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THE RANGER - Parte III
Series & Trilogias Literarias
Capítulo 20
—Retornaram!
Anna correu até a janela de seus aposentos ao perceber a excitação na voz da Mary. Examinou com fruição as figuras com armadura que atravessavam as portas do castelo e quando por fim reconheceu a familiar envergadura de seus ombros exalou profundamente, como se tivesse passado quatro dias contendo a respiração. Havia retornado. Não a tinha abandonado. Dizia a si mesma que era uma loucura pensar que ele fosse capaz de tal coisa. Entretanto, não queria admitir quanto tinha chegado a preocupar-se.
Anna afastou seu trabalho de bordado e saiu correndo do aposento seguindo os passos de sua irmã, que parecia tão emocionada como ela pela volta da partida de reconhecimento. Franziu o cenho. Acaso para sua irmã Mary importava mais o irmão de Arthur do que admitia? Chegaram ao salão justo no momento em que faziam entrar o grupo à câmara de seu pai para dar parte de seu avanço. Fazia um momento que tinham terminado a refeição leve, mas Mary e ela pediram que preparassem algo de comer e beber enquanto aguardavam os homens. Depois de uma espera que lhes pareceu interminável, estes saíram da câmara de seu pai e entraram no salão. O primeiro a fazer foi seu irmão, depois sir Dugald e logo, ao fim, Arthur. Embora estivesse coberto de pó e sujeira, com um rosto maltratado pelo sol, barba de quatro dias e aroma de estrebaria reaquecida, a Anna jamais pareceu mais maravilhoso. Se não fosse pela multidão de homens do clã que se agrupava a seu redor no salão, teria saltado a seus braços.
Afastaram-se um momento enquanto os serventes preparavam as mesas. Desta vez não poderia evitá-la.
—Está bem? —perguntou Anna sem acreditar em seus olhos.
O olhar de Arthur se suavizou ao perceber sua preocupação.
—Sim, moça. Estou bem. Necessito um bom banho, mas, além disso, estou perfeitamente são.
—Alegra-me ouvi-lo — disse mordendo o lábio e olhando-o com vacilação —… Senti tua falta.
Arthur se estremeceu e uma pulsação fez tremer seu queixo.
—Anna…
Ela engoliu em seco e sentiu que de repente lhe quebrava a voz.
—Pensastes em mim?
—Tinha muito em que pensar. —Mas depois, ao ver o rosto que punha, arrependeu-se — Sim, moça. Pensei em você.
Teria ficado contente com isso, a não ser pelo que tanto que custou admiti-lo. As mesas de cavalete estavam já preparadas e os serventes começavam a por pratos com comida. O resto dos homens desfilava para os assentos. E ali foi aonde olhou Arthur do lugar em que estava, junto à câmara de seu pai. Parecia ansioso por reunir-se com eles. Anna não podia enganar-se por mais tempo.
—Não desejas este compromisso. —A verdade ardia. Anna ficou olhando-o fixamente, atormentada pela própria dor de seu peito — É que…? —Mal podia pronunciar as palavras. Tinha comentado que lhe ofereceriam uma esposa como recompensa — É que esperava te casar com outra?
Arthur a olhou com dureza.
—Do que estais falando? Já vos disse que não havia nenhuma outra.
—Então é simplesmente que não me quer.
Parecia que algo o atormentasse.
—Anna… —Arthur pigarreou — Agora não é o momento.
Apesar de que estivessem rodeados de gente, Anna não pôde reprimir toda sua frustração.
—Nunca é o momento. Ou está fora, ou encerrado em alguma reunião ou ocupado praticando. Quando, rogo a Deus que diga, é o momento?
Arthur, visivelmente frustrado, alisou com uma mão seus cabelos encrespados pelo elmo, que lhe caíam em suaves ondas por cima das orelhas. Anna esteve a ponto de acomodar as mechas atrás delas, mas se deteve a tempo.
—Não sei, mas agora mesmo quão único quero é comer algo, tirar toda esta porcaria de cima e dormir algo mais que umas poucas horas.
Devia estar exausto. Por um momento Anna se sentiu culpada, mas não durou muito. Não pensava permitir que seguisse lhe dando voltas.
—Então amanhã. Falaremos amanhã - disse, olhando-o com firmeza — Em particular.
Talvez, mais que atormentado, estivesse assustado. Não pensava que fosse capaz disso, mas ao que parecia estar a sós com a Anna conseguia algo do que não eram capaz dezenas de guerreiros armados. Não sabia se era pra rir ou chorar.
—Não posso. Supõe-se que sairemos de guarda.
—Quando retornarem. —Parecia louco por encontrar outra desculpa, mas Anna o impediu — Já sei que está ocupado preparando a batalha, mas é que não mereço uns minutos de seu tempo?
Arthur lhe sustentou o olhar durante alguns momentos.
—Sim, moça. Claro que o merece.
—Bem. Então vá comer — disse assinalando uma das mesas — Seus irmãos te esperam.
Arthur assentiu levemente e foi reunir se com sua família enquanto Anna dava meia volta e encontrava a sua irmã Mary mais perto do esperado. Observava-a com uma expressão de comiseração no rosto.
—Não passa nada —disse Anna, envergonhada pelo que pudesse ter ouvido — Está cansado. Isso é tudo.
Mary a agarrou sua mão e a apertou.
—Tome cuidado, Annie querida. Há homens que não querem ser amados.
Ficou circunspeta.
—Isso não é certo, Mary. Todo mundo quer ser amado.
Um sorriso de melancolia escureceu a boca perfeita de sua irmã.
—Amas muito, irmãzinha. Mas há gente que não quer esse tipo de cercania. Há gente que prefere que lhes deixem em paz.
Embora Anna não quisesse acreditar nas palavras de sua irmã, perseguiram-na durante todo o dia enquanto esperava a oportunidade para falar com ele.
Arthur saiu a cavalgar pela manhã cedo, retornou a tempo para a refeição do meio-dia e depois participou junto com seus irmãos e o resto dos homens no treinamento vespertino que faziam no pátio. Os exercícios se intensificavam cada vez mais já que se aproximava a batalha. Aproveitavam a luz dos longos dias de verão e não acabavam até as oito da tarde. O jantar era frugal, como também eram as preces vespertinas. Anna se viu tentada de o seguir ao ver que se dirigia para o lago, mas sua mãe a reclamou para que a ajudasse a dirimir uma disputa nas contas do lar, e uma vez que acabou, ele já estava de volta e se encerrou em uma reunião junto aos cavalheiros de alta fila e os guerreiros da meinie de seu pai no que se converteu em um conselho de guerra noturno. Anna o esperou em uma pequena saleta situada no vão da escada, consciente de que Arthur teria que passar por ali a caminho dos barracões. Normalmente somente ia a aquele lugar para ler algum livro, mas estar oculto do olhar por uns cortinados de veludo parecia algo mais particular que lhe esperar no salão, repleto de homens que dormiam. Tinha levado consigo uma vela para ler, mas à medida que caía a noite seus olhos se cansaram demais, de modo que a pôs a um lado.
Devia ser meia-noite quando os homens começaram a sair dos aposentos de seu pai. Arthur foi um dos últimos, mas Anna finalmente viu como entrava pelo corredor junto a seus irmãos. Quando se aproximou de sua posição, ela afastou os cortinados e desceu a escadinha para dirigir-se a ele. Para ouvir o comentário de seu irmão, Arthur a buscou com o olhar com uma expressão mais resolvida que surpreendida e foi a seu encontro, enquanto seus irmãos abriam a porta que conduzia ao barmkin.
—Não deveria ter permanecido acordada - disse.
—Esqueceu que acordamos nos ver hoje? —repôs ela com o cenho franzido.
—Não. —Suspirou — Não esqueci.
Apareceram mais homens no corredor.
—Venha — lhe disse Anna, protegendo-se em uma pequena cova que usavam para armazenar o vinho do senhor do castelo, aonde ninguém lhes incomodaria.
Assim que abriu a porta sucumbiu ao rico e frutífero aroma, que se intensificou ao fechar a estadia. Colocou a vela sobre um dos tonéis e se voltou para olhá-lo. Tratava-se de uma despensa pequena encravada na parede. Um espaço íntimo, muito íntimo. Anna se ruborizou ao conscientizar-se disso. Arthur permanecia ali à luz trêmula das velas como um convidado de pedra, com uma expressão rígida e forçada. Ficou surpresa ao ver que apertava os punhos.
—Isto não é uma boa idéia — disse ele com voz quebrada.
—Por que não?
Arthur a olhou com severidade.
—Não recorda o que aconteceu a última vez que estivemos encerrados em um aposento pequeno?
Anna se ruborizou. Era difícil não recordar à perfeição estando tão perto dele. O calor que desprendia seu corpo a envolvia e sua pele se arrepiava ao recordar as intimidades que tinham compartilhado. Mas não era para isso que o tinha levado ali.
—Só demoraremos uns minutos. Preciso saber… — Ergueu o olhar para examinar seu arrumado e tenso rosto — Quero que me diga se deseja este compromisso ou não.
A franqueza de Anna já não surpreendia a Arthur.
—Anna… — disse tentando lhe distrair — É complicado.
—Isso já disse antes. O que ocultas, Arthur? O que há aí que não quer me contar?
—Há coisas — disse contendo-se e olhando-a com aspereza — Não sou o homem que pensam.
—Sei exatamente o tipo de homem que é.
—Não sabe tudo.
Anna reconheceu o tom de advertência.
—Então me conte isso - Ao ver que não respondia, acrescentou—: Sei o que é o importante. E sei que te quero.
Aquelas palavras pareceram lhe doer. Arthur se aproximou para acariciar a bochecha com uma expressão de tristeza que lhe rompeu o coração.
—Pode ser que pense isso agora, mas logo mudará de opinião.
Seu tom paternalista e essas advertências crípticas a punham fora de si.
—Não o farei — disse Anna com veemência, apertando os punhos para aplacar a vontade que tinha de gritar ou de romper a chorar. Respirou profundamente para acalmar-se e continuou—: É algo muito simples, Arthur: quer se casar comigo, sim ou não?
—O que eu quero não vem ao caso. Estou pensando em você, Anna. Pode ser que agora mesmo não te pareça isso, mas acredite quando lhes digo que o faço por seu próprio bem. Não quero te fazer dano. Tudo pode mudar durante nos próximos dias. A guerra mudará tudo.
Tinha razão. Parecia que todos seus sonhos pendessem de um fio. A guerra estava a ponto de cair sobre eles e tudo o que conheciam mudaria em um abrir e fechar de olhos. A espada de Damocles pendia sobre o poder dos MacDougall nas Highlands. Mas havia algo ao que Anna podia acolher.
—Isso não mudará meus sentimentos por você. São os seus os que estão em julgamento. Não respondestes a minha pergunta — disse depois de uma pausa.
Arthur amaldiçoou e se afastou da porta uns passos, numa tentativa de perambular que não encontrava espaço suficiente. Quase roçava o teto com a cabeça. Parecia um leão à espreita em uma jaula muito pequena. Estava em um estado de rigidez absoluta, irradiando tensão por cada um de seus poros. Ao final deu a volta e a tomou pelo braço com expressão furiosa.
—Sim, maldita seja. Quero me casar contigo.
A escura nuvem que se pousou sobre ela se dissipou. Não era a declaração de amor mais romântica que tivesse ouvido, mas isso bastava. Seu corpo se encheu de calidez, e sorriu.
—Então o resto não importa — disse aproximando-se mais a ele e procurando instintivamente a conexão entre ambos corpos.
Arthur se estremeceu ao notar o contato, mas nessa ocasião Anna não procurou mais razões. Queria-a. Muito. Apesar de que fizesse quanto podia por resistir a isso. A tensão se desprendia de seu corpo reverberando como a pele de um tambor. Seus olhos se pousavam sobre seus lábios com um olhar obscurecido pelo desejo, mas mesmo assim seguia lutando contra isso.
—O que acontecerá não voltará, Anna? Então o que?
Gelou o sangue. Por isso atuava daquele modo? Tentava prepará-la em caso de que morresse no campo de batalha? Não suportava pensar nisso, mas sabia que existia essa possibilidade. Ele podia morrer. Atraiu-o mais para si, aferrando-se aos fortes músculos de seu braço como se jamais pensasse deixá-lo partir. Deus não podia ser tão cruel para afastá-lo dela. Mas e se o fizesse? , pensou com o coração encolhido.
Ela sabia o que queria. Não estava na sua mão controlar o que aconteceria no futuro, mas sim que podia controlar o presente. Talvez sim o tivesse levado a esse lugar com uma segunda intenção.
Arthur era consciente de que aquilo era má idéia, mas tal e como tinha comprovado mais vezes das que queria recordar, era um perfeito tolo no que se referia a Anna MacDougall. O sangue corria cálido por suas veias e uma pátina de suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. O intenso aroma do vinho, o almiscarado cheiro de terra do pequeno aposento e a leve fragrância floral de sua pele o embriagavam de desejo. Estavam muito perto um do outro, e sua necessidade era muito urgente. As imagens do quanto desejava fazer amor com ela davam voltas em sua cabeça deixando-o meio louco. Estavam a sós, maldita seja. Era muito perigoso. Mas se Arthur pensava que a desanimaria lhe falando de um futuro incerto, tinha errado em seus cálculos.
—Não quero pensar na guerra nem no que acontecerá amanhã. Somente quero pensar no presente. Se hoje fosse o último dia que ficássemos juntos, o que é o que queria?
«A você.» Sentiu a pulsação. Queria o que lhe oferecia mais que tudo no mundo.
Eram suas palavras. Sua certeza. O fazia sonhar. Arthur queria acreditar que havia um futuro possível. Queria acreditar, embora fosse por um instante, que Anna podia ser dele. Seu coração bateu como um tambor quando ficou nas pontas dos pés para lhe beijar. Em sua luta por não equilibrar-se sobre ela, Arthur deixou escapar um gemido. Sabia que assim que o fizesse não teria forma de parar. Tinha uma boca cálida e suave, muito doce. Tinha sabor de mel e cheirava como… Deus, cheirava como um jardim recém regado sob o sol estival.
Anna lhe acariciou o queixo com os lábios. Depois, o pescoço. Arthur começou a tremer. Não poderia agüentar aquilo durante muito mais tempo. Via-se incapaz de resistir. Rezava para que a tortura acabasse, mas em vez disso piorou. Anna apertou seus quadris contra ele e se esfregou contra a parte de seu corpo que desejava mais o contato, a parte de seu corpo que estava dura e palpitava, e que era impossível de controlar.
—Aquele dia estivemos tão perto — sussurrou junto ao pescoço de Arthur com um quente fôlego que provocou calafrios em sua pele em chamas— que quero saber como segue. —Uma gota de suor apareceu por sua têmpora. O frio aposento se esquentou em questão de segundos. Anna lhe rodeou o pescoço com seus braços e se grudou a ele. Buscou-o com o olhar — me ensinem Arthur.
Essa petição desavergonhada rompeu o último fio de que pendiam as reservas de Arthur. Soltou um grunhido, empurrou-a contra a porta, prendendo suas mãos por trás da cabeça, e a beijou. Não, devorou-a com seus beijos. Se deu um festim com sua boca fazendo uso dos lábios e a língua, beijando-a como se jamais pudesse saciar-se.
Ela respondeu a seu ardor com mais ardor, engastando sua língua a dele, imitando seus eróticos movimentos. O crepitar na cabeça de Arthur era cada vez mais sonoro. Seu corpo estava cada vez mais tenso. Mas não era suficiente. Tombou-se sobre ela, fez que seus corpos se acoplassem e começou a mover-se, primeiro com delicadeza e depois com mais insistência, à medida que Anna se retorcia e gemia com inocente frustração. Tinha vontade de lhe levantar as saias e afundar-se dentro dela, ver como se desfazia quando ele se aferrava nela mais forte e mais profundo. Uma e outra vez. Reclamando-a para si.
Mas estava tão receptiva, sentia o prazer de uma forma tão pura, que em seu interior cresceu uma onda de ternura que lhe fez afastar-se. Anna ficou piscando com uns olhos incrédulos que nadavam em paixão e a boca meio aberta, com os lábios inchados por seus beijos, mal separados.
—Rogo-lhes isso, não…
—Chist! —disse Arthur sossegando seus protestos com um doce beijo — Não vou parar.
Era muito tarde para isso. Era um homem, não um santo vindo do céu. Tinha muita vontade de possuí-la e ela o tinha levado muito longe. Já teria tempo para as recriminações. Nesse momento, Anna era dele. Mas não a teria contra uma porta como se fosse um animal no cio. Soltou o broche dos Campbell que levava para ajustar a manta e a estendeu sobre o chão de pedra. Depois se sentou sobre ela e lhe estendeu a mão. Anna não duvidou. Aceitou sua mão e permitiu que a recostasse a seu lado com um sorriso que lhe partiu o coração. Havia justo o espaço suficiente para esticar-se entre os tonéis de vinho.
Arthur acariciou seus cabelos e a atraiu para si para beijá-la com toda a paixão e a emoção que se concentravam em seu interior. Beijou-a como se fosse tudo para ele, e Anna se deixou levar pela doce posse daquele beijo. Se aninhou a seu lado e se sentiu cálida, amparada e protegida acima de tudo que acontecia fora do círculo mágico de seu abraço. Sentia… «Paz.» Em seus braços sentia essa paz e alegria que sempre lhe eram esquivas.
Voltou a passar os dedos entre seus cabelos e lhe sustentou o pescoço com sua grande e calosa mão, descrevendo suaves círculos em sua nuca com o polegar.
Poderia passar a vida beijando-o, estendida junto a ele, amoldando-se a seu corpo, sentindo a rígida força de seus músculos contra ela. Seu calor era como uma vagem protetora que os rodeava. As longas e pausadas carícias de sua língua faziam que se derretesse de paixão. Era perfeito. Mas quando essas longas e pausadas carícias pediram mais, quando seus beijos se fizeram mais intensos e profundos, quando começou a apertá-la com mais força e Anna percebeu a dura coluna de aço que pressionava seu ventre, se deu conta de que aqueles beijos não eram suficiente. Sentiu essa estranha sensação formando-se de novo em seu interior. O despertar. Os indícios. A energia incansável que pulsava entre suas pernas e fazia que ansiasse esse contato até o desespero. Mas nessa ocasião estava a par do que aconteceria depois. Recordava a mão de Arthur entre suas pernas, seus dedos dentro dela, os agudos espasmos do momento de liberação.
Recordava perfeitamente a avultada cabeça redonda de sua virilidade golpeando em seu interior de maneira íntima.
Gemeu e moveu os quadris em círculo contra ele, ansiando o alívio que somente a fricção podia lhe oferecer. Tinha o corpo em chamas, e os mamilos cada vez mais eretos e sensíveis à medida que se roçavam contra seu peito. Tentou atraí-lo mais para si, passando as mãos pela larga envergadura de seus ombros, pelos duros músculos de seus braços e suas costas. Apesar de que sob o tecido escocês Arthur só levasse a regata, as meias e os braies, aquelas finas capas de tecido se converteram em uma barreira incômoda. Anna queria tocá-lo. Queria sentir o calor de sua pele vibrando sob a pressão de seus dedos.
Certamente ele se deu conta de sua frustração. Afastou sua boca da dela, tirou o cinturão e passou a regata por cima da cabeça, jogando-a ao chão. Seu torso era tão impressionante como recordava. Ombros largos, braços musculosos e um ventre plano sulcado por linhas rígidas de puro metal cobertos por uma pele ligeiramente bronzeada sublinhada por cicatrizes de diferentes tamanhos. A pior delas era uma em forma de estrela que luzia junto a seu ombro, o tipo de marca que deixa uma flecha ao cravar-se. E agora via com claridade a marca do braço: o leão rampante, símbolo do reino da Escócia. Não podia afastar o olhar dele. Por Deus bendito que era um homem formoso.
—Moça, se segue me olhando deste modo, isto se acabará em um abrir e fechar de olhos.
A rouquidão de sua voz fez que Anna se estremecesse de desejo da cabeça aos pés. Ruborizou-se.
—Eu gosto de te contemplar. —O olhar de Arthur se obscureceu — É magnífico.
Anna, incapaz de esperar um segundo somente mais, acariciou seu seio com as palmas das mãos e essa sensação faiscante a fez gemer. Arthur, por sua parte, proferiu um profundo som gutural e a voltou a tomar em braços. Nessa ocasião não havia volta atrás. Anna cheirava seu desejo e sentia a necessidade que se desprendia dos eróticos arremessos de sua língua. Tudo ocorria muito depressa, mas cada momento se gravava a fogo em sua memória. Queria recordar tudo. O modo em que a saboreava. A maneira em que sua boca descansava sobre a sua. O áspero roçar de seu queixo sobre sua pele. O calor que desprendia seu corpo. O poder daqueles músculos que se esticavam sob suas mãos. O feroz rugir dos batimentos do coração contra seu coração. Queria recordar todas as sensações. Cada um dos aromas. Cada roce.
Estava tão excitada e sensível que sentia a pele quente e avermelhada. Apenas se deu conta de como suas mãos desatavam os nós de sua sobreveste sem mangas e a tiravam pelos ombros. Então se encontrou com que cobria seio e o massageava através do fino tecido de linho de sua regata, ao mesmo tempo em que levava a língua até seu pescoço. Arthur roçou a tensa protuberância de seu mamilo com o polegar, descrevendo círculos, acariciando-o, beliscando-o brandamente entre os dedos.
As mãos de Anna percorriam avidamente suas costas, aferravam-se a seus ombros e lhe arranhavam a pele a cada uma de suas provocadoras carícias. Gemeu da vontade que tinha de romper o tecido e notar o contato direto de seus dedos, sua boca. E seus desejos se fizeram realidade. Primeiro o vestido e depois a regata passaram sobre suas pernas até chegar à cintura e logo por cima da cabeça.
Se não fosse pela forma com que ele a olhava pode ser que nem sequer percebesse. Arthur ergueu a cabeça e passeou o olhar por sua nudez, o que fez que ela se ruborizasse e procurasse cobrir-se, mas ele não pensava permitir-lhe Agarrou-a pelos pulsos e negou com a cabeça.
—Não —disse de maneira brusca com uma voz rouca que destilava violência —É preciosa. —exclamou Arthur, ficando do meio lado e acariciando seu braço como se fosse tão delicada que pudesse rompê-la com somente tocá-la. Acariciou seus seios com o olhar, fazendo que ficassem mais arrepiados ainda. Passou um dedo pela ponta e depois por sua abrupta curva — Jesus! —disse com a respiração entrecortada — Seus seios são de outro mundo.
Arthur soltou um gemido e se inclinou para agarrá-los e levar-lhe à boca. Beijou primeiro um de seus espectadores ápices e logo o outro, deixando-a tremendo de vontade. Quando ao fim a capturou com seus lábios e mergulhou um mamilo em sua boca, Anna gemeu de prazer. Arthur jamais tinha visto nada tão formoso. Era consciente de que deveria conter-se para saborear sua suave pele de pêssego em toda sua imensidão, mas com somente vê-la estivera a ponto de chegar ao limite. Parecia um anjo, esbelta e delicada do mais alto de sua cabeça até as diminutas impigens de seus pés. Se não fosse por esses seios, teria pensado que estava morto e tinha chegado ao céu. Porque seus seios eram puro pecado. Uma fantasia masculina feita realidade. Grandes, mas não em demasia, redondos e erguidos, com a rigidez da juventude; sua suave e cremosa carne estava coroada por mamilos de cor framboesa que faziam a boca água. E tinha gosto disso…
Gemeu de prazer e voltou saborear, rodeando sua cálida e ereta ponta com a língua. Sabor de doces desejos carnais e escuros prazeres melosos.
Queria ir devagar, prolongar cada momento de prazer, mas sua necessidade era muito ardente, muito desesperada, e fora evitada durante muito tempo. Pôs a mão entre as pernas e a explorou com os dedos. Tinha uma ereção de cavalo, mas notar quão molhada estava, saber que estava úmida para ele, fez que lhe pusesse mais duro ainda. Lambeu seus seios e a acariciou com os dedos até que seus quadris começaram a ir contra sua mão e sua respiração entrecortada se voltou irregular. Quando soube que Anna estava a ponto de gozar, liberou-se dos braies e as meias com rapidez e se colocou entre suas pernas.
Seus olhares se encontraram.
Gostaria de dizer que pensou duas vezes, mas não era certo. Tudo que podia pensar era na necessidade de fazê-la sua, que não podia deixá-la escapar. Em que em seus olhos via a aceitação e o amor que jamais pensou que seriam para ele. Um amor que Deus sabia que ele não merecia, mas que desejava mais que nenhuma outra coisa no mundo.
—Por favor — soluçou Anna.
Esse era o convite que Arthur necessitava. Levantou-lhe uma de suas pernas para colocá-la em cima de seu próprio quadril, ao mesmo tempo em que apertava os dentes para reprimir a vontade que tinha de investir com todas suas forças e se dispunha a facilitar entrada. Embora talvez a palavra «facilitar» não fosse a adequada. Ela era estreita e ele era grande. Enorme.
O suor se acumulou sobre suas sobrancelhas.
Apertada. Deus, estava tão incrivelmente apertada… Apertou todos os músculos diante da insistência que crescia em sua virilha. Seus testículos se esticavam ao mesmo tempo em que a pressão subia pela base de sua coluna. O corpo de Anna lutava contra aquela invasão, mas ele não pensava permitir uma negativa. Empurrou um pouquinho mais, fazendo que ela se estremecesse e emitisse um gemido de angústia.
