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THE HAWK / Parte II
Series & Trilogias Literarias
Capítulo 15
Ao dia seguinte Ellie jazia recostada sobre os braços de Falcão, com a cabeça apoiada sobre o quente e firme muro de seu peito revestido de couro, perdida na deslumbrante vermelhidão da intimidade compartilhada. Escutava o feroz bater de seu coração pensando que era a coisa mais formosa que jamais ouviu.
Esse era exatamente o efeito que ele provocava em Ellie. O acontecido no dia anterior não tinha sido imaginação dela. Que uma garota como ela pudesse ter um homem como ele, literalmente na palma da mão e fazê-lo enlouquecer de paixão supunha um descobrimento embriagador. Saborear o poder da sensualidade pela primeira vez tinha estado a ponto de embebedá-la. O suficiente para escapulir em pleno dia como uma prostituta ao estábulo com objeto de consumar outra relação ilícita. Aquilo era infame. Estava mau. Era um pecado ante Deus e uma traição da promessa que tinha feito a Ralph. Era consciente de tudo isso, mas quando se aproximou pelas costas no jardim e lhe sussurrou ao ouvido que se encontrassem no estábulo, seu corpo se viu alagado com todas aquelas sensações de deliciosa escuridão. Durante trinta segundos sua consciência liderou uma batalha feroz contra o desejo. Agora que tinha provado pela primeira vez, a tentação resultava mais forte inclusive. Atenuava a culpa dizendo que não fazia nenhum dano duradouro, que após anos de comportamento exemplar e de atender as necessidades de todos salvo as dela, merecia aqueles poucos momentos roubados de felicidade egoísta. Mas sabia que tentava justificar algo injustificável, independentemente de que desfrutasse tanto com isso.
E o certo era que desfrutava intensamente. Ao olhar seus olhos ao tempo que ele a acariciava e ela o acariciava, o momento em que levavam um ao outro ao cume e se viam catapultados a um reino de êxtase inimaginável, sabia que jamais voltaria a sentir algo como aquilo. Talvez tivesse sido um engano. Agora teria que viver com o sofrimento de saber o que estava perdendo.
Mas não podia arrepender-se disso.
Se aconchegou junto a ele o quanto pôde e suspirou com o desejo de fazer que aquele momento durasse tanto como fosse possível. Quem haveria pensando que lady Elyne de Burgh, uma das maiores herdeiras da Irlanda, sentir-se-ia feliz jazendo em um desmantelado estábulo sobre um montão de palha, com o penetrante aroma das cabeças de gado alagando seu nariz, encolhida no férreo abraço de um pirata? E entretanto, jamais havia se sentido mais animada, feliz, nem protegida.
Quase podia convencer-se de que aquilo significava algo, que aqueles sentimentos que brotavam ao tocar um ao outro eram algo mais que o próprio desejo, que quando ela o olhava aos olhos, ele sentia a mesma conexão intensa e assustadora que ela. Quase. Não importava o bem que se sentisse. Não podia permitir-se esquecer que somente era algo temporário, que se tratava de um desejo puramente físico. «A paixão pela paixão.» Mas cada vez se fazia mais difícil recordar deste último quando seus próprios sentimentos estavam sumidos em tal confusão. Não sabia como podia ter acontecido isso a ela. Supunha-se que ela não permitia que a paixão se mesclasse entre suas emoções. Era consciente que esse tipo de homem era completamente inadequado para ela e de que tomar carinho a levaria sem remédio ao desamor e à decepção. Mas lhe tinha tomado carinho. Mais do que devia.
Se estivesse tratando somente de um rosto bonito, teria sido mais fácil resistir a ele. Mas se sentia atraída como jamais se sentiu atraída por ninguém antes. Aquele homem vivia ao limite e convertia tudo em uma aventura. A fazia recordar todas as coisas que sentia falta na vida: divertir-se, as emoções, a paixão. A vida junto a ele jamais seria aborrecida.
Entretanto, aquele tipo de vida extrema e sublimação do perigo não inspirava pensamentos de perseverança e estabilidade. Teria gostado de acreditar que significava algo para ele, mas não estava segura que esse homem fosse capaz de comprometer-se nem de permitir que ninguém invadisse seu mundo. Aquele mesmo caráter imperturbável que admirava lhe dizia que atuasse com cautela. Nada parecia cativá-lo. Não o fazia o perigo, mas tampouco as pessoas. Assim e tudo, quanto mais tempo passavam juntos, mais se convencia de que Falcão guardava em seu interior muito mais do que se via a simples vista. Entre aquele caminhar fanfarrão de pirata e seu sorriso do diabo contudo, podia entrever brilhos de algo mais profundo, um homem com maior honra e nobreza da que se atrevia a admitir. Era um enigma, como olhar um quebra-cabeças que faltassem peças. Nem sequer conhecia seu verdadeiro nome. E ele tampouco conhecia o dela.
Uma parte dela queria contar-lhe mas sabia que assim que o fizesse tudo acabaria para eles. Esse sentido de nobreza tão pouco pirata que tinha poria fim a aqueles momentos no estábulo e às excursões privadas ao redor da ilha. Seus lábios esboçaram um sorriso irônico. Talvez estivesse bem contar-lhe. Assim a obrigaria a casar-se com ele para conseguir seu dote. Aquele pensamento, embora não fosse sério, a fez repensar. Era isso o que queria, casar-se com ele? Teve vontade de rir ante aquela ridícula ideia, mas não era capaz de ver o lado gracioso do assunto. Tinha chegado muito longe para algo que se supunha uma brincadeira.
Falcão acariciava distraidamente suas costas fazendo círculos com os dedos.
—No que está pensando?
Ellie duvidou, consciente de que estava a ponto de comprovar a firmeza das tácitas barreiras estabelecidas entre eles.
—Em que sequer sei seu verdadeiro nome.
Notou perfeitamente que a pergunta o incomodava. Por um momento não pôde ouvir mais que o batimento de seu coração. Pressentiu a negativa antes que lhe desse tempo para falar.
—Não posso lhe dizer. —lhe respondeu — Há certas coisas… —disse com uma voz que se apagou por um instante — É complicado. Me acredite se lhe digo que é melhor que não saiba.
Complicações, algo que entre eles não existia. Lhe encolheu o coração. «Nada especial. Nada sério.» Tentou ocultar sua decepção, mas depois de tudo o que tinham compartilhado e da confusão em que sumiam seus próprios sentimentos era um golpe difícil de aceitar.
—Entendo — sussurrou contra seu peito.
Tomou pelo queixo para olhá-la aos olhos.
—É tudo o que necessita saber, tè bheag. O que sente é algo… natural. Mas não confunda a paixão com algo mais.
A amabilidade refletida em seus olhos cortava como uma adaga. O calor subiu pelas bochechas de Ellie. Se não a mortificasse tanto, teria reconhecido a ironia. Não tinha sido ela a que o acusava em outro momento daquilo mesmo, confundir o desejo com o amor? Ante a própria confusão de seus sentimentos, aquela advertência era como pôr sal em uma ferida aberta. Mas o arrependimento que leu em seu olhar conseguiu aliviar a dor.
—Não o compreende — disse Falcão — Mas assim é como deve ser por agora.
«Por agora.» Ellie tentou não dotar de significado aquelas palavras, mas seu estúpido peito se encheu de todos os modos. Sua cabeça não cessava de lhe recordar todas as razões pelo que aquilo era um caso perdido, mas a seu coração parecia lhe importar pouco. Inclusive evitando o assunto de seu compromisso de matrimônio e de que era a filha de um duque em tanto que ele um foragido, o qual não supunham barreiras fúteis, também estava o problema dos sentimentos que ele albergava por ela. Para ele, Ellie não era mais que um passatempo prazeroso.
Entretanto, não o sentia daquela maneira.
—Que tal se lhe permito que me chame de outra forma? —O brilho nos olhos dele lhe disse que de sua boca não sairia nada bom — O que lhe parece deus? Dá a impressão de que você gosta muito de me chamar assim quando está a ponto de…
—Você —espetou— é terrível. —Era consciente que deveria se zangar que voltasse para as andadas e arremetesse contra ela, mas talvez fosse um bom aviso de que não podia permitir que aquilo se fosse pelas mãos. Dirigiu-lhe esse olhar de babá condescendente — E além disso põem em perigo sua imortal alma ao pronunciar essas blasfêmias.
—Minha imortal alma a pus em perigo faz tempo fazendo coisas muito piores que esta —disse movendo os olhos de um lugar a outro.
—Posso imaginar.
Erik suspirou profundamente e deixou de abraçá-la de modo que ambos pudessem sentar-se.
—Temo que devo voltar junto a meus homens, e será melhor que você volte para a casa antes que seu cão guardião venha lhe buscar.
Ellie se ruborizou. Thomas, que tinha se recuperado completamente, não ocultava sua desaprovação a respeito de que saísse a sós com Falcão durante esses últimos dias.
—Não é meu cão guardião.
Falcão lhe dirigiu um olhar que significava que não se dignaria a responder.
Levantaram e ajustaram bem as roupas, sacudindo o pó e a palha. Se pudessem vê-la nesse momento Catherine e Edmond… Quantas vezes tinha tirado seu irmão e sua irmã do estábulo e os tinha castigado por sujar suas roupas? Ellie tinha todo o aspecto de alguém que tinha estado rodando sobre pó e feno, o qual supunha que seria certo.
Para acrescentar mais ilegitimidade ao assunto, estavam completamente vestidos. Não podiam arriscar que alguém entrasse, e Falcão tampouco contava com muito tempo. Esse dia não tinham podido fazer nenhuma exploração. Suspeitava que sabia qual era a razão. Seu paraíso de loucura logo chegaria ao fim.
Jogou a capa da espada para trás e alargou o braço para agarrar sua tocha, espada e escudo, que descansavam sobre um dos compartimentos do estábulo, das ovelhas, deduziu, pelo aroma que desprendia.
—Quanto fica para partir? —perguntou Ellie.
—Ah, moça. Não se preocupa muito minar a confiança de um homem verdade? —disse com uma careta — Já está aborrecida?
Sorriu, mas aquela provocação não conseguiria distraí-la.
—Sua confiança segue intacta. Quando?
Suspirou.
—Amanhã de madrugada.
Quase deu um ataque no coração pela impressão. Por Deus santo, nem sequer ficavam dois dias completos. Precaveu-se do influxo que tinha tido aquele feitiço sobre ela quando recebeu o golpe da verdade: não queria partir para casa, a não ser ficar com ele. Mordeu o lábio e o olhou de novo em busca de algo que lhe indicasse o que ele sentia, mas sua expressão era inescrutável.
—Tão logo?
Encolheu de ombros e lhe dirigiu um sorriso perverso.
—Sempre poderia decidir ficar com você.
O coração deu um tombo, embora, é obvio, ele não falava a sério. Engenhou para esboçar um sorriso que ocultasse a profunda dor que sentia em seu interior.
—Não acredito que a minha família agradasse a ideia.
Acreditou intuir algo em seu olhar, mas se desvaneceu antes que pudesse reconhecê-lo.
—Poderia lhe forçar a permanecer aqui — disse com dissimulação, mas com um estranho tom na voz.
Ellie não acreditava nem por um segundo que o dissesse a sério. Era muito honrado para cometer uma traição de tal magnitude. Agora podia assegurá-lo.
—Não me engana com suas pretensões de pirata.
—Ah, não? —surpreendeu-se arqueando uma sobrancelha.
Ellie negou com a cabeça.
—Sabe o que é que penso?
—Não me atreveria a adivinhá-lo.
O sarcasmo de sua voz não a intimidou.
—Acredito que esta ilha era parte das terras que roubaram de seu clã. —Essa era a razão que as conhecesse tão bem. Perambulava pela ilha do mesmo modo que o tinha feito durante anos. As covas. A sauna. E apesar de ter tentado afastá-la dos ilhéus em suas expedições, aqueles com que cruzaram o tratavam com deferência extrema, quase como se fosse o próprio rei — Acredito que quando o velho do povoado lhe chamou taoiseach, não se tratava de nenhum engano.
Observou-o atentamente com o propósito de encontrar alguma reação que sugerisse que tinha dado no alvo, mas sua expressão não lhe dizia nada absolutamente.
—Volta a carga com isso, né? —Meneou a cabeça fingindo estar decepcionado — Acredito que deveria deixar que siga sendo eu o que conte as histórias. Sou melhor que você fazendo-o. Por mais sonhos que possa ter na cabeça, pequena, sou um foragido. Não esqueça nunca.
Percebeu o tom de advertência de sua voz, mas não pôde evitar pensar que escondia muito mais do que queria que soubesse. Mas não tinha intenção alguma de contar-lhe. Jamais chegaria a saber se tinha importância ou não.
Erik não podia acreditar. Como demônios tinha sido capaz de adivinhar a verdade? Jamais deveria ter falado sobre as terras usurpadas de seu clã. Tão somente o fez porque não gostava de vê-la sofrer. Do mesmo modo que a via sofrer agora. Deveria ter sabido que ela não seria capaz de tomá-lo à ligeira. Era o tipo de moça que tomava tudo a sério. Erik sentia o perigo. Era consciente que Ellie estava se implicando muito, mas tampouco era capaz de afastar-se dela. Ter provado seu corpo uma vez não tinha bastado absolutamente. Somente tinha servido para que sua fome crescesse mais e mais. Muito mais.
Era evidente que a sauna não tinha tido nada a ver, pois no dia seguinte Erik demonstrou a mesma falta de controle. Não sabia o que tinha essa moça que o fazia perder a cabeça. Deveria estar com seus homens, preparando-os para a batalha mais importante de suas vidas e planejando a viagem de volta a Irlanda no que tinham que atravessar o forte cerco das patrulhas, em lugar de escapulir para roubar uns momentos de prazer, como se fosse um moleque com sua primeira garota. Mas que o crucificassem se não tinha valido a pena. Tinha obtido mais prazer daquela mão do que tinha experimentado em muito tempo. Mas aquele prazer começava a resultar perigoso.
Desejava com todas suas forças poder desalentar os pensamentos românticos da moça. Fosse pirata ou não, ele era um homem açoitado pelos ingleses e não estava em posição de oferecer nada mais, inclusive no caso de ter querido fazê-lo, o qual não desejava. Brincava quando disse que podia ficar com ela. Aquela queimação que tinha sentido ante sua rápida negativa era orgulho, isso somente.
Observou-a enquanto recolocava a roupa. Que olhasse para outro lado podia considerar uma indicação; de modo que tinha captado a advertência. Dispuseram-se a sair do estábulo e, já na porta, Erik sentiu de novo essa estranha pressão em seu peito. Aquela necessidade premente e enlouquecedora de fazê-la feliz. Ellie agarrou o batente da porta. «Deixa-a partir. É melhor assim.»
—Espere! —soltou de repente.
Ellie se voltou devagar, com seu pequeno rosto levemente inclinado em atitude inquisitiva.
O coração pulsava a um ritmo descontínuo. Não sabia o que dizer. Mas aquilo não podia ser. Jamais lhe faltavam as palavras. Ela o olhava com espera. Deu vontade de passar as mãos pelos cabelos e mover os pés de inquietação. Ao final economizou posteriores desconfortos mediante algo que captaram seus olhos. Alargou o braço, tirou-lhe um fio de palha dentre os cabelos e a sustentou em alto para examiná-la.
—Talvez tenha problema para explicar isto.
As bochechas dela arderam de rubor e Erik pensou que jamais tinha visto ninguém que se ruborizasse de maneira tão adorável.
—Obrigada — disse ela.
Ficaram olhando por um momento interminável até que ele rompeu o feitiço.
—Você deveria sair antes.
Ellie assentiu e se dispôs a fazê-lo, mas depois deu meia volta inesperadamente.
—Te verei esta noite?
Sabia que seu dever era afastar-se dela, que isso faria que a partida fosse mais fácil, mas se surpreendeu assentindo.
A calidez do sorriso com que respondeu Ellie o envolveu em um suave abraço. Era algo de louco. Virtualmente podia sentir as emoções dela como próprias. Como se a felicidade da moça fosse mais importante que a sua própria.
Observou como atravessava o jardim e esperou que desaparecesse no interior da casa para sair do estábulo. Estava quase na borda do escarpado, no mais alto do caminho que levava a praia, quando ouviu um ruído a suas costas. Reconheceu-o pela fúria de suas pegadas inclusive antes que se desse a volta. Falcão olhou ao cavalheiro de corado rosto, que tinha se vestido com a armadura completa pela primeira vez desde que caiu doente. Ao que parecia, a cota de malha de Randolph tinha resistido as inclemências da água muito melhor que ele mesmo. A via tão polida e resplandecente como a uma peça de prata completamente nova. Por outra parte, Randolph tinha perdido peso, e inclusive aquele pequeno exercício de caminhar precipitadamente parecia tê-lo cansado. Respirava com dificuldade e o suor se acumulava sobre suas sobrancelhas.
—Alegra-me lhe ver de pé, vivo e abanando o rabo, Randolph.
Que não lhe tirasse de seus estribos a falta de respeito no trato dizia tudo sobre o humor de Randolph.
—Pela Santa Cruz! —exclamou o jovem cavalheiro, apropriando-se da blasfêmia favorita de seu tio — O que crê que está fazendo?
—Voltando para o acampamento. Acompanha-me?
Apesar de sua juventude, havia algo formidável em Randolph. A compleição quadrada de seus ombros, a dureza de seu olhar e a linha teimosa que marcava em seu queixo davam a Erik uma superficial ideia do homem que algum dia seria. Se fosse capaz de perder toda essa arrogância de dissimulado, era possível que se convertesse em um guerreiro impressionante, para alguém das terras baixas da Escócia, claro está.
—Sabe perfeitamente que não é a isso ao que me refiro. O que está fazendo com Ellie?
O rosto de Erik adotou uma dureza perigosa. Sentiu um estranho acesso de cólera. Que Randolph se erigisse protetor de Ellie e entrasse em cena qual cavalheiro andante o tirava do sério. Ellie era dele. Quer dizer, era sua responsabilidade, se apressou a corrigir-se.
—Isso não é seu assunto.
—É se a está desonrando. Vi-a sair do estábulo. No que está pensando? A raptamos de sua própria casa. Pode ser que não houvesse outra escolha, mas no mínimo o que podemos fazer é conseguir que retorne a salvo.
—Fá-lo-ei — disse Erik reprimindo a fúria que crescia em seu interior.
—Mas sem desonrá-la. O que faz não está bem e não serei parte disso.
Erik entrecerrou os olhos. Não gostava que lhe chamasse a ordem um jovem pomposo e estirado que mal tinha tido tempo de polir o brilho de suas esporas.
—E por que essa repentina bravata cavalheiresca? Estive com mulheres em outras ocasiões e nunca pareceu se incomodar.
—Ellie não é do tipo das mulheres com as que normalmente sai. Ela é diferente. É uma dama.
Erik estremeceu e repeliu aquelas palavras com cada um de seus sentidos. Ela não era diferente. Essa não era a realidade. Gostava de passar o tempo com ela porque se entretinha provocando-a. Eram as circunstâncias as que faziam que seu desejo por ela resultasse tão intenso. Estava desfrutando com aquilo, somente isso.
—É uma babá de vinte e quatro anos sem amarras que pode decidir por si mesma.
Diabos, se estava lhe fazendo um favor!
—É uma donzela inocente e você está se aproveitando dela — replicou Randolph — Ninguém esperaria isso de você, Falcão.
Erik apertou os punhos com força. Deu-lhe vontade de atar-se a golpes com Randolph para obrigá-lo a reconhecer o que ele mesmo tentava ignorar. Fez grandes esforços para se acalmar e luzir seu despreocupado sorriso.
—Está fazendo um mundo disto, Tommy. Somente estou me divertindo um pouco. Não se trata de nada sério. A moça será devolvida no mesmo estado em que veio.
Mais ou menos.
Randolph o observou como se não soubesse se devia acreditá-lo ou não.
—Então é certo que têm pensado devolvê-la?
—É obvio. Não acreditava que pensava retê-la, verdade? —disse fazendo que aquilo soasse como a coisa mais ridícula do mundo.
—Não estava seguro— admitiu Randolph com desconforto — Jamais lhe vi tão derrubado com uma moça.
Erik se esforçou por rir, ignorando a pressão que roia seu peito. Aquilo era ridículo. Não estava derrubado por ela. Demônios, gostava de sua vida tal e como era. Que jamais tivesse podido falar com ninguém da maneira em que fazia com Ellie, que não pudesse deixar de pensar nela, que tivesse a pele mais suave que jamais tinha tocado e os lábios mais doces que tinha provado, que essa leve fragrância a lavanda de sua pele fosse a coisa mais incrível que tinha cheirado, nem que seu sorriso o fizesse sentir-se como se acabasse de derrotar um milhão de dragões, carecia de importância. Gostava, mas não era a mulher que lhe correspondia. Inclusive embora o matrimônio entrasse em seus planos, que não era o caso, necessitaria a alguém que pudesse engrandecer o poder e prestígio de seu clã. Uma babá não era apta para o posto. E sequer estava em posição de poder casar-se, não quando sua cabeça tinha um preço bem substancioso.
—O momento e a circunstância, Tommy. Sinceramente, acaso me imagina preso a uma só mulher?
Ao final conseguiu lhe arrancar um sorriso.
—Não, suponho que está certo. —Erik esperava que agora o deixaria passar, mas, ao que parecia, ainda não tinha terminado — Quando a devolverá a casa?
Encolheu-se de ombros, como se aquilo carecesse de importância, como se não lhe importasse que em menos de quarenta e oito horas provavelmente não voltaria a lhe ver. Não o importava, absolutamente.
—Quando nos pusermos a caminho para nos encontrar com os irlandeses.
—Não pensa que possa ter ouvido algo?
Erik negou com a cabeça.
—Não, mas embora o tenha feito, para esse momento já será muito tarde.
—Então a deixará em paz até que partamos, então? —seguiu pressionando Randolph.
Que o levassem ao diabo se pensava deixar que lhe chamasse a ordem o primeiro sir Galahad exaltado que chegasse com a intenção de salvar a donzelas que não precisavam ser salvas.
—Não têm do que se preocupar, pequeno Tommy. Sei o que faço.
Sempre sabia o que fazia.
Quando Erik e Domnall voltaram para o acampamento após sua expedição do lado sul da ilha, já tinha escurecido. Com o momento da partida no ponto, Erik quis ver de perto a atividade das patrulhas a fim de observar seus modos de operação. Esperava que o número de patrulhas diminuísse com o passar dos dias, mas em lugar disso tinha aumentado. O cozinheiro tinha razão: cozia-se algo incomum. Embora felizmente os ingleses não tinham tornado a inspecionar a ilha, talvez não fosse nada mau que partissem em breve. Embora significasse ter que despedir-se de Ellie.
—Algo vai mau, capitão?
Erik se precaveu então de que estava circunspeto, e negou com a cabeça.
—Não, somente estava pensando que está bem que partamos logo.
Domnall assentiu.
—Não é normal que os cães ingleses sejam tão perseverantes — disse, depois fixou o olhar sobre ele — Acreditei que estava pensando na moça.
—Sempre estou pensando em moças.
Aquilo não enganou Domnall.
—Você gosta dela.
Primeiro Randolph e agora Domnall?
—Bom, tampouco é tão surpreendente. Eu gosto de quase todas as mulheres.
Mas seu escudeiro o conhecia há muito tempo para desistir tão facilmente.
—Mas não tanto como esta. — Domnall continuou como se falasse para si —: Ao princípio acreditava que era pela novidade de que não caísse rendida a seus pés, mas depois comecei a pensar que havia algo mais. Essa moça o convém. Não engole nenhuma de suas tolices.
Erik afastou um ramo do caminho e deixou que fosse dar em seu segundo.
—Assumindo que eu tivesse tolices, isso jamais poderia ser um ponto a seu favor.
Domnall o ignorou e mexeu o queixo.
—Vi o modo que a olha. Desde que o conheço, jamais olhou uma mulher desse modo.
—Com irritação?
Domnall soprou.
—Chame como quiser. Mas o que pensa fazer a respeito disso?
—Devolvê-la a sua família, tal e como prometi — disse com o gesto torcido.
—Assim deixará que parta e pronto?
Ao Erik não gostava desses interrogatórios, sobre tudo quando as respostas faziam que se zangasse tanto.
—E que outra coisa quer que faça? Afastei à moça de seu lar e de sua família. Tenho que levá-la de volta. Além disso, não acredito que esteja em posição de lhe oferecer muito mais agora mesmo.
—Poderia deixar que ela escolhesse. Poderia lhe dizer que lhe importa. Talvez que lhe esperasse.
—Para que? —repôs Erik, irritado pelo giro que tomava a conversação — Para ser meu amorzinho? Não pensará seriamente que me casaria com uma babá, verdade?
—Por que não? —desafiou-o seu velho amigo — Sempre faz o que quer em todo o resto. Sua mãe e sua irmã jamais se oporiam. Não, se virem que é feliz.
Já era feliz, diabos. Tinha perfeitamente claro que não necessitava uma esposa para consegui-lo.
—Isto é ridículo. Não tenho intenção de me casar. Conheço essa moça há dez dias e em dez mais já a terei esquecido completamente.
Estava seguro disso.
Domnall o olhou de forma condescendente, o qual Erik se apressou a ignorar, já que se aproximavam do acampamento. Todos estavam fazendo um mundo daquilo.
Assobiou sem fazer muito ruído para que os homens que estavam de guarda soubessem que se aproximavam, e ouviu o assobio de réplica. Quando chegaram, rodearam o cabo e a baía apareceu ante seus olhos. Erik se deteve ao ver um pequeno pesqueiro proveniente do oeste que se dirigia para o embarcadouro. Não era nada incomum, já que a pesca era a ocupação principal da gente das ilhas e a baía era um dos dois ancoradouros que tinha Spoon, mas não reconhecia o bote. Fez gestos a Domnall para que esperasse e confiou em que os guardas que vigiavam a baía vissem a tempo o bote para alertar aos homens da cova.
A barco demorou uns minutos em chegar até a borda. A lua cheia refletia suficiente luz para distinguir cinco pessoas a bordo. Uma particularidade de um dos homens fez que lhe arrepiassem os pelos do cangote: seu tamanho. Era um homem muito grande e fornido para ser pescador. Erik podia contar com os dedos de uma mão a quão guerreiros conhecia com um físico tão poderoso. Ao suspeitar que não se tratava de um pescador, ficou em tensão. Mas não podia acreditar que os ingleses fossem tão inteligentes para tentar essas táticas furtivas, e esses covardes tampouco se atreveriam a viajar em um grupo tão reduzido, sem um exército para protegê-los.
Minutos depois, duas das silhuetas saltaram pela amurada, entre eles o mais corpulento, e caminharam até a borda com a água pelos joelhos. Embora ia vestido com uma singela capa de lã e uma robusta manta marrom sobre os ombros, como se tratasse de um pescador pobre, sua musculosa compleição não deixava dúvidas de que se tratava do homem mais forte de toda Escócia.
Um sorriso se desenhou no rosto de Erik.
—Ah, que me crucifiquem.
—O que ocorre, capitão?
—Ao que parece, temos visita.
Erik saiu dentre as sombras da borda e caminhou praia abaixo.
—Olhe o que arrastou a maré até aqui — gritou.
O grandalhão se voltou ao ouvir sua voz. Apesar de fazer meses que não se viam, seu rosto duro como o granito não mostrou emoção alguma.
—Pelo que vejo ainda não lhe mataram.
—Não é necessário que o diga com esse tom de desilusão — disse Erik rindo. Saudou-o lhe dando uma palmada nas costas que quase doía — Não será porque não o tentem. Que demônios faz aqui, Aríete? —Erik dirigiu a vista para o homem que o acompanhava, esperando encontrar-se com seu companheiro Dragão, Alex Setton, mas em lugar disso levou uma surpresa ao ver o irmão do rei. Em certo modo sua alegria se diluiu. Eduardo Bruce era um caipira arrogante e volátil, que, ao contrário de seu irmão, o rei, parecia representar todas as qualidades negativas da nobreza. Dos quatro irmãos de Bruce, este era o que menos gostava. Saudou-o com um leve movimento de cabeça.
—Milord — disse para depois voltar a vista para Boyd — Como me encontrou?
—É uma longa história. Das que se contam melhor ao redor do fogo.
Boyd deu ordens aos pescadores para que os recolhessem antes do amanhecer.
Erik lhe assinalou a direção em que estava a cova.
—Estou desejando ouvi-lo.
—E eu estou desejando ouvir por que têm a metade da frota inglesa lhe farejando o traseiro — disse com cara de poucos amigos.
Capítulo 16
Horas mais tarde, os homens estavam sentados ao redor do fogo depois de desfrutar até a extenuação com uma das deliciosas comidas de Meg e mais com a deliciosa cerveja do povoado. Eduardo Bruce conversava com Randolph, de modo que era a primeira oportunidade que Erik tinha para falar a sós com Boyd.
Por mais que se alegrasse de ver seu companheiro da guarda, as notícias que trazia não eram boas. Nigel Bruce, Christopher Seton e o conde de Atholl tinham sido executados e não se sabia nada de Víbora, de Santo nem de Templário desde que tinham fugido ao norte com as mulheres. Tampouco se sabia nada de Dragão, que tinha saído em busca de seu irmão.
—E então, como me encontrou? —perguntou Erik.
—Sorte. O rei nos ordenou inspecionar Arran para o ataque, mas no caminho de volta nos encontramos com uma barreira de galeões ingleses que nos cortava o passo. Nos refugiamos no povo que há junto ao castelo de Dunaverty para esperar que se limpassem as rotas marinhas, e ali falamos com nosso amigo. Quando me contou como tinha chegado, imaginei que não estaria muito longe. Eduardo mencionou que tinha vigiado as rotas desde esta ilha quando escaparam de Dunaverty da outra vez, assim provei a sorte. Que diabos têm feito para zangar tanto a De Monthermer? —disse olhando-o com dureza.
Erik já lhe tinha relatado as circunstâncias de seu encontro com os MacQuillan, incluída a parte em que se viu obrigado a levar Ellie consigo, e a posterior confrontação com os navios ingleses.
—Feri-o em seu orgulho, isso é tudo.
—Não acredito que seja isso — disse negando com a cabeça — Nosso amigo do castelo disse que De Monthermer esteve por ali faz poucos dias, furioso como um louco, questionando aos serventes sobre certo fantasma.
Erik ficou circunspeto e relatou seu inesperado encontro com o menino no celeiro, deixando à parte, é obvio, o incidente da faca. Se De Monthermer tinha estado em Dunaverty, aproximou-se o bastante. Como diabos teria feito a conexão? Erik teve um mau pressentimento. Talvez fosse bom que estivessem a ponto de partir.
—Teve algum problema em Arran? —perguntou Erik.
—Não. Os ingleses revistaram a ilha a semana passada, mas não foram muito exaustivos em sua busca. —Erik pensou que provavelmente aquilo tinha ocorrido enquanto estavam em Spoon — Mas estão postados em todas as vias marítimas. Vimo-nos obrigados a passar por terra firme e tomar um bote em Dunaverty. Custar-lhes-á bastante fazer passar um navio por aí, e não falemos de uma frota inteira.
Isso não o preocupava. Já pensaria em algo. Bruce chegaria até Arran embora tivesse que afastar ele mesmo os ingleses do caminho.
Falaram longo e tendido e chegaram à conclusão que Eduardo e Boyd deviam voltar para Arran e preparar a chegada do exército em lugar de arriscar-se a cair na boca dos ingleses. Já que Erik partiria na noite seguinte para encontrar-se com os irlandeses e levá-los a Rathlin, ele mesmo se ocuparia de fazer chegar as notícias a Bruce e transmitir o que tinham averiguado Boyd e Eduardo.
—Está se arriscando muito levando os irlandeses a Rathlin no último momento, não crê? —disse Boyd.
—O rei pensou que seria mais arriscado tentar esconder centenas de homens em uma ilha pequena. E além disso sabe que não falharei —acrescentou com um sorriso.
—E o que passará se não for capaz de cruzar o cerco?
—Cruzá-lo-ei —respondeu Erik entre risadas — Viajaremos de noite. Nem se inteirarão que estamos ali. Além disso, não são mais que ingleses.
Boyd sorriu. De todos os membros da Guarda dos Highlanders, Boyd era quem tinha mais razões para odiar os ingleses. Provinha da zona fronteiriça, em que se tinha sofrido a injustiça dos ingleses durante longos anos.
—Já vejo que nada minou sua confiança. Segue sendo um galo de briga presunçoso.
—E você ainda me guarda rancor pela moça de Scone. Não pode culpá-la de que escolhesse a beleza e o encanto sobre a força bruta.
Boyd negou com a cabeça. Erik sabia perfeitamente que aquela bonita taberneira lhe importava um nada.
—Ao inferno, Falcão. Somente foi com você porque não estava Flecha por ali.
Erik sorriu. Provavelmente tinha razão. Quando Gregor MacGregor entrava na sala, as moças tendiam a esquecer-se de todos os outros. Mas o afamado arqueiro odiava chamar a atenção. Um absoluto desperdício, em sua opinião.
—Ouvi que esteve muito ocupado estes dias — interveio Eduardo Bruce, que se aproximava junto a Randolph — Somente você, Falcão, podia engenhar para se perder em uma ilha deserta com sua própria prisioneira.
Erik fulminou Randolph com o olhar, perguntando-se que contos teria dito a Eduardo Bruce. O moço não duraria muito se não aprendia a manter o bico fechado. As irmãs de Erik também estavam acostumados a ser delatoras de pequenas, mas ao menos conseguiram crescer o suficiente para superá-lo à idade de dez anos.
—Não é minha prisioneira — repôs com certo tom de advertência na voz. Não queria falar a respeito de Ellie.
Eduardo não se deu por entendido.
—Randolph me contou que tomou gosto à moça. Deve ser uma beleza, né?
Erik sentiu como começavam a esticar os músculos do pescoço e das costas.
Eduardo seguiu ao seu, sem precaver-se das reações que provocava nele.
—Doce e suculenta, com umas tetas enormes? —disse fazendo um gesto de ordenhar com as mãos — Talvez quando a deixar de lado, poderia me…
O mundo de Erik ficou às escuras. Estava alagado por uma cegadora raiva negra que não parecia com nada que tivesse sentido antes. Sua mão tinha agarrado o pescoço de Eduardo e o tinha esmagado contra a parede antes que este pudesse terminar a frase. O sangue se acumulava em seus ouvidos. Seu coração pulsava tão forte que não queria mais que apertar com força.
—Não o diga — o advertiu com voz sombria.
Eduardo se aferrou à mão de Erik e começou a resfolegar, mas seu braço permaneceu tão firme e rígido como o aço.
—Me solte, bárbaro do demônio — conseguiu dizer entrecortadamente.
Erik apertou um pouco mais forte. Os olhos de Eduardo pareciam estar a ponto de sair de suas órbitas.
—Solte, Falcão.
A sossegada voz de Boyd se fez passo através de sua brumosa mente. Pouco a pouco, esta foi se esclarecendo, e ao precaver-se de que estava a ponto de estrangular o irmão do rei, soltou o pescoço de Eduardo. Este se truncou sobre seus joelhos e levou as mãos à garganta enquanto tentava recuperar o fôlego.
—Que diabos estava pensando? —disse cuspindo sua raiva acusadoramente com o rosto avermelhado — Como se atreve a me pôr a mão em cima? Meu irmão terá notícias disto.
Esse era exatamente o problema de Eduardo Bruce. Nunca tinha aprendido a viver sob a sombra de seu irmão muito mais digno que ele. Era um bode arrogante e ordinário, para quem pertencer à nobreza era uma desculpa para fazer e dizer o que lhe desse vontade. Normalmente Erik o ignorava. Mas quando mencionou Ellie… Não podia pensar em outra coisa salvo em matá-lo. Que Eduardo tivesse sido capaz de provocar tal reação resultava um tanto desconcertante. Não havia dito nada que o próprio Erik não tinha dito antes, embora era certo que de modo menos grosseiro. De fato, não fazia muito tempo que tinha feito uma brincadeira similar a MacLeod a respeito de sua nova esposa e a ponto esteve que seu nada divertido amigo lhe arrancasse a cabeça. Era a primeira vez que Erik se precavia de quão apaixonado MacLeod estava de sua mulher, mas a situação nesse momento em nada tinha a ver com aquela.
Olhou Eduardo por cima do ombro.
—Faça o que deve, Número Dois.
Os olhos de Eduardo avermelharam mais de ira ao ouvir o nome que Erik lhe tinha atribuído meses atrás, uma referência clara a sua posição na família, mas também um reflexo de como ele sempre ia por trás de seu muito admirado irmão. Eduardo saiu da cova feito uma fúria e Erik voltou a sentar-se no assento que com tanta celeridade tinha abandonado antes.
Sentiu-se escrutinado pelo olhar de Boyd. Por se tratar de uma besta desumana, resultava ter uma perspicácia desesperadora.
—Assim que esse é o aspecto que têm quando se zanga? Chefe me havia dito, mas tenho que admitir que não acreditava.
Erik deu um longo trago à cerveja enquanto se perguntava por que diabos se sentia como se fosse um inseto sob uma maldita rocha. Boyd emitiu um assobio suave.
—Deve ser uma mulher das boas, porque acaba de criar um inimigo dos mais poderosos.
—Isto não tem nada a ver com ela. Eduardo é um cretino. Isto vem já faz muito tempo.
Aquilo era certo, mas não explicava absolutamente a reação de Erik. Boyd ficou observando-o um pouco mais e, depois disto, por sorte, trocou de tema.
Ellie, enquanto isso, olhava para a escuridão através daquela janela, e o frio vento da noite adormecia suas bochechas. Não alcançava ver muito além dos círculos iluminados pelas tochas que flanqueavam a entrada da casa de Meg.
Onde teria se metido? Falcão assegurou que a veria essa noite, mas em lugar disso mandou uma mensagem dizendo que Thomas se reunisse com ele assim que fosse possível e que comeria no acampamento com seus homens. Ellie tinha visto discutir ambos os homens pouco antes e temia que sua ausência estivesse relacionada com ela. Mordeu o lábio ao precaver-se de que talvez Thomas a tivesse visto sair do estábulo. O que teria pensado? Sentiu uma pontada no coração. Exatamente o que merecia: que era uma desavergonhada. Seguiu mordendo o lábio com mais ansiedade ainda, enquanto observava qualquer sinal da presença de seu físico alto e musculoso, mas não podia tirar da cabeça a sensação de que algo ia mau.
—Procura alguém?
Ellie fechou rapidamente a portinha e se voltou para encontrar com o vivaz rosto de Meg. Negou com a cabeça.
—Só admirava a lua cheia.
Meg esboçou um sorriso. Era muito amável para pôr em dúvida sua sinceridade.
—Eu não me preocuparia muito. Estou segura de que simplesmente terá perdido a noção do tempo. Se Falcão disse que viria, fará. Apesar que se esforça em dar a impressão de que tudo lhe importa um nada, é uma das pessoas mais dignas de confiança que conheço. Pode confiar nele.
Era algo curioso, mas certo. Ellie se ruborizou.
—Não se trata disso.
—Eu acredito que se trata exatamente disso — disse Meg com um sorriso. Seus olhos se encheram de brilho — Não faz tanto que eu estava aí mesmo esperando que meu Colin voltasse —acrescentou com um suspiro — Ah, a primavera do amor!
Ellie ficou surpreendida.
—Eu não estou apaixonada — protestou, esquecendo essa estúpida história que Falcão tinha inventado. De todos os modos, já conhecia muito bem a Meg para saber que em realidade nunca a tinha acreditado.
Não podia estar apaixonada. Viu-se invadida pelo horror. De repente o ar era pesado e asfixiante. Não podia ser tão estúpida para ter entregue seu coração a um homem com o qual não havia possibilidade alguma de futuro. Alguém que quão único faria seria romper-lhe em pedaços. Meg atuou como se não tivesse dito nada. Meneou a cabeça em um gesto cheio de nostalgia.
—Jamais pensei que chegaria o dia em que a Falcão cortasse as asas.
O coração de Ellie se deteve em seco para depois voltar a ficar em marcha com vitalidade renovada.
—A que se refere?
—Ainda não é consciente disso, mas esse homem está apaixonado por você.
Seu coração pulsava tão forte que fazia mal. Meg se equivocava. Tinha que estar equivocada.
—Não me advertiu faz pouco que gostava muito das mulheres para dar seu coração a uma só?
Meg se encolheu de ombros, como se aquelas palavras carecessem já de importância.
—Vi Falcão com muitas mulheres e a nenhuma delas olhava como olha a você.
A cabeça de Ellie estava passando um mau momento tentando controlar o desejo quase desesperado para seu próprio coração. Talvez não tivesse sido tudo imaginação dela. Era possível que Meg tivesse razão? Ellie se esforçou por mostrar-se racional.
—Isso pouco importa. Embora fosse certo, tem intenção de me devolver junto a minha família assim que partamos daqui.
Meg tomou sua mão e a apertou entre as suas.
—Lhe dê tempo, moça. As coisas são agora muito complicadas, e Falcão não é do tipo de homem que aceita seus sentimentos por seu próprio gosto. Pode ser que necessite um pequeno empurrãozinho, mas ao final chegará ali.
A voragem de emoções que se revolvia no interior de Ellie desde fazia dias ameaçava se libertar. As lágrimas picavam sua garganta e as conchas de seus olhos. Ellie elevou a vista para se encontrar com o olhar amável daquela mulher que se converteu em amiga. A necessidade de confiar em alguém podia mais que ela.
—Não tenho tempo — sussurrou.
Meg arqueou as sobrancelhas.
—Está casada?
Ellie negou com a cabeça.
—Ainda não. Mas estou prometida.
Um amplo sorriso apagou a preocupação do rosto de Meg.
—Então ainda têm tempo. Somente deverá pôr um pouco mais de empenho.
Meg fazia que soasse tudo muito singelo, mas não era absolutamente. Inclusive se estivesse convencida dos sentimentos de Falcão, o qual não era o caso, também teria que considerar o contrato de compromisso. Como reagiria seu pai supondo que ela queria romper o contrato? Para uma mulher de sua fila e posição, os sentimentos pessoais estavam desconjurados. Esperava-se dela que cumprisse com sua obrigação. E como não se deu o caso de que pudesse contar seus sentimentos a seu pai, não sabia como este podia reagir. Por outro lado, teria que considerar as reações de Ralph e do rei Eduardo. Apesar que Ralph não parecia albergar sentimentos com respeito a ela, poderia ficar furioso. Mas, dadas as circunstâncias de seu primeiro matrimônio, talvez pudesse compreendê-lo. A reação do rei Eduardo era impossível de prever.
Seu pai a queria, e algo lhe dizia que não a obrigaria a contrair um matrimônio que não desejava, embora isso tampouco significava que o alegrasse ter um pirata como genro. Não obstante, era consciente que existia outra alternativa. Sempre poderia fugir com ele e se arriscar que a deserdasse. Mas para uma garota que sempre tinha tentado fazer o correto, que acreditava nas obrigações e na responsabilidade, que amava a sua família com todo seu coração, aquilo era algo virtualmente inconcebível. Era algo que poderia fazer Mary, mas ela nunca. Ela não era impetuosa. Era uma pessoa séria e…
«Aborrecida.» Sentenciada a viver uma vida que não desejava com um homem ao que não queria.
—Sabe Falcão algo a respeito desse compromisso? —perguntou Meg.
Ellie negou com a cabeça.
—Não pensei que fosse importante para ele. Sempre deixou claro que nossa, eh, relação, é temporária.
Meg esclareceu garganta teatralmente.
—Há uma grande diferença entre o que os homens dizem e o que sentem. Jamais saberá como pode reagir a menos que conte. —Meg deveu adivinhar sua indecisão — Se é que está segura de querer fazê-lo.
Ellie não estava segura de nada. Mas se havia alguma possibilidade que Meg estivesse certa, tinha que averiguá-lo. E não dispunha de muito tempo para fazê-lo. Meg lhe dirigiu um estranho sorriso.
—Estava a ponto de ir agora mesmo ao acampamento recolher os utensílios de cozinha que mandei antes.
Ellie ficou circunspecta sem entender o que queria dizer com isso.
—Não disse Duncan que não nos incomodássemos, que ele mesmo os traria?
Meg cruzou os braços.
—Bom, então como parece que Duncan não se deu muita pressa, tenho intenção de recolhê-los eu mesma.
Ellie sorriu.
—Não necessitará ajuda?
—Oh, o que considerado por sua parte —disse Meg como se não tivesse caído na conta — Me viria muito bem.
Ambas as mulheres compartilharam um sorriso de cumplicidade e foram por seus casacos.
Levantou-se o vento, e a tocha titilava na escuridão à medida que caminhavam com cuidado pelo escarpado caminho para a praia. A Ellie deu a sensação que a observavam e se precaveu que Falcão provavelmente tinha a seus guardas postados nas imediações da cova. Mas não foi até que se aproximaram da entrada que as deteve um jovem guarda.
—Temo que o capitão se encontra ocupado neste momento —disse movendo-se nervosamente, como se as roupas lhe estivessem pequenas.
Ellie podia ouvir os ruídos alegres que provinham do interior da cova. Ocupado com o que? Com uma celebração? O mundo lhe veio em cima ao pensar na mulher da outra noite. Tentou olhar por cima do ombro do guarda, mas o moço era alto e seu peito bloqueava uma boa parte da entrada da cova. Meg também parecia surpreendida.
—Só vim recolher os utensílios da cozinha.
—Farei que Rhuairi lhe entregue isso.
Fez um sinal a um guarda que havia perto dali, que lhe deu um olhar furtivo e cumpriu com seu encargo imediatamente.
Algo estranho estava acontecendo. Jamais antes lhe tinham negado a entrada à cova e era evidente que o jovem guarda estava ansioso por livrar-se delas. Acaso havia algo ali que não queriam que elas vissem? Meg deve ter se dado conta também disso. Tomou pelo braço e disse: —Não passa nada. Faça que Duncan os traga mais tarde.
Meg a levou dali para voltar para a casa, mas com sua pressa tinha feito que Ellie tropeçasse com um homem que vinha por trás delas.
—Minhas desculpas — disse ela de maneira automática.
Ellie deu uma olhada a aquele homem e ficou gelada. Ficou pálida como a morte. Piscou na penumbra sem acreditar no que viam seus olhos. Ia vestido com as roupas robustas de um pescador, mas reconheceu ao arrumado homem de cabelos morenos que tinha ante si: Eduardo Bruce, o irmão mais velho de Robert e seu próprio irmão político por matrimônio.
Por que…?
É obvio! De repente, nesse preciso instante tudo cobrou sentido. A última peça do quebra-cabeças entrou em seu devido lugar. «Falcão está com Bruce.» Não era um pirata, a não ser um rebelde escocês que lutava no bando de Robert contra o rei Eduardo. E contra seu pai. De repente, aquele desejo de evitar pronunciar o nome de seu pai na cova cobrava sentido.
Aquilo era o que Meg se referia quando afirmava que o assunto era complicado. Mas sua amiga não poderia ter imaginado jamais quão complicado realmente era. E então se precaveu de uma segunda coisa: Falcão descobriria quem era ela realmente. Tudo acabaria para eles. Uma vez que descobrisse sua identidade, já não haveria mais encontros privados, nem beijos, nem prazer. Jamais teria possibilidade de averiguar quais eram seus verdadeiros sentimentos por ela.
Ao princípio, temia revelar sua identidade porque isso poderia empurrá-lo a casar-se com ela somente por sua riqueza e sua posição. Mas além disso existia outro problema em sua relação: era a irmã de seu rei e senhor. Isso o fazia suspeitar que a nobreza inata da que adoecia o faria oferecer-se a ela em matrimônio. Mas ela não queria consegui-lo desse modo. A possibilidade de um futuro como o de sua mãe resultava impossível ante tais pensamentos. Não havia nada romântico em um amor não correspondido. Para isso melhor estaria com Ralph. Conteve a respiração, esperando o momento da revelação, esperando a que a voz de Eduardo clamasse e perguntasse que fazia ante ele lady Elyne de Burgh vestida de camponesa. Mas Eduardo não disse uma palavra. Seus negros e frios olhos passaram diante dela sem mostrar o menor pingo de interesse, justamente do mesmo modo que a primeira vez que se encontraram nas bodas de Robert e Isabel. Se adornada com suas joias e embelezada com ricos panos de veludo não tinha sido o suficiente bela para que lhe prestasse atenção, muito menos o era nesse preciso momento.
Meu Deus, não a tinha reconhecido! Sabia que devia sentir-se humilhada, mas em lugar disso não podia acreditar que tivesse tanta sorte. Deu meia volta sem querer lhe oferecer uma segunda oportunidade para que a reconhecesse. Mas antes que pudesse tomar Meg pelo braço e se apressasse a partir, deteve-a uma voz dolorosamente familiar.
Falcão a agarrou pelo cotovelo e a fez voltar-se.
—Ellie? Que demônios está fazendo aqui?
O olhar agudo de Eduardo Bruce a observou com muita mais atenção da que ela teria querido.
—Esta é sua prisioneira?
A Ellie deu a impressão de que não respondia absolutamente às expectativas que se formou dela.
—Não sou sua prisioneira.
—Não é minha prisioneira — disse Falcão ao mesmo tempo.
Eduardo a escrutinava com uma intensidade que a incomodou. Por um momento temeu que a tivesse reconhecido. O gesto lhe torceu em um sorriso zombador. Ao final decidiu afastar sua vista dela.
—Não é como as que geralmente você normalmente gosta, Falcão.
Erik tinha sérios problemas para recordar que aquele homem era o irmão do rei e que atravessar aquele sorriso vil com seu punho provavelmente não fosse a melhor das ideias. Mas, diabos, teria ficado na glória.
Primeiro, esse imbecil do Eduardo se deixou ver ante as duas mulheres e, embora fosse pouco provável, sempre cabia a possibilidade de que alguma delas o reconhecesse. E depois disto tinha insultado Ellie ao compará-la com outras mulheres.
E por que não podia lhe atrair Ellie? E qual problema se não tinha os seios enormes nem parecia que acabasse de descer do monte Olimpo? Qualquer idiota podia ver a beleza que havia nesses olhos castanhos matizados de verde, seu pequeno nariz e essa boquinha cheia de inteligência que tinha.
Se esse bastardo tinha ferido seus sentimentos, suas conexões com a realeza não bastariam para salvá-lo. Olhou em direção a Ellie. Como ela tinha elevado o queixo e pela cor rosada de suas bochechas estava claro que se precaveu das implicações que aquilo suportava, e conforme parecia estava a ponto de dar a Eduardo um boa reprimenda. Era de esperar. Ellie não apoiava sua própria valia nem a de ninguém na beleza física. Essa era uma das coisas que admirava nela e a razão que lhe importasse seu bom julgamento. Mas tampouco queria que permanecesse junto a Eduardo Bruce mais tempo do necessário.
—Têm razão — disse Erik interpondo-se entre ambos — Ellie é muito especial para ser comparada com alguma outra pessoa.
Ficou surpreso ao precaver-se de que o dizia a sério.
Ellie o observava com esse olhar tão penetrante que o punha nervoso. Para evitar que suas palavras a confundissem e chegasse a conclusões errôneas, passou ao ataque.
—O que está fazendo aqui?
—É minha culpa — interveio Meg — Não sabia que estava ocupado. Viemos recolher os utensílios da cozinha.
Erik se alegrou de ver que Eduardo se precaveu, embora tarde, que não devia ser visto por ninguém e tinha decidido voltar para a cova. Ellie observou como partia e houve algo na expressão de seus olhos que fez desconfiar Erik.
—Farei que os levem algum de meus homens — disse. Advertiu que Meg se sentia culpada por tê-los interrompido. Não era culpa dela. Tinha que ter sido mais explícito quanto a suas ordens. Perguntava-se o que as teria levado até ali, já que não acreditava que tivessem ido realmente recolher os utensílios de cozinha — É tarde —disse — As acompanharei a casa.
Ambas se negaram, mas Erik não queria ouvir falar mais do assunto. Talvez Meg estivesse acostumada a caminhar pelo escarpado de noite, mas Ellie não. Somente de pensar em quão fácil teria sido que escorregasse ou tropeçasse na escuridão ficava furioso de novo. Acompanhou-as na ascensão do atalho e agarrou firmemente Ellie pelo braço para assegurar-se de que aquilo não acontecesse. Pode ser que Ellie fosse magra, mas isso não evitava que seus corpos se acoplassem à perfeição.
As mulheres se mostravam mais caladas que o habitual. Assim que cruzaram a soleira da porta, Meg bocejou de modo exagerado e se desculpou para ir-se à cama. A Erik deu a sensação que queria deixá-los a sós. Mas Ellie se via muito nervosa. Passou um tempo incalculável tirando o casaco e depois perambulou pela habitação até que ao final decidiu esquentar as mãos ante o fogo.
—Queria algo, moça?
—Não — disse. Mas se corrigiu imediatamente —: Sim. —Cruzou as mãos sobre suas saias e se voltou para ele para olhá-lo —. Seus convidados. Era essa a razão de que não veio esta noite?
Maldita seja. Tinha-o esquecido. Embora talvez não fosse essa a verdadeira causa. As palavras de Randolph pesavam mais do que queria admitir.
—Sim. Sinto-o — disse com um sorriso —, mas os negócios estão antes do prazer.
Não obstante, aquela tentativa de mostrar-se despreocupado foi fulminado por completo por suas seguintes palavras.
—Não é nenhum pirata. Está com Bruce. Por isso lhe persegue os ingleses.
Riu como se aquilo fosse uma brincadeira, embora em seu interior estava furioso. Provavelmente tinha reconhecido Eduardo Bruce.
—Ainda segue inventando nobres atividades em minha honra, Ellie? Acreditei que deixaria os contos para mim.
—Não — disse em voz baixa — Não brinque com algo como isto — prosseguiu com os olhos cravados nele — Não minta para mim.
Deveria. Deveria dar meia volta e partir. Já era o suficiente complicado. Mas não podia fazer que seus pés se movessem. Não queria enganá-la.
—É mais seguro para você que não faça perguntas.
—Não me importa se é seguro ou não. Quero saber a verdade. O que ia fazer aqui se não o irmão do rei?
—Maldita seja, Ellie! Sim me importa! —Passou os dedos entre seus curtos cabelos, tentando controlar a crispação de suas emoções. Acaso não se precavia que tentava protegê-la? — Dá-se conta do que fariam de você se soubessem que sabe algo? O rei Eduardo não se deterá ante nada para encontrar Bruce. Não deixe que o fato de ser mulher lhe leve ao engano de pensar que está a salvo.
A veemência de sua reação não pareceu ter efeito algum nela.
—Rainha — Avançou para ele com ansiedade — Que notícias têm da rainha Isabel?
Surpreendeu-se ante a estranha intensidade de sua pergunta, até que recordou o cargo que tinha na casa de Ulster.
—Nenhuma desde que se viu obrigada a se separar do rei meses atrás.
—Ouvi rumores de que tinha partido para a Noruega. Refugiar-se junto à irmã de Bruce, a rainha.
—Não sei — disse negando com a cabeça a um tempo.
Advertiu sua decepção e se perguntou se, apesar de sua posição na casa de Ulster, não simpatizaria com a causa de Bruce. Aquilo não o surpreenderia, dadas as conexões que Bruce tinha com a Irlanda. Mas pouco importava. Simpatizasse com sua causa ou não, tinham posto preço à cabeça de Erik e qualquer conexão com ele seria muito perigosa.
—Por que estava na cova que há sob Dunluce? —perguntou ela.
—Ellie… —advertiu-a.
Mas ela fez caso omisso.
—Aqueles homens com os que se reunira. Os irlandeses. São guerreiros para o Bruce. —Elevou a vista para olhá-lo — Está planejando algo.
Erik cruzou toda a habitação e tomou pelos ombros.
—Se detenha — disse preso do medo. Por que diabo tinha que ser tão inteligente? — Não faça mais perguntas! Esqueça tudo o que ouviu. Se esqueça de mim!
Disse aos gritos, gritando seriamente.
Ficou sobressaltada. Ao Erik pareceu que finalmente sua ira tinha conseguido afetá-la.
—É isso o que quer de mim?
Ele não duvidou um instante.
—Sim.
Ellie elevou o queixo e o olhou diretamente nos olhos. Erik sentiu o fogo que os conectava. Olhava-o nos olhos e o desafiava a negá-lo.
—Não posso fazê-lo.
«Que o diabo a levasse.» Era a mulher mais irritante e díscola que jamais tinha conhecido. Erik sentiu que tudo lhe escapava das mãos. Queria tomá-la entre seus braços e beijá-la até que atendesse a suas palavras. Queria tornar-lhe ao ombro e transportá-la tão longe como fosse possível. A algum lugar seguro. Mas qualquer lugar seguro significava um lugar afastado dele.
Deixou-a sozinha. Do mesmo modo que ele poderia esquecê-la, ela também poderia fazê-lo. Sentiu como se lhe cravassem uma faca afiada no peito.
—Descanse. Partiremos amanhã de noite.
A ela mudou o rosto.
—Mas… —Pelo jeito como se apagou sua voz, pareceu dar-se conta de que era inútil protestar. Elevou a vista de novo para olhá-lo aos olhos — O verei amanhã?
Em outras condições nem teria duvidado. Quando as alternativas eram escolher entre esperar junto a seus homens que caísse a noite ou desfrutar de uma relação amorosa, não havia muito que decidir. Mas inclusive nesse momento teve que lutar para controlar-se. Seu suave e feminino aroma se elevou para cativá-lo. O desejo que sentia por ela não seguia seu curso natural, mas sim crescia mais a cada passo. Queria despi-la completamente, envolvê-la com seu corpo e penetrar em seu interior até o mais profundo. Tinha tanta vontade de fazê-lo que podia ver como seria, e aquelas imagens o voltavam louco. Sabia que não era uma boa ideia. Estava se complicando muito. Seu controle estava chegando ao limite de sua capacidade. Amanhã partiriam cada um para seu lado. Seria melhor romper logo. Entretanto, resultava-lhe muito difícil resistir à tentação de passar um último dia com ela, de tocá-la, de observar como ruborizava seu rosto de prazer enquanto ele a levava a outro mundo com suas carícias.
—Não sei — vacilou — Haverá muito que fazer.
Sim, coisas como sentar-se e esperar.
—Ah — disse ela sem ocultar sua decepção — Acreditava que teria um pouco de tempo para me mostrar essa cova quando terminassem com seus homens pela manhã. Se é que realmente existe.
Erik sorriu. Aquela sutil mofa demonstrou ser do mais persuasiva. Estava sendo ridículo. Fazia uma montanha de todo isso. Somente era um dia a mais.
—Sim, claro que existe. Tinha prometido mostrar isso não?
Ellie assentiu com um esboço de sorriso na comissura dos lábios. Sabia que se saiu com a sua, embora tampouco tinha tido que lutar muito para consegui-lo.
—Teremos que ir quando a maré esteja baixa. Estará preparada pela manhã? Refiro ao que o resto de nós chama manhã.
Ellie fez uma careta.
—Muito gracioso. Me diga simplesmente a que hora.
Dado que Eduardo Bruce e Boyd partiriam várias horas antes do amanhecer, ele teria que estar acordado quase toda a noite de todas as formas.
—Ao amanhecer? —Riu ante sua cara de horror — Bom, se não quiser ir…
—Estarei pronta ao amanhecer — grunhiu.
Não pôde resistir e a beijou brandamente nos lábios antes de partir.
—Valerá a pena — prometeu.
—Mais que valha, a uma hora tão inoportuna.
Capítulo 17
Ellie olhou ao redor daquele palácio de rochas subterrâneo que brilhava como ébano gentil na turva escuridão.
—É magnífico — disse quase sussurrando.
—Me alegro de que dê sua aprovação — disse Falcão com uns olhos azuis que brilhavam de malícia — Devo entender que o banho valeu a pena?
—Trapaceiro — repôs ela fazendo uma careta de chateio e lhe salpicando água no rosto — Muito inteligente de sua parte esquecer de comentá-lo antes.
Sacudiu a água de sua densa e ondulada cabeleira e lhe dirigiu um de seus incorrigíveis sorrisos.
—Não perguntou.
Ellie tinha pensado duas vezes quando se precaveu que teriam que nadar até a cova, embora em realidade, recordando o muito que havia custado levantar antes do amanhecer, essa tinha sido realmente a terceira vez. Não se tratava de um dia de inverno quente e ensolarado, ao contrário da última ocasião em que ele a tinha convencido para um banho.
Tinham partido pouco depois do amanhecer, em um velho barco desmantelado que tinha tomado emprestado de um pescador local que mal cabiam os dois. Apesar que Falcão o assegurasse, Ellie se surpreendeu que aquela massa de tábuas desvencilhadas e gastas pudesse flutuar. Erik cortava a densa bruma da manhã com os remos, e após fazer virar a embarcação apenas umas pazadas sobre a ponta norte da ilha, viram aparecer um saliente de rochas escuras que ocultava uma pequena cova. Aproximou o bote até a rochosa praia para mantê-lo oculto e disse a Ellie que deixasse suas roupas nele. Isso de voltar a meter-se nas geladas águas a fazia se arrepender, mas não queria dar pé a que a levasse de volta. Talvez fosse a última oportunidade para estar a sós com ele. Se realmente desejava averiguar se Meg tinha razão, teria que fazê-lo nesse momento.
Assim que uma vez mais tirou tudo menos a camisola e seguiu Erik até o que parecia uma parede de rochas bicudas que ocultava a entrada de uma cova. Nadar para o desconhecido foi um tanto aterrador, mas ele a agarrou pela mão e mergulhou junto com ela no escuro e gelado mar, levando-a consigo uns cinco pés até chegar a uma estreita fenda na rocha. Ao sair do outro lado, Ellie se encontrou em uma piscina pouco profunda, maravilhando-se com o oásis de rochas que tinha a seu redor. Havia a luz justa para adivinhar a tosca forma oblonga da escura gruta.
Quando Falcão a pôs em pé, Ellie se surpreendeu que a água apenas lhe chegasse pelo peito.
—Só se pode entrar quando há maré baixa — explicou ele — Pela tarde, a água chega até o teto.
A cova mediria algo mais de três metros de altura, já que o teto se elevava ao redor de um metro sobre a cabeça de Falcão. Era assombroso pensar que a água chegaria tão acima em umas poucas horas. Deram-lhe calafrios.
—Eu não gostaria de ficar apanhada aqui dentro.
Levou-a até um saliente da rocha que servia como banco natural. Pôs as mãos sobre sua cintura e a elevou para que se sentasse; depois levantou a si mesmo. Era a primeira vez que a tocava em todo o dia, de modo que o corpo de Ellie se sobressaltou ante o contato. Para um homem que se comunicava tanto com as mãos como com as palavras, parecia fazer grandes esforços para as deixar quietas.
Ellie escorreu a água do cabelo como pôde e refugiou os pés sob a borda de sua úmida camisola enquanto ele passava os dedos entre os cabelos e secava a água do rosto.
—Têm frio?
Ellie tinha a pele arrepiada, mas a assombrou comprovar que não sentia frio. O ambiente não era tão quente como na sauna, mas havia ao menos vinte graus mais que no exterior. Negou com a cabeça.
—Faz muito menos frio aqui que dentro da água.
—É assim durante quase todo o ano, embora desconheça a razão.
Precaveu-se do débil eco que seguia a sua voz e permaneceu atenta a qualquer outro som no interior da cova, o vento ou a água golpeando contra as rochas, mas à exceção da destilação da água que caía do teto, o silêncio era espectral.
—Que silêncio!
—Sim, parece que está em outro mundo, verdade?
—Como encontrou este lugar?
—Não o encontrei. Os locais o conhecem há muito tempo.
—É um lugar fantástico para esconder-se. Vinha muito por aqui quando era jovem?
A olhou de esguelha com suspicácia, mas não respondeu. Ellie não se deu por aludida.
—Foi essa a razão de que se uniu ao bando de Bruce, para reclamar suas terras?
Erik negou com a cabeça.
—É que alguma vez se dá por vencida?
Ficou pensando nisso.
—Não.
Falcão suspirou. Ela pensou que não teria intenção de responder, mas depois de um momento ele disse: —Isso teve algo haver, mas a razão principal foi que me pediu o chefe de meu clã. —Ellie o olhava intensamente — Não pergunte. Não posso lhe contar mais.
Mordeu o lábio e baixou os olhos para olhar à escuridão da lacuna. Não queria que houvesse mais segredos entre eles. Tinha que lhe contar a verdade a respeito de sua identidade, mas antes precisava saber quais eram seus sentimentos por ela.
—Não pode ou não o fará?
—Nem um nem o outro.
Erik alargou o braço e lhe agarrou o queixo. Aquela suave carícia fez que seu corpo se alagasse de calafrios. A obrigação se converteu em uma razão pouco apetecível para o matrimônio, especialmente se era com ele.
—É muito perigoso para você. Tento lhe proteger — disse Erik.
Tinha razão. Era algo muito perigoso. Por isso, sua associação com Bruce era tão aterradora.
—E o que há do perigo que supõe para você? —perguntou Ellie, sentindo que as lágrimas iam a seus olhos. Apesar da lealdade de seu pai ao rei Eduardo, Ellie simpatizava com a causa de seu cunhado, ao que sempre tinha admirado. Mas por mais que simpatizasse com sua luta, sabia que aquela causa estava perdida de antemão. A tentativa de Bruce de tomar a coroa tinha fracassado. Os dias de Bruce e seus seguidores estavam contados. Gelava-lhe o sangue imaginar o que o rei faria com eles quando os apanhasse, e não cabia dúvida de que assim seria — Durante quanto tempo pensa que ganhará a corrida da frota inglesa?
Falcão retirou a mão de seu queixo e endureceu a expressão até fazê-la desafiante.
—Tanto como seja necessário.
—E o que ocorrerá depois? Morrerá em algum campo de batalha? Ou pior ainda, pendurado de uma soga ou sob a tocha de um verdugo?
—Pode ser que sim — disse encolhendo-se de ombros —, ou talvez não.
Ellie se indignou pela frustração. Nada o afetava. Nada era sério para ele. Parecia alheio ao perigo.
—É que não o preocupa a morte?
—A morte é parte do combate, Ellie. Combater é ao que me dedico. —Sorriu — E pelo geral, estou acostumado a ganhar o combate.
Não o punha em dúvida. Tinha-o visto brandir a espada. Com esse tamanho e força, tinha que ser brutal no campo de batalha.
—Mas desta vez não poderá ganhar. Eduardo é muito poderoso. Quantos têm, várias centenas de homens?
—Isto ainda não acabou.
Ao que parecia, possuía uma vertente teimosa que até esse momento não tinha visto.
—Crê que Bruce tem alguma possibilidade?
—Mais que alguma possibilidade.
Ellie percebeu em sua voz algo que não tinha ouvido nunca antes. Era algo profundo, irreverente e inquebrável. Demorou um momento em reconhecer do que se tratava: lealdade. De repente vieram as palavras inscritas na espada: «Sempre fiel».
—Mas o seguiria de todas as formas — disse quase para si.
Embora significasse sua própria morte.
Não era a voz de alguém incapaz de comprometer-se. Se era capaz de sentir essa lealdade por Bruce, talvez também fosse possível que lhe importasse. Falcão não era como seu pai. Somente porque fosse bonito e carismático, ela não tinha direito a assumir que fosse incapaz de sentir emoções profundas. Todo o ocorrido na semana anterior tomava uma aparência completamente diferente sem a influência cegadora que supunha o coração partido de sua mãe. Erik tinha passado com ela todo o tempo livre que dispunha e tinha inventado desculpas só para estar com ela. Embora sua única intenção fosse que ela relaxasse, não tinha sido a única em desfrutá-lo. Ele tinha rido e divertido tanto como ela. Tinha-lhe contado coisas pessoais a respeito de sua família, coisas que suspeitava que compartilhava com muito poucas pessoas. E também estava o fato que tivesse mandado uma mensagem para tranquilizar sua família, algo que não tinha necessidade de fazer e para o que, sem dúvida, tinha assumido certo risco. Atuava de modo diferente com ela do que fazia com outros.
Mas não era somente o que fazia, a não ser a sensação, a plena certeza que significava algo para ele. Via-o na maneira em que ela parecia afetar a seu caráter como ninguém mais o fazia, a maneira em que lhe falava, o modo em que seu corpo reagia ao contato com seus dedos e aquele intenso e tenro olhar que lhe oferecia quando a tocava. Aquilo tinha que significar algo.
Inclusive Meg tinha percebido.
Ellie inspirou profundamente e se voltou para ele.
—Não quero que nos despeçamos.
Falcão ficou de pedra. O músculo inferior de seu queixo palpitava. Mas depois sorriu e ela se perguntou se não teriam sido imaginação dela.
—Ellie, logo estará em casa com sua família e se esquecerá que tudo isto aconteceu.
Ela tentou revolver-se ante aquela dor aguda.
—Não me trate com condescendência. Sei perfeitamente o que sinto.
—Agora se sente deste modo, mas o esquecerá com presteza.
Soava tão seguro de si mesmo, tão crédulo… Como se o houvesse dito antes muitas vezes, muitas.
«Esta vez é diferente.»
Ellie examinou seu rosto em busca de algum sinal de debilidade, mas não encontrou nenhum. Seu coração parecia lutar por pulsar na estreita caverna de seu peito.
—É isso o que você fará, esquecer? —perguntou-lhe em voz baixa.
Ele a olhou nos olhos e não vacilou absolutamente.
—Sim.
Não acreditava. Se não lhe importava nada, por que não a tocava?
Era como se não confiasse em si mesmo. E apesar de tentar ocultá-lo, sua atitude era muito forçada. Apoiava as costas na parede da rocha e permanecia sentado sobre uma de suas pernas enquanto a outra descansava sobre a água, completamente depravado segundo as aparências. Mas aquela atitude de indiferença não a enganava. Podia sentir a tensão que emanava de seu corpo como se fosse uma isca fumegante a ponto de prender-se fogo.
Meg tinha razão. Não se tratava de um homem que aceitasse seus sentimentos com facilidade. Necessitaria que lhe desse um empurrãozinho. Ellie afastou as mãos de seus próprios joelhos e se aproximou dele. Não se incomodou em mostrar-se sedutora, porque sabia que aquilo somente serviria para que se sentisse idiota. Mas sim podia mostrar-se desavergonhada e direta. Deve ter surtido algum efeito, porque o corpo de Falcão, já tenso por si, adotou uma posição de rigidez absoluta. Não parecia respirar sequer.
—O que está fazendo?
Ellie sorriu ao ouvir o tom de alarme em sua voz. Pareceu-lhe uma estranha ocorrência para um homem que gotejava tanta confiança.
—Pensava que era óbvio. O que estivemos fazendo os dois últimos dias, nos divertir um pouco.
Erik entreabriu os olhos com suspicácia. Era consciente que o estava desafiando.
—Não acredito que seja boa ideia.
Arqueou uma sobrancelha.
—Por quê? Não é nada sério… ou sim?
Não respondeu, mas talvez fosse porque tinha a mandíbula tão tensa que parecia incapaz de articular movimento algum.
«Um empurrãozinho.» Mas ele não o punha nada fácil. Estava ali sentado com total rigidez, com os músculos em tensão e cada centímetro de seu poderoso corpo lhe advertindo que não se aproximasse.
Ellie voltou a inspirar profundamente e se inclinou sobre ele, pôs sua boca contra a sua e depois roçou a umidade salgada de seu áspero queixo com os lábios até chegar a seu pescoço. Cheirava bem, inclusive empapado de água do mar. Fazia vários dias que não se barbeava e a escura sombra de sua barba dava um caráter esquivo a sua aparência de divindade nórdica dourada. Ellie se tornou para trás para avaliar os efeitos que tinham seus esforços. Seu olhar a atravessou com a intensidade e o calor de um raio. Ele seguia com a mandíbula encaixada, os músculos do pescoço duros e o queixo não cessava de palpitar.
Tudo nele apelava ao espírito temível do guerreiro das Highlands, sombrio e perigoso. Mas havia algo perverso nisso que a excitava. Não fazia a não ser lhe dar mais arrojo.
—Esquecerá de tudo isto — o desafiou —, porque não significa nada, não é certo?
Ele a observava com o olhar do depredador ao qual devia seu nome. Ellie o obsequiou com um desses sorrisos irreverentes dos que ele era professor, e se aproximou para tocá-lo. Os dedos escorregaram por seu peito até os rígidos degraus de seda de músculos que cruzavam seu abdômen de lado a lado e estes se sobressaltaram ante o contato. Brincou com ele por uns instantes e comprovou os limites de sua capacidade para controlar-se, desenhando círculos provocadores sobre seu ventre até que ficou todo ele em tensão, cuidando-se o máximo de evitar a grossa coluna de carne que se esforçava em chamar sua atenção.
Não deixou de olhá-lo aos olhos em nenhum momento e observou que estes se voltavam cada vez mais escuros e ardentes.
—E isto? —disse pondo a mão sobre seu coração a ponto de explodir, enquanto o olhava aos olhos com intensidade — Não sente nada diferente aí, verdade?
—Não — disse com uma voz tão cortante e tensa que mais pareceu uma imprecação.
Mentia. Ellie se dava conta disso, por mais que ele lutasse com firme determinação. Quando roçou com seu pulso o robusto corpo de sua virilidade, Falcão emitiu um assobio. Ellie notou o calor que desprendia através do fino pano dos calções. Rodeou-o com suas mãos.
—Estou segura de que esquecerá tudo.
—Santo Cristo, Ellie — se queixou, com os músculos do pescoço tão tensos como a corda de um arco — Não quero lhe fazer mal. — Pela angústia que sentia no peito, Ellie podia arriscar a dizer que já era muito tarde para isso. Então a agarrou pelo pulso, mas ela não estava disposta a soltá-lo — Não posso lhe oferecer neste momento o que quer.
A esperança que lhe dava arrestos se dissipou. Soltou-o e afastou a mão. «Não me quer. Não lhe importo.» A dor se aferrou a seu peito. Não esperava que aquilo doesse tanto. Mas havia algo em seu interior que não a permitia dar-se por vencida. Se era isso tudo o que ele pensava lhe oferecer, tomaria tanto como fosse possível.
Começou a trabalhar sobre as ligaduras de seus calções com determinação renovada, mas o tecido estava úmido, de modo que teve que esforçar-se. Uma vez tudo aberto e ao alcance de sua mão, elevou a vista para olhá-lo. Seu rosto permanecia duro e inquebrável como o granito.
—O que quero? Tudo o que quero é isto — disse. E quando viu que não obteria resposta pôs os dedos a seu redor e sentiu como seu próprio ventre se encrespava pela excitação. A pele, suave como o veludo, mostrava toda sua tensão sobre aquela turgente coluna de aço — Só um pouco mais de prazer pela última vez.
«Maldita seja.» Que demônios acreditava que tentava provar? Não importava o muito que se divertissem juntos, ele partiria essa mesma noite e esqueceria tudo aquilo. Ambos o fariam. Não importava quão incrível fosse a sensação de tê-la em seus braços, que não parecesse cansar de beijá-la, ou que a desejasse mais do que tinha desejado a qualquer outra mulher em sua vida. Isso somente ocorria porque sabia que não podia tê-la. A maneira em que pulsava seu coração, essa atração visceral, a necessidade animal de estar com ela, logo desapareceriam. Sempre ocorria assim.
E entretanto, jamais havia sentido nada como aquilo. Desejava-a com tanta vontade que pela primeira vez em sua vida não confiava em si mesmo. Por que tinha que forçar as coisas? Por que não o deixava em paz? Não queria lhe fazer mal. Tentava fazer as coisas bem. Mas sentir essas mãos em seu corpo, tocando-o, acariciando-o…, reduzia a pedacinhos todas suas intenções. Ainda podia notar a pressão daquela mão sobre seu peito, diabos. Sabia o que se propunha com esse joguinho, mas isso não o faria mudar de ideia. Maldita seja, aquilo não significava nada para ele. E tinha toda a intenção de prová-lo. Se queria prazer, isso seria exatamente o que conseguiria. Mais agrado do que poderia suportar. Pode ser que fosse ela quem tinha começado o jogo, mas o acabariam de acordo com suas próprias condições.
Afundou os dedos entre seus empapados cabelos e atraiu o rosto de Ellie para si, cobrindo sua boca com um longo e apaixonado beijo. O alívio se disseminou por seu corpo em uma onda cálida e pesada. Devorou-a com os lábios à medida que ia acariciando, enroscando sua língua com a dela até o mais profundo em uma necessidade frenética de consumação. Mas aquilo não serviu absolutamente para acalmar a fome que fervia em seu interior.
Não deveria fazer isso. Não, dados seus próprios sentimentos, entre os que se mesclavam a raiva e uma estranha agitação de frenesi que não compreendia. Não lhe parecia ser dono de si. Em seu interior formava algo selvagem e descontrolado. Sentiu a pressão que se acumulava em seu peito, uma pesadez que se expandia sem poder escapar por nenhum lugar. Orecavia-se do perigo, mas não atendia a suas advertências.
«Não é mais que prazer. Luxúria, isso é tudo.»
Mas cada uma dessas endiabradas carícias aumentava o frenesi, e seu corpo se via já minado até o ponto de ruptura por aqueles provocadores roces.
«A última vez.»
Não lhe cabia a menor duvida de que faria que valesse a pena. Afastou a mão de Ellie de seu corpo antes de tudo acabasse muito cedo, e a atraiu para si para acomodá-la na pedra sobre a que ele estava apoiado. Acariciou seus seios, seu traseiro. Cobriu-a com suas mãos, espremendo-a, apertando-a, segurando-a contra si em uma desesperada tentativa de paliar a fome e as perigosas emoções que revolucionavam seu interior.
Ela se derretia entre suas mãos, arqueava seu corpo e o pegava ao dele. Se em algum momento pôs freio a suas reações, aquilo era água passada. Saía ao encontro de cada uma das carícias de sua língua e de suas mãos com um abandono brutal que ele jamais teria imaginado. Mas aquilo era como pôr azeite sobre a chama, não fazia mais que servir de combustível ao fogo que surgia em seu interior.
Ele a beijava, a acariciava, encaixava seu corpo sobre o dela, quadris com quadris, peito junto a peito. As duras protuberâncias de seus mamilos lhe arranhavam o torso à medida que ela roçava contra ele. Estavam perto, mas não o suficiente. Falcão queria sentir sua cálida pele escorregando contra a dele. Queria vê-la nua, completamente nua, pela primeira vez. Sem que houvesse camisola, vestimentas, nem meias entre eles.
Roupas. Precisava desprender-se delas. Afastou sua boca e se desfez da camisa. Os olhos de Ellie se abriram com fruição e devoraram com o olhar cada centímetro de seus braços e seu peito. Não deveria olhá-lo desse modo. Aquela fome sem rodeios que mostrava não fazia a não ser pô-lo mais quente. O seguinte a cair foram seus calções e depois, antes que pudesse objetar algo, tirou-lhe a camisola por cima da cabeça.
«Jesus.» Tomou fôlego, sentindo-se como se tivesse lhe caído um raio. Era preciosa. Não magricela, a não ser leve e delicada. Seus olhos se afundaram em cada um dos esbeltos centímetros de sua sedosa pele. Seios pequenos e arrebitados, cintura fina e quadris de curvas gráceis, e essas pernas… Suas pernas eram simplesmente perfeitas, largas e estilizadas, com músculos de formas dóceis.
Talvez aquilo não tivesse sido tão boa ideia… Passaria muito tempo até que fosse capaz de apagar essa imagem de sua cabeça. Incapaz de aguentar nem um momento mais separado dela, arrastou-a para si e a beijou enquanto se encontravam nus corpo a corpo pela primeira vez. Tudo dele se acendeu ante o contato, ante o crepitar da pele entrando em contato com a pele.
Acariciou-lhe os seios e a agarrou pelo traseiro. Despediu-se de toda sutilidade e colocou as mão entre suas pernas, beijando-a enquanto introduzia seu dedo no interior daquele suave calor líquido. Gemeu. O desejo o atravessava em uma onda cálida e pesada que o levava para as profundidades. Tão quente, tão úmido… Ela ofegava e se retorcia contra ele, aproximando os quadris de sua mão e apertando ainda mais os seios contra seu corpo.
Introduziu outro dedo e a abriu com mais folga. Mas acariciá-la com os dedos não era suficiente. Queria estar dentro dela mais do que jamais tinha querido nada na vida. Ela gemeu de novo, desta vez com mais insistência e colou seu montículo à ereção em busca de maior fricção. Sentir toda aquela umidade escorregar por seu palpitante membro o levou a borda da loucura. Estava tão perto.
«Não.» Apertou os dentes ante a urgência que sentia de inundar-se em seu interior. Mas, Deus, quanto o desejava… «Uma última vez.» Não podia parar de repetir-se essas palavras que zumbiam em seus ouvidos guiando todos seus atos.
—Rogo-lhe isso, Falcão.
—Erik — suplicou. Queria, precisava ouvir como dizia seu nome. Seus olhos se encontraram. Sentiu essa pontada aguda no peito — Erik — Voltou a pedir.
—Erik — repetiu ela em voz baixa. O sorriso que formou em seu rosto e que encheu seus olhos fez pedacinhos a pressão que se foi construindo em seu interior — Por favor, quero fazê-lo.
A ele, a cabeça dava voltas. Aquele inocente rogo estava fazendo que ficasse sem respostas. Sabia o prazer que lhe daria, quão escuro seria seu interior, como seu corpo o envolveria. Não podia pensar mais que em estar dentro dela. Era o único que importava. Era o único que o faria sentir-se bem. Quão único deteria o martelar que sentia no peito e que poria fim à loucura de seu desejo.
Pôs uma mão sobre cada um de seus ombros para pegar-se mais a ela e se colocou entre suas pernas. Seus olhos se encontraram e se olharam. Nenhum dos dois disse uma palavra. Não precisavam fazê-lo. Deu-lhe uma última oportunidade. Ela leu a pergunta em seus olhos e assentiu.
Não duvidou. Seu corpo já não atendia a razões, mas sim atuava por conta própria, impulsionando-se para frente com uma só intenção: fazê-la sua. «Minha.» Tratava-se de um instinto primário impossível de resistir. Seu corpo se agitou pela emoção, antecipando as sensações à medida que empurrava lentamente para seu interior.
Ellie sabia que devia dizer que parasse. Apesar da bruma de paixão que os envolvia, sabia que devia fazê-lo. Mas não queria. Adorava. Adorava Erik. Havia-lhe dito seu nome. Adorava sua arrogante insolência, seu incorrigível sorriso, o inato sentido de honra e a nobreza que escondia atrás dessa fachada de velhaco. Adorava sua calidez, sua galanteria, seu ar pensativo. Adorava a sensação de liberdade que tinha ao estar junto a ele, a aventura, a emoção, mas também estar sentada a seu lado em uma colina contemplando o mar golpear contra as rochas. Unir-se lhe parecia a expressão perfeita, a única maneira de expressar esse amor. Sabia que isso queria dizer algo, que lhe importava, que estava chamando a fazê-lo. A forma carinhosa quando se meteu entre suas pernas a deixou sem fôlego, um olhar feroz, possessivo, intenso. Era uma reivindicação primária que não podia ser negada.
Pertencia-lhe e ele a ela. O destino os tinha levado até aquele lugar; estava decidido de antemão. Ele estava destinado a ela. Tomou pelos ombros e sentiu seu sedoso vértice golpear contra as sensíveis dobras da virilha. Ao notar aquela incrível sensação, alagou-a uma nova onda de umidade. Não estava muito segura se aquilo funcionaria muito bem. Era muito grande. Mas em certo modo devia confiar que seu corpo se ajustasse para lhe dar capacidade. Seus penetrantes olhos azuis lhe sustentavam o olhar com o rosto mais feroz que lhe tinha visto até o momento. Vê-lo apertando os dentes e notar todos os músculos em tensão sob as pontas de seus dedos fazia que parecesse estar lutando contra um inimigo invisível.
Erik empurrou e a abriu com a ponta de sua ereção. Ellie ofegou e depois um pouco mais quando ele investiu de novo. Era uma sensação estranha e maravilhosa. O calor, a conexão, seu corpo estirando-se ao máximo e Erik enchendo todo seu ser. Sentiu que seu corpo se abrandava e se abria em torno dele com a umidade como guia para o interior. Talvez funcionasse depois de tudo.
Quando pensava que tinha chegado até o mais profundo, olhou-a de novo aos olhos e empurrou até o fundo.
—Sinto-o — disse entre seus apertados dentes.
Ellie sentiu uma aguda espetada e gritou. Seu corpo ficou em tensão ante aquela inesperada dor. Mas Erik a aliviou com sua boca, beijando-a até que seus músculos se relaxaram e a paixão voltou a envolvê-la em seu erótico abraço.
Aquela sensação quente e frenética voltou a dominá-la, a sensação de que tinha que mover-se e senti-lo sobre ela. A necessidade de contato fez que seus dedos se agarrassem à férrea massa de músculos de seus braços e ombros para conduzir seu corpo e pô-lo em cima. Quando aqueles mamilos erguidos e em tensão se encontraram com a cálida e bronzeada pele de seu escultural peito, Ellie gemeu de prazer. Ter aquele peso tão sólido sobre ela era uma sensação inaudita.
Erik introduziu a língua até o mais profundo de sua boca e Ellie ficou roçando contra ele, ansiosa por sentir a fricção que pudesse mitigar o incansável desejo que clamava em seu interior. Deixava-se levar pelo bramido de seu coração, que pulsava contra o dela.
Começou a investir, primeiro lentamente, depois fazendo pequenos círculos com seus quadris e mais tarde, quando os dela começaram a elevar-se para encontrar-se com seu corpo, arremetendo de maneira mais profunda, até que a potência de suas palpitantes investidas parecia reclamar todo o corpo da mulher. Aquela familiar pressão começava a formar-se de novo. Mas era diferente, mais intensa, mais significativa. A união de ambos os corpos em um só tinha acalorado cada uma das sensações. Também ele o sentia. Sua boca se separava da dela, como se o esforço de controlar-se o tivesse privado de qualquer habilidade salvo da de respirar. Embora em realidade aguentava tanto a respiração que inclusive duvidava que fosse capaz disso. Agora bombeava com mais rapidez, mais profundo, com maior força, pulverizando-a com cada um de seus endiabrados arremessos e levando-a até o limite. Ela gemia com cada impulso e arqueava seu corpo para adequar-se a seu ritmo. As sensações revoavam em seu interior, esticando-se ao máximo, reconcentrando-se, reunindo-se todas em uma bola quente e resplandecente até que…
Gritou de prazer à medida que seu corpo se comprimia e liberava a paixão que explodia em seu interior, à medida que os agudos e quentes espasmos de prazer se dilatavam a seu redor. Ele cavalgou sobre ela uma vez mais e gritou contraindo todo seu corpo tanto que estalava a força de seu próprio desafogo. Balançou sobre ela e deixou que o fluxo quente de sua semente se mesclasse com a maré alta de seu próprio prazer em uma cálida queda em cascata.
Ellie queria que aquele instante durasse eternamente. Invadida pela euforia do momento mais assombroso de sua vida, surpreendeu-lhe que se separasse dela imediatamente. Sem o peso dele sobre ela, sem a máxima expressão de seu corpo em seu interior, sentiu um frio repentino. Uma sensação de moléstia foi abrindo passo em sua consciência. Esperava que ele a tomasse entre seus braços e a embalasse contra seu corpo como sempre fazia, mas em lugar disso jazia convexo de barriga para cima olhando ao teto, com seu magnificamente resistente peito elevando-se e caindo com o peso de sua respiração. Olhou-o veladamente sem levantar a vista. Tinha um corpo esplêndido. Nu, possuía um aspecto mais poderoso se pudesse. Por que não dizia nada? O silêncio parecia interminável apesar de ter passado somente uns segundos. «Diga algo.»
—Sinto muito. —O mundo lhe veio abaixo. «Mas não isso.» Seu rosto era frio como a pedra. Nem sequer se dignava olhá-la — Isto jamais devia ter ocorrido.
O arrependimento que se percebia em sua voz era como uma faca que lhe rasgava o peito. Se albergava alguma secreta esperança de ouvir uma declaração de amor, acabava de ficar brutalmente claro que levaria uma decepção. O coração deu um tombo. Era uma estúpida. Tinha apostado com sua inocência e tinha perdido. Tudo que podia provar era que ele a desejava. Mas desejo não significava amor. Pode ser que fosse ela a que desconhecia a diferença. Era um homem que adorava os desafios, que crescia na competição, e agora o desafio chegava a seu fim. Meu Deus, mas o que tinha feito? Que demônios tinha feito ele? A verdade golpeou Erik de cheio no peito: tinha perdido a cabeça, acabava de romper sua promessa e lhe tinha roubado a virgindade.
Jamais teve intenção de chegar tão longe. Comportou-se como um estúpido arrogante ao pensar que podia brincar com fogo sem chegar a queimar-se. O que podia fazer agora? Não podia casar-se com ela. Por Deus bendito, não era mais que uma babá. Como chefe de um clã, tinha a responsabilidade de casar-se com alguém que incrementasse o poder e prestígio deste. Além disso, era muito jovem para atar-se a uma só mulher. Não queria decepcionar a todas aquelas moças. Pouco importava que não tivesse pensado em outra mulher desde que tinha conhecido Ellie. Confiava em que isso mudaria.
Embora a reação de Eduardo Bruce o tivesse feito ir às nuvens, aquilo não era inesperado. Erik sempre tinha gravitado em torno de mulheres formosas e sensuais. Ellie era mais que formosa e gostava, embora fosse talvez muito estirada e mandona, mas não era o tipo de mulher que estava acostumado a gostar. Aquela selvagem atração que sentia por ela não tinha nenhum sentido.
Voltou-se para ela ao precaver-se de que não dizia uma palavra. A expressão do rosto dela o deixou gelado.
«Ah, diabos.» Estava-se comportando como um cretino. Tão concentrado estava em sua própria culpa que não tinha reparado em quão difícil era esse momento para ela.
Por ser um homem que conheciam por dizer sempre o apropriado, suas palavras não poderiam ter sido mais equivocadas no pior momento. Em lugar de desculpar-se, teria que tê-la tomado entre seus braços e tranquilizá-la, dizer quão incrível tinha sido e quão preciosa era, o que sempre fazia. Mas jamais antes se viu tão superado por fazer amor com uma mulher. Nunca o tinham assaltado tantas emoções desconhecidas.
Tentou alcançá-la, mas lhe voltou o rosto e foi pegar sua camisola.
—Não há nada pelo que desculpar-se — disse em um tom impassível — Já sabia em que me colocava. Queria fazê-lo. — passou a camisola sobre a cabeça e conseguiu esboçar um sorriso — Obrigada. Esteve muito bem.
«Bem?», disse-se Erik, surpreso. Não tinha estado bem. Estava claro que para ela tudo isso era novo, mas tinha sido algo de uma espetaculosidade assombrosa.
Ellie lhe ofereceu suas roupas.
—Temos que ir. Seguramente que tem muitas coisas que fazer antes de partir.
Erik não podia acreditar. Não se supunha que tinha que ser ele quem tivesse a urgência de sair correndo?
—Podem esperar — disse tomando-a pelo braço — Temos que falar do que aconteceu aqui. — Passou os dedos entre os cabelos. Jamais antes tinha estado em uma situação como essa e não sabia o que dizer — Te despojei de sua honra.
Ellie se separou dele como se suas palavras queimassem.
—Rogo-lhe isso. Não é preciso que diga nada. Não quero nada de ti. Prazer, isso somente, recorda? O que acaba de acontecer não muda nada. Minha honra era minha e podia oferecê-la a quem quisesse se gostava. Atuei de maneira livre.
Erik não podia acreditar no que ouvia. Estava liberando-o de qualquer carga. Sabia que deveria sentir-se agradecido, mas não estava absolutamente. Sentia-se completamente zangado. Passou a vestimenta sobre seus ombros e colocou os calções. Ao menos deveria ter expectativas de que se casasse com ela. Acaso acreditava que era um homem sem honra alguma? Não era possível que ela pensasse que era do tipo de homem que tomava a inocência de uma moça sem lhe importar nada. Segundo ela mesma dizia, não tinha acreditado em todo esse bate-papo de piratas e sim acreditava em sua nobreza.
E a que se referia com isso de «Bem»? Pode ser que ela tivesse pouca experiência, mas ele não. Jamais havia sentido nada como aquilo em toda sua vida. Tinha sido a perfeição em sua máxima expressão.
A impaciência de Ellie por partir era patente, até o ponto de já ter mergulhado na água. Erik saltou atrás dela e a puxou pelo pulso em um arrebatamento furioso de posse, guiando-a através do túnel de rochas submarinas. Acaso pensava dar-se por vencida sem apresentar resistência? Voltar para sua posição como babá e deixar encerrada toda essa paixão que havia atrás de sua fachada de puritana?
O mundo lhe veio abaixo e a ponto esteve de inalar toda uma baforada de água. E o que ocorreria se não a deixava encerrada? O que aconteceria, se a tinha feito entrar no mundo da paixão só para que ela o compartilhasse com qualquer outro?
Por cima de seu cadáver. Emergiu das águas, ficou em pé e se girou para ela com cara de irritação. Se acreditava que a conversação tinha acabado aí, estava completamente equivocada.
—Ellie, vamos falar disto.
Quando lhe voltou o rosto da mesma maneira em que o fez no birlinn, Erik foi às nuvens.
—Não quero.
Ellie se deteve. Seu olhar captou algo que havia atrás dele. O medo fez que abrisse os olhos completamente.
—Erik, cuidado!
Deu a volta um segundo tarde.
Quatro homens. Ingleses. Uma lança. Jogada contra ele. Sem lhe dar tempo…
Erik se voltou para a esquerda, mas a lança o alcançou no flanco e o mandou às profundidades do negro abismo. O grito de Ellie foi quão último ouviu antes que as águas o tragassem.
Capítulo 18
— Não!
Aquele grito saiu do mais profundo de seu interior, de algum lugar escuro e primário onde se escondia um terror dilacerador inimaginável. Estava tão concentrada em sua própria desgraça e dor que não advertiu aos quatro soldados da praia até o momento em que a lança saiu disparada através do ar para colidir de maneira direta nas costas de Erik. Tudo pareceu passar com uma lentidão extrema, mas mesmo assim estava imobilizada no tempo, incapaz de mover-se para detê-lo. Observar como o homem que amava estava a ponto de morrer sem que ela pudesse fazer nada significou o pior momento de sua vida. Tentou ir atrás dele, mas já era muito tarde. A lança o alcançou e Erik emitiu um rugido enquanto o tragava a água. Ellie mergulhou para resgatá-lo, inclusive acreditou tocar sua mão, mas alguém a tirou da água e imobilizou seus braços atrás das costas. Lutou como uma louca. Fazia dramalhões de pânico sem saber para onde, com uma só coisa em mente: resgatá-lo. O homem que a tinha agarrado grunhiu quando ela o alcançou com a cabeça na mandíbula, uma das poucas partes de seu corpo que não estava protegida pela armadura. Havia alguém gritando, um som de queixa muito agudo que atravessava seus ouvidos. Pôde distinguir uma voz entre o barulho.
—Se tranquilize, milady, está a salvo.
Era ela mesma, seus próprios gritos os que ouvia.
—Me solte! —gritou lutando contra as garras do soldado e olhando para onde Erik tinha desaparecido, lugar no que viu uma horrível mancha de vermelho escuro que se abria passo na água. Sangue. O pânico se aferrou a seu peito, a sua garganta — Tenho que encontrá-lo! Está ferido! —disse entre soluços.
Erik só levava uma vestimenta de linho, algo que o deixava com a pele e os músculos como único amparo contra o golpe agudo da lança. Mas era forte. O homem mais forte que ela conhecia.
—Está morto — disse o homem com frieza — Ou o estará logo. Temos que a levar ao galeão conosco.
—Não! —disse escapando de seu abraço.
A lança. Erik caindo para trás. O que tinha visto não tinha importância. Não estava morto e não pensava deixá-lo ali abandonado. Mergulhou na água apalpando às cegas na escuridão. Mas o soldado voltou a apanhá-la e foi devolvida à superfície resfolegando. O homem a arrastou até a borda entre chutes e gritos. Desta vez não pensava correr riscos, assim que a agarrou firmemente, passando as mãos pelo peito e imobilizando seus braços.
—Busquem — ordenou aos outros três — Deixe de lutar, milady. Tentamos ajudá-la.
Os três homens não pareciam ter muita vontade de molhar-se, mas obedeceram as ordens de seu chefe. A busca se alargou vários minutos de agonia. O soldado falava com Ellie, mas ela não o escutava. As lágrimas sulcavam seu rosto em tanto que rezava para que se produzisse um milagre. Erik podia aguentar a respiração mais que nenhum outro homem que conhecesse. Talvez tivesse tido tempo de voltar para a gruta. O homem que a capturava pareceu chegar a uma conclusão parecida.
—Onde estava, milady? Estávamos olhando à água, mas pareceu sair de um nada.
Ellie pensou com rapidez.
—Nadando ao outro lado das rochas.
Olhou-a como se não acreditasse no que dizia, mas por sorte um dos outros soldados se aproximou e deixou de lhe fazer perguntas.
—Nada, capitão.
Ellie não sabia se estava horrorizada ou aliviada. Em caso de que o encontrassem, não serviria mais que para que tentassem matá-lo de novo.
O homem que a agarrava assentiu.
—Traga Richard e Will…—deteve-se e procurou entre as ondas — Onde está William?
O outro soldado negou com a cabeça.
—Encontrem!
Ellie tinha o coração em um punho. Não podia ser a não ser…
Sua confiança se viu recompensada quando, de repente, emergiu da água e cravou a lança, que antes tinham jogado nele, no peito do soldado ao que chamavam Richard. Ellie voltou a vista por um curto instante. Nesse escasso segundo, Erik tinha conseguido arrebatar a adaga do corpo sem vida do soldado e encarava já ao terceiro deles, que se aproximava dele com a espada em alto. O homem que a capturava amaldiçoou e a soltou no chão. Alcançou o arco que levava às costas e pôs nele uma flecha apontando para Erik, que lutava a um tempo contra as ondas que golpeavam sua cintura e contra a larga espada do soldado, de maior alcance que sua adaga. Não pensou. Ficou em pé e golpeou a mão do soldado assim que este deixou sair a flecha, fazendo que esta se projetasse longe do corpo de seu amado. Quando o soldado que lutava na água voltou a elevar a espada, Erik aproveitou o movimento para equilibrar-se para ele ao tempo que a espada descia. Levantou o braço para bloquear o golpe com força suficiente para que a espada saísse voando e se afundasse pouco depois na água. Como não podia penetrar sua malha com a adaga, passou o braço ao redor do pescoço do soldado e o retorceu, fazendo-o ranger sem piedade. O que estava na areia blasfemou e gritou pedindo ajuda. Estava claro que haveria mais soldados nos arredores.
Erik correu para eles da água, com todo o aspecto de um demônio possuído. O soldado agarrou Ellie de novo e fugiu para o pequeno promontório verde sobre o que estava a cova. Mas a resistência e ter que carregar com ela o fazia perder o passo, e antes que saíssem da praia, Erik já os tinha alcançado.
—Deixe-a partir! —bramou.
Sua voz soava diferente. Mais dura, mais temível, mais contundente do que nunca antes a tinha ouvido. O soldado se deteve e a obrigou a ficar atrás dele. Desembainhou a espada e se voltou para Erik, mas já o tinha em cima. Este o esmurrou na mandíbula com o punho, sem importar a afiada folha que se abatia sobre sua cabeça, e lhe fez perder o equilíbrio. Ellie ouviu o rangido que seguiu ao golpe que Erik infligiu com o dorso da mão no pulso do soldado, justo pela parte contrária à articulação, obrigando-o a soltar a espada. Com um rápido varrido do pé tombou ao soldado no chão e o degolou com sua adaga.
Ellie afastou a vista com rapidez. A guerra, morrer e os banhos de sangue eram de tudo comuns, mas jamais o suficiente para que se acostumasse a isso. Além disso, a técnica de aniquilamento eficiente e fria de Erik era algo fora do comum. Tinha sido a demonstração de poder mais mortífera que jamais tinha visto. Acabou com eles em um abrir e fechar de olhos. Ao vê-lo atuar desse modo, já não punha em dúvida a história de Domnall em que enfrentou a vinte guerreiros. Erik a tirou das rochas e tomou entre seus braços, apertando-a forte contra seu peito. Ellie podia sentir a pressão de sua boca na cabeça. A transformação de assassino desumano em tenro amante não podia ser mais dramática.
—Deus, Ellie. Está bem?
Assentiu com a bochecha apoiada no frio e empapado tecido de sua vestimenta, acalmada pelo estável pulsar de seu coração.
—Estou bem. —tornou-se para trás, preocupada — Mas e você? —disse olhando seu flanco, no que a vestimenta de cor açafrão agora exibia uma extensa mancha vermelha — Está ferido — choramingou tentando cobrir a ferida com suas mãos.
Erik tomou pelo queixo, obrigando-a a olhá-lo aos olhos.
—Não é nada. Um arranhão, nada mais.
Não acreditou no que dizia até que ele mesmo levantou a regata para mostrar a pouca profundidade da fenda que tinha no flanco e o buraco pelo que a lança tinha penetrado pelo tecido fazendo-o cair para trás. Ellie fechou os olhos e pronunciou uma prece em agradecimento. A lança não o tinha trespassado por poucos centímetros.
—Teve sorte — disse. Sua voz quebrou e as lágrimas alagaram seus olhos — Poderiam ter te matado. —Tal e como obviamente era sua intenção.
Erik sorriu e a obsequiou com um tenro beijo nos lábios.
—Ai, amor, precisaria mais de quatro cães ingleses para acabar comigo. Tenho o vento a favor, recorda?
Ellie assentiu. Era certo que a sorte parecia acompanhá-lo. Em qualquer outro momento teria elevado a vista ao ouvir tal fanfarronice, mas se sentia muito agradecida para fazê-lo.
—Temos que sair daqui — disse ele adotando um súbito ar sombrio — Esses soldados não vieram sozinhos. Deve haver um navio nos arredores.
Ellie assinalou com a cabeça ao soldado que jazia no chão.
—Esse estava pedindo ajuda.
—Isso significava que estão perto. Volta para o bote e ponha suas roupas. Deve estar gelada.
Tinha muito medo para precaver-se disso, mas o certo era que tiritava sem poder remediá-lo.
—Aonde você vai?
Sua voz delatava que era presa do pânico e que, depois do que tinha ocorrido, não queria o perder de vista. Erik assinalou para a colina.
—Ver onde estão os outros soldados. —ajoelhou-se para tomar a espada do soldado caído —Depressa.
Fez como tinha pedido e vestiu imediatamente o vestido de lã, as meias e as sapatilhas. Acabava de colocar o manto por cima quando Erik veio em sua busca. Pela expressão feroz de seu rosto e os bruscos movimentos soube que algo ia mau. Os alicerces de seu mundo se cambalearam ao precaver-se de que devia ser algo muito sério para penetrar aquele inquebrável porte.
—O que acontece? Viu seu galeão?
Erik se vestiu e tomou suas armas ao tempo que respondia.
—Sim, está ao outro lado da colina, junto a uns dez ou doze soldados.
—Mas há algo mais que o preocupa.
Acabou de fechar a capa que fixava a espada a suas costas e se voltou para olhá-la aos olhos. Ellie advertiu a fúria que atormentava seus olhos.
—Há quatro galeões controlando a baía e se vê fumaça que vem da praia. —Quando assinalou para o sul, Ellie distinguiu as espirais de fumaça cinzas ante um céu de similares cores — Os ingleses nos encontraram.
Enquanto Erik esperava que os ingleses cessassem em sua busca, o tempo passava em um ritmo agonizante. Mas estes se mostravam implacáveis e estavam pondo toda a ilha para cima. Tinha tido que fazer provisão de todo o autocontrole com o que contava para não sair correndo imediatamente para a praia. Teria gostado, mas não podia fazê-lo. Duas coisas se interpunham em seu caminho: tinha que proteger Ellie, porque vê-la nas mãos do soldado inglês era algo que não esqueceria facilmente, e tinha que pensar na missão. Em caso de que o capturassem, Bruce não conseguiria seus mercenários a tempo. Nem tampouco teria Erik para conduzir a frota até Arran. A missão estava em primeiro lugar. Seus homens estavam adestrados e podiam defender-se por si mesmos. Mas permanecer oculto em uma cova em lugar de unir-se à luta ia contra cada um dos músculos de seu corpo. Horas mais tarde se encontrava a borda da loucura e se sentia como um leão enjaulado em um reduto minúsculo. Como demônios os tinham encontrado?
Consciente que os ingleses voltariam para procurar os soldados desaparecidos, arrastou o bote praia abaixo assegurando-se de deixar rastros visíveis na areia. Queria que os ingleses pensassem que tinham escapado. Não tinham forma de saber que aquele velho bote não duraria nem cinco minutos nas fortes correntes do canal. Remou até transladá-los à maior das ilhotas conhecidas como ilha Sheep, além da ponta norte de Spoon. Embora dali não se visse a praia, podia apreciar quase a totalidade da parte ocidental da ilha e os navios ingleses que vigiavam a baía.
Tinha deixado Ellie em uma cova sob outro desses arcos naturais enquanto ele observava, rondava acima e abaixo e tentava acalmar sua ansiedade à espera que os ingleses cessassem sua busca. Mas cada minuto passava com uma lentidão mortificante. O tempo era seu inimigo. Os MacQuillan o esperavam essa noite, e o curto espaço de tempo que tinham para chegar até Arran e lançar o ataque lhe deixava escassa margem de engano. À medida que passava o dia, aquela viagem a Irlanda de apenas vinte e cinco quilômetros parecia mais longa, dado que não sabia o que encontraria ao voltar para a baía. Era consciente de que não podia fazer outra coisa; o prudente era ficar onde estava, mas não podia evitar que o assaltassem os piores pensamentos.
A tensão prendia todos seus músculos. Ellie se aproximou pelas costas e lhe pôs uma mão no ombro, fazendo que se sobressaltasse.
—Não queria te inquietar — disse olhando através do turvo e chuvoso céu em direção à cova em que quase os tinham descoberto — Partiram já?
Erik assentiu.
—Recentemente.
Apenas momentos depois de que Ellie e ele fugissem no bote, apareceu um galeão ante a cova. Partiu em seguida para voltar algo mais tarde junto a um segundo galeão. Nesta ocasião os ingleses ficaram mais tempo. Finalmente, fazia poucos minutos, um dos navios tinha posto rumo ao sul; e o outro, ao norte de Kintyre. Erik albergava a esperança que isso significasse que os ingleses davam por sentado que tinham fugido da ilha.
—Voltarão? —perguntou Ellie.
—Provavelmente, mas não hoje. Em um par de horas será noite.
—O que passou com o resto dos navios?
—Não sei. Dirigiram-se além da boca da baía e os perdi de vista.
Se a frota voltava para a costa de Ayrshire, onde os ingleses estavam ancorados, navegariam até a parte sul da ilha, o lado oposto de onde se encontravam Ellie e ele nesse momento.
—Quando poderemos voltar?
Erik podia perceber a agonia de seus próprios medos refletidos nos olhos dela.
—Logo.
Tomou entre seus braços e a embalou contra seu peito, consciente de quão difícil seria aquilo para Ellie. Tinha sido um dia turbulento para ambos, em mais de um sentido. Entretanto, ela estava demonstrando uma força e resistência que o faziam sentir-se orgulhoso. Por não falar daquela flecha da que o tinha salvado. Perguntava se teria se dado conta que tinha escolhido a ele na frente dos ingleses aos que pediu ajuda fazia apenas duas semanas. Ellie se pegou a ele e refugiou a cabeça contra seu peito. Erik acariciou seu cabelo e se sentiu em calma pela primeira vez em horas.
—Está faminta.
Ellie negou com a cabeça.
—Nem sequer tinha pensado em comida.
Compreendia-o. Ao igual a ele, estava preocupada com seus homens e a gente do povoado.
—Crê que…?
Não terminou de formular a pergunta, mas ele sabia o que tinha na cabeça. Tomou pelo queixo e a beijou brandamente nos lábios. Sentiu uma pontada no peito.
—Estarão bem — disse tranquilizando-a com mais confiança do que sentia.
Supunha que teriam deixado em paz às pessoas da vila, mas seus homens estavam em busca e captura e se içou a bandeira do dragão. Um arrebatamento de fúria surgiu em seu interior mas o manteve a raia, já que sabia que nada podia fazer no momento.
—Sinto-o — disse Ellie elevando a cabeça para olhá-lo. Erik advertiu como as lágrimas brilhavam no interior de seus grandes olhos de cor castanha — Sei que teria ido em sua ajuda de não fosse por mim.
—Não — disse com rudeza — Não o teria feito. — Não queria que se culpasse por isso. De fato, talvez tivesse salvado a missão ao escapulir com ela. Poderia encontrar-se perfeitamente nas mesmas circunstâncias que seus homens — Não podia me arriscar a isso. Há algo importante que devo fazer.
—Para Robert? —Ao dizer isto, Erik a olhou de um modo estranho e Ellie se ruborizou — Assim é como se referem a ele na família.
Não disse nada. Embora soubesse que podia confiar nela, tinha ordens de manter a missão em segredo. Não obstante, ela tinha atado já quase todos os cabos.
—Os soldados irlandeses — disse com uma voz que se foi apagando — Tem que levá-los até ele. Quando?
—Esta noite
Seus olhos se encheram de temor. Exatamente igual aos sentimentos de Erik.
—O que acontecerá se não chega a tempo?
—Essa não é uma opção.
Ele sentiu todo o peso de seu olhar.
—Compreendo.
Era consciente que Ellie advertia o que significava aquilo: o ataque era iminente.
—Não é preciso que te diga o que está em jogo.
Ellie negou com a cabeça e ficou em um silêncio contemplativo.
Erik esperou tanto como se atrevia a fazê-lo. Só ficava uma hora mais de sol quando ajudou Ellie a subir no bote e remou de volta à baía, mantendo-se pego à borda e observando com precaução antes de rodear qualquer curva sem visibilidade. O bote margeou o istmo5 para entrar na baía imerso em uma calma absoluta. As fogueiras que tinham ascendido na praia ainda fumegavam, e o mortífero aroma do fogo tingia o penetrante ar do mar. A própria baía estava deserta e não se via um só navio de pesca. Amaldiçoou sua sorte ao precaver-se de qual era a causa daqueles fogos. Sua situação piorava por momentos. Os ingleses não pensavam lhe dar nenhuma oportunidade. Em caso de que tivesse permanecido na ilha, assegurar-se-iam de que seguisse sendo assim mediante a queima de qualquer meio de transporte para sair dela. Embora tudo apontasse a que seus homens tinham sido capturados, quase esperou ver sair Domnall da cova. Por todos os diabos, inclusive teria agradecido receber as queixa de Randolph.
Mas ninguém saiu a seu encontro. A névoa espessava o ar estagnado em uma nuvem carregada de chuva que fazia de pálio de uma tranquilidade inquietante. Deixou o bote na borda e ordenou a Ellie que permanecesse nele. Ela não protestou; o qual indicava que sabia a razão. Em sua ascensão pela borda, passou junto aos restos calcinados de vários barcos de pesca. Pelo número de pegadas que se viam na areia parecia que os ingleses tinham desembarcado em grande número na praia. Seus homens teriam recebido aviso, mas ante tantos soldados a batalha não podia ter durado muito. Suspeitava que teriam permanecido ocultos na cova, esperando para atacar quando fosse necessário. Suas suspeitas se viram confirmadas quando tropeçou com o primeiro dos corpos à entrada da caverna. Aos poucos metros encontrou um par deles mais. A morte não era algo novo para ele, mas a dor de perder um homem jamais diminuía. Aplacou sua fúria como pôde e se deu forças para o pior, esperando encontrar um açougue. Mas surpreendentemente não achou mais corpos entre as pertences dispersadas de seus homens. Que demônios teria passado com eles?
Voltou para a praia, compreendendo em toda sua amplitude a gravidade da situação. Por mais que o preocupassem seus homens, sua maior inquietação devia ser o cumprimento da missão. Ellie o olhava fixamente à medida que se aproximava. Erik leu a pergunta em seus olhos e lhe disse o que tinha encontrado.
—E o que tem os outros? —perguntou.
—Não sei — disse negando a sua vez com a cabeça.
—E Meg?
—Vou lá agora.
—Vou contigo.
—Não é uma boa ideia.
Ninguém podia saber o que poderiam encontrar.
Ellie se ergueu e adotou a expressão de babá teimosa que a caracterizava.
—Não necessito seu amparo. — Sem dúvida, precaveu-se do ridículo que soava aquilo à luz dos últimos acontecimentos, de modo que quis arrumá-lo — Para isto. —Olhou-o com cara de tristeza — Por favor, Meg também é amiga minha.
Erik lhe sustentou o olhar e assentiu. Quando chegaram, não havia luz alguma na casa e não lhe surpreendeu encontrá-la vazia. Esperava que se retiraram ao interior da ilha com a chegada dos ingleses, de modo que sugeriu continuar até a seguinte moradia. Meg deve ter visto como se aproximavam porque saiu correndo para recebê-los. Ellie a abraçou com lágrimas nos olhos, um alívio que também Erik compartilhava.
—Graças ao céu — disse Meg — Pensei que também lhes teriam encontrado.
—O que passou?
Meg lhes contou que os navios tinham chegado pouco depois que ambos partiram. Jurava que haveria uma dúzia deles ao menos e que rodearam a ilha.
—É como se soubessem que estavam aqui — disse.
A mesma conclusão a que ele tinha chegado.
Como suspeitava Erik, tinham recebido aviso de sua chegada, mas sem tempo suficiente para escapar. Os ingleses tinham desembarcado em grande número. Meg observou do escarpado como revistavam a cova e depois tiravam os homens dela.
Erik estranhou. Não era normal que seus homens se rendessem. Os highlanders lutam até a morte. Meg adivinhou seus pensamentos e disse: —Vi Thomas falando com o chefe dos ingleses.
Randolph rendendo-se, isso sim tinha sentido. Meg continuou explicando como os ingleses tinham reunido a toda a gente do povoado para interrogá-los e revistar cada uma de suas casas.
—Encontram-se bem? —perguntou Erik.
Meg assentiu.
—Não fizeram mal a nenhum de nós. — Parecia um pouco surpreendida disso — O oficial dos ingleses não era tão mau como a maioria deles.
Aquilo era um alívio mas nem por isso deixava de o assombrar. Não era normal que os ingleses mostrassem tal contenção, especialmente por aqueles que davam proteção aos fugitivos.
—Meu birlinn? —perguntou.
—O levaram.
Erik fez uma careta de desagrado. Preferiria que o queimassem antes de vê-lo capitaneado por um inglês.
—Preciso encontrar um navio imediatamente.
Meg negou com a cabeça.
—Não deixaram nada. Nem um bote de pesca. Queimaram todos.
Explicou-lhes que os pescadores da ilha se reuniram na igreja do povo, consternados pela crueldade dos soldados ingleses que tinham destruído seu meio de vida. Erik prometeu que se asseguraria de que todos esses botes fossem repostos. Mas primeiro tinha que averiguar como sair dali.
—Eles estavam procurando — disse Meg. E acrescentou depois de uma pausa —: A moça.
Erik amaldiçoou. Olhou a Ellie, que tinha ficado pálida.
—A mim? —disse com os olhos abertos.
—Não pelo nome — a animou Meg — Só comentaram que Falcão estava com uma moça.
A Erik veio o mundo em cima quando se precaveu do que aquilo implicava.
—Como se inteiraram?
Meg negou com a cabeça.
—Alguém do povoado deve ter contado.
Erik tentou aplacar sua ira. Se os ingleses sabiam de Ellie, era possível que a usassem como arma contra ele. Assombrou-lhe descobrir quão efetiva poderia resultar essa arma. Só em pensar que lhe fizessem mal conseguia que lhe gelasse o sangue.
—Não acredito que se deram por vencidos em sua busca — disse Meg — Voltarão.
—Para então espero estar muito longe. — Sua melhor opção, a única no momento, era o velho bote. Para fazer que fosse digno do mar, teria que improvisar. Mas não contava com muito tempo. Quase tinha escurecido — Necessitarei sua ajuda — comunicou a Meg.
Meg sorriu com gosto.
—Simplesmente me diga o que devo fazer.
Explicou-lhe o que necessitava, e Meg voltou para sua parcela para reunir ajuda e mantimentos.
—O que posso fazer eu? —perguntou Ellie.
Quando se voltou para ela, advertiu que o olhava com uma determinação especial no rosto. O que tinha vontade de fazer era encerrá-la em algum lugar que fosse seguro, preferivelmente uma torre alta e impenetrável, até que tudo aquilo acabasse. Mas tinha a sensação que inclusive no caso de que isso fosse possível, ela se mostraria desconforme. Exibia essa cara de «tenho intenção de te ajudar e será melhor que não tente me deter».
—Ah, suponho que não terá visto por aqui nenhuma torre alta e infranqueável, verdade?
Ellie elevou a vista ao céu.
—Não te liberará de mim tão facilmente.
Não lhe cabia a menor duvida. Era isso o que gostava dela. Não a podia dirigir facilmente. Como o tinha expresso Domnall? Não engolia suas tolices.
—Pode ajudar Meg quando voltar. Sabe acender um fogo?
Assentiu.
—Isso acredito.
—Bem. — Suas roupas molhadas não lhe preocupavam, mas queria que ela estivesse quente e seca — Olhe se pode encontrar um pouco de comida.
A expressão de seus lábios se esticou como se soubesse o que ele tramava.
—Não tenho fome.
—Eu sim — disse ele — E terei mais à medida que vá passando a noite. Far-me-á um fraco favor se estiver fraco por não ter comido.
Tinham uma longa noite pela frente.
Levou-a de novo até a casa de Meg e lhe disse que voltaria.
—Aonde vai?
—Comprovar se há algo na cova que possa nos ser útil. E depois tenho um navio que construir.
Olhou-o como se estivesse louco.
—Não tentará passar pelo cerco da frota inglesa nesse montão de lascas desmantelado…
Sorriu.
—Tentar? —deu-lhe um beijo na boca antes que pudesse responder — Não demorarei muito.
Empreendeu o caminho mas ela o deteve.
—Não pensará partir sem…?
«Mim.» Erik sabia que era isso o que queria perguntar. Mas além de conseguir mantê-la quente e alimentada, não tinha pensado ainda no que faria com ela. Tinha prometido devolvê-la a casa, mas já não tinha tempo de fazê-lo. Não podia abandoná-la ali já que os ingleses podiam retornar. Sabia muito. Confiava nela, mas não nos métodos de persuasão dos ingleses. Dando por certo que pudesse arrumar o bote para que cruzasse o canal com garantias, Ellie estaria mais a salvo junto a ele, sempre que os ingleses não os apanhassem. Mas não tinha nenhuma intenção de permitir que aquilo acontecesse. Odiava-se por havê-la metido nessa confusão, mas não havia maneira de escapar daquela situação e não podia fazer nada para remediá-lo.
—Voltarei. Se prepare para partir.
Era a primeira vez que a via sorrir desde essa manhã e se precaveu do muito que lhe pesava sua desdita. Tão somente esperava com todas suas forças que estivesse fazendo o correto.
Ellie jamais tinha visto nada parecido. Em apenas umas horas, trabalhando com um único objetivo e muita determinação, Erik tinha equipado aquele pequeno bote para a navegação, fazendo um mastro com ramos de árvores, um leme com várias tábuas, e a vela com roupa de cama. A tocha que tinha massacrado na batalha a mais homens dos que queria imaginar se converteu em um instrumento de delicada precisão nas mãos de um habilidoso armador. Admirava seu trabalho de artesão, de pé sobre a areia da praia, quente e bem alimentada, agasalhada com várias mantas e uma grossa capa de pele, esperando que se fizessem os últimos preparativos para a viagem. Embora não fosse absolutamente tão robusto como o birlinn do Falcão, o aspecto do bote resultava muito mais impressionante que a última vez que o tinha visto. Tinha reparado algumas das madeiras curvadas lhe dando a volta para que se ajustassem melhor e encaixassem com mais força. Trocou uma ou duas delas, mas não quis ir mais além porque a madeira não estava curada. Tinha pintado o casco com um material negro pegajoso que, conforme dizia Erik, ajudava a impermeabilizá-lo. O mastro era de aparência rústica, mas também parecia funcional, igual ao leme colocado na parte traseira. A vela a fez com um par de lençóis que Meg e ela tinham costurado e que depois um velho pescador melou com algum tipo de graxa de animal de aroma rançoso.
Assim que Erik terminou de armazenar as provisões, mantas de sobra, comida, água e cerveja que Meg lhes tinha dado em uma pequena arca presa ao casco para que Ellie se sentasse sobre ele, ficou de pé junto à jovem.
—Seu navio lhe aguarda, milady — disse com uma reverência galante.
Ela negou com a cabeça e lhe dirigiu um olhar irônico.
—Há algo que não possa fazer?
Ele sorriu.
—Não me ocorre nada, mas se o há, estou seguro de que será a primeira em me recordar isso.
—Conte com isso — repôs entre risadas.
Depois de tudo o que tinham passado durante o dia, Ellie se precaveu de que essa sua habilidade para estar de bom humor tinha, sem dúvida, seus benefícios. Era fácil compreender por que seus homens o admiravam tanto. Na escuridão da batalha, os guerreiros necessitavam alguma forma de relaxar as tensões. E Erik elevava a moral das tropas de maneira natural. E mais, sua força inquebrável ante o perigo e a calamidade deviam outorgar inspiração e confiança aos homens que liderava. Devia ser o indivíduo perfeito para ter ao redor quando as coisas saíam mau, algo inevitável na guerra.
O que em qualquer caso não esperava era que contasse com tanta tenacidade e determinação. Tinha um trabalho que fazer e nada se interporia em seu caminho. Suspeitava que faria toda a rota a nado se fosse necessário. Estava claro que quando algo lhe importava, tomava muito a sério. Se esse «algo» pudesse ser ela…
Depois de dar um novo olhar ao bote desmantelado convertido em um barco digno de navegação, Ellie sacudiu a cabeça e disse: —Por que tenho a impressão de que jamais se rende?
—Não o levo no sangue. Sou um highlander. Bas roimh geill.
“Morrer antes que render-se”, traduziu Ellie. Um calafrio que nada tinha a ver com a pesada geada gelada que formava redemoinhos a seu redor percorreu seu corpo. Erik não se precaveu dessa reação e sorriu como se algo o divertisse.
—O que acontece?
—Estava pensando em uma aranha com a que cruzei recentemente.
Ellie fez uma careta.
—Divertem-lhe as aranhas? Me recorde que lhe presente algum dia a meu irmão Edmond. Não há nada que goste mais que colocá-las na cama da minha irmã pequena.
Ele sorriu.
—Não é que me divirtam. Simplesmente é irônico. Essa aranhazinha inspirou um rei.
