borrar seu rímel.
Ela passa os dedos embaixo dos olhos.
Papai me abraça a seguir.
— Parabêns, bebê.
Eu fico na ponta dos pés e beijo sua bochecha.
— Obrigada, papai. — Então ele me puxa para o seu lado e põe a mão na minha cintura, de um jeito protetor.
Meu pai fuzila Gavin com os olhos, examinando-o de alto a baixo, como sempre fez nestes dois anos que estamos juntos. Mas, desta vez, é tudo brincadeira. Em parte, pelo menos. Papai levou um ano para sair do pé de Gavin e confiar nele o suficiente para nos deixar sair sem ele ou mamãe junto. Constrangedor. Mas o excesso de proteção nunca conseguiu afugentar Gavin, e acho que só isso já deu aos meus pais mais motivos para respeitá-lo.
Ele é realmente um ótimo sujeito, e acho que no fundo meus pais sabem disso.
— Parabéns, Gavin — meu pai cumprimenta, apertando a mão dele.
— Obrigado. — Gavin ainda fica meio apavorado com meu pai. Eu acho isso bonitinho.
Meus pais dão uma enorme festa de formatura para mim em casa, e vem todo mundo. Todo mundo mesmo. Tem gente aqui que não vejo há anos: tio Asher e tia Lea vieram da Espanha! O tio Aidan também veio, com meus primos Avery e Molly e sua nova esposa, Alice. Minhas avós, Marna e naná Nancy (ela se recusa a ser chamada de VÓ) também vieram. A naná não está muito bem. Ela tem esclerose múltipla.
— Meu Deus, garota, você vai me abandonar! — exclama minha melhor amiga, Zoey, vindo me encontrar. Nós crescemos juntas, como a mãe dela, Natalie, cresceu com a minha mãe aqui em Raleigh.
— Pois é! Odeio isso, mas você sabe que vou te visitar! — Eu a abraço forte.
— É, mas vou sentir falta de você pra caramba.
— Já falei — respondo —, você sempre pode se mudar pra Boston pra ficar mais perto.
Ela revira os olhos, o cabelo caindo sobre os ombros quando ela se senta num banquinho da cozinha.
— Bem, não só eu não vou me mudar pra Boston com você, mas pelo jeito também não vou ficar na Carolina do Norte por muito tempo mais.
— Como assim? — pergunto, surpresa.
Eu me sento no banquinho ao lado dela. Meu tio Cole entra na cozinha com algumas garrafas vazias de cerveja nas mãos. Ele joga tudo no lixo.
Zoey suspira, apoia o cotovelo no balcão e começa a enrolar alguns fios de cabelo nos dedos.
— Meus pais vão se mudar pra São Francisco.
— Quê? Sério? — Mal posso acreditar.
— Sim.
Não sei dizer se ela está decepcionada ou simplesmente ainda não sabe o que pensar.
— Bom, mas isso é muito legal — eu digo, esperando encorajá-la. — Você não quer se mudar?
Zoey tira o braço do balcão e cruza as pernas.
— Nem sei o que eu acho, Lil. É muito longe de casa. Não é no fim da rua.
— É verdade, mas é São Francisco! Eu adoraria ir pra lá.
Ela sorri um pouco.
Tio Cole, alto e misterioso como sempre, pega mais três garrafas de cerveja da geladeira e as segura entre os dedos pelos gargalos. Ele sorri para mim ao passar e volta para a sala de estar cheia de gente.
Ele é irado. Assim que chegou, me deu um cartão de parabéns com duzentos paus dentro.
— Zoey, eu acho ótimo. E, sinceramente, mal posso esperar pra visitar minha melhor amiga na Califórnia. É. Dá gosto até falar isso. Califórnia. — Eu faço um gesto dramático com as mãos.
Ela ri.
— Vou sentir muito a sua falta, Lil.
— Eu também.
A mãe dela entra na cozinha, com o pai, Blake, logo atrás.
— Já contou a novidade pra Lily? — a mãe dela pergunta, mexendo na geladeira.
— Sim, acabei de contar.
— O que você acha, Lily? — a mãe dela pergunta.
O pai de Zoey beija a cabeça dela, pega uma cerveja da mãe e sai, provavelmente para fumar.
— Tô empolgada por ela — respondo. — Eu vou me mudar pra Boston pra fazer faculdade. Ela tá mudando pra Califórnia. Podemos não estar mais juntas do jeito que crescemos, mas tem alguma coisa em não ficar parada no mesmo lugar pra sempre que faz tudo parecer certo.
— Você com certeza é filha de Andrew e Camryn Parrish, não dá pra negar — a mãe dela diz, sorrindo.
Eu sorrio orgulhosamente e pulo do banquinho, voltando com ela e Zoey para a sala de estar.
— Um brinde! — meu pai diz no meio da sala, levantando sua cerveja. Ele olha para mim. Temos os mesmos olhos verdes. — À nossa garotinha, Lily. Que você possa mostrar a todos na faculdade como se faz!
Todos bebem.
— A Lily!
Eu passo o dia todo, até anoitecer, com meus amigos e parentes e, claro, Gavin, que eu amo tanto. Somos tão parecidos. Nos conhecemos logo depois que ele se mudou do Arizona para cá. O armário dele no colégio ficava perto do meu, e ele acabou fazendo quase todas as aulas comigo. Zoey foi pra cima dele primeiro, o que não é surpresa, do jeito que ela é namoradeira. Lembro que ela me disse, no primeiro dia de aula dele:
— Ele vai ser meu. Espera pra ver. — E eu nunca tive nenhuma intenção de interferir, mas pelo jeito Zoey era demais para alguém como Gavin. Mas acho que talvez eu possa dar crédito a Zoey por Gavin e eu acabarmos juntos. Se não fosse por ela, talvez ele não tivesse nada que o obrigasse a falar comigo para fugir dela.
Zoey o esqueceu assim que ele deixou óbvio que era em mim que ele estava interessado.
E é muito esquisito, também, porque Gavin e eu somos tão parecidos que é quase como se o destino tivesse nos unido. Nós dois queríamos fazer a mesma faculdade. Gostamos das mesmas músicas, filmes, livros e seriados de TV. Ambos adoramos arte e história e já nos perguntamos, em momentos diferentes da vida, como seria viajar pela África. Gavin se interessa por arqueologia. Eu me interesso pela preservação de artefatos arqueológicos.
Gavin não foi meu primeiro namorado nem foi o primeiro que beijei, mas foi meu primeiro em todo o resto. Não consigo imaginar passar a vida com ninguém além dele.
Espero que sejamos como meus pais. É, torço mesmo por isso.
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Depois da formatura, passei o verão com meus pais. E não desperdicei um minuto desse tempo com eles, porque eu sabia que seria curto. No outono, me mudei pra faculdade, e mamãe e papai — bem, eles tinham planos tão grandiosos quanto os meus. Acho que eles fizeram um excelente trabalho me criando, mas eu sabia que quando me mudasse e começasse a viver por minha conta na faculdade e com Gavin, meus pais partiriam para realizar o sonho de suas vidas.
Estou tão feliz por eles. Sinto falta deles todo dia, mas estou tão feliz.
Eles nunca se esquecem de me mandar cartas — não e-mails, cartas escritas à mão mesmo. Guardo todas elas, desde as enviadas da Argentina, Brasil, Costa Rica e Paraguai, até as que chegaram da Escócia, Irlanda, Dinamarca e lugares de toda a Europa. Adoro ter pais assim, tão livres de espírito, motivados e apaixonados pelo mundo. Eu os admiro. Pelas histórias que eles me contam da época em que eram um pouco mais velhos do que eu, percebo que a vida deles, mesmo antes que se conhecessem, começou complicada, mas no fim tudo se encaixou. Minha mãe me falou do seu passado, de quanto ela era depressiva. Não entrou em muitos detalhes, e eu sempre soube que havia coisas que ela não contava. Mas ela queria que eu soubesse que ela e meu pai sempre me apoiarão, não importa o que aconteça ou que decisões eu tome.
Acho que ela temia que eu tomasse as mesmas decisões erradas que ela tomou em alguns momentos difíceis, mas, sinceramente, não consigo me imaginar infeliz.
Mamãe também me contou como conheceu papai. Num ônibus de viagem, imagine. Eu só ri. Mas sempre que penso neles e nas coisas que enfrentaram juntos, não consigo deixar de ficar admirada.
De acordo com mamãe, meu pai era um pouco selvagem, naquela época. Ela disse que o fato de ele ser assim foi o principal motivo de sua demora em aceitar Gavin. Ela também não entrou em detalhes sobre isso, mas... caramba, meu pai devia ser mesmo... Eca! Deixa pra lá.
Mas eu aprendi tanto com meus pais. Eles me ensinaram como a vida é preciosa e que nunca se deve deixar passar em branco um segundo dela, porque qualquer segundo pode ser o último. Meu pai sempre me disse para ser eu mesma, defender aquilo em que acredito, e dizer o que eu penso, não o que os outros pensam. Ele disse que as pessoas vão tentar me tornar como elas, mas para eu não cair nessa, porque quando eu der por mim, serei como elas. Minha mãe, bem, fazia questão que eu soubesse que há muito mais coisas no mundo além de empregos ruins, contas a pagar e se tornar um escravo da sociedade. Ela fez questão que eu entendesse que não importava o que qualquer um dissesse, eu não precisava viver de um jeito que eu não quisesse. Eu escolho o meu caminho. Eu torno minha vida memorável, para que ela não suma no meio de tantas outras vidas vazias ao meu redor. No fim das contas, a escolha é minha e somente minha. Vai ser difícil às vezes, posso ter que fritar hambúrgueres e limpar privadas por algum tempo, vou perder pessoas que amo, e nem todo dia será brilhante como o anterior. Mas contanto que eu nunca deixe as dificuldades me abaterem completamente, um dia vou fazer exatamente o que eu quero. E não importa o que aconteça, ou quem eu perca, não vou ficar triste para sempre.
Mas acho que a principal coisa que aprendi dos meus pais foi a amar. Eles me amam incondicionalmente, é claro, mas falo do modo como se amam. Conheço muitos casais casados — a maioria dos pais dos meus amigos ainda está casada —, mas nunca vi duas pessoas mais devotadas uma à outra do que meu pai e minha mãe. Eles foram inseparáveis por toda a minha vida. Só me lembro de umas poucas discussões entre os dois, mas nunca os ouvi brigar. Nunca. Não sei o que torna o casamento deles tão forte, mas espero que, seja o que for, eu tenha herdado um pouco dessa magia.
Gavin entra no meu quarto, fechando a porta atrás de si. Ele se senta na beira da minha cama.
— Outra carta dos seus pais?
Eu balanço a cabeça.
— Onde eles estão, agora?
— No Peru — digo, olhando de novo para a carta. — Eles adoram aquele lado do mundo.
Sinto a mão dele no meu joelho para me consolar.
— Você tá preocupada com eles.
Eu balanço a cabeça mais uma vez, lentamente.
— Tô, como sempre, mas me preocupo mais quando eles estão lá. Alguns lugares são muito perigosos. Não quero que eles acabem como...
Gavin segura meu queixo com a mão.
— Eles vão ficar bem, você sabe que vão.
Talvez ele tenha razão. Meus pais já estão mochilando pelo mundo há dois anos, e o pior perigo que encontraram — bem, pelo que me contam — foi que meu pai foi roubado uma vez, e outra vez houve um problema com os passaportes deles. Mas tudo pode acontecer, especialmente com os dois sozinhos assim, só com as mochilas na estrada.
Pelo jeito, puxei muito à minha mãe na tendência para me preocupar.
— Daqui a dois anos, eles vão estar preocupados assim com você — Gavin acrescenta, e em seguida beija meus lábios.
— Acho que sim — digo, sorrindo para ele, que se levanta da cama. — Provavelmente minha mãe nem vai dormir mais, imaginando que algum leão me devorou.
Gavin abre um sorriso torto.
Seis meses atrás, decidimos que queremos mesmo ir para a África depois da faculdade. Quando nos conhecemos, não era bem uma ideia, e sim uma coisa de que falamos numa conversa casual. Mas agora se tornou nossa meta. Pelo menos por enquanto. Muita coisa pode mudar em dois anos.
Eu dobro a carta, guardo no envelope desbotado e deixo sobre o criado-mudo.
Gavin estende a mão para mim.
— Pronta? — ele pergunta, e eu seguro sua mão e me levanto com ele.
Saio do quarto para comemorar o aniversário de Gavin com nossos amigos, e antes de sair para o corredor, olho mais uma vez para a carta, antes de fechar a porta devagar atrás de mim.
Andrew
30
EU ANINHO O rosto dela em minhas mãos.
— A gente não precisa entender tudo isso já — digo, beijando-a nos lábios. — Eu tô fedendo a bosta de vaca e preciso de um banho. Espero que isso não seja brochante demais e que você queira tomar banho comigo.
A expressão pensativa de Camryn se dissolve no sorriso que eu queria provocar.
Eu a pego no colo, segurando sua bunda, e ela cruza as pernas ao redor da minha cintura, com os braços nos meus ombros. Assim que sinto sua língua quente na minha boca, começo a levá-la para o chuveiro comigo, nós dois já tirando as camisetas antes de passar pela porta do banheiro.
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O primeiro lugar aonde vamos depois que escurece é o Old Point Bar. Ao entrarmos somos recebidos por uma Carla empolgada, que praticamente remove dois caras grandões do caminho aos empurrões para me alcançar, de braços abertos. Nós nos abraçamos.
— É tão bom ver você de novo! — Carla exclama, por cima da música alta. — Deixa eu te olhar! — Ela dá um passo para trás e me examina de alto a baixo. — Continua bonitão como sempre.
Ela se vira para Camryn, agora. Depois olha pra mim e novamente para Camryn.
— Hã-hã, eu sabia que ele não ia largar de você. — Ela puxa Camryn para um abraço apertado. — Eu falei pro Eddie, depois que vocês foram embora — Carla continua, olhando de um para o outro —, que ela tinha vindo pra ficar. Eddie concordou, é claro. Ele disse que a próxima vez que você viesse pra cá, Camryn estaria com você. Tentou me convencer a apostar dinheiro nisso. — Ela aponta para mim e pisca. — Você sabe como Eddie era.
Em dois segundos, sinto meu coração afundar até os pés.
— “Era”? — pergunto, desconfiado, com medo da resposta dela.
Carla não deixa de sorrir, um pouco, talvez, mas quase não deixa de sorrir.
— Sinto muito, Andrew, mas Eddie morreu em março. Dizem que foi um derrame.
Eu fico sem ar e me sento num banquinho do bar que está ao meu lado. Percebo Camryn chegando perto de mim. Só consigo olhar para o chão.
— Ah, não, não faz isso, tá me ouvindo? — Carla pede. — Você conhecia Eddie melhor do que ninguém. Ele não chorou nem quando perdeu o filho. Lembra? Tocou guitarra a noite toda em homenagem ao Robert.
A mão de Camryn segura a minha. Eu não ergo os olhos até que Carla dá a volta no balcão e pega dois copos e uma garrafa de uísque da prateleira de vidro atrás dela. Ela põe os copos na minha frente e começa a servir.
— Ele sempre dizia — Carla continua — que, se morresse antes da gente, ia preferir ser acordado do Outro Lado por pessoas dançando sobre o túmulo dele, e não chorando em volta. Agora bebe. O uísque favorito dele. Eddie não iria querer outra coisa.
Carla tem razão. Mesmo assim, e mesmo sabendo que Eddie detestaria que qualquer um chorasse por ele, não consigo fechar o buraco sem fundo que sinto no coração, agora. Olho para Camryn ao meu lado e vejo que ela está tentando não chorar, com os olhos rasos d’água. Mas ela sorri, e sinto sua mão apertando a minha de leve. Camryn pega um dos uísques que Carla serviu e espera que eu pegue o outro. Estendo a mão sobre o balcão e seguro o copo.
— Ao Eddie — digo.
— Ao Eddie — Camryn repete.
Nós batemos os copos, sorrimos um para o outro e bebemos.
Nosso momento sério termina rapidamente quando Camryn bate o copo de boca para baixo no balcão. Ela faz a cara mais enojada e chocada que já vi uma garota fazer e solta um som como se sua garganta estivesse pegando fogo.
Carla ri e tira o copo do balcão, limpando o lugar com um trapo.
— Eu não falei que era bom, só falei que era do Eddie.
Até eu preciso admitir que aquela bosta é horrorosa. Engasga-gato horroroso da porra. Não sei como Eddie aguentou bebê-lo todos esses anos.
— Vocês dois ainda cantam juntos? — Carla pergunta.
Camryn se senta no banquinho vazio ao meu lado e responde primeiro: — Sim, a gente tem cantado muito.
Carla olha para nós dois, desconfiada, pegando meu copo e guardando-o sob o balcão.
— Têm cantado muito há quanto tempo? E por que não vi vocês por aqui antes?
Eu suspiro fundo e apoio as mãos no balcão para ficar mais confortável.
— Bom, depois que a gente saiu daqui, fomos pra Galveston e eu meio que fui parar no hospital por causa daquele tumor.
— Você meio que foi parar no hospital? — Carla repete, e eu me pergunto se a espertinha não é parente distante daquele policial da Flórida. Ela aponta severamente para mim, mas está falando com Camryn. — A gente falou pra ele ir pro médico, mas ele não ouve.
— Vocês também sabiam? — Camryn pergunta.
Carla balança a cabeça.
— A gente sabia, sim. Mas esse cara é teimoso feito uma mula.
— Nisso eu concordo com você — Camryn diz, com um traço de riso na voz.
Eu balanço a cabeça e me afasto novamente do balcão.
— Bom, antes que vocês duas juntem forças contra mim — digo —, obviamente eu tô vivo. Depois, Camryn e eu tivemos uns problemas sérios, mas conseguimos superar numa boa. — Eu sorrio para ela com ternura.
— Parece que vocês fecharam um ciclo — Carla diz e chama a nossa atenção ao mesmo tempo. — Espero que toquem esta noite. Eddie adoraria estar no palco com vocês pela última vez.
Camryn e eu nos entreolhamos rapidamente.
— Eu topo — ela diz.
— Eu também.
Carla bate palmas.
— Tudo bem, então! Podem se apresentar a hora que quiserem. A única banda que ia tocar hoje cancelou.
Ficamos no balcão com Carla por uma hora antes de finalmente subir ao palco. E embora o bar não esteja muito cheio hoje, tocamos para uma plateia animada. Começamos com nosso dueto tradicional, “Barton Hollow”. Parece adequado que seja o primeiro número, já que foi em Old Point que o tocamos juntos pela primeira vez. Tocamos várias canções antes de finalmente chegar a “Laugh, I Nearly Died”, que eu anuncio antes ser em homenagem a Eddie Johnson. Canto sem Camryn e com um substituto de Eddie, um creole simpático chamado Alfred.
Pouco depois da meia-noite, Camryn e eu nos despedimos de Carla e do Old Point Bar. Mas, bem ao estilo de Nova Orleans, não vamos para a cama cedo, ficamos na rua e curtimos feito gente grande. Passamos primeiro no d.b.a., depois no bar onde Camryn me ensinou como se joga bilhar, naquela noite. Já faz quase um ano que estivemos ali e fomos jogados na rua depois de uma briga; espero que não se lembrem de mim. Às duas da manhã, depois de vários jogos e vários drinques, como da última vez, estou ajudando Camryn a entrar no elevador do hotel, porque ela mal se aguenta em pé.
— Você tá bem, amor? — pergunto, rindo, ajeitando meu braço na sua cintura.
Sua cabeça balança de um lado para o outro.
— Não, não tô bem. E é lógico que você ri.
— Aaah, desculpa — eu digo, mas sou sincero só em parte. — Não tô rindo de você, só imaginando se vamos dormir ao lado da privada de novo.
Ela geme, embora eu ache que é seu jeito de protestar comigo, e não de manifestar desconforto. Eu a seguro melhor quando a porta do elevador se abre e ando com ela pelo corredor até nosso quarto. Eu a levo até a cama, tiro toda a sua roupa, menos a calcinha, e a ajudo a vestir um top. Ela encosta a cabeça no travesseiro e eu começo a cobri-la com o lençol. Mas aí lembro que, bêbada assim, qualquer coisa além da calcinha e do top vai fazê-la suar muito, levando-a a perder todo o álcool que bebeu esta noite.
Só por segurança, pego o cestinho de lixo de perto da TV e o coloco ao lado da cama, no chão. Depois vou para o banheiro, molho um pano com água fria e torço na pia. Mas quando volto para a cama para limpar o rosto e a testa de Camryn, ela já está capotada.
~~~
Quando acordo na manhã seguinte, fico surpreso ao ver que ela acordou antes de mim.
— Bom dia, amor — ela diz tão baixinho que é quase um sussurro.
Abrindo os olhos, eu a vejo deitada de lado, virada para mim, com o rosto encostado no travesseiro. Seus olhos azuis estão quentes e vibrantes, não com o olhar cansado de ressaca que eu esperava.
— Por que tá acordada tão cedo? — pergunto, passando os dedos na sua bochecha.
— Não sei — ela diz. — Eu mesma fiquei um pouco surpresa.
— Como se sente?
— Tô ótima.
Passo o braço em sua cintura e puxo seu corpo para junto do meu, trançando nossas pernas nuas. Ela passa a ponta do dedo nos músculos definidos do meu peito. Seu toque faz minha pele ficar arrepiada.
Estudo seus olhos, sua boca e deixo as pontas dos meus dedos seguirem cada caminho que meus olhos fazem. Eu a acho tão linda. Linda pra cacete. Ela passa seus dedos nos meus e depois os beija, um por um, e aproxima ainda mais seu corpo. Algo está diferente nela.
— Tem certeza de que você tá bem? — pergunto.
Um sorriso terno aquece seus olhos e ela balança a cabeça. Então encosta os lábios nos meus, apertando os seios com força no meu peito. Seus mamilos estão duros. Eu fico de pau duro antes mesmo de sentir sua mão segurando minha ereção. Ela lambe a ponta da minha língua antes de fechar a boca ao redor da minha, e eu abraço seu corpo num gesto possessivo. Ela se aperta contra mim lá embaixo, com a maciez de sua pele e sua umidade que sinto tão facilmente através da calcinha fina de algodão. Sem interromper o beijo faminto, enfio os dedos nos lados de sua calcinha e a tiro. Empurro o quadril contra ela, apertando meu pau inchado no seu calor.
Eu rolo por cima dela e a olho nos olhos. Mas não digo uma palavra. Não digo o quanto ela está molhada, nem a obrigo a me olhar. Não a domino com palavras, gestos ou exigências. Só olho em seus olhos e sei que este é um momento em que palavras não são necessárias.
Beijo seus lábios suavemente de novo, os cantos de sua boca, o contorno de seu maxilar. Abrindo-lhe os lábios com a língua, eu a beijo muito suavemente e seguro meu pau, esfregando-o nela. Sinto suas ancas se aproximarem de mim, me comunicando o quanto ela me quer dentro de si. Não quero provocá-la desta vez, nem negar o que ela precisa, por isso enfio só um pouco e a vejo perder o controle do seu olhar, seus olhos tremendo, seus lábios se abrindo. Forçando o pau mais para dentro, sinto suas pernas tremendo em volta de mim. Ela geme baixinho, mordendo o lábio inferior. Eu a beijo de novo e finalmente meto fundo nela, até onde consigo. Mantenho o pau ali, curtindo as convulsões de suas pernas, o tremor de suas mãos que se agarram em mim, seus dedos afundando nas minhas costas.
Eu entro nela com mais força, mexendo os quadris. Uma fina camada de suor começa a se formar nos nossos corpos. Quero lambê-lo, mas não paro. Não consigo parar...
Levanto o corpo o suficiente para que nossos peitos não se toquem e pego uma de suas pernas das minhas costas, segurando-a atrás do joelho, empurrando-a para baixo para poder ir mais fundo. Penetro nela com mais força, empurrando a coxa contra a cama. Ela diz meu nome, suas mãos agarrando meu peito, mas ela me larga e afunda os dedos no alto do colchão, acima de sua cabeça. Eu olho com desejo seus seios balançando para cima e para baixo sobre seu peito e meto com mais força ainda, me curvando para chupar seus mamilos e depois mordê-los.
Minha visão fica embaçada. Ela geme alto e depois começa a murmurar. O murmúrio me deixa louco. Eu largo sua coxa e sinto meu corpo se aproximando dela de novo, seus seios esmagados no meu peito, seus braços apertando forte minhas costas. Sinto suas unhas cravadas dolorosamente na minha carne. Ela movimenta os quadris contra os meus, e minha boca bate com força na dela. Quando começo a gozar, meu beijo fica mais faminto. Tremores percorrem meu corpo, eu gemo na sua boca e minhas arremetidas violentas se reduzem a um rebolado suave. Camryn prende meu lábio inferior nos dentes e eu a beijo com delicadeza, ainda balançando os quadris contra ela até terminar.
Eu desabo sobre o peito dela. Minha pulsação irregular tenta voltar ao ritmo certo, e sinto o sangue latejando nos dedos das mãos e dos pés e castigando a veia da minha têmpora. Encosto a lateral do rosto em seus seios nus, de boca aberta, minha respiração escapando irregular dos lábios. Seus dedos atravessam meu cabelo úmido.
Ficamos juntos assim ali a manhã toda, sem dizer uma palavra.
31
NÃO ME LEMBRO de ter pegado no sono. Quando abro os olhos, o relógio ao lado da cabeceira diz que são 11h10. E percebo que me sinto nu não por estar sem roupa, mas sim porque Camryn não está na cama comigo.
Ela está sentada na sacada da janela, de short e camiseta, sem sutiã. Está olhando pela janela.
— Acho que a gente devia ir embora — ela anuncia, sem tirar os olhos da brilhante paisagem de Nova Orleans.
Eu me sento na cama com o lençol enrolado na cintura.
— Quer ir embora de Nova Orleans? — pergunto, confuso. — Mas você não disse que a gente foi embora cedo demais, da outra vez?
— Sim — ela diz, mas ainda sem se virar. — Da primeira vez a gente foi embora cedo demais, mas não podemos ficar aqui mais tempo, agora, pra compensar.
— Mas por que você quer ir embora? A gente só ficou um dia.
Ela se vira para me encarar. Há algo como sentimento ou firmeza em seus olhos, mas não consigo saber qual dos dois, ou se são os dois.
Depois de uma longa hesitação, ela diz:
— Andrew, sei que pode parecer bobagem, mas acho que se a gente ficar aqui... eu...
Eu me levanto da cama e visto a cueca que encontro no chão.
— O que tá acontecendo? — pergunto, me aproximando dela.
Ela olha para mim.
— Eu só acho que... bom, quando a gente chegou aqui, ontem, eu só conseguia pensar no que este lugar significava pra gente julho passado. Me dei conta de que eu ficava imaginando os momentos que passaram, tentando revivê-los...
— Mas não são exatamente os mesmos — digo, tendo uma ideia.
Ela leva um segundo, mas finalmente diz, balançando um pouco a cabeça:
— É. Acho que o problema é que este lugar é uma lembrança tão importante... Porra, Andrew, eu nem sei o que tô dizendo! — Sua expressão pensativa se dissolve em frustração.
Eu puxo uma cadeira da mesa diante da janela, me sento, me debruçando para a frente e pondo as mãos fechadas entre os joelhos, e olho para ela. Começo a acrescentar algo à sua explicação, mas ela é mais rápida.
— Talvez a gente nunca mais devesse voltar aqui.
Eu não esperava que ela dissesse isso.
— Por quê?
Ela aperta as palmas das mãos na sacada para erguer o corpo, com os ombros rígidos e as costas encurvadas. A confusão e a incerteza começam a desaparecer de seu rosto à medida que os segundos passam e ela começa a entender.
— Tipo, sabe, não importa o que você faça, mesmo se tentar reproduzir uma experiência em cada detalhe, ela nunca vai ser do jeito que foi quando aconteceu naturalmente da primeira vez. — Ela olha pelo quarto, pensativa. — Quando eu era criança, Cole e eu sempre brincávamos no bosque atrás da nossa velha casa. São minhas melhores lembranças. A gente construiu uma casa na árvore lá. — Ela me olha e ri um pouco, expirando. — Bom, não era bem uma casa na árvore, só umas tábuas pregadas no meio de dois galhos. Mas era a nossa casa na árvore, e tínhamos orgulho dela. E a gente brincava nela e naquele bosque todo dia depois da aula. — Seu rosto se ilumina quando ela lembra esse momento de sua infância. Mas então seu sorriso começa a desaparecer. — A gente se mudou de lá pra casa onde minha mãe mora agora, e eu sempre pensei naquele bosque, na nossa casa na árvore e nos momentos divertidos que passamos juntos ali. Eu ficava sentada sozinha no meu quarto, ou então tava dirigindo pra algum lugar, e me perdia tanto nessas lembranças que conseguia sentir as mesmas emoções, exatamente como senti há tantos anos. — Ela põe a mão no peito, com os dedos abertos. — Eu voltei pra lá um dia — ela continua. — Fiquei tão viciada naquela nostalgia que achei que poderia intensificar a sensação se eu fosse pra lá, se ficasse no lugar onde ficava a casa na árvore, se me sentasse no chão, no lugar onde me sentava e riscava o chão com um pauzinho, deixando mensagens secretas para Cole ler quando chegava antes dele. Mas não foi a mesma coisa, Andrew.
Eu a observo e a escuto atentamente.
— Não foi a mesma coisa — ela repete com voz distante. — Fiquei tão decepcionada. E parti naquele dia com um buraco no coração ainda maior do que aquele que eu tinha quando fui pra lá tentar preenchê-lo. E todo dia depois disso, sempre que tento visualizar tudo aquilo, como eu fazia antes, não consigo mais. Eu destruí essa lembrança voltando lá. Sem perceber até que fosse tarde demais, eu substituí a lembrança pelo vazio daquele dia.
Eu conheço exatamente essa sensação de nostalgia. Acho que todos a sentem em algum momento de suas vidas, mas não explico nem conto minhas próprias experiências com ela. Em vez disso, continuo a escutar.
— A manhã toda fiquei enganando meu cérebro, tentando convencê-lo de que não estamos realmente neste quarto. Que o bar aonde a gente foi ontem não era o Old Point. Que a notícia triste sobre Eddie foi só um sonho que eu tive. — Ela me olha nos olhos. — Quero ir embora antes de destruir esta lembrança também.
Ela tem razão. Está coberta de razão.
Mas estou começando a me perguntar se...
— Camryn, por que você tava tentando reviver aquilo? — Odeio o que vou dizer a seguir. — Você não tá feliz com as coisas como estão? Com a gente?
Sua cabeça se ergue bruscamente, seus olhos incrédulos. Mas então seu semblante relaxa e ela diz:
— Meu Deus, não é isso, Andrew. — Ela se afasta da sacada e entra no meio das minhas pernas abertas. — Não é nada disso. Acho que foi só porque a gente veio pra cá que eu comecei, no meu subconsciente, a tentar recriar uma das experiências mais memoráveis da minha vida. — Ela apoia as mãos nos meus ombros, e eu seguro os lados de sua cintura, olhando para ela. Não poderia estar mais aliviado pela sua resposta.
Sorrio, me levanto com ela e digo:
— Bom, sugiro que a gente suma daqui antes que seu cérebro descubra que você tá zoando com ele.
Ela dá uma risadinha.
Eu me afasto dela e imediatamente começo a jogar nossas coisas nas mochilas. Depois aponto para o banheiro.
— Não esquece nada. — Seu sorriso aumenta e ela corre imediatamente para o banheiro. Em poucos minutos frenéticos, nossas malas estão feitas. Temos duas mochilas, uma guitarra e um violão, e sem olhar para trás, saímos do quarto. Nenhum dos dois olha nem de relance para a porta do quarto ao lado, que não ocupamos desta vez. Quando chegamos ao saguão, vou até o balcão da recepção e peço reembolso pela semana que paguei adiantado. A recepcionista pega meu cartão de crédito e faz o estorno enquanto eu entrego a chave do quarto.
Camryn espera impacientemente ao meu lado.
— Para de olhar pras coisas — exijo, sabendo que ela está pondo sua lembrança em risco.
Ela ri baixinho e fecha os olhos com força por um momento.
— Obrigada por se hospedarem no Holiday Inn Nova Orleans — a recepcionista diz, quando nos afastamos do balcão. — Esperamos vê-los de volta.
— Holiday Inn? — eu finjo. — Não, este é o... Embassy Suites de... Gulfport. É, aqui é o Mississippi. Qual o seu problema, moça?
A funcionária faz uma careta e arregala os olhos, mas não responde, e nós saímos do prédio.
Camryn entra na brincadeira quando saímos e começamos a pôr tudo no Chevelle:
— Sugiro que a gente passe reto por Nova Orleans, quando chegar na Louisiana.
Fingir que estamos num lugar diferente não é tão difícil quanto pensei que seria, na verdade.
— Combinado — digo, fechando a porta do meu lado. — A gente pode passar reto por Galveston, também, se você quiser.
— Não, precisamos visitar sua mãe — ela diz. — Depois podemos ir pra qualquer lugar.
Eu engato a marcha e digo, antes de sair do estacionamento:
— Mas isso não impede que a gente pare em algum lugar a caminho de Galveston.
Ela estufa os lábios, balançando a cabeça afirmativamente.
— É verdade. — Em seguida, me olha como que dizendo: Agora vamos embora daqui.
~~~
Pegamos o caminho mais longo saindo de Nova Orleans e vamos para noroeste passando por Baton Rouge e Shreveport, e finalmente cruzamos a divisa do Texas e chegamos a Longview. Paramos para abastecer em Tyler e dirigimos de lá até Dallas, onde Camryn insiste em parar no West Village para comprar um “chapéu de vaqueira di verdadi” (suas palavras, não minhas).
— Num dá pra viajá pelo Texas sem tá vistida de texana! — ela disse, antes que eu concordasse em levá-la.
Eu não uso chapéu nem botas de vaqueiro, mas devo dizer que o visual fica bem nela.
E paramos por uma noite em La Grange, onde tomamos uns drinques e assistimos à apresentação de um ótimo grupo de country-rock. E na noite seguinte vamos pro Gilley’s, onde Camryn monta El Torro, o touro mecânico, com aquele chapéu sexy de vaqueira, é claro. E mais tarde, quando voltamos para o hotel, como sou um puta dum tarado, finjo que sou o touro mecânico e deixo Camryn me montar. Usando o chapéu de vaqueira, naturalmente.
Dois dias depois, nos vemos a cerca de uma hora de Lubbock, parados no acostamento, com um pneu estourado. Acho que eu deveria ter verificado os quatro naquele posto de gasolina em Tyler.
— Que bosta, amor — eu reclamo, agachado perto do pneu estraçalhado. — Não tenho outro estepe.
Camryn se apoia na lateral do carro, cruzando os braços sobre o peito. O suor brilha em seu rosto e na pele do decote. Está um calor do cacete. Não há nenhuma árvore nem abrigo de espécie alguma num raio de quilômetros. Estamos rodeados por uma paisagem quase completamente plana e estéril de terra batida. Já faz muito tempo que não vou tão para o interior do Texas, e estou começando a me lembrar do motivo.
Fico de pé e me sento no capô do carro.
— Me dá seu celular — digo.
— Vai chamar um guincho? — ela pergunta, depois de pegar o celular do banco da frente e entregá-lo na minha mão.
Passo o dedo pelo display, virando duas telas para encontrar o aplicativo das Páginas Amarelas.
— É a única coisa que a gente pode fazer. — Eu digito “socorro automotivo” e escolho um dos resultados.
— Só espero que ele venha mesmo, desta vez — ela comenta.
O serviço de socorro automotivo responde, e enquanto estou falando com o cara, dizendo qual o tipo de pneu de que preciso, noto Camryn enfiando o corpo na janelinha de trás do carro e saindo dela com aquele chapéu sexy de vaqueira, provavelmente para se proteger do sol.
Ela dá a volta no capô e se senta ao meu lado.
— Tá, valeu, cara — digo ao telefone e desligo. — Ele disse que vai levar pelo menos uma hora pra chegar aqui. — Deixo o celular sobre o capô e sorrio para ela. — Sabe, era só você cortar as pernas daquele jeans que tá na sua mochila e transformá-lo num shortinho, tirar o sutiã e usar só o top, que...
Ela põe um dedo sobre os meus lábios.
— De jeito nenhum — ela diz. — Nem pense nisso.
Ficamos em silêncio por um momento, olhando para o nada ao nosso redor. Parece que está ficando mais quente, mas acho que é porque estamos sentados ao sol, no capô de um carro preto que absorve o calor como uma esponja. De vez em quando, um ventinho gostoso roça nossos rostos.
— Andrew? — Ela tira o chapéu e o coloca na minha cabeça, depois deita as costas no para-brisa. Ela põe as mãos atrás da cabeça e dobra os joelhos. — Número cinco na nossa lista de promessas: se eu morrer antes de você, quero ser enterrada naquele vestido que compramos na feirinha, e descalça. Ah, e nada de sombra azul estilo anos 80 nos olhos, nem de sobrancelha desenhada. — Ela inclina a cabeça para o lado e olha para mim.
— Mas pensei que você quisesse casar comigo usando aquele vestido.
Ela estreita os olhos, desviando-os do sol.
— É, quero, mas também quero ser enterrada com ele. Tem gente que acredita que quando a pessoa morre, ela revive seus momentos mais felizes na vida após a morte. Um dos meus vai ser o dia em que eu me casar com você. Então é bom já levar o vestido.
Eu sorrio para ela.
Tiro o chapéu e me deito ao seu lado, apertando minha cabeça perto o suficiente da dela para pôr o chapéu sobre as duas e nos proteger do sol. Depois de equilibrá-lo, digo:
— Número seis: se eu morrer antes de você, quero que toquem “Dust in the Wind” no meu funeral.
Ela vira a cabeça para me olhar, com cuidado para não derrubar o chapéu.
— De novo isso? Você tá começando a me fazer detestar um belo clássico do rock, Andrew.
Rio um pouco.
— Eu sei, mas é que eu vi o episódio de Highlander em que a mulher do cara, Tessa, morre. Tocaram essa música ao fundo. Nunca mais consegui tirar da cabeça.
Ela sorri e enxuga o suor da testa.
— Prometo — ela diz. — Mas já que estamos falando disso, quero acrescentar o número sete. Você já viu Ghost — Do Outro Lado da Vida?
Olho rapidamente para ela.
— Bom, vi. Acho que todo mundo já viu esse filme. A menos que tenha 16 anos de idade. Porra, tô surpreso que você tenha visto. — Eu lhe dou uma cotovelada de leve.
Ela ri.
— Culpa da minha mãe — ela admite. — Ghost e Dirty Dancing — Ritmo Quente eu já viu umas cem vezes. Ela era doida pelo Patrick Swayze e, quando criança, eu era a única pessoa do sexo feminino pra quem ela podia dizer o quanto ele era gostoso. Bom, então você já viu. Número sete: se alguém te matar, trata de voltar, como o Sam do filme, e me ajudar a achar seu assassino.
Eu rio e balanço a cabeça, derrubando acidentalmente o chapéu por um momento.
— Que lance é esse que você tem com filmes? Deixa pra lá. Tá, prometo voltar pra puxar seu pé.
— É bom mesmo! — ela exclama, rindo alto. — Além do mais, eu sei que vou ser uma daquelas pessoas que acham que os entes queridos continuam por perto depois de morrer. Seria bom me dar mais motivo pra acreditar.
Não sei bem como vou fazer isso, mas tudo bem. Vou tentar, porra.
— Prometo se você prometer — digo.
— Como sempre.
— Número oito — eu continuo —, não me enterre num lugar frio.
— Concordo plenamente. O mesmo vale pra mim!
Ela enxuga mais suor do rosto e eu me levanto do capô, estendendo a mão para ela.
— Vamos ficar dentro do carro, longe do sol.
Ela pega minha mão e eu a ajudo a descer.
Duas horas depois, o guincho ainda não apareceu e está começando a escurecer. Parece que vamos poder ver o pôr do sol juntos na paisagem deserta do Texas.
— Eu sabia — Camryn diz. — Qual o problema desses guinchos?
E assim que ela diz isso, um par de faróis ofuscantes aparece na estrada vindo na nossa direção. Muito aliviados, saímos para recebê-lo, e a primeira coisa que eu noto é a mesma que Camryn nota. O cara poderia ser uma cópia de Billy Frank. Ela e eu nos entreolhamos, mas não comentamos em voz alta.
— Querem que eu reboque ou só o pneu? — ele pergunta, puxando as alças do seu macacão de jeans.
— Só o pneu — eu digo, seguindo-o para a traseira do guincho.
— Bom, não tenho tempo pra ficar aqui enquanto você troca — ele diz, cuspindo tabaco na estrada. — Vocês vão ficar bem?
— Vamos, sim. Mas espera um momento. — Eu levanto o dedo e enfio o corpo no carro para virar a chave na ignição. Quando o motor parte sem problemas, eu o desligo e volto até ele. — Só queria ter certeza de que tá funcionando.
Pago ao sósia de Billy e fico olhando as lanternas traseiras do guincho sumindo no horizonte escuro à medida que ele se afasta. Quando volto para o carro, onde deixei o pneu, levo um puta susto ao ver Camryn já erguendo o carro com o macaco.
— Porra, essa é a minha garota!
Ela sorri para mim, mas continua trabalhando, com a trança loura jogada sobre um ombro.
— Não é tão difícil — ela diz, rolando agora o novo pneu para perto, depois de conseguir tirar as porcas do antigo sozinha. Acho que tô ficando de pau duro. Não, peraí, já tô mesmo de pau duro.
— Não, não é, de fato — respondo finalmente, com um sorriso ainda maior.
Alguns minutos depois, ela baixa o carro e joga o macaco no porta-malas. Eu carrego o pneu furado para ela e também o jogo lá dentro.
Entramos no carro e ficamos parados.
Tudo está tão silencioso. Enormes faixas de cirros violeta e azuis estão amontoados no céu, estendendo-se bem além do horizonte. À medida que o calor do dia diminui, a brisa suave do anoitecer entra pelas janelas abertas do carro. O crepúsculo está lindo. Para ser sincero, eu nunca tinha prestado muita atenção em um. Talvez seja a companhia.
E não sei ao certo o que está acontecendo entre nós agora, mas seja o que for, estamos tão sintonizados um com o outro que ambos sentimos isso. Eu olho para ela. Ela olha para mim.
— Pronta pra voltar? — pergunto.
— Sim. — Ela fica em silêncio, olhando pelo para-brisa, perdida em pensamentos. Então se vira para mim, com mais certeza do que há alguns segundos. — É, acho que tô pronta pra ir pra casa. — Ela sorri.
E pela primeira vez desde que saí de Galveston sozinho naquele dia, ou que Camryn subiu no ônibus em Raleigh naquela noite, nós finalmente nos sentimos... realizados.
Camryn
32
ACHO QUE A gente fechou mesmo um ciclo. Mas preciso dizer, agora que estamos finalmente de volta a Galveston, depois de sete meses, que a sensação é diferente, desta vez. Não estou preocupada por estar aqui, nem com medo de que meu tempo junto com Andrew esteja acabando. Não estou esperando que uma tragédia médica ressurja a qualquer momento. É bom estar aqui. E quando paramos no estacionamento do prédio dele, sinto satisfação. Posso até me imaginar morando aqui. Mas até aí, também consigo me imaginar morando em Raleigh. Acho que isso significa, talvez, que nós estamos prontos para parar de viajar. Só por um tempinho. Nunca definitivamente, como eu já disse a Andrew, mas por tempo suficiente para nos recuperarmos da estrada.
Andrew concorda.
— É — ele diz, pegando nossas mochilas do banco de trás. — Sabe de uma coisa? — Ele devolve as mochilas para o mesmo lugar e olha por cima do carro para mim.
— O quê? — eu pergunto, curiosa.
Ele está sorrindo com o olhar.
— Você tem razão de não querer ficar na estrada tanto tempo a ponto de a gente se cansar dela, e nem ficar num só lugar por tempo demais pelo mesmo motivo. — Ele para e estende os braços por cima do carro. — A gente podia viajar na primavera ou no verão, deixar o outono e o inverno pra ficar em casa e levar uma vidinha família nas férias... minha mãe ficou bem chateada porque a gente não passou o Natal ou o Dia de Ação de Graças com ela.
Eu balanço a cabeça.
— É uma boa ideia. E como é um saco viajar no frio, faz muito sentido.
Nós nos olhamos por cima do carro por um longo momento, até que eu interrompo as engrenagens que estão girando nas nossas cabeças e digo:
— Bom, pega as mochilas. A gente pode conversar lá dentro. Você precisa olhar a Georgia.
— Ah, a Georgia tá bem — ele diz, mexendo novamente no banco de trás. — Minha mãe vem sempre regar.
Eu pego o violão, a guitarra e a minha bolsa. Quando entramos no apartamento de Andrew, sinto exatamente o cheiro que senti na primeira vez que entrei ali: de apartamento vazio. E como Andrew disse, Georgia está viva e bem.
Eu praticamente desabo no sofá, exausta, estendendo as pernas para fora pela lateral.
— Mas o próximo lugar que a gente for — Andrew diz, passando atrás do sofá — vai ser longe daqui. — Eu ouço seu chaveiro tilintar sobre o balcão da cozinha.
Ergo o corpo e pergunto:
— Longe quanto?
— Na Europa, na América do Sul — ele diz com um sorrisão, voltando para a sala. — Você disse que quer conhecer a Itália, o Brasil e todos aqueles lugares. Sugiro que a gente escolha um e vá pra lá.
Uma carga de energia atravessa o meu corpo. Eu fico de pé e olho para ele, agora tão empolgada com a ideia que mal consigo me conter.
— Sério?
Ele balança a cabeça com um sorriso gigante de lábios fechados.
— Porra, pra manter a tradição, a gente podia até escrever todos os lugares que queremos visitar em papeizinhos, pôr num chapéu e sortear um.
Eu dou um berro. Um berro mesmo! Encosto as mãos no peito.
— Isso é perfeito, Andrew!
Ele se senta no sofá, agora, apoiando os dois pés na mesinha de centro, com os joelhos dobrados. Eu não consigo sentar. Fico onde estou, olhando para seu rosto sorridente.
— Claro que precisamos continuar faturando — ele diz. — Temos muito dinheiro no banco, mas viajar pro exterior com certeza vai acabar com ele mais rápido.
— Mal posso esperar pra arranjar um emprego — digo, e esse comentário estimula a minha memória. — Andrew, você já me disse pra ser totalmente sincera com você a respeito de onde eu quero morar.
Isso chama a atenção dele.
— Onde você quer morar?
Penso nisso por um momento e respondo:
— Por enquanto, acho que em Raleigh, mas só porque gostaria de ficar perto de Natalie e da minha mãe, e porque sei que posso arrumar emprego facilmente no trabalho da Natalie. A chefe dela disse que gostou de mim e pediu que eu preenchesse uma ficha e...
Andrew me interrompe.
— Não precisa explicar seus motivos. — Ele estende a mão para mim e eu me sento em seu colo, de frente para ele. Não tinha me dado conta de que estava falando mais que uma matraca, de nervoso. Só não queria que ele se sentisse obrigado a nada.
Ele sorri para mim e abraça a minha cintura.
— Minha pergunta — ele continua — é o que, exatamente, significa “por enquanto” pra você?
— Bom... essa é a parte difícil.
Ele inclina a cabeça para o lado, me olhando com curiosidade, as covinhas mal aparecendo em suas bochechas.
Finalmente, eu digo de uma vez:
— Acho que a gente não deve gastar todo o dinheiro numa casa, porque não quero ficar lá pra sempre. E se fizermos isso, não vamos ter muito dinheiro pra gastar quando quisermos ir pra Europa ou qualquer lugar, e trabalhar ganhando salário mínimo não vai ajudar a poupar muito.
Ele me olha de lado.
— Peraí. Espero que você não queira morar na casa da sua mãe. A gente precisa de privacidade. Quero poder te catar de quatro por cima da mesa da sala quando eu quiser.
Eu rio e aperto as coxas ao redor dele, por brincadeira.
— Você é tão safado! Mas não, com certeza não quero morar com a minha mãe.
— Bom, se você não quer comprar uma casa e não quer morar com sua mãe, a única opção que resta é alugar, e isso custa muito caro também.
Fico constrangida, porque chegamos ao ponto em que preciso falar do dinheiro de Andrew como se fosse meu também, e duvido que um dia eu vá me acostumar com isso.
Eu desvio o olhar.
— Lembra quando você disse que a gente podia comprar uma casinha em algum lugar?
— Lembro — ele diz, e seus olhos brilham mais, como se ele já soubesse o que vou dizer.
— Bom, a gente podia, quem sabe, comprar uma casa bem pequena ou um apartamento com dinheiro vivo, só o suficiente pra nós... sei lá, algo bom e barato, e ainda sobraria muito dinheiro no banco pras nossas viagens. Não vamos pagar aluguel, e só vamos precisar pagar todo mês contas e coisas assim, e podemos custear isso trabalhando e tocando em bares, sem mexer nas nossas economias.
Por que ele está sorrindo como o gato da Alice?!
Sinto minha cabeça afundando no meio dos ombros, meu rosto ficando quente.
— Qual é a graça?! — pergunto, apertando as mãos no seu peito e tentando não rir.
— Graça nenhuma. Só gostei de ver que você finalmente entendeu que o que é meu é seu. — Ele aperta os dedos na minha cintura.
— Se você tá dizendo — eu balbucio, tentando esconder o rubor do meu rosto, fingindo estar ofendida.
— Ei — ele diz, balançando meus quadris —, não faz isso. Termina o que você tava dizendo.
Depois de uma longa pausa, eu continuo:
— E quando a gente partir pro destino do papelzinho no chapéu, Natalie pode tomar conta da casa. Ou! — eu aponto para cima. — Quando finalmente encontrarmos aquele lugar sossegado na praia que você sonhou pra morar, podemos vender nossa casa em Raleigh ou alugá-la pra ter uma renda extra. Talvez até alugar pra Natalie e Blake!
Posso ver que algo está acontecendo dentro da mente dele. Seu sorriso continua suave e ele nunca tira os olhos de mim. Mas está tão quieto, até que finalmente quebra o silêncio e diz:
— Parece que você pensou muito nisso. Quanto tempo levou pra planejar tudo?
Só agora me dou conta de que foi muito tempo. Penso no dia em que comecei a tentar organizar nosso futuro, quando decidi oficialmente que queria ter uma casa e estava cansada da estrada.
Andrew espera pacientemente que eu responda, sempre com um olhar suave e pensativo, sua maneira de me lembrar constantemente de que nada que eu possa lhe dizer jamais criará qualquer negatividade entre nós.
— Foi na estrada, depois que partimos de Mobile — digo. — Quando falei que eu queria conhecer a Itália, a França e o Brasil um dia. Quando eu disse que nunca ia querer parar de viajar pra sempre. Daquela noite em diante, fiquei determinada a planejar tudo. Como a gente faria tudo isso. — Meu olhar vaga. — Eu infringi as regras e planejei tudo.
Ele se inclina para a frente e beija meus lábios.
— Às vezes planejar é necessário — ele diz. — Você fez um bom trabalho. Acho que o plano todo tá perfeito. — E então ele me agarra com um beijo apaixonado.
Quando o beijo termina, eu o olho por um momento, com seu rosto nas mãos.
— Mas quero me casar com você aqui — conto, e os olhos dele se iluminam. — Não quero que a sua mãe se sinta excluída, sabe? Na verdade, ela é o único motivo de eu me sentir culpada por querer ir morar em Raleigh. E me sinto ainda pior porque ela tava planejando aquele chá de bebê e a gente nem...
— Ela vai gostar disso — ele aprova, me interrompendo antes que eu comece a matraquear de novo. — Eu adorei.
Ele me beija de novo.
Andrew
33
EU NÃO PODERIA ter pedido um dia mais perfeito. O clima está perfeito. Os planos para o casamento que não fizemos se encaixaram perfeitamente. Eu liguei para a minha mãe ontem e pedi que nos encontrasse na praia da Ilha de Galveston. Ela chegou a tempo, sem fazer ideia do motivo do convite.
Eu levanto a mão quando a vejo, acenando para chamá-la, e assim que ela nos vê, entende tudo. Seu rosto se abre num sorriso enorme, e é fácil se contagiar.
— Ah, vocês dois — minha mãe diz, se aproximando —, não acredito que finalmente vão fazer isso. Estou... estou tão... — Lágrimas escorrem do seu rosto e ela as enxuga, rindo e chorando ao mesmo tempo.
Camryn, descalça e com aquele vestido vintage cor de marfim que encontrou na feirinha, abre os braços e abraça minha mãe.
— Oh, Marna, não chore, por favor — ela pede, embora eu ache que é mais uma súplica, porque ver minha mãe chorando a está deixando com um nó na garganta.
— Mais alguém vem? — minha mãe pergunta depois.
— Você é nossa convidada de honra exclusiva — digo orgulhosamente.
— É — Camryn acrescenta —, é só você e o reverendo aqui.
Minha mãe passa por nós para abraçar também o reverendo Reed. Ela frequenta a igreja dele há nove anos — tentou me levar junto um milhão de vezes, mas eu não sou muito de igreja. Mas pensei, quem melhor do que ele pra casar a gente?
E enquanto o reverendo Reed está diante de nós na praia, com sua Bíblia gasta nas mãos e dizendo algumas palavras, tudo o que consigo ver ou ouvir é Camryn de pé na minha frente, com suas mãos nas minhas. A brisa passa pelos fios soltos do seu cabelo, livres daquela trança dourada sobre seu ombro que eu amo tanto. Adoro seu sorriso, seus olhos azuis e sua pele macia. Quero beijá-la agora e acabar com isso. Eu aperto os dedos de leve sobre suas mãos e a puxo mais para perto. O vento sopra seu vestido longo, fazendo-o aderir ao seu corpo de violão. Eu contenho o sorriso quando noto um cacho do cabelo entrando em sua boca. Ela tenta disfarçadamente tirá-lo com a língua, sem atrair atenção para si.
Sabendo que ela não quer criar nenhum tipo de interrupção, nem para algo simples assim, eu afasto o cacho para ela.
Sinto que somos as duas únicas pessoas do mundo.
Quando chega a hora de dizermos nossos votos, eu sei que nenhum dos dois escreveu nada, nem teve muito tempo para pensar no que queria dizer. E assim, praticamente da mesma forma que costumamos fazer tudo, nós fazemos e pronto.
Eu aperto mais suas mãos entre nós e digo:
— Camryn, você é a outra metade da minha alma, e eu vou te amar hoje e todo dia pelo resto das nossas vidas. Prometo que se um dia você me esquecer, lerei para você, como Noah lia para Allie. Prometo que, quando ficarmos velhos e nossos ossos doerem, nunca dormiremos em quartos separados, e que se você morrer antes de mim, será enterrada com esse vestido. Prometo assombrar você como Patrick Swayze assombrou Demi Moore. — Seus olhos começam a se encher de água. Eu acaricio as palmas das mãos dela com meus polegares. — Prometo que nunca vamos acordar um dia, daqui a anos, e nos perguntar por que desperdiçamos nossas vidas sem fazer nada, e que seja qual for a dificuldade que enfrentemos, eu sempre, sempre estarei com você. Prometo ser espontâneo, sempre baixar o volume da música quando você adormecer, e cantar a música das uvas-passas quando você estiver triste. Prometo sempre amar você, em qualquer lugar do mundo ou de nossas vidas em que estejamos. Porque você é a outra metade de mim, sem a qual eu sei que não consigo viver.
Lágrimas escorrem dos seus olhos. Ela leva um instante para se recompor.
E então ela diz:
— Andrew, prometo nunca te manter vivo por aparelhos, deixando você sofrer, se eu sentir no fundo do meu coração que sua vida acabou. Prometo que, se um dia você se perder ou desaparecer, eu... nunca vou parar de te procurar. Jamais. — Isso me faz sorrir. — Prometo que quando você morrer, vou mandar que toquem “Dust in the Wind” no funeral, e você não será enterrado num lugar frio. Prometo sempre te contar tudo, por mais que eu me sinta envergonhada ou culpada, e confiar em você quando me pedir pra fazer alguma coisa, porque sei que tudo o que você faz tem um propósito. Prometo ficar sempre ao seu lado e nunca deixar que você enfrente nada sozinho. Prometo amar você para sempre nesta vida e aonde quer que formos depois da morte, porque eu sei que não consigo viver em nenhuma vida, a menos que você também esteja nela.