O sangue bulia por suas veias. Parecia estar a ponto de explodir, mas se conteve para dar-lhe tempo a preparar-se antes de enterrar-se completamente entre suas pernas.
«Jesus. Que não empurre mais.»
—Não… não estou segura de que isto vá funcionar —disse Anna com inquietação — E se… e se for pequena demais pra ti?
A risada abriu passo entre o sofrimento através do peito de Arthur. Já explicaria os pormenores do assunto mais tarde.
—Confie em mim, amor. Acoplaremo-nos um ao outro perfeitamente. —Mas o certo é que era a primeira vez que estava com uma virgem — Pode ser que doa e seja incômodo a princípio — disse olhando-a nos olhos — De acordo?
Anna assentiu, mas a viu um pouco menos segura que antes. Não deixou de olhá-la nos olhos um só momento, oferecendo seu apoio tácito à medida que se afundava mais e mais nela, com cada um de seus dolorosos centímetros, um após o outro.
A sensação de ter seu corpo rodeando seu pau e apertando-lhe tanto era quase mais do que podia agüentar. Sabia do muito que gostaria, fazia desonestos esforços para lutar contra a urgência de investir. Esse calor estreito, aveludado e úmido envolvendo-o, espremendo-o. Todos os músculos de seu corpo ficavam rígidos de tensão no tanto que tentava conter-se e fazer as coisas com calma. Sentia-se maravilhado. Mas tinha que fazer que fosse perfeito para ela, paciência era a palavra chave.
«Já falta pouco…»
«Agora.»
O ponto de não retorno. Olhou-a nos olhos, sentiu como seu peito se contraía e deu o empurrão final. Anna gemeu e os olhos se puseram enormes como pratos da dor, mas não gritou. Ao ver o aspecto estóico de seu rosto teve vontade de rir.
—Já verás como depois é melhor, amor, prometo-lhe isso. Tentem só relaxar.
Ela o olhou como se fosse louco.
—Não acredito que isso seja possível.
Mas então Arthur a beijou e Anna comprovou quão errada estava…
Quando a penetrou, Anna sentiu uma pontada de dor e lhe deu vontade de gritar com todas suas forças. Mas se dava conta do que ele sofria, de modo que se reprimiu, consciente de quanto se esforçava por não a machucar. Não era culpa dela que a providência o provesse com um pouco tão… descomunal. Aquilo devia fazer que tudo fosse bastante incômodo…
«Um momento.» Estava-a distraindo com seus beijos, mas por um instante teria jurado que acabava de sentir um… Aí o tinha de novo. Uma espetada. Uma espetada prazenteira. Muito prazenteira. Uma espetada que, de fato, parecia incrivelmente agradável. Seu corpo havia se amoldado a ele e a dor desaparecia. Agora sim a notava, quente e dura, enchendo-a de uma forma que jamais teria imaginado. E então Arthur começou a mover-se. A princípio devagar, inundando-se nela e saindo com investidas pausadas e delicadas. Anna gemia ao notar a maneira em que seus arremessos reverberavam por todo seu corpo. Sentia-se como se Arthur a reclamasse para si, como se a possuísse na mais primitiva das formas. Era uma sensação incrível. Tinha que mover-se com ele, erguer os quadris para coordenar-se com suas investidas e que a enchesse até o mais profundo. Com mais força. E depois mais rápido. Agarrou-se a seus ombros e o atraiu mais para si, desejando sentir todo seu peso sobre ela. Seus corpos pareciam estar fundidos um no outro. Pele contra pele. Tremendamente sensual. Um peso dilacerador. A paixão a capturava com seu trêmulo abraço. As sensações ardiam em seu interior. Tomavam forma. Esperavam o momento. Concentravam-se na mais feminina de suas partes. E também ele o sentia. Era como aço sob seus dedos, músculos tensos e acesos, preparados para explodir.
Mas o que mais a excitava era a expressão de seus olhos. Intensa. Penetrante. Obscurecida não só pelo desejo mas também pela emoção. Nessas profundidades de âmbar dourado via refletido o amor que consumia seu próprio coração. Amava-a. Pode ser que ele não percebera ainda, mas ela sim o fazia.
Mantinha-a pega a si, sem deixá-la ir, enquanto se afundava nela uma vez mais, inundando-se tanto como era possível, e ficava aí. Algo poderoso e mágico passou entre eles. Uma conexão como jamais antes tinha imaginado. À medida que a sensação se formava, a respiração de Anna ficou apanhada no mais alto de seu peito. Por um instante todo pareceu deter-se. Seu corpo se mantinha ao bordo do êxtase, fazendo equilíbrio no precipício celestial. Deixou escapar um guincho quando o primeiro dos espasmos de liberação fez que perdesse o controle e ficasse fosse de si, tremendo de prazer.
—Isso, amor. Venha para mim. —Arthur começou a mover-se de novo, atravessando-a com uma despreocupação selvagem — Oh, Deus. Eu gosto muito. Não posso…
Penetrou-a uma última vez com um profundo gemido de satisfação que parecia rasgar-se de sua própria alma. Seu corpo ficou rígido e logo se estremeceu ao notar que seu desafogo coincidia com a maré ascendente dela. Arthur tinha uma expressão fera e formosa, de uma paixão primitiva. Deixou-se cair sobre a Anna com os ecos da última sensação, ainda com seus corpos unidos. Tudo que ela ouvia era o som de suas respirações pesadas e o violento pulsar de seus corações. Desejava ficar assim para sempre, mas Arthur em seguida se afastou e rompeu a conexão.
O ar frio passou sobre seu úmido e ruborizado corpo, lhe deixando a pele arrepiada. Anna era consciente de sua nudez, mas estava muito exausta para mover-se. Suas pernas pareciam de gelatina. Mas tampouco havia razão para envergonhar-se. Arthur não lhe emprestava atenção. Ficou olhando ao teto, ainda com a respiração entrecortada, mas em um silêncio que não pressagiava nada bom. Não lhe tocava dizer algo? Mordeu o lábio, perguntando-se que seria o que pensava. Tinha parecido maravilhoso… «Mas o que acontecerá se o decepcionei?», pensou sentindo uma pontada de dor.
Ao fim Arthur voltou a cabeça para olhá-la e aproximou sua mão para lhe afastar os cabelos do rosto com delicadeza. Ao ver seu estado de incerteza lhe dirigiu um sorriso de menino que se instalou em seu coração para não partir jamais. Anna sabia que nunca poderia esquecer a expressão de seu rosto nesse momento.
—Sinto muito. Não sei o que dizer. Nunca antes… nunca antes havia sentido algo como isto.
Ela esboçou um amplo sorriso como resposta, incapaz de ocultar sua alegria.
—Sério? Não tenho nada com que comparar, mas me pareceu algo maravilhoso.
—Sim, foi maravilhoso. —Arthur se inclinou sobre ela e a beijou com ternura. Mas quando ela ergueu o olhar para olhá-lo de novo seu olhar se turvou — Jamais me arrependerei do que acaba de ocorrer, Anna. Mas por seu próprio bem eu gostaria que não tivesse acontecido.
Anna sentiu o inconfundível tom de advertência e pareceu que lhe cravava um espinho no coração, mas o evitou. Não queria que nada escurecesse esse momento. Se aninhou sob seu braço e apoiou a cabeça sobre seu ombro, abrigando-se com seu corpo de maneira instintiva.
—Eu me alegro de que tenha acontecido — disse ela.
Agora estavam unidos no mais profundo e nada poderia separá-los.
Arthur baixou o olhar para aquela delicada mulher nua que se aninhava em seus braços e lhe parou o coração. O que acabavam de compartilhar não tinha comparação com nada que tivesse experimentado antes. Tinha compartilhado cama com um número de mulheres mais que razoável, mas para ele fornicar sempre tinha consistido em saciar sua luxúria. Encarregava-se do prazer da mulher e do seu com um só objetivo na cabeça: desafogar. Uma vez que estava completo, não havia mais que fazer. Não se atrasava. E estava claro como a água que tampouco queria rodear a mulher com seus braços e desejar ficar assim para sempre. Comparado com o que tinha acontecido com a Anna, o resto parecia quase mecânico, como se tivesse passado por todos os movimentos simplesmente para conseguir o prêmio. Mas com ela o prêmio era a experiência em si mesmo. O prazer estava na exploração, no descobrimento e nos detalhes. Estava no modo em que ela reagia a suas carícias, a maneira em que arqueava suas costas, a pressão que exerciam seus quadris e os pequenos gemidos que saíam de seus lábios. Estava na expressão de seus olhos quando a penetrava, o rubor que lhe tingia suas bochechas quando se aproximava do orgasmo e o modo em que sua cabeça se inclinava para trás e sua boca se abria quando finalmente chegava.
Não fora capaz de afastar o olhar. Normalmente evitava o contato visual, mas com a Anna procurava essa conexão. Queria desfrutar dessa cercania.
Descansou o queixo sobre seu cocuruto, saboreando a sedosa suavidade de seus cabelos. Era tão doce e formosa… além de endiabradamente confiada. Isso fazia que despertasse todo seu instinto de amparo. E algo mais. Algo quente, terno e poderoso. Algo que jamais pensou que pudesse ser para ele. Acreditava ser diferente. Pensava que não necessitava a ninguém, que estava bem sozinho. Mas se enganava. Não era absolutamente diferente. Necessitava-a. Queria-a. Amava-a com um ardor que lhe parecia surpreendente. Talvez pudesse encontrar alguma forma de explicar-se. De implorar seu perdão. Talvez houvesse esperança…
«Ah, que diabos!» Um nó lhe contraiu as vísceras à medida que voltava para a realidade. A quem pretendia enganar? Anna jamais o perdoaria. Como poderia fazer, quando ele tinha a missão de destruir tudo aquilo que ela amava?
Amava-a, mas isso não mudava nada absolutamente. Somente serviria para que o que estava por chegar fosse mais doloroso. Quando acabasse de cumprir seu encargo, não teriam nada que fazer o um com o outro. Amava-a, mas sua lealdade estava com Bruce. Tinha uma missão que cumprir, não só pelo rei, mas também por seu pai. Em um tempo diferente, em um mundo no que não houvesse guerra nem velhas rixas poderiam ter tido uma oportunidade. Mas não nesse mundo. Não nesse tempo.
E mesmo assim gostaria de… Deus, quanto gostaria que tudo fosse diferente.
Anna ergueu o olhar e o olhou sob suas longas pestanas.
—Estou segura de que não somos o primeiro casal comprometido que antecipa sua noite de bodas.
O sentimento de culpa se fez mais profundo. Esse era o problema: não teria noite de bodas. Não a teria quando ela descobrisse a verdade. Era um bastardo. Um bastardo infame. No que estava pensando? Em realidade, sabia perfeitamente. Pensava que a queria mais que a tudo no mundo e que tinha que fazer o que fosse por conservá-la. Consciente ou inconscientemente, queria unir-se a ela de uma forma que não pudesse ser desfeita. Nem sequer pelo engano ou a traição.
Uma aposta desesperada. Egoísta. Perversa. Somente serviria para que Anna tivesse mais razão para odiá-lo. Mas já fora e não poderia trocá-lo por mais que quisesse.
—Não —disse Arthur — Não somos os primeiros, mas dadas as circunstâncias teríamos que ter esperado. —Atraiu-a fazia sim com uma voz tão feroz como seu abraço. Era um filho de cadela egoísta, mas jurou que quando aquela maldita guerra acabasse se daria uma oportunidade. Lutaria por ela, por eles, se o permitisse — Voltarei para ti, Anna. Voltarei se é que me segue querendo.
Ela o olhou com um sorriso nos lábios, cândida e inocente. Muito confiada.
—Pois claro que seguirei te querendo. Nada poderá mudar isso.
Queria acreditar no que dizia. Queria acreditar mais que tudo no mundo. Mas logo suas palavras seriam postas a prova.
Capítulo 21
—O que se passa, Anna? Está muito calada esta manhã. É que não dormiste bem?
Anna olhou a sua irmã com receio, perguntando-se se suspeitaria algo. Era difícil falar. Luzia uma expressão serena no rosto, uma expressão que se adequava ao sermão matinal ao que acabavam de atender. Anna não tinha nem a menor ideia a respeito do que conversava. Estava muito ocupada em rememorar cada um dos segundos da cena que tinha tido lugar a noite anterior. Não cabia dúvida de que pensar tais coisas em uma capela tinha que ser terrivelmente pecaminoso, mas já tinha suficiente pelo que fazer penitência, de modo que se figurou que o dano acrescentado a sua alma não pioraria a situação.
A recuperação dessas lembranças a fez sorrir. Estava claro que regozijar-se no pecado era inclusive mais pecaminoso ainda, mas o certo é que era feliz. Amava Arthur e ele a amava. Na noite passada o demonstrara. Não retornou à câmara que compartilhava junto a suas irmãs até que já era bastante tarde. Ou cedo. Depende de como se olhasse. Ficou aninhada entre seus braços tanto quanto se atreveu a fazer, mas ao final esteve obrigada a retornar a seu aposento. Essas horas passadas entre os braços de Arthur significavam um dos momentos mais contentes de sua vida.
Sob o protetor arco de seu abraço a guerra, o caos e a incerteza do mundo atual não existiam. À fria luz do dia, entretanto, tudo voltava a ser de outro modo. Cumpria-se o décimo segundo dia de agosto. Faltavam três para que expirasse a trégua. Dizia a si mesma que era a guerra o que a inquietava. Dizia a si mesma que a razão de que Arthur se mostrasse tão taciturno ou de que suas palavras adquirissem o matiz da advertência era a própria guerra. Pensando em tudo o que estava por chegar durante nos próximos dias, a perda de sua virgindade antes das bodas deveria ser o que menos lhe preocupasse. Mas por que lhe tinha falado da possibilidade de não retornar? Teria que pôr fim a aquilo.
—Não me passa nada —disse Anna com firmeza — dormi bem.
Na realidade, as quatro ou cinco horas de sonho de que dispôs dormiu placidamente.
—Pois deve ser um livro magnífico.
Nessa ocasião o tom de voz seco de sua irmã não deixava lugar a dúvidas.
—Pois sim — respondeu Anna sem poder evitar ruborizar-se.
Embora freqüentemente lia até entrada a madrugada em alguma das câmaras entre muros do castelo para evitar incomodar a suas irmãs, era óbvio que Mary tinha adivinhado a verdade.
Seguiam de perto ao resto da família, que atravessava o pátio da capela em direção ao grande salão para romper o jejum. Não obstante, a maioria dos homens já estava no pátio de armas praticando. O ruído metálico das espadas, e a cacofonia das vozes ficava maior à medida que se aproximavam. Anna examinou instintivamente as figuras sob as armaduras em busca dele.» O coração lhe deu um tombo só de vê-lo. Arthur estava do outro lado dos estábulos, de costas a Anna. Ali era onde preparavam as balas de palha, assim que se figurou que estaria praticando com a lança. Perto dele estava seu irmão Dugald, mas ao contrário deste, ele sim estava acompanhado. Impulsionava um dado pra frente e para trás e dava voltas no ar sob o atento olhar de três jovens e de bonitas criadas que lhe observavam como se fosse um mago, assentindo a tudo o que lhes dizia. Tentava ensinar a agarrar a lança uma jovem que tinha de frente a si, mas seus enormes seios se interpunham entre seus braços.
Aqueles dois irmãos não podiam ser mais diferentes. Dugald era um fanfarrão ruidoso, o tipo de homem que somente estava contente quando era o centro da reunião e tinha ao redor o máximo de mulheres possíveis. Arthur era mais tranqüilo. Mais reto. Um homem que se contentava estando em segundo plano.
Mary ergueu o olhar ao céu ao contemplar seu exibicionismo e se afastou dali subindo a escada em direção ao grande salão. Anna se apressou a seguir seus passos sem poder evitar olhar atrás uma vez mais. Sir Dugald ria por algo que havia dito uma das garotas. Anna não ouviu o que lhe respondeu, mas teria jurado que era algo do tipo: «Olhe isto».
Ergueu a lança sobre sua cabeça como se fosse jogá-la ao mesmo tempo que gritava a Arthur:
—Arthur, agarra-a!
Antes que Anna se inteirasse do que estava a ponto de fazer, antes inclusive de que o grito pudesse tomar forma em sua garganta, a lança já estava no ar, projetada em direção a Arthur. Estavam tão perto um do outro que quase não teve tempo de olhar em resposta às palavras do Dugald quando já tinha o dardo sobre ele. Apanhou-o no ar no último instante, com uma só mão. O levou ao joelho com um rápido movimento, rompeu-o em pedaços e devolveu as lascas a seu irmão com o rosto escurecido pela cólera.
Isso recordava algo a Anna.
Uma brisa gelada banhou sua pele. Não tinha visto nada igual mais que uma vez em sua vida. Seu rosto empalideceu no momento. Sossegou com uma mão a exclamação de surpresa e ficou petrificada contra o muro da entrada com o coração em um punho. Tinha acontecido exatamente quão mesmo a noite da floresta do Ayr. Essa noite em que a mandaram a recolher a prata para seu pai e se encontrou com uma emboscada. O cavalheiro que a resgatou tinha feito exatamente o mesmo. «O espião.»
«Não, não pode ser», disse-se Anna, invadida por um ataque de terror que lhe percorria as costas. Tinha que ser uma coincidência. Mas as lembranças se retorciam em sua cabeça e a confundiam. Estava escuro. Não pôde ver seu rosto. Ele falava em voz baixa para mascarar sua voz. Mas o tamanho, a altura e a compleição encaixavam perfeitamente.
Não, não, aquilo não podia ser. Anna se tampou as orelhas e fechou os olhos. Não desejava vê-lo. Não queria pensar em todas as razões que davam pé a essa possibilidade. Em suas ocultas advertências. A sensação de que ocultava algo. Suas tentativas iniciais de evitá-la. O olhar de reconhecimento em seu tio Lachlan MacRuairi. Lhe contraiu o estômago. A cicatriz. Deus, a cicatriz não. Mas a marca de flecha em forma de estrela de seu braço se ajustava à ferida do cavalheiro que a tinha resgatado. A bílis subiu até sua garganta.
Mary se conscientizou de que Anna não ia atrás dela e baixou a escada correndo até a entrada em que sua irmã permanecia como uma estátua pega ao muro.
—O que te passa, Annie? Parece que viu um fantasma.
Assim era. Deus santo, assim era. Anna moveu a cabeça, negando-se a aceitá-lo. Tudo a seu redor começou a dar voltas.
—Não… não me encontro muito bem.
Subiu a escada para sua câmara sem mediar mais palavras e quase não teve tempo de tirar o urinol de debaixo da cama quando já estava esvaziando os magros conteúdos de seu estômago e purgando de passagem seu coração nele.
Arthur olhou em redor do grande salão caminho da câmara de Lorn para o conselho de guerra da noite. Ficou circunspeto ao conscientizar-se de sua ausência. Onde diabos teria se metido? A leve sensação de preocupação que lhe assaltou essa manhã ao não ver Anna tinha piorado com o desenvolvimento da jornada. Alan lhe disse que Anna não se encontrava bem. Uma dor de estômago, mas dado o ocorrido a noite anterior, Arthur não acreditava. Estaria zangada? Arrependia-se do que tinha passado entre eles? A culpa o remoia por dentro. O que teria feito?
Obrigou-se a afastar Anna de seus pensamentos e a concentrar-se na tarefa que tinha ante si. Não sobrava muito tempo. O rei Robert atacaria em quatro dias, e Arthur ainda não tinha conseguido nenhuma informação de utilidade.
Entrou no aposento seguindo ao Dugald, que estava de um humor de cão como jamais antes tinha visto, e se sentou à mesa com o resto dos cavalheiros de alta fila e os membros da meinie de Lorn. Minutos depois de que se congregassem os homens, fez sua entrada Lorn. Mas nessa ocasião não chegava sozinho. Seu pai, o convalescente Alexander MacDougall, ia com ele. O pulso de Arthur se acelerou. Se MacDougall estava ali, provavelmente se trataria de algo importante.
O lorde de Argyll tomou assento na poltrona trono que normalmente ocupava seu filho e deixou ao Lorn uma poltrona menor junto a seu posto. Uma vez que se fez silêncio na sala, Lorn tirou um pergaminho dobrado de sua bolsa e o pôs sobre a mesa. Arthur ficou petrificado ao reconhecê-lo imediatamente. Reprimiu uma maldição obscena. «O mapa.» Ou para ser mais exato, seu mapa. O mapa que tinha desenhado para o rei, que tinha entregue ao mensageiro. Devem ter interceptado antes que chegasse ao Bruce. «Maldição.» Desejou ter-se lembrado de mencioná-lo na última vez que se reuniu com eles.
Os homens se aproximaram para ver o de perto.
—O que é? —perguntou um deles.
Lorn adotou uma expressão severa.
—Um mapa dos arredores de Dunstaffnage — disse, fazendo-o passar — E o número de homens e os fornecimentos a nossa disposição.
Houve várias falações de irritação quando alguns dos homens notaram o que significava. Dugald se aproximou mais e examinou o mapa com tal intensidade que a Arthur lhe arrepiaram os cabelos da nuca. Não havia nada delator no documento. A escritura era minúscula e quanto aos desenhos… Dugald nunca tinha emprestado muita atenção aos «ganchos de ferro» de Arthur mais que para rir deles. Não tinha nada que temer. Mas mesmo assim, o interesse que tomava seu irmão parecia inquietante.
—De onde saiu? —perguntou Dugald.
—O tiraram de um mensageiro do inimigo que meus homens interceptaram faz várias semanas —respondeu Lorn — Mas pela exatidão dos números, suspeito que há um traidor entre nós. —Os murmúrios de indignação e raiva zumbiram por toda a sala e Arthur se uniu a eles — Infelizmente o mensageiro não foi capaz de identificá-lo.
—Como pode estar seguro, milorde? —perguntou Arthur.
Um sorriso de cumplicidade curvou a boca de Lorn.
—Estou.
O qual queria dizer que tinham torturado ao mensageiro.
Lorn examinou os rostos dos homens que lhe rodeavam, o círculo interno de seu mando.
—Mantenham os olhos abertos em busca de algo que se saia da normalidade. Quero encontrar a esse homem — disse esmagando o mapa com a palma da mão — Mas este mapa demonstrou sua utilidade. Tenho um plano para ganhar a partida do usurpador em seu próprio jogo.
Arthur ficou quieto, tentando conter a emoção. Talvez ao final pudesse conseguir um pouco de informação para o rei.
—A que te refere? —perguntou Alan.
—Refiro-me a que faremos que suas próprias táticas se voltem em contrário. Bruce conseguiu vitórias frente a força muito mais poderosos lutando segundo seus próprios meios: escolhendo o lugar e o terreno adequados para o ataque, atirando golpes duros e rápidos desde seus esconderijos, usando o mesmo tipo de estratégias que usaram nossos ancestrais durante séculos, táticas de guerra highlander. E que me crucifiquem se permitir que alguém das Terras Baixas ganhe em meu próprio terreno — disse, fazendo ato seguido uma pausa para que o resto fizesse coro sua aprovação — Não ficaremos aqui esperando ao assédio do castelo como ele acredita. Atacaremos nós primeiro.
Todos começaram a falar ao mesmo tempo. Arthur se obrigou a não unir-se à refrega porque queria ouvir o resto. Mas sabia que aquilo era algo grande, monumental de fato. Lorn tinha razão: o rei não esperaria que os atacassem. Não quando tinham uma fortaleza como Dunstaffnage para cobrir-se. Lorn impôs silêncio na sala com um movimento da mão.
—Esperem que conte o resto para fazer perguntas. —Colocou o mapa mais adiante para que os homens que tinha frente a ele pudessem vê-lo — Bruce e seus homens vêm do este pela estrada do Tyndrum. —Apontou a um canto do mapa, fazendo que a pele de Arthur se arrepiasse ao pressentir algo importante. Lorn moveu o dedo seguindo o caminho e se deteve no caminho de Brander. Arthur sentiu o estômago apertar — Para chegar até Dunstaffnage terão que cruzar estas montanhas. No estreito e longo caminho de Brander, ali será onde ataquemos. Poremos a nossos homens aqui, aqui e aqui — disse assinalando três cúpulas por cima das quais não se via nada, devido aos meandros do caminho.
Arthur reprimiu uma imprecação ao mesmo tempo em que o resto da sala prorrompia em uma onda de excitação. Era o lugar perfeito ao que levar a cabo um ataque surpresa. Os MacDougall surpreenderiam ao Bruce de acima, descendo sobre o exército em marcha em uma abertura estreita de onde o rei não poderia tirar vantagem de sua superioridade numérica.
—Quando? —perguntou Dugald erguendo a voz.
—Nossos informe assinalam que Bruce chegará ao Brander na madrugada do dia quatorze.
«Filho de cadela traiçoeiro.»
A sala ficou em silêncio.
—Mas a trégua não expira até o dia quinze — disse Alan com cautela.
Lorn entreabriu os olhos.
—É o usurpador quem escolheu ignorar o código da batalha, não eu. Bruce parte sobre nossas terras. É ele quem rompe a trégua. —Um raciocínio à própria conveniência como jamais se viu antes. Mas ninguém na sala se atreveu a discutir — Alan —continuou Lorn—, partirá com o grosso das forças amanhã e estarão na posição ao cair a noite, somente para nos assegurar.