Relatou-lhe a história de Bruce na cova com a aranha, como, quando o rei estava em seu momento de mais desesperança e desengano, quando estava preparado para dar-se por vencido, a perseverança da aranha e seu posterior êxito na construção da teia tinha atuado como um augúrio poderoso. Um augúrio que tinha renovado as forças do rasgado rei para a longa luta que se morava.
—É um conto estupendo — disse Ellie — Se Bruce o conseguir, suspeito que será usado por gerações inteiras de babás para inspirar a quem esteja a seu cargo. —Mas dada a fonte da que provinha o olhou com receio — Quanto há nela de certo?
Os olhos de Erik brilharam na escuridão.
—Acaso pensa que poderia inventar algo assim? —colocou a mão no coração com certo dramatismo — Me feriu.
Ellie o obsequiou com um olhar severo que ele decidiu ignorar, preferindo entrelaçar seu braço com o dela e acompanhá-la até o bote. Os aldeãos se reuniram na praia para se despedir e a Ellie surpreendeu ver-se envolta entre os muitos abraços das mulheres e palmadas nas costas dos homens. Mas foi quando chegou o turno de Meg que lhe fez um nó na garganta.
Esta abraçou primeiro Erik.
—Tome cuidado com a moça e com você — disse tentando ocultar uma lágrima enxuta — Pediria que não fizesse nada imprudente, mas sei que seria esbanjar saliva. Mas prometeu devolver esses lençóis antes do verão, assim espero que cumpra sua promessa.
Erik riu e lhe deu um beijo cheio de afeto na bochecha.
—Terá seus lençóis novos, amor.
—Espero que sim — disse Meg impostando severidade — E traga a moça com você quando retornar.
Antes que Erik pudesse responder, Meg se voltou para ela e a rodeou com seu quente abraço.
—Cuide dele — sussurrou.
Ellie a apertou um pouco mais forte, sem querer deixá-la partir. Por um momento sentiu como se voltasse a dizer adeus a sua mãe. Notou que lhe oprimia o peito e uma queimação nos olhos.
—Obrigada — disse Ellie entre soluços — Não sei como poderei pagar por sua amabilidade.
Meg se separou dela e lhe deu um beliscão na bochecha. Seus olhos compartilharam um olhar alagado em lágrimas de compreensão.
—Seja feliz — disse Meg.
Ellie assentiu sem ânimo para responder. Tentá-lo-ia. Mas depois do que acabava de acontecer nesse mesmo dia não sabia se aquilo seria possível. Apesar do que pudesse desprender-se do ocorrido após a cova, Erik mantinha o silêncio a respeito do acontecido. Tinha-lhe devotado seu coração, seu corpo; jamais tinha experimentado nada tão belo. Ao menos para ela. Ele tinha se arrependido disso ao momento. E então?
Antes que se desse conta já estava no barco, navegando para o mar aberto e observando como a pequena multidão da borda se esfumava entre a escuridão e a bruma. Sentiu uma pontada de tristeza ao precaver-se de que o feliz arrulho da ilha tocava a seu fim. Ficava no ar a questão de se tudo tinha sido uma fantasia ou se aquilo que se forjou entre eles na pequena idílica ilha poderia crescer e prosperar no mundo real, um mundo em que a guerra era iminente.
Se aconchegou o quanto pôde no casaco e nas mantas que levava sobre os ombros. Tinha deixado de garoar, mas aquela gelada bruma impregnava do mesmo modo. Infelizmente, não havia muita brisa, embora Erik se engenhava para manter a vela cheia à medida que o bote saía da baía. Quando entraram em mar aberto, a temperatura baixou de repente e a bruma se intensificou até fazer-se quase impenetrável. Não podia ver um metro à frente do bote. A vela começou a ondear, já que a leve brisa anterior parecia haver-se evaporado, e Erik se viu obrigado a agarrar os remos.
—Quanto tomará cruzar o canal até a Irlanda?
Ele se encolheu de ombros.
—Depende. Umas horas, talvez algo mais.
Isto a surpreendeu.
—Sem vento?
—Já se levantará — disse com confiança atravessando a água com os remos em perfeita harmonia.
Erik estava sentado no lado oposto, o que lhe dava uma visão perfeita de seus impressionantes braços e ombros cada vez que dava uma pazada. Ao fim e ao cabo não era tão mau que não fizesse vento.
—Como pode estar tão seguro? —Erik arqueou uma sobrancelha e ela pôs cara de chateio — Ah, claro, tem o vento a favor.
Ele sorriu.
—Ao final vai entendendo.
Já que aquilo mal merecia uma resposta, Ellie se recostou tranquilamente para admirar a vista, que inclusive tinha melhorado, já que tinha se despojado do casaco. Apesar da bruma fria e espectral, o arrulho das ondas e o impulso suave dos remos tinham um efeito surpreendentemente relaxante. Sentiu como lhe fechavam as pálpebras à medida que o longo dia e os inquietantes acontecimentos faziam racho em seu corpo. Deve ter ficado adormecida, porque o seguinte que se encontrou foi a chuva golpeando suas bochechas e o forte rugido dos trovões, que a fizeram sair do sonho para levá-la a um pesadelo.
Capítulo 19
Ao princípio ao Erik não preocupou que o ar não se movesse. A falta de vento tinha suas vantagens: se os ingleses permaneciam à espera de seus movimentos, não poderiam ver a vela. Inclusive ele se veria em sérios apuros para adiantar uma frota de galeões ingleses com um bote de três metros. Sorriu ao pensar que, ao não ser por sua missão, estaria disposto a comprová-lo. Por impossível que fosse, ainda estava por chegar o desafio que não o atraíra. Era mais provável que os ingleses estivessem escondidos em algum dos castelos escoceses roubados, a salvo e em suas camas quentes, e não esperando em um galeão com aquela névoa fria e espectral que aparecesse um rebelde solitário, embora se tratasse de um que os tinha ferido em seu orgulho em repetidas ocasiões. Remou através daquela turva escuridão, usando como referência a costa de Spoon até que foi possível. Uma vez que entraram no canal do Norte, tudo o que ficou entre eles e Irlanda era a escuridão marinha mais absoluta. Sem as estrelas e a terra para guiá-los, viu-se obrigado a manter o rumo valendo-se de seu instinto e dos anos de experiência calibrando as correntes e o vento.
Quando zarparam, fazia umas quatro horas que tinha caído o sol, pouco depois das nove da noite, o que significava que passariam perto de dez horas de pétrea escuridão até que pudesse chegar a Irlanda e conduzir os homens por esses escassos cinco quilômetros que os separavam de Rathlin. Tempo mais que suficiente, inclusive no caso de que tivesse que fazer a remo todo o percurso. Mas o vento se levantaria. Estavam nas ilhas Ocidentais. O frio, a névoa e o vento se davam por descontado. Passou as duas primeiras horas da viagem desfrutando do relaxante subir e descer dos remos na água, observando o tranquilo dormitar de Ellie. Era uma moça tão séria e a falta de humor que a via ridiculamente adorável quando dormia. Gostava do modo em que suas largas e escuras pestanas batiam contra suas pálidas bochechas, como fechava os punhos junto a seu rosto e a maneira em que seus lábios se entreabriam docemente ao respirar. Adorava suas mudanças de expressão. Aqueles pequenos franzidos que se tornavam sorrisos calorosos e que lhe faziam perguntar-se o que estaria sonhando. Mas o que mais lhe surpreendia era a vontade que tinha de apertá-la contra seu peito e ficar adormecido rodeando-a com seus braços. Então o afligiu a vergonha. Com tudo o que tinha acontecido, não teve tempo para retificar sua ignóbil reação depois que fizessem amor. Pensar em quão magnífico tinha sido seu comportamento durante as horas prévias fazia que se sentisse pior inclusive. Seu apoio tinha sido incondicional. Sem fazer perguntas nem reclamar nada, sem romper a chorar de maneira histérica, ajudando quando era preciso. Como esposa não poderia encontrar a ninguém melhor. «Como esposa.»
Deteve-se em seus pensamentos para permitir que a ideia tomasse forma e se surpreendeu ao não horrorizar-se, nem sentir desejos de saltar pela amurada. «Por que não?», pensou com um sorriso. Ellie seria uma esposa excelente. Gostava, inclusive significava algo para ele. O fazia rir. Desafiava-o como nenhuma outra mulher o tinha feito antes e de uma maneira que resultava estranhamente revigorante. Com ela podia relaxar.
E o que era mais importante, se casava com ela, tê-la-ia na cama sempre que quisesse. E suspeitava que ia querer tê-la um montão de vezes. Seu corpo se esquentou com as lembranças. Lhe fazer amor tinha sido tão intenso, tão incrível, tão próximo à perfeição que doía.
Ao final seu desejo por ela se desvaneceria. Tinha que ser assim, não era isso certo? Mas saberia ser discreto e procuraria não ferir seus sentimentos quando tomasse uma amante, como era o costume. Embora nesse preciso momento a ideia de outra mulher não parecia nada sugestivo. Nem sequer um pouco. Inclusive resultava um tanto preocupante.
Havia outra consideração que não podia tirar da cabeça. Se a deixava partir, poderia estar tentada de procurar a paixão em algum outro. Mas toda essa paixão escondida durante tanto tempo seria perigosa nas mãos equivocadas. Havia muitos homens que poderiam aproveitar-se dela. Obviamente, necessitava que alguém a protegesse. Supôs que teria que ser ele. Quanto mais o pensava, mais gostava. Domnall tinha razão. A sua mãe e a suas irmãs não importaria que se tratasse de uma babá, e quanto a qualquer outro… Diabos, importava-lhe um nada o que pensassem outros. Sempre tinha sido assim. Poderia lhe dar riquezas, uma posição, um lar. Filhos próprios aos que mandar. Seu olhar passeou por sua adormecida silhueta e se deteve em seu ventre. Quase podia imaginá-la saindo às portas de algum de seus castelos para lhe dar a bem-vinda depois de uma longa viagem, com os olhos brilhando de felicidade por vê-lo e sua barriga torcida com um filho. Pensar em seu filho arredondando aquele corpo fez que seu peito se enchesse com uma feroz emoção desconhecida até então. Queria ter essa conexão com ela. Desejava-a com uma intensidade tão visceral que não saía de seu assombro. Sorriu, congraçando-se mais e mais com aquela ideia. Qual seria sua surpresa quando descobrisse que seu pirata era um bisneto de Somerled e chefe de um dos clãs mais antigos das terras? Provavelmente se sentiria afligida, agradecida inclusive. Seu peito albergou uma onda satisfação. Sim, estaria bem que se sentisse agradecida. Seria insólito, pelo que se referia a Ellie.
Erik remou com forças renovadas através das crescentes correntes e ascendentes ondas. Estava ansioso para que despertasse para lhe comunicar sua decisão. Não podia esperar para ver o rosto que poria. Ao princípio ficaria aniquilada, sobre tudo quando compreendesse a honra que lhe estava rendendo, e depois sem dúvida emocionada, aliviada, transbordante de alegria. Talvez inclusive derramasse um par de lágrimas.
De repente uma gota de água caiu sobre seu rosto. Assombrou-se que seus pensamentos se materializassem de tal forma, até que advertiu que não se tratava de uma lágrimas sim de chuva. Normalmente Erik estava a par de qualquer pequena mudança no clima, já que, como marinheiro, sua vida e as de seus homens dependiam disso, mas a chuva tinha aparecido sem prévio aviso. Aquela pesada névoa tinha oculto os sinais, mas de repente o instável tempo das Innse Gall mudou como o mercúrio. «Se você não gostar do tempo, espera cinco minutos e verá.» O dito das ilhas Ocidentais fazia honra à verdade. Ao princípio não lhe preocupou. O vento começou a levantar-se, assim pôde dar descanso aos remos para içar sua improvisada vela. A barquinha pegou uma forte rajada e cobriram tanta distância como tinha remado na metade do tempo. Mas o leve vento e a chuva não eram mais que um presságio do que estava por chegar. Tinha suficiente experiência com tempestades repentinas para reconhecer os sinais. A chuva se fez mais intensa. O vento trocou e começou a rugir em curtas e violentas rajadas. O mar começou a picar-se. As ondas eram mais altas e abruptas. As correntes faziam redemoinhos e criavam ressaca. Erik cada vez passava mais apuros para controlar a posição do bote. Não havia muitos lugares piores que o canal do Norte para uma tormenta de inverno, e muito menos navegando com um pequeno barco que não tinha sido concebido para confrontar tais provocações.
O vento se fez mais denso e começou a rugir de impaciência. Podia perceber como se formava a energia da tormenta e sabia que não havia nada que pudesse fazer para detê-la. Segundo seus cálculos, aproximava-se a meia-noite e estavam virtualmente a meio caminho, mas a costa norte da Irlanda ficava ainda a mais de dez quilômetros de distância. A melhor opção era tentar chegar até a borda e ganhar a corrida da tormenta antes que alcançasse sua força máxima. Mas sabia que suporia uma dura batalha. Não só chegar a tempo a Irlanda, inclusive salvar suas próprias vidas o seria. Teria que dar tudo se queria evitar que as ondas e a chuva não alagassem o bote ou os fizessem naufragar. Se queria um desafio, tudo apontava a que o teria. Mas não era desta maneira como queria. Não com Ellie. Uma estranha sensação passou através de seu peito. Demorou um momento em reconhecê-la: medo. Precaver-se disso o deixou petrificado. Tinha estado em situações muito piores e jamais tinha sentido temor.
Era por causa de Ellie. Seus temores provinham dela. Somente pensar que poderia estar em perigo o paralisava, o fazia sentir virtualmente… vulnerável. E disso ele não gostava absolutamente. Céu santo! Mas o que tinha feito? Supunha-se que tinha que protegê-la, não pô-la em perigo. Não obstante, as recriminações teriam que esperar. Agora mesmo somente podia pensar em uma coisa: tirá-los dali com vida. O rugido ensurdecedor do trovão despertou Ellie de repente.
—O que acontece? —disse meio dormida.
—Uma rajada de mau tempo, isso é tudo — assegurou.
Nada em sua voz nem expressão oferecia mostra do perigo, mas pouco podia fazer por ocultar as violentas sacudidas das ondas sobre o bote, os uivos do vento, a intensa chuva ou os trovões. O tempo era mau nesse momento, mas não pensava dizer que suspeitava que pioraria durante a noite. Erik percebeu a preocupação em seus olhos.
—Há algo que possa fazer? —perguntou Ellie.
Um sintoma de quão assustada estava era que não discutisse com ele e decidisse lhe seguir o jogo. Assinalou-lhe um balde preso à proa.
—Tenta manter tanta água fora do casco como é possível e te agarre forte. Podemos ter um ou outro salto.
Aquilo se revelou como uma subestimação prodigiosa. Quanto mais rápido navegava, maior perigo revestia a situação. Revisava e ajustava a velocidade continuamente em sua tentativa por evitar as armadilha das ondas. Lutava por dominar o vento cambiante com uma mão, tentando manter a posição da proa para as ondas, enquanto dirigia o leme com a outra. Sabia que devia tentar navegar a vela quanto pudesse. Aquilo lhe dava mais possibilidades de manter a proa na direção adequada. Somente ficava esperar que o bote e seu mastro instalado apressadamente fossem o suficiente fortes para aguentar a crescente força da tormenta. Entretanto, o barquinho demonstrou uma resistência surpreendente e seu casco plano os ajudou a manter a estabilidade à medida que o vento os transportava por aquelas torrenciais ondas. No transcurso dos seguintes quilômetros percorridos, seu improvisado mastro aguentou e navegaram para zona tranquila. Ao menos isso esperava, já que tinha perdido virtualmente toda habilidade para calcular a direção. Movia-se por puro instinto.
Embora o primitivo era a luta pela sobrevivência, sua missão permanecia em alguma parte de sua cabeça. Tinham que sair desta. Havia muito em jogo. Chegar a tempo para o ataque era crucial. Não podia esbanjar todos esses meses de preparação. Um fracasso em uma das pontas de ataque deixaria à outra vulnerável e perderiam o elemento surpresa. Erik era consciente de que, cada dia que passava, o brilho de esperança para a causa de Bruce se fazia mais opaco.
Cada centímetro de seu corpo ardia pelo esforço de mantê-los a flutuação e ocultar a Ellie que estavam apenas a uma solitária onda do desastre e da morte.
Olhou seu pálido rosto coberto de chuva e sentiu uma pontada no peito. Sabia o assustada que estava, apesar de fazer o impossível por ocultá-lo. Jamais tinha admirado tanto sua beleza como nesse momento. Nunca esqueceria o aspecto que tinha então, como uma minúscula pipoca empapada com o cabelo pego à cara, imersa até os ossos, tentando manter o tipo entre aqueles ventos impetuosos ao tempo que esgotava a água e observava cada um de seus movimentos com aqueles atentos olhinhos negros. Mas também com algo mais: uma confiança e admiração que lhe fazia sentir-se humilde. Sorriu apesar de o que experimentava nada tinha de divertido.
—Esta sim que é uma pequena tormenta das boas, eh, tè bheag? —gritou sobre o bramido do vento e da chuva.
Olhou-o como se fosse um lunático.
—E então a que chama você uma grande tormenta?
Erik riu apesar das circunstâncias.
—Isto não é nada. Não te comentei aquela vez que…?
—Erik! —cortou ela com um grito de exasperação ao tempo que uma forte rajada de vento golpeava o casco da pequena nave. Ellie se agarrou à amurada até que seus dedos ficaram brancos. Erik tinha prendido uma corda que agarrava aos dois, mas ela era tão magra que temia que a levasse o vento — Te importaria me contar essa história mais tarde, quando esta pequena tormenta tenha acabado?
Ele se encolheu de ombros como se não lhe importasse nada.
—Como quiser, mas é uma boa história.
—E provavelmente melhore com cada vez que a conte.
Ele negou com a cabeça. Que mulher! Inclusive no meio do inferno era capaz de mostrar-se sarcástica. Apesar disso, lhe tiritavam os dentes, e quando ao resplendor de outro relâmpago o seguiu imediatamente o estalo de um trovão, a viu tão aterrorizada que teve que controlar-se para não correr e consolá-la. Daria tudo para protegê-la. Mas o que passaria se tudo não era suficiente? Aquela suspeita de dúvida o enfureceu. Será suficiente, por todos os diabos. Não era possível que a sorte o tivesse abandonado por completo. Mas quando Erik ouviu o sonoro rangido e viu o mastro escorar-se para um lado, se perguntou se aquilo não seria certo.
Pelo rangido, Ellie soube no momento que algo ia muito mal.
—Cuidado! —gritou Erik ao tempo que a alcançava e a jogava no chão justo quando o mastro, a vela e os equipamentos do barco passavam sobre sua cabeça.
Ellie ficou observando, emudecida pelo terror, como a vela se agitava sobre as ondas por uns instantes, antes que o peso do mastro e dos equipamentos do barco a arrastassem consigo e a fizessem desaparecer no tumultuoso mar. «Estamos condenados.» Sem a vela, ficavam virtualmente a mercê daquele tumultuoso mar. Erik a tomou em seus braços, apertou-a forte contra si e acariciou sua cabeça de cabelos completamente empapados. Podia notar seu pulso acelerado inclusive sob as capas de lã, peles e couro. Ela o olhou através da cortina de chuva que caía sobre suas pestanas, surpreendida de não reconhecer um só traço de medo em seu rosto. Permanecia impassível, inclusive na mais aterradora das circunstâncias. Parecia mais preocupado pelo fato de que ela tivesse estado a ponto de golpear a cabeça com o mastro que porque estivessem completamente a mercê da tormenta. Ellie elevou a vista para olhá-lo.
—Vamos morrer?
Seus olhos se encontraram com os dele e clamavam por uma resposta sincera. Erik tomou pelos ombros com todo o corpo jorrando de chuva e a sacudiu para enfatizar suas palavras.
—Não vamos morrer.
Como se quisesse desafiar suas palavras, uma enorme onda propulsou o parquinho às alturas e jogou com eles até quase fazê-los voar para depois voltar a soltá-los de um golpe na água. Erik tomou os remos e os usou para manter o rumo da proa para as ondas, mas era evidente que aquelas placas de madeira não podiam opor-se à corrente.
—Não necessito uma vela para conseguir chegar a Irlanda — fanfarroneou sobre o rugido da tormenta — Não pensa que estou disposto a me render, verdade?
Ellie negou com a cabeça. Jamais se renderia. Era o melhor marinheiro que jamais tinha visto. Se alguém podia consegui-lo, era ele. Olhou-a aos olhos.
—Necessito que esteja comigo, Ellie. Será capaz de confrontar isto?
Ela afugentou a onda de pânico que a imbuía e assentiu. Não pensava vir-se abaixo. Tinha que ser forte.
—O que pensa fazer? Não pode remar em meio disto.
—Não vou necessitar. —Sorriu e, apesar das dilaceradoras circunstâncias, resultou algo reconfortante — Mas dado que perdemos a vela, temo que terei que pedir sua camisola. —Riu ante a cara de estupor dela — Preciso fazer força com algo para que o barco perca velocidade. Também ajudará que a proa siga o curso das ondas.
Com a tormenta formando redemoinhos a seu redor, Ellie não podia perder mais tempo fazendo mais perguntas. Custou-lhe, mas ele a ajudou a passar entre as capas de tecido molhado até chegar à camisola. Erik se sobressaltou quando suas mãos nuas contataram com a pele, mas se engenhou para romper o pano de linho de um modo limpo e rápido pela cintura. Fez um nó com um extremo do tecido e depois fez um par de buracos junto à prega ao outro extremo, ao qual atou dois cabos. Atou a corda à proa e, finalmente, jogou a camisola ao oceano.
A escuridão não deixava vê-lo, mas soube que funcionava quando a barco acalmou sua marcha e pareceu estabilizar-se.
—E agora o que? —perguntou ela.
Erik lhe afastou uma mecha de cabelo das pestanas e lhe deu um beijo salgado na boca. Aqueles lábios tinham sabor de força e calor e lhe ofereceram um consolo que necessitava mais que nunca.
—Agora esperaremos e deixaremos que a corrente nos conduza através da tormenta.
Deitou-a na coberta do barco de modo que ficasse estendida ante ele, acurrucada sobre seu lado, e pôs umas mantas sobre eles. Tinham ficado completamente a mercê da tormenta. A chuva seguia aumentando e o barquinho bamboleava de um lado a outro envolto nos perigosos tubos das descomunais ondas. Mas no acolhedor e quente círculo de seu apertado abraço e com o constante batimento do coração atrás de suas costas, Ellie sentiu um momento de calma.
Até que os golpeou a seguinte onda e o terror fez que seu pulso se acelerasse e o coração se detivesse. Aferrava-se a ele e afundava os dedos em seus braços cada vez que uma onda se levantava e rompia contra eles, cada vez que o bote caía sobre as ondas e corria com um som que gelava o sangue. Mas a solidez do robusto corpo que tinha atrás dela fazia de ancoragem. Era de loucos vê-lo manter a calma, virtualmente desumano. Uma imensa onda os sustentou no alto e quase os pôs a meio lado antes de devolver o esquife sobre a superfície com tal força que a Ellie tremeram os dentes e até os ossos.
—Não tem medo? —perguntou ela com voz tremente.
—Não — se apressou a responder, para depois de uma pausa abraçá-la um pouco mais forte e acrescentar —: Pode ser que um pouquinho. —Tinha medo por ela. Que admitisse aquilo a encheu de felicidade. Talvez não era completamente imune às fragilidades do ser humano, embora não fossem por ele mesmo. Talvez lhe importasse realmente. Antes que Ellie pudesse responder, disse —: Mas nem pense em contar a alguém. Tenho uma reputação que manter.
O sorriso de Ellie se tornou em grito quando outra das aterradoras ondas os levou em uma perigosa viagem por cima da crista e rompeu no mais alto lançando-os sobre a superfície de repente. A constante tensão entre momentos de pânico e de alívio resultava exaustiva. Percebia-a no peito. Notava-a nos pulmões. Não sabia quanto tempo mais seria capaz de suportar. Tremendo, agarrou-se à pele de seu cotun ate que seus próprios nódulos começaram a lhe doer.
—Não posso suportá-lo mais.
Ele a consolou sussurrando murmúrios a seu ouvido e lhe acariciando os braços com suavidade, a cintura e também os quadris. E depois seu traseiro.
Ellie sentiu o calor acumular-se em seu abdômen. Seus membros relaxaram. As frenéticas revoluções de sua respiração se tornaram mais suaves. Erik a acariciou um pouco mais, passando as mãos através de seu corpo de modo possessivo. E ela se derretia ante ele. Seu corpo respondia a cada roce de sua pele. Sim. Era isto o que necessitava. Tentava distraí-la e tinha conseguido. Pegou seu seio, beliscou o mamilo com dois dedos, fez que este se arrepiasse e ficasse duro, e ela apenas se precaveu do golpe da seguinte onda. Mas suas suaves carícias já não bastavam, e ela tinha que arquear-se para notar mais a pressão de sua mão, ardendo por ter mais contato. Procurou seu corpo balançando os quadris para trás e encontrou com toda sua dureza e grandiosidade. Seus nervos, que já estavam quase quebrados, incendiaram-se. Aquele instinto primário de medo se converteu em algo completamente diferente: desejo.
Queria o ter dentro dela. Desejava-o com um desespero que podia rivalizar com o medo sentido momentos antes. Esfregou seu traseiro contra ele. Seu corpo utilizava uma linguagem própria para lhe comunicar o que ansiava. A boca dele percorreu o pescoço de Ellie e aqueles murmúrios ao ouvido se converteram em rugidos e selvagens beijos. A tormenta rugia a seu redor e levava a barco daqui para lá como se fosse o brinquedo de um menino. Aquilo era loucura.
Mas não lhe importava. Sob a capa de mantas, a voragem que circulava a seu redor parecia desaparecer. Se estavam a ponto de morrer, preferia sentir a vida por última vez. E em caso de que conseguissem atravessar a tormenta, possivelmente não tivesse outra oportunidade de encontrar a paixão com o homem que amava. Deu-se a volta e seus olhares se encontraram na escuridão. Os olhos dele irradiavam fogo. «Faz que desapareça», sussurrou Ellie. Não se referia só à tormenta, a não ser à inquietação que tinha crescido em seu interior. Erik respondeu a seu pedido com um beijo que a deixou sem fôlego. Um beijo tão selvagem e desenfreado como a tormenta que circulava a seu redor.
A tarefa não devia ser fácil com tantos movimentos no bote. Mas ele se antecipava a eles e usava a força de seu corpo para adaptá-los ao mar. Não obstante, beijava-a com tanta paixão e seu corpo ansiava tanto o contato que nem sequer reparava no que fazia. Ellie estava debaixo dele com as saias subidas até a cintura. Desprendeu o justo as ataduras de seus calções para dar saída para a dura coluna que formava sua ereção, e depois, felizmente, entrou nela de um só empurrão.
Ellie gritou de satisfação ante a abrupta invasão, em tanto que seu grosso e potente membro golpeou seu interior uma e outra vez. A sensação era incrível. Nessa ocasião não houve rastro de dor. Só prazer. Queria sentir-se assim, ter essa conexão, para toda a vida. O bote sofreu um arremesso e ele se afundou mais nela, provocando seus ofegos. Depois disto, começaram a mover-se. Os quadris de Ellie se elevavam ante suas largas e duras investidas, que pareciam seguir o ritmo da chuva e do vento. Era algo selvagem e amalucado. Algo cru e bruto. Era fazer amor da maneira mais básica e elementar. Os uivos do vento, a chuva caindo e as ondas rompendo a seu redor faziam que se fundissem com a natureza. Erik investia uma e outra vez, como se não pudessem lhe bastar rudeza nem velocidade alguma, como se sua paixão por ela fosse tão incontrolável como a tormenta. Ellie jamais poderia esquecer o aspecto que tinha naquele momento: o cabelo pego ao rosto, a chuva sulcando seu rosto e essa expressão de ferocidade e paixão.
Abraçou-o com suas pernas para atraí-lo para si. Queria que desse tudo. Assim que as poderosas sensações começaram a embargá-la, agarrou-o pelos ombros para pegar-se a sua fortaleza. Sentia-se tão bem… Todo seu corpo estava em erupção, tremia, formigava. Sentia como se concentravam o calor e a umidade. Sentia como o desejo formava redemoinhos e se esticava em seu interior com cada uma de suas deliciosas carícias. Suas mãos passearam pelos duros músculos de seus flancos, apertando forte e puxando dele com firmeza. Uma explosão de sensações tinha lugar dentro dela. Os espasmos de prazer se desdobraram um após o outro e seus gritos se perderam entre os uivos do vento.
Quando tudo acabou, Ellie mal tinha forças para mover-se. Erik pareceu se afetar de maneira similar, porque caiu rendido sobre ela. Ellie pensou que a esmagaria, mas se surpreendeu ao comprovar o quanto ansiava sentir a pressão do peso de seu corpo. Entretanto, um momento depois, ele se apoiou sobre seu flanco, voltou a cobri-los com a manta e se acoplou a suas costas. Foi então quando se precaveu de que assim devia sentir-se alguém depois de fazer amor. Sem silêncios incômodos nem recriminações. Sem expectativas vãs. Simplesmente estando cômodos e compartilhando o regozijo.
Ficaram nessa posição um momento, e Ellie advertiu que a barco já não bamboleava tanto. As ondas não pareciam tão altas como antes. Inclusive o vento parecia ter acalmado um tanto.
—Não te parece que há mais calma agora?
Ele riu sobre sua orelha.
—Qualquer coisa pareceria acalmado depois disso. —Se o que pretendia era fazer que se ruborizasse, tinha-o conseguido — Mais de um marinheiro acredita que fazer amor e deixar-se levar, como fazemos nós, chama à calma dos mares.
Ellie não sabia se estava lhe contando outra de suas histórias, mas nesta ocasião esperava que fosse certa.
—Crê que terá passado já o pior?
Erik deixou transcorrer um momento, para dar tempo a que seus sentidos considerassem a pergunta.
—Sim, acredito que poderia ter passado já o pior.
Abraçou-a com mais força.
—Descansa um pouco, Ellie. Ganhou isso.
Não podia dormir, não sob a tormenta. Mas seus olhos pesavam e, apesar de seus protestos, fecharam-se ao cabo de uns minutos.
Quando voltou a abri-los, ainda era de noite. Tinha frio, estava molhada e não podia mover os braços. Demorou um momento em recordar onde estava, mas depois lhe sobreveio tudo de repente. A tormenta. À deriva. Sua paixão desenfreada. Não podia mover os braços porque Erik seguia abraçando-a com a firmeza do aço.
—Sente-se melhor? —perguntou ele ao tempo que a soltava um pouco para que pudesse esticar os braços e as pernas, que, apesar dos ter encolhidos, surpreendentemente não estavam duros.
—Sim — respondeu ela ao dar-se conta de que assim era — Você descansou?
—Um pouco.
Fulminou-o com o olhar. «Mentiroso.» Apostava que não tinha pego olho. De repente se precaveu de algo e se incorporou.
—Parou de chover!
Tinham conseguido. Tinham sobrevivido à tormenta. Erik tinha razão. Não iam morrer. Ele sorriu ao ver a cara que ela punha.
—Faz umas horas. Pouco depois que dormiu. A tempestade foi tão rápido como veio.
Ellie elevou a vista ao céu e advertiu que também a névoa se dissipou. Inclusive podia ver uma porção de lua aparecendo entre as nuvens.
—Que horas são?
—Faltam um par de horas para o amanhecer.
Mordeu o lábio ao dar-se conta que, apesar de que estivessem a salvo, não havia forma de que Erik pudesse completar sua tarefa a tempo. Pôs uma mão sobre seu ombro.
—Sinto muito.
Olhou-a estranhando, até que se precaveu da que se referia.
—Ainda não amanheceu, Ellie. Chegaremos a tempo.
«Nunca dar-se por vencido.»
—Mas nem sequer sabe onde estamos. Poderíamos estar a quilômetros da costa.
—Poderíamos — concedeu com simpatia —, mas não acredito. Aquilo deveria ser a costa da Irlanda — disse assinalando para a frente à direita do bote.
Na escuridão era impossível assegurá-lo, mas Ellie viu o que parecia ser uma mancha imprecisa mais escura sobre a cortina de fundo da noite. Erik já tinha tomado os remos e começava a remar para ela.
Aquela massa se fez cada vez mais grande, e assim que a escuridão foi desvanecendo-se com a aurora, soube que estava certo: tratava-se da Irlanda. A ponta nordeste, para ser mais preciso. Podia ver já os brancos escarpados pelos que o cabo recebia seu nome: Fair Head.
Não podia acreditar. Era possível que conseguissem. Se tinha tratado de sorte ou habilidade, não poderia dizê-lo, mas o certo era que Erik o tinha conseguido. Mal estavam a quatro quilômetros da costa. Entretanto, não ficava mais de uma hora para o amanhecer. Os primeiros raios de sol alaranjados começavam a aparecer sobre o negro véu do horizonte.
—Espero que esteja preparada para conhecer o rei — disse para provocá-la.
Ellie ficou paralisada.
—O rei?
—Depois que me encontre com seu amigo na Irlanda. —Ellie estremeceu ao precaver-se de que se referia ao sanguinário irlandês que queria assassiná-la — Terei que pensar alguma forma de explicar seu saudável aspecto. —Seus olhos brilharam travessamente, como se guardasse um divertido segredo — Virá comigo a Rathlin para nos reunir com Bruce —acrescentou dedicando um sorriso digno da oferenda de um magnífico presente.
Ellie perdeu a cor no rosto.
—Mas havia dito que me levaria a casa.
Ficou circunspeto, como se ela arruinasse assim a surpresa que tinha preparada.
—Mas, moça, compreenderá que não posso fazê-lo agora. Não temos tempo. Além disso, pensava que não queria ir.
Não queria. Sim queria. Estava-a confundindo. Mas se o que pretendia era levá-la ante o Bruce…
Ellie era consciente que não podia postergá-lo por mais tempo. Mordia o lábio com ansiedade e retorcia entre suas mãos as abas do casaco. Tinha que contar. Por mais que soubesse que tudo mudaria uma vez que o tivesse feito. Mas primeiro teria que lhe falar do que sentia ou jamais lhe seria dado conhecer seus verdadeiros sentimentos por ela.
—Te amo —disse em voz baixa.
Erik deixou de remar como única indicação de que o tinha ouvido. Sua expressão permaneceu impassível. Mas depois sorriu, e aquilo lhe rompeu o coração. Jamais lhe tinha ocorrido que um coração pudesse ser estripado através da amabilidade. Mas aquilo foi o que lhe provocou esse afável sorriso.
—Ah, moça, me alegro disso. Embora já o suspeitava depois do ocorrido esta manhã na cova.
Era como se em lugar de seu coração, tivesse-lhe devotado um bolo de maçã, como qualquer outra de suas admiradoras.
E o que esperava ela? Uma declaração de amor?
Não, mas sim algo mais que uma amável confirmação e que o aceitasse com tanta indiferença, alguma indicação de que cabia a possibilidade de que lhe importasse algo, de que aquilo que tinham compartilhado fosse especial. Alguma indicação de que era capaz de corresponder seu amor. A amabilidade era quão pior podia lhe ocorrer. Sua declaração não era diferente das que ele tinha ouvido incontáveis vezes. Provavelmente ele já sabia o que ela sentia, talvez inclusive valorizasse esse sentimento, mas jamais o corresponderia.
«Nada pode afetá-lo.»
Erik começou a remar de novo.
Não era a primeira vez que uma moça lhe confessava seus sentimentos, mas ouvir essas palavras da boca de Ellie significava algo diferente. Por uma só razão: não provocava nele essa ansiedade, essa inquietação que o fazia querer embarcar no próximo bote que partia. Embora, em realidade, não era isso o que estava acostumado a fazer, a não ser começar uma retirada amável e convencer à moça de que o certo era que ela não o amava. Com Ellie o sentimento não era esse absolutamente. De fato, ouvir como lhe dizia que o amava tinha feito que se sentisse… agradecido. Mais que agradecido. Orgulhoso, comovido, honrado e feliz.
Dizia-se que a reação que provocava nele era normal, já que uma esposa devia amar a seu marido. A tormenta o tinha convencido de que aquela era a decisão correta. A ferocidade da paixão que os tinha embargado o tinha pego de surpresa. Não estava preparado para deixá-la partir, de modo que pensava ficar com ela. O fato de que o amasse deveria fazer que Ellie se sentisse mais feliz inclusive.
Mas não a via feliz. Parecia estar a ponto de romper a chorar. Isso o inquietou. Ajustou o cotun, mas aquilo não aliviava a angústia que sentia no peito, uma angustiante dor que piorou quando a olhou aos olhos. Sabia o que ela desejava ouvir: que ele dissesse que também a amava. Todas as mulheres queriam isso. Estava acostumado a esse tipo de decepções, mas não a querer fazer algo a respeito, inclusive lhe dizer que ele também a amava. Aquela ideia o deixou petrificado. Um suor frio começou a sulcar suas sobrancelhas. Estava claro que ele não a amava. Aquela paixão, a feroz necessidade de protegê-la e fazê-la sua, sua estranha conexão, o medo irracional que lhe sobrevinha ante o pensamento de perdê-la significavam tão somente que lhe importava. Mas amor? Essa classe de amor entre «um homem e uma mulher para toda a eternidade» jamais lhe tinha passado pela cabeça. Acreditava-se imune, incapaz de emoções desse tipo. Gostava muito da perseguição, da sedução e a dança do cortejo. Não era aquilo certo?
Pode ser que não fosse capaz de dizer que a amava, mas sabia que podia lhe dar algo inclusive melhor que isto. Pedir-lhe-ia que se casasse com ele, e assim apagaria essa expressão de desolação de seu rosto. Sem dúvida, estava disposto a ver cair umas quantas lágrimas, mas seriam lágrimas de alegria. Entretanto, não lhe apresentou essa oportunidade.
—Há algo que devo te contar — disse Ellie com uma voz estranhamente distante, quase da realeza — Não fui de tudo honesta contigo.
Erik começou a remar com menos força até que acabou parando por completo.
—Sobre o que?
Mantinha-se erguida com um porte majestoso, sem deixar de olhá-lo aos olhos.
—Minha identidade.
Ficou surpreso, mas a deixou continuar. Já suspeitava que ocultava algo.
—Não sou babá na casa do conde de Ulster.
—Ah, não?
Ellie respirou profundamente.
—Sou lady Elyne de Burgh.
Capítulo 20
Erik ficou petrificado uns instantes e logo começou a rir. Estava claro que tinha ouvido mau.
—Por um momento acreditei que havia dito De Burgh.
Ellie elevou o queixo e ficou olhando-o aos olhos.
—Isso disse.
«De Burgh.» Negava-se a acreditar que aquilo fosse tão mau como dava a entender a alarmante revolução desatada através de suas veias.
—É família do conde de Ulster? —perguntou cheio de temor, com a esperança de que sua relação fosse longínqua.
Ellie continuou olhando-o sem pestanejar.
—É meu pai.
Ao Erik pareceu que lhe arrancavam a cabeça de um golpe. Ficou olhando-a como se a visse pela primeira vez. Talvez assim fosse. Em realidade não tinha chegado a conhecê-la nunca. Entreabriu os olhos e começou a notar a tensão que se formava no pescoço e nos braços.
—Mentiu.
Ellie não se intimidou ante seu olhar acusador.
—Assim é.
Erik esperava que o negasse, que desse evasivas e tentasse explicar suas ações, não que admitisse sua falta com tanta facilidade. Mas ela jamais atuava como se pressupunha que tinha que atuar. Sentia-se estranho, incômodo, desconcertado e doído. Somente havia se sentido assim ao atravessar alguém com a espada.
—Por quê?
—Na cova da Sereia, um dos irlandeses mencionou o nome de meu pai. Era óbvio que o sobrenome De Burgh só conseguiria complicar mais as coisas.
Erik não pensava que pudesse havê-lo complicado muito mais.
—E quando saímos da cova?
—Refere a quando me precavi de que pensava me violar e depois me assassinar?
A imperiosa maneira em que arqueou a sobrancelha o enfureceu mais inclusive que o sarcasmo, fosse este merecido ou não. Era exatamente o tipo de mostra de superioridade e nobreza que esperaria da filha de um conde. O tipo de gestos que provinha de sua posição, conforme tinha convencido a si mesmo. Apertou os punhos em uma tentativa de acalmar as estranhas emoções que ardiam em seu interior.
—Mas disse que era babá.
—Pareceu-me o mais próximo à verdade. Desde que morreu minha mãe, encarreguei-me de meus irmãos e irmãs menores. Aquilo foi um toque de ironia que me pareceu divertido. Mas quanto à razão pela que não lhe disse isso depois foi porque pensei que fosse um pirata. —Erik advertiu o tom de recriminação em sua voz. Ela não era quão única tinha guardado um segredo. Ele quis que fosse daquele modo. Desejava manter distância entre ambos. Mas jamais teria sido capaz de imaginar isso — E tampouco podia estar segura de que não queria me obrigar a me casar contigo.
Aquilo era exatamente o que teria feito um pirata de verdade. Mas estava muito zangado para atender a explicação racional alguma. Essa amarga ironia era como uma punhalada nas costas. Porque ele queria casar-se com ela. Pensava que poderia lhe dar uma posição e riquezas, que lhe estaria agradecida. Pensava que ela o necessitava. Mas não o necessitava absolutamente. Uma filha de Ulster era um dos prêmios mais cobiçados de toda a cristandade. Podia aspirar a algo muito melhor que um chefe de clã açoitado, embora seu sangue azul se remontasse à memória dos tempos. Sabia que não tinha nenhum direito a isso, já que não lhe tinha devotado razões para a confiança, mas igualmente se sentia traído.
—E quando se inteirou da verdade, Ellie? Ou deveria dizer lady Elyne? Por que não o fez então?
Olhou-o sob a luz da lua com uma cara que era uma máscara de alabastro ovalado.
—Porque não queria que acabasse o nosso prazer.
«O prazer.» Por Deus bendito. O mundo veio em cima quando foi consciente de todas as coisas que implicava. Já não era somente que ferisse seu orgulho que uma babá a que tinha querido honrar com seu nome resultasse ser uma das herdeiras mais ricas na terra, a não ser o que ele mesmo tinha feito. Tinha manchado à filha de Ulster. E não somente à filha de Ulster. Agarrou-a pelo braço, tentando conter sua ira.
—É a irmã de Bruce!
O homem ao qual devia lealdade a cima de todo o resto. Ela sequer se incomodou em fingir rubor pela magnitude de sua mentira, mas sim manteve a cabeça bem alta.
—Irmã política, sim.
—Mas Eduardo Bruce te viu a outra noite. Por que não disse nada?
—Tão somente me encontrei com ele uma vez, nas bodas. —Riu, embora aquele áspero som não era divertido absolutamente — Ao que parecia, não se lembrava de mim.
Erik queria morrer. A primeira vez que desonrava a uma donzela e tinha que escolher aquela que era sacrossanta. A irmã de seu rei e senhor. Certo que Bruce tinha adotado o estilo de luta das Highlands, mas em seu coração seguia pulsando o espírito da cavalaria. Aquele insulto não cairia no esquecimento. Pouco importariam as circunstâncias. E não seria somente o sentido de honra de Bruce o que se sentiria ofendido. Todas as possibilidades apontavam a que Ulster culparia Bruce das ações de Erik. Aquilo poderia abrir uma brecha entre ambos. Uma brecha que poderia provocar que Ulster deixasse de olhar para outro lado ante as atividades de Bruce. Uma brecha que podia pôr em perigo as rotas comerciais do oeste e negar ao rei provisões que lhe eram muito necessárias. Se não o matava Ulster, já se encarregaria Bruce disso. Sua missão não incluía manchar a honra de donzelas.
Deus santo, de repente tudo parecia cobrar sentido: a razão pela que os ingleses não tinham cessado em sua busca como normalmente faziam. Apertou-lhe o braço com mais força, obrigando-a a olhá-lo aos olhos.
—Não me perseguiam , buscavam a ti.
Ao levá-la consigo, fazia recair sobre ele todo o peso da frota inglesa. Ela parecia surpreendida pela acusação, como se não tivesse caído na conta até esse momento. Enrugou o sobrecenho.
—Nunca pensei que… —deteve-se e depois negou com a cabeça — Minha família jamais soube o que me tinha ocorrido.
Nesse momento ao Erik lhe gelou o sangue.
—Talvez não o fizessem ao princípio, mas sim quando enviei a mensagem.
Sua galanteria mau entendida e a necessidade premente de fazê-la feliz tinham conduzido seus inimigos diretamente para eles.
A Ellie trocou o rosto. Era possível que, quando capturaram e assassinaram a seus homens, os ingleses estivessem procurando a ela? «Milady.» Aquela deferência do soldado na praia cobrava sentido de repente. Tentavam protegê-la.
—Lamento muito — disse.
Ele sequer podia olhá-la.
—Celebraremos as bodas logo que consiga um sacerdote.
Seu coração parou em seco. «Bodas.» Aquela palavra que tanto tinha esperado escutar, pronunciada de maneira fria e sem emoção alguma. Era exatamente o que tinha temido, a razão pela que não tinha revelado sua identidade. Porque sabia que a desgraçada nobreza que albergava em seu interior poderia mais que seu lado cruel. Ela era lady Elyne de Burgh, a irmã política de seu rei e senhor, filha de um dos homens mais poderosos da cristandade. Não ficava mais opção que casar-se com ela.
Pode ser que resultasse incoerente, mas não pensava casar-se com o homem que amava. Não, se a proposta estava motivada pela obrigação em lugar da emoção. O amor não correspondido não o fazia nenhuma ilusão. Não cometeria o mesmo engano que sua mãe, que pensava que poderia obrigar um homem a que a amasse só com a força de sua própria vontade. Em seu interior, Ellie tinha vontade de explodir, de atirar-se ao chão e romper a chorar como se fosse um farrapo. Mas seu orgulho não o permitia. Era lady Elyne de Burgh. Erik jamais chegaria a saber o dano que aquilo podia lhe fazer, nem tampouco quão difícil resultava a ela rechaçá-lo.
—Isso não será necessário — disse ela com a mesma emoção que ele tinha formulado sua «oferta».
Os olhos de Erik pareciam meras frestas.
—É preciso que te recorde com exatidão por que sim é necessário?
Não lhe deu a satisfação de ruborizar-se. Não se envergonhava do que tinham feito e ele não a obrigaria que se sentisse desse modo.
—Aprecio sua galante «oferta», mas não é necessário. Já estou prometida.
Se Ellie pensava que já o tinha visto zangado, equivocava-se. A mudança resultava tão impactante que a Erik cortou a respiração e retrocedeu por instinto. Na luz do amanhecer próximo, seus olhos empalideceram e se tornaram absolutamente frios, absolutamente sem misericórdia. O arrumado norueguês se transformou no sanguinário viking. Fez um movimento em sua direção, e por um momento inclusive lhe teve medo. Acreditou que se equilibraria sobre ela, mas em realidade estava completamente quieto. Muito quieto. Jamais se tinha precavido antes de quão ameaçador podia ser a quietude.
—Quem?
Aquela singela palavra soava como a tocha de um verdugo. Um gelado calafrio percorreu suas costas mas se negava a deixar ver seu medo.
—Sir Ralph de Monthermer.
Os olhos de Erik brilharam com uma intensidade perigosa.
—É uma caixa cheia de surpresas, não é certo, lady Elyne? Tinha ouvido algo a respeito de seu compromisso, mas tenho que admitir que nunca o relacionei com minha babá sequestrada e o recente interesse do novo conde em uma mensagem proveniente de Dunaverty.
Ellie empalideceu.
—Esteve me buscando?
—Ao que parece, com bastante veemência.
Ela não caiu no engano de confundir o tom descuidado de suas palavras. Estava furioso. Se não fosse pelo ridículo do pensamento, diria inclusive que estava sentindo ciúmes. Mas Erik era o último homem ao que poderia imaginar sentindo ciúmes. Tinha muita confiança em si mesmo e lhe importava tudo muito pouco para sofrer de tão débil fragilidade humana. O que o punha furioso era o perigo em que se via sua missão.
—E o que ocorrerá quando se inteirar que já não é donzela? Crê que o recém renomado conde ainda te quererá por esposa? Ou esperava talvez enganá-lo nesse aspecto?
Ellie ficou em guarda. Como podia pensar que seria capaz de tal desonra? Não se iludia quanto aos interesses que Ralph tinha sobre ela. O importante era a aliança.
—Não é teu assunto. Isso ficará entre meu prometido e eu.
Aquilo fez que explodisse, tomasse pelo braço e a sacudisse com violência.
—É um corno!
O coração de Ellie pulsava como uma locomotiva. Jamais o tinha visto perder o controle. E esse olhar que tinha… Deu-lhe calafrios. Não sabia o que pretendia. Tinha a cara tão perto que pensou que a beijaria até que se rendesse a seus pés. Não, nada de beijos, violá-la-ia.
Mas o que poderia ter acontecido depois jamais chegaria a saber. Erik olhou além do corpo de Ellie e ficou gelado. Toda sua emoção e raiva pareceram evaporar-se.
—Ao que parece, logo o descobriremos.
—Do que está falando?
Assinalou um ponto a suas costas. Quando Ellie deu a volta, advertiu umas inconfundíveis mancha de cor, peneiradas pelo suave resplendor da aurora, sobre o horizonte que se estendia atrás deles. Velas. Ao menos seis delas, aproximando-se com rapidez.
—Acredito que seu prometido acaba de chegar.
Ellie se precaveu que Erik já sabia do primeiro momento em que as viu, e percebeu em seu rosto algo que pensava que jamais chegaria a ver: derrota. Sua sorte tinha acabado. A fuga era impossível. A costa estava muito longe ainda. Sem uma vela, não teriam possibilidade de ocultar-se nem de navegar mais rápido que eles. Inclusive as extraordinárias habilidades do marinheiro escocês tinham seus limites, e um deles era a impossibilidade de navegar mais rápido que uma frota de galeões ingleses com o vento a favor com a única propulsão de suas próprias mãos. Estava a ponto de fracassar e ela teria a culpa. O fracasso seria algo que jamais lhe perdoaria.
O olhar de Ellie se perdeu na costa da Irlanda. Uma ideia tomou forma em seu interior. Talvez ainda tivesse uma oportunidade. Mas a aceitaria? Fez das tripas coração, consciente que não podia lhe dar alternativa a escolher.
Erik fracassaria ante seu rei. Fracassaria ante todo o grupo. Fracassaria ante todos os que contavam com ele. Inclusive nas horas mais escuras da tormenta não tinha contemplado a opção do fracasso. Parecia-lhe inconcebível pensar em algo que não fosse o êxito. Mas o amargo sabor da derrota azedava sua boca. Rememorou os acontecimentos uma e outra vez, consciente de que tinha sido sua própria arrogância que o tinha conduzido até aí. Se o tivesse tomado com mais seriedade, concentrando-se em sua missão em lugar de na moça, não teria chegado até esse ponto. Não podia acreditar que, estando tão perto, fosse presenciar como a vitória se esfumava ante seu nariz no último suspiro, a três quilômetros da costa. Tinha-a virtualmente a um tiro de pedra. Mas jamais na vida poderia ganhar uma regata dos ingleses com esse barquinho, e ficar na tentativa para conduzi-los até os soldados irlandeses não entrava em seus planos. Estavam apanhados.
Mas, apesar de tudo, não se dava por vencido com facilidade e espremia o cérebro em busca de alguma saída.
—Parte — disse Ellie sem expressar emoção alguma — Antes que lhe vejam.
A voz de Erik se mostrou tão dura como seu olhar.
—A menos que possa fazer aparecer de um nada um mastro e uma vela, temo que isso será impossível.
—Pode nadar.
Erik ficou pensando, mas descartou a ideia ao momento.
—Buscar-nos-ão uma vez que descubram que o barco está vazio. Não posso me arriscar a isso.
—Eu não irei contigo.
Uma nuvem vermelha de ira ferveu em seu interior.
—Se pensar que vou te abandonar…
Ellie não lhe permitiu terminar a frase.
—Estou completamente a salvo. É a mim que estão procurando. Dir-lhe-ei que se afogou na tormenta. Ninguém o buscará. Ainda tem tempo. Mas é preciso que vá imediatamente.
Erik olhou para a costa e soube que ela tinha razão. Podia conseguir. Os irlandeses esperariam até o amanhecer e, com sorte, talvez um pouco mais. Teria que fazer passo a Rathlin e depois a Arran em uma só noite, mas podia consegui-lo. Bruce ainda estaria a tempo de chegar para lançar o ataque no dia acordado. Podia salvar sua missão. Mas isso de abandoná-la a sua sorte ia contra cada um de seus sentidos. Apesar de que o tivesse enganado, ela era seu… O que? O que era ela para ele?
Ao que parecia, Ellie se precaveu de suas dúvidas.
—Parte. Nada te retém aqui.
Mas sim havia algo. Embora não pudesse pôr nome a isso. Erik debatia contra sua própria indecisão, algo com o que não estava familiarizado. Pode ser que salvasse a missão, mas, ao fazê-lo, também poria ponto final a sua relação com Ellie.
Mas de que relação falava? Ela estava prometida a De Monthermer, Por Deus bendito, que fosse antes genro de Eduardo e um dos capitães mais importantes da marinha inglesa. Ela pertencia a outro. Ser consciente disso era como um ácido que corroia seu peito.
E ali estava ela, sentada com uma tranquilidade exasperante, o gesto tão duro e quebradiço como o cristal. Havia algo que não encaixava. Muita compostura. Muita calma. Fazia apenas uns minutos havia dito que o amava e ali estava agora, fazendo tudo o que podia por livrar-se dele. Tomou pelo braço e sentiu vontade de apagar de seu rosto essa gelada expressão de irrevogabilidade.
—O que quer de mim?
Ellie o olhou aos olhos.
—Nada. É que não te dá conta? Jamais houve outra possibilidade. Parte, para que possa seguir com minha vida e me esquecer de que tudo isto aconteceu.
Erik estremeceu como se acabassem de lhe dar um golpe na cabeça. Ficou olhando aos olhos com o peito tremendo de angústia e a obrigou que se atrevesse a lhe mentir diretamente à cara.
—Me diga uma coisa. Quer te casar com ele?
Ellie não duvidou um segundo.
—E por que não teria que querer? Sir Ralph é um dos cavalheiros mais arrumados e poderosos da cristandade. Para qualquer mulher seria uma honra se desposar com ele.
Erik apertou os dentes ante aquela súbita dor. Deveria sentir-se aliviado. Sua missão devia ser o primeiro e agora poderia partir com a consciência tranquila. Tinha pedido. Ela o tinha rechaçado. Tinha completado com sua obrigação. Sua honra estava intacta. Então por que parecia ter o peito ardendo por dentro? A que vinha toda essa fúria interior? E por que tinha vontade de assassinar sir Ralph de Monthermer? Aquilo era o que teria feito os antepassados de Erik. Mas ele não era um bárbaro nórdico. Não tinha direito algum a reclamá-la para si.
Caía o amanhecer. Os galeões cada vez se aproximavam mais. Em cinco minutos haveria suficiente luz para que pudessem vislumbrar suas duas silhuetas. Se pensava partir, teria que fazê-lo no momento. Olhou Ellie justo antes de mergulhar na água. Agasalhada pelas mantas e peles, a via pequena e indefesa. Mas não estava, jamais tinha estado. Não necessitava a ele. Embora lutasse contra a urgência que sentia de tomá-la entre seus braços e provar que aquilo não era certo. Sua mandíbula adotou a expressão de quem toma uma resolução inquebrável. Não, era melhor que ocorresse dessa forma. Tinha uma missão que cumprir. Quando voltasse junto a Bruce e o ataque estivesse em caminho, teria tanto que fazer que se esqueceria dela por completo. O momento e as circunstâncias, recordou a si mesmo. Uma vez que a aventura e a excitação ficassem sufocadas, deixaria de sentir-se desse modo.
Olhou-a uma vez mais, introduziu-se na água e começou a nadar. Tinha ficado tão insensibilizado que sequer sentiu o frio. Somente uma vez voltou a vista atrás. A meio caminho da borda se deteve, bem a tempo de ver como o primeiro dos galeões alcançava o barco. Seu corpo se encrespou ao reconhecer a insígnia de Ralph de Monthermer: a águia verde sobre a vela amarela. Um momento depois viu como recolhiam Ellie do bote e era levada nos braços por um cavalheiro alto, vestido com a armadura que levava esse mesmo emblema em seu tabardo. Erik sentiu como se seus pulmões ardessem ao encher-se de água salgada. Vê-la nos braços de outro homem fazia aflorar seus instintos mais primitivos, uns instintos cuja existência inclusive ele desconhecia. Mas se disse que Ellie já se encontrava a salvo. Havia-a devolvido a sua família, tal e como tinha prometido. Tinha completado com seu dever.
Voltou a mergulhar na água e nadou com todas suas forças concentrado em um único objetivo. Sua missão era tudo o que importava.
Quando Ralph tomou entre seus braços, a compostura que Ellie tinha mantido com tanto esmero se derrubou. Não lhe importou que houvesse quatro galeões cheios de soldados olhando-a. Toda a emoção que tinha tentado ocultar em seu interior se rompeu em mil pedaços, desembocando em uma onda de lágrimas e soluços que partiam o coração. Ralph, que atribuía a expressão de suas emoções ao alívio por seu resgate, não se precavia que seu coração estava quebrado, e a tranquilizava com palavras de quietude. Aquele pesadelo tinha acabado. Já estava a salvo. Ninguém poderia lhe fazer mal.
Era um homem robusto e quente, alto e forte. Seu largo e firme peito cheirava inclusive a vento e a mar. Em seu sorriso se via que seu arrumado rosto era amável e sua preocupação sincera. Mas Ralph de Monthermer não era o homem que ela queria, e jamais poderia sê-lo. O homem que ela queria era outro e que tinha perdido, apesar de nunca ter sido dele. A verdade ardia. Mas a dor parecia lhe dar forças. Envergonhada ante aquele desdobramento de emoções tão aberta, conteve-se e enxugou as lágrimas de seu rosto. Já haveria tempo suficiente para penas quando estivesse em casa. Agora tinha que assegurar a escapada de Erik.
—Sinto — se desculpou.
Sabia que Ralph devia estar ansioso por conhecer os pormenores do acontecido e as razões de que ficou sozinha, abandonada a sua sorte no pequeno bote.
—Não há nada pelo que desculpar-se — disse Ralph amavelmente — Estou tão contente de que tenhamos te encontrado. A tormenta… —Não terminou a frase, mas sim apertou fortemente sua mão — É um milagre que pudesse se manter flutuando.
Não era um milagre, tão somente a habilidade de um homem único.
O rosto de Ralph se endureceu.
—Mas onde está? Onde está o homem que lhe sequestrou?
Ellie era consciente de que teria que fazer todo o possível por convencer Ralph de que Erik tinha sucumbido à tormenta, mas odiava ter que lhe mentir.
—Não está — respondeu com impassibilidade — Não sei como aconteceu. A tormenta era terrível. Estava escuro e era impossível ver algo através do vento e da chuva. Ordenou-me que ficasse quieta deitada sobre o casco do barco. Em um momento estava ali e ao seguinte tinha desaparecido.
—Falcão está morto? —disse um homem mostrando sua incredulidade.
Ellie se voltou ao ouvir aquela voz familiar. Um homem apareceu entre a multidão de soldados que se apertavam a seu redor. Seu rosto ficou lívido.
—Thomas! Está a salvo! —Era tão profundo o alívio que sentiu ao vê-lo que deu uns passos para ele antes de deter-se — Mas o que esta fazendo aqui?
O rosto Thomas se ruborizou, antes que Ralph respondesse por ele.
—Foi graças a sir Thomas que a encontramos.
—Sir Thomas? —repetiu.
Era algo que sempre tinha suspeitado, mas escutá-lo não deixou de surpreendê-la. Thomas fez uma leve reverência.
—Sir Thomas Randolph a seu serviço, lady Elyne.
Levou-lhe um momento reconhecer o nome, mas quando o fez seu horror não fez a não ser piorar.
—É o sobrinho de Robert — disse com voz entrecortada.
O jovem cavalheiro assentiu. Ellie se sentiu desfalecer. Não podia acreditar que aquele a quem considerava amigo tivesse traído não só a Falcão, mas a seu próprio tio. Que mais lhe teria contado? Separou-se dele bruscamente e se dirigiu a Ralph.
—Como me encontrou?
—Randolph estava seguro que o rebelde poria rumo à Irlanda.
Por Deus santo, teria revelado Thomas o plano? Seus olhos se dirigiram para ele sem mostrar sinal algum do pânico que bulia em seu interior.
—Falcão me contou que sua intenção era lhe devolver a casa — explicou Thomas.
Ellie teve que conter o suspiro de alívio ante aquela verdade pela metade. Ao que parecia, Thomas não os tinha traído por completo. Olharam-se aos olhos por um momento antes que ela se voltasse para Ralph para que continuasse.
—Estendemos-lhe uma armadilha ontem à noite no canal, mas tivemos que nos retirar quando se desatou a tormenta. Estava seguro que o açoitado faria o mesmo, mas Randolph me assegurou que a tormenta não o deteria. Assim que esta amainou, pusemos rumo para a Irlanda. Esse homem é mais temerário do que imaginava. —O rosto de Ralph adotou uma aparência sombria — O muito insensato poderia ter acabado com as vidas de ambos.
Ellie pôs uma mão sobre seu ombro.
—Salvou-me a vida — disse atendendo à verdade — mais de uma vez. —As lágrimas afloraram em seus olhos — Não sei o que terá feito, mas agora eu estou aqui e ele não. Quão único quero é voltar para casa e me esquecer de tudo.
Ralph se arrependeu imediatamente.
—É obvio que sim. Deve estar exausta. Podemos falar mais tarde. Sua família estará muito contente que retorne são e salvo.
Ellie ficou confundida quando Ralph deu ordens de mudar o rumo.
—Não vamos a Irlanda?
Negou com a cabeça.
—Me perdoe. Esquecia que não sabe. Seu pai foi enviado ao castelo de Ayr por ordem do rei.
«Escócia.» Não podia acreditar. Durante todo o tempo que tinha permanecido na ilha de Spoon, seu pai estava apenas ao outro lado da costa.
Ralph a sentou na arca junto à proa da embarcação, rodeou-a com várias mantas mais e lhe apertou a mão para lhe dar consolo.
—Que bom que voltou a estar conosco, lady Elyne. Lady Mathilda poderá respirar tranquila. —Uma estranha expressão percorreu seu semblante — Todos seus irmãos e irmãs poderão respirar tranquilos.
Ellie se dava conta de que se tratava de um homem amável. Era algo que já sabia, mas esse estranho desconforto que sentia ao estar junto a ele sempre havia se interposto entre eles. Viu-se invadida pelo sentimento de culpa. Precisava lhe contar a verdade.
—Meu senhor, há algo… —Suas bochechas se acenderam — Há algo que devo lhe contar.
—Não será necessário — disse com firmeza. Ellie se dispunha a protestar, mas ele a deteve — Não é culpada de nada que tenha ocorrido. Randolph me contou que entrou em…, eh, relações, com o homem que lhe capturou.
Não podia acreditar. Sabia, ou ao menos o suspeitava e não lhe importava. Aquela compreensão não fazia mais que piorar tudo. Não podia lhe permitir pensar que a tinham forçado.
—Não foi contra minha vontade, meu senhor.
Olhou-a com atenção, mais apreciativa que acusadoramente.
—Passou o que passou é já parte do passado. Está a salvo. Isso é tudo o que importa.
Ralph estava disposto a lhe pôr as coisas fáceis. Mais fácil inclusive do que o esperado. Mais fácil do que ela merecia.
—Agora descanse —disse — Poderemos falar mais tarde. —Guardou silêncio um momento, mantendo o cenho franzido sobre seus duros e arrumados traços — Temo que seu pai terá muitas perguntas que lhe fazer. O rei Eduardo está mais que ansioso por apanhar esse capitão marinheiro rebelde ao que chamam Falcão. Está convencido que Bruce planeja algo.
Ellie se esforçou por manter a compostura, apesar de lhe gelar o sangue.
—Temo que não serei de muita ajuda.
Nenhuma, de fato.
Lhe sustentou o olhar, talvez entendendo mais do que devia, e lhe ofereceu um breve sorriso.
—Seja como for, deve estar preparada.
Ela assentiu, apreciando que a advertisse disso. Recordou que em um tempo Bruce e Ralph tinham sido bons amigos. Acaso simpatizasse mais com sua causa do que ela pensava?
Ralph voltou junto a seus homens e a deixou ante a cruel solidão de seus pensamentos. Sua separação de Erik tinha sido tão rápida e inesperada que sequer tinha tido tempo de pensar. Mas agora, à medida que os minutos o afastavam cada vez mais dela, a verdade caía por seu próprio peso. Assim que se precaveu da magnitude de sua perda, a sensação de desesperança foi assustadora. O futuro aparecia baldio e solitário. Parecia impossível pensar que jamais voltaria a vê-lo, que a liberdade e a felicidade que tinha desfrutado tocavam a seu fim. Como poderia voltar para sua vida anterior como se nada tivesse ocorrido? Como cumpriria com sua obrigação e se casaria com Ralph quando amava outro homem? Não queria acreditar que aquilo acabasse de maneira tão abrupta e encontrou a si mesma mais de uma vez olhando para trás. Sabia que ele não iria em sua busca. Não podia, por mais que tivesse querido fazê-lo, o que não era o caso. Mas aquela parte insensata dela que não queria aceitar a verdade se negava a entrar em razão. Se ao menos não lhe doesse tanto… E o que esperava? Acaso não sabia que aquela era a única maneira em que podia acabar?
Convenceu-se de que significava algo para ele, de que Erik era diferente, de que era possível um futuro entre ambos. Mas jamais lhe tinha professado amor algum, nem tinha querido mais que o prazer que oferecia. Tinha-lhe dado uma oportunidade ao lhe mostrar seus sentimentos, e ele não a tinha aceito. Quão único moderava seu desamor era que logo veria sua família.
Tendo os ventos a favor, o galeão não custou muito esforço cruzar aquelas águas que apenas umas horas antes tinham estado a ponto de acabar com suas vidas. Não demoraram muito em avistar as verdes colinas e bordas arenosas da costa de Ayrshire. Ellie ficou nervosa ao ver que Thomas, sir Thomas, aproximava-se dela. Quando o cavalheiro se sentou a seu lado, ela fez como se não se precavesse disso.
—Foi a nado até Fair Head, não é certo? —disse em voz baixa para que não o ouvissem os soldados de ao redor.
Ao Ellie alterou o pulso, mas permaneceu impertérrita, com a vista fixa na linha costeira.
—Se refere-se ao capitão, já lhe expliquei o que aconteceu.
—Não lhes contei nada, Ellie, lady Elyne. Dou-lhe minha palavra.
Ellie lhe dirigiu um olhar avesso.
—Salvo onde nos encontrar.
O calor subiu por suas bochechas; entretanto, estirou peito.
—A maneira em que Falcão lhe tratava não era a correta. Quando descobri quem era, não pude permitir que sua atitude persistisse.
Ellie não dava crédito a seus ouvidos. Toda a missão de Falcão tinha podido fracassar simplesmente porque ofendera as sensibilidades cavalheirescas de Randolph. Olhou a seu redor para assegurar-se que ninguém os ouvia e lhe sussurrou: —Assim decidiu pôr aos ingleses atrás de nós? Não sabe o que está em jogo? Ou é que já não se importa?
Ele se ruborizou mais.
—Sei o que está em jogo, embora não me tenha confiado os detalhes. Por uma vez estou agradecido de que meu tio não confiasse em mim plenamente. Não disse mais que o necessário para lhe encontrar. Quanto ao Falcão, sempre se engenha para cair de pé, ou não se deu ainda conta disso?
Parecia desesperado para que ela acreditasse, como se lhe importasse a opinião que tinha dele, mas não podia ser absolvido tão facilmente. Erik tinha escapado à captura, mas por muito pouco. Se conseguia ou não completar sua empreitada, era algo que nenhum dos dois saberiam por um tempo.
—E mesmo assim passou ao outro bando? —assinalou ela.
Randolph desafio seu olhar acusador sem pestanejar sequer.
—Não ficava outra opção. —Ao ver que ela não respondia, acrescentou — Ou preferiria ver todos mortos?
Ellie o fulminou com o olhar.
—É obvio que não.
—Bom, pois isso é o que teria passado em caso de que não apresentasse a rendição.
Para maior ira de Domnall, supôs Ellie. Mas não podia culpar Thomas por fazer o que estava em sua mão para salvar suas vidas. Ela teria feito o mesmo, por mais que não fosse o estilo de Erik.
—Onde está o resto dos homens?
—Nas masmorras de Ayr.
—E você está aqui.
Ele ficou à defensiva, uma reação que pretendia censurar o tom de suas palavras.
—Meu tio e eu não nos vimos cara a cara durante algum tempo. Sou um cavalheiro, não um pirata, e meu desejo é lutar como tal.
Assim que lhe tinha dado a oportunidade de trocar de bando, tinha-a aceito. Por mais que desejasse condená-lo por isso, não podia fazê-lo. Inclusive se não tinha em conta o código de cavalaria, Randolph não tinha feito mais que o que incontáveis outros tinham feito antes dele: seguir seus interesses, não seu coração. Pragmatismo antes de princípios. A maioria dos aliados do rei Eduardo o apoiavam porque aquilo era o mais prudente, não porque acreditassem em sua causa. Inclusive seu pai podia entrar nesta categoria. Havia poucos William Wallace dispostos a morrer por uma causa nobre.
Erik era um deles. A lealdade, a honra, a responsabilidade, como queria chamar: os laços que uniam a aqueles aos que queria eram o mais importante para ele.
«Morrer antes que render-se.»
Deu-lhe um calafrio. Quando ele tinha pronunciado essas palavras, não tinha duvidado que as dizia a sério. Só podia rezar para que não tivesse que chegar a esse ponto. Teria conseguido chegar a tempo à costa irlandesa e conduzi-los a salvo até Bruce? Teria êxito o último esforço de Bruce para recuperar seu trono?
Pode ser que passasse algum tempo até que conseguisse ter as respostas para aquelas perguntas. Se fracassavam, possivelmente não saberia nunca. Era possível que a agonia de não saber o que tinha sido dele acabasse voltando-a louca.
Capítulo 21
Depois de um longo dia de espera, quase doze horas depois de abandonar Ellie, Erik MacSorley entrava na baía, navegando pela borda oeste de Rathlin com os trezentos soldados irlandeses que tinha prometido conduzir até Bruce. Com tudo aquilo que tinha acontecido anteriormente, sua chegada a Fair Head minutos depois do amanhecer tinha resultado estranhamente decepcionante, e isso apesar de que o tinha conseguido por muito pouco. Os MacQuillan estavam já carregando os navios para zarpar, pensando que teria ocorrido algo que suspendia o ataque. O chefe dos irlandeses lhe disse que teriam voltado na noite seguinte, mas Erik não estava convencido disso. Tinham cobrado a metade do pagamento e, ao ter completado com sua parte do trato, receberiam uma boa recompensa pelo simples feito de apresentar-se ali.
Em qualquer caso, Erik os alcançou a tempo e, depois de tomar o cuidado de ocultar as embarcações para que não ficassem à vista das patrulhas inglesas, passaram o dia esperando que caísse a noite para partir rumo a Rathlin. Nesse momento estava fazendo as manobras para embarcar a primeira das naves na baía. Sabia que devia sentir-se aliviado, orgulhoso de ter completado o planejado apesar da quantidade de obstáculos que tinha tido que superar. Entretanto, o êxito de sua missão lhe reportava muito pouca satisfação. A última conversa com Ellie seguia fazendo-o sofrer muito. Via-se obrigado a contar ao rei. Mas essa desagradável conversa teria que esperar. Antes de tudo, Erik deveria conduzi-los até a Arran e, depois dos atrasos imprevistos da noite anterior, queria dar-se tanto tempo como fosse possível.
Os dois grupos de homens que tinha deixado apenas umas semanas atrás se encontravam reunidos na borda para lhe dar a bem-vinda: o rei, seus aliados mais próximos e aquele punhado de vassalos leais a Bruce que tinham escapado com eles de Dunaverty em setembro. Mas a esse grupo se uniram uma centena mais de indivíduos, graças aos homens das ilhas contribuídos por seu primo Angus Og. Quando viu que a água ficava à altura de seus joelhos, Erik saltou pela amurada do birlinn e percorreu o caminho que o separava deles.
—Onde tinha se metido? —perguntou Bruce inclusive antes que pudesse pôr o pé na rochosa praia — Se supõe que tinha que chegar ontem. Isto é arriscar muito, inclusive para você, Falcão. —Olhou a seu redor — Onde está seu navio? Onde está meu sobrinho?
Erik torceu o gesto.
—Os ingleses nos encontraram na ilha de Spoon horas antes de nossa partida. Contar-lhes-ei isso tudo assim que cheguemos a Arran, mas Randolph e meus homens foram capturados.
Inclusive para um homem que tinha sofrido tantas decepções, não supôs um golpe fácil de digerir. Bruce estremeceu.
—Mortos?
Erik negou com a cabeça.
—Não acredito, majestade.
No momento Erik preferiu não dizer, mas se precaveu de que o rei estava abatido. Suspeitava que estaria pensando quão mesmo ele: que Randolph se mostrou resistente a partir naquela missão. O olhar do rei se endureceu e seus olhos se voltaram tão frios e escuros como o ébano recém polido.
—Espero que tenha uma boa explicação para tudo isso.
Erik assentiu. Isso mesmo esperava ele. Olhou a Chefe, que estava junto a Bruce.
—Estão todos preparados? —perguntou Erik.
—Sim.
Pela maneira em que o olhava o capitão da Guarda dos Highlanders, Erik sabia que também desejava lhe fazer umas quantas perguntas, mas como às de Bruce teriam que esperar.
Não demorou para acordar com o rei quem lideraria os navios irlandeses e dois dos navios dos homens das ilhas. Ewen Lamont, chamado Caçador, e Eoin MacLean, ao que conheciam como Assalto, tinham conduzido as outras duas naves junto aos irmãos de Bruce para Galloway para levar a cabo a segunda ponta de ataque contra os MacDowell. Com sete navios que comandar, cinco irlandeses e os dois de seu primo, decidiu que Erik comandaria a frota em um dos navios irlandeses e que Chefe capitanearia outra das naves de MacDonald, em que iria o rei. Como os seguidores deste eram a maioria das terras baixas da Escócia e tinham pouca experiência na navegação, Erik permitiu que os marinheiros irlandeses capitaneassem o resto de suas naves, e deixou Flecha MacGregor, o único membro da Guarda dos Highlanders presente, ao cargo do birlinn que ficava livre.
Menos de uma hora depois já estavam a caminho. Erik abria passo com os mercenários, navegando a pouca distância a diante para poder dar aviso em caso de que fosse necessário. Ao contrário da noite anterior, esta era boa para a navegação. O céu estava relativamente espaçoso para tratar-se das brumosas ilhas Ocidentais, e um vento constante os empurrava do norte. Seu destino, a ilha de Arran, ao nordeste de Spoon, na confluência da península de Kintyre com a costa de Ayrshire, encontrava-se apenas a uns sessenta quilômetros de Rathlin, mas seriam uns sessenta quilômetros cheios de tensão. Erik era consciente que o perigo se escondia atrás de cada onda. Uma coisa era burlar as patrulhas inglesas com um navio e outra muito diferente era fazê-lo com sete. Prestava especial atenção as cruzes de vias marítimas, consciente que às patrulhas inglesas gostavam de espreitar nos pontos em que se juntavam dois ou três corpos de água. Uma vez passado Rathlin, puseram rumo ao norte e ordenou que os navios pregassem as velas.
E foi uma decisão da mais afortunada. Estava seguro de ter visto o brilho de uma vela ao sul, onde o estreito de Rathlin se encontrava com o canal do Norte. Assim que margearam Rathlin, já não havia mais que mar aberto até chegar a Escócia. Mantinha os olhos bem abertos ante qualquer sinal, mas durante quilômetros não viu mais que a escuridão do céu e o trêmulo oscilar das resplandecentes ondas negras subindo e baixando. Quase diria que estava tudo muito tranquilo, havia muita calma depois do tumulto da passada noite. Pôs cerco a seus pensamentos antes que pudessem tomar forma. Ellie tinha entrado em sua cabeça muitas vezes, e tinha se proposto não pensar nela. Já o tinha distraído o bastante. Nesse momento todos contavam com ele para que os levasse até Arran a salvo, e desta vez nada se interporia em seu caminho. Nem sequer uma harpia intrometida e mandona de olhos matizados de verde, queixo teimoso e a pele mais suave que jamais havia tocado. Esquecê-la-ia, maldita seja. Esquecê-la-ia.
Quanto mais se aproximavam do promontório de Kintyre, mais suspeitas lhe davam seus pressentimentos. Apesar de não ter um sentido do perigo tão desenvolvido como o do vigia Campbell, cuja intuição punha os pelos arrepiados, sua vida dependia também de seus próprios instintos. A uma milha do promontório de Kintyre, ordenou baixar as velas e deu instruções ao resto dos capitães para que o esperassem. Ordenou a seus homens que remassem sem pronunciar palavra, mantendo todos os sentidos alerta ante qualquer movimento na escuridão. Quando alguns dos mercenários começaram a cochichar entre eles, Erik ameaçou cortando a língua do próximo homem que abrisse a boca. Devem ter acreditado porque o navio permaneceu em um silêncio espectral.
O birlinn avançava pouco a pouco na escuridão. Apesar da fria noite de inverno, o suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. O sangue palpitava no interior de suas veias à medida que examinava o horizonte que se estendia ante eles. Seus instintos estavam a flor da pele e clamavam por chamar sua atenção, mas não se via nada. Nenhuma só vela. Então seu olhar captou algo, uma sombra de estranhas formas na distância. Deu o sinal silencioso que ordenava parar a seus homens.
«Maldição.» Eram eles. As raposas estavam escondidas, com as velas recolhidas e a esperança de apanhar quantas moscas caíssem em sua teia. Táticas de pirataria. Não era, certamente, o momento mais apropriado para que os ingleses decidissem prestar atenção. Distinguiu não menos de seis escuras sombras, entre Spoon e a pequena ilha de Alisa Craig, que montavam guarda na boca do fiorde de Clyde, abortando com efetividade qualquer tentativa de aproximar-se de Arran. Erik deu a ordem de retirada com cuidado para evitar ser descoberto e voltou para onde estavam o resto das embarcações. Deteve-se junto ao birlinn de Chefe para informar ao rei e a seu capitão da armadilha que tinham estendido mais adiante. Bruce amaldiçoou e golpeou o punho contra a amurada como mostra de sua frustração.
—Mas como puderam saber?
—Não acredito que saibam — disse Chefe — Se soubessem que haveria um ataque, teriam bem mais de seis navios.
Erik concordou com ele. Boyd e Bruce se encontraram com barreiras similares ao retornar a Rathlin.
—Pois vá boa sorte que tiveram escolhendo precisamente esta noite — exclamou Erik.
—E vá má sorte a nossa — disse o rei — E eu dela já tive mais que suficiente. Tem que haver uma alternativa, pois é a única maneira de chegar a Arran. Podemos entrar um a um?
Erik negou com a cabeça. A noite era muito aberta; e o passo, muito estreito para evitar ser detectados.
—É muito arriscado. —«É a única maneira…» As palavras de Bruce lhe fizeram recordar algo. Mas claro! Em outras circunstâncias, Erik teria brilhado com seu famoso sorriso, mas o bom humor parecia havê-lo abandonado. Mais ou menos ao mesmo tempo que uma pequena babá — Mas me ocorre outra coisa —disse olhando a MacLeod — Podemos fazê-lo à maneira em que o faziam nossos ancestrais: descalços.
Bruce ficou perplexo.
—Por todos os demônios, do que está falando, Falcão?
Ao MacLeod brilharam os olhos e começou a esboçar um leve sorriso. Em uma estranha mudança de papéis, era Chefe que sorria como o demônio.
—Faz uma noite perfeita para se fazer de viking.
Sem dúvidas era. Navegar até Arran só seria possível pelo sul, passando o fiorde de Clyde, mas havia outra rota, um pouco menos convencional, uma rota para o norte que seus ancestrais tinham usado para evitar ter que navegar rodeando o longo braço de Kintyre. Erik, igual tinha feito duzentos anos atrás Magnus III da Noruega, o Descalço, conduziu ao exército pela zona ocidental do braço de Kintyre. Conduziram os navios eles mesmos pelo estreito passo de terra de Tarbert e assim conseguiram chegar a Arran do norte e sortear a armadilha que tinham estendido os ingleses. O melhor dos marinheiros de seu tempo levou a pé a frota até Arran. Mas tinham conseguido tomar posições. Em menos de vinte e quatro horas Bruce lançaria o ataque a seu ancestral assentamento do castelo de Turnberry, o que serviria como sinal de sua volta a Escócia e marcaria sua aposta final pelo trono.
Castelo de Ayr, Ayrshire
Depois da emoção da chegada e uma lacrimosa reunião junto a seu pai e seus irmãos maiores, John e Thomas, que o tinham acompanhado a Escócia, Ellie se desculpou dizendo que estava exausta e se retirou à solidão de seus aposentos.
Tinha conseguido prorrogar o interrogatório que a submeteria seu pai pelo que restava do dia, mas à manhã seguinte, depois de tomar o almoço, fizeram-na passar a sua câmara. Ali lhe aguardava uma surpresa.
Assim que abriu a porta, Matty voou para ela e se jogou em seus braços. Sua irmã chorava com tanta força que era impossível entender o que dizia, embora as palavras pouco importavam. O coração de Ellie se encheu ante aquela explosão de sentimentos tão sincera. Sabia que seus irmãos e irmãs a queriam, mas ver refletido de maneira tão aberta era algo que não deixava de comovê-la. Especialmente depois que sua própria espressão de amor tivesse topado com tamanha frieza por parte de Erik. Quando as lágrimas de Matty se acalmaram, esta se afastou um pouco de sua irmã para olhá-la com olhos chorosos e o rosto cheio de manchas. Ellie ficou surpreendida e franziu o cenho. Advertiu que algo em sua irmã tinha mudado: como se tivessem evaporado parte de sua exuberância e alegria de viver. Sua ausência a tinha afetado mais do que pensava. Matty piscou como se não pudesse acreditar que Ellie fosse real.
—Quando Ralph me disse que estava bem, não pude acreditar.
Ralph? Ellie alternou seu olhar de Matty a seu prometido, que tinha se postado no outro lado daquela pequena sala.
Seu pai a atravessou com um olhar acusador.
—Assim decidiu te apresentar aqui e vir comprová-lo?
Para surpresa de Ellie, desta vez Matty não ofereceu a seu pai nenhum de seus brilhantes infalíveis sorrisos. Em lugar disso, baixou a vista como se se envergonhasse.
—Sinto muito, papai. Tinha que vir.
Aquela resposta tão pouco característica de Matty incomodou tanto a seu pai como a Ellie. Esta se voltou para Ralph.
—Voltara até Dunluce para contar as notícias ao resto de minha família?
Este assentiu com cara de estar envergonhado.
—Sabia quão preocupados estavam.
A Ellie fez um nó na garganta ao precaver-se de quão injusta tinha sido com ele. Ela não era a única afetada pela aliança desse matrimônio. Tampouco devia ser fácil para ele casar-se com alguém após a morte da mulher que amava. Ralph de Monthermer era um homem bom, e Ellie prometeu a si mesma que corresponderia a sua bondade.
—Lhe agradeço — disse.
Parecia incomodá-lo sua gratidão. Ellie se precaveu que seu olhar posou em Matty justo antes de baixar a cabeça em sinal de reconhecimento. Tinha um mau pressentimento, mas seu pai começou o interrogatório antes que pudesse averiguar de onde provinha.
Ellie se manteve fiel à verdade como foi possível, incluído como tinha presenciado, por acaso, um encontro secreto entre aqueles homens na cova, dado que Randolph já tinha contado essa parte. Relatou-lhe que esses rufiões irlandeses não a tinham acreditado quando assegurou que não tinha ouvido nada do que disseram e que Falcão a tinha levado para que não a assassinassem. Explicou que tinha tomado seu sequestrador por um pirata, mas evitou qualquer menção às atividades que Falcão levava a cabo para Bruce.
—Tão somente me precavi da verdade quando chegou Eduardo Bruce —finalizou.
Seu pai perguntou mais coisas a respeito dos detalhes da chegada de Eduardo Bruce, mas ela não tinha nada que dizer a respeito. Parecia furioso pelo fato de que o irmão de seu cunhado não a tivesse reconhecido.
—E o tal Falcão alguma vez lhe disse seu nome? —perguntou seu pai.
Ellie quase desejava que não o tivesse feito.
—O único nome pelo que o chamavam era Falcão.
Aquilo era a verdade, embora finamente fiada.
—Isso mesmo disse Randolph — acrescentou Ralph.
—Alguma vez lhe falou de seus planos? —perguntou seu pai — O lugar ao que iria te devolver a casa? Se estavam planejando algo?
—Não — mentiu — O sinto.
Notou que seus olhos se alagavam de lágrimas. Mentir para seu pai era a coisa mais dura que jamais tinha feito. Mas tentava convencer-se de que não eram mais que pequenas mentiras em comparação com a ameaça que suportaria o homem ao qual tinha devotado seu coração. Seu pai interpretou aquelas lágrimas, em realidade provocadas pela culpa, como tristeza ante sua impossibilidade de ajudar. Rodeou-a torpemente com um braço e lhe deu um golpezinho no ombro.
—Não se preocupe, filha. Se seguir com vida, o encontraremos. —Seu rosto se endureceu — E quando o fizermos, encarregarei-me de lhe pôr uma soga ao pescoço com minhas próprias mãos.
O medo fez que seu pulso se acelerasse.
—Não! —gritou Ellie percebendo todo o peso dos cinco olhares e ruborizando-se por completo — Me salvou a vida. Não tinha mais opção que fazer o que fez. Não sabia quem era eu e, quando acabei confessando minha identidade, ficou furioso. Não tinha nenhum desejo de inimizar-se com você, papai.
Seu pai a olhou com atenção. Embora normalmente não fosse um homem muito perceptivo, Ellie se perguntou até onde teria chegado sua intuição.
—Isso pouco importará — concluiu — Se sobreviveu à tormenta, uma vez que o rei Eduardo o encontre, desejará não tê-lo feito. Nenhum dos seguidores de Bruce pode esperar piedade alguma.
O tom de voz de seu pai lhe chamou a atenção e, ao olhá-lo aos olhos, precaveu-se que algo o preocupava. Levantou-se de seu lado e caminhou até uma pequena janela da que se dominava o fiorde.
—Recebi uma carta do rei faz vários dias. Contava-me nela o que aconteceu com sua irmã.
A habitação ficou em um silêncio absoluto. O coração pulsava com força no peito de Ellie, que se preparava para as notícias de Isabel que tanto tinha esperado. Mas se a expressão de seu pai servia de indicativo, tratava-se de notícias que não desejava ouvir.
—Está na Noruega junto à irmã de Robert? —perguntou esperançosa.
Seu pai negou com a cabeça.
—Temo que não. Isabel, as irmãs de Bruce, sua filha e Bela MacDuff, a condessa de Buchan, foram capturadas faz meses no norte da Escócia quando tentavam escapar para a Noruega.
A habitação ficou em um silêncio espectral.
«Capturadas? Meu Deus.»
—Como? —perguntou Matty entre soluços.
O olhar de seu pai se endureceu.
—Da maneira mais pérfida e traiçoeira que possa imaginar. Foram traídos pelo conde de Ross depois que tomaram refúgio no santuário da ermida de São Duthus, em Tain.
—Ross violou o santuário? —perguntou Ralph horrorizado.
Seu pai assentiu. Aquilo era uma ofensa atroz aos olhos da Igreja.
—Mas seguem com vida? —perguntou Ellie em um tom esperançoso em sua voz.
Seu pai assentiu, mas era óbvio que aí não ficava a coisa.
—Mas por que não soubemos isto até agora? —perguntou Matty — Disse que ocorreu faz meses.
Ellie não recordava ter visto seu pai tão pesaroso.
—Suspeito que o rei não quis que soubesse e que só se decidiu me dizer isso uma vez que estava na Escócia, consciente que me inteiraria de todos os modos.
—Se inteiraria do que? —perguntou seu filho John.
Os olhos de seu pai se acenderam de cólera.
—Da maneira vil e desprezível em que foram tratadas. —Aferrou-se ao parapeito da janela de pedra até que lhe doeram as mãos — Eduardo ordenou que todas elas, até a filha de nove anos de Bruce, fossem encerradas em jaulas e suspensas no alto da torre de um castelo.
O grito afogado de Ellie esteve acompanhado pelos do resto. Seu horror era tal que nem sequer podia pronunciar uma palavra para expressar sua incredulidade.
—O rei ficou louco — disse Ralph — Suponho que terá retificado.
—Fez com Isabel, a filha pequena de Bruce, Marjorie, e sua irmã Cristina. Mas a condessa e sua outra irmã, Mary Bruce, não foram tão afortunadas. Estão penduradas em jaulas de madeira sobre Berwick e Roxburgh há meses.
O alívio que Ellie sentiu ao ver que sua irmã não estava sujeita a tanta crueldade se viu moderado ao tomar consciência que duas mulheres que conhecia não tinham tido a sorte de escapar da selvagem forma de repartir justiça de Eduardo. Ou talvez fosse melhor dizer de clamar vingança. Não lhe cabia dúvida de que Bela MacDuff era castigada de maneira tão cruel por tomar parte na coroação de Bruce.
—Não pode fazer nada? —perguntou Ellie.
Seu pai negou com a cabeça.
—Consegui persuadi-lo para que transfira Isabel da masmorra de Roxburgh a um feudo de Burstwick, mas não quer ouvir nenhum pedido de clemência em relação as outras. O rei está decidido a esmagar a rebelião e ver os traidores castigados da maneira mais horrenda possível. Ninguém está a salvo. Nem as mulheres, nem os meninos, ninguém.
Ellie sentiu um calafrio ao recordar as palavras de advertência de Erik. Não podia imaginar quão proféticas e próximas à verdade estariam.
«Minha querida Isabel.»
—O rei não aprendeu nada de Wallace — murmurou Ralph.
Estava certo. O rei Eduardo pensava que podia ganhar o respeito dos escoceses através do medo e da intimidação, sem mostrar piedade e assassinando de forma sanguinária, mas, ao comportar-se desse modo, tão somente tinha conseguido levantar o país em seu contrário.
O medo, maior inclusive do que havia sentido antes, gelou o sangue de Ellie. Não queria nem pensar no que Eduardo teria em mente para Robert e seus companheiros se os planos destes falhassem.
«Protejam-se.»
Uma chamada à porta interrompeu aquele silêncio de velório. Entrou o capitão da guarda de seu pai, seguido de um homem ao que ela somente tinha visto uma vez na corte fazia tempo, mas que conhecia muito bem por sua reputação: sir Aymer de Valence, o chefe das tropas do rei Eduardo na Escócia, que logo seria conde de Pembroke, quando morresse sua mãe, que se dizia estava muito doente.
Foi a traição de sir Aymer na batalha de Methven a que tinha parecido uma lança no coração da rebelião de Bruce, quando concordou em fazer uma trégua no combate até o amanhecer para logo atacar durante a noite. Seu pai e Ralph obviamente estavam surpreendidos com sua chegada. Sir Aymer não tinha tomado o tempo necessário para tirar o capacete nem o casaco, mas o fez então e os passou a um escudeiro que vinha atrás dele. Nem sequer deu tempo para que as damas se retirassem, mas sim sorriu como se trouxesse a melhor das notícias.
—Acabo de receber novas. Por fim teremos a oportunidade de acabar com isto de uma vez por todas. O Rei Capuz voltou. Bruce atacou Percy em Turnberry.
Sir Henry Percy tinha recebido o condado de Carrick e o castelo de Turnberry, usurpados de Bruce.
Ellie realizou uma prece de agradecimento. Se Bruce tinha atacado, tinha que ser porque Erik tinha chegado a tempo. Aquela onda de alívio durou pouco. Ao ouvir as notícias, necessitou o maior dos esforços para conter-se e não precipitar-se a perguntar pelo resultado da batalha.
—E? —perguntou Ralph por ela.
De Valence ficou circunspeto.
—Percy pediu reforços. Isso é tudo o que sabemos. Mas, segundo o relatório inicial, Bruce só contava com várias centenas de homens. Percy o apanhará.
O coração de Ellie, alagado de temor ante o perigo que sofria Erik, deu um violento tombo. Não podia mais que esperar que o afamado cavalheiro estivesse equivocado.
Erik permanecia escondido entre a escura coberta das árvores, contemplando a velha igreja e esperando um sinal. Esperava com toda sua alma que nada fosse mal nessa ocasião. Que não ocorresse como em Turnberry. A primeira incursão de Bruce na Escócia tinha sido um êxito, mas somente parcial. Ao princípio tudo foi conforme o planejado. Em tanto que Bruce e o resto das tropas esperavam em Arran a que se desse o sinal desde Kingcross, os quatro membros da Guarda dos Highlanders, MacLeod, MacGregor, Boyd e ele mesmo, tinham zarpado rumo a Alisa Craig, uma pequena ilha a poucas milhas da costa de Carrick. Dali nadaram até Turnberry para preparar a batalha e assegurar-se que não os esperava nenhuma armadilha. Esse era exatamente o tipo de missões para que a Guarda dos Highlanders tinha sido criada: entrar e sair sem ser vistos de situações perigosas por meio de métodos pouco convencionais, em especial aquelas que investiam um grande perigo.
Uma vez reconhecido o terreno e disposta a melhor estratégia de ataque, tinham que acender um fogo na colina que ficava no lado oposto do castelo, para dar o sinal de ataque ao resto das tropas de Bruce. Mas Erik mal tinha dado os primeiros passos para a praia quando aconteceu o desastre. Chefe amaldiçoou e assinalou para a colina em penumbras. Na escuridão da noite as chamas laranjas do fogo refulgiam como uma ameia ou, no presente caso, como um sinal. Alguém tinha aceso um maldito fogo, de modo que Bruce e seu exército se colocariam a caminho independentemente de que fosse seguro fazê-lo ou não.
Sem tempo para o reconhecimento do terreno, Bruce não teve ocasião de tomar o castelo como tinham planejado, mas atacar e saquear o acampamento de soldados ingleses do povoado próximo lhes reportou uma pequena vitória. Lorde Henry Percy, o usurpador do condado de Bruce e sua guarnição de ingleses, viram-se obrigados a encerrar-se no castelo para evitar a derrota à mãos dos quatrocentos homens de Bruce. «Os muito covardes.» Mas as tropas de Bruce tinham tido sorte. Muita sorte.
Erik não celebrou essa boa sorte, já que era um homem que não esperava menos de sua vida. A boa sorte já não lhe interessava. Ultimamente nada lhe saía bem. Tudo tinha começado nessa cova. Obrigou-se a afastar seus pensamentos da filha de Ulster — preferia pensar nela dessa forma —, e se concentrou na tarefa que lhe ocupava.
A semana seguinte a Turnberry, Bruce e seus homens se esconderam entre os urzes, procurando refúgio nas colinas e bosques de Carrick, evitando ser capturados por meio da constante mudança de posições. Sua intenção era elevar-se e perseguir os ingleses com pequenos grupos de batalha até que pudessem recrutar a mais homens para a causa de Bruce. Mas aquilo não estava funcionando segundo o previsto. Poucos homens tinham se unido desde Turnberry. Os escoceses necessitavam algo mais que uma pequena vitória moral para arriscar-se a provocar a ira de Eduardo. E deTurnberry tinham tentado conseguir notícias da ponta de ataque sul em Galloway conduzida pelos dois irmãos de Bruce, mas suas constantes mudanças de posição faziam que inclusive seus amigos tivessem muitas dificuldades para encontrá-los. Não obstante, a ajuda de um sacerdote afim estava a ponto de acabar com aquilo.
Nesta ocasião, o sinal não era uma fogueira a não ser o ulular de um mocho. Para ouvi-lo, Erik saiu dentre as penumbras e caminhou com cautela pela ladeira da colina até o vale que havia mais abaixo, onde se erguia a antiga igreja. Não era mais que uma planta de doze metros quadrados com um telhado, mas era utilizada como lugar de culto local há séculos.
Por trás de uma cruz de pedra de aparência ancestral saiu uma silhueta conhecida. Um homem que Erik não via há um ano, quando, depois de fracassar na prova final para converter-se em membro da Guarda dos Highlanders, abandonou a ilha de Skye. Mas a verdade era muito mais complicada que isso.
Erik se adiantou e sentiu desejo de sorrir pela primeira vez em semanas. Estendeu-lhe a mão e ambos fundiram seus antebraços agarrando-se com força.
—Me alegro de lhe ver, Vigia —disse Erik usando o nome de guerra que Bruce lhe tinha dado — Passou muito tempo. Espero que tenha praticado sua habilidade para interceptar lanças desde a última vez que nos vimos.
Arthur Campbell soltou uma gargalhada ante a referência à prova em que tinha «fracassado». Desde aquele suposto fracasso, Erik teve ocasião de inteirar-se de que tudo tinha sido parte de uma artimanha para situar Campbell em campo inimigo. Era Chefe o único que tinha conhecimento daquilo. Os outros membros da guarda se enfureceram muito ao saber que tudo era um engano, já que tinham pensado que o que antes foi seu amigo os tinha traído. Aquilo não voltaria a ocorrer. Chefe tinha tomado medidas necessárias para isso.
Foi graças a Campbell que obtiveram a maior parte da informação secreta dos últimos meses
—Que lhe dê, MacSorl…
—Falcão — interrompeu Erik subitamente.
Campbell assentiu ao compreender ao que se referia. Partiu antes que se decidisse usar nome de guerra.
—A mesma porcaria com diferente nome — disse Campbell com um sorriso de brincadeira. O afamado rastreador olhou a seu redor, assegurando-se que não havia ninguém mais — Venha — disse — Tenho alguém que está desejando lhe ver.
—O que há das notícias…
—Ele mesmo dirá — disse isso Campbell em tom sério.
Erik o seguiu pelo vergel em direção à igreja, advertindo a fina cota de malha e o tabardo que levava Campbell sob seu casaco negro.
—Ouvi que Eduardo lhe nomeou cavalheiro depois de Methven. Não posso negar que têm toda a pinta de um.
Mas sob toda essa armadura, Campbell levava o mesmo leão rampante que todos eles.
—Pode se dar um montão de desinformação, embora tampouco serve de muito —disse Campbell fazendo uma careta.
—Fez o que esteve em sua mão. Estou seguro de que não foi fácil.
Campbell abriu a porta após emitir um som agudo que pretendia sugerir que mesmo assim ficava muito curto. Uma vez no interior, ao Erik deu a sensação de entrar em uma cripta. Fazia frio e imperava um silêncio absoluto. Um aroma de umidade e uma incomum quietude impregnavam a atmosfera, como se não tivessem aberto a porta durante muito tempo. Ao fundo havia um pequeno altar sobre uma plataforma alta; e abaixo dele, uma fileira de velhos assentos de madeira. À direita, uma tumba, provavelmente o destino final de descanso de um dos primeiros sacerdotes que ali habitaram. Atrás dela, momentos depois de que a porta se fechasse, emergiu uma sombra. Através da solitária janela se filtrava um só raio de lua, e ao Erik custou um tempo acostumar-se à escassa luz. O homem se desprendeu do capuz e Erik não teve mais remédio que amaldiçoar: tratava-se de Lachlan MacRuairi, Víbora, seu primo e também membro da Guarda dos Highlanders.
Erik avançou para ele e lhe deu um abraço, sabendo que aquilo o incomodaria, ou talvez precisamente por isso. Embora Lachlan MacRuairi fosse um bode de sangue muito frio, sigiloso e mortífero, como a serpente a qual devia seu nome de guerra, isso não evitava que se alegrasse muito de vê-lo.
—O que está fazendo aqui? —perguntou Erik — Pensávamos que estaria honrando a corte da Noruega com essa sua disposição à alegria.
Assim que a cara de MacRuairi saiu da penumbra, Erik soube que algo ia mau. Aqueles olhos que normalmente não mostravam expressão alguma tinham um aspecto próximo à loucura e ao pânico. O brilho de humor que tinha experimentado Erik se esfumou de repente.
—Onde está a rainha? —disse.
Quando se viram obrigados a separar-se depois da batalha de Dal Righ, seu primo ficou a cargo de velar pela rainha, as irmãs de Bruce, sua filha pequena e a condessa de Buchan. Nos olhos de MacRuairi se apreciou o brilho de um olhar funesto. Erik soube o que estava a ponto de dizer inclusive antes de ouvi-lo.
—Capturada. O conde de Ross nos traiu antes que pudéssemos nos pôr a salvo na Noruega.
Seu primo fez um rápido repasse à série de acontecimentos que levaram a captura das damas e a posterior violação do santuário de Ross. MacRuairi tinha se salvado de correr a mesma sorte por algum jogo de palavras do destino que se negou a explicar. Mas os outros dois membros da guarda que estavam no mesmo grupo, Templário, William Gordon; e Santo, Magnus MacKay, não tinham tido a mesma sorte. Após, MacRuairi não tinha cessado em seu empenho por liberá-los. Gordon e Mackay estavam em uma masmorra no castelo de Urquhart sob a vigilância de Alexander Comyn. A única razão para que não os executassem imediatamente era que os tinham tomado por guardas ordinários. Mas as mulheres… Erik sentiu náuseas quando ouviu o que tinha sido delas.
Uma jaula? Por todos os Santos. Bruce estaria consumido pela tristeza. Seus pensamentos se dirigiram a Ellie, e desta vez permitiu que se detivessem nela por um momento. Fazia o correto. Era preciso afastá-la o quanto pudesse de toda essa loucura.
—Temos que fazer algo — disse MacRuairi.
Ao fim Erik pôde localizar a fonte desse olhar de histerismo. Estava desesperado por liberar a seus amigos e companheiros.
—Te levarei junto ao rei.
—Temo que há mais má notícias — disse Campbell. Erik se preparou para o pior, mas não foi suficiente — O ataque do sul fracassou. Foram traídos. Os MacDowell estavam a par de sua chegada e acabaram virtualmente com toda a frota. Só sobreviveram uns poucos homens.
Uns poucos, de quase setecentos homens e dezoito galeões?
Uma brecha de desesperança atravessou o peito de Erik.
—E os irmãos do rei? —perguntou sem emoção alguma.
Campbell negou com a cabeça mostrando sua tristeza.
—Decapitados faz uns dias em Carlisle.
Três dos irmãos de Bruce tinham sido executados no mesmo número de meses. Acaso aquilo não acabaria alguma vez? A pequena mostra de esperança que tinha tido depois do ataque de Turnberry tinha sido cruelmente aniquilado. Esmagado por aquele que se denominava a si mesmo o Martelo dos Escoceses.
—Caçador e Assalto?
—Não sei — disse Campbell. De repente seus sentidos se aguçaram e ficou com esse olhar vazio que resultava tão inquietante.
—O que acontece?
—Não estou seguro. — Campbell foi para a janela para inspecionar — Cavalos —disse.
—Eles o seguiram? —perguntou Erik.
Campbell lhe dirigiu um olhar cáustico para lhe deixar claro que essa pergunta estava de mais.
—Será melhor que saiam daqui. Eu me ocuparei de tudo. — Erik se dispôs a discutir, mas então Campbell acrescentou —: Não pode me ver com vocês.
Erik assentiu. Estava certo. O subterfúgio de Campbell tinha que ser protegido.
Pouco depois, Erik e seu primo escapuliam da igreja e desapareciam entre as sombras.
Capítulo 22
Dia de São Gunioc,
13 de abril de 1307
Ellie olhava pela janela da torre do castelo de Ayr, à espera de um navio que nunca chegaria. Daquela posição privilegiada, o ensolarado dia da primavera oferecia uma vista perfeita dos resplandecentes mares azuis do fiorde de Clyde. A ilha de Arran se avistava na lonjura e mais à frente uma mancha minúscula no horizonte sobre a que ela se empenhava em desenhar os rochosos escarpados de Spoon. Sentiu de novo aquela pontada no peito, uma nostalgia que tinha tido já quase dois meses para desvanecer-se. Já era hora de que aceitasse a verdade. Se tivesse querido ir procurá-la, o teria feito.
Quando teve conhecimento da vitória de Bruce em Turnberry, embargou-a uma pequena parte de ingênua e insensata esperança: a esperança que ele sofria tanto como ela. A esperança que o tempo e a distância fizesse que ele desse conta que entre eles havia algo especial. A esperança que decidisse subitamente que a amava tanto como ela a ele. Mas à medida que passavam as semanas em um longo e doloroso silêncio, Ellie tinha que confrontar a realidade. Ele já sabia onde encontrá-la porque Domnall o haveria dito, e graças às regulares missivas que sir Aymer fazia a seu pai, também ela sabia que Bruce se encontrava nos arredores, acossando e derrubando as rotas de aprovisionamento dos ingleses das montanhas de Galloway.
Era hora de que aceitasse a verdade. Erik não faria nenhuma grande aparição. Não mandaria notícias nem iria procurá-la. Não deteria suas bodas com Ralph. Tudo tinha acabado e o mais provável era que não voltasse a vê-lo.
Aquela familiar queimação alcançou de novo seu peito. Mas, a pesar da dor, não era capaz de arrepender-se. No pouco tempo que tinham passado juntos, Erik lhe tinha ensinado a respirar de novo. Depois dos momentos de aventuras e emoções passadas em Spoon, prometeu a si mesma não voltar a cair na aborrecida existência a que tinha ficado relegada com antecedência.
Voltou as costas à janela da torre e começou a descer a escada com o coração esmigalhado por uma resolução. Não derramaria mais lágrimas por um homem que provavelmente se esqueceu por completo dela. Tinha que continuar com sua vida e deixar de velar por um sonho que jamais foi realizável. Matty voltaria para Dunluce no final da semana e Ellie tinha decidido partir com ela. Já tinha atrasado os preparativos das bodas durante tempo suficiente. Junho se aproximava a toda pressa e não ficava espaço para as indecisões.
Apesar do desconforto que lhe provocava Ralph tinha desaparecido, Ellie não podia evitar o pressentimento de que algo ia mal entre eles. Embora tampouco podia encontrar motivo algum para não casar-se com ele. Desde sua volta tinha feito um esforço por conhecê-lo melhor, e a recompensa disto foi precaver-se de que em realidade lhe caía bem. Claro está que ganhou sua gratidão eterna quando atendeu ao pedido de clemência para os homens de Erik, salvando suas vidas e transferindo-os dessa horrível masmorra a um edifício seguro do povoado. Talvez não lhe surpreendesse muito quando duas noites depois uma estranha explosão abria um buraco no muro de pedras do edifício e os homens conseguiam escapar. Sabia quem se encarregou disso.
Tinha estado tão perto dela…
Ellie cruzou o grande salão até a câmara contigua com a intenção de transmitir a seu pai seu desejo de retornar a Irlanda, mas o ruído das vozes a deteve. Sir Aymer estava ali de novo e, apesar da promessa feita de deixar atrás Erik e seu passado, lhe alterou o pulso. Estava claro que o oficial inglês traria notícias frescas dos rebeldes. Embora a porta estivesse fechada, Matty e ela tinham descoberto que, quando se sentavam frente à lareira para fazer suas tarefas de bordado, podiam ouvir a maioria da conversação através da fina parede que dividia as estadias. Era consciente de que fazer isso resultava vergonhoso, mas fazia já semanas que sua ânsia de saber o que passava tinham superado o sentimento de culpa por escutar às escondidas.
A voz de sir Aymer soava mais alta inclusive que outros dias e sua evidente excitação fez que a Ellie o coração desse um tombo. Ouviu falar com Ralph e depois a exaltada resposta de sir Aymer.
—Estou seguro de que esta vez os temos. Vi sua toca com meus próprios olhos.
A Ellie o mundo veio em cima. Não podia ser! Teve que obrigar-se a recuperar a calma. Tinha ouvido sir Aymer dizer o mesmo muitas vezes, mas Bruce sempre arrumava para escapar. Certamente seu pai deve ter pensado o mesmo.
—Como pode estar seguro que não se moverá antes que suas tropas se posicionem? —perguntou — Bruce não fica nunca muito tempo no mesmo lugar.
—Estão preparando um banquete. Ao que parece, é o aniversário de um de seus homens e vão trazer algumas moças do povoado e um barril de cerveja. Não irão a nenhum lugar nesta noite.
«Mulheres.» Deu-lhe uma pontada no coração. Não só pelo medo, mas sim por algo mais. Conhecia Erik muito bem.
Mas sir Aymer estava certo: se preparavam para dar um banquete, não era provável que tivessem intenção de partir. Seria esta finalmente a ocasião em que os ingleses capturariam ao fugidio Rei Capuz?
—Como os encontrou? —perguntou seu pai.
O poderoso inglês falou com o orgulho de um moço que pescou seu primeiro peixe.
—Um de meus homens ficou ciumento ao precaver-se de que uma moça da cervejaria do povo que gostava ia e vinha a horas inoportunas. Ontem à noite decidiu segui-la e quase deu de bruços com o acampamento. Tinha que ter pensado nisso antes. Segue às mulheres e lhe levarão aos homens.
—Por que não atacaram imediatamente? —perguntou Ralph.
—Estão acampados em um vale entre duas montanhas rochosas — respondeu sir Aymer.
—E não pode passar com seus cavalos — acrescentou Ralph para finalizar sua frase.
—Sim, de modo que nos esconderemos no bosque próximo e cairemos sobre eles sem prévio aviso. Que seus homens se reúnam conosco no bosque que há perto do lago na garganta de Glen Trool. Atacaremos ao amanhecer junto aos highlanders de MacDougall que vêm pelo norte, os homens de MacDowell do sul e as tropas adicionais inglesas do rei. Os esmagaremos de uma vez por todas. —Ellie ouviu um punho que golpeava sobre a madeira — Mas quero me assegurar por completo que desta vez não escapará. —ficou em silêncio um momento — Têm alguma faxineira leal a seu serviço?
Aquela era uma estranha pergunta. O comum era que os exércitos vencedores usassem aos locais como servos, e os ingleses não supunham uma exceção. Havia poucos serventes pessoais que entrassem em combate e os que o faziam sempre eram homens.
—Não — começou a dizer seu pai, e logo se deteve, ao precaver-se ao mesmo tempo que Ellie da razão pela que ia a eles: Ellie e Matty — Sim, minha filha Matty trouxe uma ajudante de câmara com ela. É de confiança. O que planeja?
Ellie quase pôde ouvir o sorriso de sir Aymer.
—Haverá uma mulher a mais no banquete desta noite.
—Uma espiã? —perguntou Ralph.
—Sim, para descobrir quantos são e com que armas contam. Apesar dos rumores, Bruce não tem nenhum exército de fantasmas. Quero saber quem são seus homens. Com os problemas que me causaram tenho em mente algo especial para eles.
Um frio estremecimento percorreu as costas de Ellie. Não era a primeira vez que ouvia falar do exército fantasma de Bruce, e algumas das histórias a respeito desses misteriosos guerreiros de força e habilidade sobre-humana de tinturas horripilantes lhe resultavam familiares.
—Alice é uma garota respeitável e não uma puta — disse seu pai sem ocultar seu desgosto.
—É obvio que não — respondeu sir Aymer arrependido — Não se esperará dela mais que ajudar com a comida e a cerveja. Assegurar-me-ei que essa mulher seja muito bem recompensada pelos problemas que lhe causem. —Certamente seu pai não as tinha todas consigo — Não correrá perigo algum — assegurou sir Aymer — Meus homens a escoltarão até os limites do acampamento quando o banquete estiver em seu apogeu. Pode dizer que se perdeu do resto do grupo. Nesse momento já estarão muito bêbados para discutir.
—Pensou em tudo — disse seu pai secamente.
Ellie se afastou dali como em transe e com o coração pulsando a toda pressa, enquanto tentava dar sentido tudo aquilo que tinha ouvido.
Uma coisa estava clara: os ingleses tinham preparado uma armadilha para Bruce, e se ninguém os avisasse, estaria em grave perigo. Correu escada acima para a pequena câmara que compartilhava com sua irmã, sem saber ainda o que faria, mas consciente de que tinha que fazer algo. Não podia permitir que o matassem. Não, quando estava em sua mão ajudá-lo. Embora ele não a correspondesse, ela seguia amando-o.
Além disso, lhe devia. Assim que descobriu sua identidade, tinha que ter contado quem era ela. Não podia arrepender-se de ter feito amor com ele, mas sim que a inquietavam as dificuldades que poderia lhe ter causado com isso. Deu-se conta muito tarde que suas ações seriam vistas como um ato de deslealdade para o rei. E compreendia quão importante para ele era isso por quanto tinha descoberto de seu passado. Talvez fosse o momento de reparar seu engano. Mas o que poderia fazer?
Arrastada por um impulso frenético, abriu a porta de repente e se surpreendeu ao encontrar com sua irmã olhando pela janela em uma atitude muito parecida com a que ela tinha tido antes. Havia algo triste e desamparado na queda desses ombros. Matty se voltou ao ouvi-la e sorriu, mas não lhe brilharam os olhos ao fazê-lo. Ellie estava tão ensimesmada em seu próprio desamor que não se precaveu que Matty tinha estado ausente ultimamente. Prometeu-se que averiguaria o que acontecia a sua irmã, mas antes teria que encontrar a maneira de advertir Erik.
Começava a conceber as primeiras linhas de um plano, um plano arriscado, ao tempo que infestado de perigos.
Matty foi a seu encontro.
—O que acontece?
Ellie percebeu o olhar de preocupação de sua irmã e sentiu que caía sobre ela o peso dos dois meses passados. Não queria que sua irmã tivesse que carregar com seus segredos, mas sabia que, se decidia a fazê-lo, teria que contar com sua ajuda. Respirou profundamente.
—Necessito que me ajude.
Erik MacSorley, homem conhecido por mostrar-se sempre alegre, estava agora de um humor de cães perpétuo. Nem sequer a preciosa moça que tinha sobre seu colo e fazia tudo o que podia para animá-lo podia curar aquilo do que padecia. Tinham-lhe arruinado a vida. Enfeitiçado por uma menina de sedoso cabelo escuro e deslumbrantes olhos castanhos, matizados de verde, que lhe perseguia de dia como de noite, como cada um dos condenados minutos que tinha vivido com ela. Não a tinha esquecido, mas sim suas lembranças estavam mais vivas que nunca e se contrapunham a tudo o vivido antes e depois, criando um marcado contraste que fazia que todas as demais pessoas parecessem ordinárias comparadas com ela. A ironia da primeira impressão que lhe tinha causado era que tinha permanecido sempre aí.
Ela era diferente, agora se dava conta. Era especial. Embora dar-se conta não mudava nada. Ela não era dele e jamais seria. Nos momentos em que se encontrava com o ânimo mais baixo se torturava perguntando-se se já teria se casado com aquele maldito inglês.
A moça notou que seus músculos ficavam em tensão e brincou com o bem que vira relaxar-se. Roçava-lhe o pescoço com a ponta do nariz e ria enquanto fazia propostas ao ouvido, mas ele não sentia mais que uma incerta moléstia. Estava cansado de sorrir e agradecer como um parvo ante as moças que o olhavam como se tudo ele o fizesse bem. Queria uma mulher que discutisse com ele, que o desafiasse e se preocupasse o suficiente para escavar sob a superfície, que estivesse disposta a dar tanto como ela esperava receber.
«Te amo.»
Repetia essas palavras em sua mente uma e outra vez. Via o rosto dela sob a luz da lua e não podia evitar a sensação de que tinha cometido um engano, de que aquilo que Ellie lhe oferecia era especial e que ele tinha estado muito cego para vê-lo, que talvez essas palavras tantas vezes ouvidas significassem algo diferente se provinham de seus lábios. Mas não era certo que lhe tinha devotado matrimônio? Era ela que o tinha rechaçado. E como teria podido aceitá-lo? Se não tinha nada que lhe oferecer.
Apertou o pesado cálice de latão entre seus dedos até que fincou as bordas da gravura em forma de flor de lis que tinha como relevo. Que diabos lhe estava passando? Zangado consigo mesmo, tentou relaxar e motivou um tanto à moça. Mas aquelas provocações e sedução lhe pareciam forçadas e logo se cansou das brincadeiras. Sentiu certo alívio quando a moça, ainda sobre seus joelhos, voltou-se para falar com a mulher que se aproximou para lhe encher a jarra de cerveja.
Erik deu um longo gole e olhou a buliçosa multidão de homens meio bêbados concentrados ao redor da tenda iluminada por tochas. Embora não compartilhasse com eles a farra, não os culpava por divertir-se. As oportunidades para a celebração tinham brilhado por sua ausência ultimamente, e os homens necessitavam algo que lhes levantassem a moral. Era a primeira vez que via Bruce sorrir desde que chegou a fatídica notícia da decapitação de seus irmãos e a captura de suas mulheres. Pouco espaço houve entre meio para as boas notícias. Caçador e Assalto estiveram entre os poucos que conseguiram escapar da falida segunda ponta de ataque de Galloway. Em uma missão de dois dias no norte, os membros restantes da Guarda dos Highlanders, entre os que se incluía Dragão, Alex Seton, que deu com eles pouco depois de Turnberry, conseguiram entrar no insuficientemente defendido castelo de Urquhart e resgatar o Santo, Magnus MacKay, e Templário, William Gordon, depois de meses de cativeiro. Uma semana depois daquilo com a ajuda dos pós mágicos de Gordon, liberaram Domnall e ao resto dos homens de Erik em Ayr.
Mas esses êxitos tinham que ficar na balança junto aos duros custos que cobrou a guerra: os três irmãos de Bruce, Christopher Seton, o conde de Atholl, a família cativa, e muitos outros. Até então a volta a terras escocesas não tinha reportado ao Bruce mais que umas centenas de acres de umas montanhas esquecidas de Deus em Galloway. Faziam poucos avanços contra os ingleses desde a batalha de Turnberry. Os assaltos e pequenos ataques às rotas de provisões não bastavam para recrutar mais homens para a causa do rei. Andavam com a água ao pescoço, mantendo a cabeça o suficiente alta para não afogar-se. E ao final se cansariam. Necessitavam algo decisivo para atrair a mais combatentes para unir-se a sua luta. Mas desta vez o rei se mostrava paciente e rechaçava enfrentar os ingleses a não ser que fosse segundo seus próprios termos. Erik esperava que as condições se dessem logo. Qualquer vantagem conseguida pelo impulso de Turnberry se dissolveria com rapidez entre o barro e a imundície da vida de perseguidos.
Mas essa noite quase haviam tornado a sentir-se homens civilizados. Depois de meses vivendo virtualmente na miséria resultava agradável sentar-se a uma mesa de novo. Ao contrário dos nobres ingleses, que viajavam com carros cheios de comodidades domésticas, Bruce precisava viajar leve de bagagem para transladar-se no mínimo tempo possível. Entretanto, para a festa dessa noite, uma das familiares do rei, Cristina de Carrick, tinha arrumado tudo para que instalassem uma tenda e levassem mesas e bancos até seu aquartelamento provisório na montanha próxima a Glen Trool.
Como convidado de honra, Erik estava sentado no centro da mesa, a uns assentos de distância do rei, seu irmão Eduardo, James Douglas, Neil Campbell, MacRuairi, MacGregor e MacLeod. Pela extremidade do olho advertiu que seu primo discutia de novo com o rei. Se havia alguém cujo mau humor podia rivalizar com o de Erik esses dias era MacRuairi. Não precisava ouvi-los para saber a respeito do que discutiam. O rei tinha rechaçado aceitar os repetidos pedidos de MacRuairi para salvar às damas de seu cativeiro. Necessitava-os com vida, dizia o rei. Tentar resgatar às damas ferreamente custodiadas das fortalezas inglesas teria sido uma missão suicida nesse momento. Não podia arriscar-se a perdê-los, não quando sua situação era tão precária. Assim que conseguisse afiançar seu assentamento, ele mesmo se encarregaria de liderar a Guarda dos Highlanders. Mas a MacRuairi não satisfazia razão alguma. Parecia que estava possuído em sua determinação por liberar as damas, especialmente as que estavam penduradas em jaulas.
—Não parece desfrutar de seu presente — disse MacLeod, do seu assento à esquerda de Erik, com toda a intenção.
Erik desafiou o olhar de certeza dos olhos de seu chefe deslizando uma mão sob o redondo traseiro da moça.
—Não, estou desfrutando do lindo.
Tentou não sair correndo quando a moça começou a rir e a rebolar mais sobre suas pernas, roçando com sua mão divertidamente. Mas por sorte estava muito entretida em desfrutar de sua cerveja e no bonito rosto de MacGregor a sua direita para continuar com seus cuidados. O mais deprimente era que não sentia surgir nem a mais leve faísca de fogo competitivo em seu interior. Quase desejava que o afamado arqueiro a tirasse das mãos ou, melhor dizendo, das pernas.
—Foi ideia do rei — disse McLeod olhando-o por cima do cálice que sorvia — Acredito que é sua maneira de lhe pedir desculpas.
—Não tem do que desculpar-se — disse Erik — ofendi sua honra e pus as coisas mais difíceis se couber entre seu sogro e ele. Não me deu menos do que merecia.
—Ulster não parece havê-lo tomado como algo pessoal — disse MacLeod — Quanto à honra do rei — acrescentou encolhendo-se de ombros —, acredito que se arrepende de algumas coisas que disse.
—Me teria pendurado pelos ovos se tivesse podido.
O Chefe da Guarda dos Highlanders não discutiu.
—Certamente está certo. Mas é muito valioso e ele sabe. Além disso, necessita a cada um de seus homens neste momento. — MacLeod o olhou aos olhos — Acredito que a deserção de Randolph o afetou muito. Mais do que reconhece.
Erik concordava com ele. Tinha afetado a todos. Domnall lhes contou todos os detalhes, mas em resumo tinha ocorrido como ele suspeitava. Oportunismo, sem dúvida, mas nem por isso supunha uma traição menor. Tomava como um fracasso pessoal. Randolph estava sob suas ordens. Pensava que tinha conseguido influir favoravelmente o menino. Ao que parecia, não tinha sido assim.
—Em qualquer caso — disse MacLeod —, agora que sua ira se aplacou, acredito que o rei pensa que não é o único culpado do que ocorreu. Você não sabia quem era ela. Acredito que está mais zangado com seu irmão por não reconhecer à moça. — Esboçou uma careta que era meio sorriso — Além disso, o rei tampouco esqueceu o que se sente quando a gente está apaixonado.
Desentendeu-se por completo da moça que estava sobre seus joelhos e a ponto esteve de atirá-la ao chão quando se voltou para o homem que tinha a seu lado. Fulminou-o com o olhar.
—Apaixonar-se? — disse soltando uma gargalhada — Pelos pregos de Cristo, eu não estou apaixonado.
O feroz guerreiro o olhou desafiante.
—Então há alguma outra razão para o mau humor destes dois últimos meses?
Ao Erik lhe trocou a cara.