O pastor Reed me diz:
— Andrew Parrish, aceita Camryn Bennett como sua legítima esposa, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-a e respeitando-a pelo resto da vida?
— Aceito — afirmo, pondo a aliança que comprei em Chicago no dedo dela. Ela fica discretamente sem fôlego.
Então ele se vira para Camryn e pergunta:
— Camryn Bennett, aceita Andrew Parrish como seu legítimo esposo, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-o e respeitando-o pelo resto da vida?
— Aceito.
Finalmente, eu entrego a ela a minha aliança, porque estava escondendo as duas dela até este momento, e ela a põe no meu dedo. O pastor Reed conclui, incluindo aquelas aguardadas sete palavras — “Eu agora os declaro marido e mulher” — e então me dá permissão para beijar minha esposa. É tudo o que queríamos fazer desde que a cerimônia começou, e agora que podemos, ficamos só nos olhando, perdidos nos olhos um do outro, nos vendo numa luz diferente, muito mais brilhante do que desde que nos conhecemos no Kansas, naquele ônibus. Sinto meus olhos começarem a arder e a tomo em meus braços e esmago minha boca sobre a dela. Ela soluça durante o beijo e eu aperto suas costas, erguendo seus pés descalços completamente da areia e rodopiando com ela. Minha mãe está chorando feito um bebê. Eu sinto que nunca mais vou parar de sorrir.
Camryn é a minha esposa.
Camryn
Eu acabo de me tornar Camryn Parrish. Não consigo nem entender as emoções que estou sentindo. Estou chorando, mas meio que rindo por dentro ao mesmo tempo. Me sinto empolgada, porém ansiosa. Olho de novo para esta aliança que ele acaba de pôr no meu dedo e sei que ele gastou muito dinheiro nela. Então olho para a dele, quase idêntica à minha, mas numa versão masculina, e não consigo ficar brava com ele. Não consigo. Ouço Marna soluçando atrás de mim, e não posso deixar de ir até ela e abraçá-la de novo.
— Bem-vinda à família — ela diz com a voz embargada.
— Obrigada. — Eu sorrio e enxugo as lágrimas.
Andrew passa o braço na minha cintura e o pastor se junta a nós. Quando Marna e ele começam a pôr a conversa em dia, Andrew e eu nos afastamos um pouco, e ele não consegue parar de me olhar. Eu fico vermelha.
— O que foi? — pergunto.
Ele balança a cabeça, com um sorriso radiante.
— Eu te amo — ele diz, e fico com vontade de chorar de novo, mas consigo me controlar.
— Eu também te amo.
Passamos a lua de mel no nosso apartamento, quebrando a tradição. Porque queremos esperar até nossa primeira viagem ao exterior para fazer uma verdadeira lua de mel.
— Onde você acha que será? — ele pergunta.
Estamos sentados na varanda, em duas cadeiras de praia, tomando cerveja e ouvindo a música ao vivo que vem da praia ou do parque, de algum lugar distante.
— Não sei — respondo, tomando um gole no gargalo. — Quer fazer uma aposta?
Andrew esfrega o lábio inferior com o polegar.
— Hmmm. — Ele pensa a respeito, tomando mais um gole de cerveja, e então diz: — Acho que o primeiro país que vamos tirar daquele chapéu vai ser... — ele estufa os lábios — ...o Brasil.
— Brasil, é? Legal. Mas eu não sei — tenho a estranha sensação de que vai ser mais alguma coisa tipo a Itália.
— É mesmo?
— Sim.
Ambos tomamos um gole ao mesmo tempo.
— Talvez a gente devesse apostar alguma coisa — ele diz, com a covinha da bochecha direita ficando mais funda.
— Uma aposta, é? Tá, eu topo.
— Tudo bem. Se for o Brasil, você vai ter que ir comigo pra praia, bem no estilo do Rio de Janeiro. — Seu sorriso é malicioso.
Eu levo um minuto para entender o que ele está dizendo, e quando a ficha cai, sinto o ar noturno nos meus dentes ao abrir a boca.
— Sem. Chance!
Andrew ri.
— Não vou ficar saltitando de topless em público!
Ele joga a cabeça para trás e ri mais alto.
— Não, acho que elas não fazem isso lá, amor — ele explica. — Quero dizer que você vai ter que usar um daqueles biquínis brasileiros. Nada daquelas porras tipo tô-com-vergonha que você usou na Flórida. Você tem um corpo legal. — Ele toma mais um gole e deixa a garrafa sobre a mesa à nossa frente.
Eu penso por um momento, mordendo a bochecha por dentro.
— Fechado — concordo.
Parecendo um pouco surpreso por me ver concordar tão facilmente, ele balança a cabeça.
— E se for a Itália — digo, também com um sorrisinho —, você vai ter que fazer uma serenata pra mim na escadaria da Piazza di Spagna... na língua local. — Eu cruzo uma perna sobre a outra. Eu sabia que a última parte ia pirar aquela cabecinha sexy dele.
— Você não tá falando sério — ele argumenta. — Como é que eu vou fazer uma porra dessas?
— Sei lá — respondo. — Acho que, se eu ganhar, você vai ter que dar um jeito.
Ele balança a cabeça e faz uma careta pensativa.
— Tudo bem. Tá apostado.
34
RALEIGH, CAROLINA DO NORTE — Junho
— Surpresa! — Várias vozes gritam quando entro na nossa nova casa.
Realmente surpresa, eu tenho um sobressalto e ponho a mão no peito. Natalie está bem no meio, com Blake ao seu lado. Meus amigos do meu Starbucks favorito e a irmã de Blake, Sarah, que conheci há duas semanas, quando Andrew e eu voltamos, estão todos aqui.
— Uau, a gente tá comemorando o quê? — pergunto, ainda tentando recuperar um pouco o fôlego, porque eles quase me mataram de susto. Eu me viro para Andrew. Ele está sorrindo, portanto é óbvio que teve algo a ver com tudo isso.
Natalie, agora com luzes ruivas no cabelo, me puxa para um abraço.
— É sua festa oficial de boas-vindas. — Ela dá um sorrisinho para mim e olha para Andrew. — Por que você acha que eu tava fazendo tão pouco caso da sua volta nos últimos dias?
— Você não fez pouco caso — comento.
— Tá, talvez não tenha dado pra perceber — ela admite —, mas por favor, Cam, você não notou que eu tava escondendo alguma coisa?
Acho que ela tem razão, pensando bem. Ela parecia contente por eu ter voltado, mas não eufórica, como ficaria normalmente. Acho que eu só imaginei que talvez Blake finalmente a tivesse domado um pouco.
Eu me viro para Andrew de novo.
— Mas a gente não tem nem móveis.
— Ah, tem, sim! — Natalie diz, me puxando pelo pulso.
Ela me arrasta para a sala de estar, onde oito pufes gigantes estão espalhados pelo chão. No meio da sala estão quatro caixotes de leite amarrados com uma tábua em cima, que eu presumo que sejam a mesinha de centro. A eletricidade nem foi ligada ainda, mas na “mesinha de centro” estão três velas apagadas sobre tampas de latas de biscoitos, prontas para quando escurecer, daqui a algumas horas.
Eu apenas rio.
— Eu tô adorando! — comento com Andrew. — Proponho que a gente desencane totalmente dos móveis e mantenha esse tema dos pufes gigantes retrô! — Claro que estou brincando, e Andrew sabe disso.
Ele se joga no pufe mais próximo e estica as pernas no chão, refestelando-se no vinil acolchoado.
— Eu até me viro com eles, mas a gente vai precisar de uma cama, com certeza. — Eu me sento no pufe ao lado e me ajeito. Todos fazem o mesmo, enquanto Natalie e Blake vão para a cozinha.
Andrew e eu encontramos aquela casinha cinco dias depois que chegamos. Querendo sair da casa da minha mãe tão rápido quanto humanamente possível, ele passou horas na internet e olhando anúncios de imobiliárias, mesmo enquanto eu fazia corpo mole e só relaxava depois da longa viagem desde Galveston. Praticamente deixei Andrew se ocupar da procura da casa. Ele me mostrava fotos e eu dava minha opinião. Mas aquela casa era perfeita. Foi a terceira que visitamos pessoalmente (e nem acho que o fato de ele tê-la adorado tenha algo a ver com ele ter acidentalmente visto minha mãe seminua quando ela achou que não estivéssemos em casa). O preço era ótimo porque os antigos donos, que já tinham se mudado havia quatro meses, queriam vendê-la logo e encerrar o assunto. Acabamos conseguindo comprá-la por vinte mil a menos do que seu real valor, e isentamos os antigos donos de fazer qualquer conserto antes de fechar o negócio. Como pagamos com dinheiro vivo, tudo aconteceu muito rápido.
Hoje é oficialmente nosso primeiro dia como os novos proprietários.
Trouxemos muitas coisas de Galveston, alugamos um pequeno reboque de mudanças, que lotamos com tudo o que coubesse dentro. Mas logo vamos ter que voltar para buscar os móveis. Infelizmente, Andrew está irredutível quanto a conservar a velha poltrona fedida do pai dele, mas prometeu mandar limpá-la. E é bom que mande mesmo!
Natalie e Blake voltam para a sala, cada um trazendo três garrafas de cerveja, que começam a distribuir.
— Obrigada, mas eu não quero — digo.
Natalie parece ficar arrasada, projetando o lábio inferior e me olhando. Ela está usando uma camiseta branca apertada que deixa seus seios empinados.
— Quero distância de cerveja por no mínimo uma semana, Nat — eu explico.
Ela torce o nariz, mas depois dá de ombros e diz:
— Sobra mais pra mim!
Depois que Blake passa uma cerveja para Andrew, ele se dirige para o último pufe que sobrou, mas Natalie corre e chega antes dele. Assim, ele se senta em cima dela. Enquanto eles estão se engalfinhando, Natalie dá uma risada esquisita, e eu vejo de soslaio a expressão no rosto de Andrew.
— Shenzi — ele sussurra, e balança a cabeça, tomando um gole de cerveja.
Eu rio baixinho, agora sabendo o que Andrew quis dizer a primeira vez que a chamou assim. Pesquisei no Google logo depois e descobri que esse é o nome da hiena desbocada de O Rei Leão.
— Vocês prometeram me contar sobre a viagem — Natalie diz, agora sentada no pufe, no meio das pernas de Blake.
Todos olham para mim e Andrew.
— Já te contei bastante coisa, Nat.
— É, mas não contou nada pra gente — diz Lea, minha amiga que trabalha no Starbucks.
Alicia, que trabalha com ela, acrescenta:
— Eu já caí na estrada com a minha mãe e meu irmão, mas com certeza deve ter sido totalmente diferente da sua viagem.
— E você ainda não me contou o que aconteceu na Flórida — Natalie diz. Ela toma um gole de sua cerveja e deixa a garrafa ao seu lado no chão, apoiando em seguida os braços sobre as pernas de Blake. Ele a beija no pescoço.
Eu me encolho toda por dentro só de pensar na Flórida, mas percebo que é porque Andrew, na verdade, é que poderia ficar constrangido com o que aconteceu. Por um segundo, não consigo nem encará-lo, pois me sinto culpada por ter tocado no assunto com Natalie. Não dei nenhum detalhe, só mencionei que um lance muito sinistro aconteceu enquanto estávamos ali.
Quando finalmente olho para Andrew, percebo que ele não está com raiva de mim. Ele pisca e também deixa sua cerveja no chão, ao seu lado.
— A Flórida — ele começa, para minha surpresa. — Essa provavelmente foi a pior etapa da viagem, se não foi também a mais estranha. Mesmo assim, tem algumas partes que não me desagradaram tanto.
Não faço ideia de onde ele quer chegar com isso.
Todos estão olhando para Andrew, agora, especialmente Natalie, cujos olhos estão esbugalhados de antecipação.
— Conhecemos uma moçada que convidou a gente pra uma balada com eles numa parte pouco acessível da praia. E a gente foi. E se divertiu. Mas aí as coisas ficaram esquisitas.
— Esquisitas como? — Natalie interrompe.
— Esquisitas tipo LSD ou sei lá que porra.
Os olhos de Natalie se abrem ainda mais e ficam ferozes quando ela me olha.
— Você tomou LSD? Que porra de ideia foi essa, Cam?
Eu balanço a cabeça.
— Não, claro que não tomei de propósito. Eles drogaram a gente!
Os olhos de todos estão arregalados como os de Natalie, agora.
— É — Andrew continua. — A gente nem sabe direito o que era, mas ficamos completamente chapados.
— Eu já levei um “boa noite Cinderela” uma vez — conta a irmã de Blake, Sarah.
Ela aparenta ter uns 18 anos.
Blake tem um sobressalto e levanta o corpo, fazendo Natalie bater os dentes no gargalo da garrafa.
— Quê? — ele pergunta, soltando fogo pelos olhos.
— Ah, você não sabia? — Sarah diz docemente, como se tivesse apenas esquecido de contar.
Obviamente, teria sido melhor não ter contado.
— Aaai! — Natalie choraminga, com a mão na boca.
— Desculpa — Blake diz. Ele beija sua bochecha e se vira para a irmã. — Sarah, quem foi que te dopou, porra? E não me enrola. É melhor você me contar... aconteceu alguma coisa? — O medo está estampado no seu rosto.
Sarah revira os olhos.
— Não. Não aconteceu nada, porque Kayla tava lá e me trouxe pra casa. E não, eu não sei quem foi, Blake, então fica frio aí, por favor. — Depois ela se vira na nossa direção. — Vocês tavam dizendo?
— Eu vou com você, cara — Andrew diz para Blake. — Se você descobrir quem foi, é só avisar. Isso é muita sacanagem.
Eu dou uma leve cotovelada em Andrew. Ele entende e diz:
— Bom, preciso dizer que a Flórida foi uma experiência, mas que nunca mais quero repetir.
Andrew não diz nada sobre a piranha nojenta que tentou fazer um boquete nele. Fico feliz por isso, porque seria uma conversa constrangedora. Isso sem falar que Natalie ia se divertir um monte com uma informação dessas. Ficamos sentados nos pufes e conversamos com nossos amigos por algumas horas, até umas oito da noite, quando Blake precisa levar Sarah para casa. Pouco depois que os três saem, o resto vai embora, e Andrew e eu ficamos sozinhos no nosso primeiro lar oficial como recém-casados.
Ele volta da cozinha com uma vela na mão, depois de acendê-la no fogão. O gás foi ligado antes. Então ele usa a chama para acender as outras, sobre a mesa.
— A gente vai dormir no chão? — pergunto, olhando para ele.
— Não — ele responde, afastando-se das velas. Ele puxa todos os pufes para o meio da sala e os junta, criando uma cama improvisada, depois bate nela com a palma da mão. — Por enquanto, vai ter que ser assim. Eu não vou dormir no chão. Acordo todo entrevado.
Eu sorrio.
— Isto é estranho, não? — comento, olhando ao redor para as paredes nuas da nossa casa, imaginando que tipo de fotografias ou quadros ficariam bem nelas.
— O que, não ter móveis nem eletricidade? Você já deveria estar acostumada. — Ele dá uma risadinha.
Eu me levanto do pufe perto da parede e me sento na cama que ele fez. Estendo a mão para a mesa e fico cutucando a cera quente de uma vela, deixando que me queime, depois esfrie e se molde à ponta do meu dedo.
— Não, quero dizer esta casa. A gente. Tudo, na verdade.
— Estranho de um jeito bom, espero.
— É claro — confirmo, sorrindo para ele.
O silêncio enche a casa. A luz das velas projeta grandes sombras dançantes nas paredes. A casa cheira a água sanitária, desinfetante e outros produtos de limpeza, embora fracamente.
— Andrew, obrigada por vir morar aqui.
Finalmente, ele se senta ao meu lado e ambos olhamos as chamas por um momento.
— Onde mais eu poderia estar, se não junto com você?
— Você sabe do que eu tô falando — respondo. Passo a palma da mão por cima de uma chama, só para sentir o calor na minha pele e ver o quanto consigo aproximá-la sem me queimar.
— Eu sei — ele admite —, mas mesmo assim.
Eu afasto a mão e olho para ele; seu rosto parece delicado no brilho alaranjado das velas, mesmo com a barba por fazer que está começando a aparecer de novo.
— Camryn, preciso contar uma coisa pra você.
Instantaneamente, meu coração fica apertado no peito com o modo como ele falou.
— O quê... isto é, como assim, precisa me contar uma coisa? — Estou tão nervosa. Não sei por quê.
Andrew dobra os joelhos e apoia os antebraços sobre eles. Ele olha de novo para as chamas uma vez, só por alguns segundos, mas até alguns segundos é tempo demais.
— Andrew? — viro completamente o corpo para encará-lo.
Noto que seu pomo de adão se mexe quando ele engole em seco. Ele me olha nos olhos.
— Eu tô sentindo dores de cabeça — ele começa, e meu coração afunda até o estômago. Sinto que vou vomitar. — Só desde segunda, mas marquei uma consulta com um médico daqui. Foi recomendação da sua mãe.
Eu a odeio na hora por esconder isso de mim. Minhas mãos estão tremendo.
— Pedi pra sua mãe não contar nada pra você porque queria que o lance da casa acontecesse tranquilamente...
— Você devia ter me contado.
Ele tenta pegar minha mão, mas sem perceber eu a puxo e fico de pé.
— Por que você escondeu isso de mim?! — Eu estou zonza.
Andrew fica de pé também, mas mantém distância.
— Já te falei — ele diz. — Eu não queria...
— Não quero saber! Você devia ter me contado!
Eu cruzo os braços sobre a barriga e me curvo um pouco para a frente. Estou surpresa de ainda não ter vomitado. Meus nervos estão tão em frangalhos que é como se estivessem realmente se partindo dentro de mim.
— Isso não pode estar acontecendo... — Finalmente, escondo o rosto nas mãos e começo a soluçar. — Por que isso tá acontecendo, porra?!
Andrew está ao meu lado em segundos. Eu sinto seus braços me envolverem. Ele puxa meu corpo trêmulo para o seu peito e me abraça. Apertado.
— Essas dores não querem dizer nada — Andrew afirma. — Sinceramente, não me sinto como da outra vez, Camryn. Tenho dores de cabeça, sim, mas são diferentes.
Quando domino os soluços o suficiente e sinto que vou conseguir falar sem engasgar, levanto a cabeça para olhá-lo.
Ele segura meu rosto com as mãos e sorri fracamente para mim.
— Eu sabia que você ia reagir assim, amor — ele continua baixinho. — Não quero que fique estressada pelos próximos quatro dias, até minha consulta na segunda. — Ele continua me olhando nos olhos. — Eu não tô sentindo a mesma coisa. Se concentra nisso, porque tô dizendo a verdade.
— Você tá? — pergunto. — Ou tá dizendo isso pra não me deixar preocupada? — Eu já enfiei na cabeça que o que ele está fazendo é exatamente a segunda opção. Me afasto dele e começo a andar de um lado para o outro, de braços cruzados, com uma mão sobre a boca. Não consigo parar de tremer.
— Não tô mentindo pra você. Eu vou ficar bem. Sinto que vou ficar bem, e você precisa acreditar.
Eu me viro para encará-lo de novo.
— Não consigo mais viver assim, Andrew. Não quero.
Ele inclina um pouco a cabeça; seu olhar é pensativo, curioso, preocupado.
Eu sei que ele quer que eu explique melhor o que falei, mas eu não posso. Não posso, porque as coisas que quero dizer só o deixariam chateado e magoado. E seriam apenas palavras. Palavras resultantes da dor e da raiva e de uma parte de mim que quer olhar na cara de Deus, ou seja lá quem ou o que for, e mandá-Lo pro inferno.
Eu preciso me acalmar. Preciso parar e respirar.
Eu faço exatamente isso.
— Camryn?
— Você vai ficar bem — afirmo com sinceridade. — Eu sei que você vai ficar bem.
Ele volta para perto de mim, me beija na testa e diz:
— Eu vou.
Andrew
35
OS ÚLTIMOS QUATRO dias foram estressantes. Embora Camryn tivesse dito que continuaria pensando positivo e que não se deixaria afetar, ela andou diferente. Seus nervos estão em frangalhos. Por duas vezes a ouvi chorando no banheiro e vomitando. Desde que contei sobre as dores de cabeça, na terça à noite, ela está agindo de um jeito bem parecido com a forma como agiu antes de partirmos para visitar Aidan e Michelle em Chicago: fingindo sorrisos e rindo forçado quando algo supostamente seria engraçado. Ela não é a mesma. Preocupado e lembrando o que aconteceu depois do aborto, com os comprimidos, perguntei à queima-roupa se ela teve mais algum “momento de fraqueza”.
Camryn diz que não, e eu acredito.
Mas nada vai consertá-la desta vez, a não ser sairmos hoje deste hospital com os resultados dos meus testes negativos.
Caso contrário... bem, não quero pensar nisso.
Estou mais preocupado com ela do que comigo mesmo.
Pediram que Camryn esperasse em outra sala enquanto faziam a tomografia. Percebo que ela queria discutir com a enfermeira, mas faz o que pediram. E, como da última vez, parece que já estou aqui há horas, me sentindo um pouco claustrofóbico no túnel desta máquina enorme e barulhenta. Fique bem parado, o técnico me pediu. Tente não se mexer, senão vamos ter que refazer o exame. Nem preciso dizer que fiquei praticamente sem respirar por 15 minutos.
Quando a tomografia acabou, tirei os tampões de ouvido e os joguei no cesto de lixo.
Camryn quase perdeu as estribeiras quando a enfermeira que veio me liberar disse que só saberíamos de alguma coisa na quarta-feira.
— Você tá de brincadeira comigo! — Os olhos de Camryn estavam animalescos. Iam e voltavam entre mim e a enfermeira, esperando que um de nós pudesse fazer alguma coisa.
Eu olhei para a enfermeira.
— Tem algum jeito de a gente saber o resultado ainda hoje?
Percebendo, só de olhar para a expressão de Camryn, que ela não iria ceder, a enfermeira suspirou e disse:
— Vão sentar na sala de espera, vou ver se consigo convencer o dr. Adams a dar uma olhada agora.
Quatro horas depois, estávamos sentados no consultório do dr. Adams.
— Não vejo nenhuma anormalidade — o doutor declarou, e eu senti a mão de Camryn afrouxar o aperto mortal em que prendia a minha. — Mas, considerando seu histórico, acho que seria do seu interesse se consultar comigo uma vez por mês pelos próximos meses e ficar atento de qualquer alteração que considerar importante.
— Mas o senhor falou que não viu nada — Camryn disse, apertando minha mão de novo.
— Não, mas ainda acho que isso seria do interesse de Andrew. Só por segurança. Assim, se alguma coisa surgir, vamos detectá-la bem cedo.
— Tá dizendo que alguma coisa vai surgir?
Eu queria rir da sutil cara de frustração do médico, mas em vez disso olhei para Camryn, que estava à minha esquerda, e falei:
— Não, ele não tá dizendo isso. Fica calma. Tá tudo bem. Viu? Eu falei que ia ficar tudo bem.
E daquele dia em diante, só pude torcer para que eu estivesse dizendo a verdade.
Camryn
36
MUITOS MESES DEPOIS...
Andrew me escreveu outra carta, em algum momento do nosso primeiro mês na nova casa. Acho que já a li umas cem vezes. Em geral eu choro, mas também me pego sorrindo muito. Ele disse que queria que eu a lesse uma vez por semana para marcar mais uma semana que passava sem nada acontecer, em que tudo continuava bem. E eu fiz isso. Costumava lê-la no domingo à noite, depois que ele já tinha pegado no sono ao meu lado na cama. Mas às vezes, quando eu adormecia antes dele, na manhã seguinte tirava a carta de dentro do livro ao lado da cama e a lia antes que ele acordasse. E como em todas as vezes anteriores, eu olhava para ele dormindo, depois de lê-la, e torcia por mais uma semana.
Andrew sempre me intrigou. O modo como sua mente funcionava. O modo como ele conseguia me olhar sem dizer nada e fazer com que eu me sentisse a pessoa mais importante do mundo. Sempre me intrigou como ele conseguia ser sempre tão otimista, mesmo quando o mundo estava desmoronando ao seu redor. E como ele sempre fazia uma luz brilhar nos recantos mais sombrios da minha mente, quando eu achava que nunca mais veria outra luz ali.
Claro que ele tinha maus dias, “momentos de fraqueza”, mas jamais conheci alguém nem de longe como ele. E sei que jamais vou conhecer.
Talvez no fundo eu seja uma pessoa fraca, na verdade. Talvez, se não fosse por Andrew, eu não fosse a pessoa que sou hoje. Às vezes me pergunto o que seria de mim se eu jamais o tivesse conhecido, se ele não tivesse aparecido para me salvar daquela viagem de ônibus perigosa e imprudente que decidi fazer sozinha. Eu me pergunto o que teria acontecido comigo se ele não gostasse de mim o suficiente para me ajudar a superar o meu momento de fraqueza. Odeio pensar em mim assim, mas às vezes é preciso simplesmente enfrentar a realidade, enxergar como as coisas são e como elas poderiam ter sido, por causa das nossas ações. Acredito de coração que, se não fosse por Andrew, talvez eu nem estivesse aqui hoje.
Os últimos meses foram muito difíceis para nós, mas ao mesmo tempo foram cheios de vida, empolgação, amor e esperança.
A vida é uma coisa misteriosa e muitas vezes injusta. Mas acho que aprendi, no tempo que passei com Andrew, que ela também pode ser maravilhosa, e que em geral, quando acontece uma coisa que parece injusta, é só o jeito de a a vida abrir espaço para coisas melhores que virão. Gosto de pensar assim. Me dá forças quando mais preciso.
E no momento, eu preciso muito.
Tento olhar para cima, para o relógio no alto da parede branca e estéril da sala, mas mal consigo enxergar os ponteiros com minha visão embaçada. Quero saber há quanto tempo estou aqui. Estou exausta e enfraquecida mental e fisicamente e não aguento mais. Eu engulo o nó na garganta e sinto que minha boca está seca como uma lixa. Enxugo uma lágrima do meu olho. Mas só uma. Na verdade, não chorei muito. Porque a dor estava tão insuportável, antes, que praticamente secou todas as minhas lágrimas.
Eu não vou conseguir. Sinto que a qualquer momento vou querer simplesmente desistir. Quero dizer pra todos que estão na sala que vão embora, que me deixem em paz e parem de me olhar como se minha alma estivesse doente. Ela está! Está, porra! Mas ninguém aqui pode curá-la.
O que mais sinto é entorpecimento. Não consigo sentir mais nada. Mas as paredes do hospital estão começando a se fechar ao meu redor, me deixando um tanto claustrofóbica. Mas quanto à dor e à angústia, não sinto nada. Eu me pergunto se vou ficar entorpecida para sempre.
— Você precisa tentar fazer força — Andrew recomenda ao meu lado, segurando a minha mão.
Eu viro a cabeça bruscamente para olhá-lo e discuto:
— Mas eu não tô sentindo minha cintura! Como posso fazer força se não consigo sentir que tô fazendo força! — Acho que só tenho força para expelir essas palavras entre meus dentes cerrados.
Ele sorri e beija minha testa suada.
— Você consegue — assegura a dra. Ball, do meio das minhas pernas.
Eu fecho os olhos, aperto a mão de Andrew e faço força. Eu acho. Abro os olhos e me permito respirar.
— Eu fiz força? Tá dando certo?
Meu Deus, tomara que eu não solte um peido! Ai meu Deus, ia ser um puta dum mico!
— Você tá indo muito bem, amor.
Andrew olha para a obstetra, agora, esperando.
— Mais algumas vezes vão ser suficientes — a obstetra me tranquiliza.
Odiando as palavras dela, solto um suspiro frustrado e jogo com força a cabeça contra o travesseiro.
— Tenta de novo, amor — Andrew pede delicadamente, sem jamais perder a calma, embora toda vez que o vejo olhar para a obstetra eu perceba um traço de preocupação oculta em seu rosto.
Eu ergo as costas do travesseiro novamente e tento fazer força, mas como de costume, não sei dizer se estou mesmo fazendo força ou só achando que estou. Andrew põe um braço nas minhas costas para me ajudar a ficar erguida, e eu me apoio nele e faço força de novo, fechando os olhos tão apertado que sinto que eles estão afundando no meu crânio. Meus dentes estão cerrados e à mostra. O suor escorre da minha testa.
Eu grito algo incompreensível quando paro de fazer força e consigo respirar de novo.
E sinto alguma coisa. Opa... não é dor — a epidural me curou disso —, mas a pressão do bebê com certeza eu senti. Se eu não soubesse que é impossível, acharia que alguém acabou de enfiar algo descomunal na minha vagina. Meus olhos ficam cada vez mais arregalados.
— A cabeça do bebê saiu — ouço a obstetra dizer, e depois ouço um barulho nojento quando ela limpa a garganta do bebê com um bulbo de sucção.
Andrew quer olhar; vejo seu pescoço se esticar como o de uma tartaruga, tentando ver melhor, mas ele não quer sair do meu lado.
— Só mais umas vezes, Camryn — a dra. Ball repete.
Eu faço força de novo, me esforçando ainda mais, agora que sei que está dando certo mesmo.
Ela puxa os ombros do bebê para fora.
Eu faço força mais uma vez e nosso bebê nasce.
— Você foi ótima — a obstetra elogia, enquanto limpa melhor a garganta do bebê.
Andrew beija a minha bochecha e minha testa, e afasta meu cabelo empapado do meu rosto e do pescoço. Alguns segundos depois, o choro do bebê enche a sala de sorrisos e empolgação. Eu caio no choro, soluçando tanto que todo o meu corpo treme descontroladamente de emoção.
E então a obstetra anuncia:
— É menina.
Andrew e eu mal conseguimos tirar os olhos dela, até que pedem que ele corte o cordão umbilical. Ele sai de perto de mim, mas sorri orgulhosamente ao ir para o outro lado e fazer as honras. Parece incapaz de decidir para quem ele quer olhar mais, se para mim ou para nossa filha. Eu sorrio e volto a encostar a cabeça no travesseiro, completamente esgotada. Finalmente consigo enxergar o relógio de parede. Ele diz que fiquei em trabalho de parto por mais de 16 horas.
Sinto mais pressão, cutucões e puxões entre minhas pernas enquanto a obstetra faz coisas sobre as quais, francamente, não quero saber nada. Fico só olhando para o teto por um momento, perdida nos momentos dos últimos nove meses, até que ouço nossa bebê gritando do outro lado da sala e novamente levanto a cabeça tão rápido que quase destronco o pescoço.
Andrew fica por perto enquanto uma das enfermeiras a limpa e começa a embrulhá-la em cobertores. Ele olha para mim e diz:
— Bom, ela tem os seus pulmões, amor — e enfia dois dedos nos ouvidos. Eu sorrio e olho para os dois, tentando não pensar nos puxões que continuo sentindo lá embaixo. E então Andrew volta para o lado da cama.
Ele beija meus lábios e sussurra:
— Suada. Parece que você correu uma maratona. Sem maquiagem. Numa camisola de hospital. E mesmo assim consegue ser bonita.
E apesar de tudo isso, mesmo assim ele consegue me deixar vermelha.
Levanto a mão da qual sai o tubo do soro e seguro o rosto dele, puxando-o para mim.
— Conseguimos — eu murmuro perto dos seus lábios.
Ele me beija delicadamente de novo, e então a enfermeira se aproxima com nossa filha no colo.
— Quem quer segurá-la primeiro? — ela pergunta.
Andrew e eu nos entreolhamos, mas ele faz menção de dar passagem para que a enfermeira possa entregá-la para mim.
— Não — eu insisto. — Você primeiro.
Só um pouco dividido a respeito disso, Andrew finalmente cede e estende os braços para pegá-la. A enfermeira a coloca cuidadosamente no colo dele e se afasta assim que percebe que ele a está segurando firme. De início, ele parece desajeitado e infantil, com medo de derrubá-la ou de não a estar segurando direito, mas logo fica mais à vontade.
— Loura — ele anuncia perto de mim, sorrindo de orelha a orelha, com os olhos verdes levemente marejados de lágrimas. — E cabeluda também!
Ainda estou tão exausta que só consigo reagir com um sorriso.
Andrew olha para ela, toca suas bochechinhas com os nós dos dedos e lhe beija a testa. Depois de alguns momentos, ele a coloca nos meus braços pela primeira vez. E assim que fico frente a frente com minha menina, eu desmorono de novo. Mal consigo enxergar em meio a tantas lágrimas.
— Ela é tão perfeita — digo, sem tirar os olhos dela. Estou quase com medo de tirar, como se desviando o olhar por um segundo ela vá sumir, ou eu vá acordar de um sonho. — Perfeita — murmuro e beijo seu narizinho.
Andrew
37
TODOS OS PARENTES, tanto meus quanto de Camryn, estão na sala de espera — menos o pai e o irmão de Camryn. Ninguém sabe ainda se é menino ou menina. Camryn e eu não quisemos saber durante toda a gravidez. Decidimos deixar que ela nos surpreendesse. E nos surpreendeu.
Antes de deixar a família entrar para vê-las, fico com Camryn no quarto particular para onde nos transferem logo após o parto. Estamos ali há um tempinho, esperando que as enfermeiras tragam a bebê de volta depois de fazer o que elas fazem, seja lá o que for. Eu a pego no colo depois que a enfermeira verifica a pulseira de identificação de Camryn e a compara com a que “Bebê Parrish” está usando no tornozelinho. Eu também verifico, antes de deixar a enfermeira sair. E examino bem a bebê. Hoje em dia, todo cuidado é pouco, e eu vou controlar pra ver se eles trazem sempre o mesmo bebê que levaram. Mas não há como confundir aquela cabeleira loura e aquela vozinha estridente, mas de gelar o sangue, que me põe em submissão absoluta. Se ela soubesse falar, eu faria tudo o que ela pedisse sem pensar duas vezes. Me dá a mamadeira! Sim, senhora! Troca a minha fralda! É pra já! Pisa no pé daquela enfermeira que me enrolou feito um burrito! Tudo bem, garotinha!
Camryn a segura perto do tórax, deixando que ela mame no peito.
Ela descobriu que estava grávida de novo um dia antes de mudarmos para a nova casa. Mas ela só me contou depois da minha consulta no médico, na segunda-feira seguinte. Ela disse que estava com medo, acho que da mesma forma que fiquei com medo de contar a ela imediatamente que eu estava sentindo dores de cabeça. Mas depois disso, conversamos muito sobre as coisas que faríamos diferente, desta vez. Uma dessas coisas foi sua decisão de amamentar. Na primeira gravidez, Camryn não ficou muito empolgada com a ideia de ter um bebê sugando seus seios, especialmente porque talvez precisasse amamentá-la em público. Na época, eu só concordava com o que ela queria e não tentava fazê-la mudar de ideia. Eu não tinha nenhum motivo para isso, na verdade.
Mas desta vez, quando Camryn tocou no assunto de novo, ela disse:
— Quer saber, amor? Andei lendo muito sobre gravidez e os benefícios da amamentação, e não quero nem saber o que os outros vão pensar. Eu sinto que quero e devo fazer isso.
E eu disse:
— Então também acho que você deve.
Eu me sento ao lado dela. Fiquei feliz por ela ter tomado essa decisão sozinha, sem que eu desse palpite. Ei, contanto que eu não comece a ter fetiche por lactação e ela não queira que eu prove, o que ela decidir tá bom pra mim.
— Eu li que a maioria dos bebês nasce com olhos azuis — Camryn diz, olhando para a bebezinha —, mas acho que mais tarde ela vai ter os seus olhos verdes.
Eu afago a cabeça da nossa filha de leve com as pontas dos dedos.
— Talvez. — Não consigo parar de olhar para as duas, minha linda mulher e minha preciosa filhinha. Sinto que entrei em outro mundo, muito mais brilhante do que jamais imaginei. Eu realmente não achava que poderia ser mais feliz do que eu era com Camryn. Não achava isso possível.
Acho que Camryn ainda está um pouco em choque.
— O que você tá pensando? — pergunto, sem parar de sorrir ternamente.
Seus olhos cansados se abrandam quando ela me olha.
— Você tinha razão — ela diz.
A bebê faz um barulhinho de sucção, tão fraco que mal o ouço, mas percebo que estou prestando atenção em cada ruído e movimento dela.
Camryn continua:
— Você disse que eu não ia perdê-la, desta vez. Você disse que o tumor não ia voltar. Disse que ia dar tudo certo. E deu. — Ela olha para a bebê por um momento, afagando sua sobrancelha com o dedo, e então para mim de novo. — Obrigada por estar certo.
Eu me levanto da cadeira, seguro seu queixo e levanto sua cabeça para poder beijá-la na boca.
Alguém bate de leve na porta e ela se abre devagar. A cabeça da minha mãe aparece.
— Entra — eu digo, chamando-a com um gesto.
A porta larga se abre completamente, e tanta gente entra no quarto em fila indiana que eu paro de contar depois de Aidan e Michelle, que está grávida de cinco meses.
Nós nos abraçamos, todos passando os braços ao meu redor, mas tentando dar uma olhada na bebê ao mesmo tempo.
— Parabéns, mano — Aidan diz, me dando tapinhas nas costas. — Eu tava sentindo que você ia ser pai antes de mim. — Ele acaricia a barriga redonda de Michelle. Ela afasta sua mão de um jeito bem-humorado e o avisa para não enfiar mais o dedo no seu umbigo. Depois me abraça e se aproxima de Camryn na cama.
— Nós vamos ter um menino — Aidan conta.
— É mesmo? — exclamo. — Que legal.
A notícia também chama a atenção de Camryn, mas Michelle fala primeiro.
— Ele não tem certeza — ela diz. — Só acha que sabe.
Camryn ri baixinho e diz:
— Pode acreditar, se um dos irmãos Parrish diz que vai ter um menino ou uma menina, provavelmente vai acertar.
— Tudo bem, veremos — Michelle desconversa, ainda incrédula.
Eu olho para o meu irmão, e já vi essa expressão confiante. É, eles vão mesmo ter um menino.
— Ai meu Deus — ouço Natalie dizer baixinho em algum lugar do quarto —, o cobertor é cor-de-rosa. Isso significa o que eu tô pensando? — Ela leva as mãos ao rosto, cobrindo a boca com os dedos cheios de anéis. Na verdade, estou surpreso por vê-la tão calma. Blake está ao lado dela, em silêncio, como sempre.
Camryn olha primeiro para mim, eu sinalizo com a cabeça minha autorização e ela diz a todos:
— Sim, esta é a nossa filha.
Todas as mulheres migram imediatamente até a cama. A mãe de Camryn estende os braços, querendo ser a primeira a segurá-la no colo, e Camryn cobre o seio com a camisola e a entrega cuidadosamente.
— Oh, ela é tão linda, Camryn — Nancy elogia. Seu cabelo oxigenado está preso num coque malfeito no alto da cabeça. Seus olhos são tão azuis quanto os de Camryn. Elas se parecem mesmo. — Ela é perfeita. Minha netinha perfeita. — O padrasto de Camryn, Roger, parece apavorado, apoiado na parede, sozinho. Não sei se é porque esse tipo de situação o deixa constrangido ou porque se deu conta de que agora está casado com uma avó. Eu rio por dentro.
Asher me abraça a seguir.
— Se fosse menino, eu ia me preocupar em ter outro como você à solta por aí. — Ele sorri e me cutuca com o cotovelo.
— Bom, pode esperar, maninho — eu retruco, sugando ar entre os dentes —, você é o próximo da fila, e outro igual a você é tão ruim quanto outro igual a mim.
— Não sei não — ele rebate.
— É, tem razão. Pra isso você precisa de uma namorada. Acho que não vai precisar se preocupar com essa possibilidade tão cedo.
— Cara, eu tenho namorada.
— Quem é? Lara Croft? Ou alguma desenhada por Luis Royo? — eu rio.
— Deixa quieto, cara — ele diz, cruzando os braços e balançando a cabeça, mas sei que é preciso bem mais para deixá-lo puto. Se eu não tirasse um sarrinho, ele ia achar que eu estava doente.
— Tio Asher — eu digo, para me redimir mesmo assim. — Até que soa bem.
Ele faz que sim com a cabeça, pensativo, e concorda:
— É, também acho.
Nancy passa nossa filha para minha mãe, em seguida. Eu nunca a vi tão orgulhosa. Seus olhos passam de mim para a bebê, indo e voltando.
— Ela tem seu nariz e seus lábios, Andrew — minha mãe afirma.
— E o cabelo e os pulmões de Camryn — eu lembro.
Natalie está no pé da cama agora, e está agitada, com as mãos à frente do corpo. Minha mãe percebe o quanto ela está ansiosa para pegar a bebê, por isso beija a cabeça da neta e a passa para Natalie.
— Espero que você tenha lavado as mãos, Nat — Camryn diz da cama.
— Eu lavei! — Natalie responde, e em seguida ignora Camryn e começa a falar com minha filha, embora ela esteja dormindo: — Oh, você é a coisinha mais linda que eu já vi — sua voz ficando mais alta à medida que ela fica mais emocionada. Então ela olha Camryn nos olhos e diz, séria: — Meu Deus, eu quero um também.
Blake arregala os olhos, e acho que para de respirar. Quando olho para ele de novo, alguns minutos depois, vejo que já está ao lado de Roger, encostado na parede.
Brenda, a tia de Camryn, é a próxima a pegar a bebê no colo, e depois uma de suas primas. Depois que Michelle a segura por alguns minutos, derramando elogios à sua beleza, ela a devolve para Camryn. Eu me sento novamente na cadeira ao seu lado.
— Então, já escolheram um nome? — minha mãe pergunta.
Camryn e eu nos entreolhamos, e ambos estamos pensando a mesma coisa.
— Ainda não — Camryn responde, e é só o que ela diz. Eu sei que devo ser o único no quarto que percebe na hora o que a questão do nome causou: Camryn não conseguiu evitar pensar em Lily. Mas ela deixa esse momento passar e beija a bochecha da nossa bebê, obviamente tão orgulhosa do que tem, apesar do que perdeu.
A maioria dos parentes vai embora antes de escurecer, mas nossas mães ficam até um pouco mais tarde, se conhecendo melhor. É a primeira vez que elas se encontram oficialmente. E por fim vão embora, pouco depois das sete, quando a enfermeira entra no quarto para dar uma olhada na bebê e em Camryn.
Quando nós três ficamos a sós de novo, eu reduzo a iluminação do quarto, deixando só a luz do banheiro acesa. Nossa filha dorme profundamente no colo de Camryn. Eu sei que minha mulher está cansada, completamente exausta, mas ela não consegue largar a bebê para também dormir um pouco. Eu me ofereci para pegá-la para que ela possa dormir, mas Camryn insiste em ficar acordada.
Eu olho para as duas por um instante, um momento tão perfeito, e então me aproximo e me sento na beira da cama, perto delas.
Camryn olha para mim, depois mais uma vez para nosso anjinho adormecido.
— Lily — eu digo simplesmente.
Camryn volta a me olhar, confusa.
Eu balanço a cabeça devagar, como que para dizer: Sim, você ouviu certo, e toco a cabecinha macia da nossa bebê de novo.
— Lembra o que eu disse? Em Chicago, quando encontrei os comprimidos?
Ela balança a cabeça negativamente.
Desta vez, eu toco o rosto de Camryn, correndo os dedos por um lado dele e depois pelo outro.
— Eu disse que Lily ainda não tava pronta. — Fico em silêncio e depois acrescento, com um sorriso: — Mesma alma, outro corpo.
Algum pensamento brilha nos olhos de Camryn. Ela inclina a cabeça um pouco para o lado, me olhando, intrigada. E então olha de novo para a bebê e não ergue mais o olhar pelo que parece uma eternidade.
Quando ela levanta a cabeça, lágrimas estão escorrendo pelo seu rosto.
— Você acha? — ela pergunta, esperançosa.
— Sim. Eu acho.
Ela começa a chorar mais copiosamente e aperta com delicadeza a bebê Lily contra os seios, ninando-a. Então olha para mim e balança a cabeça várias vezes.
— Lily — ela murmura baixinho, beijando-lhe o alto da cabeça.
Na manhã seguinte, eu me espreguiço na cadeira ao lado da cama de Camryn, onde peguei no sono na noite anterior. Eu a ouço falando em voz baixa no quarto e, como todas as outras vezes, finjo ainda estar dormindo enquanto ela lê a carta que escrevi meses atrás.
Camryn
38
Querida Camryn,
Eu sei que você está com medo. Eu estaria mentindo se dissesse que não estou com um pouco de medo também, mas preciso acreditar que desta vez vai ficar tudo bem. E vai ficar.
Nós passamos por tanta coisa juntos. Mais do que a maioria das pessoas, em tão pouco tempo. Mas em qualquer situação, a única coisa que nunca mudou é que ainda estamos juntos. A morte não conseguiu me tirar de você. A fraqueza não conseguiu me fazer ver você de forma negativa. As drogas e as merdas que vêm com elas não conseguiram tirar você de mim, nem voltar você contra mim. Acho que podemos afirmar com toda a segurança que somos indestrutíveis.
Talvez tudo isso tenha sido um teste. Sim, eu penso muito a respeito e me convenci disso. Muita gente prefere ignorar o Destino. Alguns têm tudo o que já quiseram ou precisaram ao alcance das mãos, mas abusam disso. Outros passam reto pela sua única oportunidade porque nunca abrem os olhos por tempo suficiente para ver que ela está ali. Mas você e eu, até antes de nos conhecermos, corríamos todos os riscos, tomávamos nossas próprias decisões sem dar ouvidos aos outros ao nosso redor nos dizendo, de tantas maneiras, que o que fazíamos estava errado. Não, porra, nós fazíamos do nosso jeito, por mais imprudente, louco ou fora do convencional que fosse. Parecia que quanto mais avançávamos e lutávamos, mais árduos ficavam os obstáculos. Porque precisávamos provar que nós somos os caras.
E eu sei que fizemos exatamente isso.
Camryn, quero que você leia esta carta para si mesma uma vez por semana. Não importa que dia ou que hora, apenas leia. Cada vez que você a abrir, quero que veja que mais uma semana se passou e você continua grávida. Eu continuo com saúde. Nós ainda estamos juntos. Quero que você pense em nós três, você, eu e nosso filho ou filha, viajando pela Europa e pela América do Sul. Só visualize isso. Porque nós vamos fazer isso. Eu prometo.
Você é tudo pra mim, e quero que continue forte e não deixe que seu medo do passado contamine o caminho para o nosso futuro. Vai dar tudo certo desta vez, Camryn, vai, sim, juro pra você.
Apenas confie em mim.
Até semana que vem...
Com amor,
Andrew
Eu ergo os olhos da carta na minha mão, deixando-a ao meu lado na cama, presa entre meus dedos. Lily dorme profundamente ao meu lado no berço do hospital. Andrew precisou ser convincente para que eu finalmente concordasse em colocá-la ali, em vez de segurá-la no colo a noite inteira. Mas acordei várias vezes para verificar se ela ainda estava respirando. Eu verifico de novo, agora. Não consigo evitar; acho que vou fazer isso por meses.
Finalmente, eu dobro a carta de Andrew mais uma vez nas mesmas dobras gastas. Provavelmente, ele acha que vou parar de lê-la, agora que Lily nasceu. Mas não vou. Nunca parei de ler a primeira carta que ele me escreveu, embora ele não saiba. Algumas coisas eu guardo só pra mim.
— Pronta pra botar aqueles destinos no chapéu? — Andrew diz.
Eu me pergunto há quanto tempo ele está acordado. Olho para ele e sorrio.
— Vamos esperar mais uns meses.
Ele balança a cabeça e se levanta da cadeira.
— Como conseguiu dormir assim? — pergunto. — Devia ter ido pro sofá. — Eu olho para o pequeno sofá perto da janela.
Andrew estica os braços para os lados e estala as costas e o pescoço. Ele não responde.
— Acho que finalmente vamos poder pegar todas aquelas coisas do primeiro chá de bebê na casa da minha mãe e trazer pra nossa casa — digo.
Andrew abre um sorriso maroto.
— Peraí, você já fez isso, certo?
Ele se espreguiça um pouco mais.
— Tecnicamente, não fui eu. Ontem, Natalie, Blake e sua mãe levaram tudo pra lá depois que a gente foi pro hospital, e já arrumaram tudo.
Eu não quis fazer isso durante a gravidez. Era só mais uma maneira de me preocupar em pôr o carro na frente dos bois e depois perder outro bebê. Pelo mesmo motivo, me recusei a saber o sexo do bebê antes que nascesse. Eu não queria me concentrar nem contar com nada disso como da outra vez. Achava que podia dar azar. No fundo, Andrew não concordava com isso, mas nunca disse nada, nem tentou me fazer mudar de ideia.
— E, como você provavelmente pode imaginar — ele continua —, como Michelle e minha mãe estão aqui, vai ter muito mais coisas além dos presentes do chá de bebê te esperando em casa.
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No dia seguinte, quando Andrew abre a porta da nossa casa e eu entro com Lily no colo, vejo de cara que ele me disse a verdade. A casa está impecável. Eu jamais conseguiria deixá-la tão limpa. Quando Andrew me leva para a sala pelo corredor, ao passar vejo de relance um receptor de babá eletrônica no balcão da cozinha, outro sobre a mesinha de centro da sala, outro sobre a pia do banheiro, e finalmente, o terminal principal no quarto de Lily quando entro.
Eu fico sem fôlego, arregalando os olhos.
— Uau, Andrew, olha o que eles fizeram!
Lily se mexe no meu colo, provavelmente reagindo à empolgação na minha voz, mas logo se aquieta de novo.
O berço está encostado numa parede, com um lindo móbile musical do Ursinho Puff acima. Um jogo com gaveteiro e trocador ocupa a outra parede, perto da janela. Andrew abre as gavetas e mostra que cada uma está cheia de roupinhas, cobertores, panos, meinhas e várias outras coisas. Ele abre o armário e eu vejo dezenas de vestidinhos e conjuntos. Há tantos pacotes de fraldas empilhados ao lado do trocador que acho que nunca mais vamos comprar fraldas. Claro que sei que é só otimismo da minha parte.
Andrew me leva de volta ao corredor e abre o armário ao lado do banheiro para me mostrar um andador, um balanço infantil e uma espécie de estranho trepa-trepa, todos ainda nas caixas.
— Vou ter que montar isso tudo quando ela tiver idade pra usar — ele explica. — Mas ainda vai demorar um pouco.
— Acha que vai conseguir sozinho? — pergunto, brincando.
Ele empina o queixo e diz:
— Sem nem ler as instruções.
Eu só rio por dentro.
Então ele me leva para o nosso quarto. Há um bercinho branco perto da cama, do meu lado.
— Comprei pra você — ele conta, sorrindo com orgulho. — Sei que ainda vai demorar muito pra você conseguir deixá-la sozinha no quarto, então imaginei que ia precisar de um bercinho.
Ele está ficando vermelho. Eu me aproximo e beijo o canto de sua boca.
— Você tá certo. Obrigada.
Lily começa a se mexer de novo, e desta vez acorda. Andrew a pega do meu colo.
— Deixa que eu troco a fralda dela — ele diz.
Eu a entrego, deito no sentido da largura da nossa cama e fico observando. Ele a deita na cama também e solta seus cobertores. Os gritos mais bonitinhos, mas altíssimos, saem de seus pulmões. Os bracinhos e as pernas se agitam rigidamente. A cabecinha toda fica roxa feito uma beterraba. Mas Andrew não se abala. E quando abre a fralda dela, não fica enojado com a surpresa que ela deixou. Admito que fico surpresa com a facilidade que ele já demonstra em ser pai.
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Voltei a trabalhar na Bath and Body Works quando terminou a minha licença-maternidade, mas agora só por meio período. Minha chefe, Janelle, é maravilhosa, e gosta tanto de mim que me deu um aumento de um dólar quando contei que estava grávida. Só eu e Natalie trabalhamos lá, agora; Natalie faz período integral e assumiu boa parte do meu trabalho acumulado nas seis semanas em que estive de folga. Mas ela não liga. Diz que está economizando para comprar a casa própria. Ela e Blake parecem se curtir muito, sempre que os vejo juntos. Para ser sincera, nunca vi Natalie tão feliz. Eu achava que ela era feliz quando estava com Damon, mas estou percebendo que aquilo devia ser só tolerância e baixa autoestima. Blake é diferente. Acho que eles vão dar certo.
Andrew começou a trabalhar numa mecânica e funilaria umas três semanas depois que mudamos para a nossa casa. Seu conhecimento de carros lhe garantiu um lugar privilegiado na folha de pagamentos. Com certeza está ganhando mais do que eu, mas tenta me valorizar dizendo: “Isso não é porra nenhuma comparado a empurrar minha menina pra fora da sua...” Eu sempre o interrompo aí.
Desnecessário, Andrew. Mas obrigada!
Creche é coisa de rico, na minha opinião. Sinceramente, não acho que alguém que ganha salário mínimo possa pagar. O casal trabalharia só pra pagar a creche, o que não faz sentido. Além disso, Andrew e eu concordamos que não queremos deixar nossa filha na mão de estranhos. Por isso combinei com Janelle trabalhar só meio período à noite, quando Andrew está em casa, e um fim de semana sim, outro não.
Estamos vivendo bem e dando conta de tudo, como se tivéssemos levado a vida inteira desse jeito. Nosso saldo bancário pode ter seis dígitos, mas sabemos que é melhor devolver tudo o que conseguimos às nossas economias e gastar o mínimo possível. Além dos nossos empregos, Andrew e eu nos apresentamos com frequência, nas noites de sábado em que não estou trabalhando, no bar que o irmão de Blake, Rob, abriu na cidade. Algo aconteceu com o Underground e Rob precisou fechá-lo. Os boatos são de que Rob escapou por pouco de ser condenado à prisão. Acho que foi porque ele não tinha autorização para ter um bar, não sei. Mas Blake é o gerente do novo bar, e nas noites em que Andrew e eu tocamos lá, ganhamos metade do couvert artístico, que é mais do que já ganhamos tocando em qualquer outro bar, menos no de Aidan. Sábado passado faturamos oitocentas pratas.
É mais dinheiro entrando nas nossas economias para nossos planos futuros de ir aonde aquele chapéu nos mandar.
E, embora Andrew sempre ponha todo o seu coração e sua alma em cada apresentação, como sempre fez, agora percebo que, quando estamos no palco juntos, ele fica ansioso para terminar, para irmos pegar Lily na casa da minha mãe ou de quem teve a sorte de ficar com ela por aquelas poucas horas à noite.
Andrew tem tanto jeito com Lily. Ele não para de me surpreender. Levanta no meio da noite tantas vezes quanto eu para trocá-la, e às vezes até fica acordado comigo enquanto dou de mamar. Mas também tem seus momentos masculinos, portanto não é totalmente o Sr. Perfeitinho. Ao que parece, ele não é completamente imune a fraldas cagadas, e esta manhã mesmo o peguei com ânsia de vômito enquanto tentava trocá-la. Eu ri, mas fiquei com tanta pena que não pude deixar de assumir a tarefa. Ele saiu do quarto cobrindo a boca e o nariz com a camiseta.
E... bem, não quero tirar conclusões precipitadas, mas acho que Lily pode ter amolecido Andrew a ponto de ele gostar de Natalie, agora. Só um pouquinho, talvez. Não sei, mas sempre que Nat está aqui, segurando Lily no colo e fazendo-a sorrir, falando com ela do seu jeito animado, Andrew parece achar legal. Quando Lily completou três meses, eu sinceramente já nem lembrava a última vez que Andrew chamou Natalie de hiena pelas costas, ou fez aquela cara exasperada para mim quando ela não estava olhando.
Ele ainda faz careta quando ela diz que é madrinha da Lily, mas... um passo de cada vez. Ele chega lá.
Andrew
39
9 DE FEVEREIRO — primeiro aniversário de Lily — Aidan e Michelle chegaram! — ouço Camryn anunciar da sala.
Eu fecho o último botão nas costas do vestido de Lily e a pego pela mão. Mas ela não gosta quando seguro a mão dela e sempre se desvencilha e segura meu dedo indicador.
— Vem, bebê — eu chamo, olhando para ela. — O tio Aidan e a tia Michelle vieram ver a aniversariante.
Juro que ela entende o que estou dizendo.