A Arthur não surpreendeu saber que Alan estaria ao mando. Essas abruptas ravinas e o irregular terreno seriam difíceis de sulcar inclusive para os guerreiros mais jovens.
—Defenderão vocês o castelo, milorde? —perguntou.
Lorn o fulminou com o olhar.
—Meu pai guardará o castelo —corrigiu — Eu farei cargo de uma frota de galeões e comandarei o ataque daqui — disse assinalando o lugar no que o rio Awe entrava no lago do mesmo nome — Assim, quando o tivermos surpreendido de cima, seguiremos atacando do fronte.
Golpeando ao Bruce de duas direções. Era um plano excelente. Não só se tratava de uma localização perfeita para lançar o ataque, mas sim ao atacar primeiro, e antes que a trégua expirasse, teriam o fator surpresa a seu favor.
Essa intervenção provocou uma inundação de perguntas, mas Arthur já estava concentrado na tarefa que tinha. Tinha que advertir ao rei o antes possível sem que Lorn se inteirasse de que seu plano corria perigo. Teria que arriscar-se a enviar a mensagem nessa mesma noite. Depois, na excitação e o caos que precederiam ao ataque, teria a possibilidade de escapulir-se.
«para sempre.»
Encolheu-lhe o estômago. Tinha ante si o momento que tanto tinha temido e sabia que era inevitável. O momento de dizer adeus. O momento em que se supunha que devia voltar para as sombras e desaparecer sem dizer uma palavra. Isso era o que ele fazia. O que sempre soube que teria que fazer. Simplesmente não esperava que fosse tão tremendamente duro. Parecia covarde partir sem uma explicação. Deixar que Anna descobrisse a verdade por si mesma. Gostaria de prepará-la, lhe dizer que a amava e que nunca quis a machucar. De dizer o que sentia, que seguiria sendo dela sempre que ela quisesse.
Mas não podia. Partiria para dia seguinte sendo um homem e quando retornasse o faria sendo outro. Anna o odiaria por isso. Embora duvidava muito de que coubesse uma mínima possibilidade de que estivessem juntos, Arthur jurou que quando terminasse todo a buscaria para tentar explicar-lhe Sempre que ela quisesse escutá-lo.
«Não pode ser certo. Não é possível.» Anna se negava a acreditar. Mas tampouco podia afastar de si a dúvida que se instalou como um parasita em suas vísceras e não queria partir. A desculpa de sua enfermidade não era falsa. As dúvidas se retorciam e remoíam seu interior, debilitando-a. Passava o dia inteiro no refúgio de seus aposentos tentando convencer-se de que aquilo não era possível, de que ele não a enganaria de tal modo. Mas ficavam muitas perguntas no ar. Umas perguntas que não podiam esperar até o dia seguinte. Para então poderia ser muito tarde. Mary e Juliana acabavam de retornar à câmara fazia pouco para lhe informar de que os homens já dispunham os preparativos prévios à guerra. «Guerra.» O medo acendeu seu peito, e a necessidade de encontrá-lo se tornou desesperada.
Tinha o vestido enrugado e cheio de pelos de Escudeiro depois de ter passado todo o dia tombada na cama, mas não perdeu o tempo em trocar-se. Jogou água no rosto, enxaguou a boca, passou uma escova por seu emaranhado cabelo e se encaminhou às dependências de seu pai para pedir a suas irmãs que desse uma olhada no cachorrinho. Defraudou encontrar a porta aberta, já que esperava que os homens continuassem no conselho de guerra. Não obstante entrou, atraída pelas vozes que procediam do interior.
Seu pai, que estava de pé junto a Alan, observando um pergaminho estendido sobre a mesa, ergueu o olhar ao vê-la entrar na sala.
—Ah, Anna. Encontra-te melhor?
—Sim, pai, muito melhor — respondeu ela, tentando não mostrar a decepção que supunha descobrir que se achavam ali somente eles dois. Certamente Arthur já teria se retirado aos barracões para dormir. O que podia fazer ela, então? Que desculpa inventaria para ir em ao seu encontro essas horas?
—Necessita algo? —perguntou Alan, notando a preocupação de seu rosto.
Quando seu irmão baixou o olhar, Anna se deu conta de que estava retorcendo as abas do vestido.
—Parece desgostada por algo
Não podia chegar a fazer uma idéia.
«Oh, Deus. Teria que contar Anna sentiu um vazio no estômago ao conscientizar-se de que deveria compartilhar suas suspeitas com ambos. Mas não podia. Não até que estivesse completamente segura. Seu pai… doía admitir que a ira de seu pai nem sempre era racional. Não podia estar segura do que faria. Mas tinha que contar tudo.
—É pela guerra. Mary me disse que os homens se preparam para partir amanhã.
—Não há razão para preocupar-se, Anna. Sua mãe, suas irmãs e você estarão a salvo aqui.
—Não acredito que seja isso o que lhe preocupa, pai — disse Alan com um sorriso forçado.
Estava certo. Anna empreendeu a retirada, ansiosa por encontrar Arthur.
—Não queria lhes incomodar — disse olhando o pergaminho sobre a mesa — É óbvio que estão ocupados, deixarei-os que… —acrescentou, detendo-se de repente com uma exclamação de surpresa.
Cravou o olhar no pergaminho e caiu na conta de que o reconhecia, apesar de que nesse momento já estava acabado e tinha um aspecto diferente. Já não parecia um rascunho. Parecia um mapa. «Um mapa.» O que significava aquilo? Se Arthur estava fazendo um mapa para seu pai, por que não lhe havia dito nada? «Tentava ocultá-lo.»
Anna deu vários passos à frente presa de um pavor inexplicável. Tentou dissimular o tremor de sua voz:
—Interessante mapa. —Tinha a garganta muito seca, de modo que, mais que falar, pigarreava — De onde o tirastes?
—Nossos homens o interceptaram de um mensageiro inimigo —respondeu Alan, passando os dedos por seus finos traços — A verdade é que é muito bom. Magnificamente detalhado.
Anna não ouviu mais que as palavras «mensageiro inimigo». Empalideceu ao momento; seus piores temores, aparentemente, confirmaram-se.
«É um espião.»
—Sabe algo a respeito, filha?
Anna voltou o olhar para seu pai. Abriu a boca para pronunciar as palavras que condenariam Arthur, mas ficaram congeladas em sua boca. Não podia. Não podia fazer. Não antes de lhe oferecer uma oportunidade para explicar-se.
—Nada — se apressou a dizer baixando os olhos, incapaz de lhe sustentar o olhar.
Alan a observava com expressão de estranheza.
—Está segura de que não te encontra mal, Annie? Não tem bom aspecto.
Não se encontrava muito bem. Tinha enjôos. Como se o aposento girasse a seu redor ou as tábuas do chão se desprendessem a seus pés. Cambaleou e deu um passo para recuperar o equilíbrio.
—Eu… eu acredito que será melhor que volte para meu aposento.
Alan foi para ela com o desassossego marcado no rosto.
—Acompanho-te.
—Não. —Anna negou com a cabeça energicamente, reprimindo umas lágrimas que lhe ardiam nos olhos — Não é necessário. Estou bem. Sigam com o que estão fazendo.
Anna saiu antes que seu irmão pudesse opor-se. Apressou-se a chegar ao barmkin consumida em uma sensação de sufoco. Abriu a porta da torre da comemoração e se sentiu reconfortada pelo golpe de ar frio da noite. Inspirou profundamente, enchendo os pulmões e procurando estabilizar sua acelerada respiração. Aferrou-se ao corrimão de madeira que coroava a escada como se fosse um cabo de salvamento, deixando que o ar fresco e o tranqüilizador dossel da negra e fechada noite acalmasse a precipitação de seu coração, de seu fôlego e, sobretudo, de sua cabeça. Vários dos homens que vigiavam o barmkin ficaram olhando-a, mas Anna estava muito desgostada para preocupar-se com isso. Desgostada? Não, aturdida. Destroçada. Horrorizada. Sua cabeça ainda dava voltas, incapaz de acreditar.
Tentava decidir o que devia fazer, se percorria o pátio, chamava nas portas dos barracões e perguntava por ele, mandando ao diabo toda correção, quando as portas se abriram e saiu um grupo de soldados vestindo armadura completa. O coração lhe deu um tombo ao conscientizar-se de que um deles era Arthur. Dirigiam-se para os estábulos. Estava partindo. «Partindo.»
Agarrou-se ao corrimão com força até que a madeira se estilhaçou em suas mãos. Ficou olhando com o peito ardendo de dor e uma parte de si ainda recusava a acreditar. Arthur pareceu advertir o calor de seu olhar e deixou pela metade o que estava fazendo para erguer os olhos. Seus olhos se encontraram entre a luz mortiça que proviam as tochas. Arthur disse algo a um dos homens, separou-se do grupo e caminhou em sua direção. Anna inspirou profunda e entrecortadamente e se dispôs a baixar a escada para encontrar-se com ele ao final desta. Seu coração se deteve o ver seu rosto. Como podia lhe olhar com tal cara de preocupação e planejar traí-la ao mesmo tempo?
—O que passou? —perguntou — Fiquei preocupado ao não te ver antes.
Ele se aproximou dela, mas Anna se revolveu. Não podia permitir que a tocasse. Somente serviria para confundi-la mais ainda.
—Preciso falar contigo.
A rigidez de sua voz despertou os temores de Arthur. Dirigiu seu olhar para os estábulos, onde os homens tinham desaparecido.
—Não tenho muito tempo. Estão me esperando.
—Parte… sem dizer adeus?
O pequeno tremor que apareceu em seu queixo o delatava. Sinal de que se sentia culpado.
—Não é mais que a ronda noturna. Estarei de volta em umas horas.
—Está seguro? Não me advertiu de que talvez não retornaria?
Arthur examinou com atenção seu rosto e pareceu conscientizar-se de que algo ia realmente mal. Consciente dos homens que patrulhavam a seu redor, a tomou pelo braço e a levou para o jardim que havia na parte posterior à torre, onde ninguém poderia ouvi-los. Agarrou-a pelos ombros para virá-la para si e a olhou com expressão severa.
—A que se deve todo isto, Anna?
Anna ergueu o queixo, odiando que a tratasse como se fosse uma menina pesada.
—Sei.
—O que é o que sabe?
Um soluço apareceu em seu peito, mas conseguiu controlá-lo. As palavras saíram como um torvelinho.
—Sei a verdade. Sei por que está aqui. Sei que me salvou no Ayr. Sei que trabalham para eles — disse Anna, quase cuspindo essa última palavra, incapaz de pronunciá-la.
Ele trabalhava para o inimigo mortal de sua família.
Ficou imóvel, suas feições tinham sido adestradas para a impassibilidade. A Anna caiu a alma aos pés. Essa falta total de reação lhe condenava mais que uma negação.
—Está transtornada —disse Arthur com calma — Não sabe o que está dizendo.
—Como te atreves! —exclamou Anna com voz tremente e uma emoção que ardia em seu peito até converter-se em um acesso de raiva — Não te atreva a mentir! Vi esta manhã agarrar a lança ao vôo e rompê-la com o joelho. Somente vi isso uma vez em minha vida. Não recorda como saíram a me resgatar aquela noite? Um espião dos rebeldes que se fazia passar por cavalheiro? Recebeu uma flechada no ombro por isso. —Tinha vontade de lhe arrancar a armadura e lhe obrigar a que o reconhecesse — Tem uma cicatriz exatamente no mesmo lugar. —Fez uma pausa para que o negasse, quase esperando que lhe desse uma explicação, mas o silêncio enchia o ar estagnado entre ambos — Vi o mapa, Arthur. O mapa que permitiu que eu acreditasse que era um desenho. O tiraram de um mensageiro inimigo — continuou, desafiando-o ainda com o olhar — Talvez devesse chamar a meu pai e que ele seja quem diga.
Arthur franziu os lábios até que embranqueceram. Agarrou-a pelo cotovelo e a aproximou mais a si.
—Baixe a voz —advertiu — Poderiam me matar somente por me acusar disso.
Anna se serenou, aplacando um tanto sua ira, consciente de que o que dizia era certo. Arthur a dirigiu para um banco de pedra e a fez sentar-se.
—Não se mova.
—Aonde vai? —perguntou Anna, irritada por receber ordens dele.
—Dizer-lhes que me atrasarei — respondeu Arthur, olhando-a com expressão severa.
Capítulo 22
«Pense! Maldita seja, pense!»
Arthur levou um tempo para informar aos homens de seu atraso enquanto tentava acalmar a violenta corrente de sangue que afluía por suas veias. Mas todos seus instintos primários de sobrevivência tinham despertado em uníssono em resposta ao perigo. O pior tinha acontecido. Tinham-no descoberto. Anna tinha adivinhado a verdade.
Amaldiçoou ao idiota de seu irmão por lhe jogar aquela lança, que além de que estivera a ponto de lhe atravessar a cabeça, e também a si mesmo por ser tão pouco cuidadoso com o mapa. Sua missão acabava de ir-se ao vinagre, e, a menos que pudesse encontrar uma maneira de justificá-lo, tudo indicava que não viveria para ver o seguinte pôr-do-sol. Não podia pensar no que significaria seu fracasso para Bruce. Se não os avisasse, iriam diretos para a armadilha. Uma vitória dos MacDougall poderia fazer que a guerra mudasse de novo.
Apesar de não advertir nenhum perigo ao sair dos estábulos, Arthur não tirava as mãos de suas armas, quase esperando encontrar-se aos soldados de Lorn aguardando. Mas Anna não tinha avisado a seu pai. Ainda não, ao menos. Esperava-lhe no banco no que ele a tinha deixado. Respirou algo mais tranqüilo em seu caminho de volta ao cruzar o pátio, embora ainda não tinha claro o que lhe diria. Não era só sua integridade e a missão o que estava em jogo. Se ainda ficava a esperança de uma vida em comum para ambos, seria nesse momento quando teria que conseguir que Anna entendesse suas razões.
Ela não o olhou quando se aproximou, mas sim ficou contemplando a escuridão em silêncio, com um rosto que era uma pálida máscara de angústia. Sentou-se junto a ela com uma sensação de impotência absoluta. Queria tomá-la em seus braços e lhe dizer que tudo sairia bem, mas sabia que não era certo. Tinha-a traído. Pouco importa que não pode evitar.
—Não é o que pensa — disse brandamente.
—Não pode fazer uma mínima idéia do que penso. —A voz de Anna estava carregada de emoção. Quando se voltou para ele, com seus grandes olhos azuis alagados de lágrimas não derramadas, Arthur sentiu uma pontada no coração que lhe fez estremecer — Diga que não é certo, Arthur. Diga que tudo é um engano. Diga que não é o que acredito que é.
Deveria. O que significava uma mentira mais em cima de tantas outras? Podia tentar negá-lo. Talvez chegasse a convencê-la. Mas duvidava muito. Ela sabia. Via-o em seus olhos. E se lhe mentisse nesse momento, jamais teria a possibilidade de que o compreendesse. Se queria que eles tivessem uma oportunidade como casal, teria que lhe contar a verdade.
Olhou-a nos olhos.
—Jamais quis lhe fazer dano.
Anna emitiu um som, um gemido de dor que parecia provir de um animal ferido, um gatinho de pele aveludada apanhado em uma armadilha para ursos. Não pôde evitar. Aproximou-se dela para acalmá-la, mas Anna deu um coice.
—Como é capaz de dizer tal coisa? Utilizaste-me. Mentiu em tudo o que era importante. —As lágrimas brotaram das comissuras de seus olhos e caíram em corrente por suas bochechas — Houve algo real? Ou fazer que me afeiçoasse de ti também era parte do plano?
—O que passou entre nós foi real, Anna. Nunca foste parte do plano. Jamais deveram fazer parte disso. Isto não tem nada que ver contigo.
—Então com o que tem que a ver? Com o Robert Bruce? Com as velhas rixas? Com seu pai? —Arthur apertou os punhos e pigarreou — Assim é por seu pai… Culpa ao meu de sua morte —disse, retirando-se dele — Não é mais que um horrível e retorcido feito de vingança. Quer a destruição de minha família porque seu pai morreu na batalha, não é isso? O que é o que planeja, assassinar a meu pai para vingar a morte do seu? —ficou paralisada pelo horror — meu Deus, isso é o que planeja fazer.
Arthur apertava com força os dentes. Dito por ela, soava como algo infame. Simples. Mas era tudo menos isso. Anna, cega pelo amor que tinha a sua família, estava incapacitada para ver o que acontecia a seu redor. Odiava ter que ser ele quem lhe abrisse os olhos, mas não restava outra alternativa.
—É seu pai quem acabará com o clã e não eu, Anna. Robert Bruce fez o que ninguém acreditava possível. É a melhor opção da Escócia para nos liberar do jugo inglês. Ganhou os corações do povo. Mas o ódio de seu pai e seu orgulho lhe impedem de vê-lo desse modo. Prefere ver uma marionete inglesa no trono… Os MacDougall ficam sozinhos, Anna. Inclusive Ross acabará rendendo-se.
Anna ficou completamente rígida.
—Meu pai faz o que considera correto.
—Não, seu pai faz tudo o que está em sua mão para não admitir a derrota. Não se equivoque em relação às razões de tudo isto. Seu pai preferiria os ver mortos antes que aceitar a derrota.
Advertiu a indignação que ruborizava suas bochechas.
—Vocês não sabe nada de meu pai.
Anna fez uma tentativa de levantar-se, mas ele a agarrou pelo pulso e a obrigou a permanecer sentada.
—Sei mais do que queria a respeito de seu pai. Sei exatamente do que seria capaz por ganhar.
Anna tentou libertar seu braço.
—Me solte.
—Não até que ouça tudo o que tenho a dizer.
Não havia nada que desejasse menos que desiludi-la, mas era consciente de que não podia protegê-la da verdade durante muito mais tempo.
—Não vos disse tudo o que vi o dia em que mataram a meu pai.
—Não quero…
—Entretanto, ouvirá —a interrompeu — Embora não queira fazer. Eu estava nessa colina e o vi tudo, Anna. Meu pai tinha ao seu a mercê de sua espada. Poderia tê-lo matado e, não obstante, teve piedade dele. Seu pai aceitou os termos, acordou a rendição e depois, quando meu pai deu a volta, matou-o.
Anna deixou escapar um grito afogado com uns olhos cheios de horror e incredulidade.
—Está errado. Meu pai jamais faria algo tão desonroso.
Arthur a agarrou firmemente e a obrigou a olhá-lo nos olhos.
—Eu estava ali, Anna. Vi e ouvi tudo, mas não pude fazer nada para detê-lo. Tentei advertir a meu pai, mas era muito tarde. Lorn me ouviu e enviou a seus homens a que me caçassem, e tive que me ocultar na floresta durante uma semana. Quando saí dali, era muito tarde para mudar a história. Ninguém teria acreditado.
Arthur se deu conta do pânico que a sobressaltava. Sentiu seu coração bater fortemente contra o peito. Lutava por aferrar-se a qualquer fio que pudesse preservar suas ilusões em relação à verdadeira pessoa que ela via em seu pai.
—Deve ter interpretado mal o ocorrido. Estava muito longe.
—Não interpretei mal nada, Anna. Ouvi tudo.
Equivocava-se. Tinha que equivocar-se. Não era certo? Seu pai tinha mau gênio, mas ela sabia que tipo de pessoa era.
Voltou-lhe as costas bruscamente.
—Não acredito.
O pesar de seus olhos cortava mais que o cristal.
— Pergunte tu mesma. —Anna não disse nada. Não queria atender a razão — Seu pai não se deterá ante nada para conseguir a vitória, Anna. Nada. Por todos os diabos, se inclusive utilizou a sua própria filha…
Anna ficou tensa, ofendida por tal acusação.
—Já vos disse que a aliança com o Ross foi minha idéia.
—Não estou falando disso. Refiro-me a lhe usar como mensageira.
Anna ficou sem fôlego. Sabia? Céu santo, teria devotado informação sem ser consciente disso?
—Quando? —exclamou — Desde quando sabes?
—Não o descobri até umas semanas, infelizmente. —Seu rosto tinha uma expressão temível — Por todos os Santos, Anna! Sabem o perigo que correstes?
—Sim, mas nunca imaginei de onde provinha.
«De ti.» Ele era o inimigo. Ele a espiou e fez quanto pôde por…
Anna ficou olhando-o ao mesmo tempo em que todas as terríveis conseqüências iam em turba a sua mente. De repente deu um salto para trás, horrorizada. «Não, isso não, por favor.» Lhe revolveu o estômago.
—Por que insistiu em me acompanhar ao norte, Arthur?
—Para te manter a salvo.
—E para evitar uma aliança com o Ross?
—Sim, em caso de que fosse necessário — disse, fazendo frente a seu olhar sem pestanejar. A dor machucava tanto o coração de Anna que se afogava em seus próprios soluços — Mas não é o que pensa. Aquilo não formava parte de meus planos.
Era como se a fustigassem por dentro. Parecia sangrar-se, como se estivesse em carne viva.
—E acha que tenho que acreditar?
Arthur contraiu a mandíbula.
—É a verdade. O que ocorreu naquele aposento foi porque o ciúmes e o medo de te perder me deixaram meio louco. Não me orgulho do que fiz, mas juro Por Deus que não o tinha planejado.
—Ocorreu por acaso, isso quere dizer? E o que passa com o de ontem à noite? Ocorreu também por acaso? —Sua voz se quebrou pela emoção que a embargava — Como pode, Arthur? Sabias o que acabaria passando e mesmo assim me deixou acreditar que te importava, que queria te casar comigo. E não eram mais que mentiras.
Como podia ser tão idiota para oferecer-se a um homem que planejava traí-la, trair a todos eles?
—Não — disse Arthur com rudeza, obrigando-a a lhe olhar nos olhos — Não era mentira. Nada disso era mentira. Eu… — Vacilou, como se aquelas palavras não coubessem em sua boca — Eu te amo, Anna. Nada me faria mais feliz que me casar contigo.
Por um estúpido momento o coração lhe deu um tombo ao escutar essas palavras que tanto tempo tinha esperado. Umas palavras que deviam fazer que tudo fosse perfeito, mas que não conseguiram mais que afundar na desgraça daquele assunto.
Era um homem cruel. Era cruel lhe dizer aquilo que tão desesperadamente ansiava ouvir. Bem certo, não fazia mais que manipulá-la para que não o delatasse.
«Delata-o.» Oh, Deus, o que poderia fazer? Tinha a obrigação de dizer a seu pai o que acabava de descobrir. Mas se o fizesse não cabia a menor duvida do que aconteceria. Arthur morreria. E se não o fizesse, Arthur passaria ao inimigo a informação que tinha obtido. Tratava-se de uma escolha impossível, mas sabia que, apesar de tudo o que Arthur fizesse, não podia ser ela quem jogasse o laço ao seu pescoço. Um só homem não podia derrotar a um exército.
—De verdade espera que acredite que me ama?
Arthur adotou uma postura rígida, mas seguiu olhando-a nos olhos.
—Sim, espero. Não tenho nenhum direito a fazer, mas essa é a verdade. Jamais antes disse essas palavras a ninguém e nunca pensei que o faria. Mas do primeiro momento que te vi, senti algo especial. Sei que você também o sentiu, uma conexão a que não me pude resistir.
—O que sentia era luxúria — disse Anna devolvendo suas palavras. Arthur franziu os lábios. Ela era consciente de que o estava levando ao limite, mas se sentia muito doída e furiosa para que lhe importasse — Como pode esperar que acredite em seu amor quando me mentistes do primeiro dia em que nos conhecemos?
—O que queria que fizesse? Não estava em posição de dizer a verdade. Acredita que eu queria que acontecesse isto? Por Deus santo, é a última pessoa no mundo que queria me ter apaixonado. —Anna se estremeceu. Supunha que isso tinha que fazê-la sentir melhor? Embora lhe doesse que aceitasse seus sentimentos com tal dificuldade, as palavras de Arthur tinham o distintivo da verdade — Tentei me manter à margem —assinalou, dando rédea solta a sua frustração — Mas não me permitiram isso.
—Então é minha culpa, não?
Arthur suspirou e voltou a levar as mão aos cabelos.
—Não, é obvio que não. Inclusive caso tivesse me evitado, eu teria me apaixonado por você a distância. Atraiu-me desde a primeira vez que a vi. Sua calidez. Sua vitalidade. Sua doçura. É tudo que não sabia que perdia na vida, o que não acreditava possível para mim. Jamais quis ter esse tipo de intimidade com alguém até que a conheci. —Apesar de todas suas tentativas para não cair em seus enganos de novo, Anna não pôde evitar que seu coração se comovesse. Arthur a puxou pelo queixo e voltou seu rosto para olhá-la nos olhos — Sei que não posso esperar que acredite, Anna, mas sim espero que tente compreender que o fiz o melhor que pude dadas as difíceis circunstâncias. Estava condenado a lhe trair inclusive antes que nos conhecêssemos.
Os olhos de Anna examinaram seu rosto em busca de sinais de engano, mas somente encontravam sinceridade. Queria acreditar, mas como podia fazer sabendo o que pretendia? Inclusive no caso de que seus sentimentos fossem sinceros, tinha a intenção de traí-la. Ele estava em um lado e ela no outro. Queria matar a seu pai.