—Quer dizer além de viver nestas montanhas esquecidas de Deus, açoitado por uma matilha de cães ingleses? É obvio que a valorizo, mas jamais na vida me ataria a uma só moça. —Tentou estremecer-se ante a ideia com toda sua vontade, ao tempo que queria evitar que isso era algo que normalmente vinha de maneira natural — Não quando a gente pode passá-lo tão bem ainda.
—Já vejo — disse Chefe com sarcasmo olhando para a escultural mulher que tinha Erik sobre seu colo — Se vê que está desfrutando como nunca.
Erik se descobriu furioso e não sabia se era pelo sarcasmo de MacLeod ou por sua maldita incapacidade para ignorá-lo. Normalmente impassível, no que concernia a Ellie se tornou quase —e desta vez sim se estremeceu— sensível.
—Não importa — disse em uma tentativa de manter o controle da conversação — O rei crendo não, eu lhe propus matrimônio. — Olhou a seu amigo aos olhos — A moça rechaçou.
—Já era hora — murmurou MacLeod.
Erik o olhou com irritação.
—O que disse?
MacLeod se encolheu de ombros.
—Nada, que eu gostaria de conhecê-la.
Erik desejou que ela estivesse longe dali, de volta na Irlanda, ou na Inglaterra, pensou tragando saliva amargamente. Apertou os dentes para aplacar o instintivo arrebatamento de ira, bebeu da jarra de um gole e gritou para que lhe trouxessem outra.
Que diabos! Tratava-se do dia de seu aniversário e pensava desfrutá-lo. Trinta anos, pensou com irritação. E tudo tinha ido perfeitamente durante vinte e nove e três quartos deles. No ano anterior teria compartilhado o folguedo com o resto, teria desfrutado provocando e seduzindo à moça que tinha sobre seu colo, e teria desejado com loucura a longa noite de prazer que estava por chegar. A moça possivelmente percebeu que ele voltava a prestar-lhe atenção, porque tentou seduzi-lo de novo. Beijou-o de maneira mais atrevida desta vez, resolvida já a encarregar-se com suas próprias mãos daquele assunto, como quem diz. Erik sentiu que sua mão caía sobre o insensível vulto que tinha entre as pernas. «OH, mas se é grande por toda parte», disse entre risadas.
Nem sequer pôde encontrar um comentário jocoso a respeito. Tentava desfrutar daquilo. Tentava concentrar-se em suas mãos peritas, mas tão somente lhe dava a desagradável sensação de ter larvas passeando por sua pele. Ellie o tinha arruinado por completo. Fazia dele um maldito eunuco.
Estava a ponto de mandar à moça que fizesse algum encargo desnecessário, como trazer mais cerveja, uísque ou o que Deus quisesse que pudesse ocorrer-se quando ouviu uma comoção perto da entrada da tenda.
Tratava-se de Boyd. Seton e ele tinham recebido o desafortunado encargo de montar guarda essa noite. E, ao que parecia, tinha sido boa ideia. O homem mais forte da Escócia agarrava a um intruso pela cintura e puxava dele com certa dificuldade. Tratava-se de uma mulher, como pôde deduzir Erik pelas delicadas sapatilhas que apareciam sob sua capa. Esta deu um chute ao enorme guerreiro em sua canela e tentou fugir dele.
—Se afaste de mim, besta sobre-humana! —Erik ficou feito uma pedra. Seu coração, seu sangue, todos seus órgãos paralisaram de repente — Robert! —disse com essa voz autoritária e mandona que Erik tão bem conhecia — Espero seriamente que esta não seja a forma em que trata às pessoas que tentam lhe ajudar.
Erik não queria acreditar, mas no minuto seus piores temores se viram confirmados. Ellie jogou o capuz para trás, empurrou a um assombrado Boyd e subiu à mesa de um salto.
—Lady Elyne! —exclamou o rei, igualmente surpreso.
Mas Erik mal pôde ouvi-lo. Uma bruma de fúria vermelha desceu sobre ele e o cegou até o ponto que não podia ver mais além do perigo ao que ela se expos. A moça parecia ter uma inclinação exasperante para pôr os pés no lugar e momento errados.
Blasfemou. E o fez em voz alta.
Ellie o olhou, e Erik advertiu nesse primeiro olhar surpresa e depois dor.
—Que diabos está fazendo aqui?
Não foi até o momento em que o disse que recordou à mulher que tinha sobre seu colo.
Capítulo 23
Ironias da vida. O homem com o que tinha estado sonhando durante semanas, meses e nem sequer o reconheceu. Ellie fazia já uma rápida revisão do terreno quando aquele musculoso bruto a empurrou para o interior da tenda. Precaveu-se no momento da voluptuosa loira nos braços do aterrador guerreiro, mas não se incomodou de olhar com atenção. Não havia nada nele que lhe resultasse familiar. Certo era que com a mulher que tinha em cima não podia vê-lo muito bem, mas havia algo diferente na maneira em que se sentava. Já não mostrava essa atitude de homem completamente depravado e a gosto, mas sim lhe via indiferente a tudo e de mau humor, o qual provocava pavor e parecia advertir com isso que ninguém se aproximasse muito.
Não foi até que ouviu sua voz e se voltou para encontrar-se com esse olhar arrebatador de olhos azuis que tão bem conhecia que seu coração deu uma violenta sacudida. Estava a salvo. Vivo. Observou-o com atenção, precavendo-se que as mudanças foram muito além da postura. Vestia de modo diferente, com uma cota de malha de guerra negra e uma manta de cor escura. Levava o cabelo longo e descuidado e não se barbeava fazia ao menos uma semana. Seu rosto, mais esquálido, tinha um aspecto enxuto e esfomeado que casava perfeitamente com esses olhos azuis polares com olhar de poucos amigos e o gesto torcido de sua boca. Em lugar do pirata descarado com o brilho endiabrado nos olhos, tinha ante si ao homem de aspecto mais aterrador de uma tenda cheia de guerreiros curtidos na batalha.
O alívio de vê-lo são e salvo logo se converteu em dor. Uma pontada no coração. A mulher estava beijando-o. Comia-lhe o pescoço a beijos e tocava os duros músculos de seus largos ombros, músculos e ombros que Ellie conhecia muito bem e pensava bobamente que lhe pertenciam. E o que esperava? O que penasse por ela? Talvez um pouco… Nem sequer pôde consolá-la o fato de ver como a mulher, claramente esquecida, caía jogada ao chão.
Ellie, que acreditava que todos naquela tenda estariam pensando o mesmo, fez provisão de todo seu orgulho, levantou o queixo e com um imperioso giro de cabeça afastou a vista com decisão do irado e aterrador viking.
«Tudo terminou», pensou angustiada. Já sabia. Mas agora o tinha visto com seus próprios olhos.
—Robert, rogo isso. Tenho que falar com você. É importante.
—Não o duvido — disse seu irmão político, embora Ellie advertia o confundido e talvez algo receoso que estava. Olhou ao enorme homem que a tinha apanhado nas cercanias do acampamento — Veio sozinha?
—Sim — disse aquele bruto de rude aspecto ao tempo que assentia — Mas estamos comprovando-o para nos assegurar.
Robert assentiu e deu a volta à mesa para tomá-la pela mão.
—Vamos, irmã, pode me contar o que a trouxe até aqui.
Olhou para trás para fazer um gesto ao homem que estava sentado junto a Erik e depois a outros mais. Precaveu-se que o primeiro dos guerreiros ia vestido de forma parecida com Erik e que também resultava igualmente imponente. Era alto, cinzelado a base de músculos e com uma beleza de traços duros, embora não resultava tão impressionante como o que estava sentado ao outro lado. O ar de autoridade que desprendia o primeiro deles lhe fez perguntar-se quem seria. Era óbvio que seu cunhado confiava nele.
Eduardo Bruce se levantou para unir-se a eles, igual fez um guerreiro um pouco mais velho e outro muito mais jovem. Dirigiu-se a Erik quase por acréscimo: «É possível que também você queira vir». Não parecia muito contente com isso.
Advertiu a tensão existente entre os dois homens e desejou com todo seu ser que não fosse ela a causa. Ellie seguiu seu cunhado até o exterior da tenda. Cruzaram o improvisado assentamento até chegar às rochosas ladeiras. Enquanto avançavam, ela notava todo o peso do olhar do zangado homem que seguia seus passos.
Estava claro que não se alegrava de vê-la. Tampouco podia culpá-lo sob tais circunstâncias, mas não esperava que a recebesse com essa virulência. Tanto a odiava? Não era sua intenção enganá-lo. Somente queria comprovar se podia se interessar por ela mesma, sem as armadilhas e obrigações que se devia por sua nobreza.
Ao estar bem iluminada pelas tochas, Ellie se precaveu de que aquela pequena cova tinha sido adaptada para fazer as vezes de câmara real, provida com uma cadeira, uma mesa para escrever e um colchão humildes. Era o mais afastado a um palácio que podia possuir, mas Robert se via perfeitamente adaptado ao ambiente rústico que o rodeava.
Ellie sempre tinha admirado ao arrumado cavalheiro que ganhou o coração de sua irmã, mas via com claridade as mudanças operadas nele durante o ano passado. Quase esperava encontrar-se com um foragido com o olhar furtivo e ansioso do perseguido. Em lugar disso, via um formidável guerreiro de força e determinação inquebráveis que tinha mais aspecto de rei vestido com suas poeirentas roupas de luta que com o cetro e a coroa reais.
Robert lhe fez gestos para que ocupasse a cadeira, e os homens se acomodaram entre as rochas planas dispostas no interior da cova. Pelo que se referia a conselhos de guerra, aquele era do mais incomum.
Ellie sentia todo o calor do olhar furioso de Erik, que fazia que se desvanecesse parte dessa sensação de vitória por ter conseguido chegar até eles. Esfregava as mãos com ansiedade entre as saias. Era certo que vagar por esses campos desolados pela guerra fazendo-se passar por uma faxineira que fazia de espião ao serviço dos ingleses não era muito seguro, mas tinha sido de tudo necessário. Talvez Robert advertisse seu nervosismo, porque lhe disse com amabilidade: —Espero, irmã, que não me interprete mal se lhe digo que, embora me alegra muito lhe ver, tenho grande interesse em saber a razão pela que está aqui e como conseguiu me encontrar.
Ellie se concentrou em Robert para isolar-se da fúria que irradiava aquele homem que estava apoiado contra a parede com os braços cruzados ante seu largo peito revestido de couro. Não era por ele que estava ali. Bom, não era só por ele. Embora não estava muito segura de que tivesse chegado a tais extremos com só o impulso da simpatia para a causa de seu cunhado. Não tinha escapado de sua câmara desde que era uma cria. E sair às escondidas dela na metade da noite com um par de soldados ingleses desconhecidos que a tomavam por uma faxineira, para informar ao homem mais procurado da cristandade que lhe tinham estendido uma armadilha…
Se seu pai alguma vez tivesse conhecimento disso, estaria horrorizado e enfurecido por sua traição. Mas depois do que Eduardo fez com sua irmã, não pensava sentir-se culpada absolutamente. Respirou fundo e relatou a conversação que tinha chegado a seus ouvidos entre sir Aymer, Ralph e seu pai. Aquilo não era o que esses homens esperavam ouvir, de modo que não demorou advertir a mudança de atitude dos ocupantes da cova à medida que se precaviam da gravidade da situação.
Robert blasfemou.
—Sabem que estamos aqui? Está segura disso, irmã? Não é possível que tenha ouvido mau?
—Não ouvi mal — disse negando com a cabeça — Os ingleses sabem onde está seu acampamento e planejam atacar ao amanhecer. Queriam que a ajudante de câmara de minha irmã viesse aqui para tirar informação, mas a convenci para que eu viesse em seu lugar.
Explicou-lhes, deixando a um lado o papel que tinha jogado Matty na hora de encobri-la, como vários homens de sir Aymer a tinham acompanhado até os limites do vale. Esperavam sua volta para escoltá-la de novo até o castelo. Ellie tinha intenção de lhes contar que lhe tinham negado a entrada ao acampamento, de modo que precisava voltar o quanto antes.
Eduardo Bruce não foi tão sutil como seu irmão.
—Como sabemos que está nos dizendo a verdade? Poderia tratar-se de uma armadilha.
Ellie o fulminou com o olhar.
—Claro que é uma armadilha, mas não sou eu quem lhe está estendendo isso. Se não me acredita, enviem um de seus homens aos bosques que há ao pé do lago Troon. Encontrarão perto de mil e quinhentos soldados ingleses que provará que é certo o que lhes digo. Mas façam antes do amanhecer. Devem advertir a seus homens e se preparem para partir imediatamente — disse voltando-se para Robert.
Bruce acariciava o queixo enquanto pensava a respeito.
—Temo que não.
Ellie ficou petrificada pela incredulidade.
—Mas juro que estou dizendo a verdade!
—Acredito — disse com um sorriso para depois olhar ao impressionante guerreiro que Ellie tinha visto antes — Isto era o que estávamos esperando.
Viu como ao outro brilhavam os olhos.
—Sim. Um ponto de encontro com o inimigo a nossa própria escolha. — O guerreiro se ajoelhou, agarrou um pau e desenhou várias linhas no pó do chão — Se posicionarmos nossos homens aqui na ladeira sul — disse assinalando um ponto à esquerda —, estaremos preparados para recebê-los de cara quando saírem dos bosques. Faremo-nos com pedras para desmontar à cavalaria, e Flecha e seus arqueiros se encarregarão do resto.
—Será uma armadilha — disse Robert em um tom satisfeito —, mas não para nós.
Os homens falaram entre eles durante vários minutos mais e riscaram o plano. Quando chegaram a um acordo a respeito da maneira de proceder, o rei voltou a dirigir-se ao guerreiro que vestia como Erik.
—Chefe, reúna aos homens. Terá que fazer os preparativos. Os que estejam muito bêbados atirem ao lago. Temo que teremos que celebrar seu aniversario outro dia —disse voltando-se para Erik.
Este se encolheu de ombros com indiferença; seguia olhando Ellie com a mesma cara.
—De todos os modos não parece que está para muitas celebrações agora mesmo.
Bruce se aproximou de Ellie, inclinou-se sobre ela e a beijou na bochecha.
—Não sei como lhe agradecer isso irmã. Contraio uma dívida com você que não posso sonhar em pagar, ao menos no momento. Mas quando recuperar meu reino, terá tudo o que esteja em minha mão lhe oferecer.
—Tão somente desejo que minha irmã retorne a salvo — disse ela.
Ellie apreciou o brilho de raiva nos olhos de Robert enquanto assentia.
—Sim, isso mesmo quero eu.
Voltou-se para se despedir de seus homens. Erik começou a caminhar junto a eles, mas o deteve.
—Não, fica —disse com dureza — Isto lhe concerne. — Ellie brincou com seu casaco, adivinhando que o que estava a ponto de dizer nada tinha a ver com a informação que ela acabava de lhes dar. Olhou a ambos alternamente — Por mais que aprecie que nos tenham avisado, irmã, suspeito que sua visita não tinha como único objeto meu próprio benefício. —Ellie notou como ardiam suas bochechas ante o atento olhar de seu cunhado — Falcão me contou o que aconteceu — acrescentou — Sinto muito pelo que se viu obrigada a suportar. Naquelas circunstâncias era inevitável que lhe levasse com ele, mas sua conduta além disso é indesculpável e desonrosa — disse fulminando Erik com o olhar.
Ellie o olhou e se surpreendeu ao ver a careta de desconforto em seu rosto. Obviamente não tinha intenção de acrescentar nada por si mesmo.
—Não — repôs implacável ela, agarrando-o do braço — Se equivoca. Me tratou com a maior das considerações. Pude e devia lhe dizer quem era eu, mas escolhi não fazê-lo. Acredito que desfrutava muito de minha liberdade para operar de tal modo — acrescentou com azedo sorriso — Sou tão responsável como Falcão pelo que aconteceu.
A Erik não pareceu lhe sentar bem que rompesse uma lança em seu favor.
—Não necessito que me defenda, lady Elyne. A ira do rei está completamente justificada.
Robert o ignorou e a olhou atentamente.
—Não sofreu por sua… perda? Farei que se case com você agora mesmo se for preciso.
Ellie teve que reprimir o estremecimento de horror e vergonha que aquilo lhe causou. Que um parente furioso e bem-intencionado a obrigasse a casar-se era inclusive menos sugestivo que a diligente oferta de matrimônio de Erik. Negou com a cabeça.
—Meu prometido está a par da situação. Como já disse a Falcão, não tenho nenhuma intenção de me casar com ele.
Seu nobre sacrifício não era necessário.
Robert pareceu tranquilizado pela resposta e, quando se voltou para se dirigir a Falcão, dava a impressão de estar menos zangado com ele. Indubitavelmente lhe resultava um grande alívio dar por terminada essa conversação. Sorriu.
—Temo que feriu meu marinheiro em seu orgulho. Não está acostumado que as mulheres o rechacem. Mas pelo que conta minha Isabel, você sempre foi uma moça honesta. — Riu ao comprovar a expressão furiosa de Erik — Vê o que me refiro? Faz semanas que está insuportável. —Talvez pressentindo que levava o guerreiro ao limite, suavizou-o acrescentando —: Arriscou muito para me trazer esta informação. Espero que ninguém descubra o que têm feito.
Também ela o esperava.
—Estarei bem, mas devo voltar o quanto antes. Os soldados estarão me esperando e não quero que façam muitas perguntas.
Robert a beijou de novo na bochecha.
—Farei que um de meus homens lhe escolte até onde têm que ir.
—Não será necessário — disse Erik sem emoção alguma na voz — Eu a acompanharei.
Robert olhou Ellie pedindo sua aprovação. Ela dirigiu seu olhar a Erik e viu o desgosto que expressavam o gesto torcido do queixo e da boca. Teve a tentação de negar-se, mas se dava conta de que ele era uma das razões que a tinham levado até ali. Antes de decidir se seguia adiante com seus planos de bodas com Ralph, tinha que saber que não existia nenhuma possibilidade entre eles. Assentiu duvidosamente.
Erik fazia esforços sobre-humanos para conter-se. Ellie não sabia a sorte que tinha de ter aceito que a acompanhasse. Tinha estado a um segundo de pôr as mãos ao redor de sua esbelta cintura, tal e como tinha ansiado fazer desde que tinha entrado na tenda, e jogá-la ao ombro como o bárbaro viking que ela tinha pensado que ele era em um princípio. Aquela moça exasperante parecia provocar seus instintos mais primitivos, o instinto que os homens noruegueses tinham aguçado durante gerações na arte de tomar quanto queriam. Mas, por sorte, sua dúbia aceitação tinha servido para evitar danificar mais a opinião que tinha o rei dele, já prejudicada por si.
Depois de despedir-se de seu cunhado, Ellie girou os calcanhares, elevou seu imperioso queixo e saiu da tenda como se fosse a irmã do rei e ele somente um lacaio que podia contentar-se fazendo que a barra de seu vestido não arrastasse pelo chão.
Erik saiu atrás dela como um possesso, lutando por tomar as rédeas de suas feras emoções. A raiva que sentiu ao vê-la não fez a não ser piorar depois de ouvir as razões que a tinham levado ali. Ficou sem respiração ao pensar no perigo ao que se expôs. Ouvir a inflexível reiteração do rechaço a sua oferta de matrimônio tampouco tinha melhorado seu humor. Por que não queria casar-se com ele se era certo que o amava? Ele não desejava esse matrimônio, mas, mesmo assim, maldita seja, aquilo não tinha nenhum sentido.
As tochas e fogos do acampamento se desvaneciam atrás deles em um tenso silêncio que Erik não se atrevia a romper por medo ao que pudesse dizer. Levou consigo vários dos sentinelas de Boyd que vigiavam o perímetro, mas tinha dúvidas inclusive que ela se precavesse de sua presença. Ao final, quando chegaram ao estreito corredor que conduzia ao lago Troon, Ellie deve ter pensado que já se afastaram o suficiente.
—Vai olhar-me toda a noite com essa cara ou tem algo que dizer?
Talvez fosse o tom de sua voz. Ou possivelmente as mãos nos quadris. Pode ser que se tratasse simplesmente do doce aroma de perfume em sua pele após meses de torturantes privações. Fosse o que fosse, Erik alcançou seu ponto limite de resistência. Tomou por um dos cotovelos e a sacudiu com força contra ele.
—Pois sim que tenho algo que dizer! Que demônios pretende te implicando nisto? O que quer, que lhe matem?
Tocá-la tinha sido um engano. Ao ter seu corpo tão perto podia perceber perfeitamente a suavidade de suas curvas. O aroma que desprendia, as sensações que sua cercania lhe provocava eram tão intensas que se deu conta no momento de quanto tinha sentido falta dela.
A maré de reações inflamava seu interior, faziam que fervesse o sangue e a pele, lhe permitindo descobrir que, apesar de sua mais recente experiência, ele não era nenhum eunuco. Qualquer mulher em seu são julgamento teria empalidecido de medo ante o furacão de raiva que se formava. Mas, é obvio, Ellie, que nunca se comportava como se esperava dela, afastou o braço, olhou-o diretamente aos olhos e sustentou seu olhar.
—Tonta que sou, pensava que me agradeceria — disse entreabrindo os olhos e afundando um dedo em seu peito para dar força a suas palavras — por salvar essa ingrata guarida cheia de guerreiros ingratos que têm mais músculo e beleza do que lhes convém.
—Agradecido de que ponha sua vida em perigo? — espetou com raiva. Deu um passo para ela, que retrocedeu a sua vez para compensá-lo. Felizmente para ele, uma árvore freou sua retirada. Inclinou-se sobre ela ameaçadoramente e lhe pôs um braço sobre cada ombro para evitar que escapasse — O que tenho vontade é de te estrangular por vir aqui.
Ou beijá-la até que baixasse a pressão que pulsava em seu peito. Uma corrente elétrica fluía entre ambos. O impulso magnético do desejo o obrigava a aproximar-se mais dela. A necessidade de beijá-la era quase insofrível. Tinha a boca, a mandíbula, todo o corpo em tensão pelos esforços que devia fazer para conter-se.
Os olhos de Ellie brilharam como os de uma lebre que caiu na armadilha.
—Precisa relaxar — disse sentindo-se inquieta — Está sendo ridículo. Me deixe partir.
Que relaxasse? Ele? Se sempre estava depravado, pelo amor de Deus. Aproximou-se mais ainda, como se pudesse obrigá-la assim a precaver-se da magnitude do perigo ao que se expôs e a que experimentasse uma pequena parte do que ele sentia.
—Não.
Era consciente de que não merecia tal revoo, mas maldita seja, sentava-lhe maravilhosamente tê-la aí justo onde ele queria. A sua mercê. Dobrando-se a sua vontade. Já deveria saber que assim não funcionavam as coisas.
Ellie levantou o joelho bruscamente, causando dano suficiente para que se retorcesse de dor, sem pôr em perigo a futura descendência de ambos, pensou. Quando teve forças para recuperar a compostura, precaveu-se desse pequeno deslize. Erik retrocedeu. «Nossa futura descendência.»
Olhou-a sem poder sair de seu assombro, notando uma pressão que abria passo em seu peito. Parecia tão claro, tão óbvio, que o surpreendeu muito não ter-se precavido antes disso. Tinha necessitado um joelhada nas bolas para dar-se conta dessa verdade que durante tanto tempo tinha tido diante de seu nariz. Não podia imaginar ninguém mais que ela como futura mãe seus filhos.
A amava.
Por Cristo Nosso Senhor, mas que idiota tinha sido! Essa fusão de emoções tão intensas, a atração animal, a necessidade premente de protegê-la, de possuí-la. A razão pela qual não podia esquecê-la. A razão que, apesar de todo seu aborrecimento, viu-se subjugado nada mais vê-la entrar na tenda. Não queria casar-se com ela para lhe fazer um favor, mas sim porque a amava.
Como tinha podido permitir que aquilo acontecesse? Embora melhor seria perguntar-se o que tinha feito para que aquilo não acontecesse. Foram feitos um para o outro. Ela despertava seu lado sério e ele a fazia rir. Compartilhavam a mesma paixão pela aventura. Ellie era a primeira mulher que se interessou pelo que ele pensava, a primeira em escavar debaixo dessa aparência de eterno brincalhão e sedutor para tentar conhecê-lo. Talvez seu descobrimento estivesse presente desde a primeira vez que ela elevou os olhos ao céu ou o olhou com sua cara de babá impossível de impressionar. Ou pudesse ser que tudo se reduzisse a algo tão simples como essa profunda observação de Domnall: ela não engolia suas tolices.
—Não tente me intimidar com esse montão de músculos — repôs Ellie interpretando mal a fonte daquela tensão — Não servirá de nada. De verdade acredita que posso pensar que me faria mal? E não será porque não tenha todo o aspecto de um velhaco perigoso — acrescentou após observá-lo atentamente à luz da lua.
Erik, ainda emocionado por seu descobrimento, passou os dedos por aquele descuidado cabelo. Tão mau aspecto tinha?
—Não tivemos muitas oportunidades para nos barbear ultimamente.
—Não digo que eu não goste — ela se apressou a corrigir. Apesar da escuridão, Erik juraria que se ruborizou — Simplesmente faz que pareça mais perigoso. — ficou circunspeto, sem saber como reagir ante esse comentário. Pela forma em que o disse, quase pareceu que aquilo não era de tudo mau — Sinto ter te ofendido — acrescentou ela mordendo o lábio — Mas me doeu sua atitude.
—Conheço essa sensação — disse ele com o gesto torcido, para seguidamente voltar a tocar o cabelo — Por Deus, Ellie. Quando te vi nessa tenda e pensei nos perigos que correu para chegar até aqui, assustei-me muito, estive a ponto de… —Deixou em suspense a frase e se encolheu de ombros — Suponho que perdi a cabeça.
Ellie esclareceu garganta exageradamente.
—Bom, ah. Suponho que teria preferido não vir aqui sozinha… Mas não havia ninguém mais que pudesse fazê-lo. Fiz o que pensava que era meu dever.
Porque o amava. Ser consciente de que se expôs ao perigo por ele fez que Erik se sentisse mais humilde. Ellie o olhava aos olhos, desafiando-o a mostrar-se em desacordo com ela.
—Não é que não aprecie o que fez — disse — Deus sabe que salvou muitas vidas vindo aqui esta noite, pode ser que inclusive que um reino, mas não quero que esteja nem remotamente perto de tudo isto.
O rosto de Ellie se via abatido entre a penumbra.
—Não me perdoou pelo que fiz — disse ela.
—Não há nada que perdoar. Fui eu o culpado de tudo. — Ellie não parecia acreditar, de modo que Erik se explicou —: Ao princípio, pus-me furioso que não me contasse isso, mas quando pensei com calma, dei-me conta de que tinha razões mais que suficientes para não fazê-lo. Nunca ganhei sua confiança nem me pediu que confiasse em ti. O que aconteceu naquela cova… Desejava-te tanto que poderia ter me dito que era a rainha da Inglaterra e não me teria importado.
Ellie sorriu sem vontade.
—Espero que isso não te tenha causado muitos problemas com Robert. Não pude evitar me precaver da tensão que havia entre vocês dois.
—Não ocorre nada — disse lhe subtraindo importância.
—Claro que ocorre. — Ellie sabia quão importante era a lealdade para ele — Tinha que ter te contado isso. Eu sim confiava em você, mas desejava saber… —disse com uma voz que se foi apagando.
—Saber o que?
Ellie olhou a outra parte, envergonhada. Erik pensava que já não responderia, mas ao final ela disse: —Queria saber se eu te interessaria por mim mesma. Não por quem sou ou porque a honra te dissesse que tinha que te casar comigo.
A Erik encolheu o coração ao entender tudo ao fim.
—Por isso me rechaçou.
Não porque não o amasse, mas sim porque queria que ele a amasse pelo que era. Isso era o que lhe oferecia. Isso era o que não tinha sido capaz de ver. Ele tinha proposto em virtude da honra e o dever, mas o que ela queria era amor e emoção.
—Minha mãe amava a meu pai com toda a alma — explicou Ellie — Tentou ano após ano que ele a amasse, e isso foi o que a levou a tumba. A febre se apoderou dela, mas em seu interior já estava morta há muitos anos.
Erik lhe afastou uma mecha de cabelo da bochecha e o colocou atrás da orelha.
—Sinto muito, moça.
Ellie ficou à defensiva, interpretando mal a razão da desculpa.
—Não lhe contei para que se compadeça de mim, nem porque queira algo de ti. Só pensava que poderia te ajudar a compreender por que atuei desse modo.
—Ellie…
Agora podia pôr ponto final a todas suas agonias. Teria sido tão fácil estreitá-la entre seus braços e lhe dizer o quanto a amava, que não podia imaginar o futuro se não fosse junto a ela. Egoístamente era isso o que desejava. Para um homem tão acostumado a conseguir o que queria, que a felicidade se rendesse a seus pés, foi um gole muito amargo. Mas não pôde fazê-lo.
Houve algo na maneira em que ele a olhava que obrigou Ellie a atuar como se prometeu não voltar a fazer jamais.
—Me peça que fique — sussurrou.
Por uns instantes Erik duvidou. Ou ao menos isso foi o que se disse ela. Queria acreditar que aquela súplica causava nele algum tipo de luta interior, porque exteriormente seu rosto não expressava nada absolutamente. Mas então ele sorriu, e a condescendência que se desprendia desse gesto, como se compreendesse que estava lhe rompendo o coração, mas teve a sorte de ser completamente imune a sua agonia, fez que se diluísse qualquer esperança de sublevação em seu interior.
—Sinto muito, moça. Não posso fazê-lo.
A dor abrasou o corpo de Ellie como um ferro ao vermelho vivo. Por que fazia isso a si mesma? Por que saía de peito aberto e mostrava seu coração nu para que ele o fizesse em pedaços? É que sentia prazer em seu próprio prazer e humilhação? Entretanto, houve um momento em que a olhava com olhos tão tenros que ela pensou que…
Idiota. Ele não a amava. Só se compadecia dela. Agora via claro. As mulheres se atiravam a seus pés a cada momento. E para maior vergonha, ao que parecia, ela não era diferente às demais. Duas vezes lhe tinha devotado seu coração e duas vezes o tinha rechaçado. Mais que suficiente.
Uma vez que se repôs daquele golpe, Ellie se separou dele. Era estranho, mas depois da primeira pontada de dor já não sentiu nada. Só uma necessidade imperante de partir dali assim que fosse possível.
—Tenho que partir.
—Ellie — disse Erik em voz baixa enquanto a agarrava pelo braço — Lamento.
Ellie sentiu que seu corpo ficava em tensão e se afastou dele.
—Não há nada do que desculpar-se. Fui uma estúpida. É obvio que não quer que fique contigo — disse rindo com amargura —, Se já tem alguém esperando. —Erik a olhou estranhando como se não tivesse ideia a respeito do que lhe estava dizendo — A mulher —acrescentou. «Sobre seus joelhos. Lhe beijando.» — Na tenda?
Pareceu-lhe que punha uma cara estranha, mas ao final disse:
—Ah, sim. É obvio.
Ellie tinha o pulso acelerado.
—Bom, então suponho que isto é um adeus.
Aventurou-se a olhá-lo pela última vez, perguntando-se quanto tempo demorariam os traços daquele rosto em apagar-se de sua memória. O arco das sobrancelhas. A dureza de expressão de sua mandíbula. As rugas brancas incrustadas junto aos olhos. O incorrigível gesto torcido de sua boca. O queixo afiado e seu excelso nariz. Esse irresistível e belo rosto.
Ellie baixou o olhar.
—Os soldados me estarão esperando ao outro lado das colinas.
—Está segura de que sabe o que está fazendo? O que acontecerá se suspeitam algo?
—Não suspeitarão. Posso ser muito convincente.
Olhou-a com dureza.
—Não confio. Levar-te-ei eu mesmo a Ayr.
—Não — exclamou ela com veemência — Devo ater-me ao plano ou começarão a suspeitar. Pensa que iram acreditar que fui capaz de encontrar o caminho de volta sozinha? Não pode ser de outro modo. Sei o que faço. Além disso, não sou tua responsabilidade —disse olhando-o aos olhos.
Assim ficaram durante um longo instante. Por um momento a Ellie pareceu advertir algo justo antes que Erik piscasse. Este deu um passo atrás, com todo o corpo em tensão. Ellie teria jurado que inclusive o estava passando mau.
—Muito bem — disse — Adeus, lady Elyne.
Quase lhe cortou a respiração. Ficou durante um longo momento simplesmente aí, saboreando o momento, porque sabia que seria o último. Mas era inevitável que se acabasse.
—Adeus, Erik.
Partiu sem olhar para trás. Uma pequena mas significativa parte de sua vida tinha acabado para ela.
Capítulo 24
Vésperas de San Juan,
23 de junho de 1307
Erik fez o que tinha que fazer. Ela estaria melhor sem ele. Ao menos isso era o que não cessou de repetir-se durante os primeiros dias posteriores a sua marcha. Queria lhe pedir que ficasse, mas a amava muito para lhe fazer isso. O amor não era garantia de finais felizes. Havia ocasiões nas que o amor significava sacrifício. Havia ocasiões nas que amar significava pôr a felicidade da outra pessoa por cima da nossa mesma, embora isso implicasse estar separados.
Era um foragido. Mas à manhã seguinte talvez não fosse a não ser um cadáver para ela. Inclusive com a ajuda de Ellie, era consciente que seus dias estavam contados. Talvez se ela tivesse sido a babá que ele tinha acreditado em princípio, as coisas teriam sido de outro modo. Mas era a filha de um dos homens mais poderosos da cristandade, estava prometida em matrimônio a um homem igualmente poderoso e, o que era mais importante, estava a salvo. Ellie tinha pela frente um futuro luminoso. Não podia lhe pedir que arriscasse tantas coisas por ele. Não desejava vê-la pendurada numa jaula.
A dor era tão mortificante como se lhe tivessem enfiado uma adaga nas costas e a retorcesse em seu interior. Sentia-se como se o partissem em dois: por uma parte, seus egoístas desejos e, por outra saber, o que tinha que fazer. Mas jamais teria imaginado que fazer o correto pudesse ser tão doloroso…
Conhecia Ellie. Se tivesse advertido um ponto de debilidade, não teria parado até lhe surrupiar a verdade. De modo que se via obrigado a deixar que acreditasse que não a queria. Mas o olhar de resolução de seu rosto quando partia seguia perseguindo-o. Deixá-la partir tinha sido a coisa mais dura que tinha feito na vida. Fazia que o período de adestramento de duas semanas de duração de MacLeod, conhecido com o nome de perdição», parecessem simples jogos e diversão.
Apesar de suas objeções, ele a tinha seguido até o castelo de Ayr. Tinha a suspeita de que ela sabia que estava aí, mas jamais voltou a vista atrás.
Mais tarde, cinco dias depois de que entre quatrocentos seguidores de Bruce apanhassem a mil e quinhentos cavalheiros ingleses em Glen Trool, fazendo que Aymer de Valence se retirasse humilhado, Ellie partia em um galeão, deixando Ayr para a Irlanda. Erik tinha conhecimento de sua partida porque estava sob a vigilância de um de seus homens no castelo. À primeira indicação de que sua aventura noturna no acampamento de Bruce tinha sido descoberta, Erik teria ido resgatá-la.
Mas não pôde contar com tal desculpa.
E agora, depois da segunda vitória decisiva contra sir Aymer de Valence nas colinas de Loudon em maio, de uma escaramuça que dias antes tinha posto em fuga ao prometido de Ellie até o castelo de Ayr, a derrota de sir Phillip Mowbray pela mão de sir James Douglass e Boyd, junto às notícias de que o rei inglês estava no leito de morte, Erik temia ter cometido um engano enorme. As voltas tinham trocado. Os homens se uniam em massa à causa de Bruce, e suas filas tinham passado de centenas a milhares da noite para o dia. Pouco a pouco o rei afiançava sua posição no sudoeste, com a tomada de pontos estratégicos incluída. Entretanto, Bruce tinha aprendido algo muito importante de Wallace: destruiria os castelos antes de permitir que o inimigo os usasse em seu contrário. Assim ao dia seguinte, depois de uma larga noite de celebração, o castelo de Ayr seria arrasado. Pensavam desprendê-lo antes de qualquer objeto de valor, mas a maioria o tinha levado Ulster uma semana atrás, antes de zarpar para a Irlanda.
Erik permanecia sentado em um silêncio virtualmente total, alheio às escandalosas celebrações que aconteciam a seu redor, unindo-se em alguma ocasião à conversação de MacLeod e Bruce, e picando algo da muita comida que serviam. A escura nuvem que pousou sobre ele desde que tinha visto desaparecer Ellie atrás dos muros desse mesmo castelo não fazia a não ser carregar-se mais e mais. À medida que passavam os dias, sentia um incômodo crescente que cada vez se parecia mais ao pânico. Por momentos o envolvia tanto que mal podia respirar.
Era escravo de suas próprias dúvidas, incapaz de escapar à dor aguda que significava não dizer a Ellie que a queria, não lhe ter dado a oportunidade que ela merecia. E com cada uma das vitórias, sua incerteza ia aumentando. Não podia conciliar o sono. Mal podia comer. Lutar era quão único era capaz de fazer. De modo que se apresentava voluntário a qualquer missão, quanto mais perigosa melhor. Algo com tal de tirar da cabeça a pergunta a respeito se tinha feito bem e se já era muito tarde para preocupar com isso.
—Chegaram-me certas queixas.
Erik elevou a vista ao precaver-se de que era o rei quem falava com ele. Ficou circunspeto.
—Que tipo de queixas?
—É muito duro com os novos recrutas.
Erik trocou um olhar com MacLeod antes de responder.
—Têm que estar preparados para a luta. Eduardo tem previsto enviar mais tropas a Carlisle em julho. Não se dará por vencido tão facilmente.
—E estaremos preparados — concedeu Bruce — Se Eduardo se recuperar. Mas não pode conseguir que esses camponeses e pescadores se convertam em cavalheiros de um dia para o outro.
—Não tento convertê-los em cavalheiros. O que quero é convertê-los em highlanders. Isso é mais complicado, assim precisa mais trabalho.
—Sim. Têm razão. Aceito a correção — disse Bruce entre risadas. Ficou olhando-o atentamente — Tenho notícias que poderiam lhe interessar. — Apesar de o rei não parecer lhe dar muita importância, todos os músculos de Erik ficaram em tensão — São a respeito de minha cunhada — acrescentou Bruce para depois dar um sorvo ao vinho e observá-lo por cima do cálice, consciente de que ao Erik lhe revolviam as tripas — Amanhã pela manhã se casará com De Monthermer.
Ao Erik pareceu que lhe davam um chute no peito. Ao ouvir as palavras do rei, seu corpo estremeceu dos pés a cabeça. Todo o pânico que vinha acumulando explodiu de uma vez. Não lhe cabia a mais remota dúvida de que tinha que fazer algo. Não podia deixar que aquilo acontecesse.
Precaveu-se de que havia mais de um par de olhos observando sua reação.
—Onde? —perguntou com os dentes apertados.
—No castelo de Dunluce — respondeu Bruce olhando-o com algo em mente — Sabe o que? Estive pensado em uma coisa e acredito que poderia ter uma missão para você.
Erik mal prestava atenção. «Casada.» Aquela palavra dava voltas em sua mente sem cessar. Não podia pensar em outra coisa. Como podia Ellie fazer isso? Amava-o e, entretanto, em poucas horas se casaria com outro. Havia uma parte dele que se negava a acreditar que ela se resignou. Parecia que tudo ardia em seu interior. Tinha que esforçar-se horrores para permanecer ali sentado tranquilamente quando o que queria era saltar sobre o primeiro navio que encontrasse e voar até a Irlanda.
—Tinha estado pensando — continuou o rei — que seria prudente afiançar nossos laços com a Irlanda. E já que lhe designei como encarregado de manter abertas as rotas de comércio ocidentais para nossas provisões, suponho que é a pessoa indicada para isso. —Erik foi tomando consciência vagamente de que o rei falava a sério. Teve que obrigar-se a escutar suas palavras e não aquelas violentas vozes de seu interior que gritavam que fosse dali o quanto antes — Sabia que lady Elyne é a queridinha de Ulster? —perguntou Bruce com intenção.
Erik cravou seu olhar no do rei, começando a suspeitar a que se referia.
—Sim — respondeu com cautela — Tenho entendido que a dama ajudou ao pai à morte de sua mãe.
Bruce se inclinou sobre ele.
—Com certeza que lhe perdoaria qualquer coisa. — Fez uma pausa para refletir — Se tiver duas filhas casadas com escoceses, é possível que esse olho cego seu se converta em dois olhos cegos. O que lhe parece?
Erik estava boquiaberto. O que o rei queria dizer era óbvio. A «missão» que sugeria era estabelecer uma aliança ao casar-se com Ellie, embora de forma clandestina, algo que Bruce pensava que Ulster acabaria lhe perdoando. Se esperava o apoio de Bruce, já o tinha.
Mas Erik sabia que teria ido ali inclusive sem seu apoio. As semanas de tortura tocavam a seu fim. Tinha cometido um engano. Era consciente disso. Somente esperava poder chegar a tempo antes que ela cometesse um engano pior, um que não teria remédio. Quando pensava em todo o dano que tinha feito a Ellie… Fez uma careta de dor ao recordar como a tinha deixado pensar que não a amava, que sua intenção era voltar junto à mulher do banquete. Então voltou a lhe invadir uma onda de pânico. O que aconteceria se ela se negasse a falar com ele? Ellie podia ser muito teimosa. E se não o perdoava? O mundo lhe veio em cima. O que aconteceria se ela não mudava de opinião? Não podia deixar que aquilo acontecesse. Sorriu com vontade como não tinha feito fazia tempo. Teria que assegurar-se de passar um momento com ela a sós para poder desdizer-se e dar fé de seus sentimentos. Sabia o lugar perfeito para isso.
Voltou-se para Bruce.
—Tenho que partir imediatamente.
Bruce lhe devolveu o sorriso.
—Isso mesmo estava pensando eu.
Deteve-se ao pensar na teimosia de Ellie.
—Pode ser que atrase vários dias.
Bruce soltou uma gargalhada.
—Eu acredito que demorará algo mais. Têm duas semanas. Aproveite o tempo.
Erik sorriu.
—Não penso perder nem um minuto.
Esta era uma missão em que se asseguraria por completo de que tudo fosse como a seda.
Tratava-se de uma manhã serena e ensolarada de verão. O dia perfeito para umas bodas. Ellie observava sua imagem no espelho enquanto a ajudante de câmara finalizava com seu penteado. Sorriu, se não feliz, ao menos contente de como se desenvolveu sua vida durante os últimos dois meses. Tinha tomado a decisão correta e seguia com sua vida. Inclusive tinha deixado já de olhar pela janela.
Quando a faxineira dava os últimos retoques a seu cabelo, um intrincado acerto de cachos fixados com uma diadema de joias, e arrumava o fino vestido de damasco verde esmeralda que levaria nas bodas, o sol entrava com toda sua força pela janela. Por trás passou uma escura sombra que a fez olhar em sua direção. Ao não ver nada, imaginou que seria uma nuvem.
—Posso lhe ajudar em algo mais, milady? —perguntou a faxineira.
Ellie negou com a cabeça enquanto apreciava o trabalho da donzela. Sorriu com melancolia. Inclusive poderia passar por uma mulher bela.
—Não. Por que não olha se necessita algo lady Mathilda?
A faxineira fez uma reverência e saiu da habitação.
Mal acabava de fechar a porta quando Ellie notou que alguém a agarrava por trás. Uma poderosa mão tampou sua boca antes que pudesse gritar.
—Chist! —sussurrou junto a seu ouvido, apertando-a forte contra seu peito — Não vou te fazer mal.
A Ellie o coração deu um tombo ao reconhecer a voz, o familiar aroma de seu corpo e cada uma das duras linhas dos musculosos braços e o peito que a sustentavam. «Erik.» Mas o que estava fazendo ali? E mais importante como tinha conseguido entrar? Por Deus bendito! Não podia havê-lo feito a não ser através da janela da torre, ao menos a quinze metros do escarpado e mais de trinta sobre a água que havia abaixo. «Não vou te fazer mal.» Isso já o tinha ouvido antes.
Tentou liberar-se lhe dando uma cotovelada no estômago, mas surtiu pouco efeito. Aquele corpo duro como o granito não cedeu nem um centímetro.
—Promete não gritar?
Quando Ellie assentiu, tirou a mão de sua boca. Só para voltar a tapar ao ver que ficaria a gritar. Erik falou de modo teatral.
—Sabia que te mostraria pouco razoável, mas vim preparado para isso. —Agitou um par de fitas de seda fina ante seus olhos — Esperava que na próxima vez que te atasse seria sob circunstâncias diferentes. —Ellie pôs os olhos como pratos pelo ultraje, mas só conseguiu que Erik risse — Sinto, menina, mas temos que falar e não posso me arriscar a que não atenda a razões. Pode uivar tudo o que queira uma vez que estejamos fora daqui.
Atender a razões? Quando estava a ponto de a sequestrar pela segunda vez? Além disso ela não uivava.
Com um destro movimento, Erik tomou a fita de seda e atou suas mãos rapidamente. Desembrulhou a manta que levava aos ombros, extraiu um saco de esteira de seu cinto e lhe fez uma careta de desculpa.
—Dado que não podemos sair do mesmo modo que entrei, temo que isto será necessário.
Quando Ellie se precaveu do que pensava fazer, tentou retroceder, mas ele a puxou pelos pulsos e lhe pôs o saco na cabeça. Ellie se retorcia e chutava como um animal furioso, mas ele a jogou ao ombro como se fosse um saco de batatas e cobriu os ombros com a manta para ocultar suas pernas. Com o que lhe havia custado arrumar o cabelo e os vestidos… O pior de tudo era que… Aquele comportamento de bruto a enfurecia, mas não podia resistir a perguntar-se por que o fazia. Só uma resposta tinha sentido, mas não pensava cair de novo na armadilha de acreditar que lhe importava.
Ellie esperneava pelos corredores e escadas de caracol da torre maior de Dunluce. Com toda a emoção e agitação das bodas, parecia que ninguém se precavia daquele gigante que levava um saco dando chutes e retorcendo-se sobre as costas.
Apesar das circunstâncias, Ellie opôs toda a resistência que pôde e chegou a alcançá-lo com um par de chutes, até que lhe pôs a mão no traseiro. Aquelas suaves carícias a excitaram tanto que fizeram que seu corpo ficasse lívido e flácido. A seguinte vez que se retorceu, a sensação foi completamente diferente, e o muito vadio, maldito fanfarrão risonho, sabia perfeitamente.
Ellie sentiu o frio da brisa ao sair da torre. Minutos depois o terreno era já mais escarpado, e soube que tinham cruzado a ponte e começado a descida para a cova. Não se revolveu mais por medo que os dois caíssem pelo escarpado. Mas ele, com o passo tão firme como sempre, desembrulhava-se naquele terreno como se de um gato montês se tratasse. De repente o ar se fez mais úmido e estagnado, e soube que deviam estar na cova da Sereia. O lugar onde tudo tinha começado. Poucos minutos depois ouviu que Erik chapinhava sobre a água e sentiu que a subiam em um navio. Outro homem a agarrou e a fez sentar-se em um banco de madeira.
—Desta vez estarei atento aos dentes e aos cotovelos, moça.
Domnall. Teria que ter imaginado que ele estaria comprometido também naquilo. Assim lhe agradecia que o tivesse ajudado a escapar. Isso mesmo tentava lhe dizer. Mas ele, sem dúvida entendendo o justo desses balbucios amordaçados, não fez mais que irromper em risada.
Pouco depois o navio foi pegando velocidade e lhe tiraram o saco da cabeça. Entreabriu os olhos ante o sol para encontrar Erik ali, olhando-a com cara inocente. O outro homem, inteligentemente, tinha-lhes dado espaço, tanto quanto podia naquele pequeno birlinn. Erik se sobressaltou ao reconhecer o envenenado olhar de Ellie.
—Talvez deveria esperar até que se acalme para desatá-la —disse a Domnall, que estava a uns metros dele.
Este se encolheu de ombros.
—Temo que de qualquer forma vai ser muito complicado, moço.
Erik decidiu assumir o risco; começou a lhe desatar as fitas de seda dos pulsos e da boca. Uma vez liberada, Ellie se voltou para ele com a intenção de dar rédea solta a sua fúria, mas uma olhada ao castelo que se erguia a suas costas fez que se detivesse em seco. Lhe encolheu o coração ao ver o enorme escarpado. Erik tinha que estar louco para subir pela torre como se fosse nada. Poderia ter se matado.
Olhou-o com atenção pela primeira vez, e seu estúpido coração deu um salto. Estava quase completamente barbeado, mas tinha deixado que uma fina linha de barba lhe percorresse o queixo. Era a coisa mais estranha que tinha visto, mas aquela barba de três dias ficava bem. Também tinha cortado seus cabelos, embora ainda os tinha tão compridos que caíam sobre seus penetrantes olhos azuis. Uns penetrantes olhos azuis que a olhavam com tanta ternura que fez que Ellie estremecesse de cima abaixo. Ele vestia sem mais amparo que uma cota de couro negra, possivelmente devido a sua néscia escalada. Lhe via tão insuportavelmente belo com esses dentes reluzindo ante sua pele curtida pelo sol que quase doía olhá-lo.
Ao fim tirou forças para lhe falar.
—Em nome de Deus, o que crê que está fazendo? Me leve para casa imediatamente.
—Quero te pedir desculpas.
Desculpas? Depois de lhe ter partido o coração e esmagar-lhe com o pé para destroçá-lo por completo?
Olhou-o com os olhos entreabertos.
—Não te parece um pouco tarde para isso?
Erik fez uma careta de dor enquanto reparava no aspecto lamentável que ela mostrava. Essa expressão de arrependimento tão jovial recordou a Ellie a de seu irmão Edmond. Mas não se tratava de que tivesse quebrado um vaso ou atirado uma taça de cristal bom. O que tinha quebrado era algo muito mais prezado que tudo isso.
—Faz umas horas me inteirei de suas bodas. Cheguei aqui assim que pude. —Arqueou as sobrancelhas com aborrecimento — Como pôde fazer isso, moça? Como pôde aceitar te casar com ele? Será melhor que te explique, porque agora mesmo não estou seguro de que lhe possa perdoar isso.
Perdoar a ela! Mas acaso tinha perdido o julgamento? Tinha sido ele que a tinha rechaçado.
—Eu não… —começou a dizer, mas se deteve e o olhou com suspicácia. Não tinha por que lhe dar explicações. Ele já tinha tomado sua decisão. Que pensasse o que quisesse. Ellie arqueou uma sobrancelha e elevou o queixo nesse gesto de arrogância que sabia que lhe chatearia — E por que não ia aceitar?
Erik franziu a boca e ela soube que ele estava fazendo grandes esforços por conter a calma.
—Porque me ama.
Ellie notou como as bochechas começavam a arder à medida que se enfurecia ante aquela arrogância.
—Supõe-se então que devo penar por ti durante o resto de minha vida? Duvido-o muito. —Ellie fez um gesto com as mãos abrangendo suas roupas e maquiagem — Como pode ver, decidi seguir com minha vida. Aceito suas desculpas. Agora me devolva a casa. Tenho umas bodas a que assistir.
Erik ficou circunspeto. Ao que parecia, aquilo não ia conforme o planejado.
—Temo que não posso fazer isso. Não posso permitir que te case com De Monthermer. Teria que matá-lo e não acredito que nem seu pai nem o rei Eduardo me perdoassem isso.
A Ellie o coração dava saltos no peito; não sabia se era devido à raiva ou ao medo do que Erik pudesse acrescentar.
—É obvio que não o matará. Minhas bodas não é de sua incumbência.
—Mas eu te amo.
O coração de Ellie se deteve e logo prorrompeu em uma aceleração inquietante. Tinha sonhado durante tanto tempo com essas simples palavras que agora não se atrevia às acreditar. Tinha-lhe feito muito mal.
—E o que se supõe que devo fazer, cair de joelhos agradecida? Já é muito tarde. Dei-te uma oportunidade para que me demonstrasse seu amor e a rechaçou.
A brisa acariciou os cabelos dela fazendo que caíssem sobre seu rosto algumas das mechas tão cuidadosamente arrumadas. Erik tomou entre seus dedos uma delas com carinho e o colocou atrás de sua orelha, olhando-a com tanta ternura que ela sentiu um estúpido formigamento no peito.
—Sinto muito, amor. Naquele momento pensava que fazia o correto. Queria te pedir que ficasse, mas como podia fazê-lo quando estávamos a um só passo da derrota? Tentava te proteger.
Ellie o olhou com incredulidade.
—Me rompendo o coração? Sabe o que foram estes meses para mim? —Sua voz se fez mais aguda até alcançar cotas de histerismo. Não era dada à violência mas sentia necessidade dela — E agora que consigo retomar minha vida, vem para me dizer: «Sinto muito. Foi tudo um engano». Que apesar que tudo indicasse o contrário, em realidade me amava e só me rompeu o coração para me manter a salvo em minha própria miséria. E agora que parece que as coisas ficam bem, dá-te conta que te equivocou e decide me raptar no dia de minhas bodas para te desculpar. É isso o que tenta me dizer?
Erik estremeceu e olhou Domnall, que se encolheu de ombros sem poder evitá-lo.
—Parece que se ajusta bastante à verdade, capitão.
Erik acariciou com uma mão seus cabelos açoitados pelo vento.
—Dito assim não soa tão romântico como eu tinha planejado. —Ellie soltou um bufido de exasperação através do nariz. Ele a olhou fixamente — Não podia correr o risco de que não me escutasse.
—Assim decidiu não me dar a possibilidade de escolher.
Erik riu com vontade.
—Mas claro que pode escolher. Simplesmente pensei que era melhor me assegurar de que o entendia.
Ela o olhou aos olhos sem pestanejar.
—E o que acontecerá se já não o quero?
Os olhos de Erik se estremeceram como se tivesse recebido um golpe. Essa dolorosa incerteza que se desenhava nesse rosto petulante e muito belo quase faziam que valessem a pena os meses de tortura passados. Quase.
Ajoelhou-se junto a ela e tomou uma mão para beijá-la.
—Por favor, amor, me dê uma oportunidade para poder te ressarcir.
Ellie sentiu que a emoção inflamava sua garganta e fazia que sua voz se quebrasse.
—Por que deveria te acreditar?
—Porque sabe no mais profundo de seu coração que o que digo é certo. Era eu quem estava tão cego que não podia vê-lo. Mas juro que jamais te darei razão para que possa duvidar de mim de novo.
Soava tão sincero e parecia tão arrependido que quase lhe abrandou o coração, embora tão só um pouco.
—Vamos, moça — interpôs Domnall — Mostre um pouco de compaixão por nós e perdoe ao moço. Esteve insuportável desde que partiu.
Ellie franziu o cenho ante o homem maior.
—Supunha-se que não estava escutando.
—E perder isto? —Domnall riu a gargalhadas — Moça, levo vinte anos esperando para vê-lo render-se aos pés de uma mulher. Tenho intenção de desfrutar de cada momento.
—Me render? —disse Erik com horror — De que demônios está falando? Não estou me rendendo.
Ellie elevou levemente uma sobrancelha com delicadeza desafiando sua descrição da situação.
Ele ficou circunspeto e fulminou Domnall com o olhar.
—Supõe-se que estava do meu lado.
—E estou, menino. Estou — disse rindo.
Erik decidiu ignorar sua audiência e se voltou para ela.
—Poderá me perdoar?
Ellie o olhou com dureza. O certo era que estava a ponto de fazê-lo, mas desejava que sofresse o quanto pudesse. Depois de tudo, umas poucas horas não era nada em comparação com quatro meses. Elevou o queixo e lhe ofereceu o melhor de seus olhares de babá.
—Não decidi ainda. Talvez deveria me levar para casa e deixar que pense nisso durante um tempo.
Erik suspirou e negou com a cabeça com arrependimento.
—Sinto que tenha que acontecer assim. Já sabia que não se mostraria razoável — disse olhando Domnall.
—Isso disse, menino. Isso disse.
Ellie olhou alternamente a um e a outro, perguntando-se que argúcia teria tramado agora. Erik tinha esse diabólico brilho no olhar que prometia problemas.
—Que intenções têm?
Erik se aproximou dela roçando sua orelha com a boca. Ellie tremeu do calor que a estremeceu costas abaixo.
—Tenho intenção de te levar para casa e te fazer entender. Uma e outra vez, até que me acredite.
Ellie tragou saliva ao compreender o que queria dizer. A sensual promessa de sua voz fez que seu abdômen se alagasse de um calor que fazia cócegas.
—Tem intenção de me violar?
—Uma e outra vez.
—Isso já o ouvi — Tentou reprimir o sorriso com todas suas forças. Uma vez viking, sempre viking. Mas teria intenção de levá-la para casa? — Não acredito que meu pai aprove seus métodos.
Erik piscou-lhe um olho, consciente de que a tinha em suas mãos.
—Felizmente para mim, estará muito longe.
Ellie jazia deitada sobre seu peito, com seu suave e nu corpo sobre o seu, em um enredo de membros e lençóis. Imerso em uma felicidade que lhe devolvia a humildade, Erik não queria nem pensar no perto que tinha estado de perdê-la para sempre. Brincava com uma sedosa mecha de cabelo escuro entre os dedos enquanto pensava que aquilo era o mais próximo ao céu que podia chegar um homem em vida.
—Assim estava certo — disse.
Tinha tornado a levá-la a ilha de Spoon, a aquela imensa casa que tinha pertencido a seu pai. O rei lhe havia devolvido suas terras tal e como tinha prometido. Provavelmente Juan de Lorn estivesse em desacordo com isso, mas em seguida se encarregariam dele.
—Embora tenha muitas outras, cheguei a pensar nestas terras como meu lar.
Ellie o olhou com um sorriso, e o peito de Erik se encheu. Como homem favorecido pelos ventos durante toda a vida, jamais até esse momento tinha compreendido quão afortunado era.
—Por mim? —perguntou ela.
—Sim — disse beijando-a no nariz — Quando acabar a guerra, construir-te-ei o castelo mais bonito que tenha visto.
Ela voltou a apoiar a cabeça em seu peito e apertou dele com força.
—Já tenho aqui tudo o que quero. — Fez uma pausa — Quanto tempo podemos ficar?
—Uma semana. Talvez algo mais. —Queria ficar com ela tanto como pudesse. Uma vez que sua mãe e suas irmãs pusessem a mão em cima de Ellie, já não poderia estar com ela tranquilo — Te levarei a Islay antes de me reunir com o rei. Ali estará a salvo junto a minha mãe e minhas irmãs.
Ellie empalideceu, e ele estremeceu ao pensar que talvez ela tinha mudado de ideia.
—Já está arrependida, meu amor? Já sei que sentirá saudades de sua família. Pedi que abandone muitas coisas.
—Pelo que recordo não pediu nada absolutamente — repôs ela olhando-o de relance.
Erik sorriu e se apertou contra ela um pouco mais.
—Não podia arriscar a que me rechaçasse. Estou acostumado a conseguir o que quero.
Ellie elevou a vista ao céu e ele arqueou as sobrancelhas.
—Passar tempo junto a minha mãe e minhas irmãs será bom para ti.
—A que se refere? —perguntou enrugando o nariz
—A que lhe porão a par de quão irresistível sou.
Lhe deu um empurrãozinho no estômago. Erik montou sobre ela entre risadas e a beijou até que a paixão acesa entre ambos voltou a consumi-los. Fez-lhe amor lentamente uma vez mais, aguentando sua mão contra seu próprio peito e olhando-a aos olhos à medida que entrava e saía dela com largas e lânguidas investidas. Observou como o êxtase transformava os traços dela, enchendo-os de uma luz celestial, e entrou em Ellie uma última vez, sustentando-a em seus braços ao tempo que o amor que sentia se derramava por todo seu corpo em estrondosas e profundas ondas.
Passou algum tempo até que pôde pronunciar palavra. Ellie voltou para sua posição deitada sobre seu peito e Erik advertiu uma leve circunspeção em seu semblante. De novo a inquietação carcomia seu interior.
—O que tem, amor? O que se preocupa?
—Gostarão? —perguntou.
Erik sorriu com mais alivio de que queria demonstrar.
—A minha mãe e a minhas irmãs? — disse ao lhe dar outro beijo no nariz — Lhe amarão tanto como eu. Embora…
Ellie abriu os olhos de par em par.
—O que ocorre?
Erik fez como se algo lhe preocupava.
—Minha mãe é mais tradicional. Não aceitará que siga me violando dessa maneira, e como eu tenho toda a intenção de te deixar fazê-lo, suponho que deveremos nos casar.
Ellie voltou a golpeá-lo com o punho.
—Desgraçado! Por um momento me assustou. — Olhou-o atentamente — Suponho que poderia me convencer para que me casasse contigo.
Erik sorriu e passou a mão pela grácil curva de seu traseiro, pegando-se a ela de maneira mais íntima.
—Convencer me dá bem.
—É que não pode pensar em outra coisa? —perguntou Ellie enquanto negava com a cabeça.
Erik continuou rindo sem mais, ao qual Ellie respondeu elevando a vista ao teto de novo.
—Referia-me a que teria que pôr certas condições.
A Erik apagou o sorriso do rosto.
—Que tipo de condições?
—A primeira: nem pensar em outras mulheres. — E antes que pudesse responder, acrescentou —: Nada de seduzir, tocar, beijar nem esses tapinhas que dá no traseiro.
Erik levou a mão ao coração fingindo estar apavorado.
—Nem sequer os tapinhas no traseiro?
Ellie franziu a boca.
—Temo que devo insistir sobre este ponto.
Seus olhos se encontraram e, apesar de que se tratava de um jogo, Erik pôde apreciar a vulnerabilidade que escondiam suas palavras. Deixou todo rastro de provocação a um lado, pegou-a pelo queixo e a olhou diretamente aos olhos.
—Não estive com ninguém desde que te conheci. — Não pôde culpá-la pela expressão de ceticismo que cruzou seu semblante. Sorriu com amargura — Acredite, para mim resulta tão surpreendente como para qualquer um. Mas depois de quatro meses, nove dias e oito horas — acrescentou após olhar o ângulo do sol através da janela —, Queira ou não acreditar, tenho que me convencer. Te amo, Ellie. É tudo o que quero e quanto necessito em minha vida.
O sorriso com que se iluminaram os traços de Ellie lhe chegou ao mais profundo do coração.
—Sério?
—Sério — disse lhe acariciando a bochecha — Sou leal, Ellie. Uma vez outorgada minha lealdade, tê-la-á até a morte. — Fez uma pausa — Talvez deveria ser eu quem pusesse as condições, pois não era eu quem estava a ponto de casar-me com outra.
Ellie fez uma careta, e lhe surpreendeu o muito que seguia lhe afetando aquilo. Não tinha nenhum direito a estar ciumento, mas estava.
—Ah, sim. A respeito disso — disse Ellie mordendo o lábio —, acredito que esqueci de contar um detalhezinho de suma importância a respeito das bodas de hoje.
Erik franziu o cenho.
—Que tipo de detalhe?
Ela retorceu a boca como se tivesse que reprimir o sorriso.
—A identidade da noiva.
Se o que pretendia era deixá-lo de pedra, tinha-o conseguido.
—Não compreendo. O rei disse que sua cunhada ia casar se com De Monthermer.
—Assim é. Minha irmã Matty deve estar casando-se com De Monthermer neste preciso momento.
—Sua irmã? —repetiu sem poder acreditar.
Ellie assentiu e lhe explicou que, embora já pressentia que ocorria algo estranho entre os dois, não tinha podido identificá-lo até que, depois de sua volta a Escócia, obrigou sua irmã que confessasse qual era a causa de toda sua desgraça. Seu pai tinha bento a mudança de nomes no contrato de casados. Erik entreabriu os olhos. Que víbora má.
—E não pensava me pôr à par disto?
—Pensava que merecia um pequeno castigo por tudo o que me tem feito passar — disse imitando seu incorrigível sorriso.
Erik franziu a boca. Talvez fosse certo.
Ellie mordeu o lábio, ao que parecia, considerando algo no que antes não tinha percebido.
—Já sei que diz ter deixado uma nota, mas espero que meu desaparecimento não os leve a suspender as bodas.
—Não acredito que o faça. Esta Matty da que fala não será por acaso uma loira de cabelo comprido encaracolado com os olhos azuis?
Ellie assentiu.
—Conhece-a?
—Conhecemo-nos esta manhã. —Agora tocava a ela ficar de pedra — Não sabia qual era sua janela — disse encolhendo de ombros como um menino — Me equivoquei. Ao princípio pensava que gritaria, mas depois sorriu e me disse que tinha demorado muito para chegar. Perguntou-me se tinha intenção de me casar contigo, e quando lhe respondi que assim era me pôs na direção correta.
—Muito próprio de Matty — disse Ellie entre risadas.
Esfregou a bochecha contra seu peito com mais força. Erik notou como percorria a marca de seu braço com os dedos e não lhe surpreendeu que ela dissesse: —Vê-se diferente. Este desenho que te rodeia o braço não estava aqui antes. Parece uma… — Elevou a vista para olhá-lo e sorriu — É uma teia de aranha! É pela história que me contou?
—É muito observadora — disse lhe dando um beijo no nariz.
Ellie voltou a acariciar o desenho.
—E isso parece um birlinn que caiu na rede. — Sim, essa era a ideia — Teria que ter sabido antes o que significavam as marcas: o leão rampante é o símbolo do reino da Escócia. Mas significa algo mais, não é certo? Essa é a razão pela que mantém sua identidade em segredo. Você e aquele homem do acampamento são parte do bando de guerreiros fantasmas do que tanto ouvi falar.
—Ellie — disse negando com a cabeça. Ao que parecia, não seria fácil guardar segredos com ela perto — Põe as coisas muito difíceis para que um homem cumpra suas promessas.
Ellie sorriu.
—Não me disse nada. Fui eu que o adivinhei. — ficou olhando-o suspicazmente — Mas se vou me casar contigo, acredito que há algo que mereço saber.
Erik arqueou uma sobrancelha.
—E o que é?
—Meu novo nome.
Erik riu e a beijou.
—Então isso significa que se casará comigo?
—Ainda o estou pensando.
—Mmm… já mencionei que possuo mais de uma dúzia de ilhas?
Os olhos de Ellie brilharam de emoção.
—De verdade?
Ele assentiu.
—Talvez possa me convencer para que as mostre. — Sua expressão se voltou séria — Se case comigo, Ellie. Levar-te-ei aonde queira. Mostrar-te-ei o mundo. Simplesmente diga que te casará comigo.
—Sim — disse ela em voz baixa com os olhos brilhantes pelas lágrimas — Me casarei contigo.
Erik a abraçou com força e se viu tentado de levá-la à igreja imediatamente por medo de que mudasse de opinião. Mas sabia que sua mãe e suas irmãs jamais o perdoariam. Puxou-a pelo queixo e a beijou com ternura.
—Seu novo nome é MacSorley.
Ellie deixou escapar uma gargalhada e seus olhos resplandeceram pelo divertido que lhe parecia.
—O filho do viajante do verão. Teria que tê-lo adivinhado. Em realidade é um autêntico pirata.
Erik riu, tomou em braços e lhe mostrou tudo quão desumano podia ser um pirata. Uma e outra vez.
Epílogo
7 de julho de 1307
Quando chegou o mensageiro, Bruce, o rei da Escócia, estava sentado junto aos dez membros da Guarda dos Highlanders na sala de armas temporária do grande salão do castelo de Carrick. Agora que Falcão havia voltado, só faltava um de seus guerreiros de elite. Não faltava, apressou-se a corrigir-se, mas sim estava plantado como uma semente no mais profundo do coração do inimigo, preparado para jogar raízes quando chegasse o momento. Bruce fez gestos ao homem para que se aproximasse.
—É para você, senhor — disse com uma reverência, ao tempo que entregava uma parte de pergaminho — Vem de Burghon-Sands.
Bruce ficou circunspeto, perguntando-se se seriam aquelas as notícias que estava esperando. Eduardo tinha reunido seus homens em Carlisle fazia poucos dias e conforme diziam se levantou de novo de seu leito de morte para liderar a carga sobre Bruce.
—O que ocorre? — perguntou MacLeod — Parece que viu um fantasma.
Bruce o olhou sem poder dar crédito ao que tinha lido.
—Talvez o tenha visto. Mas é um fantasma que me alegro de ver. — Olhou ao redor da sala sentindo que seu assombro era substituído pouco a pouco por uma crescente alegria — Morreu — disse rindo ao precaver-se ao fim de que seu velho açoite havia falecido — Que ordenem tanger os sinos de todas as igrejas de um e outro lado da costa. O rei Eduardo se foi ao inferno!
Os homens prorromperam em vivas triunfais. Não podiam sentir tristeza pela morte de um homem que tão pouco teve piedade deles em vida. O autodenominado Martelo dos Escoceses se foi ao inferno ao que pertencia, levando com ele sua mortífera bandeira do dragão.
Bruce sabia que, com a morte de Eduardo Plantagenet, as ondas voltavam a romper sobre a costa da Escócia. Sobre os inimigos internos. Em lugar de Eduardo, Bruce teria que enfrentar agora a seus próprios patrícios no campo de batalha: ao sul, os sanguinários MacDowell que tinham assassinado seus irmãos, e ao norte seus velhos inimigos, os Comyn e os MacDougall. Sorriu. A semente que tinha plantado estava a ponto de jogar raízes.
Fim
Nota da autora
Como mencionado na nota do autor de O guerreiro, em um desses grandiosos e memoráveis momentos da investigação para minha ideia de «Grupo de Operações Especiais com saias escocesas», topei com uma referência enviesada de um bando de guerreiros das ilhas designados por Angus Og Macdonald para proteger Bruce a sua volta a Escócia, depois da volta do refúgio das ilhas. O personagem de Erik MacSorley está apoiado em Domnall (Donald) das Ilhas, um dos filhos de Alastair Mor MacDonald e primo de Angus Og, de quem se dizia era o líder do grupo.
O pai de Erik, Alastair Mor, é um dos aclamados progenitores do clã MacAlister, embora haja diferentes opiniões com respeito a isto. Foi assassinado em 1299, algo mais tarde que o que eu sugeri, em uma batalha com os MacDougall.
Como naqueles tempos não se usavam sempre os nomes dos clãs, decidi pelo mais genérico MacSorley, que significa filhos de Somerled, para distinguir Erik de seus primos MacDonald. MacSorley se usa para referir-se a qualquer descendente de Somerled: os MacDonald, MacDougall, MacRuairi, etc.
Não há memória escrita a respeito da mulher de Erik, mas as alianças com a Irlanda e a ilha de Man estavam à ordem do dia entre os chefes de clã das ilhas Ocidentais. Uma das coisas que mais difícil me resultou assimilar foi a cercania entre a Irlanda e Escócia e a importância das vias marítimas. Em sua parte mais larga, mal são vinte os quilômetros que separam o promontório de Kintyre na Escócia da costa de Antrim na Irlanda. Em um dia claro se pode ver uma costa da outra. Navegar até a Irlanda de navio da costa escocesa tinha que ser mais fácil e rápido que cobrir a mesma distância por terreno firme. Um olhar ao mapa deixa claro a razão pela que Kintyre e a costa escocesa de Ayrshire, as ilhas Ocidentais, a ilha de Man e Antrim na Irlanda estão tão conectados, tanto política como culturalmente.
Ao tentar encontrar uma esposa merecedora de Erik, não me custou muito me concentrar nos De Burgh, especialmente uma vez que tive encontrado a troca de prometidos entre as duas irmãs De Burgh (são coisas que ninguém pode inventar) que tão bem encaixava em minha história. Maud de Burgh estava prometida em matrimônio em um princípio para sir John de Birmingham, primeiro conde de Louth, mas este acabou casado com sua irmã Aveline. Depois Maud se casaria com o enteado de Ralph de Monthermer, Gilbert de Clare, oitavo conde de Hertford. Ellie e Matty são minhas versões fictícias destas duas irmãs.
O contrato de matrimônio com o Ralph de Monthermer (também conhecido como Raúl) é igualmente fictício. Mas sua história não é. Casou-se clandestinamente com a filha de Eduardo, Juana de Acre, e sofreu uma estadia na torre por transgressão contra seu ultrajado rei. Ao final lhe perdoou e lhe foram concedidos os títulos de conde de Gloucester e de Hertford em vida de Juana, e também de Atholl temporalmente, depois da execução do anterior portador do título. Mais tarde, nomeá-lo-iam primeiro barão Monthermer. Lutava na Escócia por aqueles tempos e se diz dele que foi açoitado até o castelo de Ayr por Bruce dias depois da batalha de Loudon Hill, tal e como se menciona no livro. Apesar da lealdade que Ralph professava a Eduardo, contam que foi ele quem avisou Bruce em 1306 do perigo que corria ante o rei, o qual motivou a revolta.
Além do destino corrido pelas mulheres nas jaulas, algo que por desgraça é certo, o desafortunado conde de Atholl, que foi executado depois da batalha de Methven, provê-nos com informação valiosa a respeito da atitude sem misericórdia do rei Eduardo para os rebeldes do momento. O primeiro conde executado em mais de duzentos anos tentou apelar à misericórdia de Eduardo em honra a seu parentesco. Em resposta, o rei mandou que o pendurassem mais alto que aos outros para que ficasse claro seu status.
Talvez uma das histórias mais conhecidas de Bruce seja a da aranha que dá começo a O Falcão. Ao menos há três covas na Escócia que se proclamam como lugar deste famoso sucesso, mas a ilha de Rathlin na Irlanda parece estar entre as favoritas. A história da aranha é desenhada como a origem do dito: «o que segue a consegue». Por isso, apesar de que esteja muito estendida, muitos estudiosos se perguntam se a história teve alguma vez lugar e a atribuem a sir Walter Scott, de que parecem provir umas quantas lendas desse tipo.
Feito ou ficção, o delicado da situação de Bruce não pode ser exagerado em modo algum. Sua recuperação da coroa tem que ser à força uma das melhores «remontadas» de todos os tempos, aproximando-se inclusive a quão remontada os Rede Sox fizeram ante os Yankees na temporada 2004 da liga de futebol americano. (Sinto muito, não pude resistir.) Sir Herbert Maxwell resume a posição de Bruce a princípios de 1307 desta forma: «Não tinha nem um acre de terras que pudesse chamar próprio; três de seus quatro irmãos e a maioria dos amigos nos que podia confiar tinham caído na forca; o resto das pessoas que o apoiava, quase todos, tinham cessado em seus serviços ao acreditá-los inúteis e voltado para as ordens do rei Eduardo; sua esposa, sua filha e suas irmãs estavam nas prisões inglesas (Evan MacLeod Barron, The Scottish war of Independence, Barnes and Nobre Books, Nova Iorque, 1914, P. 261).
O Banho das Donzelas (ou das Virgens) é minha versão do Banho do Urso Polar, quer dizer nadar sob o gelo. Quando era pequena, minha irmã e eu estávamos acostumadas a fazer algo parecido no lago Tahoe. Corríamos pela neve até saltar em uma piscina gelada para logo sair correndo para a jacuzzi. É muito mais divertido do que parece. As celebrações pagãs eram incorporadas com frequência nos ritos e festas cristãs. Há uma escola de pensamento que toma o dia da Candelaria pela cristianização da celebração pagã gaélica da deusa Brighid.
Aymer de Valence foi renomado conde de Pembroke no ano 1307. Sua pouco cavalheiresca conduta na desastrosa batalha de Methven foi talvez a causa de que Bruce abandonasse o código de cavalaria em busca de um estilo de combate pirata do qual tirou grande partido. Pudesse ser que Valence tomasse sua vingança pessoal. Sua tia estava casada com lorde Badenoch, um membro dos Red Comyn, ao que Bruce matou em Greyfriars, batalha que tem lugar no final do O guerreiro.
Sir Thomas Randolph, que, junto a sir James Douglas, o Negro, converter-se-ia em um dos companheiros mais leais e famosos de Bruce, foi capturado pelos ingleses pouco depois de Methven e passou ao outro bando até o ano 1309. É célebre aquela frase em que acusa seu tio de lutar «como um bandido, em lugar de liberar uma batalha equilibrada como faria um cavalheiro» (Ronald MacNair Scott, Robert the Bruce, King of Scots, Barnes and Nobre Books, Nova Iorque, 1982, P. 111). Não obstante, parece ser que Ralph ao final volta com seu tio para converter-se em um de seus «mais brilhantes» cabeças.
O número de homens com o que contava Bruce para lançar seu ataque na Escócia é incerto. Entre trezentos e quatrocentos em Carrick e perto de uns setecentos em Galloway parece ajustar-se à realidade. A frota maior, composta sobre tudo por irlandeses e homens das ilhas, liderada pelos malfadados irmãos de Bruce, fracassou estrepitosamente e caiu nas mãos dos MacDowell, salvando-se só dois dos navios. Não obstante, não há evidência de que o ataque estivesse formado por duas pontas como eu sugiro (embora teria tido sentido), e o desastre de Galloway foi certamente anterior à tentativa de Bruce em Carrick. Pensa-se que ambas as divisões partiram desde Rathlin, mas não puderam estar ali durante muito tempo. Tentar ocultar um milhar de homens em uma ilha tão pequena teria sido muito complicado tendo os ingleses por toda parte.
Onde se refugiou Bruce durante os quatro ou cinco meses entre sua fuga de Dunaverty e o ataque de Carrick é um dos grandes mistérios da história. Alguns acreditam que na Noruega, onde reinava sua irmã, mas a maioria dos historiadores pensa que se escondeu nas ilhas Ocidentais e Irlanda, com ajuda de Angus Og MacDonald e Cristina MacRuairi das Ilhas.
Igualmente a rota desde Rathlin até Arran para lançar o ataque de Carrick não é mais que uma conjectura. C.W.S. Barrow, historiador especialista em Bruce, afirma em seu influente Robert Bruce e a comunidade do Reino da Escócia que foi desde Rathlin ao promontório de Kintyre subindo a costa e que depois voltou para Arran. Cruzar Tarbert à maneira de Magnus o Descalço é de minha própria invenção, mas parece factível. É de supor que a frota inglesa, que tinha sido chamada a filas em uma carta do rei Eduardo ao conde de Ulster em finais de janeiro, estaria pondo de pernas para acima o fiorde de Clyde. Atravessar Tarbert cobrou inclusive mais sentido para mim quando descobri que se dizia que Bruce tinha acampado no castelo de Lochranza, na ponta norte da ilha de Arran. Teriam que ter acontecido mais à frente do castelo de Tarbert, ocupado pelos ingleses.
Militarmente, a escaramuça de Glen Trool, em que foi repelida a tentativa de Aymer de Valence de tender uma emboscada a Bruce e seus homens, não foi uma vitória tão decisiva como a de Loudon Hill. Mas se diz que uma mulher foi enviada ali para espiar os escoceses a noite anterior à batalha. Entretanto, em lugar de espiar parece ser que a mulher perdeu os nervos e falou com Bruce da presença dos ingleses, alertando-o, então, do perigo e lhes salvando a pele (veja-se Scott, P. 101). A história provém do poema The Brus, de John Barbour, e bem poderia ser apócrifa, mas me serve de inultrapassável inspiração para introduzir Ellie no acampamento.
A ilha de Spoon, situada a três quilômetros da costa de Kintyre, tem muitos nomes, mas no dia de hoje a conhece como Sanda. O «Ponto de Eduardo» é um marco marcado como o lugar que Eduardo Bruce vigiava a costa enquanto seu irmão escapava de Dunaverty. Entretanto, Spoon não era parte das terras dos MacSorley, mas sim naquela época pertencia ao priorado de Withorn de Galloway.
As fórmulas de cortesia medievais são complicadas, já que não estavam reguladas como hoje em dia. Ao Bruce o chamavam de muitas maneiras diferentes dependendo de quem se dirigisse a ele: para seus poucos servos leais era «meu senhor» ou «rei»; para quão ingleses o tinham despojado de seus domínios (onde lhe chamava «lorde de Annandale» e «conde de Carrick») e o consideravam um rebelde, era simplesmente «sir Bruce»; e para outros, «lorde Bruce». Citando documentos da época, as notas de Barrow fazem referência ao «conde Juan» (P. 224) e ao «conde Malise» (P. 225), formas que não seriam corretas hoje em dia. Não obstante «sir», junto ao nome de batismo, parecia usar-se por falta, assim ante a dúvida sempre usei esta fórmula. Ellie provavelmente teria se referido a Ralph como sir Ralph, mas decidi pelo uso de Ralph por ser mais familiar e menos pomposo.
Como expediente, a data de 7 de julho de 1307 marca o fim de um dos reis ingleses mais famosos e grandes segundo alguns. Eduardo I, o autodenominado Martelo dos Escoceses, morreu durante sua marcha ao norte para pôr fim à «rebelião» escocesa. Seu último desejo, que pusessem seus ossos em uma urna e o levassem a frente de seu exército até que derrotassem aos escoceses, foi ignorado por seu filho e herdeiro Eduardo II.
Notas
[1] O birlinn (bìrlinn escrito em gaélico escocês ) era um tipo de embarcação usado especialmente na Hébridas e West Highlands da Escócia, na Idade Média . The Birlinn is a Norse-Gaelic variant on the Norse longship . O Birlinn é uma variante do gaélico-nórdica no Norse canoa . Variants of the name in English and Lowland Scots include “berlin” and “birling”. Variantes do nome em Inglês e Escocês Várzea incluem “Berlim” e “BIRLING”. It probably derives ultimately from the Norse byrðingr , ie a ship of burden. É muito provável que, em última análise deriva do nórdico byrðingr, ou seja, um navio de carga.
[2] Benbane Head é o ponto mais setentrional do continente Irlanda do Norte . It is located in County Antrim , near to the Giant’s Causeway , which is situated between Causeway Head and Benbane Head. Ele está localizado no condado de Antrim , perto da Giant’s Causeway , que se situa entre Causeway Head e Head Benbane.
[3] Espécie de armadura
[4] Espécie de tunica
[5] Um istmo (do grego ?s?µ??) é uma porção de terra estreita cercada por água em dois lados e que conecta duas grandes extensões de terra.
Capítulo 15
Ao dia seguinte Ellie jazia recostada sobre os braços de Falcão, com a cabeça apoiada sobre o quente e firme muro de seu peito revestido de couro, perdida na deslumbrante vermelhidão da intimidade compartilhada. Escutava o feroz bater de seu coração pensando que era a coisa mais formosa que jamais ouviu.
Esse era exatamente o efeito que ele provocava em Ellie. O acontecido no dia anterior não tinha sido imaginação dela. Que uma garota como ela pudesse ter um homem como ele, literalmente na palma da mão e fazê-lo enlouquecer de paixão supunha um descobrimento embriagador. Saborear o poder da sensualidade pela primeira vez tinha estado a ponto de embebedá-la. O suficiente para escapulir em pleno dia como uma prostituta ao estábulo com objeto de consumar outra relação ilícita. Aquilo era infame. Estava mau. Era um pecado ante Deus e uma traição da promessa que tinha feito a Ralph. Era consciente de tudo isso, mas quando se aproximou pelas costas no jardim e lhe sussurrou ao ouvido que se encontrassem no estábulo, seu corpo se viu alagado com todas aquelas sensações de deliciosa escuridão. Durante trinta segundos sua consciência liderou uma batalha feroz contra o desejo. Agora que tinha provado pela primeira vez, a tentação resultava mais forte inclusive. Atenuava a culpa dizendo que não fazia nenhum dano duradouro, que após anos de comportamento exemplar e de atender as necessidades de todos salvo as dela, merecia aqueles poucos momentos roubados de felicidade egoísta. Mas sabia que tentava justificar algo injustificável, independentemente de que desfrutasse tanto com isso.
E o certo era que desfrutava intensamente. Ao olhar seus olhos ao tempo que ele a acariciava e ela o acariciava, o momento em que levavam um ao outro ao cume e se viam catapultados a um reino de êxtase inimaginável, sabia que jamais voltaria a sentir algo como aquilo. Talvez tivesse sido um engano. Agora teria que viver com o sofrimento de saber o que estava perdendo.
Mas não podia arrepender-se disso.
Se aconchegou junto a ele o quanto pôde e suspirou com o desejo de fazer que aquele momento durasse tanto como fosse possível. Quem haveria pensando que lady Elyne de Burgh, uma das maiores herdeiras da Irlanda, sentir-se-ia feliz jazendo em um desmantelado estábulo sobre um montão de palha, com o penetrante aroma das cabeças de gado alagando seu nariz, encolhida no férreo abraço de um pirata? E entretanto, jamais havia se sentido mais animada, feliz, nem protegida.
Quase podia convencer-se de que aquilo significava algo, que aqueles sentimentos que brotavam ao tocar um ao outro eram algo mais que o próprio desejo, que quando ela o olhava aos olhos, ele sentia a mesma conexão intensa e assustadora que ela. Quase. Não importava o bem que se sentisse. Não podia permitir-se esquecer que somente era algo temporário, que se tratava de um desejo puramente físico. «A paixão pela paixão.» Mas cada vez se fazia mais difícil recordar deste último quando seus próprios sentimentos estavam sumidos em tal confusão. Não sabia como podia ter acontecido isso a ela. Supunha-se que ela não permitia que a paixão se mesclasse entre suas emoções. Era consciente que esse tipo de homem era completamente inadequado para ela e de que tomar carinho a levaria sem remédio ao desamor e à decepção. Mas lhe tinha tomado carinho. Mais do que devia.
Se estivesse tratando somente de um rosto bonito, teria sido mais fácil resistir a ele. Mas se sentia atraída como jamais se sentiu atraída por ninguém antes. Aquele homem vivia ao limite e convertia tudo em uma aventura. A fazia recordar todas as coisas que sentia falta na vida: divertir-se, as emoções, a paixão. A vida junto a ele jamais seria aborrecida.
Entretanto, aquele tipo de vida extrema e sublimação do perigo não inspirava pensamentos de perseverança e estabilidade. Teria gostado de acreditar que significava algo para ele, mas não estava segura que esse homem fosse capaz de comprometer-se nem de permitir que ninguém invadisse seu mundo. Aquele mesmo caráter imperturbável que admirava lhe dizia que atuasse com cautela. Nada parecia cativá-lo. Não o fazia o perigo, mas tampouco as pessoas. Assim e tudo, quanto mais tempo passavam juntos, mais se convencia de que Falcão guardava em seu interior muito mais do que se via a simples vista. Entre aquele caminhar fanfarrão de pirata e seu sorriso do diabo contudo, podia entrever brilhos de algo mais profundo, um homem com maior honra e nobreza da que se atrevia a admitir. Era um enigma, como olhar um quebra-cabeças que faltassem peças. Nem sequer conhecia seu verdadeiro nome. E ele tampouco conhecia o dela.
Uma parte dela queria contar-lhe mas sabia que assim que o fizesse tudo acabaria para eles. Esse sentido de nobreza tão pouco pirata que tinha poria fim a aqueles momentos no estábulo e às excursões privadas ao redor da ilha. Seus lábios esboçaram um sorriso irônico. Talvez estivesse bem contar-lhe. Assim a obrigaria a casar-se com ele para conseguir seu dote. Aquele pensamento, embora não fosse sério, a fez repensar. Era isso o que queria, casar-se com ele? Teve vontade de rir ante aquela ridícula ideia, mas não era capaz de ver o lado gracioso do assunto. Tinha chegado muito longe para algo que se supunha uma brincadeira.
Falcão acariciava distraidamente suas costas fazendo círculos com os dedos.
—No que está pensando?
Ellie duvidou, consciente de que estava a ponto de comprovar a firmeza das tácitas barreiras estabelecidas entre eles.
—Em que sequer sei seu verdadeiro nome.
Notou perfeitamente que a pergunta o incomodava. Por um momento não pôde ouvir mais que o batimento de seu coração. Pressentiu a negativa antes que lhe desse tempo para falar.
—Não posso lhe dizer. —lhe respondeu — Há certas coisas… —disse com uma voz que se apagou por um instante — É complicado. Me acredite se lhe digo que é melhor que não saiba.
Complicações, algo que entre eles não existia. Lhe encolheu o coração. «Nada especial. Nada sério.» Tentou ocultar sua decepção, mas depois de tudo o que tinham compartilhado e da confusão em que sumiam seus próprios sentimentos era um golpe difícil de aceitar.
—Entendo — sussurrou contra seu peito.
Tomou pelo queixo para olhá-la aos olhos.
—É tudo o que necessita saber, tè bheag. O que sente é algo… natural. Mas não confunda a paixão com algo mais.
A amabilidade refletida em seus olhos cortava como uma adaga. O calor subiu pelas bochechas de Ellie. Se não a mortificasse tanto, teria reconhecido a ironia. Não tinha sido ela a que o acusava em outro momento daquilo mesmo, confundir o desejo com o amor? Ante a própria confusão de seus sentimentos, aquela advertência era como pôr sal em uma ferida aberta. Mas o arrependimento que leu em seu olhar conseguiu aliviar a dor.
—Não o compreende — disse Falcão — Mas assim é como deve ser por agora.
«Por agora.» Ellie tentou não dotar de significado aquelas palavras, mas seu estúpido peito se encheu de todos os modos. Sua cabeça não cessava de lhe recordar todas as razões pelo que aquilo era um caso perdido, mas a seu coração parecia lhe importar pouco. Inclusive evitando o assunto de seu compromisso de matrimônio e de que era a filha de um duque em tanto que ele um foragido, o qual não supunham barreiras fúteis, também estava o problema dos sentimentos que ele albergava por ela. Para ele, Ellie não era mais que um passatempo prazeroso.
Entretanto, não o sentia daquela maneira.
—Que tal se lhe permito que me chame de outra forma? —O brilho nos olhos dele lhe disse que de sua boca não sairia nada bom — O que lhe parece deus? Dá a impressão de que você gosta muito de me chamar assim quando está a ponto de…
—Você —espetou— é terrível. —Era consciente que deveria se zangar que voltasse para as andadas e arremetesse contra ela, mas talvez fosse um bom aviso de que não podia permitir que aquilo se fosse pelas mãos. Dirigiu-lhe esse olhar de babá condescendente — E além disso põem em perigo sua imortal alma ao pronunciar essas blasfêmias.
—Minha imortal alma a pus em perigo faz tempo fazendo coisas muito piores que esta —disse movendo os olhos de um lugar a outro.
—Posso imaginar.
Erik suspirou profundamente e deixou de abraçá-la de modo que ambos pudessem sentar-se.
—Temo que devo voltar junto a meus homens, e será melhor que você volte para a casa antes que seu cão guardião venha lhe buscar.
Ellie se ruborizou. Thomas, que tinha se recuperado completamente, não ocultava sua desaprovação a respeito de que saísse a sós com Falcão durante esses últimos dias.
—Não é meu cão guardião.
Falcão lhe dirigiu um olhar que significava que não se dignaria a responder.
Levantaram e ajustaram bem as roupas, sacudindo o pó e a palha. Se pudessem vê-la nesse momento Catherine e Edmond… Quantas vezes tinha tirado seu irmão e sua irmã do estábulo e os tinha castigado por sujar suas roupas? Ellie tinha todo o aspecto de alguém que tinha estado rodando sobre pó e feno, o qual supunha que seria certo.
Para acrescentar mais ilegitimidade ao assunto, estavam completamente vestidos. Não podiam arriscar que alguém entrasse, e Falcão tampouco contava com muito tempo. Esse dia não tinham podido fazer nenhuma exploração. Suspeitava que sabia qual era a razão. Seu paraíso de loucura logo chegaria ao fim.
Jogou a capa da espada para trás e alargou o braço para agarrar sua tocha, espada e escudo, que descansavam sobre um dos compartimentos do estábulo, das ovelhas, deduziu, pelo aroma que desprendia.
—Quanto fica para partir? —perguntou Ellie.
—Ah, moça. Não se preocupa muito minar a confiança de um homem verdade? —disse com uma careta — Já está aborrecida?
Sorriu, mas aquela provocação não conseguiria distraí-la.
—Sua confiança segue intacta. Quando?
Suspirou.
—Amanhã de madrugada.
Quase deu um ataque no coração pela impressão. Por Deus santo, nem sequer ficavam dois dias completos. Precaveu-se do influxo que tinha tido aquele feitiço sobre ela quando recebeu o golpe da verdade: não queria partir para casa, a não ser ficar com ele. Mordeu o lábio e o olhou de novo em busca de algo que lhe indicasse o que ele sentia, mas sua expressão era inescrutável.
—Tão logo?
Encolheu de ombros e lhe dirigiu um sorriso perverso.
—Sempre poderia decidir ficar com você.
O coração deu um tombo, embora, é obvio, ele não falava a sério. Engenhou para esboçar um sorriso que ocultasse a profunda dor que sentia em seu interior.
—Não acredito que a minha família agradasse a ideia.
Acreditou intuir algo em seu olhar, mas se desvaneceu antes que pudesse reconhecê-lo.
—Poderia lhe forçar a permanecer aqui — disse com dissimulação, mas com um estranho tom na voz.
Ellie não acreditava nem por um segundo que o dissesse a sério. Era muito honrado para cometer uma traição de tal magnitude. Agora podia assegurá-lo.
—Não me engana com suas pretensões de pirata.
—Ah, não? —surpreendeu-se arqueando uma sobrancelha.
Ellie negou com a cabeça.
—Sabe o que é que penso?
—Não me atreveria a adivinhá-lo.
O sarcasmo de sua voz não a intimidou.
—Acredito que esta ilha era parte das terras que roubaram de seu clã. —Essa era a razão que as conhecesse tão bem. Perambulava pela ilha do mesmo modo que o tinha feito durante anos. As covas. A sauna. E apesar de ter tentado afastá-la dos ilhéus em suas expedições, aqueles com que cruzaram o tratavam com deferência extrema, quase como se fosse o próprio rei — Acredito que quando o velho do povoado lhe chamou taoiseach, não se tratava de nenhum engano.
Observou-o atentamente com o propósito de encontrar alguma reação que sugerisse que tinha dado no alvo, mas sua expressão não lhe dizia nada absolutamente.
—Volta a carga com isso, né? —Meneou a cabeça fingindo estar decepcionado — Acredito que deveria deixar que siga sendo eu o que conte as histórias. Sou melhor que você fazendo-o. Por mais sonhos que possa ter na cabeça, pequena, sou um foragido. Não esqueça nunca.
Percebeu o tom de advertência de sua voz, mas não pôde evitar pensar que escondia muito mais do que queria que soubesse. Mas não tinha intenção alguma de contar-lhe. Jamais chegaria a saber se tinha importância ou não.
Erik não podia acreditar. Como demônios tinha sido capaz de adivinhar a verdade? Jamais deveria ter falado sobre as terras usurpadas de seu clã. Tão somente o fez porque não gostava de vê-la sofrer. Do mesmo modo que a via sofrer agora. Deveria ter sabido que ela não seria capaz de tomá-lo à ligeira. Era o tipo de moça que tomava tudo a sério. Erik sentia o perigo. Era consciente que Ellie estava se implicando muito, mas tampouco era capaz de afastar-se dela. Ter provado seu corpo uma vez não tinha bastado absolutamente. Somente tinha servido para que sua fome crescesse mais e mais. Muito mais.
Era evidente que a sauna não tinha tido nada a ver, pois no dia seguinte Erik demonstrou a mesma falta de controle. Não sabia o que tinha essa moça que o fazia perder a cabeça. Deveria estar com seus homens, preparando-os para a batalha mais importante de suas vidas e planejando a viagem de volta a Irlanda no que tinham que atravessar o forte cerco das patrulhas, em lugar de escapulir para roubar uns momentos de prazer, como se fosse um moleque com sua primeira garota. Mas que o crucificassem se não tinha valido a pena. Tinha obtido mais prazer daquela mão do que tinha experimentado em muito tempo. Mas aquele prazer começava a resultar perigoso.
Desejava com todas suas forças poder desalentar os pensamentos românticos da moça. Fosse pirata ou não, ele era um homem açoitado pelos ingleses e não estava em posição de oferecer nada mais, inclusive no caso de ter querido fazê-lo, o qual não desejava. Brincava quando disse que podia ficar com ela. Aquela queimação que tinha sentido ante sua rápida negativa era orgulho, isso somente.
Observou-a enquanto recolocava a roupa. Que olhasse para outro lado podia considerar uma indicação; de modo que tinha captado a advertência. Dispuseram-se a sair do estábulo e, já na porta, Erik sentiu de novo essa estranha pressão em seu peito. Aquela necessidade premente e enlouquecedora de fazê-la feliz. Ellie agarrou o batente da porta. «Deixa-a partir. É melhor assim.»
—Espere! —soltou de repente.
Ellie se voltou devagar, com seu pequeno rosto levemente inclinado em atitude inquisitiva.
O coração pulsava a um ritmo descontínuo. Não sabia o que dizer. Mas aquilo não podia ser. Jamais lhe faltavam as palavras. Ela o olhava com espera. Deu vontade de passar as mãos pelos cabelos e mover os pés de inquietação. Ao final economizou posteriores desconfortos mediante algo que captaram seus olhos. Alargou o braço, tirou-lhe um fio de palha dentre os cabelos e a sustentou em alto para examiná-la.
—Talvez tenha problema para explicar isto.
As bochechas dela arderam de rubor e Erik pensou que jamais tinha visto ninguém que se ruborizasse de maneira tão adorável.
—Obrigada — disse ela.
Ficaram olhando por um momento interminável até que ele rompeu o feitiço.
—Você deveria sair antes.
Ellie assentiu e se dispôs a fazê-lo, mas depois deu meia volta inesperadamente.
—Te verei esta noite?
Sabia que seu dever era afastar-se dela, que isso faria que a partida fosse mais fácil, mas se surpreendeu assentindo.
A calidez do sorriso com que respondeu Ellie o envolveu em um suave abraço. Era algo de louco. Virtualmente podia sentir as emoções dela como próprias. Como se a felicidade da moça fosse mais importante que a sua própria.
Observou como atravessava o jardim e esperou que desaparecesse no interior da casa para sair do estábulo. Estava quase na borda do escarpado, no mais alto do caminho que levava a praia, quando ouviu um ruído a suas costas. Reconheceu-o pela fúria de suas pegadas inclusive antes que se desse a volta. Falcão olhou ao cavalheiro de corado rosto, que tinha se vestido com a armadura completa pela primeira vez desde que caiu doente. Ao que parecia, a cota de malha de Randolph tinha resistido as inclemências da água muito melhor que ele mesmo. A via tão polida e resplandecente como a uma peça de prata completamente nova. Por outra parte, Randolph tinha perdido peso, e inclusive aquele pequeno exercício de caminhar precipitadamente parecia tê-lo cansado. Respirava com dificuldade e o suor se acumulava sobre suas sobrancelhas.
—Alegra-me lhe ver de pé, vivo e abanando o rabo, Randolph.
Que não lhe tirasse de seus estribos a falta de respeito no trato dizia tudo sobre o humor de Randolph.
—Pela Santa Cruz! —exclamou o jovem cavalheiro, apropriando-se da blasfêmia favorita de seu tio — O que crê que está fazendo?
—Voltando para o acampamento. Acompanha-me?
Apesar de sua juventude, havia algo formidável em Randolph. A compleição quadrada de seus ombros, a dureza de seu olhar e a linha teimosa que marcava em seu queixo davam a Erik uma superficial ideia do homem que algum dia seria. Se fosse capaz de perder toda essa arrogância de dissimulado, era possível que se convertesse em um guerreiro impressionante, para alguém das terras baixas da Escócia, claro está.
—Sabe perfeitamente que não é a isso ao que me refiro. O que está fazendo com Ellie?
O rosto de Erik adotou uma dureza perigosa. Sentiu um estranho acesso de cólera. Que Randolph se erigisse protetor de Ellie e entrasse em cena qual cavalheiro andante o tirava do sério. Ellie era dele. Quer dizer, era sua responsabilidade, se apressou a corrigir-se.
—Isso não é seu assunto.
—É se a está desonrando. Vi-a sair do estábulo. No que está pensando? A raptamos de sua própria casa. Pode ser que não houvesse outra escolha, mas no mínimo o que podemos fazer é conseguir que retorne a salvo.
—Fá-lo-ei — disse Erik reprimindo a fúria que crescia em seu interior.
—Mas sem desonrá-la. O que faz não está bem e não serei parte disso.
Erik entrecerrou os olhos. Não gostava que lhe chamasse a ordem um jovem pomposo e estirado que mal tinha tido tempo de polir o brilho de suas esporas.
—E por que essa repentina bravata cavalheiresca? Estive com mulheres em outras ocasiões e nunca pareceu se incomodar.
—Ellie não é do tipo das mulheres com as que normalmente sai. Ela é diferente. É uma dama.
Erik estremeceu e repeliu aquelas palavras com cada um de seus sentidos. Ela não era diferente. Essa não era a realidade. Gostava de passar o tempo com ela porque se entretinha provocando-a. Eram as circunstâncias as que faziam que seu desejo por ela resultasse tão intenso. Estava desfrutando com aquilo, somente isso.
—É uma babá de vinte e quatro anos sem amarras que pode decidir por si mesma.
Diabos, se estava lhe fazendo um favor!
—É uma donzela inocente e você está se aproveitando dela — replicou Randolph — Ninguém esperaria isso de você, Falcão.
Erik apertou os punhos com força. Deu-lhe vontade de atar-se a golpes com Randolph para obrigá-lo a reconhecer o que ele mesmo tentava ignorar. Fez grandes esforços para se acalmar e luzir seu despreocupado sorriso.
—Está fazendo um mundo disto, Tommy. Somente estou me divertindo um pouco. Não se trata de nada sério. A moça será devolvida no mesmo estado em que veio.
Mais ou menos.
Randolph o observou como se não soubesse se devia acreditá-lo ou não.
—Então é certo que têm pensado devolvê-la?
—É obvio. Não acreditava que pensava retê-la, verdade? —disse fazendo que aquilo soasse como a coisa mais ridícula do mundo.
—Não estava seguro— admitiu Randolph com desconforto — Jamais lhe vi tão derrubado com uma moça.
Erik se esforçou por rir, ignorando a pressão que roia seu peito. Aquilo era ridículo. Não estava derrubado por ela. Demônios, gostava de sua vida tal e como era. Que jamais tivesse podido falar com ninguém da maneira em que fazia com Ellie, que não pudesse deixar de pensar nela, que tivesse a pele mais suave que jamais tinha tocado e os lábios mais doces que tinha provado, que essa leve fragrância a lavanda de sua pele fosse a coisa mais incrível que tinha cheirado, nem que seu sorriso o fizesse sentir-se como se acabasse de derrotar um milhão de dragões, carecia de importância. Gostava, mas não era a mulher que lhe correspondia. Inclusive embora o matrimônio entrasse em seus planos, que não era o caso, necessitaria a alguém que pudesse engrandecer o poder e prestígio de seu clã. Uma babá não era apta para o posto. E sequer estava em posição de poder casar-se, não quando sua cabeça tinha um preço bem substancioso.
—O momento e a circunstância, Tommy. Sinceramente, acaso me imagina preso a uma só mulher?
Ao final conseguiu lhe arrancar um sorriso.
—Não, suponho que está certo. —Erik esperava que agora o deixaria passar, mas, ao que parecia, ainda não tinha terminado — Quando a devolverá a casa?
Encolheu-se de ombros, como se aquilo carecesse de importância, como se não lhe importasse que em menos de quarenta e oito horas provavelmente não voltaria a lhe ver. Não o importava, absolutamente.
—Quando nos pusermos a caminho para nos encontrar com os irlandeses.
—Não pensa que possa ter ouvido algo?
Erik negou com a cabeça.
—Não, mas embora o tenha feito, para esse momento já será muito tarde.
—Então a deixará em paz até que partamos, então? —seguiu pressionando Randolph.
Que o levassem ao diabo se pensava deixar que lhe chamasse a ordem o primeiro sir Galahad exaltado que chegasse com a intenção de salvar a donzelas que não precisavam ser salvas.
—Não têm do que se preocupar, pequeno Tommy. Sei o que faço.
Sempre sabia o que fazia.
Quando Erik e Domnall voltaram para o acampamento após sua expedição do lado sul da ilha, já tinha escurecido. Com o momento da partida no ponto, Erik quis ver de perto a atividade das patrulhas a fim de observar seus modos de operação. Esperava que o número de patrulhas diminuísse com o passar dos dias, mas em lugar disso tinha aumentado. O cozinheiro tinha razão: cozia-se algo incomum. Embora felizmente os ingleses não tinham tornado a inspecionar a ilha, talvez não fosse nada mau que partissem em breve. Embora significasse ter que despedir-se de Ellie.
—Algo vai mau, capitão?
Erik se precaveu então de que estava circunspeto, e negou com a cabeça.
—Não, somente estava pensando que está bem que partamos logo.
Domnall assentiu.
—Não é normal que os cães ingleses sejam tão perseverantes — disse, depois fixou o olhar sobre ele — Acreditei que estava pensando na moça.
—Sempre estou pensando em moças.
Aquilo não enganou Domnall.
—Você gosta dela.
Primeiro Randolph e agora Domnall?
—Bom, tampouco é tão surpreendente. Eu gosto de quase todas as mulheres.
Mas seu escudeiro o conhecia há muito tempo para desistir tão facilmente.
—Mas não tanto como esta. — Domnall continuou como se falasse para si —: Ao princípio acreditava que era pela novidade de que não caísse rendida a seus pés, mas depois comecei a pensar que havia algo mais. Essa moça o convém. Não engole nenhuma de suas tolices.
Erik afastou um ramo do caminho e deixou que fosse dar em seu segundo.
—Assumindo que eu tivesse tolices, isso jamais poderia ser um ponto a seu favor.
Domnall o ignorou e mexeu o queixo.
—Vi o modo que a olha. Desde que o conheço, jamais olhou uma mulher desse modo.
—Com irritação?
Domnall soprou.
—Chame como quiser. Mas o que pensa fazer a respeito disso?
—Devolvê-la a sua família, tal e como prometi — disse com o gesto torcido.
—Assim deixará que parta e pronto?
Ao Erik não gostava desses interrogatórios, sobre tudo quando as respostas faziam que se zangasse tanto.
—E que outra coisa quer que faça? Afastei à moça de seu lar e de sua família. Tenho que levá-la de volta. Além disso, não acredito que esteja em posição de lhe oferecer muito mais agora mesmo.
—Poderia deixar que ela escolhesse. Poderia lhe dizer que lhe importa. Talvez que lhe esperasse.
—Para que? —repôs Erik, irritado pelo giro que tomava a conversação — Para ser meu amorzinho? Não pensará seriamente que me casaria com uma babá, verdade?
—Por que não? —desafiou-o seu velho amigo — Sempre faz o que quer em todo o resto. Sua mãe e sua irmã jamais se oporiam. Não, se virem que é feliz.
Já era feliz, diabos. Tinha perfeitamente claro que não necessitava uma esposa para consegui-lo.
—Isto é ridículo. Não tenho intenção de me casar. Conheço essa moça há dez dias e em dez mais já a terei esquecido completamente.
Estava seguro disso.
Domnall o olhou de forma condescendente, o qual Erik se apressou a ignorar, já que se aproximavam do acampamento. Todos estavam fazendo um mundo daquilo.
Assobiou sem fazer muito ruído para que os homens que estavam de guarda soubessem que se aproximavam, e ouviu o assobio de réplica. Quando chegaram, rodearam o cabo e a baía apareceu ante seus olhos. Erik se deteve ao ver um pequeno pesqueiro proveniente do oeste que se dirigia para o embarcadouro. Não era nada incomum, já que a pesca era a ocupação principal da gente das ilhas e a baía era um dos dois ancoradouros que tinha Spoon, mas não reconhecia o bote. Fez gestos a Domnall para que esperasse e confiou em que os guardas que vigiavam a baía vissem a tempo o bote para alertar aos homens da cova.
A barco demorou uns minutos em chegar até a borda. A lua cheia refletia suficiente luz para distinguir cinco pessoas a bordo. Uma particularidade de um dos homens fez que lhe arrepiassem os pelos do cangote: seu tamanho. Era um homem muito grande e fornido para ser pescador. Erik podia contar com os dedos de uma mão a quão guerreiros conhecia com um físico tão poderoso. Ao suspeitar que não se tratava de um pescador, ficou em tensão. Mas não podia acreditar que os ingleses fossem tão inteligentes para tentar essas táticas furtivas, e esses covardes tampouco se atreveriam a viajar em um grupo tão reduzido, sem um exército para protegê-los.
Minutos depois, duas das silhuetas saltaram pela amurada, entre eles o mais corpulento, e caminharam até a borda com a água pelos joelhos. Embora ia vestido com uma singela capa de lã e uma robusta manta marrom sobre os ombros, como se tratasse de um pescador pobre, sua musculosa compleição não deixava dúvidas de que se tratava do homem mais forte de toda Escócia.
Um sorriso se desenhou no rosto de Erik.
—Ah, que me crucifiquem.
—O que ocorre, capitão?
—Ao que parece, temos visita.
Erik saiu dentre as sombras da borda e caminhou praia abaixo.
—Olhe o que arrastou a maré até aqui — gritou.
O grandalhão se voltou ao ouvir sua voz. Apesar de fazer meses que não se viam, seu rosto duro como o granito não mostrou emoção alguma.
—Pelo que vejo ainda não lhe mataram.
—Não é necessário que o diga com esse tom de desilusão — disse Erik rindo. Saudou-o lhe dando uma palmada nas costas que quase doía — Não será porque não o tentem. Que demônios faz aqui, Aríete? —Erik dirigiu a vista para o homem que o acompanhava, esperando encontrar-se com seu companheiro Dragão, Alex Setton, mas em lugar disso levou uma surpresa ao ver o irmão do rei. Em certo modo sua alegria se diluiu. Eduardo Bruce era um caipira arrogante e volátil, que, ao contrário de seu irmão, o rei, parecia representar todas as qualidades negativas da nobreza. Dos quatro irmãos de Bruce, este era o que menos gostava. Saudou-o com um leve movimento de cabeça.
—Milord — disse para depois voltar a vista para Boyd — Como me encontrou?
—É uma longa história. Das que se contam melhor ao redor do fogo.
Boyd deu ordens aos pescadores para que os recolhessem antes do amanhecer.
Erik lhe assinalou a direção em que estava a cova.
—Estou desejando ouvi-lo.
—E eu estou desejando ouvir por que têm a metade da frota inglesa lhe farejando o traseiro — disse com cara de poucos amigos.
Capítulo 16
Horas mais tarde, os homens estavam sentados ao redor do fogo depois de desfrutar até a extenuação com uma das deliciosas comidas de Meg e mais com a deliciosa cerveja do povoado. Eduardo Bruce conversava com Randolph, de modo que era a primeira oportunidade que Erik tinha para falar a sós com Boyd.
Por mais que se alegrasse de ver seu companheiro da guarda, as notícias que trazia não eram boas. Nigel Bruce, Christopher Seton e o conde de Atholl tinham sido executados e não se sabia nada de Víbora, de Santo nem de Templário desde que tinham fugido ao norte com as mulheres. Tampouco se sabia nada de Dragão, que tinha saído em busca de seu irmão.
—E então, como me encontrou? —perguntou Erik.
—Sorte. O rei nos ordenou inspecionar Arran para o ataque, mas no caminho de volta nos encontramos com uma barreira de galeões ingleses que nos cortava o passo. Nos refugiamos no povo que há junto ao castelo de Dunaverty para esperar que se limpassem as rotas marinhas, e ali falamos com nosso amigo. Quando me contou como tinha chegado, imaginei que não estaria muito longe. Eduardo mencionou que tinha vigiado as rotas desde esta ilha quando escaparam de Dunaverty da outra vez, assim provei a sorte. Que diabos têm feito para zangar tanto a De Monthermer? —disse olhando-o com dureza.
Erik já lhe tinha relatado as circunstâncias de seu encontro com os MacQuillan, incluída a parte em que se viu obrigado a levar Ellie consigo, e a posterior confrontação com os navios ingleses.
—Feri-o em seu orgulho, isso é tudo.
—Não acredito que seja isso — disse negando com a cabeça — Nosso amigo do castelo disse que De Monthermer esteve por ali faz poucos dias, furioso como um louco, questionando aos serventes sobre certo fantasma.
Erik ficou circunspeto e relatou seu inesperado encontro com o menino no celeiro, deixando à parte, é obvio, o incidente da faca. Se De Monthermer tinha estado em Dunaverty, aproximou-se o bastante. Como diabos teria feito a conexão? Erik teve um mau pressentimento. Talvez fosse bom que estivessem a ponto de partir.
—Teve algum problema em Arran? —perguntou Erik.
—Não. Os ingleses revistaram a ilha a semana passada, mas não foram muito exaustivos em sua busca. —Erik pensou que provavelmente aquilo tinha ocorrido enquanto estavam em Spoon — Mas estão postados em todas as vias marítimas. Vimo-nos obrigados a passar por terra firme e tomar um bote em Dunaverty. Custar-lhes-á bastante fazer passar um navio por aí, e não falemos de uma frota inteira.
Isso não o preocupava. Já pensaria em algo. Bruce chegaria até Arran embora tivesse que afastar ele mesmo os ingleses do caminho.
Falaram longo e tendido e chegaram à conclusão que Eduardo e Boyd deviam voltar para Arran e preparar a chegada do exército em lugar de arriscar-se a cair na boca dos ingleses. Já que Erik partiria na noite seguinte para encontrar-se com os irlandeses e levá-los a Rathlin, ele mesmo se ocuparia de fazer chegar as notícias a Bruce e transmitir o que tinham averiguado Boyd e Eduardo.
—Está se arriscando muito levando os irlandeses a Rathlin no último momento, não crê? —disse Boyd.
—O rei pensou que seria mais arriscado tentar esconder centenas de homens em uma ilha pequena. E além disso sabe que não falharei —acrescentou com um sorriso.
—E o que passará se não for capaz de cruzar o cerco?
—Cruzá-lo-ei —respondeu Erik entre risadas — Viajaremos de noite. Nem se inteirarão que estamos ali. Além disso, não são mais que ingleses.
Boyd sorriu. De todos os membros da Guarda dos Highlanders, Boyd era quem tinha mais razões para odiar os ingleses. Provinha da zona fronteiriça, em que se tinha sofrido a injustiça dos ingleses durante longos anos.
—Já vejo que nada minou sua confiança. Segue sendo um galo de briga presunçoso.
—E você ainda me guarda rancor pela moça de Scone. Não pode culpá-la de que escolhesse a beleza e o encanto sobre a força bruta.
Boyd negou com a cabeça. Erik sabia perfeitamente que aquela bonita taberneira lhe importava um nada.
—Ao inferno, Falcão. Somente foi com você porque não estava Flecha por ali.
Erik sorriu. Provavelmente tinha razão. Quando Gregor MacGregor entrava na sala, as moças tendiam a esquecer-se de todos os outros. Mas o afamado arqueiro odiava chamar a atenção. Um absoluto desperdício, em sua opinião.
—Ouvi que esteve muito ocupado estes dias — interveio Eduardo Bruce, que se aproximava junto a Randolph — Somente você, Falcão, podia engenhar para se perder em uma ilha deserta com sua própria prisioneira.
Erik fulminou Randolph com o olhar, perguntando-se que contos teria dito a Eduardo Bruce. O moço não duraria muito se não aprendia a manter o bico fechado. As irmãs de Erik também estavam acostumados a ser delatoras de pequenas, mas ao menos conseguiram crescer o suficiente para superá-lo à idade de dez anos.
—Não é minha prisioneira — repôs com certo tom de advertência na voz. Não queria falar a respeito de Ellie.
Eduardo não se deu por entendido.
—Randolph me contou que tomou gosto à moça. Deve ser uma beleza, né?
Erik sentiu como começavam a esticar os músculos do pescoço e das costas.
Eduardo seguiu ao seu, sem precaver-se das reações que provocava nele.
—Doce e suculenta, com umas tetas enormes? —disse fazendo um gesto de ordenhar com as mãos — Talvez quando a deixar de lado, poderia me…
O mundo de Erik ficou às escuras. Estava alagado por uma cegadora raiva negra que não parecia com nada que tivesse sentido antes. Sua mão tinha agarrado o pescoço de Eduardo e o tinha esmagado contra a parede antes que este pudesse terminar a frase. O sangue se acumulava em seus ouvidos. Seu coração pulsava tão forte que não queria mais que apertar com força.
—Não o diga — o advertiu com voz sombria.
Eduardo se aferrou à mão de Erik e começou a resfolegar, mas seu braço permaneceu tão firme e rígido como o aço.
—Me solte, bárbaro do demônio — conseguiu dizer entrecortadamente.
Erik apertou um pouco mais forte. Os olhos de Eduardo pareciam estar a ponto de sair de suas órbitas.
—Solte, Falcão.
A sossegada voz de Boyd se fez passo através de sua brumosa mente. Pouco a pouco, esta foi se esclarecendo, e ao precaver-se de que estava a ponto de estrangular o irmão do rei, soltou o pescoço de Eduardo. Este se truncou sobre seus joelhos e levou as mãos à garganta enquanto tentava recuperar o fôlego.
—Que diabos estava pensando? —disse cuspindo sua raiva acusadoramente com o rosto avermelhado — Como se atreve a me pôr a mão em cima? Meu irmão terá notícias disto.
Esse era exatamente o problema de Eduardo Bruce. Nunca tinha aprendido a viver sob a sombra de seu irmão muito mais digno que ele. Era um bode arrogante e ordinário, para quem pertencer à nobreza era uma desculpa para fazer e dizer o que lhe desse vontade. Normalmente Erik o ignorava. Mas quando mencionou Ellie… Não podia pensar em outra coisa salvo em matá-lo. Que Eduardo tivesse sido capaz de provocar tal reação resultava um tanto desconcertante. Não havia dito nada que o próprio Erik não tinha dito antes, embora era certo que de modo menos grosseiro. De fato, não fazia muito tempo que tinha feito uma brincadeira similar a MacLeod a respeito de sua nova esposa e a ponto esteve que seu nada divertido amigo lhe arrancasse a cabeça. Era a primeira vez que Erik se precavia de quão apaixonado MacLeod estava de sua mulher, mas a situação nesse momento em nada tinha a ver com aquela.
Olhou Eduardo por cima do ombro.
—Faça o que deve, Número Dois.
Os olhos de Eduardo avermelharam mais de ira ao ouvir o nome que Erik lhe tinha atribuído meses atrás, uma referência clara a sua posição na família, mas também um reflexo de como ele sempre ia por trás de seu muito admirado irmão. Eduardo saiu da cova feito uma fúria e Erik voltou a sentar-se no assento que com tanta celeridade tinha abandonado antes.
Sentiu-se escrutinado pelo olhar de Boyd. Por se tratar de uma besta desumana, resultava ter uma perspicácia desesperadora.
—Assim que esse é o aspecto que têm quando se zanga? Chefe me havia dito, mas tenho que admitir que não acreditava.
Erik deu um longo trago à cerveja enquanto se perguntava por que diabos se sentia como se fosse um inseto sob uma maldita rocha. Boyd emitiu um assobio suave.
—Deve ser uma mulher das boas, porque acaba de criar um inimigo dos mais poderosos.
—Isto não tem nada a ver com ela. Eduardo é um cretino. Isto vem já faz muito tempo.
Aquilo era certo, mas não explicava absolutamente a reação de Erik. Boyd ficou observando-o um pouco mais e, depois disto, por sorte, trocou de tema.
Ellie, enquanto isso, olhava para a escuridão através daquela janela, e o frio vento da noite adormecia suas bochechas. Não alcançava ver muito além dos círculos iluminados pelas tochas que flanqueavam a entrada da casa de Meg.
Onde teria se metido? Falcão assegurou que a veria essa noite, mas em lugar disso mandou uma mensagem dizendo que Thomas se reunisse com ele assim que fosse possível e que comeria no acampamento com seus homens. Ellie tinha visto discutir ambos os homens pouco antes e temia que sua ausência estivesse relacionada com ela. Mordeu o lábio ao precaver-se de que talvez Thomas a tivesse visto sair do estábulo. O que teria pensado? Sentiu uma pontada no coração. Exatamente o que merecia: que era uma desavergonhada. Seguiu mordendo o lábio com mais ansiedade ainda, enquanto observava qualquer sinal da presença de seu físico alto e musculoso, mas não podia tirar da cabeça a sensação de que algo ia mau.
—Procura alguém?
Ellie fechou rapidamente a portinha e se voltou para encontrar com o vivaz rosto de Meg. Negou com a cabeça.
—Só admirava a lua cheia.
Meg esboçou um sorriso. Era muito amável para pôr em dúvida sua sinceridade.
—Eu não me preocuparia muito. Estou segura de que simplesmente terá perdido a noção do tempo. Se Falcão disse que viria, fará. Apesar que se esforça em dar a impressão de que tudo lhe importa um nada, é uma das pessoas mais dignas de confiança que conheço. Pode confiar nele.
Era algo curioso, mas certo. Ellie se ruborizou.
—Não se trata disso.
—Eu acredito que se trata exatamente disso — disse Meg com um sorriso. Seus olhos se encheram de brilho — Não faz tanto que eu estava aí mesmo esperando que meu Colin voltasse —acrescentou com um suspiro — Ah, a primavera do amor!
Ellie ficou surpreendida.
—Eu não estou apaixonada — protestou, esquecendo essa estúpida história que Falcão tinha inventado. De todos os modos, já conhecia muito bem a Meg para saber que em realidade nunca a tinha acreditado.
Não podia estar apaixonada. Viu-se invadida pelo horror. De repente o ar era pesado e asfixiante. Não podia ser tão estúpida para ter entregue seu coração a um homem com o qual não havia possibilidade alguma de futuro. Alguém que quão único faria seria romper-lhe em pedaços. Meg atuou como se não tivesse dito nada. Meneou a cabeça em um gesto cheio de nostalgia.
—Jamais pensei que chegaria o dia em que a Falcão cortasse as asas.
O coração de Ellie se deteve em seco para depois voltar a ficar em marcha com vitalidade renovada.
—A que se refere?
—Ainda não é consciente disso, mas esse homem está apaixonado por você.
Seu coração pulsava tão forte que fazia mal. Meg se equivocava. Tinha que estar equivocada.
—Não me advertiu faz pouco que gostava muito das mulheres para dar seu coração a uma só?
Meg se encolheu de ombros, como se aquelas palavras carecessem já de importância.
—Vi Falcão com muitas mulheres e a nenhuma delas olhava como olha a você.
A cabeça de Ellie estava passando um mau momento tentando controlar o desejo quase desesperado para seu próprio coração. Talvez não tivesse sido tudo imaginação dela. Era possível que Meg tivesse razão? Ellie se esforçou por mostrar-se racional.
—Isso pouco importa. Embora fosse certo, tem intenção de me devolver junto a minha família assim que partamos daqui.
Meg tomou sua mão e a apertou entre as suas.
—Lhe dê tempo, moça. As coisas são agora muito complicadas, e Falcão não é do tipo de homem que aceita seus sentimentos por seu próprio gosto. Pode ser que necessite um pequeno empurrãozinho, mas ao final chegará ali.