Ela aperta meu dedo com toda a força, dá uma risadinha e um passão para a frente, como se eu fosse lerdo demais para acompanhá-la. Todo encurvado, eu dou passinhos rápidos e avanço pelo corredor, deixando que ela corra com suas perninhas roliças à minha frente. Quando Lily começa a cair ao fazer a curva, eu seguro sua mão, levanto-a um pouco do chão e deixo que se equilibre de novo. Ela começou a andar com dez meses. Sua primeira palavra foi “mamá”, quando tinha seis meses. Com sete meses, ela falou “papá”, e eu me derreti ao ouvi-la me chamar assim pela primeira vez.
E Camryn tinha razão — ela tem olhos verdes como os meus.
— Lily! — Michelle exclama dramaticamente, agachando-se para tomá-la nos braços. — Meu Deus do céu, você tá enorme! — Ela a beija nas bochechas, na testa e no nariz, e Lily gargalha sem parar. — Nham nham nham! — Michelle acrescenta, fingindo morder as bochechas.
Eu olho para Aidan, que está com meu sobrinho, Avery, colado ao corpo. Faço menção de pegá-lo, mas ele é tímido e se encolhe sobre o peito de Aidan. Eu recuo, torcendo para que ele não chore. Aidan tenta convencê-lo.
— Ele já tá andando? — Camryn pergunta, de pé ao meu lado.
Michelle segue Lily para a sala, onde uma nuvem de balões de hélio cor-de-rosa e azuis se acumula no forro. Quando Lily percebe que não vai conseguir alcançar os balões, desiste e vai direto para a sua pilha de presentes no chão.
Aidan entrega dois embrulhos a Camryn, e vamos todos para perto de Michelle e Lily na sala. Camryn põe os presentes junto com os outros.
— Ele tá tentando — Aidan responde, falando dos progressos de Avery. — Já anda se segurando no sofá, mas ainda não sente vontade de se soltar.
— Meu Deus, ele parece com você, mano — comento. — Coitadinho.
Aidan me daria um soco no estômago, se estivesse com as mãos livres.
— Ele é lindo — Camryn elogia, estendendo os braços para pegá-lo.
Claro que é, mas eu preciso zoar o meu irmão.
Avery primeiro a olha como se ela fosse louca, mas depois se vinga de mim por falar merda sobre seu pai, pulando direto no colo de Camryn sem problemas.
Aidan ri.
Nancy e Roger, Natalie e Blake, Sarah e seu namorado, que já tem um filho com uma ex-namorada, aparecem todos praticamente ao mesmo tempo. Depois, nossos vizinhos, Mason e Lori, um jovem casal com um filho de dois anos, chegam trazendo presentes. Lily, como a pequena exibicionista que é, apoia as mãos e a cabeça no tapete, empinando a bundinha enfraldada no ar. Então finge cair e diz “Oh-oh”, fazendo todos caírem na risada.
— Olha só esse cabelo louro encaracolado — Michelle diz. — O cabelo de Camryn era tão clarinho assim quando ela era bebê? — pergunta para a mãe de Camryn, que está sentada ao seu lado.
Nancy balança a cabeça.
— Sim, era assim mesmo.
Mais tarde, depois que todos chegam, Lily pode abrir seus presentes e, como sua mãe, canta, dança e faz um show para todos. E depois de soprar a velinha (na verdade, eu meio que soprei por ela), ela praticamente toma um banho de bolo e cobertura roxa. Seu cabelo e seus cílios estão melecados, tem bolo até dentro do nariz dela. Camryn tenta, em vão, evitar que ela faça bagunça demais, mas acaba desistindo e deixando Lily se divertir.
Lily capota depois de tanta empolgação, bem antes que o último convidado saia.
— Acho que foi o banho — Camryn sussurra para mim enquanto a olhamos no berço.
Eu pego Camryn pela mão e a levo comigo, encostando a porta do quarto de Lily, mas deixando uma fresta.
Ficamos juntos no sofá vendo um filme pelas duas horas seguintes, depois Camryn me beija e vai tomar banho.
Eu desligo a TV, me levanto do sofá e olho ao meu redor na sala. Ouço a água do chuveiro correndo e os carros passando lá fora. Penso na conversa que tive com meu chefe ontem, quando ele me disse que já estou no emprego há quase dois anos e tenho duas semanas de férias vencidas. Mas eu sei que duas semanas não são suficientes para que eu e Camryn façamos as coisas que queremos fazer. Essa questão do emprego é a única coisa que não chegamos a resolver, decidir o que faremos quando quisermos sair de Raleigh por um mês ou mais. Não queremos perder nossos empregos, mas acabamos chegando pelo menos a uma conclusão: é um sacrifício que estamos dispostos a fazer, e vamos ter que fazer para realizar nossos sonhos de viajar pelo mundo e não virar vítimas daquela vida cotidiana monótona que tanto tememos.
Sabemos que não vamos ficar nesses empregos para sempre. E, bem, é para ser assim mesmo.
Mas eu disse ao meu chefe que sim, que eu iria tirar aquelas férias nos próximos meses. Decidi não avisá-lo que iria largar o emprego sem antes falar com Camryn hoje à noite.
Eu me levanto do sofá, pego um bloco de anotações da gaveta da mesinha do computador e me sento à mesa da cozinha com ele. E começo a escrever os nomes dos vários lugares que Camryn e eu já dissemos que queríamos conhecer: França, Irlanda, Escócia, Brasil, Jamaica... Escrevo até formar um monte de tiras de papel no meio da mesa. Enquanto estou dobrando uma por uma e jogando no chapéu de vaqueira de Camryn, ouço o chuveiro sendo fechado no banheiro.
Ela aparece na cozinha com o cabelo molhado colado nas costas.
— O que você tá fazendo? — ela pergunta, mas entende antes que eu consiga responder. Ela se senta ao meu lado. E sorri. Ótimo sinal.
— Talvez a gente devesse partir em maio ou junho — sugiro.
Ela passa o pente no cabelo molhado algumas vezes e parece pensar a respeito. Depois deixa o pente sobre a mesa.
— Você acha que Lily tá pronta pra isso? — ela pergunta.
Eu balanço a cabeça.
— Sim, acho que tá. Já tá andando. A gente disse que ia esperar pelo menos até ela começar a andar.
Camryn balança a cabeça também, ainda pensando a respeito, mas não parece ter dúvidas.
— Precisamos começar cedo com ela.
Com certeza, não somos como as outras famílias. Muitos pais rejeitariam completamente a ideia de viajar para o exterior com um bebê, só por viajar. Mas nós não. Admito que não é para todos, mas para nós, é a única coisa a fazer. Claro que nossas “viagens além” não serão como as épocas que Camryn e eu passamos na estrada nos EUA. Dirigir por aí sem destino por horas, dias e semanas a fio com um bebê no carro não é totalmente factível — Lily iria detestar. Não, essas viagens consistirão mais em ficar parados em cidades que queremos explorar, e não ir de uma cidade a outra sem parar muito para descansar. E, infelizmente, não levaremos o Chevelle.
Camryn puxa o chapéu para perto de si e mexe a mão dentro dele.
— Você pôs todos os países que escrevemos na lista? — ela pergunta.
— Claro.
Ela estreita os olhos, brincalhona.
— Tá mentindo.
— Quê? Não, eu pus todos mesmo.
Ela chuta a minha canela com o pé descalço por baixo da mesa.
— Você tá de onda com a minha cara, Andrew.
Então ela começa a pegar as tiras de papel, desdobrando e lendo uma por uma.
— Jamaica. — Ela põe a tira na mesa. — França. — Ela põe por cima da outra. — Irlanda. Brasil. Bahamas. Ilhas Virgens. México. — Uma a uma, ela empilha as tiras.
Depois de várias, ela pega a última, mantendo-a dobrada entre os dedos, e rosna para mim.
— Algo me diz que aqui não tá escrito “Itália”. — Ela está se esforçando tanto para não sorrir.
Realmente não sei por que achei que isso iria dar certo.
Enquanto tento não rir e continuar sério, ela desdobra o papel e lê: — Austrália. — Ela põe a tira no alto da pilha. — Eu deveria castigar você por tentar trapacear — ela reclama, erguendo o queixo e cruzando os braços teimosamente sobre o peito.
— Ah, por favor — eu digo, incapaz de me manter sério. — Pelo menos eu não pus mais algumas tiras com o nome “Brasil”. — Eu rio.
— Mas pensou em fazer isso, não pensou?!
Faço uma careta com seu berro, e ambos olhamos para o corredor, para o quarto onde Lily está dormindo.
Camryn se debruça um pouco sobre a mesa e cochicha entre os dentes: — Eu vou te punir. Nada de sexo por uma semana. — Ela se afasta de novo, apoiando as costas na cadeira, com um sorrisinho.
Tá, agora esse negócio perdeu a graça.
Eu engulo meu orgulho, hesito e digo:
— Vai, você não tá falando sério. Você gosta tanto quanto eu.
— Claro que gosto. Mas você nunca ouviu dizer que as mulheres têm a capacidade mágica de ficar mais tempo na seca? Eu me viro sozinha.
— Você tá blefando — acuso, descrente.
Ela balança a cabeça de leve, com um brilho nos olhos que diz blefando-o-cacete, e isso está me deixando nervoso.
— O que você vai fazer pra se redimir, então?
Eu levanto um lado da boca num sorriso.
— O que você quiser. — Faço uma pausa, levanto um dedo e acrescento, antes que seja tarde demais: — Bem, contanto que não seja degradante, nojento ou injusto.
Com o sorriso aumentando, Camryn se levanta lentamente da cadeira. Eu observo todos os seus movimentos com a maior atenção, em parte temendo perder alguma coisa. Ela enfia os polegares no elástico da calcinha e me provoca com a ideia de tirá-la.
Puta que me pariu... sério? Você chama isso de punição?
Tento manter minha compostura, fingindo que seus gestos não me afetaram de forma alguma, quando na verdade não é preciso praticamente nada para me deixar louco por ela.
Ela se afasta de mim.
— Tá indo pra onde? — pergunto.
— Me virar sozinha.
— Oi?
— Você me ouviu.
Tá, ouvi, mas... não era pra acontecer isso.
— Mas... qual é a minha punição?
Ela para só o tempo suficiente para se virar e olhar para trás.
— Você vai ficar assistindo.
— Peraí... o quê?
Eu começo a segui-la. Bruxa do mal.
Ela vai para a sala e se deita, com a cabeça apoiada no braço do sofá e uma perna por cima do encosto.
Bruxa do mal. Do mal!
Ela me olha com ar sedutor e basta isso; assim que nossos olhares se cruzam, subo em cima dela, esmagando minha boca sobre a dela.
— Sem chance, amor — sussurro febrilmente em sua boca, e a beijo com mais força ainda.
Sua mão agarra a minha camiseta, sua língua se enrola apaixonadamente na minha.
E então Lily começa a chorar.
Eu paro. Camryn para. Nós nos entreolhamos por um momento, os dois frustrados, mas não conseguimos deixar de sorrir. Lily tem sono pesado e já quase não acorda mais durante a noite, mas de alguma forma sua intervenção, esta noite, não me surpreende.
— Eu vou desta vez — ela diz, se levantando do sofá.
Fico de pé, passando a mão no alto da cabeça.
Depois que ela desaparece no corredor, volto para a cozinha e me sento à mesa para rabiscar “Itália” em outra tira de papel. Eu a jogo no chapéu, dobro todas as outras e jogo dentro também.
Em minutos, a casa está em silêncio, depois que Camryn faz Lily dormir. Ela se senta na cadeira ao meu lado de novo, erguendo as pernas e cruzando-as sobre o assento. Apoiando um cotovelo na mesa, ela segura o queixo com a mão e me olha com um sorriso meigo, como se tivesse algo em mente.
— Andrew, você acha mesmo que a gente consegue fazer isso?
— Fazer o quê, exatamente?
Ela apoia os braços na mesa à sua frente, entrelaçando os dedos.
— Viajar com Lily.
Eu fico em silêncio e me apoio no encosto da cadeira.
— Sim, eu acho que a gente consegue. Você não?
Seu sorriso enfraquece.
— Camryn, você não quer mais viajar?
Ela balança a cabeça.
— Não, não é isso, juro. Só tô com muito medo. Nunca conheci pessoalmente ninguém que tentou uma coisa dessas. É assustador, só isso. E se a gente estiver se iludindo? Vai ver que as pessoas normais não fazem esse tipo de coisa por um motivo.
De início, fiquei preocupado. Tive a sensação de que talvez ela tivesse mudado de ideia, e embora eu aceitasse o que ela quisesse, uma parte de mim ficaria decepcionada por algum tempo.
Eu me encosto e apoio os braços sobre a mesa diante de mim, como Camryn. Meu olhar fica meigo quando olho para ela.
— Eu sei que a gente consegue. Contanto que seja o que nós dois queremos igualmente, que nenhum dos dois só esteja fazendo porque acha que é o que o outro quer, então sim, Camryn, eu sei que a gente consegue. Dinheiro a gente tem. Lily só vai entrar na escola daqui a anos. Nada nos impede.
— É isso que você quer realmente? — ela pergunta. — Jura que não tem uma parte de você que só tá indo adiante com isso por minha causa?
Eu balanço a cabeça.
— Não. Mas se eu não quisesse tanto quanto você, faria assim mesmo porque é o que você quer. Mas não, eu quero de verdade.
Aquele sorriso fraco dela se fortalece de novo.
— E você tem razão — eu continuo —, é assustador, admito. Não seria tanto se fôssemos só eu e você, mas pense por um segundo. Se não fizermos isso, o que mais vamos fazer?
Camryn desvia o olhar, pensativa. Ela dá de ombros e diz: — Trabalhar e criar uma família aqui, acho.
— Exatamente. Esse medo é a linha tênue que nos separa deles. — Faço um gesto amplo para indicar quem são “eles”, o tipo de gente do mundo que não queremos nos tornar. Camryn entende; vejo isso em seu rosto. E não estou dizendo que pessoas que decidem ficar num só lugar a vida toda e criar uma família estão erradas. São as pessoas que não querem viver assim, que sonham em ser algo mais, fazer algo mais, mas nunca vão atrás disso porque deixam que o medo as impeça antes mesmo de começarem.
— Mas o que a gente vai fazer? — ela pergunta.
— O que a gente quiser. Você sabe disso.
— Tá, mas eu digo depois. Daqui a cinco, dez anos, o que vamos fazer com nossas vidas, com a vida de Lily? Por mais que eu adore a ideia de fazer isso pra sempre, não consigo imaginar que seja realística. Uma hora nosso dinheiro vai acabar. Lily vai ter que ir pra escola. Aí vamos parar aqui de novo e ficar como eles do mesmo jeito.
Eu balanço a cabeça e sorrio.
— Corrigindo, esse medo e essas desculpas são a linha tênue. Amor, a gente vai ficar bem. Lily vai ficar bem. Vamos fazer o que quisermos, ir aonde quisermos e aproveitar a vida, sem nos acomodarmos numa vida que nenhum de nós realmente quer. O que tiver que acontecer, se o dinheiro começar a faltar, se a gente não conseguir trabalhar pra repor, se Lily precisar estudar e a gente tiver que decidir ficar num só lugar por muito tempo, mesmo se esse lugar for aqui, nesta casa, vamos fazer o que tivermos que fazer. Mas agora — eu aponto severamente para a mesa —, neste momento, não é com essas coisas que precisamos nos preocupar.
Ela sorri.
— Tá. Eu só queria ter certeza.
Eu balanço a cabeça e empurro o chapéu na direção dela com o dedo.
— Você escolhe primeiro — eu digo.
Ela começa a mexer dentro dele, mas para e estreita os olhos para mim.
— Você pôs a Itália aqui dentro?
— Pus, sim. Juro.
Sabendo que estou dizendo a verdade dessa vez, Camryn enfia mais a mão no chapéu e remexe as tiras de papel com os dedos. Ela tira uma e a segura no punho fechado.
— Bem, tá esperando o quê? — pergunto.
Ela põe sua mão na minha e diz:
— Quero que você leia.
Eu balanço a cabeça, tomo o papelzinho dela e o desdobro cuidadosamente. Leio só para mim primeiro, deixando minha imaginação explodir com visões de nós três lá. Eu estava tão fissurado em ganhar a aposta com o Brasil que nem pensei muito nos outros países, mas agora que perdi, é fácil imaginar.
— E então? — ela está ficando impaciente.
Eu sorrio e jogo a tira de papel sobre a mesa, com o nome para cima.
— Jamaica — anuncio. — Pelo jeito, nós dois perdemos a aposta.
Camryn abre um enorme sorriso. Aquela tirinha de papel sobre a mesa diante de nós é tão mais do que apenas papel e tinta. Ela acaba de pôr em movimento o resto de nossa vida juntos.
Camryn
40
E COMO FOI fantástica e maravilhosa essa vida.
Lembro como se fosse ontem o dia em que partimos, no fim da primavera, para a Jamaica. Lily usava um vestido amarelo e duas presilhas florais no cabelo. Ela não chorou nem deu trabalho no voo para Montego Bay. Foi um anjinho. E quando chegamos nesse primeiro destino, assim que descemos do avião e pisamos em outro país, tudo se tornou real.
Foi então que Andrew e eu ficamos... diferentes.
Mas eu já vou falar disso.
Foi há muito tempo, e eu quero começar do princípio.
Por dois meses, até o dia em que subimos naquele avião, eu continuei com medo de fazer isso. Por mais que eu quisesse fazer, por mais vezes que dissesse a mim mesma que Andrew tinha razão e que eu não precisava me preocupar, eu sempre me preocupava, é claro. Tanto que, dois dias antes da partida, quase dei pra trás.
Mas aí me lembrei da época quando Andrew e eu nos conhecemos, quando ele me fez enfiar suas roupas naquela mochila, logo isso:
— Então, pra onde a gente vai primeiro? — perguntei, dobrando uma camisa que ele me deu para pôr na mochila, a primeira da pilha.
Ele ainda estava fuçando no closet.
— Não, não — ele disse lá de dentro; sua voz chegava meio abafada —, nada de planejamento, Camryn. Vamos só pegar o carro e rodar. Nada de mapas, nem planos, nem... — Ele pôs a cabeça para fora do closet e sua voz ficou mais clara. — O que você tá fazendo?
Ergui o olhar, com a segunda camisa da pilha já meio dobrada.
— Dobrando suas camisas.
Ouvi um tum-tum quando ele deixou cair um par de tênis pretos e saiu do closet. Quando chegou, me olhou como se eu tivesse feito algo errado e tirou a camisa dobrada das minhas mãos.
— Não seja tão perfeitinha, gata; só enfia tudo na mochila.
Um momento aparentemente insignificante que compartilhamos, mas foi isso, no fim das contas, que me deu a coragem para subir naquele avião. Eu sabia que, se eu ficasse, se continuasse a pensar demais em tudo, a única coisa que eu iria conseguir seria deixar o medo controlar a minha, a nossa vida toda, daquele momento em diante.
E sempre que revejo nossa vida agora, a única coisa que ainda me apavora é saber que faltou muito pouco para que passássemos o resto da vida na Carolina do Norte.
Ficamos três semanas na Jamaica, adoramos tanto que nem queríamos ir embora. Mas sabíamos que tínhamos tanta coisa mais a fazer, tantos lugares para ver. E assim, uma noite, depois de nos enturmar na praia com os locais, Andrew enfiou a mão no saquinho (trocamos o chapéu de vaqueira por um saquinho roxo de uísque Crown Royal, muito mais fácil de carregar) e tirou o Japão. Do outro lado do oceano...
Isso era algo que não havíamos previsto.
Nem é preciso dizer que abandonamos completamente a ideia do saquinho e de sortear países, depois dessa. Passamos a escolher a próxima etapa de acordo com a nossa localização: Venezuela, Panamá, Peru e finalmente o Brasil. Visitamos todos eles, passando o maior tempo, dois meses, em Temuco, no Chile, e evitando a todo custo lugares conhecidos por serem mais perigosos para viajantes, cidades e até países inteiros em qualquer situação de conflito. E, em todo lugar que visitamos, nos sentimos cada vez mais parte de cada cultura. Comendo os pratos típicos. Participando de eventos. Aprendendo os idiomas. Só algumas frases essenciais aqui e ali eram o máximo que Andrew e eu conseguíamos aprender.
E nós voltávamos para os EUA nos feriados. Dia de Ação de Graças em Raleigh. Natal em Galveston. Ano-novo em Chicago. E, claro, também passamos o segundo aniversário de Lily em Raleigh. Nós a levamos ao pediatra para um checkup e para pôr as vacinas em dia. E, sim, Andrew também fazia checkups e, como a filha, tinha uma saúde de ferro.
Pouco antes da primavera, Andrew concordou com a ideia de deixar Natalie e Blake alugarem nossa casa. Era meio perfeito, na verdade. Eles estavam procurando uma casa, e nós precisávamos do dinheiro, e isso também nos livrou de pagar as contas. Ainda tínhamos muito dinheiro no banco, mas viajar tanto estava começando a abrir um buraco na nossa conta. Mas começamos a pegar as manhas de como economizar no exterior, fazendo uso de pousadas, hotéis baratos e casas de veraneio ainda mais baratas. Não precisávamos de luxo, só de um lugar seguro e limpo para Lily.
Mas acho que o que nos fazia economizar mais era que nunca viajávamos para lugar nenhum como turistas. Não comprávamos lembrancinhas nem nada de que não precisássemos. Não estávamos ali para acompanhar visitantes em passeios com guias ou gastar dinheiro fazendo tudo o que quem planeja uma viagem de férias faz. Comprávamos só o necessário, e de vez em quando torrávamos algum dinheiro em comida boa ou num brinquedo novo para Lily, quando ela se cansava do que tinha.
E também cantávamos para ganhar um dinheirinho extra, às vezes, mas, com Lily, nunca nos apresentávamos juntos. Como não ousávamos nem pensar em deixar Lily aos cuidados de alguém, nem mesmo por alguns minutos, eu parei de cantar completamente, e Andrew tocou violão e cantou por uns tempos sozinho. Mas no fim ele parou também. Países estrangeiros. Estilos diferentes de música. Idiomas completamente diferentes. Não demoramos muito para perceber que nossa música não era tão eficaz nesses lugares como na nossa pátria.
Alguns meses depois do segundo aniversário de Lily, Andrew e eu decidimos que estava na hora de partir. Queríamos viajar o máximo possível antes que fosse preciso parar em algum lugar para que Lily pudesse começar a estudar. E eu estava pronta para conhecer a Europa. Assim, com o verão se aproximando, Portugal se tornou nosso destino seguinte.
Andrew e eu “crescemos” no dia em que descemos daquele avião na Jamaica. Foi isso que eu quis dizer quando falei que ficamos diferentes. Claro que Lily nos pôs bastante nos eixos quando nasceu, mas quando descemos do avião e sentimos a brisa nos nossos rostos, não só eu finalmente descobri que o ar é diferente mesmo em outros países, mas nós descobrimos que era real. Estávamos muito longe de casa com a nossa filha, e por mais que nos divertíssemos, daquele dia em diante, jamais poderíamos baixar a guarda.
Nós crescemos.
Andrew
41
EU PENSO MUITO na minha vida de antes, até antes de conhecer Camryn, e vejo que é meio assustador o quanto mudei. Eu era o que ela denomina um “galinha” no colegial. E, tudo bem, continuei meio galinha depois do colegial — ela sabe de todas as mulheres com as quais já transei. Das festas que eu frequentava. Sabe praticamente tudo a meu respeito. De qualquer forma, penso muito no meu passado, mas não sinto saudade. A não ser de vez em quando, contando lembranças da infância com meus irmãos, sinto aquela nostalgia da qual Camryn falava na nossa segunda vez em Nova Orleans.
Não me arrependo de nada que fiz no passado, por mais que tenha chutado o balde às vezes, mas tampouco faria de novo. Consegui sobreviver àquela vida e faturar uma linda esposa e uma filha que realmente não mereço.
Fiquei sabendo ontem que Aidan e Michelle, depois de dois filhos e anos de casamento, estão se divorciando. Odeio que estejam passando por isso, mas acho que nem todo mundo nasceu para ficar junto com alguém, como Camryn e eu. Eu me pergunto se eles não teriam conseguido se não se matassem tanto de trabalhar. Aquele bar consumia o meu irmão, e Michelle também era consumida pelo seu emprego. Camryn e eu conversamos sobre como eles pareciam estar se distanciando, já na primeira visita de Camryn, antes que Lily nascesse.
— Eles só trabalham — Camryn comentou uma noite, ano passado. — Trabalham, cuidam de Avery e Molly, veem TV e vão dormir.
Eu balancei a cabeça contemplativamente.
— É, que bom que a gente não acabou assim.
— Também acho.
Asher, por outro lado, tem um doce de garota chamada Lea. E me orgulho em dizer que um dia eles decidiram espontaneamente se mudar para Madri. Meu irmão caçula se deu muito bem profissionalmente, conseguindo um emprego de engenheiro de sistemas de informática que lhe permitia mudar de país. Ele não precisava ir. Poderia ficar em Wyoming, mas, pelo jeito, ele é mais parecido comigo do que eu pensava. Por sorte, Lea tem os mesmos interesses e a mesma determinação que ele; senão o relacionamento dos dois acabaria mais parecido com o de Aidan e Michelle do que com o meu com Camryn. E ouvi dizer que Lea ganha uma grana preta vendendo vestidos feitos à mão pela internet. Camryn pensou em tentar alguma coisa assim, até que se deu conta de que precisaria costurar.
Com eles morando em Madri, nós já tínhamos um lugar para ficar quando também fomos para lá. Asher insistia que não precisávamos pagar aluguel, mas nós pagamos assim mesmo. Camryn não queria ficar “na aba”, como ela mesma disse.
— Um dólar — Asher negociou, só para contentá-la.
— Não — Camryn rebateu. — Seis dólares e 84 centavos por semana, nem um centavo a menos.
Asher riu.
— Você é meio esquisita, mulher. Tudo bem. Seis dólares e 84 centavos por semana.
No início, só íamos ficar com meu irmão por umas semanas, mas uma noite, Camryn e eu tivemos uma conversa séria.
— Andrew, acho que talvez a gente devesse ficar aqui por uns tempos. Aqui em Madri. Ou talvez voltar pra Raleigh. Eu não quero, mas...
Eu olhei para ela, curioso, mas ao mesmo tempo era aparente, para mim, que estávamos pensando da mesma forma.
— Eu sei o que você tá pensando — admiti. — Não é tão fácil quanto a gente queria que fosse, viajar com Lily.
— Não, não é. — Ela olhou para longe, pensativa, e sua expressão ficou mais dura. — Você acha que a gente agiu certo? Indo com ela pra tantos lugares?
Finalmente, ela olhou para mim de novo. Pude ver pela sua expressão que ela torcia para que eu dissesse que sim, que agimos certo.
— Claro que sim — eu afirmei, com convicção. — Era o que a gente queria fazer quando partimos no primeiro dia. Não temos arrependimentos. Claro, precisamos fazer as coisas de outro jeito em nome da segurança dela, evitar vários lugares que queríamos visitar e ficar parados mais tempo do que queríamos para que ela não sofresse com mudanças bruscas, mas agimos certo.
Camryn sorriu suavemente.
— E talvez tenhamos despertado nela o amor pelas viagens. — Camryn fica vermelha. — Não sei...
— Não, acho que você tem razão.
— Então, o que você acha que devemos fazer?
Ficamos com Asher e Lea por três meses antes de partir de novo. Tínhamos uma última parada a fazer antes de voltar para os EUA: lá. Camryn finalmente admitiu o motivo de seu desejo persistente de ir para lá. Seu pai a levou para lá uma vez numa viagem de negócios, quando ela tinha 15 anos. Foram só ela e ele. E aquela foi a última vez que ela se sentiu sua garotinha. Eles passaram muito tempo juntos. Ele passou mais tempo com ela do que trabalhando.
— Tem certeza de que é uma boa ideia? — perguntei, antes de partirmos para Roma. — E se você voltar pra lá e estragar a lembrança, como a do bosque da sua infância?
— É um risco que eu tô disposta a correr — ela disse, pondo as roupas de Lily na nossa mala. — Além disso, não tô indo reviver aqueles seis dias com meu pai, vou pra lembrar aqueles seis dias com meu pai. Não tenho como estragar uma coisa que não lembro direito.
Quando chegamos lá, testemunhei Camryn lembrando tudo. Ela pegou Lily e se sentou com ela na escadaria da Piazza di Spagna, imagino que da mesma forma que seu pai fez quando a levou ali.
— A gente te ama muito — Camryn disse para Lily. — Você sabe disso, não sabe? — Ela apertou a mão de nossa filha.
Lily sorriu e beijou a mãe na bochecha.
— Eu te amo, mamãe.
Então Lily se sentou entre as pernas de Camryn enquanto a mãe passava os dedos pelo cabelo louro dela, fazendo uma trança e deixando-a sobre o ombro, como a dela.
Eu sorri e fiquei olhando, pensando num dia há tanto tempo:
— Vai ser um lance de amizade, acho — ela disse. — Sabe, duas pessoas fazendo uma refeição juntas.
— Ah — eu disse, sorrindo discretamente. — Então agora somos amigos?
— Claro — ela respondeu, obviamente pega desprevenida pela minha reação. — Acho que somos tipo amigos, pelo menos até Wyoming.
Eu estiquei o braço e lhe ofereci minha mão, e, relutantemente, ela apertou.
— Amigos até Wyoming, então — eu concordei, mas sabia que ela precisava ser minha. Mais do que até Wyoming. Para sempre seria suficiente.
Ainda pira minha cabeça pensar em como chegamos longe.
Depois de quase três anos na estrada, finalmente estava na hora de ir para casa.
Voltamos para Raleigh, para nossa humilde casinha. Natalie e Blake a desocuparam e foram morar do outro lado da cidade. Mais tarde, Lily começou a ir para a escola, e nos anos seguintes, fomos felizes, mas havia sempre uma parte de nós que parecia vazia. Vi minha garotinha se transformar numa linda jovem com sonhos e metas e aspirações na vida que rivalizam com os meus e de Camryn. Gosto de pensar que nós — Camryn e eu — levamos o crédito pelo que Lily se tornou. Mas, ao mesmo tempo, Lily é uma pessoa única, e eu acho que ela seria assim mesmo sem nossa ajuda.
Eu não poderia estar mais orgulhoso.
Parece que faz tanto tempo. E, bem, acho que faz. Mas, até hoje, lembro o dia em que conheci Camryn naquele ônibus no Kansas, algo ainda está tão nítido e vivo na minha mente que sinto que eu poderia estender a mão e tocar. E pensar que, se nós dois não tivéssemos partido como partimos, mandando a sociedade e seus julgamentos praquele lugar, jamais teríamos nos conhecido. Se Camryn se deixasse dominar pelo medo do desconhecido, poderíamos nunca ter tomado aquele avião para a Jamaica. Nós realmente vivemos nossas vidas da forma que nós queríamos viver, não da forma que o mundo esperava que vivêssemos. Corremos riscos, escolhemos o caminho fora do convencional, não deixamos a opinião dos outros sobre nossas escolhas atrapalhar nossos sonhos, e nos recusamos a continuar fazendo por tempo demais qualquer coisa que não nos agradasse. Claro, fazíamos o tempo todo coisas que não queríamos fazer, porque era necessário — trabalhamos em lanchonetes por algum tempo, por exemplo —, mas nunca deixamos nenhuma dessas coisas controlar nossas vidas. Encontramos uma saída, no fim das contas, em vez de nos deixarmos derrotar. Porque só temos uma vida. Temos só uma chance de fazê-la valer a pena. Nós pegamos essa chance e agarramos com unhas e dentes.
E acho que nos saímos bem pra caramba.
Sinceramente, não sei o que mais dizer. Não que nossa vida tenha acabado, agora que nossa história parece chegar ao fim. Não. Com certeza, está longe de terminar. Camryn e eu ainda temos tanta coisa a fazer, tantos lugares para ver, tantas regras da vida para desafiar.
Hoje é o primeiro dia do resto das nossas vidas. É um dia especial, para Lily, para nós, para tudo o que nós três representamos. Nossa história acabou, sim, mas nossa jornada não, porque nós vamos viver entre o agora e o sempre até morrer.
Epílogo
Quinze anos depois
Lily
— Lily Parrish! — A sra. Morrison chama o meu nome do palco montado no auditório. Ouço meus amigos e parentes gritando na multidão, depois assobios e palmas.
Eu seguro meu capelo sobre a cabeça enquanto subo os degraus de madeira. Ele não se encaixa bem. Papai tirou sarro de mim, dizendo que minha cabeça tem um formato esquisito e que isso é culpa de mamãe, porque não posso ter puxado dele.
Enquanto ando pelo palco, mais assobios, gritos e palmas enchem o auditório. Meu coração está batendo forte. Estou tão emocionada. Acho que estou com um sorriso enorme há uns vinte minutos.
A diretora Hanover me entrega o meu diploma e eu o recebo. As palmas ficam mais altas. Olho para meus pais na primeira fila, de pé ao lado das cadeiras, com os olhos brilhando e animados pela empolgação. Minha mãe me manda beijos. Papai pisca para mim e bate palmas. Estão tão orgulhosos que tenho até vontade de chorar. Eu não estaria aqui, se não fosse por eles. Não poderia pedir pais melhores.
Depois que a cerimônia de formatura acaba, eu e meu namorado, Gavin, abrimos caminho na multidão até meus pais.
Mamãe me abraça forte e beija a minha cabeça.
— Você conseguiu, Lily! — Ela me aperta. — Eu tô tão orgulhosa! —Ouço o choro em sua voz.
— Mãe, não chora. Vai borrar seu rímel.
Ela passa os dedos embaixo dos olhos.
Papai me abraça a seguir.
— Parabêns, bebê.
Eu fico na ponta dos pés e beijo sua bochecha.
— Obrigada, papai. — Então ele me puxa para o seu lado e põe a mão na minha cintura, de um jeito protetor.
Meu pai fuzila Gavin com os olhos, examinando-o de alto a baixo, como sempre fez nestes dois anos que estamos juntos. Mas, desta vez, é tudo brincadeira. Em parte, pelo menos. Papai levou um ano para sair do pé de Gavin e confiar nele o suficiente para nos deixar sair sem ele ou mamãe junto. Constrangedor. Mas o excesso de proteção nunca conseguiu afugentar Gavin, e acho que só isso já deu aos meus pais mais motivos para respeitá-lo.
Ele é realmente um ótimo sujeito, e acho que no fundo meus pais sabem disso.
— Parabéns, Gavin — meu pai cumprimenta, apertando a mão dele.
— Obrigado. — Gavin ainda fica meio apavorado com meu pai. Eu acho isso bonitinho.
Meus pais dão uma enorme festa de formatura para mim em casa, e vem todo mundo. Todo mundo mesmo. Tem gente aqui que não vejo há anos: tio Asher e tia Lea vieram da Espanha! O tio Aidan também veio, com meus primos Avery e Molly e sua nova esposa, Alice. Minhas avós, Marna e naná Nancy (ela se recusa a ser chamada de VÓ) também vieram. A naná não está muito bem. Ela tem esclerose múltipla.
— Meu Deus, garota, você vai me abandonar! — exclama minha melhor amiga, Zoey, vindo me encontrar. Nós crescemos juntas, como a mãe dela, Natalie, cresceu com a minha mãe aqui em Raleigh.
— Pois é! Odeio isso, mas você sabe que vou te visitar! — Eu a abraço forte.
— É, mas vou sentir falta de você pra caramba.
— Já falei — respondo —, você sempre pode se mudar pra Boston pra ficar mais perto.
Ela revira os olhos, o cabelo caindo sobre os ombros quando ela se senta num banquinho da cozinha.
— Bem, não só eu não vou me mudar pra Boston com você, mas pelo jeito também não vou ficar na Carolina do Norte por muito tempo mais.
— Como assim? — pergunto, surpresa.
Eu me sento no banquinho ao lado dela. Meu tio Cole entra na cozinha com algumas garrafas vazias de cerveja nas mãos. Ele joga tudo no lixo.
Zoey suspira, apoia o cotovelo no balcão e começa a enrolar alguns fios de cabelo nos dedos.
— Meus pais vão se mudar pra São Francisco.
— Quê? Sério? — Mal posso acreditar.
— Sim.
Não sei dizer se ela está decepcionada ou simplesmente ainda não sabe o que pensar.
— Bom, mas isso é muito legal — eu digo, esperando encorajá-la. — Você não quer se mudar?
Zoey tira o braço do balcão e cruza as pernas.
— Nem sei o que eu acho, Lil. É muito longe de casa. Não é no fim da rua.
— É verdade, mas é São Francisco! Eu adoraria ir pra lá.
Ela sorri um pouco.
Tio Cole, alto e misterioso como sempre, pega mais três garrafas de cerveja da geladeira e as segura entre os dedos pelos gargalos. Ele sorri para mim ao passar e volta para a sala de estar cheia de gente.
Ele é irado. Assim que chegou, me deu um cartão de parabéns com duzentos paus dentro.
— Zoey, eu acho ótimo. E, sinceramente, mal posso esperar pra visitar minha melhor amiga na Califórnia. É. Dá gosto até falar isso. Califórnia. — Eu faço um gesto dramático com as mãos.
Ela ri.
— Vou sentir muito a sua falta, Lil.
— Eu também.
A mãe dela entra na cozinha, com o pai, Blake, logo atrás.
— Já contou a novidade pra Lily? — a mãe dela pergunta, mexendo na geladeira.
— Sim, acabei de contar.
— O que você acha, Lily? — a mãe dela pergunta.
O pai de Zoey beija a cabeça dela, pega uma cerveja da mãe e sai, provavelmente para fumar.
— Tô empolgada por ela — respondo. — Eu vou me mudar pra Boston pra fazer faculdade. Ela tá mudando pra Califórnia. Podemos não estar mais juntas do jeito que crescemos, mas tem alguma coisa em não ficar parada no mesmo lugar pra sempre que faz tudo parecer certo.
— Você com certeza é filha de Andrew e Camryn Parrish, não dá pra negar — a mãe dela diz, sorrindo.
Eu sorrio orgulhosamente e pulo do banquinho, voltando com ela e Zoey para a sala de estar.
— Um brinde! — meu pai diz no meio da sala, levantando sua cerveja. Ele olha para mim. Temos os mesmos olhos verdes. — À nossa garotinha, Lily. Que você possa mostrar a todos na faculdade como se faz!
Todos bebem.
— A Lily!
Eu passo o dia todo, até anoitecer, com meus amigos e parentes e, claro, Gavin, que eu amo tanto. Somos tão parecidos. Nos conhecemos logo depois que ele se mudou do Arizona para cá. O armário dele no colégio ficava perto do meu, e ele acabou fazendo quase todas as aulas comigo. Zoey foi pra cima dele primeiro, o que não é surpresa, do jeito que ela é namoradeira. Lembro que ela me disse, no primeiro dia de aula dele:
— Ele vai ser meu. Espera pra ver. — E eu nunca tive nenhuma intenção de interferir, mas pelo jeito Zoey era demais para alguém como Gavin. Mas acho que talvez eu possa dar crédito a Zoey por Gavin e eu acabarmos juntos. Se não fosse por ela, talvez ele não tivesse nada que o obrigasse a falar comigo para fugir dela.
Zoey o esqueceu assim que ele deixou óbvio que era em mim que ele estava interessado.
E é muito esquisito, também, porque Gavin e eu somos tão parecidos que é quase como se o destino tivesse nos unido. Nós dois queríamos fazer a mesma faculdade. Gostamos das mesmas músicas, filmes, livros e seriados de TV. Ambos adoramos arte e história e já nos perguntamos, em momentos diferentes da vida, como seria viajar pela África. Gavin se interessa por arqueologia. Eu me interesso pela preservação de artefatos arqueológicos.
Gavin não foi meu primeiro namorado nem foi o primeiro que beijei, mas foi meu primeiro em todo o resto. Não consigo imaginar passar a vida com ninguém além dele.
Espero que sejamos como meus pais. É, torço mesmo por isso.
~~~
Depois da formatura, passei o verão com meus pais. E não desperdicei um minuto desse tempo com eles, porque eu sabia que seria curto. No outono, me mudei pra faculdade, e mamãe e papai — bem, eles tinham planos tão grandiosos quanto os meus. Acho que eles fizeram um excelente trabalho me criando, mas eu sabia que quando me mudasse e começasse a viver por minha conta na faculdade e com Gavin, meus pais partiriam para realizar o sonho de suas vidas.
Estou tão feliz por eles. Sinto falta deles todo dia, mas estou tão feliz.
Eles nunca se esquecem de me mandar cartas — não e-mails, cartas escritas à mão mesmo. Guardo todas elas, desde as enviadas da Argentina, Brasil, Costa Rica e Paraguai, até as que chegaram da Escócia, Irlanda, Dinamarca e lugares de toda a Europa. Adoro ter pais assim, tão livres de espírito, motivados e apaixonados pelo mundo. Eu os admiro. Pelas histórias que eles me contam da época em que eram um pouco mais velhos do que eu, percebo que a vida deles, mesmo antes que se conhecessem, começou complicada, mas no fim tudo se encaixou. Minha mãe me falou do seu passado, de quanto ela era depressiva. Não entrou em muitos detalhes, e eu sempre soube que havia coisas que ela não contava. Mas ela queria que eu soubesse que ela e meu pai sempre me apoiarão, não importa o que aconteça ou que decisões eu tome.
Acho que ela temia que eu tomasse as mesmas decisões erradas que ela tomou em alguns momentos difíceis, mas, sinceramente, não consigo me imaginar infeliz.
Mamãe também me contou como conheceu papai. Num ônibus de viagem, imagine. Eu só ri. Mas sempre que penso neles e nas coisas que enfrentaram juntos, não consigo deixar de ficar admirada.
De acordo com mamãe, meu pai era um pouco selvagem, naquela época. Ela disse que o fato de ele ser assim foi o principal motivo de sua demora em aceitar Gavin. Ela também não entrou em detalhes sobre isso, mas... caramba, meu pai devia ser mesmo... Eca! Deixa pra lá.
Mas eu aprendi tanto com meus pais. Eles me ensinaram como a vida é preciosa e que nunca se deve deixar passar em branco um segundo dela, porque qualquer segundo pode ser o último. Meu pai sempre me disse para ser eu mesma, defender aquilo em que acredito, e dizer o que eu penso, não o que os outros pensam. Ele disse que as pessoas vão tentar me tornar como elas, mas para eu não cair nessa, porque quando eu der por mim, serei como elas. Minha mãe, bem, fazia questão que eu soubesse que há muito mais coisas no mundo além de empregos ruins, contas a pagar e se tornar um escravo da sociedade. Ela fez questão que eu entendesse que não importava o que qualquer um dissesse, eu não precisava viver de um jeito que eu não quisesse. Eu escolho o meu caminho. Eu torno minha vida memorável, para que ela não suma no meio de tantas outras vidas vazias ao meu redor. No fim das contas, a escolha é minha e somente minha. Vai ser difícil às vezes, posso ter que fritar hambúrgueres e limpar privadas por algum tempo, vou perder pessoas que amo, e nem todo dia será brilhante como o anterior. Mas contanto que eu nunca deixe as dificuldades me abaterem completamente, um dia vou fazer exatamente o que eu quero. E não importa o que aconteça, ou quem eu perca, não vou ficar triste para sempre.
Mas acho que a principal coisa que aprendi dos meus pais foi a amar. Eles me amam incondicionalmente, é claro, mas falo do modo como se amam. Conheço muitos casais casados — a maioria dos pais dos meus amigos ainda está casada —, mas nunca vi duas pessoas mais devotadas uma à outra do que meu pai e minha mãe. Eles foram inseparáveis por toda a minha vida. Só me lembro de umas poucas discussões entre os dois, mas nunca os ouvi brigar. Nunca. Não sei o que torna o casamento deles tão forte, mas espero que, seja o que for, eu tenha herdado um pouco dessa magia.
Gavin entra no meu quarto, fechando a porta atrás de si. Ele se senta na beira da minha cama.
— Outra carta dos seus pais?
Eu balanço a cabeça.
— Onde eles estão, agora?
— No Peru — digo, olhando de novo para a carta. — Eles adoram aquele lado do mundo.
Sinto a mão dele no meu joelho para me consolar.
— Você tá preocupada com eles.
Eu balanço a cabeça mais uma vez, lentamente.
— Tô, como sempre, mas me preocupo mais quando eles estão lá. Alguns lugares são muito perigosos. Não quero que eles acabem como...
Gavin segura meu queixo com a mão.
— Eles vão ficar bem, você sabe que vão.
Talvez ele tenha razão. Meus pais já estão mochilando pelo mundo há dois anos, e o pior perigo que encontraram — bem, pelo que me contam — foi que meu pai foi roubado uma vez, e outra vez houve um problema com os passaportes deles. Mas tudo pode acontecer, especialmente com os dois sozinhos assim, só com as mochilas na estrada.
Pelo jeito, puxei muito à minha mãe na tendência para me preocupar.
— Daqui a dois anos, eles vão estar preocupados assim com você — Gavin acrescenta, e em seguida beija meus lábios.
— Acho que sim — digo, sorrindo para ele, que se levanta da cama. — Provavelmente minha mãe nem vai dormir mais, imaginando que algum leão me devorou.
Gavin abre um sorriso torto.
Seis meses atrás, decidimos que queremos mesmo ir para a África depois da faculdade. Quando nos conhecemos, não era bem uma ideia, e sim uma coisa de que falamos numa conversa casual. Mas agora se tornou nossa meta. Pelo menos por enquanto. Muita coisa pode mudar em dois anos.
Eu dobro a carta, guardo no envelope desbotado e deixo sobre o criado-mudo.
Gavin estende a mão para mim.
— Pronta? — ele pergunta, e eu seguro sua mão e me levanto com ele.
Saio do quarto para comemorar o aniversário de Gavin com nossos amigos, e antes de sair para o corredor, olho mais uma vez para a carta, antes de fechar a porta devagar atrás de mim.
Andrew
30
EU ANINHO O rosto dela em minhas mãos.
— A gente não precisa entender tudo isso já — digo, beijando-a nos lábios. — Eu tô fedendo a bosta de vaca e preciso de um banho. Espero que isso não seja brochante demais e que você queira tomar banho comigo.
A expressão pensativa de Camryn se dissolve no sorriso que eu queria provocar.
Eu a pego no colo, segurando sua bunda, e ela cruza as pernas ao redor da minha cintura, com os braços nos meus ombros. Assim que sinto sua língua quente na minha boca, começo a levá-la para o chuveiro comigo, nós dois já tirando as camisetas antes de passar pela porta do banheiro.
~~~
O primeiro lugar aonde vamos depois que escurece é o Old Point Bar. Ao entrarmos somos recebidos por uma Carla empolgada, que praticamente remove dois caras grandões do caminho aos empurrões para me alcançar, de braços abertos. Nós nos abraçamos.
— É tão bom ver você de novo! — Carla exclama, por cima da música alta. — Deixa eu te olhar! — Ela dá um passo para trás e me examina de alto a baixo. — Continua bonitão como sempre.
Ela se vira para Camryn, agora. Depois olha pra mim e novamente para Camryn.
— Hã-hã, eu sabia que ele não ia largar de você. — Ela puxa Camryn para um abraço apertado. — Eu falei pro Eddie, depois que vocês foram embora — Carla continua, olhando de um para o outro —, que ela tinha vindo pra ficar. Eddie concordou, é claro. Ele disse que a próxima vez que você viesse pra cá, Camryn estaria com você. Tentou me convencer a apostar dinheiro nisso. — Ela aponta para mim e pisca. — Você sabe como Eddie era.
Em dois segundos, sinto meu coração afundar até os pés.
— “Era”? — pergunto, desconfiado, com medo da resposta dela.
Carla não deixa de sorrir, um pouco, talvez, mas quase não deixa de sorrir.
— Sinto muito, Andrew, mas Eddie morreu em março. Dizem que foi um derrame.
Eu fico sem ar e me sento num banquinho do bar que está ao meu lado. Percebo Camryn chegando perto de mim. Só consigo olhar para o chão.
— Ah, não, não faz isso, tá me ouvindo? — Carla pede. — Você conhecia Eddie melhor do que ninguém. Ele não chorou nem quando perdeu o filho. Lembra? Tocou guitarra a noite toda em homenagem ao Robert.
A mão de Camryn segura a minha. Eu não ergo os olhos até que Carla dá a volta no balcão e pega dois copos e uma garrafa de uísque da prateleira de vidro atrás dela. Ela põe os copos na minha frente e começa a servir.
— Ele sempre dizia — Carla continua — que, se morresse antes da gente, ia preferir ser acordado do Outro Lado por pessoas dançando sobre o túmulo dele, e não chorando em volta. Agora bebe. O uísque favorito dele. Eddie não iria querer outra coisa.
Carla tem razão. Mesmo assim, e mesmo sabendo que Eddie detestaria que qualquer um chorasse por ele, não consigo fechar o buraco sem fundo que sinto no coração, agora. Olho para Camryn ao meu lado e vejo que ela está tentando não chorar, com os olhos rasos d’água. Mas ela sorri, e sinto sua mão apertando a minha de leve. Camryn pega um dos uísques que Carla serviu e espera que eu pegue o outro. Estendo a mão sobre o balcão e seguro o copo.
— Ao Eddie — digo.
— Ao Eddie — Camryn repete.
Nós batemos os copos, sorrimos um para o outro e bebemos.
Nosso momento sério termina rapidamente quando Camryn bate o copo de boca para baixo no balcão. Ela faz a cara mais enojada e chocada que já vi uma garota fazer e solta um som como se sua garganta estivesse pegando fogo.
Carla ri e tira o copo do balcão, limpando o lugar com um trapo.
— Eu não falei que era bom, só falei que era do Eddie.
Até eu preciso admitir que aquela bosta é horrorosa. Engasga-gato horroroso da porra. Não sei como Eddie aguentou bebê-lo todos esses anos.
— Vocês dois ainda cantam juntos? — Carla pergunta.
Camryn se senta no banquinho vazio ao meu lado e responde primeiro: — Sim, a gente tem cantado muito.
Carla olha para nós dois, desconfiada, pegando meu copo e guardando-o sob o balcão.
— Têm cantado muito há quanto tempo? E por que não vi vocês por aqui antes?
Eu suspiro fundo e apoio as mãos no balcão para ficar mais confortável.
— Bom, depois que a gente saiu daqui, fomos pra Galveston e eu meio que fui parar no hospital por causa daquele tumor.
— Você meio que foi parar no hospital? — Carla repete, e eu me pergunto se a espertinha não é parente distante daquele policial da Flórida. Ela aponta severamente para mim, mas está falando com Camryn. — A gente falou pra ele ir pro médico, mas ele não ouve.
— Vocês também sabiam? — Camryn pergunta.
Carla balança a cabeça.
— A gente sabia, sim. Mas esse cara é teimoso feito uma mula.
— Nisso eu concordo com você — Camryn diz, com um traço de riso na voz.
Eu balanço a cabeça e me afasto novamente do balcão.
— Bom, antes que vocês duas juntem forças contra mim — digo —, obviamente eu tô vivo. Depois, Camryn e eu tivemos uns problemas sérios, mas conseguimos superar numa boa. — Eu sorrio para ela com ternura.
— Parece que vocês fecharam um ciclo — Carla diz e chama a nossa atenção ao mesmo tempo. — Espero que toquem esta noite. Eddie adoraria estar no palco com vocês pela última vez.
Camryn e eu nos entreolhamos rapidamente.
— Eu topo — ela diz.
— Eu também.
Carla bate palmas.
— Tudo bem, então! Podem se apresentar a hora que quiserem. A única banda que ia tocar hoje cancelou.
Ficamos no balcão com Carla por uma hora antes de finalmente subir ao palco. E embora o bar não esteja muito cheio hoje, tocamos para uma plateia animada. Começamos com nosso dueto tradicional, “Barton Hollow”. Parece adequado que seja o primeiro número, já que foi em Old Point que o tocamos juntos pela primeira vez. Tocamos várias canções antes de finalmente chegar a “Laugh, I Nearly Died”, que eu anuncio antes ser em homenagem a Eddie Johnson. Canto sem Camryn e com um substituto de Eddie, um creole simpático chamado Alfred.
Pouco depois da meia-noite, Camryn e eu nos despedimos de Carla e do Old Point Bar. Mas, bem ao estilo de Nova Orleans, não vamos para a cama cedo, ficamos na rua e curtimos feito gente grande. Passamos primeiro no d.b.a., depois no bar onde Camryn me ensinou como se joga bilhar, naquela noite. Já faz quase um ano que estivemos ali e fomos jogados na rua depois de uma briga; espero que não se lembrem de mim. Às duas da manhã, depois de vários jogos e vários drinques, como da última vez, estou ajudando Camryn a entrar no elevador do hotel, porque ela mal se aguenta em pé.
— Você tá bem, amor? — pergunto, rindo, ajeitando meu braço na sua cintura.
Sua cabeça balança de um lado para o outro.
— Não, não tô bem. E é lógico que você ri.
— Aaah, desculpa — eu digo, mas sou sincero só em parte. — Não tô rindo de você, só imaginando se vamos dormir ao lado da privada de novo.
Ela geme, embora eu ache que é seu jeito de protestar comigo, e não de manifestar desconforto. Eu a seguro melhor quando a porta do elevador se abre e ando com ela pelo corredor até nosso quarto. Eu a levo até a cama, tiro toda a sua roupa, menos a calcinha, e a ajudo a vestir um top. Ela encosta a cabeça no travesseiro e eu começo a cobri-la com o lençol. Mas aí lembro que, bêbada assim, qualquer coisa além da calcinha e do top vai fazê-la suar muito, levando-a a perder todo o álcool que bebeu esta noite.
Só por segurança, pego o cestinho de lixo de perto da TV e o coloco ao lado da cama, no chão. Depois vou para o banheiro, molho um pano com água fria e torço na pia. Mas quando volto para a cama para limpar o rosto e a testa de Camryn, ela já está capotada.
~~~
Quando acordo na manhã seguinte, fico surpreso ao ver que ela acordou antes de mim.
— Bom dia, amor — ela diz tão baixinho que é quase um sussurro.
Abrindo os olhos, eu a vejo deitada de lado, virada para mim, com o rosto encostado no travesseiro. Seus olhos azuis estão quentes e vibrantes, não com o olhar cansado de ressaca que eu esperava.
— Por que tá acordada tão cedo? — pergunto, passando os dedos na sua bochecha.
— Não sei — ela diz. — Eu mesma fiquei um pouco surpresa.
— Como se sente?
— Tô ótima.
Passo o braço em sua cintura e puxo seu corpo para junto do meu, trançando nossas pernas nuas. Ela passa a ponta do dedo nos músculos definidos do meu peito. Seu toque faz minha pele ficar arrepiada.
Estudo seus olhos, sua boca e deixo as pontas dos meus dedos seguirem cada caminho que meus olhos fazem. Eu a acho tão linda. Linda pra cacete. Ela passa seus dedos nos meus e depois os beija, um por um, e aproxima ainda mais seu corpo. Algo está diferente nela.
— Tem certeza de que você tá bem? — pergunto.
Um sorriso terno aquece seus olhos e ela balança a cabeça. Então encosta os lábios nos meus, apertando os seios com força no meu peito. Seus mamilos estão duros. Eu fico de pau duro antes mesmo de sentir sua mão segurando minha ereção. Ela lambe a ponta da minha língua antes de fechar a boca ao redor da minha, e eu abraço seu corpo num gesto possessivo. Ela se aperta contra mim lá embaixo, com a maciez de sua pele e sua umidade que sinto tão facilmente através da calcinha fina de algodão. Sem interromper o beijo faminto, enfio os dedos nos lados de sua calcinha e a tiro. Empurro o quadril contra ela, apertando meu pau inchado no seu calor.
Eu rolo por cima dela e a olho nos olhos. Mas não digo uma palavra. Não digo o quanto ela está molhada, nem a obrigo a me olhar. Não a domino com palavras, gestos ou exigências. Só olho em seus olhos e sei que este é um momento em que palavras não são necessárias.