Anna voltou o rosto bruscamente, receando sua própria debilidade. Quando a olhava com essa expressão, somente podia pensar em lhe beijar e no quão protegida se sentira entre seus braços, fingindo que tudo sairia bem.
—Como poderia acreditar que te importo quando está aqui para nos espiar, destruir a minha família e se vingar de meu pai? Se me amas de verdade, não poderia fazer.
Os olhos de Arthur brilharam com força na escuridão, como se queria discutir com ela mas compreendesse a inutilidade do gesto.
—O que outra coisa poderia fazer?
—Poderia deixar de lado sua ânsia de vingança. —Olhou-o nos olhos, consciente de que estava a ponto de lhe pedir um impossível, mas sabendo também que essa era a única oportunidade que teria para ambos — Poderia escolher ficar comigo.
Arthur ficou petrificado. Maldita seja por lhe fazer isso! Por lhe fazer escolher. Pedia-lhe quão único não podia dar. Não podia jogar por terra toda sua honra e lealdade, nem sequer por ela. Seu rosto adotou o aspecto do granito.
—Fiz um juramento, Anna. Jurei dar minha espada ao Bruce. —E ao Guarda dos Highlanders, pensou — Ir contra isso seria ir contra minha consciência. Ir contra todo aquilo no que acredito. E apesar de que tenha razões para acreditar o contrário, sou um homem de honra.
Era o dever, a lealdade e a honra o que o tinham levado até ali.
—Mas isto não é só uma questão de honra. Não é certo? —desafiou-o — É uma questão de vingança. Quere a destruição de meu pai.
—Quero justiça — disse Arthur esticando a mandíbula.
Seus grandes olhos o olhavam com expressão luminosa e suplicante, remoendo sua consciência. Anna pôs uma mão sobre a sua, mas pareceu que com ela se agarrava a seu coração.
—É meu pai, Arthur.
Pareceu que todo seu interior se retorcia. Essa suave súplica chegava mais fundo do que gostaria. Como era capaz de lhe fazer isso? Como podia apertar as porcas para que ele se visse na necessidade de fazer quanto pudesse por satisfazê-la? Mas era impossível. Isso não podia fazer.
Durante quatorze anos sua vida se centrou em uma só coisa: desfazer uma ofensa. Tinha esperado muito tempo para encontrar-se com o Lorn cara a cara no campo de batalha. Assim como não podia negar seus sentimentos por ela, tampouco podia evitar sua promessa de justiça.
—Acredita que não sou consciente de que se trata de seu pai? Acha que não passei cada um dos dias destes dois últimos meses desejando que não fosse assim? Eu não queria que acontecesse nada disto, maldita seja.
As lágrimas brilharam nos olhos de Anna.
—Acredito que isso já deixa suficientemente claro. Seus sentimentos por mim são um obstáculo.
—Eu não disse isso. —Arthur apertou os punhos.
—Não têm nada que explicar. Acredite, entendo.
A aspereza de seu tom deixava muito claro os sentimentos de Anna. Levantou-se do banco e caminhou uns passos para o interior do pátio com o olhar perdido na escuridão.
—Parte —disse sem expressão na voz — Parta antes que mude de opinião.
Não podia acreditar que fosse o deixar partir. Por um segundo teve um brilho de esperança. Isso somente podia significar que ela ainda lhe amava, pois ao deixá-lo partir anteporia-o a sua família. E tinha que partir. Não gostava da idéia de deixá-la plantada assim, mas tinha que advertir ao rei. Aproximou-se dela, ficou a seu lado, tomou pelo cotovelo e a atraiu para si com delicadeza. Dava a impressão de ser mais jovem e frágil à luz da lua, com esse rosto pálida que parecia um ovalóide de alabastro.
—Juro-lhe que voltarei assim que possa.
Anna negou com a cabeça sem deixar de olhar ao infinito.
—Já têm feito sua escolha. Se partir agora o fará para sempre — disse, olhando-o ao fim com um rosto imperturbável — Não quero voltar a te ver jamais.
A determinação de sua voz cortava como uma espada.
—Não diz a sério. —Não podia falar sério. Era sua raiva que falava. Mas a rigidez da posição de seu queixo fez que o pânico corresse pelas veias de Arthur. Conhecia essa expressão. Atraiu-a para si com força, consciente de que tinha que fazê-la entrar em razão — Não diga algo do que poderia te arrepender.
Anna escoiceou ao sentir o contato.
—O que faz? Me soltem! —Deu-lhe um empurrão para desembaraçar-se dele.
Mas seus esforços não fizeram mais que aumentar a sensação de pânico de Arthur. Tinha que fazer o ver. Como podia negar? Acaso não sentia ela a energia que desprendiam seus corpos? O calor? Estavam destinados um para o outro.
Ficou sem palavras e sem tempo, de modo que a beijou, capturando sua boca com a dele em um desesperado e feroz abraço. Ela ficou lívida, já sem lutar, simplesmente deprimida sobre seus braços. «Não, maldita seja. Não.» A ausência de reação piorava a sensação de urgência. Beijou-a com mais força, com mais paixão, obrigando-a a abrir os lábios, procurando algo que muito temia lhe estava escapando entre os dedos. Seus lábios estavam quentes e suaves, seguiam tendo sabor de mel, mas nada era como antes. «Ela não quer que a beije.» deteve-se. «Que demônios estou fazendo?» Deixou-a ir ao mesmo tempo em que soltava uma imprecação e ficava olhando com horror. Nunca antes tinha feito algo assim. A idéia de perdê-la fazia que se voltasse louco.
—Deus, Anna! Sinto—disse com uma voz rouca e entrecortada pela aspereza de seu fôlego.
Merecia que lhe dirigisse esse olhar, como se ele fosse o barro que se aderia a seus sapatos.
—Jamais acreditei que fosse um bruto, mas dá a sensação de que está em seu lugar junto ao rei usurpador. Simplesmente tomam quanto querem.
—Anna, eu…
—Parte de uma vez — disse ela com Isso é o melhor que pode fazer. Já têm feito suficiente dano. —Olhou-o nos olhos, desafiante — Acaso pensava que poderia te perdoar isto?
Era a confirmação de seus piores temores. Fora um idiota. Permitia que as emoções turvassem sua percepção da realidade. Pensava que seria possível um futuro para eles pela simples razão de que a queria mais que a tudo no mundo. Mas nunca tivera nem a mais mínima oportunidade. Jamais lhe perdoaria aquilo que a obrigação, a honra e a lealdade lhe impunham. Fixou os olhos em Anna em busca de algum sinal de debilidade, mas ela o olhava com frieza, imutável. A ausência de lágrimas, ira ou emoção não deixava lugar a dúvidas. Tudo tinha acabado. Deus, tudo tinha acabado de verdade.
Arthur sempre soube que poderia chegar este momento, mas nunca esperou sentir-se tão impotente e desesperançado. Jamais pensou que doeria tanto. Parecia que o tivessem quebrado em mil pedaços por dentro e não houvesse nada que fazer a respeito.
—Vos amo, Anna. Sempre te amarei. Nada poderá mudar isso. Espero que algum dia compreenda que nunca quis te fazer dano.
Alongou o braço para tocar sua bochecha uma vez mais, incapaz de deter-se, mas ela se separou dele como se fosse um leproso e sua mão caiu sem força sobre o ar.
—Adeus.
Dito isto, Arthur a olhou pela uma última vez, uma imagem que teria que reter para sempre, deu meia volta e abandonou o lugar.
Jamais esqueceria o aspecto que tinha naquele momento: pequena, sozinha; de uma beleza dolorosa, com seus longos cabelos dourados caindo sobre os ombros em sedosos cachos e seus delicados traços resplandecendo sob a opalescente luz da lua. Tão frágil que poderia romper-se como o cristal. Mas determinada. Com uma determinação atroz.
Parecia ter o peito ardendo e que seu calor se intensificava a cada passo. Acreditava caminhar sobre as brasas do inferno e que o peso de suas pegadas fosse pura agonia. Não podia desprender-se da sensação de que estava mal deixá-la ali de tal modo, de que não fazia o correto nesse momento, depois já não teria oportunidade de fazer. Estava a meio caminho da estrebaria quando se voltou. Mas já era muito tarde. Ela não estava. Olhou para o alto da escada que conduzia à torre da comemoração e alcançou a ver uma mecha de cabelo dourado seguindo a esteira de sua figura como se de um pendão se tratasse antes de desaparecer depois da porta. Uma vez esta se fechou, pareceu que algo se fechava também em seu interior. Para sempre. Era uma parte dele que jamais devia ter aberto. Isso era o que conseguia por relacionar-se intimamente com as pessoas. Estava destinado à solidão. Nunca deve esquecer isso.
Tentou evitar o vazio que ardia em seu interior. Tinha que deixar de pensar nisso. Precisava centrar-se na tarefa que tinha entre as mãos. Mas o rosto de Anna seguia aparecendo ante ele. Perseguia-o. Distraía-o.
Entrou na cavalariça e se apressou a preparar seu cavalo. Apresentar-se voluntário à ronda noturna se provou duplamente providencial. Não só servia como desculpa para sair do castelo, mas sim também significava que não teria que perder tempo voltando para os barracões. Seus pertences mais importantes levava consigo: a cota de malha e as armas. As mudas de roupas e os poucos artigos pessoais que tinha podia deixá-los ali. Os planos tinham mudado. Tinha que partir para sempre, por mais que isso significasse que Lorn estivesse a par de que seu plano estava em perigo. Não ficava mais opções toda vez que Anna tinha descoberto a verdade. Não podia arriscar-se a que ela mudasse de opinião.
Não empregou mais de cinco minutos no estábulo. Não pensava mais que em sair dali quanto antes e pôr terra entre eles. Dizia a si mesmo que isso era o melhor que podia acontecer. Estava bem antes na solidão e voltaria a estar.
Entretanto, não chegou a sair do estábulo. Seus sentidos o advertiram, mas não o fizeram a tempo. De novo suas emoções o distraíram. Embora nesse caso não teria feito diferença alguma.
Abriu a porta do estábulo e se encontrou rodeado. John de Lorn e seu filho Alan flanqueados por ao menos uma vintena de guardas espadas em mão. A mandíbula de Arthur se contraiu pela dor que representava aquela punhalada nas vísceras. Não podia acreditar. Anna o tinha delatado. Talvez teria que ter esperado, mas não acreditava que seria capaz disso. Subestimou o amor que Anna tinha a seu pai e superestimou o que sentia por ele. Não havia razões para que encarasse como uma traição. Mas assim era.
Lorn arqueou uma sobrancelha de maneira indolente.
—Ia a alguma parte, Campbell?
—Sim — respondeu despreocupadamente, como se não estivesse rodeado por homens armados — vou unir me ao grupo de vigilância noturna. —Olhou em redor, sem sinal de fingir sua indignação — O que significa isto?
Lorn sorriu, embora em sua expressão não havia nenhum sinal de simpatia.
—Temo que estamos obrigados a lhe reter um momento. Há vários assuntos que temos que esclarecer.
Arthur deu um passo à frente. Ouviu o tinido do metal enquanto os guardas respondiam a sua afronta elevando as espadas e fechando o cerco a seu redor. Mas não era necessário. Estava apanhado. Talvez conseguisse abrir com golpes através de uma vintena de homens que apontavam a seu pescoço as espadas, mas as portas do castelo já estavam fechadas. Não seria capaz de atravessar sem que todo o castelo se erguesse contra ele. Não havia saída.
Olhou ao Alan, mas não obteria ajuda dele. Mostrava um olhar tão duro e inquebrável como o de seu pai, embora sem esse brilho de maldade acerada. Todos seus instintos clamavam por que lutasse, por desembainhar a espada e levar consigo a alguns homens de Lorn. Mas se obrigou a manter a calma. A não fazer nenhuma tolice. Sua missão era que vinha em primeiro. Se existia a mais remota possibilidade de que pudesse escapar para avisar ao Bruce, teria que considerá-la. Talvez pudesse sair desse embrulho por meio do diálogo. Não estava seguro de quanto havia contado Anna.
—Não pode esperar? —disse — Estão me aguardando.
—Temo que não — repôs Lorn. Fez um gesto com a mão e dois de seus homens mais fortes se adiantaram para agarrar Arthur nos braços — Levem-no às masmorras. Revistem.
«Diabos.» Ao que parecia não teria modo de sair dali por meio do diálogo. Tinha esquecido a nota, a mensagem que pensava deixar na cova essa noite para o rei. Um pequeno pedaço de papel dobrado que levava na bolsa com três palavras que selariam seu destino: «Ataque, 14, Brander».
Embora talvez seu destino tivesse ficado sentenciado dois meses atrás, quando se encontrou cara a cara com a moça que acabava de resgatar de um ataque fatal. A garota que poderia desmascará-lo.
Arthur emitiu um feroz grito de guerra que atravessou a noite e deixou que fosse seu instinto quem tomasse o mando: «Bàs roimh Gèill!». Morrer antes que render-se. Lutou como um selvagem e tombou a cinco soldados antes de cair sob o punho da espada do Alan MacDougall. À medida que a escuridão se abatia sobre ele, soube que aquilo não tinha acabado. E que estava a ponto de piorar.
Queriam-no vivo.
Capítulo 23
Supunha-se que não teria que sentir o coração partir-se. Anna queria que Arthur fosse embora. Tinha mentido. Tinha-a traído. Tinha-a usado. Queria destruir tudo que era importante para ela. Como podia pensar que existia possibilidade alguma de continuar juntos? Inclusive chegava ao ponto de tentar beneficiar-se da paixão que existia entre ambos. Como se um beijo pudesse fazê-la esquecer o que tinha feito. Odiou-o naquele momento. Odiou-o por manchar algo que era formoso e puro.
Dizia a si mesma que isso era o que ela queria, mas assim que Arthur deu meia volta e partiu, o gelo de seu coração começou a rachar-se.
Partia. Abandonava-a.
Jamais voltaria a vê-lo.
«Oh, Deus.» ficou completamente quieta, sem ousar mover-se ao estremecimento de seu interior. Sentia-se como uma fina lâmina de cristal sacudida por uma violenta tormenta de emoções. Forte na superfície e frágil na realidade. Assim que o vento soprasse com força, romperia em mil pedaços diminutos. Não devia sentir-se assim depois do que tinha feito. Não tinha por que sofrer tanto. A dor. O remorso. A desolação. A sensação de que lhe arrancavam o coração. Essa intensidade de emoções parecia pura debilidade. Onde estava seu orgulho? Era uma MacDougall e entretanto, nesse momento, somente se sentia como uma garota que observa como o homem ao que ama parte de sua vida para sempre.
Incapaz de suportar por um momento mais, temendo o que ele veria se desse a volta, pôs-se a correr. Subiu a escada tão rápido como pôde até que alcançou a segurança de sua câmara. Ali se desabou sobre a cama com cuidado de não despertar a suas irmãs, jogou a manta por cima da cabeça e se amassou sentindo-se como uma boneca de trapo. Somente então se deixou levar pela emoção e rompeu a chorar em silenciosos soluços que pareciam arrancados de sua própria alma.
Escudeiro, sentindo sua angústia, se aninhou junto a ela. Anna abraçou ao cachorrinho e fez dessa cálida bola de pelo de amor incondicional sua companhia durante daquela longa e miserável noite.
«Amo-te.»
Não podia tirara as palavras da cabeça. Soavam tão sinceras… Mas Arthur tinha mentido em todo o resto, assim por que teria que acreditar nisso? Inclusive no caso de que fosse certo, não deveria ter importância. Anna repassava o ocorrido uma e outra vez, recordando cada uma das palavras de sua explicação, sua justificação… ou como que pudesse chamar aquilo que tentava fazer. Já era suficiente que estivessem em lados contrários da guerra, mas realmente esperava que ela compreendesse sua necessidade de destruir ao clã familiar? De matar a seu pai, o homem a quem ela mais admirava no mundo? E tudo por certa forma retorcida de vingança? Justiça, tinha chamado ele.
Não queria ouvir suas explicações nem entender suas razões. E tampouco acreditou nem por um momento as mentiras que tinha dito a respeito de seu pai. Ele jamais teria matado a um homem de maneira tão desonrosa. «Faria tudo por ganhar», pensou tapando as orelhas com o travesseiro como se as plumas pudessem conter seus próprios temores. «Pergunte você mesma», tinha-a desafiado Arthur.
Não precisava perguntar. Ela sabia a verdade.
Mas Arthur parecia muito seguro a respeito do que tinha visto.
Anna saiu da cama assim que as primeiras luzes do amanhecer estenderam seu manto pelo chão. Fez suas abluções matinais e passou sigilosamente junto a suas irmãs para sair da câmara. Sabia exatamente o que faria. Demonstraria que Arthur se equivocava. Assim poderia deixar tudo aquilo atrás e deter esse miserável sofrimento de seu coração.
Ainda não tinham disposto as mesas com seus cavaletes e alguns dos homens seguiam ainda despertando em seus lugares do grande salão quando se apressou para os aposentos de seu pai. Sabia que estaria de pé, apesar de que mal tivesse passado uma hora do amanhecer. Quando se preparava para a batalha, John de Lorn virtualmente não dormia. Ouviu sua voz assim que se aproximou da entrada.
—Não me importa quanto tempo dure. Quero saber os nomes.
—Não sei por quanto mais poderá…
Alan deteve em seco suas palavras ao vê-la entrar no aposento. Com somente olhá-lo à cara, Anna soube que algo ia mal. Seu pai estava sentado à mesa. Frente a ele seu ajudante, o capitão da Guarda e seu irmão Alan. Seu pai entreabriu os olhos com ira ao vê-la, enquanto os outros desviaram o olhar, quase como se quisessem evitá-la. Anna, pensando que a irritação de seu pai se devia à interrupção, apressou-se a bater-se em retirada.
—Sinto muito. Voltarei mais tarde.
—Não —respondeu John de Lorn — Tenho que falar contigo. Já acabamos com isto. Não quero mais desculpa —disse ao Alan — Consiga o que quero. Custe o que custar.
Alan franziu o cenho, mas assentiu. Anna sentiu uma pontada no coração ao ver que saía do aposento sem lhe dirigir a palavra, nem sequer um olhar. Tomou assento no banco que havia em frente a seu pai e cruzou os braços sobre o regaço. A intensidade de seu olhar a fazia sentir incômoda em certa forma. Estava furioso e não era por causa da interrupção.
—Se tiver algo que me dizer, chega muito tarde.
A Anna lhe encolheu o coração.
—Algo… algo que lhes dizer?
Seu pai tirou um pedaço de papel de sua bolsa e o pôs sobre a mesa ante ela. Um calafrio percorreu sua nuca ao reconhecer o mapa.
—Sim —disse John de Lorn — Quando viu isto antes, por exemplo. —A vergonha tingiu as bochechas de Anna. Como o tinha averiguado? Seu pai respondeu à pergunta por ela — Sua reação. Que fosse lhe buscar imediatamente depois de ver o mapa confirmou a procedência.
Acaso seu pai os tinha vigiado durante todo o tempo? Não, talvez no pátio, mas não era possível que os tivesse divisado no jardim, pois este não alcançava a ver do salão. Embora, obviamente, tinha visto o suficiente.
—Não esperava isto de ti, Anna.
Inclinou a cabeça, profundamente afetada por tê-lo decepcionado. Não tinha desculpa. Queria dizer que não estava segura, mas sim o estava. Assim que tinha visto o mapa, tinha sabido que Arthur era um espião.
—Sinto muito, pai. Queria lhe dar uma oportunidade para que se explicasse.
—E te satisfez sua explicação? —repôs seu pai com uma voz tão afiada como um látego.
Ela negou com a cabeça. Embora sabia que tinha a obrigação de contar-lhe tudo, essas palavras seguiam sendo muito difíceis de dizer. Teve que recordar que Arthur a tinha abandonado.
—Sua lealdade está com Bruce — começou, detendo-se depois para olhar a seu pai com cautela — Disse que Bruce se ganhou o coração do povo. Que é a melhor alternativa para nos libertar da tirania inglesa de uma vez por todas. E que vamos perder e que será melhor que nos rendamos.
Seu pai ficou vermelho de cólera.
—E acreditou? Arthur Campbell diria tudo para ganhar sua simpatia. Você, pequena insensata… estava te utilizando para escapar. Jamais nos renderemos. E não vamos perder.
A segurança de suas palavras jogou Anna em muitas dúvidas e a fez duvidar de se devia mencionar o resto. Seu pai já estava mais que zangado com ela, mas tinha que acabar com tudo aquilo.
—Afirma que estava ali quando matou a seu pai e que ele viu tudo.
A leve separação do olhar de seu pai poderia significar algo, mas fez que o coração de Anna se detivesse.
—Isso é impossível — disse, descartando a idéia — Não sei o que veria, mas Colin Mor e eu estávamos longe do grupo. Não havia ninguém ali quando combatemos. Em qualquer caso, eu nunca neguei que caísse sob minha espada. Nem que a vitória que consegui para nosso clã fosse a causa da perda das terras dos Campbell no lago Awe. Que Arthur Campbell albergue desejos de vingança por isso é algo inevitável, mas não supõe desculpa alguma.
Obrigou-se a olhar nos olhos, apesar de que se odiasse a si mesmo por repetir a acusação de Arthur.
—Disse que seu pai o tinha sob a ponta de sua espada e que lhes ofereceu a rendição, que aceitou e que depois o assassinou quando deu a volta.
Nessa ocasião a separação do olhar paterno não podia ser interpretada mal. Nem tampouco a tensão de sua mandíbula, nem as rugas brancas que se marcavam ao redor de sua boca. Estava zangado. Zangado sim, mas não quão ofendido deveria. O rosto de Anna empalideceu. «Oh, Deus. É verdade.»
O horror que adivinhou na expressão de sua filha pareceu incomodar ao John de Lorn.
—Aquilo ocorreu faz muito tempo. Fiz o que devia fazer. Colin Mor era cada vez mais poderoso; invadia nossas terras. Teria que detê-lo.
Anna parecia estar na presença de um estranho e que pela primeira vez via o homem que realmente era. Seguia sendo o mesmo pai ao que amava, mas já não era esse homem incapaz para ela de fazer nada mal. Já não era um homem ao que não podia questionar. Tinha deixado de ser um deus. Não, mostrava uma humanidade temível. Parecia-lhe imperfeito e capaz de cometer enganos. Grandes enganos. Enganos execráveis.
Arthur tinha razão. Seu pai faria tudo pra ganhar. Nem sequer se deteria pelo bem de seu próprio clã.
—Tem pouco pelo que me julgar, filha. Você, que deixa que alguém que trai nosso clã parta em liberdade… —Endureceu tanto a voz que quebrou — Sabe o dano que poderia ter feito?
Seu pai tinha razão. Tinha decidido deixar livre Arthur, inclusive sabendo que poderia fazer dano a seu clã, porque não suportava a idéia de converter-se em instrumento de sua morte.
—Não queria que lhe fizessem mal. Eu… lhe tenho carinho. —Anna ficou calada de repente, surpreendida de que seu pai falasse em condicional — O dano que poderia ter feito? —perguntou.
Seu pai franzia o cenho de modo forçado e a brancura de seus lábios contrastava com a cor avermelhada de seu irado rosto.
—Tem sorte de que pudesse mitigar o desastre. Meus homens rodearam ao Campbell ontem à noite quando tentava a fuga. Levava uma mensagem que prova sua culpa —disse com os olhos ardendo de fúria — Uma mensagem que poderia ter arruinado tudo.
Anna não podia respirar do horror que bulia em seu interior. O medo atendia seu coração e o espremia.
—O que têm feito com ele?
—Isso não é de sua incumbência.
O pranto contido lhe ardia na garganta. Nos olhos. O pânico comprimia seus pulmões. Mal pôde pronunciar umas palavras: —Por favor, pai, simplesmente me diga… está vivo?
Ele não respondeu imediatamente, mas sim a observou com seu frio e escrutinador olhar.
—Por agora sim. Tenho algumas pergunta para ele.
Anna fechou os olhos e exalou o ar com uma sensação de alívio assustadora.
—O que farão com ele?
Seu pai a observou com paciência. Era óbvio que não gostava daquele interrogatório.
—Isso depende dele.
—Por favor, tenho que o ver.
Anna tinha que assegurar-se de que Arthur se encontrava bem.
Seu pai pareceu ultrajado por tal petição.
—Para que lhe deixe partir de novo? Não acredito — disse apertando a mandíbula com raiva — Não serviria de nada. Esse homem é perigoso e não se pode confiar nele.
—Arthur jamais me faria mal — disse Anna sem pensar, para imediatamente conscientizar-se de que era a verdade. Ele a amava. Sabia que no fundo era certo. Não mudava nada do passado, mas talvez sim do futuro. O coração lhe encolheu. Se é que tinha um futuro — Por favor…
Seus rogos caíam em ouvidos surdos. Os olhos escuros de seu pai a olharam com uma dureza inquebrável.
—Arthur Campbell já não é teu assunto. Já tem feito suficiente dano. Como posso estar seguro de que não tentará procurar um modo de lhe ajudar? —Os protestos de Anna morreram em sua garganta. Para falar a verdade, tampouco ela podia estar segura. O medo que atendia seu coração ao pensar que Arthur estava encarcerado fazia que se inteirasse de que não era tão fácil evadir-se do que sentia por ele — Não esperava isto de ti, Anna. —A decepção de sua voz a rasgava até o mais profundo, e essa sensação se via agravada pela segurança de que merecia. Mas estava entre duas águas, apanhada entre dois homens que amava. Seu pai a despediu com um gesto anti-social da mão — Estará pronta para partir dentro de uma hora.