A voragem de emoções que se revolvia no interior de Ellie desde fazia dias ameaçava se libertar. As lágrimas picavam sua garganta e as conchas de seus olhos. Ellie elevou a vista para se encontrar com o olhar amável daquela mulher que se converteu em amiga. A necessidade de confiar em alguém podia mais que ela.
—Não tenho tempo — sussurrou.
Meg arqueou as sobrancelhas.
—Está casada?
Ellie negou com a cabeça.
—Ainda não. Mas estou prometida.
Um amplo sorriso apagou a preocupação do rosto de Meg.
—Então ainda têm tempo. Somente deverá pôr um pouco mais de empenho.
Meg fazia que soasse tudo muito singelo, mas não era absolutamente. Inclusive se estivesse convencida dos sentimentos de Falcão, o qual não era o caso, também teria que considerar o contrato de compromisso. Como reagiria seu pai supondo que ela queria romper o contrato? Para uma mulher de sua fila e posição, os sentimentos pessoais estavam desconjurados. Esperava-se dela que cumprisse com sua obrigação. E como não se deu o caso de que pudesse contar seus sentimentos a seu pai, não sabia como este podia reagir. Por outro lado, teria que considerar as reações de Ralph e do rei Eduardo. Apesar que Ralph não parecia albergar sentimentos com respeito a ela, poderia ficar furioso. Mas, dadas as circunstâncias de seu primeiro matrimônio, talvez pudesse compreendê-lo. A reação do rei Eduardo era impossível de prever.
Seu pai a queria, e algo lhe dizia que não a obrigaria a contrair um matrimônio que não desejava, embora isso tampouco significava que o alegrasse ter um pirata como genro. Não obstante, era consciente que existia outra alternativa. Sempre poderia fugir com ele e se arriscar que a deserdasse. Mas para uma garota que sempre tinha tentado fazer o correto, que acreditava nas obrigações e na responsabilidade, que amava a sua família com todo seu coração, aquilo era algo virtualmente inconcebível. Era algo que poderia fazer Mary, mas ela nunca. Ela não era impetuosa. Era uma pessoa séria e…
«Aborrecida.» Sentenciada a viver uma vida que não desejava com um homem ao que não queria.
—Sabe Falcão algo a respeito desse compromisso? —perguntou Meg.
Ellie negou com a cabeça.
—Não pensei que fosse importante para ele. Sempre deixou claro que nossa, eh, relação, é temporária.
Meg esclareceu garganta teatralmente.
—Há uma grande diferença entre o que os homens dizem e o que sentem. Jamais saberá como pode reagir a menos que conte. —Meg deveu adivinhar sua indecisão — Se é que está segura de querer fazê-lo.
Ellie não estava segura de nada. Mas se havia alguma possibilidade que Meg estivesse certa, tinha que averiguá-lo. E não dispunha de muito tempo para fazê-lo. Meg lhe dirigiu um estranho sorriso.
—Estava a ponto de ir agora mesmo ao acampamento recolher os utensílios de cozinha que mandei antes.
Ellie ficou circunspecta sem entender o que queria dizer com isso.
—Não disse Duncan que não nos incomodássemos, que ele mesmo os traria?
Meg cruzou os braços.
—Bom, então como parece que Duncan não se deu muita pressa, tenho intenção de recolhê-los eu mesma.
Ellie sorriu.
—Não necessitará ajuda?
—Oh, o que considerado por sua parte —disse Meg como se não tivesse caído na conta — Me viria muito bem.
Ambas as mulheres compartilharam um sorriso de cumplicidade e foram por seus casacos.
Levantou-se o vento, e a tocha titilava na escuridão à medida que caminhavam com cuidado pelo escarpado caminho para a praia. A Ellie deu a sensação que a observavam e se precaveu que Falcão provavelmente tinha a seus guardas postados nas imediações da cova. Mas não foi até que se aproximaram da entrada que as deteve um jovem guarda.
—Temo que o capitão se encontra ocupado neste momento —disse movendo-se nervosamente, como se as roupas lhe estivessem pequenas.
Ellie podia ouvir os ruídos alegres que provinham do interior da cova. Ocupado com o que? Com uma celebração? O mundo lhe veio em cima ao pensar na mulher da outra noite. Tentou olhar por cima do ombro do guarda, mas o moço era alto e seu peito bloqueava uma boa parte da entrada da cova. Meg também parecia surpreendida.
—Só vim recolher os utensílios da cozinha.
—Farei que Rhuairi lhe entregue isso.
Fez um sinal a um guarda que havia perto dali, que lhe deu um olhar furtivo e cumpriu com seu encargo imediatamente.
Algo estranho estava acontecendo. Jamais antes lhe tinham negado a entrada à cova e era evidente que o jovem guarda estava ansioso por livrar-se delas. Acaso havia algo ali que não queriam que elas vissem? Meg deve ter se dado conta também disso. Tomou pelo braço e disse: —Não passa nada. Faça que Duncan os traga mais tarde.
Meg a levou dali para voltar para a casa, mas com sua pressa tinha feito que Ellie tropeçasse com um homem que vinha por trás delas.
—Minhas desculpas — disse ela de maneira automática.
Ellie deu uma olhada a aquele homem e ficou gelada. Ficou pálida como a morte. Piscou na penumbra sem acreditar no que viam seus olhos. Ia vestido com as roupas robustas de um pescador, mas reconheceu ao arrumado homem de cabelos morenos que tinha ante si: Eduardo Bruce, o irmão mais velho de Robert e seu próprio irmão político por matrimônio.
Por que…?
É obvio! De repente, nesse preciso instante tudo cobrou sentido. A última peça do quebra-cabeças entrou em seu devido lugar. «Falcão está com Bruce.» Não era um pirata, a não ser um rebelde escocês que lutava no bando de Robert contra o rei Eduardo. E contra seu pai. De repente, aquele desejo de evitar pronunciar o nome de seu pai na cova cobrava sentido.
Aquilo era o que Meg se referia quando afirmava que o assunto era complicado. Mas sua amiga não poderia ter imaginado jamais quão complicado realmente era. E então se precaveu de uma segunda coisa: Falcão descobriria quem era ela realmente. Tudo acabaria para eles. Uma vez que descobrisse sua identidade, já não haveria mais encontros privados, nem beijos, nem prazer. Jamais teria possibilidade de averiguar quais eram seus verdadeiros sentimentos por ela.
Ao princípio, temia revelar sua identidade porque isso poderia empurrá-lo a casar-se com ela somente por sua riqueza e sua posição. Mas além disso existia outro problema em sua relação: era a irmã de seu rei e senhor. Isso o fazia suspeitar que a nobreza inata da que adoecia o faria oferecer-se a ela em matrimônio. Mas ela não queria consegui-lo desse modo. A possibilidade de um futuro como o de sua mãe resultava impossível ante tais pensamentos. Não havia nada romântico em um amor não correspondido. Para isso melhor estaria com Ralph. Conteve a respiração, esperando o momento da revelação, esperando a que a voz de Eduardo clamasse e perguntasse que fazia ante ele lady Elyne de Burgh vestida de camponesa. Mas Eduardo não disse uma palavra. Seus negros e frios olhos passaram diante dela sem mostrar o menor pingo de interesse, justamente do mesmo modo que a primeira vez que se encontraram nas bodas de Robert e Isabel. Se adornada com suas joias e embelezada com ricos panos de veludo não tinha sido o suficiente bela para que lhe prestasse atenção, muito menos o era nesse preciso momento.
Meu Deus, não a tinha reconhecido! Sabia que devia sentir-se humilhada, mas em lugar disso não podia acreditar que tivesse tanta sorte. Deu meia volta sem querer lhe oferecer uma segunda oportunidade para que a reconhecesse. Mas antes que pudesse tomar Meg pelo braço e se apressasse a partir, deteve-a uma voz dolorosamente familiar.
Falcão a agarrou pelo cotovelo e a fez voltar-se.
—Ellie? Que demônios está fazendo aqui?
O olhar agudo de Eduardo Bruce a observou com muita mais atenção da que ela teria querido.
—Esta é sua prisioneira?
A Ellie deu a impressão de que não respondia absolutamente às expectativas que se formou dela.
—Não sou sua prisioneira.
—Não é minha prisioneira — disse Falcão ao mesmo tempo.
Eduardo a escrutinava com uma intensidade que a incomodou. Por um momento temeu que a tivesse reconhecido. O gesto lhe torceu em um sorriso zombador. Ao final decidiu afastar sua vista dela.
—Não é como as que geralmente você normalmente gosta, Falcão.
Erik tinha sérios problemas para recordar que aquele homem era o irmão do rei e que atravessar aquele sorriso vil com seu punho provavelmente não fosse a melhor das ideias. Mas, diabos, teria ficado na glória.
Primeiro, esse imbecil do Eduardo se deixou ver ante as duas mulheres e, embora fosse pouco provável, sempre cabia a possibilidade de que alguma delas o reconhecesse. E depois disto tinha insultado Ellie ao compará-la com outras mulheres.
E por que não podia lhe atrair Ellie? E qual problema se não tinha os seios enormes nem parecia que acabasse de descer do monte Olimpo? Qualquer idiota podia ver a beleza que havia nesses olhos castanhos matizados de verde, seu pequeno nariz e essa boquinha cheia de inteligência que tinha.
Se esse bastardo tinha ferido seus sentimentos, suas conexões com a realeza não bastariam para salvá-lo. Olhou em direção a Ellie. Como ela tinha elevado o queixo e pela cor rosada de suas bochechas estava claro que se precaveu das implicações que aquilo suportava, e conforme parecia estava a ponto de dar a Eduardo um boa reprimenda. Era de esperar. Ellie não apoiava sua própria valia nem a de ninguém na beleza física. Essa era uma das coisas que admirava nela e a razão que lhe importasse seu bom julgamento. Mas tampouco queria que permanecesse junto a Eduardo Bruce mais tempo do necessário.
—Têm razão — disse Erik interpondo-se entre ambos — Ellie é muito especial para ser comparada com alguma outra pessoa.
Ficou surpreso ao precaver-se de que o dizia a sério.
Ellie o observava com esse olhar tão penetrante que o punha nervoso. Para evitar que suas palavras a confundissem e chegasse a conclusões errôneas, passou ao ataque.
—O que está fazendo aqui?
—É minha culpa — interveio Meg — Não sabia que estava ocupado. Viemos recolher os utensílios da cozinha.
Erik se alegrou de ver que Eduardo se precaveu, embora tarde, que não devia ser visto por ninguém e tinha decidido voltar para a cova. Ellie observou como partia e houve algo na expressão de seus olhos que fez desconfiar Erik.
—Farei que os levem algum de meus homens — disse. Advertiu que Meg se sentia culpada por tê-los interrompido. Não era culpa dela. Tinha que ter sido mais explícito quanto a suas ordens. Perguntava-se o que as teria levado até ali, já que não acreditava que tivessem ido realmente recolher os utensílios de cozinha — É tarde —disse — As acompanharei a casa.
Ambas se negaram, mas Erik não queria ouvir falar mais do assunto. Talvez Meg estivesse acostumada a caminhar pelo escarpado de noite, mas Ellie não. Somente de pensar em quão fácil teria sido que escorregasse ou tropeçasse na escuridão ficava furioso de novo. Acompanhou-as na ascensão do atalho e agarrou firmemente Ellie pelo braço para assegurar-se de que aquilo não acontecesse. Pode ser que Ellie fosse magra, mas isso não evitava que seus corpos se acoplassem à perfeição.
As mulheres se mostravam mais caladas que o habitual. Assim que cruzaram a soleira da porta, Meg bocejou de modo exagerado e se desculpou para ir-se à cama. A Erik deu a sensação que queria deixá-los a sós. Mas Ellie se via muito nervosa. Passou um tempo incalculável tirando o casaco e depois perambulou pela habitação até que ao final decidiu esquentar as mãos ante o fogo.
—Queria algo, moça?
—Não — disse. Mas se corrigiu imediatamente —: Sim. —Cruzou as mãos sobre suas saias e se voltou para ele para olhá-lo —. Seus convidados. Era essa a razão de que não veio esta noite?
Maldita seja. Tinha-o esquecido. Embora talvez não fosse essa a verdadeira causa. As palavras de Randolph pesavam mais do que queria admitir.
—Sim. Sinto-o — disse com um sorriso —, mas os negócios estão antes do prazer.
Não obstante, aquela tentativa de mostrar-se despreocupado foi fulminado por completo por suas seguintes palavras.
—Não é nenhum pirata. Está com Bruce. Por isso lhe persegue os ingleses.
Riu como se aquilo fosse uma brincadeira, embora em seu interior estava furioso. Provavelmente tinha reconhecido Eduardo Bruce.
—Ainda segue inventando nobres atividades em minha honra, Ellie? Acreditei que deixaria os contos para mim.
—Não — disse em voz baixa — Não brinque com algo como isto — prosseguiu com os olhos cravados nele — Não minta para mim.
Deveria. Deveria dar meia volta e partir. Já era o suficiente complicado. Mas não podia fazer que seus pés se movessem. Não queria enganá-la.
—É mais seguro para você que não faça perguntas.
—Não me importa se é seguro ou não. Quero saber a verdade. O que ia fazer aqui se não o irmão do rei?
—Maldita seja, Ellie! Sim me importa! —Passou os dedos entre seus curtos cabelos, tentando controlar a crispação de suas emoções. Acaso não se precavia que tentava protegê-la? — Dá-se conta do que fariam de você se soubessem que sabe algo? O rei Eduardo não se deterá ante nada para encontrar Bruce. Não deixe que o fato de ser mulher lhe leve ao engano de pensar que está a salvo.
A veemência de sua reação não pareceu ter efeito algum nela.
—Rainha — Avançou para ele com ansiedade — Que notícias têm da rainha Isabel?
Surpreendeu-se ante a estranha intensidade de sua pergunta, até que recordou o cargo que tinha na casa de Ulster.
—Nenhuma desde que se viu obrigada a se separar do rei meses atrás.
—Ouvi rumores de que tinha partido para a Noruega. Refugiar-se junto à irmã de Bruce, a rainha.
—Não sei — disse negando com a cabeça a um tempo.
Advertiu sua decepção e se perguntou se, apesar de sua posição na casa de Ulster, não simpatizaria com a causa de Bruce. Aquilo não o surpreenderia, dadas as conexões que Bruce tinha com a Irlanda. Mas pouco importava. Simpatizasse com sua causa ou não, tinham posto preço à cabeça de Erik e qualquer conexão com ele seria muito perigosa.
—Por que estava na cova que há sob Dunluce? —perguntou ela.
—Ellie… —advertiu-a.
Mas ela fez caso omisso.
—Aqueles homens com os que se reunira. Os irlandeses. São guerreiros para o Bruce. —Elevou a vista para olhá-lo — Está planejando algo.
Erik cruzou toda a habitação e tomou pelos ombros.
—Se detenha — disse preso do medo. Por que diabo tinha que ser tão inteligente? — Não faça mais perguntas! Esqueça tudo o que ouviu. Se esqueça de mim!
Disse aos gritos, gritando seriamente.
Ficou sobressaltada. Ao Erik pareceu que finalmente sua ira tinha conseguido afetá-la.
—É isso o que quer de mim?
Ele não duvidou um instante.
—Sim.
Ellie elevou o queixo e o olhou diretamente nos olhos. Erik sentiu o fogo que os conectava. Olhava-o nos olhos e o desafiava a negá-lo.
—Não posso fazê-lo.
«Que o diabo a levasse.» Era a mulher mais irritante e díscola que jamais tinha conhecido. Erik sentiu que tudo lhe escapava das mãos. Queria tomá-la entre seus braços e beijá-la até que atendesse a suas palavras. Queria tornar-lhe ao ombro e transportá-la tão longe como fosse possível. A algum lugar seguro. Mas qualquer lugar seguro significava um lugar afastado dele.
Deixou-a sozinha. Do mesmo modo que ele poderia esquecê-la, ela também poderia fazê-lo. Sentiu como se lhe cravassem uma faca afiada no peito.
—Descanse. Partiremos amanhã de noite.
A ela mudou o rosto.
—Mas… —Pelo jeito como se apagou sua voz, pareceu dar-se conta de que era inútil protestar. Elevou a vista de novo para olhá-lo aos olhos — O verei amanhã?
Em outras condições nem teria duvidado. Quando as alternativas eram escolher entre esperar junto a seus homens que caísse a noite ou desfrutar de uma relação amorosa, não havia muito que decidir. Mas inclusive nesse momento teve que lutar para controlar-se. Seu suave e feminino aroma se elevou para cativá-lo. O desejo que sentia por ela não seguia seu curso natural, mas sim crescia mais a cada passo. Queria despi-la completamente, envolvê-la com seu corpo e penetrar em seu interior até o mais profundo. Tinha tanta vontade de fazê-lo que podia ver como seria, e aquelas imagens o voltavam louco. Sabia que não era uma boa ideia. Estava se complicando muito. Seu controle estava chegando ao limite de sua capacidade. Amanhã partiriam cada um para seu lado. Seria melhor romper logo. Entretanto, resultava-lhe muito difícil resistir à tentação de passar um último dia com ela, de tocá-la, de observar como ruborizava seu rosto de prazer enquanto ele a levava a outro mundo com suas carícias.
—Não sei — vacilou — Haverá muito que fazer.
Sim, coisas como sentar-se e esperar.
—Ah — disse ela sem ocultar sua decepção — Acreditava que teria um pouco de tempo para me mostrar essa cova quando terminassem com seus homens pela manhã. Se é que realmente existe.
Erik sorriu. Aquela sutil mofa demonstrou ser do mais persuasiva. Estava sendo ridículo. Fazia uma montanha de todo isso. Somente era um dia a mais.
—Sim, claro que existe. Tinha prometido mostrar isso não?
Ellie assentiu com um esboço de sorriso na comissura dos lábios. Sabia que se saiu com a sua, embora tampouco tinha tido que lutar muito para consegui-lo.
—Teremos que ir quando a maré esteja baixa. Estará preparada pela manhã? Refiro ao que o resto de nós chama manhã.
Ellie fez uma careta.
—Muito gracioso. Me diga simplesmente a que hora.
Dado que Eduardo Bruce e Boyd partiriam várias horas antes do amanhecer, ele teria que estar acordado quase toda a noite de todas as formas.
—Ao amanhecer? —Riu ante sua cara de horror — Bom, se não quiser ir…
—Estarei pronta ao amanhecer — grunhiu.
Não pôde resistir e a beijou brandamente nos lábios antes de partir.
—Valerá a pena — prometeu.
—Mais que valha, a uma hora tão inoportuna.
Capítulo 17
Ellie olhou ao redor daquele palácio de rochas subterrâneo que brilhava como ébano gentil na turva escuridão.
—É magnífico — disse quase sussurrando.
—Me alegro de que dê sua aprovação — disse Falcão com uns olhos azuis que brilhavam de malícia — Devo entender que o banho valeu a pena?
—Trapaceiro — repôs ela fazendo uma careta de chateio e lhe salpicando água no rosto — Muito inteligente de sua parte esquecer de comentá-lo antes.
Sacudiu a água de sua densa e ondulada cabeleira e lhe dirigiu um de seus incorrigíveis sorrisos.
—Não perguntou.
Ellie tinha pensado duas vezes quando se precaveu que teriam que nadar até a cova, embora em realidade, recordando o muito que havia custado levantar antes do amanhecer, essa tinha sido realmente a terceira vez. Não se tratava de um dia de inverno quente e ensolarado, ao contrário da última ocasião em que ele a tinha convencido para um banho.
Tinham partido pouco depois do amanhecer, em um velho barco desmantelado que tinha tomado emprestado de um pescador local que mal cabiam os dois. Apesar que Falcão o assegurasse, Ellie se surpreendeu que aquela massa de tábuas desvencilhadas e gastas pudesse flutuar. Erik cortava a densa bruma da manhã com os remos, e após fazer virar a embarcação apenas umas pazadas sobre a ponta norte da ilha, viram aparecer um saliente de rochas escuras que ocultava uma pequena cova. Aproximou o bote até a rochosa praia para mantê-lo oculto e disse a Ellie que deixasse suas roupas nele. Isso de voltar a meter-se nas geladas águas a fazia se arrepender, mas não queria dar pé a que a levasse de volta. Talvez fosse a última oportunidade para estar a sós com ele. Se realmente desejava averiguar se Meg tinha razão, teria que fazê-lo nesse momento.
Assim que uma vez mais tirou tudo menos a camisola e seguiu Erik até o que parecia uma parede de rochas bicudas que ocultava a entrada de uma cova. Nadar para o desconhecido foi um tanto aterrador, mas ele a agarrou pela mão e mergulhou junto com ela no escuro e gelado mar, levando-a consigo uns cinco pés até chegar a uma estreita fenda na rocha. Ao sair do outro lado, Ellie se encontrou em uma piscina pouco profunda, maravilhando-se com o oásis de rochas que tinha a seu redor. Havia a luz justa para adivinhar a tosca forma oblonga da escura gruta.
Quando Falcão a pôs em pé, Ellie se surpreendeu que a água apenas lhe chegasse pelo peito.
—Só se pode entrar quando há maré baixa — explicou ele — Pela tarde, a água chega até o teto.
A cova mediria algo mais de três metros de altura, já que o teto se elevava ao redor de um metro sobre a cabeça de Falcão. Era assombroso pensar que a água chegaria tão acima em umas poucas horas. Deram-lhe calafrios.
—Eu não gostaria de ficar apanhada aqui dentro.
Levou-a até um saliente da rocha que servia como banco natural. Pôs as mãos sobre sua cintura e a elevou para que se sentasse; depois levantou a si mesmo. Era a primeira vez que a tocava em todo o dia, de modo que o corpo de Ellie se sobressaltou ante o contato. Para um homem que se comunicava tanto com as mãos como com as palavras, parecia fazer grandes esforços para as deixar quietas.
Ellie escorreu a água do cabelo como pôde e refugiou os pés sob a borda de sua úmida camisola enquanto ele passava os dedos entre os cabelos e secava a água do rosto.
—Têm frio?
Ellie tinha a pele arrepiada, mas a assombrou comprovar que não sentia frio. O ambiente não era tão quente como na sauna, mas havia ao menos vinte graus mais que no exterior. Negou com a cabeça.
—Faz muito menos frio aqui que dentro da água.
—É assim durante quase todo o ano, embora desconheça a razão.
Precaveu-se do débil eco que seguia a sua voz e permaneceu atenta a qualquer outro som no interior da cova, o vento ou a água golpeando contra as rochas, mas à exceção da destilação da água que caía do teto, o silêncio era espectral.
—Que silêncio!
—Sim, parece que está em outro mundo, verdade?
—Como encontrou este lugar?
—Não o encontrei. Os locais o conhecem há muito tempo.
—É um lugar fantástico para esconder-se. Vinha muito por aqui quando era jovem?
A olhou de esguelha com suspicácia, mas não respondeu. Ellie não se deu por aludida.
—Foi essa a razão de que se uniu ao bando de Bruce, para reclamar suas terras?
Erik negou com a cabeça.
—É que alguma vez se dá por vencida?
Ficou pensando nisso.
—Não.
Falcão suspirou. Ela pensou que não teria intenção de responder, mas depois de um momento ele disse: —Isso teve algo haver, mas a razão principal foi que me pediu o chefe de meu clã. —Ellie o olhava intensamente — Não pergunte. Não posso lhe contar mais.
Mordeu o lábio e baixou os olhos para olhar à escuridão da lacuna. Não queria que houvesse mais segredos entre eles. Tinha que lhe contar a verdade a respeito de sua identidade, mas antes precisava saber quais eram seus sentimentos por ela.
—Não pode ou não o fará?
—Nem um nem o outro.
Erik alargou o braço e lhe agarrou o queixo. Aquela suave carícia fez que seu corpo se alagasse de calafrios. A obrigação se converteu em uma razão pouco apetecível para o matrimônio, especialmente se era com ele.
—É muito perigoso para você. Tento lhe proteger — disse Erik.
Tinha razão. Era algo muito perigoso. Por isso, sua associação com Bruce era tão aterradora.
—E o que há do perigo que supõe para você? —perguntou Ellie, sentindo que as lágrimas iam a seus olhos. Apesar da lealdade de seu pai ao rei Eduardo, Ellie simpatizava com a causa de seu cunhado, ao que sempre tinha admirado. Mas por mais que simpatizasse com sua luta, sabia que aquela causa estava perdida de antemão. A tentativa de Bruce de tomar a coroa tinha fracassado. Os dias de Bruce e seus seguidores estavam contados. Gelava-lhe o sangue imaginar o que o rei faria com eles quando os apanhasse, e não cabia dúvida de que assim seria — Durante quanto tempo pensa que ganhará a corrida da frota inglesa?
Falcão retirou a mão de seu queixo e endureceu a expressão até fazê-la desafiante.
—Tanto como seja necessário.
—E o que ocorrerá depois? Morrerá em algum campo de batalha? Ou pior ainda, pendurado de uma soga ou sob a tocha de um verdugo?
—Pode ser que sim — disse encolhendo-se de ombros —, ou talvez não.
Ellie se indignou pela frustração. Nada o afetava. Nada era sério para ele. Parecia alheio ao perigo.
—É que não o preocupa a morte?
—A morte é parte do combate, Ellie. Combater é ao que me dedico. —Sorriu — E pelo geral, estou acostumado a ganhar o combate.
Não o punha em dúvida. Tinha-o visto brandir a espada. Com esse tamanho e força, tinha que ser brutal no campo de batalha.
—Mas desta vez não poderá ganhar. Eduardo é muito poderoso. Quantos têm, várias centenas de homens?
—Isto ainda não acabou.
Ao que parecia, possuía uma vertente teimosa que até esse momento não tinha visto.
—Crê que Bruce tem alguma possibilidade?
—Mais que alguma possibilidade.
Ellie percebeu em sua voz algo que não tinha ouvido nunca antes. Era algo profundo, irreverente e inquebrável. Demorou um momento em reconhecer do que se tratava: lealdade. De repente vieram as palavras inscritas na espada: «Sempre fiel».
—Mas o seguiria de todas as formas — disse quase para si.
Embora significasse sua própria morte.
Não era a voz de alguém incapaz de comprometer-se. Se era capaz de sentir essa lealdade por Bruce, talvez também fosse possível que lhe importasse. Falcão não era como seu pai. Somente porque fosse bonito e carismático, ela não tinha direito a assumir que fosse incapaz de sentir emoções profundas. Todo o ocorrido na semana anterior tomava uma aparência completamente diferente sem a influência cegadora que supunha o coração partido de sua mãe. Erik tinha passado com ela todo o tempo livre que dispunha e tinha inventado desculpas só para estar com ela. Embora sua única intenção fosse que ela relaxasse, não tinha sido a única em desfrutá-lo. Ele tinha rido e divertido tanto como ela. Tinha-lhe contado coisas pessoais a respeito de sua família, coisas que suspeitava que compartilhava com muito poucas pessoas. E também estava o fato que tivesse mandado uma mensagem para tranquilizar sua família, algo que não tinha necessidade de fazer e para o que, sem dúvida, tinha assumido certo risco. Atuava de modo diferente com ela do que fazia com outros.
Mas não era somente o que fazia, a não ser a sensação, a plena certeza que significava algo para ele. Via-o na maneira em que ela parecia afetar a seu caráter como ninguém mais o fazia, a maneira em que lhe falava, o modo em que seu corpo reagia ao contato com seus dedos e aquele intenso e tenro olhar que lhe oferecia quando a tocava. Aquilo tinha que significar algo.
Inclusive Meg tinha percebido.
Ellie inspirou profundamente e se voltou para ele.
—Não quero que nos despeçamos.
Falcão ficou de pedra. O músculo inferior de seu queixo palpitava. Mas depois sorriu e ela se perguntou se não teriam sido imaginação dela.
—Ellie, logo estará em casa com sua família e se esquecerá que tudo isto aconteceu.
Ela tentou revolver-se ante aquela dor aguda.
—Não me trate com condescendência. Sei perfeitamente o que sinto.
—Agora se sente deste modo, mas o esquecerá com presteza.
Soava tão seguro de si mesmo, tão crédulo… Como se o houvesse dito antes muitas vezes, muitas.
«Esta vez é diferente.»
Ellie examinou seu rosto em busca de algum sinal de debilidade, mas não encontrou nenhum. Seu coração parecia lutar por pulsar na estreita caverna de seu peito.
—É isso o que você fará, esquecer? —perguntou-lhe em voz baixa.
Ele a olhou nos olhos e não vacilou absolutamente.
—Sim.
Não acreditava. Se não lhe importava nada, por que não a tocava?
Era como se não confiasse em si mesmo. E apesar de tentar ocultá-lo, sua atitude era muito forçada. Apoiava as costas na parede da rocha e permanecia sentado sobre uma de suas pernas enquanto a outra descansava sobre a água, completamente depravado segundo as aparências. Mas aquela atitude de indiferença não a enganava. Podia sentir a tensão que emanava de seu corpo como se fosse uma isca fumegante a ponto de prender-se fogo.
Meg tinha razão. Não se tratava de um homem que aceitasse seus sentimentos com facilidade. Necessitaria que lhe desse um empurrãozinho. Ellie afastou as mãos de seus próprios joelhos e se aproximou dele. Não se incomodou em mostrar-se sedutora, porque sabia que aquilo somente serviria para que se sentisse idiota. Mas sim podia mostrar-se desavergonhada e direta. Deve ter surtido algum efeito, porque o corpo de Falcão, já tenso por si, adotou uma posição de rigidez absoluta. Não parecia respirar sequer.
—O que está fazendo?
Ellie sorriu ao ouvir o tom de alarme em sua voz. Pareceu-lhe uma estranha ocorrência para um homem que gotejava tanta confiança.
—Pensava que era óbvio. O que estivemos fazendo os dois últimos dias, nos divertir um pouco.
Erik entreabriu os olhos com suspicácia. Era consciente que o estava desafiando.
—Não acredito que seja boa ideia.
Arqueou uma sobrancelha.
—Por quê? Não é nada sério… ou sim?
Não respondeu, mas talvez fosse porque tinha a mandíbula tão tensa que parecia incapaz de articular movimento algum.
«Um empurrãozinho.» Mas ele não o punha nada fácil. Estava ali sentado com total rigidez, com os músculos em tensão e cada centímetro de seu poderoso corpo lhe advertindo que não se aproximasse.
Ellie voltou a inspirar profundamente e se inclinou sobre ele, pôs sua boca contra a sua e depois roçou a umidade salgada de seu áspero queixo com os lábios até chegar a seu pescoço. Cheirava bem, inclusive empapado de água do mar. Fazia vários dias que não se barbeava e a escura sombra de sua barba dava um caráter esquivo a sua aparência de divindade nórdica dourada. Ellie se tornou para trás para avaliar os efeitos que tinham seus esforços. Seu olhar a atravessou com a intensidade e o calor de um raio. Ele seguia com a mandíbula encaixada, os músculos do pescoço duros e o queixo não cessava de palpitar.
Tudo nele apelava ao espírito temível do guerreiro das Highlands, sombrio e perigoso. Mas havia algo perverso nisso que a excitava. Não fazia a não ser lhe dar mais arrojo.
—Esquecerá de tudo isto — o desafiou —, porque não significa nada, não é certo?
Ele a observava com o olhar do depredador ao qual devia seu nome. Ellie o obsequiou com um desses sorrisos irreverentes dos que ele era professor, e se aproximou para tocá-lo. Os dedos escorregaram por seu peito até os rígidos degraus de seda de músculos que cruzavam seu abdômen de lado a lado e estes se sobressaltaram ante o contato. Brincou com ele por uns instantes e comprovou os limites de sua capacidade para controlar-se, desenhando círculos provocadores sobre seu ventre até que ficou todo ele em tensão, cuidando-se o máximo de evitar a grossa coluna de carne que se esforçava em chamar sua atenção.
Não deixou de olhá-lo aos olhos em nenhum momento e observou que estes se voltavam cada vez mais escuros e ardentes.
—E isto? —disse pondo a mão sobre seu coração a ponto de explodir, enquanto o olhava aos olhos com intensidade — Não sente nada diferente aí, verdade?
—Não — disse com uma voz tão cortante e tensa que mais pareceu uma imprecação.
Mentia. Ellie se dava conta disso, por mais que ele lutasse com firme determinação. Quando roçou com seu pulso o robusto corpo de sua virilidade, Falcão emitiu um assobio. Ellie notou o calor que desprendia através do fino pano dos calções. Rodeou-o com suas mãos.
—Estou segura de que esquecerá tudo.
—Santo Cristo, Ellie — se queixou, com os músculos do pescoço tão tensos como a corda de um arco — Não quero lhe fazer mal. — Pela angústia que sentia no peito, Ellie podia arriscar a dizer que já era muito tarde para isso. Então a agarrou pelo pulso, mas ela não estava disposta a soltá-lo — Não posso lhe oferecer neste momento o que quer.
A esperança que lhe dava arrestos se dissipou. Soltou-o e afastou a mão. «Não me quer. Não lhe importo.» A dor se aferrou a seu peito. Não esperava que aquilo doesse tanto. Mas havia algo em seu interior que não a permitia dar-se por vencida. Se era isso tudo o que ele pensava lhe oferecer, tomaria tanto como fosse possível.
Começou a trabalhar sobre as ligaduras de seus calções com determinação renovada, mas o tecido estava úmido, de modo que teve que esforçar-se. Uma vez tudo aberto e ao alcance de sua mão, elevou a vista para olhá-lo. Seu rosto permanecia duro e inquebrável como o granito.
—O que quero? Tudo o que quero é isto — disse. E quando viu que não obteria resposta pôs os dedos a seu redor e sentiu como seu próprio ventre se encrespava pela excitação. A pele, suave como o veludo, mostrava toda sua tensão sobre aquela turgente coluna de aço — Só um pouco mais de prazer pela última vez.
«Maldita seja.» Que demônios acreditava que tentava provar? Não importava o muito que se divertissem juntos, ele partiria essa mesma noite e esqueceria tudo aquilo. Ambos o fariam. Não importava quão incrível fosse a sensação de tê-la em seus braços, que não parecesse cansar de beijá-la, ou que a desejasse mais do que tinha desejado a qualquer outra mulher em sua vida. Isso somente ocorria porque sabia que não podia tê-la. A maneira em que pulsava seu coração, essa atração visceral, a necessidade animal de estar com ela, logo desapareceriam. Sempre ocorria assim.
E entretanto, jamais havia sentido nada como aquilo. Desejava-a com tanta vontade que pela primeira vez em sua vida não confiava em si mesmo. Por que tinha que forçar as coisas? Por que não o deixava em paz? Não queria lhe fazer mal. Tentava fazer as coisas bem. Mas sentir essas mãos em seu corpo, tocando-o, acariciando-o…, reduzia a pedacinhos todas suas intenções. Ainda podia notar a pressão daquela mão sobre seu peito, diabos. Sabia o que se propunha com esse joguinho, mas isso não o faria mudar de ideia. Maldita seja, aquilo não significava nada para ele. E tinha toda a intenção de prová-lo. Se queria prazer, isso seria exatamente o que conseguiria. Mais agrado do que poderia suportar. Pode ser que fosse ela quem tinha começado o jogo, mas o acabariam de acordo com suas próprias condições.
Afundou os dedos entre seus empapados cabelos e atraiu o rosto de Ellie para si, cobrindo sua boca com um longo e apaixonado beijo. O alívio se disseminou por seu corpo em uma onda cálida e pesada. Devorou-a com os lábios à medida que ia acariciando, enroscando sua língua com a dela até o mais profundo em uma necessidade frenética de consumação. Mas aquilo não serviu absolutamente para acalmar a fome que fervia em seu interior.
Não deveria fazer isso. Não, dados seus próprios sentimentos, entre os que se mesclavam a raiva e uma estranha agitação de frenesi que não compreendia. Não lhe parecia ser dono de si. Em seu interior formava algo selvagem e descontrolado. Sentiu a pressão que se acumulava em seu peito, uma pesadez que se expandia sem poder escapar por nenhum lugar. Orecavia-se do perigo, mas não atendia a suas advertências.
«Não é mais que prazer. Luxúria, isso é tudo.»
Mas cada uma dessas endiabradas carícias aumentava o frenesi, e seu corpo se via já minado até o ponto de ruptura por aqueles provocadores roces.
«A última vez.»
Não lhe cabia a menor duvida de que faria que valesse a pena. Afastou a mão de Ellie de seu corpo antes de tudo acabasse muito cedo, e a atraiu para si para acomodá-la na pedra sobre a que ele estava apoiado. Acariciou seus seios, seu traseiro. Cobriu-a com suas mãos, espremendo-a, apertando-a, segurando-a contra si em uma desesperada tentativa de paliar a fome e as perigosas emoções que revolucionavam seu interior.
Ela se derretia entre suas mãos, arqueava seu corpo e o pegava ao dele. Se em algum momento pôs freio a suas reações, aquilo era água passada. Saía ao encontro de cada uma das carícias de sua língua e de suas mãos com um abandono brutal que ele jamais teria imaginado. Mas aquilo era como pôr azeite sobre a chama, não fazia mais que servir de combustível ao fogo que surgia em seu interior.
Ele a beijava, a acariciava, encaixava seu corpo sobre o dela, quadris com quadris, peito junto a peito. As duras protuberâncias de seus mamilos lhe arranhavam o torso à medida que ela roçava contra ele. Estavam perto, mas não o suficiente. Falcão queria sentir sua cálida pele escorregando contra a dele. Queria vê-la nua, completamente nua, pela primeira vez. Sem que houvesse camisola, vestimentas, nem meias entre eles.
Roupas. Precisava desprender-se delas. Afastou sua boca e se desfez da camisa. Os olhos de Ellie se abriram com fruição e devoraram com o olhar cada centímetro de seus braços e seu peito. Não deveria olhá-lo desse modo. Aquela fome sem rodeios que mostrava não fazia a não ser pô-lo mais quente. O seguinte a cair foram seus calções e depois, antes que pudesse objetar algo, tirou-lhe a camisola por cima da cabeça.
«Jesus.» Tomou fôlego, sentindo-se como se tivesse lhe caído um raio. Era preciosa. Não magricela, a não ser leve e delicada. Seus olhos se afundaram em cada um dos esbeltos centímetros de sua sedosa pele. Seios pequenos e arrebitados, cintura fina e quadris de curvas gráceis, e essas pernas… Suas pernas eram simplesmente perfeitas, largas e estilizadas, com músculos de formas dóceis.
Talvez aquilo não tivesse sido tão boa ideia… Passaria muito tempo até que fosse capaz de apagar essa imagem de sua cabeça. Incapaz de aguentar nem um momento mais separado dela, arrastou-a para si e a beijou enquanto se encontravam nus corpo a corpo pela primeira vez. Tudo dele se acendeu ante o contato, ante o crepitar da pele entrando em contato com a pele.
Acariciou-lhe os seios e a agarrou pelo traseiro. Despediu-se de toda sutilidade e colocou as mão entre suas pernas, beijando-a enquanto introduzia seu dedo no interior daquele suave calor líquido. Gemeu. O desejo o atravessava em uma onda cálida e pesada que o levava para as profundidades. Tão quente, tão úmido… Ela ofegava e se retorcia contra ele, aproximando os quadris de sua mão e apertando ainda mais os seios contra seu corpo.
Introduziu outro dedo e a abriu com mais folga. Mas acariciá-la com os dedos não era suficiente. Queria estar dentro dela mais do que jamais tinha querido nada na vida. Ela gemeu de novo, desta vez com mais insistência e colou seu montículo à ereção em busca de maior fricção. Sentir toda aquela umidade escorregar por seu palpitante membro o levou a borda da loucura. Estava tão perto.
«Não.» Apertou os dentes ante a urgência que sentia de inundar-se em seu interior. Mas, Deus, quanto o desejava… «Uma última vez.» Não podia parar de repetir-se essas palavras que zumbiam em seus ouvidos guiando todos seus atos.
—Rogo-lhe isso, Falcão.
—Erik — suplicou. Queria, precisava ouvir como dizia seu nome. Seus olhos se encontraram. Sentiu essa pontada aguda no peito — Erik — Voltou a pedir.
—Erik — repetiu ela em voz baixa. O sorriso que formou em seu rosto e que encheu seus olhos fez pedacinhos a pressão que se foi construindo em seu interior — Por favor, quero fazê-lo.
A ele, a cabeça dava voltas. Aquele inocente rogo estava fazendo que ficasse sem respostas. Sabia o prazer que lhe daria, quão escuro seria seu interior, como seu corpo o envolveria. Não podia pensar mais que em estar dentro dela. Era o único que importava. Era o único que o faria sentir-se bem. Quão único deteria o martelar que sentia no peito e que poria fim à loucura de seu desejo.
Pôs uma mão sobre cada um de seus ombros para pegar-se mais a ela e se colocou entre suas pernas. Seus olhos se encontraram e se olharam. Nenhum dos dois disse uma palavra. Não precisavam fazê-lo. Deu-lhe uma última oportunidade. Ela leu a pergunta em seus olhos e assentiu.
Não duvidou. Seu corpo já não atendia a razões, mas sim atuava por conta própria, impulsionando-se para frente com uma só intenção: fazê-la sua. «Minha.» Tratava-se de um instinto primário impossível de resistir. Seu corpo se agitou pela emoção, antecipando as sensações à medida que empurrava lentamente para seu interior.
Ellie sabia que devia dizer que parasse. Apesar da bruma de paixão que os envolvia, sabia que devia fazê-lo. Mas não queria. Adorava. Adorava Erik. Havia-lhe dito seu nome. Adorava sua arrogante insolência, seu incorrigível sorriso, o inato sentido de honra e a nobreza que escondia atrás dessa fachada de velhaco. Adorava sua calidez, sua galanteria, seu ar pensativo. Adorava a sensação de liberdade que tinha ao estar junto a ele, a aventura, a emoção, mas também estar sentada a seu lado em uma colina contemplando o mar golpear contra as rochas. Unir-se lhe parecia a expressão perfeita, a única maneira de expressar esse amor. Sabia que isso queria dizer algo, que lhe importava, que estava chamando a fazê-lo. A forma carinhosa quando se meteu entre suas pernas a deixou sem fôlego, um olhar feroz, possessivo, intenso. Era uma reivindicação primária que não podia ser negada.
Pertencia-lhe e ele a ela. O destino os tinha levado até aquele lugar; estava decidido de antemão. Ele estava destinado a ela. Tomou pelos ombros e sentiu seu sedoso vértice golpear contra as sensíveis dobras da virilha. Ao notar aquela incrível sensação, alagou-a uma nova onda de umidade. Não estava muito segura se aquilo funcionaria muito bem. Era muito grande. Mas em certo modo devia confiar que seu corpo se ajustasse para lhe dar capacidade. Seus penetrantes olhos azuis lhe sustentavam o olhar com o rosto mais feroz que lhe tinha visto até o momento. Vê-lo apertando os dentes e notar todos os músculos em tensão sob as pontas de seus dedos fazia que parecesse estar lutando contra um inimigo invisível.
Erik empurrou e a abriu com a ponta de sua ereção. Ellie ofegou e depois um pouco mais quando ele investiu de novo. Era uma sensação estranha e maravilhosa. O calor, a conexão, seu corpo estirando-se ao máximo e Erik enchendo todo seu ser. Sentiu que seu corpo se abrandava e se abria em torno dele com a umidade como guia para o interior. Talvez funcionasse depois de tudo.
Quando pensava que tinha chegado até o mais profundo, olhou-a de novo aos olhos e empurrou até o fundo.
—Sinto-o — disse entre seus apertados dentes.
Ellie sentiu uma aguda espetada e gritou. Seu corpo ficou em tensão ante aquela inesperada dor. Mas Erik a aliviou com sua boca, beijando-a até que seus músculos se relaxaram e a paixão voltou a envolvê-la em seu erótico abraço.
Aquela sensação quente e frenética voltou a dominá-la, a sensação de que tinha que mover-se e senti-lo sobre ela. A necessidade de contato fez que seus dedos se agarrassem à férrea massa de músculos de seus braços e ombros para conduzir seu corpo e pô-lo em cima. Quando aqueles mamilos erguidos e em tensão se encontraram com a cálida e bronzeada pele de seu escultural peito, Ellie gemeu de prazer. Ter aquele peso tão sólido sobre ela era uma sensação inaudita.
Erik introduziu a língua até o mais profundo de sua boca e Ellie ficou roçando contra ele, ansiosa por sentir a fricção que pudesse mitigar o incansável desejo que clamava em seu interior. Deixava-se levar pelo bramido de seu coração, que pulsava contra o dela.
Começou a investir, primeiro lentamente, depois fazendo pequenos círculos com seus quadris e mais tarde, quando os dela começaram a elevar-se para encontrar-se com seu corpo, arremetendo de maneira mais profunda, até que a potência de suas palpitantes investidas parecia reclamar todo o corpo da mulher. Aquela familiar pressão começava a formar-se de novo. Mas era diferente, mais intensa, mais significativa. A união de ambos os corpos em um só tinha acalorado cada uma das sensações. Também ele o sentia. Sua boca se separava da dela, como se o esforço de controlar-se o tivesse privado de qualquer habilidade salvo da de respirar. Embora em realidade aguentava tanto a respiração que inclusive duvidava que fosse capaz disso. Agora bombeava com mais rapidez, mais profundo, com maior força, pulverizando-a com cada um de seus endiabrados arremessos e levando-a até o limite. Ela gemia com cada impulso e arqueava seu corpo para adequar-se a seu ritmo. As sensações revoavam em seu interior, esticando-se ao máximo, reconcentrando-se, reunindo-se todas em uma bola quente e resplandecente até que…
Gritou de prazer à medida que seu corpo se comprimia e liberava a paixão que explodia em seu interior, à medida que os agudos e quentes espasmos de prazer se dilatavam a seu redor. Ele cavalgou sobre ela uma vez mais e gritou contraindo todo seu corpo tanto que estalava a força de seu próprio desafogo. Balançou sobre ela e deixou que o fluxo quente de sua semente se mesclasse com a maré alta de seu próprio prazer em uma cálida queda em cascata.
Ellie queria que aquele instante durasse eternamente. Invadida pela euforia do momento mais assombroso de sua vida, surpreendeu-lhe que se separasse dela imediatamente. Sem o peso dele sobre ela, sem a máxima expressão de seu corpo em seu interior, sentiu um frio repentino. Uma sensação de moléstia foi abrindo passo em sua consciência. Esperava que ele a tomasse entre seus braços e a embalasse contra seu corpo como sempre fazia, mas em lugar disso jazia convexo de barriga para cima olhando ao teto, com seu magnificamente resistente peito elevando-se e caindo com o peso de sua respiração. Olhou-o veladamente sem levantar a vista. Tinha um corpo esplêndido. Nu, possuía um aspecto mais poderoso se pudesse. Por que não dizia nada? O silêncio parecia interminável apesar de ter passado somente uns segundos. «Diga algo.»
—Sinto muito. —O mundo lhe veio abaixo. «Mas não isso.» Seu rosto era frio como a pedra. Nem sequer se dignava olhá-la — Isto jamais devia ter ocorrido.
O arrependimento que se percebia em sua voz era como uma faca que lhe rasgava o peito. Se albergava alguma secreta esperança de ouvir uma declaração de amor, acabava de ficar brutalmente claro que levaria uma decepção. O coração deu um tombo. Era uma estúpida. Tinha apostado com sua inocência e tinha perdido. Tudo que podia provar era que ele a desejava. Mas desejo não significava amor. Pode ser que fosse ela a que desconhecia a diferença. Era um homem que adorava os desafios, que crescia na competição, e agora o desafio chegava a seu fim. Meu Deus, mas o que tinha feito? Que demônios tinha feito ele? A verdade golpeou Erik de cheio no peito: tinha perdido a cabeça, acabava de romper sua promessa e lhe tinha roubado a virgindade.
Jamais teve intenção de chegar tão longe. Comportou-se como um estúpido arrogante ao pensar que podia brincar com fogo sem chegar a queimar-se. O que podia fazer agora? Não podia casar-se com ela. Por Deus bendito, não era mais que uma babá. Como chefe de um clã, tinha a responsabilidade de casar-se com alguém que incrementasse o poder e prestígio deste. Além disso, era muito jovem para atar-se a uma só mulher. Não queria decepcionar a todas aquelas moças. Pouco importava que não tivesse pensado em outra mulher desde que tinha conhecido Ellie. Confiava em que isso mudaria.
Embora a reação de Eduardo Bruce o tivesse feito ir às nuvens, aquilo não era inesperado. Erik sempre tinha gravitado em torno de mulheres formosas e sensuais. Ellie era mais que formosa e gostava, embora fosse talvez muito estirada e mandona, mas não era o tipo de mulher que estava acostumado a gostar. Aquela selvagem atração que sentia por ela não tinha nenhum sentido.
Voltou-se para ela ao precaver-se de que não dizia uma palavra. A expressão do rosto dela o deixou gelado.
«Ah, diabos.» Estava-se comportando como um cretino. Tão concentrado estava em sua própria culpa que não tinha reparado em quão difícil era esse momento para ela.
Por ser um homem que conheciam por dizer sempre o apropriado, suas palavras não poderiam ter sido mais equivocadas no pior momento. Em lugar de desculpar-se, teria que tê-la tomado entre seus braços e tranquilizá-la, dizer quão incrível tinha sido e quão preciosa era, o que sempre fazia. Mas jamais antes se viu tão superado por fazer amor com uma mulher. Nunca o tinham assaltado tantas emoções desconhecidas.
Tentou alcançá-la, mas lhe voltou o rosto e foi pegar sua camisola.
—Não há nada pelo que desculpar-se — disse em um tom impassível — Já sabia em que me colocava. Queria fazê-lo. — passou a camisola sobre a cabeça e conseguiu esboçar um sorriso — Obrigada. Esteve muito bem.
«Bem?», disse-se Erik, surpreso. Não tinha estado bem. Estava claro que para ela tudo isso era novo, mas tinha sido algo de uma espetaculosidade assombrosa.
Ellie lhe ofereceu suas roupas.
—Temos que ir. Seguramente que tem muitas coisas que fazer antes de partir.
Erik não podia acreditar. Não se supunha que tinha que ser ele quem tivesse a urgência de sair correndo?
—Podem esperar — disse tomando-a pelo braço — Temos que falar do que aconteceu aqui. — Passou os dedos entre os cabelos. Jamais antes tinha estado em uma situação como essa e não sabia o que dizer — Te despojei de sua honra.
Ellie se separou dele como se suas palavras queimassem.
—Rogo-lhe isso. Não é preciso que diga nada. Não quero nada de ti. Prazer, isso somente, recorda? O que acaba de acontecer não muda nada. Minha honra era minha e podia oferecê-la a quem quisesse se gostava. Atuei de maneira livre.
Erik não podia acreditar no que ouvia. Estava liberando-o de qualquer carga. Sabia que deveria sentir-se agradecido, mas não estava absolutamente. Sentia-se completamente zangado. Passou a vestimenta sobre seus ombros e colocou os calções. Ao menos deveria ter expectativas de que se casasse com ela. Acaso acreditava que era um homem sem honra alguma? Não era possível que ela pensasse que era do tipo de homem que tomava a inocência de uma moça sem lhe importar nada. Segundo ela mesma dizia, não tinha acreditado em todo esse bate-papo de piratas e sim acreditava em sua nobreza.
E a que se referia com isso de «Bem»? Pode ser que ela tivesse pouca experiência, mas ele não. Jamais havia sentido nada como aquilo em toda sua vida. Tinha sido a perfeição em sua máxima expressão.
A impaciência de Ellie por partir era patente, até o ponto de já ter mergulhado na água. Erik saltou atrás dela e a puxou pelo pulso em um arrebatamento furioso de posse, guiando-a através do túnel de rochas submarinas. Acaso pensava dar-se por vencida sem apresentar resistência? Voltar para sua posição como babá e deixar encerrada toda essa paixão que havia atrás de sua fachada de puritana?
O mundo lhe veio abaixo e a ponto esteve de inalar toda uma baforada de água. E o que ocorreria se não a deixava encerrada? O que aconteceria, se a tinha feito entrar no mundo da paixão só para que ela o compartilhasse com qualquer outro?
Por cima de seu cadáver. Emergiu das águas, ficou em pé e se girou para ela com cara de irritação. Se acreditava que a conversação tinha acabado aí, estava completamente equivocada.
—Ellie, vamos falar disto.
Quando lhe voltou o rosto da mesma maneira em que o fez no birlinn, Erik foi às nuvens.
—Não quero.
Ellie se deteve. Seu olhar captou algo que havia atrás dele. O medo fez que abrisse os olhos completamente.
—Erik, cuidado!
Deu a volta um segundo tarde.
Quatro homens. Ingleses. Uma lança. Jogada contra ele. Sem lhe dar tempo…
Erik se voltou para a esquerda, mas a lança o alcançou no flanco e o mandou às profundidades do negro abismo. O grito de Ellie foi quão último ouviu antes que as águas o tragassem.
Capítulo 18
— Não!
Aquele grito saiu do mais profundo de seu interior, de algum lugar escuro e primário onde se escondia um terror dilacerador inimaginável. Estava tão concentrada em sua própria desgraça e dor que não advertiu aos quatro soldados da praia até o momento em que a lança saiu disparada através do ar para colidir de maneira direta nas costas de Erik. Tudo pareceu passar com uma lentidão extrema, mas mesmo assim estava imobilizada no tempo, incapaz de mover-se para detê-lo. Observar como o homem que amava estava a ponto de morrer sem que ela pudesse fazer nada significou o pior momento de sua vida. Tentou ir atrás dele, mas já era muito tarde. A lança o alcançou e Erik emitiu um rugido enquanto o tragava a água. Ellie mergulhou para resgatá-lo, inclusive acreditou tocar sua mão, mas alguém a tirou da água e imobilizou seus braços atrás das costas. Lutou como uma louca. Fazia dramalhões de pânico sem saber para onde, com uma só coisa em mente: resgatá-lo. O homem que a tinha agarrado grunhiu quando ela o alcançou com a cabeça na mandíbula, uma das poucas partes de seu corpo que não estava protegida pela armadura. Havia alguém gritando, um som de queixa muito agudo que atravessava seus ouvidos. Pôde distinguir uma voz entre o barulho.
—Se tranquilize, milady, está a salvo.
Era ela mesma, seus próprios gritos os que ouvia.
—Me solte! —gritou lutando contra as garras do soldado e olhando para onde Erik tinha desaparecido, lugar no que viu uma horrível mancha de vermelho escuro que se abria passo na água. Sangue. O pânico se aferrou a seu peito, a sua garganta — Tenho que encontrá-lo! Está ferido! —disse entre soluços.
Erik só levava uma vestimenta de linho, algo que o deixava com a pele e os músculos como único amparo contra o golpe agudo da lança. Mas era forte. O homem mais forte que ela conhecia.
—Está morto — disse o homem com frieza — Ou o estará logo. Temos que a levar ao galeão conosco.
—Não! —disse escapando de seu abraço.
A lança. Erik caindo para trás. O que tinha visto não tinha importância. Não estava morto e não pensava deixá-lo ali abandonado. Mergulhou na água apalpando às cegas na escuridão. Mas o soldado voltou a apanhá-la e foi devolvida à superfície resfolegando. O homem a arrastou até a borda entre chutes e gritos. Desta vez não pensava correr riscos, assim que a agarrou firmemente, passando as mãos pelo peito e imobilizando seus braços.
—Busquem — ordenou aos outros três — Deixe de lutar, milady. Tentamos ajudá-la.
Os três homens não pareciam ter muita vontade de molhar-se, mas obedeceram as ordens de seu chefe. A busca se alargou vários minutos de agonia. O soldado falava com Ellie, mas ela não o escutava. As lágrimas sulcavam seu rosto em tanto que rezava para que se produzisse um milagre. Erik podia aguentar a respiração mais que nenhum outro homem que conhecesse. Talvez tivesse tido tempo de voltar para a gruta. O homem que a capturava pareceu chegar a uma conclusão parecida.
—Onde estava, milady? Estávamos olhando à água, mas pareceu sair de um nada.
Ellie pensou com rapidez.
—Nadando ao outro lado das rochas.
Olhou-a como se não acreditasse no que dizia, mas por sorte um dos outros soldados se aproximou e deixou de lhe fazer perguntas.
—Nada, capitão.
Ellie não sabia se estava horrorizada ou aliviada. Em caso de que o encontrassem, não serviria mais que para que tentassem matá-lo de novo.
O homem que a agarrava assentiu.
—Traga Richard e Will…—deteve-se e procurou entre as ondas — Onde está William?
O outro soldado negou com a cabeça.
—Encontrem!
Ellie tinha o coração em um punho. Não podia ser a não ser…
Sua confiança se viu recompensada quando, de repente, emergiu da água e cravou a lança, que antes tinham jogado nele, no peito do soldado ao que chamavam Richard. Ellie voltou a vista por um curto instante. Nesse escasso segundo, Erik tinha conseguido arrebatar a adaga do corpo sem vida do soldado e encarava já ao terceiro deles, que se aproximava dele com a espada em alto. O homem que a capturava amaldiçoou e a soltou no chão. Alcançou o arco que levava às costas e pôs nele uma flecha apontando para Erik, que lutava a um tempo contra as ondas que golpeavam sua cintura e contra a larga espada do soldado, de maior alcance que sua adaga. Não pensou. Ficou em pé e golpeou a mão do soldado assim que este deixou sair a flecha, fazendo que esta se projetasse longe do corpo de seu amado. Quando o soldado que lutava na água voltou a elevar a espada, Erik aproveitou o movimento para equilibrar-se para ele ao tempo que a espada descia. Levantou o braço para bloquear o golpe com força suficiente para que a espada saísse voando e se afundasse pouco depois na água. Como não podia penetrar sua malha com a adaga, passou o braço ao redor do pescoço do soldado e o retorceu, fazendo-o ranger sem piedade. O que estava na areia blasfemou e gritou pedindo ajuda. Estava claro que haveria mais soldados nos arredores.
Erik correu para eles da água, com todo o aspecto de um demônio possuído. O soldado agarrou Ellie de novo e fugiu para o pequeno promontório verde sobre o que estava a cova. Mas a resistência e ter que carregar com ela o fazia perder o passo, e antes que saíssem da praia, Erik já os tinha alcançado.
—Deixe-a partir! —bramou.
Sua voz soava diferente. Mais dura, mais temível, mais contundente do que nunca antes a tinha ouvido. O soldado se deteve e a obrigou a ficar atrás dele. Desembainhou a espada e se voltou para Erik, mas já o tinha em cima. Este o esmurrou na mandíbula com o punho, sem importar a afiada folha que se abatia sobre sua cabeça, e lhe fez perder o equilíbrio. Ellie ouviu o rangido que seguiu ao golpe que Erik infligiu com o dorso da mão no pulso do soldado, justo pela parte contrária à articulação, obrigando-o a soltar a espada. Com um rápido varrido do pé tombou ao soldado no chão e o degolou com sua adaga.
Ellie afastou a vista com rapidez. A guerra, morrer e os banhos de sangue eram de tudo comuns, mas jamais o suficiente para que se acostumasse a isso. Além disso, a técnica de aniquilamento eficiente e fria de Erik era algo fora do comum. Tinha sido a demonstração de poder mais mortífera que jamais tinha visto. Acabou com eles em um abrir e fechar de olhos. Ao vê-lo atuar desse modo, já não punha em dúvida a história de Domnall em que enfrentou a vinte guerreiros. Erik a tirou das rochas e tomou entre seus braços, apertando-a forte contra seu peito. Ellie podia sentir a pressão de sua boca na cabeça. A transformação de assassino desumano em tenro amante não podia ser mais dramática.
—Deus, Ellie. Está bem?
Assentiu com a bochecha apoiada no frio e empapado tecido de sua vestimenta, acalmada pelo estável pulsar de seu coração.
—Estou bem. —tornou-se para trás, preocupada — Mas e você? —disse olhando seu flanco, no que a vestimenta de cor açafrão agora exibia uma extensa mancha vermelha — Está ferido — choramingou tentando cobrir a ferida com suas mãos.
Erik tomou pelo queixo, obrigando-a a olhá-lo aos olhos.
—Não é nada. Um arranhão, nada mais.
Não acreditou no que dizia até que ele mesmo levantou a regata para mostrar a pouca profundidade da fenda que tinha no flanco e o buraco pelo que a lança tinha penetrado pelo tecido fazendo-o cair para trás. Ellie fechou os olhos e pronunciou uma prece em agradecimento. A lança não o tinha trespassado por poucos centímetros.
—Teve sorte — disse. Sua voz quebrou e as lágrimas alagaram seus olhos — Poderiam ter te matado. —Tal e como obviamente era sua intenção.
Erik sorriu e a obsequiou com um tenro beijo nos lábios.
—Ai, amor, precisaria mais de quatro cães ingleses para acabar comigo. Tenho o vento a favor, recorda?
Ellie assentiu. Era certo que a sorte parecia acompanhá-lo. Em qualquer outro momento teria elevado a vista ao ouvir tal fanfarronice, mas se sentia muito agradecida para fazê-lo.
—Temos que sair daqui — disse ele adotando um súbito ar sombrio — Esses soldados não vieram sozinhos. Deve haver um navio nos arredores.
Ellie assinalou com a cabeça ao soldado que jazia no chão.
—Esse estava pedindo ajuda.
—Isso significava que estão perto. Volta para o bote e ponha suas roupas. Deve estar gelada.
Tinha muito medo para precaver-se disso, mas o certo era que tiritava sem poder remediá-lo.
—Aonde você vai?
Sua voz delatava que era presa do pânico e que, depois do que tinha ocorrido, não queria o perder de vista. Erik assinalou para a colina.
—Ver onde estão os outros soldados. —ajoelhou-se para tomar a espada do soldado caído —Depressa.
Fez como tinha pedido e vestiu imediatamente o vestido de lã, as meias e as sapatilhas. Acabava de colocar o manto por cima quando Erik veio em sua busca. Pela expressão feroz de seu rosto e os bruscos movimentos soube que algo ia mau. Os alicerces de seu mundo se cambalearam ao precaver-se de que devia ser algo muito sério para penetrar aquele inquebrável porte.
—O que acontece? Viu seu galeão?
Erik se vestiu e tomou suas armas ao tempo que respondia.
—Sim, está ao outro lado da colina, junto a uns dez ou doze soldados.
—Mas há algo mais que o preocupa.
Acabou de fechar a capa que fixava a espada a suas costas e se voltou para olhá-la aos olhos. Ellie advertiu a fúria que atormentava seus olhos.
—Há quatro galeões controlando a baía e se vê fumaça que vem da praia. —Quando assinalou para o sul, Ellie distinguiu as espirais de fumaça cinzas ante um céu de similares cores — Os ingleses nos encontraram.
Enquanto Erik esperava que os ingleses cessassem em sua busca, o tempo passava em um ritmo agonizante. Mas estes se mostravam implacáveis e estavam pondo toda a ilha para cima. Tinha tido que fazer provisão de todo o autocontrole com o que contava para não sair correndo imediatamente para a praia. Teria gostado, mas não podia fazê-lo. Duas coisas se interpunham em seu caminho: tinha que proteger Ellie, porque vê-la nas mãos do soldado inglês era algo que não esqueceria facilmente, e tinha que pensar na missão. Em caso de que o capturassem, Bruce não conseguiria seus mercenários a tempo. Nem tampouco teria Erik para conduzir a frota até Arran. A missão estava em primeiro lugar. Seus homens estavam adestrados e podiam defender-se por si mesmos. Mas permanecer oculto em uma cova em lugar de unir-se à luta ia contra cada um dos músculos de seu corpo. Horas mais tarde se encontrava a borda da loucura e se sentia como um leão enjaulado em um reduto minúsculo. Como demônios os tinham encontrado?
Consciente que os ingleses voltariam para procurar os soldados desaparecidos, arrastou o bote praia abaixo assegurando-se de deixar rastros visíveis na areia. Queria que os ingleses pensassem que tinham escapado. Não tinham forma de saber que aquele velho bote não duraria nem cinco minutos nas fortes correntes do canal. Remou até transladá-los à maior das ilhotas conhecidas como ilha Sheep, além da ponta norte de Spoon. Embora dali não se visse a praia, podia apreciar quase a totalidade da parte ocidental da ilha e os navios ingleses que vigiavam a baía.
Tinha deixado Ellie em uma cova sob outro desses arcos naturais enquanto ele observava, rondava acima e abaixo e tentava acalmar sua ansiedade à espera que os ingleses cessassem sua busca. Mas cada minuto passava com uma lentidão mortificante. O tempo era seu inimigo. Os MacQuillan o esperavam essa noite, e o curto espaço de tempo que tinham para chegar até Arran e lançar o ataque lhe deixava escassa margem de engano. À medida que passava o dia, aquela viagem a Irlanda de apenas vinte e cinco quilômetros parecia mais longa, dado que não sabia o que encontraria ao voltar para a baía. Era consciente de que não podia fazer outra coisa; o prudente era ficar onde estava, mas não podia evitar que o assaltassem os piores pensamentos.
A tensão prendia todos seus músculos. Ellie se aproximou pelas costas e lhe pôs uma mão no ombro, fazendo que se sobressaltasse.
—Não queria te inquietar — disse olhando através do turvo e chuvoso céu em direção à cova em que quase os tinham descoberto — Partiram já?
Erik assentiu.
—Recentemente.
Apenas momentos depois de que Ellie e ele fugissem no bote, apareceu um galeão ante a cova. Partiu em seguida para voltar algo mais tarde junto a um segundo galeão. Nesta ocasião os ingleses ficaram mais tempo. Finalmente, fazia poucos minutos, um dos navios tinha posto rumo ao sul; e o outro, ao norte de Kintyre. Erik albergava a esperança que isso significasse que os ingleses davam por sentado que tinham fugido da ilha.
—Voltarão? —perguntou Ellie.
—Provavelmente, mas não hoje. Em um par de horas será noite.
—O que passou com o resto dos navios?
—Não sei. Dirigiram-se além da boca da baía e os perdi de vista.
Se a frota voltava para a costa de Ayrshire, onde os ingleses estavam ancorados, navegariam até a parte sul da ilha, o lado oposto de onde se encontravam Ellie e ele nesse momento.
—Quando poderemos voltar?
Erik podia perceber a agonia de seus próprios medos refletidos nos olhos dela.
—Logo.
Tomou entre seus braços e a embalou contra seu peito, consciente de quão difícil seria aquilo para Ellie. Tinha sido um dia turbulento para ambos, em mais de um sentido. Entretanto, ela estava demonstrando uma força e resistência que o faziam sentir-se orgulhoso. Por não falar daquela flecha da que o tinha salvado. Perguntava se teria se dado conta que tinha escolhido a ele na frente dos ingleses aos que pediu ajuda fazia apenas duas semanas. Ellie se pegou a ele e refugiou a cabeça contra seu peito. Erik acariciou seu cabelo e se sentiu em calma pela primeira vez em horas.
—Está faminta.
Ellie negou com a cabeça.
—Nem sequer tinha pensado em comida.
Compreendia-o. Ao igual a ele, estava preocupada com seus homens e a gente do povoado.
—Crê que…?
Não terminou de formular a pergunta, mas ele sabia o que tinha na cabeça. Tomou pelo queixo e a beijou brandamente nos lábios. Sentiu uma pontada no peito.
—Estarão bem — disse tranquilizando-a com mais confiança do que sentia.
Supunha que teriam deixado em paz às pessoas da vila, mas seus homens estavam em busca e captura e se içou a bandeira do dragão. Um arrebatamento de fúria surgiu em seu interior mas o manteve a raia, já que sabia que nada podia fazer no momento.
—Sinto-o — disse Ellie elevando a cabeça para olhá-lo. Erik advertiu como as lágrimas brilhavam no interior de seus grandes olhos de cor castanha — Sei que teria ido em sua ajuda de não fosse por mim.
—Não — disse com rudeza — Não o teria feito. — Não queria que se culpasse por isso. De fato, talvez tivesse salvado a missão ao escapulir com ela. Poderia encontrar-se perfeitamente nas mesmas circunstâncias que seus homens — Não podia me arriscar a isso. Há algo importante que devo fazer.
—Para Robert? —Ao dizer isto, Erik a olhou de um modo estranho e Ellie se ruborizou — Assim é como se referem a ele na família.
Não disse nada. Embora soubesse que podia confiar nela, tinha ordens de manter a missão em segredo. Não obstante, ela tinha atado já quase todos os cabos.
—Os soldados irlandeses — disse com uma voz que se foi apagando — Tem que levá-los até ele. Quando?
—Esta noite
Seus olhos se encheram de temor. Exatamente igual aos sentimentos de Erik.
—O que acontecerá se não chega a tempo?
—Essa não é uma opção.
Ele sentiu todo o peso de seu olhar.
—Compreendo.
Era consciente que Ellie advertia o que significava aquilo: o ataque era iminente.
—Não é preciso que te diga o que está em jogo.
Ellie negou com a cabeça e ficou em um silêncio contemplativo.
Erik esperou tanto como se atrevia a fazê-lo. Só ficava uma hora mais de sol quando ajudou Ellie a subir no bote e remou de volta à baía, mantendo-se pego à borda e observando com precaução antes de rodear qualquer curva sem visibilidade. O bote margeou o istmo5 para entrar na baía imerso em uma calma absoluta. As fogueiras que tinham ascendido na praia ainda fumegavam, e o mortífero aroma do fogo tingia o penetrante ar do mar. A própria baía estava deserta e não se via um só navio de pesca. Amaldiçoou sua sorte ao precaver-se de qual era a causa daqueles fogos. Sua situação piorava por momentos. Os ingleses não pensavam lhe dar nenhuma oportunidade. Em caso de que tivesse permanecido na ilha, assegurar-se-iam de que seguisse sendo assim mediante a queima de qualquer meio de transporte para sair dela. Embora tudo apontasse a que seus homens tinham sido capturados, quase esperou ver sair Domnall da cova. Por todos os diabos, inclusive teria agradecido receber as queixa de Randolph.
Mas ninguém saiu a seu encontro. A névoa espessava o ar estagnado em uma nuvem carregada de chuva que fazia de pálio de uma tranquilidade inquietante. Deixou o bote na borda e ordenou a Ellie que permanecesse nele. Ela não protestou; o qual indicava que sabia a razão. Em sua ascensão pela borda, passou junto aos restos calcinados de vários barcos de pesca. Pelo número de pegadas que se viam na areia parecia que os ingleses tinham desembarcado em grande número na praia. Seus homens teriam recebido aviso, mas ante tantos soldados a batalha não podia ter durado muito. Suspeitava que teriam permanecido ocultos na cova, esperando para atacar quando fosse necessário. Suas suspeitas se viram confirmadas quando tropeçou com o primeiro dos corpos à entrada da caverna. Aos poucos metros encontrou um par deles mais. A morte não era algo novo para ele, mas a dor de perder um homem jamais diminuía. Aplacou sua fúria como pôde e se deu forças para o pior, esperando encontrar um açougue. Mas surpreendentemente não achou mais corpos entre as pertences dispersadas de seus homens. Que demônios teria passado com eles?
Voltou para a praia, compreendendo em toda sua amplitude a gravidade da situação. Por mais que o preocupassem seus homens, sua maior inquietação devia ser o cumprimento da missão. Ellie o olhava fixamente à medida que se aproximava. Erik leu a pergunta em seus olhos e lhe disse o que tinha encontrado.
—E o que tem os outros? —perguntou.
—Não sei — disse negando a sua vez com a cabeça.
—E Meg?
—Vou lá agora.
—Vou contigo.
—Não é uma boa ideia.
Ninguém podia saber o que poderiam encontrar.
Ellie se ergueu e adotou a expressão de babá teimosa que a caracterizava.
—Não necessito seu amparo. — Sem dúvida, precaveu-se do ridículo que soava aquilo à luz dos últimos acontecimentos, de modo que quis arrumá-lo — Para isto. —Olhou-o com cara de tristeza — Por favor, Meg também é amiga minha.
Erik lhe sustentou o olhar e assentiu. Quando chegaram, não havia luz alguma na casa e não lhe surpreendeu encontrá-la vazia. Esperava que se retiraram ao interior da ilha com a chegada dos ingleses, de modo que sugeriu continuar até a seguinte moradia. Meg deve ter visto como se aproximavam porque saiu correndo para recebê-los. Ellie a abraçou com lágrimas nos olhos, um alívio que também Erik compartilhava.
—Graças ao céu — disse Meg — Pensei que também lhes teriam encontrado.
—O que passou?
Meg lhes contou que os navios tinham chegado pouco depois que ambos partiram. Jurava que haveria uma dúzia deles ao menos e que rodearam a ilha.
—É como se soubessem que estavam aqui — disse.
A mesma conclusão a que ele tinha chegado.
Como suspeitava Erik, tinham recebido aviso de sua chegada, mas sem tempo suficiente para escapar. Os ingleses tinham desembarcado em grande número. Meg observou do escarpado como revistavam a cova e depois tiravam os homens dela.
Erik estranhou. Não era normal que seus homens se rendessem. Os highlanders lutam até a morte. Meg adivinhou seus pensamentos e disse: —Vi Thomas falando com o chefe dos ingleses.
Randolph rendendo-se, isso sim tinha sentido. Meg continuou explicando como os ingleses tinham reunido a toda a gente do povoado para interrogá-los e revistar cada uma de suas casas.
—Encontram-se bem? —perguntou Erik.
Meg assentiu.
—Não fizeram mal a nenhum de nós. — Parecia um pouco surpreendida disso — O oficial dos ingleses não era tão mau como a maioria deles.
Aquilo era um alívio mas nem por isso deixava de o assombrar. Não era normal que os ingleses mostrassem tal contenção, especialmente por aqueles que davam proteção aos fugitivos.
—Meu birlinn? —perguntou.
—O levaram.
Erik fez uma careta de desagrado. Preferiria que o queimassem antes de vê-lo capitaneado por um inglês.
—Preciso encontrar um navio imediatamente.
Meg negou com a cabeça.
—Não deixaram nada. Nem um bote de pesca. Queimaram todos.
Explicou-lhes que os pescadores da ilha se reuniram na igreja do povo, consternados pela crueldade dos soldados ingleses que tinham destruído seu meio de vida. Erik prometeu que se asseguraria de que todos esses botes fossem repostos. Mas primeiro tinha que averiguar como sair dali.
—Eles estavam procurando — disse Meg. E acrescentou depois de uma pausa —: A moça.
Erik amaldiçoou. Olhou a Ellie, que tinha ficado pálida.
—A mim? —disse com os olhos abertos.
—Não pelo nome — a animou Meg — Só comentaram que Falcão estava com uma moça.
A Erik veio o mundo em cima quando se precaveu do que aquilo implicava.
—Como se inteiraram?
Meg negou com a cabeça.
—Alguém do povoado deve ter contado.
Erik tentou aplacar sua ira. Se os ingleses sabiam de Ellie, era possível que a usassem como arma contra ele. Assombrou-lhe descobrir quão efetiva poderia resultar essa arma. Só em pensar que lhe fizessem mal conseguia que lhe gelasse o sangue.
—Não acredito que se deram por vencidos em sua busca — disse Meg — Voltarão.
—Para então espero estar muito longe. — Sua melhor opção, a única no momento, era o velho bote. Para fazer que fosse digno do mar, teria que improvisar. Mas não contava com muito tempo. Quase tinha escurecido — Necessitarei sua ajuda — comunicou a Meg.
Meg sorriu com gosto.
—Simplesmente me diga o que devo fazer.
Explicou-lhe o que necessitava, e Meg voltou para sua parcela para reunir ajuda e mantimentos.
—O que posso fazer eu? —perguntou Ellie.
Quando se voltou para ela, advertiu que o olhava com uma determinação especial no rosto. O que tinha vontade de fazer era encerrá-la em algum lugar que fosse seguro, preferivelmente uma torre alta e impenetrável, até que tudo aquilo acabasse. Mas tinha a sensação que inclusive no caso de que isso fosse possível, ela se mostraria desconforme. Exibia essa cara de «tenho intenção de te ajudar e será melhor que não tente me deter».
—Ah, suponho que não terá visto por aqui nenhuma torre alta e infranqueável, verdade?
Ellie elevou a vista ao céu.
—Não te liberará de mim tão facilmente.
Não lhe cabia a menor duvida. Era isso o que gostava dela. Não a podia dirigir facilmente. Como o tinha expresso Domnall? Não engolia suas tolices.
—Pode ajudar Meg quando voltar. Sabe acender um fogo?
Assentiu.
—Isso acredito.
—Bem. — Suas roupas molhadas não lhe preocupavam, mas queria que ela estivesse quente e seca — Olhe se pode encontrar um pouco de comida.
A expressão de seus lábios se esticou como se soubesse o que ele tramava.
—Não tenho fome.
—Eu sim — disse ele — E terei mais à medida que vá passando a noite. Far-me-á um fraco favor se estiver fraco por não ter comido.
Tinham uma longa noite pela frente.
Levou-a de novo até a casa de Meg e lhe disse que voltaria.
—Aonde vai?
—Comprovar se há algo na cova que possa nos ser útil. E depois tenho um navio que construir.
Olhou-o como se estivesse louco.
—Não tentará passar pelo cerco da frota inglesa nesse montão de lascas desmantelado…
Sorriu.
—Tentar? —deu-lhe um beijo na boca antes que pudesse responder — Não demorarei muito.
Empreendeu o caminho mas ela o deteve.
—Não pensará partir sem…?
«Mim.» Erik sabia que era isso o que queria perguntar. Mas além de conseguir mantê-la quente e alimentada, não tinha pensado ainda no que faria com ela. Tinha prometido devolvê-la a casa, mas já não tinha tempo de fazê-lo. Não podia abandoná-la ali já que os ingleses podiam retornar. Sabia muito. Confiava nela, mas não nos métodos de persuasão dos ingleses. Dando por certo que pudesse arrumar o bote para que cruzasse o canal com garantias, Ellie estaria mais a salvo junto a ele, sempre que os ingleses não os apanhassem. Mas não tinha nenhuma intenção de permitir que aquilo acontecesse. Odiava-se por havê-la metido nessa confusão, mas não havia maneira de escapar daquela situação e não podia fazer nada para remediá-lo.
—Voltarei. Se prepare para partir.
Era a primeira vez que a via sorrir desde essa manhã e se precaveu do muito que lhe pesava sua desdita. Tão somente esperava com todas suas forças que estivesse fazendo o correto.
Ellie jamais tinha visto nada parecido. Em apenas umas horas, trabalhando com um único objetivo e muita determinação, Erik tinha equipado aquele pequeno bote para a navegação, fazendo um mastro com ramos de árvores, um leme com várias tábuas, e a vela com roupa de cama. A tocha que tinha massacrado na batalha a mais homens dos que queria imaginar se converteu em um instrumento de delicada precisão nas mãos de um habilidoso armador. Admirava seu trabalho de artesão, de pé sobre a areia da praia, quente e bem alimentada, agasalhada com várias mantas e uma grossa capa de pele, esperando que se fizessem os últimos preparativos para a viagem. Embora não fosse absolutamente tão robusto como o birlinn do Falcão, o aspecto do bote resultava muito mais impressionante que a última vez que o tinha visto. Tinha reparado algumas das madeiras curvadas lhe dando a volta para que se ajustassem melhor e encaixassem com mais força. Trocou uma ou duas delas, mas não quis ir mais além porque a madeira não estava curada. Tinha pintado o casco com um material negro pegajoso que, conforme dizia Erik, ajudava a impermeabilizá-lo. O mastro era de aparência rústica, mas também parecia funcional, igual ao leme colocado na parte traseira. A vela a fez com um par de lençóis que Meg e ela tinham costurado e que depois um velho pescador melou com algum tipo de graxa de animal de aroma rançoso.
Assim que Erik terminou de armazenar as provisões, mantas de sobra, comida, água e cerveja que Meg lhes tinha dado em uma pequena arca presa ao casco para que Ellie se sentasse sobre ele, ficou de pé junto à jovem.
—Seu navio lhe aguarda, milady — disse com uma reverência galante.
Ela negou com a cabeça e lhe dirigiu um olhar irônico.
—Há algo que não possa fazer?
Ele sorriu.
—Não me ocorre nada, mas se o há, estou seguro de que será a primeira em me recordar isso.
—Conte com isso — repôs entre risadas.
Depois de tudo o que tinham passado durante o dia, Ellie se precaveu de que essa sua habilidade para estar de bom humor tinha, sem dúvida, seus benefícios. Era fácil compreender por que seus homens o admiravam tanto. Na escuridão da batalha, os guerreiros necessitavam alguma forma de relaxar as tensões. E Erik elevava a moral das tropas de maneira natural. E mais, sua força inquebrável ante o perigo e a calamidade deviam outorgar inspiração e confiança aos homens que liderava. Devia ser o indivíduo perfeito para ter ao redor quando as coisas saíam mau, algo inevitável na guerra.
O que em qualquer caso não esperava era que contasse com tanta tenacidade e determinação. Tinha um trabalho que fazer e nada se interporia em seu caminho. Suspeitava que faria toda a rota a nado se fosse necessário. Estava claro que quando algo lhe importava, tomava muito a sério. Se esse «algo» pudesse ser ela…
Depois de dar um novo olhar ao bote desmantelado convertido em um barco digno de navegação, Ellie sacudiu a cabeça e disse: —Por que tenho a impressão de que jamais se rende?
—Não o levo no sangue. Sou um highlander. Bas roimh geill.
“Morrer antes que render-se”, traduziu Ellie. Um calafrio que nada tinha a ver com a pesada geada gelada que formava redemoinhos a seu redor percorreu seu corpo. Erik não se precaveu dessa reação e sorriu como se algo o divertisse.
—O que acontece?
—Estava pensando em uma aranha com a que cruzei recentemente.
Ellie fez uma careta.
—Divertem-lhe as aranhas? Me recorde que lhe presente algum dia a meu irmão Edmond. Não há nada que goste mais que colocá-las na cama da minha irmã pequena.
Ele sorriu.
—Não é que me divirtam. Simplesmente é irônico. Essa aranhazinha inspirou um rei.
Relatou-lhe a história de Bruce na cova com a aranha, como, quando o rei estava em seu momento de mais desesperança e desengano, quando estava preparado para dar-se por vencido, a perseverança da aranha e seu posterior êxito na construção da teia tinha atuado como um augúrio poderoso. Um augúrio que tinha renovado as forças do rasgado rei para a longa luta que se morava.
—É um conto estupendo — disse Ellie — Se Bruce o conseguir, suspeito que será usado por gerações inteiras de babás para inspirar a quem esteja a seu cargo. —Mas dada a fonte da que provinha o olhou com receio — Quanto há nela de certo?
Os olhos de Erik brilharam na escuridão.
—Acaso pensa que poderia inventar algo assim? —colocou a mão no coração com certo dramatismo — Me feriu.
Ellie o obsequiou com um olhar severo que ele decidiu ignorar, preferindo entrelaçar seu braço com o dela e acompanhá-la até o bote. Os aldeãos se reuniram na praia para se despedir e a Ellie surpreendeu ver-se envolta entre os muitos abraços das mulheres e palmadas nas costas dos homens. Mas foi quando chegou o turno de Meg que lhe fez um nó na garganta.
Esta abraçou primeiro Erik.
—Tome cuidado com a moça e com você — disse tentando ocultar uma lágrima enxuta — Pediria que não fizesse nada imprudente, mas sei que seria esbanjar saliva. Mas prometeu devolver esses lençóis antes do verão, assim espero que cumpra sua promessa.
Erik riu e lhe deu um beijo cheio de afeto na bochecha.
—Terá seus lençóis novos, amor.
—Espero que sim — disse Meg impostando severidade — E traga a moça com você quando retornar.
Antes que Erik pudesse responder, Meg se voltou para ela e a rodeou com seu quente abraço.
—Cuide dele — sussurrou.
Ellie a apertou um pouco mais forte, sem querer deixá-la partir. Por um momento sentiu como se voltasse a dizer adeus a sua mãe. Notou que lhe oprimia o peito e uma queimação nos olhos.
—Obrigada — disse Ellie entre soluços — Não sei como poderei pagar por sua amabilidade.
Meg se separou dela e lhe deu um beliscão na bochecha. Seus olhos compartilharam um olhar alagado em lágrimas de compreensão.
—Seja feliz — disse Meg.
Ellie assentiu sem ânimo para responder. Tentá-lo-ia. Mas depois do que acabava de acontecer nesse mesmo dia não sabia se aquilo seria possível. Apesar do que pudesse desprender-se do ocorrido após a cova, Erik mantinha o silêncio a respeito do acontecido. Tinha-lhe devotado seu coração, seu corpo; jamais tinha experimentado nada tão belo. Ao menos para ela. Ele tinha se arrependido disso ao momento. E então?
Antes que se desse conta já estava no barco, navegando para o mar aberto e observando como a pequena multidão da borda se esfumava entre a escuridão e a bruma. Sentiu uma pontada de tristeza ao precaver-se de que o feliz arrulho da ilha tocava a seu fim. Ficava no ar a questão de se tudo tinha sido uma fantasia ou se aquilo que se forjou entre eles na pequena idílica ilha poderia crescer e prosperar no mundo real, um mundo em que a guerra era iminente.
Se aconchegou o quanto pôde no casaco e nas mantas que levava sobre os ombros. Tinha deixado de garoar, mas aquela gelada bruma impregnava do mesmo modo. Infelizmente, não havia muita brisa, embora Erik se engenhava para manter a vela cheia à medida que o bote saía da baía. Quando entraram em mar aberto, a temperatura baixou de repente e a bruma se intensificou até fazer-se quase impenetrável. Não podia ver um metro à frente do bote. A vela começou a ondear, já que a leve brisa anterior parecia haver-se evaporado, e Erik se viu obrigado a agarrar os remos.
—Quanto tomará cruzar o canal até a Irlanda?
Ele se encolheu de ombros.
—Depende. Umas horas, talvez algo mais.
Isto a surpreendeu.
—Sem vento?
—Já se levantará — disse com confiança atravessando a água com os remos em perfeita harmonia.
Erik estava sentado no lado oposto, o que lhe dava uma visão perfeita de seus impressionantes braços e ombros cada vez que dava uma pazada. Ao fim e ao cabo não era tão mau que não fizesse vento.
—Como pode estar tão seguro? —Erik arqueou uma sobrancelha e ela pôs cara de chateio — Ah, claro, tem o vento a favor.
Ele sorriu.
—Ao final vai entendendo.
Já que aquilo mal merecia uma resposta, Ellie se recostou tranquilamente para admirar a vista, que inclusive tinha melhorado, já que tinha se despojado do casaco. Apesar da bruma fria e espectral, o arrulho das ondas e o impulso suave dos remos tinham um efeito surpreendentemente relaxante. Sentiu como lhe fechavam as pálpebras à medida que o longo dia e os inquietantes acontecimentos faziam racho em seu corpo. Deve ter ficado adormecida, porque o seguinte que se encontrou foi a chuva golpeando suas bochechas e o forte rugido dos trovões, que a fizeram sair do sonho para levá-la a um pesadelo.
Capítulo 19
Ao princípio ao Erik não preocupou que o ar não se movesse. A falta de vento tinha suas vantagens: se os ingleses permaneciam à espera de seus movimentos, não poderiam ver a vela. Inclusive ele se veria em sérios apuros para adiantar uma frota de galeões ingleses com um bote de três metros. Sorriu ao pensar que, ao não ser por sua missão, estaria disposto a comprová-lo. Por impossível que fosse, ainda estava por chegar o desafio que não o atraíra. Era mais provável que os ingleses estivessem escondidos em algum dos castelos escoceses roubados, a salvo e em suas camas quentes, e não esperando em um galeão com aquela névoa fria e espectral que aparecesse um rebelde solitário, embora se tratasse de um que os tinha ferido em seu orgulho em repetidas ocasiões. Remou através daquela turva escuridão, usando como referência a costa de Spoon até que foi possível. Uma vez que entraram no canal do Norte, tudo o que ficou entre eles e Irlanda era a escuridão marinha mais absoluta. Sem as estrelas e a terra para guiá-los, viu-se obrigado a manter o rumo valendo-se de seu instinto e dos anos de experiência calibrando as correntes e o vento.
Quando zarparam, fazia umas quatro horas que tinha caído o sol, pouco depois das nove da noite, o que significava que passariam perto de dez horas de pétrea escuridão até que pudesse chegar a Irlanda e conduzir os homens por esses escassos cinco quilômetros que os separavam de Rathlin. Tempo mais que suficiente, inclusive no caso de que tivesse que fazer a remo todo o percurso. Mas o vento se levantaria. Estavam nas ilhas Ocidentais. O frio, a névoa e o vento se davam por descontado. Passou as duas primeiras horas da viagem desfrutando do relaxante subir e descer dos remos na água, observando o tranquilo dormitar de Ellie. Era uma moça tão séria e a falta de humor que a via ridiculamente adorável quando dormia. Gostava do modo em que suas largas e escuras pestanas batiam contra suas pálidas bochechas, como fechava os punhos junto a seu rosto e a maneira em que seus lábios se entreabriam docemente ao respirar. Adorava suas mudanças de expressão. Aqueles pequenos franzidos que se tornavam sorrisos calorosos e que lhe faziam perguntar-se o que estaria sonhando. Mas o que mais lhe surpreendia era a vontade que tinha de apertá-la contra seu peito e ficar adormecido rodeando-a com seus braços. Então o afligiu a vergonha. Com tudo o que tinha acontecido, não teve tempo para retificar sua ignóbil reação depois que fizessem amor. Pensar em quão magnífico tinha sido seu comportamento durante as horas prévias fazia que se sentisse pior inclusive. Seu apoio tinha sido incondicional. Sem fazer perguntas nem reclamar nada, sem romper a chorar de maneira histérica, ajudando quando era preciso. Como esposa não poderia encontrar a ninguém melhor. «Como esposa.»
Deteve-se em seus pensamentos para permitir que a ideia tomasse forma e se surpreendeu ao não horrorizar-se, nem sentir desejos de saltar pela amurada. «Por que não?», pensou com um sorriso. Ellie seria uma esposa excelente. Gostava, inclusive significava algo para ele. O fazia rir. Desafiava-o como nenhuma outra mulher o tinha feito antes e de uma maneira que resultava estranhamente revigorante. Com ela podia relaxar.
E o que era mais importante, se casava com ela, tê-la-ia na cama sempre que quisesse. E suspeitava que ia querer tê-la um montão de vezes. Seu corpo se esquentou com as lembranças. Lhe fazer amor tinha sido tão intenso, tão incrível, tão próximo à perfeição que doía.
Ao final seu desejo por ela se desvaneceria. Tinha que ser assim, não era isso certo? Mas saberia ser discreto e procuraria não ferir seus sentimentos quando tomasse uma amante, como era o costume. Embora nesse preciso momento a ideia de outra mulher não parecia nada sugestivo. Nem sequer um pouco. Inclusive resultava um tanto preocupante.
Havia outra consideração que não podia tirar da cabeça. Se a deixava partir, poderia estar tentada de procurar a paixão em algum outro. Mas toda essa paixão escondida durante tanto tempo seria perigosa nas mãos equivocadas. Havia muitos homens que poderiam aproveitar-se dela. Obviamente, necessitava que alguém a protegesse. Supôs que teria que ser ele. Quanto mais o pensava, mais gostava. Domnall tinha razão. A sua mãe e a suas irmãs não importaria que se tratasse de uma babá, e quanto a qualquer outro… Diabos, importava-lhe um nada o que pensassem outros. Sempre tinha sido assim. Poderia lhe dar riquezas, uma posição, um lar. Filhos próprios aos que mandar. Seu olhar passeou por sua adormecida silhueta e se deteve em seu ventre. Quase podia imaginá-la saindo às portas de algum de seus castelos para lhe dar a bem-vinda depois de uma longa viagem, com os olhos brilhando de felicidade por vê-lo e sua barriga torcida com um filho. Pensar em seu filho arredondando aquele corpo fez que seu peito se enchesse com uma feroz emoção desconhecida até então. Queria ter essa conexão com ela. Desejava-a com uma intensidade tão visceral que não saía de seu assombro. Sorriu, congraçando-se mais e mais com aquela ideia. Qual seria sua surpresa quando descobrisse que seu pirata era um bisneto de Somerled e chefe de um dos clãs mais antigos das terras? Provavelmente se sentiria afligida, agradecida inclusive. Seu peito albergou uma onda satisfação. Sim, estaria bem que se sentisse agradecida. Seria insólito, pelo que se referia a Ellie.
Erik remou com forças renovadas através das crescentes correntes e ascendentes ondas. Estava ansioso para que despertasse para lhe comunicar sua decisão. Não podia esperar para ver o rosto que poria. Ao princípio ficaria aniquilada, sobre tudo quando compreendesse a honra que lhe estava rendendo, e depois sem dúvida emocionada, aliviada, transbordante de alegria. Talvez inclusive derramasse um par de lágrimas.
De repente uma gota de água caiu sobre seu rosto. Assombrou-se que seus pensamentos se materializassem de tal forma, até que advertiu que não se tratava de uma lágrimas sim de chuva. Normalmente Erik estava a par de qualquer pequena mudança no clima, já que, como marinheiro, sua vida e as de seus homens dependiam disso, mas a chuva tinha aparecido sem prévio aviso. Aquela pesada névoa tinha oculto os sinais, mas de repente o instável tempo das Innse Gall mudou como o mercúrio. «Se você não gostar do tempo, espera cinco minutos e verá.» O dito das ilhas Ocidentais fazia honra à verdade. Ao princípio não lhe preocupou. O vento começou a levantar-se, assim pôde dar descanso aos remos para içar sua improvisada vela. A barquinha pegou uma forte rajada e cobriram tanta distância como tinha remado na metade do tempo. Mas o leve vento e a chuva não eram mais que um presságio do que estava por chegar. Tinha suficiente experiência com tempestades repentinas para reconhecer os sinais. A chuva se fez mais intensa. O vento trocou e começou a rugir em curtas e violentas rajadas. O mar começou a picar-se. As ondas eram mais altas e abruptas. As correntes faziam redemoinhos e criavam ressaca. Erik cada vez passava mais apuros para controlar a posição do bote. Não havia muitos lugares piores que o canal do Norte para uma tormenta de inverno, e muito menos navegando com um pequeno barco que não tinha sido concebido para confrontar tais provocações.
O vento se fez mais denso e começou a rugir de impaciência. Podia perceber como se formava a energia da tormenta e sabia que não havia nada que pudesse fazer para detê-la. Segundo seus cálculos, aproximava-se a meia-noite e estavam virtualmente a meio caminho, mas a costa norte da Irlanda ficava ainda a mais de dez quilômetros de distância. A melhor opção era tentar chegar até a borda e ganhar a corrida da tormenta antes que alcançasse sua força máxima. Mas sabia que suporia uma dura batalha. Não só chegar a tempo a Irlanda, inclusive salvar suas próprias vidas o seria. Teria que dar tudo se queria evitar que as ondas e a chuva não alagassem o bote ou os fizessem naufragar. Se queria um desafio, tudo apontava a que o teria. Mas não era desta maneira como queria. Não com Ellie. Uma estranha sensação passou através de seu peito. Demorou um momento em reconhecê-la: medo. Precaver-se disso o deixou petrificado. Tinha estado em situações muito piores e jamais tinha sentido temor.
Era por causa de Ellie. Seus temores provinham dela. Somente pensar que poderia estar em perigo o paralisava, o fazia sentir virtualmente… vulnerável. E disso ele não gostava absolutamente. Céu santo! Mas o que tinha feito? Supunha-se que tinha que protegê-la, não pô-la em perigo. Não obstante, as recriminações teriam que esperar. Agora mesmo somente podia pensar em uma coisa: tirá-los dali com vida. O rugido ensurdecedor do trovão despertou Ellie de repente.
—O que acontece? —disse meio dormida.
—Uma rajada de mau tempo, isso é tudo — assegurou.
Nada em sua voz nem expressão oferecia mostra do perigo, mas pouco podia fazer por ocultar as violentas sacudidas das ondas sobre o bote, os uivos do vento, a intensa chuva ou os trovões. O tempo era mau nesse momento, mas não pensava dizer que suspeitava que pioraria durante a noite. Erik percebeu a preocupação em seus olhos.
—Há algo que possa fazer? —perguntou Ellie.
Um sintoma de quão assustada estava era que não discutisse com ele e decidisse lhe seguir o jogo. Assinalou-lhe um balde preso à proa.
—Tenta manter tanta água fora do casco como é possível e te agarre forte. Podemos ter um ou outro salto.
Aquilo se revelou como uma subestimação prodigiosa. Quanto mais rápido navegava, maior perigo revestia a situação. Revisava e ajustava a velocidade continuamente em sua tentativa por evitar as armadilha das ondas. Lutava por dominar o vento cambiante com uma mão, tentando manter a posição da proa para as ondas, enquanto dirigia o leme com a outra. Sabia que devia tentar navegar a vela quanto pudesse. Aquilo lhe dava mais possibilidades de manter a proa na direção adequada. Somente ficava esperar que o bote e seu mastro instalado apressadamente fossem o suficiente fortes para aguentar a crescente força da tormenta. Entretanto, o barquinho demonstrou uma resistência surpreendente e seu casco plano os ajudou a manter a estabilidade à medida que o vento os transportava por aquelas torrenciais ondas. No transcurso dos seguintes quilômetros percorridos, seu improvisado mastro aguentou e navegaram para zona tranquila. Ao menos isso esperava, já que tinha perdido virtualmente toda habilidade para calcular a direção. Movia-se por puro instinto.
Embora o primitivo era a luta pela sobrevivência, sua missão permanecia em alguma parte de sua cabeça. Tinham que sair desta. Havia muito em jogo. Chegar a tempo para o ataque era crucial. Não podia esbanjar todos esses meses de preparação. Um fracasso em uma das pontas de ataque deixaria à outra vulnerável e perderiam o elemento surpresa. Erik era consciente de que, cada dia que passava, o brilho de esperança para a causa de Bruce se fazia mais opaco.
Cada centímetro de seu corpo ardia pelo esforço de mantê-los a flutuação e ocultar a Ellie que estavam apenas a uma solitária onda do desastre e da morte.
Olhou seu pálido rosto coberto de chuva e sentiu uma pontada no peito. Sabia o assustada que estava, apesar de fazer o impossível por ocultá-lo. Jamais tinha admirado tanto sua beleza como nesse momento. Nunca esqueceria o aspecto que tinha então, como uma minúscula pipoca empapada com o cabelo pego à cara, imersa até os ossos, tentando manter o tipo entre aqueles ventos impetuosos ao tempo que esgotava a água e observava cada um de seus movimentos com aqueles atentos olhinhos negros. Mas também com algo mais: uma confiança e admiração que lhe fazia sentir-se humilde. Sorriu apesar de o que experimentava nada tinha de divertido.
—Esta sim que é uma pequena tormenta das boas, eh, tè bheag? —gritou sobre o bramido do vento e da chuva.
Olhou-o como se fosse um lunático.
—E então a que chama você uma grande tormenta?
Erik riu apesar das circunstâncias.
—Isto não é nada. Não te comentei aquela vez que…?
—Erik! —cortou ela com um grito de exasperação ao tempo que uma forte rajada de vento golpeava o casco da pequena nave. Ellie se agarrou à amurada até que seus dedos ficaram brancos. Erik tinha prendido uma corda que agarrava aos dois, mas ela era tão magra que temia que a levasse o vento — Te importaria me contar essa história mais tarde, quando esta pequena tormenta tenha acabado?
Ele se encolheu de ombros como se não lhe importasse nada.
—Como quiser, mas é uma boa história.
—E provavelmente melhore com cada vez que a conte.
Ele negou com a cabeça. Que mulher! Inclusive no meio do inferno era capaz de mostrar-se sarcástica. Apesar disso, lhe tiritavam os dentes, e quando ao resplendor de outro relâmpago o seguiu imediatamente o estalo de um trovão, a viu tão aterrorizada que teve que controlar-se para não correr e consolá-la. Daria tudo para protegê-la. Mas o que passaria se tudo não era suficiente? Aquela suspeita de dúvida o enfureceu. Será suficiente, por todos os diabos. Não era possível que a sorte o tivesse abandonado por completo. Mas quando Erik ouviu o sonoro rangido e viu o mastro escorar-se para um lado, se perguntou se aquilo não seria certo.
Pelo rangido, Ellie soube no momento que algo ia muito mal.
—Cuidado! —gritou Erik ao tempo que a alcançava e a jogava no chão justo quando o mastro, a vela e os equipamentos do barco passavam sobre sua cabeça.
Ellie ficou observando, emudecida pelo terror, como a vela se agitava sobre as ondas por uns instantes, antes que o peso do mastro e dos equipamentos do barco a arrastassem consigo e a fizessem desaparecer no tumultuoso mar. «Estamos condenados.» Sem a vela, ficavam virtualmente a mercê daquele tumultuoso mar. Erik a tomou em seus braços, apertou-a forte contra si e acariciou sua cabeça de cabelos completamente empapados. Podia notar seu pulso acelerado inclusive sob as capas de lã, peles e couro. Ela o olhou através da cortina de chuva que caía sobre suas pestanas, surpreendida de não reconhecer um só traço de medo em seu rosto. Permanecia impassível, inclusive na mais aterradora das circunstâncias. Parecia mais preocupado pelo fato de que ela tivesse estado a ponto de golpear a cabeça com o mastro que porque estivessem completamente a mercê da tormenta. Ellie elevou a vista para olhá-lo.
—Vamos morrer?
Seus olhos se encontraram com os dele e clamavam por uma resposta sincera. Erik tomou pelos ombros com todo o corpo jorrando de chuva e a sacudiu para enfatizar suas palavras.
—Não vamos morrer.
Como se quisesse desafiar suas palavras, uma enorme onda propulsou o parquinho às alturas e jogou com eles até quase fazê-los voar para depois voltar a soltá-los de um golpe na água. Erik tomou os remos e os usou para manter o rumo da proa para as ondas, mas era evidente que aquelas placas de madeira não podiam opor-se à corrente.
—Não necessito uma vela para conseguir chegar a Irlanda — fanfarroneou sobre o rugido da tormenta — Não pensa que estou disposto a me render, verdade?
Ellie negou com a cabeça. Jamais se renderia. Era o melhor marinheiro que jamais tinha visto. Se alguém podia consegui-lo, era ele. Olhou-a aos olhos.
—Necessito que esteja comigo, Ellie. Será capaz de confrontar isto?
Ela afugentou a onda de pânico que a imbuía e assentiu. Não pensava vir-se abaixo. Tinha que ser forte.
—O que pensa fazer? Não pode remar em meio disto.
—Não vou necessitar. —Sorriu e, apesar das dilaceradoras circunstâncias, resultou algo reconfortante — Mas dado que perdemos a vela, temo que terei que pedir sua camisola. —Riu ante a cara de estupor dela — Preciso fazer força com algo para que o barco perca velocidade. Também ajudará que a proa siga o curso das ondas.
Com a tormenta formando redemoinhos a seu redor, Ellie não podia perder mais tempo fazendo mais perguntas. Custou-lhe, mas ele a ajudou a passar entre as capas de tecido molhado até chegar à camisola. Erik se sobressaltou quando suas mãos nuas contataram com a pele, mas se engenhou para romper o pano de linho de um modo limpo e rápido pela cintura. Fez um nó com um extremo do tecido e depois fez um par de buracos junto à prega ao outro extremo, ao qual atou dois cabos. Atou a corda à proa e, finalmente, jogou a camisola ao oceano.
A escuridão não deixava vê-lo, mas soube que funcionava quando a barco acalmou sua marcha e pareceu estabilizar-se.
—E agora o que? —perguntou ela.
Erik lhe afastou uma mecha de cabelo das pestanas e lhe deu um beijo salgado na boca. Aqueles lábios tinham sabor de força e calor e lhe ofereceram um consolo que necessitava mais que nunca.
—Agora esperaremos e deixaremos que a corrente nos conduza através da tormenta.
Deitou-a na coberta do barco de modo que ficasse estendida ante ele, acurrucada sobre seu lado, e pôs umas mantas sobre eles. Tinham ficado completamente a mercê da tormenta. A chuva seguia aumentando e o barquinho bamboleava de um lado a outro envolto nos perigosos tubos das descomunais ondas. Mas no acolhedor e quente círculo de seu apertado abraço e com o constante batimento do coração atrás de suas costas, Ellie sentiu um momento de calma.
Até que os golpeou a seguinte onda e o terror fez que seu pulso se acelerasse e o coração se detivesse. Aferrava-se a ele e afundava os dedos em seus braços cada vez que uma onda se levantava e rompia contra eles, cada vez que o bote caía sobre as ondas e corria com um som que gelava o sangue. Mas a solidez do robusto corpo que tinha atrás dela fazia de ancoragem. Era de loucos vê-lo manter a calma, virtualmente desumano. Uma imensa onda os sustentou no alto e quase os pôs a meio lado antes de devolver o esquife sobre a superfície com tal força que a Ellie tremeram os dentes e até os ossos.
—Não tem medo? —perguntou ela com voz tremente.
—Não — se apressou a responder, para depois de uma pausa abraçá-la um pouco mais forte e acrescentar —: Pode ser que um pouquinho. —Tinha medo por ela. Que admitisse aquilo a encheu de felicidade. Talvez não era completamente imune às fragilidades do ser humano, embora não fossem por ele mesmo. Talvez lhe importasse realmente. Antes que Ellie pudesse responder, disse —: Mas nem pense em contar a alguém. Tenho uma reputação que manter.
O sorriso de Ellie se tornou em grito quando outra das aterradoras ondas os levou em uma perigosa viagem por cima da crista e rompeu no mais alto lançando-os sobre a superfície de repente. A constante tensão entre momentos de pânico e de alívio resultava exaustiva. Percebia-a no peito. Notava-a nos pulmões. Não sabia quanto tempo mais seria capaz de suportar. Tremendo, agarrou-se à pele de seu cotun ate que seus próprios nódulos começaram a lhe doer.
—Não posso suportá-lo mais.
Ele a consolou sussurrando murmúrios a seu ouvido e lhe acariciando os braços com suavidade, a cintura e também os quadris. E depois seu traseiro.
Ellie sentiu o calor acumular-se em seu abdômen. Seus membros relaxaram. As frenéticas revoluções de sua respiração se tornaram mais suaves. Erik a acariciou um pouco mais, passando as mãos através de seu corpo de modo possessivo. E ela se derretia ante ele. Seu corpo respondia a cada roce de sua pele. Sim. Era isto o que necessitava. Tentava distraí-la e tinha conseguido. Pegou seu seio, beliscou o mamilo com dois dedos, fez que este se arrepiasse e ficasse duro, e ela apenas se precaveu do golpe da seguinte onda. Mas suas suaves carícias já não bastavam, e ela tinha que arquear-se para notar mais a pressão de sua mão, ardendo por ter mais contato. Procurou seu corpo balançando os quadris para trás e encontrou com toda sua dureza e grandiosidade. Seus nervos, que já estavam quase quebrados, incendiaram-se. Aquele instinto primário de medo se converteu em algo completamente diferente: desejo.
Queria o ter dentro dela. Desejava-o com um desespero que podia rivalizar com o medo sentido momentos antes. Esfregou seu traseiro contra ele. Seu corpo utilizava uma linguagem própria para lhe comunicar o que ansiava. A boca dele percorreu o pescoço de Ellie e aqueles murmúrios ao ouvido se converteram em rugidos e selvagens beijos. A tormenta rugia a seu redor e levava a barco daqui para lá como se fosse o brinquedo de um menino. Aquilo era loucura.
Mas não lhe importava. Sob a capa de mantas, a voragem que circulava a seu redor parecia desaparecer. Se estavam a ponto de morrer, preferia sentir a vida por última vez. E em caso de que conseguissem atravessar a tormenta, possivelmente não tivesse outra oportunidade de encontrar a paixão com o homem que amava. Deu-se a volta e seus olhares se encontraram na escuridão. Os olhos dele irradiavam fogo. «Faz que desapareça», sussurrou Ellie. Não se referia só à tormenta, a não ser à inquietação que tinha crescido em seu interior. Erik respondeu a seu pedido com um beijo que a deixou sem fôlego. Um beijo tão selvagem e desenfreado como a tormenta que circulava a seu redor.
A tarefa não devia ser fácil com tantos movimentos no bote. Mas ele se antecipava a eles e usava a força de seu corpo para adaptá-los ao mar. Não obstante, beijava-a com tanta paixão e seu corpo ansiava tanto o contato que nem sequer reparava no que fazia. Ellie estava debaixo dele com as saias subidas até a cintura. Desprendeu o justo as ataduras de seus calções para dar saída para a dura coluna que formava sua ereção, e depois, felizmente, entrou nela de um só empurrão.
Ellie gritou de satisfação ante a abrupta invasão, em tanto que seu grosso e potente membro golpeou seu interior uma e outra vez. A sensação era incrível. Nessa ocasião não houve rastro de dor. Só prazer. Queria sentir-se assim, ter essa conexão, para toda a vida. O bote sofreu um arremesso e ele se afundou mais nela, provocando seus ofegos. Depois disto, começaram a mover-se. Os quadris de Ellie se elevavam ante suas largas e duras investidas, que pareciam seguir o ritmo da chuva e do vento. Era algo selvagem e amalucado. Algo cru e bruto. Era fazer amor da maneira mais básica e elementar. Os uivos do vento, a chuva caindo e as ondas rompendo a seu redor faziam que se fundissem com a natureza. Erik investia uma e outra vez, como se não pudessem lhe bastar rudeza nem velocidade alguma, como se sua paixão por ela fosse tão incontrolável como a tormenta. Ellie jamais poderia esquecer o aspecto que tinha naquele momento: o cabelo pego ao rosto, a chuva sulcando seu rosto e essa expressão de ferocidade e paixão.
Abraçou-o com suas pernas para atraí-lo para si. Queria que desse tudo. Assim que as poderosas sensações começaram a embargá-la, agarrou-o pelos ombros para pegar-se a sua fortaleza. Sentia-se tão bem… Todo seu corpo estava em erupção, tremia, formigava. Sentia como se concentravam o calor e a umidade. Sentia como o desejo formava redemoinhos e se esticava em seu interior com cada uma de suas deliciosas carícias. Suas mãos passearam pelos duros músculos de seus flancos, apertando forte e puxando dele com firmeza. Uma explosão de sensações tinha lugar dentro dela. Os espasmos de prazer se desdobraram um após o outro e seus gritos se perderam entre os uivos do vento.
Quando tudo acabou, Ellie mal tinha forças para mover-se. Erik pareceu se afetar de maneira similar, porque caiu rendido sobre ela. Ellie pensou que a esmagaria, mas se surpreendeu ao comprovar o quanto ansiava sentir a pressão do peso de seu corpo. Entretanto, um momento depois, ele se apoiou sobre seu flanco, voltou a cobri-los com a manta e se acoplou a suas costas. Foi então quando se precaveu de que assim devia sentir-se alguém depois de fazer amor. Sem silêncios incômodos nem recriminações. Sem expectativas vãs. Simplesmente estando cômodos e compartilhando o regozijo.
Ficaram nessa posição um momento, e Ellie advertiu que a barco já não bamboleava tanto. As ondas não pareciam tão altas como antes. Inclusive o vento parecia ter acalmado um tanto.
—Não te parece que há mais calma agora?
Ele riu sobre sua orelha.
—Qualquer coisa pareceria acalmado depois disso. —Se o que pretendia era fazer que se ruborizasse, tinha-o conseguido — Mais de um marinheiro acredita que fazer amor e deixar-se levar, como fazemos nós, chama à calma dos mares.
Ellie não sabia se estava lhe contando outra de suas histórias, mas nesta ocasião esperava que fosse certa.
—Crê que terá passado já o pior?
Erik deixou transcorrer um momento, para dar tempo a que seus sentidos considerassem a pergunta.
—Sim, acredito que poderia ter passado já o pior.
Abraçou-a com mais força.
—Descansa um pouco, Ellie. Ganhou isso.
Não podia dormir, não sob a tormenta. Mas seus olhos pesavam e, apesar de seus protestos, fecharam-se ao cabo de uns minutos.
Quando voltou a abri-los, ainda era de noite. Tinha frio, estava molhada e não podia mover os braços. Demorou um momento em recordar onde estava, mas depois lhe sobreveio tudo de repente. A tormenta. À deriva. Sua paixão desenfreada. Não podia mover os braços porque Erik seguia abraçando-a com a firmeza do aço.
—Sente-se melhor? —perguntou ele ao tempo que a soltava um pouco para que pudesse esticar os braços e as pernas, que, apesar dos ter encolhidos, surpreendentemente não estavam duros.
—Sim — respondeu ela ao dar-se conta de que assim era — Você descansou?
—Um pouco.
Fulminou-o com o olhar. «Mentiroso.» Apostava que não tinha pego olho. De repente se precaveu de algo e se incorporou.
—Parou de chover!
Tinham conseguido. Tinham sobrevivido à tormenta. Erik tinha razão. Não iam morrer. Ele sorriu ao ver a cara que ela punha.
—Faz umas horas. Pouco depois que dormiu. A tempestade foi tão rápido como veio.
Ellie elevou a vista ao céu e advertiu que também a névoa se dissipou. Inclusive podia ver uma porção de lua aparecendo entre as nuvens.
—Que horas são?
—Faltam um par de horas para o amanhecer.
Mordeu o lábio ao dar-se conta que, apesar de que estivessem a salvo, não havia forma de que Erik pudesse completar sua tarefa a tempo. Pôs uma mão sobre seu ombro.
—Sinto muito.
Olhou-a estranhando, até que se precaveu da que se referia.
—Ainda não amanheceu, Ellie. Chegaremos a tempo.
«Nunca dar-se por vencido.»
—Mas nem sequer sabe onde estamos. Poderíamos estar a quilômetros da costa.
—Poderíamos — concedeu com simpatia —, mas não acredito. Aquilo deveria ser a costa da Irlanda — disse assinalando para a frente à direita do bote.
Na escuridão era impossível assegurá-lo, mas Ellie viu o que parecia ser uma mancha imprecisa mais escura sobre a cortina de fundo da noite. Erik já tinha tomado os remos e começava a remar para ela.
Aquela massa se fez cada vez mais grande, e assim que a escuridão foi desvanecendo-se com a aurora, soube que estava certo: tratava-se da Irlanda. A ponta nordeste, para ser mais preciso. Podia ver já os brancos escarpados pelos que o cabo recebia seu nome: Fair Head.
Não podia acreditar. Era possível que conseguissem. Se tinha tratado de sorte ou habilidade, não poderia dizê-lo, mas o certo era que Erik o tinha conseguido. Mal estavam a quatro quilômetros da costa. Entretanto, não ficava mais de uma hora para o amanhecer. Os primeiros raios de sol alaranjados começavam a aparecer sobre o negro véu do horizonte.
—Espero que esteja preparada para conhecer o rei — disse para provocá-la.
Ellie ficou paralisada.
—O rei?
—Depois que me encontre com seu amigo na Irlanda. —Ellie estremeceu ao precaver-se de que se referia ao sanguinário irlandês que queria assassiná-la — Terei que pensar alguma forma de explicar seu saudável aspecto. —Seus olhos brilharam travessamente, como se guardasse um divertido segredo — Virá comigo a Rathlin para nos reunir com Bruce —acrescentou dedicando um sorriso digno da oferenda de um magnífico presente.
Ellie perdeu a cor no rosto.
—Mas havia dito que me levaria a casa.
Ficou circunspeto, como se ela arruinasse assim a surpresa que tinha preparada.
—Mas, moça, compreenderá que não posso fazê-lo agora. Não temos tempo. Além disso, pensava que não queria ir.
Não queria. Sim queria. Estava-a confundindo. Mas se o que pretendia era levá-la ante o Bruce…
Ellie era consciente que não podia postergá-lo por mais tempo. Mordia o lábio com ansiedade e retorcia entre suas mãos as abas do casaco. Tinha que contar. Por mais que soubesse que tudo mudaria uma vez que o tivesse feito. Mas primeiro teria que lhe falar do que sentia ou jamais lhe seria dado conhecer seus verdadeiros sentimentos por ela.
—Te amo —disse em voz baixa.
Erik deixou de remar como única indicação de que o tinha ouvido. Sua expressão permaneceu impassível. Mas depois sorriu, e aquilo lhe rompeu o coração. Jamais lhe tinha ocorrido que um coração pudesse ser estripado através da amabilidade. Mas aquilo foi o que lhe provocou esse afável sorriso.
—Ah, moça, me alegro disso. Embora já o suspeitava depois do ocorrido esta manhã na cova.
Era como se em lugar de seu coração, tivesse-lhe devotado um bolo de maçã, como qualquer outra de suas admiradoras.
E o que esperava ela? Uma declaração de amor?
Não, mas sim algo mais que uma amável confirmação e que o aceitasse com tanta indiferença, alguma indicação de que cabia a possibilidade de que lhe importasse algo, de que aquilo que tinham compartilhado fosse especial. Alguma indicação de que era capaz de corresponder seu amor. A amabilidade era quão pior podia lhe ocorrer. Sua declaração não era diferente das que ele tinha ouvido incontáveis vezes. Provavelmente ele já sabia o que ela sentia, talvez inclusive valorizasse esse sentimento, mas jamais o corresponderia.
«Nada pode afetá-lo.»
Erik começou a remar de novo.
Não era a primeira vez que uma moça lhe confessava seus sentimentos, mas ouvir essas palavras da boca de Ellie significava algo diferente. Por uma só razão: não provocava nele essa ansiedade, essa inquietação que o fazia querer embarcar no próximo bote que partia. Embora, em realidade, não era isso o que estava acostumado a fazer, a não ser começar uma retirada amável e convencer à moça de que o certo era que ela não o amava. Com Ellie o sentimento não era esse absolutamente. De fato, ouvir como lhe dizia que o amava tinha feito que se sentisse… agradecido. Mais que agradecido. Orgulhoso, comovido, honrado e feliz.
Dizia-se que a reação que provocava nele era normal, já que uma esposa devia amar a seu marido. A tormenta o tinha convencido de que aquela era a decisão correta. A ferocidade da paixão que os tinha embargado o tinha pego de surpresa. Não estava preparado para deixá-la partir, de modo que pensava ficar com ela. O fato de que o amasse deveria fazer que Ellie se sentisse mais feliz inclusive.
Mas não a via feliz. Parecia estar a ponto de romper a chorar. Isso o inquietou. Ajustou o cotun, mas aquilo não aliviava a angústia que sentia no peito, uma angustiante dor que piorou quando a olhou aos olhos. Sabia o que ela desejava ouvir: que ele dissesse que também a amava. Todas as mulheres queriam isso. Estava acostumado a esse tipo de decepções, mas não a querer fazer algo a respeito, inclusive lhe dizer que ele também a amava. Aquela ideia o deixou petrificado. Um suor frio começou a sulcar suas sobrancelhas. Estava claro que ele não a amava. Aquela paixão, a feroz necessidade de protegê-la e fazê-la sua, sua estranha conexão, o medo irracional que lhe sobrevinha ante o pensamento de perdê-la significavam tão somente que lhe importava. Mas amor? Essa classe de amor entre «um homem e uma mulher para toda a eternidade» jamais lhe tinha passado pela cabeça. Acreditava-se imune, incapaz de emoções desse tipo. Gostava muito da perseguição, da sedução e a dança do cortejo. Não era aquilo certo?
Pode ser que não fosse capaz de dizer que a amava, mas sabia que podia lhe dar algo inclusive melhor que isto. Pedir-lhe-ia que se casasse com ele, e assim apagaria essa expressão de desolação de seu rosto. Sem dúvida, estava disposto a ver cair umas quantas lágrimas, mas seriam lágrimas de alegria. Entretanto, não lhe apresentou essa oportunidade.
—Há algo que devo te contar — disse Ellie com uma voz estranhamente distante, quase da realeza — Não fui de tudo honesta contigo.
Erik começou a remar com menos força até que acabou parando por completo.
—Sobre o que?
Mantinha-se erguida com um porte majestoso, sem deixar de olhá-lo aos olhos.
—Minha identidade.
Ficou surpreso, mas a deixou continuar. Já suspeitava que ocultava algo.
—Não sou babá na casa do conde de Ulster.
—Ah, não?
Ellie respirou profundamente.
—Sou lady Elyne de Burgh.
Capítulo 20
Erik ficou petrificado uns instantes e logo começou a rir. Estava claro que tinha ouvido mau.
—Por um momento acreditei que havia dito De Burgh.
Ellie elevou o queixo e ficou olhando-o aos olhos.
—Isso disse.
«De Burgh.» Negava-se a acreditar que aquilo fosse tão mau como dava a entender a alarmante revolução desatada através de suas veias.
—É família do conde de Ulster? —perguntou cheio de temor, com a esperança de que sua relação fosse longínqua.
Ellie continuou olhando-o sem pestanejar.
—É meu pai.
Ao Erik pareceu que lhe arrancavam a cabeça de um golpe. Ficou olhando-a como se a visse pela primeira vez. Talvez assim fosse. Em realidade não tinha chegado a conhecê-la nunca. Entreabriu os olhos e começou a notar a tensão que se formava no pescoço e nos braços.
—Mentiu.
Ellie não se intimidou ante seu olhar acusador.
—Assim é.
Erik esperava que o negasse, que desse evasivas e tentasse explicar suas ações, não que admitisse sua falta com tanta facilidade. Mas ela jamais atuava como se pressupunha que tinha que atuar. Sentia-se estranho, incômodo, desconcertado e doído. Somente havia se sentido assim ao atravessar alguém com a espada.
—Por quê?
—Na cova da Sereia, um dos irlandeses mencionou o nome de meu pai. Era óbvio que o sobrenome De Burgh só conseguiria complicar mais as coisas.
Erik não pensava que pudesse havê-lo complicado muito mais.
—E quando saímos da cova?
—Refere a quando me precavi de que pensava me violar e depois me assassinar?
A imperiosa maneira em que arqueou a sobrancelha o enfureceu mais inclusive que o sarcasmo, fosse este merecido ou não. Era exatamente o tipo de mostra de superioridade e nobreza que esperaria da filha de um conde. O tipo de gestos que provinha de sua posição, conforme tinha convencido a si mesmo. Apertou os punhos em uma tentativa de acalmar as estranhas emoções que ardiam em seu interior.
—Mas disse que era babá.
—Pareceu-me o mais próximo à verdade. Desde que morreu minha mãe, encarreguei-me de meus irmãos e irmãs menores. Aquilo foi um toque de ironia que me pareceu divertido. Mas quanto à razão pela que não lhe disse isso depois foi porque pensei que fosse um pirata. —Erik advertiu o tom de recriminação em sua voz. Ela não era quão única tinha guardado um segredo. Ele quis que fosse daquele modo. Desejava manter distância entre ambos. Mas jamais teria sido capaz de imaginar isso — E tampouco podia estar segura de que não queria me obrigar a me casar contigo.