Beijo seus lábios suavemente de novo, os cantos de sua boca, o contorno de seu maxilar. Abrindo-lhe os lábios com a língua, eu a beijo muito suavemente e seguro meu pau, esfregando-o nela. Sinto suas ancas se aproximarem de mim, me comunicando o quanto ela me quer dentro de si. Não quero provocá-la desta vez, nem negar o que ela precisa, por isso enfio só um pouco e a vejo perder o controle do seu olhar, seus olhos tremendo, seus lábios se abrindo. Forçando o pau mais para dentro, sinto suas pernas tremendo em volta de mim. Ela geme baixinho, mordendo o lábio inferior. Eu a beijo de novo e finalmente meto fundo nela, até onde consigo. Mantenho o pau ali, curtindo as convulsões de suas pernas, o tremor de suas mãos que se agarram em mim, seus dedos afundando nas minhas costas.
Eu entro nela com mais força, mexendo os quadris. Uma fina camada de suor começa a se formar nos nossos corpos. Quero lambê-lo, mas não paro. Não consigo parar...
Levanto o corpo o suficiente para que nossos peitos não se toquem e pego uma de suas pernas das minhas costas, segurando-a atrás do joelho, empurrando-a para baixo para poder ir mais fundo. Penetro nela com mais força, empurrando a coxa contra a cama. Ela diz meu nome, suas mãos agarrando meu peito, mas ela me larga e afunda os dedos no alto do colchão, acima de sua cabeça. Eu olho com desejo seus seios balançando para cima e para baixo sobre seu peito e meto com mais força ainda, me curvando para chupar seus mamilos e depois mordê-los.
Minha visão fica embaçada. Ela geme alto e depois começa a murmurar. O murmúrio me deixa louco. Eu largo sua coxa e sinto meu corpo se aproximando dela de novo, seus seios esmagados no meu peito, seus braços apertando forte minhas costas. Sinto suas unhas cravadas dolorosamente na minha carne. Ela movimenta os quadris contra os meus, e minha boca bate com força na dela. Quando começo a gozar, meu beijo fica mais faminto. Tremores percorrem meu corpo, eu gemo na sua boca e minhas arremetidas violentas se reduzem a um rebolado suave. Camryn prende meu lábio inferior nos dentes e eu a beijo com delicadeza, ainda balançando os quadris contra ela até terminar.
Eu desabo sobre o peito dela. Minha pulsação irregular tenta voltar ao ritmo certo, e sinto o sangue latejando nos dedos das mãos e dos pés e castigando a veia da minha têmpora. Encosto a lateral do rosto em seus seios nus, de boca aberta, minha respiração escapando irregular dos lábios. Seus dedos atravessam meu cabelo úmido.
Ficamos juntos assim ali a manhã toda, sem dizer uma palavra.
31
NÃO ME LEMBRO de ter pegado no sono. Quando abro os olhos, o relógio ao lado da cabeceira diz que são 11h10. E percebo que me sinto nu não por estar sem roupa, mas sim porque Camryn não está na cama comigo.
Ela está sentada na sacada da janela, de short e camiseta, sem sutiã. Está olhando pela janela.
— Acho que a gente devia ir embora — ela anuncia, sem tirar os olhos da brilhante paisagem de Nova Orleans.
Eu me sento na cama com o lençol enrolado na cintura.
— Quer ir embora de Nova Orleans? — pergunto, confuso. — Mas você não disse que a gente foi embora cedo demais, da outra vez?
— Sim — ela diz, mas ainda sem se virar. — Da primeira vez a gente foi embora cedo demais, mas não podemos ficar aqui mais tempo, agora, pra compensar.
— Mas por que você quer ir embora? A gente só ficou um dia.
Ela se vira para me encarar. Há algo como sentimento ou firmeza em seus olhos, mas não consigo saber qual dos dois, ou se são os dois.
Depois de uma longa hesitação, ela diz:
— Andrew, sei que pode parecer bobagem, mas acho que se a gente ficar aqui... eu...
Eu me levanto da cama e visto a cueca que encontro no chão.
— O que tá acontecendo? — pergunto, me aproximando dela.
Ela olha para mim.
— Eu só acho que... bom, quando a gente chegou aqui, ontem, eu só conseguia pensar no que este lugar significava pra gente julho passado. Me dei conta de que eu ficava imaginando os momentos que passaram, tentando revivê-los...
— Mas não são exatamente os mesmos — digo, tendo uma ideia.
Ela leva um segundo, mas finalmente diz, balançando um pouco a cabeça:
— É. Acho que o problema é que este lugar é uma lembrança tão importante... Porra, Andrew, eu nem sei o que tô dizendo! — Sua expressão pensativa se dissolve em frustração.
Eu puxo uma cadeira da mesa diante da janela, me sento, me debruçando para a frente e pondo as mãos fechadas entre os joelhos, e olho para ela. Começo a acrescentar algo à sua explicação, mas ela é mais rápida.
— Talvez a gente nunca mais devesse voltar aqui.
Eu não esperava que ela dissesse isso.
— Por quê?
Ela aperta as palmas das mãos na sacada para erguer o corpo, com os ombros rígidos e as costas encurvadas. A confusão e a incerteza começam a desaparecer de seu rosto à medida que os segundos passam e ela começa a entender.
— Tipo, sabe, não importa o que você faça, mesmo se tentar reproduzir uma experiência em cada detalhe, ela nunca vai ser do jeito que foi quando aconteceu naturalmente da primeira vez. — Ela olha pelo quarto, pensativa. — Quando eu era criança, Cole e eu sempre brincávamos no bosque atrás da nossa velha casa. São minhas melhores lembranças. A gente construiu uma casa na árvore lá. — Ela me olha e ri um pouco, expirando. — Bom, não era bem uma casa na árvore, só umas tábuas pregadas no meio de dois galhos. Mas era a nossa casa na árvore, e tínhamos orgulho dela. E a gente brincava nela e naquele bosque todo dia depois da aula. — Seu rosto se ilumina quando ela lembra esse momento de sua infância. Mas então seu sorriso começa a desaparecer. — A gente se mudou de lá pra casa onde minha mãe mora agora, e eu sempre pensei naquele bosque, na nossa casa na árvore e nos momentos divertidos que passamos juntos ali. Eu ficava sentada sozinha no meu quarto, ou então tava dirigindo pra algum lugar, e me perdia tanto nessas lembranças que conseguia sentir as mesmas emoções, exatamente como senti há tantos anos. — Ela põe a mão no peito, com os dedos abertos. — Eu voltei pra lá um dia — ela continua. — Fiquei tão viciada naquela nostalgia que achei que poderia intensificar a sensação se eu fosse pra lá, se ficasse no lugar onde ficava a casa na árvore, se me sentasse no chão, no lugar onde me sentava e riscava o chão com um pauzinho, deixando mensagens secretas para Cole ler quando chegava antes dele. Mas não foi a mesma coisa, Andrew.
Eu a observo e a escuto atentamente.
— Não foi a mesma coisa — ela repete com voz distante. — Fiquei tão decepcionada. E parti naquele dia com um buraco no coração ainda maior do que aquele que eu tinha quando fui pra lá tentar preenchê-lo. E todo dia depois disso, sempre que tento visualizar tudo aquilo, como eu fazia antes, não consigo mais. Eu destruí essa lembrança voltando lá. Sem perceber até que fosse tarde demais, eu substituí a lembrança pelo vazio daquele dia.
Eu conheço exatamente essa sensação de nostalgia. Acho que todos a sentem em algum momento de suas vidas, mas não explico nem conto minhas próprias experiências com ela. Em vez disso, continuo a escutar.
— A manhã toda fiquei enganando meu cérebro, tentando convencê-lo de que não estamos realmente neste quarto. Que o bar aonde a gente foi ontem não era o Old Point. Que a notícia triste sobre Eddie foi só um sonho que eu tive. — Ela me olha nos olhos. — Quero ir embora antes de destruir esta lembrança também.
Ela tem razão. Está coberta de razão.
Mas estou começando a me perguntar se...
— Camryn, por que você tava tentando reviver aquilo? — Odeio o que vou dizer a seguir. — Você não tá feliz com as coisas como estão? Com a gente?
Sua cabeça se ergue bruscamente, seus olhos incrédulos. Mas então seu semblante relaxa e ela diz:
— Meu Deus, não é isso, Andrew. — Ela se afasta da sacada e entra no meio das minhas pernas abertas. — Não é nada disso. Acho que foi só porque a gente veio pra cá que eu comecei, no meu subconsciente, a tentar recriar uma das experiências mais memoráveis da minha vida. — Ela apoia as mãos nos meus ombros, e eu seguro os lados de sua cintura, olhando para ela. Não poderia estar mais aliviado pela sua resposta.
Sorrio, me levanto com ela e digo:
— Bom, sugiro que a gente suma daqui antes que seu cérebro descubra que você tá zoando com ele.
Ela dá uma risadinha.
Eu me afasto dela e imediatamente começo a jogar nossas coisas nas mochilas. Depois aponto para o banheiro.
— Não esquece nada. — Seu sorriso aumenta e ela corre imediatamente para o banheiro. Em poucos minutos frenéticos, nossas malas estão feitas. Temos duas mochilas, uma guitarra e um violão, e sem olhar para trás, saímos do quarto. Nenhum dos dois olha nem de relance para a porta do quarto ao lado, que não ocupamos desta vez. Quando chegamos ao saguão, vou até o balcão da recepção e peço reembolso pela semana que paguei adiantado. A recepcionista pega meu cartão de crédito e faz o estorno enquanto eu entrego a chave do quarto.
Camryn espera impacientemente ao meu lado.
— Para de olhar pras coisas — exijo, sabendo que ela está pondo sua lembrança em risco.
Ela ri baixinho e fecha os olhos com força por um momento.
— Obrigada por se hospedarem no Holiday Inn Nova Orleans — a recepcionista diz, quando nos afastamos do balcão. — Esperamos vê-los de volta.
— Holiday Inn? — eu finjo. — Não, este é o... Embassy Suites de... Gulfport. É, aqui é o Mississippi. Qual o seu problema, moça?
A funcionária faz uma careta e arregala os olhos, mas não responde, e nós saímos do prédio.
Camryn entra na brincadeira quando saímos e começamos a pôr tudo no Chevelle:
— Sugiro que a gente passe reto por Nova Orleans, quando chegar na Louisiana.
Fingir que estamos num lugar diferente não é tão difícil quanto pensei que seria, na verdade.
— Combinado — digo, fechando a porta do meu lado. — A gente pode passar reto por Galveston, também, se você quiser.
— Não, precisamos visitar sua mãe — ela diz. — Depois podemos ir pra qualquer lugar.
Eu engato a marcha e digo, antes de sair do estacionamento:
— Mas isso não impede que a gente pare em algum lugar a caminho de Galveston.
Ela estufa os lábios, balançando a cabeça afirmativamente.
— É verdade. — Em seguida, me olha como que dizendo: Agora vamos embora daqui.
~~~
Pegamos o caminho mais longo saindo de Nova Orleans e vamos para noroeste passando por Baton Rouge e Shreveport, e finalmente cruzamos a divisa do Texas e chegamos a Longview. Paramos para abastecer em Tyler e dirigimos de lá até Dallas, onde Camryn insiste em parar no West Village para comprar um “chapéu de vaqueira di verdadi” (suas palavras, não minhas).
— Num dá pra viajá pelo Texas sem tá vistida de texana! — ela disse, antes que eu concordasse em levá-la.
Eu não uso chapéu nem botas de vaqueiro, mas devo dizer que o visual fica bem nela.
E paramos por uma noite em La Grange, onde tomamos uns drinques e assistimos à apresentação de um ótimo grupo de country-rock. E na noite seguinte vamos pro Gilley’s, onde Camryn monta El Torro, o touro mecânico, com aquele chapéu sexy de vaqueira, é claro. E mais tarde, quando voltamos para o hotel, como sou um puta dum tarado, finjo que sou o touro mecânico e deixo Camryn me montar. Usando o chapéu de vaqueira, naturalmente.
Dois dias depois, nos vemos a cerca de uma hora de Lubbock, parados no acostamento, com um pneu estourado. Acho que eu deveria ter verificado os quatro naquele posto de gasolina em Tyler.
— Que bosta, amor — eu reclamo, agachado perto do pneu estraçalhado. — Não tenho outro estepe.
Camryn se apoia na lateral do carro, cruzando os braços sobre o peito. O suor brilha em seu rosto e na pele do decote. Está um calor do cacete. Não há nenhuma árvore nem abrigo de espécie alguma num raio de quilômetros. Estamos rodeados por uma paisagem quase completamente plana e estéril de terra batida. Já faz muito tempo que não vou tão para o interior do Texas, e estou começando a me lembrar do motivo.
Fico de pé e me sento no capô do carro.
— Me dá seu celular — digo.
— Vai chamar um guincho? — ela pergunta, depois de pegar o celular do banco da frente e entregá-lo na minha mão.
Passo o dedo pelo display, virando duas telas para encontrar o aplicativo das Páginas Amarelas.
— É a única coisa que a gente pode fazer. — Eu digito “socorro automotivo” e escolho um dos resultados.
— Só espero que ele venha mesmo, desta vez — ela comenta.
O serviço de socorro automotivo responde, e enquanto estou falando com o cara, dizendo qual o tipo de pneu de que preciso, noto Camryn enfiando o corpo na janelinha de trás do carro e saindo dela com aquele chapéu sexy de vaqueira, provavelmente para se proteger do sol.
Ela dá a volta no capô e se senta ao meu lado.
— Tá, valeu, cara — digo ao telefone e desligo. — Ele disse que vai levar pelo menos uma hora pra chegar aqui. — Deixo o celular sobre o capô e sorrio para ela. — Sabe, era só você cortar as pernas daquele jeans que tá na sua mochila e transformá-lo num shortinho, tirar o sutiã e usar só o top, que...
Ela põe um dedo sobre os meus lábios.
— De jeito nenhum — ela diz. — Nem pense nisso.
Ficamos em silêncio por um momento, olhando para o nada ao nosso redor. Parece que está ficando mais quente, mas acho que é porque estamos sentados ao sol, no capô de um carro preto que absorve o calor como uma esponja. De vez em quando, um ventinho gostoso roça nossos rostos.
— Andrew? — Ela tira o chapéu e o coloca na minha cabeça, depois deita as costas no para-brisa. Ela põe as mãos atrás da cabeça e dobra os joelhos. — Número cinco na nossa lista de promessas: se eu morrer antes de você, quero ser enterrada naquele vestido que compramos na feirinha, e descalça. Ah, e nada de sombra azul estilo anos 80 nos olhos, nem de sobrancelha desenhada. — Ela inclina a cabeça para o lado e olha para mim.
— Mas pensei que você quisesse casar comigo usando aquele vestido.
Ela estreita os olhos, desviando-os do sol.
— É, quero, mas também quero ser enterrada com ele. Tem gente que acredita que quando a pessoa morre, ela revive seus momentos mais felizes na vida após a morte. Um dos meus vai ser o dia em que eu me casar com você. Então é bom já levar o vestido.
Eu sorrio para ela.
Tiro o chapéu e me deito ao seu lado, apertando minha cabeça perto o suficiente da dela para pôr o chapéu sobre as duas e nos proteger do sol. Depois de equilibrá-lo, digo:
— Número seis: se eu morrer antes de você, quero que toquem “Dust in the Wind” no meu funeral.
Ela vira a cabeça para me olhar, com cuidado para não derrubar o chapéu.
— De novo isso? Você tá começando a me fazer detestar um belo clássico do rock, Andrew.
Rio um pouco.
— Eu sei, mas é que eu vi o episódio de Highlander em que a mulher do cara, Tessa, morre. Tocaram essa música ao fundo. Nunca mais consegui tirar da cabeça.
Ela sorri e enxuga o suor da testa.
— Prometo — ela diz. — Mas já que estamos falando disso, quero acrescentar o número sete. Você já viu Ghost — Do Outro Lado da Vida?
Olho rapidamente para ela.
— Bom, vi. Acho que todo mundo já viu esse filme. A menos que tenha 16 anos de idade. Porra, tô surpreso que você tenha visto. — Eu lhe dou uma cotovelada de leve.
Ela ri.
— Culpa da minha mãe — ela admite. — Ghost e Dirty Dancing — Ritmo Quente eu já viu umas cem vezes. Ela era doida pelo Patrick Swayze e, quando criança, eu era a única pessoa do sexo feminino pra quem ela podia dizer o quanto ele era gostoso. Bom, então você já viu. Número sete: se alguém te matar, trata de voltar, como o Sam do filme, e me ajudar a achar seu assassino.
Eu rio e balanço a cabeça, derrubando acidentalmente o chapéu por um momento.
— Que lance é esse que você tem com filmes? Deixa pra lá. Tá, prometo voltar pra puxar seu pé.
— É bom mesmo! — ela exclama, rindo alto. — Além do mais, eu sei que vou ser uma daquelas pessoas que acham que os entes queridos continuam por perto depois de morrer. Seria bom me dar mais motivo pra acreditar.
Não sei bem como vou fazer isso, mas tudo bem. Vou tentar, porra.
— Prometo se você prometer — digo.
— Como sempre.
— Número oito — eu continuo —, não me enterre num lugar frio.
— Concordo plenamente. O mesmo vale pra mim!
Ela enxuga mais suor do rosto e eu me levanto do capô, estendendo a mão para ela.
— Vamos ficar dentro do carro, longe do sol.
Ela pega minha mão e eu a ajudo a descer.
Duas horas depois, o guincho ainda não apareceu e está começando a escurecer. Parece que vamos poder ver o pôr do sol juntos na paisagem deserta do Texas.
— Eu sabia — Camryn diz. — Qual o problema desses guinchos?
E assim que ela diz isso, um par de faróis ofuscantes aparece na estrada vindo na nossa direção. Muito aliviados, saímos para recebê-lo, e a primeira coisa que eu noto é a mesma que Camryn nota. O cara poderia ser uma cópia de Billy Frank. Ela e eu nos entreolhamos, mas não comentamos em voz alta.
— Querem que eu reboque ou só o pneu? — ele pergunta, puxando as alças do seu macacão de jeans.
— Só o pneu — eu digo, seguindo-o para a traseira do guincho.
— Bom, não tenho tempo pra ficar aqui enquanto você troca — ele diz, cuspindo tabaco na estrada. — Vocês vão ficar bem?
— Vamos, sim. Mas espera um momento. — Eu levanto o dedo e enfio o corpo no carro para virar a chave na ignição. Quando o motor parte sem problemas, eu o desligo e volto até ele. — Só queria ter certeza de que tá funcionando.
Pago ao sósia de Billy e fico olhando as lanternas traseiras do guincho sumindo no horizonte escuro à medida que ele se afasta. Quando volto para o carro, onde deixei o pneu, levo um puta susto ao ver Camryn já erguendo o carro com o macaco.
— Porra, essa é a minha garota!
Ela sorri para mim, mas continua trabalhando, com a trança loura jogada sobre um ombro.
— Não é tão difícil — ela diz, rolando agora o novo pneu para perto, depois de conseguir tirar as porcas do antigo sozinha. Acho que tô ficando de pau duro. Não, peraí, já tô mesmo de pau duro.
— Não, não é, de fato — respondo finalmente, com um sorriso ainda maior.
Alguns minutos depois, ela baixa o carro e joga o macaco no porta-malas. Eu carrego o pneu furado para ela e também o jogo lá dentro.
Entramos no carro e ficamos parados.
Tudo está tão silencioso. Enormes faixas de cirros violeta e azuis estão amontoados no céu, estendendo-se bem além do horizonte. À medida que o calor do dia diminui, a brisa suave do anoitecer entra pelas janelas abertas do carro. O crepúsculo está lindo. Para ser sincero, eu nunca tinha prestado muita atenção em um. Talvez seja a companhia.
E não sei ao certo o que está acontecendo entre nós agora, mas seja o que for, estamos tão sintonizados um com o outro que ambos sentimos isso. Eu olho para ela. Ela olha para mim.
— Pronta pra voltar? — pergunto.
— Sim. — Ela fica em silêncio, olhando pelo para-brisa, perdida em pensamentos. Então se vira para mim, com mais certeza do que há alguns segundos. — É, acho que tô pronta pra ir pra casa. — Ela sorri.
E pela primeira vez desde que saí de Galveston sozinho naquele dia, ou que Camryn subiu no ônibus em Raleigh naquela noite, nós finalmente nos sentimos... realizados.
Camryn
32
ACHO QUE A gente fechou mesmo um ciclo. Mas preciso dizer, agora que estamos finalmente de volta a Galveston, depois de sete meses, que a sensação é diferente, desta vez. Não estou preocupada por estar aqui, nem com medo de que meu tempo junto com Andrew esteja acabando. Não estou esperando que uma tragédia médica ressurja a qualquer momento. É bom estar aqui. E quando paramos no estacionamento do prédio dele, sinto satisfação. Posso até me imaginar morando aqui. Mas até aí, também consigo me imaginar morando em Raleigh. Acho que isso significa, talvez, que nós estamos prontos para parar de viajar. Só por um tempinho. Nunca definitivamente, como eu já disse a Andrew, mas por tempo suficiente para nos recuperarmos da estrada.
Andrew concorda.
— É — ele diz, pegando nossas mochilas do banco de trás. — Sabe de uma coisa? — Ele devolve as mochilas para o mesmo lugar e olha por cima do carro para mim.
— O quê? — eu pergunto, curiosa.
Ele está sorrindo com o olhar.
— Você tem razão de não querer ficar na estrada tanto tempo a ponto de a gente se cansar dela, e nem ficar num só lugar por tempo demais pelo mesmo motivo. — Ele para e estende os braços por cima do carro. — A gente podia viajar na primavera ou no verão, deixar o outono e o inverno pra ficar em casa e levar uma vidinha família nas férias... minha mãe ficou bem chateada porque a gente não passou o Natal ou o Dia de Ação de Graças com ela.
Eu balanço a cabeça.
— É uma boa ideia. E como é um saco viajar no frio, faz muito sentido.
Nós nos olhamos por cima do carro por um longo momento, até que eu interrompo as engrenagens que estão girando nas nossas cabeças e digo:
— Bom, pega as mochilas. A gente pode conversar lá dentro. Você precisa olhar a Georgia.
— Ah, a Georgia tá bem — ele diz, mexendo novamente no banco de trás. — Minha mãe vem sempre regar.
Eu pego o violão, a guitarra e a minha bolsa. Quando entramos no apartamento de Andrew, sinto exatamente o cheiro que senti na primeira vez que entrei ali: de apartamento vazio. E como Andrew disse, Georgia está viva e bem.
Eu praticamente desabo no sofá, exausta, estendendo as pernas para fora pela lateral.
— Mas o próximo lugar que a gente for — Andrew diz, passando atrás do sofá — vai ser longe daqui. — Eu ouço seu chaveiro tilintar sobre o balcão da cozinha.
Ergo o corpo e pergunto:
— Longe quanto?
— Na Europa, na América do Sul — ele diz com um sorrisão, voltando para a sala. — Você disse que quer conhecer a Itália, o Brasil e todos aqueles lugares. Sugiro que a gente escolha um e vá pra lá.
Uma carga de energia atravessa o meu corpo. Eu fico de pé e olho para ele, agora tão empolgada com a ideia que mal consigo me conter.
— Sério?
Ele balança a cabeça com um sorriso gigante de lábios fechados.
— Porra, pra manter a tradição, a gente podia até escrever todos os lugares que queremos visitar em papeizinhos, pôr num chapéu e sortear um.
Eu dou um berro. Um berro mesmo! Encosto as mãos no peito.
— Isso é perfeito, Andrew!
Ele se senta no sofá, agora, apoiando os dois pés na mesinha de centro, com os joelhos dobrados. Eu não consigo sentar. Fico onde estou, olhando para seu rosto sorridente.
— Claro que precisamos continuar faturando — ele diz. — Temos muito dinheiro no banco, mas viajar pro exterior com certeza vai acabar com ele mais rápido.
— Mal posso esperar pra arranjar um emprego — digo, e esse comentário estimula a minha memória. — Andrew, você já me disse pra ser totalmente sincera com você a respeito de onde eu quero morar.
Isso chama a atenção dele.
— Onde você quer morar?
Penso nisso por um momento e respondo:
— Por enquanto, acho que em Raleigh, mas só porque gostaria de ficar perto de Natalie e da minha mãe, e porque sei que posso arrumar emprego facilmente no trabalho da Natalie. A chefe dela disse que gostou de mim e pediu que eu preenchesse uma ficha e...
Andrew me interrompe.
— Não precisa explicar seus motivos. — Ele estende a mão para mim e eu me sento em seu colo, de frente para ele. Não tinha me dado conta de que estava falando mais que uma matraca, de nervoso. Só não queria que ele se sentisse obrigado a nada.
Ele sorri para mim e abraça a minha cintura.
— Minha pergunta — ele continua — é o que, exatamente, significa “por enquanto” pra você?
— Bom... essa é a parte difícil.
Ele inclina a cabeça para o lado, me olhando com curiosidade, as covinhas mal aparecendo em suas bochechas.
Finalmente, eu digo de uma vez:
— Acho que a gente não deve gastar todo o dinheiro numa casa, porque não quero ficar lá pra sempre. E se fizermos isso, não vamos ter muito dinheiro pra gastar quando quisermos ir pra Europa ou qualquer lugar, e trabalhar ganhando salário mínimo não vai ajudar a poupar muito.
Ele me olha de lado.
— Peraí. Espero que você não queira morar na casa da sua mãe. A gente precisa de privacidade. Quero poder te catar de quatro por cima da mesa da sala quando eu quiser.
Eu rio e aperto as coxas ao redor dele, por brincadeira.
— Você é tão safado! Mas não, com certeza não quero morar com a minha mãe.
— Bom, se você não quer comprar uma casa e não quer morar com sua mãe, a única opção que resta é alugar, e isso custa muito caro também.
Fico constrangida, porque chegamos ao ponto em que preciso falar do dinheiro de Andrew como se fosse meu também, e duvido que um dia eu vá me acostumar com isso.
Eu desvio o olhar.
— Lembra quando você disse que a gente podia comprar uma casinha em algum lugar?
— Lembro — ele diz, e seus olhos brilham mais, como se ele já soubesse o que vou dizer.
— Bom, a gente podia, quem sabe, comprar uma casa bem pequena ou um apartamento com dinheiro vivo, só o suficiente pra nós... sei lá, algo bom e barato, e ainda sobraria muito dinheiro no banco pras nossas viagens. Não vamos pagar aluguel, e só vamos precisar pagar todo mês contas e coisas assim, e podemos custear isso trabalhando e tocando em bares, sem mexer nas nossas economias.
Por que ele está sorrindo como o gato da Alice?!
Sinto minha cabeça afundando no meio dos ombros, meu rosto ficando quente.
— Qual é a graça?! — pergunto, apertando as mãos no seu peito e tentando não rir.
— Graça nenhuma. Só gostei de ver que você finalmente entendeu que o que é meu é seu. — Ele aperta os dedos na minha cintura.
— Se você tá dizendo — eu balbucio, tentando esconder o rubor do meu rosto, fingindo estar ofendida.
— Ei — ele diz, balançando meus quadris —, não faz isso. Termina o que você tava dizendo.
Depois de uma longa pausa, eu continuo:
— E quando a gente partir pro destino do papelzinho no chapéu, Natalie pode tomar conta da casa. Ou! — eu aponto para cima. — Quando finalmente encontrarmos aquele lugar sossegado na praia que você sonhou pra morar, podemos vender nossa casa em Raleigh ou alugá-la pra ter uma renda extra. Talvez até alugar pra Natalie e Blake!
Posso ver que algo está acontecendo dentro da mente dele. Seu sorriso continua suave e ele nunca tira os olhos de mim. Mas está tão quieto, até que finalmente quebra o silêncio e diz:
— Parece que você pensou muito nisso. Quanto tempo levou pra planejar tudo?
Só agora me dou conta de que foi muito tempo. Penso no dia em que comecei a tentar organizar nosso futuro, quando decidi oficialmente que queria ter uma casa e estava cansada da estrada.
Andrew espera pacientemente que eu responda, sempre com um olhar suave e pensativo, sua maneira de me lembrar constantemente de que nada que eu possa lhe dizer jamais criará qualquer negatividade entre nós.
— Foi na estrada, depois que partimos de Mobile — digo. — Quando falei que eu queria conhecer a Itália, a França e o Brasil um dia. Quando eu disse que nunca ia querer parar de viajar pra sempre. Daquela noite em diante, fiquei determinada a planejar tudo. Como a gente faria tudo isso. — Meu olhar vaga. — Eu infringi as regras e planejei tudo.
Ele se inclina para a frente e beija meus lábios.
— Às vezes planejar é necessário — ele diz. — Você fez um bom trabalho. Acho que o plano todo tá perfeito. — E então ele me agarra com um beijo apaixonado.
Quando o beijo termina, eu o olho por um momento, com seu rosto nas mãos.
— Mas quero me casar com você aqui — conto, e os olhos dele se iluminam. — Não quero que a sua mãe se sinta excluída, sabe? Na verdade, ela é o único motivo de eu me sentir culpada por querer ir morar em Raleigh. E me sinto ainda pior porque ela tava planejando aquele chá de bebê e a gente nem...
— Ela vai gostar disso — ele aprova, me interrompendo antes que eu comece a matraquear de novo. — Eu adorei.
Ele me beija de novo.
Andrew
33
EU NÃO PODERIA ter pedido um dia mais perfeito. O clima está perfeito. Os planos para o casamento que não fizemos se encaixaram perfeitamente. Eu liguei para a minha mãe ontem e pedi que nos encontrasse na praia da Ilha de Galveston. Ela chegou a tempo, sem fazer ideia do motivo do convite.
Eu levanto a mão quando a vejo, acenando para chamá-la, e assim que ela nos vê, entende tudo. Seu rosto se abre num sorriso enorme, e é fácil se contagiar.
— Ah, vocês dois — minha mãe diz, se aproximando —, não acredito que finalmente vão fazer isso. Estou... estou tão... — Lágrimas escorrem do seu rosto e ela as enxuga, rindo e chorando ao mesmo tempo.
Camryn, descalça e com aquele vestido vintage cor de marfim que encontrou na feirinha, abre os braços e abraça minha mãe.
— Oh, Marna, não chore, por favor — ela pede, embora eu ache que é mais uma súplica, porque ver minha mãe chorando a está deixando com um nó na garganta.
— Mais alguém vem? — minha mãe pergunta depois.
— Você é nossa convidada de honra exclusiva — digo orgulhosamente.
— É — Camryn acrescenta —, é só você e o reverendo aqui.
Minha mãe passa por nós para abraçar também o reverendo Reed. Ela frequenta a igreja dele há nove anos — tentou me levar junto um milhão de vezes, mas eu não sou muito de igreja. Mas pensei, quem melhor do que ele pra casar a gente?
E enquanto o reverendo Reed está diante de nós na praia, com sua Bíblia gasta nas mãos e dizendo algumas palavras, tudo o que consigo ver ou ouvir é Camryn de pé na minha frente, com suas mãos nas minhas. A brisa passa pelos fios soltos do seu cabelo, livres daquela trança dourada sobre seu ombro que eu amo tanto. Adoro seu sorriso, seus olhos azuis e sua pele macia. Quero beijá-la agora e acabar com isso. Eu aperto os dedos de leve sobre suas mãos e a puxo mais para perto. O vento sopra seu vestido longo, fazendo-o aderir ao seu corpo de violão. Eu contenho o sorriso quando noto um cacho do cabelo entrando em sua boca. Ela tenta disfarçadamente tirá-lo com a língua, sem atrair atenção para si.
Sabendo que ela não quer criar nenhum tipo de interrupção, nem para algo simples assim, eu afasto o cacho para ela.
Sinto que somos as duas únicas pessoas do mundo.
Quando chega a hora de dizermos nossos votos, eu sei que nenhum dos dois escreveu nada, nem teve muito tempo para pensar no que queria dizer. E assim, praticamente da mesma forma que costumamos fazer tudo, nós fazemos e pronto.
Eu aperto mais suas mãos entre nós e digo:
— Camryn, você é a outra metade da minha alma, e eu vou te amar hoje e todo dia pelo resto das nossas vidas. Prometo que se um dia você me esquecer, lerei para você, como Noah lia para Allie. Prometo que, quando ficarmos velhos e nossos ossos doerem, nunca dormiremos em quartos separados, e que se você morrer antes de mim, será enterrada com esse vestido. Prometo assombrar você como Patrick Swayze assombrou Demi Moore. — Seus olhos começam a se encher de água. Eu acaricio as palmas das mãos dela com meus polegares. — Prometo que nunca vamos acordar um dia, daqui a anos, e nos perguntar por que desperdiçamos nossas vidas sem fazer nada, e que seja qual for a dificuldade que enfrentemos, eu sempre, sempre estarei com você. Prometo ser espontâneo, sempre baixar o volume da música quando você adormecer, e cantar a música das uvas-passas quando você estiver triste. Prometo sempre amar você, em qualquer lugar do mundo ou de nossas vidas em que estejamos. Porque você é a outra metade de mim, sem a qual eu sei que não consigo viver.
Lágrimas escorrem dos seus olhos. Ela leva um instante para se recompor.
E então ela diz:
— Andrew, prometo nunca te manter vivo por aparelhos, deixando você sofrer, se eu sentir no fundo do meu coração que sua vida acabou. Prometo que, se um dia você se perder ou desaparecer, eu... nunca vou parar de te procurar. Jamais. — Isso me faz sorrir. — Prometo que quando você morrer, vou mandar que toquem “Dust in the Wind” no funeral, e você não será enterrado num lugar frio. Prometo sempre te contar tudo, por mais que eu me sinta envergonhada ou culpada, e confiar em você quando me pedir pra fazer alguma coisa, porque sei que tudo o que você faz tem um propósito. Prometo ficar sempre ao seu lado e nunca deixar que você enfrente nada sozinho. Prometo amar você para sempre nesta vida e aonde quer que formos depois da morte, porque eu sei que não consigo viver em nenhuma vida, a menos que você também esteja nela.
O pastor Reed me diz:
— Andrew Parrish, aceita Camryn Bennett como sua legítima esposa, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-a e respeitando-a pelo resto da vida?
— Aceito — afirmo, pondo a aliança que comprei em Chicago no dedo dela. Ela fica discretamente sem fôlego.
Então ele se vira para Camryn e pergunta:
— Camryn Bennett, aceita Andrew Parrish como seu legítimo esposo, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-o e respeitando-o pelo resto da vida?
— Aceito.
Finalmente, eu entrego a ela a minha aliança, porque estava escondendo as duas dela até este momento, e ela a põe no meu dedo. O pastor Reed conclui, incluindo aquelas aguardadas sete palavras — “Eu agora os declaro marido e mulher” — e então me dá permissão para beijar minha esposa. É tudo o que queríamos fazer desde que a cerimônia começou, e agora que podemos, ficamos só nos olhando, perdidos nos olhos um do outro, nos vendo numa luz diferente, muito mais brilhante do que desde que nos conhecemos no Kansas, naquele ônibus. Sinto meus olhos começarem a arder e a tomo em meus braços e esmago minha boca sobre a dela. Ela soluça durante o beijo e eu aperto suas costas, erguendo seus pés descalços completamente da areia e rodopiando com ela. Minha mãe está chorando feito um bebê. Eu sinto que nunca mais vou parar de sorrir.
Camryn é a minha esposa.
Camryn
Eu acabo de me tornar Camryn Parrish. Não consigo nem entender as emoções que estou sentindo. Estou chorando, mas meio que rindo por dentro ao mesmo tempo. Me sinto empolgada, porém ansiosa. Olho de novo para esta aliança que ele acaba de pôr no meu dedo e sei que ele gastou muito dinheiro nela. Então olho para a dele, quase idêntica à minha, mas numa versão masculina, e não consigo ficar brava com ele. Não consigo. Ouço Marna soluçando atrás de mim, e não posso deixar de ir até ela e abraçá-la de novo.
— Bem-vinda à família — ela diz com a voz embargada.
— Obrigada. — Eu sorrio e enxugo as lágrimas.
Andrew passa o braço na minha cintura e o pastor se junta a nós. Quando Marna e ele começam a pôr a conversa em dia, Andrew e eu nos afastamos um pouco, e ele não consegue parar de me olhar. Eu fico vermelha.
— O que foi? — pergunto.
Ele balança a cabeça, com um sorriso radiante.
— Eu te amo — ele diz, e fico com vontade de chorar de novo, mas consigo me controlar.
— Eu também te amo.
Passamos a lua de mel no nosso apartamento, quebrando a tradição. Porque queremos esperar até nossa primeira viagem ao exterior para fazer uma verdadeira lua de mel.
— Onde você acha que será? — ele pergunta.
Estamos sentados na varanda, em duas cadeiras de praia, tomando cerveja e ouvindo a música ao vivo que vem da praia ou do parque, de algum lugar distante.
— Não sei — respondo, tomando um gole no gargalo. — Quer fazer uma aposta?
Andrew esfrega o lábio inferior com o polegar.
— Hmmm. — Ele pensa a respeito, tomando mais um gole de cerveja, e então diz: — Acho que o primeiro país que vamos tirar daquele chapéu vai ser... — ele estufa os lábios — ...o Brasil.
— Brasil, é? Legal. Mas eu não sei — tenho a estranha sensação de que vai ser mais alguma coisa tipo a Itália.
— É mesmo?
— Sim.
Ambos tomamos um gole ao mesmo tempo.
— Talvez a gente devesse apostar alguma coisa — ele diz, com a covinha da bochecha direita ficando mais funda.
— Uma aposta, é? Tá, eu topo.
— Tudo bem. Se for o Brasil, você vai ter que ir comigo pra praia, bem no estilo do Rio de Janeiro. — Seu sorriso é malicioso.
Eu levo um minuto para entender o que ele está dizendo, e quando a ficha cai, sinto o ar noturno nos meus dentes ao abrir a boca.
— Sem. Chance!
Andrew ri.
— Não vou ficar saltitando de topless em público!
Ele joga a cabeça para trás e ri mais alto.
— Não, acho que elas não fazem isso lá, amor — ele explica. — Quero dizer que você vai ter que usar um daqueles biquínis brasileiros. Nada daquelas porras tipo tô-com-vergonha que você usou na Flórida. Você tem um corpo legal. — Ele toma mais um gole e deixa a garrafa sobre a mesa à nossa frente.
Eu penso por um momento, mordendo a bochecha por dentro.
— Fechado — concordo.
Parecendo um pouco surpreso por me ver concordar tão facilmente, ele balança a cabeça.
— E se for a Itália — digo, também com um sorrisinho —, você vai ter que fazer uma serenata pra mim na escadaria da Piazza di Spagna... na língua local. — Eu cruzo uma perna sobre a outra. Eu sabia que a última parte ia pirar aquela cabecinha sexy dele.
— Você não tá falando sério — ele argumenta. — Como é que eu vou fazer uma porra dessas?
— Sei lá — respondo. — Acho que, se eu ganhar, você vai ter que dar um jeito.
Ele balança a cabeça e faz uma careta pensativa.
— Tudo bem. Tá apostado.
34
RALEIGH, CAROLINA DO NORTE — Junho
— Surpresa! — Várias vozes gritam quando entro na nossa nova casa.
Realmente surpresa, eu tenho um sobressalto e ponho a mão no peito. Natalie está bem no meio, com Blake ao seu lado. Meus amigos do meu Starbucks favorito e a irmã de Blake, Sarah, que conheci há duas semanas, quando Andrew e eu voltamos, estão todos aqui.
— Uau, a gente tá comemorando o quê? — pergunto, ainda tentando recuperar um pouco o fôlego, porque eles quase me mataram de susto. Eu me viro para Andrew. Ele está sorrindo, portanto é óbvio que teve algo a ver com tudo isso.
Natalie, agora com luzes ruivas no cabelo, me puxa para um abraço.
— É sua festa oficial de boas-vindas. — Ela dá um sorrisinho para mim e olha para Andrew. — Por que você acha que eu tava fazendo tão pouco caso da sua volta nos últimos dias?
— Você não fez pouco caso — comento.
— Tá, talvez não tenha dado pra perceber — ela admite —, mas por favor, Cam, você não notou que eu tava escondendo alguma coisa?
Acho que ela tem razão, pensando bem. Ela parecia contente por eu ter voltado, mas não eufórica, como ficaria normalmente. Acho que eu só imaginei que talvez Blake finalmente a tivesse domado um pouco.
Eu me viro para Andrew de novo.
— Mas a gente não tem nem móveis.
— Ah, tem, sim! — Natalie diz, me puxando pelo pulso.
Ela me arrasta para a sala de estar, onde oito pufes gigantes estão espalhados pelo chão. No meio da sala estão quatro caixotes de leite amarrados com uma tábua em cima, que eu presumo que sejam a mesinha de centro. A eletricidade nem foi ligada ainda, mas na “mesinha de centro” estão três velas apagadas sobre tampas de latas de biscoitos, prontas para quando escurecer, daqui a algumas horas.
Eu apenas rio.
— Eu tô adorando! — comento com Andrew. — Proponho que a gente desencane totalmente dos móveis e mantenha esse tema dos pufes gigantes retrô! — Claro que estou brincando, e Andrew sabe disso.
Ele se joga no pufe mais próximo e estica as pernas no chão, refestelando-se no vinil acolchoado.
— Eu até me viro com eles, mas a gente vai precisar de uma cama, com certeza. — Eu me sento no pufe ao lado e me ajeito. Todos fazem o mesmo, enquanto Natalie e Blake vão para a cozinha.
Andrew e eu encontramos aquela casinha cinco dias depois que chegamos. Querendo sair da casa da minha mãe tão rápido quanto humanamente possível, ele passou horas na internet e olhando anúncios de imobiliárias, mesmo enquanto eu fazia corpo mole e só relaxava depois da longa viagem desde Galveston. Praticamente deixei Andrew se ocupar da procura da casa. Ele me mostrava fotos e eu dava minha opinião. Mas aquela casa era perfeita. Foi a terceira que visitamos pessoalmente (e nem acho que o fato de ele tê-la adorado tenha algo a ver com ele ter acidentalmente visto minha mãe seminua quando ela achou que não estivéssemos em casa). O preço era ótimo porque os antigos donos, que já tinham se mudado havia quatro meses, queriam vendê-la logo e encerrar o assunto. Acabamos conseguindo comprá-la por vinte mil a menos do que seu real valor, e isentamos os antigos donos de fazer qualquer conserto antes de fechar o negócio. Como pagamos com dinheiro vivo, tudo aconteceu muito rápido.
Hoje é oficialmente nosso primeiro dia como os novos proprietários.
Trouxemos muitas coisas de Galveston, alugamos um pequeno reboque de mudanças, que lotamos com tudo o que coubesse dentro. Mas logo vamos ter que voltar para buscar os móveis. Infelizmente, Andrew está irredutível quanto a conservar a velha poltrona fedida do pai dele, mas prometeu mandar limpá-la. E é bom que mande mesmo!
Natalie e Blake voltam para a sala, cada um trazendo três garrafas de cerveja, que começam a distribuir.
— Obrigada, mas eu não quero — digo.
Natalie parece ficar arrasada, projetando o lábio inferior e me olhando. Ela está usando uma camiseta branca apertada que deixa seus seios empinados.
— Quero distância de cerveja por no mínimo uma semana, Nat — eu explico.
Ela torce o nariz, mas depois dá de ombros e diz:
— Sobra mais pra mim!
Depois que Blake passa uma cerveja para Andrew, ele se dirige para o último pufe que sobrou, mas Natalie corre e chega antes dele. Assim, ele se senta em cima dela. Enquanto eles estão se engalfinhando, Natalie dá uma risada esquisita, e eu vejo de soslaio a expressão no rosto de Andrew.
— Shenzi — ele sussurra, e balança a cabeça, tomando um gole de cerveja.
Eu rio baixinho, agora sabendo o que Andrew quis dizer a primeira vez que a chamou assim. Pesquisei no Google logo depois e descobri que esse é o nome da hiena desbocada de O Rei Leão.
— Vocês prometeram me contar sobre a viagem — Natalie diz, agora sentada no pufe, no meio das pernas de Blake.
Todos olham para mim e Andrew.
— Já te contei bastante coisa, Nat.
— É, mas não contou nada pra gente — diz Lea, minha amiga que trabalha no Starbucks.
Alicia, que trabalha com ela, acrescenta:
— Eu já caí na estrada com a minha mãe e meu irmão, mas com certeza deve ter sido totalmente diferente da sua viagem.
— E você ainda não me contou o que aconteceu na Flórida — Natalie diz. Ela toma um gole de sua cerveja e deixa a garrafa ao seu lado no chão, apoiando em seguida os braços sobre as pernas de Blake. Ele a beija no pescoço.
Eu me encolho toda por dentro só de pensar na Flórida, mas percebo que é porque Andrew, na verdade, é que poderia ficar constrangido com o que aconteceu. Por um segundo, não consigo nem encará-lo, pois me sinto culpada por ter tocado no assunto com Natalie. Não dei nenhum detalhe, só mencionei que um lance muito sinistro aconteceu enquanto estávamos ali.
Quando finalmente olho para Andrew, percebo que ele não está com raiva de mim. Ele pisca e também deixa sua cerveja no chão, ao seu lado.
— A Flórida — ele começa, para minha surpresa. — Essa provavelmente foi a pior etapa da viagem, se não foi também a mais estranha. Mesmo assim, tem algumas partes que não me desagradaram tanto.
Não faço ideia de onde ele quer chegar com isso.
Todos estão olhando para Andrew, agora, especialmente Natalie, cujos olhos estão esbugalhados de antecipação.
— Conhecemos uma moçada que convidou a gente pra uma balada com eles numa parte pouco acessível da praia. E a gente foi. E se divertiu. Mas aí as coisas ficaram esquisitas.
— Esquisitas como? — Natalie interrompe.
— Esquisitas tipo LSD ou sei lá que porra.
Os olhos de Natalie se abrem ainda mais e ficam ferozes quando ela me olha.
— Você tomou LSD? Que porra de ideia foi essa, Cam?
Eu balanço a cabeça.
— Não, claro que não tomei de propósito. Eles drogaram a gente!
Os olhos de todos estão arregalados como os de Natalie, agora.
— É — Andrew continua. — A gente nem sabe direito o que era, mas ficamos completamente chapados.
— Eu já levei um “boa noite Cinderela” uma vez — conta a irmã de Blake, Sarah.
Ela aparenta ter uns 18 anos.
Blake tem um sobressalto e levanta o corpo, fazendo Natalie bater os dentes no gargalo da garrafa.
— Quê? — ele pergunta, soltando fogo pelos olhos.
— Ah, você não sabia? — Sarah diz docemente, como se tivesse apenas esquecido de contar.
Obviamente, teria sido melhor não ter contado.
— Aaai! — Natalie choraminga, com a mão na boca.
— Desculpa — Blake diz. Ele beija sua bochecha e se vira para a irmã. — Sarah, quem foi que te dopou, porra? E não me enrola. É melhor você me contar... aconteceu alguma coisa? — O medo está estampado no seu rosto.
Sarah revira os olhos.
— Não. Não aconteceu nada, porque Kayla tava lá e me trouxe pra casa. E não, eu não sei quem foi, Blake, então fica frio aí, por favor. — Depois ela se vira na nossa direção. — Vocês tavam dizendo?
— Eu vou com você, cara — Andrew diz para Blake. — Se você descobrir quem foi, é só avisar. Isso é muita sacanagem.
Eu dou uma leve cotovelada em Andrew. Ele entende e diz:
— Bom, preciso dizer que a Flórida foi uma experiência, mas que nunca mais quero repetir.
Andrew não diz nada sobre a piranha nojenta que tentou fazer um boquete nele. Fico feliz por isso, porque seria uma conversa constrangedora. Isso sem falar que Natalie ia se divertir um monte com uma informação dessas. Ficamos sentados nos pufes e conversamos com nossos amigos por algumas horas, até umas oito da noite, quando Blake precisa levar Sarah para casa. Pouco depois que os três saem, o resto vai embora, e Andrew e eu ficamos sozinhos no nosso primeiro lar oficial como recém-casados.
Ele volta da cozinha com uma vela na mão, depois de acendê-la no fogão. O gás foi ligado antes. Então ele usa a chama para acender as outras, sobre a mesa.
— A gente vai dormir no chão? — pergunto, olhando para ele.
— Não — ele responde, afastando-se das velas. Ele puxa todos os pufes para o meio da sala e os junta, criando uma cama improvisada, depois bate nela com a palma da mão. — Por enquanto, vai ter que ser assim. Eu não vou dormir no chão. Acordo todo entrevado.
Eu sorrio.
— Isto é estranho, não? — comento, olhando ao redor para as paredes nuas da nossa casa, imaginando que tipo de fotografias ou quadros ficariam bem nelas.
— O que, não ter móveis nem eletricidade? Você já deveria estar acostumada. — Ele dá uma risadinha.
Eu me levanto do pufe perto da parede e me sento na cama que ele fez. Estendo a mão para a mesa e fico cutucando a cera quente de uma vela, deixando que me queime, depois esfrie e se molde à ponta do meu dedo.
— Não, quero dizer esta casa. A gente. Tudo, na verdade.
— Estranho de um jeito bom, espero.
— É claro — confirmo, sorrindo para ele.
O silêncio enche a casa. A luz das velas projeta grandes sombras dançantes nas paredes. A casa cheira a água sanitária, desinfetante e outros produtos de limpeza, embora fracamente.
— Andrew, obrigada por vir morar aqui.
Finalmente, ele se senta ao meu lado e ambos olhamos as chamas por um momento.
— Onde mais eu poderia estar, se não junto com você?
— Você sabe do que eu tô falando — respondo. Passo a palma da mão por cima de uma chama, só para sentir o calor na minha pele e ver o quanto consigo aproximá-la sem me queimar.
— Eu sei — ele admite —, mas mesmo assim.
Eu afasto a mão e olho para ele; seu rosto parece delicado no brilho alaranjado das velas, mesmo com a barba por fazer que está começando a aparecer de novo.
— Camryn, preciso contar uma coisa pra você.
Instantaneamente, meu coração fica apertado no peito com o modo como ele falou.
— O quê... isto é, como assim, precisa me contar uma coisa? — Estou tão nervosa. Não sei por quê.
Andrew dobra os joelhos e apoia os antebraços sobre eles. Ele olha de novo para as chamas uma vez, só por alguns segundos, mas até alguns segundos é tempo demais.
— Andrew? — viro completamente o corpo para encará-lo.
Noto que seu pomo de adão se mexe quando ele engole em seco. Ele me olha nos olhos.
— Eu tô sentindo dores de cabeça — ele começa, e meu coração afunda até o estômago. Sinto que vou vomitar. — Só desde segunda, mas marquei uma consulta com um médico daqui. Foi recomendação da sua mãe.
Eu a odeio na hora por esconder isso de mim. Minhas mãos estão tremendo.
— Pedi pra sua mãe não contar nada pra você porque queria que o lance da casa acontecesse tranquilamente...
— Você devia ter me contado.
Ele tenta pegar minha mão, mas sem perceber eu a puxo e fico de pé.
— Por que você escondeu isso de mim?! — Eu estou zonza.
Andrew fica de pé também, mas mantém distância.
— Já te falei — ele diz. — Eu não queria...
— Não quero saber! Você devia ter me contado!
Eu cruzo os braços sobre a barriga e me curvo um pouco para a frente. Estou surpresa de ainda não ter vomitado. Meus nervos estão tão em frangalhos que é como se estivessem realmente se partindo dentro de mim.
— Isso não pode estar acontecendo... — Finalmente, escondo o rosto nas mãos e começo a soluçar. — Por que isso tá acontecendo, porra?!
Andrew está ao meu lado em segundos. Eu sinto seus braços me envolverem. Ele puxa meu corpo trêmulo para o seu peito e me abraça. Apertado.
— Essas dores não querem dizer nada — Andrew afirma. — Sinceramente, não me sinto como da outra vez, Camryn. Tenho dores de cabeça, sim, mas são diferentes.
Quando domino os soluços o suficiente e sinto que vou conseguir falar sem engasgar, levanto a cabeça para olhá-lo.
Ele segura meu rosto com as mãos e sorri fracamente para mim.
— Eu sabia que você ia reagir assim, amor — ele continua baixinho. — Não quero que fique estressada pelos próximos quatro dias, até minha consulta na segunda. — Ele continua me olhando nos olhos. — Eu não tô sentindo a mesma coisa. Se concentra nisso, porque tô dizendo a verdade.
— Você tá? — pergunto. — Ou tá dizendo isso pra não me deixar preocupada? — Eu já enfiei na cabeça que o que ele está fazendo é exatamente a segunda opção. Me afasto dele e começo a andar de um lado para o outro, de braços cruzados, com uma mão sobre a boca. Não consigo parar de tremer.
— Não tô mentindo pra você. Eu vou ficar bem. Sinto que vou ficar bem, e você precisa acreditar.
Eu me viro para encará-lo de novo.
— Não consigo mais viver assim, Andrew. Não quero.
Ele inclina um pouco a cabeça; seu olhar é pensativo, curioso, preocupado.
Eu sei que ele quer que eu explique melhor o que falei, mas eu não posso. Não posso, porque as coisas que quero dizer só o deixariam chateado e magoado. E seriam apenas palavras. Palavras resultantes da dor e da raiva e de uma parte de mim que quer olhar na cara de Deus, ou seja lá quem ou o que for, e mandá-Lo pro inferno.
Eu preciso me acalmar. Preciso parar e respirar.
Eu faço exatamente isso.
— Camryn?
— Você vai ficar bem — afirmo com sinceridade. — Eu sei que você vai ficar bem.
Ele volta para perto de mim, me beija na testa e diz:
— Eu vou.
Andrew
35
OS ÚLTIMOS QUATRO dias foram estressantes. Embora Camryn tivesse dito que continuaria pensando positivo e que não se deixaria afetar, ela andou diferente. Seus nervos estão em frangalhos. Por duas vezes a ouvi chorando no banheiro e vomitando. Desde que contei sobre as dores de cabeça, na terça à noite, ela está agindo de um jeito bem parecido com a forma como agiu antes de partirmos para visitar Aidan e Michelle em Chicago: fingindo sorrisos e rindo forçado quando algo supostamente seria engraçado. Ela não é a mesma. Preocupado e lembrando o que aconteceu depois do aborto, com os comprimidos, perguntei à queima-roupa se ela teve mais algum “momento de fraqueza”.
Camryn diz que não, e eu acredito.
Mas nada vai consertá-la desta vez, a não ser sairmos hoje deste hospital com os resultados dos meus testes negativos.
Caso contrário... bem, não quero pensar nisso.
Estou mais preocupado com ela do que comigo mesmo.
Pediram que Camryn esperasse em outra sala enquanto faziam a tomografia. Percebo que ela queria discutir com a enfermeira, mas faz o que pediram. E, como da última vez, parece que já estou aqui há horas, me sentindo um pouco claustrofóbico no túnel desta máquina enorme e barulhenta. Fique bem parado, o técnico me pediu. Tente não se mexer, senão vamos ter que refazer o exame. Nem preciso dizer que fiquei praticamente sem respirar por 15 minutos.
Quando a tomografia acabou, tirei os tampões de ouvido e os joguei no cesto de lixo.
Camryn quase perdeu as estribeiras quando a enfermeira que veio me liberar disse que só saberíamos de alguma coisa na quarta-feira.
— Você tá de brincadeira comigo! — Os olhos de Camryn estavam animalescos. Iam e voltavam entre mim e a enfermeira, esperando que um de nós pudesse fazer alguma coisa.
Eu olhei para a enfermeira.
— Tem algum jeito de a gente saber o resultado ainda hoje?
Percebendo, só de olhar para a expressão de Camryn, que ela não iria ceder, a enfermeira suspirou e disse:
— Vão sentar na sala de espera, vou ver se consigo convencer o dr. Adams a dar uma olhada agora.
Quatro horas depois, estávamos sentados no consultório do dr. Adams.
— Não vejo nenhuma anormalidade — o doutor declarou, e eu senti a mão de Camryn afrouxar o aperto mortal em que prendia a minha. — Mas, considerando seu histórico, acho que seria do seu interesse se consultar comigo uma vez por mês pelos próximos meses e ficar atento de qualquer alteração que considerar importante.
— Mas o senhor falou que não viu nada — Camryn disse, apertando minha mão de novo.
— Não, mas ainda acho que isso seria do interesse de Andrew. Só por segurança. Assim, se alguma coisa surgir, vamos detectá-la bem cedo.
— Tá dizendo que alguma coisa vai surgir?
Eu queria rir da sutil cara de frustração do médico, mas em vez disso olhei para Camryn, que estava à minha esquerda, e falei:
— Não, ele não tá dizendo isso. Fica calma. Tá tudo bem. Viu? Eu falei que ia ficar tudo bem.