Ficou sem respiração.
—Partir? Mas pra onde?
—Seu irmão Ewen partirá como vanguarda do exército com um contingente amplo de homens para assegurar nossas defesas em Innis Chonnel. Irá com ele. Uma vez que tenhamos mandado ao rei Hood ao inferno, fará uma visita a meu primo o bispo do Argyll em Lismore. Ali terá tempo de pensar no que tem feito e em onde reside sua lealdade.
Anna assentiu com lágrimas cada vez mais abundantes. Estava claro que seu pai não confiava nela e não a queria no castelo enquanto ele permanecesse fora. Sabia que poderia ter sido pior, que o castigo de seu pai poderia ter sido muito mais severo. Mas não podia suportar a idéia de abandonar Arthur sem saber o que seria dele.
—Por favor… Farei o que me peça. Mas me prometa simplesmente que não o matarão quando eu esteja fora —disse, engasgando-se com seus soluços — O amo.
—Basta! Põe a prova minha paciência, Anna. Seus ternos desejos para esse homem lhe fazem esquecer seu dever. O único que te libera de um castigo muito pior é saber que talvez eu também tenha parte de culpa por te pedir que o vigiasse. Arthur Campbell é um espião. Sabia o risco que corria quando decidiu nos trair. Não terá nada menos do que mereça.
Arthur já não sentia nada. Fazia horas que tinha ultrapassado a soleira da dor. Tinham-lhe batido, fustigado e quebrado cada um de seus dedos com o aplastapulgares15. Mas sim percebia o sabor do sangue. Esse nauseabundo sabor metálico enchia seu nariz e boca como se estivesse afogando-se nele. Sua cabeça pendurava para frente e seu cabelo, molhado e empapado em suor e sangue, ocultava seu olhar daqueles que lhe rodeavam. Em algum momento da noite chegaram a ser mais de uma dezena os homens que tentavam fazer que se rendesse. Agora que os raios de sol atravessavam as seteras da masmorra, somente ficavam três deles.
Estava preso a uma cadeira, mas não era necessário imobilizá-lo. Já não supunha nenhuma ameaça. Tinham-lhe retorcido tanto o braço direito que tinha saído do ombro. Sua mão esquerda pendurava inerte junto a seu corpo, com cada um de seus ossos quebrados um a um com uma lentidão agonizante. E pensar que tinha rido a primeira vez que tinha visto aquele artefato… Aquela pequena braçadeira de metal parecia inofensiva, certamente nada que pudesse obrigá-lo a lhes contar o que queriam. Mas logo aprendeu como algo simples podia provocar um sofrimento terrível. Mais dor do que jamais tinha imaginado. Estivera a uma volta de lhes contar tudo que queriam saber. Teria dito o que fosse para que parassem.
—Maldito seja, Campbell. Diga simplesmente o que querem saber.
Arthur olhou a Alan MacDougall através do véu emaranhado de seu cabelo empapado. O irmão de Anna permanecia junto à porta como se não pudesse esperar mais para sair dali, com o rosto lívido e contraído. Quase parecia que fosse ele a quem torturavam. O herdeiro de Lorn não tinha estômago para isso. Mas seu ajudante sim. Arthur tinha a impressão de que aquele filho de cadela sádico poderia continuar com isso durante dias e dias. Apesar de não poder falar, emitiu uma espécie de grunhido e negou com a cabeça, sem forças. Não. Ainda não. Não lhes diria nada ainda. Entretanto, a palavra «nunca» já não aparecia entre seus pensamentos.
A cabeça foi para trás, impulsionada pelo novo golpe daquele filho de cadela, que lhe sacudiu com um punho envolto em correntes que, bem, parecia uma marreta.
—Os nomes —exigiu — Quem são os homens que lutam na guarda secreta?
Arthur já não se incomodava em fingir ignorância. Não acreditavam. Anna o tinha condenado sem se dar conta disso. Graças ao acontecido no Ayr, quando ele a resgatou, e também ao último ataque nos bosques, Lorn estava seguro de conhecer menos a um dos membros da infame guarda fantasma. Não podia culpá-la por isso. E pelo que parecia, tampouco podia culpá-la por delatá-lo. Em algum momento da noite entre os golpes e o látego, Arthur percebeu de que, dadas as perguntas que lhe dirigiam, o mais provável era que estava errado. Em caso de que ela o tivesse traído, não havia lhes dito muito.
Percebeu como o punho do filho de cadela voltava para ataque, como uma mancha negra nos limites de sua consciência. Preparou-se de maneira instintiva para o golpe embora soubesse que não serviria de ajuda, já que por seu tamanho e o poder de seus socos, diria que o ajudante provinha de uma longa dinastia de ferreiros. Entretanto, alguém bateu na porta e reclamou ao ajudante de Lorn, de modo que Arthur pôde recuperar um instante. Derrubou-se sobre a cadeira e procurou introduzir um sopro de ar em seus encharcados pulmões. Tinha uma costela quebrada como mínimo, embora achasse que fossem mais.
—Eles o matarão se não contar — disse Alan.
Arthur tomou seu tempo para responder, tentando fazer provisão das forças necessárias para falar.
—Matarão-me de qualquer forma — grunhiu.
Embora Alan não afastou o olhar, sua careta de agonia disse a Arthur que seu rosto devia refletir a dor que sentia.
—Sim, mas será muitíssimo menos doloroso.
E mais rápido.
Contudo, Arthur tinha fracassado já muitas vezes e estava decidido a salvar o que pudesse daquela maldita missão. Se fosse capaz de confrontar o momento final sem revelar os nomes de seus companheiros de irmandade, revestiria sua morte com certa aparência de honra.
Mesmo assim, dada a magnitude catastrófica de seus fracassos, não significaria mais que uma vitória vazia. Tinha perdido tudo. Anna. A oportunidade de destruir ao Lorn e render justiça a seu pai. E a oportunidade de avisar ao rei da ameaça. Bruce e seus homens iriam direto para a emboscada e ele não teria meios para lhes advertir.
Tinha falhado igual falhou a seu pai.
Que lhe batessem até convertê-lo em uma massa sanguinolenta, esfolassem-no até deixá-lo a borda da morte e lhe rompessem os dedos um a um servia para que seus pensamentos não escapassem das quatro paredes da prisão. Mas nos pequenos descansos temia as outras conseqüências que sua captura pudesse conduzir. Lorn amava a sua filha e não lhe faria mal; mesmo assim tinha que perguntar.
—Anna?
Alan o olhou com expressão grave.
—Não está mais aqui — Arthur sentiu o mundo desabar sobre ele. Ao ver a horrorizada expressão de seu rosto, Alan se apressou acrescentar — Está a salvo. Meu pai pensou que era melhor tirá-la do castelo até que…
Alan deteve suas palavras. «Até que esteja morto», disse-se.
O ar voltou a encher seus pulmões. Somente a tinham enviado a outro lugar. Mas então o recordou.
—Não… é seguro — conseguiu dizer. Em vésperas da batalha, Bruce teria linhas de ataque rodeando-os e estreitando o cerco. A severa expressão que se desenhou no rosto do Alan lhe dizia que não se mostrava em desacordo, mas, igual a Arthur, via-se impotente para detê-lo — Meus irmãos? —perguntou Arthur.
Pode ser que Dugald e Gillispie fossem seus inimigos no campo de batalha, mas não queria que eles tivessem que sofrer suas preferências.
—Meu pai não tem razão alguma para acreditar que estejam implicados. Fizeram-lhes um breve interrogatório e pareciam tão surpresos como o resto de nós. —deteve-se, com o olhar confuso — por que salvou minha vida? Não tinha por que fazer.
Arthur sacudiu o cabelo do rosto para lhe olhar nos olhos.
—Sim, tinha que fazer.
Alan assentiu, compreendendo tudo.
—Ama-a de verdade.
Não disse nada. O que teria podido dizer? Nada daquilo importava.
A porta se abriu e o ajudante de Lorn voltou a aparecer na saleta com uma corda na mão. A Arthur lhe acelerou o pulso como reação imediata ao perigo.
—Hora de partir —disse — Os homens estão preparados para partir.
Arthur se preparou para o pior, consciente de que tinha chegado seu final. Tinha ganho. Teriam que o matar. Uma pequena vitória nesse amargo mar de fracassos.
—Então terá que enforcá-lo? —disse Alan.
O ajudante sorriu, brindando Arthur com o primeiro sinal de emoção que percebia em seu feio e curtido rosto.
—Ainda não. A corda é para o fosso. —O alívio que embargou Arthur indicou que não estava tão preparado para morrer como acreditava. Depois do que acabava de passar, o úmido buraco de uma fossa de castigo lhe pareceria o paraíso — Talvez os ratos lhe afrouxem a língua — disse o ajudante com uma gargalhada.
Ou talvez um inferno em vida.
O ataque de terror que atravessou seu corpo serviu para lhe dar um jogo de forças primitivo. Lutou contra o metal de seus grilhões como um possuído. Sua pele arroxeada e em tiras sucumbia diante da sensação de ter ratos percorrendo-a.
Tinha que escapar dali.
Mas não podia. Encadeado e ferido, não era rival para os guardas que o arrastavam dos calabouços até a sala contígua. Ao final nem sequer se preocuparam com a corda, mas sim o jogaram dentro.
Escuridão.
Chiados.
Queda. Impacto.
Um duro e arrepiante golpe.
E depois, felizmente, escuridão. Só escuridão.
Capítulo 24
—Ewen, temo que preciso de um momento de privacidade —disse Anna, fingindo um rubor embaraçoso.
—Já? —Seu irmão a olhou como se ela tivesse cinco anos. Estavam no coração da floresta, perto de um túmulo funerário, a uns três quilômetros do castelo — Por que não fez antes de sair?
Anna o fulminou com o olhar para lhe comunicar que não fazia nenhuma graça que lhe falasse como se fosse sua mãe.
—Porque então não precisava fazer.
Ewen pôs cara feia.
—Pararemos quando chegarmos ao Oban. Está a menos de dois quilômetros.
—Não posso esperar tanto —repôs Anna negando com a cabeça — Por favor… — implorou com voz doída, removendo-se um pouco nos arreios para dar ênfase a sua urgência.
Seu irmão murmurou uma maldição e depois se voltou para dar o alto à vintena de homens que os escoltavam através dos perto de cinqüenta quilômetros que o separavam do Innis Chonnel, uma viagem que era muito mais rápido de navio mas que seu pai, depois de navegar do castelo com sua frota, tinha considerado muito perigosa.
—Te apresse — disse com impaciência — Um de meus homens te acompanha…
—Isso não será necessário — interrompeu Anna bruscamente. «Arruinaria tudo» — Eu… —continuou sem ter que fingir o abafado— Temo que esta manhã comi algo que me tem revolto estômago. Pode ser que tarde um pouco.
A seu irmão pareceu lhe envergonhar que compartilhasse detalhes muito pessoais de um assunto que jamais devia mencionar-se. Anna mesma estava horrorizada pela natureza e o alcance de seu embuste, mas necessitava todo o tempo que fosse possível para escapar. Tinha que voltar para castelo. Não havia explicação para isso, mas do mesmo momento em que tinha saído dos aposentos de sua mãe essa manhã, não tinha conseguira deixar de lado a uma insuportável premonição. Talvez estivesse motivada pelas palavras de seu pai, mas ela sabia que algo sairia mal, terrivelmente mal. E essa sensação não tinha feito mais que piorar à medida que o castelo se desvanecia atrás deles sob a luz do sol. Não sabia o que poderia fazer; simplesmente, mas tinha que fazer algo. Pode ser que não tivesse nenhuma possibilidade de estar juntos, mas tampouco desejava sua morte, e dado que seu pai tinha partido do castelo atrás deles, aquela era sua oportunidade.
Em conta da humilhação que supunha que vinte homens observassem como se afastava para fazer suas necessidades, Anna fez provisão de toda a dignidade com que contava, aceitou a ajuda que lhe oferecia o escudeiro de seu irmão para descer do cavalo, deu-lhe as rédeas e entrou em atitude régia para a densa folhagem de árvores e samambaias. Assim que esteve fora do olhar se arregaçou as saias e se pôs a correr. De ali não demoraria mais de dez minutos em chegar até o castelo. O que demoraria era convencer para que a deixassem entrar nos calabouços onde albergavam aos prisioneiros. Mas esperava conseguir antes que seu irmão Ewen se desse conta de que tinha desaparecido. Não demoraria muito em figurar-se aonde teria ido. E ao contrário dela, ele iria a cavalo.
Correu através das árvores em paralelo à estrada para que não a vissem, procurando fazer o mínimo ruído possível. Mas as folhas secas e os ramos caídos faziam com que o silêncio fosse impossível. Ouviu um ruído atrás dela e quis gritar de raiva. Como tinham descoberto tão logo sua fuga? Escondeu-se depois de um penhasco em uma tentativa em ocultar-se, mas se encontrou com que alguém pegava seu pulso por trás.
—Me solte — disse, e tentou libertar-se.
Como esperava topar-se com seu irmão ou com algum de seus homens, ao dar meia volta e ver um guerreiro de olhar feroz com elmo e nasal ficou lívida. Deixou escapar um grito de alarme, amortecido pela mão do homem.
—Silêncio, moça! Não quero te fazer dano.
Seu temível rosto não inspirava muito confiança. Tinha a compleição de uma montanha e uns traços toscos e rústicos que se adequavam perfeitamente a seu tamanho. Anna se obrigou a ficar quieta, fazendo ver que acreditava o que lhe dizia, mas depois, assim que ele se relaxou, golpeou-lhe tão forte como pôde com o salto da bota e lhe fincou o cotovelo no mais profundo de seu peitilho de couro, estremecendo-se ao golpear as partes de metal.
O homem deixou escapar uma exclamação de surpresa, mas não afrouxou seu abraço o suficiente para que Anna pudesse libertar-se. Voltou a olhar com frustração e ficou imóvel, dessa vez de verdade. Havia algo familiar nele. Não, nele não. Em seu traje. Anna ficou sem respiração. O elmo escurecido, o cotun de couro negro tachonado com metal, o estranho corte da manta… Se tratava da mesma indumentária característica que levavam seu tio e os guerreiros da floresta do Ayr. Aquele homem formava parte da Guarda secreta de Bruce. Um fato que Anna viu confirmado só um momento depois.
—Duvido que se fosse minha sobrinha acreditaria, Santo.
Anna ficou atônita de surpresa ao ver que Lachlan MacRuairi saía de entre as árvores com outro guerreiro.
—Santo, Templário — disse, assinalando em sua direção — Permitam que vos presente a lady Anna MacDougall. —Fez um gesto com a mão ao homem que a agarrava — Pode soltá-la. Não gritará, a menos que queira ver mortos seu irmão e ao resto de seus homens.
Anna se esfregou a boca mal esteve livre, tentando recuperar as sensações. Olhou a seu redor.
—Só são três.
Seu comentário pareceu divertir sinceramente aos homens.
—Dois a mais dos que precisamos — disse o terceiro deles.
Era só um pouco mais baixo que os outros dois. Anna começava a pensar que ser um gigante recoberto de músculos era condição indispensável para ser membro do exército secreto de Bruce. Sob a sombra de seu elmo com nasal, o homem fazia ornamento de um sorriso tão afável como simpático. Templário, tinha o chamado seu tio. Um nome do mais estranho. Era muito jovem para ter lutado contra os infiéis. Fazia trinta e cinco anos da última cruzada. E ao homem que a agarrava MacRuairi o tinha chamado Santo. Anna percebeu de que tinham que ser apelidos, nomes de guerra.
«Guardião!» Assim tinha chamado o guerreiro arrumado a Arthur na floresta. Seria esse seu nome de guerra?
—O que fazes aqui, tio?
Parecia estranho chamar «Tio» a alguém que não era mais que dez anos mais velho que ela. Não parecia muito maior que Arthur, embora devesse ter trinta e três ou trinta e quatro anos.
—Talvez devessea lhes perguntar eu o mesmo. Por que fugistes de seu irmão e de seus homens?
Não lhe surpreendia que MacRuari não respondesse a sua pergunta. Ou estava reconhecendo o terreno ou vigiando o castelo. Como estavam perto da costa, Anna supôs que teria chegado de navio. Lachlan MacRuairi era um pirata dos pés à cabeça.
—Assim oferecem cobertura ao ataque de Bruce contra meu pai além mar — disse ela, tentando adivinhar seu propósito.
Seu tio encolheu os ombros evasivamente.
—Agora me diga, lady Anna, por que vos encontro correndo através da floresta?
—Preciso retornar ao castelo.
—Por que?
Mordeu o lábio enquanto pensava no que devia lhes contar. Mas sabia que não tinha muito tempo. Já a tinham entretido muito. Custaria muito pedir a Deus ajuda retornar ao castelo antes que seu irmão Ewen a alcançasse. Talvez quisessem levá-la?
—Têm cavalos perto? —perguntou.
MacRuairi franziu o cenho.
—Sim.
Anna respirou aliviada.
—Bem. Pode ser que precise sua ajuda para retornar ao castelo. Preciso me assegurar de que Arthur está bem. —Nenhum deles reagiu, e Anna supôs que assim devia ser. Não sabiam que ela estava a par da verdade — Acredito que o chama de Guardião.
MacRuari amaldiçoou.
—Ele lhe disse isso?
Anna negou com a cabeça.
—É uma longa história. Descobri a verdade por mim mesma. Infelizmente, não fui a única. Meu pai também sabe.
MacRuari voltou a amaldiçoar, dessa vez fazendo uso de um impropério que inclusive o próprio pai de Anna rara vez usava.
—Então… está morto.
—Não — repôs ela, desconcertada por sua veemência — Encarcerado. Meu pai o está interrogando.
MacRuairi cuspiu e um olhar de puro ódio atravessou seus escuros traços.
—Em tal caso desejará estar morto. —A que se referia? Perguntou-se Anna. Seu tio, vendo a confusão em seus olhos, o explicou—: Estive do outro lado dos interrogatórios de seu pai.
Tem uns métodos bastante persuasivos e imaginativos na hora de extrair informação. Se Guardião não estiver morto já, logo o estará.
O estômago lhe decompôs para ouvir suas palavras.
—Meu pai jamais…
Não foi a expressão sombria do rosto do MacRuairi o que a deteve, a não ser a lembrança da conversa parcial que tinha ouvido antes de entrar na câmara de seu pai. «Consiga o que quero. Custe o que custar.»
«Oh, Deus.» Anna se sentiu desfalecer. Seu pai o estava torturando. Sabia que esse tipo de coisas ocorria, claro, mas aquilo supunha uma parte feia da guerra em que não queria pensar. E tampouco gostava de pensar que seu pai pudesse estar comprometido em tamanha crueldade.
—Temos que o ajudar — quase gritou, com lágrimas nos olhos.
O coração lhe deu um tombo em ouvir um grito a pouca distância deles.
—Anna!
—Estão-me chamando. Temos que partir já.
MacRuairi negou com a cabeça.
—Não há nenhuma necessidade de que venhas. Nos encarregaremos de tudo.
—Mas…
MacRuairi cortou seus protestos em seco.
—Se vierem conosco, seguirão-nos. Custará-nos menos trabalho lhe ajudar se não suspeitarem nada. Voltem com seu irmão e continuem a viagem.
—Mas pode ser que necessitem minha ajuda. —Anna desejava ver Arthur por si mesma — Como chegarão ao castelo? Como o encontrarão?
O rosto do MacRuairi adotou uma expressão severa.
—Sei onde está. —Pelo modo em que o disse, Anna soube que ele mesmo estivera ali; sentiu um calafrio. Mas o que lhe gelou o sangue foi a angústia que viu refletida em seus olhos. Deus, o que teria feito seu pai? E o que estaria fazendo Arthur? — Já têm feito suficiente —disse — Se Guardião está vivo, ele mesmo lhe agradecerá.
«Se estiver vivo.» Anna reprimiu suas lágrimas e assentiu, consciente de que tinham razão. O melhor modo de ajudar Arthur era que fossem sozinhos para buscá-lo. Mas isso não fazia mais fácil vê-los desaparecer entre as árvores. Queria ir com eles. «Está vivo», dizia a si mesma. Tinha que estar. Se não fosse assim saberia, porque uma parte dela também teria morrido.
Assim que estiveram fora de seu olhar, Anna começou a correr na direção oposta a que tinha tomado para chegar ali. Ao chegar a um pequeno córrego respondeu às chamadas de seu irmão. Teria que dar algumas explicações, mas, tendo em conta a natureza do assunto, não acreditava que Ewen se visse inclinado a lhe formular muitas perguntas. Tudo que Anna podia fazer era rezar para que se produzisse um milagre. Pois isso era o que necessitariam para resgatar Arthur do virtualmente impenetrável castelo de Dunstaffnage antes que fosse muito tarde.
Arthur os deixava aproximar-se. Afinava seus sentidos para captar qualquer sinal de correria ou chiado e permitia que os ratos se aproximassem o suficiente para os agarrar. Assim podia lhes romper o pescoço com uma mão contra sua própria perna, algo que, dado que somente tinha uma mão operativa, parecia de tudo fortuito. O mal era que essa mão estava unida a um braço deslocado, com o que cada movimento lhe produzia uma dor atroz. Tentou recolocar o ombro por si mesmo, mas não tinha a força nem o apoio necessários.
Acabar devorado por ratos famintos não era exatamente o modo em que esperava morrer, mas não sabia por quanto tempo poderia os manter a raia. Cada vez que desmaiava, suas persistentes dentadas despertavam. Tinha perdido muito sangue e a cada hora que passava estava mais débil e pior respondiam seus sentidos. Logo não seria capaz de voltar a despertar.
Teria matado já umas cinqüentas daquelas asquerosas criaturas segundo seus cálculos, mas havia centenas delas ali abaixo. Estremeceu-se. Quando iluminaram o vão com a tocha para jogá-lo lá dentro, o fundo do fosso se via repleto delas. Uma vez fechado, aquele buraco tinha ficado na mais absoluta escuridão. Dependia de seus sentidos, e estes o abandonavam lentamente. Seus olhos começaram a fechar-se. Estava tão cansado que somente queria relaxar-se durante um…
«Ah!», gritou de dor, despertando à realidade graças a uns dentes afiados como facas que se cravavam em seu tornozelo. Esperneou e o rato voou pelos ares.
Supunha que teria que agradecer ao Dugald o que fosse capaz de agüentar tanto tempo ali. Aquelas horas passadas na escura despensa lhe tinham servido de lição. Sabia que tinha que estar alerta e como antecipar os movimentos dos ratos. Mas as reações de Arthur eram cada vez mais lentas. Cada vez escapava um número maior delas e um número maior lhe mordia a mão. Sabia que não poderia durar muito assim. Não viriam a por ele até que não acabasse a batalha, e como tinha perdido a conta do tempo fazia já horas, não sabia quando seria isso.
«Maldição.» Não era só o horror do movimento dos ratos o que estava deixando-o louco, a não ser saber que seus amigos estavam ali fosse dirigindo-se para uma armadilha mortal e que não podia fazer nada para ajudar. Tinha fracassado. «Fracassado.» Fechou os olhos em uma tentativa de que a amarga verdade se desvanecesse. A languidez se abatia sobre ele. Cada vez lhe parecia mais difícil resistir e não deixar-se levar para essa bendita escuridão da inconsciência. Estava tão cansado…
Seus olhos não voltaram a abrir-se. Nada poderia despertá-lo. Nem os ratos, nem a explosão de mil demônios que faria que os guardas corressem até as portas do castelo minutos depois.
Alguém o sacudia.
—Guardião! Guardião! Maldita seja, desperte! Não temos muito tempo.
Quem era Guardião?
Abriu os olhos só para fechá-los imediatamente ao sentir que a luz da tocha lhe atravessava o crânio como se fosse uma adaga.
Guardião era ele.
Mas como…?
Voltou a abrir os olhos. Essa vez lentamente, permitindo que se adaptassem à luz.
MacRuairi.
Advertiu o alívio que se refletia no rosto do outro.
—Não estava seguro de que seguissem com vida.
A mente de Arthur estava embotada e pensada com lentidão.
—Eu tampouco estava.
MacRuairi se estremeceu, e Arthur percebeu que não tinha bom aspecto, inclusive diante da tênue luz da tocha. Tinha o rosto macilento e seus olhos foram parar de um lado a outro com inquietação. Quase se diria que tinha um ataque de pânico.
—Saiamos daqui quanto antes. Podes caminhar?
Arthur assentiu e tentou incorporar-se por si só. Tomava cuidado de não olhar para baixo. A tocha mantinha aos ratos longe no momento.
—Acredito que sim.
—Melhor. Não tinha muita vontade de tentar te tirar daqui.
MacRuairi lhe estendeu a mão, mas Arthur a rechaçou e as arrumou para ficar em pé por seus próprios meios.
—Está sozinho? —perguntou.
MacRuairi o olhou de cima abaixo, e em seguida fez uma idéia de qual era seu estado. Franziu o cenho ao conscientizar-se por que rechaçava sua ajuda.
—Não. Santo e Templário estão comigo. Falcão queria vir, mas alguém tinha que ficar com a frota. Não ouviu a explosão?
Arthur negou com a cabeça.
—É assim como conseguistes entrar?