Aquilo era exatamente o que teria feito um pirata de verdade. Mas estava muito zangado para atender a explicação racional alguma. Essa amarga ironia era como uma punhalada nas costas. Porque ele queria casar-se com ela. Pensava que poderia lhe dar uma posição e riquezas, que lhe estaria agradecida. Pensava que ela o necessitava. Mas não o necessitava absolutamente. Uma filha de Ulster era um dos prêmios mais cobiçados de toda a cristandade. Podia aspirar a algo muito melhor que um chefe de clã açoitado, embora seu sangue azul se remontasse à memória dos tempos. Sabia que não tinha nenhum direito a isso, já que não lhe tinha devotado razões para a confiança, mas igualmente se sentia traído.
—E quando se inteirou da verdade, Ellie? Ou deveria dizer lady Elyne? Por que não o fez então?
Olhou-o sob a luz da lua com uma cara que era uma máscara de alabastro ovalado.
—Porque não queria que acabasse o nosso prazer.
«O prazer.» Por Deus bendito. O mundo veio em cima quando foi consciente de todas as coisas que implicava. Já não era somente que ferisse seu orgulho que uma babá a que tinha querido honrar com seu nome resultasse ser uma das herdeiras mais ricas na terra, a não ser o que ele mesmo tinha feito. Tinha manchado à filha de Ulster. E não somente à filha de Ulster. Agarrou-a pelo braço, tentando conter sua ira.
—É a irmã de Bruce!
O homem ao qual devia lealdade a cima de todo o resto. Ela sequer se incomodou em fingir rubor pela magnitude de sua mentira, mas sim manteve a cabeça bem alta.
—Irmã política, sim.
—Mas Eduardo Bruce te viu a outra noite. Por que não disse nada?
—Tão somente me encontrei com ele uma vez, nas bodas. —Riu, embora aquele áspero som não era divertido absolutamente — Ao que parecia, não se lembrava de mim.
Erik queria morrer. A primeira vez que desonrava a uma donzela e tinha que escolher aquela que era sacrossanta. A irmã de seu rei e senhor. Certo que Bruce tinha adotado o estilo de luta das Highlands, mas em seu coração seguia pulsando o espírito da cavalaria. Aquele insulto não cairia no esquecimento. Pouco importariam as circunstâncias. E não seria somente o sentido de honra de Bruce o que se sentiria ofendido. Todas as possibilidades apontavam a que Ulster culparia Bruce das ações de Erik. Aquilo poderia abrir uma brecha entre ambos. Uma brecha que poderia provocar que Ulster deixasse de olhar para outro lado ante as atividades de Bruce. Uma brecha que podia pôr em perigo as rotas comerciais do oeste e negar ao rei provisões que lhe eram muito necessárias. Se não o matava Ulster, já se encarregaria Bruce disso. Sua missão não incluía manchar a honra de donzelas.
Deus santo, de repente tudo parecia cobrar sentido: a razão pela que os ingleses não tinham cessado em sua busca como normalmente faziam. Apertou-lhe o braço com mais força, obrigando-a a olhá-lo aos olhos.
—Não me perseguiam , buscavam a ti.
Ao levá-la consigo, fazia recair sobre ele todo o peso da frota inglesa. Ela parecia surpreendida pela acusação, como se não tivesse caído na conta até esse momento. Enrugou o sobrecenho.
—Nunca pensei que… —deteve-se e depois negou com a cabeça — Minha família jamais soube o que me tinha ocorrido.
Nesse momento ao Erik lhe gelou o sangue.
—Talvez não o fizessem ao princípio, mas sim quando enviei a mensagem.
Sua galanteria mau entendida e a necessidade premente de fazê-la feliz tinham conduzido seus inimigos diretamente para eles.
A Ellie trocou o rosto. Era possível que, quando capturaram e assassinaram a seus homens, os ingleses estivessem procurando a ela? «Milady.» Aquela deferência do soldado na praia cobrava sentido de repente. Tentavam protegê-la.
—Lamento muito — disse.
Ele sequer podia olhá-la.
—Celebraremos as bodas logo que consiga um sacerdote.
Seu coração parou em seco. «Bodas.» Aquela palavra que tanto tinha esperado escutar, pronunciada de maneira fria e sem emoção alguma. Era exatamente o que tinha temido, a razão pela que não tinha revelado sua identidade. Porque sabia que a desgraçada nobreza que albergava em seu interior poderia mais que seu lado cruel. Ela era lady Elyne de Burgh, a irmã política de seu rei e senhor, filha de um dos homens mais poderosos da cristandade. Não ficava mais opção que casar-se com ela.
Pode ser que resultasse incoerente, mas não pensava casar-se com o homem que amava. Não, se a proposta estava motivada pela obrigação em lugar da emoção. O amor não correspondido não o fazia nenhuma ilusão. Não cometeria o mesmo engano que sua mãe, que pensava que poderia obrigar um homem a que a amasse só com a força de sua própria vontade. Em seu interior, Ellie tinha vontade de explodir, de atirar-se ao chão e romper a chorar como se fosse um farrapo. Mas seu orgulho não o permitia. Era lady Elyne de Burgh. Erik jamais chegaria a saber o dano que aquilo podia lhe fazer, nem tampouco quão difícil resultava a ela rechaçá-lo.
—Isso não será necessário — disse ela com a mesma emoção que ele tinha formulado sua «oferta».
Os olhos de Erik pareciam meras frestas.
—É preciso que te recorde com exatidão por que sim é necessário?
Não lhe deu a satisfação de ruborizar-se. Não se envergonhava do que tinham feito e ele não a obrigaria que se sentisse desse modo.
—Aprecio sua galante «oferta», mas não é necessário. Já estou prometida.
Se Ellie pensava que já o tinha visto zangado, equivocava-se. A mudança resultava tão impactante que a Erik cortou a respiração e retrocedeu por instinto. Na luz do amanhecer próximo, seus olhos empalideceram e se tornaram absolutamente frios, absolutamente sem misericórdia. O arrumado norueguês se transformou no sanguinário viking. Fez um movimento em sua direção, e por um momento inclusive lhe teve medo. Acreditou que se equilibraria sobre ela, mas em realidade estava completamente quieto. Muito quieto. Jamais se tinha precavido antes de quão ameaçador podia ser a quietude.
—Quem?
Aquela singela palavra soava como a tocha de um verdugo. Um gelado calafrio percorreu suas costas mas se negava a deixar ver seu medo.
—Sir Ralph de Monthermer.
Os olhos de Erik brilharam com uma intensidade perigosa.
—É uma caixa cheia de surpresas, não é certo, lady Elyne? Tinha ouvido algo a respeito de seu compromisso, mas tenho que admitir que nunca o relacionei com minha babá sequestrada e o recente interesse do novo conde em uma mensagem proveniente de Dunaverty.
Ellie empalideceu.
—Esteve me buscando?
—Ao que parece, com bastante veemência.
Ela não caiu no engano de confundir o tom descuidado de suas palavras. Estava furioso. Se não fosse pelo ridículo do pensamento, diria inclusive que estava sentindo ciúmes. Mas Erik era o último homem ao que poderia imaginar sentindo ciúmes. Tinha muita confiança em si mesmo e lhe importava tudo muito pouco para sofrer de tão débil fragilidade humana. O que o punha furioso era o perigo em que se via sua missão.
—E o que ocorrerá quando se inteirar que já não é donzela? Crê que o recém renomado conde ainda te quererá por esposa? Ou esperava talvez enganá-lo nesse aspecto?
Ellie ficou em guarda. Como podia pensar que seria capaz de tal desonra? Não se iludia quanto aos interesses que Ralph tinha sobre ela. O importante era a aliança.
—Não é teu assunto. Isso ficará entre meu prometido e eu.
Aquilo fez que explodisse, tomasse pelo braço e a sacudisse com violência.
—É um corno!
O coração de Ellie pulsava como uma locomotiva. Jamais o tinha visto perder o controle. E esse olhar que tinha… Deu-lhe calafrios. Não sabia o que pretendia. Tinha a cara tão perto que pensou que a beijaria até que se rendesse a seus pés. Não, nada de beijos, violá-la-ia.
Mas o que poderia ter acontecido depois jamais chegaria a saber. Erik olhou além do corpo de Ellie e ficou gelado. Toda sua emoção e raiva pareceram evaporar-se.
—Ao que parece, logo o descobriremos.
—Do que está falando?
Assinalou um ponto a suas costas. Quando Ellie deu a volta, advertiu umas inconfundíveis mancha de cor, peneiradas pelo suave resplendor da aurora, sobre o horizonte que se estendia atrás deles. Velas. Ao menos seis delas, aproximando-se com rapidez.
—Acredito que seu prometido acaba de chegar.
Ellie se precaveu que Erik já sabia do primeiro momento em que as viu, e percebeu em seu rosto algo que pensava que jamais chegaria a ver: derrota. Sua sorte tinha acabado. A fuga era impossível. A costa estava muito longe ainda. Sem uma vela, não teriam possibilidade de ocultar-se nem de navegar mais rápido que eles. Inclusive as extraordinárias habilidades do marinheiro escocês tinham seus limites, e um deles era a impossibilidade de navegar mais rápido que uma frota de galeões ingleses com o vento a favor com a única propulsão de suas próprias mãos. Estava a ponto de fracassar e ela teria a culpa. O fracasso seria algo que jamais lhe perdoaria.
O olhar de Ellie se perdeu na costa da Irlanda. Uma ideia tomou forma em seu interior. Talvez ainda tivesse uma oportunidade. Mas a aceitaria? Fez das tripas coração, consciente que não podia lhe dar alternativa a escolher.
Erik fracassaria ante seu rei. Fracassaria ante todo o grupo. Fracassaria ante todos os que contavam com ele. Inclusive nas horas mais escuras da tormenta não tinha contemplado a opção do fracasso. Parecia-lhe inconcebível pensar em algo que não fosse o êxito. Mas o amargo sabor da derrota azedava sua boca. Rememorou os acontecimentos uma e outra vez, consciente de que tinha sido sua própria arrogância que o tinha conduzido até aí. Se o tivesse tomado com mais seriedade, concentrando-se em sua missão em lugar de na moça, não teria chegado até esse ponto. Não podia acreditar que, estando tão perto, fosse presenciar como a vitória se esfumava ante seu nariz no último suspiro, a três quilômetros da costa. Tinha-a virtualmente a um tiro de pedra. Mas jamais na vida poderia ganhar uma regata dos ingleses com esse barquinho, e ficar na tentativa para conduzi-los até os soldados irlandeses não entrava em seus planos. Estavam apanhados.
Mas, apesar de tudo, não se dava por vencido com facilidade e espremia o cérebro em busca de alguma saída.
—Parte — disse Ellie sem expressar emoção alguma — Antes que lhe vejam.
A voz de Erik se mostrou tão dura como seu olhar.
—A menos que possa fazer aparecer de um nada um mastro e uma vela, temo que isso será impossível.
—Pode nadar.
Erik ficou pensando, mas descartou a ideia ao momento.
—Buscar-nos-ão uma vez que descubram que o barco está vazio. Não posso me arriscar a isso.
—Eu não irei contigo.
Uma nuvem vermelha de ira ferveu em seu interior.
—Se pensar que vou te abandonar…
Ellie não lhe permitiu terminar a frase.
—Estou completamente a salvo. É a mim que estão procurando. Dir-lhe-ei que se afogou na tormenta. Ninguém o buscará. Ainda tem tempo. Mas é preciso que vá imediatamente.
Erik olhou para a costa e soube que ela tinha razão. Podia conseguir. Os irlandeses esperariam até o amanhecer e, com sorte, talvez um pouco mais. Teria que fazer passo a Rathlin e depois a Arran em uma só noite, mas podia consegui-lo. Bruce ainda estaria a tempo de chegar para lançar o ataque no dia acordado. Podia salvar sua missão. Mas isso de abandoná-la a sua sorte ia contra cada um de seus sentidos. Apesar de que o tivesse enganado, ela era seu… O que? O que era ela para ele?
Ao que parecia, Ellie se precaveu de suas dúvidas.
—Parte. Nada te retém aqui.
Mas sim havia algo. Embora não pudesse pôr nome a isso. Erik debatia contra sua própria indecisão, algo com o que não estava familiarizado. Pode ser que salvasse a missão, mas, ao fazê-lo, também poria ponto final a sua relação com Ellie.
Mas de que relação falava? Ela estava prometida a De Monthermer, Por Deus bendito, que fosse antes genro de Eduardo e um dos capitães mais importantes da marinha inglesa. Ela pertencia a outro. Ser consciente disso era como um ácido que corroia seu peito.
E ali estava ela, sentada com uma tranquilidade exasperante, o gesto tão duro e quebradiço como o cristal. Havia algo que não encaixava. Muita compostura. Muita calma. Fazia apenas uns minutos havia dito que o amava e ali estava agora, fazendo tudo o que podia por livrar-se dele. Tomou pelo braço e sentiu vontade de apagar de seu rosto essa gelada expressão de irrevogabilidade.
—O que quer de mim?
Ellie o olhou aos olhos.
—Nada. É que não te dá conta? Jamais houve outra possibilidade. Parte, para que possa seguir com minha vida e me esquecer de que tudo isto aconteceu.
Erik estremeceu como se acabassem de lhe dar um golpe na cabeça. Ficou olhando aos olhos com o peito tremendo de angústia e a obrigou que se atrevesse a lhe mentir diretamente à cara.
—Me diga uma coisa. Quer te casar com ele?
Ellie não duvidou um segundo.
—E por que não teria que querer? Sir Ralph é um dos cavalheiros mais arrumados e poderosos da cristandade. Para qualquer mulher seria uma honra se desposar com ele.
Erik apertou os dentes ante aquela súbita dor. Deveria sentir-se aliviado. Sua missão devia ser o primeiro e agora poderia partir com a consciência tranquila. Tinha pedido. Ela o tinha rechaçado. Tinha completado com sua obrigação. Sua honra estava intacta. Então por que parecia ter o peito ardendo por dentro? A que vinha toda essa fúria interior? E por que tinha vontade de assassinar sir Ralph de Monthermer? Aquilo era o que teria feito os antepassados de Erik. Mas ele não era um bárbaro nórdico. Não tinha direito algum a reclamá-la para si.
Caía o amanhecer. Os galeões cada vez se aproximavam mais. Em cinco minutos haveria suficiente luz para que pudessem vislumbrar suas duas silhuetas. Se pensava partir, teria que fazê-lo no momento. Olhou Ellie justo antes de mergulhar na água. Agasalhada pelas mantas e peles, a via pequena e indefesa. Mas não estava, jamais tinha estado. Não necessitava a ele. Embora lutasse contra a urgência que sentia de tomá-la entre seus braços e provar que aquilo não era certo. Sua mandíbula adotou a expressão de quem toma uma resolução inquebrável. Não, era melhor que ocorresse dessa forma. Tinha uma missão que cumprir. Quando voltasse junto a Bruce e o ataque estivesse em caminho, teria tanto que fazer que se esqueceria dela por completo. O momento e as circunstâncias, recordou a si mesmo. Uma vez que a aventura e a excitação ficassem sufocadas, deixaria de sentir-se desse modo.
Olhou-a uma vez mais, introduziu-se na água e começou a nadar. Tinha ficado tão insensibilizado que sequer sentiu o frio. Somente uma vez voltou a vista atrás. A meio caminho da borda se deteve, bem a tempo de ver como o primeiro dos galeões alcançava o barco. Seu corpo se encrespou ao reconhecer a insígnia de Ralph de Monthermer: a águia verde sobre a vela amarela. Um momento depois viu como recolhiam Ellie do bote e era levada nos braços por um cavalheiro alto, vestido com a armadura que levava esse mesmo emblema em seu tabardo. Erik sentiu como se seus pulmões ardessem ao encher-se de água salgada. Vê-la nos braços de outro homem fazia aflorar seus instintos mais primitivos, uns instintos cuja existência inclusive ele desconhecia. Mas se disse que Ellie já se encontrava a salvo. Havia-a devolvido a sua família, tal e como tinha prometido. Tinha completado com seu dever.
Voltou a mergulhar na água e nadou com todas suas forças concentrado em um único objetivo. Sua missão era tudo o que importava.
Quando Ralph tomou entre seus braços, a compostura que Ellie tinha mantido com tanto esmero se derrubou. Não lhe importou que houvesse quatro galeões cheios de soldados olhando-a. Toda a emoção que tinha tentado ocultar em seu interior se rompeu em mil pedaços, desembocando em uma onda de lágrimas e soluços que partiam o coração. Ralph, que atribuía a expressão de suas emoções ao alívio por seu resgate, não se precavia que seu coração estava quebrado, e a tranquilizava com palavras de quietude. Aquele pesadelo tinha acabado. Já estava a salvo. Ninguém poderia lhe fazer mal.
Era um homem robusto e quente, alto e forte. Seu largo e firme peito cheirava inclusive a vento e a mar. Em seu sorriso se via que seu arrumado rosto era amável e sua preocupação sincera. Mas Ralph de Monthermer não era o homem que ela queria, e jamais poderia sê-lo. O homem que ela queria era outro e que tinha perdido, apesar de nunca ter sido dele. A verdade ardia. Mas a dor parecia lhe dar forças. Envergonhada ante aquele desdobramento de emoções tão aberta, conteve-se e enxugou as lágrimas de seu rosto. Já haveria tempo suficiente para penas quando estivesse em casa. Agora tinha que assegurar a escapada de Erik.
—Sinto — se desculpou.
Sabia que Ralph devia estar ansioso por conhecer os pormenores do acontecido e as razões de que ficou sozinha, abandonada a sua sorte no pequeno bote.
—Não há nada pelo que desculpar-se — disse Ralph amavelmente — Estou tão contente de que tenhamos te encontrado. A tormenta… —Não terminou a frase, mas sim apertou fortemente sua mão — É um milagre que pudesse se manter flutuando.
Não era um milagre, tão somente a habilidade de um homem único.
O rosto de Ralph se endureceu.
—Mas onde está? Onde está o homem que lhe sequestrou?
Ellie era consciente de que teria que fazer todo o possível por convencer Ralph de que Erik tinha sucumbido à tormenta, mas odiava ter que lhe mentir.
—Não está — respondeu com impassibilidade — Não sei como aconteceu. A tormenta era terrível. Estava escuro e era impossível ver algo através do vento e da chuva. Ordenou-me que ficasse quieta deitada sobre o casco do barco. Em um momento estava ali e ao seguinte tinha desaparecido.
—Falcão está morto? —disse um homem mostrando sua incredulidade.
Ellie se voltou ao ouvir aquela voz familiar. Um homem apareceu entre a multidão de soldados que se apertavam a seu redor. Seu rosto ficou lívido.
—Thomas! Está a salvo! —Era tão profundo o alívio que sentiu ao vê-lo que deu uns passos para ele antes de deter-se — Mas o que esta fazendo aqui?
O rosto Thomas se ruborizou, antes que Ralph respondesse por ele.
—Foi graças a sir Thomas que a encontramos.
—Sir Thomas? —repetiu.
Era algo que sempre tinha suspeitado, mas escutá-lo não deixou de surpreendê-la. Thomas fez uma leve reverência.
—Sir Thomas Randolph a seu serviço, lady Elyne.
Levou-lhe um momento reconhecer o nome, mas quando o fez seu horror não fez a não ser piorar.
—É o sobrinho de Robert — disse com voz entrecortada.
O jovem cavalheiro assentiu. Ellie se sentiu desfalecer. Não podia acreditar que aquele a quem considerava amigo tivesse traído não só a Falcão, mas a seu próprio tio. Que mais lhe teria contado? Separou-se dele bruscamente e se dirigiu a Ralph.
—Como me encontrou?
—Randolph estava seguro que o rebelde poria rumo à Irlanda.
Por Deus santo, teria revelado Thomas o plano? Seus olhos se dirigiram para ele sem mostrar sinal algum do pânico que bulia em seu interior.
—Falcão me contou que sua intenção era lhe devolver a casa — explicou Thomas.
Ellie teve que conter o suspiro de alívio ante aquela verdade pela metade. Ao que parecia, Thomas não os tinha traído por completo. Olharam-se aos olhos por um momento antes que ela se voltasse para Ralph para que continuasse.
—Estendemos-lhe uma armadilha ontem à noite no canal, mas tivemos que nos retirar quando se desatou a tormenta. Estava seguro que o açoitado faria o mesmo, mas Randolph me assegurou que a tormenta não o deteria. Assim que esta amainou, pusemos rumo para a Irlanda. Esse homem é mais temerário do que imaginava. —O rosto de Ralph adotou uma aparência sombria — O muito insensato poderia ter acabado com as vidas de ambos.
Ellie pôs uma mão sobre seu ombro.
—Salvou-me a vida — disse atendendo à verdade — mais de uma vez. —As lágrimas afloraram em seus olhos — Não sei o que terá feito, mas agora eu estou aqui e ele não. Quão único quero é voltar para casa e me esquecer de tudo.
Ralph se arrependeu imediatamente.
—É obvio que sim. Deve estar exausta. Podemos falar mais tarde. Sua família estará muito contente que retorne são e salvo.
Ellie ficou confundida quando Ralph deu ordens de mudar o rumo.
—Não vamos a Irlanda?
Negou com a cabeça.
—Me perdoe. Esquecia que não sabe. Seu pai foi enviado ao castelo de Ayr por ordem do rei.
«Escócia.» Não podia acreditar. Durante todo o tempo que tinha permanecido na ilha de Spoon, seu pai estava apenas ao outro lado da costa.
Ralph a sentou na arca junto à proa da embarcação, rodeou-a com várias mantas mais e lhe apertou a mão para lhe dar consolo.
—Que bom que voltou a estar conosco, lady Elyne. Lady Mathilda poderá respirar tranquila. —Uma estranha expressão percorreu seu semblante — Todos seus irmãos e irmãs poderão respirar tranquilos.
Ellie se dava conta de que se tratava de um homem amável. Era algo que já sabia, mas esse estranho desconforto que sentia ao estar junto a ele sempre havia se interposto entre eles. Viu-se invadida pelo sentimento de culpa. Precisava lhe contar a verdade.
—Meu senhor, há algo… —Suas bochechas se acenderam — Há algo que devo lhe contar.
—Não será necessário — disse com firmeza. Ellie se dispunha a protestar, mas ele a deteve — Não é culpada de nada que tenha ocorrido. Randolph me contou que entrou em…, eh, relações, com o homem que lhe capturou.
Não podia acreditar. Sabia, ou ao menos o suspeitava e não lhe importava. Aquela compreensão não fazia mais que piorar tudo. Não podia lhe permitir pensar que a tinham forçado.
—Não foi contra minha vontade, meu senhor.
Olhou-a com atenção, mais apreciativa que acusadoramente.
—Passou o que passou é já parte do passado. Está a salvo. Isso é tudo o que importa.
Ralph estava disposto a lhe pôr as coisas fáceis. Mais fácil inclusive do que o esperado. Mais fácil do que ela merecia.
—Agora descanse —disse — Poderemos falar mais tarde. —Guardou silêncio um momento, mantendo o cenho franzido sobre seus duros e arrumados traços — Temo que seu pai terá muitas perguntas que lhe fazer. O rei Eduardo está mais que ansioso por apanhar esse capitão marinheiro rebelde ao que chamam Falcão. Está convencido que Bruce planeja algo.
Ellie se esforçou por manter a compostura, apesar de lhe gelar o sangue.
—Temo que não serei de muita ajuda.
Nenhuma, de fato.
Lhe sustentou o olhar, talvez entendendo mais do que devia, e lhe ofereceu um breve sorriso.
—Seja como for, deve estar preparada.
Ela assentiu, apreciando que a advertisse disso. Recordou que em um tempo Bruce e Ralph tinham sido bons amigos. Acaso simpatizasse mais com sua causa do que ela pensava?
Ralph voltou junto a seus homens e a deixou ante a cruel solidão de seus pensamentos. Sua separação de Erik tinha sido tão rápida e inesperada que sequer tinha tido tempo de pensar. Mas agora, à medida que os minutos o afastavam cada vez mais dela, a verdade caía por seu próprio peso. Assim que se precaveu da magnitude de sua perda, a sensação de desesperança foi assustadora. O futuro aparecia baldio e solitário. Parecia impossível pensar que jamais voltaria a vê-lo, que a liberdade e a felicidade que tinha desfrutado tocavam a seu fim. Como poderia voltar para sua vida anterior como se nada tivesse ocorrido? Como cumpriria com sua obrigação e se casaria com Ralph quando amava outro homem? Não queria acreditar que aquilo acabasse de maneira tão abrupta e encontrou a si mesma mais de uma vez olhando para trás. Sabia que ele não iria em sua busca. Não podia, por mais que tivesse querido fazê-lo, o que não era o caso. Mas aquela parte insensata dela que não queria aceitar a verdade se negava a entrar em razão. Se ao menos não lhe doesse tanto… E o que esperava? Acaso não sabia que aquela era a única maneira em que podia acabar?
Convenceu-se de que significava algo para ele, de que Erik era diferente, de que era possível um futuro entre ambos. Mas jamais lhe tinha professado amor algum, nem tinha querido mais que o prazer que oferecia. Tinha-lhe dado uma oportunidade ao lhe mostrar seus sentimentos, e ele não a tinha aceito. Quão único moderava seu desamor era que logo veria sua família.
Tendo os ventos a favor, o galeão não custou muito esforço cruzar aquelas águas que apenas umas horas antes tinham estado a ponto de acabar com suas vidas. Não demoraram muito em avistar as verdes colinas e bordas arenosas da costa de Ayrshire. Ellie ficou nervosa ao ver que Thomas, sir Thomas, aproximava-se dela. Quando o cavalheiro se sentou a seu lado, ela fez como se não se precavesse disso.
—Foi a nado até Fair Head, não é certo? —disse em voz baixa para que não o ouvissem os soldados de ao redor.
Ao Ellie alterou o pulso, mas permaneceu impertérrita, com a vista fixa na linha costeira.
—Se refere-se ao capitão, já lhe expliquei o que aconteceu.
—Não lhes contei nada, Ellie, lady Elyne. Dou-lhe minha palavra.
Ellie lhe dirigiu um olhar avesso.
—Salvo onde nos encontrar.
O calor subiu por suas bochechas; entretanto, estirou peito.
—A maneira em que Falcão lhe tratava não era a correta. Quando descobri quem era, não pude permitir que sua atitude persistisse.
Ellie não dava crédito a seus ouvidos. Toda a missão de Falcão tinha podido fracassar simplesmente porque ofendera as sensibilidades cavalheirescas de Randolph. Olhou a seu redor para assegurar-se que ninguém os ouvia e lhe sussurrou: —Assim decidiu pôr aos ingleses atrás de nós? Não sabe o que está em jogo? Ou é que já não se importa?
Ele se ruborizou mais.
—Sei o que está em jogo, embora não me tenha confiado os detalhes. Por uma vez estou agradecido de que meu tio não confiasse em mim plenamente. Não disse mais que o necessário para lhe encontrar. Quanto ao Falcão, sempre se engenha para cair de pé, ou não se deu ainda conta disso?
Parecia desesperado para que ela acreditasse, como se lhe importasse a opinião que tinha dele, mas não podia ser absolvido tão facilmente. Erik tinha escapado à captura, mas por muito pouco. Se conseguia ou não completar sua empreitada, era algo que nenhum dos dois saberiam por um tempo.
—E mesmo assim passou ao outro bando? —assinalou ela.
Randolph desafio seu olhar acusador sem pestanejar sequer.
—Não ficava outra opção. —Ao ver que ela não respondia, acrescentou — Ou preferiria ver todos mortos?
Ellie o fulminou com o olhar.
—É obvio que não.
—Bom, pois isso é o que teria passado em caso de que não apresentasse a rendição.
Para maior ira de Domnall, supôs Ellie. Mas não podia culpar Thomas por fazer o que estava em sua mão para salvar suas vidas. Ela teria feito o mesmo, por mais que não fosse o estilo de Erik.
—Onde está o resto dos homens?
—Nas masmorras de Ayr.
—E você está aqui.
Ele ficou à defensiva, uma reação que pretendia censurar o tom de suas palavras.
—Meu tio e eu não nos vimos cara a cara durante algum tempo. Sou um cavalheiro, não um pirata, e meu desejo é lutar como tal.
Assim que lhe tinha dado a oportunidade de trocar de bando, tinha-a aceito. Por mais que desejasse condená-lo por isso, não podia fazê-lo. Inclusive se não tinha em conta o código de cavalaria, Randolph não tinha feito mais que o que incontáveis outros tinham feito antes dele: seguir seus interesses, não seu coração. Pragmatismo antes de princípios. A maioria dos aliados do rei Eduardo o apoiavam porque aquilo era o mais prudente, não porque acreditassem em sua causa. Inclusive seu pai podia entrar nesta categoria. Havia poucos William Wallace dispostos a morrer por uma causa nobre.
Erik era um deles. A lealdade, a honra, a responsabilidade, como queria chamar: os laços que uniam a aqueles aos que queria eram o mais importante para ele.
«Morrer antes que render-se.»
Deu-lhe um calafrio. Quando ele tinha pronunciado essas palavras, não tinha duvidado que as dizia a sério. Só podia rezar para que não tivesse que chegar a esse ponto. Teria conseguido chegar a tempo à costa irlandesa e conduzi-los a salvo até Bruce? Teria êxito o último esforço de Bruce para recuperar seu trono?
Pode ser que passasse algum tempo até que conseguisse ter as respostas para aquelas perguntas. Se fracassavam, possivelmente não saberia nunca. Era possível que a agonia de não saber o que tinha sido dele acabasse voltando-a louca.
Capítulo 21
Depois de um longo dia de espera, quase doze horas depois de abandonar Ellie, Erik MacSorley entrava na baía, navegando pela borda oeste de Rathlin com os trezentos soldados irlandeses que tinha prometido conduzir até Bruce. Com tudo aquilo que tinha acontecido anteriormente, sua chegada a Fair Head minutos depois do amanhecer tinha resultado estranhamente decepcionante, e isso apesar de que o tinha conseguido por muito pouco. Os MacQuillan estavam já carregando os navios para zarpar, pensando que teria ocorrido algo que suspendia o ataque. O chefe dos irlandeses lhe disse que teriam voltado na noite seguinte, mas Erik não estava convencido disso. Tinham cobrado a metade do pagamento e, ao ter completado com sua parte do trato, receberiam uma boa recompensa pelo simples feito de apresentar-se ali.
Em qualquer caso, Erik os alcançou a tempo e, depois de tomar o cuidado de ocultar as embarcações para que não ficassem à vista das patrulhas inglesas, passaram o dia esperando que caísse a noite para partir rumo a Rathlin. Nesse momento estava fazendo as manobras para embarcar a primeira das naves na baía. Sabia que devia sentir-se aliviado, orgulhoso de ter completado o planejado apesar da quantidade de obstáculos que tinha tido que superar. Entretanto, o êxito de sua missão lhe reportava muito pouca satisfação. A última conversa com Ellie seguia fazendo-o sofrer muito. Via-se obrigado a contar ao rei. Mas essa desagradável conversa teria que esperar. Antes de tudo, Erik deveria conduzi-los até a Arran e, depois dos atrasos imprevistos da noite anterior, queria dar-se tanto tempo como fosse possível.
Os dois grupos de homens que tinha deixado apenas umas semanas atrás se encontravam reunidos na borda para lhe dar a bem-vinda: o rei, seus aliados mais próximos e aquele punhado de vassalos leais a Bruce que tinham escapado com eles de Dunaverty em setembro. Mas a esse grupo se uniram uma centena mais de indivíduos, graças aos homens das ilhas contribuídos por seu primo Angus Og. Quando viu que a água ficava à altura de seus joelhos, Erik saltou pela amurada do birlinn e percorreu o caminho que o separava deles.
—Onde tinha se metido? —perguntou Bruce inclusive antes que pudesse pôr o pé na rochosa praia — Se supõe que tinha que chegar ontem. Isto é arriscar muito, inclusive para você, Falcão. —Olhou a seu redor — Onde está seu navio? Onde está meu sobrinho?
Erik torceu o gesto.
—Os ingleses nos encontraram na ilha de Spoon horas antes de nossa partida. Contar-lhes-ei isso tudo assim que cheguemos a Arran, mas Randolph e meus homens foram capturados.
Inclusive para um homem que tinha sofrido tantas decepções, não supôs um golpe fácil de digerir. Bruce estremeceu.
—Mortos?
Erik negou com a cabeça.
—Não acredito, majestade.
No momento Erik preferiu não dizer, mas se precaveu de que o rei estava abatido. Suspeitava que estaria pensando quão mesmo ele: que Randolph se mostrou resistente a partir naquela missão. O olhar do rei se endureceu e seus olhos se voltaram tão frios e escuros como o ébano recém polido.
—Espero que tenha uma boa explicação para tudo isso.
Erik assentiu. Isso mesmo esperava ele. Olhou a Chefe, que estava junto a Bruce.
—Estão todos preparados? —perguntou Erik.
—Sim.
Pela maneira em que o olhava o capitão da Guarda dos Highlanders, Erik sabia que também desejava lhe fazer umas quantas perguntas, mas como às de Bruce teriam que esperar.
Não demorou para acordar com o rei quem lideraria os navios irlandeses e dois dos navios dos homens das ilhas. Ewen Lamont, chamado Caçador, e Eoin MacLean, ao que conheciam como Assalto, tinham conduzido as outras duas naves junto aos irmãos de Bruce para Galloway para levar a cabo a segunda ponta de ataque contra os MacDowell. Com sete navios que comandar, cinco irlandeses e os dois de seu primo, decidiu que Erik comandaria a frota em um dos navios irlandeses e que Chefe capitanearia outra das naves de MacDonald, em que iria o rei. Como os seguidores deste eram a maioria das terras baixas da Escócia e tinham pouca experiência na navegação, Erik permitiu que os marinheiros irlandeses capitaneassem o resto de suas naves, e deixou Flecha MacGregor, o único membro da Guarda dos Highlanders presente, ao cargo do birlinn que ficava livre.
Menos de uma hora depois já estavam a caminho. Erik abria passo com os mercenários, navegando a pouca distância a diante para poder dar aviso em caso de que fosse necessário. Ao contrário da noite anterior, esta era boa para a navegação. O céu estava relativamente espaçoso para tratar-se das brumosas ilhas Ocidentais, e um vento constante os empurrava do norte. Seu destino, a ilha de Arran, ao nordeste de Spoon, na confluência da península de Kintyre com a costa de Ayrshire, encontrava-se apenas a uns sessenta quilômetros de Rathlin, mas seriam uns sessenta quilômetros cheios de tensão. Erik era consciente que o perigo se escondia atrás de cada onda. Uma coisa era burlar as patrulhas inglesas com um navio e outra muito diferente era fazê-lo com sete. Prestava especial atenção as cruzes de vias marítimas, consciente que às patrulhas inglesas gostavam de espreitar nos pontos em que se juntavam dois ou três corpos de água. Uma vez passado Rathlin, puseram rumo ao norte e ordenou que os navios pregassem as velas.
E foi uma decisão da mais afortunada. Estava seguro de ter visto o brilho de uma vela ao sul, onde o estreito de Rathlin se encontrava com o canal do Norte. Assim que margearam Rathlin, já não havia mais que mar aberto até chegar a Escócia. Mantinha os olhos bem abertos ante qualquer sinal, mas durante quilômetros não viu mais que a escuridão do céu e o trêmulo oscilar das resplandecentes ondas negras subindo e baixando. Quase diria que estava tudo muito tranquilo, havia muita calma depois do tumulto da passada noite. Pôs cerco a seus pensamentos antes que pudessem tomar forma. Ellie tinha entrado em sua cabeça muitas vezes, e tinha se proposto não pensar nela. Já o tinha distraído o bastante. Nesse momento todos contavam com ele para que os levasse até Arran a salvo, e desta vez nada se interporia em seu caminho. Nem sequer uma harpia intrometida e mandona de olhos matizados de verde, queixo teimoso e a pele mais suave que jamais havia tocado. Esquecê-la-ia, maldita seja. Esquecê-la-ia.
Quanto mais se aproximavam do promontório de Kintyre, mais suspeitas lhe davam seus pressentimentos. Apesar de não ter um sentido do perigo tão desenvolvido como o do vigia Campbell, cuja intuição punha os pelos arrepiados, sua vida dependia também de seus próprios instintos. A uma milha do promontório de Kintyre, ordenou baixar as velas e deu instruções ao resto dos capitães para que o esperassem. Ordenou a seus homens que remassem sem pronunciar palavra, mantendo todos os sentidos alerta ante qualquer movimento na escuridão. Quando alguns dos mercenários começaram a cochichar entre eles, Erik ameaçou cortando a língua do próximo homem que abrisse a boca. Devem ter acreditado porque o navio permaneceu em um silêncio espectral.
O birlinn avançava pouco a pouco na escuridão. Apesar da fria noite de inverno, o suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. O sangue palpitava no interior de suas veias à medida que examinava o horizonte que se estendia ante eles. Seus instintos estavam a flor da pele e clamavam por chamar sua atenção, mas não se via nada. Nenhuma só vela. Então seu olhar captou algo, uma sombra de estranhas formas na distância. Deu o sinal silencioso que ordenava parar a seus homens.
«Maldição.» Eram eles. As raposas estavam escondidas, com as velas recolhidas e a esperança de apanhar quantas moscas caíssem em sua teia. Táticas de pirataria. Não era, certamente, o momento mais apropriado para que os ingleses decidissem prestar atenção. Distinguiu não menos de seis escuras sombras, entre Spoon e a pequena ilha de Alisa Craig, que montavam guarda na boca do fiorde de Clyde, abortando com efetividade qualquer tentativa de aproximar-se de Arran. Erik deu a ordem de retirada com cuidado para evitar ser descoberto e voltou para onde estavam o resto das embarcações. Deteve-se junto ao birlinn de Chefe para informar ao rei e a seu capitão da armadilha que tinham estendido mais adiante. Bruce amaldiçoou e golpeou o punho contra a amurada como mostra de sua frustração.
—Mas como puderam saber?
—Não acredito que saibam — disse Chefe — Se soubessem que haveria um ataque, teriam bem mais de seis navios.
Erik concordou com ele. Boyd e Bruce se encontraram com barreiras similares ao retornar a Rathlin.
—Pois vá boa sorte que tiveram escolhendo precisamente esta noite — exclamou Erik.
—E vá má sorte a nossa — disse o rei — E eu dela já tive mais que suficiente. Tem que haver uma alternativa, pois é a única maneira de chegar a Arran. Podemos entrar um a um?
Erik negou com a cabeça. A noite era muito aberta; e o passo, muito estreito para evitar ser detectados.
—É muito arriscado. —«É a única maneira…» As palavras de Bruce lhe fizeram recordar algo. Mas claro! Em outras circunstâncias, Erik teria brilhado com seu famoso sorriso, mas o bom humor parecia havê-lo abandonado. Mais ou menos ao mesmo tempo que uma pequena babá — Mas me ocorre outra coisa —disse olhando a MacLeod — Podemos fazê-lo à maneira em que o faziam nossos ancestrais: descalços.
Bruce ficou perplexo.
—Por todos os demônios, do que está falando, Falcão?
Ao MacLeod brilharam os olhos e começou a esboçar um leve sorriso. Em uma estranha mudança de papéis, era Chefe que sorria como o demônio.
—Faz uma noite perfeita para se fazer de viking.
Sem dúvidas era. Navegar até Arran só seria possível pelo sul, passando o fiorde de Clyde, mas havia outra rota, um pouco menos convencional, uma rota para o norte que seus ancestrais tinham usado para evitar ter que navegar rodeando o longo braço de Kintyre. Erik, igual tinha feito duzentos anos atrás Magnus III da Noruega, o Descalço, conduziu ao exército pela zona ocidental do braço de Kintyre. Conduziram os navios eles mesmos pelo estreito passo de terra de Tarbert e assim conseguiram chegar a Arran do norte e sortear a armadilha que tinham estendido os ingleses. O melhor dos marinheiros de seu tempo levou a pé a frota até Arran. Mas tinham conseguido tomar posições. Em menos de vinte e quatro horas Bruce lançaria o ataque a seu ancestral assentamento do castelo de Turnberry, o que serviria como sinal de sua volta a Escócia e marcaria sua aposta final pelo trono.
Castelo de Ayr, Ayrshire
Depois da emoção da chegada e uma lacrimosa reunião junto a seu pai e seus irmãos maiores, John e Thomas, que o tinham acompanhado a Escócia, Ellie se desculpou dizendo que estava exausta e se retirou à solidão de seus aposentos.
Tinha conseguido prorrogar o interrogatório que a submeteria seu pai pelo que restava do dia, mas à manhã seguinte, depois de tomar o almoço, fizeram-na passar a sua câmara. Ali lhe aguardava uma surpresa.
Assim que abriu a porta, Matty voou para ela e se jogou em seus braços. Sua irmã chorava com tanta força que era impossível entender o que dizia, embora as palavras pouco importavam. O coração de Ellie se encheu ante aquela explosão de sentimentos tão sincera. Sabia que seus irmãos e irmãs a queriam, mas ver refletido de maneira tão aberta era algo que não deixava de comovê-la. Especialmente depois que sua própria espressão de amor tivesse topado com tamanha frieza por parte de Erik. Quando as lágrimas de Matty se acalmaram, esta se afastou um pouco de sua irmã para olhá-la com olhos chorosos e o rosto cheio de manchas. Ellie ficou surpreendida e franziu o cenho. Advertiu que algo em sua irmã tinha mudado: como se tivessem evaporado parte de sua exuberância e alegria de viver. Sua ausência a tinha afetado mais do que pensava. Matty piscou como se não pudesse acreditar que Ellie fosse real.
—Quando Ralph me disse que estava bem, não pude acreditar.
Ralph? Ellie alternou seu olhar de Matty a seu prometido, que tinha se postado no outro lado daquela pequena sala.
Seu pai a atravessou com um olhar acusador.
—Assim decidiu te apresentar aqui e vir comprová-lo?
Para surpresa de Ellie, desta vez Matty não ofereceu a seu pai nenhum de seus brilhantes infalíveis sorrisos. Em lugar disso, baixou a vista como se se envergonhasse.
—Sinto muito, papai. Tinha que vir.
Aquela resposta tão pouco característica de Matty incomodou tanto a seu pai como a Ellie. Esta se voltou para Ralph.
—Voltara até Dunluce para contar as notícias ao resto de minha família?
Este assentiu com cara de estar envergonhado.
—Sabia quão preocupados estavam.
A Ellie fez um nó na garganta ao precaver-se de quão injusta tinha sido com ele. Ela não era a única afetada pela aliança desse matrimônio. Tampouco devia ser fácil para ele casar-se com alguém após a morte da mulher que amava. Ralph de Monthermer era um homem bom, e Ellie prometeu a si mesma que corresponderia a sua bondade.
—Lhe agradeço — disse.
Parecia incomodá-lo sua gratidão. Ellie se precaveu que seu olhar posou em Matty justo antes de baixar a cabeça em sinal de reconhecimento. Tinha um mau pressentimento, mas seu pai começou o interrogatório antes que pudesse averiguar de onde provinha.
Ellie se manteve fiel à verdade como foi possível, incluído como tinha presenciado, por acaso, um encontro secreto entre aqueles homens na cova, dado que Randolph já tinha contado essa parte. Relatou-lhe que esses rufiões irlandeses não a tinham acreditado quando assegurou que não tinha ouvido nada do que disseram e que Falcão a tinha levado para que não a assassinassem. Explicou que tinha tomado seu sequestrador por um pirata, mas evitou qualquer menção às atividades que Falcão levava a cabo para Bruce.
—Tão somente me precavi da verdade quando chegou Eduardo Bruce —finalizou.
Seu pai perguntou mais coisas a respeito dos detalhes da chegada de Eduardo Bruce, mas ela não tinha nada que dizer a respeito. Parecia furioso pelo fato de que o irmão de seu cunhado não a tivesse reconhecido.
—E o tal Falcão alguma vez lhe disse seu nome? —perguntou seu pai.
Ellie quase desejava que não o tivesse feito.
—O único nome pelo que o chamavam era Falcão.
Aquilo era a verdade, embora finamente fiada.
—Isso mesmo disse Randolph — acrescentou Ralph.
—Alguma vez lhe falou de seus planos? —perguntou seu pai — O lugar ao que iria te devolver a casa? Se estavam planejando algo?
—Não — mentiu — O sinto.
Notou que seus olhos se alagavam de lágrimas. Mentir para seu pai era a coisa mais dura que jamais tinha feito. Mas tentava convencer-se de que não eram mais que pequenas mentiras em comparação com a ameaça que suportaria o homem ao qual tinha devotado seu coração. Seu pai interpretou aquelas lágrimas, em realidade provocadas pela culpa, como tristeza ante sua impossibilidade de ajudar. Rodeou-a torpemente com um braço e lhe deu um golpezinho no ombro.
—Não se preocupe, filha. Se seguir com vida, o encontraremos. —Seu rosto se endureceu — E quando o fizermos, encarregarei-me de lhe pôr uma soga ao pescoço com minhas próprias mãos.
O medo fez que seu pulso se acelerasse.
—Não! —gritou Ellie percebendo todo o peso dos cinco olhares e ruborizando-se por completo — Me salvou a vida. Não tinha mais opção que fazer o que fez. Não sabia quem era eu e, quando acabei confessando minha identidade, ficou furioso. Não tinha nenhum desejo de inimizar-se com você, papai.
Seu pai a olhou com atenção. Embora normalmente não fosse um homem muito perceptivo, Ellie se perguntou até onde teria chegado sua intuição.
—Isso pouco importará — concluiu — Se sobreviveu à tormenta, uma vez que o rei Eduardo o encontre, desejará não tê-lo feito. Nenhum dos seguidores de Bruce pode esperar piedade alguma.
O tom de voz de seu pai lhe chamou a atenção e, ao olhá-lo aos olhos, precaveu-se que algo o preocupava. Levantou-se de seu lado e caminhou até uma pequena janela da que se dominava o fiorde.
—Recebi uma carta do rei faz vários dias. Contava-me nela o que aconteceu com sua irmã.
A habitação ficou em um silêncio absoluto. O coração pulsava com força no peito de Ellie, que se preparava para as notícias de Isabel que tanto tinha esperado. Mas se a expressão de seu pai servia de indicativo, tratava-se de notícias que não desejava ouvir.
—Está na Noruega junto à irmã de Robert? —perguntou esperançosa.
Seu pai negou com a cabeça.
—Temo que não. Isabel, as irmãs de Bruce, sua filha e Bela MacDuff, a condessa de Buchan, foram capturadas faz meses no norte da Escócia quando tentavam escapar para a Noruega.
A habitação ficou em um silêncio espectral.
«Capturadas? Meu Deus.»
—Como? —perguntou Matty entre soluços.
O olhar de seu pai se endureceu.
—Da maneira mais pérfida e traiçoeira que possa imaginar. Foram traídos pelo conde de Ross depois que tomaram refúgio no santuário da ermida de São Duthus, em Tain.
—Ross violou o santuário? —perguntou Ralph horrorizado.
Seu pai assentiu. Aquilo era uma ofensa atroz aos olhos da Igreja.
—Mas seguem com vida? —perguntou Ellie em um tom esperançoso em sua voz.
Seu pai assentiu, mas era óbvio que aí não ficava a coisa.
—Mas por que não soubemos isto até agora? —perguntou Matty — Disse que ocorreu faz meses.
Ellie não recordava ter visto seu pai tão pesaroso.
—Suspeito que o rei não quis que soubesse e que só se decidiu me dizer isso uma vez que estava na Escócia, consciente que me inteiraria de todos os modos.
—Se inteiraria do que? —perguntou seu filho John.
Os olhos de seu pai se acenderam de cólera.
—Da maneira vil e desprezível em que foram tratadas. —Aferrou-se ao parapeito da janela de pedra até que lhe doeram as mãos — Eduardo ordenou que todas elas, até a filha de nove anos de Bruce, fossem encerradas em jaulas e suspensas no alto da torre de um castelo.
O grito afogado de Ellie esteve acompanhado pelos do resto. Seu horror era tal que nem sequer podia pronunciar uma palavra para expressar sua incredulidade.
—O rei ficou louco — disse Ralph — Suponho que terá retificado.
—Fez com Isabel, a filha pequena de Bruce, Marjorie, e sua irmã Cristina. Mas a condessa e sua outra irmã, Mary Bruce, não foram tão afortunadas. Estão penduradas em jaulas de madeira sobre Berwick e Roxburgh há meses.
O alívio que Ellie sentiu ao ver que sua irmã não estava sujeita a tanta crueldade se viu moderado ao tomar consciência que duas mulheres que conhecia não tinham tido a sorte de escapar da selvagem forma de repartir justiça de Eduardo. Ou talvez fosse melhor dizer de clamar vingança. Não lhe cabia dúvida de que Bela MacDuff era castigada de maneira tão cruel por tomar parte na coroação de Bruce.
—Não pode fazer nada? —perguntou Ellie.
Seu pai negou com a cabeça.
—Consegui persuadi-lo para que transfira Isabel da masmorra de Roxburgh a um feudo de Burstwick, mas não quer ouvir nenhum pedido de clemência em relação as outras. O rei está decidido a esmagar a rebelião e ver os traidores castigados da maneira mais horrenda possível. Ninguém está a salvo. Nem as mulheres, nem os meninos, ninguém.
Ellie sentiu um calafrio ao recordar as palavras de advertência de Erik. Não podia imaginar quão proféticas e próximas à verdade estariam.
«Minha querida Isabel.»
—O rei não aprendeu nada de Wallace — murmurou Ralph.
Estava certo. O rei Eduardo pensava que podia ganhar o respeito dos escoceses através do medo e da intimidação, sem mostrar piedade e assassinando de forma sanguinária, mas, ao comportar-se desse modo, tão somente tinha conseguido levantar o país em seu contrário.
O medo, maior inclusive do que havia sentido antes, gelou o sangue de Ellie. Não queria nem pensar no que Eduardo teria em mente para Robert e seus companheiros se os planos destes falhassem.
«Protejam-se.»
Uma chamada à porta interrompeu aquele silêncio de velório. Entrou o capitão da guarda de seu pai, seguido de um homem ao que ela somente tinha visto uma vez na corte fazia tempo, mas que conhecia muito bem por sua reputação: sir Aymer de Valence, o chefe das tropas do rei Eduardo na Escócia, que logo seria conde de Pembroke, quando morresse sua mãe, que se dizia estava muito doente.
Foi a traição de sir Aymer na batalha de Methven a que tinha parecido uma lança no coração da rebelião de Bruce, quando concordou em fazer uma trégua no combate até o amanhecer para logo atacar durante a noite. Seu pai e Ralph obviamente estavam surpreendidos com sua chegada. Sir Aymer não tinha tomado o tempo necessário para tirar o capacete nem o casaco, mas o fez então e os passou a um escudeiro que vinha atrás dele. Nem sequer deu tempo para que as damas se retirassem, mas sim sorriu como se trouxesse a melhor das notícias.
—Acabo de receber novas. Por fim teremos a oportunidade de acabar com isto de uma vez por todas. O Rei Capuz voltou. Bruce atacou Percy em Turnberry.
Sir Henry Percy tinha recebido o condado de Carrick e o castelo de Turnberry, usurpados de Bruce.
Ellie realizou uma prece de agradecimento. Se Bruce tinha atacado, tinha que ser porque Erik tinha chegado a tempo. Aquela onda de alívio durou pouco. Ao ouvir as notícias, necessitou o maior dos esforços para conter-se e não precipitar-se a perguntar pelo resultado da batalha.
—E? —perguntou Ralph por ela.
De Valence ficou circunspeto.
—Percy pediu reforços. Isso é tudo o que sabemos. Mas, segundo o relatório inicial, Bruce só contava com várias centenas de homens. Percy o apanhará.
O coração de Ellie, alagado de temor ante o perigo que sofria Erik, deu um violento tombo. Não podia mais que esperar que o afamado cavalheiro estivesse equivocado.
Erik permanecia escondido entre a escura coberta das árvores, contemplando a velha igreja e esperando um sinal. Esperava com toda sua alma que nada fosse mal nessa ocasião. Que não ocorresse como em Turnberry. A primeira incursão de Bruce na Escócia tinha sido um êxito, mas somente parcial. Ao princípio tudo foi conforme o planejado. Em tanto que Bruce e o resto das tropas esperavam em Arran a que se desse o sinal desde Kingcross, os quatro membros da Guarda dos Highlanders, MacLeod, MacGregor, Boyd e ele mesmo, tinham zarpado rumo a Alisa Craig, uma pequena ilha a poucas milhas da costa de Carrick. Dali nadaram até Turnberry para preparar a batalha e assegurar-se que não os esperava nenhuma armadilha. Esse era exatamente o tipo de missões para que a Guarda dos Highlanders tinha sido criada: entrar e sair sem ser vistos de situações perigosas por meio de métodos pouco convencionais, em especial aquelas que investiam um grande perigo.
Uma vez reconhecido o terreno e disposta a melhor estratégia de ataque, tinham que acender um fogo na colina que ficava no lado oposto do castelo, para dar o sinal de ataque ao resto das tropas de Bruce. Mas Erik mal tinha dado os primeiros passos para a praia quando aconteceu o desastre. Chefe amaldiçoou e assinalou para a colina em penumbras. Na escuridão da noite as chamas laranjas do fogo refulgiam como uma ameia ou, no presente caso, como um sinal. Alguém tinha aceso um maldito fogo, de modo que Bruce e seu exército se colocariam a caminho independentemente de que fosse seguro fazê-lo ou não.
Sem tempo para o reconhecimento do terreno, Bruce não teve ocasião de tomar o castelo como tinham planejado, mas atacar e saquear o acampamento de soldados ingleses do povoado próximo lhes reportou uma pequena vitória. Lorde Henry Percy, o usurpador do condado de Bruce e sua guarnição de ingleses, viram-se obrigados a encerrar-se no castelo para evitar a derrota à mãos dos quatrocentos homens de Bruce. «Os muito covardes.» Mas as tropas de Bruce tinham tido sorte. Muita sorte.
Erik não celebrou essa boa sorte, já que era um homem que não esperava menos de sua vida. A boa sorte já não lhe interessava. Ultimamente nada lhe saía bem. Tudo tinha começado nessa cova. Obrigou-se a afastar seus pensamentos da filha de Ulster — preferia pensar nela dessa forma —, e se concentrou na tarefa que lhe ocupava.
A semana seguinte a Turnberry, Bruce e seus homens se esconderam entre os urzes, procurando refúgio nas colinas e bosques de Carrick, evitando ser capturados por meio da constante mudança de posições. Sua intenção era elevar-se e perseguir os ingleses com pequenos grupos de batalha até que pudessem recrutar a mais homens para a causa de Bruce. Mas aquilo não estava funcionando segundo o previsto. Poucos homens tinham se unido desde Turnberry. Os escoceses necessitavam algo mais que uma pequena vitória moral para arriscar-se a provocar a ira de Eduardo. E deTurnberry tinham tentado conseguir notícias da ponta de ataque sul em Galloway conduzida pelos dois irmãos de Bruce, mas suas constantes mudanças de posição faziam que inclusive seus amigos tivessem muitas dificuldades para encontrá-los. Não obstante, a ajuda de um sacerdote afim estava a ponto de acabar com aquilo.
Nesta ocasião, o sinal não era uma fogueira a não ser o ulular de um mocho. Para ouvi-lo, Erik saiu dentre as penumbras e caminhou com cautela pela ladeira da colina até o vale que havia mais abaixo, onde se erguia a antiga igreja. Não era mais que uma planta de doze metros quadrados com um telhado, mas era utilizada como lugar de culto local há séculos.
Por trás de uma cruz de pedra de aparência ancestral saiu uma silhueta conhecida. Um homem que Erik não via há um ano, quando, depois de fracassar na prova final para converter-se em membro da Guarda dos Highlanders, abandonou a ilha de Skye. Mas a verdade era muito mais complicada que isso.
Erik se adiantou e sentiu desejo de sorrir pela primeira vez em semanas. Estendeu-lhe a mão e ambos fundiram seus antebraços agarrando-se com força.
—Me alegro de lhe ver, Vigia —disse Erik usando o nome de guerra que Bruce lhe tinha dado — Passou muito tempo. Espero que tenha praticado sua habilidade para interceptar lanças desde a última vez que nos vimos.
Arthur Campbell soltou uma gargalhada ante a referência à prova em que tinha «fracassado». Desde aquele suposto fracasso, Erik teve ocasião de inteirar-se de que tudo tinha sido parte de uma artimanha para situar Campbell em campo inimigo. Era Chefe o único que tinha conhecimento daquilo. Os outros membros da guarda se enfureceram muito ao saber que tudo era um engano, já que tinham pensado que o que antes foi seu amigo os tinha traído. Aquilo não voltaria a ocorrer. Chefe tinha tomado medidas necessárias para isso.
Foi graças a Campbell que obtiveram a maior parte da informação secreta dos últimos meses
—Que lhe dê, MacSorl…
—Falcão — interrompeu Erik subitamente.
Campbell assentiu ao compreender ao que se referia. Partiu antes que se decidisse usar nome de guerra.
—A mesma porcaria com diferente nome — disse Campbell com um sorriso de brincadeira. O afamado rastreador olhou a seu redor, assegurando-se que não havia ninguém mais — Venha — disse — Tenho alguém que está desejando lhe ver.
—O que há das notícias…
—Ele mesmo dirá — disse isso Campbell em tom sério.
Erik o seguiu pelo vergel em direção à igreja, advertindo a fina cota de malha e o tabardo que levava Campbell sob seu casaco negro.
—Ouvi que Eduardo lhe nomeou cavalheiro depois de Methven. Não posso negar que têm toda a pinta de um.
Mas sob toda essa armadura, Campbell levava o mesmo leão rampante que todos eles.
—Pode se dar um montão de desinformação, embora tampouco serve de muito —disse Campbell fazendo uma careta.
—Fez o que esteve em sua mão. Estou seguro de que não foi fácil.
Campbell abriu a porta após emitir um som agudo que pretendia sugerir que mesmo assim ficava muito curto. Uma vez no interior, ao Erik deu a sensação de entrar em uma cripta. Fazia frio e imperava um silêncio absoluto. Um aroma de umidade e uma incomum quietude impregnavam a atmosfera, como se não tivessem aberto a porta durante muito tempo. Ao fundo havia um pequeno altar sobre uma plataforma alta; e abaixo dele, uma fileira de velhos assentos de madeira. À direita, uma tumba, provavelmente o destino final de descanso de um dos primeiros sacerdotes que ali habitaram. Atrás dela, momentos depois de que a porta se fechasse, emergiu uma sombra. Através da solitária janela se filtrava um só raio de lua, e ao Erik custou um tempo acostumar-se à escassa luz. O homem se desprendeu do capuz e Erik não teve mais remédio que amaldiçoar: tratava-se de Lachlan MacRuairi, Víbora, seu primo e também membro da Guarda dos Highlanders.
Erik avançou para ele e lhe deu um abraço, sabendo que aquilo o incomodaria, ou talvez precisamente por isso. Embora Lachlan MacRuairi fosse um bode de sangue muito frio, sigiloso e mortífero, como a serpente a qual devia seu nome de guerra, isso não evitava que se alegrasse muito de vê-lo.
—O que está fazendo aqui? —perguntou Erik — Pensávamos que estaria honrando a corte da Noruega com essa sua disposição à alegria.
Assim que a cara de MacRuairi saiu da penumbra, Erik soube que algo ia mau. Aqueles olhos que normalmente não mostravam expressão alguma tinham um aspecto próximo à loucura e ao pânico. O brilho de humor que tinha experimentado Erik se esfumou de repente.
—Onde está a rainha? —disse.
Quando se viram obrigados a separar-se depois da batalha de Dal Righ, seu primo ficou a cargo de velar pela rainha, as irmãs de Bruce, sua filha pequena e a condessa de Buchan. Nos olhos de MacRuairi se apreciou o brilho de um olhar funesto. Erik soube o que estava a ponto de dizer inclusive antes de ouvi-lo.
—Capturada. O conde de Ross nos traiu antes que pudéssemos nos pôr a salvo na Noruega.
Seu primo fez um rápido repasse à série de acontecimentos que levaram a captura das damas e a posterior violação do santuário de Ross. MacRuairi tinha se salvado de correr a mesma sorte por algum jogo de palavras do destino que se negou a explicar. Mas os outros dois membros da guarda que estavam no mesmo grupo, Templário, William Gordon; e Santo, Magnus MacKay, não tinham tido a mesma sorte. Após, MacRuairi não tinha cessado em seu empenho por liberá-los. Gordon e Mackay estavam em uma masmorra no castelo de Urquhart sob a vigilância de Alexander Comyn. A única razão para que não os executassem imediatamente era que os tinham tomado por guardas ordinários. Mas as mulheres… Erik sentiu náuseas quando ouviu o que tinha sido delas.
Uma jaula? Por todos os Santos. Bruce estaria consumido pela tristeza. Seus pensamentos se dirigiram a Ellie, e desta vez permitiu que se detivessem nela por um momento. Fazia o correto. Era preciso afastá-la o quanto pudesse de toda essa loucura.
—Temos que fazer algo — disse MacRuairi.
Ao fim Erik pôde localizar a fonte desse olhar de histerismo. Estava desesperado por liberar a seus amigos e companheiros.
—Te levarei junto ao rei.
—Temo que há mais má notícias — disse Campbell. Erik se preparou para o pior, mas não foi suficiente — O ataque do sul fracassou. Foram traídos. Os MacDowell estavam a par de sua chegada e acabaram virtualmente com toda a frota. Só sobreviveram uns poucos homens.
Uns poucos, de quase setecentos homens e dezoito galeões?
Uma brecha de desesperança atravessou o peito de Erik.
—E os irmãos do rei? —perguntou sem emoção alguma.
Campbell negou com a cabeça mostrando sua tristeza.
—Decapitados faz uns dias em Carlisle.
Três dos irmãos de Bruce tinham sido executados no mesmo número de meses. Acaso aquilo não acabaria alguma vez? A pequena mostra de esperança que tinha tido depois do ataque de Turnberry tinha sido cruelmente aniquilado. Esmagado por aquele que se denominava a si mesmo o Martelo dos Escoceses.
—Caçador e Assalto?
—Não sei — disse Campbell. De repente seus sentidos se aguçaram e ficou com esse olhar vazio que resultava tão inquietante.
—O que acontece?
—Não estou seguro. — Campbell foi para a janela para inspecionar — Cavalos —disse.
—Eles o seguiram? —perguntou Erik.
Campbell lhe dirigiu um olhar cáustico para lhe deixar claro que essa pergunta estava de mais.
—Será melhor que saiam daqui. Eu me ocuparei de tudo. — Erik se dispôs a discutir, mas então Campbell acrescentou —: Não pode me ver com vocês.
Erik assentiu. Estava certo. O subterfúgio de Campbell tinha que ser protegido.
Pouco depois, Erik e seu primo escapuliam da igreja e desapareciam entre as sombras.
Capítulo 22
Dia de São Gunioc,
13 de abril de 1307
Ellie olhava pela janela da torre do castelo de Ayr, à espera de um navio que nunca chegaria. Daquela posição privilegiada, o ensolarado dia da primavera oferecia uma vista perfeita dos resplandecentes mares azuis do fiorde de Clyde. A ilha de Arran se avistava na lonjura e mais à frente uma mancha minúscula no horizonte sobre a que ela se empenhava em desenhar os rochosos escarpados de Spoon. Sentiu de novo aquela pontada no peito, uma nostalgia que tinha tido já quase dois meses para desvanecer-se. Já era hora de que aceitasse a verdade. Se tivesse querido ir procurá-la, o teria feito.
Quando teve conhecimento da vitória de Bruce em Turnberry, embargou-a uma pequena parte de ingênua e insensata esperança: a esperança que ele sofria tanto como ela. A esperança que o tempo e a distância fizesse que ele desse conta que entre eles havia algo especial. A esperança que decidisse subitamente que a amava tanto como ela a ele. Mas à medida que passavam as semanas em um longo e doloroso silêncio, Ellie tinha que confrontar a realidade. Ele já sabia onde encontrá-la porque Domnall o haveria dito, e graças às regulares missivas que sir Aymer fazia a seu pai, também ela sabia que Bruce se encontrava nos arredores, acossando e derrubando as rotas de aprovisionamento dos ingleses das montanhas de Galloway.
Era hora de que aceitasse a verdade. Erik não faria nenhuma grande aparição. Não mandaria notícias nem iria procurá-la. Não deteria suas bodas com Ralph. Tudo tinha acabado e o mais provável era que não voltasse a vê-lo.
Aquela familiar queimação alcançou de novo seu peito. Mas, a pesar da dor, não era capaz de arrepender-se. No pouco tempo que tinham passado juntos, Erik lhe tinha ensinado a respirar de novo. Depois dos momentos de aventuras e emoções passadas em Spoon, prometeu a si mesma não voltar a cair na aborrecida existência a que tinha ficado relegada com antecedência.
Voltou as costas à janela da torre e começou a descer a escada com o coração esmigalhado por uma resolução. Não derramaria mais lágrimas por um homem que provavelmente se esqueceu por completo dela. Tinha que continuar com sua vida e deixar de velar por um sonho que jamais foi realizável. Matty voltaria para Dunluce no final da semana e Ellie tinha decidido partir com ela. Já tinha atrasado os preparativos das bodas durante tempo suficiente. Junho se aproximava a toda pressa e não ficava espaço para as indecisões.
Apesar do desconforto que lhe provocava Ralph tinha desaparecido, Ellie não podia evitar o pressentimento de que algo ia mal entre eles. Embora tampouco podia encontrar motivo algum para não casar-se com ele. Desde sua volta tinha feito um esforço por conhecê-lo melhor, e a recompensa disto foi precaver-se de que em realidade lhe caía bem. Claro está que ganhou sua gratidão eterna quando atendeu ao pedido de clemência para os homens de Erik, salvando suas vidas e transferindo-os dessa horrível masmorra a um edifício seguro do povoado. Talvez não lhe surpreendesse muito quando duas noites depois uma estranha explosão abria um buraco no muro de pedras do edifício e os homens conseguiam escapar. Sabia quem se encarregou disso.
Tinha estado tão perto dela…
Ellie cruzou o grande salão até a câmara contigua com a intenção de transmitir a seu pai seu desejo de retornar a Irlanda, mas o ruído das vozes a deteve. Sir Aymer estava ali de novo e, apesar da promessa feita de deixar atrás Erik e seu passado, lhe alterou o pulso. Estava claro que o oficial inglês traria notícias frescas dos rebeldes. Embora a porta estivesse fechada, Matty e ela tinham descoberto que, quando se sentavam frente à lareira para fazer suas tarefas de bordado, podiam ouvir a maioria da conversação através da fina parede que dividia as estadias. Era consciente de que fazer isso resultava vergonhoso, mas fazia já semanas que sua ânsia de saber o que passava tinham superado o sentimento de culpa por escutar às escondidas.
A voz de sir Aymer soava mais alta inclusive que outros dias e sua evidente excitação fez que a Ellie o coração desse um tombo. Ouviu falar com Ralph e depois a exaltada resposta de sir Aymer.
—Estou seguro de que esta vez os temos. Vi sua toca com meus próprios olhos.
A Ellie o mundo veio em cima. Não podia ser! Teve que obrigar-se a recuperar a calma. Tinha ouvido sir Aymer dizer o mesmo muitas vezes, mas Bruce sempre arrumava para escapar. Certamente seu pai deve ter pensado o mesmo.
—Como pode estar seguro que não se moverá antes que suas tropas se posicionem? —perguntou — Bruce não fica nunca muito tempo no mesmo lugar.
—Estão preparando um banquete. Ao que parece, é o aniversário de um de seus homens e vão trazer algumas moças do povoado e um barril de cerveja. Não irão a nenhum lugar nesta noite.
«Mulheres.» Deu-lhe uma pontada no coração. Não só pelo medo, mas sim por algo mais. Conhecia Erik muito bem.
Mas sir Aymer estava certo: se preparavam para dar um banquete, não era provável que tivessem intenção de partir. Seria esta finalmente a ocasião em que os ingleses capturariam ao fugidio Rei Capuz?
—Como os encontrou? —perguntou seu pai.
O poderoso inglês falou com o orgulho de um moço que pescou seu primeiro peixe.
—Um de meus homens ficou ciumento ao precaver-se de que uma moça da cervejaria do povo que gostava ia e vinha a horas inoportunas. Ontem à noite decidiu segui-la e quase deu de bruços com o acampamento. Tinha que ter pensado nisso antes. Segue às mulheres e lhe levarão aos homens.
—Por que não atacaram imediatamente? —perguntou Ralph.
—Estão acampados em um vale entre duas montanhas rochosas — respondeu sir Aymer.
—E não pode passar com seus cavalos — acrescentou Ralph para finalizar sua frase.
—Sim, de modo que nos esconderemos no bosque próximo e cairemos sobre eles sem prévio aviso. Que seus homens se reúnam conosco no bosque que há perto do lago na garganta de Glen Trool. Atacaremos ao amanhecer junto aos highlanders de MacDougall que vêm pelo norte, os homens de MacDowell do sul e as tropas adicionais inglesas do rei. Os esmagaremos de uma vez por todas. —Ellie ouviu um punho que golpeava sobre a madeira — Mas quero me assegurar por completo que desta vez não escapará. —ficou em silêncio um momento — Têm alguma faxineira leal a seu serviço?
Aquela era uma estranha pergunta. O comum era que os exércitos vencedores usassem aos locais como servos, e os ingleses não supunham uma exceção. Havia poucos serventes pessoais que entrassem em combate e os que o faziam sempre eram homens.
—Não — começou a dizer seu pai, e logo se deteve, ao precaver-se ao mesmo tempo que Ellie da razão pela que ia a eles: Ellie e Matty — Sim, minha filha Matty trouxe uma ajudante de câmara com ela. É de confiança. O que planeja?
Ellie quase pôde ouvir o sorriso de sir Aymer.
—Haverá uma mulher a mais no banquete desta noite.
—Uma espiã? —perguntou Ralph.
—Sim, para descobrir quantos são e com que armas contam. Apesar dos rumores, Bruce não tem nenhum exército de fantasmas. Quero saber quem são seus homens. Com os problemas que me causaram tenho em mente algo especial para eles.
Um frio estremecimento percorreu as costas de Ellie. Não era a primeira vez que ouvia falar do exército fantasma de Bruce, e algumas das histórias a respeito desses misteriosos guerreiros de força e habilidade sobre-humana de tinturas horripilantes lhe resultavam familiares.
—Alice é uma garota respeitável e não uma puta — disse seu pai sem ocultar seu desgosto.
—É obvio que não — respondeu sir Aymer arrependido — Não se esperará dela mais que ajudar com a comida e a cerveja. Assegurar-me-ei que essa mulher seja muito bem recompensada pelos problemas que lhe causem. —Certamente seu pai não as tinha todas consigo — Não correrá perigo algum — assegurou sir Aymer — Meus homens a escoltarão até os limites do acampamento quando o banquete estiver em seu apogeu. Pode dizer que se perdeu do resto do grupo. Nesse momento já estarão muito bêbados para discutir.
—Pensou em tudo — disse seu pai secamente.
Ellie se afastou dali como em transe e com o coração pulsando a toda pressa, enquanto tentava dar sentido tudo aquilo que tinha ouvido.
Uma coisa estava clara: os ingleses tinham preparado uma armadilha para Bruce, e se ninguém os avisasse, estaria em grave perigo. Correu escada acima para a pequena câmara que compartilhava com sua irmã, sem saber ainda o que faria, mas consciente de que tinha que fazer algo. Não podia permitir que o matassem. Não, quando estava em sua mão ajudá-lo. Embora ele não a correspondesse, ela seguia amando-o.
Além disso, lhe devia. Assim que descobriu sua identidade, tinha que ter contado quem era ela. Não podia arrepender-se de ter feito amor com ele, mas sim que a inquietavam as dificuldades que poderia lhe ter causado com isso. Deu-se conta muito tarde que suas ações seriam vistas como um ato de deslealdade para o rei. E compreendia quão importante para ele era isso por quanto tinha descoberto de seu passado. Talvez fosse o momento de reparar seu engano. Mas o que poderia fazer?
Arrastada por um impulso frenético, abriu a porta de repente e se surpreendeu ao encontrar com sua irmã olhando pela janela em uma atitude muito parecida com a que ela tinha tido antes. Havia algo triste e desamparado na queda desses ombros. Matty se voltou ao ouvi-la e sorriu, mas não lhe brilharam os olhos ao fazê-lo. Ellie estava tão ensimesmada em seu próprio desamor que não se precaveu que Matty tinha estado ausente ultimamente. Prometeu-se que averiguaria o que acontecia a sua irmã, mas antes teria que encontrar a maneira de advertir Erik.
Começava a conceber as primeiras linhas de um plano, um plano arriscado, ao tempo que infestado de perigos.
Matty foi a seu encontro.
—O que acontece?
Ellie percebeu o olhar de preocupação de sua irmã e sentiu que caía sobre ela o peso dos dois meses passados. Não queria que sua irmã tivesse que carregar com seus segredos, mas sabia que, se decidia a fazê-lo, teria que contar com sua ajuda. Respirou profundamente.
—Necessito que me ajude.
Erik MacSorley, homem conhecido por mostrar-se sempre alegre, estava agora de um humor de cães perpétuo. Nem sequer a preciosa moça que tinha sobre seu colo e fazia tudo o que podia para animá-lo podia curar aquilo do que padecia. Tinham-lhe arruinado a vida. Enfeitiçado por uma menina de sedoso cabelo escuro e deslumbrantes olhos castanhos, matizados de verde, que lhe perseguia de dia como de noite, como cada um dos condenados minutos que tinha vivido com ela. Não a tinha esquecido, mas sim suas lembranças estavam mais vivas que nunca e se contrapunham a tudo o vivido antes e depois, criando um marcado contraste que fazia que todas as demais pessoas parecessem ordinárias comparadas com ela. A ironia da primeira impressão que lhe tinha causado era que tinha permanecido sempre aí.
Ela era diferente, agora se dava conta. Era especial. Embora dar-se conta não mudava nada. Ela não era dele e jamais seria. Nos momentos em que se encontrava com o ânimo mais baixo se torturava perguntando-se se já teria se casado com aquele maldito inglês.
A moça notou que seus músculos ficavam em tensão e brincou com o bem que vira relaxar-se. Roçava-lhe o pescoço com a ponta do nariz e ria enquanto fazia propostas ao ouvido, mas ele não sentia mais que uma incerta moléstia. Estava cansado de sorrir e agradecer como um parvo ante as moças que o olhavam como se tudo ele o fizesse bem. Queria uma mulher que discutisse com ele, que o desafiasse e se preocupasse o suficiente para escavar sob a superfície, que estivesse disposta a dar tanto como ela esperava receber.
«Te amo.»
Repetia essas palavras em sua mente uma e outra vez. Via o rosto dela sob a luz da lua e não podia evitar a sensação de que tinha cometido um engano, de que aquilo que Ellie lhe oferecia era especial e que ele tinha estado muito cego para vê-lo, que talvez essas palavras tantas vezes ouvidas significassem algo diferente se provinham de seus lábios. Mas não era certo que lhe tinha devotado matrimônio? Era ela que o tinha rechaçado. E como teria podido aceitá-lo? Se não tinha nada que lhe oferecer.
Apertou o pesado cálice de latão entre seus dedos até que fincou as bordas da gravura em forma de flor de lis que tinha como relevo. Que diabos lhe estava passando? Zangado consigo mesmo, tentou relaxar e motivou um tanto à moça. Mas aquelas provocações e sedução lhe pareciam forçadas e logo se cansou das brincadeiras. Sentiu certo alívio quando a moça, ainda sobre seus joelhos, voltou-se para falar com a mulher que se aproximou para lhe encher a jarra de cerveja.
Erik deu um longo gole e olhou a buliçosa multidão de homens meio bêbados concentrados ao redor da tenda iluminada por tochas. Embora não compartilhasse com eles a farra, não os culpava por divertir-se. As oportunidades para a celebração tinham brilhado por sua ausência ultimamente, e os homens necessitavam algo que lhes levantassem a moral. Era a primeira vez que via Bruce sorrir desde que chegou a fatídica notícia da decapitação de seus irmãos e a captura de suas mulheres. Pouco espaço houve entre meio para as boas notícias. Caçador e Assalto estiveram entre os poucos que conseguiram escapar da falida segunda ponta de ataque de Galloway. Em uma missão de dois dias no norte, os membros restantes da Guarda dos Highlanders, entre os que se incluía Dragão, Alex Seton, que deu com eles pouco depois de Turnberry, conseguiram entrar no insuficientemente defendido castelo de Urquhart e resgatar o Santo, Magnus MacKay, e Templário, William Gordon, depois de meses de cativeiro. Uma semana depois daquilo com a ajuda dos pós mágicos de Gordon, liberaram Domnall e ao resto dos homens de Erik em Ayr.
Mas esses êxitos tinham que ficar na balança junto aos duros custos que cobrou a guerra: os três irmãos de Bruce, Christopher Seton, o conde de Atholl, a família cativa, e muitos outros. Até então a volta a terras escocesas não tinha reportado ao Bruce mais que umas centenas de acres de umas montanhas esquecidas de Deus em Galloway. Faziam poucos avanços contra os ingleses desde a batalha de Turnberry. Os assaltos e pequenos ataques às rotas de provisões não bastavam para recrutar mais homens para a causa do rei. Andavam com a água ao pescoço, mantendo a cabeça o suficiente alta para não afogar-se. E ao final se cansariam. Necessitavam algo decisivo para atrair a mais combatentes para unir-se a sua luta. Mas desta vez o rei se mostrava paciente e rechaçava enfrentar os ingleses a não ser que fosse segundo seus próprios termos. Erik esperava que as condições se dessem logo. Qualquer vantagem conseguida pelo impulso de Turnberry se dissolveria com rapidez entre o barro e a imundície da vida de perseguidos.
Mas essa noite quase haviam tornado a sentir-se homens civilizados. Depois de meses vivendo virtualmente na miséria resultava agradável sentar-se a uma mesa de novo. Ao contrário dos nobres ingleses, que viajavam com carros cheios de comodidades domésticas, Bruce precisava viajar leve de bagagem para transladar-se no mínimo tempo possível. Entretanto, para a festa dessa noite, uma das familiares do rei, Cristina de Carrick, tinha arrumado tudo para que instalassem uma tenda e levassem mesas e bancos até seu aquartelamento provisório na montanha próxima a Glen Trool.
Como convidado de honra, Erik estava sentado no centro da mesa, a uns assentos de distância do rei, seu irmão Eduardo, James Douglas, Neil Campbell, MacRuairi, MacGregor e MacLeod. Pela extremidade do olho advertiu que seu primo discutia de novo com o rei. Se havia alguém cujo mau humor podia rivalizar com o de Erik esses dias era MacRuairi. Não precisava ouvi-los para saber a respeito do que discutiam. O rei tinha rechaçado aceitar os repetidos pedidos de MacRuairi para salvar às damas de seu cativeiro. Necessitava-os com vida, dizia o rei. Tentar resgatar às damas ferreamente custodiadas das fortalezas inglesas teria sido uma missão suicida nesse momento. Não podia arriscar-se a perdê-los, não quando sua situação era tão precária. Assim que conseguisse afiançar seu assentamento, ele mesmo se encarregaria de liderar a Guarda dos Highlanders. Mas a MacRuairi não satisfazia razão alguma. Parecia que estava possuído em sua determinação por liberar as damas, especialmente as que estavam penduradas em jaulas.
—Não parece desfrutar de seu presente — disse MacLeod, do seu assento à esquerda de Erik, com toda a intenção.
Erik desafiou o olhar de certeza dos olhos de seu chefe deslizando uma mão sob o redondo traseiro da moça.
—Não, estou desfrutando do lindo.
Tentou não sair correndo quando a moça começou a rir e a rebolar mais sobre suas pernas, roçando com sua mão divertidamente. Mas por sorte estava muito entretida em desfrutar de sua cerveja e no bonito rosto de MacGregor a sua direita para continuar com seus cuidados. O mais deprimente era que não sentia surgir nem a mais leve faísca de fogo competitivo em seu interior. Quase desejava que o afamado arqueiro a tirasse das mãos ou, melhor dizendo, das pernas.
—Foi ideia do rei — disse McLeod olhando-o por cima do cálice que sorvia — Acredito que é sua maneira de lhe pedir desculpas.
—Não tem do que desculpar-se — disse Erik — ofendi sua honra e pus as coisas mais difíceis se couber entre seu sogro e ele. Não me deu menos do que merecia.
—Ulster não parece havê-lo tomado como algo pessoal — disse MacLeod — Quanto à honra do rei — acrescentou encolhendo-se de ombros —, acredito que se arrepende de algumas coisas que disse.
—Me teria pendurado pelos ovos se tivesse podido.
O Chefe da Guarda dos Highlanders não discutiu.
—Certamente está certo. Mas é muito valioso e ele sabe. Além disso, necessita a cada um de seus homens neste momento. — MacLeod o olhou aos olhos — Acredito que a deserção de Randolph o afetou muito. Mais do que reconhece.
Erik concordava com ele. Tinha afetado a todos. Domnall lhes contou todos os detalhes, mas em resumo tinha ocorrido como ele suspeitava. Oportunismo, sem dúvida, mas nem por isso supunha uma traição menor. Tomava como um fracasso pessoal. Randolph estava sob suas ordens. Pensava que tinha conseguido influir favoravelmente o menino. Ao que parecia, não tinha sido assim.
—Em qualquer caso — disse MacLeod —, agora que sua ira se aplacou, acredito que o rei pensa que não é o único culpado do que ocorreu. Você não sabia quem era ela. Acredito que está mais zangado com seu irmão por não reconhecer à moça. — Esboçou uma careta que era meio sorriso — Além disso, o rei tampouco esqueceu o que se sente quando a gente está apaixonado.
Desentendeu-se por completo da moça que estava sobre seus joelhos e a ponto esteve de atirá-la ao chão quando se voltou para o homem que tinha a seu lado. Fulminou-o com o olhar.
—Apaixonar-se? — disse soltando uma gargalhada — Pelos pregos de Cristo, eu não estou apaixonado.
O feroz guerreiro o olhou desafiante.
—Então há alguma outra razão para o mau humor destes dois últimos meses?
Ao Erik lhe trocou a cara.
—Quer dizer além de viver nestas montanhas esquecidas de Deus, açoitado por uma matilha de cães ingleses? É obvio que a valorizo, mas jamais na vida me ataria a uma só moça. —Tentou estremecer-se ante a ideia com toda sua vontade, ao tempo que queria evitar que isso era algo que normalmente vinha de maneira natural — Não quando a gente pode passá-lo tão bem ainda.
—Já vejo — disse Chefe com sarcasmo olhando para a escultural mulher que tinha Erik sobre seu colo — Se vê que está desfrutando como nunca.
Erik se descobriu furioso e não sabia se era pelo sarcasmo de MacLeod ou por sua maldita incapacidade para ignorá-lo. Normalmente impassível, no que concernia a Ellie se tornou quase —e desta vez sim se estremeceu— sensível.
—Não importa — disse em uma tentativa de manter o controle da conversação — O rei crendo não, eu lhe propus matrimônio. — Olhou a seu amigo aos olhos — A moça rechaçou.
—Já era hora — murmurou MacLeod.
Erik o olhou com irritação.
—O que disse?
MacLeod se encolheu de ombros.
—Nada, que eu gostaria de conhecê-la.
Erik desejou que ela estivesse longe dali, de volta na Irlanda, ou na Inglaterra, pensou tragando saliva amargamente. Apertou os dentes para aplacar o instintivo arrebatamento de ira, bebeu da jarra de um gole e gritou para que lhe trouxessem outra.
Que diabos! Tratava-se do dia de seu aniversário e pensava desfrutá-lo. Trinta anos, pensou com irritação. E tudo tinha ido perfeitamente durante vinte e nove e três quartos deles. No ano anterior teria compartilhado o folguedo com o resto, teria desfrutado provocando e seduzindo à moça que tinha sobre seu colo, e teria desejado com loucura a longa noite de prazer que estava por chegar. A moça possivelmente percebeu que ele voltava a prestar-lhe atenção, porque tentou seduzi-lo de novo. Beijou-o de maneira mais atrevida desta vez, resolvida já a encarregar-se com suas próprias mãos daquele assunto, como quem diz. Erik sentiu que sua mão caía sobre o insensível vulto que tinha entre as pernas. «OH, mas se é grande por toda parte», disse entre risadas.
Nem sequer pôde encontrar um comentário jocoso a respeito. Tentava desfrutar daquilo. Tentava concentrar-se em suas mãos peritas, mas tão somente lhe dava a desagradável sensação de ter larvas passeando por sua pele. Ellie o tinha arruinado por completo. Fazia dele um maldito eunuco.
Estava a ponto de mandar à moça que fizesse algum encargo desnecessário, como trazer mais cerveja, uísque ou o que Deus quisesse que pudesse ocorrer-se quando ouviu uma comoção perto da entrada da tenda.
Tratava-se de Boyd. Seton e ele tinham recebido o desafortunado encargo de montar guarda essa noite. E, ao que parecia, tinha sido boa ideia. O homem mais forte da Escócia agarrava a um intruso pela cintura e puxava dele com certa dificuldade. Tratava-se de uma mulher, como pôde deduzir Erik pelas delicadas sapatilhas que apareciam sob sua capa. Esta deu um chute ao enorme guerreiro em sua canela e tentou fugir dele.
—Se afaste de mim, besta sobre-humana! —Erik ficou feito uma pedra. Seu coração, seu sangue, todos seus órgãos paralisaram de repente — Robert! —disse com essa voz autoritária e mandona que Erik tão bem conhecia — Espero seriamente que esta não seja a forma em que trata às pessoas que tentam lhe ajudar.
Erik não queria acreditar, mas no minuto seus piores temores se viram confirmados. Ellie jogou o capuz para trás, empurrou a um assombrado Boyd e subiu à mesa de um salto.
—Lady Elyne! —exclamou o rei, igualmente surpreso.
Mas Erik mal pôde ouvi-lo. Uma bruma de fúria vermelha desceu sobre ele e o cegou até o ponto que não podia ver mais além do perigo ao que ela se expos. A moça parecia ter uma inclinação exasperante para pôr os pés no lugar e momento errados.
Blasfemou. E o fez em voz alta.
Ellie o olhou, e Erik advertiu nesse primeiro olhar surpresa e depois dor.
—Que diabos está fazendo aqui?
Não foi até o momento em que o disse que recordou à mulher que tinha sobre seu colo.
Capítulo 23
Ironias da vida. O homem com o que tinha estado sonhando durante semanas, meses e nem sequer o reconheceu. Ellie fazia já uma rápida revisão do terreno quando aquele musculoso bruto a empurrou para o interior da tenda. Precaveu-se no momento da voluptuosa loira nos braços do aterrador guerreiro, mas não se incomodou de olhar com atenção. Não havia nada nele que lhe resultasse familiar. Certo era que com a mulher que tinha em cima não podia vê-lo muito bem, mas havia algo diferente na maneira em que se sentava. Já não mostrava essa atitude de homem completamente depravado e a gosto, mas sim lhe via indiferente a tudo e de mau humor, o qual provocava pavor e parecia advertir com isso que ninguém se aproximasse muito.
Não foi até que ouviu sua voz e se voltou para encontrar-se com esse olhar arrebatador de olhos azuis que tão bem conhecia que seu coração deu uma violenta sacudida. Estava a salvo. Vivo. Observou-o com atenção, precavendo-se que as mudanças foram muito além da postura. Vestia de modo diferente, com uma cota de malha de guerra negra e uma manta de cor escura. Levava o cabelo longo e descuidado e não se barbeava fazia ao menos uma semana. Seu rosto, mais esquálido, tinha um aspecto enxuto e esfomeado que casava perfeitamente com esses olhos azuis polares com olhar de poucos amigos e o gesto torcido de sua boca. Em lugar do pirata descarado com o brilho endiabrado nos olhos, tinha ante si ao homem de aspecto mais aterrador de uma tenda cheia de guerreiros curtidos na batalha.
O alívio de vê-lo são e salvo logo se converteu em dor. Uma pontada no coração. A mulher estava beijando-o. Comia-lhe o pescoço a beijos e tocava os duros músculos de seus largos ombros, músculos e ombros que Ellie conhecia muito bem e pensava bobamente que lhe pertenciam. E o que esperava? O que penasse por ela? Talvez um pouco… Nem sequer pôde consolá-la o fato de ver como a mulher, claramente esquecida, caía jogada ao chão.
Ellie, que acreditava que todos naquela tenda estariam pensando o mesmo, fez provisão de todo seu orgulho, levantou o queixo e com um imperioso giro de cabeça afastou a vista com decisão do irado e aterrador viking.
«Tudo terminou», pensou angustiada. Já sabia. Mas agora o tinha visto com seus próprios olhos.
—Robert, rogo isso. Tenho que falar com você. É importante.
—Não o duvido — disse seu irmão político, embora Ellie advertia o confundido e talvez algo receoso que estava. Olhou ao enorme homem que a tinha apanhado nas cercanias do acampamento — Veio sozinha?
—Sim — disse aquele bruto de rude aspecto ao tempo que assentia — Mas estamos comprovando-o para nos assegurar.
Robert assentiu e deu a volta à mesa para tomá-la pela mão.
—Vamos, irmã, pode me contar o que a trouxe até aqui.
Olhou para trás para fazer um gesto ao homem que estava sentado junto a Erik e depois a outros mais. Precaveu-se que o primeiro dos guerreiros ia vestido de forma parecida com Erik e que também resultava igualmente imponente. Era alto, cinzelado a base de músculos e com uma beleza de traços duros, embora não resultava tão impressionante como o que estava sentado ao outro lado. O ar de autoridade que desprendia o primeiro deles lhe fez perguntar-se quem seria. Era óbvio que seu cunhado confiava nele.
Eduardo Bruce se levantou para unir-se a eles, igual fez um guerreiro um pouco mais velho e outro muito mais jovem. Dirigiu-se a Erik quase por acréscimo: «É possível que também você queira vir». Não parecia muito contente com isso.
Advertiu a tensão existente entre os dois homens e desejou com todo seu ser que não fosse ela a causa. Ellie seguiu seu cunhado até o exterior da tenda. Cruzaram o improvisado assentamento até chegar às rochosas ladeiras. Enquanto avançavam, ela notava todo o peso do olhar do zangado homem que seguia seus passos.
Estava claro que não se alegrava de vê-la. Tampouco podia culpá-lo sob tais circunstâncias, mas não esperava que a recebesse com essa virulência. Tanto a odiava? Não era sua intenção enganá-lo. Somente queria comprovar se podia se interessar por ela mesma, sem as armadilhas e obrigações que se devia por sua nobreza.
Ao estar bem iluminada pelas tochas, Ellie se precaveu de que aquela pequena cova tinha sido adaptada para fazer as vezes de câmara real, provida com uma cadeira, uma mesa para escrever e um colchão humildes. Era o mais afastado a um palácio que podia possuir, mas Robert se via perfeitamente adaptado ao ambiente rústico que o rodeava.
Ellie sempre tinha admirado ao arrumado cavalheiro que ganhou o coração de sua irmã, mas via com claridade as mudanças operadas nele durante o ano passado. Quase esperava encontrar-se com um foragido com o olhar furtivo e ansioso do perseguido. Em lugar disso, via um formidável guerreiro de força e determinação inquebráveis que tinha mais aspecto de rei vestido com suas poeirentas roupas de luta que com o cetro e a coroa reais.
Robert lhe fez gestos para que ocupasse a cadeira, e os homens se acomodaram entre as rochas planas dispostas no interior da cova. Pelo que se referia a conselhos de guerra, aquele era do mais incomum.
Ellie sentia todo o calor do olhar furioso de Erik, que fazia que se desvanecesse parte dessa sensação de vitória por ter conseguido chegar até eles. Esfregava as mãos com ansiedade entre as saias. Era certo que vagar por esses campos desolados pela guerra fazendo-se passar por uma faxineira que fazia de espião ao serviço dos ingleses não era muito seguro, mas tinha sido de tudo necessário. Talvez Robert advertisse seu nervosismo, porque lhe disse com amabilidade: —Espero, irmã, que não me interprete mal se lhe digo que, embora me alegra muito lhe ver, tenho grande interesse em saber a razão pela que está aqui e como conseguiu me encontrar.
Ellie se concentrou em Robert para isolar-se da fúria que irradiava aquele homem que estava apoiado contra a parede com os braços cruzados ante seu largo peito revestido de couro. Não era por ele que estava ali. Bom, não era só por ele. Embora não estava muito segura de que tivesse chegado a tais extremos com só o impulso da simpatia para a causa de seu cunhado. Não tinha escapado de sua câmara desde que era uma cria. E sair às escondidas dela na metade da noite com um par de soldados ingleses desconhecidos que a tomavam por uma faxineira, para informar ao homem mais procurado da cristandade que lhe tinham estendido uma armadilha…
Se seu pai alguma vez tivesse conhecimento disso, estaria horrorizado e enfurecido por sua traição. Mas depois do que Eduardo fez com sua irmã, não pensava sentir-se culpada absolutamente. Respirou fundo e relatou a conversação que tinha chegado a seus ouvidos entre sir Aymer, Ralph e seu pai. Aquilo não era o que esses homens esperavam ouvir, de modo que não demorou advertir a mudança de atitude dos ocupantes da cova à medida que se precaviam da gravidade da situação.
Robert blasfemou.
—Sabem que estamos aqui? Está segura disso, irmã? Não é possível que tenha ouvido mau?
—Não ouvi mal — disse negando com a cabeça — Os ingleses sabem onde está seu acampamento e planejam atacar ao amanhecer. Queriam que a ajudante de câmara de minha irmã viesse aqui para tirar informação, mas a convenci para que eu viesse em seu lugar.
Explicou-lhes, deixando a um lado o papel que tinha jogado Matty na hora de encobri-la, como vários homens de sir Aymer a tinham acompanhado até os limites do vale. Esperavam sua volta para escoltá-la de novo até o castelo. Ellie tinha intenção de lhes contar que lhe tinham negado a entrada ao acampamento, de modo que precisava voltar o quanto antes.
Eduardo Bruce não foi tão sutil como seu irmão.
—Como sabemos que está nos dizendo a verdade? Poderia tratar-se de uma armadilha.
Ellie o fulminou com o olhar.
—Claro que é uma armadilha, mas não sou eu quem lhe está estendendo isso. Se não me acredita, enviem um de seus homens aos bosques que há ao pé do lago Troon. Encontrarão perto de mil e quinhentos soldados ingleses que provará que é certo o que lhes digo. Mas façam antes do amanhecer. Devem advertir a seus homens e se preparem para partir imediatamente — disse voltando-se para Robert.
Bruce acariciava o queixo enquanto pensava a respeito.
—Temo que não.
Ellie ficou petrificada pela incredulidade.
—Mas juro que estou dizendo a verdade!
—Acredito — disse com um sorriso para depois olhar ao impressionante guerreiro que Ellie tinha visto antes — Isto era o que estávamos esperando.
Viu como ao outro brilhavam os olhos.
—Sim. Um ponto de encontro com o inimigo a nossa própria escolha. — O guerreiro se ajoelhou, agarrou um pau e desenhou várias linhas no pó do chão — Se posicionarmos nossos homens aqui na ladeira sul — disse assinalando um ponto à esquerda —, estaremos preparados para recebê-los de cara quando saírem dos bosques. Faremo-nos com pedras para desmontar à cavalaria, e Flecha e seus arqueiros se encarregarão do resto.
—Será uma armadilha — disse Robert em um tom satisfeito —, mas não para nós.
Os homens falaram entre eles durante vários minutos mais e riscaram o plano. Quando chegaram a um acordo a respeito da maneira de proceder, o rei voltou a dirigir-se ao guerreiro que vestia como Erik.
—Chefe, reúna aos homens. Terá que fazer os preparativos. Os que estejam muito bêbados atirem ao lago. Temo que teremos que celebrar seu aniversario outro dia —disse voltando-se para Erik.
Este se encolheu de ombros com indiferença; seguia olhando Ellie com a mesma cara.
—De todos os modos não parece que está para muitas celebrações agora mesmo.
Bruce se aproximou de Ellie, inclinou-se sobre ela e a beijou na bochecha.
—Não sei como lhe agradecer isso irmã. Contraio uma dívida com você que não posso sonhar em pagar, ao menos no momento. Mas quando recuperar meu reino, terá tudo o que esteja em minha mão lhe oferecer.
—Tão somente desejo que minha irmã retorne a salvo — disse ela.
Ellie apreciou o brilho de raiva nos olhos de Robert enquanto assentia.
—Sim, isso mesmo quero eu.
Voltou-se para se despedir de seus homens. Erik começou a caminhar junto a eles, mas o deteve.
—Não, fica —disse com dureza — Isto lhe concerne. — Ellie brincou com seu casaco, adivinhando que o que estava a ponto de dizer nada tinha a ver com a informação que ela acabava de lhes dar. Olhou a ambos alternamente — Por mais que aprecie que nos tenham avisado, irmã, suspeito que sua visita não tinha como único objeto meu próprio benefício. —Ellie notou como ardiam suas bochechas ante o atento olhar de seu cunhado — Falcão me contou o que aconteceu — acrescentou — Sinto muito pelo que se viu obrigada a suportar. Naquelas circunstâncias era inevitável que lhe levasse com ele, mas sua conduta além disso é indesculpável e desonrosa — disse fulminando Erik com o olhar.
Ellie o olhou e se surpreendeu ao ver a careta de desconforto em seu rosto. Obviamente não tinha intenção de acrescentar nada por si mesmo.
—Não — repôs implacável ela, agarrando-o do braço — Se equivoca. Me tratou com a maior das considerações. Pude e devia lhe dizer quem era eu, mas escolhi não fazê-lo. Acredito que desfrutava muito de minha liberdade para operar de tal modo — acrescentou com azedo sorriso — Sou tão responsável como Falcão pelo que aconteceu.
A Erik não pareceu lhe sentar bem que rompesse uma lança em seu favor.
—Não necessito que me defenda, lady Elyne. A ira do rei está completamente justificada.
Robert o ignorou e a olhou atentamente.
—Não sofreu por sua… perda? Farei que se case com você agora mesmo se for preciso.
Ellie teve que reprimir o estremecimento de horror e vergonha que aquilo lhe causou. Que um parente furioso e bem-intencionado a obrigasse a casar-se era inclusive menos sugestivo que a diligente oferta de matrimônio de Erik. Negou com a cabeça.
—Meu prometido está a par da situação. Como já disse a Falcão, não tenho nenhuma intenção de me casar com ele.
Seu nobre sacrifício não era necessário.
Robert pareceu tranquilizado pela resposta e, quando se voltou para se dirigir a Falcão, dava a impressão de estar menos zangado com ele. Indubitavelmente lhe resultava um grande alívio dar por terminada essa conversação. Sorriu.
—Temo que feriu meu marinheiro em seu orgulho. Não está acostumado que as mulheres o rechacem. Mas pelo que conta minha Isabel, você sempre foi uma moça honesta. — Riu ao comprovar a expressão furiosa de Erik — Vê o que me refiro? Faz semanas que está insuportável. —Talvez pressentindo que levava o guerreiro ao limite, suavizou-o acrescentando —: Arriscou muito para me trazer esta informação. Espero que ninguém descubra o que têm feito.
Também ela o esperava.
—Estarei bem, mas devo voltar o quanto antes. Os soldados estarão me esperando e não quero que façam muitas perguntas.
Robert a beijou de novo na bochecha.
—Farei que um de meus homens lhe escolte até onde têm que ir.
—Não será necessário — disse Erik sem emoção alguma na voz — Eu a acompanharei.
Robert olhou Ellie pedindo sua aprovação. Ela dirigiu seu olhar a Erik e viu o desgosto que expressavam o gesto torcido do queixo e da boca. Teve a tentação de negar-se, mas se dava conta de que ele era uma das razões que a tinham levado até ali. Antes de decidir se seguia adiante com seus planos de bodas com Ralph, tinha que saber que não existia nenhuma possibilidade entre eles. Assentiu duvidosamente.
Erik fazia esforços sobre-humanos para conter-se. Ellie não sabia a sorte que tinha de ter aceito que a acompanhasse. Tinha estado a um segundo de pôr as mãos ao redor de sua esbelta cintura, tal e como tinha ansiado fazer desde que tinha entrado na tenda, e jogá-la ao ombro como o bárbaro viking que ela tinha pensado que ele era em um princípio. Aquela moça exasperante parecia provocar seus instintos mais primitivos, o instinto que os homens noruegueses tinham aguçado durante gerações na arte de tomar quanto queriam. Mas, por sorte, sua dúbia aceitação tinha servido para evitar danificar mais a opinião que tinha o rei dele, já prejudicada por si.
Depois de despedir-se de seu cunhado, Ellie girou os calcanhares, elevou seu imperioso queixo e saiu da tenda como se fosse a irmã do rei e ele somente um lacaio que podia contentar-se fazendo que a barra de seu vestido não arrastasse pelo chão.
Erik saiu atrás dela como um possesso, lutando por tomar as rédeas de suas feras emoções. A raiva que sentiu ao vê-la não fez a não ser piorar depois de ouvir as razões que a tinham levado ali. Ficou sem respiração ao pensar no perigo ao que se expôs. Ouvir a inflexível reiteração do rechaço a sua oferta de matrimônio tampouco tinha melhorado seu humor. Por que não queria casar-se com ele se era certo que o amava? Ele não desejava esse matrimônio, mas, mesmo assim, maldita seja, aquilo não tinha nenhum sentido.
As tochas e fogos do acampamento se desvaneciam atrás deles em um tenso silêncio que Erik não se atrevia a romper por medo ao que pudesse dizer. Levou consigo vários dos sentinelas de Boyd que vigiavam o perímetro, mas tinha dúvidas inclusive que ela se precavesse de sua presença. Ao final, quando chegaram ao estreito corredor que conduzia ao lago Troon, Ellie deve ter pensado que já se afastaram o suficiente.
—Vai olhar-me toda a noite com essa cara ou tem algo que dizer?
Talvez fosse o tom de sua voz. Ou possivelmente as mãos nos quadris. Pode ser que se tratasse simplesmente do doce aroma de perfume em sua pele após meses de torturantes privações. Fosse o que fosse, Erik alcançou seu ponto limite de resistência. Tomou por um dos cotovelos e a sacudiu com força contra ele.
—Pois sim que tenho algo que dizer! Que demônios pretende te implicando nisto? O que quer, que lhe matem?
Tocá-la tinha sido um engano. Ao ter seu corpo tão perto podia perceber perfeitamente a suavidade de suas curvas. O aroma que desprendia, as sensações que sua cercania lhe provocava eram tão intensas que se deu conta no momento de quanto tinha sentido falta dela.
A maré de reações inflamava seu interior, faziam que fervesse o sangue e a pele, lhe permitindo descobrir que, apesar de sua mais recente experiência, ele não era nenhum eunuco. Qualquer mulher em seu são julgamento teria empalidecido de medo ante o furacão de raiva que se formava. Mas, é obvio, Ellie, que nunca se comportava como se esperava dela, afastou o braço, olhou-o diretamente aos olhos e sustentou seu olhar.
—Tonta que sou, pensava que me agradeceria — disse entreabrindo os olhos e afundando um dedo em seu peito para dar força a suas palavras — por salvar essa ingrata guarida cheia de guerreiros ingratos que têm mais músculo e beleza do que lhes convém.
—Agradecido de que ponha sua vida em perigo? — espetou com raiva. Deu um passo para ela, que retrocedeu a sua vez para compensá-lo. Felizmente para ele, uma árvore freou sua retirada. Inclinou-se sobre ela ameaçadoramente e lhe pôs um braço sobre cada ombro para evitar que escapasse — O que tenho vontade é de te estrangular por vir aqui.
Ou beijá-la até que baixasse a pressão que pulsava em seu peito. Uma corrente elétrica fluía entre ambos. O impulso magnético do desejo o obrigava a aproximar-se mais dela. A necessidade de beijá-la era quase insofrível. Tinha a boca, a mandíbula, todo o corpo em tensão pelos esforços que devia fazer para conter-se.
Os olhos de Ellie brilharam como os de uma lebre que caiu na armadilha.
—Precisa relaxar — disse sentindo-se inquieta — Está sendo ridículo. Me deixe partir.
Que relaxasse? Ele? Se sempre estava depravado, pelo amor de Deus. Aproximou-se mais ainda, como se pudesse obrigá-la assim a precaver-se da magnitude do perigo ao que se expôs e a que experimentasse uma pequena parte do que ele sentia.
—Não.
Era consciente de que não merecia tal revoo, mas maldita seja, sentava-lhe maravilhosamente tê-la aí justo onde ele queria. A sua mercê. Dobrando-se a sua vontade. Já deveria saber que assim não funcionavam as coisas.
Ellie levantou o joelho bruscamente, causando dano suficiente para que se retorcesse de dor, sem pôr em perigo a futura descendência de ambos, pensou. Quando teve forças para recuperar a compostura, precaveu-se desse pequeno deslize. Erik retrocedeu. «Nossa futura descendência.»
Olhou-a sem poder sair de seu assombro, notando uma pressão que abria passo em seu peito. Parecia tão claro, tão óbvio, que o surpreendeu muito não ter-se precavido antes disso. Tinha necessitado um joelhada nas bolas para dar-se conta dessa verdade que durante tanto tempo tinha tido diante de seu nariz. Não podia imaginar ninguém mais que ela como futura mãe seus filhos.
A amava.
Por Cristo Nosso Senhor, mas que idiota tinha sido! Essa fusão de emoções tão intensas, a atração animal, a necessidade premente de protegê-la, de possuí-la. A razão pela qual não podia esquecê-la. A razão que, apesar de todo seu aborrecimento, viu-se subjugado nada mais vê-la entrar na tenda. Não queria casar-se com ela para lhe fazer um favor, mas sim porque a amava.
Como tinha podido permitir que aquilo acontecesse? Embora melhor seria perguntar-se o que tinha feito para que aquilo não acontecesse. Foram feitos um para o outro. Ela despertava seu lado sério e ele a fazia rir. Compartilhavam a mesma paixão pela aventura. Ellie era a primeira mulher que se interessou pelo que ele pensava, a primeira em escavar debaixo dessa aparência de eterno brincalhão e sedutor para tentar conhecê-lo. Talvez seu descobrimento estivesse presente desde a primeira vez que ela elevou os olhos ao céu ou o olhou com sua cara de babá impossível de impressionar. Ou pudesse ser que tudo se reduzisse a algo tão simples como essa profunda observação de Domnall: ela não engolia suas tolices.
—Não tente me intimidar com esse montão de músculos — repôs Ellie interpretando mal a fonte daquela tensão — Não servirá de nada. De verdade acredita que posso pensar que me faria mal? E não será porque não tenha todo o aspecto de um velhaco perigoso — acrescentou após observá-lo atentamente à luz da lua.
Erik, ainda emocionado por seu descobrimento, passou os dedos por aquele descuidado cabelo. Tão mau aspecto tinha?
—Não tivemos muitas oportunidades para nos barbear ultimamente.
—Não digo que eu não goste — ela se apressou a corrigir. Apesar da escuridão, Erik juraria que se ruborizou — Simplesmente faz que pareça mais perigoso. — ficou circunspeto, sem saber como reagir ante esse comentário. Pela forma em que o disse, quase pareceu que aquilo não era de tudo mau — Sinto ter te ofendido — acrescentou ela mordendo o lábio — Mas me doeu sua atitude.
—Conheço essa sensação — disse ele com o gesto torcido, para seguidamente voltar a tocar o cabelo — Por Deus, Ellie. Quando te vi nessa tenda e pensei nos perigos que correu para chegar até aqui, assustei-me muito, estive a ponto de… —Deixou em suspense a frase e se encolheu de ombros — Suponho que perdi a cabeça.
Ellie esclareceu garganta exageradamente.
—Bom, ah. Suponho que teria preferido não vir aqui sozinha… Mas não havia ninguém mais que pudesse fazê-lo. Fiz o que pensava que era meu dever.
Porque o amava. Ser consciente de que se expôs ao perigo por ele fez que Erik se sentisse mais humilde. Ellie o olhava aos olhos, desafiando-o a mostrar-se em desacordo com ela.
—Não é que não aprecie o que fez — disse — Deus sabe que salvou muitas vidas vindo aqui esta noite, pode ser que inclusive que um reino, mas não quero que esteja nem remotamente perto de tudo isto.
O rosto de Ellie se via abatido entre a penumbra.
—Não me perdoou pelo que fiz — disse ela.
—Não há nada que perdoar. Fui eu o culpado de tudo. — Ellie não parecia acreditar, de modo que Erik se explicou —: Ao princípio, pus-me furioso que não me contasse isso, mas quando pensei com calma, dei-me conta de que tinha razões mais que suficientes para não fazê-lo. Nunca ganhei sua confiança nem me pediu que confiasse em ti. O que aconteceu naquela cova… Desejava-te tanto que poderia ter me dito que era a rainha da Inglaterra e não me teria importado.
Ellie sorriu sem vontade.
—Espero que isso não te tenha causado muitos problemas com Robert. Não pude evitar me precaver da tensão que havia entre vocês dois.
—Não ocorre nada — disse lhe subtraindo importância.
—Claro que ocorre. — Ellie sabia quão importante era a lealdade para ele — Tinha que ter te contado isso. Eu sim confiava em você, mas desejava saber… —disse com uma voz que se foi apagando.
—Saber o que?
Ellie olhou a outra parte, envergonhada. Erik pensava que já não responderia, mas ao final ela disse: —Queria saber se eu te interessaria por mim mesma. Não por quem sou ou porque a honra te dissesse que tinha que te casar comigo.
A Erik encolheu o coração ao entender tudo ao fim.
—Por isso me rechaçou.
Não porque não o amasse, mas sim porque queria que ele a amasse pelo que era. Isso era o que lhe oferecia. Isso era o que não tinha sido capaz de ver. Ele tinha proposto em virtude da honra e o dever, mas o que ela queria era amor e emoção.
—Minha mãe amava a meu pai com toda a alma — explicou Ellie — Tentou ano após ano que ele a amasse, e isso foi o que a levou a tumba. A febre se apoderou dela, mas em seu interior já estava morta há muitos anos.
Erik lhe afastou uma mecha de cabelo da bochecha e o colocou atrás da orelha.
—Sinto muito, moça.
Ellie ficou à defensiva, interpretando mal a razão da desculpa.
—Não lhe contei para que se compadeça de mim, nem porque queira algo de ti. Só pensava que poderia te ajudar a compreender por que atuei desse modo.
—Ellie…
Agora podia pôr ponto final a todas suas agonias. Teria sido tão fácil estreitá-la entre seus braços e lhe dizer o quanto a amava, que não podia imaginar o futuro se não fosse junto a ela. Egoístamente era isso o que desejava. Para um homem tão acostumado a conseguir o que queria, que a felicidade se rendesse a seus pés, foi um gole muito amargo. Mas não pôde fazê-lo.
Houve algo na maneira em que ele a olhava que obrigou Ellie a atuar como se prometeu não voltar a fazer jamais.
—Me peça que fique — sussurrou.
Por uns instantes Erik duvidou. Ou ao menos isso foi o que se disse ela. Queria acreditar que aquela súplica causava nele algum tipo de luta interior, porque exteriormente seu rosto não expressava nada absolutamente. Mas então ele sorriu, e a condescendência que se desprendia desse gesto, como se compreendesse que estava lhe rompendo o coração, mas teve a sorte de ser completamente imune a sua agonia, fez que se diluísse qualquer esperança de sublevação em seu interior.
—Sinto muito, moça. Não posso fazê-lo.
A dor abrasou o corpo de Ellie como um ferro ao vermelho vivo. Por que fazia isso a si mesma? Por que saía de peito aberto e mostrava seu coração nu para que ele o fizesse em pedaços? É que sentia prazer em seu próprio prazer e humilhação? Entretanto, houve um momento em que a olhava com olhos tão tenros que ela pensou que…
Idiota. Ele não a amava. Só se compadecia dela. Agora via claro. As mulheres se atiravam a seus pés a cada momento. E para maior vergonha, ao que parecia, ela não era diferente às demais. Duas vezes lhe tinha devotado seu coração e duas vezes o tinha rechaçado. Mais que suficiente.
Uma vez que se repôs daquele golpe, Ellie se separou dele. Era estranho, mas depois da primeira pontada de dor já não sentiu nada. Só uma necessidade imperante de partir dali assim que fosse possível.
—Tenho que partir.
—Ellie — disse Erik em voz baixa enquanto a agarrava pelo braço — Lamento.
Ellie sentiu que seu corpo ficava em tensão e se afastou dele.
—Não há nada do que desculpar-se. Fui uma estúpida. É obvio que não quer que fique contigo — disse rindo com amargura —, Se já tem alguém esperando. —Erik a olhou estranhando como se não tivesse ideia a respeito do que lhe estava dizendo — A mulher —acrescentou. «Sobre seus joelhos. Lhe beijando.» — Na tenda?
Pareceu-lhe que punha uma cara estranha, mas ao final disse:
—Ah, sim. É obvio.
Ellie tinha o pulso acelerado.
—Bom, então suponho que isto é um adeus.
Aventurou-se a olhá-lo pela última vez, perguntando-se quanto tempo demorariam os traços daquele rosto em apagar-se de sua memória. O arco das sobrancelhas. A dureza de expressão de sua mandíbula. As rugas brancas incrustadas junto aos olhos. O incorrigível gesto torcido de sua boca. O queixo afiado e seu excelso nariz. Esse irresistível e belo rosto.
Ellie baixou o olhar.
—Os soldados me estarão esperando ao outro lado das colinas.
—Está segura de que sabe o que está fazendo? O que acontecerá se suspeitam algo?
—Não suspeitarão. Posso ser muito convincente.
Olhou-a com dureza.
—Não confio. Levar-te-ei eu mesmo a Ayr.
—Não — exclamou ela com veemência — Devo ater-me ao plano ou começarão a suspeitar. Pensa que iram acreditar que fui capaz de encontrar o caminho de volta sozinha? Não pode ser de outro modo. Sei o que faço. Além disso, não sou tua responsabilidade —disse olhando-o aos olhos.
Assim ficaram durante um longo instante. Por um momento a Ellie pareceu advertir algo justo antes que Erik piscasse. Este deu um passo atrás, com todo o corpo em tensão. Ellie teria jurado que inclusive o estava passando mau.
—Muito bem — disse — Adeus, lady Elyne.
Quase lhe cortou a respiração. Ficou durante um longo momento simplesmente aí, saboreando o momento, porque sabia que seria o último. Mas era inevitável que se acabasse.
—Adeus, Erik.
Partiu sem olhar para trás. Uma pequena mas significativa parte de sua vida tinha acabado para ela.
Capítulo 24
Vésperas de San Juan,
23 de junho de 1307
Erik fez o que tinha que fazer. Ela estaria melhor sem ele. Ao menos isso era o que não cessou de repetir-se durante os primeiros dias posteriores a sua marcha. Queria lhe pedir que ficasse, mas a amava muito para lhe fazer isso. O amor não era garantia de finais felizes. Havia ocasiões nas que o amor significava sacrifício. Havia ocasiões nas que amar significava pôr a felicidade da outra pessoa por cima da nossa mesma, embora isso implicasse estar separados.
Era um foragido. Mas à manhã seguinte talvez não fosse a não ser um cadáver para ela. Inclusive com a ajuda de Ellie, era consciente que seus dias estavam contados. Talvez se ela tivesse sido a babá que ele tinha acreditado em princípio, as coisas teriam sido de outro modo. Mas era a filha de um dos homens mais poderosos da cristandade, estava prometida em matrimônio a um homem igualmente poderoso e, o que era mais importante, estava a salvo. Ellie tinha pela frente um futuro luminoso. Não podia lhe pedir que arriscasse tantas coisas por ele. Não desejava vê-la pendurada numa jaula.
A dor era tão mortificante como se lhe tivessem enfiado uma adaga nas costas e a retorcesse em seu interior. Sentia-se como se o partissem em dois: por uma parte, seus egoístas desejos e, por outra saber, o que tinha que fazer. Mas jamais teria imaginado que fazer o correto pudesse ser tão doloroso…
Conhecia Ellie. Se tivesse advertido um ponto de debilidade, não teria parado até lhe surrupiar a verdade. De modo que se via obrigado a deixar que acreditasse que não a queria. Mas o olhar de resolução de seu rosto quando partia seguia perseguindo-o. Deixá-la partir tinha sido a coisa mais dura que tinha feito na vida. Fazia que o período de adestramento de duas semanas de duração de MacLeod, conhecido com o nome de perdição», parecessem simples jogos e diversão.
Apesar de suas objeções, ele a tinha seguido até o castelo de Ayr. Tinha a suspeita de que ela sabia que estava aí, mas jamais voltou a vista atrás.
Mais tarde, cinco dias depois de que entre quatrocentos seguidores de Bruce apanhassem a mil e quinhentos cavalheiros ingleses em Glen Trool, fazendo que Aymer de Valence se retirasse humilhado, Ellie partia em um galeão, deixando Ayr para a Irlanda. Erik tinha conhecimento de sua partida porque estava sob a vigilância de um de seus homens no castelo. À primeira indicação de que sua aventura noturna no acampamento de Bruce tinha sido descoberta, Erik teria ido resgatá-la.
Mas não pôde contar com tal desculpa.
E agora, depois da segunda vitória decisiva contra sir Aymer de Valence nas colinas de Loudon em maio, de uma escaramuça que dias antes tinha posto em fuga ao prometido de Ellie até o castelo de Ayr, a derrota de sir Phillip Mowbray pela mão de sir James Douglass e Boyd, junto às notícias de que o rei inglês estava no leito de morte, Erik temia ter cometido um engano enorme. As voltas tinham trocado. Os homens se uniam em massa à causa de Bruce, e suas filas tinham passado de centenas a milhares da noite para o dia. Pouco a pouco o rei afiançava sua posição no sudoeste, com a tomada de pontos estratégicos incluída. Entretanto, Bruce tinha aprendido algo muito importante de Wallace: destruiria os castelos antes de permitir que o inimigo os usasse em seu contrário. Assim ao dia seguinte, depois de uma larga noite de celebração, o castelo de Ayr seria arrasado. Pensavam desprendê-lo antes de qualquer objeto de valor, mas a maioria o tinha levado Ulster uma semana atrás, antes de zarpar para a Irlanda.
Erik permanecia sentado em um silêncio virtualmente total, alheio às escandalosas celebrações que aconteciam a seu redor, unindo-se em alguma ocasião à conversação de MacLeod e Bruce, e picando algo da muita comida que serviam. A escura nuvem que pousou sobre ele desde que tinha visto desaparecer Ellie atrás dos muros desse mesmo castelo não fazia a não ser carregar-se mais e mais. À medida que passavam os dias, sentia um incômodo crescente que cada vez se parecia mais ao pânico. Por momentos o envolvia tanto que mal podia respirar.
Era escravo de suas próprias dúvidas, incapaz de escapar à dor aguda que significava não dizer a Ellie que a queria, não lhe ter dado a oportunidade que ela merecia. E com cada uma das vitórias, sua incerteza ia aumentando. Não podia conciliar o sono. Mal podia comer. Lutar era quão único era capaz de fazer. De modo que se apresentava voluntário a qualquer missão, quanto mais perigosa melhor. Algo com tal de tirar da cabeça a pergunta a respeito se tinha feito bem e se já era muito tarde para preocupar com isso.
—Chegaram-me certas queixas.
Erik elevou a vista ao precaver-se de que era o rei quem falava com ele. Ficou circunspeto.
—Que tipo de queixas?
—É muito duro com os novos recrutas.
Erik trocou um olhar com MacLeod antes de responder.
—Têm que estar preparados para a luta. Eduardo tem previsto enviar mais tropas a Carlisle em julho. Não se dará por vencido tão facilmente.
—E estaremos preparados — concedeu Bruce — Se Eduardo se recuperar. Mas não pode conseguir que esses camponeses e pescadores se convertam em cavalheiros de um dia para o outro.
—Não tento convertê-los em cavalheiros. O que quero é convertê-los em highlanders. Isso é mais complicado, assim precisa mais trabalho.
—Sim. Têm razão. Aceito a correção — disse Bruce entre risadas. Ficou olhando-o atentamente — Tenho notícias que poderiam lhe interessar. — Apesar de o rei não parecer lhe dar muita importância, todos os músculos de Erik ficaram em tensão — São a respeito de minha cunhada — acrescentou Bruce para depois dar um sorvo ao vinho e observá-lo por cima do cálice, consciente de que ao Erik lhe revolviam as tripas — Amanhã pela manhã se casará com De Monthermer.
Ao Erik pareceu que lhe davam um chute no peito. Ao ouvir as palavras do rei, seu corpo estremeceu dos pés a cabeça. Todo o pânico que vinha acumulando explodiu de uma vez. Não lhe cabia a mais remota dúvida de que tinha que fazer algo. Não podia deixar que aquilo acontecesse.
Precaveu-se de que havia mais de um par de olhos observando sua reação.
—Onde? —perguntou com os dentes apertados.
—No castelo de Dunluce — respondeu Bruce olhando-o com algo em mente — Sabe o que? Estive pensado em uma coisa e acredito que poderia ter uma missão para você.
Erik mal prestava atenção. «Casada.» Aquela palavra dava voltas em sua mente sem cessar. Não podia pensar em outra coisa. Como podia Ellie fazer isso? Amava-o e, entretanto, em poucas horas se casaria com outro. Havia uma parte dele que se negava a acreditar que ela se resignou. Parecia que tudo ardia em seu interior. Tinha que esforçar-se horrores para permanecer ali sentado tranquilamente quando o que queria era saltar sobre o primeiro navio que encontrasse e voar até a Irlanda.
—Tinha estado pensando — continuou o rei — que seria prudente afiançar nossos laços com a Irlanda. E já que lhe designei como encarregado de manter abertas as rotas de comércio ocidentais para nossas provisões, suponho que é a pessoa indicada para isso. —Erik foi tomando consciência vagamente de que o rei falava a sério. Teve que obrigar-se a escutar suas palavras e não aquelas violentas vozes de seu interior que gritavam que fosse dali o quanto antes — Sabia que lady Elyne é a queridinha de Ulster? —perguntou Bruce com intenção.
Erik cravou seu olhar no do rei, começando a suspeitar a que se referia.
—Sim — respondeu com cautela — Tenho entendido que a dama ajudou ao pai à morte de sua mãe.
Bruce se inclinou sobre ele.
—Com certeza que lhe perdoaria qualquer coisa. — Fez uma pausa para refletir — Se tiver duas filhas casadas com escoceses, é possível que esse olho cego seu se converta em dois olhos cegos. O que lhe parece?
Erik estava boquiaberto. O que o rei queria dizer era óbvio. A «missão» que sugeria era estabelecer uma aliança ao casar-se com Ellie, embora de forma clandestina, algo que Bruce pensava que Ulster acabaria lhe perdoando. Se esperava o apoio de Bruce, já o tinha.