E daquele dia em diante, só pude torcer para que eu estivesse dizendo a verdade.
Camryn
36
MUITOS MESES DEPOIS...
Andrew me escreveu outra carta, em algum momento do nosso primeiro mês na nova casa. Acho que já a li umas cem vezes. Em geral eu choro, mas também me pego sorrindo muito. Ele disse que queria que eu a lesse uma vez por semana para marcar mais uma semana que passava sem nada acontecer, em que tudo continuava bem. E eu fiz isso. Costumava lê-la no domingo à noite, depois que ele já tinha pegado no sono ao meu lado na cama. Mas às vezes, quando eu adormecia antes dele, na manhã seguinte tirava a carta de dentro do livro ao lado da cama e a lia antes que ele acordasse. E como em todas as vezes anteriores, eu olhava para ele dormindo, depois de lê-la, e torcia por mais uma semana.
Andrew sempre me intrigou. O modo como sua mente funcionava. O modo como ele conseguia me olhar sem dizer nada e fazer com que eu me sentisse a pessoa mais importante do mundo. Sempre me intrigou como ele conseguia ser sempre tão otimista, mesmo quando o mundo estava desmoronando ao seu redor. E como ele sempre fazia uma luz brilhar nos recantos mais sombrios da minha mente, quando eu achava que nunca mais veria outra luz ali.
Claro que ele tinha maus dias, “momentos de fraqueza”, mas jamais conheci alguém nem de longe como ele. E sei que jamais vou conhecer.
Talvez no fundo eu seja uma pessoa fraca, na verdade. Talvez, se não fosse por Andrew, eu não fosse a pessoa que sou hoje. Às vezes me pergunto o que seria de mim se eu jamais o tivesse conhecido, se ele não tivesse aparecido para me salvar daquela viagem de ônibus perigosa e imprudente que decidi fazer sozinha. Eu me pergunto o que teria acontecido comigo se ele não gostasse de mim o suficiente para me ajudar a superar o meu momento de fraqueza. Odeio pensar em mim assim, mas às vezes é preciso simplesmente enfrentar a realidade, enxergar como as coisas são e como elas poderiam ter sido, por causa das nossas ações. Acredito de coração que, se não fosse por Andrew, talvez eu nem estivesse aqui hoje.
Os últimos meses foram muito difíceis para nós, mas ao mesmo tempo foram cheios de vida, empolgação, amor e esperança.
A vida é uma coisa misteriosa e muitas vezes injusta. Mas acho que aprendi, no tempo que passei com Andrew, que ela também pode ser maravilhosa, e que em geral, quando acontece uma coisa que parece injusta, é só o jeito de a a vida abrir espaço para coisas melhores que virão. Gosto de pensar assim. Me dá forças quando mais preciso.
E no momento, eu preciso muito.
Tento olhar para cima, para o relógio no alto da parede branca e estéril da sala, mas mal consigo enxergar os ponteiros com minha visão embaçada. Quero saber há quanto tempo estou aqui. Estou exausta e enfraquecida mental e fisicamente e não aguento mais. Eu engulo o nó na garganta e sinto que minha boca está seca como uma lixa. Enxugo uma lágrima do meu olho. Mas só uma. Na verdade, não chorei muito. Porque a dor estava tão insuportável, antes, que praticamente secou todas as minhas lágrimas.
Eu não vou conseguir. Sinto que a qualquer momento vou querer simplesmente desistir. Quero dizer pra todos que estão na sala que vão embora, que me deixem em paz e parem de me olhar como se minha alma estivesse doente. Ela está! Está, porra! Mas ninguém aqui pode curá-la.
O que mais sinto é entorpecimento. Não consigo sentir mais nada. Mas as paredes do hospital estão começando a se fechar ao meu redor, me deixando um tanto claustrofóbica. Mas quanto à dor e à angústia, não sinto nada. Eu me pergunto se vou ficar entorpecida para sempre.
— Você precisa tentar fazer força — Andrew recomenda ao meu lado, segurando a minha mão.
Eu viro a cabeça bruscamente para olhá-lo e discuto:
— Mas eu não tô sentindo minha cintura! Como posso fazer força se não consigo sentir que tô fazendo força! — Acho que só tenho força para expelir essas palavras entre meus dentes cerrados.
Ele sorri e beija minha testa suada.
— Você consegue — assegura a dra. Ball, do meio das minhas pernas.
Eu fecho os olhos, aperto a mão de Andrew e faço força. Eu acho. Abro os olhos e me permito respirar.
— Eu fiz força? Tá dando certo?
Meu Deus, tomara que eu não solte um peido! Ai meu Deus, ia ser um puta dum mico!
— Você tá indo muito bem, amor.
Andrew olha para a obstetra, agora, esperando.
— Mais algumas vezes vão ser suficientes — a obstetra me tranquiliza.
Odiando as palavras dela, solto um suspiro frustrado e jogo com força a cabeça contra o travesseiro.
— Tenta de novo, amor — Andrew pede delicadamente, sem jamais perder a calma, embora toda vez que o vejo olhar para a obstetra eu perceba um traço de preocupação oculta em seu rosto.
Eu ergo as costas do travesseiro novamente e tento fazer força, mas como de costume, não sei dizer se estou mesmo fazendo força ou só achando que estou. Andrew põe um braço nas minhas costas para me ajudar a ficar erguida, e eu me apoio nele e faço força de novo, fechando os olhos tão apertado que sinto que eles estão afundando no meu crânio. Meus dentes estão cerrados e à mostra. O suor escorre da minha testa.
Eu grito algo incompreensível quando paro de fazer força e consigo respirar de novo.
E sinto alguma coisa. Opa... não é dor — a epidural me curou disso —, mas a pressão do bebê com certeza eu senti. Se eu não soubesse que é impossível, acharia que alguém acabou de enfiar algo descomunal na minha vagina. Meus olhos ficam cada vez mais arregalados.
— A cabeça do bebê saiu — ouço a obstetra dizer, e depois ouço um barulho nojento quando ela limpa a garganta do bebê com um bulbo de sucção.
Andrew quer olhar; vejo seu pescoço se esticar como o de uma tartaruga, tentando ver melhor, mas ele não quer sair do meu lado.
— Só mais umas vezes, Camryn — a dra. Ball repete.
Eu faço força de novo, me esforçando ainda mais, agora que sei que está dando certo mesmo.
Ela puxa os ombros do bebê para fora.
Eu faço força mais uma vez e nosso bebê nasce.
— Você foi ótima — a obstetra elogia, enquanto limpa melhor a garganta do bebê.
Andrew beija a minha bochecha e minha testa, e afasta meu cabelo empapado do meu rosto e do pescoço. Alguns segundos depois, o choro do bebê enche a sala de sorrisos e empolgação. Eu caio no choro, soluçando tanto que todo o meu corpo treme descontroladamente de emoção.
E então a obstetra anuncia:
— É menina.
Andrew e eu mal conseguimos tirar os olhos dela, até que pedem que ele corte o cordão umbilical. Ele sai de perto de mim, mas sorri orgulhosamente ao ir para o outro lado e fazer as honras. Parece incapaz de decidir para quem ele quer olhar mais, se para mim ou para nossa filha. Eu sorrio e volto a encostar a cabeça no travesseiro, completamente esgotada. Finalmente consigo enxergar o relógio de parede. Ele diz que fiquei em trabalho de parto por mais de 16 horas.
Sinto mais pressão, cutucões e puxões entre minhas pernas enquanto a obstetra faz coisas sobre as quais, francamente, não quero saber nada. Fico só olhando para o teto por um momento, perdida nos momentos dos últimos nove meses, até que ouço nossa bebê gritando do outro lado da sala e novamente levanto a cabeça tão rápido que quase destronco o pescoço.
Andrew fica por perto enquanto uma das enfermeiras a limpa e começa a embrulhá-la em cobertores. Ele olha para mim e diz:
— Bom, ela tem os seus pulmões, amor — e enfia dois dedos nos ouvidos. Eu sorrio e olho para os dois, tentando não pensar nos puxões que continuo sentindo lá embaixo. E então Andrew volta para o lado da cama.
Ele beija meus lábios e sussurra:
— Suada. Parece que você correu uma maratona. Sem maquiagem. Numa camisola de hospital. E mesmo assim consegue ser bonita.
E apesar de tudo isso, mesmo assim ele consegue me deixar vermelha.
Levanto a mão da qual sai o tubo do soro e seguro o rosto dele, puxando-o para mim.
— Conseguimos — eu murmuro perto dos seus lábios.
Ele me beija delicadamente de novo, e então a enfermeira se aproxima com nossa filha no colo.
— Quem quer segurá-la primeiro? — ela pergunta.
Andrew e eu nos entreolhamos, mas ele faz menção de dar passagem para que a enfermeira possa entregá-la para mim.
— Não — eu insisto. — Você primeiro.
Só um pouco dividido a respeito disso, Andrew finalmente cede e estende os braços para pegá-la. A enfermeira a coloca cuidadosamente no colo dele e se afasta assim que percebe que ele a está segurando firme. De início, ele parece desajeitado e infantil, com medo de derrubá-la ou de não a estar segurando direito, mas logo fica mais à vontade.
— Loura — ele anuncia perto de mim, sorrindo de orelha a orelha, com os olhos verdes levemente marejados de lágrimas. — E cabeluda também!
Ainda estou tão exausta que só consigo reagir com um sorriso.
Andrew olha para ela, toca suas bochechinhas com os nós dos dedos e lhe beija a testa. Depois de alguns momentos, ele a coloca nos meus braços pela primeira vez. E assim que fico frente a frente com minha menina, eu desmorono de novo. Mal consigo enxergar em meio a tantas lágrimas.
— Ela é tão perfeita — digo, sem tirar os olhos dela. Estou quase com medo de tirar, como se desviando o olhar por um segundo ela vá sumir, ou eu vá acordar de um sonho. — Perfeita — murmuro e beijo seu narizinho.
Andrew
37
TODOS OS PARENTES, tanto meus quanto de Camryn, estão na sala de espera — menos o pai e o irmão de Camryn. Ninguém sabe ainda se é menino ou menina. Camryn e eu não quisemos saber durante toda a gravidez. Decidimos deixar que ela nos surpreendesse. E nos surpreendeu.
Antes de deixar a família entrar para vê-las, fico com Camryn no quarto particular para onde nos transferem logo após o parto. Estamos ali há um tempinho, esperando que as enfermeiras tragam a bebê de volta depois de fazer o que elas fazem, seja lá o que for. Eu a pego no colo depois que a enfermeira verifica a pulseira de identificação de Camryn e a compara com a que “Bebê Parrish” está usando no tornozelinho. Eu também verifico, antes de deixar a enfermeira sair. E examino bem a bebê. Hoje em dia, todo cuidado é pouco, e eu vou controlar pra ver se eles trazem sempre o mesmo bebê que levaram. Mas não há como confundir aquela cabeleira loura e aquela vozinha estridente, mas de gelar o sangue, que me põe em submissão absoluta. Se ela soubesse falar, eu faria tudo o que ela pedisse sem pensar duas vezes. Me dá a mamadeira! Sim, senhora! Troca a minha fralda! É pra já! Pisa no pé daquela enfermeira que me enrolou feito um burrito! Tudo bem, garotinha!
Camryn a segura perto do tórax, deixando que ela mame no peito.
Ela descobriu que estava grávida de novo um dia antes de mudarmos para a nova casa. Mas ela só me contou depois da minha consulta no médico, na segunda-feira seguinte. Ela disse que estava com medo, acho que da mesma forma que fiquei com medo de contar a ela imediatamente que eu estava sentindo dores de cabeça. Mas depois disso, conversamos muito sobre as coisas que faríamos diferente, desta vez. Uma dessas coisas foi sua decisão de amamentar. Na primeira gravidez, Camryn não ficou muito empolgada com a ideia de ter um bebê sugando seus seios, especialmente porque talvez precisasse amamentá-la em público. Na época, eu só concordava com o que ela queria e não tentava fazê-la mudar de ideia. Eu não tinha nenhum motivo para isso, na verdade.
Mas desta vez, quando Camryn tocou no assunto de novo, ela disse:
— Quer saber, amor? Andei lendo muito sobre gravidez e os benefícios da amamentação, e não quero nem saber o que os outros vão pensar. Eu sinto que quero e devo fazer isso.
E eu disse:
— Então também acho que você deve.
Eu me sento ao lado dela. Fiquei feliz por ela ter tomado essa decisão sozinha, sem que eu desse palpite. Ei, contanto que eu não comece a ter fetiche por lactação e ela não queira que eu prove, o que ela decidir tá bom pra mim.
— Eu li que a maioria dos bebês nasce com olhos azuis — Camryn diz, olhando para a bebezinha —, mas acho que mais tarde ela vai ter os seus olhos verdes.
Eu afago a cabeça da nossa filha de leve com as pontas dos dedos.
— Talvez. — Não consigo parar de olhar para as duas, minha linda mulher e minha preciosa filhinha. Sinto que entrei em outro mundo, muito mais brilhante do que jamais imaginei. Eu realmente não achava que poderia ser mais feliz do que eu era com Camryn. Não achava isso possível.
Acho que Camryn ainda está um pouco em choque.
— O que você tá pensando? — pergunto, sem parar de sorrir ternamente.
Seus olhos cansados se abrandam quando ela me olha.
— Você tinha razão — ela diz.
A bebê faz um barulhinho de sucção, tão fraco que mal o ouço, mas percebo que estou prestando atenção em cada ruído e movimento dela.
Camryn continua:
— Você disse que eu não ia perdê-la, desta vez. Você disse que o tumor não ia voltar. Disse que ia dar tudo certo. E deu. — Ela olha para a bebê por um momento, afagando sua sobrancelha com o dedo, e então para mim de novo. — Obrigada por estar certo.
Eu me levanto da cadeira, seguro seu queixo e levanto sua cabeça para poder beijá-la na boca.
Alguém bate de leve na porta e ela se abre devagar. A cabeça da minha mãe aparece.
— Entra — eu digo, chamando-a com um gesto.
A porta larga se abre completamente, e tanta gente entra no quarto em fila indiana que eu paro de contar depois de Aidan e Michelle, que está grávida de cinco meses.
Nós nos abraçamos, todos passando os braços ao meu redor, mas tentando dar uma olhada na bebê ao mesmo tempo.
— Parabéns, mano — Aidan diz, me dando tapinhas nas costas. — Eu tava sentindo que você ia ser pai antes de mim. — Ele acaricia a barriga redonda de Michelle. Ela afasta sua mão de um jeito bem-humorado e o avisa para não enfiar mais o dedo no seu umbigo. Depois me abraça e se aproxima de Camryn na cama.
— Nós vamos ter um menino — Aidan conta.
— É mesmo? — exclamo. — Que legal.
A notícia também chama a atenção de Camryn, mas Michelle fala primeiro.
— Ele não tem certeza — ela diz. — Só acha que sabe.
Camryn ri baixinho e diz:
— Pode acreditar, se um dos irmãos Parrish diz que vai ter um menino ou uma menina, provavelmente vai acertar.
— Tudo bem, veremos — Michelle desconversa, ainda incrédula.
Eu olho para o meu irmão, e já vi essa expressão confiante. É, eles vão mesmo ter um menino.
— Ai meu Deus — ouço Natalie dizer baixinho em algum lugar do quarto —, o cobertor é cor-de-rosa. Isso significa o que eu tô pensando? — Ela leva as mãos ao rosto, cobrindo a boca com os dedos cheios de anéis. Na verdade, estou surpreso por vê-la tão calma. Blake está ao lado dela, em silêncio, como sempre.
Camryn olha primeiro para mim, eu sinalizo com a cabeça minha autorização e ela diz a todos:
— Sim, esta é a nossa filha.
Todas as mulheres migram imediatamente até a cama. A mãe de Camryn estende os braços, querendo ser a primeira a segurá-la no colo, e Camryn cobre o seio com a camisola e a entrega cuidadosamente.
— Oh, ela é tão linda, Camryn — Nancy elogia. Seu cabelo oxigenado está preso num coque malfeito no alto da cabeça. Seus olhos são tão azuis quanto os de Camryn. Elas se parecem mesmo. — Ela é perfeita. Minha netinha perfeita. — O padrasto de Camryn, Roger, parece apavorado, apoiado na parede, sozinho. Não sei se é porque esse tipo de situação o deixa constrangido ou porque se deu conta de que agora está casado com uma avó. Eu rio por dentro.
Asher me abraça a seguir.
— Se fosse menino, eu ia me preocupar em ter outro como você à solta por aí. — Ele sorri e me cutuca com o cotovelo.
— Bom, pode esperar, maninho — eu retruco, sugando ar entre os dentes —, você é o próximo da fila, e outro igual a você é tão ruim quanto outro igual a mim.
— Não sei não — ele rebate.
— É, tem razão. Pra isso você precisa de uma namorada. Acho que não vai precisar se preocupar com essa possibilidade tão cedo.
— Cara, eu tenho namorada.
— Quem é? Lara Croft? Ou alguma desenhada por Luis Royo? — eu rio.
— Deixa quieto, cara — ele diz, cruzando os braços e balançando a cabeça, mas sei que é preciso bem mais para deixá-lo puto. Se eu não tirasse um sarrinho, ele ia achar que eu estava doente.
— Tio Asher — eu digo, para me redimir mesmo assim. — Até que soa bem.
Ele faz que sim com a cabeça, pensativo, e concorda:
— É, também acho.
Nancy passa nossa filha para minha mãe, em seguida. Eu nunca a vi tão orgulhosa. Seus olhos passam de mim para a bebê, indo e voltando.
— Ela tem seu nariz e seus lábios, Andrew — minha mãe afirma.
— E o cabelo e os pulmões de Camryn — eu lembro.
Natalie está no pé da cama agora, e está agitada, com as mãos à frente do corpo. Minha mãe percebe o quanto ela está ansiosa para pegar a bebê, por isso beija a cabeça da neta e a passa para Natalie.
— Espero que você tenha lavado as mãos, Nat — Camryn diz da cama.
— Eu lavei! — Natalie responde, e em seguida ignora Camryn e começa a falar com minha filha, embora ela esteja dormindo: — Oh, você é a coisinha mais linda que eu já vi — sua voz ficando mais alta à medida que ela fica mais emocionada. Então ela olha Camryn nos olhos e diz, séria: — Meu Deus, eu quero um também.
Blake arregala os olhos, e acho que para de respirar. Quando olho para ele de novo, alguns minutos depois, vejo que já está ao lado de Roger, encostado na parede.
Brenda, a tia de Camryn, é a próxima a pegar a bebê no colo, e depois uma de suas primas. Depois que Michelle a segura por alguns minutos, derramando elogios à sua beleza, ela a devolve para Camryn. Eu me sento novamente na cadeira ao seu lado.
— Então, já escolheram um nome? — minha mãe pergunta.
Camryn e eu nos entreolhamos, e ambos estamos pensando a mesma coisa.
— Ainda não — Camryn responde, e é só o que ela diz. Eu sei que devo ser o único no quarto que percebe na hora o que a questão do nome causou: Camryn não conseguiu evitar pensar em Lily. Mas ela deixa esse momento passar e beija a bochecha da nossa bebê, obviamente tão orgulhosa do que tem, apesar do que perdeu.
A maioria dos parentes vai embora antes de escurecer, mas nossas mães ficam até um pouco mais tarde, se conhecendo melhor. É a primeira vez que elas se encontram oficialmente. E por fim vão embora, pouco depois das sete, quando a enfermeira entra no quarto para dar uma olhada na bebê e em Camryn.
Quando nós três ficamos a sós de novo, eu reduzo a iluminação do quarto, deixando só a luz do banheiro acesa. Nossa filha dorme profundamente no colo de Camryn. Eu sei que minha mulher está cansada, completamente exausta, mas ela não consegue largar a bebê para também dormir um pouco. Eu me ofereci para pegá-la para que ela possa dormir, mas Camryn insiste em ficar acordada.
Eu olho para as duas por um instante, um momento tão perfeito, e então me aproximo e me sento na beira da cama, perto delas.
Camryn olha para mim, depois mais uma vez para nosso anjinho adormecido.
— Lily — eu digo simplesmente.
Camryn volta a me olhar, confusa.
Eu balanço a cabeça devagar, como que para dizer: Sim, você ouviu certo, e toco a cabecinha macia da nossa bebê de novo.
— Lembra o que eu disse? Em Chicago, quando encontrei os comprimidos?
Ela balança a cabeça negativamente.
Desta vez, eu toco o rosto de Camryn, correndo os dedos por um lado dele e depois pelo outro.
— Eu disse que Lily ainda não tava pronta. — Fico em silêncio e depois acrescento, com um sorriso: — Mesma alma, outro corpo.
Algum pensamento brilha nos olhos de Camryn. Ela inclina a cabeça um pouco para o lado, me olhando, intrigada. E então olha de novo para a bebê e não ergue mais o olhar pelo que parece uma eternidade.
Quando ela levanta a cabeça, lágrimas estão escorrendo pelo seu rosto.
— Você acha? — ela pergunta, esperançosa.
— Sim. Eu acho.
Ela começa a chorar mais copiosamente e aperta com delicadeza a bebê Lily contra os seios, ninando-a. Então olha para mim e balança a cabeça várias vezes.
— Lily — ela murmura baixinho, beijando-lhe o alto da cabeça.
Na manhã seguinte, eu me espreguiço na cadeira ao lado da cama de Camryn, onde peguei no sono na noite anterior. Eu a ouço falando em voz baixa no quarto e, como todas as outras vezes, finjo ainda estar dormindo enquanto ela lê a carta que escrevi meses atrás.
Camryn
38
Querida Camryn,
Eu sei que você está com medo. Eu estaria mentindo se dissesse que não estou com um pouco de medo também, mas preciso acreditar que desta vez vai ficar tudo bem. E vai ficar.
Nós passamos por tanta coisa juntos. Mais do que a maioria das pessoas, em tão pouco tempo. Mas em qualquer situação, a única coisa que nunca mudou é que ainda estamos juntos. A morte não conseguiu me tirar de você. A fraqueza não conseguiu me fazer ver você de forma negativa. As drogas e as merdas que vêm com elas não conseguiram tirar você de mim, nem voltar você contra mim. Acho que podemos afirmar com toda a segurança que somos indestrutíveis.
Talvez tudo isso tenha sido um teste. Sim, eu penso muito a respeito e me convenci disso. Muita gente prefere ignorar o Destino. Alguns têm tudo o que já quiseram ou precisaram ao alcance das mãos, mas abusam disso. Outros passam reto pela sua única oportunidade porque nunca abrem os olhos por tempo suficiente para ver que ela está ali. Mas você e eu, até antes de nos conhecermos, corríamos todos os riscos, tomávamos nossas próprias decisões sem dar ouvidos aos outros ao nosso redor nos dizendo, de tantas maneiras, que o que fazíamos estava errado. Não, porra, nós fazíamos do nosso jeito, por mais imprudente, louco ou fora do convencional que fosse. Parecia que quanto mais avançávamos e lutávamos, mais árduos ficavam os obstáculos. Porque precisávamos provar que nós somos os caras.
E eu sei que fizemos exatamente isso.
Camryn, quero que você leia esta carta para si mesma uma vez por semana. Não importa que dia ou que hora, apenas leia. Cada vez que você a abrir, quero que veja que mais uma semana se passou e você continua grávida. Eu continuo com saúde. Nós ainda estamos juntos. Quero que você pense em nós três, você, eu e nosso filho ou filha, viajando pela Europa e pela América do Sul. Só visualize isso. Porque nós vamos fazer isso. Eu prometo.
Você é tudo pra mim, e quero que continue forte e não deixe que seu medo do passado contamine o caminho para o nosso futuro. Vai dar tudo certo desta vez, Camryn, vai, sim, juro pra você.
Apenas confie em mim.
Até semana que vem...
Com amor,
Andrew
Eu ergo os olhos da carta na minha mão, deixando-a ao meu lado na cama, presa entre meus dedos. Lily dorme profundamente ao meu lado no berço do hospital. Andrew precisou ser convincente para que eu finalmente concordasse em colocá-la ali, em vez de segurá-la no colo a noite inteira. Mas acordei várias vezes para verificar se ela ainda estava respirando. Eu verifico de novo, agora. Não consigo evitar; acho que vou fazer isso por meses.
Finalmente, eu dobro a carta de Andrew mais uma vez nas mesmas dobras gastas. Provavelmente, ele acha que vou parar de lê-la, agora que Lily nasceu. Mas não vou. Nunca parei de ler a primeira carta que ele me escreveu, embora ele não saiba. Algumas coisas eu guardo só pra mim.
— Pronta pra botar aqueles destinos no chapéu? — Andrew diz.
Eu me pergunto há quanto tempo ele está acordado. Olho para ele e sorrio.
— Vamos esperar mais uns meses.
Ele balança a cabeça e se levanta da cadeira.
— Como conseguiu dormir assim? — pergunto. — Devia ter ido pro sofá. — Eu olho para o pequeno sofá perto da janela.
Andrew estica os braços para os lados e estala as costas e o pescoço. Ele não responde.
— Acho que finalmente vamos poder pegar todas aquelas coisas do primeiro chá de bebê na casa da minha mãe e trazer pra nossa casa — digo.
Andrew abre um sorriso maroto.
— Peraí, você já fez isso, certo?
Ele se espreguiça um pouco mais.
— Tecnicamente, não fui eu. Ontem, Natalie, Blake e sua mãe levaram tudo pra lá depois que a gente foi pro hospital, e já arrumaram tudo.
Eu não quis fazer isso durante a gravidez. Era só mais uma maneira de me preocupar em pôr o carro na frente dos bois e depois perder outro bebê. Pelo mesmo motivo, me recusei a saber o sexo do bebê antes que nascesse. Eu não queria me concentrar nem contar com nada disso como da outra vez. Achava que podia dar azar. No fundo, Andrew não concordava com isso, mas nunca disse nada, nem tentou me fazer mudar de ideia.
— E, como você provavelmente pode imaginar — ele continua —, como Michelle e minha mãe estão aqui, vai ter muito mais coisas além dos presentes do chá de bebê te esperando em casa.
~~~
No dia seguinte, quando Andrew abre a porta da nossa casa e eu entro com Lily no colo, vejo de cara que ele me disse a verdade. A casa está impecável. Eu jamais conseguiria deixá-la tão limpa. Quando Andrew me leva para a sala pelo corredor, ao passar vejo de relance um receptor de babá eletrônica no balcão da cozinha, outro sobre a mesinha de centro da sala, outro sobre a pia do banheiro, e finalmente, o terminal principal no quarto de Lily quando entro.
Eu fico sem fôlego, arregalando os olhos.
— Uau, Andrew, olha o que eles fizeram!
Lily se mexe no meu colo, provavelmente reagindo à empolgação na minha voz, mas logo se aquieta de novo.
O berço está encostado numa parede, com um lindo móbile musical do Ursinho Puff acima. Um jogo com gaveteiro e trocador ocupa a outra parede, perto da janela. Andrew abre as gavetas e mostra que cada uma está cheia de roupinhas, cobertores, panos, meinhas e várias outras coisas. Ele abre o armário e eu vejo dezenas de vestidinhos e conjuntos. Há tantos pacotes de fraldas empilhados ao lado do trocador que acho que nunca mais vamos comprar fraldas. Claro que sei que é só otimismo da minha parte.
Andrew me leva de volta ao corredor e abre o armário ao lado do banheiro para me mostrar um andador, um balanço infantil e uma espécie de estranho trepa-trepa, todos ainda nas caixas.
— Vou ter que montar isso tudo quando ela tiver idade pra usar — ele explica. — Mas ainda vai demorar um pouco.
— Acha que vai conseguir sozinho? — pergunto, brincando.
Ele empina o queixo e diz:
— Sem nem ler as instruções.
Eu só rio por dentro.
Então ele me leva para o nosso quarto. Há um bercinho branco perto da cama, do meu lado.
— Comprei pra você — ele conta, sorrindo com orgulho. — Sei que ainda vai demorar muito pra você conseguir deixá-la sozinha no quarto, então imaginei que ia precisar de um bercinho.
Ele está ficando vermelho. Eu me aproximo e beijo o canto de sua boca.
— Você tá certo. Obrigada.
Lily começa a se mexer de novo, e desta vez acorda. Andrew a pega do meu colo.
— Deixa que eu troco a fralda dela — ele diz.
Eu a entrego, deito no sentido da largura da nossa cama e fico observando. Ele a deita na cama também e solta seus cobertores. Os gritos mais bonitinhos, mas altíssimos, saem de seus pulmões. Os bracinhos e as pernas se agitam rigidamente. A cabecinha toda fica roxa feito uma beterraba. Mas Andrew não se abala. E quando abre a fralda dela, não fica enojado com a surpresa que ela deixou. Admito que fico surpresa com a facilidade que ele já demonstra em ser pai.
~~~
Voltei a trabalhar na Bath and Body Works quando terminou a minha licença-maternidade, mas agora só por meio período. Minha chefe, Janelle, é maravilhosa, e gosta tanto de mim que me deu um aumento de um dólar quando contei que estava grávida. Só eu e Natalie trabalhamos lá, agora; Natalie faz período integral e assumiu boa parte do meu trabalho acumulado nas seis semanas em que estive de folga. Mas ela não liga. Diz que está economizando para comprar a casa própria. Ela e Blake parecem se curtir muito, sempre que os vejo juntos. Para ser sincera, nunca vi Natalie tão feliz. Eu achava que ela era feliz quando estava com Damon, mas estou percebendo que aquilo devia ser só tolerância e baixa autoestima. Blake é diferente. Acho que eles vão dar certo.
Andrew começou a trabalhar numa mecânica e funilaria umas três semanas depois que mudamos para a nossa casa. Seu conhecimento de carros lhe garantiu um lugar privilegiado na folha de pagamentos. Com certeza está ganhando mais do que eu, mas tenta me valorizar dizendo: “Isso não é porra nenhuma comparado a empurrar minha menina pra fora da sua...” Eu sempre o interrompo aí.
Desnecessário, Andrew. Mas obrigada!
Creche é coisa de rico, na minha opinião. Sinceramente, não acho que alguém que ganha salário mínimo possa pagar. O casal trabalharia só pra pagar a creche, o que não faz sentido. Além disso, Andrew e eu concordamos que não queremos deixar nossa filha na mão de estranhos. Por isso combinei com Janelle trabalhar só meio período à noite, quando Andrew está em casa, e um fim de semana sim, outro não.
Estamos vivendo bem e dando conta de tudo, como se tivéssemos levado a vida inteira desse jeito. Nosso saldo bancário pode ter seis dígitos, mas sabemos que é melhor devolver tudo o que conseguimos às nossas economias e gastar o mínimo possível. Além dos nossos empregos, Andrew e eu nos apresentamos com frequência, nas noites de sábado em que não estou trabalhando, no bar que o irmão de Blake, Rob, abriu na cidade. Algo aconteceu com o Underground e Rob precisou fechá-lo. Os boatos são de que Rob escapou por pouco de ser condenado à prisão. Acho que foi porque ele não tinha autorização para ter um bar, não sei. Mas Blake é o gerente do novo bar, e nas noites em que Andrew e eu tocamos lá, ganhamos metade do couvert artístico, que é mais do que já ganhamos tocando em qualquer outro bar, menos no de Aidan. Sábado passado faturamos oitocentas pratas.
É mais dinheiro entrando nas nossas economias para nossos planos futuros de ir aonde aquele chapéu nos mandar.
E, embora Andrew sempre ponha todo o seu coração e sua alma em cada apresentação, como sempre fez, agora percebo que, quando estamos no palco juntos, ele fica ansioso para terminar, para irmos pegar Lily na casa da minha mãe ou de quem teve a sorte de ficar com ela por aquelas poucas horas à noite.
Andrew tem tanto jeito com Lily. Ele não para de me surpreender. Levanta no meio da noite tantas vezes quanto eu para trocá-la, e às vezes até fica acordado comigo enquanto dou de mamar. Mas também tem seus momentos masculinos, portanto não é totalmente o Sr. Perfeitinho. Ao que parece, ele não é completamente imune a fraldas cagadas, e esta manhã mesmo o peguei com ânsia de vômito enquanto tentava trocá-la. Eu ri, mas fiquei com tanta pena que não pude deixar de assumir a tarefa. Ele saiu do quarto cobrindo a boca e o nariz com a camiseta.
E... bem, não quero tirar conclusões precipitadas, mas acho que Lily pode ter amolecido Andrew a ponto de ele gostar de Natalie, agora. Só um pouquinho, talvez. Não sei, mas sempre que Nat está aqui, segurando Lily no colo e fazendo-a sorrir, falando com ela do seu jeito animado, Andrew parece achar legal. Quando Lily completou três meses, eu sinceramente já nem lembrava a última vez que Andrew chamou Natalie de hiena pelas costas, ou fez aquela cara exasperada para mim quando ela não estava olhando.
Ele ainda faz careta quando ela diz que é madrinha da Lily, mas... um passo de cada vez. Ele chega lá.
Andrew
39
9 DE FEVEREIRO — primeiro aniversário de Lily — Aidan e Michelle chegaram! — ouço Camryn anunciar da sala.
Eu fecho o último botão nas costas do vestido de Lily e a pego pela mão. Mas ela não gosta quando seguro a mão dela e sempre se desvencilha e segura meu dedo indicador.
— Vem, bebê — eu chamo, olhando para ela. — O tio Aidan e a tia Michelle vieram ver a aniversariante.
Juro que ela entende o que estou dizendo.
Ela aperta meu dedo com toda a força, dá uma risadinha e um passão para a frente, como se eu fosse lerdo demais para acompanhá-la. Todo encurvado, eu dou passinhos rápidos e avanço pelo corredor, deixando que ela corra com suas perninhas roliças à minha frente. Quando Lily começa a cair ao fazer a curva, eu seguro sua mão, levanto-a um pouco do chão e deixo que se equilibre de novo. Ela começou a andar com dez meses. Sua primeira palavra foi “mamá”, quando tinha seis meses. Com sete meses, ela falou “papá”, e eu me derreti ao ouvi-la me chamar assim pela primeira vez.
E Camryn tinha razão — ela tem olhos verdes como os meus.
— Lily! — Michelle exclama dramaticamente, agachando-se para tomá-la nos braços. — Meu Deus do céu, você tá enorme! — Ela a beija nas bochechas, na testa e no nariz, e Lily gargalha sem parar. — Nham nham nham! — Michelle acrescenta, fingindo morder as bochechas.
Eu olho para Aidan, que está com meu sobrinho, Avery, colado ao corpo. Faço menção de pegá-lo, mas ele é tímido e se encolhe sobre o peito de Aidan. Eu recuo, torcendo para que ele não chore. Aidan tenta convencê-lo.
— Ele já tá andando? — Camryn pergunta, de pé ao meu lado.
Michelle segue Lily para a sala, onde uma nuvem de balões de hélio cor-de-rosa e azuis se acumula no forro. Quando Lily percebe que não vai conseguir alcançar os balões, desiste e vai direto para a sua pilha de presentes no chão.
Aidan entrega dois embrulhos a Camryn, e vamos todos para perto de Michelle e Lily na sala. Camryn põe os presentes junto com os outros.
— Ele tá tentando — Aidan responde, falando dos progressos de Avery. — Já anda se segurando no sofá, mas ainda não sente vontade de se soltar.
— Meu Deus, ele parece com você, mano — comento. — Coitadinho.
Aidan me daria um soco no estômago, se estivesse com as mãos livres.
— Ele é lindo — Camryn elogia, estendendo os braços para pegá-lo.
Claro que é, mas eu preciso zoar o meu irmão.
Avery primeiro a olha como se ela fosse louca, mas depois se vinga de mim por falar merda sobre seu pai, pulando direto no colo de Camryn sem problemas.
Aidan ri.
Nancy e Roger, Natalie e Blake, Sarah e seu namorado, que já tem um filho com uma ex-namorada, aparecem todos praticamente ao mesmo tempo. Depois, nossos vizinhos, Mason e Lori, um jovem casal com um filho de dois anos, chegam trazendo presentes. Lily, como a pequena exibicionista que é, apoia as mãos e a cabeça no tapete, empinando a bundinha enfraldada no ar. Então finge cair e diz “Oh-oh”, fazendo todos caírem na risada.
— Olha só esse cabelo louro encaracolado — Michelle diz. — O cabelo de Camryn era tão clarinho assim quando ela era bebê? — pergunta para a mãe de Camryn, que está sentada ao seu lado.
Nancy balança a cabeça.
— Sim, era assim mesmo.
Mais tarde, depois que todos chegam, Lily pode abrir seus presentes e, como sua mãe, canta, dança e faz um show para todos. E depois de soprar a velinha (na verdade, eu meio que soprei por ela), ela praticamente toma um banho de bolo e cobertura roxa. Seu cabelo e seus cílios estão melecados, tem bolo até dentro do nariz dela. Camryn tenta, em vão, evitar que ela faça bagunça demais, mas acaba desistindo e deixando Lily se divertir.
Lily capota depois de tanta empolgação, bem antes que o último convidado saia.
— Acho que foi o banho — Camryn sussurra para mim enquanto a olhamos no berço.
Eu pego Camryn pela mão e a levo comigo, encostando a porta do quarto de Lily, mas deixando uma fresta.
Ficamos juntos no sofá vendo um filme pelas duas horas seguintes, depois Camryn me beija e vai tomar banho.
Eu desligo a TV, me levanto do sofá e olho ao meu redor na sala. Ouço a água do chuveiro correndo e os carros passando lá fora. Penso na conversa que tive com meu chefe ontem, quando ele me disse que já estou no emprego há quase dois anos e tenho duas semanas de férias vencidas. Mas eu sei que duas semanas não são suficientes para que eu e Camryn façamos as coisas que queremos fazer. Essa questão do emprego é a única coisa que não chegamos a resolver, decidir o que faremos quando quisermos sair de Raleigh por um mês ou mais. Não queremos perder nossos empregos, mas acabamos chegando pelo menos a uma conclusão: é um sacrifício que estamos dispostos a fazer, e vamos ter que fazer para realizar nossos sonhos de viajar pelo mundo e não virar vítimas daquela vida cotidiana monótona que tanto tememos.
Sabemos que não vamos ficar nesses empregos para sempre. E, bem, é para ser assim mesmo.
Mas eu disse ao meu chefe que sim, que eu iria tirar aquelas férias nos próximos meses. Decidi não avisá-lo que iria largar o emprego sem antes falar com Camryn hoje à noite.
Eu me levanto do sofá, pego um bloco de anotações da gaveta da mesinha do computador e me sento à mesa da cozinha com ele. E começo a escrever os nomes dos vários lugares que Camryn e eu já dissemos que queríamos conhecer: França, Irlanda, Escócia, Brasil, Jamaica... Escrevo até formar um monte de tiras de papel no meio da mesa. Enquanto estou dobrando uma por uma e jogando no chapéu de vaqueira de Camryn, ouço o chuveiro sendo fechado no banheiro.
Ela aparece na cozinha com o cabelo molhado colado nas costas.
— O que você tá fazendo? — ela pergunta, mas entende antes que eu consiga responder. Ela se senta ao meu lado. E sorri. Ótimo sinal.
— Talvez a gente devesse partir em maio ou junho — sugiro.
Ela passa o pente no cabelo molhado algumas vezes e parece pensar a respeito. Depois deixa o pente sobre a mesa.
— Você acha que Lily tá pronta pra isso? — ela pergunta.
Eu balanço a cabeça.
— Sim, acho que tá. Já tá andando. A gente disse que ia esperar pelo menos até ela começar a andar.
Camryn balança a cabeça também, ainda pensando a respeito, mas não parece ter dúvidas.
— Precisamos começar cedo com ela.
Com certeza, não somos como as outras famílias. Muitos pais rejeitariam completamente a ideia de viajar para o exterior com um bebê, só por viajar. Mas nós não. Admito que não é para todos, mas para nós, é a única coisa a fazer. Claro que nossas “viagens além” não serão como as épocas que Camryn e eu passamos na estrada nos EUA. Dirigir por aí sem destino por horas, dias e semanas a fio com um bebê no carro não é totalmente factível — Lily iria detestar. Não, essas viagens consistirão mais em ficar parados em cidades que queremos explorar, e não ir de uma cidade a outra sem parar muito para descansar. E, infelizmente, não levaremos o Chevelle.
Camryn puxa o chapéu para perto de si e mexe a mão dentro dele.
— Você pôs todos os países que escrevemos na lista? — ela pergunta.
— Claro.
Ela estreita os olhos, brincalhona.
— Tá mentindo.
— Quê? Não, eu pus todos mesmo.
Ela chuta a minha canela com o pé descalço por baixo da mesa.
— Você tá de onda com a minha cara, Andrew.
Então ela começa a pegar as tiras de papel, desdobrando e lendo uma por uma.
— Jamaica. — Ela põe a tira na mesa. — França. — Ela põe por cima da outra. — Irlanda. Brasil. Bahamas. Ilhas Virgens. México. — Uma a uma, ela empilha as tiras.
Depois de várias, ela pega a última, mantendo-a dobrada entre os dedos, e rosna para mim.
— Algo me diz que aqui não tá escrito “Itália”. — Ela está se esforçando tanto para não sorrir.
Realmente não sei por que achei que isso iria dar certo.
Enquanto tento não rir e continuar sério, ela desdobra o papel e lê: — Austrália. — Ela põe a tira no alto da pilha. — Eu deveria castigar você por tentar trapacear — ela reclama, erguendo o queixo e cruzando os braços teimosamente sobre o peito.
— Ah, por favor — eu digo, incapaz de me manter sério. — Pelo menos eu não pus mais algumas tiras com o nome “Brasil”. — Eu rio.
— Mas pensou em fazer isso, não pensou?!
Faço uma careta com seu berro, e ambos olhamos para o corredor, para o quarto onde Lily está dormindo.
Camryn se debruça um pouco sobre a mesa e cochicha entre os dentes: — Eu vou te punir. Nada de sexo por uma semana. — Ela se afasta de novo, apoiando as costas na cadeira, com um sorrisinho.
Tá, agora esse negócio perdeu a graça.
Eu engulo meu orgulho, hesito e digo:
— Vai, você não tá falando sério. Você gosta tanto quanto eu.
— Claro que gosto. Mas você nunca ouviu dizer que as mulheres têm a capacidade mágica de ficar mais tempo na seca? Eu me viro sozinha.
— Você tá blefando — acuso, descrente.
Ela balança a cabeça de leve, com um brilho nos olhos que diz blefando-o-cacete, e isso está me deixando nervoso.
— O que você vai fazer pra se redimir, então?
Eu levanto um lado da boca num sorriso.
— O que você quiser. — Faço uma pausa, levanto um dedo e acrescento, antes que seja tarde demais: — Bem, contanto que não seja degradante, nojento ou injusto.
Com o sorriso aumentando, Camryn se levanta lentamente da cadeira. Eu observo todos os seus movimentos com a maior atenção, em parte temendo perder alguma coisa. Ela enfia os polegares no elástico da calcinha e me provoca com a ideia de tirá-la.
Puta que me pariu... sério? Você chama isso de punição?
Tento manter minha compostura, fingindo que seus gestos não me afetaram de forma alguma, quando na verdade não é preciso praticamente nada para me deixar louco por ela.
Ela se afasta de mim.
— Tá indo pra onde? — pergunto.
— Me virar sozinha.
— Oi?
— Você me ouviu.
Tá, ouvi, mas... não era pra acontecer isso.
— Mas... qual é a minha punição?
Ela para só o tempo suficiente para se virar e olhar para trás.
— Você vai ficar assistindo.
— Peraí... o quê?
Eu começo a segui-la. Bruxa do mal.
Ela vai para a sala e se deita, com a cabeça apoiada no braço do sofá e uma perna por cima do encosto.
Bruxa do mal. Do mal!
Ela me olha com ar sedutor e basta isso; assim que nossos olhares se cruzam, subo em cima dela, esmagando minha boca sobre a dela.
— Sem chance, amor — sussurro febrilmente em sua boca, e a beijo com mais força ainda.
Sua mão agarra a minha camiseta, sua língua se enrola apaixonadamente na minha.
E então Lily começa a chorar.
Eu paro. Camryn para. Nós nos entreolhamos por um momento, os dois frustrados, mas não conseguimos deixar de sorrir. Lily tem sono pesado e já quase não acorda mais durante a noite, mas de alguma forma sua intervenção, esta noite, não me surpreende.
— Eu vou desta vez — ela diz, se levantando do sofá.
Fico de pé, passando a mão no alto da cabeça.
Depois que ela desaparece no corredor, volto para a cozinha e me sento à mesa para rabiscar “Itália” em outra tira de papel. Eu a jogo no chapéu, dobro todas as outras e jogo dentro também.
Em minutos, a casa está em silêncio, depois que Camryn faz Lily dormir. Ela se senta na cadeira ao meu lado de novo, erguendo as pernas e cruzando-as sobre o assento. Apoiando um cotovelo na mesa, ela segura o queixo com a mão e me olha com um sorriso meigo, como se tivesse algo em mente.
— Andrew, você acha mesmo que a gente consegue fazer isso?
— Fazer o quê, exatamente?
Ela apoia os braços na mesa à sua frente, entrelaçando os dedos.
— Viajar com Lily.
Eu fico em silêncio e me apoio no encosto da cadeira.
— Sim, eu acho que a gente consegue. Você não?
Seu sorriso enfraquece.
— Camryn, você não quer mais viajar?
Ela balança a cabeça.
— Não, não é isso, juro. Só tô com muito medo. Nunca conheci pessoalmente ninguém que tentou uma coisa dessas. É assustador, só isso. E se a gente estiver se iludindo? Vai ver que as pessoas normais não fazem esse tipo de coisa por um motivo.
De início, fiquei preocupado. Tive a sensação de que talvez ela tivesse mudado de ideia, e embora eu aceitasse o que ela quisesse, uma parte de mim ficaria decepcionada por algum tempo.
Eu me encosto e apoio os braços sobre a mesa diante de mim, como Camryn. Meu olhar fica meigo quando olho para ela.
— Eu sei que a gente consegue. Contanto que seja o que nós dois queremos igualmente, que nenhum dos dois só esteja fazendo porque acha que é o que o outro quer, então sim, Camryn, eu sei que a gente consegue. Dinheiro a gente tem. Lily só vai entrar na escola daqui a anos. Nada nos impede.
— É isso que você quer realmente? — ela pergunta. — Jura que não tem uma parte de você que só tá indo adiante com isso por minha causa?
Eu balanço a cabeça.
— Não. Mas se eu não quisesse tanto quanto você, faria assim mesmo porque é o que você quer. Mas não, eu quero de verdade.
Aquele sorriso fraco dela se fortalece de novo.
— E você tem razão — eu continuo —, é assustador, admito. Não seria tanto se fôssemos só eu e você, mas pense por um segundo. Se não fizermos isso, o que mais vamos fazer?
Camryn desvia o olhar, pensativa. Ela dá de ombros e diz: — Trabalhar e criar uma família aqui, acho.
— Exatamente. Esse medo é a linha tênue que nos separa deles. — Faço um gesto amplo para indicar quem são “eles”, o tipo de gente do mundo que não queremos nos tornar. Camryn entende; vejo isso em seu rosto. E não estou dizendo que pessoas que decidem ficar num só lugar a vida toda e criar uma família estão erradas. São as pessoas que não querem viver assim, que sonham em ser algo mais, fazer algo mais, mas nunca vão atrás disso porque deixam que o medo as impeça antes mesmo de começarem.
— Mas o que a gente vai fazer? — ela pergunta.
— O que a gente quiser. Você sabe disso.
— Tá, mas eu digo depois. Daqui a cinco, dez anos, o que vamos fazer com nossas vidas, com a vida de Lily? Por mais que eu adore a ideia de fazer isso pra sempre, não consigo imaginar que seja realística. Uma hora nosso dinheiro vai acabar. Lily vai ter que ir pra escola. Aí vamos parar aqui de novo e ficar como eles do mesmo jeito.
Eu balanço a cabeça e sorrio.
— Corrigindo, esse medo e essas desculpas são a linha tênue. Amor, a gente vai ficar bem. Lily vai ficar bem. Vamos fazer o que quisermos, ir aonde quisermos e aproveitar a vida, sem nos acomodarmos numa vida que nenhum de nós realmente quer. O que tiver que acontecer, se o dinheiro começar a faltar, se a gente não conseguir trabalhar pra repor, se Lily precisar estudar e a gente tiver que decidir ficar num só lugar por muito tempo, mesmo se esse lugar for aqui, nesta casa, vamos fazer o que tivermos que fazer. Mas agora — eu aponto severamente para a mesa —, neste momento, não é com essas coisas que precisamos nos preocupar.
Ela sorri.
— Tá. Eu só queria ter certeza.
Eu balanço a cabeça e empurro o chapéu na direção dela com o dedo.
— Você escolhe primeiro — eu digo.
Ela começa a mexer dentro dele, mas para e estreita os olhos para mim.
— Você pôs a Itália aqui dentro?
— Pus, sim. Juro.
Sabendo que estou dizendo a verdade dessa vez, Camryn enfia mais a mão no chapéu e remexe as tiras de papel com os dedos. Ela tira uma e a segura no punho fechado.
— Bem, tá esperando o quê? — pergunto.
Ela põe sua mão na minha e diz:
— Quero que você leia.
Eu balanço a cabeça, tomo o papelzinho dela e o desdobro cuidadosamente. Leio só para mim primeiro, deixando minha imaginação explodir com visões de nós três lá. Eu estava tão fissurado em ganhar a aposta com o Brasil que nem pensei muito nos outros países, mas agora que perdi, é fácil imaginar.
— E então? — ela está ficando impaciente.
Eu sorrio e jogo a tira de papel sobre a mesa, com o nome para cima.
— Jamaica — anuncio. — Pelo jeito, nós dois perdemos a aposta.
Camryn abre um enorme sorriso. Aquela tirinha de papel sobre a mesa diante de nós é tão mais do que apenas papel e tinta. Ela acaba de pôr em movimento o resto de nossa vida juntos.
Camryn
40
E COMO FOI fantástica e maravilhosa essa vida.
Lembro como se fosse ontem o dia em que partimos, no fim da primavera, para a Jamaica. Lily usava um vestido amarelo e duas presilhas florais no cabelo. Ela não chorou nem deu trabalho no voo para Montego Bay. Foi um anjinho. E quando chegamos nesse primeiro destino, assim que descemos do avião e pisamos em outro país, tudo se tornou real.
Foi então que Andrew e eu ficamos... diferentes.
Mas eu já vou falar disso.
Foi há muito tempo, e eu quero começar do princípio.
Por dois meses, até o dia em que subimos naquele avião, eu continuei com medo de fazer isso. Por mais que eu quisesse fazer, por mais vezes que dissesse a mim mesma que Andrew tinha razão e que eu não precisava me preocupar, eu sempre me preocupava, é claro. Tanto que, dois dias antes da partida, quase dei pra trás.
Mas aí me lembrei da época quando Andrew e eu nos conhecemos, quando ele me fez enfiar suas roupas naquela mochila, logo isso:
— Então, pra onde a gente vai primeiro? — perguntei, dobrando uma camisa que ele me deu para pôr na mochila, a primeira da pilha.
Ele ainda estava fuçando no closet.
— Não, não — ele disse lá de dentro; sua voz chegava meio abafada —, nada de planejamento, Camryn. Vamos só pegar o carro e rodar. Nada de mapas, nem planos, nem... — Ele pôs a cabeça para fora do closet e sua voz ficou mais clara. — O que você tá fazendo?
Ergui o olhar, com a segunda camisa da pilha já meio dobrada.
— Dobrando suas camisas.
Ouvi um tum-tum quando ele deixou cair um par de tênis pretos e saiu do closet. Quando chegou, me olhou como se eu tivesse feito algo errado e tirou a camisa dobrada das minhas mãos.
— Não seja tão perfeitinha, gata; só enfia tudo na mochila.
Um momento aparentemente insignificante que compartilhamos, mas foi isso, no fim das contas, que me deu a coragem para subir naquele avião. Eu sabia que, se eu ficasse, se continuasse a pensar demais em tudo, a única coisa que eu iria conseguir seria deixar o medo controlar a minha, a nossa vida toda, daquele momento em diante.
E sempre que revejo nossa vida agora, a única coisa que ainda me apavora é saber que faltou muito pouco para que passássemos o resto da vida na Carolina do Norte.
Ficamos três semanas na Jamaica, adoramos tanto que nem queríamos ir embora. Mas sabíamos que tínhamos tanta coisa mais a fazer, tantos lugares para ver. E assim, uma noite, depois de nos enturmar na praia com os locais, Andrew enfiou a mão no saquinho (trocamos o chapéu de vaqueira por um saquinho roxo de uísque Crown Royal, muito mais fácil de carregar) e tirou o Japão. Do outro lado do oceano...
Isso era algo que não havíamos previsto.
Nem é preciso dizer que abandonamos completamente a ideia do saquinho e de sortear países, depois dessa. Passamos a escolher a próxima etapa de acordo com a nossa localização: Venezuela, Panamá, Peru e finalmente o Brasil. Visitamos todos eles, passando o maior tempo, dois meses, em Temuco, no Chile, e evitando a todo custo lugares conhecidos por serem mais perigosos para viajantes, cidades e até países inteiros em qualquer situação de conflito. E, em todo lugar que visitamos, nos sentimos cada vez mais parte de cada cultura. Comendo os pratos típicos. Participando de eventos. Aprendendo os idiomas. Só algumas frases essenciais aqui e ali eram o máximo que Andrew e eu conseguíamos aprender.
E nós voltávamos para os EUA nos feriados. Dia de Ação de Graças em Raleigh. Natal em Galveston. Ano-novo em Chicago. E, claro, também passamos o segundo aniversário de Lily em Raleigh. Nós a levamos ao pediatra para um checkup e para pôr as vacinas em dia. E, sim, Andrew também fazia checkups e, como a filha, tinha uma saúde de ferro.
Pouco antes da primavera, Andrew concordou com a ideia de deixar Natalie e Blake alugarem nossa casa. Era meio perfeito, na verdade. Eles estavam procurando uma casa, e nós precisávamos do dinheiro, e isso também nos livrou de pagar as contas. Ainda tínhamos muito dinheiro no banco, mas viajar tanto estava começando a abrir um buraco na nossa conta. Mas começamos a pegar as manhas de como economizar no exterior, fazendo uso de pousadas, hotéis baratos e casas de veraneio ainda mais baratas. Não precisávamos de luxo, só de um lugar seguro e limpo para Lily.
Mas acho que o que nos fazia economizar mais era que nunca viajávamos para lugar nenhum como turistas. Não comprávamos lembrancinhas nem nada de que não precisássemos. Não estávamos ali para acompanhar visitantes em passeios com guias ou gastar dinheiro fazendo tudo o que quem planeja uma viagem de férias faz. Comprávamos só o necessário, e de vez em quando torrávamos algum dinheiro em comida boa ou num brinquedo novo para Lily, quando ela se cansava do que tinha.
E também cantávamos para ganhar um dinheirinho extra, às vezes, mas, com Lily, nunca nos apresentávamos juntos. Como não ousávamos nem pensar em deixar Lily aos cuidados de alguém, nem mesmo por alguns minutos, eu parei de cantar completamente, e Andrew tocou violão e cantou por uns tempos sozinho. Mas no fim ele parou também. Países estrangeiros. Estilos diferentes de música. Idiomas completamente diferentes. Não demoramos muito para perceber que nossa música não era tão eficaz nesses lugares como na nossa pátria.
Alguns meses depois do segundo aniversário de Lily, Andrew e eu decidimos que estava na hora de partir. Queríamos viajar o máximo possível antes que fosse preciso parar em algum lugar para que Lily pudesse começar a estudar. E eu estava pronta para conhecer a Europa. Assim, com o verão se aproximando, Portugal se tornou nosso destino seguinte.
Andrew e eu “crescemos” no dia em que descemos daquele avião na Jamaica. Foi isso que eu quis dizer quando falei que ficamos diferentes. Claro que Lily nos pôs bastante nos eixos quando nasceu, mas quando descemos do avião e sentimos a brisa nos nossos rostos, não só eu finalmente descobri que o ar é diferente mesmo em outros países, mas nós descobrimos que era real. Estávamos muito longe de casa com a nossa filha, e por mais que nos divertíssemos, daquele dia em diante, jamais poderíamos baixar a guarda.
Nós crescemos.