MacRuairi lhe ajudou a assegurar a corda ao redor da cintura e entre as pernas. Umas pernas que, embora tremiam como se fossem as de um potro recém-nascido, conseguiram lhe manter em pé.
—Não, mas não está mal como manobra de distração.
MacRuairi se agarrou a uma segunda corda e subiu rapidamente. Depois içou o corpo de Arthur com a outra, o qual não parecia fácil, já que tinha um peso morto ao outro extremo. Mas MacRuairi, além de ser tão daninho como uma serpente, era além disso tão forte como um maldito boi.
A sensação de alívio que assaltou Arthur ao estar fora daquele buraco infernal era virtualmente assustadora. Tinha vontade de chorar como um menino. MacRuairi se desprendeu da manta que levava e a deu. Arthur tinha esquecido que estava nu. Aceitou-a com gratidão, ajustando-a ao redor da cintura e dos ombros o melhor que podia com sua mão maltratada.
—O cheiro de merda de rato acabará desaparecendo.
Arthur surpreendeu-se ao ver um traço de compaixão no olhar do outro. De repente percebeu a razão pela que MacRuairi parecia estar tão perto do ataque de pânico ali abaixo. Conhecia bem. Certamente, devia ter passado por algo similar.
—E o resto? —perguntou Arthur.
MacRuairi voltou o rosto violentamente, como se lhe incomodasse reconhecer essa greta em sua couraça de gelo.
—O resto demora mais a desaparecer.
«Ou não desaparece nunca.» Arthur ouviu essas palavras não pronunciadas.
—Como me encontrastes?
—A moça nos disse que o tinham feito prisioneiro. O resto… imaginei.
«A moça…»
—Anna? —perguntou Arthur com uma voz aguda por sua incredulidade.
—Sim. Tivemos sorte de vê-la.
MacRuairi lhe explicou que estavam reconhecendo o terreno e comprovando que não houvesse suas mensagens no túmulo funerário quando ouviram aproximar-se de um grupo de cavaleiros. Ao reconhecer a Anna a seguiram e notaram como tentava lhes dar escapar de seu irmão e seus homens.
Arthur estava surpreso.
—Tentou escapar?
—Ao que parecia, queria assegurar-se de que estavam bem.
Arthur murmurou uma maldição. Graças a Deus, não fora ela quem o encontrou. Não queria que se inteirasse jamais do que lhe tinha feito seu pai. Era um banho de realidade muito forte. Melhor que pudesse acolher-se a alguma ilusão. Mas saber que importava o suficiente para ir a seu encontro significava muito para ele. Mais que muito. Devia-lhe a vida. E também lhe dava esperanças.
—Oh, não! —murmurou MacRuairi com desgosto — Têm exatamente o mesmo olhar de parvo do MacSorley. Não temos tempo para isto. Contarei o resto mais tarde.
MacRuairi lhe rodeou a cintura com um braço, com cuidado de evitar seu ombro machucado, e lhe ajudou a caminhar até a porta. Chamou duas vezes sem deixar espaço entre um e outro golpeio, e depois fez uma pausa e repetiu a chamada. A porta se abriu.
—Por todos os demônios, Víbora. Estava a ponto de sair para lhes buscar. —Magnus MacKay, o Santo, jogou uma olhar a Arthur e estremeceu — Está bem, Guardião?
Arthur procurou sorrir, mas fraquejou diante da intensidade da dor.
—Não estou em meu melhor momento, mas me alegro muito de os ver. Como puderam…?
Uma explosão estrondosa clamou atravessando a brisa da noite e deixou sua pergunta no ar. «A brisa da noite.» Deus santo: o ataque!
—Que horas são?
—Pouco depois da meia-noite — disse MacKay.
—Tenho informação para o rei.
—Mais tarde —disse MacRuairi — Não temos tempo. Essa era nossa manobra de distração. Se queremos sair daqui teremos que nos apressar.
MacKay e MacRuairi flanquearam Arthur e o levaram do hall ao interior do calabouço. Um rápido olhar ao chão lhe informou do destino que tinham seguido os guardas. Infelizmente nenhum dos corpos pertencia a seu torturante. O ajudante tinha partido com o Lorn. Uma razão mais pela que desejava com todas suas forças que chegassem ali a tempo. Outra conta que devia saldar.
Saíram à torre que albergava o calabouço dos refugiados na escuridão. Embora o pátio estivesse deserto, ouvia-se a comoção que chegava das portas do castelo. Entretanto, em lugar de dirigir-se para ali, começaram a subir pelo adarve, com o que Arthur soube qual era o plano do MacRuairi. Tinham assegurado três cordas à mureta do baluarte que ficava em frente às portas na parte mais afastada, olhando ao lago. Em geral havia um guarda vigiando o perímetro, mas a explosão tinha feito que se desviasse para a porta.
Arthur olhou para baixo na escuridão e fez uma careta de desgosto.
—Antes teremos que lhe arrumar o ombro — disse MacRuairi. Deu a volta, agarrou-o pela base do ombro e lhe ofereceu sua adaga — Preparado?
Arthur pôs o punho de madeira entre os dentes e assentiu. A dor foi extrema, mas rápido. Depois de um momento, já era capaz de girar o braço livremente sobre seu ombro.
—Fez isto antes? —perguntou Arthur.
—Não —disse MacRuairi com um estranho sorriso no rosto — Mas o vi fazer. Suponho que têm sorte de que aprenda rápido.
Uma vez que teve o braço em seu lugar, Arthur pôde deslizar-se corda abaixo com a ajuda dos outros. Quando estiveram todos em terra, MacRuairi os conduziu para uma parte escura do muro exterior. Ao olhar ao chão, Arthur percebeu de que faltavam algumas das pedras e viu que havia um buraco debaixo elas. Entraram virtualmente arrastados.
—Esta é a parte mais antiga do muro —explicou MacRuairi — As rochas quase se pode esmiuçar.
Esse comentário indicou a Arthur que certamente não era a primeira vez que avançava por esse buraco.
Do outro lado os esperava Gordon.
—Por que demorastes…? —disse detendo-se o ver o estado de Arthur — Diabos, Guardião, parecem um asco.
—Isso dizem — respondeu Arthur secamente.
Tomaram seu tempo em reparar o muro, no caso de algum dia voltarem a necessitá-lo, e pouco depois já corriam seguindo a costa. A pouco menos de um quilômetro encontraram a pequena embarcação que MacSorley tinha escondido na cova.
—Têm que me levar ante o rei. O quanto antes possível —disse Arthur. Sobre o horizonte oriental se viam já os primeiros raios do amanhecer suavizando o céu noturno. Teriam que ir a cavalo, já que a rota marinha para o Brander estaria cercada pela frota de Lorn — Espero que cheguemos a tempo.
—O que é que acontece? —disse MacKay advertindo a urgência do caso — O que averiguastes?
Enquanto navegavam para o oeste e penetravam entre a frota de navios, lá onde o lago Etive se encontrava com o mar aberto, no fiorde de Lorn, Arthur explicou com presteza o plano traiçoeiro do pai de Anna, tanto os detalhes da emboscada como sua decisão de atacar antes do fim da trégua.
Gordon soltou uma imprecação.
—Esse filho de puta traiçoeiro…
Os sentimentos do MacKay eram idênticos, mas os expressou em termos muito mais precisos, para depois acrescentar: —O rei será surpreendido.
—Sim —disse Arthur — Lorn escolheu o lugar muito bem.
Arthur lhes falou do estreito caminho e os escarpados de Ben Cruachan.
—Conheço o lugar —disse MacRuairi — Aos exploradores custará muito encontrá-los.
—E por isso temos que os advertir.
MacRuairi negou com a cabeça de modo sombrio.
—Sairão na primeira hora do amanhecer. Inclusive no caso de que chegássemos antes que alcancem a parte mais estreita do caminho, não seria fácil que um contingente de três mil homens dê meia volta. Toda essa zona é perigosa.
—Não é necessário que dêem meia volta —disse Arthur — Tenho um plano. —Seus três companheiros da Guarda mudaram um olhar — O que? —perguntou.
Foi Gordon quem expressou o que todos estavam pensando.
—Não está em condições de lutar. Nós faremos chegar a mensagem ao rei.
Arthur chiou os dentes.
—Eu vou.
Nada evitaria que lutasse. Se tinha alguma possibilidade no mundo de enfrentar-se ao Lorn no campo de batalha, faria uso dela.
—Só conseguirá dar lentidão a nossa marcha —disse MacRuairi sem rodeios — Não têm forças nem para sentar numa mula, como ides cavalgar em nosso passo? E como diabos acha que poderá agarrar as rédeas com essa mão?
Arthur lhe dirigiu um olhar carregado de veneno.
—Deixem que eu seja quem me preocupe disso.
MacRuairi ficou olhando-o nos olhos e depois de uns segundos assentiu.
—Será melhor que encontremos algo com o que lutar.
Chegaram a tempo e Arthur não caiu do cavalo, embora para sua vergonha esteve muito perto de fazer. Como os homens do MacDougall já estavam posicionados tiveram que rodeá-los pelo sul. Cruzaram com o rei a pouco mais de um quilômetro do lugar. Este não era dado a mostrar seu aborrecimento, mas Quando Arthur lhe informou dos planos de Lorn o fez. Perjurou e chamou Lorn por todos os nomes vis que cabiam sob o sol.
—Pelos pregos de Cristo, como é possível que não soubéssemos? —perguntou sem dirigir-se a ninguém em particular, apesar de que todos os guerreiros sentiram sua parte de culpa pelo que teria significado um desastre. E também o rei, pois sabia melhor que ninguém que não tinha que confiar no código de cavalaria.
—Escondam-se entre as rochas de uma ladeira escarpada —disse Arthur — Não é fácil vê-los se não está procurando.
Pelo olhar que MacLeod dedicava aos rastreadores, Arthur temia, por mais que pudesse compreendê-lo, que pagariam muito caro.
—Dizia que tinham um plano? —perguntou o rei.
—Sim. —Arthur se ajoelhou e desenhou um mapa no chão com um pau — Podemos vencer ao Lorn em seu próprio terreno. Tem a várias centenas de homens nesta posição — disse, marcando um ponto a meio caminho da ladeira — O resto do exército atacará na boca do estreito quando partirem em retirada e os agarrarão entre duas frentes: acima e abaixo. —Arthur assinalou um lugar um pouco mais acima de onde estavam os homens de Lorn — Se enviarem um contingente por cima, seus homens se verão apanhados. Quando a emboscada não der resultados, Lorn se desesperará.
Bruce ficou circunspeto.
—Está seguro de que podemos conseguir que nossos homens cheguem ali em cima? Como descreve, é um terreno escarpado e traiçoeiro. Se nos descobrirem antes de chegar à posição, não servirá de nada.
—Meus highlanders podem fazer —disse Neil Campbell — Conhecem estas terras.
—Está seguro? —perguntou Bruce.
—Sim —disse Neil — Lutam como leões, mas se movem como gatos.
—Eu os levarei —disse Arthur — Conheço bem o terreno.
Neil seguia sendo um dos guerreiros mais formidáveis do reino, mas tinha cinqüenta anos e não estava tão em forma como antes. Bruce pousou o olhar sobre ele, e Arthur se deu conta de sua incerteza. Apesar de que limpara o sangue e a sujeira antes de por a indumentária de guerreiro que lhe tinham emprestado, de que enfaixou a mão e o pulso, de que tivesse comido e bebido suficiente uisgebeatha para devolver a cor a seu rosto, sabia que ainda parecia que uma besta raivosa do inferno o tivesse tragado, tivesse o amassado com seus dentes e o tivesse cuspido depois. Antes que o rei pudesse negar-se, acrescentou: —Posso fazer, senhor. Não me encontro tão mal como parece delatar meu aspecto.
Era uma mentira, mas não muito grande. Saber que estava perto da hora da verdade com o Lorn lhe dava novas forças.
—Ganhaste esse direito, sir Arthur —disse o rei — Sem sua informação, isto poderia ter sido um desastre.
Arthur sabia que a lembrança de Dal Righ fazia dois anos, quando se viu empurrado pelo Lorn a fugir para salvar a vida, seguia muito fresco na memória do rei. Bruce chamou a seu lado a um de seus cavalheiros mais jovens e de um dos mais dignos de confiança que tinha: sir James Douglas. O único que o fazia sombra, o sobrinho do rei e outrora renegado, sir Thomas Randolph, estava com o MacSorley no oeste, preparando o ataque pelo mar em caso de que fosse necessário.
—Douglas, quero que vá com ele —disse o rei. Ato seguido fez gestos a outro dos guerreiros. Gregor MacGregor, o companheiro original de Arthur nos Guardiões dos Highlands, avançou entre outros — Estarão à frente dos arqueiros —disse. E depois se dirigiu a Arthur—: Tome tantos homens como necessita.
—Será melhor que ponham algalguns MacGregor no lote, Guardião — disse Flecha assim que o rei se voltou para se consultar com o Neil e MacLeod — Não podemos permitir que os Campbell levem toda a glória.
Arthur conseguiu esboçar um sorriso. Deus, era fantástico estar de volta. Era fantástico poder brincar a respeito das velhas rixas de sangue entre os MacGregor e os Campbell que em outro momento tinham feito deles inimigos acérrimos.
—Assim são os MacGregor, sempre dispostos a tirar benefício do duro trabalho dos Campbell.
—Necessito algo com o que impressionar às moças —disse MacGregor.
Campbell soltou uma gargalhada. MacGregor não necessitava nada para impressionar às moças. Isso já fazia seu rosto por ele, e não poucas vezes se colocaram com ele por causa disso.
—Se necessitais ajuda para melhorar seu rosto bonito, posso te mandar ao tipo que me fez isto —disse, assinalando seu próprio rosto.
MacGregor fez uma careta de dor.
—O tipo se empregou a fundo. Isso tenho que reconhecer.
—Assegurarei-me de que chegue seu castigo quando o agarrar — disse Arthur secamente.
Ambos sabiam que aquela não seria uma conversa muito longa.
Neil tinha acabado de falar com o rei, e quando viu que Arthur se dispunha a preparar aos homens, levou-o à parte.
—Está seguro de que te encontra bem, irmão? Qualquer um entenderia que não tenha vontade de seguir. Já tem feito suficiente.
«Eu entenderia», era o que queria dizer. Arthur percebia isso no olhar de seu irmão Neil. Mas ambos sabiam que esse não seria o final.
—Estarei bem —lhe assegurou— quando tudo isto tiver acabado.
Capítulo 25
O plano de Arthur funcionou. Junto a Douglas, MacGregor e uma pequena leva dos homens de seu irmão, dirigiu o grupo de guerreiros para um lugar elevado nas montanhas do Ben Cruachan, por cima de onde estavam escondidos os homens do clã de Lorn. Os guerreiros do MacDougall desdobraram uma chuva de flechas e penhascos sobre os «despreparados» soldados assim que o exército de Bruce passou pelo desfiladeiro que havia debaixo deles. Mas o ataque «surpresa» dos MacDougall recebeu outro ataque surpresa como resposta. Os guerreiros de MacDougall ergueram o olhar, horrorizados, e descobriram que Arthur e seus homens deixavam cair outra chuva de flechas de sua própria colheita e saltavam sobre eles como se fossem uma aparição. Ao perder o elemento surpresa e a posição estratégica nas alturas, a emboscada dos MacDougall se transformou em uma disparada. Apanhados entre duas frentes, abaixo e acima, seus homens foram massacrados. Quando Lorn lançou seu ataque frontal na boca do desfiladeiro, em lugar de enfrentar a um exército no que reinava o caos se encontrou com as poderosas hostes de Bruce fortemente armadas.
Arthur correu para descer a montanha e unir-se à luta, atravessando o barulho de soldados em luta com um só objetivo em mente: encontrar ao Lorn. Conseguiu distinguir a Alan MacDougall ao outro lado da ladeira, concentrando seus homens com a valente intenção de liberar uma nova carga. Mas a valentia não seria suficiente. Esperava pelo bem de Anna que se desse conta disso antes que fosse muito tarde.
O estreito funil do desfiladeiro rebateu em parte a vantagem numérica de Bruce, mas o ataque de Lorn não demorou muito em ver-se frustrado. Arthur alcançou a primeira linha de frente justo quando a vanguarda dos MacDougall começava a romper-se. O rei Robert, à cabeça de seu exército, lutando junto a seus cavalheiros de confiança e os membros dos Guardiões das Highlands, ordenava perseguir os fugitivos do clã inimigo. Em sua frenética tentativa de retirar-se ao castelo de Dunstaffnage, muitos dos MacDougall fossem derrubados ou se afogaram ao tentar cruzar a ponte sobre o rio Awe.
Tinham ganhado! A tentativa dos MacDougall de superar ao Bruce fracassava e o rei obtinha sua revanche pela batalha de Dal Righ. Acabavam de romper o cerco do clã mais poderoso das Highlanders. A vitória era doce, mas não seria completa até que Arthur encontrasse ao Lorn.
No caos da retirada, examinou o contingente de fugitivos em busca de seu inimigo. Aliviou-o comprovar que Alan MacDougall liderava a um grupo de seus homens para terreno seguro. Ao ver MacRuairi junto à ponte, Arthur desceu para encontrar-se com ele.
—Onde está?
Não tinha que dizer de quem falava. MacRuairi cuspiu ao chão e assinalou em direção sul à entrada do lago Awe.
—Nunca saiu de seu birlinn. Esse maldito covarde dirigiu a batalha da água. Assim que seus homens se retiraram, fugiu em direção ao lago.
Arthur amaldiçoou sua sorte, negando-se a acreditar que, depois de ter chegado tão longe, lhe seria vedada a possibilidade de justiça no último momento.
—Quanto tempo faz disso?
—Não mais de cinco minutos.
Em tal caso, ainda tinha uma oportunidade. Mas necessitaria os dotes de marinheiro do MacRuairi se queria o apanhar. Lorn possuía três castelos no lago Awe, mas Innis Chonnel, o antigo forte dos Campbell , era o mais novo e melhor fortificado. Ali seria onde iria.
Arthur olhou ao MacRuairi com parcimônia.
—Gostaria de uma regata?
MacRuairi, conhecido por ser um dos mais temidos e ousados piratas sobre o mar, sorriu. Ao menos pareceu que esboçava um sorriso.
—Eu reunirei aos homens. Encarregue-se do navio.
Arthur estava já correndo para a ribeira do rio para chegar ao porto. Era uma corrida que não tinha nenhuma intenção de perder. Nessa ocasião, John de Lorn não escaparia a seu destino fatal.
****
Anna não podia fazer mais que esperar. Mas não saber o que acontecia depois dos grossos muros do castelo do Innis Chonnel era uma autêntica tortura. O coração se encolheu. Não, tortura não. O seu não era nada comparado ao que Arthur estava sofrendo. Nem sequer podia suportar pensar nisso, embora não parecia ser capaz de outra coisa mais que de imaginar o que estava acontecendo, sem saber se estaria vivo ou morto. Era coisa de loucos! Como conseguiria seu tio entrar no castelo, por não falar de o resgatar? «Teria que ter ido com eles.» Assim ao menos saberia o que tinha passado. Mas seu tio estava certo. Não teria conseguido mais que levar a seu irmão de volta ao castelo.
As horas passavam com lentidão. Quando não estava ajoelhada, rezando na pequena capela, Anna procurava manter-se ocupada. Chamaram à batalha à maioria dos soldados, de modo que somente ficava uma pequena reserva de guardas no castelo para defendê-lo. Na noite anterior, já sem mais falsas visitas ao córrego, assim que o grupo chegou ao castelo, Anna organizou aos homens para que preparassem as câmaras, refrescassem o grande salão e fizessem inventário das provisões com que contavam.
O castelo de Innis Chonnel fora construído mais ou menos na mesma época que Dunstaffnage. Apesar de não ser tão grandioso, era uma edificação similar. A fortaleza quadrada fora construída sobre uma base de penhascos no confinante sudoeste da ilha. Seus altos muros de pedra rodeavam um pequeno pátio. Nos cantos tinham levantado duas torres, a maior das quais servia como torre da comemoração, enquanto a segunda se utilizava como calabouço. Entre ambas estava o grande salão. Sobre os muros se edificaram outras dependências de madeira menores que acolhiam os barracões, os arsenais, os estábulos e as cozinhas.
Parecia estranho pensar que aquele tivesse sido o lar de Arthur em sua infância. Anna sempre desfrutava de suas estadias no castelo junto a seu pai, mas nesse momento se sentia estranha. Como se não devesse estar ali. Como se fosse uma intrusa. Sabia que aquilo era ridículo. Os castelos mudavam de mãos com freqüência durante a guerra. Mas depois do que Arthur lhe tinha contado… Anna estava dividida. Dividida entre o pai ao que ainda amava, embora sem dúvida idealizava, e um homem a quem deveria odiar, apesar de não poder fazer. Não queria compreender por que Arthur fizera aquilo, mas o compreendia. Podia entender a lealdade que regia seus atos porque era quão mesma regia os dela. A lealdade ao rei e à pátria. A lealdade ao clã e à família. Sim, isso entendia especialmente.
Arthur era um highlander. Sangue por sangue, assim era como funcionavam as coisas nas Highlands. De modo que vingar seu pai se convertia em seu dever. Mas ela sabia que não se tratava só de vingança. Uma parte dele seguia sendo aquele menino que tinha visto morrer seu pai e seguia pensando que teria que ter evitado. Justiça. Vingança. Mas também significava expiação. Não obstante, compreendê-lo não oferecia a Anna resposta alguma. O que se podia fazer quando amar a um significava perder ao outro?
Depois de uma noite sem descanso, passou o dia seguinte a sua chegada de modo muito similar ao primeiro deles: rezando e procurando manter-se ocupada todo o tempo para não pensar no que acontecia depois dos grossos muros do castelo. Se por acaso seus temores pelo destino de Arthur não bastassem, também tinha a batalha. Quem sabia se nesse momento não teria deixado já de existir o mundo no que ela tinha vivido sempre. Os homens aos que amava podiam jazer mortos ou feridos, e mesmo assim, nos protegidos limites do Innis Chonnel, sobre a incomunicável ilha do lago Awe, tudo tinha uma aparência normal. A brilhante luz do sol seguia brilhando sobre as mansamente onduladas águas do lago, os pássaros seguiam voando e o vento úmido ainda pulverizava seus cabelos quando passeava pelo pátio.
Distinguiu a figura do Ewen, que saía da torre da comemoração.
—Alguma notícia? —perguntou, apesar de saber a resposta de antemão, já que em caso de que se aproximasse alguém ouviria a chamada.
—Não, ainda nada — respondeu seu irmão negando com a cabeça.
Sabia que a espera também era dura para Ewen, embora por diferentes motivos. Ele queria lutar. Não obstante, se culpava a ela seu confinamento em Innis Chonnel, nunca deixou ver.
Anna mordeu o lábio inferior.
—Oxalá soubesse como vão as coisas.
—Oxalá —disse seu irmão com um sorriso — Mas assim que haja algo do que informar…
—Aproximam-se navios, senhor! —gritou um dos guardas da torre vigia.
Anna seguiu a seu irmão em sua fulgurante descida da escada para as almenas. Somente podia distinguir as três velas quadradas que se aproximavam deles do norte a toda velocidade.
—É o pai — disse Ewen com uma voz desencorajada.
Um pressentimento fez que Anna se estremecesse de cima abaixo.
—O que acontece? Algo vai mal?
Ewen não se incomodou em tentar ocultar a verdade.
—Disse que somente viria em caso de que fosse necessário.
«Necessário.» A Anna lhe deteve o coração. Isso significava que o faria se tivesse que bater em retirada.
Tinham perdido!
Anna cambaleou, sentindo que suas pernas eram como gelatina. Pôs a mão na borda da mureta para recuperar o equilíbrio, observou como se aproximavam os navios e rezou por que houvesse outra explicação. Algo diferente que Bruce tivesse ganhado. Então entreabriu os olhos para proteger-se dos brilhos do sol e viu algo mais.
—O que é isso? —disse, assinalando justo trás dos navios que se aproximavam — O que é isso que vem trás?
Mas Ewen estava já ditando ordens.
—Atacam-nos! A seus postos!
Os homens saltaram à ação imediatamente enquanto Anna, incapaz de desviar o olhar, observava aterrorizada como se aproximavam os navios. Ao que parecia, os homens de seu pai não pareciam conscientizar-se de que os perseguiam.
—Atrás! —gritou em uma tentativa de lhes avisar.
Mas o vento levava sua voz.
—Anna, sai daqui!—gritou-lhe Ewen — Isto não é seguro. Vá à torre e tranca a porta.
Anna assentiu em silêncio e fez o que seu irmão lhe pedia. Uma vez dentro, correu para sua câmara do segundo andar para olhar da seteira. Já que a torre da comemoração estava no canto sul do castelo, não pôde ver os navios até que virtualmente estavam já junto ao embarcadouro. Observou com o coração em um punho como começava a batalha justo a seus pés. Viu seu pai situado atrás de seus homens, gritando ordens ao mesmo tempo em que o navio de guerreiros inimigos chegava… ficou petrificada, com o coração lhe dando saltos no interior do peito. Piscou. Não, não era um sonho. Uma intensa onda de alívio abriu caminho em seu interior fazendo que lhe estremecesse o coração.
Arthur estava vivo. Vestia um traje de batalha que não lhe parecia familiar e embora a simples vista, com o rosto e o cabelo resguardados sob o elmo com nasal, fosse impossível de distinguir dos outros guerreiros, sabia que se tratava dele.