Mas Erik sabia que teria ido ali inclusive sem seu apoio. As semanas de tortura tocavam a seu fim. Tinha cometido um engano. Era consciente disso. Somente esperava poder chegar a tempo antes que ela cometesse um engano pior, um que não teria remédio. Quando pensava em todo o dano que tinha feito a Ellie… Fez uma careta de dor ao recordar como a tinha deixado pensar que não a amava, que sua intenção era voltar junto à mulher do banquete. Então voltou a lhe invadir uma onda de pânico. O que aconteceria se ela se negasse a falar com ele? Ellie podia ser muito teimosa. E se não o perdoava? O mundo lhe veio em cima. O que aconteceria se ela não mudava de opinião? Não podia deixar que aquilo acontecesse. Sorriu com vontade como não tinha feito fazia tempo. Teria que assegurar-se de passar um momento com ela a sós para poder desdizer-se e dar fé de seus sentimentos. Sabia o lugar perfeito para isso.
Voltou-se para Bruce.
—Tenho que partir imediatamente.
Bruce lhe devolveu o sorriso.
—Isso mesmo estava pensando eu.
Deteve-se ao pensar na teimosia de Ellie.
—Pode ser que atrase vários dias.
Bruce soltou uma gargalhada.
—Eu acredito que demorará algo mais. Têm duas semanas. Aproveite o tempo.
Erik sorriu.
—Não penso perder nem um minuto.
Esta era uma missão em que se asseguraria por completo de que tudo fosse como a seda.
Tratava-se de uma manhã serena e ensolarada de verão. O dia perfeito para umas bodas. Ellie observava sua imagem no espelho enquanto a ajudante de câmara finalizava com seu penteado. Sorriu, se não feliz, ao menos contente de como se desenvolveu sua vida durante os últimos dois meses. Tinha tomado a decisão correta e seguia com sua vida. Inclusive tinha deixado já de olhar pela janela.
Quando a faxineira dava os últimos retoques a seu cabelo, um intrincado acerto de cachos fixados com uma diadema de joias, e arrumava o fino vestido de damasco verde esmeralda que levaria nas bodas, o sol entrava com toda sua força pela janela. Por trás passou uma escura sombra que a fez olhar em sua direção. Ao não ver nada, imaginou que seria uma nuvem.
—Posso lhe ajudar em algo mais, milady? —perguntou a faxineira.
Ellie negou com a cabeça enquanto apreciava o trabalho da donzela. Sorriu com melancolia. Inclusive poderia passar por uma mulher bela.
—Não. Por que não olha se necessita algo lady Mathilda?
A faxineira fez uma reverência e saiu da habitação.
Mal acabava de fechar a porta quando Ellie notou que alguém a agarrava por trás. Uma poderosa mão tampou sua boca antes que pudesse gritar.
—Chist! —sussurrou junto a seu ouvido, apertando-a forte contra seu peito — Não vou te fazer mal.
A Ellie o coração deu um tombo ao reconhecer a voz, o familiar aroma de seu corpo e cada uma das duras linhas dos musculosos braços e o peito que a sustentavam. «Erik.» Mas o que estava fazendo ali? E mais importante como tinha conseguido entrar? Por Deus bendito! Não podia havê-lo feito a não ser através da janela da torre, ao menos a quinze metros do escarpado e mais de trinta sobre a água que havia abaixo. «Não vou te fazer mal.» Isso já o tinha ouvido antes.
Tentou liberar-se lhe dando uma cotovelada no estômago, mas surtiu pouco efeito. Aquele corpo duro como o granito não cedeu nem um centímetro.
—Promete não gritar?
Quando Ellie assentiu, tirou a mão de sua boca. Só para voltar a tapar ao ver que ficaria a gritar. Erik falou de modo teatral.
—Sabia que te mostraria pouco razoável, mas vim preparado para isso. —Agitou um par de fitas de seda fina ante seus olhos — Esperava que na próxima vez que te atasse seria sob circunstâncias diferentes. —Ellie pôs os olhos como pratos pelo ultraje, mas só conseguiu que Erik risse — Sinto, menina, mas temos que falar e não posso me arriscar a que não atenda a razões. Pode uivar tudo o que queira uma vez que estejamos fora daqui.
Atender a razões? Quando estava a ponto de a sequestrar pela segunda vez? Além disso ela não uivava.
Com um destro movimento, Erik tomou a fita de seda e atou suas mãos rapidamente. Desembrulhou a manta que levava aos ombros, extraiu um saco de esteira de seu cinto e lhe fez uma careta de desculpa.
—Dado que não podemos sair do mesmo modo que entrei, temo que isto será necessário.
Quando Ellie se precaveu do que pensava fazer, tentou retroceder, mas ele a puxou pelos pulsos e lhe pôs o saco na cabeça. Ellie se retorcia e chutava como um animal furioso, mas ele a jogou ao ombro como se fosse um saco de batatas e cobriu os ombros com a manta para ocultar suas pernas. Com o que lhe havia custado arrumar o cabelo e os vestidos… O pior de tudo era que… Aquele comportamento de bruto a enfurecia, mas não podia resistir a perguntar-se por que o fazia. Só uma resposta tinha sentido, mas não pensava cair de novo na armadilha de acreditar que lhe importava.
Ellie esperneava pelos corredores e escadas de caracol da torre maior de Dunluce. Com toda a emoção e agitação das bodas, parecia que ninguém se precavia daquele gigante que levava um saco dando chutes e retorcendo-se sobre as costas.
Apesar das circunstâncias, Ellie opôs toda a resistência que pôde e chegou a alcançá-lo com um par de chutes, até que lhe pôs a mão no traseiro. Aquelas suaves carícias a excitaram tanto que fizeram que seu corpo ficasse lívido e flácido. A seguinte vez que se retorceu, a sensação foi completamente diferente, e o muito vadio, maldito fanfarrão risonho, sabia perfeitamente.
Ellie sentiu o frio da brisa ao sair da torre. Minutos depois o terreno era já mais escarpado, e soube que tinham cruzado a ponte e começado a descida para a cova. Não se revolveu mais por medo que os dois caíssem pelo escarpado. Mas ele, com o passo tão firme como sempre, desembrulhava-se naquele terreno como se de um gato montês se tratasse. De repente o ar se fez mais úmido e estagnado, e soube que deviam estar na cova da Sereia. O lugar onde tudo tinha começado. Poucos minutos depois ouviu que Erik chapinhava sobre a água e sentiu que a subiam em um navio. Outro homem a agarrou e a fez sentar-se em um banco de madeira.
—Desta vez estarei atento aos dentes e aos cotovelos, moça.
Domnall. Teria que ter imaginado que ele estaria comprometido também naquilo. Assim lhe agradecia que o tivesse ajudado a escapar. Isso mesmo tentava lhe dizer. Mas ele, sem dúvida entendendo o justo desses balbucios amordaçados, não fez mais que irromper em risada.
Pouco depois o navio foi pegando velocidade e lhe tiraram o saco da cabeça. Entreabriu os olhos ante o sol para encontrar Erik ali, olhando-a com cara inocente. O outro homem, inteligentemente, tinha-lhes dado espaço, tanto quanto podia naquele pequeno birlinn. Erik se sobressaltou ao reconhecer o envenenado olhar de Ellie.
—Talvez deveria esperar até que se acalme para desatá-la —disse a Domnall, que estava a uns metros dele.
Este se encolheu de ombros.
—Temo que de qualquer forma vai ser muito complicado, moço.
Erik decidiu assumir o risco; começou a lhe desatar as fitas de seda dos pulsos e da boca. Uma vez liberada, Ellie se voltou para ele com a intenção de dar rédea solta a sua fúria, mas uma olhada ao castelo que se erguia a suas costas fez que se detivesse em seco. Lhe encolheu o coração ao ver o enorme escarpado. Erik tinha que estar louco para subir pela torre como se fosse nada. Poderia ter se matado.
Olhou-o com atenção pela primeira vez, e seu estúpido coração deu um salto. Estava quase completamente barbeado, mas tinha deixado que uma fina linha de barba lhe percorresse o queixo. Era a coisa mais estranha que tinha visto, mas aquela barba de três dias ficava bem. Também tinha cortado seus cabelos, embora ainda os tinha tão compridos que caíam sobre seus penetrantes olhos azuis. Uns penetrantes olhos azuis que a olhavam com tanta ternura que fez que Ellie estremecesse de cima abaixo. Ele vestia sem mais amparo que uma cota de couro negra, possivelmente devido a sua néscia escalada. Lhe via tão insuportavelmente belo com esses dentes reluzindo ante sua pele curtida pelo sol que quase doía olhá-lo.
Ao fim tirou forças para lhe falar.
—Em nome de Deus, o que crê que está fazendo? Me leve para casa imediatamente.
—Quero te pedir desculpas.
Desculpas? Depois de lhe ter partido o coração e esmagar-lhe com o pé para destroçá-lo por completo?
Olhou-o com os olhos entreabertos.
—Não te parece um pouco tarde para isso?
Erik fez uma careta de dor enquanto reparava no aspecto lamentável que ela mostrava. Essa expressão de arrependimento tão jovial recordou a Ellie a de seu irmão Edmond. Mas não se tratava de que tivesse quebrado um vaso ou atirado uma taça de cristal bom. O que tinha quebrado era algo muito mais prezado que tudo isso.
—Faz umas horas me inteirei de suas bodas. Cheguei aqui assim que pude. —Arqueou as sobrancelhas com aborrecimento — Como pôde fazer isso, moça? Como pôde aceitar te casar com ele? Será melhor que te explique, porque agora mesmo não estou seguro de que lhe possa perdoar isso.
Perdoar a ela! Mas acaso tinha perdido o julgamento? Tinha sido ele que a tinha rechaçado.
—Eu não… —começou a dizer, mas se deteve e o olhou com suspicácia. Não tinha por que lhe dar explicações. Ele já tinha tomado sua decisão. Que pensasse o que quisesse. Ellie arqueou uma sobrancelha e elevou o queixo nesse gesto de arrogância que sabia que lhe chatearia — E por que não ia aceitar?
Erik franziu a boca e ela soube que ele estava fazendo grandes esforços por conter a calma.
—Porque me ama.
Ellie notou como as bochechas começavam a arder à medida que se enfurecia ante aquela arrogância.
—Supõe-se então que devo penar por ti durante o resto de minha vida? Duvido-o muito. —Ellie fez um gesto com as mãos abrangendo suas roupas e maquiagem — Como pode ver, decidi seguir com minha vida. Aceito suas desculpas. Agora me devolva a casa. Tenho umas bodas a que assistir.
Erik ficou circunspeto. Ao que parecia, aquilo não ia conforme o planejado.
—Temo que não posso fazer isso. Não posso permitir que te case com De Monthermer. Teria que matá-lo e não acredito que nem seu pai nem o rei Eduardo me perdoassem isso.
A Ellie o coração dava saltos no peito; não sabia se era devido à raiva ou ao medo do que Erik pudesse acrescentar.
—É obvio que não o matará. Minhas bodas não é de sua incumbência.
—Mas eu te amo.
O coração de Ellie se deteve e logo prorrompeu em uma aceleração inquietante. Tinha sonhado durante tanto tempo com essas simples palavras que agora não se atrevia às acreditar. Tinha-lhe feito muito mal.
—E o que se supõe que devo fazer, cair de joelhos agradecida? Já é muito tarde. Dei-te uma oportunidade para que me demonstrasse seu amor e a rechaçou.
A brisa acariciou os cabelos dela fazendo que caíssem sobre seu rosto algumas das mechas tão cuidadosamente arrumadas. Erik tomou entre seus dedos uma delas com carinho e o colocou atrás de sua orelha, olhando-a com tanta ternura que ela sentiu um estúpido formigamento no peito.
—Sinto muito, amor. Naquele momento pensava que fazia o correto. Queria te pedir que ficasse, mas como podia fazê-lo quando estávamos a um só passo da derrota? Tentava te proteger.
Ellie o olhou com incredulidade.
—Me rompendo o coração? Sabe o que foram estes meses para mim? —Sua voz se fez mais aguda até alcançar cotas de histerismo. Não era dada à violência mas sentia necessidade dela — E agora que consigo retomar minha vida, vem para me dizer: «Sinto muito. Foi tudo um engano». Que apesar que tudo indicasse o contrário, em realidade me amava e só me rompeu o coração para me manter a salvo em minha própria miséria. E agora que parece que as coisas ficam bem, dá-te conta que te equivocou e decide me raptar no dia de minhas bodas para te desculpar. É isso o que tenta me dizer?
Erik estremeceu e olhou Domnall, que se encolheu de ombros sem poder evitá-lo.
—Parece que se ajusta bastante à verdade, capitão.
Erik acariciou com uma mão seus cabelos açoitados pelo vento.
—Dito assim não soa tão romântico como eu tinha planejado. —Ellie soltou um bufido de exasperação através do nariz. Ele a olhou fixamente — Não podia correr o risco de que não me escutasse.
—Assim decidiu não me dar a possibilidade de escolher.
Erik riu com vontade.
—Mas claro que pode escolher. Simplesmente pensei que era melhor me assegurar de que o entendia.
Ela o olhou aos olhos sem pestanejar.
—E o que acontecerá se já não o quero?
Os olhos de Erik se estremeceram como se tivesse recebido um golpe. Essa dolorosa incerteza que se desenhava nesse rosto petulante e muito belo quase faziam que valessem a pena os meses de tortura passados. Quase.
Ajoelhou-se junto a ela e tomou uma mão para beijá-la.
—Por favor, amor, me dê uma oportunidade para poder te ressarcir.
Ellie sentiu que a emoção inflamava sua garganta e fazia que sua voz se quebrasse.
—Por que deveria te acreditar?
—Porque sabe no mais profundo de seu coração que o que digo é certo. Era eu quem estava tão cego que não podia vê-lo. Mas juro que jamais te darei razão para que possa duvidar de mim de novo.
Soava tão sincero e parecia tão arrependido que quase lhe abrandou o coração, embora tão só um pouco.
—Vamos, moça — interpôs Domnall — Mostre um pouco de compaixão por nós e perdoe ao moço. Esteve insuportável desde que partiu.
Ellie franziu o cenho ante o homem maior.
—Supunha-se que não estava escutando.
—E perder isto? —Domnall riu a gargalhadas — Moça, levo vinte anos esperando para vê-lo render-se aos pés de uma mulher. Tenho intenção de desfrutar de cada momento.
—Me render? —disse Erik com horror — De que demônios está falando? Não estou me rendendo.
Ellie elevou levemente uma sobrancelha com delicadeza desafiando sua descrição da situação.
Ele ficou circunspeto e fulminou Domnall com o olhar.
—Supõe-se que estava do meu lado.
—E estou, menino. Estou — disse rindo.
Erik decidiu ignorar sua audiência e se voltou para ela.
—Poderá me perdoar?
Ellie o olhou com dureza. O certo era que estava a ponto de fazê-lo, mas desejava que sofresse o quanto pudesse. Depois de tudo, umas poucas horas não era nada em comparação com quatro meses. Elevou o queixo e lhe ofereceu o melhor de seus olhares de babá.
—Não decidi ainda. Talvez deveria me levar para casa e deixar que pense nisso durante um tempo.
Erik suspirou e negou com a cabeça com arrependimento.
—Sinto que tenha que acontecer assim. Já sabia que não se mostraria razoável — disse olhando Domnall.
—Isso disse, menino. Isso disse.
Ellie olhou alternamente a um e a outro, perguntando-se que argúcia teria tramado agora. Erik tinha esse diabólico brilho no olhar que prometia problemas.
—Que intenções têm?
Erik se aproximou dela roçando sua orelha com a boca. Ellie tremeu do calor que a estremeceu costas abaixo.
—Tenho intenção de te levar para casa e te fazer entender. Uma e outra vez, até que me acredite.
Ellie tragou saliva ao compreender o que queria dizer. A sensual promessa de sua voz fez que seu abdômen se alagasse de um calor que fazia cócegas.
—Tem intenção de me violar?
—Uma e outra vez.
—Isso já o ouvi — Tentou reprimir o sorriso com todas suas forças. Uma vez viking, sempre viking. Mas teria intenção de levá-la para casa? — Não acredito que meu pai aprove seus métodos.
Erik piscou-lhe um olho, consciente de que a tinha em suas mãos.
—Felizmente para mim, estará muito longe.
Ellie jazia deitada sobre seu peito, com seu suave e nu corpo sobre o seu, em um enredo de membros e lençóis. Imerso em uma felicidade que lhe devolvia a humildade, Erik não queria nem pensar no perto que tinha estado de perdê-la para sempre. Brincava com uma sedosa mecha de cabelo escuro entre os dedos enquanto pensava que aquilo era o mais próximo ao céu que podia chegar um homem em vida.
—Assim estava certo — disse.
Tinha tornado a levá-la a ilha de Spoon, a aquela imensa casa que tinha pertencido a seu pai. O rei lhe havia devolvido suas terras tal e como tinha prometido. Provavelmente Juan de Lorn estivesse em desacordo com isso, mas em seguida se encarregariam dele.
—Embora tenha muitas outras, cheguei a pensar nestas terras como meu lar.
Ellie o olhou com um sorriso, e o peito de Erik se encheu. Como homem favorecido pelos ventos durante toda a vida, jamais até esse momento tinha compreendido quão afortunado era.
—Por mim? —perguntou ela.
—Sim — disse beijando-a no nariz — Quando acabar a guerra, construir-te-ei o castelo mais bonito que tenha visto.
Ela voltou a apoiar a cabeça em seu peito e apertou dele com força.
—Já tenho aqui tudo o que quero. — Fez uma pausa — Quanto tempo podemos ficar?
—Uma semana. Talvez algo mais. —Queria ficar com ela tanto como pudesse. Uma vez que sua mãe e suas irmãs pusessem a mão em cima de Ellie, já não poderia estar com ela tranquilo — Te levarei a Islay antes de me reunir com o rei. Ali estará a salvo junto a minha mãe e minhas irmãs.
Ellie empalideceu, e ele estremeceu ao pensar que talvez ela tinha mudado de ideia.
—Já está arrependida, meu amor? Já sei que sentirá saudades de sua família. Pedi que abandone muitas coisas.
—Pelo que recordo não pediu nada absolutamente — repôs ela olhando-o de relance.
Erik sorriu e se apertou contra ela um pouco mais.
—Não podia arriscar a que me rechaçasse. Estou acostumado a conseguir o que quero.
Ellie elevou a vista ao céu e ele arqueou as sobrancelhas.
—Passar tempo junto a minha mãe e minhas irmãs será bom para ti.
—A que se refere? —perguntou enrugando o nariz
—A que lhe porão a par de quão irresistível sou.
Lhe deu um empurrãozinho no estômago. Erik montou sobre ela entre risadas e a beijou até que a paixão acesa entre ambos voltou a consumi-los. Fez-lhe amor lentamente uma vez mais, aguentando sua mão contra seu próprio peito e olhando-a aos olhos à medida que entrava e saía dela com largas e lânguidas investidas. Observou como o êxtase transformava os traços dela, enchendo-os de uma luz celestial, e entrou em Ellie uma última vez, sustentando-a em seus braços ao tempo que o amor que sentia se derramava por todo seu corpo em estrondosas e profundas ondas.
Passou algum tempo até que pôde pronunciar palavra. Ellie voltou para sua posição deitada sobre seu peito e Erik advertiu uma leve circunspeção em seu semblante. De novo a inquietação carcomia seu interior.
—O que tem, amor? O que se preocupa?
—Gostarão? —perguntou.
Erik sorriu com mais alivio de que queria demonstrar.
—A minha mãe e a minhas irmãs? — disse ao lhe dar outro beijo no nariz — Lhe amarão tanto como eu. Embora…
Ellie abriu os olhos de par em par.
—O que ocorre?
Erik fez como se algo lhe preocupava.
—Minha mãe é mais tradicional. Não aceitará que siga me violando dessa maneira, e como eu tenho toda a intenção de te deixar fazê-lo, suponho que deveremos nos casar.
Ellie voltou a golpeá-lo com o punho.
—Desgraçado! Por um momento me assustou. — Olhou-o atentamente — Suponho que poderia me convencer para que me casasse contigo.
Erik sorriu e passou a mão pela grácil curva de seu traseiro, pegando-se a ela de maneira mais íntima.
—Convencer me dá bem.
—É que não pode pensar em outra coisa? —perguntou Ellie enquanto negava com a cabeça.
Erik continuou rindo sem mais, ao qual Ellie respondeu elevando a vista ao teto de novo.
—Referia-me a que teria que pôr certas condições.
A Erik apagou o sorriso do rosto.
—Que tipo de condições?
—A primeira: nem pensar em outras mulheres. — E antes que pudesse responder, acrescentou —: Nada de seduzir, tocar, beijar nem esses tapinhas que dá no traseiro.
Erik levou a mão ao coração fingindo estar apavorado.
—Nem sequer os tapinhas no traseiro?
Ellie franziu a boca.
—Temo que devo insistir sobre este ponto.
Seus olhos se encontraram e, apesar de que se tratava de um jogo, Erik pôde apreciar a vulnerabilidade que escondiam suas palavras. Deixou todo rastro de provocação a um lado, pegou-a pelo queixo e a olhou diretamente aos olhos.
—Não estive com ninguém desde que te conheci. — Não pôde culpá-la pela expressão de ceticismo que cruzou seu semblante. Sorriu com amargura — Acredite, para mim resulta tão surpreendente como para qualquer um. Mas depois de quatro meses, nove dias e oito horas — acrescentou após olhar o ângulo do sol através da janela —, Queira ou não acreditar, tenho que me convencer. Te amo, Ellie. É tudo o que quero e quanto necessito em minha vida.
O sorriso com que se iluminaram os traços de Ellie lhe chegou ao mais profundo do coração.
—Sério?
—Sério — disse lhe acariciando a bochecha — Sou leal, Ellie. Uma vez outorgada minha lealdade, tê-la-á até a morte. — Fez uma pausa — Talvez deveria ser eu quem pusesse as condições, pois não era eu quem estava a ponto de casar-me com outra.
Ellie fez uma careta, e lhe surpreendeu o muito que seguia lhe afetando aquilo. Não tinha nenhum direito a estar ciumento, mas estava.
—Ah, sim. A respeito disso — disse Ellie mordendo o lábio —, acredito que esqueci de contar um detalhezinho de suma importância a respeito das bodas de hoje.
Erik franziu o cenho.
—Que tipo de detalhe?
Ela retorceu a boca como se tivesse que reprimir o sorriso.
—A identidade da noiva.
Se o que pretendia era deixá-lo de pedra, tinha-o conseguido.
—Não compreendo. O rei disse que sua cunhada ia casar se com De Monthermer.
—Assim é. Minha irmã Matty deve estar casando-se com De Monthermer neste preciso momento.
—Sua irmã? —repetiu sem poder acreditar.
Ellie assentiu e lhe explicou que, embora já pressentia que ocorria algo estranho entre os dois, não tinha podido identificá-lo até que, depois de sua volta a Escócia, obrigou sua irmã que confessasse qual era a causa de toda sua desgraça. Seu pai tinha bento a mudança de nomes no contrato de casados. Erik entreabriu os olhos. Que víbora má.
—E não pensava me pôr à par disto?
—Pensava que merecia um pequeno castigo por tudo o que me tem feito passar — disse imitando seu incorrigível sorriso.
Erik franziu a boca. Talvez fosse certo.
Ellie mordeu o lábio, ao que parecia, considerando algo no que antes não tinha percebido.
—Já sei que diz ter deixado uma nota, mas espero que meu desaparecimento não os leve a suspender as bodas.
—Não acredito que o faça. Esta Matty da que fala não será por acaso uma loira de cabelo comprido encaracolado com os olhos azuis?
Ellie assentiu.
—Conhece-a?
—Conhecemo-nos esta manhã. —Agora tocava a ela ficar de pedra — Não sabia qual era sua janela — disse encolhendo de ombros como um menino — Me equivoquei. Ao princípio pensava que gritaria, mas depois sorriu e me disse que tinha demorado muito para chegar. Perguntou-me se tinha intenção de me casar contigo, e quando lhe respondi que assim era me pôs na direção correta.
—Muito próprio de Matty — disse Ellie entre risadas.
Esfregou a bochecha contra seu peito com mais força. Erik notou como percorria a marca de seu braço com os dedos e não lhe surpreendeu que ela dissesse: —Vê-se diferente. Este desenho que te rodeia o braço não estava aqui antes. Parece uma… — Elevou a vista para olhá-lo e sorriu — É uma teia de aranha! É pela história que me contou?
—É muito observadora — disse lhe dando um beijo no nariz.
Ellie voltou a acariciar o desenho.
—E isso parece um birlinn que caiu na rede. — Sim, essa era a ideia — Teria que ter sabido antes o que significavam as marcas: o leão rampante é o símbolo do reino da Escócia. Mas significa algo mais, não é certo? Essa é a razão pela que mantém sua identidade em segredo. Você e aquele homem do acampamento são parte do bando de guerreiros fantasmas do que tanto ouvi falar.
—Ellie — disse negando com a cabeça. Ao que parecia, não seria fácil guardar segredos com ela perto — Põe as coisas muito difíceis para que um homem cumpra suas promessas.
Ellie sorriu.
—Não me disse nada. Fui eu que o adivinhei. — ficou olhando-o suspicazmente — Mas se vou me casar contigo, acredito que há algo que mereço saber.
Erik arqueou uma sobrancelha.
—E o que é?
—Meu novo nome.
Erik riu e a beijou.
—Então isso significa que se casará comigo?
—Ainda o estou pensando.
—Mmm… já mencionei que possuo mais de uma dúzia de ilhas?
Os olhos de Ellie brilharam de emoção.
—De verdade?
Ele assentiu.
—Talvez possa me convencer para que as mostre. — Sua expressão se voltou séria — Se case comigo, Ellie. Levar-te-ei aonde queira. Mostrar-te-ei o mundo. Simplesmente diga que te casará comigo.
—Sim — disse ela em voz baixa com os olhos brilhantes pelas lágrimas — Me casarei contigo.
Erik a abraçou com força e se viu tentado de levá-la à igreja imediatamente por medo de que mudasse de opinião. Mas sabia que sua mãe e suas irmãs jamais o perdoariam. Puxou-a pelo queixo e a beijou com ternura.
—Seu novo nome é MacSorley.
Ellie deixou escapar uma gargalhada e seus olhos resplandeceram pelo divertido que lhe parecia.
—O filho do viajante do verão. Teria que tê-lo adivinhado. Em realidade é um autêntico pirata.
Erik riu, tomou em braços e lhe mostrou tudo quão desumano podia ser um pirata. Uma e outra vez.
Epílogo
7 de julho de 1307
Quando chegou o mensageiro, Bruce, o rei da Escócia, estava sentado junto aos dez membros da Guarda dos Highlanders na sala de armas temporária do grande salão do castelo de Carrick. Agora que Falcão havia voltado, só faltava um de seus guerreiros de elite. Não faltava, apressou-se a corrigir-se, mas sim estava plantado como uma semente no mais profundo do coração do inimigo, preparado para jogar raízes quando chegasse o momento. Bruce fez gestos ao homem para que se aproximasse.
—É para você, senhor — disse com uma reverência, ao tempo que entregava uma parte de pergaminho — Vem de Burghon-Sands.
Bruce ficou circunspeto, perguntando-se se seriam aquelas as notícias que estava esperando. Eduardo tinha reunido seus homens em Carlisle fazia poucos dias e conforme diziam se levantou de novo de seu leito de morte para liderar a carga sobre Bruce.
—O que ocorre? — perguntou MacLeod — Parece que viu um fantasma.
Bruce o olhou sem poder dar crédito ao que tinha lido.
—Talvez o tenha visto. Mas é um fantasma que me alegro de ver. — Olhou ao redor da sala sentindo que seu assombro era substituído pouco a pouco por uma crescente alegria — Morreu — disse rindo ao precaver-se ao fim de que seu velho açoite havia falecido — Que ordenem tanger os sinos de todas as igrejas de um e outro lado da costa. O rei Eduardo se foi ao inferno!
Os homens prorromperam em vivas triunfais. Não podiam sentir tristeza pela morte de um homem que tão pouco teve piedade deles em vida. O autodenominado Martelo dos Escoceses se foi ao inferno ao que pertencia, levando com ele sua mortífera bandeira do dragão.
Bruce sabia que, com a morte de Eduardo Plantagenet, as ondas voltavam a romper sobre a costa da Escócia. Sobre os inimigos internos. Em lugar de Eduardo, Bruce teria que enfrentar agora a seus próprios patrícios no campo de batalha: ao sul, os sanguinários MacDowell que tinham assassinado seus irmãos, e ao norte seus velhos inimigos, os Comyn e os MacDougall. Sorriu. A semente que tinha plantado estava a ponto de jogar raízes.
Fim
Nota da autora
Como mencionado na nota do autor de O guerreiro, em um desses grandiosos e memoráveis momentos da investigação para minha ideia de «Grupo de Operações Especiais com saias escocesas», topei com uma referência enviesada de um bando de guerreiros das ilhas designados por Angus Og Macdonald para proteger Bruce a sua volta a Escócia, depois da volta do refúgio das ilhas. O personagem de Erik MacSorley está apoiado em Domnall (Donald) das Ilhas, um dos filhos de Alastair Mor MacDonald e primo de Angus Og, de quem se dizia era o líder do grupo.
O pai de Erik, Alastair Mor, é um dos aclamados progenitores do clã MacAlister, embora haja diferentes opiniões com respeito a isto. Foi assassinado em 1299, algo mais tarde que o que eu sugeri, em uma batalha com os MacDougall.
Como naqueles tempos não se usavam sempre os nomes dos clãs, decidi pelo mais genérico MacSorley, que significa filhos de Somerled, para distinguir Erik de seus primos MacDonald. MacSorley se usa para referir-se a qualquer descendente de Somerled: os MacDonald, MacDougall, MacRuairi, etc.
Não há memória escrita a respeito da mulher de Erik, mas as alianças com a Irlanda e a ilha de Man estavam à ordem do dia entre os chefes de clã das ilhas Ocidentais. Uma das coisas que mais difícil me resultou assimilar foi a cercania entre a Irlanda e Escócia e a importância das vias marítimas. Em sua parte mais larga, mal são vinte os quilômetros que separam o promontório de Kintyre na Escócia da costa de Antrim na Irlanda. Em um dia claro se pode ver uma costa da outra. Navegar até a Irlanda de navio da costa escocesa tinha que ser mais fácil e rápido que cobrir a mesma distância por terreno firme. Um olhar ao mapa deixa claro a razão pela que Kintyre e a costa escocesa de Ayrshire, as ilhas Ocidentais, a ilha de Man e Antrim na Irlanda estão tão conectados, tanto política como culturalmente.
Ao tentar encontrar uma esposa merecedora de Erik, não me custou muito me concentrar nos De Burgh, especialmente uma vez que tive encontrado a troca de prometidos entre as duas irmãs De Burgh (são coisas que ninguém pode inventar) que tão bem encaixava em minha história. Maud de Burgh estava prometida em matrimônio em um princípio para sir John de Birmingham, primeiro conde de Louth, mas este acabou casado com sua irmã Aveline. Depois Maud se casaria com o enteado de Ralph de Monthermer, Gilbert de Clare, oitavo conde de Hertford. Ellie e Matty são minhas versões fictícias destas duas irmãs.
O contrato de matrimônio com o Ralph de Monthermer (também conhecido como Raúl) é igualmente fictício. Mas sua história não é. Casou-se clandestinamente com a filha de Eduardo, Juana de Acre, e sofreu uma estadia na torre por transgressão contra seu ultrajado rei. Ao final lhe perdoou e lhe foram concedidos os títulos de conde de Gloucester e de Hertford em vida de Juana, e também de Atholl temporalmente, depois da execução do anterior portador do título. Mais tarde, nomeá-lo-iam primeiro barão Monthermer. Lutava na Escócia por aqueles tempos e se diz dele que foi açoitado até o castelo de Ayr por Bruce dias depois da batalha de Loudon Hill, tal e como se menciona no livro. Apesar da lealdade que Ralph professava a Eduardo, contam que foi ele quem avisou Bruce em 1306 do perigo que corria ante o rei, o qual motivou a revolta.
Além do destino corrido pelas mulheres nas jaulas, algo que por desgraça é certo, o desafortunado conde de Atholl, que foi executado depois da batalha de Methven, provê-nos com informação valiosa a respeito da atitude sem misericórdia do rei Eduardo para os rebeldes do momento. O primeiro conde executado em mais de duzentos anos tentou apelar à misericórdia de Eduardo em honra a seu parentesco. Em resposta, o rei mandou que o pendurassem mais alto que aos outros para que ficasse claro seu status.
Talvez uma das histórias mais conhecidas de Bruce seja a da aranha que dá começo a O Falcão. Ao menos há três covas na Escócia que se proclamam como lugar deste famoso sucesso, mas a ilha de Rathlin na Irlanda parece estar entre as favoritas. A história da aranha é desenhada como a origem do dito: «o que segue a consegue». Por isso, apesar de que esteja muito estendida, muitos estudiosos se perguntam se a história teve alguma vez lugar e a atribuem a sir Walter Scott, de que parecem provir umas quantas lendas desse tipo.
Feito ou ficção, o delicado da situação de Bruce não pode ser exagerado em modo algum. Sua recuperação da coroa tem que ser à força uma das melhores «remontadas» de todos os tempos, aproximando-se inclusive a quão remontada os Rede Sox fizeram ante os Yankees na temporada 2004 da liga de futebol americano. (Sinto muito, não pude resistir.) Sir Herbert Maxwell resume a posição de Bruce a princípios de 1307 desta forma: «Não tinha nem um acre de terras que pudesse chamar próprio; três de seus quatro irmãos e a maioria dos amigos nos que podia confiar tinham caído na forca; o resto das pessoas que o apoiava, quase todos, tinham cessado em seus serviços ao acreditá-los inúteis e voltado para as ordens do rei Eduardo; sua esposa, sua filha e suas irmãs estavam nas prisões inglesas (Evan MacLeod Barron, The Scottish war of Independence, Barnes and Nobre Books, Nova Iorque, 1914, P. 261).
O Banho das Donzelas (ou das Virgens) é minha versão do Banho do Urso Polar, quer dizer nadar sob o gelo. Quando era pequena, minha irmã e eu estávamos acostumadas a fazer algo parecido no lago Tahoe. Corríamos pela neve até saltar em uma piscina gelada para logo sair correndo para a jacuzzi. É muito mais divertido do que parece. As celebrações pagãs eram incorporadas com frequência nos ritos e festas cristãs. Há uma escola de pensamento que toma o dia da Candelaria pela cristianização da celebração pagã gaélica da deusa Brighid.
Aymer de Valence foi renomado conde de Pembroke no ano 1307. Sua pouco cavalheiresca conduta na desastrosa batalha de Methven foi talvez a causa de que Bruce abandonasse o código de cavalaria em busca de um estilo de combate pirata do qual tirou grande partido. Pudesse ser que Valence tomasse sua vingança pessoal. Sua tia estava casada com lorde Badenoch, um membro dos Red Comyn, ao que Bruce matou em Greyfriars, batalha que tem lugar no final do O guerreiro.
Sir Thomas Randolph, que, junto a sir James Douglas, o Negro, converter-se-ia em um dos companheiros mais leais e famosos de Bruce, foi capturado pelos ingleses pouco depois de Methven e passou ao outro bando até o ano 1309. É célebre aquela frase em que acusa seu tio de lutar «como um bandido, em lugar de liberar uma batalha equilibrada como faria um cavalheiro» (Ronald MacNair Scott, Robert the Bruce, King of Scots, Barnes and Nobre Books, Nova Iorque, 1982, P. 111). Não obstante, parece ser que Ralph ao final volta com seu tio para converter-se em um de seus «mais brilhantes» cabeças.
O número de homens com o que contava Bruce para lançar seu ataque na Escócia é incerto. Entre trezentos e quatrocentos em Carrick e perto de uns setecentos em Galloway parece ajustar-se à realidade. A frota maior, composta sobre tudo por irlandeses e homens das ilhas, liderada pelos malfadados irmãos de Bruce, fracassou estrepitosamente e caiu nas mãos dos MacDowell, salvando-se só dois dos navios. Não obstante, não há evidência de que o ataque estivesse formado por duas pontas como eu sugiro (embora teria tido sentido), e o desastre de Galloway foi certamente anterior à tentativa de Bruce em Carrick. Pensa-se que ambas as divisões partiram desde Rathlin, mas não puderam estar ali durante muito tempo. Tentar ocultar um milhar de homens em uma ilha tão pequena teria sido muito complicado tendo os ingleses por toda parte.
Onde se refugiou Bruce durante os quatro ou cinco meses entre sua fuga de Dunaverty e o ataque de Carrick é um dos grandes mistérios da história. Alguns acreditam que na Noruega, onde reinava sua irmã, mas a maioria dos historiadores pensa que se escondeu nas ilhas Ocidentais e Irlanda, com ajuda de Angus Og MacDonald e Cristina MacRuairi das Ilhas.
Igualmente a rota desde Rathlin até Arran para lançar o ataque de Carrick não é mais que uma conjectura. C.W.S. Barrow, historiador especialista em Bruce, afirma em seu influente Robert Bruce e a comunidade do Reino da Escócia que foi desde Rathlin ao promontório de Kintyre subindo a costa e que depois voltou para Arran. Cruzar Tarbert à maneira de Magnus o Descalço é de minha própria invenção, mas parece factível. É de supor que a frota inglesa, que tinha sido chamada a filas em uma carta do rei Eduardo ao conde de Ulster em finais de janeiro, estaria pondo de pernas para acima o fiorde de Clyde. Atravessar Tarbert cobrou inclusive mais sentido para mim quando descobri que se dizia que Bruce tinha acampado no castelo de Lochranza, na ponta norte da ilha de Arran. Teriam que ter acontecido mais à frente do castelo de Tarbert, ocupado pelos ingleses.
Militarmente, a escaramuça de Glen Trool, em que foi repelida a tentativa de Aymer de Valence de tender uma emboscada a Bruce e seus homens, não foi uma vitória tão decisiva como a de Loudon Hill. Mas se diz que uma mulher foi enviada ali para espiar os escoceses a noite anterior à batalha. Entretanto, em lugar de espiar parece ser que a mulher perdeu os nervos e falou com Bruce da presença dos ingleses, alertando-o, então, do perigo e lhes salvando a pele (veja-se Scott, P. 101). A história provém do poema The Brus, de John Barbour, e bem poderia ser apócrifa, mas me serve de inultrapassável inspiração para introduzir Ellie no acampamento.
A ilha de Spoon, situada a três quilômetros da costa de Kintyre, tem muitos nomes, mas no dia de hoje a conhece como Sanda. O «Ponto de Eduardo» é um marco marcado como o lugar que Eduardo Bruce vigiava a costa enquanto seu irmão escapava de Dunaverty. Entretanto, Spoon não era parte das terras dos MacSorley, mas sim naquela época pertencia ao priorado de Withorn de Galloway.
As fórmulas de cortesia medievais são complicadas, já que não estavam reguladas como hoje em dia. Ao Bruce o chamavam de muitas maneiras diferentes dependendo de quem se dirigisse a ele: para seus poucos servos leais era «meu senhor» ou «rei»; para quão ingleses o tinham despojado de seus domínios (onde lhe chamava «lorde de Annandale» e «conde de Carrick») e o consideravam um rebelde, era simplesmente «sir Bruce»; e para outros, «lorde Bruce». Citando documentos da época, as notas de Barrow fazem referência ao «conde Juan» (P. 224) e ao «conde Malise» (P. 225), formas que não seriam corretas hoje em dia. Não obstante «sir», junto ao nome de batismo, parecia usar-se por falta, assim ante a dúvida sempre usei esta fórmula. Ellie provavelmente teria se referido a Ralph como sir Ralph, mas decidi pelo uso de Ralph por ser mais familiar e menos pomposo.
Como expediente, a data de 7 de julho de 1307 marca o fim de um dos reis ingleses mais famosos e grandes segundo alguns. Eduardo I, o autodenominado Martelo dos Escoceses, morreu durante sua marcha ao norte para pôr fim à «rebelião» escocesa. Seu último desejo, que pusessem seus ossos em uma urna e o levassem a frente de seu exército até que derrotassem aos escoceses, foi ignorado por seu filho e herdeiro Eduardo II.
Notas
[1] O birlinn (bìrlinn escrito em gaélico escocês ) era um tipo de embarcação usado especialmente na Hébridas e West Highlands da Escócia, na Idade Média . The Birlinn is a Norse-Gaelic variant on the Norse longship . O Birlinn é uma variante do gaélico-nórdica no Norse canoa . Variants of the name in English and Lowland Scots include “berlin” and “birling”. Variantes do nome em Inglês e Escocês Várzea incluem “Berlim” e “BIRLING”. It probably derives ultimately from the Norse byrðingr , ie a ship of burden. É muito provável que, em última análise deriva do nórdico byrðingr, ou seja, um navio de carga.
[2] Benbane Head é o ponto mais setentrional do continente Irlanda do Norte . It is located in County Antrim , near to the Giant’s Causeway , which is situated between Causeway Head and Benbane Head. Ele está localizado no condado de Antrim , perto da Giant’s Causeway , que se situa entre Causeway Head e Head Benbane.
[3] Espécie de armadura
[4] Espécie de tunica
[5] Um istmo (do grego ?s?µ??) é uma porção de terra estreita cercada por água em dois lados e que conecta duas grandes extensões de terra.
Capítulo 15
Ao dia seguinte Ellie jazia recostada sobre os braços de Falcão, com a cabeça apoiada sobre o quente e firme muro de seu peito revestido de couro, perdida na deslumbrante vermelhidão da intimidade compartilhada. Escutava o feroz bater de seu coração pensando que era a coisa mais formosa que jamais ouviu.
Esse era exatamente o efeito que ele provocava em Ellie. O acontecido no dia anterior não tinha sido imaginação dela. Que uma garota como ela pudesse ter um homem como ele, literalmente na palma da mão e fazê-lo enlouquecer de paixão supunha um descobrimento embriagador. Saborear o poder da sensualidade pela primeira vez tinha estado a ponto de embebedá-la. O suficiente para escapulir em pleno dia como uma prostituta ao estábulo com objeto de consumar outra relação ilícita. Aquilo era infame. Estava mau. Era um pecado ante Deus e uma traição da promessa que tinha feito a Ralph. Era consciente de tudo isso, mas quando se aproximou pelas costas no jardim e lhe sussurrou ao ouvido que se encontrassem no estábulo, seu corpo se viu alagado com todas aquelas sensações de deliciosa escuridão. Durante trinta segundos sua consciência liderou uma batalha feroz contra o desejo. Agora que tinha provado pela primeira vez, a tentação resultava mais forte inclusive. Atenuava a culpa dizendo que não fazia nenhum dano duradouro, que após anos de comportamento exemplar e de atender as necessidades de todos salvo as dela, merecia aqueles poucos momentos roubados de felicidade egoísta. Mas sabia que tentava justificar algo injustificável, independentemente de que desfrutasse tanto com isso.
E o certo era que desfrutava intensamente. Ao olhar seus olhos ao tempo que ele a acariciava e ela o acariciava, o momento em que levavam um ao outro ao cume e se viam catapultados a um reino de êxtase inimaginável, sabia que jamais voltaria a sentir algo como aquilo. Talvez tivesse sido um engano. Agora teria que viver com o sofrimento de saber o que estava perdendo.
Mas não podia arrepender-se disso.
Se aconchegou junto a ele o quanto pôde e suspirou com o desejo de fazer que aquele momento durasse tanto como fosse possível. Quem haveria pensando que lady Elyne de Burgh, uma das maiores herdeiras da Irlanda, sentir-se-ia feliz jazendo em um desmantelado estábulo sobre um montão de palha, com o penetrante aroma das cabeças de gado alagando seu nariz, encolhida no férreo abraço de um pirata? E entretanto, jamais havia se sentido mais animada, feliz, nem protegida.
Quase podia convencer-se de que aquilo significava algo, que aqueles sentimentos que brotavam ao tocar um ao outro eram algo mais que o próprio desejo, que quando ela o olhava aos olhos, ele sentia a mesma conexão intensa e assustadora que ela. Quase. Não importava o bem que se sentisse. Não podia permitir-se esquecer que somente era algo temporário, que se tratava de um desejo puramente físico. «A paixão pela paixão.» Mas cada vez se fazia mais difícil recordar deste último quando seus próprios sentimentos estavam sumidos em tal confusão. Não sabia como podia ter acontecido isso a ela. Supunha-se que ela não permitia que a paixão se mesclasse entre suas emoções. Era consciente que esse tipo de homem era completamente inadequado para ela e de que tomar carinho a levaria sem remédio ao desamor e à decepção. Mas lhe tinha tomado carinho. Mais do que devia.
Se estivesse tratando somente de um rosto bonito, teria sido mais fácil resistir a ele. Mas se sentia atraída como jamais se sentiu atraída por ninguém antes. Aquele homem vivia ao limite e convertia tudo em uma aventura. A fazia recordar todas as coisas que sentia falta na vida: divertir-se, as emoções, a paixão. A vida junto a ele jamais seria aborrecida.
Entretanto, aquele tipo de vida extrema e sublimação do perigo não inspirava pensamentos de perseverança e estabilidade. Teria gostado de acreditar que significava algo para ele, mas não estava segura que esse homem fosse capaz de comprometer-se nem de permitir que ninguém invadisse seu mundo. Aquele mesmo caráter imperturbável que admirava lhe dizia que atuasse com cautela. Nada parecia cativá-lo. Não o fazia o perigo, mas tampouco as pessoas. Assim e tudo, quanto mais tempo passavam juntos, mais se convencia de que Falcão guardava em seu interior muito mais do que se via a simples vista. Entre aquele caminhar fanfarrão de pirata e seu sorriso do diabo contudo, podia entrever brilhos de algo mais profundo, um homem com maior honra e nobreza da que se atrevia a admitir. Era um enigma, como olhar um quebra-cabeças que faltassem peças. Nem sequer conhecia seu verdadeiro nome. E ele tampouco conhecia o dela.
Uma parte dela queria contar-lhe mas sabia que assim que o fizesse tudo acabaria para eles. Esse sentido de nobreza tão pouco pirata que tinha poria fim a aqueles momentos no estábulo e às excursões privadas ao redor da ilha. Seus lábios esboçaram um sorriso irônico. Talvez estivesse bem contar-lhe. Assim a obrigaria a casar-se com ele para conseguir seu dote. Aquele pensamento, embora não fosse sério, a fez repensar. Era isso o que queria, casar-se com ele? Teve vontade de rir ante aquela ridícula ideia, mas não era capaz de ver o lado gracioso do assunto. Tinha chegado muito longe para algo que se supunha uma brincadeira.
Falcão acariciava distraidamente suas costas fazendo círculos com os dedos.
—No que está pensando?
Ellie duvidou, consciente de que estava a ponto de comprovar a firmeza das tácitas barreiras estabelecidas entre eles.
—Em que sequer sei seu verdadeiro nome.
Notou perfeitamente que a pergunta o incomodava. Por um momento não pôde ouvir mais que o batimento de seu coração. Pressentiu a negativa antes que lhe desse tempo para falar.
—Não posso lhe dizer. —lhe respondeu — Há certas coisas… —disse com uma voz que se apagou por um instante — É complicado. Me acredite se lhe digo que é melhor que não saiba.
Complicações, algo que entre eles não existia. Lhe encolheu o coração. «Nada especial. Nada sério.» Tentou ocultar sua decepção, mas depois de tudo o que tinham compartilhado e da confusão em que sumiam seus próprios sentimentos era um golpe difícil de aceitar.
—Entendo — sussurrou contra seu peito.
Tomou pelo queixo para olhá-la aos olhos.
—É tudo o que necessita saber, tè bheag. O que sente é algo… natural. Mas não confunda a paixão com algo mais.
A amabilidade refletida em seus olhos cortava como uma adaga. O calor subiu pelas bochechas de Ellie. Se não a mortificasse tanto, teria reconhecido a ironia. Não tinha sido ela a que o acusava em outro momento daquilo mesmo, confundir o desejo com o amor? Ante a própria confusão de seus sentimentos, aquela advertência era como pôr sal em uma ferida aberta. Mas o arrependimento que leu em seu olhar conseguiu aliviar a dor.
—Não o compreende — disse Falcão — Mas assim é como deve ser por agora.
«Por agora.» Ellie tentou não dotar de significado aquelas palavras, mas seu estúpido peito se encheu de todos os modos. Sua cabeça não cessava de lhe recordar todas as razões pelo que aquilo era um caso perdido, mas a seu coração parecia lhe importar pouco. Inclusive evitando o assunto de seu compromisso de matrimônio e de que era a filha de um duque em tanto que ele um foragido, o qual não supunham barreiras fúteis, também estava o problema dos sentimentos que ele albergava por ela. Para ele, Ellie não era mais que um passatempo prazeroso.
Entretanto, não o sentia daquela maneira.
—Que tal se lhe permito que me chame de outra forma? —O brilho nos olhos dele lhe disse que de sua boca não sairia nada bom — O que lhe parece deus? Dá a impressão de que você gosta muito de me chamar assim quando está a ponto de…
—Você —espetou— é terrível. —Era consciente que deveria se zangar que voltasse para as andadas e arremetesse contra ela, mas talvez fosse um bom aviso de que não podia permitir que aquilo se fosse pelas mãos. Dirigiu-lhe esse olhar de babá condescendente — E além disso põem em perigo sua imortal alma ao pronunciar essas blasfêmias.
—Minha imortal alma a pus em perigo faz tempo fazendo coisas muito piores que esta —disse movendo os olhos de um lugar a outro.
—Posso imaginar.
Erik suspirou profundamente e deixou de abraçá-la de modo que ambos pudessem sentar-se.
—Temo que devo voltar junto a meus homens, e será melhor que você volte para a casa antes que seu cão guardião venha lhe buscar.
Ellie se ruborizou. Thomas, que tinha se recuperado completamente, não ocultava sua desaprovação a respeito de que saísse a sós com Falcão durante esses últimos dias.
—Não é meu cão guardião.
Falcão lhe dirigiu um olhar que significava que não se dignaria a responder.
Levantaram e ajustaram bem as roupas, sacudindo o pó e a palha. Se pudessem vê-la nesse momento Catherine e Edmond… Quantas vezes tinha tirado seu irmão e sua irmã do estábulo e os tinha castigado por sujar suas roupas? Ellie tinha todo o aspecto de alguém que tinha estado rodando sobre pó e feno, o qual supunha que seria certo.
Para acrescentar mais ilegitimidade ao assunto, estavam completamente vestidos. Não podiam arriscar que alguém entrasse, e Falcão tampouco contava com muito tempo. Esse dia não tinham podido fazer nenhuma exploração. Suspeitava que sabia qual era a razão. Seu paraíso de loucura logo chegaria ao fim.
Jogou a capa da espada para trás e alargou o braço para agarrar sua tocha, espada e escudo, que descansavam sobre um dos compartimentos do estábulo, das ovelhas, deduziu, pelo aroma que desprendia.
—Quanto fica para partir? —perguntou Ellie.
—Ah, moça. Não se preocupa muito minar a confiança de um homem verdade? —disse com uma careta — Já está aborrecida?
Sorriu, mas aquela provocação não conseguiria distraí-la.
—Sua confiança segue intacta. Quando?
Suspirou.
—Amanhã de madrugada.
Quase deu um ataque no coração pela impressão. Por Deus santo, nem sequer ficavam dois dias completos. Precaveu-se do influxo que tinha tido aquele feitiço sobre ela quando recebeu o golpe da verdade: não queria partir para casa, a não ser ficar com ele. Mordeu o lábio e o olhou de novo em busca de algo que lhe indicasse o que ele sentia, mas sua expressão era inescrutável.
—Tão logo?
Encolheu de ombros e lhe dirigiu um sorriso perverso.
—Sempre poderia decidir ficar com você.
O coração deu um tombo, embora, é obvio, ele não falava a sério. Engenhou para esboçar um sorriso que ocultasse a profunda dor que sentia em seu interior.
—Não acredito que a minha família agradasse a ideia.
Acreditou intuir algo em seu olhar, mas se desvaneceu antes que pudesse reconhecê-lo.
—Poderia lhe forçar a permanecer aqui — disse com dissimulação, mas com um estranho tom na voz.
Ellie não acreditava nem por um segundo que o dissesse a sério. Era muito honrado para cometer uma traição de tal magnitude. Agora podia assegurá-lo.
—Não me engana com suas pretensões de pirata.
—Ah, não? —surpreendeu-se arqueando uma sobrancelha.
Ellie negou com a cabeça.
—Sabe o que é que penso?
—Não me atreveria a adivinhá-lo.
O sarcasmo de sua voz não a intimidou.
—Acredito que esta ilha era parte das terras que roubaram de seu clã. —Essa era a razão que as conhecesse tão bem. Perambulava pela ilha do mesmo modo que o tinha feito durante anos. As covas. A sauna. E apesar de ter tentado afastá-la dos ilhéus em suas expedições, aqueles com que cruzaram o tratavam com deferência extrema, quase como se fosse o próprio rei — Acredito que quando o velho do povoado lhe chamou taoiseach, não se tratava de nenhum engano.
Observou-o atentamente com o propósito de encontrar alguma reação que sugerisse que tinha dado no alvo, mas sua expressão não lhe dizia nada absolutamente.
—Volta a carga com isso, né? —Meneou a cabeça fingindo estar decepcionado — Acredito que deveria deixar que siga sendo eu o que conte as histórias. Sou melhor que você fazendo-o. Por mais sonhos que possa ter na cabeça, pequena, sou um foragido. Não esqueça nunca.
Percebeu o tom de advertência de sua voz, mas não pôde evitar pensar que escondia muito mais do que queria que soubesse. Mas não tinha intenção alguma de contar-lhe. Jamais chegaria a saber se tinha importância ou não.
Erik não podia acreditar. Como demônios tinha sido capaz de adivinhar a verdade? Jamais deveria ter falado sobre as terras usurpadas de seu clã. Tão somente o fez porque não gostava de vê-la sofrer. Do mesmo modo que a via sofrer agora. Deveria ter sabido que ela não seria capaz de tomá-lo à ligeira. Era o tipo de moça que tomava tudo a sério. Erik sentia o perigo. Era consciente que Ellie estava se implicando muito, mas tampouco era capaz de afastar-se dela. Ter provado seu corpo uma vez não tinha bastado absolutamente. Somente tinha servido para que sua fome crescesse mais e mais. Muito mais.
Era evidente que a sauna não tinha tido nada a ver, pois no dia seguinte Erik demonstrou a mesma falta de controle. Não sabia o que tinha essa moça que o fazia perder a cabeça. Deveria estar com seus homens, preparando-os para a batalha mais importante de suas vidas e planejando a viagem de volta a Irlanda no que tinham que atravessar o forte cerco das patrulhas, em lugar de escapulir para roubar uns momentos de prazer, como se fosse um moleque com sua primeira garota. Mas que o crucificassem se não tinha valido a pena. Tinha obtido mais prazer daquela mão do que tinha experimentado em muito tempo. Mas aquele prazer começava a resultar perigoso.
Desejava com todas suas forças poder desalentar os pensamentos românticos da moça. Fosse pirata ou não, ele era um homem açoitado pelos ingleses e não estava em posição de oferecer nada mais, inclusive no caso de ter querido fazê-lo, o qual não desejava. Brincava quando disse que podia ficar com ela. Aquela queimação que tinha sentido ante sua rápida negativa era orgulho, isso somente.
Observou-a enquanto recolocava a roupa. Que olhasse para outro lado podia considerar uma indicação; de modo que tinha captado a advertência. Dispuseram-se a sair do estábulo e, já na porta, Erik sentiu de novo essa estranha pressão em seu peito. Aquela necessidade premente e enlouquecedora de fazê-la feliz. Ellie agarrou o batente da porta. «Deixa-a partir. É melhor assim.»
—Espere! —soltou de repente.
Ellie se voltou devagar, com seu pequeno rosto levemente inclinado em atitude inquisitiva.
O coração pulsava a um ritmo descontínuo. Não sabia o que dizer. Mas aquilo não podia ser. Jamais lhe faltavam as palavras. Ela o olhava com espera. Deu vontade de passar as mãos pelos cabelos e mover os pés de inquietação. Ao final economizou posteriores desconfortos mediante algo que captaram seus olhos. Alargou o braço, tirou-lhe um fio de palha dentre os cabelos e a sustentou em alto para examiná-la.
—Talvez tenha problema para explicar isto.
As bochechas dela arderam de rubor e Erik pensou que jamais tinha visto ninguém que se ruborizasse de maneira tão adorável.
—Obrigada — disse ela.
Ficaram olhando por um momento interminável até que ele rompeu o feitiço.
—Você deveria sair antes.
Ellie assentiu e se dispôs a fazê-lo, mas depois deu meia volta inesperadamente.
—Te verei esta noite?
Sabia que seu dever era afastar-se dela, que isso faria que a partida fosse mais fácil, mas se surpreendeu assentindo.
A calidez do sorriso com que respondeu Ellie o envolveu em um suave abraço. Era algo de louco. Virtualmente podia sentir as emoções dela como próprias. Como se a felicidade da moça fosse mais importante que a sua própria.
Observou como atravessava o jardim e esperou que desaparecesse no interior da casa para sair do estábulo. Estava quase na borda do escarpado, no mais alto do caminho que levava a praia, quando ouviu um ruído a suas costas. Reconheceu-o pela fúria de suas pegadas inclusive antes que se desse a volta. Falcão olhou ao cavalheiro de corado rosto, que tinha se vestido com a armadura completa pela primeira vez desde que caiu doente. Ao que parecia, a cota de malha de Randolph tinha resistido as inclemências da água muito melhor que ele mesmo. A via tão polida e resplandecente como a uma peça de prata completamente nova. Por outra parte, Randolph tinha perdido peso, e inclusive aquele pequeno exercício de caminhar precipitadamente parecia tê-lo cansado. Respirava com dificuldade e o suor se acumulava sobre suas sobrancelhas.
—Alegra-me lhe ver de pé, vivo e abanando o rabo, Randolph.
Que não lhe tirasse de seus estribos a falta de respeito no trato dizia tudo sobre o humor de Randolph.
—Pela Santa Cruz! —exclamou o jovem cavalheiro, apropriando-se da blasfêmia favorita de seu tio — O que crê que está fazendo?
—Voltando para o acampamento. Acompanha-me?
Apesar de sua juventude, havia algo formidável em Randolph. A compleição quadrada de seus ombros, a dureza de seu olhar e a linha teimosa que marcava em seu queixo davam a Erik uma superficial ideia do homem que algum dia seria. Se fosse capaz de perder toda essa arrogância de dissimulado, era possível que se convertesse em um guerreiro impressionante, para alguém das terras baixas da Escócia, claro está.
—Sabe perfeitamente que não é a isso ao que me refiro. O que está fazendo com Ellie?
O rosto de Erik adotou uma dureza perigosa. Sentiu um estranho acesso de cólera. Que Randolph se erigisse protetor de Ellie e entrasse em cena qual cavalheiro andante o tirava do sério. Ellie era dele. Quer dizer, era sua responsabilidade, se apressou a corrigir-se.
—Isso não é seu assunto.
—É se a está desonrando. Vi-a sair do estábulo. No que está pensando? A raptamos de sua própria casa. Pode ser que não houvesse outra escolha, mas no mínimo o que podemos fazer é conseguir que retorne a salvo.
—Fá-lo-ei — disse Erik reprimindo a fúria que crescia em seu interior.
—Mas sem desonrá-la. O que faz não está bem e não serei parte disso.
Erik entrecerrou os olhos. Não gostava que lhe chamasse a ordem um jovem pomposo e estirado que mal tinha tido tempo de polir o brilho de suas esporas.
—E por que essa repentina bravata cavalheiresca? Estive com mulheres em outras ocasiões e nunca pareceu se incomodar.
—Ellie não é do tipo das mulheres com as que normalmente sai. Ela é diferente. É uma dama.
Erik estremeceu e repeliu aquelas palavras com cada um de seus sentidos. Ela não era diferente. Essa não era a realidade. Gostava de passar o tempo com ela porque se entretinha provocando-a. Eram as circunstâncias as que faziam que seu desejo por ela resultasse tão intenso. Estava desfrutando com aquilo, somente isso.
—É uma babá de vinte e quatro anos sem amarras que pode decidir por si mesma.
Diabos, se estava lhe fazendo um favor!
—É uma donzela inocente e você está se aproveitando dela — replicou Randolph — Ninguém esperaria isso de você, Falcão.
Erik apertou os punhos com força. Deu-lhe vontade de atar-se a golpes com Randolph para obrigá-lo a reconhecer o que ele mesmo tentava ignorar. Fez grandes esforços para se acalmar e luzir seu despreocupado sorriso.
—Está fazendo um mundo disto, Tommy. Somente estou me divertindo um pouco. Não se trata de nada sério. A moça será devolvida no mesmo estado em que veio.
Mais ou menos.
Randolph o observou como se não soubesse se devia acreditá-lo ou não.
—Então é certo que têm pensado devolvê-la?
—É obvio. Não acreditava que pensava retê-la, verdade? —disse fazendo que aquilo soasse como a coisa mais ridícula do mundo.
—Não estava seguro— admitiu Randolph com desconforto — Jamais lhe vi tão derrubado com uma moça.
Erik se esforçou por rir, ignorando a pressão que roia seu peito. Aquilo era ridículo. Não estava derrubado por ela. Demônios, gostava de sua vida tal e como era. Que jamais tivesse podido falar com ninguém da maneira em que fazia com Ellie, que não pudesse deixar de pensar nela, que tivesse a pele mais suave que jamais tinha tocado e os lábios mais doces que tinha provado, que essa leve fragrância a lavanda de sua pele fosse a coisa mais incrível que tinha cheirado, nem que seu sorriso o fizesse sentir-se como se acabasse de derrotar um milhão de dragões, carecia de importância. Gostava, mas não era a mulher que lhe correspondia. Inclusive embora o matrimônio entrasse em seus planos, que não era o caso, necessitaria a alguém que pudesse engrandecer o poder e prestígio de seu clã. Uma babá não era apta para o posto. E sequer estava em posição de poder casar-se, não quando sua cabeça tinha um preço bem substancioso.
—O momento e a circunstância, Tommy. Sinceramente, acaso me imagina preso a uma só mulher?
Ao final conseguiu lhe arrancar um sorriso.
—Não, suponho que está certo. —Erik esperava que agora o deixaria passar, mas, ao que parecia, ainda não tinha terminado — Quando a devolverá a casa?
Encolheu-se de ombros, como se aquilo carecesse de importância, como se não lhe importasse que em menos de quarenta e oito horas provavelmente não voltaria a lhe ver. Não o importava, absolutamente.
—Quando nos pusermos a caminho para nos encontrar com os irlandeses.
—Não pensa que possa ter ouvido algo?
Erik negou com a cabeça.
—Não, mas embora o tenha feito, para esse momento já será muito tarde.
—Então a deixará em paz até que partamos, então? —seguiu pressionando Randolph.
Que o levassem ao diabo se pensava deixar que lhe chamasse a ordem o primeiro sir Galahad exaltado que chegasse com a intenção de salvar a donzelas que não precisavam ser salvas.
—Não têm do que se preocupar, pequeno Tommy. Sei o que faço.
Sempre sabia o que fazia.
Quando Erik e Domnall voltaram para o acampamento após sua expedição do lado sul da ilha, já tinha escurecido. Com o momento da partida no ponto, Erik quis ver de perto a atividade das patrulhas a fim de observar seus modos de operação. Esperava que o número de patrulhas diminuísse com o passar dos dias, mas em lugar disso tinha aumentado. O cozinheiro tinha razão: cozia-se algo incomum. Embora felizmente os ingleses não tinham tornado a inspecionar a ilha, talvez não fosse nada mau que partissem em breve. Embora significasse ter que despedir-se de Ellie.
—Algo vai mau, capitão?
Erik se precaveu então de que estava circunspeto, e negou com a cabeça.
—Não, somente estava pensando que está bem que partamos logo.
Domnall assentiu.
—Não é normal que os cães ingleses sejam tão perseverantes — disse, depois fixou o olhar sobre ele — Acreditei que estava pensando na moça.
—Sempre estou pensando em moças.
Aquilo não enganou Domnall.
—Você gosta dela.
Primeiro Randolph e agora Domnall?
—Bom, tampouco é tão surpreendente. Eu gosto de quase todas as mulheres.
Mas seu escudeiro o conhecia há muito tempo para desistir tão facilmente.
—Mas não tanto como esta. — Domnall continuou como se falasse para si —: Ao princípio acreditava que era pela novidade de que não caísse rendida a seus pés, mas depois comecei a pensar que havia algo mais. Essa moça o convém. Não engole nenhuma de suas tolices.
Erik afastou um ramo do caminho e deixou que fosse dar em seu segundo.
—Assumindo que eu tivesse tolices, isso jamais poderia ser um ponto a seu favor.
Domnall o ignorou e mexeu o queixo.
—Vi o modo que a olha. Desde que o conheço, jamais olhou uma mulher desse modo.
—Com irritação?
Domnall soprou.
—Chame como quiser. Mas o que pensa fazer a respeito disso?
—Devolvê-la a sua família, tal e como prometi — disse com o gesto torcido.
—Assim deixará que parta e pronto?
Ao Erik não gostava desses interrogatórios, sobre tudo quando as respostas faziam que se zangasse tanto.
—E que outra coisa quer que faça? Afastei à moça de seu lar e de sua família. Tenho que levá-la de volta. Além disso, não acredito que esteja em posição de lhe oferecer muito mais agora mesmo.
—Poderia deixar que ela escolhesse. Poderia lhe dizer que lhe importa. Talvez que lhe esperasse.
—Para que? —repôs Erik, irritado pelo giro que tomava a conversação — Para ser meu amorzinho? Não pensará seriamente que me casaria com uma babá, verdade?
—Por que não? —desafiou-o seu velho amigo — Sempre faz o que quer em todo o resto. Sua mãe e sua irmã jamais se oporiam. Não, se virem que é feliz.
Já era feliz, diabos. Tinha perfeitamente claro que não necessitava uma esposa para consegui-lo.
—Isto é ridículo. Não tenho intenção de me casar. Conheço essa moça há dez dias e em dez mais já a terei esquecido completamente.
Estava seguro disso.
Domnall o olhou de forma condescendente, o qual Erik se apressou a ignorar, já que se aproximavam do acampamento. Todos estavam fazendo um mundo daquilo.
Assobiou sem fazer muito ruído para que os homens que estavam de guarda soubessem que se aproximavam, e ouviu o assobio de réplica. Quando chegaram, rodearam o cabo e a baía apareceu ante seus olhos. Erik se deteve ao ver um pequeno pesqueiro proveniente do oeste que se dirigia para o embarcadouro. Não era nada incomum, já que a pesca era a ocupação principal da gente das ilhas e a baía era um dos dois ancoradouros que tinha Spoon, mas não reconhecia o bote. Fez gestos a Domnall para que esperasse e confiou em que os guardas que vigiavam a baía vissem a tempo o bote para alertar aos homens da cova.
A barco demorou uns minutos em chegar até a borda. A lua cheia refletia suficiente luz para distinguir cinco pessoas a bordo. Uma particularidade de um dos homens fez que lhe arrepiassem os pelos do cangote: seu tamanho. Era um homem muito grande e fornido para ser pescador. Erik podia contar com os dedos de uma mão a quão guerreiros conhecia com um físico tão poderoso. Ao suspeitar que não se tratava de um pescador, ficou em tensão. Mas não podia acreditar que os ingleses fossem tão inteligentes para tentar essas táticas furtivas, e esses covardes tampouco se atreveriam a viajar em um grupo tão reduzido, sem um exército para protegê-los.
Minutos depois, duas das silhuetas saltaram pela amurada, entre eles o mais corpulento, e caminharam até a borda com a água pelos joelhos. Embora ia vestido com uma singela capa de lã e uma robusta manta marrom sobre os ombros, como se tratasse de um pescador pobre, sua musculosa compleição não deixava dúvidas de que se tratava do homem mais forte de toda Escócia.
Um sorriso se desenhou no rosto de Erik.
—Ah, que me crucifiquem.
—O que ocorre, capitão?
—Ao que parece, temos visita.
Erik saiu dentre as sombras da borda e caminhou praia abaixo.
—Olhe o que arrastou a maré até aqui — gritou.
O grandalhão se voltou ao ouvir sua voz. Apesar de fazer meses que não se viam, seu rosto duro como o granito não mostrou emoção alguma.
—Pelo que vejo ainda não lhe mataram.
—Não é necessário que o diga com esse tom de desilusão — disse Erik rindo. Saudou-o lhe dando uma palmada nas costas que quase doía — Não será porque não o tentem. Que demônios faz aqui, Aríete? —Erik dirigiu a vista para o homem que o acompanhava, esperando encontrar-se com seu companheiro Dragão, Alex Setton, mas em lugar disso levou uma surpresa ao ver o irmão do rei. Em certo modo sua alegria se diluiu. Eduardo Bruce era um caipira arrogante e volátil, que, ao contrário de seu irmão, o rei, parecia representar todas as qualidades negativas da nobreza. Dos quatro irmãos de Bruce, este era o que menos gostava. Saudou-o com um leve movimento de cabeça.
—Milord — disse para depois voltar a vista para Boyd — Como me encontrou?
—É uma longa história. Das que se contam melhor ao redor do fogo.
Boyd deu ordens aos pescadores para que os recolhessem antes do amanhecer.
Erik lhe assinalou a direção em que estava a cova.
—Estou desejando ouvi-lo.
—E eu estou desejando ouvir por que têm a metade da frota inglesa lhe farejando o traseiro — disse com cara de poucos amigos.
Capítulo 16
Horas mais tarde, os homens estavam sentados ao redor do fogo depois de desfrutar até a extenuação com uma das deliciosas comidas de Meg e mais com a deliciosa cerveja do povoado. Eduardo Bruce conversava com Randolph, de modo que era a primeira oportunidade que Erik tinha para falar a sós com Boyd.
Por mais que se alegrasse de ver seu companheiro da guarda, as notícias que trazia não eram boas. Nigel Bruce, Christopher Seton e o conde de Atholl tinham sido executados e não se sabia nada de Víbora, de Santo nem de Templário desde que tinham fugido ao norte com as mulheres. Tampouco se sabia nada de Dragão, que tinha saído em busca de seu irmão.
—E então, como me encontrou? —perguntou Erik.
—Sorte. O rei nos ordenou inspecionar Arran para o ataque, mas no caminho de volta nos encontramos com uma barreira de galeões ingleses que nos cortava o passo. Nos refugiamos no povo que há junto ao castelo de Dunaverty para esperar que se limpassem as rotas marinhas, e ali falamos com nosso amigo. Quando me contou como tinha chegado, imaginei que não estaria muito longe. Eduardo mencionou que tinha vigiado as rotas desde esta ilha quando escaparam de Dunaverty da outra vez, assim provei a sorte. Que diabos têm feito para zangar tanto a De Monthermer? —disse olhando-o com dureza.
Erik já lhe tinha relatado as circunstâncias de seu encontro com os MacQuillan, incluída a parte em que se viu obrigado a levar Ellie consigo, e a posterior confrontação com os navios ingleses.
—Feri-o em seu orgulho, isso é tudo.
—Não acredito que seja isso — disse negando com a cabeça — Nosso amigo do castelo disse que De Monthermer esteve por ali faz poucos dias, furioso como um louco, questionando aos serventes sobre certo fantasma.
Erik ficou circunspeto e relatou seu inesperado encontro com o menino no celeiro, deixando à parte, é obvio, o incidente da faca. Se De Monthermer tinha estado em Dunaverty, aproximou-se o bastante. Como diabos teria feito a conexão? Erik teve um mau pressentimento. Talvez fosse bom que estivessem a ponto de partir.
—Teve algum problema em Arran? —perguntou Erik.
—Não. Os ingleses revistaram a ilha a semana passada, mas não foram muito exaustivos em sua busca. —Erik pensou que provavelmente aquilo tinha ocorrido enquanto estavam em Spoon — Mas estão postados em todas as vias marítimas. Vimo-nos obrigados a passar por terra firme e tomar um bote em Dunaverty. Custar-lhes-á bastante fazer passar um navio por aí, e não falemos de uma frota inteira.
Isso não o preocupava. Já pensaria em algo. Bruce chegaria até Arran embora tivesse que afastar ele mesmo os ingleses do caminho.
Falaram longo e tendido e chegaram à conclusão que Eduardo e Boyd deviam voltar para Arran e preparar a chegada do exército em lugar de arriscar-se a cair na boca dos ingleses. Já que Erik partiria na noite seguinte para encontrar-se com os irlandeses e levá-los a Rathlin, ele mesmo se ocuparia de fazer chegar as notícias a Bruce e transmitir o que tinham averiguado Boyd e Eduardo.
—Está se arriscando muito levando os irlandeses a Rathlin no último momento, não crê? —disse Boyd.
—O rei pensou que seria mais arriscado tentar esconder centenas de homens em uma ilha pequena. E além disso sabe que não falharei —acrescentou com um sorriso.
—E o que passará se não for capaz de cruzar o cerco?
—Cruzá-lo-ei —respondeu Erik entre risadas — Viajaremos de noite. Nem se inteirarão que estamos ali. Além disso, não são mais que ingleses.
Boyd sorriu. De todos os membros da Guarda dos Highlanders, Boyd era quem tinha mais razões para odiar os ingleses. Provinha da zona fronteiriça, em que se tinha sofrido a injustiça dos ingleses durante longos anos.
—Já vejo que nada minou sua confiança. Segue sendo um galo de briga presunçoso.
—E você ainda me guarda rancor pela moça de Scone. Não pode culpá-la de que escolhesse a beleza e o encanto sobre a força bruta.
Boyd negou com a cabeça. Erik sabia perfeitamente que aquela bonita taberneira lhe importava um nada.
—Ao inferno, Falcão. Somente foi com você porque não estava Flecha por ali.
Erik sorriu. Provavelmente tinha razão. Quando Gregor MacGregor entrava na sala, as moças tendiam a esquecer-se de todos os outros. Mas o afamado arqueiro odiava chamar a atenção. Um absoluto desperdício, em sua opinião.
—Ouvi que esteve muito ocupado estes dias — interveio Eduardo Bruce, que se aproximava junto a Randolph — Somente você, Falcão, podia engenhar para se perder em uma ilha deserta com sua própria prisioneira.
Erik fulminou Randolph com o olhar, perguntando-se que contos teria dito a Eduardo Bruce. O moço não duraria muito se não aprendia a manter o bico fechado. As irmãs de Erik também estavam acostumados a ser delatoras de pequenas, mas ao menos conseguiram crescer o suficiente para superá-lo à idade de dez anos.
—Não é minha prisioneira — repôs com certo tom de advertência na voz. Não queria falar a respeito de Ellie.
Eduardo não se deu por entendido.
—Randolph me contou que tomou gosto à moça. Deve ser uma beleza, né?
Erik sentiu como começavam a esticar os músculos do pescoço e das costas.
Eduardo seguiu ao seu, sem precaver-se das reações que provocava nele.
—Doce e suculenta, com umas tetas enormes? —disse fazendo um gesto de ordenhar com as mãos — Talvez quando a deixar de lado, poderia me…
O mundo de Erik ficou às escuras. Estava alagado por uma cegadora raiva negra que não parecia com nada que tivesse sentido antes. Sua mão tinha agarrado o pescoço de Eduardo e o tinha esmagado contra a parede antes que este pudesse terminar a frase. O sangue se acumulava em seus ouvidos. Seu coração pulsava tão forte que não queria mais que apertar com força.
—Não o diga — o advertiu com voz sombria.
Eduardo se aferrou à mão de Erik e começou a resfolegar, mas seu braço permaneceu tão firme e rígido como o aço.
—Me solte, bárbaro do demônio — conseguiu dizer entrecortadamente.
Erik apertou um pouco mais forte. Os olhos de Eduardo pareciam estar a ponto de sair de suas órbitas.
—Solte, Falcão.
A sossegada voz de Boyd se fez passo através de sua brumosa mente. Pouco a pouco, esta foi se esclarecendo, e ao precaver-se de que estava a ponto de estrangular o irmão do rei, soltou o pescoço de Eduardo. Este se truncou sobre seus joelhos e levou as mãos à garganta enquanto tentava recuperar o fôlego.
—Que diabos estava pensando? —disse cuspindo sua raiva acusadoramente com o rosto avermelhado — Como se atreve a me pôr a mão em cima? Meu irmão terá notícias disto.
Esse era exatamente o problema de Eduardo Bruce. Nunca tinha aprendido a viver sob a sombra de seu irmão muito mais digno que ele. Era um bode arrogante e ordinário, para quem pertencer à nobreza era uma desculpa para fazer e dizer o que lhe desse vontade. Normalmente Erik o ignorava. Mas quando mencionou Ellie… Não podia pensar em outra coisa salvo em matá-lo. Que Eduardo tivesse sido capaz de provocar tal reação resultava um tanto desconcertante. Não havia dito nada que o próprio Erik não tinha dito antes, embora era certo que de modo menos grosseiro. De fato, não fazia muito tempo que tinha feito uma brincadeira similar a MacLeod a respeito de sua nova esposa e a ponto esteve que seu nada divertido amigo lhe arrancasse a cabeça. Era a primeira vez que Erik se precavia de quão apaixonado MacLeod estava de sua mulher, mas a situação nesse momento em nada tinha a ver com aquela.
Olhou Eduardo por cima do ombro.
—Faça o que deve, Número Dois.
Os olhos de Eduardo avermelharam mais de ira ao ouvir o nome que Erik lhe tinha atribuído meses atrás, uma referência clara a sua posição na família, mas também um reflexo de como ele sempre ia por trás de seu muito admirado irmão. Eduardo saiu da cova feito uma fúria e Erik voltou a sentar-se no assento que com tanta celeridade tinha abandonado antes.
Sentiu-se escrutinado pelo olhar de Boyd. Por se tratar de uma besta desumana, resultava ter uma perspicácia desesperadora.
—Assim que esse é o aspecto que têm quando se zanga? Chefe me havia dito, mas tenho que admitir que não acreditava.
Erik deu um longo trago à cerveja enquanto se perguntava por que diabos se sentia como se fosse um inseto sob uma maldita rocha. Boyd emitiu um assobio suave.
—Deve ser uma mulher das boas, porque acaba de criar um inimigo dos mais poderosos.
—Isto não tem nada a ver com ela. Eduardo é um cretino. Isto vem já faz muito tempo.
Aquilo era certo, mas não explicava absolutamente a reação de Erik. Boyd ficou observando-o um pouco mais e, depois disto, por sorte, trocou de tema.
Ellie, enquanto isso, olhava para a escuridão através daquela janela, e o frio vento da noite adormecia suas bochechas. Não alcançava ver muito além dos círculos iluminados pelas tochas que flanqueavam a entrada da casa de Meg.
Onde teria se metido? Falcão assegurou que a veria essa noite, mas em lugar disso mandou uma mensagem dizendo que Thomas se reunisse com ele assim que fosse possível e que comeria no acampamento com seus homens. Ellie tinha visto discutir ambos os homens pouco antes e temia que sua ausência estivesse relacionada com ela. Mordeu o lábio ao precaver-se de que talvez Thomas a tivesse visto sair do estábulo. O que teria pensado? Sentiu uma pontada no coração. Exatamente o que merecia: que era uma desavergonhada. Seguiu mordendo o lábio com mais ansiedade ainda, enquanto observava qualquer sinal da presença de seu físico alto e musculoso, mas não podia tirar da cabeça a sensação de que algo ia mau.
—Procura alguém?
Ellie fechou rapidamente a portinha e se voltou para encontrar com o vivaz rosto de Meg. Negou com a cabeça.
—Só admirava a lua cheia.
Meg esboçou um sorriso. Era muito amável para pôr em dúvida sua sinceridade.
—Eu não me preocuparia muito. Estou segura de que simplesmente terá perdido a noção do tempo. Se Falcão disse que viria, fará. Apesar que se esforça em dar a impressão de que tudo lhe importa um nada, é uma das pessoas mais dignas de confiança que conheço. Pode confiar nele.
Era algo curioso, mas certo. Ellie se ruborizou.
—Não se trata disso.
—Eu acredito que se trata exatamente disso — disse Meg com um sorriso. Seus olhos se encheram de brilho — Não faz tanto que eu estava aí mesmo esperando que meu Colin voltasse —acrescentou com um suspiro — Ah, a primavera do amor!
Ellie ficou surpreendida.
—Eu não estou apaixonada — protestou, esquecendo essa estúpida história que Falcão tinha inventado. De todos os modos, já conhecia muito bem a Meg para saber que em realidade nunca a tinha acreditado.
Não podia estar apaixonada. Viu-se invadida pelo horror. De repente o ar era pesado e asfixiante. Não podia ser tão estúpida para ter entregue seu coração a um homem com o qual não havia possibilidade alguma de futuro. Alguém que quão único faria seria romper-lhe em pedaços. Meg atuou como se não tivesse dito nada. Meneou a cabeça em um gesto cheio de nostalgia.
—Jamais pensei que chegaria o dia em que a Falcão cortasse as asas.
O coração de Ellie se deteve em seco para depois voltar a ficar em marcha com vitalidade renovada.
—A que se refere?
—Ainda não é consciente disso, mas esse homem está apaixonado por você.
Seu coração pulsava tão forte que fazia mal. Meg se equivocava. Tinha que estar equivocada.
—Não me advertiu faz pouco que gostava muito das mulheres para dar seu coração a uma só?
Meg se encolheu de ombros, como se aquelas palavras carecessem já de importância.
—Vi Falcão com muitas mulheres e a nenhuma delas olhava como olha a você.
A cabeça de Ellie estava passando um mau momento tentando controlar o desejo quase desesperado para seu próprio coração. Talvez não tivesse sido tudo imaginação dela. Era possível que Meg tivesse razão? Ellie se esforçou por mostrar-se racional.
—Isso pouco importa. Embora fosse certo, tem intenção de me devolver junto a minha família assim que partamos daqui.
Meg tomou sua mão e a apertou entre as suas.
—Lhe dê tempo, moça. As coisas são agora muito complicadas, e Falcão não é do tipo de homem que aceita seus sentimentos por seu próprio gosto. Pode ser que necessite um pequeno empurrãozinho, mas ao final chegará ali.
A voragem de emoções que se revolvia no interior de Ellie desde fazia dias ameaçava se libertar. As lágrimas picavam sua garganta e as conchas de seus olhos. Ellie elevou a vista para se encontrar com o olhar amável daquela mulher que se converteu em amiga. A necessidade de confiar em alguém podia mais que ela.
—Não tenho tempo — sussurrou.
Meg arqueou as sobrancelhas.
—Está casada?
Ellie negou com a cabeça.
—Ainda não. Mas estou prometida.
Um amplo sorriso apagou a preocupação do rosto de Meg.
—Então ainda têm tempo. Somente deverá pôr um pouco mais de empenho.
Meg fazia que soasse tudo muito singelo, mas não era absolutamente. Inclusive se estivesse convencida dos sentimentos de Falcão, o qual não era o caso, também teria que considerar o contrato de compromisso. Como reagiria seu pai supondo que ela queria romper o contrato? Para uma mulher de sua fila e posição, os sentimentos pessoais estavam desconjurados. Esperava-se dela que cumprisse com sua obrigação. E como não se deu o caso de que pudesse contar seus sentimentos a seu pai, não sabia como este podia reagir. Por outro lado, teria que considerar as reações de Ralph e do rei Eduardo. Apesar que Ralph não parecia albergar sentimentos com respeito a ela, poderia ficar furioso. Mas, dadas as circunstâncias de seu primeiro matrimônio, talvez pudesse compreendê-lo. A reação do rei Eduardo era impossível de prever.
Seu pai a queria, e algo lhe dizia que não a obrigaria a contrair um matrimônio que não desejava, embora isso tampouco significava que o alegrasse ter um pirata como genro. Não obstante, era consciente que existia outra alternativa. Sempre poderia fugir com ele e se arriscar que a deserdasse. Mas para uma garota que sempre tinha tentado fazer o correto, que acreditava nas obrigações e na responsabilidade, que amava a sua família com todo seu coração, aquilo era algo virtualmente inconcebível. Era algo que poderia fazer Mary, mas ela nunca. Ela não era impetuosa. Era uma pessoa séria e…
«Aborrecida.» Sentenciada a viver uma vida que não desejava com um homem ao que não queria.
—Sabe Falcão algo a respeito desse compromisso? —perguntou Meg.
Ellie negou com a cabeça.
—Não pensei que fosse importante para ele. Sempre deixou claro que nossa, eh, relação, é temporária.
Meg esclareceu garganta teatralmente.
—Há uma grande diferença entre o que os homens dizem e o que sentem. Jamais saberá como pode reagir a menos que conte. —Meg deveu adivinhar sua indecisão — Se é que está segura de querer fazê-lo.
Ellie não estava segura de nada. Mas se havia alguma possibilidade que Meg estivesse certa, tinha que averiguá-lo. E não dispunha de muito tempo para fazê-lo. Meg lhe dirigiu um estranho sorriso.
—Estava a ponto de ir agora mesmo ao acampamento recolher os utensílios de cozinha que mandei antes.
Ellie ficou circunspecta sem entender o que queria dizer com isso.
—Não disse Duncan que não nos incomodássemos, que ele mesmo os traria?
Meg cruzou os braços.
—Bom, então como parece que Duncan não se deu muita pressa, tenho intenção de recolhê-los eu mesma.
Ellie sorriu.
—Não necessitará ajuda?
—Oh, o que considerado por sua parte —disse Meg como se não tivesse caído na conta — Me viria muito bem.
Ambas as mulheres compartilharam um sorriso de cumplicidade e foram por seus casacos.
Levantou-se o vento, e a tocha titilava na escuridão à medida que caminhavam com cuidado pelo escarpado caminho para a praia. A Ellie deu a sensação que a observavam e se precaveu que Falcão provavelmente tinha a seus guardas postados nas imediações da cova. Mas não foi até que se aproximaram da entrada que as deteve um jovem guarda.
—Temo que o capitão se encontra ocupado neste momento —disse movendo-se nervosamente, como se as roupas lhe estivessem pequenas.
Ellie podia ouvir os ruídos alegres que provinham do interior da cova. Ocupado com o que? Com uma celebração? O mundo lhe veio em cima ao pensar na mulher da outra noite. Tentou olhar por cima do ombro do guarda, mas o moço era alto e seu peito bloqueava uma boa parte da entrada da cova. Meg também parecia surpreendida.
—Só vim recolher os utensílios da cozinha.
—Farei que Rhuairi lhe entregue isso.
Fez um sinal a um guarda que havia perto dali, que lhe deu um olhar furtivo e cumpriu com seu encargo imediatamente.
Algo estranho estava acontecendo. Jamais antes lhe tinham negado a entrada à cova e era evidente que o jovem guarda estava ansioso por livrar-se delas. Acaso havia algo ali que não queriam que elas vissem? Meg deve ter se dado conta também disso. Tomou pelo braço e disse: —Não passa nada. Faça que Duncan os traga mais tarde.
Meg a levou dali para voltar para a casa, mas com sua pressa tinha feito que Ellie tropeçasse com um homem que vinha por trás delas.
—Minhas desculpas — disse ela de maneira automática.
Ellie deu uma olhada a aquele homem e ficou gelada. Ficou pálida como a morte. Piscou na penumbra sem acreditar no que viam seus olhos. Ia vestido com as roupas robustas de um pescador, mas reconheceu ao arrumado homem de cabelos morenos que tinha ante si: Eduardo Bruce, o irmão mais velho de Robert e seu próprio irmão político por matrimônio.
Por que…?
É obvio! De repente, nesse preciso instante tudo cobrou sentido. A última peça do quebra-cabeças entrou em seu devido lugar. «Falcão está com Bruce.» Não era um pirata, a não ser um rebelde escocês que lutava no bando de Robert contra o rei Eduardo. E contra seu pai. De repente, aquele desejo de evitar pronunciar o nome de seu pai na cova cobrava sentido.
Aquilo era o que Meg se referia quando afirmava que o assunto era complicado. Mas sua amiga não poderia ter imaginado jamais quão complicado realmente era. E então se precaveu de uma segunda coisa: Falcão descobriria quem era ela realmente. Tudo acabaria para eles. Uma vez que descobrisse sua identidade, já não haveria mais encontros privados, nem beijos, nem prazer. Jamais teria possibilidade de averiguar quais eram seus verdadeiros sentimentos por ela.
Ao princípio, temia revelar sua identidade porque isso poderia empurrá-lo a casar-se com ela somente por sua riqueza e sua posição. Mas além disso existia outro problema em sua relação: era a irmã de seu rei e senhor. Isso o fazia suspeitar que a nobreza inata da que adoecia o faria oferecer-se a ela em matrimônio. Mas ela não queria consegui-lo desse modo. A possibilidade de um futuro como o de sua mãe resultava impossível ante tais pensamentos. Não havia nada romântico em um amor não correspondido. Para isso melhor estaria com Ralph. Conteve a respiração, esperando o momento da revelação, esperando a que a voz de Eduardo clamasse e perguntasse que fazia ante ele lady Elyne de Burgh vestida de camponesa. Mas Eduardo não disse uma palavra. Seus negros e frios olhos passaram diante dela sem mostrar o menor pingo de interesse, justamente do mesmo modo que a primeira vez que se encontraram nas bodas de Robert e Isabel. Se adornada com suas joias e embelezada com ricos panos de veludo não tinha sido o suficiente bela para que lhe prestasse atenção, muito menos o era nesse preciso momento.
Meu Deus, não a tinha reconhecido! Sabia que devia sentir-se humilhada, mas em lugar disso não podia acreditar que tivesse tanta sorte. Deu meia volta sem querer lhe oferecer uma segunda oportunidade para que a reconhecesse. Mas antes que pudesse tomar Meg pelo braço e se apressasse a partir, deteve-a uma voz dolorosamente familiar.
Falcão a agarrou pelo cotovelo e a fez voltar-se.
—Ellie? Que demônios está fazendo aqui?
O olhar agudo de Eduardo Bruce a observou com muita mais atenção da que ela teria querido.
—Esta é sua prisioneira?
A Ellie deu a impressão de que não respondia absolutamente às expectativas que se formou dela.
—Não sou sua prisioneira.
—Não é minha prisioneira — disse Falcão ao mesmo tempo.
Eduardo a escrutinava com uma intensidade que a incomodou. Por um momento temeu que a tivesse reconhecido. O gesto lhe torceu em um sorriso zombador. Ao final decidiu afastar sua vista dela.
—Não é como as que geralmente você normalmente gosta, Falcão.
Erik tinha sérios problemas para recordar que aquele homem era o irmão do rei e que atravessar aquele sorriso vil com seu punho provavelmente não fosse a melhor das ideias. Mas, diabos, teria ficado na glória.
Primeiro, esse imbecil do Eduardo se deixou ver ante as duas mulheres e, embora fosse pouco provável, sempre cabia a possibilidade de que alguma delas o reconhecesse. E depois disto tinha insultado Ellie ao compará-la com outras mulheres.
E por que não podia lhe atrair Ellie? E qual problema se não tinha os seios enormes nem parecia que acabasse de descer do monte Olimpo? Qualquer idiota podia ver a beleza que havia nesses olhos castanhos matizados de verde, seu pequeno nariz e essa boquinha cheia de inteligência que tinha.
Se esse bastardo tinha ferido seus sentimentos, suas conexões com a realeza não bastariam para salvá-lo. Olhou em direção a Ellie. Como ela tinha elevado o queixo e pela cor rosada de suas bochechas estava claro que se precaveu das implicações que aquilo suportava, e conforme parecia estava a ponto de dar a Eduardo um boa reprimenda. Era de esperar. Ellie não apoiava sua própria valia nem a de ninguém na beleza física. Essa era uma das coisas que admirava nela e a razão que lhe importasse seu bom julgamento. Mas tampouco queria que permanecesse junto a Eduardo Bruce mais tempo do necessário.
—Têm razão — disse Erik interpondo-se entre ambos — Ellie é muito especial para ser comparada com alguma outra pessoa.
Ficou surpreso ao precaver-se de que o dizia a sério.
Ellie o observava com esse olhar tão penetrante que o punha nervoso. Para evitar que suas palavras a confundissem e chegasse a conclusões errôneas, passou ao ataque.
—O que está fazendo aqui?
—É minha culpa — interveio Meg — Não sabia que estava ocupado. Viemos recolher os utensílios da cozinha.
Erik se alegrou de ver que Eduardo se precaveu, embora tarde, que não devia ser visto por ninguém e tinha decidido voltar para a cova. Ellie observou como partia e houve algo na expressão de seus olhos que fez desconfiar Erik.
—Farei que os levem algum de meus homens — disse. Advertiu que Meg se sentia culpada por tê-los interrompido. Não era culpa dela. Tinha que ter sido mais explícito quanto a suas ordens. Perguntava-se o que as teria levado até ali, já que não acreditava que tivessem ido realmente recolher os utensílios de cozinha — É tarde —disse — As acompanharei a casa.
Ambas se negaram, mas Erik não queria ouvir falar mais do assunto. Talvez Meg estivesse acostumada a caminhar pelo escarpado de noite, mas Ellie não. Somente de pensar em quão fácil teria sido que escorregasse ou tropeçasse na escuridão ficava furioso de novo. Acompanhou-as na ascensão do atalho e agarrou firmemente Ellie pelo braço para assegurar-se de que aquilo não acontecesse. Pode ser que Ellie fosse magra, mas isso não evitava que seus corpos se acoplassem à perfeição.
As mulheres se mostravam mais caladas que o habitual. Assim que cruzaram a soleira da porta, Meg bocejou de modo exagerado e se desculpou para ir-se à cama. A Erik deu a sensação que queria deixá-los a sós. Mas Ellie se via muito nervosa. Passou um tempo incalculável tirando o casaco e depois perambulou pela habitação até que ao final decidiu esquentar as mãos ante o fogo.
—Queria algo, moça?
—Não — disse. Mas se corrigiu imediatamente —: Sim. —Cruzou as mãos sobre suas saias e se voltou para ele para olhá-lo —. Seus convidados. Era essa a razão de que não veio esta noite?
Maldita seja. Tinha-o esquecido. Embora talvez não fosse essa a verdadeira causa. As palavras de Randolph pesavam mais do que queria admitir.
—Sim. Sinto-o — disse com um sorriso —, mas os negócios estão antes do prazer.
Não obstante, aquela tentativa de mostrar-se despreocupado foi fulminado por completo por suas seguintes palavras.
—Não é nenhum pirata. Está com Bruce. Por isso lhe persegue os ingleses.
Riu como se aquilo fosse uma brincadeira, embora em seu interior estava furioso. Provavelmente tinha reconhecido Eduardo Bruce.
—Ainda segue inventando nobres atividades em minha honra, Ellie? Acreditei que deixaria os contos para mim.
—Não — disse em voz baixa — Não brinque com algo como isto — prosseguiu com os olhos cravados nele — Não minta para mim.
Deveria. Deveria dar meia volta e partir. Já era o suficiente complicado. Mas não podia fazer que seus pés se movessem. Não queria enganá-la.
—É mais seguro para você que não faça perguntas.
—Não me importa se é seguro ou não. Quero saber a verdade. O que ia fazer aqui se não o irmão do rei?
—Maldita seja, Ellie! Sim me importa! —Passou os dedos entre seus curtos cabelos, tentando controlar a crispação de suas emoções. Acaso não se precavia que tentava protegê-la? — Dá-se conta do que fariam de você se soubessem que sabe algo? O rei Eduardo não se deterá ante nada para encontrar Bruce. Não deixe que o fato de ser mulher lhe leve ao engano de pensar que está a salvo.
A veemência de sua reação não pareceu ter efeito algum nela.
—Rainha — Avançou para ele com ansiedade — Que notícias têm da rainha Isabel?
Surpreendeu-se ante a estranha intensidade de sua pergunta, até que recordou o cargo que tinha na casa de Ulster.
—Nenhuma desde que se viu obrigada a se separar do rei meses atrás.
—Ouvi rumores de que tinha partido para a Noruega. Refugiar-se junto à irmã de Bruce, a rainha.
—Não sei — disse negando com a cabeça a um tempo.
Advertiu sua decepção e se perguntou se, apesar de sua posição na casa de Ulster, não simpatizaria com a causa de Bruce. Aquilo não o surpreenderia, dadas as conexões que Bruce tinha com a Irlanda. Mas pouco importava. Simpatizasse com sua causa ou não, tinham posto preço à cabeça de Erik e qualquer conexão com ele seria muito perigosa.
—Por que estava na cova que há sob Dunluce? —perguntou ela.
—Ellie… —advertiu-a.
Mas ela fez caso omisso.
—Aqueles homens com os que se reunira. Os irlandeses. São guerreiros para o Bruce. —Elevou a vista para olhá-lo — Está planejando algo.
Erik cruzou toda a habitação e tomou pelos ombros.
—Se detenha — disse preso do medo. Por que diabo tinha que ser tão inteligente? — Não faça mais perguntas! Esqueça tudo o que ouviu. Se esqueça de mim!
Disse aos gritos, gritando seriamente.
Ficou sobressaltada. Ao Erik pareceu que finalmente sua ira tinha conseguido afetá-la.
—É isso o que quer de mim?
Ele não duvidou um instante.
—Sim.
Ellie elevou o queixo e o olhou diretamente nos olhos. Erik sentiu o fogo que os conectava. Olhava-o nos olhos e o desafiava a negá-lo.
—Não posso fazê-lo.
«Que o diabo a levasse.» Era a mulher mais irritante e díscola que jamais tinha conhecido. Erik sentiu que tudo lhe escapava das mãos. Queria tomá-la entre seus braços e beijá-la até que atendesse a suas palavras. Queria tornar-lhe ao ombro e transportá-la tão longe como fosse possível. A algum lugar seguro. Mas qualquer lugar seguro significava um lugar afastado dele.
Deixou-a sozinha. Do mesmo modo que ele poderia esquecê-la, ela também poderia fazê-lo. Sentiu como se lhe cravassem uma faca afiada no peito.
—Descanse. Partiremos amanhã de noite.
A ela mudou o rosto.
—Mas… —Pelo jeito como se apagou sua voz, pareceu dar-se conta de que era inútil protestar. Elevou a vista de novo para olhá-lo aos olhos — O verei amanhã?
Em outras condições nem teria duvidado. Quando as alternativas eram escolher entre esperar junto a seus homens que caísse a noite ou desfrutar de uma relação amorosa, não havia muito que decidir. Mas inclusive nesse momento teve que lutar para controlar-se. Seu suave e feminino aroma se elevou para cativá-lo. O desejo que sentia por ela não seguia seu curso natural, mas sim crescia mais a cada passo. Queria despi-la completamente, envolvê-la com seu corpo e penetrar em seu interior até o mais profundo. Tinha tanta vontade de fazê-lo que podia ver como seria, e aquelas imagens o voltavam louco. Sabia que não era uma boa ideia. Estava se complicando muito. Seu controle estava chegando ao limite de sua capacidade. Amanhã partiriam cada um para seu lado. Seria melhor romper logo. Entretanto, resultava-lhe muito difícil resistir à tentação de passar um último dia com ela, de tocá-la, de observar como ruborizava seu rosto de prazer enquanto ele a levava a outro mundo com suas carícias.
—Não sei — vacilou — Haverá muito que fazer.
Sim, coisas como sentar-se e esperar.
—Ah — disse ela sem ocultar sua decepção — Acreditava que teria um pouco de tempo para me mostrar essa cova quando terminassem com seus homens pela manhã. Se é que realmente existe.
Erik sorriu. Aquela sutil mofa demonstrou ser do mais persuasiva. Estava sendo ridículo. Fazia uma montanha de todo isso. Somente era um dia a mais.
—Sim, claro que existe. Tinha prometido mostrar isso não?
Ellie assentiu com um esboço de sorriso na comissura dos lábios. Sabia que se saiu com a sua, embora tampouco tinha tido que lutar muito para consegui-lo.
—Teremos que ir quando a maré esteja baixa. Estará preparada pela manhã? Refiro ao que o resto de nós chama manhã.
Ellie fez uma careta.
—Muito gracioso. Me diga simplesmente a que hora.
Dado que Eduardo Bruce e Boyd partiriam várias horas antes do amanhecer, ele teria que estar acordado quase toda a noite de todas as formas.
—Ao amanhecer? —Riu ante sua cara de horror — Bom, se não quiser ir…
—Estarei pronta ao amanhecer — grunhiu.
Não pôde resistir e a beijou brandamente nos lábios antes de partir.
—Valerá a pena — prometeu.
—Mais que valha, a uma hora tão inoportuna.
Capítulo 17
Ellie olhou ao redor daquele palácio de rochas subterrâneo que brilhava como ébano gentil na turva escuridão.
—É magnífico — disse quase sussurrando.
—Me alegro de que dê sua aprovação — disse Falcão com uns olhos azuis que brilhavam de malícia — Devo entender que o banho valeu a pena?
—Trapaceiro — repôs ela fazendo uma careta de chateio e lhe salpicando água no rosto — Muito inteligente de sua parte esquecer de comentá-lo antes.
Sacudiu a água de sua densa e ondulada cabeleira e lhe dirigiu um de seus incorrigíveis sorrisos.
—Não perguntou.
Ellie tinha pensado duas vezes quando se precaveu que teriam que nadar até a cova, embora em realidade, recordando o muito que havia custado levantar antes do amanhecer, essa tinha sido realmente a terceira vez. Não se tratava de um dia de inverno quente e ensolarado, ao contrário da última ocasião em que ele a tinha convencido para um banho.
Tinham partido pouco depois do amanhecer, em um velho barco desmantelado que tinha tomado emprestado de um pescador local que mal cabiam os dois. Apesar que Falcão o assegurasse, Ellie se surpreendeu que aquela massa de tábuas desvencilhadas e gastas pudesse flutuar. Erik cortava a densa bruma da manhã com os remos, e após fazer virar a embarcação apenas umas pazadas sobre a ponta norte da ilha, viram aparecer um saliente de rochas escuras que ocultava uma pequena cova. Aproximou o bote até a rochosa praia para mantê-lo oculto e disse a Ellie que deixasse suas roupas nele. Isso de voltar a meter-se nas geladas águas a fazia se arrepender, mas não queria dar pé a que a levasse de volta. Talvez fosse a última oportunidade para estar a sós com ele. Se realmente desejava averiguar se Meg tinha razão, teria que fazê-lo nesse momento.
Assim que uma vez mais tirou tudo menos a camisola e seguiu Erik até o que parecia uma parede de rochas bicudas que ocultava a entrada de uma cova. Nadar para o desconhecido foi um tanto aterrador, mas ele a agarrou pela mão e mergulhou junto com ela no escuro e gelado mar, levando-a consigo uns cinco pés até chegar a uma estreita fenda na rocha. Ao sair do outro lado, Ellie se encontrou em uma piscina pouco profunda, maravilhando-se com o oásis de rochas que tinha a seu redor. Havia a luz justa para adivinhar a tosca forma oblonga da escura gruta.
Quando Falcão a pôs em pé, Ellie se surpreendeu que a água apenas lhe chegasse pelo peito.
—Só se pode entrar quando há maré baixa — explicou ele — Pela tarde, a água chega até o teto.
A cova mediria algo mais de três metros de altura, já que o teto se elevava ao redor de um metro sobre a cabeça de Falcão. Era assombroso pensar que a água chegaria tão acima em umas poucas horas. Deram-lhe calafrios.
—Eu não gostaria de ficar apanhada aqui dentro.
Levou-a até um saliente da rocha que servia como banco natural. Pôs as mãos sobre sua cintura e a elevou para que se sentasse; depois levantou a si mesmo. Era a primeira vez que a tocava em todo o dia, de modo que o corpo de Ellie se sobressaltou ante o contato. Para um homem que se comunicava tanto com as mãos como com as palavras, parecia fazer grandes esforços para as deixar quietas.
Ellie escorreu a água do cabelo como pôde e refugiou os pés sob a borda de sua úmida camisola enquanto ele passava os dedos entre os cabelos e secava a água do rosto.
—Têm frio?
Ellie tinha a pele arrepiada, mas a assombrou comprovar que não sentia frio. O ambiente não era tão quente como na sauna, mas havia ao menos vinte graus mais que no exterior. Negou com a cabeça.
—Faz muito menos frio aqui que dentro da água.
—É assim durante quase todo o ano, embora desconheça a razão.
Precaveu-se do débil eco que seguia a sua voz e permaneceu atenta a qualquer outro som no interior da cova, o vento ou a água golpeando contra as rochas, mas à exceção da destilação da água que caía do teto, o silêncio era espectral.
—Que silêncio!
—Sim, parece que está em outro mundo, verdade?
—Como encontrou este lugar?
—Não o encontrei. Os locais o conhecem há muito tempo.
—É um lugar fantástico para esconder-se. Vinha muito por aqui quando era jovem?
A olhou de esguelha com suspicácia, mas não respondeu. Ellie não se deu por aludida.
—Foi essa a razão de que se uniu ao bando de Bruce, para reclamar suas terras?
Erik negou com a cabeça.
—É que alguma vez se dá por vencida?
Ficou pensando nisso.
—Não.
Falcão suspirou. Ela pensou que não teria intenção de responder, mas depois de um momento ele disse: —Isso teve algo haver, mas a razão principal foi que me pediu o chefe de meu clã. —Ellie o olhava intensamente — Não pergunte. Não posso lhe contar mais.
Mordeu o lábio e baixou os olhos para olhar à escuridão da lacuna. Não queria que houvesse mais segredos entre eles. Tinha que lhe contar a verdade a respeito de sua identidade, mas antes precisava saber quais eram seus sentimentos por ela.
—Não pode ou não o fará?
—Nem um nem o outro.
Erik alargou o braço e lhe agarrou o queixo. Aquela suave carícia fez que seu corpo se alagasse de calafrios. A obrigação se converteu em uma razão pouco apetecível para o matrimônio, especialmente se era com ele.
—É muito perigoso para você. Tento lhe proteger — disse Erik.
Tinha razão. Era algo muito perigoso. Por isso, sua associação com Bruce era tão aterradora.
—E o que há do perigo que supõe para você? —perguntou Ellie, sentindo que as lágrimas iam a seus olhos. Apesar da lealdade de seu pai ao rei Eduardo, Ellie simpatizava com a causa de seu cunhado, ao que sempre tinha admirado. Mas por mais que simpatizasse com sua luta, sabia que aquela causa estava perdida de antemão. A tentativa de Bruce de tomar a coroa tinha fracassado. Os dias de Bruce e seus seguidores estavam contados. Gelava-lhe o sangue imaginar o que o rei faria com eles quando os apanhasse, e não cabia dúvida de que assim seria — Durante quanto tempo pensa que ganhará a corrida da frota inglesa?
Falcão retirou a mão de seu queixo e endureceu a expressão até fazê-la desafiante.
—Tanto como seja necessário.
—E o que ocorrerá depois? Morrerá em algum campo de batalha? Ou pior ainda, pendurado de uma soga ou sob a tocha de um verdugo?
—Pode ser que sim — disse encolhendo-se de ombros —, ou talvez não.
Ellie se indignou pela frustração. Nada o afetava. Nada era sério para ele. Parecia alheio ao perigo.
—É que não o preocupa a morte?
—A morte é parte do combate, Ellie. Combater é ao que me dedico. —Sorriu — E pelo geral, estou acostumado a ganhar o combate.
Não o punha em dúvida. Tinha-o visto brandir a espada. Com esse tamanho e força, tinha que ser brutal no campo de batalha.
—Mas desta vez não poderá ganhar. Eduardo é muito poderoso. Quantos têm, várias centenas de homens?
—Isto ainda não acabou.
Ao que parecia, possuía uma vertente teimosa que até esse momento não tinha visto.
—Crê que Bruce tem alguma possibilidade?
—Mais que alguma possibilidade.
Ellie percebeu em sua voz algo que não tinha ouvido nunca antes. Era algo profundo, irreverente e inquebrável. Demorou um momento em reconhecer do que se tratava: lealdade. De repente vieram as palavras inscritas na espada: «Sempre fiel».
—Mas o seguiria de todas as formas — disse quase para si.
Embora significasse sua própria morte.
Não era a voz de alguém incapaz de comprometer-se. Se era capaz de sentir essa lealdade por Bruce, talvez também fosse possível que lhe importasse. Falcão não era como seu pai. Somente porque fosse bonito e carismático, ela não tinha direito a assumir que fosse incapaz de sentir emoções profundas. Todo o ocorrido na semana anterior tomava uma aparência completamente diferente sem a influência cegadora que supunha o coração partido de sua mãe. Erik tinha passado com ela todo o tempo livre que dispunha e tinha inventado desculpas só para estar com ela. Embora sua única intenção fosse que ela relaxasse, não tinha sido a única em desfrutá-lo. Ele tinha rido e divertido tanto como ela. Tinha-lhe contado coisas pessoais a respeito de sua família, coisas que suspeitava que compartilhava com muito poucas pessoas. E também estava o fato que tivesse mandado uma mensagem para tranquilizar sua família, algo que não tinha necessidade de fazer e para o que, sem dúvida, tinha assumido certo risco. Atuava de modo diferente com ela do que fazia com outros.
Mas não era somente o que fazia, a não ser a sensação, a plena certeza que significava algo para ele. Via-o na maneira em que ela parecia afetar a seu caráter como ninguém mais o fazia, a maneira em que lhe falava, o modo em que seu corpo reagia ao contato com seus dedos e aquele intenso e tenro olhar que lhe oferecia quando a tocava. Aquilo tinha que significar algo.
Inclusive Meg tinha percebido.
Ellie inspirou profundamente e se voltou para ele.
—Não quero que nos despeçamos.
Falcão ficou de pedra. O músculo inferior de seu queixo palpitava. Mas depois sorriu e ela se perguntou se não teriam sido imaginação dela.
—Ellie, logo estará em casa com sua família e se esquecerá que tudo isto aconteceu.
Ela tentou revolver-se ante aquela dor aguda.
—Não me trate com condescendência. Sei perfeitamente o que sinto.
—Agora se sente deste modo, mas o esquecerá com presteza.
Soava tão seguro de si mesmo, tão crédulo… Como se o houvesse dito antes muitas vezes, muitas.
«Esta vez é diferente.»
Ellie examinou seu rosto em busca de algum sinal de debilidade, mas não encontrou nenhum. Seu coração parecia lutar por pulsar na estreita caverna de seu peito.
—É isso o que você fará, esquecer? —perguntou-lhe em voz baixa.
Ele a olhou nos olhos e não vacilou absolutamente.
—Sim.
Não acreditava. Se não lhe importava nada, por que não a tocava?
Era como se não confiasse em si mesmo. E apesar de tentar ocultá-lo, sua atitude era muito forçada. Apoiava as costas na parede da rocha e permanecia sentado sobre uma de suas pernas enquanto a outra descansava sobre a água, completamente depravado segundo as aparências. Mas aquela atitude de indiferença não a enganava. Podia sentir a tensão que emanava de seu corpo como se fosse uma isca fumegante a ponto de prender-se fogo.
Meg tinha razão. Não se tratava de um homem que aceitasse seus sentimentos com facilidade. Necessitaria que lhe desse um empurrãozinho. Ellie afastou as mãos de seus próprios joelhos e se aproximou dele. Não se incomodou em mostrar-se sedutora, porque sabia que aquilo somente serviria para que se sentisse idiota. Mas sim podia mostrar-se desavergonhada e direta. Deve ter surtido algum efeito, porque o corpo de Falcão, já tenso por si, adotou uma posição de rigidez absoluta. Não parecia respirar sequer.
—O que está fazendo?
Ellie sorriu ao ouvir o tom de alarme em sua voz. Pareceu-lhe uma estranha ocorrência para um homem que gotejava tanta confiança.
—Pensava que era óbvio. O que estivemos fazendo os dois últimos dias, nos divertir um pouco.
Erik entreabriu os olhos com suspicácia. Era consciente que o estava desafiando.
—Não acredito que seja boa ideia.
Arqueou uma sobrancelha.
—Por quê? Não é nada sério… ou sim?
Não respondeu, mas talvez fosse porque tinha a mandíbula tão tensa que parecia incapaz de articular movimento algum.
«Um empurrãozinho.» Mas ele não o punha nada fácil. Estava ali sentado com total rigidez, com os músculos em tensão e cada centímetro de seu poderoso corpo lhe advertindo que não se aproximasse.
Ellie voltou a inspirar profundamente e se inclinou sobre ele, pôs sua boca contra a sua e depois roçou a umidade salgada de seu áspero queixo com os lábios até chegar a seu pescoço. Cheirava bem, inclusive empapado de água do mar. Fazia vários dias que não se barbeava e a escura sombra de sua barba dava um caráter esquivo a sua aparência de divindade nórdica dourada. Ellie se tornou para trás para avaliar os efeitos que tinham seus esforços. Seu olhar a atravessou com a intensidade e o calor de um raio. Ele seguia com a mandíbula encaixada, os músculos do pescoço duros e o queixo não cessava de palpitar.
Tudo nele apelava ao espírito temível do guerreiro das Highlands, sombrio e perigoso. Mas havia algo perverso nisso que a excitava. Não fazia a não ser lhe dar mais arrojo.
—Esquecerá de tudo isto — o desafiou —, porque não significa nada, não é certo?
Ele a observava com o olhar do depredador ao qual devia seu nome. Ellie o obsequiou com um desses sorrisos irreverentes dos que ele era professor, e se aproximou para tocá-lo. Os dedos escorregaram por seu peito até os rígidos degraus de seda de músculos que cruzavam seu abdômen de lado a lado e estes se sobressaltaram ante o contato. Brincou com ele por uns instantes e comprovou os limites de sua capacidade para controlar-se, desenhando círculos provocadores sobre seu ventre até que ficou todo ele em tensão, cuidando-se o máximo de evitar a grossa coluna de carne que se esforçava em chamar sua atenção.
Não deixou de olhá-lo aos olhos em nenhum momento e observou que estes se voltavam cada vez mais escuros e ardentes.
—E isto? —disse pondo a mão sobre seu coração a ponto de explodir, enquanto o olhava aos olhos com intensidade — Não sente nada diferente aí, verdade?
—Não — disse com uma voz tão cortante e tensa que mais pareceu uma imprecação.
Mentia. Ellie se dava conta disso, por mais que ele lutasse com firme determinação. Quando roçou com seu pulso o robusto corpo de sua virilidade, Falcão emitiu um assobio. Ellie notou o calor que desprendia através do fino pano dos calções. Rodeou-o com suas mãos.
—Estou segura de que esquecerá tudo.
—Santo Cristo, Ellie — se queixou, com os músculos do pescoço tão tensos como a corda de um arco — Não quero lhe fazer mal. — Pela angústia que sentia no peito, Ellie podia arriscar a dizer que já era muito tarde para isso. Então a agarrou pelo pulso, mas ela não estava disposta a soltá-lo — Não posso lhe oferecer neste momento o que quer.
A esperança que lhe dava arrestos se dissipou. Soltou-o e afastou a mão. «Não me quer. Não lhe importo.» A dor se aferrou a seu peito. Não esperava que aquilo doesse tanto. Mas havia algo em seu interior que não a permitia dar-se por vencida. Se era isso tudo o que ele pensava lhe oferecer, tomaria tanto como fosse possível.
Começou a trabalhar sobre as ligaduras de seus calções com determinação renovada, mas o tecido estava úmido, de modo que teve que esforçar-se. Uma vez tudo aberto e ao alcance de sua mão, elevou a vista para olhá-lo. Seu rosto permanecia duro e inquebrável como o granito.
—O que quero? Tudo o que quero é isto — disse. E quando viu que não obteria resposta pôs os dedos a seu redor e sentiu como seu próprio ventre se encrespava pela excitação. A pele, suave como o veludo, mostrava toda sua tensão sobre aquela turgente coluna de aço — Só um pouco mais de prazer pela última vez.
«Maldita seja.» Que demônios acreditava que tentava provar? Não importava o muito que se divertissem juntos, ele partiria essa mesma noite e esqueceria tudo aquilo. Ambos o fariam. Não importava quão incrível fosse a sensação de tê-la em seus braços, que não parecesse cansar de beijá-la, ou que a desejasse mais do que tinha desejado a qualquer outra mulher em sua vida. Isso somente ocorria porque sabia que não podia tê-la. A maneira em que pulsava seu coração, essa atração visceral, a necessidade animal de estar com ela, logo desapareceriam. Sempre ocorria assim.
E entretanto, jamais havia sentido nada como aquilo. Desejava-a com tanta vontade que pela primeira vez em sua vida não confiava em si mesmo. Por que tinha que forçar as coisas? Por que não o deixava em paz? Não queria lhe fazer mal. Tentava fazer as coisas bem. Mas sentir essas mãos em seu corpo, tocando-o, acariciando-o…, reduzia a pedacinhos todas suas intenções. Ainda podia notar a pressão daquela mão sobre seu peito, diabos. Sabia o que se propunha com esse joguinho, mas isso não o faria mudar de ideia. Maldita seja, aquilo não significava nada para ele. E tinha toda a intenção de prová-lo. Se queria prazer, isso seria exatamente o que conseguiria. Mais agrado do que poderia suportar. Pode ser que fosse ela quem tinha começado o jogo, mas o acabariam de acordo com suas próprias condições.
Afundou os dedos entre seus empapados cabelos e atraiu o rosto de Ellie para si, cobrindo sua boca com um longo e apaixonado beijo. O alívio se disseminou por seu corpo em uma onda cálida e pesada. Devorou-a com os lábios à medida que ia acariciando, enroscando sua língua com a dela até o mais profundo em uma necessidade frenética de consumação. Mas aquilo não serviu absolutamente para acalmar a fome que fervia em seu interior.
Não deveria fazer isso. Não, dados seus próprios sentimentos, entre os que se mesclavam a raiva e uma estranha agitação de frenesi que não compreendia. Não lhe parecia ser dono de si. Em seu interior formava algo selvagem e descontrolado. Sentiu a pressão que se acumulava em seu peito, uma pesadez que se expandia sem poder escapar por nenhum lugar. Orecavia-se do perigo, mas não atendia a suas advertências.
«Não é mais que prazer. Luxúria, isso é tudo.»
Mas cada uma dessas endiabradas carícias aumentava o frenesi, e seu corpo se via já minado até o ponto de ruptura por aqueles provocadores roces.
«A última vez.»
Não lhe cabia a menor duvida de que faria que valesse a pena. Afastou a mão de Ellie de seu corpo antes de tudo acabasse muito cedo, e a atraiu para si para acomodá-la na pedra sobre a que ele estava apoiado. Acariciou seus seios, seu traseiro. Cobriu-a com suas mãos, espremendo-a, apertando-a, segurando-a contra si em uma desesperada tentativa de paliar a fome e as perigosas emoções que revolucionavam seu interior.
Ela se derretia entre suas mãos, arqueava seu corpo e o pegava ao dele. Se em algum momento pôs freio a suas reações, aquilo era água passada. Saía ao encontro de cada uma das carícias de sua língua e de suas mãos com um abandono brutal que ele jamais teria imaginado. Mas aquilo era como pôr azeite sobre a chama, não fazia mais que servir de combustível ao fogo que surgia em seu interior.
Ele a beijava, a acariciava, encaixava seu corpo sobre o dela, quadris com quadris, peito junto a peito. As duras protuberâncias de seus mamilos lhe arranhavam o torso à medida que ela roçava contra ele. Estavam perto, mas não o suficiente. Falcão queria sentir sua cálida pele escorregando contra a dele. Queria vê-la nua, completamente nua, pela primeira vez. Sem que houvesse camisola, vestimentas, nem meias entre eles.
Roupas. Precisava desprender-se delas. Afastou sua boca e se desfez da camisa. Os olhos de Ellie se abriram com fruição e devoraram com o olhar cada centímetro de seus braços e seu peito. Não deveria olhá-lo desse modo. Aquela fome sem rodeios que mostrava não fazia a não ser pô-lo mais quente. O seguinte a cair foram seus calções e depois, antes que pudesse objetar algo, tirou-lhe a camisola por cima da cabeça.
«Jesus.» Tomou fôlego, sentindo-se como se tivesse lhe caído um raio. Era preciosa. Não magricela, a não ser leve e delicada. Seus olhos se afundaram em cada um dos esbeltos centímetros de sua sedosa pele. Seios pequenos e arrebitados, cintura fina e quadris de curvas gráceis, e essas pernas… Suas pernas eram simplesmente perfeitas, largas e estilizadas, com músculos de formas dóceis.
Talvez aquilo não tivesse sido tão boa ideia… Passaria muito tempo até que fosse capaz de apagar essa imagem de sua cabeça. Incapaz de aguentar nem um momento mais separado dela, arrastou-a para si e a beijou enquanto se encontravam nus corpo a corpo pela primeira vez. Tudo dele se acendeu ante o contato, ante o crepitar da pele entrando em contato com a pele.
Acariciou-lhe os seios e a agarrou pelo traseiro. Despediu-se de toda sutilidade e colocou as mão entre suas pernas, beijando-a enquanto introduzia seu dedo no interior daquele suave calor líquido. Gemeu. O desejo o atravessava em uma onda cálida e pesada que o levava para as profundidades. Tão quente, tão úmido… Ela ofegava e se retorcia contra ele, aproximando os quadris de sua mão e apertando ainda mais os seios contra seu corpo.
Introduziu outro dedo e a abriu com mais folga. Mas acariciá-la com os dedos não era suficiente. Queria estar dentro dela mais do que jamais tinha querido nada na vida. Ela gemeu de novo, desta vez com mais insistência e colou seu montículo à ereção em busca de maior fricção. Sentir toda aquela umidade escorregar por seu palpitante membro o levou a borda da loucura. Estava tão perto.
«Não.» Apertou os dentes ante a urgência que sentia de inundar-se em seu interior. Mas, Deus, quanto o desejava… «Uma última vez.» Não podia parar de repetir-se essas palavras que zumbiam em seus ouvidos guiando todos seus atos.
—Rogo-lhe isso, Falcão.
—Erik — suplicou. Queria, precisava ouvir como dizia seu nome. Seus olhos se encontraram. Sentiu essa pontada aguda no peito — Erik — Voltou a pedir.
—Erik — repetiu ela em voz baixa. O sorriso que formou em seu rosto e que encheu seus olhos fez pedacinhos a pressão que se foi construindo em seu interior — Por favor, quero fazê-lo.
A ele, a cabeça dava voltas. Aquele inocente rogo estava fazendo que ficasse sem respostas. Sabia o prazer que lhe daria, quão escuro seria seu interior, como seu corpo o envolveria. Não podia pensar mais que em estar dentro dela. Era o único que importava. Era o único que o faria sentir-se bem. Quão único deteria o martelar que sentia no peito e que poria fim à loucura de seu desejo.
Pôs uma mão sobre cada um de seus ombros para pegar-se mais a ela e se colocou entre suas pernas. Seus olhos se encontraram e se olharam. Nenhum dos dois disse uma palavra. Não precisavam fazê-lo. Deu-lhe uma última oportunidade. Ela leu a pergunta em seus olhos e assentiu.
Não duvidou. Seu corpo já não atendia a razões, mas sim atuava por conta própria, impulsionando-se para frente com uma só intenção: fazê-la sua. «Minha.» Tratava-se de um instinto primário impossível de resistir. Seu corpo se agitou pela emoção, antecipando as sensações à medida que empurrava lentamente para seu interior.