Andrew
41
EU PENSO MUITO na minha vida de antes, até antes de conhecer Camryn, e vejo que é meio assustador o quanto mudei. Eu era o que ela denomina um “galinha” no colegial. E, tudo bem, continuei meio galinha depois do colegial — ela sabe de todas as mulheres com as quais já transei. Das festas que eu frequentava. Sabe praticamente tudo a meu respeito. De qualquer forma, penso muito no meu passado, mas não sinto saudade. A não ser de vez em quando, contando lembranças da infância com meus irmãos, sinto aquela nostalgia da qual Camryn falava na nossa segunda vez em Nova Orleans.
Não me arrependo de nada que fiz no passado, por mais que tenha chutado o balde às vezes, mas tampouco faria de novo. Consegui sobreviver àquela vida e faturar uma linda esposa e uma filha que realmente não mereço.
Fiquei sabendo ontem que Aidan e Michelle, depois de dois filhos e anos de casamento, estão se divorciando. Odeio que estejam passando por isso, mas acho que nem todo mundo nasceu para ficar junto com alguém, como Camryn e eu. Eu me pergunto se eles não teriam conseguido se não se matassem tanto de trabalhar. Aquele bar consumia o meu irmão, e Michelle também era consumida pelo seu emprego. Camryn e eu conversamos sobre como eles pareciam estar se distanciando, já na primeira visita de Camryn, antes que Lily nascesse.
— Eles só trabalham — Camryn comentou uma noite, ano passado. — Trabalham, cuidam de Avery e Molly, veem TV e vão dormir.
Eu balancei a cabeça contemplativamente.
— É, que bom que a gente não acabou assim.
— Também acho.
Asher, por outro lado, tem um doce de garota chamada Lea. E me orgulho em dizer que um dia eles decidiram espontaneamente se mudar para Madri. Meu irmão caçula se deu muito bem profissionalmente, conseguindo um emprego de engenheiro de sistemas de informática que lhe permitia mudar de país. Ele não precisava ir. Poderia ficar em Wyoming, mas, pelo jeito, ele é mais parecido comigo do que eu pensava. Por sorte, Lea tem os mesmos interesses e a mesma determinação que ele; senão o relacionamento dos dois acabaria mais parecido com o de Aidan e Michelle do que com o meu com Camryn. E ouvi dizer que Lea ganha uma grana preta vendendo vestidos feitos à mão pela internet. Camryn pensou em tentar alguma coisa assim, até que se deu conta de que precisaria costurar.
Com eles morando em Madri, nós já tínhamos um lugar para ficar quando também fomos para lá. Asher insistia que não precisávamos pagar aluguel, mas nós pagamos assim mesmo. Camryn não queria ficar “na aba”, como ela mesma disse.
— Um dólar — Asher negociou, só para contentá-la.
— Não — Camryn rebateu. — Seis dólares e 84 centavos por semana, nem um centavo a menos.
Asher riu.
— Você é meio esquisita, mulher. Tudo bem. Seis dólares e 84 centavos por semana.
No início, só íamos ficar com meu irmão por umas semanas, mas uma noite, Camryn e eu tivemos uma conversa séria.
— Andrew, acho que talvez a gente devesse ficar aqui por uns tempos. Aqui em Madri. Ou talvez voltar pra Raleigh. Eu não quero, mas...
Eu olhei para ela, curioso, mas ao mesmo tempo era aparente, para mim, que estávamos pensando da mesma forma.
— Eu sei o que você tá pensando — admiti. — Não é tão fácil quanto a gente queria que fosse, viajar com Lily.
— Não, não é. — Ela olhou para longe, pensativa, e sua expressão ficou mais dura. — Você acha que a gente agiu certo? Indo com ela pra tantos lugares?
Finalmente, ela olhou para mim de novo. Pude ver pela sua expressão que ela torcia para que eu dissesse que sim, que agimos certo.
— Claro que sim — eu afirmei, com convicção. — Era o que a gente queria fazer quando partimos no primeiro dia. Não temos arrependimentos. Claro, precisamos fazer as coisas de outro jeito em nome da segurança dela, evitar vários lugares que queríamos visitar e ficar parados mais tempo do que queríamos para que ela não sofresse com mudanças bruscas, mas agimos certo.
Camryn sorriu suavemente.
— E talvez tenhamos despertado nela o amor pelas viagens. — Camryn fica vermelha. — Não sei...
— Não, acho que você tem razão.
— Então, o que você acha que devemos fazer?
Ficamos com Asher e Lea por três meses antes de partir de novo. Tínhamos uma última parada a fazer antes de voltar para os EUA: lá. Camryn finalmente admitiu o motivo de seu desejo persistente de ir para lá. Seu pai a levou para lá uma vez numa viagem de negócios, quando ela tinha 15 anos. Foram só ela e ele. E aquela foi a última vez que ela se sentiu sua garotinha. Eles passaram muito tempo juntos. Ele passou mais tempo com ela do que trabalhando.
— Tem certeza de que é uma boa ideia? — perguntei, antes de partirmos para Roma. — E se você voltar pra lá e estragar a lembrança, como a do bosque da sua infância?
— É um risco que eu tô disposta a correr — ela disse, pondo as roupas de Lily na nossa mala. — Além disso, não tô indo reviver aqueles seis dias com meu pai, vou pra lembrar aqueles seis dias com meu pai. Não tenho como estragar uma coisa que não lembro direito.
Quando chegamos lá, testemunhei Camryn lembrando tudo. Ela pegou Lily e se sentou com ela na escadaria da Piazza di Spagna, imagino que da mesma forma que seu pai fez quando a levou ali.
— A gente te ama muito — Camryn disse para Lily. — Você sabe disso, não sabe? — Ela apertou a mão de nossa filha.
Lily sorriu e beijou a mãe na bochecha.
— Eu te amo, mamãe.
Então Lily se sentou entre as pernas de Camryn enquanto a mãe passava os dedos pelo cabelo louro dela, fazendo uma trança e deixando-a sobre o ombro, como a dela.
Eu sorri e fiquei olhando, pensando num dia há tanto tempo:
— Vai ser um lance de amizade, acho — ela disse. — Sabe, duas pessoas fazendo uma refeição juntas.
— Ah — eu disse, sorrindo discretamente. — Então agora somos amigos?
— Claro — ela respondeu, obviamente pega desprevenida pela minha reação. — Acho que somos tipo amigos, pelo menos até Wyoming.
Eu estiquei o braço e lhe ofereci minha mão, e, relutantemente, ela apertou.
— Amigos até Wyoming, então — eu concordei, mas sabia que ela precisava ser minha. Mais do que até Wyoming. Para sempre seria suficiente.
Ainda pira minha cabeça pensar em como chegamos longe.
Depois de quase três anos na estrada, finalmente estava na hora de ir para casa.
Voltamos para Raleigh, para nossa humilde casinha. Natalie e Blake a desocuparam e foram morar do outro lado da cidade. Mais tarde, Lily começou a ir para a escola, e nos anos seguintes, fomos felizes, mas havia sempre uma parte de nós que parecia vazia. Vi minha garotinha se transformar numa linda jovem com sonhos e metas e aspirações na vida que rivalizam com os meus e de Camryn. Gosto de pensar que nós — Camryn e eu — levamos o crédito pelo que Lily se tornou. Mas, ao mesmo tempo, Lily é uma pessoa única, e eu acho que ela seria assim mesmo sem nossa ajuda.
Eu não poderia estar mais orgulhoso.
Parece que faz tanto tempo. E, bem, acho que faz. Mas, até hoje, lembro o dia em que conheci Camryn naquele ônibus no Kansas, algo ainda está tão nítido e vivo na minha mente que sinto que eu poderia estender a mão e tocar. E pensar que, se nós dois não tivéssemos partido como partimos, mandando a sociedade e seus julgamentos praquele lugar, jamais teríamos nos conhecido. Se Camryn se deixasse dominar pelo medo do desconhecido, poderíamos nunca ter tomado aquele avião para a Jamaica. Nós realmente vivemos nossas vidas da forma que nós queríamos viver, não da forma que o mundo esperava que vivêssemos. Corremos riscos, escolhemos o caminho fora do convencional, não deixamos a opinião dos outros sobre nossas escolhas atrapalhar nossos sonhos, e nos recusamos a continuar fazendo por tempo demais qualquer coisa que não nos agradasse. Claro, fazíamos o tempo todo coisas que não queríamos fazer, porque era necessário — trabalhamos em lanchonetes por algum tempo, por exemplo —, mas nunca deixamos nenhuma dessas coisas controlar nossas vidas. Encontramos uma saída, no fim das contas, em vez de nos deixarmos derrotar. Porque só temos uma vida. Temos só uma chance de fazê-la valer a pena. Nós pegamos essa chance e agarramos com unhas e dentes.
E acho que nos saímos bem pra caramba.
Sinceramente, não sei o que mais dizer. Não que nossa vida tenha acabado, agora que nossa história parece chegar ao fim. Não. Com certeza, está longe de terminar. Camryn e eu ainda temos tanta coisa a fazer, tantos lugares para ver, tantas regras da vida para desafiar.
Hoje é o primeiro dia do resto das nossas vidas. É um dia especial, para Lily, para nós, para tudo o que nós três representamos. Nossa história acabou, sim, mas nossa jornada não, porque nós vamos viver entre o agora e o sempre até morrer.
Epílogo
Quinze anos depois
Lily
— Lily Parrish! — A sra. Morrison chama o meu nome do palco montado no auditório. Ouço meus amigos e parentes gritando na multidão, depois assobios e palmas.
Eu seguro meu capelo sobre a cabeça enquanto subo os degraus de madeira. Ele não se encaixa bem. Papai tirou sarro de mim, dizendo que minha cabeça tem um formato esquisito e que isso é culpa de mamãe, porque não posso ter puxado dele.
Enquanto ando pelo palco, mais assobios, gritos e palmas enchem o auditório. Meu coração está batendo forte. Estou tão emocionada. Acho que estou com um sorriso enorme há uns vinte minutos.
A diretora Hanover me entrega o meu diploma e eu o recebo. As palmas ficam mais altas. Olho para meus pais na primeira fila, de pé ao lado das cadeiras, com os olhos brilhando e animados pela empolgação. Minha mãe me manda beijos. Papai pisca para mim e bate palmas. Estão tão orgulhosos que tenho até vontade de chorar. Eu não estaria aqui, se não fosse por eles. Não poderia pedir pais melhores.
Depois que a cerimônia de formatura acaba, eu e meu namorado, Gavin, abrimos caminho na multidão até meus pais.
Mamãe me abraça forte e beija a minha cabeça.
— Você conseguiu, Lily! — Ela me aperta. — Eu tô tão orgulhosa! —Ouço o choro em sua voz.
— Mãe, não chora. Vai borrar seu rímel.
Ela passa os dedos embaixo dos olhos.
Papai me abraça a seguir.
— Parabêns, bebê.
Eu fico na ponta dos pés e beijo sua bochecha.
— Obrigada, papai. — Então ele me puxa para o seu lado e põe a mão na minha cintura, de um jeito protetor.
Meu pai fuzila Gavin com os olhos, examinando-o de alto a baixo, como sempre fez nestes dois anos que estamos juntos. Mas, desta vez, é tudo brincadeira. Em parte, pelo menos. Papai levou um ano para sair do pé de Gavin e confiar nele o suficiente para nos deixar sair sem ele ou mamãe junto. Constrangedor. Mas o excesso de proteção nunca conseguiu afugentar Gavin, e acho que só isso já deu aos meus pais mais motivos para respeitá-lo.
Ele é realmente um ótimo sujeito, e acho que no fundo meus pais sabem disso.
— Parabéns, Gavin — meu pai cumprimenta, apertando a mão dele.
— Obrigado. — Gavin ainda fica meio apavorado com meu pai. Eu acho isso bonitinho.
Meus pais dão uma enorme festa de formatura para mim em casa, e vem todo mundo. Todo mundo mesmo. Tem gente aqui que não vejo há anos: tio Asher e tia Lea vieram da Espanha! O tio Aidan também veio, com meus primos Avery e Molly e sua nova esposa, Alice. Minhas avós, Marna e naná Nancy (ela se recusa a ser chamada de VÓ) também vieram. A naná não está muito bem. Ela tem esclerose múltipla.
— Meu Deus, garota, você vai me abandonar! — exclama minha melhor amiga, Zoey, vindo me encontrar. Nós crescemos juntas, como a mãe dela, Natalie, cresceu com a minha mãe aqui em Raleigh.
— Pois é! Odeio isso, mas você sabe que vou te visitar! — Eu a abraço forte.
— É, mas vou sentir falta de você pra caramba.
— Já falei — respondo —, você sempre pode se mudar pra Boston pra ficar mais perto.
Ela revira os olhos, o cabelo caindo sobre os ombros quando ela se senta num banquinho da cozinha.
— Bem, não só eu não vou me mudar pra Boston com você, mas pelo jeito também não vou ficar na Carolina do Norte por muito tempo mais.
— Como assim? — pergunto, surpresa.
Eu me sento no banquinho ao lado dela. Meu tio Cole entra na cozinha com algumas garrafas vazias de cerveja nas mãos. Ele joga tudo no lixo.
Zoey suspira, apoia o cotovelo no balcão e começa a enrolar alguns fios de cabelo nos dedos.
— Meus pais vão se mudar pra São Francisco.
— Quê? Sério? — Mal posso acreditar.
— Sim.
Não sei dizer se ela está decepcionada ou simplesmente ainda não sabe o que pensar.
— Bom, mas isso é muito legal — eu digo, esperando encorajá-la. — Você não quer se mudar?
Zoey tira o braço do balcão e cruza as pernas.
— Nem sei o que eu acho, Lil. É muito longe de casa. Não é no fim da rua.
— É verdade, mas é São Francisco! Eu adoraria ir pra lá.
Ela sorri um pouco.
Tio Cole, alto e misterioso como sempre, pega mais três garrafas de cerveja da geladeira e as segura entre os dedos pelos gargalos. Ele sorri para mim ao passar e volta para a sala de estar cheia de gente.
Ele é irado. Assim que chegou, me deu um cartão de parabéns com duzentos paus dentro.
— Zoey, eu acho ótimo. E, sinceramente, mal posso esperar pra visitar minha melhor amiga na Califórnia. É. Dá gosto até falar isso. Califórnia. — Eu faço um gesto dramático com as mãos.
Ela ri.
— Vou sentir muito a sua falta, Lil.
— Eu também.
A mãe dela entra na cozinha, com o pai, Blake, logo atrás.
— Já contou a novidade pra Lily? — a mãe dela pergunta, mexendo na geladeira.
— Sim, acabei de contar.
— O que você acha, Lily? — a mãe dela pergunta.
O pai de Zoey beija a cabeça dela, pega uma cerveja da mãe e sai, provavelmente para fumar.
— Tô empolgada por ela — respondo. — Eu vou me mudar pra Boston pra fazer faculdade. Ela tá mudando pra Califórnia. Podemos não estar mais juntas do jeito que crescemos, mas tem alguma coisa em não ficar parada no mesmo lugar pra sempre que faz tudo parecer certo.
— Você com certeza é filha de Andrew e Camryn Parrish, não dá pra negar — a mãe dela diz, sorrindo.
Eu sorrio orgulhosamente e pulo do banquinho, voltando com ela e Zoey para a sala de estar.
— Um brinde! — meu pai diz no meio da sala, levantando sua cerveja. Ele olha para mim. Temos os mesmos olhos verdes. — À nossa garotinha, Lily. Que você possa mostrar a todos na faculdade como se faz!
Todos bebem.
— A Lily!
Eu passo o dia todo, até anoitecer, com meus amigos e parentes e, claro, Gavin, que eu amo tanto. Somos tão parecidos. Nos conhecemos logo depois que ele se mudou do Arizona para cá. O armário dele no colégio ficava perto do meu, e ele acabou fazendo quase todas as aulas comigo. Zoey foi pra cima dele primeiro, o que não é surpresa, do jeito que ela é namoradeira. Lembro que ela me disse, no primeiro dia de aula dele:
— Ele vai ser meu. Espera pra ver. — E eu nunca tive nenhuma intenção de interferir, mas pelo jeito Zoey era demais para alguém como Gavin. Mas acho que talvez eu possa dar crédito a Zoey por Gavin e eu acabarmos juntos. Se não fosse por ela, talvez ele não tivesse nada que o obrigasse a falar comigo para fugir dela.
Zoey o esqueceu assim que ele deixou óbvio que era em mim que ele estava interessado.
E é muito esquisito, também, porque Gavin e eu somos tão parecidos que é quase como se o destino tivesse nos unido. Nós dois queríamos fazer a mesma faculdade. Gostamos das mesmas músicas, filmes, livros e seriados de TV. Ambos adoramos arte e história e já nos perguntamos, em momentos diferentes da vida, como seria viajar pela África. Gavin se interessa por arqueologia. Eu me interesso pela preservação de artefatos arqueológicos.
Gavin não foi meu primeiro namorado nem foi o primeiro que beijei, mas foi meu primeiro em todo o resto. Não consigo imaginar passar a vida com ninguém além dele.
Espero que sejamos como meus pais. É, torço mesmo por isso.
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Depois da formatura, passei o verão com meus pais. E não desperdicei um minuto desse tempo com eles, porque eu sabia que seria curto. No outono, me mudei pra faculdade, e mamãe e papai — bem, eles tinham planos tão grandiosos quanto os meus. Acho que eles fizeram um excelente trabalho me criando, mas eu sabia que quando me mudasse e começasse a viver por minha conta na faculdade e com Gavin, meus pais partiriam para realizar o sonho de suas vidas.
Estou tão feliz por eles. Sinto falta deles todo dia, mas estou tão feliz.
Eles nunca se esquecem de me mandar cartas — não e-mails, cartas escritas à mão mesmo. Guardo todas elas, desde as enviadas da Argentina, Brasil, Costa Rica e Paraguai, até as que chegaram da Escócia, Irlanda, Dinamarca e lugares de toda a Europa. Adoro ter pais assim, tão livres de espírito, motivados e apaixonados pelo mundo. Eu os admiro. Pelas histórias que eles me contam da época em que eram um pouco mais velhos do que eu, percebo que a vida deles, mesmo antes que se conhecessem, começou complicada, mas no fim tudo se encaixou. Minha mãe me falou do seu passado, de quanto ela era depressiva. Não entrou em muitos detalhes, e eu sempre soube que havia coisas que ela não contava. Mas ela queria que eu soubesse que ela e meu pai sempre me apoiarão, não importa o que aconteça ou que decisões eu tome.
Acho que ela temia que eu tomasse as mesmas decisões erradas que ela tomou em alguns momentos difíceis, mas, sinceramente, não consigo me imaginar infeliz.
Mamãe também me contou como conheceu papai. Num ônibus de viagem, imagine. Eu só ri. Mas sempre que penso neles e nas coisas que enfrentaram juntos, não consigo deixar de ficar admirada.
De acordo com mamãe, meu pai era um pouco selvagem, naquela época. Ela disse que o fato de ele ser assim foi o principal motivo de sua demora em aceitar Gavin. Ela também não entrou em detalhes sobre isso, mas... caramba, meu pai devia ser mesmo... Eca! Deixa pra lá.
Mas eu aprendi tanto com meus pais. Eles me ensinaram como a vida é preciosa e que nunca se deve deixar passar em branco um segundo dela, porque qualquer segundo pode ser o último. Meu pai sempre me disse para ser eu mesma, defender aquilo em que acredito, e dizer o que eu penso, não o que os outros pensam. Ele disse que as pessoas vão tentar me tornar como elas, mas para eu não cair nessa, porque quando eu der por mim, serei como elas. Minha mãe, bem, fazia questão que eu soubesse que há muito mais coisas no mundo além de empregos ruins, contas a pagar e se tornar um escravo da sociedade. Ela fez questão que eu entendesse que não importava o que qualquer um dissesse, eu não precisava viver de um jeito que eu não quisesse. Eu escolho o meu caminho. Eu torno minha vida memorável, para que ela não suma no meio de tantas outras vidas vazias ao meu redor. No fim das contas, a escolha é minha e somente minha. Vai ser difícil às vezes, posso ter que fritar hambúrgueres e limpar privadas por algum tempo, vou perder pessoas que amo, e nem todo dia será brilhante como o anterior. Mas contanto que eu nunca deixe as dificuldades me abaterem completamente, um dia vou fazer exatamente o que eu quero. E não importa o que aconteça, ou quem eu perca, não vou ficar triste para sempre.
Mas acho que a principal coisa que aprendi dos meus pais foi a amar. Eles me amam incondicionalmente, é claro, mas falo do modo como se amam. Conheço muitos casais casados — a maioria dos pais dos meus amigos ainda está casada —, mas nunca vi duas pessoas mais devotadas uma à outra do que meu pai e minha mãe. Eles foram inseparáveis por toda a minha vida. Só me lembro de umas poucas discussões entre os dois, mas nunca os ouvi brigar. Nunca. Não sei o que torna o casamento deles tão forte, mas espero que, seja o que for, eu tenha herdado um pouco dessa magia.
Gavin entra no meu quarto, fechando a porta atrás de si. Ele se senta na beira da minha cama.
— Outra carta dos seus pais?
Eu balanço a cabeça.
— Onde eles estão, agora?
— No Peru — digo, olhando de novo para a carta. — Eles adoram aquele lado do mundo.
Sinto a mão dele no meu joelho para me consolar.
— Você tá preocupada com eles.
Eu balanço a cabeça mais uma vez, lentamente.
— Tô, como sempre, mas me preocupo mais quando eles estão lá. Alguns lugares são muito perigosos. Não quero que eles acabem como...
Gavin segura meu queixo com a mão.
— Eles vão ficar bem, você sabe que vão.
Talvez ele tenha razão. Meus pais já estão mochilando pelo mundo há dois anos, e o pior perigo que encontraram — bem, pelo que me contam — foi que meu pai foi roubado uma vez, e outra vez houve um problema com os passaportes deles. Mas tudo pode acontecer, especialmente com os dois sozinhos assim, só com as mochilas na estrada.
Pelo jeito, puxei muito à minha mãe na tendência para me preocupar.
— Daqui a dois anos, eles vão estar preocupados assim com você — Gavin acrescenta, e em seguida beija meus lábios.
— Acho que sim — digo, sorrindo para ele, que se levanta da cama. — Provavelmente minha mãe nem vai dormir mais, imaginando que algum leão me devorou.
Gavin abre um sorriso torto.
Seis meses atrás, decidimos que queremos mesmo ir para a África depois da faculdade. Quando nos conhecemos, não era bem uma ideia, e sim uma coisa de que falamos numa conversa casual. Mas agora se tornou nossa meta. Pelo menos por enquanto. Muita coisa pode mudar em dois anos.
Eu dobro a carta, guardo no envelope desbotado e deixo sobre o criado-mudo.
Gavin estende a mão para mim.
— Pronta? — ele pergunta, e eu seguro sua mão e me levanto com ele.
Saio do quarto para comemorar o aniversário de Gavin com nossos amigos, e antes de sair para o corredor, olho mais uma vez para a carta, antes de fechar a porta devagar atrás de mim.
Andrew
30
EU ANINHO O rosto dela em minhas mãos.
— A gente não precisa entender tudo isso já — digo, beijando-a nos lábios. — Eu tô fedendo a bosta de vaca e preciso de um banho. Espero que isso não seja brochante demais e que você queira tomar banho comigo.
A expressão pensativa de Camryn se dissolve no sorriso que eu queria provocar.
Eu a pego no colo, segurando sua bunda, e ela cruza as pernas ao redor da minha cintura, com os braços nos meus ombros. Assim que sinto sua língua quente na minha boca, começo a levá-la para o chuveiro comigo, nós dois já tirando as camisetas antes de passar pela porta do banheiro.
~~~
O primeiro lugar aonde vamos depois que escurece é o Old Point Bar. Ao entrarmos somos recebidos por uma Carla empolgada, que praticamente remove dois caras grandões do caminho aos empurrões para me alcançar, de braços abertos. Nós nos abraçamos.
— É tão bom ver você de novo! — Carla exclama, por cima da música alta. — Deixa eu te olhar! — Ela dá um passo para trás e me examina de alto a baixo. — Continua bonitão como sempre.
Ela se vira para Camryn, agora. Depois olha pra mim e novamente para Camryn.
— Hã-hã, eu sabia que ele não ia largar de você. — Ela puxa Camryn para um abraço apertado. — Eu falei pro Eddie, depois que vocês foram embora — Carla continua, olhando de um para o outro —, que ela tinha vindo pra ficar. Eddie concordou, é claro. Ele disse que a próxima vez que você viesse pra cá, Camryn estaria com você. Tentou me convencer a apostar dinheiro nisso. — Ela aponta para mim e pisca. — Você sabe como Eddie era.
Em dois segundos, sinto meu coração afundar até os pés.
— “Era”? — pergunto, desconfiado, com medo da resposta dela.
Carla não deixa de sorrir, um pouco, talvez, mas quase não deixa de sorrir.
— Sinto muito, Andrew, mas Eddie morreu em março. Dizem que foi um derrame.
Eu fico sem ar e me sento num banquinho do bar que está ao meu lado. Percebo Camryn chegando perto de mim. Só consigo olhar para o chão.
— Ah, não, não faz isso, tá me ouvindo? — Carla pede. — Você conhecia Eddie melhor do que ninguém. Ele não chorou nem quando perdeu o filho. Lembra? Tocou guitarra a noite toda em homenagem ao Robert.
A mão de Camryn segura a minha. Eu não ergo os olhos até que Carla dá a volta no balcão e pega dois copos e uma garrafa de uísque da prateleira de vidro atrás dela. Ela põe os copos na minha frente e começa a servir.
— Ele sempre dizia — Carla continua — que, se morresse antes da gente, ia preferir ser acordado do Outro Lado por pessoas dançando sobre o túmulo dele, e não chorando em volta. Agora bebe. O uísque favorito dele. Eddie não iria querer outra coisa.
Carla tem razão. Mesmo assim, e mesmo sabendo que Eddie detestaria que qualquer um chorasse por ele, não consigo fechar o buraco sem fundo que sinto no coração, agora. Olho para Camryn ao meu lado e vejo que ela está tentando não chorar, com os olhos rasos d’água. Mas ela sorri, e sinto sua mão apertando a minha de leve. Camryn pega um dos uísques que Carla serviu e espera que eu pegue o outro. Estendo a mão sobre o balcão e seguro o copo.
— Ao Eddie — digo.
— Ao Eddie — Camryn repete.
Nós batemos os copos, sorrimos um para o outro e bebemos.
Nosso momento sério termina rapidamente quando Camryn bate o copo de boca para baixo no balcão. Ela faz a cara mais enojada e chocada que já vi uma garota fazer e solta um som como se sua garganta estivesse pegando fogo.
Carla ri e tira o copo do balcão, limpando o lugar com um trapo.
— Eu não falei que era bom, só falei que era do Eddie.
Até eu preciso admitir que aquela bosta é horrorosa. Engasga-gato horroroso da porra. Não sei como Eddie aguentou bebê-lo todos esses anos.
— Vocês dois ainda cantam juntos? — Carla pergunta.
Camryn se senta no banquinho vazio ao meu lado e responde primeiro: — Sim, a gente tem cantado muito.
Carla olha para nós dois, desconfiada, pegando meu copo e guardando-o sob o balcão.
— Têm cantado muito há quanto tempo? E por que não vi vocês por aqui antes?
Eu suspiro fundo e apoio as mãos no balcão para ficar mais confortável.
— Bom, depois que a gente saiu daqui, fomos pra Galveston e eu meio que fui parar no hospital por causa daquele tumor.
— Você meio que foi parar no hospital? — Carla repete, e eu me pergunto se a espertinha não é parente distante daquele policial da Flórida. Ela aponta severamente para mim, mas está falando com Camryn. — A gente falou pra ele ir pro médico, mas ele não ouve.
— Vocês também sabiam? — Camryn pergunta.
Carla balança a cabeça.
— A gente sabia, sim. Mas esse cara é teimoso feito uma mula.
— Nisso eu concordo com você — Camryn diz, com um traço de riso na voz.
Eu balanço a cabeça e me afasto novamente do balcão.
— Bom, antes que vocês duas juntem forças contra mim — digo —, obviamente eu tô vivo. Depois, Camryn e eu tivemos uns problemas sérios, mas conseguimos superar numa boa. — Eu sorrio para ela com ternura.
— Parece que vocês fecharam um ciclo — Carla diz e chama a nossa atenção ao mesmo tempo. — Espero que toquem esta noite. Eddie adoraria estar no palco com vocês pela última vez.
Camryn e eu nos entreolhamos rapidamente.
— Eu topo — ela diz.
— Eu também.
Carla bate palmas.
— Tudo bem, então! Podem se apresentar a hora que quiserem. A única banda que ia tocar hoje cancelou.
Ficamos no balcão com Carla por uma hora antes de finalmente subir ao palco. E embora o bar não esteja muito cheio hoje, tocamos para uma plateia animada. Começamos com nosso dueto tradicional, “Barton Hollow”. Parece adequado que seja o primeiro número, já que foi em Old Point que o tocamos juntos pela primeira vez. Tocamos várias canções antes de finalmente chegar a “Laugh, I Nearly Died”, que eu anuncio antes ser em homenagem a Eddie Johnson. Canto sem Camryn e com um substituto de Eddie, um creole simpático chamado Alfred.
Pouco depois da meia-noite, Camryn e eu nos despedimos de Carla e do Old Point Bar. Mas, bem ao estilo de Nova Orleans, não vamos para a cama cedo, ficamos na rua e curtimos feito gente grande. Passamos primeiro no d.b.a., depois no bar onde Camryn me ensinou como se joga bilhar, naquela noite. Já faz quase um ano que estivemos ali e fomos jogados na rua depois de uma briga; espero que não se lembrem de mim. Às duas da manhã, depois de vários jogos e vários drinques, como da última vez, estou ajudando Camryn a entrar no elevador do hotel, porque ela mal se aguenta em pé.
— Você tá bem, amor? — pergunto, rindo, ajeitando meu braço na sua cintura.
Sua cabeça balança de um lado para o outro.
— Não, não tô bem. E é lógico que você ri.
— Aaah, desculpa — eu digo, mas sou sincero só em parte. — Não tô rindo de você, só imaginando se vamos dormir ao lado da privada de novo.
Ela geme, embora eu ache que é seu jeito de protestar comigo, e não de manifestar desconforto. Eu a seguro melhor quando a porta do elevador se abre e ando com ela pelo corredor até nosso quarto. Eu a levo até a cama, tiro toda a sua roupa, menos a calcinha, e a ajudo a vestir um top. Ela encosta a cabeça no travesseiro e eu começo a cobri-la com o lençol. Mas aí lembro que, bêbada assim, qualquer coisa além da calcinha e do top vai fazê-la suar muito, levando-a a perder todo o álcool que bebeu esta noite.
Só por segurança, pego o cestinho de lixo de perto da TV e o coloco ao lado da cama, no chão. Depois vou para o banheiro, molho um pano com água fria e torço na pia. Mas quando volto para a cama para limpar o rosto e a testa de Camryn, ela já está capotada.
~~~
Quando acordo na manhã seguinte, fico surpreso ao ver que ela acordou antes de mim.
— Bom dia, amor — ela diz tão baixinho que é quase um sussurro.
Abrindo os olhos, eu a vejo deitada de lado, virada para mim, com o rosto encostado no travesseiro. Seus olhos azuis estão quentes e vibrantes, não com o olhar cansado de ressaca que eu esperava.
— Por que tá acordada tão cedo? — pergunto, passando os dedos na sua bochecha.
— Não sei — ela diz. — Eu mesma fiquei um pouco surpresa.
— Como se sente?
— Tô ótima.
Passo o braço em sua cintura e puxo seu corpo para junto do meu, trançando nossas pernas nuas. Ela passa a ponta do dedo nos músculos definidos do meu peito. Seu toque faz minha pele ficar arrepiada.
Estudo seus olhos, sua boca e deixo as pontas dos meus dedos seguirem cada caminho que meus olhos fazem. Eu a acho tão linda. Linda pra cacete. Ela passa seus dedos nos meus e depois os beija, um por um, e aproxima ainda mais seu corpo. Algo está diferente nela.
— Tem certeza de que você tá bem? — pergunto.
Um sorriso terno aquece seus olhos e ela balança a cabeça. Então encosta os lábios nos meus, apertando os seios com força no meu peito. Seus mamilos estão duros. Eu fico de pau duro antes mesmo de sentir sua mão segurando minha ereção. Ela lambe a ponta da minha língua antes de fechar a boca ao redor da minha, e eu abraço seu corpo num gesto possessivo. Ela se aperta contra mim lá embaixo, com a maciez de sua pele e sua umidade que sinto tão facilmente através da calcinha fina de algodão. Sem interromper o beijo faminto, enfio os dedos nos lados de sua calcinha e a tiro. Empurro o quadril contra ela, apertando meu pau inchado no seu calor.
Eu rolo por cima dela e a olho nos olhos. Mas não digo uma palavra. Não digo o quanto ela está molhada, nem a obrigo a me olhar. Não a domino com palavras, gestos ou exigências. Só olho em seus olhos e sei que este é um momento em que palavras não são necessárias.
Beijo seus lábios suavemente de novo, os cantos de sua boca, o contorno de seu maxilar. Abrindo-lhe os lábios com a língua, eu a beijo muito suavemente e seguro meu pau, esfregando-o nela. Sinto suas ancas se aproximarem de mim, me comunicando o quanto ela me quer dentro de si. Não quero provocá-la desta vez, nem negar o que ela precisa, por isso enfio só um pouco e a vejo perder o controle do seu olhar, seus olhos tremendo, seus lábios se abrindo. Forçando o pau mais para dentro, sinto suas pernas tremendo em volta de mim. Ela geme baixinho, mordendo o lábio inferior. Eu a beijo de novo e finalmente meto fundo nela, até onde consigo. Mantenho o pau ali, curtindo as convulsões de suas pernas, o tremor de suas mãos que se agarram em mim, seus dedos afundando nas minhas costas.
Eu entro nela com mais força, mexendo os quadris. Uma fina camada de suor começa a se formar nos nossos corpos. Quero lambê-lo, mas não paro. Não consigo parar...
Levanto o corpo o suficiente para que nossos peitos não se toquem e pego uma de suas pernas das minhas costas, segurando-a atrás do joelho, empurrando-a para baixo para poder ir mais fundo. Penetro nela com mais força, empurrando a coxa contra a cama. Ela diz meu nome, suas mãos agarrando meu peito, mas ela me larga e afunda os dedos no alto do colchão, acima de sua cabeça. Eu olho com desejo seus seios balançando para cima e para baixo sobre seu peito e meto com mais força ainda, me curvando para chupar seus mamilos e depois mordê-los.
Minha visão fica embaçada. Ela geme alto e depois começa a murmurar. O murmúrio me deixa louco. Eu largo sua coxa e sinto meu corpo se aproximando dela de novo, seus seios esmagados no meu peito, seus braços apertando forte minhas costas. Sinto suas unhas cravadas dolorosamente na minha carne. Ela movimenta os quadris contra os meus, e minha boca bate com força na dela. Quando começo a gozar, meu beijo fica mais faminto. Tremores percorrem meu corpo, eu gemo na sua boca e minhas arremetidas violentas se reduzem a um rebolado suave. Camryn prende meu lábio inferior nos dentes e eu a beijo com delicadeza, ainda balançando os quadris contra ela até terminar.
Eu desabo sobre o peito dela. Minha pulsação irregular tenta voltar ao ritmo certo, e sinto o sangue latejando nos dedos das mãos e dos pés e castigando a veia da minha têmpora. Encosto a lateral do rosto em seus seios nus, de boca aberta, minha respiração escapando irregular dos lábios. Seus dedos atravessam meu cabelo úmido.
Ficamos juntos assim ali a manhã toda, sem dizer uma palavra.
31
NÃO ME LEMBRO de ter pegado no sono. Quando abro os olhos, o relógio ao lado da cabeceira diz que são 11h10. E percebo que me sinto nu não por estar sem roupa, mas sim porque Camryn não está na cama comigo.
Ela está sentada na sacada da janela, de short e camiseta, sem sutiã. Está olhando pela janela.
— Acho que a gente devia ir embora — ela anuncia, sem tirar os olhos da brilhante paisagem de Nova Orleans.
Eu me sento na cama com o lençol enrolado na cintura.
— Quer ir embora de Nova Orleans? — pergunto, confuso. — Mas você não disse que a gente foi embora cedo demais, da outra vez?
— Sim — ela diz, mas ainda sem se virar. — Da primeira vez a gente foi embora cedo demais, mas não podemos ficar aqui mais tempo, agora, pra compensar.
— Mas por que você quer ir embora? A gente só ficou um dia.
Ela se vira para me encarar. Há algo como sentimento ou firmeza em seus olhos, mas não consigo saber qual dos dois, ou se são os dois.
Depois de uma longa hesitação, ela diz:
— Andrew, sei que pode parecer bobagem, mas acho que se a gente ficar aqui... eu...
Eu me levanto da cama e visto a cueca que encontro no chão.
— O que tá acontecendo? — pergunto, me aproximando dela.
Ela olha para mim.
— Eu só acho que... bom, quando a gente chegou aqui, ontem, eu só conseguia pensar no que este lugar significava pra gente julho passado. Me dei conta de que eu ficava imaginando os momentos que passaram, tentando revivê-los...
— Mas não são exatamente os mesmos — digo, tendo uma ideia.
Ela leva um segundo, mas finalmente diz, balançando um pouco a cabeça:
— É. Acho que o problema é que este lugar é uma lembrança tão importante... Porra, Andrew, eu nem sei o que tô dizendo! — Sua expressão pensativa se dissolve em frustração.
Eu puxo uma cadeira da mesa diante da janela, me sento, me debruçando para a frente e pondo as mãos fechadas entre os joelhos, e olho para ela. Começo a acrescentar algo à sua explicação, mas ela é mais rápida.
— Talvez a gente nunca mais devesse voltar aqui.
Eu não esperava que ela dissesse isso.
— Por quê?
Ela aperta as palmas das mãos na sacada para erguer o corpo, com os ombros rígidos e as costas encurvadas. A confusão e a incerteza começam a desaparecer de seu rosto à medida que os segundos passam e ela começa a entender.
— Tipo, sabe, não importa o que você faça, mesmo se tentar reproduzir uma experiência em cada detalhe, ela nunca vai ser do jeito que foi quando aconteceu naturalmente da primeira vez. — Ela olha pelo quarto, pensativa. — Quando eu era criança, Cole e eu sempre brincávamos no bosque atrás da nossa velha casa. São minhas melhores lembranças. A gente construiu uma casa na árvore lá. — Ela me olha e ri um pouco, expirando. — Bom, não era bem uma casa na árvore, só umas tábuas pregadas no meio de dois galhos. Mas era a nossa casa na árvore, e tínhamos orgulho dela. E a gente brincava nela e naquele bosque todo dia depois da aula. — Seu rosto se ilumina quando ela lembra esse momento de sua infância. Mas então seu sorriso começa a desaparecer. — A gente se mudou de lá pra casa onde minha mãe mora agora, e eu sempre pensei naquele bosque, na nossa casa na árvore e nos momentos divertidos que passamos juntos ali. Eu ficava sentada sozinha no meu quarto, ou então tava dirigindo pra algum lugar, e me perdia tanto nessas lembranças que conseguia sentir as mesmas emoções, exatamente como senti há tantos anos. — Ela põe a mão no peito, com os dedos abertos. — Eu voltei pra lá um dia — ela continua. — Fiquei tão viciada naquela nostalgia que achei que poderia intensificar a sensação se eu fosse pra lá, se ficasse no lugar onde ficava a casa na árvore, se me sentasse no chão, no lugar onde me sentava e riscava o chão com um pauzinho, deixando mensagens secretas para Cole ler quando chegava antes dele. Mas não foi a mesma coisa, Andrew.
Eu a observo e a escuto atentamente.
— Não foi a mesma coisa — ela repete com voz distante. — Fiquei tão decepcionada. E parti naquele dia com um buraco no coração ainda maior do que aquele que eu tinha quando fui pra lá tentar preenchê-lo. E todo dia depois disso, sempre que tento visualizar tudo aquilo, como eu fazia antes, não consigo mais. Eu destruí essa lembrança voltando lá. Sem perceber até que fosse tarde demais, eu substituí a lembrança pelo vazio daquele dia.
Eu conheço exatamente essa sensação de nostalgia. Acho que todos a sentem em algum momento de suas vidas, mas não explico nem conto minhas próprias experiências com ela. Em vez disso, continuo a escutar.
— A manhã toda fiquei enganando meu cérebro, tentando convencê-lo de que não estamos realmente neste quarto. Que o bar aonde a gente foi ontem não era o Old Point. Que a notícia triste sobre Eddie foi só um sonho que eu tive. — Ela me olha nos olhos. — Quero ir embora antes de destruir esta lembrança também.
Ela tem razão. Está coberta de razão.
Mas estou começando a me perguntar se...
— Camryn, por que você tava tentando reviver aquilo? — Odeio o que vou dizer a seguir. — Você não tá feliz com as coisas como estão? Com a gente?
Sua cabeça se ergue bruscamente, seus olhos incrédulos. Mas então seu semblante relaxa e ela diz:
— Meu Deus, não é isso, Andrew. — Ela se afasta da sacada e entra no meio das minhas pernas abertas. — Não é nada disso. Acho que foi só porque a gente veio pra cá que eu comecei, no meu subconsciente, a tentar recriar uma das experiências mais memoráveis da minha vida. — Ela apoia as mãos nos meus ombros, e eu seguro os lados de sua cintura, olhando para ela. Não poderia estar mais aliviado pela sua resposta.
Sorrio, me levanto com ela e digo:
— Bom, sugiro que a gente suma daqui antes que seu cérebro descubra que você tá zoando com ele.
Ela dá uma risadinha.
Eu me afasto dela e imediatamente começo a jogar nossas coisas nas mochilas. Depois aponto para o banheiro.
— Não esquece nada. — Seu sorriso aumenta e ela corre imediatamente para o banheiro. Em poucos minutos frenéticos, nossas malas estão feitas. Temos duas mochilas, uma guitarra e um violão, e sem olhar para trás, saímos do quarto. Nenhum dos dois olha nem de relance para a porta do quarto ao lado, que não ocupamos desta vez. Quando chegamos ao saguão, vou até o balcão da recepção e peço reembolso pela semana que paguei adiantado. A recepcionista pega meu cartão de crédito e faz o estorno enquanto eu entrego a chave do quarto.
Camryn espera impacientemente ao meu lado.
— Para de olhar pras coisas — exijo, sabendo que ela está pondo sua lembrança em risco.
Ela ri baixinho e fecha os olhos com força por um momento.
— Obrigada por se hospedarem no Holiday Inn Nova Orleans — a recepcionista diz, quando nos afastamos do balcão. — Esperamos vê-los de volta.
— Holiday Inn? — eu finjo. — Não, este é o... Embassy Suites de... Gulfport. É, aqui é o Mississippi. Qual o seu problema, moça?
A funcionária faz uma careta e arregala os olhos, mas não responde, e nós saímos do prédio.
Camryn entra na brincadeira quando saímos e começamos a pôr tudo no Chevelle:
— Sugiro que a gente passe reto por Nova Orleans, quando chegar na Louisiana.
Fingir que estamos num lugar diferente não é tão difícil quanto pensei que seria, na verdade.
— Combinado — digo, fechando a porta do meu lado. — A gente pode passar reto por Galveston, também, se você quiser.
— Não, precisamos visitar sua mãe — ela diz. — Depois podemos ir pra qualquer lugar.
Eu engato a marcha e digo, antes de sair do estacionamento:
— Mas isso não impede que a gente pare em algum lugar a caminho de Galveston.
Ela estufa os lábios, balançando a cabeça afirmativamente.
— É verdade. — Em seguida, me olha como que dizendo: Agora vamos embora daqui.
~~~
Pegamos o caminho mais longo saindo de Nova Orleans e vamos para noroeste passando por Baton Rouge e Shreveport, e finalmente cruzamos a divisa do Texas e chegamos a Longview. Paramos para abastecer em Tyler e dirigimos de lá até Dallas, onde Camryn insiste em parar no West Village para comprar um “chapéu de vaqueira di verdadi” (suas palavras, não minhas).
— Num dá pra viajá pelo Texas sem tá vistida de texana! — ela disse, antes que eu concordasse em levá-la.
Eu não uso chapéu nem botas de vaqueiro, mas devo dizer que o visual fica bem nela.
E paramos por uma noite em La Grange, onde tomamos uns drinques e assistimos à apresentação de um ótimo grupo de country-rock. E na noite seguinte vamos pro Gilley’s, onde Camryn monta El Torro, o touro mecânico, com aquele chapéu sexy de vaqueira, é claro. E mais tarde, quando voltamos para o hotel, como sou um puta dum tarado, finjo que sou o touro mecânico e deixo Camryn me montar. Usando o chapéu de vaqueira, naturalmente.
Dois dias depois, nos vemos a cerca de uma hora de Lubbock, parados no acostamento, com um pneu estourado. Acho que eu deveria ter verificado os quatro naquele posto de gasolina em Tyler.
— Que bosta, amor — eu reclamo, agachado perto do pneu estraçalhado. — Não tenho outro estepe.
Camryn se apoia na lateral do carro, cruzando os braços sobre o peito. O suor brilha em seu rosto e na pele do decote. Está um calor do cacete. Não há nenhuma árvore nem abrigo de espécie alguma num raio de quilômetros. Estamos rodeados por uma paisagem quase completamente plana e estéril de terra batida. Já faz muito tempo que não vou tão para o interior do Texas, e estou começando a me lembrar do motivo.
Fico de pé e me sento no capô do carro.
— Me dá seu celular — digo.
— Vai chamar um guincho? — ela pergunta, depois de pegar o celular do banco da frente e entregá-lo na minha mão.
Passo o dedo pelo display, virando duas telas para encontrar o aplicativo das Páginas Amarelas.
— É a única coisa que a gente pode fazer. — Eu digito “socorro automotivo” e escolho um dos resultados.
— Só espero que ele venha mesmo, desta vez — ela comenta.
O serviço de socorro automotivo responde, e enquanto estou falando com o cara, dizendo qual o tipo de pneu de que preciso, noto Camryn enfiando o corpo na janelinha de trás do carro e saindo dela com aquele chapéu sexy de vaqueira, provavelmente para se proteger do sol.
Ela dá a volta no capô e se senta ao meu lado.
— Tá, valeu, cara — digo ao telefone e desligo. — Ele disse que vai levar pelo menos uma hora pra chegar aqui. — Deixo o celular sobre o capô e sorrio para ela. — Sabe, era só você cortar as pernas daquele jeans que tá na sua mochila e transformá-lo num shortinho, tirar o sutiã e usar só o top, que...
Ela põe um dedo sobre os meus lábios.
— De jeito nenhum — ela diz. — Nem pense nisso.
Ficamos em silêncio por um momento, olhando para o nada ao nosso redor. Parece que está ficando mais quente, mas acho que é porque estamos sentados ao sol, no capô de um carro preto que absorve o calor como uma esponja. De vez em quando, um ventinho gostoso roça nossos rostos.
— Andrew? — Ela tira o chapéu e o coloca na minha cabeça, depois deita as costas no para-brisa. Ela põe as mãos atrás da cabeça e dobra os joelhos. — Número cinco na nossa lista de promessas: se eu morrer antes de você, quero ser enterrada naquele vestido que compramos na feirinha, e descalça. Ah, e nada de sombra azul estilo anos 80 nos olhos, nem de sobrancelha desenhada. — Ela inclina a cabeça para o lado e olha para mim.
— Mas pensei que você quisesse casar comigo usando aquele vestido.
Ela estreita os olhos, desviando-os do sol.
— É, quero, mas também quero ser enterrada com ele. Tem gente que acredita que quando a pessoa morre, ela revive seus momentos mais felizes na vida após a morte. Um dos meus vai ser o dia em que eu me casar com você. Então é bom já levar o vestido.
Eu sorrio para ela.
Tiro o chapéu e me deito ao seu lado, apertando minha cabeça perto o suficiente da dela para pôr o chapéu sobre as duas e nos proteger do sol. Depois de equilibrá-lo, digo:
— Número seis: se eu morrer antes de você, quero que toquem “Dust in the Wind” no meu funeral.
Ela vira a cabeça para me olhar, com cuidado para não derrubar o chapéu.
— De novo isso? Você tá começando a me fazer detestar um belo clássico do rock, Andrew.
Rio um pouco.
— Eu sei, mas é que eu vi o episódio de Highlander em que a mulher do cara, Tessa, morre. Tocaram essa música ao fundo. Nunca mais consegui tirar da cabeça.
Ela sorri e enxuga o suor da testa.
— Prometo — ela diz. — Mas já que estamos falando disso, quero acrescentar o número sete. Você já viu Ghost — Do Outro Lado da Vida?
Olho rapidamente para ela.
— Bom, vi. Acho que todo mundo já viu esse filme. A menos que tenha 16 anos de idade. Porra, tô surpreso que você tenha visto. — Eu lhe dou uma cotovelada de leve.
Ela ri.
— Culpa da minha mãe — ela admite. — Ghost e Dirty Dancing — Ritmo Quente eu já viu umas cem vezes. Ela era doida pelo Patrick Swayze e, quando criança, eu era a única pessoa do sexo feminino pra quem ela podia dizer o quanto ele era gostoso. Bom, então você já viu. Número sete: se alguém te matar, trata de voltar, como o Sam do filme, e me ajudar a achar seu assassino.
Eu rio e balanço a cabeça, derrubando acidentalmente o chapéu por um momento.
— Que lance é esse que você tem com filmes? Deixa pra lá. Tá, prometo voltar pra puxar seu pé.
— É bom mesmo! — ela exclama, rindo alto. — Além do mais, eu sei que vou ser uma daquelas pessoas que acham que os entes queridos continuam por perto depois de morrer. Seria bom me dar mais motivo pra acreditar.
Não sei bem como vou fazer isso, mas tudo bem. Vou tentar, porra.
— Prometo se você prometer — digo.
— Como sempre.
— Número oito — eu continuo —, não me enterre num lugar frio.
— Concordo plenamente. O mesmo vale pra mim!
Ela enxuga mais suor do rosto e eu me levanto do capô, estendendo a mão para ela.
— Vamos ficar dentro do carro, longe do sol.
Ela pega minha mão e eu a ajudo a descer.
Duas horas depois, o guincho ainda não apareceu e está começando a escurecer. Parece que vamos poder ver o pôr do sol juntos na paisagem deserta do Texas.
— Eu sabia — Camryn diz. — Qual o problema desses guinchos?
E assim que ela diz isso, um par de faróis ofuscantes aparece na estrada vindo na nossa direção. Muito aliviados, saímos para recebê-lo, e a primeira coisa que eu noto é a mesma que Camryn nota. O cara poderia ser uma cópia de Billy Frank. Ela e eu nos entreolhamos, mas não comentamos em voz alta.
— Querem que eu reboque ou só o pneu? — ele pergunta, puxando as alças do seu macacão de jeans.
— Só o pneu — eu digo, seguindo-o para a traseira do guincho.
— Bom, não tenho tempo pra ficar aqui enquanto você troca — ele diz, cuspindo tabaco na estrada. — Vocês vão ficar bem?
— Vamos, sim. Mas espera um momento. — Eu levanto o dedo e enfio o corpo no carro para virar a chave na ignição. Quando o motor parte sem problemas, eu o desligo e volto até ele. — Só queria ter certeza de que tá funcionando.
Pago ao sósia de Billy e fico olhando as lanternas traseiras do guincho sumindo no horizonte escuro à medida que ele se afasta. Quando volto para o carro, onde deixei o pneu, levo um puta susto ao ver Camryn já erguendo o carro com o macaco.
— Porra, essa é a minha garota!
Ela sorri para mim, mas continua trabalhando, com a trança loura jogada sobre um ombro.
— Não é tão difícil — ela diz, rolando agora o novo pneu para perto, depois de conseguir tirar as porcas do antigo sozinha. Acho que tô ficando de pau duro. Não, peraí, já tô mesmo de pau duro.
— Não, não é, de fato — respondo finalmente, com um sorriso ainda maior.
Alguns minutos depois, ela baixa o carro e joga o macaco no porta-malas. Eu carrego o pneu furado para ela e também o jogo lá dentro.
Entramos no carro e ficamos parados.
Tudo está tão silencioso. Enormes faixas de cirros violeta e azuis estão amontoados no céu, estendendo-se bem além do horizonte. À medida que o calor do dia diminui, a brisa suave do anoitecer entra pelas janelas abertas do carro. O crepúsculo está lindo. Para ser sincero, eu nunca tinha prestado muita atenção em um. Talvez seja a companhia.
E não sei ao certo o que está acontecendo entre nós agora, mas seja o que for, estamos tão sintonizados um com o outro que ambos sentimos isso. Eu olho para ela. Ela olha para mim.
— Pronta pra voltar? — pergunto.
— Sim. — Ela fica em silêncio, olhando pelo para-brisa, perdida em pensamentos. Então se vira para mim, com mais certeza do que há alguns segundos. — É, acho que tô pronta pra ir pra casa. — Ela sorri.
E pela primeira vez desde que saí de Galveston sozinho naquele dia, ou que Camryn subiu no ônibus em Raleigh naquela noite, nós finalmente nos sentimos... realizados.
Camryn
32
ACHO QUE A gente fechou mesmo um ciclo. Mas preciso dizer, agora que estamos finalmente de volta a Galveston, depois de sete meses, que a sensação é diferente, desta vez. Não estou preocupada por estar aqui, nem com medo de que meu tempo junto com Andrew esteja acabando. Não estou esperando que uma tragédia médica ressurja a qualquer momento. É bom estar aqui. E quando paramos no estacionamento do prédio dele, sinto satisfação. Posso até me imaginar morando aqui. Mas até aí, também consigo me imaginar morando em Raleigh. Acho que isso significa, talvez, que nós estamos prontos para parar de viajar. Só por um tempinho. Nunca definitivamente, como eu já disse a Andrew, mas por tempo suficiente para nos recuperarmos da estrada.
Andrew concorda.
— É — ele diz, pegando nossas mochilas do banco de trás. — Sabe de uma coisa? — Ele devolve as mochilas para o mesmo lugar e olha por cima do carro para mim.
— O quê? — eu pergunto, curiosa.
Ele está sorrindo com o olhar.
— Você tem razão de não querer ficar na estrada tanto tempo a ponto de a gente se cansar dela, e nem ficar num só lugar por tempo demais pelo mesmo motivo. — Ele para e estende os braços por cima do carro. — A gente podia viajar na primavera ou no verão, deixar o outono e o inverno pra ficar em casa e levar uma vidinha família nas férias... minha mãe ficou bem chateada porque a gente não passou o Natal ou o Dia de Ação de Graças com ela.
Eu balanço a cabeça.
— É uma boa ideia. E como é um saco viajar no frio, faz muito sentido.
Nós nos olhamos por cima do carro por um longo momento, até que eu interrompo as engrenagens que estão girando nas nossas cabeças e digo:
— Bom, pega as mochilas. A gente pode conversar lá dentro. Você precisa olhar a Georgia.
— Ah, a Georgia tá bem — ele diz, mexendo novamente no banco de trás. — Minha mãe vem sempre regar.
Eu pego o violão, a guitarra e a minha bolsa. Quando entramos no apartamento de Andrew, sinto exatamente o cheiro que senti na primeira vez que entrei ali: de apartamento vazio. E como Andrew disse, Georgia está viva e bem.
Eu praticamente desabo no sofá, exausta, estendendo as pernas para fora pela lateral.
— Mas o próximo lugar que a gente for — Andrew diz, passando atrás do sofá — vai ser longe daqui. — Eu ouço seu chaveiro tilintar sobre o balcão da cozinha.
Ergo o corpo e pergunto:
— Longe quanto?
— Na Europa, na América do Sul — ele diz com um sorrisão, voltando para a sala. — Você disse que quer conhecer a Itália, o Brasil e todos aqueles lugares. Sugiro que a gente escolha um e vá pra lá.
Uma carga de energia atravessa o meu corpo. Eu fico de pé e olho para ele, agora tão empolgada com a ideia que mal consigo me conter.
— Sério?
Ele balança a cabeça com um sorriso gigante de lábios fechados.
— Porra, pra manter a tradição, a gente podia até escrever todos os lugares que queremos visitar em papeizinhos, pôr num chapéu e sortear um.