«Graças a Deus.»
Então se revelou a absoluta transcendência de sua presença no castelo. O horror se apoderou dela e a apanhou com seu frio abraço. Se Arthur estava ali, somente podia ser por uma razão. Correu para a porta, consciente de que tinha que fazer algo. Tinha que o deter. Não podia permitir que matasse a seu pai.
Arthur o tinha a frente o momento que tanto tinha esperado. Em certo modo parecia adequado que o encontro final tivesse lugar na pequena ilha do Innis Chonnel, sob a sombra entristecedora do castelo que um dia fora seu lar. A corrida fora acirrada, mas ao final MacRuairi deu fé de que sua reputação era merecida. Oculto pela cegante luz do sol, seguiu aos navios em retirada de Lorn sem que estes se inteirassem de sua presença até alcançar aos três birlinn quando se dispunham a atracar. Somente então dispôs Arthur uma descarga de flechas sobre os despreparados MacDougall.
MacRuairi tinha reunido a quarenta piratas de seu clã, algo que seria um combate desigual, já que os MacDougall os triplicavam em número. Mas os homens de MacRuairi estavam mais que dispostos a aceitar o desafio. Patifes, rufiões, esquartejadores, eram qualificativos generosos para alguns MacRuairi que ganhavam a pulso sua reputação como o maior flagelo dos mares. Mas em terra lutavam com a mesma ferocidade.
Os guerreiros de MacRuairi estavam já saltando pela amurada espada empunhada ao grito de «Pelo leão!», ao mesmo tempo em que seu chefe deixava o navio escondido até pô-lo virtualmente em cima dos do MacDougall. Arthur estava ali mesmo, liderando a carga.
Lorn tinha situado a seus homens ao final do embarcadouro com a esperança de conter aos homens de MacRuairi assim que tentassem tomar a terra. Mas os guerreiros de MacDougall não eram rivais para os selvagens ataques de seus parentes. Apesar de que ambos descendessem de filhos de Somerled, o rei norueguês que tinha governado as ilhas cento e cinqüenta anos antes, lutavam de geração em geração pela supremacia. Os MacDougall a tinham ganhado depois da batalha do Larg e receberam o favor dos reis ingleses, mas essa integração fez que se afastassem muito de suas raízes vikings. Os MacRuairi lutavam como os próprios bárbaros que tinham sido até tão pouco tempo que a maioria deles podia seguir recebendo esse nome.
Romperam o muro de contenção dos MacDougall rapidamente e situaram a batalha sobre as rochosas costas da ilha. Arthur estava em desvantagem ao contar só com um braço, por não falar de seu fraco estado; entretanto, em que pese a encontrar-se longe de suas habituais condições para a luta, defendia-se bem. Abria caminho com determinação entre os soldados sem tirar olho ao Lorn em nenhum momento. Este estava na retaguarda da batalha, rodeado pelo protetor círculo de seus homens, entre os que se encontrava seu ajudante. O sangue de Arthur fervia antecipando o momento.
Os MacDougall retrocediam, e logo ficou claro que as superiores força em número de Lorn não ganhariam a partida. Arthur, envolto em um encarniçado combate com um dos homens de MacDougall, ao qual por desgraça conhecia, ouviu o grito de retirada. Amaldiçoou, consciente de que tinha que deter o Lorn e a seu ajudante antes que alcançassem a segurança das portas do castelo.
«Outra vez não.»
Chamou a atenção de alguns homens de MacRuari e lhes disse o que queria deles. Lutou para abrir caminho até o Lorn seguido por esses mesmos homens, que fizeram racho no círculo protetor de Lorn e tiraram ele e a seu ajudante do grupo. Uma vez que Arthur chegou até ali, os homens do MacRuairi se dispersaram para formar uma barreira atrás dele.
Se Lorn não tivesse a poucos metros da segurança dos muros do castelo, Arthur teria desfrutado mais com sua morte, mas tal e como estavam as coisas teve que despachar ao ajudante com presteza. Por mais habilidade que tivesse aquele homem na hora de torturar, não era rival para Arthur, nem sequer com uma só mão.
Ao fim se voltou para Lorn e o alcançou a escassos metros da porta. Seus homens estavam tão ocupados defendendo-se que nenhum deles pôde ir em sua ajuda. Arthur advertiu a raiva em seus olhos quando John de Lorn ergueu a espada contra ele.
—Como escapou? —perguntou com incredulidade.
—Surpreso de me ver?
Um brilho assassino aflorou nos olhos de Lorn.
—Devia ter matado.
—Sim, teria que tê-lo feito.
—É o culpado de todo este desastre. Traíram meus planos para acabar com esse filho da puta assassino.
—Rei Robert — o provocou Arthur, rodeando-o como a uma presa — Diria que melhor que te acostumem a chamá-lo assim, mas temo que não viverá por aqui tempo suficiente.
E dito isto lhe atirou um golpe.
Lorn estava preparado e arrumou para rebatê-lo, embora com muita dificuldade e tremendo com todo o corpo pelo esforço. John de Lorn, em seus dias um dos mais temidos guerreiros das Highlands, já não significava nenhuma ameaça. A idade e a enfermidade cobraram seu preço. Não era covardia, a não ser a enfermidade o que fez que permanecesse no lago e na retaguarda da batalha. O maldito orgulho de Lorn evitava que admitisse quão doente realmente estava.
O segundo golpe de Arthur o tombou de joelhos. Pôs a ponta da espada no pescoço. A touca de malha não serviria de nada contra o afiado aço de sua arma. O sol se refletia no elmo do ancião de mesmo modo em que tinha feito quatorze anos antes quando Arthur observava da distância como seu pai sustentava a folha ante o pescoço desse mesmo homem e lhe oferecia clemência. Era o momento que estivera esperando. Teria sentido a antecipação dessa cena em suas próprias veias. O sabor da vitória tinha que ser doce. Seus músculos teriam que estar tensos, preparados para propinar a cutilada. Mas não sentia nada disso. Somente podia pensar em Anna.
Se o fizesse, seria para ela o que Lorn sempre foi para ele: o homem que tinha matado a seu pai. Talvez seu perdão fosse algo mais do que tinha direito a esperar, mas se assassinasse ao Lorn destruiria qualquer opção que pudesse ficar. Que honra teria em matar a um homem muito doente para lutar? Seu pai já fora vingado. Lorn estava acabado. Sua derrota no Brander tinha acabado com qualquer opção que tivesse de deter Bruce.
Anna tinha razão. O matar então não seria mais que vingança, e Arthur a amava muito mais que qualquer momento efêmero de satisfação que aquilo pudesse lhe proporcionar. Bom, pode ser que não fosse tão efêmero, mas, em qualquer caso, amava-a mais.
Lorn o olhou com fúria sob o visor de ferro de seu elmo.
—A que estais esperando? Faça de uma vez!
Piedade. Apesar de que até esse momento o tivesse esquecido por completo, aquela fora a última lição de seu pai.
—Renda-se ante o rei e lhe deixarei viver.
O rosto de Lorn se retorceu de ira.
—Prefiro a morte.
—E o que será com sua família? O seu clã? Também quer que morram?
Os olhos do John de Lorn estavam incendiados de puro ódio.
—Prefiro isso antes que me render a um assassino.
—Fará que morram suas filhas por seu maldito orgulho?
Aquilo fazia que o sangue de Arthur fervesse. Conhecia Anna. Jamais iria contra seu pai. A família era tudo para ela.
—Dê a Anna sua bênção. Manterei ela a salvo. Sabes tão bem como eu que está acabado. Mas seu clã pode prosseguirr através de nossos filhos, em seus netos.
A raiva de Lorn estava desenfreada. Sobre seus olhos, frágeis de loucura, ressaltavam as veias de sua têmpora e seu rosto aceso. Desafogou-se proferindo uma enxurrada de maldições vis que lhe deixaram jogando espuma pela boca.
—Jamais será sua! Antes prefiro vê-la morta!
—Pai!
Arthur ouviu o grito angustiado que se erguia atrás dele. Anna. Voltou-se de maneira instintiva e deixou suas costas a mercê de Lorn. Exatamente o mesmo que seu pai tinha feito tempo atrás ante seus próprios olhos.
Capítulo 26
Anna chegou ao pátio justo no momento em que Arthur fazia seu pai cair de joelhos.
Oh, Deus, tinha chegado muito tarde!
Correu mais depressa.
Ewen e outros tentavam defender o castelo lançando flechas de maneira seletiva das frestas do adarve, preparados para baixar a grade assim que seu pai e os outros conseguissem retirar-se ao interior. Os guardas estavam tão preocupados observando o que acontecia no exterior que nem sequer a viram penetrar antes seus narizes.
—Milady! —chamou-a um dos guardas — Não podes…
Anna não os escutava. Avançou alguns metros além das portas, mas não chegou muito longe. Os soldados inimigos tinham formado uma linha que separava Arthur e o pai de Anna do resto dos opositores. Quando ela tentou passar entre eles um dos homens a agarrou.
—Pelas chagas de Cristo! —disse, puxando-a pelo pulso — Aonde acha que vai, moça?
Abriu a boca para gritar ao aterrador rufião que a soltasse, mas então ouviu a voz de Arthur e ficou quieta nos braços do soldado. Não acreditava no que ouvia. Arthur brandia uma espada contra o pescoço de seu pai, a ponto de alcançar a vingança e a expiação que motivava seus atos, quando lhe ofereceu piedade. Ofereceu a seu pai a oportunidade de salvar a todos. Uma oportunidade que, depois do que certamente teria feito, seu pai não merecia. A oportunidade de um futuro.
Se deu conta de que Arthur a amava. «Ama-me tanto que está acima de sua sede de vingança.» Mas se as palavras de Arthur enchiam seu coração, as de seu pai o destroçaram. «Antes prefiro vê-la morta.» Anna escapou das garras de seu captor e retrocedeu, angustiada por um horror e uma comoção que a fizeram gritar. «Não diz a sério.»
Entretanto, ela sabia que sim havia dito a sério. Seu pai preferiria vê-la morta antes que casada com o inimigo, embora a amasse. Aquele cruel rechaço à oferta de Arthur fez saltar em pedaços qualquer raio de ilusão que ficasse. Mas seu grito foi um erro. Um erro mais terrível do que poderia ter imaginado. Sua voz teria que ter-se perdido no infernal estrépito da batalha. Ninguém deveria ter ouvido. Mas Arthur ouviu. Voltou-se ao ouvir sua voz e a espada pareceu perder toda sua força.
«Pai nosso que está nos céus…» Sob a sombra do elmo, a visão de seu rosto golpeado e massacrado lhe revolveu o estômago e provocou um acesso de bílis. Mas o pior dos horrores estava por chegar. Viu o brilho da espada de seu pai pela extremidade do olho.
—Não! —gritou dando um passo à frente. Mas o soldado a apanhou antes que pudesse avançar — Cuidado!
«Calcanhar de Aquiles.» Ela era seu calcanhar de Aquiles, mas não podia permitir que morresse por isso.
Arthur deu meia volta e ondeou sua espada pelo ar para rechaçar o golpe mortal do pai de Anna com suficiente força para arrebatar a espada das suas mãos e fazê-la voar. Então ergueu a espada sobre sua cabeça.
Anna se voltou e protegeu seus olhos do horror que estava a ponto de acontecer. Arthur mataria a seu pai, e depois do que este acabava de fazer não poderia culpá-lo de nada. Esperou para ouvir o horripilante som da morte. Mas o silêncio parecia interminável. Estava tudo tão tranqüilo que percebeu de que a batalha que livrava a seu redor também se deteve.
—Vá — ouviu que Arthur dizia — Tem cinco minutos para levar sua filha e a seus homens do castelo.
O olhar de Anna recaiu de novo sobre seu pai. Seu pai, que seguia com vida. Arthur tinha baixado a espada e se afastava dele, enquanto John de Lorn se pôs em pé com o rosto tingido de uma pátina de raiva desafiante.
—É um estúpido.
—E tens a sorte de que sua filha signifique para mim muito mais que sua mísera vida. Mas lhes asseguro que o rei não sente o mesmo. Parte por seu próprio pé ou faça com grilhões, isso não é de minha incumbência, mas partirá.
Um grito chegou das alturas para confirmar suas palavras.
—Navios, milorde. Seis deles vindo para cá.
«Bruce.»
Lorn não pensou. Reuniu a seus homens e ordenou a Ewen evacuar o castelo e reunir quantas armas pudesse levar consigo.
O homem que a agarrava a soltou. Anna correu, mas Arthur já se fora e ficava de lado junto ao resto dos homens de Bruce, entre os que reconheceu a seu tio, para deixar caminho aos MacDougall. MacRuairi não parecia muito contente com tal acerto, mas depois de um rápido mas violento intercâmbio de palavras Arthur e ele ficaram em silêncio. Arthur não parecia disposto a olhá-la.
Por que não a olhava? Anna tinha vontade de correr a seu encontro, mas o via tão distante e afastado… O coração se encolheu pela incerteza. Sempre tinha pensado que seria ele quem a abandonaria e, entretanto, ali permanecia de pé como um sentinela: firme, incondicional e fiel. Um homem com o que se podia contar. Um homem que derrubaria dragões e se arrastaria através das brasas do inferno.
—Vamos, Anna. Temos que partir.
Ewen tinha aparecido atrás dela e lhe puxava o ombro para tirá-la dali.
—Eu… — titubeou, ao mesmo tempo em que desviava o olhar para Arthur, como se esperasse, como se ansiasse que ele dissesse algo.
Ewen, indeciso, olhou-a um instante e se retirou junto a seus homens. Seu pai deve ter captado aquela troca de olhares.
—Não faça, filha. Nem sequer pense nisso.
Anna olhou a seu pai nos olhos. O homem que tinha amado durante toda sua vida. Um homem que era muito mais complexo do que ela pensava. Era difícil conciliar a figura de seu carinhoso pai com a do homem que acabava de ver nesse dia, apesar de que soubesse que se tratava de uma única pessoa. Por um momento desejou voltar a ser aquela menina que se sentava sobre os joelhos de seu pai e o olhava como se fosse um deus. Voltar para momento em que as coisas eram simples.
Se alguma vez pôs em dúvida o amor de Arthur, já não podia fazer. Não depois do que acabava de fazer por ela.
—O amo, pai. Rogo-te isso…
Advertiu a dor que suas palavras causavam antes que seu olhar se endurecesse.
—Não quero ouvir falar mais nada disto. Faz sua escolha. Mas não te engane. Se partir com ele, jamais voltarei a te ver. Estará morta para mim.
As lágrimas afloraram nos olhos de Anna e lhe ardiam na garganta.
—Não diz a sério.
Mas sim dizia.
—Escolhe — exigiu seu pai com raiva.
Anna se encaminhou para o bote em que a esperava seu irmão com lágrimas caindo pelas bochechas. Arthur, incapaz de ver como se afastava, voltou o rosto.
Tinha ouvido cada palavra da dolorosa conversa que Anna acabava de manter com seu pai. Maldito fosse Lorn por fazer isso a sua filha! Por fazê-la escolher entre os dois. Não tinha por que ser assim. Arthur tinha tentado lhe dar uma saída, mas o filho de cadela não queria acolher a ela. Quase se arrependeu de não tê-lo matado. Quase. Mas quando ouviu a Anna dizer que o amava, soube que tinha feito o correto. Embora isso significasse que devia deixá-la partir. Infelizmente, a dor de sua partida não se atenuava absolutamente nessa segunda ocasião. Ardia-lhe o peito. Seus músculos tremiam pela tensão e contenção e parecia que os rasgavam com uma adaga. Queria detê-la, que não subisse naquele maldito bote. Queria dizer que seu lugar era junto a ele. Que a amava. Pedir que o escolhesse.
Mas não podia fazer mais difícil do que já era. Não estava disposto a fazê-la sofrer mais. Bastou um olhar a seu aflito rosto para que se desse conta do terrível preço que se estava cobrando dela o ultimato de seu pai.
—Sinto muito, Ewen. Explica tudo a mãe —disse de repente — Diga o quanto sinto. Sinto muito, mas meu lugar está junto a ele.
Arthur ficou petrificado. Não podia acreditar no que acabava de ouvir. Voltou-se lentamente e a viu abraçar seu irmão.
Despedia-se dele com aquele abraço.
Arthur ficou sem fôlego.
Anna se separou do abraço de seu irmão e aventurou um olhar em sua direção. A incerteza que esta refletia provocou uma pontada no peito de Arthur que rompeu até o último fio de contenção que ficava. Depois de uns poucos e largos passos chegou a seu lado. A voz de Arthur lutava com o esforço por conter a emoção que brotava em seu peito.
—Está segura? Não têm por que fazer. Protegerei a ti e a tua família o melhor que possa, embora partam.
Anna sorriu, com os olhos velados pelas lágrimas.
—Que sejas capaz de fazer isso é a razão que me faz estar segura disso. O amo. Sou sua, se ainda me quiser.
Deus santo, se ainda a queria… Arthur se esqueceu da sujeira e o pó que o cobria, por não falar do fedor da batalha, e tomou Anna em seus braços com um suspiro de alívio que saiu do mais profundo da alma. De um lugar que, pensou, jamais voltaria a abrir. Descansou a bochecha sobre sua cabeça, absorvendo a sedosa e dourada calidez da fragrância de seus cabelos, e a apertou fortemente contra si, muito emocionado para falar. Mas não tinha que dizer nada. A maneira com que ela o rodeava com seus braços e punha sua bochecha contra seu cotun dizia tudo. Tinha escolhido a ele. Não podia acreditar. Jamais pensou que poderia sentir-se de tal modo. Nunca pensou que esse tipo de felicidade lhe estivesse destinada. Mas sua alegria ficava moderada pela consciência de saber quão difícil devia ser para ela.
Separou-se de Anna a seu pesar. Ela ergueu o olhar, acariciada pelos raios do sol, que deixavam em seus belos traços uma luz dourada e suave. Uma luz que se estendia por seu interior como se fosse um quente abraço. Sentiu como se enchia seu interior. Era um homem afortunado.
Ao conscientizar-se de que ainda não tinha respondido, fez uma careta com a boca.
—Se por acaso não o adivinhastes, isso significa um sim.
O sorriso de Anna fez que parasse seu coração.
Pensava que seu destino fosse permanecer sozinho, mas agora sabia que simplesmente estivera esperando que ela chegasse. Juntos confrontariam qualquer obstáculo ou desafio que a vida lhes proporcionasse. Incluindo a seu pai. Arthur a apertou contra si em seu lado enquanto Lorn caminhava para o cais para ocupar seu lugar entre seus homens. Quando passou junto a eles sem lhe dirigir o olhar, Arthur notou que Anna se cambaleava. Apertou-a contra si com mais força, com o desejo de protegê-la contra isso. Aquele filho de cadela estava lhe destroçando o coração.
—Pai! —exclamou com um fio de voz.
Lorn se voltou para olhá-la com expressão gélida. Mas não estava tão pouco afetado como queria aparentar. Nos olhos do ancião havia uma dor real.
—Não há nada mais que dizer. Tomaste sua decisão.
Anna negou com a cabeça.
—Escolho amar aos dois. Mas meu futuro está junto a Arthur.
Lorn a olhou com atenção, e por um instante Arthur pensou que claudicaria. Mas o homem aplacou seu gesto e deu meia volta para partir sem dizer uma palavra mais, condenado por seu próprio orgulho. Cortando suas relações com ela assim, não fazia mais que prejudicar a si mesmo. Anna era a luz, a cola que unia as pessoas a sua volta. Sem ela, suas vidas seriam mais escuras. Arthur sabia. Tinha comprovado em sua própria carne.
Desejava poder economizá-la dessa dor ou sofrer por ela, mas o único que podia fazer era permanecer a seu lado enquanto via como seu pai e seu clã se afastavam no navio. Quando viraram para o lago e desapareceram de seu olhar, Arthur a pegou pelo queixo para que o olhasse nos olhos.
—Juro-te que me assegurarei de que nunca te arrependas disto.
Anna lhe ofereceu um sorriso vacilante através do brilho de suas lágrimas.
—Não farei. É a única decisão que podia tomar. Eu te amo.
Arthur se inclinou e a beijou com doçura. Sua boca era inclusive mais doce e suave do que recordava.
—E eu amo muito a ti.
Queria dizer muitas mais coisas, mas o resto teria que esperar. Os reforços chegariam de um momento a outro.
—Qual é seu quarto? —perguntou Arthur.
Anna ruborizou. Parecia envergonhada.
—Aquela acima, com vista para o lago.
Teria que ter imaginado.
—Eram meus aposentos.
Anna abriu os olhos de par em par e se apressou a dizer:
—Mudarei…
Arthur negou com a cabeça, cortando em seco suas palavras.
—Fique, assim saberei onde te encontrar. —Gostava de pensar nela ocupando seu aposento. Arthur olhou para trás e viu os navios aproximar-se — Vai até lá. Há certas coisas que tenho que atender. Irei te buscar quando tiver acabado.
Anna estirou o braço para acariciar seu queixo.
—Seu pobre rosto.
Arthur fez uma careta de dor.
—Já sei que estou horrível.
Seus olhos se encheram de culpa.
—Deus, Arthur… Sinto tanto.
—Nada disso, moça — repôs ele negando com a cabeça — Isso se acabou. Não podemos mudar o passado. Tudo que podemos fazer é viver o presente e planejar o futuro.
Um futuro que só momentos antes parecia sombrio e agora transbordava de esperança. Observou-a partir, consciente do perto que estivera de perdê-la. Mas agora que estava com ela, Arthur jurou que jamais a deixaria partir.
Não a fez esperar muito. Anna ouviu como batia na porta com suavidade apenas meia hora depois de que zarpassem os navios. Os homens de Bruce não ficaram muito tempo, mas mesmo assim parecia estranho ver que o pátio de armas se enchia de soldados inimigos. Não, inimigos não. Ao escolher ao Arthur também escolhia ao Bruce, embora supôs que levaria algum tempo familiarizar-se com o que em realidade significava aquilo. No momento, simplesmente tentava acostumar-se com a idéia de que não sabia quando poderia voltar a ver sua família, se é que chegaria a fazer. Ao negar-se a se render ante Bruce, a seu pai não ficava mais alternativa que seguir o mesmo caminho até a Inglaterra que tinha tomado meses antes John Comyn, o conde de Buchan. E suspeitava que sua mãe, seus irmãos e suas irmãs logo partiriam junto a ele.
Mas por mais difícil que fora tomar aquela decisão, Anna sabia que tinha escolhido bem. O amor cego que tinha por seu pai era o de uma menina que pensava que ele jamais faria nenhuma maldade. Entretanto, o amor que sentia por Arthur era o de uma mulher. Uma mulher que entendia que as pessoas, inclusive aquelas às que amava, cometiam erros. O perdão era parte do amor.
Ao abrir a porta e vê-lo ali o coração lhe deu um tombo. Sua enorme envergadura enchia a soleira e tinha que encolher-se para entrar no aposento. De repente aquela pequena câmara dava a impressão de ser minúscula. O ar estava impregnado do aroma de sabão. Banhara-se, tirado a armadura e vestia com uma camisa limpa, túnica e meias, que, suspeitava Anna, teria tomado emprestados de algum dos membros de seu clã que partiram. Mas não foi a visceral consciência de sua presença o que a fez jogar-se em seus braços e afundar o rosto em seu amplo e quente peito, a não ser a infantil expressão de incerteza que aparecia seu rosto.
Anna apreciou o suspiro de alívio que percorria o corpo de Arthur ao rodeá-la com seus braços e agarrá-la.
—Encontra-te bem? —perguntou Arthur.
Anna apoiou o queixo sobre seu peito para o olhar e assentiu.
—Estava preocupado?
Uma mecha de cabelo molhado lhe caiu sobre a testa.
—Sim, mais do que queria admitir.
—Tomei uma decisão, Arthur. Sabia o que dizia. Pode ser que em algumas ocasiões não seja nada fácil, mas jamais me arrependerei disso. —Seu irmão Alan tinha razão. Merecia a um homem que a amasse com a mesma intensidade que ela amava. Um homem que derrubasse dragões e se arrastasse sobre as brasas do inferno por ela. Arthur fazia isso e ela jamais o deixaria escapar. Anna se deixou abraçar um instante antes de voltar a falar—: Obrigado pelo que fez. Sei que… — A emoção a embargava — Sei que não foi fácil.
Seu rosto se escureceu, mas somente por uns segundos.
—Jamais me arrependerei disso — disse repetindo suas palavras com um meio sorriso — Salvar a vida de seu pai é um pequeno preço a pagar pela felicidade que recebo em troca.
Anna mordeu o lábio.
—Mas o que passará com Bruce? Não estará zangado porque o deixasse partir?
Arthur fez uma careta.
—Se podemos tomar a primeira reação de seu tio como sinal, provavelmente sim. Mas o rei me deve alguns favores. Acredito que com isto saldamos as contas. Enquanto seu pai abandone a Escócia, estará inclinado a compreendê-lo.
Inclinado. De repente Anna se deu conta de que somente notava uma mão de Arthur nas suas costas. Libertou-se de seu abraço e ao baixar o olhar viu que sua mão esquerda tinha uma pomposa bandagem. Não tinha notado antes porque Arthur levava as luvas.
—O que passou a sua mão?
—Está quebrada — disse Arthur com total naturalidade.