Ellie sabia que devia dizer que parasse. Apesar da bruma de paixão que os envolvia, sabia que devia fazê-lo. Mas não queria. Adorava. Adorava Erik. Havia-lhe dito seu nome. Adorava sua arrogante insolência, seu incorrigível sorriso, o inato sentido de honra e a nobreza que escondia atrás dessa fachada de velhaco. Adorava sua calidez, sua galanteria, seu ar pensativo. Adorava a sensação de liberdade que tinha ao estar junto a ele, a aventura, a emoção, mas também estar sentada a seu lado em uma colina contemplando o mar golpear contra as rochas. Unir-se lhe parecia a expressão perfeita, a única maneira de expressar esse amor. Sabia que isso queria dizer algo, que lhe importava, que estava chamando a fazê-lo. A forma carinhosa quando se meteu entre suas pernas a deixou sem fôlego, um olhar feroz, possessivo, intenso. Era uma reivindicação primária que não podia ser negada.
Pertencia-lhe e ele a ela. O destino os tinha levado até aquele lugar; estava decidido de antemão. Ele estava destinado a ela. Tomou pelos ombros e sentiu seu sedoso vértice golpear contra as sensíveis dobras da virilha. Ao notar aquela incrível sensação, alagou-a uma nova onda de umidade. Não estava muito segura se aquilo funcionaria muito bem. Era muito grande. Mas em certo modo devia confiar que seu corpo se ajustasse para lhe dar capacidade. Seus penetrantes olhos azuis lhe sustentavam o olhar com o rosto mais feroz que lhe tinha visto até o momento. Vê-lo apertando os dentes e notar todos os músculos em tensão sob as pontas de seus dedos fazia que parecesse estar lutando contra um inimigo invisível.
Erik empurrou e a abriu com a ponta de sua ereção. Ellie ofegou e depois um pouco mais quando ele investiu de novo. Era uma sensação estranha e maravilhosa. O calor, a conexão, seu corpo estirando-se ao máximo e Erik enchendo todo seu ser. Sentiu que seu corpo se abrandava e se abria em torno dele com a umidade como guia para o interior. Talvez funcionasse depois de tudo.
Quando pensava que tinha chegado até o mais profundo, olhou-a de novo aos olhos e empurrou até o fundo.
—Sinto-o — disse entre seus apertados dentes.
Ellie sentiu uma aguda espetada e gritou. Seu corpo ficou em tensão ante aquela inesperada dor. Mas Erik a aliviou com sua boca, beijando-a até que seus músculos se relaxaram e a paixão voltou a envolvê-la em seu erótico abraço.
Aquela sensação quente e frenética voltou a dominá-la, a sensação de que tinha que mover-se e senti-lo sobre ela. A necessidade de contato fez que seus dedos se agarrassem à férrea massa de músculos de seus braços e ombros para conduzir seu corpo e pô-lo em cima. Quando aqueles mamilos erguidos e em tensão se encontraram com a cálida e bronzeada pele de seu escultural peito, Ellie gemeu de prazer. Ter aquele peso tão sólido sobre ela era uma sensação inaudita.
Erik introduziu a língua até o mais profundo de sua boca e Ellie ficou roçando contra ele, ansiosa por sentir a fricção que pudesse mitigar o incansável desejo que clamava em seu interior. Deixava-se levar pelo bramido de seu coração, que pulsava contra o dela.
Começou a investir, primeiro lentamente, depois fazendo pequenos círculos com seus quadris e mais tarde, quando os dela começaram a elevar-se para encontrar-se com seu corpo, arremetendo de maneira mais profunda, até que a potência de suas palpitantes investidas parecia reclamar todo o corpo da mulher. Aquela familiar pressão começava a formar-se de novo. Mas era diferente, mais intensa, mais significativa. A união de ambos os corpos em um só tinha acalorado cada uma das sensações. Também ele o sentia. Sua boca se separava da dela, como se o esforço de controlar-se o tivesse privado de qualquer habilidade salvo da de respirar. Embora em realidade aguentava tanto a respiração que inclusive duvidava que fosse capaz disso. Agora bombeava com mais rapidez, mais profundo, com maior força, pulverizando-a com cada um de seus endiabrados arremessos e levando-a até o limite. Ela gemia com cada impulso e arqueava seu corpo para adequar-se a seu ritmo. As sensações revoavam em seu interior, esticando-se ao máximo, reconcentrando-se, reunindo-se todas em uma bola quente e resplandecente até que…
Gritou de prazer à medida que seu corpo se comprimia e liberava a paixão que explodia em seu interior, à medida que os agudos e quentes espasmos de prazer se dilatavam a seu redor. Ele cavalgou sobre ela uma vez mais e gritou contraindo todo seu corpo tanto que estalava a força de seu próprio desafogo. Balançou sobre ela e deixou que o fluxo quente de sua semente se mesclasse com a maré alta de seu próprio prazer em uma cálida queda em cascata.
Ellie queria que aquele instante durasse eternamente. Invadida pela euforia do momento mais assombroso de sua vida, surpreendeu-lhe que se separasse dela imediatamente. Sem o peso dele sobre ela, sem a máxima expressão de seu corpo em seu interior, sentiu um frio repentino. Uma sensação de moléstia foi abrindo passo em sua consciência. Esperava que ele a tomasse entre seus braços e a embalasse contra seu corpo como sempre fazia, mas em lugar disso jazia convexo de barriga para cima olhando ao teto, com seu magnificamente resistente peito elevando-se e caindo com o peso de sua respiração. Olhou-o veladamente sem levantar a vista. Tinha um corpo esplêndido. Nu, possuía um aspecto mais poderoso se pudesse. Por que não dizia nada? O silêncio parecia interminável apesar de ter passado somente uns segundos. «Diga algo.»
—Sinto muito. —O mundo lhe veio abaixo. «Mas não isso.» Seu rosto era frio como a pedra. Nem sequer se dignava olhá-la — Isto jamais devia ter ocorrido.
O arrependimento que se percebia em sua voz era como uma faca que lhe rasgava o peito. Se albergava alguma secreta esperança de ouvir uma declaração de amor, acabava de ficar brutalmente claro que levaria uma decepção. O coração deu um tombo. Era uma estúpida. Tinha apostado com sua inocência e tinha perdido. Tudo que podia provar era que ele a desejava. Mas desejo não significava amor. Pode ser que fosse ela a que desconhecia a diferença. Era um homem que adorava os desafios, que crescia na competição, e agora o desafio chegava a seu fim. Meu Deus, mas o que tinha feito? Que demônios tinha feito ele? A verdade golpeou Erik de cheio no peito: tinha perdido a cabeça, acabava de romper sua promessa e lhe tinha roubado a virgindade.
Jamais teve intenção de chegar tão longe. Comportou-se como um estúpido arrogante ao pensar que podia brincar com fogo sem chegar a queimar-se. O que podia fazer agora? Não podia casar-se com ela. Por Deus bendito, não era mais que uma babá. Como chefe de um clã, tinha a responsabilidade de casar-se com alguém que incrementasse o poder e prestígio deste. Além disso, era muito jovem para atar-se a uma só mulher. Não queria decepcionar a todas aquelas moças. Pouco importava que não tivesse pensado em outra mulher desde que tinha conhecido Ellie. Confiava em que isso mudaria.
Embora a reação de Eduardo Bruce o tivesse feito ir às nuvens, aquilo não era inesperado. Erik sempre tinha gravitado em torno de mulheres formosas e sensuais. Ellie era mais que formosa e gostava, embora fosse talvez muito estirada e mandona, mas não era o tipo de mulher que estava acostumado a gostar. Aquela selvagem atração que sentia por ela não tinha nenhum sentido.
Voltou-se para ela ao precaver-se de que não dizia uma palavra. A expressão do rosto dela o deixou gelado.
«Ah, diabos.» Estava-se comportando como um cretino. Tão concentrado estava em sua própria culpa que não tinha reparado em quão difícil era esse momento para ela.
Por ser um homem que conheciam por dizer sempre o apropriado, suas palavras não poderiam ter sido mais equivocadas no pior momento. Em lugar de desculpar-se, teria que tê-la tomado entre seus braços e tranquilizá-la, dizer quão incrível tinha sido e quão preciosa era, o que sempre fazia. Mas jamais antes se viu tão superado por fazer amor com uma mulher. Nunca o tinham assaltado tantas emoções desconhecidas.
Tentou alcançá-la, mas lhe voltou o rosto e foi pegar sua camisola.
—Não há nada pelo que desculpar-se — disse em um tom impassível — Já sabia em que me colocava. Queria fazê-lo. — passou a camisola sobre a cabeça e conseguiu esboçar um sorriso — Obrigada. Esteve muito bem.
«Bem?», disse-se Erik, surpreso. Não tinha estado bem. Estava claro que para ela tudo isso era novo, mas tinha sido algo de uma espetaculosidade assombrosa.
Ellie lhe ofereceu suas roupas.
—Temos que ir. Seguramente que tem muitas coisas que fazer antes de partir.
Erik não podia acreditar. Não se supunha que tinha que ser ele quem tivesse a urgência de sair correndo?
—Podem esperar — disse tomando-a pelo braço — Temos que falar do que aconteceu aqui. — Passou os dedos entre os cabelos. Jamais antes tinha estado em uma situação como essa e não sabia o que dizer — Te despojei de sua honra.
Ellie se separou dele como se suas palavras queimassem.
—Rogo-lhe isso. Não é preciso que diga nada. Não quero nada de ti. Prazer, isso somente, recorda? O que acaba de acontecer não muda nada. Minha honra era minha e podia oferecê-la a quem quisesse se gostava. Atuei de maneira livre.
Erik não podia acreditar no que ouvia. Estava liberando-o de qualquer carga. Sabia que deveria sentir-se agradecido, mas não estava absolutamente. Sentia-se completamente zangado. Passou a vestimenta sobre seus ombros e colocou os calções. Ao menos deveria ter expectativas de que se casasse com ela. Acaso acreditava que era um homem sem honra alguma? Não era possível que ela pensasse que era do tipo de homem que tomava a inocência de uma moça sem lhe importar nada. Segundo ela mesma dizia, não tinha acreditado em todo esse bate-papo de piratas e sim acreditava em sua nobreza.
E a que se referia com isso de «Bem»? Pode ser que ela tivesse pouca experiência, mas ele não. Jamais havia sentido nada como aquilo em toda sua vida. Tinha sido a perfeição em sua máxima expressão.
A impaciência de Ellie por partir era patente, até o ponto de já ter mergulhado na água. Erik saltou atrás dela e a puxou pelo pulso em um arrebatamento furioso de posse, guiando-a através do túnel de rochas submarinas. Acaso pensava dar-se por vencida sem apresentar resistência? Voltar para sua posição como babá e deixar encerrada toda essa paixão que havia atrás de sua fachada de puritana?
O mundo lhe veio abaixo e a ponto esteve de inalar toda uma baforada de água. E o que ocorreria se não a deixava encerrada? O que aconteceria, se a tinha feito entrar no mundo da paixão só para que ela o compartilhasse com qualquer outro?
Por cima de seu cadáver. Emergiu das águas, ficou em pé e se girou para ela com cara de irritação. Se acreditava que a conversação tinha acabado aí, estava completamente equivocada.
—Ellie, vamos falar disto.
Quando lhe voltou o rosto da mesma maneira em que o fez no birlinn, Erik foi às nuvens.
—Não quero.
Ellie se deteve. Seu olhar captou algo que havia atrás dele. O medo fez que abrisse os olhos completamente.
—Erik, cuidado!
Deu a volta um segundo tarde.
Quatro homens. Ingleses. Uma lança. Jogada contra ele. Sem lhe dar tempo…
Erik se voltou para a esquerda, mas a lança o alcançou no flanco e o mandou às profundidades do negro abismo. O grito de Ellie foi quão último ouviu antes que as águas o tragassem.
Capítulo 18
— Não!
Aquele grito saiu do mais profundo de seu interior, de algum lugar escuro e primário onde se escondia um terror dilacerador inimaginável. Estava tão concentrada em sua própria desgraça e dor que não advertiu aos quatro soldados da praia até o momento em que a lança saiu disparada através do ar para colidir de maneira direta nas costas de Erik. Tudo pareceu passar com uma lentidão extrema, mas mesmo assim estava imobilizada no tempo, incapaz de mover-se para detê-lo. Observar como o homem que amava estava a ponto de morrer sem que ela pudesse fazer nada significou o pior momento de sua vida. Tentou ir atrás dele, mas já era muito tarde. A lança o alcançou e Erik emitiu um rugido enquanto o tragava a água. Ellie mergulhou para resgatá-lo, inclusive acreditou tocar sua mão, mas alguém a tirou da água e imobilizou seus braços atrás das costas. Lutou como uma louca. Fazia dramalhões de pânico sem saber para onde, com uma só coisa em mente: resgatá-lo. O homem que a tinha agarrado grunhiu quando ela o alcançou com a cabeça na mandíbula, uma das poucas partes de seu corpo que não estava protegida pela armadura. Havia alguém gritando, um som de queixa muito agudo que atravessava seus ouvidos. Pôde distinguir uma voz entre o barulho.
—Se tranquilize, milady, está a salvo.
Era ela mesma, seus próprios gritos os que ouvia.
—Me solte! —gritou lutando contra as garras do soldado e olhando para onde Erik tinha desaparecido, lugar no que viu uma horrível mancha de vermelho escuro que se abria passo na água. Sangue. O pânico se aferrou a seu peito, a sua garganta — Tenho que encontrá-lo! Está ferido! —disse entre soluços.
Erik só levava uma vestimenta de linho, algo que o deixava com a pele e os músculos como único amparo contra o golpe agudo da lança. Mas era forte. O homem mais forte que ela conhecia.
—Está morto — disse o homem com frieza — Ou o estará logo. Temos que a levar ao galeão conosco.
—Não! —disse escapando de seu abraço.
A lança. Erik caindo para trás. O que tinha visto não tinha importância. Não estava morto e não pensava deixá-lo ali abandonado. Mergulhou na água apalpando às cegas na escuridão. Mas o soldado voltou a apanhá-la e foi devolvida à superfície resfolegando. O homem a arrastou até a borda entre chutes e gritos. Desta vez não pensava correr riscos, assim que a agarrou firmemente, passando as mãos pelo peito e imobilizando seus braços.
—Busquem — ordenou aos outros três — Deixe de lutar, milady. Tentamos ajudá-la.
Os três homens não pareciam ter muita vontade de molhar-se, mas obedeceram as ordens de seu chefe. A busca se alargou vários minutos de agonia. O soldado falava com Ellie, mas ela não o escutava. As lágrimas sulcavam seu rosto em tanto que rezava para que se produzisse um milagre. Erik podia aguentar a respiração mais que nenhum outro homem que conhecesse. Talvez tivesse tido tempo de voltar para a gruta. O homem que a capturava pareceu chegar a uma conclusão parecida.
—Onde estava, milady? Estávamos olhando à água, mas pareceu sair de um nada.
Ellie pensou com rapidez.
—Nadando ao outro lado das rochas.
Olhou-a como se não acreditasse no que dizia, mas por sorte um dos outros soldados se aproximou e deixou de lhe fazer perguntas.
—Nada, capitão.
Ellie não sabia se estava horrorizada ou aliviada. Em caso de que o encontrassem, não serviria mais que para que tentassem matá-lo de novo.
O homem que a agarrava assentiu.
—Traga Richard e Will…—deteve-se e procurou entre as ondas — Onde está William?
O outro soldado negou com a cabeça.
—Encontrem!
Ellie tinha o coração em um punho. Não podia ser a não ser…
Sua confiança se viu recompensada quando, de repente, emergiu da água e cravou a lança, que antes tinham jogado nele, no peito do soldado ao que chamavam Richard. Ellie voltou a vista por um curto instante. Nesse escasso segundo, Erik tinha conseguido arrebatar a adaga do corpo sem vida do soldado e encarava já ao terceiro deles, que se aproximava dele com a espada em alto. O homem que a capturava amaldiçoou e a soltou no chão. Alcançou o arco que levava às costas e pôs nele uma flecha apontando para Erik, que lutava a um tempo contra as ondas que golpeavam sua cintura e contra a larga espada do soldado, de maior alcance que sua adaga. Não pensou. Ficou em pé e golpeou a mão do soldado assim que este deixou sair a flecha, fazendo que esta se projetasse longe do corpo de seu amado. Quando o soldado que lutava na água voltou a elevar a espada, Erik aproveitou o movimento para equilibrar-se para ele ao tempo que a espada descia. Levantou o braço para bloquear o golpe com força suficiente para que a espada saísse voando e se afundasse pouco depois na água. Como não podia penetrar sua malha com a adaga, passou o braço ao redor do pescoço do soldado e o retorceu, fazendo-o ranger sem piedade. O que estava na areia blasfemou e gritou pedindo ajuda. Estava claro que haveria mais soldados nos arredores.
Erik correu para eles da água, com todo o aspecto de um demônio possuído. O soldado agarrou Ellie de novo e fugiu para o pequeno promontório verde sobre o que estava a cova. Mas a resistência e ter que carregar com ela o fazia perder o passo, e antes que saíssem da praia, Erik já os tinha alcançado.
—Deixe-a partir! —bramou.
Sua voz soava diferente. Mais dura, mais temível, mais contundente do que nunca antes a tinha ouvido. O soldado se deteve e a obrigou a ficar atrás dele. Desembainhou a espada e se voltou para Erik, mas já o tinha em cima. Este o esmurrou na mandíbula com o punho, sem importar a afiada folha que se abatia sobre sua cabeça, e lhe fez perder o equilíbrio. Ellie ouviu o rangido que seguiu ao golpe que Erik infligiu com o dorso da mão no pulso do soldado, justo pela parte contrária à articulação, obrigando-o a soltar a espada. Com um rápido varrido do pé tombou ao soldado no chão e o degolou com sua adaga.
Ellie afastou a vista com rapidez. A guerra, morrer e os banhos de sangue eram de tudo comuns, mas jamais o suficiente para que se acostumasse a isso. Além disso, a técnica de aniquilamento eficiente e fria de Erik era algo fora do comum. Tinha sido a demonstração de poder mais mortífera que jamais tinha visto. Acabou com eles em um abrir e fechar de olhos. Ao vê-lo atuar desse modo, já não punha em dúvida a história de Domnall em que enfrentou a vinte guerreiros. Erik a tirou das rochas e tomou entre seus braços, apertando-a forte contra seu peito. Ellie podia sentir a pressão de sua boca na cabeça. A transformação de assassino desumano em tenro amante não podia ser mais dramática.
—Deus, Ellie. Está bem?
Assentiu com a bochecha apoiada no frio e empapado tecido de sua vestimenta, acalmada pelo estável pulsar de seu coração.
—Estou bem. —tornou-se para trás, preocupada — Mas e você? —disse olhando seu flanco, no que a vestimenta de cor açafrão agora exibia uma extensa mancha vermelha — Está ferido — choramingou tentando cobrir a ferida com suas mãos.
Erik tomou pelo queixo, obrigando-a a olhá-lo aos olhos.
—Não é nada. Um arranhão, nada mais.
Não acreditou no que dizia até que ele mesmo levantou a regata para mostrar a pouca profundidade da fenda que tinha no flanco e o buraco pelo que a lança tinha penetrado pelo tecido fazendo-o cair para trás. Ellie fechou os olhos e pronunciou uma prece em agradecimento. A lança não o tinha trespassado por poucos centímetros.
—Teve sorte — disse. Sua voz quebrou e as lágrimas alagaram seus olhos — Poderiam ter te matado. —Tal e como obviamente era sua intenção.
Erik sorriu e a obsequiou com um tenro beijo nos lábios.
—Ai, amor, precisaria mais de quatro cães ingleses para acabar comigo. Tenho o vento a favor, recorda?
Ellie assentiu. Era certo que a sorte parecia acompanhá-lo. Em qualquer outro momento teria elevado a vista ao ouvir tal fanfarronice, mas se sentia muito agradecida para fazê-lo.
—Temos que sair daqui — disse ele adotando um súbito ar sombrio — Esses soldados não vieram sozinhos. Deve haver um navio nos arredores.
Ellie assinalou com a cabeça ao soldado que jazia no chão.
—Esse estava pedindo ajuda.
—Isso significava que estão perto. Volta para o bote e ponha suas roupas. Deve estar gelada.
Tinha muito medo para precaver-se disso, mas o certo era que tiritava sem poder remediá-lo.
—Aonde você vai?
Sua voz delatava que era presa do pânico e que, depois do que tinha ocorrido, não queria o perder de vista. Erik assinalou para a colina.
—Ver onde estão os outros soldados. —ajoelhou-se para tomar a espada do soldado caído —Depressa.
Fez como tinha pedido e vestiu imediatamente o vestido de lã, as meias e as sapatilhas. Acabava de colocar o manto por cima quando Erik veio em sua busca. Pela expressão feroz de seu rosto e os bruscos movimentos soube que algo ia mau. Os alicerces de seu mundo se cambalearam ao precaver-se de que devia ser algo muito sério para penetrar aquele inquebrável porte.
—O que acontece? Viu seu galeão?
Erik se vestiu e tomou suas armas ao tempo que respondia.
—Sim, está ao outro lado da colina, junto a uns dez ou doze soldados.
—Mas há algo mais que o preocupa.
Acabou de fechar a capa que fixava a espada a suas costas e se voltou para olhá-la aos olhos. Ellie advertiu a fúria que atormentava seus olhos.
—Há quatro galeões controlando a baía e se vê fumaça que vem da praia. —Quando assinalou para o sul, Ellie distinguiu as espirais de fumaça cinzas ante um céu de similares cores — Os ingleses nos encontraram.
Enquanto Erik esperava que os ingleses cessassem em sua busca, o tempo passava em um ritmo agonizante. Mas estes se mostravam implacáveis e estavam pondo toda a ilha para cima. Tinha tido que fazer provisão de todo o autocontrole com o que contava para não sair correndo imediatamente para a praia. Teria gostado, mas não podia fazê-lo. Duas coisas se interpunham em seu caminho: tinha que proteger Ellie, porque vê-la nas mãos do soldado inglês era algo que não esqueceria facilmente, e tinha que pensar na missão. Em caso de que o capturassem, Bruce não conseguiria seus mercenários a tempo. Nem tampouco teria Erik para conduzir a frota até Arran. A missão estava em primeiro lugar. Seus homens estavam adestrados e podiam defender-se por si mesmos. Mas permanecer oculto em uma cova em lugar de unir-se à luta ia contra cada um dos músculos de seu corpo. Horas mais tarde se encontrava a borda da loucura e se sentia como um leão enjaulado em um reduto minúsculo. Como demônios os tinham encontrado?
Consciente que os ingleses voltariam para procurar os soldados desaparecidos, arrastou o bote praia abaixo assegurando-se de deixar rastros visíveis na areia. Queria que os ingleses pensassem que tinham escapado. Não tinham forma de saber que aquele velho bote não duraria nem cinco minutos nas fortes correntes do canal. Remou até transladá-los à maior das ilhotas conhecidas como ilha Sheep, além da ponta norte de Spoon. Embora dali não se visse a praia, podia apreciar quase a totalidade da parte ocidental da ilha e os navios ingleses que vigiavam a baía.
Tinha deixado Ellie em uma cova sob outro desses arcos naturais enquanto ele observava, rondava acima e abaixo e tentava acalmar sua ansiedade à espera que os ingleses cessassem sua busca. Mas cada minuto passava com uma lentidão mortificante. O tempo era seu inimigo. Os MacQuillan o esperavam essa noite, e o curto espaço de tempo que tinham para chegar até Arran e lançar o ataque lhe deixava escassa margem de engano. À medida que passava o dia, aquela viagem a Irlanda de apenas vinte e cinco quilômetros parecia mais longa, dado que não sabia o que encontraria ao voltar para a baía. Era consciente de que não podia fazer outra coisa; o prudente era ficar onde estava, mas não podia evitar que o assaltassem os piores pensamentos.
A tensão prendia todos seus músculos. Ellie se aproximou pelas costas e lhe pôs uma mão no ombro, fazendo que se sobressaltasse.
—Não queria te inquietar — disse olhando através do turvo e chuvoso céu em direção à cova em que quase os tinham descoberto — Partiram já?
Erik assentiu.
—Recentemente.
Apenas momentos depois de que Ellie e ele fugissem no bote, apareceu um galeão ante a cova. Partiu em seguida para voltar algo mais tarde junto a um segundo galeão. Nesta ocasião os ingleses ficaram mais tempo. Finalmente, fazia poucos minutos, um dos navios tinha posto rumo ao sul; e o outro, ao norte de Kintyre. Erik albergava a esperança que isso significasse que os ingleses davam por sentado que tinham fugido da ilha.
—Voltarão? —perguntou Ellie.
—Provavelmente, mas não hoje. Em um par de horas será noite.
—O que passou com o resto dos navios?
—Não sei. Dirigiram-se além da boca da baía e os perdi de vista.
Se a frota voltava para a costa de Ayrshire, onde os ingleses estavam ancorados, navegariam até a parte sul da ilha, o lado oposto de onde se encontravam Ellie e ele nesse momento.
—Quando poderemos voltar?
Erik podia perceber a agonia de seus próprios medos refletidos nos olhos dela.
—Logo.
Tomou entre seus braços e a embalou contra seu peito, consciente de quão difícil seria aquilo para Ellie. Tinha sido um dia turbulento para ambos, em mais de um sentido. Entretanto, ela estava demonstrando uma força e resistência que o faziam sentir-se orgulhoso. Por não falar daquela flecha da que o tinha salvado. Perguntava se teria se dado conta que tinha escolhido a ele na frente dos ingleses aos que pediu ajuda fazia apenas duas semanas. Ellie se pegou a ele e refugiou a cabeça contra seu peito. Erik acariciou seu cabelo e se sentiu em calma pela primeira vez em horas.
—Está faminta.
Ellie negou com a cabeça.
—Nem sequer tinha pensado em comida.
Compreendia-o. Ao igual a ele, estava preocupada com seus homens e a gente do povoado.
—Crê que…?
Não terminou de formular a pergunta, mas ele sabia o que tinha na cabeça. Tomou pelo queixo e a beijou brandamente nos lábios. Sentiu uma pontada no peito.
—Estarão bem — disse tranquilizando-a com mais confiança do que sentia.
Supunha que teriam deixado em paz às pessoas da vila, mas seus homens estavam em busca e captura e se içou a bandeira do dragão. Um arrebatamento de fúria surgiu em seu interior mas o manteve a raia, já que sabia que nada podia fazer no momento.
—Sinto-o — disse Ellie elevando a cabeça para olhá-lo. Erik advertiu como as lágrimas brilhavam no interior de seus grandes olhos de cor castanha — Sei que teria ido em sua ajuda de não fosse por mim.
—Não — disse com rudeza — Não o teria feito. — Não queria que se culpasse por isso. De fato, talvez tivesse salvado a missão ao escapulir com ela. Poderia encontrar-se perfeitamente nas mesmas circunstâncias que seus homens — Não podia me arriscar a isso. Há algo importante que devo fazer.
—Para Robert? —Ao dizer isto, Erik a olhou de um modo estranho e Ellie se ruborizou — Assim é como se referem a ele na família.
Não disse nada. Embora soubesse que podia confiar nela, tinha ordens de manter a missão em segredo. Não obstante, ela tinha atado já quase todos os cabos.
—Os soldados irlandeses — disse com uma voz que se foi apagando — Tem que levá-los até ele. Quando?
—Esta noite
Seus olhos se encheram de temor. Exatamente igual aos sentimentos de Erik.
—O que acontecerá se não chega a tempo?
—Essa não é uma opção.
Ele sentiu todo o peso de seu olhar.
—Compreendo.
Era consciente que Ellie advertia o que significava aquilo: o ataque era iminente.
—Não é preciso que te diga o que está em jogo.
Ellie negou com a cabeça e ficou em um silêncio contemplativo.
Erik esperou tanto como se atrevia a fazê-lo. Só ficava uma hora mais de sol quando ajudou Ellie a subir no bote e remou de volta à baía, mantendo-se pego à borda e observando com precaução antes de rodear qualquer curva sem visibilidade. O bote margeou o istmo5 para entrar na baía imerso em uma calma absoluta. As fogueiras que tinham ascendido na praia ainda fumegavam, e o mortífero aroma do fogo tingia o penetrante ar do mar. A própria baía estava deserta e não se via um só navio de pesca. Amaldiçoou sua sorte ao precaver-se de qual era a causa daqueles fogos. Sua situação piorava por momentos. Os ingleses não pensavam lhe dar nenhuma oportunidade. Em caso de que tivesse permanecido na ilha, assegurar-se-iam de que seguisse sendo assim mediante a queima de qualquer meio de transporte para sair dela. Embora tudo apontasse a que seus homens tinham sido capturados, quase esperou ver sair Domnall da cova. Por todos os diabos, inclusive teria agradecido receber as queixa de Randolph.
Mas ninguém saiu a seu encontro. A névoa espessava o ar estagnado em uma nuvem carregada de chuva que fazia de pálio de uma tranquilidade inquietante. Deixou o bote na borda e ordenou a Ellie que permanecesse nele. Ela não protestou; o qual indicava que sabia a razão. Em sua ascensão pela borda, passou junto aos restos calcinados de vários barcos de pesca. Pelo número de pegadas que se viam na areia parecia que os ingleses tinham desembarcado em grande número na praia. Seus homens teriam recebido aviso, mas ante tantos soldados a batalha não podia ter durado muito. Suspeitava que teriam permanecido ocultos na cova, esperando para atacar quando fosse necessário. Suas suspeitas se viram confirmadas quando tropeçou com o primeiro dos corpos à entrada da caverna. Aos poucos metros encontrou um par deles mais. A morte não era algo novo para ele, mas a dor de perder um homem jamais diminuía. Aplacou sua fúria como pôde e se deu forças para o pior, esperando encontrar um açougue. Mas surpreendentemente não achou mais corpos entre as pertences dispersadas de seus homens. Que demônios teria passado com eles?
Voltou para a praia, compreendendo em toda sua amplitude a gravidade da situação. Por mais que o preocupassem seus homens, sua maior inquietação devia ser o cumprimento da missão. Ellie o olhava fixamente à medida que se aproximava. Erik leu a pergunta em seus olhos e lhe disse o que tinha encontrado.
—E o que tem os outros? —perguntou.
—Não sei — disse negando a sua vez com a cabeça.
—E Meg?
—Vou lá agora.
—Vou contigo.
—Não é uma boa ideia.
Ninguém podia saber o que poderiam encontrar.
Ellie se ergueu e adotou a expressão de babá teimosa que a caracterizava.
—Não necessito seu amparo. — Sem dúvida, precaveu-se do ridículo que soava aquilo à luz dos últimos acontecimentos, de modo que quis arrumá-lo — Para isto. —Olhou-o com cara de tristeza — Por favor, Meg também é amiga minha.
Erik lhe sustentou o olhar e assentiu. Quando chegaram, não havia luz alguma na casa e não lhe surpreendeu encontrá-la vazia. Esperava que se retiraram ao interior da ilha com a chegada dos ingleses, de modo que sugeriu continuar até a seguinte moradia. Meg deve ter visto como se aproximavam porque saiu correndo para recebê-los. Ellie a abraçou com lágrimas nos olhos, um alívio que também Erik compartilhava.
—Graças ao céu — disse Meg — Pensei que também lhes teriam encontrado.
—O que passou?
Meg lhes contou que os navios tinham chegado pouco depois que ambos partiram. Jurava que haveria uma dúzia deles ao menos e que rodearam a ilha.
—É como se soubessem que estavam aqui — disse.
A mesma conclusão a que ele tinha chegado.
Como suspeitava Erik, tinham recebido aviso de sua chegada, mas sem tempo suficiente para escapar. Os ingleses tinham desembarcado em grande número. Meg observou do escarpado como revistavam a cova e depois tiravam os homens dela.
Erik estranhou. Não era normal que seus homens se rendessem. Os highlanders lutam até a morte. Meg adivinhou seus pensamentos e disse: —Vi Thomas falando com o chefe dos ingleses.
Randolph rendendo-se, isso sim tinha sentido. Meg continuou explicando como os ingleses tinham reunido a toda a gente do povoado para interrogá-los e revistar cada uma de suas casas.
—Encontram-se bem? —perguntou Erik.
Meg assentiu.
—Não fizeram mal a nenhum de nós. — Parecia um pouco surpreendida disso — O oficial dos ingleses não era tão mau como a maioria deles.
Aquilo era um alívio mas nem por isso deixava de o assombrar. Não era normal que os ingleses mostrassem tal contenção, especialmente por aqueles que davam proteção aos fugitivos.
—Meu birlinn? —perguntou.
—O levaram.
Erik fez uma careta de desagrado. Preferiria que o queimassem antes de vê-lo capitaneado por um inglês.
—Preciso encontrar um navio imediatamente.
Meg negou com a cabeça.
—Não deixaram nada. Nem um bote de pesca. Queimaram todos.
Explicou-lhes que os pescadores da ilha se reuniram na igreja do povo, consternados pela crueldade dos soldados ingleses que tinham destruído seu meio de vida. Erik prometeu que se asseguraria de que todos esses botes fossem repostos. Mas primeiro tinha que averiguar como sair dali.
—Eles estavam procurando — disse Meg. E acrescentou depois de uma pausa —: A moça.
Erik amaldiçoou. Olhou a Ellie, que tinha ficado pálida.
—A mim? —disse com os olhos abertos.
—Não pelo nome — a animou Meg — Só comentaram que Falcão estava com uma moça.
A Erik veio o mundo em cima quando se precaveu do que aquilo implicava.
—Como se inteiraram?
Meg negou com a cabeça.
—Alguém do povoado deve ter contado.
Erik tentou aplacar sua ira. Se os ingleses sabiam de Ellie, era possível que a usassem como arma contra ele. Assombrou-lhe descobrir quão efetiva poderia resultar essa arma. Só em pensar que lhe fizessem mal conseguia que lhe gelasse o sangue.
—Não acredito que se deram por vencidos em sua busca — disse Meg — Voltarão.
—Para então espero estar muito longe. — Sua melhor opção, a única no momento, era o velho bote. Para fazer que fosse digno do mar, teria que improvisar. Mas não contava com muito tempo. Quase tinha escurecido — Necessitarei sua ajuda — comunicou a Meg.
Meg sorriu com gosto.
—Simplesmente me diga o que devo fazer.
Explicou-lhe o que necessitava, e Meg voltou para sua parcela para reunir ajuda e mantimentos.
—O que posso fazer eu? —perguntou Ellie.
Quando se voltou para ela, advertiu que o olhava com uma determinação especial no rosto. O que tinha vontade de fazer era encerrá-la em algum lugar que fosse seguro, preferivelmente uma torre alta e impenetrável, até que tudo aquilo acabasse. Mas tinha a sensação que inclusive no caso de que isso fosse possível, ela se mostraria desconforme. Exibia essa cara de «tenho intenção de te ajudar e será melhor que não tente me deter».
—Ah, suponho que não terá visto por aqui nenhuma torre alta e infranqueável, verdade?
Ellie elevou a vista ao céu.
—Não te liberará de mim tão facilmente.
Não lhe cabia a menor duvida. Era isso o que gostava dela. Não a podia dirigir facilmente. Como o tinha expresso Domnall? Não engolia suas tolices.
—Pode ajudar Meg quando voltar. Sabe acender um fogo?
Assentiu.
—Isso acredito.
—Bem. — Suas roupas molhadas não lhe preocupavam, mas queria que ela estivesse quente e seca — Olhe se pode encontrar um pouco de comida.
A expressão de seus lábios se esticou como se soubesse o que ele tramava.
—Não tenho fome.
—Eu sim — disse ele — E terei mais à medida que vá passando a noite. Far-me-á um fraco favor se estiver fraco por não ter comido.
Tinham uma longa noite pela frente.
Levou-a de novo até a casa de Meg e lhe disse que voltaria.
—Aonde vai?
—Comprovar se há algo na cova que possa nos ser útil. E depois tenho um navio que construir.
Olhou-o como se estivesse louco.
—Não tentará passar pelo cerco da frota inglesa nesse montão de lascas desmantelado…
Sorriu.
—Tentar? —deu-lhe um beijo na boca antes que pudesse responder — Não demorarei muito.
Empreendeu o caminho mas ela o deteve.
—Não pensará partir sem…?
«Mim.» Erik sabia que era isso o que queria perguntar. Mas além de conseguir mantê-la quente e alimentada, não tinha pensado ainda no que faria com ela. Tinha prometido devolvê-la a casa, mas já não tinha tempo de fazê-lo. Não podia abandoná-la ali já que os ingleses podiam retornar. Sabia muito. Confiava nela, mas não nos métodos de persuasão dos ingleses. Dando por certo que pudesse arrumar o bote para que cruzasse o canal com garantias, Ellie estaria mais a salvo junto a ele, sempre que os ingleses não os apanhassem. Mas não tinha nenhuma intenção de permitir que aquilo acontecesse. Odiava-se por havê-la metido nessa confusão, mas não havia maneira de escapar daquela situação e não podia fazer nada para remediá-lo.
—Voltarei. Se prepare para partir.
Era a primeira vez que a via sorrir desde essa manhã e se precaveu do muito que lhe pesava sua desdita. Tão somente esperava com todas suas forças que estivesse fazendo o correto.
Ellie jamais tinha visto nada parecido. Em apenas umas horas, trabalhando com um único objetivo e muita determinação, Erik tinha equipado aquele pequeno bote para a navegação, fazendo um mastro com ramos de árvores, um leme com várias tábuas, e a vela com roupa de cama. A tocha que tinha massacrado na batalha a mais homens dos que queria imaginar se converteu em um instrumento de delicada precisão nas mãos de um habilidoso armador. Admirava seu trabalho de artesão, de pé sobre a areia da praia, quente e bem alimentada, agasalhada com várias mantas e uma grossa capa de pele, esperando que se fizessem os últimos preparativos para a viagem. Embora não fosse absolutamente tão robusto como o birlinn do Falcão, o aspecto do bote resultava muito mais impressionante que a última vez que o tinha visto. Tinha reparado algumas das madeiras curvadas lhe dando a volta para que se ajustassem melhor e encaixassem com mais força. Trocou uma ou duas delas, mas não quis ir mais além porque a madeira não estava curada. Tinha pintado o casco com um material negro pegajoso que, conforme dizia Erik, ajudava a impermeabilizá-lo. O mastro era de aparência rústica, mas também parecia funcional, igual ao leme colocado na parte traseira. A vela a fez com um par de lençóis que Meg e ela tinham costurado e que depois um velho pescador melou com algum tipo de graxa de animal de aroma rançoso.
Assim que Erik terminou de armazenar as provisões, mantas de sobra, comida, água e cerveja que Meg lhes tinha dado em uma pequena arca presa ao casco para que Ellie se sentasse sobre ele, ficou de pé junto à jovem.
—Seu navio lhe aguarda, milady — disse com uma reverência galante.
Ela negou com a cabeça e lhe dirigiu um olhar irônico.
—Há algo que não possa fazer?
Ele sorriu.
—Não me ocorre nada, mas se o há, estou seguro de que será a primeira em me recordar isso.
—Conte com isso — repôs entre risadas.
Depois de tudo o que tinham passado durante o dia, Ellie se precaveu de que essa sua habilidade para estar de bom humor tinha, sem dúvida, seus benefícios. Era fácil compreender por que seus homens o admiravam tanto. Na escuridão da batalha, os guerreiros necessitavam alguma forma de relaxar as tensões. E Erik elevava a moral das tropas de maneira natural. E mais, sua força inquebrável ante o perigo e a calamidade deviam outorgar inspiração e confiança aos homens que liderava. Devia ser o indivíduo perfeito para ter ao redor quando as coisas saíam mau, algo inevitável na guerra.
O que em qualquer caso não esperava era que contasse com tanta tenacidade e determinação. Tinha um trabalho que fazer e nada se interporia em seu caminho. Suspeitava que faria toda a rota a nado se fosse necessário. Estava claro que quando algo lhe importava, tomava muito a sério. Se esse «algo» pudesse ser ela…
Depois de dar um novo olhar ao bote desmantelado convertido em um barco digno de navegação, Ellie sacudiu a cabeça e disse: —Por que tenho a impressão de que jamais se rende?
—Não o levo no sangue. Sou um highlander. Bas roimh geill.
“Morrer antes que render-se”, traduziu Ellie. Um calafrio que nada tinha a ver com a pesada geada gelada que formava redemoinhos a seu redor percorreu seu corpo. Erik não se precaveu dessa reação e sorriu como se algo o divertisse.
—O que acontece?
—Estava pensando em uma aranha com a que cruzei recentemente.
Ellie fez uma careta.
—Divertem-lhe as aranhas? Me recorde que lhe presente algum dia a meu irmão Edmond. Não há nada que goste mais que colocá-las na cama da minha irmã pequena.
Ele sorriu.
—Não é que me divirtam. Simplesmente é irônico. Essa aranhazinha inspirou um rei.
Relatou-lhe a história de Bruce na cova com a aranha, como, quando o rei estava em seu momento de mais desesperança e desengano, quando estava preparado para dar-se por vencido, a perseverança da aranha e seu posterior êxito na construção da teia tinha atuado como um augúrio poderoso. Um augúrio que tinha renovado as forças do rasgado rei para a longa luta que se morava.
—É um conto estupendo — disse Ellie — Se Bruce o conseguir, suspeito que será usado por gerações inteiras de babás para inspirar a quem esteja a seu cargo. —Mas dada a fonte da que provinha o olhou com receio — Quanto há nela de certo?
Os olhos de Erik brilharam na escuridão.
—Acaso pensa que poderia inventar algo assim? —colocou a mão no coração com certo dramatismo — Me feriu.
Ellie o obsequiou com um olhar severo que ele decidiu ignorar, preferindo entrelaçar seu braço com o dela e acompanhá-la até o bote. Os aldeãos se reuniram na praia para se despedir e a Ellie surpreendeu ver-se envolta entre os muitos abraços das mulheres e palmadas nas costas dos homens. Mas foi quando chegou o turno de Meg que lhe fez um nó na garganta.
Esta abraçou primeiro Erik.
—Tome cuidado com a moça e com você — disse tentando ocultar uma lágrima enxuta — Pediria que não fizesse nada imprudente, mas sei que seria esbanjar saliva. Mas prometeu devolver esses lençóis antes do verão, assim espero que cumpra sua promessa.
Erik riu e lhe deu um beijo cheio de afeto na bochecha.
—Terá seus lençóis novos, amor.
—Espero que sim — disse Meg impostando severidade — E traga a moça com você quando retornar.
Antes que Erik pudesse responder, Meg se voltou para ela e a rodeou com seu quente abraço.
—Cuide dele — sussurrou.
Ellie a apertou um pouco mais forte, sem querer deixá-la partir. Por um momento sentiu como se voltasse a dizer adeus a sua mãe. Notou que lhe oprimia o peito e uma queimação nos olhos.
—Obrigada — disse Ellie entre soluços — Não sei como poderei pagar por sua amabilidade.
Meg se separou dela e lhe deu um beliscão na bochecha. Seus olhos compartilharam um olhar alagado em lágrimas de compreensão.
—Seja feliz — disse Meg.
Ellie assentiu sem ânimo para responder. Tentá-lo-ia. Mas depois do que acabava de acontecer nesse mesmo dia não sabia se aquilo seria possível. Apesar do que pudesse desprender-se do ocorrido após a cova, Erik mantinha o silêncio a respeito do acontecido. Tinha-lhe devotado seu coração, seu corpo; jamais tinha experimentado nada tão belo. Ao menos para ela. Ele tinha se arrependido disso ao momento. E então?
Antes que se desse conta já estava no barco, navegando para o mar aberto e observando como a pequena multidão da borda se esfumava entre a escuridão e a bruma. Sentiu uma pontada de tristeza ao precaver-se de que o feliz arrulho da ilha tocava a seu fim. Ficava no ar a questão de se tudo tinha sido uma fantasia ou se aquilo que se forjou entre eles na pequena idílica ilha poderia crescer e prosperar no mundo real, um mundo em que a guerra era iminente.
Se aconchegou o quanto pôde no casaco e nas mantas que levava sobre os ombros. Tinha deixado de garoar, mas aquela gelada bruma impregnava do mesmo modo. Infelizmente, não havia muita brisa, embora Erik se engenhava para manter a vela cheia à medida que o bote saía da baía. Quando entraram em mar aberto, a temperatura baixou de repente e a bruma se intensificou até fazer-se quase impenetrável. Não podia ver um metro à frente do bote. A vela começou a ondear, já que a leve brisa anterior parecia haver-se evaporado, e Erik se viu obrigado a agarrar os remos.
—Quanto tomará cruzar o canal até a Irlanda?
Ele se encolheu de ombros.
—Depende. Umas horas, talvez algo mais.
Isto a surpreendeu.
—Sem vento?
—Já se levantará — disse com confiança atravessando a água com os remos em perfeita harmonia.
Erik estava sentado no lado oposto, o que lhe dava uma visão perfeita de seus impressionantes braços e ombros cada vez que dava uma pazada. Ao fim e ao cabo não era tão mau que não fizesse vento.
—Como pode estar tão seguro? —Erik arqueou uma sobrancelha e ela pôs cara de chateio — Ah, claro, tem o vento a favor.
Ele sorriu.
—Ao final vai entendendo.
Já que aquilo mal merecia uma resposta, Ellie se recostou tranquilamente para admirar a vista, que inclusive tinha melhorado, já que tinha se despojado do casaco. Apesar da bruma fria e espectral, o arrulho das ondas e o impulso suave dos remos tinham um efeito surpreendentemente relaxante. Sentiu como lhe fechavam as pálpebras à medida que o longo dia e os inquietantes acontecimentos faziam racho em seu corpo. Deve ter ficado adormecida, porque o seguinte que se encontrou foi a chuva golpeando suas bochechas e o forte rugido dos trovões, que a fizeram sair do sonho para levá-la a um pesadelo.
Capítulo 19
Ao princípio ao Erik não preocupou que o ar não se movesse. A falta de vento tinha suas vantagens: se os ingleses permaneciam à espera de seus movimentos, não poderiam ver a vela. Inclusive ele se veria em sérios apuros para adiantar uma frota de galeões ingleses com um bote de três metros. Sorriu ao pensar que, ao não ser por sua missão, estaria disposto a comprová-lo. Por impossível que fosse, ainda estava por chegar o desafio que não o atraíra. Era mais provável que os ingleses estivessem escondidos em algum dos castelos escoceses roubados, a salvo e em suas camas quentes, e não esperando em um galeão com aquela névoa fria e espectral que aparecesse um rebelde solitário, embora se tratasse de um que os tinha ferido em seu orgulho em repetidas ocasiões. Remou através daquela turva escuridão, usando como referência a costa de Spoon até que foi possível. Uma vez que entraram no canal do Norte, tudo o que ficou entre eles e Irlanda era a escuridão marinha mais absoluta. Sem as estrelas e a terra para guiá-los, viu-se obrigado a manter o rumo valendo-se de seu instinto e dos anos de experiência calibrando as correntes e o vento.
Quando zarparam, fazia umas quatro horas que tinha caído o sol, pouco depois das nove da noite, o que significava que passariam perto de dez horas de pétrea escuridão até que pudesse chegar a Irlanda e conduzir os homens por esses escassos cinco quilômetros que os separavam de Rathlin. Tempo mais que suficiente, inclusive no caso de que tivesse que fazer a remo todo o percurso. Mas o vento se levantaria. Estavam nas ilhas Ocidentais. O frio, a névoa e o vento se davam por descontado. Passou as duas primeiras horas da viagem desfrutando do relaxante subir e descer dos remos na água, observando o tranquilo dormitar de Ellie. Era uma moça tão séria e a falta de humor que a via ridiculamente adorável quando dormia. Gostava do modo em que suas largas e escuras pestanas batiam contra suas pálidas bochechas, como fechava os punhos junto a seu rosto e a maneira em que seus lábios se entreabriam docemente ao respirar. Adorava suas mudanças de expressão. Aqueles pequenos franzidos que se tornavam sorrisos calorosos e que lhe faziam perguntar-se o que estaria sonhando. Mas o que mais lhe surpreendia era a vontade que tinha de apertá-la contra seu peito e ficar adormecido rodeando-a com seus braços. Então o afligiu a vergonha. Com tudo o que tinha acontecido, não teve tempo para retificar sua ignóbil reação depois que fizessem amor. Pensar em quão magnífico tinha sido seu comportamento durante as horas prévias fazia que se sentisse pior inclusive. Seu apoio tinha sido incondicional. Sem fazer perguntas nem reclamar nada, sem romper a chorar de maneira histérica, ajudando quando era preciso. Como esposa não poderia encontrar a ninguém melhor. «Como esposa.»
Deteve-se em seus pensamentos para permitir que a ideia tomasse forma e se surpreendeu ao não horrorizar-se, nem sentir desejos de saltar pela amurada. «Por que não?», pensou com um sorriso. Ellie seria uma esposa excelente. Gostava, inclusive significava algo para ele. O fazia rir. Desafiava-o como nenhuma outra mulher o tinha feito antes e de uma maneira que resultava estranhamente revigorante. Com ela podia relaxar.
E o que era mais importante, se casava com ela, tê-la-ia na cama sempre que quisesse. E suspeitava que ia querer tê-la um montão de vezes. Seu corpo se esquentou com as lembranças. Lhe fazer amor tinha sido tão intenso, tão incrível, tão próximo à perfeição que doía.
Ao final seu desejo por ela se desvaneceria. Tinha que ser assim, não era isso certo? Mas saberia ser discreto e procuraria não ferir seus sentimentos quando tomasse uma amante, como era o costume. Embora nesse preciso momento a ideia de outra mulher não parecia nada sugestivo. Nem sequer um pouco. Inclusive resultava um tanto preocupante.
Havia outra consideração que não podia tirar da cabeça. Se a deixava partir, poderia estar tentada de procurar a paixão em algum outro. Mas toda essa paixão escondida durante tanto tempo seria perigosa nas mãos equivocadas. Havia muitos homens que poderiam aproveitar-se dela. Obviamente, necessitava que alguém a protegesse. Supôs que teria que ser ele. Quanto mais o pensava, mais gostava. Domnall tinha razão. A sua mãe e a suas irmãs não importaria que se tratasse de uma babá, e quanto a qualquer outro… Diabos, importava-lhe um nada o que pensassem outros. Sempre tinha sido assim. Poderia lhe dar riquezas, uma posição, um lar. Filhos próprios aos que mandar. Seu olhar passeou por sua adormecida silhueta e se deteve em seu ventre. Quase podia imaginá-la saindo às portas de algum de seus castelos para lhe dar a bem-vinda depois de uma longa viagem, com os olhos brilhando de felicidade por vê-lo e sua barriga torcida com um filho. Pensar em seu filho arredondando aquele corpo fez que seu peito se enchesse com uma feroz emoção desconhecida até então. Queria ter essa conexão com ela. Desejava-a com uma intensidade tão visceral que não saía de seu assombro. Sorriu, congraçando-se mais e mais com aquela ideia. Qual seria sua surpresa quando descobrisse que seu pirata era um bisneto de Somerled e chefe de um dos clãs mais antigos das terras? Provavelmente se sentiria afligida, agradecida inclusive. Seu peito albergou uma onda satisfação. Sim, estaria bem que se sentisse agradecida. Seria insólito, pelo que se referia a Ellie.
Erik remou com forças renovadas através das crescentes correntes e ascendentes ondas. Estava ansioso para que despertasse para lhe comunicar sua decisão. Não podia esperar para ver o rosto que poria. Ao princípio ficaria aniquilada, sobre tudo quando compreendesse a honra que lhe estava rendendo, e depois sem dúvida emocionada, aliviada, transbordante de alegria. Talvez inclusive derramasse um par de lágrimas.
De repente uma gota de água caiu sobre seu rosto. Assombrou-se que seus pensamentos se materializassem de tal forma, até que advertiu que não se tratava de uma lágrimas sim de chuva. Normalmente Erik estava a par de qualquer pequena mudança no clima, já que, como marinheiro, sua vida e as de seus homens dependiam disso, mas a chuva tinha aparecido sem prévio aviso. Aquela pesada névoa tinha oculto os sinais, mas de repente o instável tempo das Innse Gall mudou como o mercúrio. «Se você não gostar do tempo, espera cinco minutos e verá.» O dito das ilhas Ocidentais fazia honra à verdade. Ao princípio não lhe preocupou. O vento começou a levantar-se, assim pôde dar descanso aos remos para içar sua improvisada vela. A barquinha pegou uma forte rajada e cobriram tanta distância como tinha remado na metade do tempo. Mas o leve vento e a chuva não eram mais que um presságio do que estava por chegar. Tinha suficiente experiência com tempestades repentinas para reconhecer os sinais. A chuva se fez mais intensa. O vento trocou e começou a rugir em curtas e violentas rajadas. O mar começou a picar-se. As ondas eram mais altas e abruptas. As correntes faziam redemoinhos e criavam ressaca. Erik cada vez passava mais apuros para controlar a posição do bote. Não havia muitos lugares piores que o canal do Norte para uma tormenta de inverno, e muito menos navegando com um pequeno barco que não tinha sido concebido para confrontar tais provocações.
O vento se fez mais denso e começou a rugir de impaciência. Podia perceber como se formava a energia da tormenta e sabia que não havia nada que pudesse fazer para detê-la. Segundo seus cálculos, aproximava-se a meia-noite e estavam virtualmente a meio caminho, mas a costa norte da Irlanda ficava ainda a mais de dez quilômetros de distância. A melhor opção era tentar chegar até a borda e ganhar a corrida da tormenta antes que alcançasse sua força máxima. Mas sabia que suporia uma dura batalha. Não só chegar a tempo a Irlanda, inclusive salvar suas próprias vidas o seria. Teria que dar tudo se queria evitar que as ondas e a chuva não alagassem o bote ou os fizessem naufragar. Se queria um desafio, tudo apontava a que o teria. Mas não era desta maneira como queria. Não com Ellie. Uma estranha sensação passou através de seu peito. Demorou um momento em reconhecê-la: medo. Precaver-se disso o deixou petrificado. Tinha estado em situações muito piores e jamais tinha sentido temor.
Era por causa de Ellie. Seus temores provinham dela. Somente pensar que poderia estar em perigo o paralisava, o fazia sentir virtualmente… vulnerável. E disso ele não gostava absolutamente. Céu santo! Mas o que tinha feito? Supunha-se que tinha que protegê-la, não pô-la em perigo. Não obstante, as recriminações teriam que esperar. Agora mesmo somente podia pensar em uma coisa: tirá-los dali com vida. O rugido ensurdecedor do trovão despertou Ellie de repente.
—O que acontece? —disse meio dormida.
—Uma rajada de mau tempo, isso é tudo — assegurou.
Nada em sua voz nem expressão oferecia mostra do perigo, mas pouco podia fazer por ocultar as violentas sacudidas das ondas sobre o bote, os uivos do vento, a intensa chuva ou os trovões. O tempo era mau nesse momento, mas não pensava dizer que suspeitava que pioraria durante a noite. Erik percebeu a preocupação em seus olhos.
—Há algo que possa fazer? —perguntou Ellie.
Um sintoma de quão assustada estava era que não discutisse com ele e decidisse lhe seguir o jogo. Assinalou-lhe um balde preso à proa.
—Tenta manter tanta água fora do casco como é possível e te agarre forte. Podemos ter um ou outro salto.
Aquilo se revelou como uma subestimação prodigiosa. Quanto mais rápido navegava, maior perigo revestia a situação. Revisava e ajustava a velocidade continuamente em sua tentativa por evitar as armadilha das ondas. Lutava por dominar o vento cambiante com uma mão, tentando manter a posição da proa para as ondas, enquanto dirigia o leme com a outra. Sabia que devia tentar navegar a vela quanto pudesse. Aquilo lhe dava mais possibilidades de manter a proa na direção adequada. Somente ficava esperar que o bote e seu mastro instalado apressadamente fossem o suficiente fortes para aguentar a crescente força da tormenta. Entretanto, o barquinho demonstrou uma resistência surpreendente e seu casco plano os ajudou a manter a estabilidade à medida que o vento os transportava por aquelas torrenciais ondas. No transcurso dos seguintes quilômetros percorridos, seu improvisado mastro aguentou e navegaram para zona tranquila. Ao menos isso esperava, já que tinha perdido virtualmente toda habilidade para calcular a direção. Movia-se por puro instinto.
Embora o primitivo era a luta pela sobrevivência, sua missão permanecia em alguma parte de sua cabeça. Tinham que sair desta. Havia muito em jogo. Chegar a tempo para o ataque era crucial. Não podia esbanjar todos esses meses de preparação. Um fracasso em uma das pontas de ataque deixaria à outra vulnerável e perderiam o elemento surpresa. Erik era consciente de que, cada dia que passava, o brilho de esperança para a causa de Bruce se fazia mais opaco.
Cada centímetro de seu corpo ardia pelo esforço de mantê-los a flutuação e ocultar a Ellie que estavam apenas a uma solitária onda do desastre e da morte.
Olhou seu pálido rosto coberto de chuva e sentiu uma pontada no peito. Sabia o assustada que estava, apesar de fazer o impossível por ocultá-lo. Jamais tinha admirado tanto sua beleza como nesse momento. Nunca esqueceria o aspecto que tinha então, como uma minúscula pipoca empapada com o cabelo pego à cara, imersa até os ossos, tentando manter o tipo entre aqueles ventos impetuosos ao tempo que esgotava a água e observava cada um de seus movimentos com aqueles atentos olhinhos negros. Mas também com algo mais: uma confiança e admiração que lhe fazia sentir-se humilde. Sorriu apesar de o que experimentava nada tinha de divertido.
—Esta sim que é uma pequena tormenta das boas, eh, tè bheag? —gritou sobre o bramido do vento e da chuva.
Olhou-o como se fosse um lunático.
—E então a que chama você uma grande tormenta?
Erik riu apesar das circunstâncias.
—Isto não é nada. Não te comentei aquela vez que…?
—Erik! —cortou ela com um grito de exasperação ao tempo que uma forte rajada de vento golpeava o casco da pequena nave. Ellie se agarrou à amurada até que seus dedos ficaram brancos. Erik tinha prendido uma corda que agarrava aos dois, mas ela era tão magra que temia que a levasse o vento — Te importaria me contar essa história mais tarde, quando esta pequena tormenta tenha acabado?
Ele se encolheu de ombros como se não lhe importasse nada.
—Como quiser, mas é uma boa história.
—E provavelmente melhore com cada vez que a conte.
Ele negou com a cabeça. Que mulher! Inclusive no meio do inferno era capaz de mostrar-se sarcástica. Apesar disso, lhe tiritavam os dentes, e quando ao resplendor de outro relâmpago o seguiu imediatamente o estalo de um trovão, a viu tão aterrorizada que teve que controlar-se para não correr e consolá-la. Daria tudo para protegê-la. Mas o que passaria se tudo não era suficiente? Aquela suspeita de dúvida o enfureceu. Será suficiente, por todos os diabos. Não era possível que a sorte o tivesse abandonado por completo. Mas quando Erik ouviu o sonoro rangido e viu o mastro escorar-se para um lado, se perguntou se aquilo não seria certo.
Pelo rangido, Ellie soube no momento que algo ia muito mal.
—Cuidado! —gritou Erik ao tempo que a alcançava e a jogava no chão justo quando o mastro, a vela e os equipamentos do barco passavam sobre sua cabeça.
Ellie ficou observando, emudecida pelo terror, como a vela se agitava sobre as ondas por uns instantes, antes que o peso do mastro e dos equipamentos do barco a arrastassem consigo e a fizessem desaparecer no tumultuoso mar. «Estamos condenados.» Sem a vela, ficavam virtualmente a mercê daquele tumultuoso mar. Erik a tomou em seus braços, apertou-a forte contra si e acariciou sua cabeça de cabelos completamente empapados. Podia notar seu pulso acelerado inclusive sob as capas de lã, peles e couro. Ela o olhou através da cortina de chuva que caía sobre suas pestanas, surpreendida de não reconhecer um só traço de medo em seu rosto. Permanecia impassível, inclusive na mais aterradora das circunstâncias. Parecia mais preocupado pelo fato de que ela tivesse estado a ponto de golpear a cabeça com o mastro que porque estivessem completamente a mercê da tormenta. Ellie elevou a vista para olhá-lo.
—Vamos morrer?
Seus olhos se encontraram com os dele e clamavam por uma resposta sincera. Erik tomou pelos ombros com todo o corpo jorrando de chuva e a sacudiu para enfatizar suas palavras.
—Não vamos morrer.
Como se quisesse desafiar suas palavras, uma enorme onda propulsou o parquinho às alturas e jogou com eles até quase fazê-los voar para depois voltar a soltá-los de um golpe na água. Erik tomou os remos e os usou para manter o rumo da proa para as ondas, mas era evidente que aquelas placas de madeira não podiam opor-se à corrente.
—Não necessito uma vela para conseguir chegar a Irlanda — fanfarroneou sobre o rugido da tormenta — Não pensa que estou disposto a me render, verdade?
Ellie negou com a cabeça. Jamais se renderia. Era o melhor marinheiro que jamais tinha visto. Se alguém podia consegui-lo, era ele. Olhou-a aos olhos.
—Necessito que esteja comigo, Ellie. Será capaz de confrontar isto?
Ela afugentou a onda de pânico que a imbuía e assentiu. Não pensava vir-se abaixo. Tinha que ser forte.
—O que pensa fazer? Não pode remar em meio disto.
—Não vou necessitar. —Sorriu e, apesar das dilaceradoras circunstâncias, resultou algo reconfortante — Mas dado que perdemos a vela, temo que terei que pedir sua camisola. —Riu ante a cara de estupor dela — Preciso fazer força com algo para que o barco perca velocidade. Também ajudará que a proa siga o curso das ondas.
Com a tormenta formando redemoinhos a seu redor, Ellie não podia perder mais tempo fazendo mais perguntas. Custou-lhe, mas ele a ajudou a passar entre as capas de tecido molhado até chegar à camisola. Erik se sobressaltou quando suas mãos nuas contataram com a pele, mas se engenhou para romper o pano de linho de um modo limpo e rápido pela cintura. Fez um nó com um extremo do tecido e depois fez um par de buracos junto à prega ao outro extremo, ao qual atou dois cabos. Atou a corda à proa e, finalmente, jogou a camisola ao oceano.
A escuridão não deixava vê-lo, mas soube que funcionava quando a barco acalmou sua marcha e pareceu estabilizar-se.
—E agora o que? —perguntou ela.
Erik lhe afastou uma mecha de cabelo das pestanas e lhe deu um beijo salgado na boca. Aqueles lábios tinham sabor de força e calor e lhe ofereceram um consolo que necessitava mais que nunca.
—Agora esperaremos e deixaremos que a corrente nos conduza através da tormenta.
Deitou-a na coberta do barco de modo que ficasse estendida ante ele, acurrucada sobre seu lado, e pôs umas mantas sobre eles. Tinham ficado completamente a mercê da tormenta. A chuva seguia aumentando e o barquinho bamboleava de um lado a outro envolto nos perigosos tubos das descomunais ondas. Mas no acolhedor e quente círculo de seu apertado abraço e com o constante batimento do coração atrás de suas costas, Ellie sentiu um momento de calma.
Até que os golpeou a seguinte onda e o terror fez que seu pulso se acelerasse e o coração se detivesse. Aferrava-se a ele e afundava os dedos em seus braços cada vez que uma onda se levantava e rompia contra eles, cada vez que o bote caía sobre as ondas e corria com um som que gelava o sangue. Mas a solidez do robusto corpo que tinha atrás dela fazia de ancoragem. Era de loucos vê-lo manter a calma, virtualmente desumano. Uma imensa onda os sustentou no alto e quase os pôs a meio lado antes de devolver o esquife sobre a superfície com tal força que a Ellie tremeram os dentes e até os ossos.
—Não tem medo? —perguntou ela com voz tremente.
—Não — se apressou a responder, para depois de uma pausa abraçá-la um pouco mais forte e acrescentar —: Pode ser que um pouquinho. —Tinha medo por ela. Que admitisse aquilo a encheu de felicidade. Talvez não era completamente imune às fragilidades do ser humano, embora não fossem por ele mesmo. Talvez lhe importasse realmente. Antes que Ellie pudesse responder, disse —: Mas nem pense em contar a alguém. Tenho uma reputação que manter.
O sorriso de Ellie se tornou em grito quando outra das aterradoras ondas os levou em uma perigosa viagem por cima da crista e rompeu no mais alto lançando-os sobre a superfície de repente. A constante tensão entre momentos de pânico e de alívio resultava exaustiva. Percebia-a no peito. Notava-a nos pulmões. Não sabia quanto tempo mais seria capaz de suportar. Tremendo, agarrou-se à pele de seu cotun ate que seus próprios nódulos começaram a lhe doer.
—Não posso suportá-lo mais.
Ele a consolou sussurrando murmúrios a seu ouvido e lhe acariciando os braços com suavidade, a cintura e também os quadris. E depois seu traseiro.
Ellie sentiu o calor acumular-se em seu abdômen. Seus membros relaxaram. As frenéticas revoluções de sua respiração se tornaram mais suaves. Erik a acariciou um pouco mais, passando as mãos através de seu corpo de modo possessivo. E ela se derretia ante ele. Seu corpo respondia a cada roce de sua pele. Sim. Era isto o que necessitava. Tentava distraí-la e tinha conseguido. Pegou seu seio, beliscou o mamilo com dois dedos, fez que este se arrepiasse e ficasse duro, e ela apenas se precaveu do golpe da seguinte onda. Mas suas suaves carícias já não bastavam, e ela tinha que arquear-se para notar mais a pressão de sua mão, ardendo por ter mais contato. Procurou seu corpo balançando os quadris para trás e encontrou com toda sua dureza e grandiosidade. Seus nervos, que já estavam quase quebrados, incendiaram-se. Aquele instinto primário de medo se converteu em algo completamente diferente: desejo.
Queria o ter dentro dela. Desejava-o com um desespero que podia rivalizar com o medo sentido momentos antes. Esfregou seu traseiro contra ele. Seu corpo utilizava uma linguagem própria para lhe comunicar o que ansiava. A boca dele percorreu o pescoço de Ellie e aqueles murmúrios ao ouvido se converteram em rugidos e selvagens beijos. A tormenta rugia a seu redor e levava a barco daqui para lá como se fosse o brinquedo de um menino. Aquilo era loucura.
Mas não lhe importava. Sob a capa de mantas, a voragem que circulava a seu redor parecia desaparecer. Se estavam a ponto de morrer, preferia sentir a vida por última vez. E em caso de que conseguissem atravessar a tormenta, possivelmente não tivesse outra oportunidade de encontrar a paixão com o homem que amava. Deu-se a volta e seus olhares se encontraram na escuridão. Os olhos dele irradiavam fogo. «Faz que desapareça», sussurrou Ellie. Não se referia só à tormenta, a não ser à inquietação que tinha crescido em seu interior. Erik respondeu a seu pedido com um beijo que a deixou sem fôlego. Um beijo tão selvagem e desenfreado como a tormenta que circulava a seu redor.
A tarefa não devia ser fácil com tantos movimentos no bote. Mas ele se antecipava a eles e usava a força de seu corpo para adaptá-los ao mar. Não obstante, beijava-a com tanta paixão e seu corpo ansiava tanto o contato que nem sequer reparava no que fazia. Ellie estava debaixo dele com as saias subidas até a cintura. Desprendeu o justo as ataduras de seus calções para dar saída para a dura coluna que formava sua ereção, e depois, felizmente, entrou nela de um só empurrão.
Ellie gritou de satisfação ante a abrupta invasão, em tanto que seu grosso e potente membro golpeou seu interior uma e outra vez. A sensação era incrível. Nessa ocasião não houve rastro de dor. Só prazer. Queria sentir-se assim, ter essa conexão, para toda a vida. O bote sofreu um arremesso e ele se afundou mais nela, provocando seus ofegos. Depois disto, começaram a mover-se. Os quadris de Ellie se elevavam ante suas largas e duras investidas, que pareciam seguir o ritmo da chuva e do vento. Era algo selvagem e amalucado. Algo cru e bruto. Era fazer amor da maneira mais básica e elementar. Os uivos do vento, a chuva caindo e as ondas rompendo a seu redor faziam que se fundissem com a natureza. Erik investia uma e outra vez, como se não pudessem lhe bastar rudeza nem velocidade alguma, como se sua paixão por ela fosse tão incontrolável como a tormenta. Ellie jamais poderia esquecer o aspecto que tinha naquele momento: o cabelo pego ao rosto, a chuva sulcando seu rosto e essa expressão de ferocidade e paixão.
Abraçou-o com suas pernas para atraí-lo para si. Queria que desse tudo. Assim que as poderosas sensações começaram a embargá-la, agarrou-o pelos ombros para pegar-se a sua fortaleza. Sentia-se tão bem… Todo seu corpo estava em erupção, tremia, formigava. Sentia como se concentravam o calor e a umidade. Sentia como o desejo formava redemoinhos e se esticava em seu interior com cada uma de suas deliciosas carícias. Suas mãos passearam pelos duros músculos de seus flancos, apertando forte e puxando dele com firmeza. Uma explosão de sensações tinha lugar dentro dela. Os espasmos de prazer se desdobraram um após o outro e seus gritos se perderam entre os uivos do vento.
Quando tudo acabou, Ellie mal tinha forças para mover-se. Erik pareceu se afetar de maneira similar, porque caiu rendido sobre ela. Ellie pensou que a esmagaria, mas se surpreendeu ao comprovar o quanto ansiava sentir a pressão do peso de seu corpo. Entretanto, um momento depois, ele se apoiou sobre seu flanco, voltou a cobri-los com a manta e se acoplou a suas costas. Foi então quando se precaveu de que assim devia sentir-se alguém depois de fazer amor. Sem silêncios incômodos nem recriminações. Sem expectativas vãs. Simplesmente estando cômodos e compartilhando o regozijo.
Ficaram nessa posição um momento, e Ellie advertiu que a barco já não bamboleava tanto. As ondas não pareciam tão altas como antes. Inclusive o vento parecia ter acalmado um tanto.
—Não te parece que há mais calma agora?
Ele riu sobre sua orelha.
—Qualquer coisa pareceria acalmado depois disso. —Se o que pretendia era fazer que se ruborizasse, tinha-o conseguido — Mais de um marinheiro acredita que fazer amor e deixar-se levar, como fazemos nós, chama à calma dos mares.
Ellie não sabia se estava lhe contando outra de suas histórias, mas nesta ocasião esperava que fosse certa.
—Crê que terá passado já o pior?
Erik deixou transcorrer um momento, para dar tempo a que seus sentidos considerassem a pergunta.
—Sim, acredito que poderia ter passado já o pior.
Abraçou-a com mais força.
—Descansa um pouco, Ellie. Ganhou isso.
Não podia dormir, não sob a tormenta. Mas seus olhos pesavam e, apesar de seus protestos, fecharam-se ao cabo de uns minutos.
Quando voltou a abri-los, ainda era de noite. Tinha frio, estava molhada e não podia mover os braços. Demorou um momento em recordar onde estava, mas depois lhe sobreveio tudo de repente. A tormenta. À deriva. Sua paixão desenfreada. Não podia mover os braços porque Erik seguia abraçando-a com a firmeza do aço.
—Sente-se melhor? —perguntou ele ao tempo que a soltava um pouco para que pudesse esticar os braços e as pernas, que, apesar dos ter encolhidos, surpreendentemente não estavam duros.
—Sim — respondeu ela ao dar-se conta de que assim era — Você descansou?
—Um pouco.
Fulminou-o com o olhar. «Mentiroso.» Apostava que não tinha pego olho. De repente se precaveu de algo e se incorporou.
—Parou de chover!
Tinham conseguido. Tinham sobrevivido à tormenta. Erik tinha razão. Não iam morrer. Ele sorriu ao ver a cara que ela punha.
—Faz umas horas. Pouco depois que dormiu. A tempestade foi tão rápido como veio.
Ellie elevou a vista ao céu e advertiu que também a névoa se dissipou. Inclusive podia ver uma porção de lua aparecendo entre as nuvens.
—Que horas são?
—Faltam um par de horas para o amanhecer.
Mordeu o lábio ao dar-se conta que, apesar de que estivessem a salvo, não havia forma de que Erik pudesse completar sua tarefa a tempo. Pôs uma mão sobre seu ombro.
—Sinto muito.
Olhou-a estranhando, até que se precaveu da que se referia.
—Ainda não amanheceu, Ellie. Chegaremos a tempo.
«Nunca dar-se por vencido.»
—Mas nem sequer sabe onde estamos. Poderíamos estar a quilômetros da costa.
—Poderíamos — concedeu com simpatia —, mas não acredito. Aquilo deveria ser a costa da Irlanda — disse assinalando para a frente à direita do bote.
Na escuridão era impossível assegurá-lo, mas Ellie viu o que parecia ser uma mancha imprecisa mais escura sobre a cortina de fundo da noite. Erik já tinha tomado os remos e começava a remar para ela.
Aquela massa se fez cada vez mais grande, e assim que a escuridão foi desvanecendo-se com a aurora, soube que estava certo: tratava-se da Irlanda. A ponta nordeste, para ser mais preciso. Podia ver já os brancos escarpados pelos que o cabo recebia seu nome: Fair Head.
Não podia acreditar. Era possível que conseguissem. Se tinha tratado de sorte ou habilidade, não poderia dizê-lo, mas o certo era que Erik o tinha conseguido. Mal estavam a quatro quilômetros da costa. Entretanto, não ficava mais de uma hora para o amanhecer. Os primeiros raios de sol alaranjados começavam a aparecer sobre o negro véu do horizonte.
—Espero que esteja preparada para conhecer o rei — disse para provocá-la.
Ellie ficou paralisada.
—O rei?
—Depois que me encontre com seu amigo na Irlanda. —Ellie estremeceu ao precaver-se de que se referia ao sanguinário irlandês que queria assassiná-la — Terei que pensar alguma forma de explicar seu saudável aspecto. —Seus olhos brilharam travessamente, como se guardasse um divertido segredo — Virá comigo a Rathlin para nos reunir com Bruce —acrescentou dedicando um sorriso digno da oferenda de um magnífico presente.
Ellie perdeu a cor no rosto.
—Mas havia dito que me levaria a casa.
Ficou circunspeto, como se ela arruinasse assim a surpresa que tinha preparada.
—Mas, moça, compreenderá que não posso fazê-lo agora. Não temos tempo. Além disso, pensava que não queria ir.
Não queria. Sim queria. Estava-a confundindo. Mas se o que pretendia era levá-la ante o Bruce…
Ellie era consciente que não podia postergá-lo por mais tempo. Mordia o lábio com ansiedade e retorcia entre suas mãos as abas do casaco. Tinha que contar. Por mais que soubesse que tudo mudaria uma vez que o tivesse feito. Mas primeiro teria que lhe falar do que sentia ou jamais lhe seria dado conhecer seus verdadeiros sentimentos por ela.
—Te amo —disse em voz baixa.
Erik deixou de remar como única indicação de que o tinha ouvido. Sua expressão permaneceu impassível. Mas depois sorriu, e aquilo lhe rompeu o coração. Jamais lhe tinha ocorrido que um coração pudesse ser estripado através da amabilidade. Mas aquilo foi o que lhe provocou esse afável sorriso.
—Ah, moça, me alegro disso. Embora já o suspeitava depois do ocorrido esta manhã na cova.
Era como se em lugar de seu coração, tivesse-lhe devotado um bolo de maçã, como qualquer outra de suas admiradoras.
E o que esperava ela? Uma declaração de amor?
Não, mas sim algo mais que uma amável confirmação e que o aceitasse com tanta indiferença, alguma indicação de que cabia a possibilidade de que lhe importasse algo, de que aquilo que tinham compartilhado fosse especial. Alguma indicação de que era capaz de corresponder seu amor. A amabilidade era quão pior podia lhe ocorrer. Sua declaração não era diferente das que ele tinha ouvido incontáveis vezes. Provavelmente ele já sabia o que ela sentia, talvez inclusive valorizasse esse sentimento, mas jamais o corresponderia.
«Nada pode afetá-lo.»
Erik começou a remar de novo.
Não era a primeira vez que uma moça lhe confessava seus sentimentos, mas ouvir essas palavras da boca de Ellie significava algo diferente. Por uma só razão: não provocava nele essa ansiedade, essa inquietação que o fazia querer embarcar no próximo bote que partia. Embora, em realidade, não era isso o que estava acostumado a fazer, a não ser começar uma retirada amável e convencer à moça de que o certo era que ela não o amava. Com Ellie o sentimento não era esse absolutamente. De fato, ouvir como lhe dizia que o amava tinha feito que se sentisse… agradecido. Mais que agradecido. Orgulhoso, comovido, honrado e feliz.
Dizia-se que a reação que provocava nele era normal, já que uma esposa devia amar a seu marido. A tormenta o tinha convencido de que aquela era a decisão correta. A ferocidade da paixão que os tinha embargado o tinha pego de surpresa. Não estava preparado para deixá-la partir, de modo que pensava ficar com ela. O fato de que o amasse deveria fazer que Ellie se sentisse mais feliz inclusive.
Mas não a via feliz. Parecia estar a ponto de romper a chorar. Isso o inquietou. Ajustou o cotun, mas aquilo não aliviava a angústia que sentia no peito, uma angustiante dor que piorou quando a olhou aos olhos. Sabia o que ela desejava ouvir: que ele dissesse que também a amava. Todas as mulheres queriam isso. Estava acostumado a esse tipo de decepções, mas não a querer fazer algo a respeito, inclusive lhe dizer que ele também a amava. Aquela ideia o deixou petrificado. Um suor frio começou a sulcar suas sobrancelhas. Estava claro que ele não a amava. Aquela paixão, a feroz necessidade de protegê-la e fazê-la sua, sua estranha conexão, o medo irracional que lhe sobrevinha ante o pensamento de perdê-la significavam tão somente que lhe importava. Mas amor? Essa classe de amor entre «um homem e uma mulher para toda a eternidade» jamais lhe tinha passado pela cabeça. Acreditava-se imune, incapaz de emoções desse tipo. Gostava muito da perseguição, da sedução e a dança do cortejo. Não era aquilo certo?
Pode ser que não fosse capaz de dizer que a amava, mas sabia que podia lhe dar algo inclusive melhor que isto. Pedir-lhe-ia que se casasse com ele, e assim apagaria essa expressão de desolação de seu rosto. Sem dúvida, estava disposto a ver cair umas quantas lágrimas, mas seriam lágrimas de alegria. Entretanto, não lhe apresentou essa oportunidade.
—Há algo que devo te contar — disse Ellie com uma voz estranhamente distante, quase da realeza — Não fui de tudo honesta contigo.
Erik começou a remar com menos força até que acabou parando por completo.
—Sobre o que?
Mantinha-se erguida com um porte majestoso, sem deixar de olhá-lo aos olhos.
—Minha identidade.
Ficou surpreso, mas a deixou continuar. Já suspeitava que ocultava algo.
—Não sou babá na casa do conde de Ulster.
—Ah, não?
Ellie respirou profundamente.
—Sou lady Elyne de Burgh.
Capítulo 20
Erik ficou petrificado uns instantes e logo começou a rir. Estava claro que tinha ouvido mau.
—Por um momento acreditei que havia dito De Burgh.
Ellie elevou o queixo e ficou olhando-o aos olhos.
—Isso disse.
«De Burgh.» Negava-se a acreditar que aquilo fosse tão mau como dava a entender a alarmante revolução desatada através de suas veias.
—É família do conde de Ulster? —perguntou cheio de temor, com a esperança de que sua relação fosse longínqua.
Ellie continuou olhando-o sem pestanejar.
—É meu pai.
Ao Erik pareceu que lhe arrancavam a cabeça de um golpe. Ficou olhando-a como se a visse pela primeira vez. Talvez assim fosse. Em realidade não tinha chegado a conhecê-la nunca. Entreabriu os olhos e começou a notar a tensão que se formava no pescoço e nos braços.
—Mentiu.
Ellie não se intimidou ante seu olhar acusador.
—Assim é.
Erik esperava que o negasse, que desse evasivas e tentasse explicar suas ações, não que admitisse sua falta com tanta facilidade. Mas ela jamais atuava como se pressupunha que tinha que atuar. Sentia-se estranho, incômodo, desconcertado e doído. Somente havia se sentido assim ao atravessar alguém com a espada.
—Por quê?
—Na cova da Sereia, um dos irlandeses mencionou o nome de meu pai. Era óbvio que o sobrenome De Burgh só conseguiria complicar mais as coisas.
Erik não pensava que pudesse havê-lo complicado muito mais.
—E quando saímos da cova?
—Refere a quando me precavi de que pensava me violar e depois me assassinar?
A imperiosa maneira em que arqueou a sobrancelha o enfureceu mais inclusive que o sarcasmo, fosse este merecido ou não. Era exatamente o tipo de mostra de superioridade e nobreza que esperaria da filha de um conde. O tipo de gestos que provinha de sua posição, conforme tinha convencido a si mesmo. Apertou os punhos em uma tentativa de acalmar as estranhas emoções que ardiam em seu interior.
—Mas disse que era babá.
—Pareceu-me o mais próximo à verdade. Desde que morreu minha mãe, encarreguei-me de meus irmãos e irmãs menores. Aquilo foi um toque de ironia que me pareceu divertido. Mas quanto à razão pela que não lhe disse isso depois foi porque pensei que fosse um pirata. —Erik advertiu o tom de recriminação em sua voz. Ela não era quão única tinha guardado um segredo. Ele quis que fosse daquele modo. Desejava manter distância entre ambos. Mas jamais teria sido capaz de imaginar isso — E tampouco podia estar segura de que não queria me obrigar a me casar contigo.
Aquilo era exatamente o que teria feito um pirata de verdade. Mas estava muito zangado para atender a explicação racional alguma. Essa amarga ironia era como uma punhalada nas costas. Porque ele queria casar-se com ela. Pensava que poderia lhe dar uma posição e riquezas, que lhe estaria agradecida. Pensava que ela o necessitava. Mas não o necessitava absolutamente. Uma filha de Ulster era um dos prêmios mais cobiçados de toda a cristandade. Podia aspirar a algo muito melhor que um chefe de clã açoitado, embora seu sangue azul se remontasse à memória dos tempos. Sabia que não tinha nenhum direito a isso, já que não lhe tinha devotado razões para a confiança, mas igualmente se sentia traído.
—E quando se inteirou da verdade, Ellie? Ou deveria dizer lady Elyne? Por que não o fez então?
Olhou-o sob a luz da lua com uma cara que era uma máscara de alabastro ovalado.
—Porque não queria que acabasse o nosso prazer.
«O prazer.» Por Deus bendito. O mundo veio em cima quando foi consciente de todas as coisas que implicava. Já não era somente que ferisse seu orgulho que uma babá a que tinha querido honrar com seu nome resultasse ser uma das herdeiras mais ricas na terra, a não ser o que ele mesmo tinha feito. Tinha manchado à filha de Ulster. E não somente à filha de Ulster. Agarrou-a pelo braço, tentando conter sua ira.
—É a irmã de Bruce!
O homem ao qual devia lealdade a cima de todo o resto. Ela sequer se incomodou em fingir rubor pela magnitude de sua mentira, mas sim manteve a cabeça bem alta.
—Irmã política, sim.
—Mas Eduardo Bruce te viu a outra noite. Por que não disse nada?
—Tão somente me encontrei com ele uma vez, nas bodas. —Riu, embora aquele áspero som não era divertido absolutamente — Ao que parecia, não se lembrava de mim.
Erik queria morrer. A primeira vez que desonrava a uma donzela e tinha que escolher aquela que era sacrossanta. A irmã de seu rei e senhor. Certo que Bruce tinha adotado o estilo de luta das Highlands, mas em seu coração seguia pulsando o espírito da cavalaria. Aquele insulto não cairia no esquecimento. Pouco importariam as circunstâncias. E não seria somente o sentido de honra de Bruce o que se sentiria ofendido. Todas as possibilidades apontavam a que Ulster culparia Bruce das ações de Erik. Aquilo poderia abrir uma brecha entre ambos. Uma brecha que poderia provocar que Ulster deixasse de olhar para outro lado ante as atividades de Bruce. Uma brecha que podia pôr em perigo as rotas comerciais do oeste e negar ao rei provisões que lhe eram muito necessárias. Se não o matava Ulster, já se encarregaria Bruce disso. Sua missão não incluía manchar a honra de donzelas.
Deus santo, de repente tudo parecia cobrar sentido: a razão pela que os ingleses não tinham cessado em sua busca como normalmente faziam. Apertou-lhe o braço com mais força, obrigando-a a olhá-lo aos olhos.
—Não me perseguiam , buscavam a ti.
Ao levá-la consigo, fazia recair sobre ele todo o peso da frota inglesa. Ela parecia surpreendida pela acusação, como se não tivesse caído na conta até esse momento. Enrugou o sobrecenho.
—Nunca pensei que… —deteve-se e depois negou com a cabeça — Minha família jamais soube o que me tinha ocorrido.
Nesse momento ao Erik lhe gelou o sangue.
—Talvez não o fizessem ao princípio, mas sim quando enviei a mensagem.
Sua galanteria mau entendida e a necessidade premente de fazê-la feliz tinham conduzido seus inimigos diretamente para eles.
A Ellie trocou o rosto. Era possível que, quando capturaram e assassinaram a seus homens, os ingleses estivessem procurando a ela? «Milady.» Aquela deferência do soldado na praia cobrava sentido de repente. Tentavam protegê-la.
—Lamento muito — disse.
Ele sequer podia olhá-la.
—Celebraremos as bodas logo que consiga um sacerdote.
Seu coração parou em seco. «Bodas.» Aquela palavra que tanto tinha esperado escutar, pronunciada de maneira fria e sem emoção alguma. Era exatamente o que tinha temido, a razão pela que não tinha revelado sua identidade. Porque sabia que a desgraçada nobreza que albergava em seu interior poderia mais que seu lado cruel. Ela era lady Elyne de Burgh, a irmã política de seu rei e senhor, filha de um dos homens mais poderosos da cristandade. Não ficava mais opção que casar-se com ela.
Pode ser que resultasse incoerente, mas não pensava casar-se com o homem que amava. Não, se a proposta estava motivada pela obrigação em lugar da emoção. O amor não correspondido não o fazia nenhuma ilusão. Não cometeria o mesmo engano que sua mãe, que pensava que poderia obrigar um homem a que a amasse só com a força de sua própria vontade. Em seu interior, Ellie tinha vontade de explodir, de atirar-se ao chão e romper a chorar como se fosse um farrapo. Mas seu orgulho não o permitia. Era lady Elyne de Burgh. Erik jamais chegaria a saber o dano que aquilo podia lhe fazer, nem tampouco quão difícil resultava a ela rechaçá-lo.
—Isso não será necessário — disse ela com a mesma emoção que ele tinha formulado sua «oferta».
Os olhos de Erik pareciam meras frestas.
—É preciso que te recorde com exatidão por que sim é necessário?
Não lhe deu a satisfação de ruborizar-se. Não se envergonhava do que tinham feito e ele não a obrigaria que se sentisse desse modo.
—Aprecio sua galante «oferta», mas não é necessário. Já estou prometida.
Se Ellie pensava que já o tinha visto zangado, equivocava-se. A mudança resultava tão impactante que a Erik cortou a respiração e retrocedeu por instinto. Na luz do amanhecer próximo, seus olhos empalideceram e se tornaram absolutamente frios, absolutamente sem misericórdia. O arrumado norueguês se transformou no sanguinário viking. Fez um movimento em sua direção, e por um momento inclusive lhe teve medo. Acreditou que se equilibraria sobre ela, mas em realidade estava completamente quieto. Muito quieto. Jamais se tinha precavido antes de quão ameaçador podia ser a quietude.
—Quem?
Aquela singela palavra soava como a tocha de um verdugo. Um gelado calafrio percorreu suas costas mas se negava a deixar ver seu medo.
—Sir Ralph de Monthermer.
Os olhos de Erik brilharam com uma intensidade perigosa.
—É uma caixa cheia de surpresas, não é certo, lady Elyne? Tinha ouvido algo a respeito de seu compromisso, mas tenho que admitir que nunca o relacionei com minha babá sequestrada e o recente interesse do novo conde em uma mensagem proveniente de Dunaverty.
Ellie empalideceu.
—Esteve me buscando?
—Ao que parece, com bastante veemência.
Ela não caiu no engano de confundir o tom descuidado de suas palavras. Estava furioso. Se não fosse pelo ridículo do pensamento, diria inclusive que estava sentindo ciúmes. Mas Erik era o último homem ao que poderia imaginar sentindo ciúmes. Tinha muita confiança em si mesmo e lhe importava tudo muito pouco para sofrer de tão débil fragilidade humana. O que o punha furioso era o perigo em que se via sua missão.
—E o que ocorrerá quando se inteirar que já não é donzela? Crê que o recém renomado conde ainda te quererá por esposa? Ou esperava talvez enganá-lo nesse aspecto?
Ellie ficou em guarda. Como podia pensar que seria capaz de tal desonra? Não se iludia quanto aos interesses que Ralph tinha sobre ela. O importante era a aliança.
—Não é teu assunto. Isso ficará entre meu prometido e eu.
Aquilo fez que explodisse, tomasse pelo braço e a sacudisse com violência.
—É um corno!
O coração de Ellie pulsava como uma locomotiva. Jamais o tinha visto perder o controle. E esse olhar que tinha… Deu-lhe calafrios. Não sabia o que pretendia. Tinha a cara tão perto que pensou que a beijaria até que se rendesse a seus pés. Não, nada de beijos, violá-la-ia.
Mas o que poderia ter acontecido depois jamais chegaria a saber. Erik olhou além do corpo de Ellie e ficou gelado. Toda sua emoção e raiva pareceram evaporar-se.
—Ao que parece, logo o descobriremos.
—Do que está falando?
Assinalou um ponto a suas costas. Quando Ellie deu a volta, advertiu umas inconfundíveis mancha de cor, peneiradas pelo suave resplendor da aurora, sobre o horizonte que se estendia atrás deles. Velas. Ao menos seis delas, aproximando-se com rapidez.
—Acredito que seu prometido acaba de chegar.
Ellie se precaveu que Erik já sabia do primeiro momento em que as viu, e percebeu em seu rosto algo que pensava que jamais chegaria a ver: derrota. Sua sorte tinha acabado. A fuga era impossível. A costa estava muito longe ainda. Sem uma vela, não teriam possibilidade de ocultar-se nem de navegar mais rápido que eles. Inclusive as extraordinárias habilidades do marinheiro escocês tinham seus limites, e um deles era a impossibilidade de navegar mais rápido que uma frota de galeões ingleses com o vento a favor com a única propulsão de suas próprias mãos. Estava a ponto de fracassar e ela teria a culpa. O fracasso seria algo que jamais lhe perdoaria.
O olhar de Ellie se perdeu na costa da Irlanda. Uma ideia tomou forma em seu interior. Talvez ainda tivesse uma oportunidade. Mas a aceitaria? Fez das tripas coração, consciente que não podia lhe dar alternativa a escolher.
Erik fracassaria ante seu rei. Fracassaria ante todo o grupo. Fracassaria ante todos os que contavam com ele. Inclusive nas horas mais escuras da tormenta não tinha contemplado a opção do fracasso. Parecia-lhe inconcebível pensar em algo que não fosse o êxito. Mas o amargo sabor da derrota azedava sua boca. Rememorou os acontecimentos uma e outra vez, consciente de que tinha sido sua própria arrogância que o tinha conduzido até aí. Se o tivesse tomado com mais seriedade, concentrando-se em sua missão em lugar de na moça, não teria chegado até esse ponto. Não podia acreditar que, estando tão perto, fosse presenciar como a vitória se esfumava ante seu nariz no último suspiro, a três quilômetros da costa. Tinha-a virtualmente a um tiro de pedra. Mas jamais na vida poderia ganhar uma regata dos ingleses com esse barquinho, e ficar na tentativa para conduzi-los até os soldados irlandeses não entrava em seus planos. Estavam apanhados.
Mas, apesar de tudo, não se dava por vencido com facilidade e espremia o cérebro em busca de alguma saída.
—Parte — disse Ellie sem expressar emoção alguma — Antes que lhe vejam.
A voz de Erik se mostrou tão dura como seu olhar.
—A menos que possa fazer aparecer de um nada um mastro e uma vela, temo que isso será impossível.
—Pode nadar.
Erik ficou pensando, mas descartou a ideia ao momento.
—Buscar-nos-ão uma vez que descubram que o barco está vazio. Não posso me arriscar a isso.
—Eu não irei contigo.
Uma nuvem vermelha de ira ferveu em seu interior.
—Se pensar que vou te abandonar…
Ellie não lhe permitiu terminar a frase.
—Estou completamente a salvo. É a mim que estão procurando. Dir-lhe-ei que se afogou na tormenta. Ninguém o buscará. Ainda tem tempo. Mas é preciso que vá imediatamente.
Erik olhou para a costa e soube que ela tinha razão. Podia conseguir. Os irlandeses esperariam até o amanhecer e, com sorte, talvez um pouco mais. Teria que fazer passo a Rathlin e depois a Arran em uma só noite, mas podia consegui-lo. Bruce ainda estaria a tempo de chegar para lançar o ataque no dia acordado. Podia salvar sua missão. Mas isso de abandoná-la a sua sorte ia contra cada um de seus sentidos. Apesar de que o tivesse enganado, ela era seu… O que? O que era ela para ele?
Ao que parecia, Ellie se precaveu de suas dúvidas.
—Parte. Nada te retém aqui.
Mas sim havia algo. Embora não pudesse pôr nome a isso. Erik debatia contra sua própria indecisão, algo com o que não estava familiarizado. Pode ser que salvasse a missão, mas, ao fazê-lo, também poria ponto final a sua relação com Ellie.
Mas de que relação falava? Ela estava prometida a De Monthermer, Por Deus bendito, que fosse antes genro de Eduardo e um dos capitães mais importantes da marinha inglesa. Ela pertencia a outro. Ser consciente disso era como um ácido que corroia seu peito.
E ali estava ela, sentada com uma tranquilidade exasperante, o gesto tão duro e quebradiço como o cristal. Havia algo que não encaixava. Muita compostura. Muita calma. Fazia apenas uns minutos havia dito que o amava e ali estava agora, fazendo tudo o que podia por livrar-se dele. Tomou pelo braço e sentiu vontade de apagar de seu rosto essa gelada expressão de irrevogabilidade.
—O que quer de mim?
Ellie o olhou aos olhos.
—Nada. É que não te dá conta? Jamais houve outra possibilidade. Parte, para que possa seguir com minha vida e me esquecer de que tudo isto aconteceu.
Erik estremeceu como se acabassem de lhe dar um golpe na cabeça. Ficou olhando aos olhos com o peito tremendo de angústia e a obrigou que se atrevesse a lhe mentir diretamente à cara.
—Me diga uma coisa. Quer te casar com ele?
Ellie não duvidou um segundo.
—E por que não teria que querer? Sir Ralph é um dos cavalheiros mais arrumados e poderosos da cristandade. Para qualquer mulher seria uma honra se desposar com ele.
Erik apertou os dentes ante aquela súbita dor. Deveria sentir-se aliviado. Sua missão devia ser o primeiro e agora poderia partir com a consciência tranquila. Tinha pedido. Ela o tinha rechaçado. Tinha completado com sua obrigação. Sua honra estava intacta. Então por que parecia ter o peito ardendo por dentro? A que vinha toda essa fúria interior? E por que tinha vontade de assassinar sir Ralph de Monthermer? Aquilo era o que teria feito os antepassados de Erik. Mas ele não era um bárbaro nórdico. Não tinha direito algum a reclamá-la para si.
Caía o amanhecer. Os galeões cada vez se aproximavam mais. Em cinco minutos haveria suficiente luz para que pudessem vislumbrar suas duas silhuetas. Se pensava partir, teria que fazê-lo no momento. Olhou Ellie justo antes de mergulhar na água. Agasalhada pelas mantas e peles, a via pequena e indefesa. Mas não estava, jamais tinha estado. Não necessitava a ele. Embora lutasse contra a urgência que sentia de tomá-la entre seus braços e provar que aquilo não era certo. Sua mandíbula adotou a expressão de quem toma uma resolução inquebrável. Não, era melhor que ocorresse dessa forma. Tinha uma missão que cumprir. Quando voltasse junto a Bruce e o ataque estivesse em caminho, teria tanto que fazer que se esqueceria dela por completo. O momento e as circunstâncias, recordou a si mesmo. Uma vez que a aventura e a excitação ficassem sufocadas, deixaria de sentir-se desse modo.
Olhou-a uma vez mais, introduziu-se na água e começou a nadar. Tinha ficado tão insensibilizado que sequer sentiu o frio. Somente uma vez voltou a vista atrás. A meio caminho da borda se deteve, bem a tempo de ver como o primeiro dos galeões alcançava o barco. Seu corpo se encrespou ao reconhecer a insígnia de Ralph de Monthermer: a águia verde sobre a vela amarela. Um momento depois viu como recolhiam Ellie do bote e era levada nos braços por um cavalheiro alto, vestido com a armadura que levava esse mesmo emblema em seu tabardo. Erik sentiu como se seus pulmões ardessem ao encher-se de água salgada. Vê-la nos braços de outro homem fazia aflorar seus instintos mais primitivos, uns instintos cuja existência inclusive ele desconhecia. Mas se disse que Ellie já se encontrava a salvo. Havia-a devolvido a sua família, tal e como tinha prometido. Tinha completado com seu dever.
Voltou a mergulhar na água e nadou com todas suas forças concentrado em um único objetivo. Sua missão era tudo o que importava.
Quando Ralph tomou entre seus braços, a compostura que Ellie tinha mantido com tanto esmero se derrubou. Não lhe importou que houvesse quatro galeões cheios de soldados olhando-a. Toda a emoção que tinha tentado ocultar em seu interior se rompeu em mil pedaços, desembocando em uma onda de lágrimas e soluços que partiam o coração. Ralph, que atribuía a expressão de suas emoções ao alívio por seu resgate, não se precavia que seu coração estava quebrado, e a tranquilizava com palavras de quietude. Aquele pesadelo tinha acabado. Já estava a salvo. Ninguém poderia lhe fazer mal.
Era um homem robusto e quente, alto e forte. Seu largo e firme peito cheirava inclusive a vento e a mar. Em seu sorriso se via que seu arrumado rosto era amável e sua preocupação sincera. Mas Ralph de Monthermer não era o homem que ela queria, e jamais poderia sê-lo. O homem que ela queria era outro e que tinha perdido, apesar de nunca ter sido dele. A verdade ardia. Mas a dor parecia lhe dar forças. Envergonhada ante aquele desdobramento de emoções tão aberta, conteve-se e enxugou as lágrimas de seu rosto. Já haveria tempo suficiente para penas quando estivesse em casa. Agora tinha que assegurar a escapada de Erik.
—Sinto — se desculpou.
Sabia que Ralph devia estar ansioso por conhecer os pormenores do acontecido e as razões de que ficou sozinha, abandonada a sua sorte no pequeno bote.
—Não há nada pelo que desculpar-se — disse Ralph amavelmente — Estou tão contente de que tenhamos te encontrado. A tormenta… —Não terminou a frase, mas sim apertou fortemente sua mão — É um milagre que pudesse se manter flutuando.
Não era um milagre, tão somente a habilidade de um homem único.
O rosto de Ralph se endureceu.
—Mas onde está? Onde está o homem que lhe sequestrou?
Ellie era consciente de que teria que fazer todo o possível por convencer Ralph de que Erik tinha sucumbido à tormenta, mas odiava ter que lhe mentir.
—Não está — respondeu com impassibilidade — Não sei como aconteceu. A tormenta era terrível. Estava escuro e era impossível ver algo através do vento e da chuva. Ordenou-me que ficasse quieta deitada sobre o casco do barco. Em um momento estava ali e ao seguinte tinha desaparecido.
—Falcão está morto? —disse um homem mostrando sua incredulidade.
Ellie se voltou ao ouvir aquela voz familiar. Um homem apareceu entre a multidão de soldados que se apertavam a seu redor. Seu rosto ficou lívido.
—Thomas! Está a salvo! —Era tão profundo o alívio que sentiu ao vê-lo que deu uns passos para ele antes de deter-se — Mas o que esta fazendo aqui?
O rosto Thomas se ruborizou, antes que Ralph respondesse por ele.
—Foi graças a sir Thomas que a encontramos.
—Sir Thomas? —repetiu.
Era algo que sempre tinha suspeitado, mas escutá-lo não deixou de surpreendê-la. Thomas fez uma leve reverência.
—Sir Thomas Randolph a seu serviço, lady Elyne.
Levou-lhe um momento reconhecer o nome, mas quando o fez seu horror não fez a não ser piorar.
—É o sobrinho de Robert — disse com voz entrecortada.
O jovem cavalheiro assentiu. Ellie se sentiu desfalecer. Não podia acreditar que aquele a quem considerava amigo tivesse traído não só a Falcão, mas a seu próprio tio. Que mais lhe teria contado? Separou-se dele bruscamente e se dirigiu a Ralph.
—Como me encontrou?
—Randolph estava seguro que o rebelde poria rumo à Irlanda.
Por Deus santo, teria revelado Thomas o plano? Seus olhos se dirigiram para ele sem mostrar sinal algum do pânico que bulia em seu interior.
—Falcão me contou que sua intenção era lhe devolver a casa — explicou Thomas.
Ellie teve que conter o suspiro de alívio ante aquela verdade pela metade. Ao que parecia, Thomas não os tinha traído por completo. Olharam-se aos olhos por um momento antes que ela se voltasse para Ralph para que continuasse.
—Estendemos-lhe uma armadilha ontem à noite no canal, mas tivemos que nos retirar quando se desatou a tormenta. Estava seguro que o açoitado faria o mesmo, mas Randolph me assegurou que a tormenta não o deteria. Assim que esta amainou, pusemos rumo para a Irlanda. Esse homem é mais temerário do que imaginava. —O rosto de Ralph adotou uma aparência sombria — O muito insensato poderia ter acabado com as vidas de ambos.
Ellie pôs uma mão sobre seu ombro.
—Salvou-me a vida — disse atendendo à verdade — mais de uma vez. —As lágrimas afloraram em seus olhos — Não sei o que terá feito, mas agora eu estou aqui e ele não. Quão único quero é voltar para casa e me esquecer de tudo.
Ralph se arrependeu imediatamente.
—É obvio que sim. Deve estar exausta. Podemos falar mais tarde. Sua família estará muito contente que retorne são e salvo.
Ellie ficou confundida quando Ralph deu ordens de mudar o rumo.
—Não vamos a Irlanda?
Negou com a cabeça.
—Me perdoe. Esquecia que não sabe. Seu pai foi enviado ao castelo de Ayr por ordem do rei.
«Escócia.» Não podia acreditar. Durante todo o tempo que tinha permanecido na ilha de Spoon, seu pai estava apenas ao outro lado da costa.
Ralph a sentou na arca junto à proa da embarcação, rodeou-a com várias mantas mais e lhe apertou a mão para lhe dar consolo.
—Que bom que voltou a estar conosco, lady Elyne. Lady Mathilda poderá respirar tranquila. —Uma estranha expressão percorreu seu semblante — Todos seus irmãos e irmãs poderão respirar tranquilos.
Ellie se dava conta de que se tratava de um homem amável. Era algo que já sabia, mas esse estranho desconforto que sentia ao estar junto a ele sempre havia se interposto entre eles. Viu-se invadida pelo sentimento de culpa. Precisava lhe contar a verdade.
—Meu senhor, há algo… —Suas bochechas se acenderam — Há algo que devo lhe contar.
—Não será necessário — disse com firmeza. Ellie se dispunha a protestar, mas ele a deteve — Não é culpada de nada que tenha ocorrido. Randolph me contou que entrou em…, eh, relações, com o homem que lhe capturou.
Não podia acreditar. Sabia, ou ao menos o suspeitava e não lhe importava. Aquela compreensão não fazia mais que piorar tudo. Não podia lhe permitir pensar que a tinham forçado.
—Não foi contra minha vontade, meu senhor.
Olhou-a com atenção, mais apreciativa que acusadoramente.
—Passou o que passou é já parte do passado. Está a salvo. Isso é tudo o que importa.
Ralph estava disposto a lhe pôr as coisas fáceis. Mais fácil inclusive do que o esperado. Mais fácil do que ela merecia.
—Agora descanse —disse — Poderemos falar mais tarde. —Guardou silêncio um momento, mantendo o cenho franzido sobre seus duros e arrumados traços — Temo que seu pai terá muitas perguntas que lhe fazer. O rei Eduardo está mais que ansioso por apanhar esse capitão marinheiro rebelde ao que chamam Falcão. Está convencido que Bruce planeja algo.
Ellie se esforçou por manter a compostura, apesar de lhe gelar o sangue.
—Temo que não serei de muita ajuda.
Nenhuma, de fato.
Lhe sustentou o olhar, talvez entendendo mais do que devia, e lhe ofereceu um breve sorriso.
—Seja como for, deve estar preparada.
Ela assentiu, apreciando que a advertisse disso. Recordou que em um tempo Bruce e Ralph tinham sido bons amigos. Acaso simpatizasse mais com sua causa do que ela pensava?
Ralph voltou junto a seus homens e a deixou ante a cruel solidão de seus pensamentos. Sua separação de Erik tinha sido tão rápida e inesperada que sequer tinha tido tempo de pensar. Mas agora, à medida que os minutos o afastavam cada vez mais dela, a verdade caía por seu próprio peso. Assim que se precaveu da magnitude de sua perda, a sensação de desesperança foi assustadora. O futuro aparecia baldio e solitário. Parecia impossível pensar que jamais voltaria a vê-lo, que a liberdade e a felicidade que tinha desfrutado tocavam a seu fim. Como poderia voltar para sua vida anterior como se nada tivesse ocorrido? Como cumpriria com sua obrigação e se casaria com Ralph quando amava outro homem? Não queria acreditar que aquilo acabasse de maneira tão abrupta e encontrou a si mesma mais de uma vez olhando para trás. Sabia que ele não iria em sua busca. Não podia, por mais que tivesse querido fazê-lo, o que não era o caso. Mas aquela parte insensata dela que não queria aceitar a verdade se negava a entrar em razão. Se ao menos não lhe doesse tanto… E o que esperava? Acaso não sabia que aquela era a única maneira em que podia acabar?
Convenceu-se de que significava algo para ele, de que Erik era diferente, de que era possível um futuro entre ambos. Mas jamais lhe tinha professado amor algum, nem tinha querido mais que o prazer que oferecia. Tinha-lhe dado uma oportunidade ao lhe mostrar seus sentimentos, e ele não a tinha aceito. Quão único moderava seu desamor era que logo veria sua família.
Tendo os ventos a favor, o galeão não custou muito esforço cruzar aquelas águas que apenas umas horas antes tinham estado a ponto de acabar com suas vidas. Não demoraram muito em avistar as verdes colinas e bordas arenosas da costa de Ayrshire. Ellie ficou nervosa ao ver que Thomas, sir Thomas, aproximava-se dela. Quando o cavalheiro se sentou a seu lado, ela fez como se não se precavesse disso.
—Foi a nado até Fair Head, não é certo? —disse em voz baixa para que não o ouvissem os soldados de ao redor.
Ao Ellie alterou o pulso, mas permaneceu impertérrita, com a vista fixa na linha costeira.
—Se refere-se ao capitão, já lhe expliquei o que aconteceu.
—Não lhes contei nada, Ellie, lady Elyne. Dou-lhe minha palavra.
Ellie lhe dirigiu um olhar avesso.
—Salvo onde nos encontrar.
O calor subiu por suas bochechas; entretanto, estirou peito.
—A maneira em que Falcão lhe tratava não era a correta. Quando descobri quem era, não pude permitir que sua atitude persistisse.
Ellie não dava crédito a seus ouvidos. Toda a missão de Falcão tinha podido fracassar simplesmente porque ofendera as sensibilidades cavalheirescas de Randolph. Olhou a seu redor para assegurar-se que ninguém os ouvia e lhe sussurrou: —Assim decidiu pôr aos ingleses atrás de nós? Não sabe o que está em jogo? Ou é que já não se importa?
Ele se ruborizou mais.
—Sei o que está em jogo, embora não me tenha confiado os detalhes. Por uma vez estou agradecido de que meu tio não confiasse em mim plenamente. Não disse mais que o necessário para lhe encontrar. Quanto ao Falcão, sempre se engenha para cair de pé, ou não se deu ainda conta disso?
Parecia desesperado para que ela acreditasse, como se lhe importasse a opinião que tinha dele, mas não podia ser absolvido tão facilmente. Erik tinha escapado à captura, mas por muito pouco. Se conseguia ou não completar sua empreitada, era algo que nenhum dos dois saberiam por um tempo.
—E mesmo assim passou ao outro bando? —assinalou ela.
Randolph desafio seu olhar acusador sem pestanejar sequer.
—Não ficava outra opção. —Ao ver que ela não respondia, acrescentou — Ou preferiria ver todos mortos?
Ellie o fulminou com o olhar.
—É obvio que não.
—Bom, pois isso é o que teria passado em caso de que não apresentasse a rendição.
Para maior ira de Domnall, supôs Ellie. Mas não podia culpar Thomas por fazer o que estava em sua mão para salvar suas vidas. Ela teria feito o mesmo, por mais que não fosse o estilo de Erik.
—Onde está o resto dos homens?
—Nas masmorras de Ayr.
—E você está aqui.
Ele ficou à defensiva, uma reação que pretendia censurar o tom de suas palavras.
—Meu tio e eu não nos vimos cara a cara durante algum tempo. Sou um cavalheiro, não um pirata, e meu desejo é lutar como tal.
Assim que lhe tinha dado a oportunidade de trocar de bando, tinha-a aceito. Por mais que desejasse condená-lo por isso, não podia fazê-lo. Inclusive se não tinha em conta o código de cavalaria, Randolph não tinha feito mais que o que incontáveis outros tinham feito antes dele: seguir seus interesses, não seu coração. Pragmatismo antes de princípios. A maioria dos aliados do rei Eduardo o apoiavam porque aquilo era o mais prudente, não porque acreditassem em sua causa. Inclusive seu pai podia entrar nesta categoria. Havia poucos William Wallace dispostos a morrer por uma causa nobre.
Erik era um deles. A lealdade, a honra, a responsabilidade, como queria chamar: os laços que uniam a aqueles aos que queria eram o mais importante para ele.
«Morrer antes que render-se.»
Deu-lhe um calafrio. Quando ele tinha pronunciado essas palavras, não tinha duvidado que as dizia a sério. Só podia rezar para que não tivesse que chegar a esse ponto. Teria conseguido chegar a tempo à costa irlandesa e conduzi-los a salvo até Bruce? Teria êxito o último esforço de Bruce para recuperar seu trono?
Pode ser que passasse algum tempo até que conseguisse ter as respostas para aquelas perguntas. Se fracassavam, possivelmente não saberia nunca. Era possível que a agonia de não saber o que tinha sido dele acabasse voltando-a louca.
Capítulo 21
Depois de um longo dia de espera, quase doze horas depois de abandonar Ellie, Erik MacSorley entrava na baía, navegando pela borda oeste de Rathlin com os trezentos soldados irlandeses que tinha prometido conduzir até Bruce. Com tudo aquilo que tinha acontecido anteriormente, sua chegada a Fair Head minutos depois do amanhecer tinha resultado estranhamente decepcionante, e isso apesar de que o tinha conseguido por muito pouco. Os MacQuillan estavam já carregando os navios para zarpar, pensando que teria ocorrido algo que suspendia o ataque. O chefe dos irlandeses lhe disse que teriam voltado na noite seguinte, mas Erik não estava convencido disso. Tinham cobrado a metade do pagamento e, ao ter completado com sua parte do trato, receberiam uma boa recompensa pelo simples feito de apresentar-se ali.
Em qualquer caso, Erik os alcançou a tempo e, depois de tomar o cuidado de ocultar as embarcações para que não ficassem à vista das patrulhas inglesas, passaram o dia esperando que caísse a noite para partir rumo a Rathlin. Nesse momento estava fazendo as manobras para embarcar a primeira das naves na baía. Sabia que devia sentir-se aliviado, orgulhoso de ter completado o planejado apesar da quantidade de obstáculos que tinha tido que superar. Entretanto, o êxito de sua missão lhe reportava muito pouca satisfação. A última conversa com Ellie seguia fazendo-o sofrer muito. Via-se obrigado a contar ao rei. Mas essa desagradável conversa teria que esperar. Antes de tudo, Erik deveria conduzi-los até a Arran e, depois dos atrasos imprevistos da noite anterior, queria dar-se tanto tempo como fosse possível.
Os dois grupos de homens que tinha deixado apenas umas semanas atrás se encontravam reunidos na borda para lhe dar a bem-vinda: o rei, seus aliados mais próximos e aquele punhado de vassalos leais a Bruce que tinham escapado com eles de Dunaverty em setembro. Mas a esse grupo se uniram uma centena mais de indivíduos, graças aos homens das ilhas contribuídos por seu primo Angus Og. Quando viu que a água ficava à altura de seus joelhos, Erik saltou pela amurada do birlinn e percorreu o caminho que o separava deles.
—Onde tinha se metido? —perguntou Bruce inclusive antes que pudesse pôr o pé na rochosa praia — Se supõe que tinha que chegar ontem. Isto é arriscar muito, inclusive para você, Falcão. —Olhou a seu redor — Onde está seu navio? Onde está meu sobrinho?
Erik torceu o gesto.
—Os ingleses nos encontraram na ilha de Spoon horas antes de nossa partida. Contar-lhes-ei isso tudo assim que cheguemos a Arran, mas Randolph e meus homens foram capturados.
Inclusive para um homem que tinha sofrido tantas decepções, não supôs um golpe fácil de digerir. Bruce estremeceu.
—Mortos?
Erik negou com a cabeça.
—Não acredito, majestade.
No momento Erik preferiu não dizer, mas se precaveu de que o rei estava abatido. Suspeitava que estaria pensando quão mesmo ele: que Randolph se mostrou resistente a partir naquela missão. O olhar do rei se endureceu e seus olhos se voltaram tão frios e escuros como o ébano recém polido.
—Espero que tenha uma boa explicação para tudo isso.
Erik assentiu. Isso mesmo esperava ele. Olhou a Chefe, que estava junto a Bruce.
—Estão todos preparados? —perguntou Erik.
—Sim.
Pela maneira em que o olhava o capitão da Guarda dos Highlanders, Erik sabia que também desejava lhe fazer umas quantas perguntas, mas como às de Bruce teriam que esperar.
Não demorou para acordar com o rei quem lideraria os navios irlandeses e dois dos navios dos homens das ilhas. Ewen Lamont, chamado Caçador, e Eoin MacLean, ao que conheciam como Assalto, tinham conduzido as outras duas naves junto aos irmãos de Bruce para Galloway para levar a cabo a segunda ponta de ataque contra os MacDowell. Com sete navios que comandar, cinco irlandeses e os dois de seu primo, decidiu que Erik comandaria a frota em um dos navios irlandeses e que Chefe capitanearia outra das naves de MacDonald, em que iria o rei. Como os seguidores deste eram a maioria das terras baixas da Escócia e tinham pouca experiência na navegação, Erik permitiu que os marinheiros irlandeses capitaneassem o resto de suas naves, e deixou Flecha MacGregor, o único membro da Guarda dos Highlanders presente, ao cargo do birlinn que ficava livre.
Menos de uma hora depois já estavam a caminho. Erik abria passo com os mercenários, navegando a pouca distância a diante para poder dar aviso em caso de que fosse necessário. Ao contrário da noite anterior, esta era boa para a navegação. O céu estava relativamente espaçoso para tratar-se das brumosas ilhas Ocidentais, e um vento constante os empurrava do norte. Seu destino, a ilha de Arran, ao nordeste de Spoon, na confluência da península de Kintyre com a costa de Ayrshire, encontrava-se apenas a uns sessenta quilômetros de Rathlin, mas seriam uns sessenta quilômetros cheios de tensão. Erik era consciente que o perigo se escondia atrás de cada onda. Uma coisa era burlar as patrulhas inglesas com um navio e outra muito diferente era fazê-lo com sete. Prestava especial atenção as cruzes de vias marítimas, consciente que às patrulhas inglesas gostavam de espreitar nos pontos em que se juntavam dois ou três corpos de água. Uma vez passado Rathlin, puseram rumo ao norte e ordenou que os navios pregassem as velas.
E foi uma decisão da mais afortunada. Estava seguro de ter visto o brilho de uma vela ao sul, onde o estreito de Rathlin se encontrava com o canal do Norte. Assim que margearam Rathlin, já não havia mais que mar aberto até chegar a Escócia. Mantinha os olhos bem abertos ante qualquer sinal, mas durante quilômetros não viu mais que a escuridão do céu e o trêmulo oscilar das resplandecentes ondas negras subindo e baixando. Quase diria que estava tudo muito tranquilo, havia muita calma depois do tumulto da passada noite. Pôs cerco a seus pensamentos antes que pudessem tomar forma. Ellie tinha entrado em sua cabeça muitas vezes, e tinha se proposto não pensar nela. Já o tinha distraído o bastante. Nesse momento todos contavam com ele para que os levasse até Arran a salvo, e desta vez nada se interporia em seu caminho. Nem sequer uma harpia intrometida e mandona de olhos matizados de verde, queixo teimoso e a pele mais suave que jamais havia tocado. Esquecê-la-ia, maldita seja. Esquecê-la-ia.
Quanto mais se aproximavam do promontório de Kintyre, mais suspeitas lhe davam seus pressentimentos. Apesar de não ter um sentido do perigo tão desenvolvido como o do vigia Campbell, cuja intuição punha os pelos arrepiados, sua vida dependia também de seus próprios instintos. A uma milha do promontório de Kintyre, ordenou baixar as velas e deu instruções ao resto dos capitães para que o esperassem. Ordenou a seus homens que remassem sem pronunciar palavra, mantendo todos os sentidos alerta ante qualquer movimento na escuridão. Quando alguns dos mercenários começaram a cochichar entre eles, Erik ameaçou cortando a língua do próximo homem que abrisse a boca. Devem ter acreditado porque o navio permaneceu em um silêncio espectral.
O birlinn avançava pouco a pouco na escuridão. Apesar da fria noite de inverno, o suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. O sangue palpitava no interior de suas veias à medida que examinava o horizonte que se estendia ante eles. Seus instintos estavam a flor da pele e clamavam por chamar sua atenção, mas não se via nada. Nenhuma só vela. Então seu olhar captou algo, uma sombra de estranhas formas na distância. Deu o sinal silencioso que ordenava parar a seus homens.
«Maldição.» Eram eles. As raposas estavam escondidas, com as velas recolhidas e a esperança de apanhar quantas moscas caíssem em sua teia. Táticas de pirataria. Não era, certamente, o momento mais apropriado para que os ingleses decidissem prestar atenção. Distinguiu não menos de seis escuras sombras, entre Spoon e a pequena ilha de Alisa Craig, que montavam guarda na boca do fiorde de Clyde, abortando com efetividade qualquer tentativa de aproximar-se de Arran. Erik deu a ordem de retirada com cuidado para evitar ser descoberto e voltou para onde estavam o resto das embarcações. Deteve-se junto ao birlinn de Chefe para informar ao rei e a seu capitão da armadilha que tinham estendido mais adiante. Bruce amaldiçoou e golpeou o punho contra a amurada como mostra de sua frustração.
—Mas como puderam saber?
—Não acredito que saibam — disse Chefe — Se soubessem que haveria um ataque, teriam bem mais de seis navios.
Erik concordou com ele. Boyd e Bruce se encontraram com barreiras similares ao retornar a Rathlin.
—Pois vá boa sorte que tiveram escolhendo precisamente esta noite — exclamou Erik.
—E vá má sorte a nossa — disse o rei — E eu dela já tive mais que suficiente. Tem que haver uma alternativa, pois é a única maneira de chegar a Arran. Podemos entrar um a um?
Erik negou com a cabeça. A noite era muito aberta; e o passo, muito estreito para evitar ser detectados.
—É muito arriscado. —«É a única maneira…» As palavras de Bruce lhe fizeram recordar algo. Mas claro! Em outras circunstâncias, Erik teria brilhado com seu famoso sorriso, mas o bom humor parecia havê-lo abandonado. Mais ou menos ao mesmo tempo que uma pequena babá — Mas me ocorre outra coisa —disse olhando a MacLeod — Podemos fazê-lo à maneira em que o faziam nossos ancestrais: descalços.
Bruce ficou perplexo.
—Por todos os demônios, do que está falando, Falcão?
Ao MacLeod brilharam os olhos e começou a esboçar um leve sorriso. Em uma estranha mudança de papéis, era Chefe que sorria como o demônio.
—Faz uma noite perfeita para se fazer de viking.
Sem dúvidas era. Navegar até Arran só seria possível pelo sul, passando o fiorde de Clyde, mas havia outra rota, um pouco menos convencional, uma rota para o norte que seus ancestrais tinham usado para evitar ter que navegar rodeando o longo braço de Kintyre. Erik, igual tinha feito duzentos anos atrás Magnus III da Noruega, o Descalço, conduziu ao exército pela zona ocidental do braço de Kintyre. Conduziram os navios eles mesmos pelo estreito passo de terra de Tarbert e assim conseguiram chegar a Arran do norte e sortear a armadilha que tinham estendido os ingleses. O melhor dos marinheiros de seu tempo levou a pé a frota até Arran. Mas tinham conseguido tomar posições. Em menos de vinte e quatro horas Bruce lançaria o ataque a seu ancestral assentamento do castelo de Turnberry, o que serviria como sinal de sua volta a Escócia e marcaria sua aposta final pelo trono.
Castelo de Ayr, Ayrshire
Depois da emoção da chegada e uma lacrimosa reunião junto a seu pai e seus irmãos maiores, John e Thomas, que o tinham acompanhado a Escócia, Ellie se desculpou dizendo que estava exausta e se retirou à solidão de seus aposentos.
Tinha conseguido prorrogar o interrogatório que a submeteria seu pai pelo que restava do dia, mas à manhã seguinte, depois de tomar o almoço, fizeram-na passar a sua câmara. Ali lhe aguardava uma surpresa.
Assim que abriu a porta, Matty voou para ela e se jogou em seus braços. Sua irmã chorava com tanta força que era impossível entender o que dizia, embora as palavras pouco importavam. O coração de Ellie se encheu ante aquela explosão de sentimentos tão sincera. Sabia que seus irmãos e irmãs a queriam, mas ver refletido de maneira tão aberta era algo que não deixava de comovê-la. Especialmente depois que sua própria espressão de amor tivesse topado com tamanha frieza por parte de Erik. Quando as lágrimas de Matty se acalmaram, esta se afastou um pouco de sua irmã para olhá-la com olhos chorosos e o rosto cheio de manchas. Ellie ficou surpreendida e franziu o cenho. Advertiu que algo em sua irmã tinha mudado: como se tivessem evaporado parte de sua exuberância e alegria de viver. Sua ausência a tinha afetado mais do que pensava. Matty piscou como se não pudesse acreditar que Ellie fosse real.