Eu dou um berro. Um berro mesmo! Encosto as mãos no peito.
— Isso é perfeito, Andrew!
Ele se senta no sofá, agora, apoiando os dois pés na mesinha de centro, com os joelhos dobrados. Eu não consigo sentar. Fico onde estou, olhando para seu rosto sorridente.
— Claro que precisamos continuar faturando — ele diz. — Temos muito dinheiro no banco, mas viajar pro exterior com certeza vai acabar com ele mais rápido.
— Mal posso esperar pra arranjar um emprego — digo, e esse comentário estimula a minha memória. — Andrew, você já me disse pra ser totalmente sincera com você a respeito de onde eu quero morar.
Isso chama a atenção dele.
— Onde você quer morar?
Penso nisso por um momento e respondo:
— Por enquanto, acho que em Raleigh, mas só porque gostaria de ficar perto de Natalie e da minha mãe, e porque sei que posso arrumar emprego facilmente no trabalho da Natalie. A chefe dela disse que gostou de mim e pediu que eu preenchesse uma ficha e...
Andrew me interrompe.
— Não precisa explicar seus motivos. — Ele estende a mão para mim e eu me sento em seu colo, de frente para ele. Não tinha me dado conta de que estava falando mais que uma matraca, de nervoso. Só não queria que ele se sentisse obrigado a nada.
Ele sorri para mim e abraça a minha cintura.
— Minha pergunta — ele continua — é o que, exatamente, significa “por enquanto” pra você?
— Bom... essa é a parte difícil.
Ele inclina a cabeça para o lado, me olhando com curiosidade, as covinhas mal aparecendo em suas bochechas.
Finalmente, eu digo de uma vez:
— Acho que a gente não deve gastar todo o dinheiro numa casa, porque não quero ficar lá pra sempre. E se fizermos isso, não vamos ter muito dinheiro pra gastar quando quisermos ir pra Europa ou qualquer lugar, e trabalhar ganhando salário mínimo não vai ajudar a poupar muito.
Ele me olha de lado.
— Peraí. Espero que você não queira morar na casa da sua mãe. A gente precisa de privacidade. Quero poder te catar de quatro por cima da mesa da sala quando eu quiser.
Eu rio e aperto as coxas ao redor dele, por brincadeira.
— Você é tão safado! Mas não, com certeza não quero morar com a minha mãe.
— Bom, se você não quer comprar uma casa e não quer morar com sua mãe, a única opção que resta é alugar, e isso custa muito caro também.
Fico constrangida, porque chegamos ao ponto em que preciso falar do dinheiro de Andrew como se fosse meu também, e duvido que um dia eu vá me acostumar com isso.
Eu desvio o olhar.
— Lembra quando você disse que a gente podia comprar uma casinha em algum lugar?
— Lembro — ele diz, e seus olhos brilham mais, como se ele já soubesse o que vou dizer.
— Bom, a gente podia, quem sabe, comprar uma casa bem pequena ou um apartamento com dinheiro vivo, só o suficiente pra nós... sei lá, algo bom e barato, e ainda sobraria muito dinheiro no banco pras nossas viagens. Não vamos pagar aluguel, e só vamos precisar pagar todo mês contas e coisas assim, e podemos custear isso trabalhando e tocando em bares, sem mexer nas nossas economias.
Por que ele está sorrindo como o gato da Alice?!
Sinto minha cabeça afundando no meio dos ombros, meu rosto ficando quente.
— Qual é a graça?! — pergunto, apertando as mãos no seu peito e tentando não rir.
— Graça nenhuma. Só gostei de ver que você finalmente entendeu que o que é meu é seu. — Ele aperta os dedos na minha cintura.
— Se você tá dizendo — eu balbucio, tentando esconder o rubor do meu rosto, fingindo estar ofendida.
— Ei — ele diz, balançando meus quadris —, não faz isso. Termina o que você tava dizendo.
Depois de uma longa pausa, eu continuo:
— E quando a gente partir pro destino do papelzinho no chapéu, Natalie pode tomar conta da casa. Ou! — eu aponto para cima. — Quando finalmente encontrarmos aquele lugar sossegado na praia que você sonhou pra morar, podemos vender nossa casa em Raleigh ou alugá-la pra ter uma renda extra. Talvez até alugar pra Natalie e Blake!
Posso ver que algo está acontecendo dentro da mente dele. Seu sorriso continua suave e ele nunca tira os olhos de mim. Mas está tão quieto, até que finalmente quebra o silêncio e diz:
— Parece que você pensou muito nisso. Quanto tempo levou pra planejar tudo?
Só agora me dou conta de que foi muito tempo. Penso no dia em que comecei a tentar organizar nosso futuro, quando decidi oficialmente que queria ter uma casa e estava cansada da estrada.
Andrew espera pacientemente que eu responda, sempre com um olhar suave e pensativo, sua maneira de me lembrar constantemente de que nada que eu possa lhe dizer jamais criará qualquer negatividade entre nós.
— Foi na estrada, depois que partimos de Mobile — digo. — Quando falei que eu queria conhecer a Itália, a França e o Brasil um dia. Quando eu disse que nunca ia querer parar de viajar pra sempre. Daquela noite em diante, fiquei determinada a planejar tudo. Como a gente faria tudo isso. — Meu olhar vaga. — Eu infringi as regras e planejei tudo.
Ele se inclina para a frente e beija meus lábios.
— Às vezes planejar é necessário — ele diz. — Você fez um bom trabalho. Acho que o plano todo tá perfeito. — E então ele me agarra com um beijo apaixonado.
Quando o beijo termina, eu o olho por um momento, com seu rosto nas mãos.
— Mas quero me casar com você aqui — conto, e os olhos dele se iluminam. — Não quero que a sua mãe se sinta excluída, sabe? Na verdade, ela é o único motivo de eu me sentir culpada por querer ir morar em Raleigh. E me sinto ainda pior porque ela tava planejando aquele chá de bebê e a gente nem...
— Ela vai gostar disso — ele aprova, me interrompendo antes que eu comece a matraquear de novo. — Eu adorei.
Ele me beija de novo.
Andrew
33
EU NÃO PODERIA ter pedido um dia mais perfeito. O clima está perfeito. Os planos para o casamento que não fizemos se encaixaram perfeitamente. Eu liguei para a minha mãe ontem e pedi que nos encontrasse na praia da Ilha de Galveston. Ela chegou a tempo, sem fazer ideia do motivo do convite.
Eu levanto a mão quando a vejo, acenando para chamá-la, e assim que ela nos vê, entende tudo. Seu rosto se abre num sorriso enorme, e é fácil se contagiar.
— Ah, vocês dois — minha mãe diz, se aproximando —, não acredito que finalmente vão fazer isso. Estou... estou tão... — Lágrimas escorrem do seu rosto e ela as enxuga, rindo e chorando ao mesmo tempo.
Camryn, descalça e com aquele vestido vintage cor de marfim que encontrou na feirinha, abre os braços e abraça minha mãe.
— Oh, Marna, não chore, por favor — ela pede, embora eu ache que é mais uma súplica, porque ver minha mãe chorando a está deixando com um nó na garganta.
— Mais alguém vem? — minha mãe pergunta depois.
— Você é nossa convidada de honra exclusiva — digo orgulhosamente.
— É — Camryn acrescenta —, é só você e o reverendo aqui.
Minha mãe passa por nós para abraçar também o reverendo Reed. Ela frequenta a igreja dele há nove anos — tentou me levar junto um milhão de vezes, mas eu não sou muito de igreja. Mas pensei, quem melhor do que ele pra casar a gente?
E enquanto o reverendo Reed está diante de nós na praia, com sua Bíblia gasta nas mãos e dizendo algumas palavras, tudo o que consigo ver ou ouvir é Camryn de pé na minha frente, com suas mãos nas minhas. A brisa passa pelos fios soltos do seu cabelo, livres daquela trança dourada sobre seu ombro que eu amo tanto. Adoro seu sorriso, seus olhos azuis e sua pele macia. Quero beijá-la agora e acabar com isso. Eu aperto os dedos de leve sobre suas mãos e a puxo mais para perto. O vento sopra seu vestido longo, fazendo-o aderir ao seu corpo de violão. Eu contenho o sorriso quando noto um cacho do cabelo entrando em sua boca. Ela tenta disfarçadamente tirá-lo com a língua, sem atrair atenção para si.
Sabendo que ela não quer criar nenhum tipo de interrupção, nem para algo simples assim, eu afasto o cacho para ela.
Sinto que somos as duas únicas pessoas do mundo.
Quando chega a hora de dizermos nossos votos, eu sei que nenhum dos dois escreveu nada, nem teve muito tempo para pensar no que queria dizer. E assim, praticamente da mesma forma que costumamos fazer tudo, nós fazemos e pronto.
Eu aperto mais suas mãos entre nós e digo:
— Camryn, você é a outra metade da minha alma, e eu vou te amar hoje e todo dia pelo resto das nossas vidas. Prometo que se um dia você me esquecer, lerei para você, como Noah lia para Allie. Prometo que, quando ficarmos velhos e nossos ossos doerem, nunca dormiremos em quartos separados, e que se você morrer antes de mim, será enterrada com esse vestido. Prometo assombrar você como Patrick Swayze assombrou Demi Moore. — Seus olhos começam a se encher de água. Eu acaricio as palmas das mãos dela com meus polegares. — Prometo que nunca vamos acordar um dia, daqui a anos, e nos perguntar por que desperdiçamos nossas vidas sem fazer nada, e que seja qual for a dificuldade que enfrentemos, eu sempre, sempre estarei com você. Prometo ser espontâneo, sempre baixar o volume da música quando você adormecer, e cantar a música das uvas-passas quando você estiver triste. Prometo sempre amar você, em qualquer lugar do mundo ou de nossas vidas em que estejamos. Porque você é a outra metade de mim, sem a qual eu sei que não consigo viver.
Lágrimas escorrem dos seus olhos. Ela leva um instante para se recompor.
E então ela diz:
— Andrew, prometo nunca te manter vivo por aparelhos, deixando você sofrer, se eu sentir no fundo do meu coração que sua vida acabou. Prometo que, se um dia você se perder ou desaparecer, eu... nunca vou parar de te procurar. Jamais. — Isso me faz sorrir. — Prometo que quando você morrer, vou mandar que toquem “Dust in the Wind” no funeral, e você não será enterrado num lugar frio. Prometo sempre te contar tudo, por mais que eu me sinta envergonhada ou culpada, e confiar em você quando me pedir pra fazer alguma coisa, porque sei que tudo o que você faz tem um propósito. Prometo ficar sempre ao seu lado e nunca deixar que você enfrente nada sozinho. Prometo amar você para sempre nesta vida e aonde quer que formos depois da morte, porque eu sei que não consigo viver em nenhuma vida, a menos que você também esteja nela.
O pastor Reed me diz:
— Andrew Parrish, aceita Camryn Bennett como sua legítima esposa, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-a e respeitando-a pelo resto da vida?
— Aceito — afirmo, pondo a aliança que comprei em Chicago no dedo dela. Ela fica discretamente sem fôlego.
Então ele se vira para Camryn e pergunta:
— Camryn Bennett, aceita Andrew Parrish como seu legítimo esposo, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-o e respeitando-o pelo resto da vida?
— Aceito.
Finalmente, eu entrego a ela a minha aliança, porque estava escondendo as duas dela até este momento, e ela a põe no meu dedo. O pastor Reed conclui, incluindo aquelas aguardadas sete palavras — “Eu agora os declaro marido e mulher” — e então me dá permissão para beijar minha esposa. É tudo o que queríamos fazer desde que a cerimônia começou, e agora que podemos, ficamos só nos olhando, perdidos nos olhos um do outro, nos vendo numa luz diferente, muito mais brilhante do que desde que nos conhecemos no Kansas, naquele ônibus. Sinto meus olhos começarem a arder e a tomo em meus braços e esmago minha boca sobre a dela. Ela soluça durante o beijo e eu aperto suas costas, erguendo seus pés descalços completamente da areia e rodopiando com ela. Minha mãe está chorando feito um bebê. Eu sinto que nunca mais vou parar de sorrir.
Camryn é a minha esposa.
Camryn
Eu acabo de me tornar Camryn Parrish. Não consigo nem entender as emoções que estou sentindo. Estou chorando, mas meio que rindo por dentro ao mesmo tempo. Me sinto empolgada, porém ansiosa. Olho de novo para esta aliança que ele acaba de pôr no meu dedo e sei que ele gastou muito dinheiro nela. Então olho para a dele, quase idêntica à minha, mas numa versão masculina, e não consigo ficar brava com ele. Não consigo. Ouço Marna soluçando atrás de mim, e não posso deixar de ir até ela e abraçá-la de novo.
— Bem-vinda à família — ela diz com a voz embargada.
— Obrigada. — Eu sorrio e enxugo as lágrimas.
Andrew passa o braço na minha cintura e o pastor se junta a nós. Quando Marna e ele começam a pôr a conversa em dia, Andrew e eu nos afastamos um pouco, e ele não consegue parar de me olhar. Eu fico vermelha.
— O que foi? — pergunto.
Ele balança a cabeça, com um sorriso radiante.
— Eu te amo — ele diz, e fico com vontade de chorar de novo, mas consigo me controlar.
— Eu também te amo.
Passamos a lua de mel no nosso apartamento, quebrando a tradição. Porque queremos esperar até nossa primeira viagem ao exterior para fazer uma verdadeira lua de mel.
— Onde você acha que será? — ele pergunta.
Estamos sentados na varanda, em duas cadeiras de praia, tomando cerveja e ouvindo a música ao vivo que vem da praia ou do parque, de algum lugar distante.
— Não sei — respondo, tomando um gole no gargalo. — Quer fazer uma aposta?
Andrew esfrega o lábio inferior com o polegar.
— Hmmm. — Ele pensa a respeito, tomando mais um gole de cerveja, e então diz: — Acho que o primeiro país que vamos tirar daquele chapéu vai ser... — ele estufa os lábios — ...o Brasil.
— Brasil, é? Legal. Mas eu não sei — tenho a estranha sensação de que vai ser mais alguma coisa tipo a Itália.
— É mesmo?
— Sim.
Ambos tomamos um gole ao mesmo tempo.
— Talvez a gente devesse apostar alguma coisa — ele diz, com a covinha da bochecha direita ficando mais funda.
— Uma aposta, é? Tá, eu topo.
— Tudo bem. Se for o Brasil, você vai ter que ir comigo pra praia, bem no estilo do Rio de Janeiro. — Seu sorriso é malicioso.
Eu levo um minuto para entender o que ele está dizendo, e quando a ficha cai, sinto o ar noturno nos meus dentes ao abrir a boca.
— Sem. Chance!
Andrew ri.
— Não vou ficar saltitando de topless em público!
Ele joga a cabeça para trás e ri mais alto.
— Não, acho que elas não fazem isso lá, amor — ele explica. — Quero dizer que você vai ter que usar um daqueles biquínis brasileiros. Nada daquelas porras tipo tô-com-vergonha que você usou na Flórida. Você tem um corpo legal. — Ele toma mais um gole e deixa a garrafa sobre a mesa à nossa frente.
Eu penso por um momento, mordendo a bochecha por dentro.
— Fechado — concordo.
Parecendo um pouco surpreso por me ver concordar tão facilmente, ele balança a cabeça.
— E se for a Itália — digo, também com um sorrisinho —, você vai ter que fazer uma serenata pra mim na escadaria da Piazza di Spagna... na língua local. — Eu cruzo uma perna sobre a outra. Eu sabia que a última parte ia pirar aquela cabecinha sexy dele.
— Você não tá falando sério — ele argumenta. — Como é que eu vou fazer uma porra dessas?
— Sei lá — respondo. — Acho que, se eu ganhar, você vai ter que dar um jeito.
Ele balança a cabeça e faz uma careta pensativa.
— Tudo bem. Tá apostado.
34
RALEIGH, CAROLINA DO NORTE — Junho
— Surpresa! — Várias vozes gritam quando entro na nossa nova casa.
Realmente surpresa, eu tenho um sobressalto e ponho a mão no peito. Natalie está bem no meio, com Blake ao seu lado. Meus amigos do meu Starbucks favorito e a irmã de Blake, Sarah, que conheci há duas semanas, quando Andrew e eu voltamos, estão todos aqui.
— Uau, a gente tá comemorando o quê? — pergunto, ainda tentando recuperar um pouco o fôlego, porque eles quase me mataram de susto. Eu me viro para Andrew. Ele está sorrindo, portanto é óbvio que teve algo a ver com tudo isso.
Natalie, agora com luzes ruivas no cabelo, me puxa para um abraço.
— É sua festa oficial de boas-vindas. — Ela dá um sorrisinho para mim e olha para Andrew. — Por que você acha que eu tava fazendo tão pouco caso da sua volta nos últimos dias?
— Você não fez pouco caso — comento.
— Tá, talvez não tenha dado pra perceber — ela admite —, mas por favor, Cam, você não notou que eu tava escondendo alguma coisa?
Acho que ela tem razão, pensando bem. Ela parecia contente por eu ter voltado, mas não eufórica, como ficaria normalmente. Acho que eu só imaginei que talvez Blake finalmente a tivesse domado um pouco.
Eu me viro para Andrew de novo.
— Mas a gente não tem nem móveis.
— Ah, tem, sim! — Natalie diz, me puxando pelo pulso.
Ela me arrasta para a sala de estar, onde oito pufes gigantes estão espalhados pelo chão. No meio da sala estão quatro caixotes de leite amarrados com uma tábua em cima, que eu presumo que sejam a mesinha de centro. A eletricidade nem foi ligada ainda, mas na “mesinha de centro” estão três velas apagadas sobre tampas de latas de biscoitos, prontas para quando escurecer, daqui a algumas horas.
Eu apenas rio.
— Eu tô adorando! — comento com Andrew. — Proponho que a gente desencane totalmente dos móveis e mantenha esse tema dos pufes gigantes retrô! — Claro que estou brincando, e Andrew sabe disso.
Ele se joga no pufe mais próximo e estica as pernas no chão, refestelando-se no vinil acolchoado.
— Eu até me viro com eles, mas a gente vai precisar de uma cama, com certeza. — Eu me sento no pufe ao lado e me ajeito. Todos fazem o mesmo, enquanto Natalie e Blake vão para a cozinha.
Andrew e eu encontramos aquela casinha cinco dias depois que chegamos. Querendo sair da casa da minha mãe tão rápido quanto humanamente possível, ele passou horas na internet e olhando anúncios de imobiliárias, mesmo enquanto eu fazia corpo mole e só relaxava depois da longa viagem desde Galveston. Praticamente deixei Andrew se ocupar da procura da casa. Ele me mostrava fotos e eu dava minha opinião. Mas aquela casa era perfeita. Foi a terceira que visitamos pessoalmente (e nem acho que o fato de ele tê-la adorado tenha algo a ver com ele ter acidentalmente visto minha mãe seminua quando ela achou que não estivéssemos em casa). O preço era ótimo porque os antigos donos, que já tinham se mudado havia quatro meses, queriam vendê-la logo e encerrar o assunto. Acabamos conseguindo comprá-la por vinte mil a menos do que seu real valor, e isentamos os antigos donos de fazer qualquer conserto antes de fechar o negócio. Como pagamos com dinheiro vivo, tudo aconteceu muito rápido.
Hoje é oficialmente nosso primeiro dia como os novos proprietários.
Trouxemos muitas coisas de Galveston, alugamos um pequeno reboque de mudanças, que lotamos com tudo o que coubesse dentro. Mas logo vamos ter que voltar para buscar os móveis. Infelizmente, Andrew está irredutível quanto a conservar a velha poltrona fedida do pai dele, mas prometeu mandar limpá-la. E é bom que mande mesmo!
Natalie e Blake voltam para a sala, cada um trazendo três garrafas de cerveja, que começam a distribuir.
— Obrigada, mas eu não quero — digo.
Natalie parece ficar arrasada, projetando o lábio inferior e me olhando. Ela está usando uma camiseta branca apertada que deixa seus seios empinados.
— Quero distância de cerveja por no mínimo uma semana, Nat — eu explico.
Ela torce o nariz, mas depois dá de ombros e diz:
— Sobra mais pra mim!
Depois que Blake passa uma cerveja para Andrew, ele se dirige para o último pufe que sobrou, mas Natalie corre e chega antes dele. Assim, ele se senta em cima dela. Enquanto eles estão se engalfinhando, Natalie dá uma risada esquisita, e eu vejo de soslaio a expressão no rosto de Andrew.
— Shenzi — ele sussurra, e balança a cabeça, tomando um gole de cerveja.
Eu rio baixinho, agora sabendo o que Andrew quis dizer a primeira vez que a chamou assim. Pesquisei no Google logo depois e descobri que esse é o nome da hiena desbocada de O Rei Leão.
— Vocês prometeram me contar sobre a viagem — Natalie diz, agora sentada no pufe, no meio das pernas de Blake.
Todos olham para mim e Andrew.
— Já te contei bastante coisa, Nat.
— É, mas não contou nada pra gente — diz Lea, minha amiga que trabalha no Starbucks.
Alicia, que trabalha com ela, acrescenta:
— Eu já caí na estrada com a minha mãe e meu irmão, mas com certeza deve ter sido totalmente diferente da sua viagem.
— E você ainda não me contou o que aconteceu na Flórida — Natalie diz. Ela toma um gole de sua cerveja e deixa a garrafa ao seu lado no chão, apoiando em seguida os braços sobre as pernas de Blake. Ele a beija no pescoço.
Eu me encolho toda por dentro só de pensar na Flórida, mas percebo que é porque Andrew, na verdade, é que poderia ficar constrangido com o que aconteceu. Por um segundo, não consigo nem encará-lo, pois me sinto culpada por ter tocado no assunto com Natalie. Não dei nenhum detalhe, só mencionei que um lance muito sinistro aconteceu enquanto estávamos ali.
Quando finalmente olho para Andrew, percebo que ele não está com raiva de mim. Ele pisca e também deixa sua cerveja no chão, ao seu lado.
— A Flórida — ele começa, para minha surpresa. — Essa provavelmente foi a pior etapa da viagem, se não foi também a mais estranha. Mesmo assim, tem algumas partes que não me desagradaram tanto.
Não faço ideia de onde ele quer chegar com isso.
Todos estão olhando para Andrew, agora, especialmente Natalie, cujos olhos estão esbugalhados de antecipação.
— Conhecemos uma moçada que convidou a gente pra uma balada com eles numa parte pouco acessível da praia. E a gente foi. E se divertiu. Mas aí as coisas ficaram esquisitas.
— Esquisitas como? — Natalie interrompe.
— Esquisitas tipo LSD ou sei lá que porra.
Os olhos de Natalie se abrem ainda mais e ficam ferozes quando ela me olha.
— Você tomou LSD? Que porra de ideia foi essa, Cam?
Eu balanço a cabeça.
— Não, claro que não tomei de propósito. Eles drogaram a gente!
Os olhos de todos estão arregalados como os de Natalie, agora.
— É — Andrew continua. — A gente nem sabe direito o que era, mas ficamos completamente chapados.
— Eu já levei um “boa noite Cinderela” uma vez — conta a irmã de Blake, Sarah.
Ela aparenta ter uns 18 anos.
Blake tem um sobressalto e levanta o corpo, fazendo Natalie bater os dentes no gargalo da garrafa.
— Quê? — ele pergunta, soltando fogo pelos olhos.
— Ah, você não sabia? — Sarah diz docemente, como se tivesse apenas esquecido de contar.
Obviamente, teria sido melhor não ter contado.
— Aaai! — Natalie choraminga, com a mão na boca.
— Desculpa — Blake diz. Ele beija sua bochecha e se vira para a irmã. — Sarah, quem foi que te dopou, porra? E não me enrola. É melhor você me contar... aconteceu alguma coisa? — O medo está estampado no seu rosto.
Sarah revira os olhos.
— Não. Não aconteceu nada, porque Kayla tava lá e me trouxe pra casa. E não, eu não sei quem foi, Blake, então fica frio aí, por favor. — Depois ela se vira na nossa direção. — Vocês tavam dizendo?
— Eu vou com você, cara — Andrew diz para Blake. — Se você descobrir quem foi, é só avisar. Isso é muita sacanagem.
Eu dou uma leve cotovelada em Andrew. Ele entende e diz:
— Bom, preciso dizer que a Flórida foi uma experiência, mas que nunca mais quero repetir.
Andrew não diz nada sobre a piranha nojenta que tentou fazer um boquete nele. Fico feliz por isso, porque seria uma conversa constrangedora. Isso sem falar que Natalie ia se divertir um monte com uma informação dessas. Ficamos sentados nos pufes e conversamos com nossos amigos por algumas horas, até umas oito da noite, quando Blake precisa levar Sarah para casa. Pouco depois que os três saem, o resto vai embora, e Andrew e eu ficamos sozinhos no nosso primeiro lar oficial como recém-casados.
Ele volta da cozinha com uma vela na mão, depois de acendê-la no fogão. O gás foi ligado antes. Então ele usa a chama para acender as outras, sobre a mesa.
— A gente vai dormir no chão? — pergunto, olhando para ele.
— Não — ele responde, afastando-se das velas. Ele puxa todos os pufes para o meio da sala e os junta, criando uma cama improvisada, depois bate nela com a palma da mão. — Por enquanto, vai ter que ser assim. Eu não vou dormir no chão. Acordo todo entrevado.
Eu sorrio.
— Isto é estranho, não? — comento, olhando ao redor para as paredes nuas da nossa casa, imaginando que tipo de fotografias ou quadros ficariam bem nelas.
— O que, não ter móveis nem eletricidade? Você já deveria estar acostumada. — Ele dá uma risadinha.
Eu me levanto do pufe perto da parede e me sento na cama que ele fez. Estendo a mão para a mesa e fico cutucando a cera quente de uma vela, deixando que me queime, depois esfrie e se molde à ponta do meu dedo.
— Não, quero dizer esta casa. A gente. Tudo, na verdade.
— Estranho de um jeito bom, espero.
— É claro — confirmo, sorrindo para ele.
O silêncio enche a casa. A luz das velas projeta grandes sombras dançantes nas paredes. A casa cheira a água sanitária, desinfetante e outros produtos de limpeza, embora fracamente.
— Andrew, obrigada por vir morar aqui.
Finalmente, ele se senta ao meu lado e ambos olhamos as chamas por um momento.
— Onde mais eu poderia estar, se não junto com você?
— Você sabe do que eu tô falando — respondo. Passo a palma da mão por cima de uma chama, só para sentir o calor na minha pele e ver o quanto consigo aproximá-la sem me queimar.
— Eu sei — ele admite —, mas mesmo assim.
Eu afasto a mão e olho para ele; seu rosto parece delicado no brilho alaranjado das velas, mesmo com a barba por fazer que está começando a aparecer de novo.
— Camryn, preciso contar uma coisa pra você.
Instantaneamente, meu coração fica apertado no peito com o modo como ele falou.
— O quê... isto é, como assim, precisa me contar uma coisa? — Estou tão nervosa. Não sei por quê.
Andrew dobra os joelhos e apoia os antebraços sobre eles. Ele olha de novo para as chamas uma vez, só por alguns segundos, mas até alguns segundos é tempo demais.
— Andrew? — viro completamente o corpo para encará-lo.
Noto que seu pomo de adão se mexe quando ele engole em seco. Ele me olha nos olhos.
— Eu tô sentindo dores de cabeça — ele começa, e meu coração afunda até o estômago. Sinto que vou vomitar. — Só desde segunda, mas marquei uma consulta com um médico daqui. Foi recomendação da sua mãe.
Eu a odeio na hora por esconder isso de mim. Minhas mãos estão tremendo.
— Pedi pra sua mãe não contar nada pra você porque queria que o lance da casa acontecesse tranquilamente...
— Você devia ter me contado.
Ele tenta pegar minha mão, mas sem perceber eu a puxo e fico de pé.
— Por que você escondeu isso de mim?! — Eu estou zonza.
Andrew fica de pé também, mas mantém distância.
— Já te falei — ele diz. — Eu não queria...
— Não quero saber! Você devia ter me contado!
Eu cruzo os braços sobre a barriga e me curvo um pouco para a frente. Estou surpresa de ainda não ter vomitado. Meus nervos estão tão em frangalhos que é como se estivessem realmente se partindo dentro de mim.
— Isso não pode estar acontecendo... — Finalmente, escondo o rosto nas mãos e começo a soluçar. — Por que isso tá acontecendo, porra?!
Andrew está ao meu lado em segundos. Eu sinto seus braços me envolverem. Ele puxa meu corpo trêmulo para o seu peito e me abraça. Apertado.
— Essas dores não querem dizer nada — Andrew afirma. — Sinceramente, não me sinto como da outra vez, Camryn. Tenho dores de cabeça, sim, mas são diferentes.
Quando domino os soluços o suficiente e sinto que vou conseguir falar sem engasgar, levanto a cabeça para olhá-lo.
Ele segura meu rosto com as mãos e sorri fracamente para mim.
— Eu sabia que você ia reagir assim, amor — ele continua baixinho. — Não quero que fique estressada pelos próximos quatro dias, até minha consulta na segunda. — Ele continua me olhando nos olhos. — Eu não tô sentindo a mesma coisa. Se concentra nisso, porque tô dizendo a verdade.
— Você tá? — pergunto. — Ou tá dizendo isso pra não me deixar preocupada? — Eu já enfiei na cabeça que o que ele está fazendo é exatamente a segunda opção. Me afasto dele e começo a andar de um lado para o outro, de braços cruzados, com uma mão sobre a boca. Não consigo parar de tremer.
— Não tô mentindo pra você. Eu vou ficar bem. Sinto que vou ficar bem, e você precisa acreditar.
Eu me viro para encará-lo de novo.
— Não consigo mais viver assim, Andrew. Não quero.
Ele inclina um pouco a cabeça; seu olhar é pensativo, curioso, preocupado.
Eu sei que ele quer que eu explique melhor o que falei, mas eu não posso. Não posso, porque as coisas que quero dizer só o deixariam chateado e magoado. E seriam apenas palavras. Palavras resultantes da dor e da raiva e de uma parte de mim que quer olhar na cara de Deus, ou seja lá quem ou o que for, e mandá-Lo pro inferno.
Eu preciso me acalmar. Preciso parar e respirar.
Eu faço exatamente isso.
— Camryn?
— Você vai ficar bem — afirmo com sinceridade. — Eu sei que você vai ficar bem.
Ele volta para perto de mim, me beija na testa e diz:
— Eu vou.
Andrew
35
OS ÚLTIMOS QUATRO dias foram estressantes. Embora Camryn tivesse dito que continuaria pensando positivo e que não se deixaria afetar, ela andou diferente. Seus nervos estão em frangalhos. Por duas vezes a ouvi chorando no banheiro e vomitando. Desde que contei sobre as dores de cabeça, na terça à noite, ela está agindo de um jeito bem parecido com a forma como agiu antes de partirmos para visitar Aidan e Michelle em Chicago: fingindo sorrisos e rindo forçado quando algo supostamente seria engraçado. Ela não é a mesma. Preocupado e lembrando o que aconteceu depois do aborto, com os comprimidos, perguntei à queima-roupa se ela teve mais algum “momento de fraqueza”.
Camryn diz que não, e eu acredito.
Mas nada vai consertá-la desta vez, a não ser sairmos hoje deste hospital com os resultados dos meus testes negativos.
Caso contrário... bem, não quero pensar nisso.
Estou mais preocupado com ela do que comigo mesmo.
Pediram que Camryn esperasse em outra sala enquanto faziam a tomografia. Percebo que ela queria discutir com a enfermeira, mas faz o que pediram. E, como da última vez, parece que já estou aqui há horas, me sentindo um pouco claustrofóbico no túnel desta máquina enorme e barulhenta. Fique bem parado, o técnico me pediu. Tente não se mexer, senão vamos ter que refazer o exame. Nem preciso dizer que fiquei praticamente sem respirar por 15 minutos.
Quando a tomografia acabou, tirei os tampões de ouvido e os joguei no cesto de lixo.
Camryn quase perdeu as estribeiras quando a enfermeira que veio me liberar disse que só saberíamos de alguma coisa na quarta-feira.
— Você tá de brincadeira comigo! — Os olhos de Camryn estavam animalescos. Iam e voltavam entre mim e a enfermeira, esperando que um de nós pudesse fazer alguma coisa.
Eu olhei para a enfermeira.
— Tem algum jeito de a gente saber o resultado ainda hoje?
Percebendo, só de olhar para a expressão de Camryn, que ela não iria ceder, a enfermeira suspirou e disse:
— Vão sentar na sala de espera, vou ver se consigo convencer o dr. Adams a dar uma olhada agora.
Quatro horas depois, estávamos sentados no consultório do dr. Adams.
— Não vejo nenhuma anormalidade — o doutor declarou, e eu senti a mão de Camryn afrouxar o aperto mortal em que prendia a minha. — Mas, considerando seu histórico, acho que seria do seu interesse se consultar comigo uma vez por mês pelos próximos meses e ficar atento de qualquer alteração que considerar importante.
— Mas o senhor falou que não viu nada — Camryn disse, apertando minha mão de novo.
— Não, mas ainda acho que isso seria do interesse de Andrew. Só por segurança. Assim, se alguma coisa surgir, vamos detectá-la bem cedo.
— Tá dizendo que alguma coisa vai surgir?
Eu queria rir da sutil cara de frustração do médico, mas em vez disso olhei para Camryn, que estava à minha esquerda, e falei:
— Não, ele não tá dizendo isso. Fica calma. Tá tudo bem. Viu? Eu falei que ia ficar tudo bem.
E daquele dia em diante, só pude torcer para que eu estivesse dizendo a verdade.
Camryn
36
MUITOS MESES DEPOIS...
Andrew me escreveu outra carta, em algum momento do nosso primeiro mês na nova casa. Acho que já a li umas cem vezes. Em geral eu choro, mas também me pego sorrindo muito. Ele disse que queria que eu a lesse uma vez por semana para marcar mais uma semana que passava sem nada acontecer, em que tudo continuava bem. E eu fiz isso. Costumava lê-la no domingo à noite, depois que ele já tinha pegado no sono ao meu lado na cama. Mas às vezes, quando eu adormecia antes dele, na manhã seguinte tirava a carta de dentro do livro ao lado da cama e a lia antes que ele acordasse. E como em todas as vezes anteriores, eu olhava para ele dormindo, depois de lê-la, e torcia por mais uma semana.
Andrew sempre me intrigou. O modo como sua mente funcionava. O modo como ele conseguia me olhar sem dizer nada e fazer com que eu me sentisse a pessoa mais importante do mundo. Sempre me intrigou como ele conseguia ser sempre tão otimista, mesmo quando o mundo estava desmoronando ao seu redor. E como ele sempre fazia uma luz brilhar nos recantos mais sombrios da minha mente, quando eu achava que nunca mais veria outra luz ali.
Claro que ele tinha maus dias, “momentos de fraqueza”, mas jamais conheci alguém nem de longe como ele. E sei que jamais vou conhecer.
Talvez no fundo eu seja uma pessoa fraca, na verdade. Talvez, se não fosse por Andrew, eu não fosse a pessoa que sou hoje. Às vezes me pergunto o que seria de mim se eu jamais o tivesse conhecido, se ele não tivesse aparecido para me salvar daquela viagem de ônibus perigosa e imprudente que decidi fazer sozinha. Eu me pergunto o que teria acontecido comigo se ele não gostasse de mim o suficiente para me ajudar a superar o meu momento de fraqueza. Odeio pensar em mim assim, mas às vezes é preciso simplesmente enfrentar a realidade, enxergar como as coisas são e como elas poderiam ter sido, por causa das nossas ações. Acredito de coração que, se não fosse por Andrew, talvez eu nem estivesse aqui hoje.
Os últimos meses foram muito difíceis para nós, mas ao mesmo tempo foram cheios de vida, empolgação, amor e esperança.
A vida é uma coisa misteriosa e muitas vezes injusta. Mas acho que aprendi, no tempo que passei com Andrew, que ela também pode ser maravilhosa, e que em geral, quando acontece uma coisa que parece injusta, é só o jeito de a a vida abrir espaço para coisas melhores que virão. Gosto de pensar assim. Me dá forças quando mais preciso.
E no momento, eu preciso muito.
Tento olhar para cima, para o relógio no alto da parede branca e estéril da sala, mas mal consigo enxergar os ponteiros com minha visão embaçada. Quero saber há quanto tempo estou aqui. Estou exausta e enfraquecida mental e fisicamente e não aguento mais. Eu engulo o nó na garganta e sinto que minha boca está seca como uma lixa. Enxugo uma lágrima do meu olho. Mas só uma. Na verdade, não chorei muito. Porque a dor estava tão insuportável, antes, que praticamente secou todas as minhas lágrimas.
Eu não vou conseguir. Sinto que a qualquer momento vou querer simplesmente desistir. Quero dizer pra todos que estão na sala que vão embora, que me deixem em paz e parem de me olhar como se minha alma estivesse doente. Ela está! Está, porra! Mas ninguém aqui pode curá-la.
O que mais sinto é entorpecimento. Não consigo sentir mais nada. Mas as paredes do hospital estão começando a se fechar ao meu redor, me deixando um tanto claustrofóbica. Mas quanto à dor e à angústia, não sinto nada. Eu me pergunto se vou ficar entorpecida para sempre.
— Você precisa tentar fazer força — Andrew recomenda ao meu lado, segurando a minha mão.
Eu viro a cabeça bruscamente para olhá-lo e discuto:
— Mas eu não tô sentindo minha cintura! Como posso fazer força se não consigo sentir que tô fazendo força! — Acho que só tenho força para expelir essas palavras entre meus dentes cerrados.
Ele sorri e beija minha testa suada.
— Você consegue — assegura a dra. Ball, do meio das minhas pernas.
Eu fecho os olhos, aperto a mão de Andrew e faço força. Eu acho. Abro os olhos e me permito respirar.
— Eu fiz força? Tá dando certo?
Meu Deus, tomara que eu não solte um peido! Ai meu Deus, ia ser um puta dum mico!
— Você tá indo muito bem, amor.
Andrew olha para a obstetra, agora, esperando.
— Mais algumas vezes vão ser suficientes — a obstetra me tranquiliza.
Odiando as palavras dela, solto um suspiro frustrado e jogo com força a cabeça contra o travesseiro.
— Tenta de novo, amor — Andrew pede delicadamente, sem jamais perder a calma, embora toda vez que o vejo olhar para a obstetra eu perceba um traço de preocupação oculta em seu rosto.
Eu ergo as costas do travesseiro novamente e tento fazer força, mas como de costume, não sei dizer se estou mesmo fazendo força ou só achando que estou. Andrew põe um braço nas minhas costas para me ajudar a ficar erguida, e eu me apoio nele e faço força de novo, fechando os olhos tão apertado que sinto que eles estão afundando no meu crânio. Meus dentes estão cerrados e à mostra. O suor escorre da minha testa.
Eu grito algo incompreensível quando paro de fazer força e consigo respirar de novo.
E sinto alguma coisa. Opa... não é dor — a epidural me curou disso —, mas a pressão do bebê com certeza eu senti. Se eu não soubesse que é impossível, acharia que alguém acabou de enfiar algo descomunal na minha vagina. Meus olhos ficam cada vez mais arregalados.
— A cabeça do bebê saiu — ouço a obstetra dizer, e depois ouço um barulho nojento quando ela limpa a garganta do bebê com um bulbo de sucção.
Andrew quer olhar; vejo seu pescoço se esticar como o de uma tartaruga, tentando ver melhor, mas ele não quer sair do meu lado.
— Só mais umas vezes, Camryn — a dra. Ball repete.
Eu faço força de novo, me esforçando ainda mais, agora que sei que está dando certo mesmo.
Ela puxa os ombros do bebê para fora.
Eu faço força mais uma vez e nosso bebê nasce.
— Você foi ótima — a obstetra elogia, enquanto limpa melhor a garganta do bebê.
Andrew beija a minha bochecha e minha testa, e afasta meu cabelo empapado do meu rosto e do pescoço. Alguns segundos depois, o choro do bebê enche a sala de sorrisos e empolgação. Eu caio no choro, soluçando tanto que todo o meu corpo treme descontroladamente de emoção.
E então a obstetra anuncia:
— É menina.
Andrew e eu mal conseguimos tirar os olhos dela, até que pedem que ele corte o cordão umbilical. Ele sai de perto de mim, mas sorri orgulhosamente ao ir para o outro lado e fazer as honras. Parece incapaz de decidir para quem ele quer olhar mais, se para mim ou para nossa filha. Eu sorrio e volto a encostar a cabeça no travesseiro, completamente esgotada. Finalmente consigo enxergar o relógio de parede. Ele diz que fiquei em trabalho de parto por mais de 16 horas.
Sinto mais pressão, cutucões e puxões entre minhas pernas enquanto a obstetra faz coisas sobre as quais, francamente, não quero saber nada. Fico só olhando para o teto por um momento, perdida nos momentos dos últimos nove meses, até que ouço nossa bebê gritando do outro lado da sala e novamente levanto a cabeça tão rápido que quase destronco o pescoço.
Andrew fica por perto enquanto uma das enfermeiras a limpa e começa a embrulhá-la em cobertores. Ele olha para mim e diz:
— Bom, ela tem os seus pulmões, amor — e enfia dois dedos nos ouvidos. Eu sorrio e olho para os dois, tentando não pensar nos puxões que continuo sentindo lá embaixo. E então Andrew volta para o lado da cama.
Ele beija meus lábios e sussurra:
— Suada. Parece que você correu uma maratona. Sem maquiagem. Numa camisola de hospital. E mesmo assim consegue ser bonita.
E apesar de tudo isso, mesmo assim ele consegue me deixar vermelha.
Levanto a mão da qual sai o tubo do soro e seguro o rosto dele, puxando-o para mim.
— Conseguimos — eu murmuro perto dos seus lábios.
Ele me beija delicadamente de novo, e então a enfermeira se aproxima com nossa filha no colo.
— Quem quer segurá-la primeiro? — ela pergunta.
Andrew e eu nos entreolhamos, mas ele faz menção de dar passagem para que a enfermeira possa entregá-la para mim.
— Não — eu insisto. — Você primeiro.
Só um pouco dividido a respeito disso, Andrew finalmente cede e estende os braços para pegá-la. A enfermeira a coloca cuidadosamente no colo dele e se afasta assim que percebe que ele a está segurando firme. De início, ele parece desajeitado e infantil, com medo de derrubá-la ou de não a estar segurando direito, mas logo fica mais à vontade.
— Loura — ele anuncia perto de mim, sorrindo de orelha a orelha, com os olhos verdes levemente marejados de lágrimas. — E cabeluda também!
Ainda estou tão exausta que só consigo reagir com um sorriso.
Andrew olha para ela, toca suas bochechinhas com os nós dos dedos e lhe beija a testa. Depois de alguns momentos, ele a coloca nos meus braços pela primeira vez. E assim que fico frente a frente com minha menina, eu desmorono de novo. Mal consigo enxergar em meio a tantas lágrimas.
— Ela é tão perfeita — digo, sem tirar os olhos dela. Estou quase com medo de tirar, como se desviando o olhar por um segundo ela vá sumir, ou eu vá acordar de um sonho. — Perfeita — murmuro e beijo seu narizinho.
Andrew
37
TODOS OS PARENTES, tanto meus quanto de Camryn, estão na sala de espera — menos o pai e o irmão de Camryn. Ninguém sabe ainda se é menino ou menina. Camryn e eu não quisemos saber durante toda a gravidez. Decidimos deixar que ela nos surpreendesse. E nos surpreendeu.
Antes de deixar a família entrar para vê-las, fico com Camryn no quarto particular para onde nos transferem logo após o parto. Estamos ali há um tempinho, esperando que as enfermeiras tragam a bebê de volta depois de fazer o que elas fazem, seja lá o que for. Eu a pego no colo depois que a enfermeira verifica a pulseira de identificação de Camryn e a compara com a que “Bebê Parrish” está usando no tornozelinho. Eu também verifico, antes de deixar a enfermeira sair. E examino bem a bebê. Hoje em dia, todo cuidado é pouco, e eu vou controlar pra ver se eles trazem sempre o mesmo bebê que levaram. Mas não há como confundir aquela cabeleira loura e aquela vozinha estridente, mas de gelar o sangue, que me põe em submissão absoluta. Se ela soubesse falar, eu faria tudo o que ela pedisse sem pensar duas vezes. Me dá a mamadeira! Sim, senhora! Troca a minha fralda! É pra já! Pisa no pé daquela enfermeira que me enrolou feito um burrito! Tudo bem, garotinha!
Camryn a segura perto do tórax, deixando que ela mame no peito.
Ela descobriu que estava grávida de novo um dia antes de mudarmos para a nova casa. Mas ela só me contou depois da minha consulta no médico, na segunda-feira seguinte. Ela disse que estava com medo, acho que da mesma forma que fiquei com medo de contar a ela imediatamente que eu estava sentindo dores de cabeça. Mas depois disso, conversamos muito sobre as coisas que faríamos diferente, desta vez. Uma dessas coisas foi sua decisão de amamentar. Na primeira gravidez, Camryn não ficou muito empolgada com a ideia de ter um bebê sugando seus seios, especialmente porque talvez precisasse amamentá-la em público. Na época, eu só concordava com o que ela queria e não tentava fazê-la mudar de ideia. Eu não tinha nenhum motivo para isso, na verdade.
Mas desta vez, quando Camryn tocou no assunto de novo, ela disse:
— Quer saber, amor? Andei lendo muito sobre gravidez e os benefícios da amamentação, e não quero nem saber o que os outros vão pensar. Eu sinto que quero e devo fazer isso.
E eu disse:
— Então também acho que você deve.
Eu me sento ao lado dela. Fiquei feliz por ela ter tomado essa decisão sozinha, sem que eu desse palpite. Ei, contanto que eu não comece a ter fetiche por lactação e ela não queira que eu prove, o que ela decidir tá bom pra mim.
— Eu li que a maioria dos bebês nasce com olhos azuis — Camryn diz, olhando para a bebezinha —, mas acho que mais tarde ela vai ter os seus olhos verdes.
Eu afago a cabeça da nossa filha de leve com as pontas dos dedos.
— Talvez. — Não consigo parar de olhar para as duas, minha linda mulher e minha preciosa filhinha. Sinto que entrei em outro mundo, muito mais brilhante do que jamais imaginei. Eu realmente não achava que poderia ser mais feliz do que eu era com Camryn. Não achava isso possível.
Acho que Camryn ainda está um pouco em choque.
— O que você tá pensando? — pergunto, sem parar de sorrir ternamente.
Seus olhos cansados se abrandam quando ela me olha.
— Você tinha razão — ela diz.
A bebê faz um barulhinho de sucção, tão fraco que mal o ouço, mas percebo que estou prestando atenção em cada ruído e movimento dela.
Camryn continua:
— Você disse que eu não ia perdê-la, desta vez. Você disse que o tumor não ia voltar. Disse que ia dar tudo certo. E deu. — Ela olha para a bebê por um momento, afagando sua sobrancelha com o dedo, e então para mim de novo. — Obrigada por estar certo.
Eu me levanto da cadeira, seguro seu queixo e levanto sua cabeça para poder beijá-la na boca.
Alguém bate de leve na porta e ela se abre devagar. A cabeça da minha mãe aparece.
— Entra — eu digo, chamando-a com um gesto.
A porta larga se abre completamente, e tanta gente entra no quarto em fila indiana que eu paro de contar depois de Aidan e Michelle, que está grávida de cinco meses.
Nós nos abraçamos, todos passando os braços ao meu redor, mas tentando dar uma olhada na bebê ao mesmo tempo.
— Parabéns, mano — Aidan diz, me dando tapinhas nas costas. — Eu tava sentindo que você ia ser pai antes de mim. — Ele acaricia a barriga redonda de Michelle. Ela afasta sua mão de um jeito bem-humorado e o avisa para não enfiar mais o dedo no seu umbigo. Depois me abraça e se aproxima de Camryn na cama.
— Nós vamos ter um menino — Aidan conta.
— É mesmo? — exclamo. — Que legal.
A notícia também chama a atenção de Camryn, mas Michelle fala primeiro.
— Ele não tem certeza — ela diz. — Só acha que sabe.
Camryn ri baixinho e diz:
— Pode acreditar, se um dos irmãos Parrish diz que vai ter um menino ou uma menina, provavelmente vai acertar.
— Tudo bem, veremos — Michelle desconversa, ainda incrédula.
Eu olho para o meu irmão, e já vi essa expressão confiante. É, eles vão mesmo ter um menino.
— Ai meu Deus — ouço Natalie dizer baixinho em algum lugar do quarto —, o cobertor é cor-de-rosa. Isso significa o que eu tô pensando? — Ela leva as mãos ao rosto, cobrindo a boca com os dedos cheios de anéis. Na verdade, estou surpreso por vê-la tão calma. Blake está ao lado dela, em silêncio, como sempre.
Camryn olha primeiro para mim, eu sinalizo com a cabeça minha autorização e ela diz a todos:
— Sim, esta é a nossa filha.
Todas as mulheres migram imediatamente até a cama. A mãe de Camryn estende os braços, querendo ser a primeira a segurá-la no colo, e Camryn cobre o seio com a camisola e a entrega cuidadosamente.
— Oh, ela é tão linda, Camryn — Nancy elogia. Seu cabelo oxigenado está preso num coque malfeito no alto da cabeça. Seus olhos são tão azuis quanto os de Camryn. Elas se parecem mesmo. — Ela é perfeita. Minha netinha perfeita. — O padrasto de Camryn, Roger, parece apavorado, apoiado na parede, sozinho. Não sei se é porque esse tipo de situação o deixa constrangido ou porque se deu conta de que agora está casado com uma avó. Eu rio por dentro.
Asher me abraça a seguir.
— Se fosse menino, eu ia me preocupar em ter outro como você à solta por aí. — Ele sorri e me cutuca com o cotovelo.
— Bom, pode esperar, maninho — eu retruco, sugando ar entre os dentes —, você é o próximo da fila, e outro igual a você é tão ruim quanto outro igual a mim.
— Não sei não — ele rebate.
— É, tem razão. Pra isso você precisa de uma namorada. Acho que não vai precisar se preocupar com essa possibilidade tão cedo.
— Cara, eu tenho namorada.
— Quem é? Lara Croft? Ou alguma desenhada por Luis Royo? — eu rio.
— Deixa quieto, cara — ele diz, cruzando os braços e balançando a cabeça, mas sei que é preciso bem mais para deixá-lo puto. Se eu não tirasse um sarrinho, ele ia achar que eu estava doente.
— Tio Asher — eu digo, para me redimir mesmo assim. — Até que soa bem.
Ele faz que sim com a cabeça, pensativo, e concorda:
— É, também acho.
Nancy passa nossa filha para minha mãe, em seguida. Eu nunca a vi tão orgulhosa. Seus olhos passam de mim para a bebê, indo e voltando.
— Ela tem seu nariz e seus lábios, Andrew — minha mãe afirma.
— E o cabelo e os pulmões de Camryn — eu lembro.
Natalie está no pé da cama agora, e está agitada, com as mãos à frente do corpo. Minha mãe percebe o quanto ela está ansiosa para pegar a bebê, por isso beija a cabeça da neta e a passa para Natalie.
— Espero que você tenha lavado as mãos, Nat — Camryn diz da cama.
— Eu lavei! — Natalie responde, e em seguida ignora Camryn e começa a falar com minha filha, embora ela esteja dormindo: — Oh, você é a coisinha mais linda que eu já vi — sua voz ficando mais alta à medida que ela fica mais emocionada. Então ela olha Camryn nos olhos e diz, séria: — Meu Deus, eu quero um também.
Blake arregala os olhos, e acho que para de respirar. Quando olho para ele de novo, alguns minutos depois, vejo que já está ao lado de Roger, encostado na parede.
Brenda, a tia de Camryn, é a próxima a pegar a bebê no colo, e depois uma de suas primas. Depois que Michelle a segura por alguns minutos, derramando elogios à sua beleza, ela a devolve para Camryn. Eu me sento novamente na cadeira ao seu lado.
— Então, já escolheram um nome? — minha mãe pergunta.
Camryn e eu nos entreolhamos, e ambos estamos pensando a mesma coisa.
— Ainda não — Camryn responde, e é só o que ela diz. Eu sei que devo ser o único no quarto que percebe na hora o que a questão do nome causou: Camryn não conseguiu evitar pensar em Lily. Mas ela deixa esse momento passar e beija a bochecha da nossa bebê, obviamente tão orgulhosa do que tem, apesar do que perdeu.
A maioria dos parentes vai embora antes de escurecer, mas nossas mães ficam até um pouco mais tarde, se conhecendo melhor. É a primeira vez que elas se encontram oficialmente. E por fim vão embora, pouco depois das sete, quando a enfermeira entra no quarto para dar uma olhada na bebê e em Camryn.
Quando nós três ficamos a sós de novo, eu reduzo a iluminação do quarto, deixando só a luz do banheiro acesa. Nossa filha dorme profundamente no colo de Camryn. Eu sei que minha mulher está cansada, completamente exausta, mas ela não consegue largar a bebê para também dormir um pouco. Eu me ofereci para pegá-la para que ela possa dormir, mas Camryn insiste em ficar acordada.
Eu olho para as duas por um instante, um momento tão perfeito, e então me aproximo e me sento na beira da cama, perto delas.
Camryn olha para mim, depois mais uma vez para nosso anjinho adormecido.
— Lily — eu digo simplesmente.
Camryn volta a me olhar, confusa.
Eu balanço a cabeça devagar, como que para dizer: Sim, você ouviu certo, e toco a cabecinha macia da nossa bebê de novo.
— Lembra o que eu disse? Em Chicago, quando encontrei os comprimidos?
Ela balança a cabeça negativamente.
Desta vez, eu toco o rosto de Camryn, correndo os dedos por um lado dele e depois pelo outro.
— Eu disse que Lily ainda não tava pronta. — Fico em silêncio e depois acrescento, com um sorriso: — Mesma alma, outro corpo.
Algum pensamento brilha nos olhos de Camryn. Ela inclina a cabeça um pouco para o lado, me olhando, intrigada. E então olha de novo para a bebê e não ergue mais o olhar pelo que parece uma eternidade.
Quando ela levanta a cabeça, lágrimas estão escorrendo pelo seu rosto.
— Você acha? — ela pergunta, esperançosa.
— Sim. Eu acho.
Ela começa a chorar mais copiosamente e aperta com delicadeza a bebê Lily contra os seios, ninando-a. Então olha para mim e balança a cabeça várias vezes.
— Lily — ela murmura baixinho, beijando-lhe o alto da cabeça.
Na manhã seguinte, eu me espreguiço na cadeira ao lado da cama de Camryn, onde peguei no sono na noite anterior. Eu a ouço falando em voz baixa no quarto e, como todas as outras vezes, finjo ainda estar dormindo enquanto ela lê a carta que escrevi meses atrás.
Camryn
38
Querida Camryn,
Eu sei que você está com medo. Eu estaria mentindo se dissesse que não estou com um pouco de medo também, mas preciso acreditar que desta vez vai ficar tudo bem. E vai ficar.
Nós passamos por tanta coisa juntos. Mais do que a maioria das pessoas, em tão pouco tempo. Mas em qualquer situação, a única coisa que nunca mudou é que ainda estamos juntos. A morte não conseguiu me tirar de você. A fraqueza não conseguiu me fazer ver você de forma negativa. As drogas e as merdas que vêm com elas não conseguiram tirar você de mim, nem voltar você contra mim. Acho que podemos afirmar com toda a segurança que somos indestrutíveis.
Talvez tudo isso tenha sido um teste. Sim, eu penso muito a respeito e me convenci disso. Muita gente prefere ignorar o Destino. Alguns têm tudo o que já quiseram ou precisaram ao alcance das mãos, mas abusam disso. Outros passam reto pela sua única oportunidade porque nunca abrem os olhos por tempo suficiente para ver que ela está ali. Mas você e eu, até antes de nos conhecermos, corríamos todos os riscos, tomávamos nossas próprias decisões sem dar ouvidos aos outros ao nosso redor nos dizendo, de tantas maneiras, que o que fazíamos estava errado. Não, porra, nós fazíamos do nosso jeito, por mais imprudente, louco ou fora do convencional que fosse. Parecia que quanto mais avançávamos e lutávamos, mais árduos ficavam os obstáculos. Porque precisávamos provar que nós somos os caras.
E eu sei que fizemos exatamente isso.
Camryn, quero que você leia esta carta para si mesma uma vez por semana. Não importa que dia ou que hora, apenas leia. Cada vez que você a abrir, quero que veja que mais uma semana se passou e você continua grávida. Eu continuo com saúde. Nós ainda estamos juntos. Quero que você pense em nós três, você, eu e nosso filho ou filha, viajando pela Europa e pela América do Sul. Só visualize isso. Porque nós vamos fazer isso. Eu prometo.
Você é tudo pra mim, e quero que continue forte e não deixe que seu medo do passado contamine o caminho para o nosso futuro. Vai dar tudo certo desta vez, Camryn, vai, sim, juro pra você.
Apenas confie em mim.
Até semana que vem...
Com amor,
Andrew
Eu ergo os olhos da carta na minha mão, deixando-a ao meu lado na cama, presa entre meus dedos. Lily dorme profundamente ao meu lado no berço do hospital. Andrew precisou ser convincente para que eu finalmente concordasse em colocá-la ali, em vez de segurá-la no colo a noite inteira. Mas acordei várias vezes para verificar se ela ainda estava respirando. Eu verifico de novo, agora. Não consigo evitar; acho que vou fazer isso por meses.
Finalmente, eu dobro a carta de Andrew mais uma vez nas mesmas dobras gastas. Provavelmente, ele acha que vou parar de lê-la, agora que Lily nasceu. Mas não vou. Nunca parei de ler a primeira carta que ele me escreveu, embora ele não saiba. Algumas coisas eu guardo só pra mim.
— Pronta pra botar aqueles destinos no chapéu? — Andrew diz.
Eu me pergunto há quanto tempo ele está acordado. Olho para ele e sorrio.
— Vamos esperar mais uns meses.
Ele balança a cabeça e se levanta da cadeira.
— Como conseguiu dormir assim? — pergunto. — Devia ter ido pro sofá. — Eu olho para o pequeno sofá perto da janela.
Andrew estica os braços para os lados e estala as costas e o pescoço. Ele não responde.
— Acho que finalmente vamos poder pegar todas aquelas coisas do primeiro chá de bebê na casa da minha mãe e trazer pra nossa casa — digo.
Andrew abre um sorriso maroto.
— Peraí, você já fez isso, certo?
Ele se espreguiça um pouco mais.
— Tecnicamente, não fui eu. Ontem, Natalie, Blake e sua mãe levaram tudo pra lá depois que a gente foi pro hospital, e já arrumaram tudo.
Eu não quis fazer isso durante a gravidez. Era só mais uma maneira de me preocupar em pôr o carro na frente dos bois e depois perder outro bebê. Pelo mesmo motivo, me recusei a saber o sexo do bebê antes que nascesse. Eu não queria me concentrar nem contar com nada disso como da outra vez. Achava que podia dar azar. No fundo, Andrew não concordava com isso, mas nunca disse nada, nem tentou me fazer mudar de ideia.
— E, como você provavelmente pode imaginar — ele continua —, como Michelle e minha mãe estão aqui, vai ter muito mais coisas além dos presentes do chá de bebê te esperando em casa.
~~~
No dia seguinte, quando Andrew abre a porta da nossa casa e eu entro com Lily no colo, vejo de cara que ele me disse a verdade. A casa está impecável. Eu jamais conseguiria deixá-la tão limpa. Quando Andrew me leva para a sala pelo corredor, ao passar vejo de relance um receptor de babá eletrônica no balcão da cozinha, outro sobre a mesinha de centro da sala, outro sobre a pia do banheiro, e finalmente, o terminal principal no quarto de Lily quando entro.
Eu fico sem fôlego, arregalando os olhos.
— Uau, Andrew, olha o que eles fizeram!
Lily se mexe no meu colo, provavelmente reagindo à empolgação na minha voz, mas logo se aquieta de novo.
O berço está encostado numa parede, com um lindo móbile musical do Ursinho Puff acima. Um jogo com gaveteiro e trocador ocupa a outra parede, perto da janela. Andrew abre as gavetas e mostra que cada uma está cheia de roupinhas, cobertores, panos, meinhas e várias outras coisas. Ele abre o armário e eu vejo dezenas de vestidinhos e conjuntos. Há tantos pacotes de fraldas empilhados ao lado do trocador que acho que nunca mais vamos comprar fraldas. Claro que sei que é só otimismo da minha parte.
Andrew me leva de volta ao corredor e abre o armário ao lado do banheiro para me mostrar um andador, um balanço infantil e uma espécie de estranho trepa-trepa, todos ainda nas caixas.
— Vou ter que montar isso tudo quando ela tiver idade pra usar — ele explica. — Mas ainda vai demorar um pouco.
— Acha que vai conseguir sozinho? — pergunto, brincando.
Ele empina o queixo e diz:
— Sem nem ler as instruções.
Eu só rio por dentro.
Então ele me leva para o nosso quarto. Há um bercinho branco perto da cama, do meu lado.
— Comprei pra você — ele conta, sorrindo com orgulho. — Sei que ainda vai demorar muito pra você conseguir deixá-la sozinha no quarto, então imaginei que ia precisar de um bercinho.
Ele está ficando vermelho. Eu me aproximo e beijo o canto de sua boca.
— Você tá certo. Obrigada.
Lily começa a se mexer de novo, e desta vez acorda. Andrew a pega do meu colo.
— Deixa que eu troco a fralda dela — ele diz.
Eu a entrego, deito no sentido da largura da nossa cama e fico observando. Ele a deita na cama também e solta seus cobertores. Os gritos mais bonitinhos, mas altíssimos, saem de seus pulmões. Os bracinhos e as pernas se agitam rigidamente. A cabecinha toda fica roxa feito uma beterraba. Mas Andrew não se abala. E quando abre a fralda dela, não fica enojado com a surpresa que ela deixou. Admito que fico surpresa com a facilidade que ele já demonstra em ser pai.
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Voltei a trabalhar na Bath and Body Works quando terminou a minha licença-maternidade, mas agora só por meio período. Minha chefe, Janelle, é maravilhosa, e gosta tanto de mim que me deu um aumento de um dólar quando contei que estava grávida. Só eu e Natalie trabalhamos lá, agora; Natalie faz período integral e assumiu boa parte do meu trabalho acumulado nas seis semanas em que estive de folga. Mas ela não liga. Diz que está economizando para comprar a casa própria. Ela e Blake parecem se curtir muito, sempre que os vejo juntos. Para ser sincera, nunca vi Natalie tão feliz. Eu achava que ela era feliz quando estava com Damon, mas estou percebendo que aquilo devia ser só tolerância e baixa autoestima. Blake é diferente. Acho que eles vão dar certo.
Andrew começou a trabalhar numa mecânica e funilaria umas três semanas depois que mudamos para a nossa casa. Seu conhecimento de carros lhe garantiu um lugar privilegiado na folha de pagamentos. Com certeza está ganhando mais do que eu, mas tenta me valorizar dizendo: “Isso não é porra nenhuma comparado a empurrar minha menina pra fora da sua...” Eu sempre o interrompo aí.
Desnecessário, Andrew. Mas obrigada!
Creche é coisa de rico, na minha opinião. Sinceramente, não acho que alguém que ganha salário mínimo possa pagar. O casal trabalharia só pra pagar a creche, o que não faz sentido. Além disso, Andrew e eu concordamos que não queremos deixar nossa filha na mão de estranhos. Por isso combinei com Janelle trabalhar só meio período à noite, quando Andrew está em casa, e um fim de semana sim, outro não.
Estamos vivendo bem e dando conta de tudo, como se tivéssemos levado a vida inteira desse jeito. Nosso saldo bancário pode ter seis dígitos, mas sabemos que é melhor devolver tudo o que conseguimos às nossas economias e gastar o mínimo possível. Além dos nossos empregos, Andrew e eu nos apresentamos com frequência, nas noites de sábado em que não estou trabalhando, no bar que o irmão de Blake, Rob, abriu na cidade. Algo aconteceu com o Underground e Rob precisou fechá-lo. Os boatos são de que Rob escapou por pouco de ser condenado à prisão. Acho que foi porque ele não tinha autorização para ter um bar, não sei. Mas Blake é o gerente do novo bar, e nas noites em que Andrew e eu tocamos lá, ganhamos metade do couvert artístico, que é mais do que já ganhamos tocando em qualquer outro bar, menos no de Aidan. Sábado passado faturamos oitocentas pratas.
É mais dinheiro entrando nas nossas economias para nossos planos futuros de ir aonde aquele chapéu nos mandar.
E, embora Andrew sempre ponha todo o seu coração e sua alma em cada apresentação, como sempre fez, agora percebo que, quando estamos no palco juntos, ele fica ansioso para terminar, para irmos pegar Lily na casa da minha mãe ou de quem teve a sorte de ficar com ela por aquelas poucas horas à noite.
Andrew tem tanto jeito com Lily. Ele não para de me surpreender. Levanta no meio da noite tantas vezes quanto eu para trocá-la, e às vezes até fica acordado comigo enquanto dou de mamar. Mas também tem seus momentos masculinos, portanto não é totalmente o Sr. Perfeitinho. Ao que parece, ele não é completamente imune a fraldas cagadas, e esta manhã mesmo o peguei com ânsia de vômito enquanto tentava trocá-la. Eu ri, mas fiquei com tanta pena que não pude deixar de assumir a tarefa. Ele saiu do quarto cobrindo a boca e o nariz com a camiseta.
E... bem, não quero tirar conclusões precipitadas, mas acho que Lily pode ter amolecido Andrew a ponto de ele gostar de Natalie, agora. Só um pouquinho, talvez. Não sei, mas sempre que Nat está aqui, segurando Lily no colo e fazendo-a sorrir, falando com ela do seu jeito animado, Andrew parece achar legal. Quando Lily completou três meses, eu sinceramente já nem lembrava a última vez que Andrew chamou Natalie de hiena pelas costas, ou fez aquela cara exasperada para mim quando ela não estava olhando.
Ele ainda faz careta quando ela diz que é madrinha da Lily, mas... um passo de cada vez. Ele chega lá.
Andrew
39
9 DE FEVEREIRO — primeiro aniversário de Lily — Aidan e Michelle chegaram! — ouço Camryn anunciar da sala.
Eu fecho o último botão nas costas do vestido de Lily e a pego pela mão. Mas ela não gosta quando seguro a mão dela e sempre se desvencilha e segura meu dedo indicador.
— Vem, bebê — eu chamo, olhando para ela. — O tio Aidan e a tia Michelle vieram ver a aniversariante.
Juro que ela entende o que estou dizendo.
Ela aperta meu dedo com toda a força, dá uma risadinha e um passão para a frente, como se eu fosse lerdo demais para acompanhá-la. Todo encurvado, eu dou passinhos rápidos e avanço pelo corredor, deixando que ela corra com suas perninhas roliças à minha frente. Quando Lily começa a cair ao fazer a curva, eu seguro sua mão, levanto-a um pouco do chão e deixo que se equilibre de novo. Ela começou a andar com dez meses. Sua primeira palavra foi “mamá”, quando tinha seis meses. Com sete meses, ela falou “papá”, e eu me derreti ao ouvi-la me chamar assim pela primeira vez.
E Camryn tinha razão — ela tem olhos verdes como os meus.
— Lily! — Michelle exclama dramaticamente, agachando-se para tomá-la nos braços. — Meu Deus do céu, você tá enorme! — Ela a beija nas bochechas, na testa e no nariz, e Lily gargalha sem parar. — Nham nham nham! — Michelle acrescenta, fingindo morder as bochechas.
Eu olho para Aidan, que está com meu sobrinho, Avery, colado ao corpo. Faço menção de pegá-lo, mas ele é tímido e se encolhe sobre o peito de Aidan. Eu recuo, torcendo para que ele não chore. Aidan tenta convencê-lo.
— Ele já tá andando? — Camryn pergunta, de pé ao meu lado.
Michelle segue Lily para a sala, onde uma nuvem de balões de hélio cor-de-rosa e azuis se acumula no forro. Quando Lily percebe que não vai conseguir alcançar os balões, desiste e vai direto para a sua pilha de presentes no chão.
Aidan entrega dois embrulhos a Camryn, e vamos todos para perto de Michelle e Lily na sala. Camryn põe os presentes junto com os outros.
— Ele tá tentando — Aidan responde, falando dos progressos de Avery. — Já anda se segurando no sofá, mas ainda não sente vontade de se soltar.
— Meu Deus, ele parece com você, mano — comento. — Coitadinho.
Aidan me daria um soco no estômago, se estivesse com as mãos livres.
— Ele é lindo — Camryn elogia, estendendo os braços para pegá-lo.
Claro que é, mas eu preciso zoar o meu irmão.
Avery primeiro a olha como se ela fosse louca, mas depois se vinga de mim por falar merda sobre seu pai, pulando direto no colo de Camryn sem problemas.
Aidan ri.
Nancy e Roger, Natalie e Blake, Sarah e seu namorado, que já tem um filho com uma ex-namorada, aparecem todos praticamente ao mesmo tempo. Depois, nossos vizinhos, Mason e Lori, um jovem casal com um filho de dois anos, chegam trazendo presentes. Lily, como a pequena exibicionista que é, apoia as mãos e a cabeça no tapete, empinando a bundinha enfraldada no ar. Então finge cair e diz “Oh-oh”, fazendo todos caírem na risada.
— Olha só esse cabelo louro encaracolado — Michelle diz. — O cabelo de Camryn era tão clarinho assim quando ela era bebê? — pergunta para a mãe de Camryn, que está sentada ao seu lado.
Nancy balança a cabeça.
— Sim, era assim mesmo.
Mais tarde, depois que todos chegam, Lily pode abrir seus presentes e, como sua mãe, canta, dança e faz um show para todos. E depois de soprar a velinha (na verdade, eu meio que soprei por ela), ela praticamente toma um banho de bolo e cobertura roxa. Seu cabelo e seus cílios estão melecados, tem bolo até dentro do nariz dela. Camryn tenta, em vão, evitar que ela faça bagunça demais, mas acaba desistindo e deixando Lily se divertir.
Lily capota depois de tanta empolgação, bem antes que o último convidado saia.
— Acho que foi o banho — Camryn sussurra para mim enquanto a olhamos no berço.
Eu pego Camryn pela mão e a levo comigo, encostando a porta do quarto de Lily, mas deixando uma fresta.
Ficamos juntos no sofá vendo um filme pelas duas horas seguintes, depois Camryn me beija e vai tomar banho.
Eu desligo a TV, me levanto do sofá e olho ao meu redor na sala. Ouço a água do chuveiro correndo e os carros passando lá fora. Penso na conversa que tive com meu chefe ontem, quando ele me disse que já estou no emprego há quase dois anos e tenho duas semanas de férias vencidas. Mas eu sei que duas semanas não são suficientes para que eu e Camryn façamos as coisas que queremos fazer. Essa questão do emprego é a única coisa que não chegamos a resolver, decidir o que faremos quando quisermos sair de Raleigh por um mês ou mais. Não queremos perder nossos empregos, mas acabamos chegando pelo menos a uma conclusão: é um sacrifício que estamos dispostos a fazer, e vamos ter que fazer para realizar nossos sonhos de viajar pelo mundo e não virar vítimas daquela vida cotidiana monótona que tanto tememos.
Sabemos que não vamos ficar nesses empregos para sempre. E, bem, é para ser assim mesmo.
Mas eu disse ao meu chefe que sim, que eu iria tirar aquelas férias nos próximos meses. Decidi não avisá-lo que iria largar o emprego sem antes falar com Camryn hoje à noite.
Eu me levanto do sofá, pego um bloco de anotações da gaveta da mesinha do computador e me sento à mesa da cozinha com ele. E começo a escrever os nomes dos vários lugares que Camryn e eu já dissemos que queríamos conhecer: França, Irlanda, Escócia, Brasil, Jamaica... Escrevo até formar um monte de tiras de papel no meio da mesa. Enquanto estou dobrando uma por uma e jogando no chapéu de vaqueira de Camryn, ouço o chuveiro sendo fechado no banheiro.
Ela aparece na cozinha com o cabelo molhado colado nas costas.
— O que você tá fazendo? — ela pergunta, mas entende antes que eu consiga responder. Ela se senta ao meu lado. E sorri. Ótimo sinal.
— Talvez a gente devesse partir em maio ou junho — sugiro.
Ela passa o pente no cabelo molhado algumas vezes e parece pensar a respeito. Depois deixa o pente sobre a mesa.
— Você acha que Lily tá pronta pra isso? — ela pergunta.
Eu balanço a cabeça.
— Sim, acho que tá. Já tá andando. A gente disse que ia esperar pelo menos até ela começar a andar.
Camryn balança a cabeça também, ainda pensando a respeito, mas não parece ter dúvidas.
— Precisamos começar cedo com ela.
Com certeza, não somos como as outras famílias. Muitos pais rejeitariam completamente a ideia de viajar para o exterior com um bebê, só por viajar. Mas nós não. Admito que não é para todos, mas para nós, é a única coisa a fazer. Claro que nossas “viagens além” não serão como as épocas que Camryn e eu passamos na estrada nos EUA. Dirigir por aí sem destino por horas, dias e semanas a fio com um bebê no carro não é totalmente factível — Lily iria detestar. Não, essas viagens consistirão mais em ficar parados em cidades que queremos explorar, e não ir de uma cidade a outra sem parar muito para descansar. E, infelizmente, não levaremos o Chevelle.
Camryn puxa o chapéu para perto de si e mexe a mão dentro dele.
— Você pôs todos os países que escrevemos na lista? — ela pergunta.
— Claro.
Ela estreita os olhos, brincalhona.
— Tá mentindo.
— Quê? Não, eu pus todos mesmo.
Ela chuta a minha canela com o pé descalço por baixo da mesa.
— Você tá de onda com a minha cara, Andrew.
Então ela começa a pegar as tiras de papel, desdobrando e lendo uma por uma.
— Jamaica. — Ela põe a tira na mesa. — França. — Ela põe por cima da outra. — Irlanda. Brasil. Bahamas. Ilhas Virgens. México. — Uma a uma, ela empilha as tiras.
Depois de várias, ela pega a última, mantendo-a dobrada entre os dedos, e rosna para mim.
— Algo me diz que aqui não tá escrito “Itália”. — Ela está se esforçando tanto para não sorrir.
Realmente não sei por que achei que isso iria dar certo.
Enquanto tento não rir e continuar sério, ela desdobra o papel e lê: — Austrália. — Ela põe a tira no alto da pilha. — Eu deveria castigar você por tentar trapacear — ela reclama, erguendo o queixo e cruzando os braços teimosamente sobre o peito.
— Ah, por favor — eu digo, incapaz de me manter sério. — Pelo menos eu não pus mais algumas tiras com o nome “Brasil”. — Eu rio.
— Mas pensou em fazer isso, não pensou?!
Faço uma careta com seu berro, e ambos olhamos para o corredor, para o quarto onde Lily está dormindo.
Camryn se debruça um pouco sobre a mesa e cochicha entre os dentes: — Eu vou te punir. Nada de sexo por uma semana. — Ela se afasta de novo, apoiando as costas na cadeira, com um sorrisinho.
Tá, agora esse negócio perdeu a graça.
Eu engulo meu orgulho, hesito e digo:
— Vai, você não tá falando sério. Você gosta tanto quanto eu.
— Claro que gosto. Mas você nunca ouviu dizer que as mulheres têm a capacidade mágica de ficar mais tempo na seca? Eu me viro sozinha.
— Você tá blefando — acuso, descrente.
Ela balança a cabeça de leve, com um brilho nos olhos que diz blefando-o-cacete, e isso está me deixando nervoso.
— O que você vai fazer pra se redimir, então?
Eu levanto um lado da boca num sorriso.
— O que você quiser. — Faço uma pausa, levanto um dedo e acrescento, antes que seja tarde demais: — Bem, contanto que não seja degradante, nojento ou injusto.
Com o sorriso aumentando, Camryn se levanta lentamente da cadeira. Eu observo todos os seus movimentos com a maior atenção, em parte temendo perder alguma coisa. Ela enfia os polegares no elástico da calcinha e me provoca com a ideia de tirá-la.
Puta que me pariu... sério? Você chama isso de punição?
Tento manter minha compostura, fingindo que seus gestos não me afetaram de forma alguma, quando na verdade não é preciso praticamente nada para me deixar louco por ela.
Ela se afasta de mim.
— Tá indo pra onde? — pergunto.
— Me virar sozinha.
— Oi?
— Você me ouviu.
Tá, ouvi, mas... não era pra acontecer isso.
— Mas... qual é a minha punição?
Ela para só o tempo suficiente para se virar e olhar para trás.
— Você vai ficar assistindo.
— Peraí... o quê?
Eu começo a segui-la. Bruxa do mal.
Ela vai para a sala e se deita, com a cabeça apoiada no braço do sofá e uma perna por cima do encosto.
Bruxa do mal. Do mal!
Ela me olha com ar sedutor e basta isso; assim que nossos olhares se cruzam, subo em cima dela, esmagando minha boca sobre a dela.
— Sem chance, amor — sussurro febrilmente em sua boca, e a beijo com mais força ainda.
Sua mão agarra a minha camiseta, sua língua se enrola apaixonadamente na minha.
E então Lily começa a chorar.
Eu paro. Camryn para. Nós nos entreolhamos por um momento, os dois frustrados, mas não conseguimos deixar de sorrir. Lily tem sono pesado e já quase não acorda mais durante a noite, mas de alguma forma sua intervenção, esta noite, não me surpreende.
— Eu vou desta vez — ela diz, se levantando do sofá.
Fico de pé, passando a mão no alto da cabeça.
Depois que ela desaparece no corredor, volto para a cozinha e me sento à mesa para rabiscar “Itália” em outra tira de papel. Eu a jogo no chapéu, dobro todas as outras e jogo dentro também.
Em minutos, a casa está em silêncio, depois que Camryn faz Lily dormir. Ela se senta na cadeira ao meu lado de novo, erguendo as pernas e cruzando-as sobre o assento. Apoiando um cotovelo na mesa, ela segura o queixo com a mão e me olha com um sorriso meigo, como se tivesse algo em mente.
— Andrew, você acha mesmo que a gente consegue fazer isso?
— Fazer o quê, exatamente?
Ela apoia os braços na mesa à sua frente, entrelaçando os dedos.
— Viajar com Lily.
Eu fico em silêncio e me apoio no encosto da cadeira.
— Sim, eu acho que a gente consegue. Você não?
Seu sorriso enfraquece.
— Camryn, você não quer mais viajar?
Ela balança a cabeça.
— Não, não é isso, juro. Só tô com muito medo. Nunca conheci pessoalmente ninguém que tentou uma coisa dessas. É assustador, só isso. E se a gente estiver se iludindo? Vai ver que as pessoas normais não fazem esse tipo de coisa por um motivo.
De início, fiquei preocupado. Tive a sensação de que talvez ela tivesse mudado de ideia, e embora eu aceitasse o que ela quisesse, uma parte de mim ficaria decepcionada por algum tempo.
Eu me encosto e apoio os braços sobre a mesa diante de mim, como Camryn. Meu olhar fica meigo quando olho para ela.
— Eu sei que a gente consegue. Contanto que seja o que nós dois queremos igualmente, que nenhum dos dois só esteja fazendo porque acha que é o que o outro quer, então sim, Camryn, eu sei que a gente consegue. Dinheiro a gente tem. Lily só vai entrar na escola daqui a anos. Nada nos impede.
— É isso que você quer realmente? — ela pergunta. — Jura que não tem uma parte de você que só tá indo adiante com isso por minha causa?
Eu balanço a cabeça.
— Não. Mas se eu não quisesse tanto quanto você, faria assim mesmo porque é o que você quer. Mas não, eu quero de verdade.
Aquele sorriso fraco dela se fortalece de novo.
— E você tem razão — eu continuo —, é assustador, admito. Não seria tanto se fôssemos só eu e você, mas pense por um segundo. Se não fizermos isso, o que mais vamos fazer?
Camryn desvia o olhar, pensativa. Ela dá de ombros e diz: — Trabalhar e criar uma família aqui, acho.
— Exatamente. Esse medo é a linha tênue que nos separa deles. — Faço um gesto amplo para indicar quem são “eles”, o tipo de gente do mundo que não queremos nos tornar. Camryn entende; vejo isso em seu rosto. E não estou dizendo que pessoas que decidem ficar num só lugar a vida toda e criar uma família estão erradas. São as pessoas que não querem viver assim, que sonham em ser algo mais, fazer algo mais, mas nunca vão atrás disso porque deixam que o medo as impeça antes mesmo de começarem.
— Mas o que a gente vai fazer? — ela pergunta.
— O que a gente quiser. Você sabe disso.
— Tá, mas eu digo depois. Daqui a cinco, dez anos, o que vamos fazer com nossas vidas, com a vida de Lily? Por mais que eu adore a ideia de fazer isso pra sempre, não consigo imaginar que seja realística. Uma hora nosso dinheiro vai acabar. Lily vai ter que ir pra escola. Aí vamos parar aqui de novo e ficar como eles do mesmo jeito.
Eu balanço a cabeça e sorrio.
— Corrigindo, esse medo e essas desculpas são a linha tênue. Amor, a gente vai ficar bem. Lily vai ficar bem. Vamos fazer o que quisermos, ir aonde quisermos e aproveitar a vida, sem nos acomodarmos numa vida que nenhum de nós realmente quer. O que tiver que acontecer, se o dinheiro começar a faltar, se a gente não conseguir trabalhar pra repor, se Lily precisar estudar e a gente tiver que decidir ficar num só lugar por muito tempo, mesmo se esse lugar for aqui, nesta casa, vamos fazer o que tivermos que fazer. Mas agora — eu aponto severamente para a mesa —, neste momento, não é com essas coisas que precisamos nos preocupar.
Ela sorri.
— Tá. Eu só queria ter certeza.
Eu balanço a cabeça e empurro o chapéu na direção dela com o dedo.
— Você escolhe primeiro — eu digo.
Ela começa a mexer dentro dele, mas para e estreita os olhos para mim.
— Você pôs a Itália aqui dentro?
— Pus, sim. Juro.
Sabendo que estou dizendo a verdade dessa vez, Camryn enfia mais a mão no chapéu e remexe as tiras de papel com os dedos. Ela tira uma e a segura no punho fechado.
— Bem, tá esperando o quê? — pergunto.
Ela põe sua mão na minha e diz:
— Quero que você leia.
Eu balanço a cabeça, tomo o papelzinho dela e o desdobro cuidadosamente. Leio só para mim primeiro, deixando minha imaginação explodir com visões de nós três lá. Eu estava tão fissurado em ganhar a aposta com o Brasil que nem pensei muito nos outros países, mas agora que perdi, é fácil imaginar.
— E então? — ela está ficando impaciente.
Eu sorrio e jogo a tira de papel sobre a mesa, com o nome para cima.
— Jamaica — anuncio. — Pelo jeito, nós dois perdemos a aposta.
Camryn abre um enorme sorriso. Aquela tirinha de papel sobre a mesa diante de nós é tão mais do que apenas papel e tinta. Ela acaba de pôr em movimento o resto de nossa vida juntos.
Camryn
40
E COMO FOI fantástica e maravilhosa essa vida.
Lembro como se fosse ontem o dia em que partimos, no fim da primavera, para a Jamaica. Lily usava um vestido amarelo e duas presilhas florais no cabelo. Ela não chorou nem deu trabalho no voo para Montego Bay. Foi um anjinho. E quando chegamos nesse primeiro destino, assim que descemos do avião e pisamos em outro país, tudo se tornou real.
Foi então que Andrew e eu ficamos... diferentes.
Mas eu já vou falar disso.
Foi há muito tempo, e eu quero começar do princípio.
Por dois meses, até o dia em que subimos naquele avião, eu continuei com medo de fazer isso. Por mais que eu quisesse fazer, por mais vezes que dissesse a mim mesma que Andrew tinha razão e que eu não precisava me preocupar, eu sempre me preocupava, é claro. Tanto que, dois dias antes da partida, quase dei pra trás.
Mas aí me lembrei da época quando Andrew e eu nos conhecemos, quando ele me fez enfiar suas roupas naquela mochila, logo isso:
— Então, pra onde a gente vai primeiro? — perguntei, dobrando uma camisa que ele me deu para pôr na mochila, a primeira da pilha.
Ele ainda estava fuçando no closet.
— Não, não — ele disse lá de dentro; sua voz chegava meio abafada —, nada de planejamento, Camryn. Vamos só pegar o carro e rodar. Nada de mapas, nem planos, nem... — Ele pôs a cabeça para fora do closet e sua voz ficou mais clara. — O que você tá fazendo?
Ergui o olhar, com a segunda camisa da pilha já meio dobrada.
— Dobrando suas camisas.
Ouvi um tum-tum quando ele deixou cair um par de tênis pretos e saiu do closet. Quando chegou, me olhou como se eu tivesse feito algo errado e tirou a camisa dobrada das minhas mãos.
— Não seja tão perfeitinha, gata; só enfia tudo na mochila.
Um momento aparentemente insignificante que compartilhamos, mas foi isso, no fim das contas, que me deu a coragem para subir naquele avião. Eu sabia que, se eu ficasse, se continuasse a pensar demais em tudo, a única coisa que eu iria conseguir seria deixar o medo controlar a minha, a nossa vida toda, daquele momento em diante.
E sempre que revejo nossa vida agora, a única coisa que ainda me apavora é saber que faltou muito pouco para que passássemos o resto da vida na Carolina do Norte.
Ficamos três semanas na Jamaica, adoramos tanto que nem queríamos ir embora. Mas sabíamos que tínhamos tanta coisa mais a fazer, tantos lugares para ver. E assim, uma noite, depois de nos enturmar na praia com os locais, Andrew enfiou a mão no saquinho (trocamos o chapéu de vaqueira por um saquinho roxo de uísque Crown Royal, muito mais fácil de carregar) e tirou o Japão. Do outro lado do oceano...
Isso era algo que não havíamos previsto.
Nem é preciso dizer que abandonamos completamente a ideia do saquinho e de sortear países, depois dessa. Passamos a escolher a próxima etapa de acordo com a nossa localização: Venezuela, Panamá, Peru e finalmente o Brasil. Visitamos todos eles, passando o maior tempo, dois meses, em Temuco, no Chile, e evitando a todo custo lugares conhecidos por serem mais perigosos para viajantes, cidades e até países inteiros em qualquer situação de conflito. E, em todo lugar que visitamos, nos sentimos cada vez mais parte de cada cultura. Comendo os pratos típicos. Participando de eventos. Aprendendo os idiomas. Só algumas frases essenciais aqui e ali eram o máximo que Andrew e eu conseguíamos aprender.
E nós voltávamos para os EUA nos feriados. Dia de Ação de Graças em Raleigh. Natal em Galveston. Ano-novo em Chicago. E, claro, também passamos o segundo aniversário de Lily em Raleigh. Nós a levamos ao pediatra para um checkup e para pôr as vacinas em dia. E, sim, Andrew também fazia checkups e, como a filha, tinha uma saúde de ferro.
Pouco antes da primavera, Andrew concordou com a ideia de deixar Natalie e Blake alugarem nossa casa. Era meio perfeito, na verdade. Eles estavam procurando uma casa, e nós precisávamos do dinheiro, e isso também nos livrou de pagar as contas. Ainda tínhamos muito dinheiro no banco, mas viajar tanto estava começando a abrir um buraco na nossa conta. Mas começamos a pegar as manhas de como economizar no exterior, fazendo uso de pousadas, hotéis baratos e casas de veraneio ainda mais baratas. Não precisávamos de luxo, só de um lugar seguro e limpo para Lily.
Mas acho que o que nos fazia economizar mais era que nunca viajávamos para lugar nenhum como turistas. Não comprávamos lembrancinhas nem nada de que não precisássemos. Não estávamos ali para acompanhar visitantes em passeios com guias ou gastar dinheiro fazendo tudo o que quem planeja uma viagem de férias faz. Comprávamos só o necessário, e de vez em quando torrávamos algum dinheiro em comida boa ou num brinquedo novo para Lily, quando ela se cansava do que tinha.
E também cantávamos para ganhar um dinheirinho extra, às vezes, mas, com Lily, nunca nos apresentávamos juntos. Como não ousávamos nem pensar em deixar Lily aos cuidados de alguém, nem mesmo por alguns minutos, eu parei de cantar completamente, e Andrew tocou violão e cantou por uns tempos sozinho. Mas no fim ele parou também. Países estrangeiros. Estilos diferentes de música. Idiomas completamente diferentes. Não demoramos muito para perceber que nossa música não era tão eficaz nesses lugares como na nossa pátria.
Alguns meses depois do segundo aniversário de Lily, Andrew e eu decidimos que estava na hora de partir. Queríamos viajar o máximo possível antes que fosse preciso parar em algum lugar para que Lily pudesse começar a estudar. E eu estava pronta para conhecer a Europa. Assim, com o verão se aproximando, Portugal se tornou nosso destino seguinte.
Andrew e eu “crescemos” no dia em que descemos daquele avião na Jamaica. Foi isso que eu quis dizer quando falei que ficamos diferentes. Claro que Lily nos pôs bastante nos eixos quando nasceu, mas quando descemos do avião e sentimos a brisa nos nossos rostos, não só eu finalmente descobri que o ar é diferente mesmo em outros países, mas nós descobrimos que era real. Estávamos muito longe de casa com a nossa filha, e por mais que nos divertíssemos, daquele dia em diante, jamais poderíamos baixar a guarda.
Nós crescemos.
Andrew
41
EU PENSO MUITO na minha vida de antes, até antes de conhecer Camryn, e vejo que é meio assustador o quanto mudei. Eu era o que ela denomina um “galinha” no colegial. E, tudo bem, continuei meio galinha depois do colegial — ela sabe de todas as mulheres com as quais já transei. Das festas que eu frequentava. Sabe praticamente tudo a meu respeito. De qualquer forma, penso muito no meu passado, mas não sinto saudade. A não ser de vez em quando, contando lembranças da infância com meus irmãos, sinto aquela nostalgia da qual Camryn falava na nossa segunda vez em Nova Orleans.
Não me arrependo de nada que fiz no passado, por mais que tenha chutado o balde às vezes, mas tampouco faria de novo. Consegui sobreviver àquela vida e faturar uma linda esposa e uma filha que realmente não mereço.
Fiquei sabendo ontem que Aidan e Michelle, depois de dois filhos e anos de casamento, estão se divorciando. Odeio que estejam passando por isso, mas acho que nem todo mundo nasceu para ficar junto com alguém, como Camryn e eu. Eu me pergunto se eles não teriam conseguido se não se matassem tanto de trabalhar. Aquele bar consumia o meu irmão, e Michelle também era consumida pelo seu emprego. Camryn e eu conversamos sobre como eles pareciam estar se distanciando, já na primeira visita de Camryn, antes que Lily nascesse.
— Eles só trabalham — Camryn comentou uma noite, ano passado. — Trabalham, cuidam de Avery e Molly, veem TV e vão dormir.
Eu balancei a cabeça contemplativamente.
— É, que bom que a gente não acabou assim.
— Também acho.
Asher, por outro lado, tem um doce de garota chamada Lea. E me orgulho em dizer que um dia eles decidiram espontaneamente se mudar para Madri. Meu irmão caçula se deu muito bem profissionalmente, conseguindo um emprego de engenheiro de sistemas de informática que lhe permitia mudar de país. Ele não precisava ir. Poderia ficar em Wyoming, mas, pelo jeito, ele é mais parecido comigo do que eu pensava. Por sorte, Lea tem os mesmos interesses e a mesma determinação que ele; senão o relacionamento dos dois acabaria mais parecido com o de Aidan e Michelle do que com o meu com Camryn. E ouvi dizer que Lea ganha uma grana preta vendendo vestidos feitos à mão pela internet. Camryn pensou em tentar alguma coisa assim, até que se deu conta de que precisaria costurar.
Com eles morando em Madri, nós já tínhamos um lugar para ficar quando também fomos para lá. Asher insistia que não precisávamos pagar aluguel, mas nós pagamos assim mesmo. Camryn não queria ficar “na aba”, como ela mesma disse.
— Um dólar — Asher negociou, só para contentá-la.
— Não — Camryn rebateu. — Seis dólares e 84 centavos por semana, nem um centavo a menos.
Asher riu.
— Você é meio esquisita, mulher. Tudo bem. Seis dólares e 84 centavos por semana.
No início, só íamos ficar com meu irmão por umas semanas, mas uma noite, Camryn e eu tivemos uma conversa séria.
— Andrew, acho que talvez a gente devesse ficar aqui por uns tempos. Aqui em Madri. Ou talvez voltar pra Raleigh. Eu não quero, mas...
Eu olhei para ela, curioso, mas ao mesmo tempo era aparente, para mim, que estávamos pensando da mesma forma.
— Eu sei o que você tá pensando — admiti. — Não é tão fácil quanto a gente queria que fosse, viajar com Lily.
— Não, não é. — Ela olhou para longe, pensativa, e sua expressão ficou mais dura. — Você acha que a gente agiu certo? Indo com ela pra tantos lugares?
Finalmente, ela olhou para mim de novo. Pude ver pela sua expressão que ela torcia para que eu dissesse que sim, que agimos certo.
— Claro que sim — eu afirmei, com convicção. — Era o que a gente queria fazer quando partimos no primeiro dia. Não temos arrependimentos. Claro, precisamos fazer as coisas de outro jeito em nome da segurança dela, evitar vários lugares que queríamos visitar e ficar parados mais tempo do que queríamos para que ela não sofresse com mudanças bruscas, mas agimos certo.
Camryn sorriu suavemente.
— E talvez tenhamos despertado nela o amor pelas viagens. — Camryn fica vermelha. — Não sei...
— Não, acho que você tem razão.
— Então, o que você acha que devemos fazer?
Ficamos com Asher e Lea por três meses antes de partir de novo. Tínhamos uma última parada a fazer antes de voltar para os EUA: lá. Camryn finalmente admitiu o motivo de seu desejo persistente de ir para lá. Seu pai a levou para lá uma vez numa viagem de negócios, quando ela tinha 15 anos. Foram só ela e ele. E aquela foi a última vez que ela se sentiu sua garotinha. Eles passaram muito tempo juntos. Ele passou mais tempo com ela do que trabalhando.
— Tem certeza de que é uma boa ideia? — perguntei, antes de partirmos para Roma. — E se você voltar pra lá e estragar a lembrança, como a do bosque da sua infância?
— É um risco que eu tô disposta a correr — ela disse, pondo as roupas de Lily na nossa mala. — Além disso, não tô indo reviver aqueles seis dias com meu pai, vou pra lembrar aqueles seis dias com meu pai. Não tenho como estragar uma coisa que não lembro direito.
Quando chegamos lá, testemunhei Camryn lembrando tudo. Ela pegou Lily e se sentou com ela na escadaria da Piazza di Spagna, imagino que da mesma forma que seu pai fez quando a levou ali.
— A gente te ama muito — Camryn disse para Lily. — Você sabe disso, não sabe? — Ela apertou a mão de nossa filha.
Lily sorriu e beijou a mãe na bochecha.
— Eu te amo, mamãe.
Então Lily se sentou entre as pernas de Camryn enquanto a mãe passava os dedos pelo cabelo louro dela, fazendo uma trança e deixando-a sobre o ombro, como a dela.
Eu sorri e fiquei olhando, pensando num dia há tanto tempo:
— Vai ser um lance de amizade, acho — ela disse. — Sabe, duas pessoas fazendo uma refeição juntas.
— Ah — eu disse, sorrindo discretamente. — Então agora somos amigos?
— Claro — ela respondeu, obviamente pega desprevenida pela minha reação. — Acho que somos tipo amigos, pelo menos até Wyoming.
Eu estiquei o braço e lhe ofereci minha mão, e, relutantemente, ela apertou.
— Amigos até Wyoming, então — eu concordei, mas sabia que ela precisava ser minha. Mais do que até Wyoming. Para sempre seria suficiente.
Ainda pira minha cabeça pensar em como chegamos longe.
Depois de quase três anos na estrada, finalmente estava na hora de ir para casa.
Voltamos para Raleigh, para nossa humilde casinha. Natalie e Blake a desocuparam e foram morar do outro lado da cidade. Mais tarde, Lily começou a ir para a escola, e nos anos seguintes, fomos felizes, mas havia sempre uma parte de nós que parecia vazia. Vi minha garotinha se transformar numa linda jovem com sonhos e metas e aspirações na vida que rivalizam com os meus e de Camryn. Gosto de pensar que nós — Camryn e eu — levamos o crédito pelo que Lily se tornou. Mas, ao mesmo tempo, Lily é uma pessoa única, e eu acho que ela seria assim mesmo sem nossa ajuda.
Eu não poderia estar mais orgulhoso.
Parece que faz tanto tempo. E, bem, acho que faz. Mas, até hoje, lembro o dia em que conheci Camryn naquele ônibus no Kansas, algo ainda está tão nítido e vivo na minha mente que sinto que eu poderia estender a mão e tocar. E pensar que, se nós dois não tivéssemos partido como partimos, mandando a sociedade e seus julgamentos praquele lugar, jamais teríamos nos conhecido. Se Camryn se deixasse dominar pelo medo do desconhecido, poderíamos nunca ter tomado aquele avião para a Jamaica. Nós realmente vivemos nossas vidas da forma que nós queríamos viver, não da forma que o mundo esperava que vivêssemos. Corremos riscos, escolhemos o caminho fora do convencional, não deixamos a opinião dos outros sobre nossas escolhas atrapalhar nossos sonhos, e nos recusamos a continuar fazendo por tempo demais qualquer coisa que não nos agradasse. Claro, fazíamos o tempo todo coisas que não queríamos fazer, porque era necessário — trabalhamos em lanchonetes por algum tempo, por exemplo —, mas nunca deixamos nenhuma dessas coisas controlar nossas vidas. Encontramos uma saída, no fim das contas, em vez de nos deixarmos derrotar. Porque só temos uma vida. Temos só uma chance de fazê-la valer a pena. Nós pegamos essa chance e agarramos com unhas e dentes.
E acho que nos saímos bem pra caramba.
Sinceramente, não sei o que mais dizer. Não que nossa vida tenha acabado, agora que nossa história parece chegar ao fim. Não. Com certeza, está longe de terminar. Camryn e eu ainda temos tanta coisa a fazer, tantos lugares para ver, tantas regras da vida para desafiar.
Hoje é o primeiro dia do resto das nossas vidas. É um dia especial, para Lily, para nós, para tudo o que nós três representamos. Nossa história acabou, sim, mas nossa jornada não, porque nós vamos viver entre o agora e o sempre até morrer.
Epílogo
Quinze anos depois
Lily
— Lily Parrish! — A sra. Morrison chama o meu nome do palco montado no auditório. Ouço meus amigos e parentes gritando na multidão, depois assobios e palmas.
Eu seguro meu capelo sobre a cabeça enquanto subo os degraus de madeira. Ele não se encaixa bem. Papai tirou sarro de mim, dizendo que minha cabeça tem um formato esquisito e que isso é culpa de mamãe, porque não posso ter puxado dele.
Enquanto ando pelo palco, mais assobios, gritos e palmas enchem o auditório. Meu coração está batendo forte. Estou tão emocionada. Acho que estou com um sorriso enorme há uns vinte minutos.
A diretora Hanover me entrega o meu diploma e eu o recebo. As palmas ficam mais altas. Olho para meus pais na primeira fila, de pé ao lado das cadeiras, com os olhos brilhando e animados pela empolgação. Minha mãe me manda beijos. Papai pisca para mim e bate palmas. Estão tão orgulhosos que tenho até vontade de chorar. Eu não estaria aqui, se não fosse por eles. Não poderia pedir pais melhores.
Depois que a cerimônia de formatura acaba, eu e meu namorado, Gavin, abrimos caminho na multidão até meus pais.
Mamãe me abraça forte e beija a minha cabeça.
— Você conseguiu, Lily! — Ela me aperta. — Eu tô tão orgulhosa! —Ouço o choro em sua voz.
— Mãe, não chora. Vai borrar seu rímel.
Ela passa os dedos embaixo dos olhos.
Papai me abraça a seguir.
— Parabêns, bebê.
Eu fico na ponta dos pés e beijo sua bochecha.
— Obrigada, papai. — Então ele me puxa para o seu lado e põe a mão na minha cintura, de um jeito protetor.
Meu pai fuzila Gavin com os olhos, examinando-o de alto a baixo, como sempre fez nestes dois anos que estamos juntos. Mas, desta vez, é tudo brincadeira. Em parte, pelo menos. Papai levou um ano para sair do pé de Gavin e confiar nele o suficiente para nos deixar sair sem ele ou mamãe junto. Constrangedor. Mas o excesso de proteção nunca conseguiu afugentar Gavin, e acho que só isso já deu aos meus pais mais motivos para respeitá-lo.
Ele é realmente um ótimo sujeito, e acho que no fundo meus pais sabem disso.
— Parabéns, Gavin — meu pai cumprimenta, apertando a mão dele.
— Obrigado. — Gavin ainda fica meio apavorado com meu pai. Eu acho isso bonitinho.
Meus pais dão uma enorme festa de formatura para mim em casa, e vem todo mundo. Todo mundo mesmo. Tem gente aqui que não vejo há anos: tio Asher e tia Lea vieram da Espanha! O tio Aidan também veio, com meus primos Avery e Molly e sua nova esposa, Alice. Minhas avós, Marna e naná Nancy (ela se recusa a ser chamada de VÓ) também vieram. A naná não está muito bem. Ela tem esclerose múltipla.
— Meu Deus, garota, você vai me abandonar! — exclama minha melhor amiga, Zoey, vindo me encontrar. Nós crescemos juntas, como a mãe dela, Natalie, cresceu com a minha mãe aqui em Raleigh.
— Pois é! Odeio isso, mas você sabe que vou te visitar! — Eu a abraço forte.
— É, mas vou sentir falta de você pra caramba.
— Já falei — respondo —, você sempre pode se mudar pra Boston pra ficar mais perto.
Ela revira os olhos, o cabelo caindo sobre os ombros quando ela se senta num banquinho da cozinha.
— Bem, não só eu não vou me mudar pra Boston com você, mas pelo jeito também não vou ficar na Carolina do Norte por muito tempo mais.
— Como assim? — pergunto, surpresa.
Eu me sento no banquinho ao lado dela. Meu tio Cole entra na cozinha com algumas garrafas vazias de cerveja nas mãos. Ele joga tudo no lixo.
Zoey suspira, apoia o cotovelo no balcão e começa a enrolar alguns fios de cabelo nos dedos.
— Meus pais vão se mudar pra São Francisco.
— Quê? Sério? — Mal posso acreditar.
— Sim.
Não sei dizer se ela está decepcionada ou simplesmente ainda não sabe o que pensar.
— Bom, mas isso é muito legal — eu digo, esperando encorajá-la. — Você não quer se mudar?
Zoey tira o braço do balcão e cruza as pernas.
— Nem sei o que eu acho, Lil. É muito longe de casa. Não é no fim da rua.
— É verdade, mas é São Francisco! Eu adoraria ir pra lá.
Ela sorri um pouco.
Tio Cole, alto e misterioso como sempre, pega mais três garrafas de cerveja da geladeira e as segura entre os dedos pelos gargalos. Ele sorri para mim ao passar e volta para a sala de estar cheia de gente.
Ele é irado. Assim que chegou, me deu um cartão de parabéns com duzentos paus dentro.
— Zoey, eu acho ótimo. E, sinceramente, mal posso esperar pra visitar minha melhor amiga na Califórnia. É. Dá gosto até falar isso. Califórnia. — Eu faço um gesto dramático com as mãos.
Ela ri.
— Vou sentir muito a sua falta, Lil.
— Eu também.
A mãe dela entra na cozinha, com o pai, Blake, logo atrás.
— Já contou a novidade pra Lily? — a mãe dela pergunta, mexendo na geladeira.
— Sim, acabei de contar.
— O que você acha, Lily? — a mãe dela pergunta.
O pai de Zoey beija a cabeça dela, pega uma cerveja da mãe e sai, provavelmente para fumar.
— Tô empolgada por ela — respondo. — Eu vou me mudar pra Boston pra fazer faculdade. Ela tá mudando pra Califórnia. Podemos não estar mais juntas do jeito que crescemos, mas tem alguma coisa em não ficar parada no mesmo lugar pra sempre que faz tudo parecer certo.
— Você com certeza é filha de Andrew e Camryn Parrish, não dá pra negar — a mãe dela diz, sorrindo.
Eu sorrio orgulhosamente e pulo do banquinho, voltando com ela e Zoey para a sala de estar.
— Um brinde! — meu pai diz no meio da sala, levantando sua cerveja. Ele olha para mim. Temos os mesmos olhos verdes. — À nossa garotinha, Lily. Que você possa mostrar a todos na faculdade como se faz!
Todos bebem.
— A Lily!
Eu passo o dia todo, até anoitecer, com meus amigos e parentes e, claro, Gavin, que eu amo tanto. Somos tão parecidos. Nos conhecemos logo depois que ele se mudou do Arizona para cá. O armário dele no colégio ficava perto do meu, e ele acabou fazendo quase todas as aulas comigo. Zoey foi pra cima dele primeiro, o que não é surpresa, do jeito que ela é namoradeira. Lembro que ela me disse, no primeiro dia de aula dele:
— Ele vai ser meu. Espera pra ver. — E eu nunca tive nenhuma intenção de interferir, mas pelo jeito Zoey era demais para alguém como Gavin. Mas acho que talvez eu possa dar crédito a Zoey por Gavin e eu acabarmos juntos. Se não fosse por ela, talvez ele não tivesse nada que o obrigasse a falar comigo para fugir dela.
Zoey o esqueceu assim que ele deixou óbvio que era em mim que ele estava interessado.
E é muito esquisito, também, porque Gavin e eu somos tão parecidos que é quase como se o destino tivesse nos unido. Nós dois queríamos fazer a mesma faculdade. Gostamos das mesmas músicas, filmes, livros e seriados de TV. Ambos adoramos arte e história e já nos perguntamos, em momentos diferentes da vida, como seria viajar pela África. Gavin se interessa por arqueologia. Eu me interesso pela preservação de artefatos arqueológicos.
Gavin não foi meu primeiro namorado nem foi o primeiro que beijei, mas foi meu primeiro em todo o resto. Não consigo imaginar passar a vida com ninguém além dele.
Espero que sejamos como meus pais. É, torço mesmo por isso.
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Depois da formatura, passei o verão com meus pais. E não desperdicei um minuto desse tempo com eles, porque eu sabia que seria curto. No outono, me mudei pra faculdade, e mamãe e papai — bem, eles tinham planos tão grandiosos quanto os meus. Acho que eles fizeram um excelente trabalho me criando, mas eu sabia que quando me mudasse e começasse a viver por minha conta na faculdade e com Gavin, meus pais partiriam para realizar o sonho de suas vidas.
Estou tão feliz por eles. Sinto falta deles todo dia, mas estou tão feliz.
Eles nunca se esquecem de me mandar cartas — não e-mails, cartas escritas à mão mesmo. Guardo todas elas, desde as enviadas da Argentina, Brasil, Costa Rica e Paraguai, até as que chegaram da Escócia, Irlanda, Dinamarca e lugares de toda a Europa. Adoro ter pais assim, tão livres de espírito, motivados e apaixonados pelo mundo. Eu os admiro. Pelas histórias que eles me contam da época em que eram um pouco mais velhos do que eu, percebo que a vida deles, mesmo antes que se conhecessem, começou complicada, mas no fim tudo se encaixou. Minha mãe me falou do seu passado, de quanto ela era depressiva. Não entrou em muitos detalhes, e eu sempre soube que havia coisas que ela não contava. Mas ela queria que eu soubesse que ela e meu pai sempre me apoiarão, não importa o que aconteça ou que decisões eu tome.
Acho que ela temia que eu tomasse as mesmas decisões erradas que ela tomou em alguns momentos difíceis, mas, sinceramente, não consigo me imaginar infeliz.
Mamãe também me contou como conheceu papai. Num ônibus de viagem, imagine. Eu só ri. Mas sempre que penso neles e nas coisas que enfrentaram juntos, não consigo deixar de ficar admirada.
De acordo com mamãe, meu pai era um pouco selvagem, naquela época. Ela disse que o fato de ele ser assim foi o principal motivo de sua demora em aceitar Gavin. Ela também não entrou em detalhes sobre isso, mas... caramba, meu pai devia ser mesmo... Eca! Deixa pra lá.
Mas eu aprendi tanto com meus pais. Eles me ensinaram como a vida é preciosa e que nunca se deve deixar passar em branco um segundo dela, porque qualquer segundo pode ser o último. Meu pai sempre me disse para ser eu mesma, defender aquilo em que acredito, e dizer o que eu penso, não o que os outros pensam. Ele disse que as pessoas vão tentar me tornar como elas, mas para eu não cair nessa, porque quando eu der por mim, serei como elas. Minha mãe, bem, fazia questão que eu soubesse que há muito mais coisas no mundo além de empregos ruins, contas a pagar e se tornar um escravo da sociedade. Ela fez questão que eu entendesse que não importava o que qualquer um dissesse, eu não precisava viver de um jeito que eu não quisesse. Eu escolho o meu caminho. Eu torno minha vida memorável, para que ela não suma no meio de tantas outras vidas vazias ao meu redor. No fim das contas, a escolha é minha e somente minha. Vai ser difícil às vezes, posso ter que fritar hambúrgueres e limpar privadas por algum tempo, vou perder pessoas que amo, e nem todo dia será brilhante como o anterior. Mas contanto que eu nunca deixe as dificuldades me abaterem completamente, um dia vou fazer exatamente o que eu quero. E não importa o que aconteça, ou quem eu perca, não vou ficar triste para sempre.
Mas acho que a principal coisa que aprendi dos meus pais foi a amar. Eles me amam incondicionalmente, é claro, mas falo do modo como se amam. Conheço muitos casais casados — a maioria dos pais dos meus amigos ainda está casada —, mas nunca vi duas pessoas mais devotadas uma à outra do que meu pai e minha mãe. Eles foram inseparáveis por toda a minha vida. Só me lembro de umas poucas discussões entre os dois, mas nunca os ouvi brigar. Nunca. Não sei o que torna o casamento deles tão forte, mas espero que, seja o que for, eu tenha herdado um pouco dessa magia.
Gavin entra no meu quarto, fechando a porta atrás de si. Ele se senta na beira da minha cama.
— Outra carta dos seus pais?
Eu balanço a cabeça.
— Onde eles estão, agora?
— No Peru — digo, olhando de novo para a carta. — Eles adoram aquele lado do mundo.
Sinto a mão dele no meu joelho para me consolar.
— Você tá preocupada com eles.
Eu balanço a cabeça mais uma vez, lentamente.
— Tô, como sempre, mas me preocupo mais quando eles estão lá. Alguns lugares são muito perigosos. Não quero que eles acabem como...
Gavin segura meu queixo com a mão.
— Eles vão ficar bem, você sabe que vão.
Talvez ele tenha razão. Meus pais já estão mochilando pelo mundo há dois anos, e o pior perigo que encontraram — bem, pelo que me contam — foi que meu pai foi roubado uma vez, e outra vez houve um problema com os passaportes deles. Mas tudo pode acontecer, especialmente com os dois sozinhos assim, só com as mochilas na estrada.
Pelo jeito, puxei muito à minha mãe na tendência para me preocupar.
— Daqui a dois anos, eles vão estar preocupados assim com você — Gavin acrescenta, e em seguida beija meus lábios.
— Acho que sim — digo, sorrindo para ele, que se levanta da cama. — Provavelmente minha mãe nem vai dormir mais, imaginando que algum leão me devorou.
Gavin abre um sorriso torto.
Seis meses atrás, decidimos que queremos mesmo ir para a África depois da faculdade. Quando nos conhecemos, não era bem uma ideia, e sim uma coisa de que falamos numa conversa casual. Mas agora se tornou nossa meta. Pelo menos por enquanto. Muita coisa pode mudar em dois anos.
Eu dobro a carta, guardo no envelope desbotado e deixo sobre o criado-mudo.
Gavin estende a mão para mim.
— Pronta? — ele pergunta, e eu seguro sua mão e me levanto com ele.
Saio do quarto para comemorar o aniversário de Gavin com nossos amigos, e antes de sair para o corredor, olho mais uma vez para a carta, antes de fechar a porta devagar atrás de mim.
J. A. Redmerski
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