—Quando Ralph me disse que estava bem, não pude acreditar.
Ralph? Ellie alternou seu olhar de Matty a seu prometido, que tinha se postado no outro lado daquela pequena sala.
Seu pai a atravessou com um olhar acusador.
—Assim decidiu te apresentar aqui e vir comprová-lo?
Para surpresa de Ellie, desta vez Matty não ofereceu a seu pai nenhum de seus brilhantes infalíveis sorrisos. Em lugar disso, baixou a vista como se se envergonhasse.
—Sinto muito, papai. Tinha que vir.
Aquela resposta tão pouco característica de Matty incomodou tanto a seu pai como a Ellie. Esta se voltou para Ralph.
—Voltara até Dunluce para contar as notícias ao resto de minha família?
Este assentiu com cara de estar envergonhado.
—Sabia quão preocupados estavam.
A Ellie fez um nó na garganta ao precaver-se de quão injusta tinha sido com ele. Ela não era a única afetada pela aliança desse matrimônio. Tampouco devia ser fácil para ele casar-se com alguém após a morte da mulher que amava. Ralph de Monthermer era um homem bom, e Ellie prometeu a si mesma que corresponderia a sua bondade.
—Lhe agradeço — disse.
Parecia incomodá-lo sua gratidão. Ellie se precaveu que seu olhar posou em Matty justo antes de baixar a cabeça em sinal de reconhecimento. Tinha um mau pressentimento, mas seu pai começou o interrogatório antes que pudesse averiguar de onde provinha.
Ellie se manteve fiel à verdade como foi possível, incluído como tinha presenciado, por acaso, um encontro secreto entre aqueles homens na cova, dado que Randolph já tinha contado essa parte. Relatou-lhe que esses rufiões irlandeses não a tinham acreditado quando assegurou que não tinha ouvido nada do que disseram e que Falcão a tinha levado para que não a assassinassem. Explicou que tinha tomado seu sequestrador por um pirata, mas evitou qualquer menção às atividades que Falcão levava a cabo para Bruce.
—Tão somente me precavi da verdade quando chegou Eduardo Bruce —finalizou.
Seu pai perguntou mais coisas a respeito dos detalhes da chegada de Eduardo Bruce, mas ela não tinha nada que dizer a respeito. Parecia furioso pelo fato de que o irmão de seu cunhado não a tivesse reconhecido.
—E o tal Falcão alguma vez lhe disse seu nome? —perguntou seu pai.
Ellie quase desejava que não o tivesse feito.
—O único nome pelo que o chamavam era Falcão.
Aquilo era a verdade, embora finamente fiada.
—Isso mesmo disse Randolph — acrescentou Ralph.
—Alguma vez lhe falou de seus planos? —perguntou seu pai — O lugar ao que iria te devolver a casa? Se estavam planejando algo?
—Não — mentiu — O sinto.
Notou que seus olhos se alagavam de lágrimas. Mentir para seu pai era a coisa mais dura que jamais tinha feito. Mas tentava convencer-se de que não eram mais que pequenas mentiras em comparação com a ameaça que suportaria o homem ao qual tinha devotado seu coração. Seu pai interpretou aquelas lágrimas, em realidade provocadas pela culpa, como tristeza ante sua impossibilidade de ajudar. Rodeou-a torpemente com um braço e lhe deu um golpezinho no ombro.
—Não se preocupe, filha. Se seguir com vida, o encontraremos. —Seu rosto se endureceu — E quando o fizermos, encarregarei-me de lhe pôr uma soga ao pescoço com minhas próprias mãos.
O medo fez que seu pulso se acelerasse.
—Não! —gritou Ellie percebendo todo o peso dos cinco olhares e ruborizando-se por completo — Me salvou a vida. Não tinha mais opção que fazer o que fez. Não sabia quem era eu e, quando acabei confessando minha identidade, ficou furioso. Não tinha nenhum desejo de inimizar-se com você, papai.
Seu pai a olhou com atenção. Embora normalmente não fosse um homem muito perceptivo, Ellie se perguntou até onde teria chegado sua intuição.
—Isso pouco importará — concluiu — Se sobreviveu à tormenta, uma vez que o rei Eduardo o encontre, desejará não tê-lo feito. Nenhum dos seguidores de Bruce pode esperar piedade alguma.
O tom de voz de seu pai lhe chamou a atenção e, ao olhá-lo aos olhos, precaveu-se que algo o preocupava. Levantou-se de seu lado e caminhou até uma pequena janela da que se dominava o fiorde.
—Recebi uma carta do rei faz vários dias. Contava-me nela o que aconteceu com sua irmã.
A habitação ficou em um silêncio absoluto. O coração pulsava com força no peito de Ellie, que se preparava para as notícias de Isabel que tanto tinha esperado. Mas se a expressão de seu pai servia de indicativo, tratava-se de notícias que não desejava ouvir.
—Está na Noruega junto à irmã de Robert? —perguntou esperançosa.
Seu pai negou com a cabeça.
—Temo que não. Isabel, as irmãs de Bruce, sua filha e Bela MacDuff, a condessa de Buchan, foram capturadas faz meses no norte da Escócia quando tentavam escapar para a Noruega.
A habitação ficou em um silêncio espectral.
«Capturadas? Meu Deus.»
—Como? —perguntou Matty entre soluços.
O olhar de seu pai se endureceu.
—Da maneira mais pérfida e traiçoeira que possa imaginar. Foram traídos pelo conde de Ross depois que tomaram refúgio no santuário da ermida de São Duthus, em Tain.
—Ross violou o santuário? —perguntou Ralph horrorizado.
Seu pai assentiu. Aquilo era uma ofensa atroz aos olhos da Igreja.
—Mas seguem com vida? —perguntou Ellie em um tom esperançoso em sua voz.
Seu pai assentiu, mas era óbvio que aí não ficava a coisa.
—Mas por que não soubemos isto até agora? —perguntou Matty — Disse que ocorreu faz meses.
Ellie não recordava ter visto seu pai tão pesaroso.
—Suspeito que o rei não quis que soubesse e que só se decidiu me dizer isso uma vez que estava na Escócia, consciente que me inteiraria de todos os modos.
—Se inteiraria do que? —perguntou seu filho John.
Os olhos de seu pai se acenderam de cólera.
—Da maneira vil e desprezível em que foram tratadas. —Aferrou-se ao parapeito da janela de pedra até que lhe doeram as mãos — Eduardo ordenou que todas elas, até a filha de nove anos de Bruce, fossem encerradas em jaulas e suspensas no alto da torre de um castelo.
O grito afogado de Ellie esteve acompanhado pelos do resto. Seu horror era tal que nem sequer podia pronunciar uma palavra para expressar sua incredulidade.
—O rei ficou louco — disse Ralph — Suponho que terá retificado.
—Fez com Isabel, a filha pequena de Bruce, Marjorie, e sua irmã Cristina. Mas a condessa e sua outra irmã, Mary Bruce, não foram tão afortunadas. Estão penduradas em jaulas de madeira sobre Berwick e Roxburgh há meses.
O alívio que Ellie sentiu ao ver que sua irmã não estava sujeita a tanta crueldade se viu moderado ao tomar consciência que duas mulheres que conhecia não tinham tido a sorte de escapar da selvagem forma de repartir justiça de Eduardo. Ou talvez fosse melhor dizer de clamar vingança. Não lhe cabia dúvida de que Bela MacDuff era castigada de maneira tão cruel por tomar parte na coroação de Bruce.
—Não pode fazer nada? —perguntou Ellie.
Seu pai negou com a cabeça.
—Consegui persuadi-lo para que transfira Isabel da masmorra de Roxburgh a um feudo de Burstwick, mas não quer ouvir nenhum pedido de clemência em relação as outras. O rei está decidido a esmagar a rebelião e ver os traidores castigados da maneira mais horrenda possível. Ninguém está a salvo. Nem as mulheres, nem os meninos, ninguém.
Ellie sentiu um calafrio ao recordar as palavras de advertência de Erik. Não podia imaginar quão proféticas e próximas à verdade estariam.
«Minha querida Isabel.»
—O rei não aprendeu nada de Wallace — murmurou Ralph.
Estava certo. O rei Eduardo pensava que podia ganhar o respeito dos escoceses através do medo e da intimidação, sem mostrar piedade e assassinando de forma sanguinária, mas, ao comportar-se desse modo, tão somente tinha conseguido levantar o país em seu contrário.
O medo, maior inclusive do que havia sentido antes, gelou o sangue de Ellie. Não queria nem pensar no que Eduardo teria em mente para Robert e seus companheiros se os planos destes falhassem.
«Protejam-se.»
Uma chamada à porta interrompeu aquele silêncio de velório. Entrou o capitão da guarda de seu pai, seguido de um homem ao que ela somente tinha visto uma vez na corte fazia tempo, mas que conhecia muito bem por sua reputação: sir Aymer de Valence, o chefe das tropas do rei Eduardo na Escócia, que logo seria conde de Pembroke, quando morresse sua mãe, que se dizia estava muito doente.
Foi a traição de sir Aymer na batalha de Methven a que tinha parecido uma lança no coração da rebelião de Bruce, quando concordou em fazer uma trégua no combate até o amanhecer para logo atacar durante a noite. Seu pai e Ralph obviamente estavam surpreendidos com sua chegada. Sir Aymer não tinha tomado o tempo necessário para tirar o capacete nem o casaco, mas o fez então e os passou a um escudeiro que vinha atrás dele. Nem sequer deu tempo para que as damas se retirassem, mas sim sorriu como se trouxesse a melhor das notícias.
—Acabo de receber novas. Por fim teremos a oportunidade de acabar com isto de uma vez por todas. O Rei Capuz voltou. Bruce atacou Percy em Turnberry.
Sir Henry Percy tinha recebido o condado de Carrick e o castelo de Turnberry, usurpados de Bruce.
Ellie realizou uma prece de agradecimento. Se Bruce tinha atacado, tinha que ser porque Erik tinha chegado a tempo. Aquela onda de alívio durou pouco. Ao ouvir as notícias, necessitou o maior dos esforços para conter-se e não precipitar-se a perguntar pelo resultado da batalha.
—E? —perguntou Ralph por ela.
De Valence ficou circunspeto.
—Percy pediu reforços. Isso é tudo o que sabemos. Mas, segundo o relatório inicial, Bruce só contava com várias centenas de homens. Percy o apanhará.
O coração de Ellie, alagado de temor ante o perigo que sofria Erik, deu um violento tombo. Não podia mais que esperar que o afamado cavalheiro estivesse equivocado.
Erik permanecia escondido entre a escura coberta das árvores, contemplando a velha igreja e esperando um sinal. Esperava com toda sua alma que nada fosse mal nessa ocasião. Que não ocorresse como em Turnberry. A primeira incursão de Bruce na Escócia tinha sido um êxito, mas somente parcial. Ao princípio tudo foi conforme o planejado. Em tanto que Bruce e o resto das tropas esperavam em Arran a que se desse o sinal desde Kingcross, os quatro membros da Guarda dos Highlanders, MacLeod, MacGregor, Boyd e ele mesmo, tinham zarpado rumo a Alisa Craig, uma pequena ilha a poucas milhas da costa de Carrick. Dali nadaram até Turnberry para preparar a batalha e assegurar-se que não os esperava nenhuma armadilha. Esse era exatamente o tipo de missões para que a Guarda dos Highlanders tinha sido criada: entrar e sair sem ser vistos de situações perigosas por meio de métodos pouco convencionais, em especial aquelas que investiam um grande perigo.
Uma vez reconhecido o terreno e disposta a melhor estratégia de ataque, tinham que acender um fogo na colina que ficava no lado oposto do castelo, para dar o sinal de ataque ao resto das tropas de Bruce. Mas Erik mal tinha dado os primeiros passos para a praia quando aconteceu o desastre. Chefe amaldiçoou e assinalou para a colina em penumbras. Na escuridão da noite as chamas laranjas do fogo refulgiam como uma ameia ou, no presente caso, como um sinal. Alguém tinha aceso um maldito fogo, de modo que Bruce e seu exército se colocariam a caminho independentemente de que fosse seguro fazê-lo ou não.
Sem tempo para o reconhecimento do terreno, Bruce não teve ocasião de tomar o castelo como tinham planejado, mas atacar e saquear o acampamento de soldados ingleses do povoado próximo lhes reportou uma pequena vitória. Lorde Henry Percy, o usurpador do condado de Bruce e sua guarnição de ingleses, viram-se obrigados a encerrar-se no castelo para evitar a derrota à mãos dos quatrocentos homens de Bruce. «Os muito covardes.» Mas as tropas de Bruce tinham tido sorte. Muita sorte.
Erik não celebrou essa boa sorte, já que era um homem que não esperava menos de sua vida. A boa sorte já não lhe interessava. Ultimamente nada lhe saía bem. Tudo tinha começado nessa cova. Obrigou-se a afastar seus pensamentos da filha de Ulster — preferia pensar nela dessa forma —, e se concentrou na tarefa que lhe ocupava.
A semana seguinte a Turnberry, Bruce e seus homens se esconderam entre os urzes, procurando refúgio nas colinas e bosques de Carrick, evitando ser capturados por meio da constante mudança de posições. Sua intenção era elevar-se e perseguir os ingleses com pequenos grupos de batalha até que pudessem recrutar a mais homens para a causa de Bruce. Mas aquilo não estava funcionando segundo o previsto. Poucos homens tinham se unido desde Turnberry. Os escoceses necessitavam algo mais que uma pequena vitória moral para arriscar-se a provocar a ira de Eduardo. E deTurnberry tinham tentado conseguir notícias da ponta de ataque sul em Galloway conduzida pelos dois irmãos de Bruce, mas suas constantes mudanças de posição faziam que inclusive seus amigos tivessem muitas dificuldades para encontrá-los. Não obstante, a ajuda de um sacerdote afim estava a ponto de acabar com aquilo.
Nesta ocasião, o sinal não era uma fogueira a não ser o ulular de um mocho. Para ouvi-lo, Erik saiu dentre as penumbras e caminhou com cautela pela ladeira da colina até o vale que havia mais abaixo, onde se erguia a antiga igreja. Não era mais que uma planta de doze metros quadrados com um telhado, mas era utilizada como lugar de culto local há séculos.
Por trás de uma cruz de pedra de aparência ancestral saiu uma silhueta conhecida. Um homem que Erik não via há um ano, quando, depois de fracassar na prova final para converter-se em membro da Guarda dos Highlanders, abandonou a ilha de Skye. Mas a verdade era muito mais complicada que isso.
Erik se adiantou e sentiu desejo de sorrir pela primeira vez em semanas. Estendeu-lhe a mão e ambos fundiram seus antebraços agarrando-se com força.
—Me alegro de lhe ver, Vigia —disse Erik usando o nome de guerra que Bruce lhe tinha dado — Passou muito tempo. Espero que tenha praticado sua habilidade para interceptar lanças desde a última vez que nos vimos.
Arthur Campbell soltou uma gargalhada ante a referência à prova em que tinha «fracassado». Desde aquele suposto fracasso, Erik teve ocasião de inteirar-se de que tudo tinha sido parte de uma artimanha para situar Campbell em campo inimigo. Era Chefe o único que tinha conhecimento daquilo. Os outros membros da guarda se enfureceram muito ao saber que tudo era um engano, já que tinham pensado que o que antes foi seu amigo os tinha traído. Aquilo não voltaria a ocorrer. Chefe tinha tomado medidas necessárias para isso.
Foi graças a Campbell que obtiveram a maior parte da informação secreta dos últimos meses
—Que lhe dê, MacSorl…
—Falcão — interrompeu Erik subitamente.
Campbell assentiu ao compreender ao que se referia. Partiu antes que se decidisse usar nome de guerra.
—A mesma porcaria com diferente nome — disse Campbell com um sorriso de brincadeira. O afamado rastreador olhou a seu redor, assegurando-se que não havia ninguém mais — Venha — disse — Tenho alguém que está desejando lhe ver.
—O que há das notícias…
—Ele mesmo dirá — disse isso Campbell em tom sério.
Erik o seguiu pelo vergel em direção à igreja, advertindo a fina cota de malha e o tabardo que levava Campbell sob seu casaco negro.
—Ouvi que Eduardo lhe nomeou cavalheiro depois de Methven. Não posso negar que têm toda a pinta de um.
Mas sob toda essa armadura, Campbell levava o mesmo leão rampante que todos eles.
—Pode se dar um montão de desinformação, embora tampouco serve de muito —disse Campbell fazendo uma careta.
—Fez o que esteve em sua mão. Estou seguro de que não foi fácil.
Campbell abriu a porta após emitir um som agudo que pretendia sugerir que mesmo assim ficava muito curto. Uma vez no interior, ao Erik deu a sensação de entrar em uma cripta. Fazia frio e imperava um silêncio absoluto. Um aroma de umidade e uma incomum quietude impregnavam a atmosfera, como se não tivessem aberto a porta durante muito tempo. Ao fundo havia um pequeno altar sobre uma plataforma alta; e abaixo dele, uma fileira de velhos assentos de madeira. À direita, uma tumba, provavelmente o destino final de descanso de um dos primeiros sacerdotes que ali habitaram. Atrás dela, momentos depois de que a porta se fechasse, emergiu uma sombra. Através da solitária janela se filtrava um só raio de lua, e ao Erik custou um tempo acostumar-se à escassa luz. O homem se desprendeu do capuz e Erik não teve mais remédio que amaldiçoar: tratava-se de Lachlan MacRuairi, Víbora, seu primo e também membro da Guarda dos Highlanders.
Erik avançou para ele e lhe deu um abraço, sabendo que aquilo o incomodaria, ou talvez precisamente por isso. Embora Lachlan MacRuairi fosse um bode de sangue muito frio, sigiloso e mortífero, como a serpente a qual devia seu nome de guerra, isso não evitava que se alegrasse muito de vê-lo.
—O que está fazendo aqui? —perguntou Erik — Pensávamos que estaria honrando a corte da Noruega com essa sua disposição à alegria.
Assim que a cara de MacRuairi saiu da penumbra, Erik soube que algo ia mau. Aqueles olhos que normalmente não mostravam expressão alguma tinham um aspecto próximo à loucura e ao pânico. O brilho de humor que tinha experimentado Erik se esfumou de repente.
—Onde está a rainha? —disse.
Quando se viram obrigados a separar-se depois da batalha de Dal Righ, seu primo ficou a cargo de velar pela rainha, as irmãs de Bruce, sua filha pequena e a condessa de Buchan. Nos olhos de MacRuairi se apreciou o brilho de um olhar funesto. Erik soube o que estava a ponto de dizer inclusive antes de ouvi-lo.
—Capturada. O conde de Ross nos traiu antes que pudéssemos nos pôr a salvo na Noruega.
Seu primo fez um rápido repasse à série de acontecimentos que levaram a captura das damas e a posterior violação do santuário de Ross. MacRuairi tinha se salvado de correr a mesma sorte por algum jogo de palavras do destino que se negou a explicar. Mas os outros dois membros da guarda que estavam no mesmo grupo, Templário, William Gordon; e Santo, Magnus MacKay, não tinham tido a mesma sorte. Após, MacRuairi não tinha cessado em seu empenho por liberá-los. Gordon e Mackay estavam em uma masmorra no castelo de Urquhart sob a vigilância de Alexander Comyn. A única razão para que não os executassem imediatamente era que os tinham tomado por guardas ordinários. Mas as mulheres… Erik sentiu náuseas quando ouviu o que tinha sido delas.
Uma jaula? Por todos os Santos. Bruce estaria consumido pela tristeza. Seus pensamentos se dirigiram a Ellie, e desta vez permitiu que se detivessem nela por um momento. Fazia o correto. Era preciso afastá-la o quanto pudesse de toda essa loucura.
—Temos que fazer algo — disse MacRuairi.
Ao fim Erik pôde localizar a fonte desse olhar de histerismo. Estava desesperado por liberar a seus amigos e companheiros.
—Te levarei junto ao rei.
—Temo que há mais má notícias — disse Campbell. Erik se preparou para o pior, mas não foi suficiente — O ataque do sul fracassou. Foram traídos. Os MacDowell estavam a par de sua chegada e acabaram virtualmente com toda a frota. Só sobreviveram uns poucos homens.
Uns poucos, de quase setecentos homens e dezoito galeões?
Uma brecha de desesperança atravessou o peito de Erik.
—E os irmãos do rei? —perguntou sem emoção alguma.
Campbell negou com a cabeça mostrando sua tristeza.
—Decapitados faz uns dias em Carlisle.
Três dos irmãos de Bruce tinham sido executados no mesmo número de meses. Acaso aquilo não acabaria alguma vez? A pequena mostra de esperança que tinha tido depois do ataque de Turnberry tinha sido cruelmente aniquilado. Esmagado por aquele que se denominava a si mesmo o Martelo dos Escoceses.
—Caçador e Assalto?
—Não sei — disse Campbell. De repente seus sentidos se aguçaram e ficou com esse olhar vazio que resultava tão inquietante.
—O que acontece?
—Não estou seguro. — Campbell foi para a janela para inspecionar — Cavalos —disse.
—Eles o seguiram? —perguntou Erik.
Campbell lhe dirigiu um olhar cáustico para lhe deixar claro que essa pergunta estava de mais.
—Será melhor que saiam daqui. Eu me ocuparei de tudo. — Erik se dispôs a discutir, mas então Campbell acrescentou —: Não pode me ver com vocês.
Erik assentiu. Estava certo. O subterfúgio de Campbell tinha que ser protegido.
Pouco depois, Erik e seu primo escapuliam da igreja e desapareciam entre as sombras.
Capítulo 22
Dia de São Gunioc,
13 de abril de 1307
Ellie olhava pela janela da torre do castelo de Ayr, à espera de um navio que nunca chegaria. Daquela posição privilegiada, o ensolarado dia da primavera oferecia uma vista perfeita dos resplandecentes mares azuis do fiorde de Clyde. A ilha de Arran se avistava na lonjura e mais à frente uma mancha minúscula no horizonte sobre a que ela se empenhava em desenhar os rochosos escarpados de Spoon. Sentiu de novo aquela pontada no peito, uma nostalgia que tinha tido já quase dois meses para desvanecer-se. Já era hora de que aceitasse a verdade. Se tivesse querido ir procurá-la, o teria feito.
Quando teve conhecimento da vitória de Bruce em Turnberry, embargou-a uma pequena parte de ingênua e insensata esperança: a esperança que ele sofria tanto como ela. A esperança que o tempo e a distância fizesse que ele desse conta que entre eles havia algo especial. A esperança que decidisse subitamente que a amava tanto como ela a ele. Mas à medida que passavam as semanas em um longo e doloroso silêncio, Ellie tinha que confrontar a realidade. Ele já sabia onde encontrá-la porque Domnall o haveria dito, e graças às regulares missivas que sir Aymer fazia a seu pai, também ela sabia que Bruce se encontrava nos arredores, acossando e derrubando as rotas de aprovisionamento dos ingleses das montanhas de Galloway.
Era hora de que aceitasse a verdade. Erik não faria nenhuma grande aparição. Não mandaria notícias nem iria procurá-la. Não deteria suas bodas com Ralph. Tudo tinha acabado e o mais provável era que não voltasse a vê-lo.
Aquela familiar queimação alcançou de novo seu peito. Mas, a pesar da dor, não era capaz de arrepender-se. No pouco tempo que tinham passado juntos, Erik lhe tinha ensinado a respirar de novo. Depois dos momentos de aventuras e emoções passadas em Spoon, prometeu a si mesma não voltar a cair na aborrecida existência a que tinha ficado relegada com antecedência.
Voltou as costas à janela da torre e começou a descer a escada com o coração esmigalhado por uma resolução. Não derramaria mais lágrimas por um homem que provavelmente se esqueceu por completo dela. Tinha que continuar com sua vida e deixar de velar por um sonho que jamais foi realizável. Matty voltaria para Dunluce no final da semana e Ellie tinha decidido partir com ela. Já tinha atrasado os preparativos das bodas durante tempo suficiente. Junho se aproximava a toda pressa e não ficava espaço para as indecisões.
Apesar do desconforto que lhe provocava Ralph tinha desaparecido, Ellie não podia evitar o pressentimento de que algo ia mal entre eles. Embora tampouco podia encontrar motivo algum para não casar-se com ele. Desde sua volta tinha feito um esforço por conhecê-lo melhor, e a recompensa disto foi precaver-se de que em realidade lhe caía bem. Claro está que ganhou sua gratidão eterna quando atendeu ao pedido de clemência para os homens de Erik, salvando suas vidas e transferindo-os dessa horrível masmorra a um edifício seguro do povoado. Talvez não lhe surpreendesse muito quando duas noites depois uma estranha explosão abria um buraco no muro de pedras do edifício e os homens conseguiam escapar. Sabia quem se encarregou disso.
Tinha estado tão perto dela…
Ellie cruzou o grande salão até a câmara contigua com a intenção de transmitir a seu pai seu desejo de retornar a Irlanda, mas o ruído das vozes a deteve. Sir Aymer estava ali de novo e, apesar da promessa feita de deixar atrás Erik e seu passado, lhe alterou o pulso. Estava claro que o oficial inglês traria notícias frescas dos rebeldes. Embora a porta estivesse fechada, Matty e ela tinham descoberto que, quando se sentavam frente à lareira para fazer suas tarefas de bordado, podiam ouvir a maioria da conversação através da fina parede que dividia as estadias. Era consciente de que fazer isso resultava vergonhoso, mas fazia já semanas que sua ânsia de saber o que passava tinham superado o sentimento de culpa por escutar às escondidas.
A voz de sir Aymer soava mais alta inclusive que outros dias e sua evidente excitação fez que a Ellie o coração desse um tombo. Ouviu falar com Ralph e depois a exaltada resposta de sir Aymer.
—Estou seguro de que esta vez os temos. Vi sua toca com meus próprios olhos.
A Ellie o mundo veio em cima. Não podia ser! Teve que obrigar-se a recuperar a calma. Tinha ouvido sir Aymer dizer o mesmo muitas vezes, mas Bruce sempre arrumava para escapar. Certamente seu pai deve ter pensado o mesmo.
—Como pode estar seguro que não se moverá antes que suas tropas se posicionem? —perguntou — Bruce não fica nunca muito tempo no mesmo lugar.
—Estão preparando um banquete. Ao que parece, é o aniversário de um de seus homens e vão trazer algumas moças do povoado e um barril de cerveja. Não irão a nenhum lugar nesta noite.
«Mulheres.» Deu-lhe uma pontada no coração. Não só pelo medo, mas sim por algo mais. Conhecia Erik muito bem.
Mas sir Aymer estava certo: se preparavam para dar um banquete, não era provável que tivessem intenção de partir. Seria esta finalmente a ocasião em que os ingleses capturariam ao fugidio Rei Capuz?
—Como os encontrou? —perguntou seu pai.
O poderoso inglês falou com o orgulho de um moço que pescou seu primeiro peixe.
—Um de meus homens ficou ciumento ao precaver-se de que uma moça da cervejaria do povo que gostava ia e vinha a horas inoportunas. Ontem à noite decidiu segui-la e quase deu de bruços com o acampamento. Tinha que ter pensado nisso antes. Segue às mulheres e lhe levarão aos homens.
—Por que não atacaram imediatamente? —perguntou Ralph.
—Estão acampados em um vale entre duas montanhas rochosas — respondeu sir Aymer.
—E não pode passar com seus cavalos — acrescentou Ralph para finalizar sua frase.
—Sim, de modo que nos esconderemos no bosque próximo e cairemos sobre eles sem prévio aviso. Que seus homens se reúnam conosco no bosque que há perto do lago na garganta de Glen Trool. Atacaremos ao amanhecer junto aos highlanders de MacDougall que vêm pelo norte, os homens de MacDowell do sul e as tropas adicionais inglesas do rei. Os esmagaremos de uma vez por todas. —Ellie ouviu um punho que golpeava sobre a madeira — Mas quero me assegurar por completo que desta vez não escapará. —ficou em silêncio um momento — Têm alguma faxineira leal a seu serviço?
Aquela era uma estranha pergunta. O comum era que os exércitos vencedores usassem aos locais como servos, e os ingleses não supunham uma exceção. Havia poucos serventes pessoais que entrassem em combate e os que o faziam sempre eram homens.
—Não — começou a dizer seu pai, e logo se deteve, ao precaver-se ao mesmo tempo que Ellie da razão pela que ia a eles: Ellie e Matty — Sim, minha filha Matty trouxe uma ajudante de câmara com ela. É de confiança. O que planeja?
Ellie quase pôde ouvir o sorriso de sir Aymer.
—Haverá uma mulher a mais no banquete desta noite.
—Uma espiã? —perguntou Ralph.
—Sim, para descobrir quantos são e com que armas contam. Apesar dos rumores, Bruce não tem nenhum exército de fantasmas. Quero saber quem são seus homens. Com os problemas que me causaram tenho em mente algo especial para eles.
Um frio estremecimento percorreu as costas de Ellie. Não era a primeira vez que ouvia falar do exército fantasma de Bruce, e algumas das histórias a respeito desses misteriosos guerreiros de força e habilidade sobre-humana de tinturas horripilantes lhe resultavam familiares.
—Alice é uma garota respeitável e não uma puta — disse seu pai sem ocultar seu desgosto.
—É obvio que não — respondeu sir Aymer arrependido — Não se esperará dela mais que ajudar com a comida e a cerveja. Assegurar-me-ei que essa mulher seja muito bem recompensada pelos problemas que lhe causem. —Certamente seu pai não as tinha todas consigo — Não correrá perigo algum — assegurou sir Aymer — Meus homens a escoltarão até os limites do acampamento quando o banquete estiver em seu apogeu. Pode dizer que se perdeu do resto do grupo. Nesse momento já estarão muito bêbados para discutir.
—Pensou em tudo — disse seu pai secamente.
Ellie se afastou dali como em transe e com o coração pulsando a toda pressa, enquanto tentava dar sentido tudo aquilo que tinha ouvido.
Uma coisa estava clara: os ingleses tinham preparado uma armadilha para Bruce, e se ninguém os avisasse, estaria em grave perigo. Correu escada acima para a pequena câmara que compartilhava com sua irmã, sem saber ainda o que faria, mas consciente de que tinha que fazer algo. Não podia permitir que o matassem. Não, quando estava em sua mão ajudá-lo. Embora ele não a correspondesse, ela seguia amando-o.
Além disso, lhe devia. Assim que descobriu sua identidade, tinha que ter contado quem era ela. Não podia arrepender-se de ter feito amor com ele, mas sim que a inquietavam as dificuldades que poderia lhe ter causado com isso. Deu-se conta muito tarde que suas ações seriam vistas como um ato de deslealdade para o rei. E compreendia quão importante para ele era isso por quanto tinha descoberto de seu passado. Talvez fosse o momento de reparar seu engano. Mas o que poderia fazer?
Arrastada por um impulso frenético, abriu a porta de repente e se surpreendeu ao encontrar com sua irmã olhando pela janela em uma atitude muito parecida com a que ela tinha tido antes. Havia algo triste e desamparado na queda desses ombros. Matty se voltou ao ouvi-la e sorriu, mas não lhe brilharam os olhos ao fazê-lo. Ellie estava tão ensimesmada em seu próprio desamor que não se precaveu que Matty tinha estado ausente ultimamente. Prometeu-se que averiguaria o que acontecia a sua irmã, mas antes teria que encontrar a maneira de advertir Erik.
Começava a conceber as primeiras linhas de um plano, um plano arriscado, ao tempo que infestado de perigos.
Matty foi a seu encontro.
—O que acontece?
Ellie percebeu o olhar de preocupação de sua irmã e sentiu que caía sobre ela o peso dos dois meses passados. Não queria que sua irmã tivesse que carregar com seus segredos, mas sabia que, se decidia a fazê-lo, teria que contar com sua ajuda. Respirou profundamente.
—Necessito que me ajude.
Erik MacSorley, homem conhecido por mostrar-se sempre alegre, estava agora de um humor de cães perpétuo. Nem sequer a preciosa moça que tinha sobre seu colo e fazia tudo o que podia para animá-lo podia curar aquilo do que padecia. Tinham-lhe arruinado a vida. Enfeitiçado por uma menina de sedoso cabelo escuro e deslumbrantes olhos castanhos, matizados de verde, que lhe perseguia de dia como de noite, como cada um dos condenados minutos que tinha vivido com ela. Não a tinha esquecido, mas sim suas lembranças estavam mais vivas que nunca e se contrapunham a tudo o vivido antes e depois, criando um marcado contraste que fazia que todas as demais pessoas parecessem ordinárias comparadas com ela. A ironia da primeira impressão que lhe tinha causado era que tinha permanecido sempre aí.
Ela era diferente, agora se dava conta. Era especial. Embora dar-se conta não mudava nada. Ela não era dele e jamais seria. Nos momentos em que se encontrava com o ânimo mais baixo se torturava perguntando-se se já teria se casado com aquele maldito inglês.
A moça notou que seus músculos ficavam em tensão e brincou com o bem que vira relaxar-se. Roçava-lhe o pescoço com a ponta do nariz e ria enquanto fazia propostas ao ouvido, mas ele não sentia mais que uma incerta moléstia. Estava cansado de sorrir e agradecer como um parvo ante as moças que o olhavam como se tudo ele o fizesse bem. Queria uma mulher que discutisse com ele, que o desafiasse e se preocupasse o suficiente para escavar sob a superfície, que estivesse disposta a dar tanto como ela esperava receber.
«Te amo.»
Repetia essas palavras em sua mente uma e outra vez. Via o rosto dela sob a luz da lua e não podia evitar a sensação de que tinha cometido um engano, de que aquilo que Ellie lhe oferecia era especial e que ele tinha estado muito cego para vê-lo, que talvez essas palavras tantas vezes ouvidas significassem algo diferente se provinham de seus lábios. Mas não era certo que lhe tinha devotado matrimônio? Era ela que o tinha rechaçado. E como teria podido aceitá-lo? Se não tinha nada que lhe oferecer.
Apertou o pesado cálice de latão entre seus dedos até que fincou as bordas da gravura em forma de flor de lis que tinha como relevo. Que diabos lhe estava passando? Zangado consigo mesmo, tentou relaxar e motivou um tanto à moça. Mas aquelas provocações e sedução lhe pareciam forçadas e logo se cansou das brincadeiras. Sentiu certo alívio quando a moça, ainda sobre seus joelhos, voltou-se para falar com a mulher que se aproximou para lhe encher a jarra de cerveja.
Erik deu um longo gole e olhou a buliçosa multidão de homens meio bêbados concentrados ao redor da tenda iluminada por tochas. Embora não compartilhasse com eles a farra, não os culpava por divertir-se. As oportunidades para a celebração tinham brilhado por sua ausência ultimamente, e os homens necessitavam algo que lhes levantassem a moral. Era a primeira vez que via Bruce sorrir desde que chegou a fatídica notícia da decapitação de seus irmãos e a captura de suas mulheres. Pouco espaço houve entre meio para as boas notícias. Caçador e Assalto estiveram entre os poucos que conseguiram escapar da falida segunda ponta de ataque de Galloway. Em uma missão de dois dias no norte, os membros restantes da Guarda dos Highlanders, entre os que se incluía Dragão, Alex Seton, que deu com eles pouco depois de Turnberry, conseguiram entrar no insuficientemente defendido castelo de Urquhart e resgatar o Santo, Magnus MacKay, e Templário, William Gordon, depois de meses de cativeiro. Uma semana depois daquilo com a ajuda dos pós mágicos de Gordon, liberaram Domnall e ao resto dos homens de Erik em Ayr.
Mas esses êxitos tinham que ficar na balança junto aos duros custos que cobrou a guerra: os três irmãos de Bruce, Christopher Seton, o conde de Atholl, a família cativa, e muitos outros. Até então a volta a terras escocesas não tinha reportado ao Bruce mais que umas centenas de acres de umas montanhas esquecidas de Deus em Galloway. Faziam poucos avanços contra os ingleses desde a batalha de Turnberry. Os assaltos e pequenos ataques às rotas de provisões não bastavam para recrutar mais homens para a causa do rei. Andavam com a água ao pescoço, mantendo a cabeça o suficiente alta para não afogar-se. E ao final se cansariam. Necessitavam algo decisivo para atrair a mais combatentes para unir-se a sua luta. Mas desta vez o rei se mostrava paciente e rechaçava enfrentar os ingleses a não ser que fosse segundo seus próprios termos. Erik esperava que as condições se dessem logo. Qualquer vantagem conseguida pelo impulso de Turnberry se dissolveria com rapidez entre o barro e a imundície da vida de perseguidos.
Mas essa noite quase haviam tornado a sentir-se homens civilizados. Depois de meses vivendo virtualmente na miséria resultava agradável sentar-se a uma mesa de novo. Ao contrário dos nobres ingleses, que viajavam com carros cheios de comodidades domésticas, Bruce precisava viajar leve de bagagem para transladar-se no mínimo tempo possível. Entretanto, para a festa dessa noite, uma das familiares do rei, Cristina de Carrick, tinha arrumado tudo para que instalassem uma tenda e levassem mesas e bancos até seu aquartelamento provisório na montanha próxima a Glen Trool.
Como convidado de honra, Erik estava sentado no centro da mesa, a uns assentos de distância do rei, seu irmão Eduardo, James Douglas, Neil Campbell, MacRuairi, MacGregor e MacLeod. Pela extremidade do olho advertiu que seu primo discutia de novo com o rei. Se havia alguém cujo mau humor podia rivalizar com o de Erik esses dias era MacRuairi. Não precisava ouvi-los para saber a respeito do que discutiam. O rei tinha rechaçado aceitar os repetidos pedidos de MacRuairi para salvar às damas de seu cativeiro. Necessitava-os com vida, dizia o rei. Tentar resgatar às damas ferreamente custodiadas das fortalezas inglesas teria sido uma missão suicida nesse momento. Não podia arriscar-se a perdê-los, não quando sua situação era tão precária. Assim que conseguisse afiançar seu assentamento, ele mesmo se encarregaria de liderar a Guarda dos Highlanders. Mas a MacRuairi não satisfazia razão alguma. Parecia que estava possuído em sua determinação por liberar as damas, especialmente as que estavam penduradas em jaulas.
—Não parece desfrutar de seu presente — disse MacLeod, do seu assento à esquerda de Erik, com toda a intenção.
Erik desafiou o olhar de certeza dos olhos de seu chefe deslizando uma mão sob o redondo traseiro da moça.
—Não, estou desfrutando do lindo.
Tentou não sair correndo quando a moça começou a rir e a rebolar mais sobre suas pernas, roçando com sua mão divertidamente. Mas por sorte estava muito entretida em desfrutar de sua cerveja e no bonito rosto de MacGregor a sua direita para continuar com seus cuidados. O mais deprimente era que não sentia surgir nem a mais leve faísca de fogo competitivo em seu interior. Quase desejava que o afamado arqueiro a tirasse das mãos ou, melhor dizendo, das pernas.
—Foi ideia do rei — disse McLeod olhando-o por cima do cálice que sorvia — Acredito que é sua maneira de lhe pedir desculpas.
—Não tem do que desculpar-se — disse Erik — ofendi sua honra e pus as coisas mais difíceis se couber entre seu sogro e ele. Não me deu menos do que merecia.
—Ulster não parece havê-lo tomado como algo pessoal — disse MacLeod — Quanto à honra do rei — acrescentou encolhendo-se de ombros —, acredito que se arrepende de algumas coisas que disse.
—Me teria pendurado pelos ovos se tivesse podido.
O Chefe da Guarda dos Highlanders não discutiu.
—Certamente está certo. Mas é muito valioso e ele sabe. Além disso, necessita a cada um de seus homens neste momento. — MacLeod o olhou aos olhos — Acredito que a deserção de Randolph o afetou muito. Mais do que reconhece.
Erik concordava com ele. Tinha afetado a todos. Domnall lhes contou todos os detalhes, mas em resumo tinha ocorrido como ele suspeitava. Oportunismo, sem dúvida, mas nem por isso supunha uma traição menor. Tomava como um fracasso pessoal. Randolph estava sob suas ordens. Pensava que tinha conseguido influir favoravelmente o menino. Ao que parecia, não tinha sido assim.
—Em qualquer caso — disse MacLeod —, agora que sua ira se aplacou, acredito que o rei pensa que não é o único culpado do que ocorreu. Você não sabia quem era ela. Acredito que está mais zangado com seu irmão por não reconhecer à moça. — Esboçou uma careta que era meio sorriso — Além disso, o rei tampouco esqueceu o que se sente quando a gente está apaixonado.
Desentendeu-se por completo da moça que estava sobre seus joelhos e a ponto esteve de atirá-la ao chão quando se voltou para o homem que tinha a seu lado. Fulminou-o com o olhar.
—Apaixonar-se? — disse soltando uma gargalhada — Pelos pregos de Cristo, eu não estou apaixonado.
O feroz guerreiro o olhou desafiante.
—Então há alguma outra razão para o mau humor destes dois últimos meses?
Ao Erik lhe trocou a cara.
—Quer dizer além de viver nestas montanhas esquecidas de Deus, açoitado por uma matilha de cães ingleses? É obvio que a valorizo, mas jamais na vida me ataria a uma só moça. —Tentou estremecer-se ante a ideia com toda sua vontade, ao tempo que queria evitar que isso era algo que normalmente vinha de maneira natural — Não quando a gente pode passá-lo tão bem ainda.
—Já vejo — disse Chefe com sarcasmo olhando para a escultural mulher que tinha Erik sobre seu colo — Se vê que está desfrutando como nunca.
Erik se descobriu furioso e não sabia se era pelo sarcasmo de MacLeod ou por sua maldita incapacidade para ignorá-lo. Normalmente impassível, no que concernia a Ellie se tornou quase —e desta vez sim se estremeceu— sensível.
—Não importa — disse em uma tentativa de manter o controle da conversação — O rei crendo não, eu lhe propus matrimônio. — Olhou a seu amigo aos olhos — A moça rechaçou.
—Já era hora — murmurou MacLeod.
Erik o olhou com irritação.
—O que disse?
MacLeod se encolheu de ombros.
—Nada, que eu gostaria de conhecê-la.
Erik desejou que ela estivesse longe dali, de volta na Irlanda, ou na Inglaterra, pensou tragando saliva amargamente. Apertou os dentes para aplacar o instintivo arrebatamento de ira, bebeu da jarra de um gole e gritou para que lhe trouxessem outra.
Que diabos! Tratava-se do dia de seu aniversário e pensava desfrutá-lo. Trinta anos, pensou com irritação. E tudo tinha ido perfeitamente durante vinte e nove e três quartos deles. No ano anterior teria compartilhado o folguedo com o resto, teria desfrutado provocando e seduzindo à moça que tinha sobre seu colo, e teria desejado com loucura a longa noite de prazer que estava por chegar. A moça possivelmente percebeu que ele voltava a prestar-lhe atenção, porque tentou seduzi-lo de novo. Beijou-o de maneira mais atrevida desta vez, resolvida já a encarregar-se com suas próprias mãos daquele assunto, como quem diz. Erik sentiu que sua mão caía sobre o insensível vulto que tinha entre as pernas. «OH, mas se é grande por toda parte», disse entre risadas.
Nem sequer pôde encontrar um comentário jocoso a respeito. Tentava desfrutar daquilo. Tentava concentrar-se em suas mãos peritas, mas tão somente lhe dava a desagradável sensação de ter larvas passeando por sua pele. Ellie o tinha arruinado por completo. Fazia dele um maldito eunuco.
Estava a ponto de mandar à moça que fizesse algum encargo desnecessário, como trazer mais cerveja, uísque ou o que Deus quisesse que pudesse ocorrer-se quando ouviu uma comoção perto da entrada da tenda.
Tratava-se de Boyd. Seton e ele tinham recebido o desafortunado encargo de montar guarda essa noite. E, ao que parecia, tinha sido boa ideia. O homem mais forte da Escócia agarrava a um intruso pela cintura e puxava dele com certa dificuldade. Tratava-se de uma mulher, como pôde deduzir Erik pelas delicadas sapatilhas que apareciam sob sua capa. Esta deu um chute ao enorme guerreiro em sua canela e tentou fugir dele.
—Se afaste de mim, besta sobre-humana! —Erik ficou feito uma pedra. Seu coração, seu sangue, todos seus órgãos paralisaram de repente — Robert! —disse com essa voz autoritária e mandona que Erik tão bem conhecia — Espero seriamente que esta não seja a forma em que trata às pessoas que tentam lhe ajudar.
Erik não queria acreditar, mas no minuto seus piores temores se viram confirmados. Ellie jogou o capuz para trás, empurrou a um assombrado Boyd e subiu à mesa de um salto.
—Lady Elyne! —exclamou o rei, igualmente surpreso.
Mas Erik mal pôde ouvi-lo. Uma bruma de fúria vermelha desceu sobre ele e o cegou até o ponto que não podia ver mais além do perigo ao que ela se expos. A moça parecia ter uma inclinação exasperante para pôr os pés no lugar e momento errados.
Blasfemou. E o fez em voz alta.
Ellie o olhou, e Erik advertiu nesse primeiro olhar surpresa e depois dor.
—Que diabos está fazendo aqui?
Não foi até o momento em que o disse que recordou à mulher que tinha sobre seu colo.
Capítulo 23
Ironias da vida. O homem com o que tinha estado sonhando durante semanas, meses e nem sequer o reconheceu. Ellie fazia já uma rápida revisão do terreno quando aquele musculoso bruto a empurrou para o interior da tenda. Precaveu-se no momento da voluptuosa loira nos braços do aterrador guerreiro, mas não se incomodou de olhar com atenção. Não havia nada nele que lhe resultasse familiar. Certo era que com a mulher que tinha em cima não podia vê-lo muito bem, mas havia algo diferente na maneira em que se sentava. Já não mostrava essa atitude de homem completamente depravado e a gosto, mas sim lhe via indiferente a tudo e de mau humor, o qual provocava pavor e parecia advertir com isso que ninguém se aproximasse muito.
Não foi até que ouviu sua voz e se voltou para encontrar-se com esse olhar arrebatador de olhos azuis que tão bem conhecia que seu coração deu uma violenta sacudida. Estava a salvo. Vivo. Observou-o com atenção, precavendo-se que as mudanças foram muito além da postura. Vestia de modo diferente, com uma cota de malha de guerra negra e uma manta de cor escura. Levava o cabelo longo e descuidado e não se barbeava fazia ao menos uma semana. Seu rosto, mais esquálido, tinha um aspecto enxuto e esfomeado que casava perfeitamente com esses olhos azuis polares com olhar de poucos amigos e o gesto torcido de sua boca. Em lugar do pirata descarado com o brilho endiabrado nos olhos, tinha ante si ao homem de aspecto mais aterrador de uma tenda cheia de guerreiros curtidos na batalha.
O alívio de vê-lo são e salvo logo se converteu em dor. Uma pontada no coração. A mulher estava beijando-o. Comia-lhe o pescoço a beijos e tocava os duros músculos de seus largos ombros, músculos e ombros que Ellie conhecia muito bem e pensava bobamente que lhe pertenciam. E o que esperava? O que penasse por ela? Talvez um pouco… Nem sequer pôde consolá-la o fato de ver como a mulher, claramente esquecida, caía jogada ao chão.
Ellie, que acreditava que todos naquela tenda estariam pensando o mesmo, fez provisão de todo seu orgulho, levantou o queixo e com um imperioso giro de cabeça afastou a vista com decisão do irado e aterrador viking.
«Tudo terminou», pensou angustiada. Já sabia. Mas agora o tinha visto com seus próprios olhos.
—Robert, rogo isso. Tenho que falar com você. É importante.
—Não o duvido — disse seu irmão político, embora Ellie advertia o confundido e talvez algo receoso que estava. Olhou ao enorme homem que a tinha apanhado nas cercanias do acampamento — Veio sozinha?
—Sim — disse aquele bruto de rude aspecto ao tempo que assentia — Mas estamos comprovando-o para nos assegurar.
Robert assentiu e deu a volta à mesa para tomá-la pela mão.
—Vamos, irmã, pode me contar o que a trouxe até aqui.
Olhou para trás para fazer um gesto ao homem que estava sentado junto a Erik e depois a outros mais. Precaveu-se que o primeiro dos guerreiros ia vestido de forma parecida com Erik e que também resultava igualmente imponente. Era alto, cinzelado a base de músculos e com uma beleza de traços duros, embora não resultava tão impressionante como o que estava sentado ao outro lado. O ar de autoridade que desprendia o primeiro deles lhe fez perguntar-se quem seria. Era óbvio que seu cunhado confiava nele.
Eduardo Bruce se levantou para unir-se a eles, igual fez um guerreiro um pouco mais velho e outro muito mais jovem. Dirigiu-se a Erik quase por acréscimo: «É possível que também você queira vir». Não parecia muito contente com isso.
Advertiu a tensão existente entre os dois homens e desejou com todo seu ser que não fosse ela a causa. Ellie seguiu seu cunhado até o exterior da tenda. Cruzaram o improvisado assentamento até chegar às rochosas ladeiras. Enquanto avançavam, ela notava todo o peso do olhar do zangado homem que seguia seus passos.
Estava claro que não se alegrava de vê-la. Tampouco podia culpá-lo sob tais circunstâncias, mas não esperava que a recebesse com essa virulência. Tanto a odiava? Não era sua intenção enganá-lo. Somente queria comprovar se podia se interessar por ela mesma, sem as armadilhas e obrigações que se devia por sua nobreza.
Ao estar bem iluminada pelas tochas, Ellie se precaveu de que aquela pequena cova tinha sido adaptada para fazer as vezes de câmara real, provida com uma cadeira, uma mesa para escrever e um colchão humildes. Era o mais afastado a um palácio que podia possuir, mas Robert se via perfeitamente adaptado ao ambiente rústico que o rodeava.
Ellie sempre tinha admirado ao arrumado cavalheiro que ganhou o coração de sua irmã, mas via com claridade as mudanças operadas nele durante o ano passado. Quase esperava encontrar-se com um foragido com o olhar furtivo e ansioso do perseguido. Em lugar disso, via um formidável guerreiro de força e determinação inquebráveis que tinha mais aspecto de rei vestido com suas poeirentas roupas de luta que com o cetro e a coroa reais.
Robert lhe fez gestos para que ocupasse a cadeira, e os homens se acomodaram entre as rochas planas dispostas no interior da cova. Pelo que se referia a conselhos de guerra, aquele era do mais incomum.
Ellie sentia todo o calor do olhar furioso de Erik, que fazia que se desvanecesse parte dessa sensação de vitória por ter conseguido chegar até eles. Esfregava as mãos com ansiedade entre as saias. Era certo que vagar por esses campos desolados pela guerra fazendo-se passar por uma faxineira que fazia de espião ao serviço dos ingleses não era muito seguro, mas tinha sido de tudo necessário. Talvez Robert advertisse seu nervosismo, porque lhe disse com amabilidade: —Espero, irmã, que não me interprete mal se lhe digo que, embora me alegra muito lhe ver, tenho grande interesse em saber a razão pela que está aqui e como conseguiu me encontrar.
Ellie se concentrou em Robert para isolar-se da fúria que irradiava aquele homem que estava apoiado contra a parede com os braços cruzados ante seu largo peito revestido de couro. Não era por ele que estava ali. Bom, não era só por ele. Embora não estava muito segura de que tivesse chegado a tais extremos com só o impulso da simpatia para a causa de seu cunhado. Não tinha escapado de sua câmara desde que era uma cria. E sair às escondidas dela na metade da noite com um par de soldados ingleses desconhecidos que a tomavam por uma faxineira, para informar ao homem mais procurado da cristandade que lhe tinham estendido uma armadilha…
Se seu pai alguma vez tivesse conhecimento disso, estaria horrorizado e enfurecido por sua traição. Mas depois do que Eduardo fez com sua irmã, não pensava sentir-se culpada absolutamente. Respirou fundo e relatou a conversação que tinha chegado a seus ouvidos entre sir Aymer, Ralph e seu pai. Aquilo não era o que esses homens esperavam ouvir, de modo que não demorou advertir a mudança de atitude dos ocupantes da cova à medida que se precaviam da gravidade da situação.
Robert blasfemou.
—Sabem que estamos aqui? Está segura disso, irmã? Não é possível que tenha ouvido mau?
—Não ouvi mal — disse negando com a cabeça — Os ingleses sabem onde está seu acampamento e planejam atacar ao amanhecer. Queriam que a ajudante de câmara de minha irmã viesse aqui para tirar informação, mas a convenci para que eu viesse em seu lugar.
Explicou-lhes, deixando a um lado o papel que tinha jogado Matty na hora de encobri-la, como vários homens de sir Aymer a tinham acompanhado até os limites do vale. Esperavam sua volta para escoltá-la de novo até o castelo. Ellie tinha intenção de lhes contar que lhe tinham negado a entrada ao acampamento, de modo que precisava voltar o quanto antes.
Eduardo Bruce não foi tão sutil como seu irmão.
—Como sabemos que está nos dizendo a verdade? Poderia tratar-se de uma armadilha.
Ellie o fulminou com o olhar.
—Claro que é uma armadilha, mas não sou eu quem lhe está estendendo isso. Se não me acredita, enviem um de seus homens aos bosques que há ao pé do lago Troon. Encontrarão perto de mil e quinhentos soldados ingleses que provará que é certo o que lhes digo. Mas façam antes do amanhecer. Devem advertir a seus homens e se preparem para partir imediatamente — disse voltando-se para Robert.
Bruce acariciava o queixo enquanto pensava a respeito.
—Temo que não.
Ellie ficou petrificada pela incredulidade.
—Mas juro que estou dizendo a verdade!
—Acredito — disse com um sorriso para depois olhar ao impressionante guerreiro que Ellie tinha visto antes — Isto era o que estávamos esperando.
Viu como ao outro brilhavam os olhos.
—Sim. Um ponto de encontro com o inimigo a nossa própria escolha. — O guerreiro se ajoelhou, agarrou um pau e desenhou várias linhas no pó do chão — Se posicionarmos nossos homens aqui na ladeira sul — disse assinalando um ponto à esquerda —, estaremos preparados para recebê-los de cara quando saírem dos bosques. Faremo-nos com pedras para desmontar à cavalaria, e Flecha e seus arqueiros se encarregarão do resto.
—Será uma armadilha — disse Robert em um tom satisfeito —, mas não para nós.
Os homens falaram entre eles durante vários minutos mais e riscaram o plano. Quando chegaram a um acordo a respeito da maneira de proceder, o rei voltou a dirigir-se ao guerreiro que vestia como Erik.
—Chefe, reúna aos homens. Terá que fazer os preparativos. Os que estejam muito bêbados atirem ao lago. Temo que teremos que celebrar seu aniversario outro dia —disse voltando-se para Erik.
Este se encolheu de ombros com indiferença; seguia olhando Ellie com a mesma cara.
—De todos os modos não parece que está para muitas celebrações agora mesmo.
Bruce se aproximou de Ellie, inclinou-se sobre ela e a beijou na bochecha.
—Não sei como lhe agradecer isso irmã. Contraio uma dívida com você que não posso sonhar em pagar, ao menos no momento. Mas quando recuperar meu reino, terá tudo o que esteja em minha mão lhe oferecer.
—Tão somente desejo que minha irmã retorne a salvo — disse ela.
Ellie apreciou o brilho de raiva nos olhos de Robert enquanto assentia.
—Sim, isso mesmo quero eu.
Voltou-se para se despedir de seus homens. Erik começou a caminhar junto a eles, mas o deteve.
—Não, fica —disse com dureza — Isto lhe concerne. — Ellie brincou com seu casaco, adivinhando que o que estava a ponto de dizer nada tinha a ver com a informação que ela acabava de lhes dar. Olhou a ambos alternamente — Por mais que aprecie que nos tenham avisado, irmã, suspeito que sua visita não tinha como único objeto meu próprio benefício. —Ellie notou como ardiam suas bochechas ante o atento olhar de seu cunhado — Falcão me contou o que aconteceu — acrescentou — Sinto muito pelo que se viu obrigada a suportar. Naquelas circunstâncias era inevitável que lhe levasse com ele, mas sua conduta além disso é indesculpável e desonrosa — disse fulminando Erik com o olhar.
Ellie o olhou e se surpreendeu ao ver a careta de desconforto em seu rosto. Obviamente não tinha intenção de acrescentar nada por si mesmo.
—Não — repôs implacável ela, agarrando-o do braço — Se equivoca. Me tratou com a maior das considerações. Pude e devia lhe dizer quem era eu, mas escolhi não fazê-lo. Acredito que desfrutava muito de minha liberdade para operar de tal modo — acrescentou com azedo sorriso — Sou tão responsável como Falcão pelo que aconteceu.
A Erik não pareceu lhe sentar bem que rompesse uma lança em seu favor.
—Não necessito que me defenda, lady Elyne. A ira do rei está completamente justificada.
Robert o ignorou e a olhou atentamente.
—Não sofreu por sua… perda? Farei que se case com você agora mesmo se for preciso.
Ellie teve que reprimir o estremecimento de horror e vergonha que aquilo lhe causou. Que um parente furioso e bem-intencionado a obrigasse a casar-se era inclusive menos sugestivo que a diligente oferta de matrimônio de Erik. Negou com a cabeça.
—Meu prometido está a par da situação. Como já disse a Falcão, não tenho nenhuma intenção de me casar com ele.
Seu nobre sacrifício não era necessário.
Robert pareceu tranquilizado pela resposta e, quando se voltou para se dirigir a Falcão, dava a impressão de estar menos zangado com ele. Indubitavelmente lhe resultava um grande alívio dar por terminada essa conversação. Sorriu.
—Temo que feriu meu marinheiro em seu orgulho. Não está acostumado que as mulheres o rechacem. Mas pelo que conta minha Isabel, você sempre foi uma moça honesta. — Riu ao comprovar a expressão furiosa de Erik — Vê o que me refiro? Faz semanas que está insuportável. —Talvez pressentindo que levava o guerreiro ao limite, suavizou-o acrescentando —: Arriscou muito para me trazer esta informação. Espero que ninguém descubra o que têm feito.
Também ela o esperava.
—Estarei bem, mas devo voltar o quanto antes. Os soldados estarão me esperando e não quero que façam muitas perguntas.
Robert a beijou de novo na bochecha.
—Farei que um de meus homens lhe escolte até onde têm que ir.
—Não será necessário — disse Erik sem emoção alguma na voz — Eu a acompanharei.
Robert olhou Ellie pedindo sua aprovação. Ela dirigiu seu olhar a Erik e viu o desgosto que expressavam o gesto torcido do queixo e da boca. Teve a tentação de negar-se, mas se dava conta de que ele era uma das razões que a tinham levado até ali. Antes de decidir se seguia adiante com seus planos de bodas com Ralph, tinha que saber que não existia nenhuma possibilidade entre eles. Assentiu duvidosamente.
Erik fazia esforços sobre-humanos para conter-se. Ellie não sabia a sorte que tinha de ter aceito que a acompanhasse. Tinha estado a um segundo de pôr as mãos ao redor de sua esbelta cintura, tal e como tinha ansiado fazer desde que tinha entrado na tenda, e jogá-la ao ombro como o bárbaro viking que ela tinha pensado que ele era em um princípio. Aquela moça exasperante parecia provocar seus instintos mais primitivos, o instinto que os homens noruegueses tinham aguçado durante gerações na arte de tomar quanto queriam. Mas, por sorte, sua dúbia aceitação tinha servido para evitar danificar mais a opinião que tinha o rei dele, já prejudicada por si.
Depois de despedir-se de seu cunhado, Ellie girou os calcanhares, elevou seu imperioso queixo e saiu da tenda como se fosse a irmã do rei e ele somente um lacaio que podia contentar-se fazendo que a barra de seu vestido não arrastasse pelo chão.
Erik saiu atrás dela como um possesso, lutando por tomar as rédeas de suas feras emoções. A raiva que sentiu ao vê-la não fez a não ser piorar depois de ouvir as razões que a tinham levado ali. Ficou sem respiração ao pensar no perigo ao que se expôs. Ouvir a inflexível reiteração do rechaço a sua oferta de matrimônio tampouco tinha melhorado seu humor. Por que não queria casar-se com ele se era certo que o amava? Ele não desejava esse matrimônio, mas, mesmo assim, maldita seja, aquilo não tinha nenhum sentido.
As tochas e fogos do acampamento se desvaneciam atrás deles em um tenso silêncio que Erik não se atrevia a romper por medo ao que pudesse dizer. Levou consigo vários dos sentinelas de Boyd que vigiavam o perímetro, mas tinha dúvidas inclusive que ela se precavesse de sua presença. Ao final, quando chegaram ao estreito corredor que conduzia ao lago Troon, Ellie deve ter pensado que já se afastaram o suficiente.
—Vai olhar-me toda a noite com essa cara ou tem algo que dizer?
Talvez fosse o tom de sua voz. Ou possivelmente as mãos nos quadris. Pode ser que se tratasse simplesmente do doce aroma de perfume em sua pele após meses de torturantes privações. Fosse o que fosse, Erik alcançou seu ponto limite de resistência. Tomou por um dos cotovelos e a sacudiu com força contra ele.
—Pois sim que tenho algo que dizer! Que demônios pretende te implicando nisto? O que quer, que lhe matem?
Tocá-la tinha sido um engano. Ao ter seu corpo tão perto podia perceber perfeitamente a suavidade de suas curvas. O aroma que desprendia, as sensações que sua cercania lhe provocava eram tão intensas que se deu conta no momento de quanto tinha sentido falta dela.
A maré de reações inflamava seu interior, faziam que fervesse o sangue e a pele, lhe permitindo descobrir que, apesar de sua mais recente experiência, ele não era nenhum eunuco. Qualquer mulher em seu são julgamento teria empalidecido de medo ante o furacão de raiva que se formava. Mas, é obvio, Ellie, que nunca se comportava como se esperava dela, afastou o braço, olhou-o diretamente aos olhos e sustentou seu olhar.
—Tonta que sou, pensava que me agradeceria — disse entreabrindo os olhos e afundando um dedo em seu peito para dar força a suas palavras — por salvar essa ingrata guarida cheia de guerreiros ingratos que têm mais músculo e beleza do que lhes convém.
—Agradecido de que ponha sua vida em perigo? — espetou com raiva. Deu um passo para ela, que retrocedeu a sua vez para compensá-lo. Felizmente para ele, uma árvore freou sua retirada. Inclinou-se sobre ela ameaçadoramente e lhe pôs um braço sobre cada ombro para evitar que escapasse — O que tenho vontade é de te estrangular por vir aqui.
Ou beijá-la até que baixasse a pressão que pulsava em seu peito. Uma corrente elétrica fluía entre ambos. O impulso magnético do desejo o obrigava a aproximar-se mais dela. A necessidade de beijá-la era quase insofrível. Tinha a boca, a mandíbula, todo o corpo em tensão pelos esforços que devia fazer para conter-se.
Os olhos de Ellie brilharam como os de uma lebre que caiu na armadilha.
—Precisa relaxar — disse sentindo-se inquieta — Está sendo ridículo. Me deixe partir.
Que relaxasse? Ele? Se sempre estava depravado, pelo amor de Deus. Aproximou-se mais ainda, como se pudesse obrigá-la assim a precaver-se da magnitude do perigo ao que se expôs e a que experimentasse uma pequena parte do que ele sentia.
—Não.
Era consciente de que não merecia tal revoo, mas maldita seja, sentava-lhe maravilhosamente tê-la aí justo onde ele queria. A sua mercê. Dobrando-se a sua vontade. Já deveria saber que assim não funcionavam as coisas.
Ellie levantou o joelho bruscamente, causando dano suficiente para que se retorcesse de dor, sem pôr em perigo a futura descendência de ambos, pensou. Quando teve forças para recuperar a compostura, precaveu-se desse pequeno deslize. Erik retrocedeu. «Nossa futura descendência.»
Olhou-a sem poder sair de seu assombro, notando uma pressão que abria passo em seu peito. Parecia tão claro, tão óbvio, que o surpreendeu muito não ter-se precavido antes disso. Tinha necessitado um joelhada nas bolas para dar-se conta dessa verdade que durante tanto tempo tinha tido diante de seu nariz. Não podia imaginar ninguém mais que ela como futura mãe seus filhos.
A amava.
Por Cristo Nosso Senhor, mas que idiota tinha sido! Essa fusão de emoções tão intensas, a atração animal, a necessidade premente de protegê-la, de possuí-la. A razão pela qual não podia esquecê-la. A razão que, apesar de todo seu aborrecimento, viu-se subjugado nada mais vê-la entrar na tenda. Não queria casar-se com ela para lhe fazer um favor, mas sim porque a amava.
Como tinha podido permitir que aquilo acontecesse? Embora melhor seria perguntar-se o que tinha feito para que aquilo não acontecesse. Foram feitos um para o outro. Ela despertava seu lado sério e ele a fazia rir. Compartilhavam a mesma paixão pela aventura. Ellie era a primeira mulher que se interessou pelo que ele pensava, a primeira em escavar debaixo dessa aparência de eterno brincalhão e sedutor para tentar conhecê-lo. Talvez seu descobrimento estivesse presente desde a primeira vez que ela elevou os olhos ao céu ou o olhou com sua cara de babá impossível de impressionar. Ou pudesse ser que tudo se reduzisse a algo tão simples como essa profunda observação de Domnall: ela não engolia suas tolices.
—Não tente me intimidar com esse montão de músculos — repôs Ellie interpretando mal a fonte daquela tensão — Não servirá de nada. De verdade acredita que posso pensar que me faria mal? E não será porque não tenha todo o aspecto de um velhaco perigoso — acrescentou após observá-lo atentamente à luz da lua.
Erik, ainda emocionado por seu descobrimento, passou os dedos por aquele descuidado cabelo. Tão mau aspecto tinha?
—Não tivemos muitas oportunidades para nos barbear ultimamente.
—Não digo que eu não goste — ela se apressou a corrigir. Apesar da escuridão, Erik juraria que se ruborizou — Simplesmente faz que pareça mais perigoso. — ficou circunspeto, sem saber como reagir ante esse comentário. Pela forma em que o disse, quase pareceu que aquilo não era de tudo mau — Sinto ter te ofendido — acrescentou ela mordendo o lábio — Mas me doeu sua atitude.
—Conheço essa sensação — disse ele com o gesto torcido, para seguidamente voltar a tocar o cabelo — Por Deus, Ellie. Quando te vi nessa tenda e pensei nos perigos que correu para chegar até aqui, assustei-me muito, estive a ponto de… —Deixou em suspense a frase e se encolheu de ombros — Suponho que perdi a cabeça.
Ellie esclareceu garganta exageradamente.
—Bom, ah. Suponho que teria preferido não vir aqui sozinha… Mas não havia ninguém mais que pudesse fazê-lo. Fiz o que pensava que era meu dever.
Porque o amava. Ser consciente de que se expôs ao perigo por ele fez que Erik se sentisse mais humilde. Ellie o olhava aos olhos, desafiando-o a mostrar-se em desacordo com ela.
—Não é que não aprecie o que fez — disse — Deus sabe que salvou muitas vidas vindo aqui esta noite, pode ser que inclusive que um reino, mas não quero que esteja nem remotamente perto de tudo isto.
O rosto de Ellie se via abatido entre a penumbra.
—Não me perdoou pelo que fiz — disse ela.
—Não há nada que perdoar. Fui eu o culpado de tudo. — Ellie não parecia acreditar, de modo que Erik se explicou —: Ao princípio, pus-me furioso que não me contasse isso, mas quando pensei com calma, dei-me conta de que tinha razões mais que suficientes para não fazê-lo. Nunca ganhei sua confiança nem me pediu que confiasse em ti. O que aconteceu naquela cova… Desejava-te tanto que poderia ter me dito que era a rainha da Inglaterra e não me teria importado.
Ellie sorriu sem vontade.
—Espero que isso não te tenha causado muitos problemas com Robert. Não pude evitar me precaver da tensão que havia entre vocês dois.
—Não ocorre nada — disse lhe subtraindo importância.
—Claro que ocorre. — Ellie sabia quão importante era a lealdade para ele — Tinha que ter te contado isso. Eu sim confiava em você, mas desejava saber… —disse com uma voz que se foi apagando.
—Saber o que?
Ellie olhou a outra parte, envergonhada. Erik pensava que já não responderia, mas ao final ela disse: —Queria saber se eu te interessaria por mim mesma. Não por quem sou ou porque a honra te dissesse que tinha que te casar comigo.
A Erik encolheu o coração ao entender tudo ao fim.
—Por isso me rechaçou.
Não porque não o amasse, mas sim porque queria que ele a amasse pelo que era. Isso era o que lhe oferecia. Isso era o que não tinha sido capaz de ver. Ele tinha proposto em virtude da honra e o dever, mas o que ela queria era amor e emoção.
—Minha mãe amava a meu pai com toda a alma — explicou Ellie — Tentou ano após ano que ele a amasse, e isso foi o que a levou a tumba. A febre se apoderou dela, mas em seu interior já estava morta há muitos anos.
Erik lhe afastou uma mecha de cabelo da bochecha e o colocou atrás da orelha.
—Sinto muito, moça.
Ellie ficou à defensiva, interpretando mal a razão da desculpa.
—Não lhe contei para que se compadeça de mim, nem porque queira algo de ti. Só pensava que poderia te ajudar a compreender por que atuei desse modo.
—Ellie…
Agora podia pôr ponto final a todas suas agonias. Teria sido tão fácil estreitá-la entre seus braços e lhe dizer o quanto a amava, que não podia imaginar o futuro se não fosse junto a ela. Egoístamente era isso o que desejava. Para um homem tão acostumado a conseguir o que queria, que a felicidade se rendesse a seus pés, foi um gole muito amargo. Mas não pôde fazê-lo.
Houve algo na maneira em que ele a olhava que obrigou Ellie a atuar como se prometeu não voltar a fazer jamais.
—Me peça que fique — sussurrou.
Por uns instantes Erik duvidou. Ou ao menos isso foi o que se disse ela. Queria acreditar que aquela súplica causava nele algum tipo de luta interior, porque exteriormente seu rosto não expressava nada absolutamente. Mas então ele sorriu, e a condescendência que se desprendia desse gesto, como se compreendesse que estava lhe rompendo o coração, mas teve a sorte de ser completamente imune a sua agonia, fez que se diluísse qualquer esperança de sublevação em seu interior.
—Sinto muito, moça. Não posso fazê-lo.
A dor abrasou o corpo de Ellie como um ferro ao vermelho vivo. Por que fazia isso a si mesma? Por que saía de peito aberto e mostrava seu coração nu para que ele o fizesse em pedaços? É que sentia prazer em seu próprio prazer e humilhação? Entretanto, houve um momento em que a olhava com olhos tão tenros que ela pensou que…
Idiota. Ele não a amava. Só se compadecia dela. Agora via claro. As mulheres se atiravam a seus pés a cada momento. E para maior vergonha, ao que parecia, ela não era diferente às demais. Duas vezes lhe tinha devotado seu coração e duas vezes o tinha rechaçado. Mais que suficiente.
Uma vez que se repôs daquele golpe, Ellie se separou dele. Era estranho, mas depois da primeira pontada de dor já não sentiu nada. Só uma necessidade imperante de partir dali assim que fosse possível.
—Tenho que partir.
—Ellie — disse Erik em voz baixa enquanto a agarrava pelo braço — Lamento.
Ellie sentiu que seu corpo ficava em tensão e se afastou dele.
—Não há nada do que desculpar-se. Fui uma estúpida. É obvio que não quer que fique contigo — disse rindo com amargura —, Se já tem alguém esperando. —Erik a olhou estranhando como se não tivesse ideia a respeito do que lhe estava dizendo — A mulher —acrescentou. «Sobre seus joelhos. Lhe beijando.» — Na tenda?
Pareceu-lhe que punha uma cara estranha, mas ao final disse:
—Ah, sim. É obvio.
Ellie tinha o pulso acelerado.
—Bom, então suponho que isto é um adeus.
Aventurou-se a olhá-lo pela última vez, perguntando-se quanto tempo demorariam os traços daquele rosto em apagar-se de sua memória. O arco das sobrancelhas. A dureza de expressão de sua mandíbula. As rugas brancas incrustadas junto aos olhos. O incorrigível gesto torcido de sua boca. O queixo afiado e seu excelso nariz. Esse irresistível e belo rosto.
Ellie baixou o olhar.
—Os soldados me estarão esperando ao outro lado das colinas.
—Está segura de que sabe o que está fazendo? O que acontecerá se suspeitam algo?
—Não suspeitarão. Posso ser muito convincente.
Olhou-a com dureza.
—Não confio. Levar-te-ei eu mesmo a Ayr.
—Não — exclamou ela com veemência — Devo ater-me ao plano ou começarão a suspeitar. Pensa que iram acreditar que fui capaz de encontrar o caminho de volta sozinha? Não pode ser de outro modo. Sei o que faço. Além disso, não sou tua responsabilidade —disse olhando-o aos olhos.
Assim ficaram durante um longo instante. Por um momento a Ellie pareceu advertir algo justo antes que Erik piscasse. Este deu um passo atrás, com todo o corpo em tensão. Ellie teria jurado que inclusive o estava passando mau.
—Muito bem — disse — Adeus, lady Elyne.
Quase lhe cortou a respiração. Ficou durante um longo momento simplesmente aí, saboreando o momento, porque sabia que seria o último. Mas era inevitável que se acabasse.
—Adeus, Erik.
Partiu sem olhar para trás. Uma pequena mas significativa parte de sua vida tinha acabado para ela.
Capítulo 24
Vésperas de San Juan,
23 de junho de 1307
Erik fez o que tinha que fazer. Ela estaria melhor sem ele. Ao menos isso era o que não cessou de repetir-se durante os primeiros dias posteriores a sua marcha. Queria lhe pedir que ficasse, mas a amava muito para lhe fazer isso. O amor não era garantia de finais felizes. Havia ocasiões nas que o amor significava sacrifício. Havia ocasiões nas que amar significava pôr a felicidade da outra pessoa por cima da nossa mesma, embora isso implicasse estar separados.
Era um foragido. Mas à manhã seguinte talvez não fosse a não ser um cadáver para ela. Inclusive com a ajuda de Ellie, era consciente que seus dias estavam contados. Talvez se ela tivesse sido a babá que ele tinha acreditado em princípio, as coisas teriam sido de outro modo. Mas era a filha de um dos homens mais poderosos da cristandade, estava prometida em matrimônio a um homem igualmente poderoso e, o que era mais importante, estava a salvo. Ellie tinha pela frente um futuro luminoso. Não podia lhe pedir que arriscasse tantas coisas por ele. Não desejava vê-la pendurada numa jaula.
A dor era tão mortificante como se lhe tivessem enfiado uma adaga nas costas e a retorcesse em seu interior. Sentia-se como se o partissem em dois: por uma parte, seus egoístas desejos e, por outra saber, o que tinha que fazer. Mas jamais teria imaginado que fazer o correto pudesse ser tão doloroso…
Conhecia Ellie. Se tivesse advertido um ponto de debilidade, não teria parado até lhe surrupiar a verdade. De modo que se via obrigado a deixar que acreditasse que não a queria. Mas o olhar de resolução de seu rosto quando partia seguia perseguindo-o. Deixá-la partir tinha sido a coisa mais dura que tinha feito na vida. Fazia que o período de adestramento de duas semanas de duração de MacLeod, conhecido com o nome de perdição», parecessem simples jogos e diversão.
Apesar de suas objeções, ele a tinha seguido até o castelo de Ayr. Tinha a suspeita de que ela sabia que estava aí, mas jamais voltou a vista atrás.
Mais tarde, cinco dias depois de que entre quatrocentos seguidores de Bruce apanhassem a mil e quinhentos cavalheiros ingleses em Glen Trool, fazendo que Aymer de Valence se retirasse humilhado, Ellie partia em um galeão, deixando Ayr para a Irlanda. Erik tinha conhecimento de sua partida porque estava sob a vigilância de um de seus homens no castelo. À primeira indicação de que sua aventura noturna no acampamento de Bruce tinha sido descoberta, Erik teria ido resgatá-la.
Mas não pôde contar com tal desculpa.
E agora, depois da segunda vitória decisiva contra sir Aymer de Valence nas colinas de Loudon em maio, de uma escaramuça que dias antes tinha posto em fuga ao prometido de Ellie até o castelo de Ayr, a derrota de sir Phillip Mowbray pela mão de sir James Douglass e Boyd, junto às notícias de que o rei inglês estava no leito de morte, Erik temia ter cometido um engano enorme. As voltas tinham trocado. Os homens se uniam em massa à causa de Bruce, e suas filas tinham passado de centenas a milhares da noite para o dia. Pouco a pouco o rei afiançava sua posição no sudoeste, com a tomada de pontos estratégicos incluída. Entretanto, Bruce tinha aprendido algo muito importante de Wallace: destruiria os castelos antes de permitir que o inimigo os usasse em seu contrário. Assim ao dia seguinte, depois de uma larga noite de celebração, o castelo de Ayr seria arrasado. Pensavam desprendê-lo antes de qualquer objeto de valor, mas a maioria o tinha levado Ulster uma semana atrás, antes de zarpar para a Irlanda.
Erik permanecia sentado em um silêncio virtualmente total, alheio às escandalosas celebrações que aconteciam a seu redor, unindo-se em alguma ocasião à conversação de MacLeod e Bruce, e picando algo da muita comida que serviam. A escura nuvem que pousou sobre ele desde que tinha visto desaparecer Ellie atrás dos muros desse mesmo castelo não fazia a não ser carregar-se mais e mais. À medida que passavam os dias, sentia um incômodo crescente que cada vez se parecia mais ao pânico. Por momentos o envolvia tanto que mal podia respirar.
Era escravo de suas próprias dúvidas, incapaz de escapar à dor aguda que significava não dizer a Ellie que a queria, não lhe ter dado a oportunidade que ela merecia. E com cada uma das vitórias, sua incerteza ia aumentando. Não podia conciliar o sono. Mal podia comer. Lutar era quão único era capaz de fazer. De modo que se apresentava voluntário a qualquer missão, quanto mais perigosa melhor. Algo com tal de tirar da cabeça a pergunta a respeito se tinha feito bem e se já era muito tarde para preocupar com isso.
—Chegaram-me certas queixas.
Erik elevou a vista ao precaver-se de que era o rei quem falava com ele. Ficou circunspeto.
—Que tipo de queixas?
—É muito duro com os novos recrutas.
Erik trocou um olhar com MacLeod antes de responder.
—Têm que estar preparados para a luta. Eduardo tem previsto enviar mais tropas a Carlisle em julho. Não se dará por vencido tão facilmente.
—E estaremos preparados — concedeu Bruce — Se Eduardo se recuperar. Mas não pode conseguir que esses camponeses e pescadores se convertam em cavalheiros de um dia para o outro.
—Não tento convertê-los em cavalheiros. O que quero é convertê-los em highlanders. Isso é mais complicado, assim precisa mais trabalho.
—Sim. Têm razão. Aceito a correção — disse Bruce entre risadas. Ficou olhando-o atentamente — Tenho notícias que poderiam lhe interessar. — Apesar de o rei não parecer lhe dar muita importância, todos os músculos de Erik ficaram em tensão — São a respeito de minha cunhada — acrescentou Bruce para depois dar um sorvo ao vinho e observá-lo por cima do cálice, consciente de que ao Erik lhe revolviam as tripas — Amanhã pela manhã se casará com De Monthermer.
Ao Erik pareceu que lhe davam um chute no peito. Ao ouvir as palavras do rei, seu corpo estremeceu dos pés a cabeça. Todo o pânico que vinha acumulando explodiu de uma vez. Não lhe cabia a mais remota dúvida de que tinha que fazer algo. Não podia deixar que aquilo acontecesse.
Precaveu-se de que havia mais de um par de olhos observando sua reação.
—Onde? —perguntou com os dentes apertados.
—No castelo de Dunluce — respondeu Bruce olhando-o com algo em mente — Sabe o que? Estive pensado em uma coisa e acredito que poderia ter uma missão para você.
Erik mal prestava atenção. «Casada.» Aquela palavra dava voltas em sua mente sem cessar. Não podia pensar em outra coisa. Como podia Ellie fazer isso? Amava-o e, entretanto, em poucas horas se casaria com outro. Havia uma parte dele que se negava a acreditar que ela se resignou. Parecia que tudo ardia em seu interior. Tinha que esforçar-se horrores para permanecer ali sentado tranquilamente quando o que queria era saltar sobre o primeiro navio que encontrasse e voar até a Irlanda.
—Tinha estado pensando — continuou o rei — que seria prudente afiançar nossos laços com a Irlanda. E já que lhe designei como encarregado de manter abertas as rotas de comércio ocidentais para nossas provisões, suponho que é a pessoa indicada para isso. —Erik foi tomando consciência vagamente de que o rei falava a sério. Teve que obrigar-se a escutar suas palavras e não aquelas violentas vozes de seu interior que gritavam que fosse dali o quanto antes — Sabia que lady Elyne é a queridinha de Ulster? —perguntou Bruce com intenção.
Erik cravou seu olhar no do rei, começando a suspeitar a que se referia.
—Sim — respondeu com cautela — Tenho entendido que a dama ajudou ao pai à morte de sua mãe.
Bruce se inclinou sobre ele.
—Com certeza que lhe perdoaria qualquer coisa. — Fez uma pausa para refletir — Se tiver duas filhas casadas com escoceses, é possível que esse olho cego seu se converta em dois olhos cegos. O que lhe parece?
Erik estava boquiaberto. O que o rei queria dizer era óbvio. A «missão» que sugeria era estabelecer uma aliança ao casar-se com Ellie, embora de forma clandestina, algo que Bruce pensava que Ulster acabaria lhe perdoando. Se esperava o apoio de Bruce, já o tinha.
Mas Erik sabia que teria ido ali inclusive sem seu apoio. As semanas de tortura tocavam a seu fim. Tinha cometido um engano. Era consciente disso. Somente esperava poder chegar a tempo antes que ela cometesse um engano pior, um que não teria remédio. Quando pensava em todo o dano que tinha feito a Ellie… Fez uma careta de dor ao recordar como a tinha deixado pensar que não a amava, que sua intenção era voltar junto à mulher do banquete. Então voltou a lhe invadir uma onda de pânico. O que aconteceria se ela se negasse a falar com ele? Ellie podia ser muito teimosa. E se não o perdoava? O mundo lhe veio em cima. O que aconteceria se ela não mudava de opinião? Não podia deixar que aquilo acontecesse. Sorriu com vontade como não tinha feito fazia tempo. Teria que assegurar-se de passar um momento com ela a sós para poder desdizer-se e dar fé de seus sentimentos. Sabia o lugar perfeito para isso.
Voltou-se para Bruce.
—Tenho que partir imediatamente.
Bruce lhe devolveu o sorriso.
—Isso mesmo estava pensando eu.
Deteve-se ao pensar na teimosia de Ellie.
—Pode ser que atrase vários dias.
Bruce soltou uma gargalhada.
—Eu acredito que demorará algo mais. Têm duas semanas. Aproveite o tempo.
Erik sorriu.
—Não penso perder nem um minuto.
Esta era uma missão em que se asseguraria por completo de que tudo fosse como a seda.
Tratava-se de uma manhã serena e ensolarada de verão. O dia perfeito para umas bodas. Ellie observava sua imagem no espelho enquanto a ajudante de câmara finalizava com seu penteado. Sorriu, se não feliz, ao menos contente de como se desenvolveu sua vida durante os últimos dois meses. Tinha tomado a decisão correta e seguia com sua vida. Inclusive tinha deixado já de olhar pela janela.
Quando a faxineira dava os últimos retoques a seu cabelo, um intrincado acerto de cachos fixados com uma diadema de joias, e arrumava o fino vestido de damasco verde esmeralda que levaria nas bodas, o sol entrava com toda sua força pela janela. Por trás passou uma escura sombra que a fez olhar em sua direção. Ao não ver nada, imaginou que seria uma nuvem.
—Posso lhe ajudar em algo mais, milady? —perguntou a faxineira.
Ellie negou com a cabeça enquanto apreciava o trabalho da donzela. Sorriu com melancolia. Inclusive poderia passar por uma mulher bela.
—Não. Por que não olha se necessita algo lady Mathilda?
A faxineira fez uma reverência e saiu da habitação.
Mal acabava de fechar a porta quando Ellie notou que alguém a agarrava por trás. Uma poderosa mão tampou sua boca antes que pudesse gritar.
—Chist! —sussurrou junto a seu ouvido, apertando-a forte contra seu peito — Não vou te fazer mal.
A Ellie o coração deu um tombo ao reconhecer a voz, o familiar aroma de seu corpo e cada uma das duras linhas dos musculosos braços e o peito que a sustentavam. «Erik.» Mas o que estava fazendo ali? E mais importante como tinha conseguido entrar? Por Deus bendito! Não podia havê-lo feito a não ser através da janela da torre, ao menos a quinze metros do escarpado e mais de trinta sobre a água que havia abaixo. «Não vou te fazer mal.» Isso já o tinha ouvido antes.
Tentou liberar-se lhe dando uma cotovelada no estômago, mas surtiu pouco efeito. Aquele corpo duro como o granito não cedeu nem um centímetro.
—Promete não gritar?
Quando Ellie assentiu, tirou a mão de sua boca. Só para voltar a tapar ao ver que ficaria a gritar. Erik falou de modo teatral.
—Sabia que te mostraria pouco razoável, mas vim preparado para isso. —Agitou um par de fitas de seda fina ante seus olhos — Esperava que na próxima vez que te atasse seria sob circunstâncias diferentes. —Ellie pôs os olhos como pratos pelo ultraje, mas só conseguiu que Erik risse — Sinto, menina, mas temos que falar e não posso me arriscar a que não atenda a razões. Pode uivar tudo o que queira uma vez que estejamos fora daqui.
Atender a razões? Quando estava a ponto de a sequestrar pela segunda vez? Além disso ela não uivava.
Com um destro movimento, Erik tomou a fita de seda e atou suas mãos rapidamente. Desembrulhou a manta que levava aos ombros, extraiu um saco de esteira de seu cinto e lhe fez uma careta de desculpa.
—Dado que não podemos sair do mesmo modo que entrei, temo que isto será necessário.
Quando Ellie se precaveu do que pensava fazer, tentou retroceder, mas ele a puxou pelos pulsos e lhe pôs o saco na cabeça. Ellie se retorcia e chutava como um animal furioso, mas ele a jogou ao ombro como se fosse um saco de batatas e cobriu os ombros com a manta para ocultar suas pernas. Com o que lhe havia custado arrumar o cabelo e os vestidos… O pior de tudo era que… Aquele comportamento de bruto a enfurecia, mas não podia resistir a perguntar-se por que o fazia. Só uma resposta tinha sentido, mas não pensava cair de novo na armadilha de acreditar que lhe importava.
Ellie esperneava pelos corredores e escadas de caracol da torre maior de Dunluce. Com toda a emoção e agitação das bodas, parecia que ninguém se precavia daquele gigante que levava um saco dando chutes e retorcendo-se sobre as costas.
Apesar das circunstâncias, Ellie opôs toda a resistência que pôde e chegou a alcançá-lo com um par de chutes, até que lhe pôs a mão no traseiro. Aquelas suaves carícias a excitaram tanto que fizeram que seu corpo ficasse lívido e flácido. A seguinte vez que se retorceu, a sensação foi completamente diferente, e o muito vadio, maldito fanfarrão risonho, sabia perfeitamente.
Ellie sentiu o frio da brisa ao sair da torre. Minutos depois o terreno era já mais escarpado, e soube que tinham cruzado a ponte e começado a descida para a cova. Não se revolveu mais por medo que os dois caíssem pelo escarpado. Mas ele, com o passo tão firme como sempre, desembrulhava-se naquele terreno como se de um gato montês se tratasse. De repente o ar se fez mais úmido e estagnado, e soube que deviam estar na cova da Sereia. O lugar onde tudo tinha começado. Poucos minutos depois ouviu que Erik chapinhava sobre a água e sentiu que a subiam em um navio. Outro homem a agarrou e a fez sentar-se em um banco de madeira.
—Desta vez estarei atento aos dentes e aos cotovelos, moça.
Domnall. Teria que ter imaginado que ele estaria comprometido também naquilo. Assim lhe agradecia que o tivesse ajudado a escapar. Isso mesmo tentava lhe dizer. Mas ele, sem dúvida entendendo o justo desses balbucios amordaçados, não fez mais que irromper em risada.
Pouco depois o navio foi pegando velocidade e lhe tiraram o saco da cabeça. Entreabriu os olhos ante o sol para encontrar Erik ali, olhando-a com cara inocente. O outro homem, inteligentemente, tinha-lhes dado espaço, tanto quanto podia naquele pequeno birlinn. Erik se sobressaltou ao reconhecer o envenenado olhar de Ellie.
—Talvez deveria esperar até que se acalme para desatá-la —disse a Domnall, que estava a uns metros dele.
Este se encolheu de ombros.
—Temo que de qualquer forma vai ser muito complicado, moço.
Erik decidiu assumir o risco; começou a lhe desatar as fitas de seda dos pulsos e da boca. Uma vez liberada, Ellie se voltou para ele com a intenção de dar rédea solta a sua fúria, mas uma olhada ao castelo que se erguia a suas costas fez que se detivesse em seco. Lhe encolheu o coração ao ver o enorme escarpado. Erik tinha que estar louco para subir pela torre como se fosse nada. Poderia ter se matado.
Olhou-o com atenção pela primeira vez, e seu estúpido coração deu um salto. Estava quase completamente barbeado, mas tinha deixado que uma fina linha de barba lhe percorresse o queixo. Era a coisa mais estranha que tinha visto, mas aquela barba de três dias ficava bem. Também tinha cortado seus cabelos, embora ainda os tinha tão compridos que caíam sobre seus penetrantes olhos azuis. Uns penetrantes olhos azuis que a olhavam com tanta ternura que fez que Ellie estremecesse de cima abaixo. Ele vestia sem mais amparo que uma cota de couro negra, possivelmente devido a sua néscia escalada. Lhe via tão insuportavelmente belo com esses dentes reluzindo ante sua pele curtida pelo sol que quase doía olhá-lo.
Ao fim tirou forças para lhe falar.
—Em nome de Deus, o que crê que está fazendo? Me leve para casa imediatamente.
—Quero te pedir desculpas.
Desculpas? Depois de lhe ter partido o coração e esmagar-lhe com o pé para destroçá-lo por completo?
Olhou-o com os olhos entreabertos.
—Não te parece um pouco tarde para isso?
Erik fez uma careta de dor enquanto reparava no aspecto lamentável que ela mostrava. Essa expressão de arrependimento tão jovial recordou a Ellie a de seu irmão Edmond. Mas não se tratava de que tivesse quebrado um vaso ou atirado uma taça de cristal bom. O que tinha quebrado era algo muito mais prezado que tudo isso.
—Faz umas horas me inteirei de suas bodas. Cheguei aqui assim que pude. —Arqueou as sobrancelhas com aborrecimento — Como pôde fazer isso, moça? Como pôde aceitar te casar com ele? Será melhor que te explique, porque agora mesmo não estou seguro de que lhe possa perdoar isso.
Perdoar a ela! Mas acaso tinha perdido o julgamento? Tinha sido ele que a tinha rechaçado.
—Eu não… —começou a dizer, mas se deteve e o olhou com suspicácia. Não tinha por que lhe dar explicações. Ele já tinha tomado sua decisão. Que pensasse o que quisesse. Ellie arqueou uma sobrancelha e elevou o queixo nesse gesto de arrogância que sabia que lhe chatearia — E por que não ia aceitar?
Erik franziu a boca e ela soube que ele estava fazendo grandes esforços por conter a calma.
—Porque me ama.
Ellie notou como as bochechas começavam a arder à medida que se enfurecia ante aquela arrogância.
—Supõe-se então que devo penar por ti durante o resto de minha vida? Duvido-o muito. —Ellie fez um gesto com as mãos abrangendo suas roupas e maquiagem — Como pode ver, decidi seguir com minha vida. Aceito suas desculpas. Agora me devolva a casa. Tenho umas bodas a que assistir.
Erik ficou circunspeto. Ao que parecia, aquilo não ia conforme o planejado.
—Temo que não posso fazer isso. Não posso permitir que te case com De Monthermer. Teria que matá-lo e não acredito que nem seu pai nem o rei Eduardo me perdoassem isso.
A Ellie o coração dava saltos no peito; não sabia se era devido à raiva ou ao medo do que Erik pudesse acrescentar.
—É obvio que não o matará. Minhas bodas não é de sua incumbência.
—Mas eu te amo.
O coração de Ellie se deteve e logo prorrompeu em uma aceleração inquietante. Tinha sonhado durante tanto tempo com essas simples palavras que agora não se atrevia às acreditar. Tinha-lhe feito muito mal.
—E o que se supõe que devo fazer, cair de joelhos agradecida? Já é muito tarde. Dei-te uma oportunidade para que me demonstrasse seu amor e a rechaçou.
A brisa acariciou os cabelos dela fazendo que caíssem sobre seu rosto algumas das mechas tão cuidadosamente arrumadas. Erik tomou entre seus dedos uma delas com carinho e o colocou atrás de sua orelha, olhando-a com tanta ternura que ela sentiu um estúpido formigamento no peito.
—Sinto muito, amor. Naquele momento pensava que fazia o correto. Queria te pedir que ficasse, mas como podia fazê-lo quando estávamos a um só passo da derrota? Tentava te proteger.
Ellie o olhou com incredulidade.
—Me rompendo o coração? Sabe o que foram estes meses para mim? —Sua voz se fez mais aguda até alcançar cotas de histerismo. Não era dada à violência mas sentia necessidade dela — E agora que consigo retomar minha vida, vem para me dizer: «Sinto muito. Foi tudo um engano». Que apesar que tudo indicasse o contrário, em realidade me amava e só me rompeu o coração para me manter a salvo em minha própria miséria. E agora que parece que as coisas ficam bem, dá-te conta que te equivocou e decide me raptar no dia de minhas bodas para te desculpar. É isso o que tenta me dizer?
Erik estremeceu e olhou Domnall, que se encolheu de ombros sem poder evitá-lo.
—Parece que se ajusta bastante à verdade, capitão.
Erik acariciou com uma mão seus cabelos açoitados pelo vento.
—Dito assim não soa tão romântico como eu tinha planejado. —Ellie soltou um bufido de exasperação através do nariz. Ele a olhou fixamente — Não podia correr o risco de que não me escutasse.
—Assim decidiu não me dar a possibilidade de escolher.
Erik riu com vontade.
—Mas claro que pode escolher. Simplesmente pensei que era melhor me assegurar de que o entendia.
Ela o olhou aos olhos sem pestanejar.
—E o que acontecerá se já não o quero?
Os olhos de Erik se estremeceram como se tivesse recebido um golpe. Essa dolorosa incerteza que se desenhava nesse rosto petulante e muito belo quase faziam que valessem a pena os meses de tortura passados. Quase.
Ajoelhou-se junto a ela e tomou uma mão para beijá-la.
—Por favor, amor, me dê uma oportunidade para poder te ressarcir.
Ellie sentiu que a emoção inflamava sua garganta e fazia que sua voz se quebrasse.
—Por que deveria te acreditar?
—Porque sabe no mais profundo de seu coração que o que digo é certo. Era eu quem estava tão cego que não podia vê-lo. Mas juro que jamais te darei razão para que possa duvidar de mim de novo.
Soava tão sincero e parecia tão arrependido que quase lhe abrandou o coração, embora tão só um pouco.
—Vamos, moça — interpôs Domnall — Mostre um pouco de compaixão por nós e perdoe ao moço. Esteve insuportável desde que partiu.
Ellie franziu o cenho ante o homem maior.
—Supunha-se que não estava escutando.
—E perder isto? —Domnall riu a gargalhadas — Moça, levo vinte anos esperando para vê-lo render-se aos pés de uma mulher. Tenho intenção de desfrutar de cada momento.
—Me render? —disse Erik com horror — De que demônios está falando? Não estou me rendendo.
Ellie elevou levemente uma sobrancelha com delicadeza desafiando sua descrição da situação.
Ele ficou circunspeto e fulminou Domnall com o olhar.
—Supõe-se que estava do meu lado.
—E estou, menino. Estou — disse rindo.
Erik decidiu ignorar sua audiência e se voltou para ela.
—Poderá me perdoar?
Ellie o olhou com dureza. O certo era que estava a ponto de fazê-lo, mas desejava que sofresse o quanto pudesse. Depois de tudo, umas poucas horas não era nada em comparação com quatro meses. Elevou o queixo e lhe ofereceu o melhor de seus olhares de babá.
—Não decidi ainda. Talvez deveria me levar para casa e deixar que pense nisso durante um tempo.
Erik suspirou e negou com a cabeça com arrependimento.
—Sinto que tenha que acontecer assim. Já sabia que não se mostraria razoável — disse olhando Domnall.
—Isso disse, menino. Isso disse.
Ellie olhou alternamente a um e a outro, perguntando-se que argúcia teria tramado agora. Erik tinha esse diabólico brilho no olhar que prometia problemas.
—Que intenções têm?
Erik se aproximou dela roçando sua orelha com a boca. Ellie tremeu do calor que a estremeceu costas abaixo.
—Tenho intenção de te levar para casa e te fazer entender. Uma e outra vez, até que me acredite.
Ellie tragou saliva ao compreender o que queria dizer. A sensual promessa de sua voz fez que seu abdômen se alagasse de um calor que fazia cócegas.
—Tem intenção de me violar?
—Uma e outra vez.
—Isso já o ouvi — Tentou reprimir o sorriso com todas suas forças. Uma vez viking, sempre viking. Mas teria intenção de levá-la para casa? — Não acredito que meu pai aprove seus métodos.
Erik piscou-lhe um olho, consciente de que a tinha em suas mãos.
—Felizmente para mim, estará muito longe.
Ellie jazia deitada sobre seu peito, com seu suave e nu corpo sobre o seu, em um enredo de membros e lençóis. Imerso em uma felicidade que lhe devolvia a humildade, Erik não queria nem pensar no perto que tinha estado de perdê-la para sempre. Brincava com uma sedosa mecha de cabelo escuro entre os dedos enquanto pensava que aquilo era o mais próximo ao céu que podia chegar um homem em vida.
—Assim estava certo — disse.
Tinha tornado a levá-la a ilha de Spoon, a aquela imensa casa que tinha pertencido a seu pai. O rei lhe havia devolvido suas terras tal e como tinha prometido. Provavelmente Juan de Lorn estivesse em desacordo com isso, mas em seguida se encarregariam dele.
—Embora tenha muitas outras, cheguei a pensar nestas terras como meu lar.
Ellie o olhou com um sorriso, e o peito de Erik se encheu. Como homem favorecido pelos ventos durante toda a vida, jamais até esse momento tinha compreendido quão afortunado era.
—Por mim? —perguntou ela.
—Sim — disse beijando-a no nariz — Quando acabar a guerra, construir-te-ei o castelo mais bonito que tenha visto.
Ela voltou a apoiar a cabeça em seu peito e apertou dele com força.
—Já tenho aqui tudo o que quero. — Fez uma pausa — Quanto tempo podemos ficar?
—Uma semana. Talvez algo mais. —Queria ficar com ela tanto como pudesse. Uma vez que sua mãe e suas irmãs pusessem a mão em cima de Ellie, já não poderia estar com ela tranquilo — Te levarei a Islay antes de me reunir com o rei. Ali estará a salvo junto a minha mãe e minhas irmãs.
Ellie empalideceu, e ele estremeceu ao pensar que talvez ela tinha mudado de ideia.
—Já está arrependida, meu amor? Já sei que sentirá saudades de sua família. Pedi que abandone muitas coisas.
—Pelo que recordo não pediu nada absolutamente — repôs ela olhando-o de relance.
Erik sorriu e se apertou contra ela um pouco mais.
—Não podia arriscar a que me rechaçasse. Estou acostumado a conseguir o que quero.
Ellie elevou a vista ao céu e ele arqueou as sobrancelhas.
—Passar tempo junto a minha mãe e minhas irmãs será bom para ti.
—A que se refere? —perguntou enrugando o nariz
—A que lhe porão a par de quão irresistível sou.
Lhe deu um empurrãozinho no estômago. Erik montou sobre ela entre risadas e a beijou até que a paixão acesa entre ambos voltou a consumi-los. Fez-lhe amor lentamente uma vez mais, aguentando sua mão contra seu próprio peito e olhando-a aos olhos à medida que entrava e saía dela com largas e lânguidas investidas. Observou como o êxtase transformava os traços dela, enchendo-os de uma luz celestial, e entrou em Ellie uma última vez, sustentando-a em seus braços ao tempo que o amor que sentia se derramava por todo seu corpo em estrondosas e profundas ondas.
Passou algum tempo até que pôde pronunciar palavra. Ellie voltou para sua posição deitada sobre seu peito e Erik advertiu uma leve circunspeção em seu semblante. De novo a inquietação carcomia seu interior.
—O que tem, amor? O que se preocupa?
—Gostarão? —perguntou.
Erik sorriu com mais alivio de que queria demonstrar.
—A minha mãe e a minhas irmãs? — disse ao lhe dar outro beijo no nariz — Lhe amarão tanto como eu. Embora…
Ellie abriu os olhos de par em par.
—O que ocorre?
Erik fez como se algo lhe preocupava.
—Minha mãe é mais tradicional. Não aceitará que siga me violando dessa maneira, e como eu tenho toda a intenção de te deixar fazê-lo, suponho que deveremos nos casar.
Ellie voltou a golpeá-lo com o punho.
—Desgraçado! Por um momento me assustou. — Olhou-o atentamente — Suponho que poderia me convencer para que me casasse contigo.
Erik sorriu e passou a mão pela grácil curva de seu traseiro, pegando-se a ela de maneira mais íntima.
—Convencer me dá bem.
—É que não pode pensar em outra coisa? —perguntou Ellie enquanto negava com a cabeça.
Erik continuou rindo sem mais, ao qual Ellie respondeu elevando a vista ao teto de novo.
—Referia-me a que teria que pôr certas condições.
A Erik apagou o sorriso do rosto.
—Que tipo de condições?
—A primeira: nem pensar em outras mulheres. — E antes que pudesse responder, acrescentou —: Nada de seduzir, tocar, beijar nem esses tapinhas que dá no traseiro.
Erik levou a mão ao coração fingindo estar apavorado.
—Nem sequer os tapinhas no traseiro?
Ellie franziu a boca.
—Temo que devo insistir sobre este ponto.
Seus olhos se encontraram e, apesar de que se tratava de um jogo, Erik pôde apreciar a vulnerabilidade que escondiam suas palavras. Deixou todo rastro de provocação a um lado, pegou-a pelo queixo e a olhou diretamente aos olhos.
—Não estive com ninguém desde que te conheci. — Não pôde culpá-la pela expressão de ceticismo que cruzou seu semblante. Sorriu com amargura — Acredite, para mim resulta tão surpreendente como para qualquer um. Mas depois de quatro meses, nove dias e oito horas — acrescentou após olhar o ângulo do sol através da janela —, Queira ou não acreditar, tenho que me convencer. Te amo, Ellie. É tudo o que quero e quanto necessito em minha vida.
O sorriso com que se iluminaram os traços de Ellie lhe chegou ao mais profundo do coração.
—Sério?
—Sério — disse lhe acariciando a bochecha — Sou leal, Ellie. Uma vez outorgada minha lealdade, tê-la-á até a morte. — Fez uma pausa — Talvez deveria ser eu quem pusesse as condições, pois não era eu quem estava a ponto de casar-me com outra.
Ellie fez uma careta, e lhe surpreendeu o muito que seguia lhe afetando aquilo. Não tinha nenhum direito a estar ciumento, mas estava.
—Ah, sim. A respeito disso — disse Ellie mordendo o lábio —, acredito que esqueci de contar um detalhezinho de suma importância a respeito das bodas de hoje.
Erik franziu o cenho.
—Que tipo de detalhe?
Ela retorceu a boca como se tivesse que reprimir o sorriso.
—A identidade da noiva.
Se o que pretendia era deixá-lo de pedra, tinha-o conseguido.
—Não compreendo. O rei disse que sua cunhada ia casar se com De Monthermer.
—Assim é. Minha irmã Matty deve estar casando-se com De Monthermer neste preciso momento.
—Sua irmã? —repetiu sem poder acreditar.
Ellie assentiu e lhe explicou que, embora já pressentia que ocorria algo estranho entre os dois, não tinha podido identificá-lo até que, depois de sua volta a Escócia, obrigou sua irmã que confessasse qual era a causa de toda sua desgraça. Seu pai tinha bento a mudança de nomes no contrato de casados. Erik entreabriu os olhos. Que víbora má.
—E não pensava me pôr à par disto?
—Pensava que merecia um pequeno castigo por tudo o que me tem feito passar — disse imitando seu incorrigível sorriso.
Erik franziu a boca. Talvez fosse certo.
Ellie mordeu o lábio, ao que parecia, considerando algo no que antes não tinha percebido.
—Já sei que diz ter deixado uma nota, mas espero que meu desaparecimento não os leve a suspender as bodas.
—Não acredito que o faça. Esta Matty da que fala não será por acaso uma loira de cabelo comprido encaracolado com os olhos azuis?
Ellie assentiu.
—Conhece-a?
—Conhecemo-nos esta manhã. —Agora tocava a ela ficar de pedra — Não sabia qual era sua janela — disse encolhendo de ombros como um menino — Me equivoquei. Ao princípio pensava que gritaria, mas depois sorriu e me disse que tinha demorado muito para chegar. Perguntou-me se tinha intenção de me casar contigo, e quando lhe respondi que assim era me pôs na direção correta.
—Muito próprio de Matty — disse Ellie entre risadas.
Esfregou a bochecha contra seu peito com mais força. Erik notou como percorria a marca de seu braço com os dedos e não lhe surpreendeu que ela dissesse: —Vê-se diferente. Este desenho que te rodeia o braço não estava aqui antes. Parece uma… — Elevou a vista para olhá-lo e sorriu — É uma teia de aranha! É pela história que me contou?
—É muito observadora — disse lhe dando um beijo no nariz.
Ellie voltou a acariciar o desenho.
—E isso parece um birlinn que caiu na rede. — Sim, essa era a ideia — Teria que ter sabido antes o que significavam as marcas: o leão rampante é o símbolo do reino da Escócia. Mas significa algo mais, não é certo? Essa é a razão pela que mantém sua identidade em segredo. Você e aquele homem do acampamento são parte do bando de guerreiros fantasmas do que tanto ouvi falar.
—Ellie — disse negando com a cabeça. Ao que parecia, não seria fácil guardar segredos com ela perto — Põe as coisas muito difíceis para que um homem cumpra suas promessas.
Ellie sorriu.
—Não me disse nada. Fui eu que o adivinhei. — ficou olhando-o suspicazmente — Mas se vou me casar contigo, acredito que há algo que mereço saber.
Erik arqueou uma sobrancelha.
—E o que é?
—Meu novo nome.
Erik riu e a beijou.
—Então isso significa que se casará comigo?
—Ainda o estou pensando.
—Mmm… já mencionei que possuo mais de uma dúzia de ilhas?
Os olhos de Ellie brilharam de emoção.
—De verdade?
Ele assentiu.
—Talvez possa me convencer para que as mostre. — Sua expressão se voltou séria — Se case comigo, Ellie. Levar-te-ei aonde queira. Mostrar-te-ei o mundo. Simplesmente diga que te casará comigo.
—Sim — disse ela em voz baixa com os olhos brilhantes pelas lágrimas — Me casarei contigo.
Erik a abraçou com força e se viu tentado de levá-la à igreja imediatamente por medo de que mudasse de opinião. Mas sabia que sua mãe e suas irmãs jamais o perdoariam. Puxou-a pelo queixo e a beijou com ternura.
—Seu novo nome é MacSorley.
Ellie deixou escapar uma gargalhada e seus olhos resplandeceram pelo divertido que lhe parecia.
—O filho do viajante do verão. Teria que tê-lo adivinhado. Em realidade é um autêntico pirata.
Erik riu, tomou em braços e lhe mostrou tudo quão desumano podia ser um pirata. Uma e outra vez.
Epílogo
7 de julho de 1307
Quando chegou o mensageiro, Bruce, o rei da Escócia, estava sentado junto aos dez membros da Guarda dos Highlanders na sala de armas temporária do grande salão do castelo de Carrick. Agora que Falcão havia voltado, só faltava um de seus guerreiros de elite. Não faltava, apressou-se a corrigir-se, mas sim estava plantado como uma semente no mais profundo do coração do inimigo, preparado para jogar raízes quando chegasse o momento. Bruce fez gestos ao homem para que se aproximasse.
—É para você, senhor — disse com uma reverência, ao tempo que entregava uma parte de pergaminho — Vem de Burghon-Sands.
Bruce ficou circunspeto, perguntando-se se seriam aquelas as notícias que estava esperando. Eduardo tinha reunido seus homens em Carlisle fazia poucos dias e conforme diziam se levantou de novo de seu leito de morte para liderar a carga sobre Bruce.
—O que ocorre? — perguntou MacLeod — Parece que viu um fantasma.
Bruce o olhou sem poder dar crédito ao que tinha lido.
—Talvez o tenha visto. Mas é um fantasma que me alegro de ver. — Olhou ao redor da sala sentindo que seu assombro era substituído pouco a pouco por uma crescente alegria — Morreu — disse rindo ao precaver-se ao fim de que seu velho açoite havia falecido — Que ordenem tanger os sinos de todas as igrejas de um e outro lado da costa. O rei Eduardo se foi ao inferno!
Os homens prorromperam em vivas triunfais. Não podiam sentir tristeza pela morte de um homem que tão pouco teve piedade deles em vida. O autodenominado Martelo dos Escoceses se foi ao inferno ao que pertencia, levando com ele sua mortífera bandeira do dragão.
Bruce sabia que, com a morte de Eduardo Plantagenet, as ondas voltavam a romper sobre a costa da Escócia. Sobre os inimigos internos. Em lugar de Eduardo, Bruce teria que enfrentar agora a seus próprios patrícios no campo de batalha: ao sul, os sanguinários MacDowell que tinham assassinado seus irmãos, e ao norte seus velhos inimigos, os Comyn e os MacDougall. Sorriu. A semente que tinha plantado estava a ponto de jogar raízes.
Fim
Nota da autora
Como mencionado na nota do autor de O guerreiro, em um desses grandiosos e memoráveis momentos da investigação para minha ideia de «Grupo de Operações Especiais com saias escocesas», topei com uma referência enviesada de um bando de guerreiros das ilhas designados por Angus Og Macdonald para proteger Bruce a sua volta a Escócia, depois da volta do refúgio das ilhas. O personagem de Erik MacSorley está apoiado em Domnall (Donald) das Ilhas, um dos filhos de Alastair Mor MacDonald e primo de Angus Og, de quem se dizia era o líder do grupo.
O pai de Erik, Alastair Mor, é um dos aclamados progenitores do clã MacAlister, embora haja diferentes opiniões com respeito a isto. Foi assassinado em 1299, algo mais tarde que o que eu sugeri, em uma batalha com os MacDougall.
Como naqueles tempos não se usavam sempre os nomes dos clãs, decidi pelo mais genérico MacSorley, que significa filhos de Somerled, para distinguir Erik de seus primos MacDonald. MacSorley se usa para referir-se a qualquer descendente de Somerled: os MacDonald, MacDougall, MacRuairi, etc.
Não há memória escrita a respeito da mulher de Erik, mas as alianças com a Irlanda e a ilha de Man estavam à ordem do dia entre os chefes de clã das ilhas Ocidentais. Uma das coisas que mais difícil me resultou assimilar foi a cercania entre a Irlanda e Escócia e a importância das vias marítimas. Em sua parte mais larga, mal são vinte os quilômetros que separam o promontório de Kintyre na Escócia da costa de Antrim na Irlanda. Em um dia claro se pode ver uma costa da outra. Navegar até a Irlanda de navio da costa escocesa tinha que ser mais fácil e rápido que cobrir a mesma distância por terreno firme. Um olhar ao mapa deixa claro a razão pela que Kintyre e a costa escocesa de Ayrshire, as ilhas Ocidentais, a ilha de Man e Antrim na Irlanda estão tão conectados, tanto política como culturalmente.
Ao tentar encontrar uma esposa merecedora de Erik, não me custou muito me concentrar nos De Burgh, especialmente uma vez que tive encontrado a troca de prometidos entre as duas irmãs De Burgh (são coisas que ninguém pode inventar) que tão bem encaixava em minha história. Maud de Burgh estava prometida em matrimônio em um princípio para sir John de Birmingham, primeiro conde de Louth, mas este acabou casado com sua irmã Aveline. Depois Maud se casaria com o enteado de Ralph de Monthermer, Gilbert de Clare, oitavo conde de Hertford. Ellie e Matty são minhas versões fictícias destas duas irmãs.
O contrato de matrimônio com o Ralph de Monthermer (também conhecido como Raúl) é igualmente fictício. Mas sua história não é. Casou-se clandestinamente com a filha de Eduardo, Juana de Acre, e sofreu uma estadia na torre por transgressão contra seu ultrajado rei. Ao final lhe perdoou e lhe foram concedidos os títulos de conde de Gloucester e de Hertford em vida de Juana, e também de Atholl temporalmente, depois da execução do anterior portador do título. Mais tarde, nomeá-lo-iam primeiro barão Monthermer. Lutava na Escócia por aqueles tempos e se diz dele que foi açoitado até o castelo de Ayr por Bruce dias depois da batalha de Loudon Hill, tal e como se menciona no livro. Apesar da lealdade que Ralph professava a Eduardo, contam que foi ele quem avisou Bruce em 1306 do perigo que corria ante o rei, o qual motivou a revolta.
Além do destino corrido pelas mulheres nas jaulas, algo que por desgraça é certo, o desafortunado conde de Atholl, que foi executado depois da batalha de Methven, provê-nos com informação valiosa a respeito da atitude sem misericórdia do rei Eduardo para os rebeldes do momento. O primeiro conde executado em mais de duzentos anos tentou apelar à misericórdia de Eduardo em honra a seu parentesco. Em resposta, o rei mandou que o pendurassem mais alto que aos outros para que ficasse claro seu status.
Talvez uma das histórias mais conhecidas de Bruce seja a da aranha que dá começo a O Falcão. Ao menos há três covas na Escócia que se proclamam como lugar deste famoso sucesso, mas a ilha de Rathlin na Irlanda parece estar entre as favoritas. A história da aranha é desenhada como a origem do dito: «o que segue a consegue». Por isso, apesar de que esteja muito estendida, muitos estudiosos se perguntam se a história teve alguma vez lugar e a atribuem a sir Walter Scott, de que parecem provir umas quantas lendas desse tipo.
Feito ou ficção, o delicado da situação de Bruce não pode ser exagerado em modo algum. Sua recuperação da coroa tem que ser à força uma das melhores «remontadas» de todos os tempos, aproximando-se inclusive a quão remontada os Rede Sox fizeram ante os Yankees na temporada 2004 da liga de futebol americano. (Sinto muito, não pude resistir.) Sir Herbert Maxwell resume a posição de Bruce a princípios de 1307 desta forma: «Não tinha nem um acre de terras que pudesse chamar próprio; três de seus quatro irmãos e a maioria dos amigos nos que podia confiar tinham caído na forca; o resto das pessoas que o apoiava, quase todos, tinham cessado em seus serviços ao acreditá-los inúteis e voltado para as ordens do rei Eduardo; sua esposa, sua filha e suas irmãs estavam nas prisões inglesas (Evan MacLeod Barron, The Scottish war of Independence, Barnes and Nobre Books, Nova Iorque, 1914, P. 261).
O Banho das Donzelas (ou das Virgens) é minha versão do Banho do Urso Polar, quer dizer nadar sob o gelo. Quando era pequena, minha irmã e eu estávamos acostumadas a fazer algo parecido no lago Tahoe. Corríamos pela neve até saltar em uma piscina gelada para logo sair correndo para a jacuzzi. É muito mais divertido do que parece. As celebrações pagãs eram incorporadas com frequência nos ritos e festas cristãs. Há uma escola de pensamento que toma o dia da Candelaria pela cristianização da celebração pagã gaélica da deusa Brighid.
Aymer de Valence foi renomado conde de Pembroke no ano 1307. Sua pouco cavalheiresca conduta na desastrosa batalha de Methven foi talvez a causa de que Bruce abandonasse o código de cavalaria em busca de um estilo de combate pirata do qual tirou grande partido. Pudesse ser que Valence tomasse sua vingança pessoal. Sua tia estava casada com lorde Badenoch, um membro dos Red Comyn, ao que Bruce matou em Greyfriars, batalha que tem lugar no final do O guerreiro.
Sir Thomas Randolph, que, junto a sir James Douglas, o Negro, converter-se-ia em um dos companheiros mais leais e famosos de Bruce, foi capturado pelos ingleses pouco depois de Methven e passou ao outro bando até o ano 1309. É célebre aquela frase em que acusa seu tio de lutar «como um bandido, em lugar de liberar uma batalha equilibrada como faria um cavalheiro» (Ronald MacNair Scott, Robert the Bruce, King of Scots, Barnes and Nobre Books, Nova Iorque, 1982, P. 111). Não obstante, parece ser que Ralph ao final volta com seu tio para converter-se em um de seus «mais brilhantes» cabeças.
O número de homens com o que contava Bruce para lançar seu ataque na Escócia é incerto. Entre trezentos e quatrocentos em Carrick e perto de uns setecentos em Galloway parece ajustar-se à realidade. A frota maior, composta sobre tudo por irlandeses e homens das ilhas, liderada pelos malfadados irmãos de Bruce, fracassou estrepitosamente e caiu nas mãos dos MacDowell, salvando-se só dois dos navios. Não obstante, não há evidência de que o ataque estivesse formado por duas pontas como eu sugiro (embora teria tido sentido), e o desastre de Galloway foi certamente anterior à tentativa de Bruce em Carrick. Pensa-se que ambas as divisões partiram desde Rathlin, mas não puderam estar ali durante muito tempo. Tentar ocultar um milhar de homens em uma ilha tão pequena teria sido muito complicado tendo os ingleses por toda parte.
Onde se refugiou Bruce durante os quatro ou cinco meses entre sua fuga de Dunaverty e o ataque de Carrick é um dos grandes mistérios da história. Alguns acreditam que na Noruega, onde reinava sua irmã, mas a maioria dos historiadores pensa que se escondeu nas ilhas Ocidentais e Irlanda, com ajuda de Angus Og MacDonald e Cristina MacRuairi das Ilhas.
Igualmente a rota desde Rathlin até Arran para lançar o ataque de Carrick não é mais que uma conjectura. C.W.S. Barrow, historiador especialista em Bruce, afirma em seu influente Robert Bruce e a comunidade do Reino da Escócia que foi desde Rathlin ao promontório de Kintyre subindo a costa e que depois voltou para Arran. Cruzar Tarbert à maneira de Magnus o Descalço é de minha própria invenção, mas parece factível. É de supor que a frota inglesa, que tinha sido chamada a filas em uma carta do rei Eduardo ao conde de Ulster em finais de janeiro, estaria pondo de pernas para acima o fiorde de Clyde. Atravessar Tarbert cobrou inclusive mais sentido para mim quando descobri que se dizia que Bruce tinha acampado no castelo de Lochranza, na ponta norte da ilha de Arran. Teriam que ter acontecido mais à frente do castelo de Tarbert, ocupado pelos ingleses.
Militarmente, a escaramuça de Glen Trool, em que foi repelida a tentativa de Aymer de Valence de tender uma emboscada a Bruce e seus homens, não foi uma vitória tão decisiva como a de Loudon Hill. Mas se diz que uma mulher foi enviada ali para espiar os escoceses a noite anterior à batalha. Entretanto, em lugar de espiar parece ser que a mulher perdeu os nervos e falou com Bruce da presença dos ingleses, alertando-o, então, do perigo e lhes salvando a pele (veja-se Scott, P. 101). A história provém do poema The Brus, de John Barbour, e bem poderia ser apócrifa, mas me serve de inultrapassável inspiração para introduzir Ellie no acampamento.
A ilha de Spoon, situada a três quilômetros da costa de Kintyre, tem muitos nomes, mas no dia de hoje a conhece como Sanda. O «Ponto de Eduardo» é um marco marcado como o lugar que Eduardo Bruce vigiava a costa enquanto seu irmão escapava de Dunaverty. Entretanto, Spoon não era parte das terras dos MacSorley, mas sim naquela época pertencia ao priorado de Withorn de Galloway.
As fórmulas de cortesia medievais são complicadas, já que não estavam reguladas como hoje em dia. Ao Bruce o chamavam de muitas maneiras diferentes dependendo de quem se dirigisse a ele: para seus poucos servos leais era «meu senhor» ou «rei»; para quão ingleses o tinham despojado de seus domínios (onde lhe chamava «lorde de Annandale» e «conde de Carrick») e o consideravam um rebelde, era simplesmente «sir Bruce»; e para outros, «lorde Bruce». Citando documentos da época, as notas de Barrow fazem referência ao «conde Juan» (P. 224) e ao «conde Malise» (P. 225), formas que não seriam corretas hoje em dia. Não obstante «sir», junto ao nome de batismo, parecia usar-se por falta, assim ante a dúvida sempre usei esta fórmula. Ellie provavelmente teria se referido a Ralph como sir Ralph, mas decidi pelo uso de Ralph por ser mais familiar e menos pomposo.
Como expediente, a data de 7 de julho de 1307 marca o fim de um dos reis ingleses mais famosos e grandes segundo alguns. Eduardo I, o autodenominado Martelo dos Escoceses, morreu durante sua marcha ao norte para pôr fim à «rebelião» escocesa. Seu último desejo, que pusessem seus ossos em uma urna e o levassem a frente de seu exército até que derrotassem aos escoceses, foi ignorado por seu filho e herdeiro Eduardo II.
Notas
[1] O birlinn (bìrlinn escrito em gaélico escocês ) era um tipo de embarcação usado especialmente na Hébridas e West Highlands da Escócia, na Idade Média . The Birlinn is a Norse-Gaelic variant on the Norse longship . O Birlinn é uma variante do gaélico-nórdica no Norse canoa . Variants of the name in English and Lowland Scots include “berlin” and “birling”. Variantes do nome em Inglês e Escocês Várzea incluem “Berlim” e “BIRLING”. It probably derives ultimately from the Norse byrðingr , ie a ship of burden. É muito provável que, em última análise deriva do nórdico byrðingr, ou seja, um navio de carga.
[2] Benbane Head é o ponto mais setentrional do continente Irlanda do Norte . It is located in County Antrim , near to the Giant’s Causeway , which is situated between Causeway Head and Benbane Head. Ele está localizado no condado de Antrim , perto da Giant’s Causeway , que se situa entre Causeway Head e Head Benbane.
[3] Espécie de armadura
[4] Espécie de tunica
[5] Um istmo (do grego ?s?µ??) é uma porção de terra estreita cercada por água em dois lados e que conecta duas grandes extensões de terra.
Monica McCarty
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