Ficaram olhando-se nos olhos, e Arthur respondeu sua pergunta tácita. Anna só precisou olhar seu maltratado rosto para saber como tinha acontecido.
—Que mais?
—Algumas costelas — respondeu ele, encolhendo-se de ombros — Vários cortes e alguns hematomas. Nada que não possa curar — Houve algo em seus olhos que indicou a Anna justamente o contrário — Não é mais do que mereço pelo que lhe fiz.
—Não — repôs ela negando com a cabeça de maneira categórica — Não diga isso. O que fizeram foi horrível, mas jamais teria exigido tal castigo —continuou com lágrimas nos olhos — Não é que o tenhamos tudo muito fácil, verdade?
Arthur a agarrou pelo queixo e negou com a cabeça.
—Não, amor, mas te prometo que isso mudará. Acabaram-se as mentiras. Acabaram-se os segredos. —Sorriu, franzindo o cenho — Em qualquer caso, já conhece os mais perigosos.
Que formava parte do exército secreto de Bruce.
—Por que te chamam Guardião?
Houve um momento incômodo quando Arthur olhou a seu redor no aposento em busca de algo onde sentar-se e percebeu de que não havia mais que a cama. Não obstante, sentou-se na borda e fez gesto a Anna para que se sentasse junto a ele. Ela notou que tomava cuidado em deixar uns centímetros de separação entre ambos enquanto explicava.
Tinham-no obrigado a abandonar o treinamento antes dos outros para que ocupasse seu posto como espião. A decisão de usar nomes de guerra fora feita em sua ausência. Alguns dos nomes saíram das brincadeiras que se fazia entre eles e outros, como o seu, provinham de suas habilidades.
—Então eu tinha razão —disse Anna com alegria— quando pensava que seria um rastreador perfeito.
Arthur riu.
—Sim, embora não me fez nenhuma graça. Tentava ocultar minhas habilidades, mas parecia pensar em outras coisas.
E em outras coisas começou a pensar Anna. Aproximou-se um pouco mais dele, deixando que seus seios lhe roçassem o braço.
—E o que ocorrerá depois?
Arthur parecia tentar conter-se por todos os meios.
—Agora acredito que será melhor que eu vá. Não deveria estar aqui contigo deste modo. Não sem um sacerdote.
Anna riu e pôs uma mão sobre a perna. Seus potentes músculos se esticaram debaixo de sua palma.
—Não acredito que goste de ter a um sacerdote aqui conosco.
Arthur apertou os dentes; de fato, pareceu apertar todos os músculos de seu corpo.
—Refiro-me até que estejamos casados.
—Tenho a impressão de que é um pouco tarde para nos pôr cerimoniosos, não?
—Não subi com a intenção de… - Arthur não continuou — Maldita seja, Anna, deixe de fazer isso. —Agarrou sua mão e deteve sua incursão pelo interior da coxa — Tento fazer a coisa certa.
—Quer dizer que anteriormente não fez certo? —Anna piscou com exagerada inocência.
Arthur a olhou com recriminação.
—Sabes perfeitamente que não é isso a que me refiro. Aquilo foi absoluta e totalmente perfeito.
Acabou a provocação. Quando ergueu o olhar de novo o fez com todo o amor de seu coração.
—Por favor, Arthur. Preciso me sentir assim uma vez mais. —Anna necessitava a cercania. Necessitava a conexão. Precisava saber que tudo iria bem. Seus olhos se abriram de par em par — A menos que não sejas capaz. Esquecia que…
Arthur a deteve com um ardente beijo que penetrou até o mais profundo de sua alma.
—Claro que sou capaz, maldita seja.
E, assim, procedeu a lhe mostrar com todo luxo de detalhes quão capaz era. Lenta, profunda e meigamente, com todo o amor que albergava em seu coração. E quando os últimos estremecimentos de prazer começaram a extinguir-se, quando ele sustentou seu corpo nu contra o seu arroxeado e maltratado, Anna soube que nos braços daquele fornido e firme guerreiro encontraria por fim a paz.
Epílogo
Castelo de Dunstaffnage, 10 de outubro de 1308
A paz fazia bem, tanto para a Escócia como para Anna. Menos de dois meses depois da derrota de seu pai no Brander, Bruce ganhou a batalha dos grandes líderes da Escócia. Seu avô, Alexander MacDougall, rendeu-se depois de um breve assédio ao castelo de Dunstaffnage, enquanto que o conde de Ross fez o mesmo depois de poucos dias. Bruce perdoou a vida do homem responsável pelo encarceramento de sua mulher, de sua filha e de suas irmãs, assim como da condessa de Buchan, um ato que dava fé do desejo que tinha de ver a Escócia e a seus nobres unidos sob uma mesma bandeira.
«Pelo bem da Escócia.» Anna tinha que admitir que essa filosofia a impressionava. O homem em si…Bom, procurava manter a mente aberta. Tantos anos defendendo uma causa não se esqueciam em questão de semanas. Mas o que Bruce tinha planejado para esse dia faria bastante para que mudasse de opinião. Sabia o que significava aquilo para Arthur.
Seu olhar passeou pelo grande salão e cruzou a maré de membros do clã reunidos em celebração. Alguns deles lhe pareciam familiares, embora quase todos eram estranhos. Tomaria um tempo, mas Anna prometeu que conheceria todos eles. Aquele seria seu lar. Bruce tinha concedido a guarda do castelo de Dunstaffnage a Arthur em gratidão a sua lealdade e pelos serviços prestados. Além disso, sua próxima missão tampouco o afastaria muito. Passaria os seguintes meses fiscalizando o paradeiro de Lorn e Argyll em sua totalidade e riscando mapas de quanto encontrasse.
Arthur tomou a mão de Anna e a apertou carinhosamente.
—Está contente, meu amor?
Anna ergueu o olhar para o homem que estava sentado junto a ela no estrado, um homem que se convertera em seu marido nessa mesma manhã. Lágrimas de alegria cobriram seus olhos ao olhar suas bonitas feições, que já apenas viam pequenos traços do calvário que tinha sofrido.
—Sim, e poderia ser de outra forma? Ao fim tem feito de mim uma mulher honrada e talvez possa voltar a olhar ao pai Gilbert nos olhos.
Arthur riu. Esse profundo e harmonioso som, muito mais livre agora, seguia sendo capaz de lhe arrepiar a pele com um quente formigamento.
—Já te disse que teria que ter partido antes.
—Tinha frio… — Anna fez um biquinho com os lábios.
—Ofereci-te uma manta antes de ir.
—Não queria mais mantas — disse com a mesma teima que a tinha metido em problemas desde o começo.
Queria a ele. Acostumou-se a dormir do seu lado em Innis Chonnel e fora difícil habituar-se de novo ao retornar ao Dunstaffnage no mês anterior. Ver-se às escondidas não era nem metade de excitante e íntimo. E, é obvio, o principal problema de ver-se às escondidas era a possibilidade de que os descobrissem, justamente o que tinha acontecido fazia uma semana, quando o pai Gilbert pegou Arthur saindo de seu aposento.
—Esta noite não necessitará mais mantas — disse ele com um olhar longo e cálido.
Anna não pôde evitar ruborizar-se, apesar de que nos últimos dois meses tivesse perdido a inocência em muitos sentidos, alguns deles de jeitos mais reveladores.
—Acredita que se darão conta se sairmos agora? —perguntou Arthur inclinando-se sobre ela.
O suave sussurro de seu fôlego no ouvido a fez estremecer. Mas o que lhe provocou brilhos de calor entre as pernas foi a mão que se movia de maneira possessiva e determinada sobre sua coxa. As carícias de seu dedo recordavam a sua língua. E se recordava sua língua, não podia esquecer-se de sua boca. E se recordava sua boca, tinha que lembrar-se da maneira em que a tinha despertado essa manhã fazendo-a chorar de prazer. O mesmo dia das bodas, o muito desrespeitoso velhaco!
E então recordou como tinha pago sua diabrura com a mesma moeda incitando-o com sua própria língua. Recordava o delicioso sabor salgado de sua pele, aquela coluna de carne aveludada introduzindo-se cada vez mais profundo em sua boca. A maneira em que o tinha espremido até o final com a sucção de seus lábios, rodeando a grossa e potente cabeça de seu membro com a língua até que Arthur implorasse por não poder conter-se mais. O modo que acabou por perder o controle e lhe sustentara a cabeça com as mãos para meter até o fundo de sua garganta, fazendo que os gritos guturais do alívio retumbassem em seus ouvidos.
O corpo de Anna começou a derreter com a doce calidez da excitação. Então recordou onde estava e se sobressaltou. Afastou-lhe a mão, confiando que ninguém os tivesse visto. Pelo amor de Deus, se tinha os olhos entreabertos! Era ela quem devia o distrair e não ao contrário.
—Não podemos sair. Não até que… — Se deteve ao conscientizar-se de que talvez houvesse falado demais — Somos os convidados de honra.
Arthur pôs cara de surpresa, olhando ao outro extremo da mesa no que havia vários assentos vazios.
«Pelos pregos de Cristo!» Se deu conta. Pois claro que tinha feito. Não havia nada que escapasse a aquele homem tão observador. Anna o agarrou pela mão.
—Vamos, deveríamos dançar.
Ficou circunspeto, sem mover um dedo.
—Passa algo, Anna? Atua de um modo estranho.
Os olhos se puseram como pratos.
—Pois claro que não. Somente quero dançar.
Um sorriso maroto torceu seu gesto.
—Temo que terá que me dar uns minutos.
—Por que?
Arthur baixou o olhar até sua virilha, e as bochechas de Anna se ruborizaram ao ver seu volumoso pacote. Ao que parecia não era a única que estivera relembrando. Olhou do outro lado da mesa, onde estava sentado MacGregor. Este fez uma sutil negação com a cabeça, depois da qual ela voltou a olhar de novo a seu marido, que seguia circunspeto.
—Está segura de que não é por…? Sei que sente falta da sua família.
Um sorriso amargo se desenhou em seus lábios.
—Sinto falta deles, mas isso não significa que não seja feliz. E meu avô está aqui — disse inclinando a cabeça em direção ao chefe dos MacDougall, sentado a poucos assentos de distância de onde estava o rei. Bom, onde estava o rei até um momento.
Uma vez tomado o castelo, sua mãe e suas irmãs receberam permissão para seguir a seu pai e seus irmãos no exílio, mas Bruce queria o apoio de seu avô. Se seria capaz de ganhar o ou não era algo que Anna não sabia, mas estava contente de ter ao menos a um de seus familiares com ela no dia de suas bodas.
E é obvio estava Escudeiro. Um dia obrigaria Arthur que lhe contasse como tinha conseguido tirar o cachorrinho do castelo enquanto este estava sob assédio. Anna ficou a choramingar como uma idiota ao vê-lo e teve que explicar a um confuso Arthur que chorava de felicidade. Após, não houve um só dia que não jurasse que se arrependia assim que o mascote o perseguia, mas ela sabia que em realidade não se importava nem a metade do que dizia. A aceitação, ou melhor dizendo, a confiança no afeto parecia agora mais fácil. E que Arthur se esforçasse tanto por vê-la feliz era algo que a comovia até o extremo. Quando fez o mesmo com seu irmão Alan, antes que o castelo caísse e de que sua família fugisse para Inglaterra, quase a tinha matado da alegria. Ver seu irmão, sabendo que não compartilhava a decisão de seu pai e que não cortaria as relações com ela completamente, era mais do que Anna poderia esperar. Alan era leal a seu pai, mas essa lealdade não estava brigada com seu amor por ela.
Sim, tinha muito que agradecer a seu novo marido.
—E o que tem a ti, Arthur? Sei que certamente te decepciona que não estejam aqui todos seus companheiros da Guarda.
Anna não sabia de todos os detalhes da Guarda de elite de Bruce, nem tampouco perguntou, consciente de que esse segredo preservava a segurança de seu marido. Mas sabia que se tratava dos melhores guerreiros de elite na Escócia, o melhor do melhor em todas as disciplinas de guerra. Sempre pensou que havia algo especial em Arthur, mas nunca imaginou quão especial era.
Também tinha adivinhado algumas das identidades por sua própria conta. Seu tio. Os dois homens que o acompanhavam e tinham ajudado a libertar Arthur, Gordon e MacKay. O bonito até dizer chega do Gregor MacGregor, que tinha formado parte do ataque tantos meses atrás. Seu rosto era difícil de esquecer. E parecia certo suspeitar que o ilhéu de feroz aspecto Tor MacLeod era outro deles, assim como esse nórdico extremamente encantador, Erik MacSorley. Ambos estiveram sentados junto ao rei com suas esposas, embora nesse momento só elas permaneciam ali.
Pode ser que não soubesse todos os detalhes, mas Anna sabia o suficiente para compreender quanto significavam esses homens para Arthur, embora não fosse consciente disso. Entretanto, seria.
Arthur encolheu os ombros como se aquilo não lhe importasse realmente.
—Há paz no norte, mas nas fronteiras continuam as revoltas. Estou seguro de que teriam vindo se fosse possível. Gordon se casará logo. Talvez consiga vê-los todos nesse dia. Há muito que fazer antes que o rei atenda a seu primeiro Parlamento na próxima primavera — continuou, depois de uma pausa — Estou contente de que meus irmãos possam estar aqui. É a primeira vez que estamos todos juntos na mesma estadia há anos.
Sir Dugald e sir Gillispie se renderam junto a seu avô e Ross. Surpreendentemente, não pareciam guardar rancor de Arthur; entretanto, pela expressão de sir Dugald enquanto discutia com sir Neil, não se podia dizer que seus sentimentos fossem os mesmos para seu irmão mais velho.
—Pois pelo que parece, poderiam ter esperado mais tempo.
Arthur sorriu.
—Sempre foram assim. Rivais encarniçados, inclusive quando pequenos. Eu acredito que essa é a razão pela que Dugald se alinhou junto aos ingleses durante tanto tempo, para não ter que acatar ordens do Neil. Já se arrumarão. A seu devido tempo.
Anna advertiu que Arthur voltava o olhar ao redor.
—Está preparado para dançar? —perguntou com inquietação.
Arthur arqueou uma sobrancelha.
—Estou preparado para ir à cama.
O olhar dela se voltou de novo para Gregor MacGregor de maneira inconsciente. Para seu consolo, dessa vez o guerreiro assentiu. Entretanto, quando voltou o olhar para este Arthur tinha os olhos entreabertos.
—Importaria de me dizer por que cada vez que menciono a cama olha ao MacGregor? —Anna se ruborizou — Vai me dizer do que se trata? —exigiu com aborrecimento — Está tramando algo. E não me diga o contrário, porque posso pressentir.
Anna ergueu o queixo, molesta com sua acuidade.
—Acreditava que seu calcanhar de Aquiles fosse eu.
—E é —disse Arthur com um gesto brusco da mão — Mas não o dele.
Não parecia fácil surpreender a alguém que estava pendente de cada matiz, que notava qualquer mudança e advertia qualquer movimento a seu redor. Inclusive tinha percebido as mudanças de seu corpo antes dela e a informou que seria melhor que adiantassem as bodas ou seu filho seria muito grande para ter só dois meses de vida.
Anna o obsequiou com um olhar de suficiência.
—Está ciumento. —Deixou que seu olhar voltasse a recair sobre o fundo da mesa e ficou olhando de maneira pausada, como se o estivesse apreciando — É bastante bonito esse teu amigo.
Sua cara feia piorou mais ainda.
—Pois não será por muito tempo, se continua olhando-o assim. E não me respondeste.
Anna soprou e se deu por vencida.
—Está bem, mas queria que fosse uma surpresa.
—O que queria que fosse uma surpresa?
Depois de um breve passeio além das portas do castelo Arthur descobriu a razão para tanto subterfúgio. De pé numa clareira da floresta, com o halo laranja do sol do entardecer atrás dele, erguia-se o rei Robert Bruce ante um obelisco, investido com toda a cerimônia real que lhe supunha. Junto a ele, alinhados como um pano de fundo, com seus traços mascarados sob os elmos com nasal cobertos de breu, esperavam os outros dez membros da Guarda secreta de Bruce.
Arthur se deteve sobre seus passos e lhe dirigiu um rápido olhar de incredulidade.
—Tiveste algo que ver nisto?
Anna negou com a cabeça.
—Foi idéia do rei Hoo… —começou, detendo-se o ver o rosto que punha seu marido — Foi idéia do rei Robert —se corrigiu, embora esse título ainda não saía de seus lábios com naturalidade — Minha missão era te distrair —disse fazendo uma careta — Uma missão em que, ao que parece, fracassei.
Arthur a agarrou em braços e a beijou.
—Pois eu acredito que a cumpriu que maneira admirável.
Anna transbordou de alegria.
—Vá. Estão esperando.
Por fim Arthur teria a cerimônia da que nunca pôde gozar. A cerimônia que lhe fora negado por seu papel como espião. Aqueles homens eram tão parte dele como ela mesma. Anna cruzou os braços sobre seu ventre. E como logo seria seu bebê.
—Não demorarei muito — disse Arthur trás beijá-la de novo.
—Estarei esperando.
«Sempre.» Do mesmo modo que ele retornaria sempre para ela. Aquele homem que a todo momento olhava à porta como se quisesse fugir, tinha encontrado o lugar ao que pertencia. E em um mundo no que a paz era tão frágil como uma parte de cristal, Anna tinha encontrado a rocha em que apoiar-se.
Observou-o dirigir-se para eles com o peito cheio pelo orgulho e felicidade. Uma vez que chegou lá, Anna começou a afastar-se. Entretanto, mal teve percorrido alguns metros mais à frente do círculo de árvores quando duas mulheres a detiveram.
—Aonde vai? —perguntou em um sussurro Christina, a mulher de Tor MacLeod.
Anna tentou não sentir-se intimidada por sua beleza, mas parecia impossível. Christina era tão deliciosa e refinada como uma princesa de conto de fadas, sobretudo ao compará-la com o aspecto aterrador de seu marido, que parecia tirado das páginas arrancadas de algum livro antigo sobre mitologia nórdica.
—Eu… pensava que não pudesse olhar.
A segunda das mulheres sorriu. Embora não era tão incrivelmente formosa como Christina Fraser, havia algo sereno e agradável em Elyne, a esposa do descarado pirata Erik MacSorley. Anna ficou perplexa quando descobriu que era a filha do conde de Ulster, um amigo íntimo do rei da Inglaterra. Mas também era irmã da esposa encarcerada do rei Robert, Elizabeth. Outra família dividida, ao que parecia.
—Acham que não —disse Elyne — Mas isso não vai me deter. Não tive oportunidade de ver a de meu marido. Não perderia isso por nada do mundo.
—Não se zangarão? —perguntou Anna.
Christina lhe dirigiu um sorriso insolente.
—Superarão. Além disso, quero ver que tipo de marca lhe põem.
Anna a olhou com surpresa.
—Já tem uma. O leão rampante. Pensei que todos os homens o tinham.
—Assim é —respondeu Christina — Mas decidiram acrescentar outra pela aranha da cova. Conhece a história?
Anna assentiu. A história da aranha de Bruce na cova formava já parte da lenda.
—Para honrar a ocasião, Erik decidiu acrescentar uma em forma de gargantilha ao redor de seu braço que parece uma teia de aranha — disse Elyne — Como é marinheiro, incorporou também o birlinn nele —acrescentou com um sorriso — Uma vez que outros o viram, todos decidiram fazer um. —Elyne, entre risadas, ergueu o olhar ao céu como dizendo: «Homens».
—Venha — disse Christina, agarrando-a pelo braço e arrastando-a de novo para as árvores — Já começaram.
As três mulheres contemplaram juntas das sombras como Arthur se ajoelhava ante o rei e tomava o lugar que lhe correspondia por direito próprio entre seus companheiros da Guarda, seus amigos.
«Inquebrável», dizia a gravação na espada que Bruce lhe entregou. Anna não podia estar mais de acordo.
Fim
Nota da Autora
A batalha do Estreito de Brander foi chave na guerra de independência da Escócia. Não só representa um exemplo da mudança de estratégias de Bruce, pois este deu uma emboscada a quem pretendia lhe dar uma, mas sim também assinala a precipitada queda em desgraça dos MacDougall e a mudança de poderes na política das Highlands Ocidentais para outro ramo de descendentes de Somerled, os MacDonald, e também para os Campbell, que se beneficiariam do infortúnio dos MacDougall.
Há certo desacordo entre os historiadores na hora de datar a campanha de Bruce em Argyll após a qual John de Lorn fugiu da Escócia e a queda do castelo de Dunstaffnage. Decantei-me pela data mais convencional do verão do ano de 1308, mas há quem opine que a capitulação final de Argyll não foi antes do ano de 1309.
Embora a forma como narro a batalha seja fictícia, incorporei muitos dos acontecimentos reais, entre os quais se inclui John de Lorn dirigindo seus homens de um birlinn à beira do lago, já que se supunha que estava recuperando-se dessa enfermidade que tinha propiciado a trégua do ano anterior. Diz-se ainda que ao falhar seu ataque, retirou-se a um de seus castelos.
Mas há um detalhe em particular da batalha que foi o que me deu a idéia para a história. Li algo a respeito de um explorador que supostamente tinha advertido ao Bruce da emboscada, com isso salvou sua pele. Aquilo soava como um trabalho perfeito para meu rastreador de elite Arthur Campbell.
O personagem de Arthur Campbell está inspirado vagamente em Arthur de Dunstaffnage, o irmão, ou pode ser que o primo do Neil Campbell. Tal e como sugere seu apelido, foi renomado governante do castelo de Dunstaffnage depois da guerra. Algo que encaixava à perfeição com minha heroína MacDougall, embora Anna seja um personagem fictício e o nome da esposa de Arthur, se é que a houve, não apareceu. Curiosamente, sim existiu um compromisso de matrimônio entre Arthur e Christina das Ilhas MacRuairi, embora nunca chegaram a casar-se.
O que também se adequa à perfeição com Arthur, e deste modo com seu irmão Dugald, é que se dizia que esteve no lado dos ingleses durante um tempo e mais tarde passou ao de Bruce. Arthur de Dunstaffnage não é, provavelmente, o mesmo Arthur progenitor do clã MacArthur. Parece mais plausível que este Arthur proviesse de outro ramo da família, possivelmente mais antiga, os Campbell do Strachur (que significa «filhos de Arthur»). Mas há muita confusão e existem diferentes teorias respeito à linhagem dos MacArthur, incluindo a descendência direta do rei Artur. Um antigo provérbio das Highlands diz: «Não há nada mais antigo que as colinas, MacArthur e o diabo».
Neil Campbell foi um dos partidários de Robert Bruce mais importantes e leais. De fato, ao final Neil acabaria casando-se com a irmã do rei, Mary, quando a libertaram do cativeiro da jaula nas alturas do castelo do Roxburgh, ao redor do ano 1310. Mary voltaria a casar-se depois da morte de Neil, algo comum em uma época em que havia tantos viúvos e viúvas. Aos leitores do primeiro livro da série, O Guerreiro, talvez lhes interesse saber que seu segundo marido foi Alexander Fraser, o irmão da Christina.
Um interessante ponto e aparte na história do Neil dá certo colorido à época: parece ser que sua primeira esposa era filha de Andrew Crawford. Neil e seu irmão Dugald, que foram nomeados guardiães das duas irmãs Crawford, decidiram tomar como esposas de maneira literal: seqüestraram-nas.
John de Lorn, também conhecido como John Bacach (John o Coxo) e como John de Argyll, foi uma figura destacada na política das Highlands Ocidentais, responsável não só da morte do Colin Mor Campbell na batalha de Red Ford, mas também da de seu parente Alexander MacDonald, lorde de Islay, o irmão de Angus Og.
Lorn sofreu enormemente por sua lealdade aos Comyn, a quem estava ligado por matrimônio, e também por seu ódio ao Bruce, algo que, dado que este assassinou ao Comyn o Vermelho, era uma circunstância bastante compreensível.
O uso de mensageiras femininas por parte de Lorn é minha invenção, mas a frustração das missivas que se perdiam não é. A esse período sobreviveram algumas epístolas, entre as que se inclui uma carta recentemente decifrada do oficial do Banff dirigida ao Eduardo II em que se queixa dos assassinatos de seus mensageiros. Do mesmo modo, a frustração de Lorn ao ficar sozinho frente a Bruce e a dificuldade de conseguir apoios dos barões locais está apoiada na correspondência entre Lorn e Eduardo II, em que o primeiro afirma que se vê obrigado a uma trégua com Bruce porque está doente e «os barões de Argyll não me emprestam ajuda alguma» (Robert Bruce, G.W.S. Barrow, Edinburgo University Press, Edinburgo, Escócia, 2005, P. 231).
Não há fonte que confirme a doença de Lorn. O ataque ao coração e os conseguintes problemas coronários são de minha própria invenção, algo que resulta ajustar-se bem a sua propensão a esses violentos ataques de cólera. Paralelamente, também se desconhece a fonte da que provém a enfermidade debilitante que golpeou ao Bruce no inverno do ano 1307. Embora certos rumores históricos a identificam com a lepra, as últimas hipóteses apontam que devia ser escorbuto. Qualquer que fosse a causa, sacudiu com força ao novo rei e, conforme se diz, esteve a ponto de acabar com ele. Supostamente, Bruce foi levado nas costas por seus homens à batalha de Inverurie.
O broche que Lorn leva no capítulo dois, do qual se diz que o arrancaram de Robert durante da batalha de Dal Righ, segue em poder do chefe dos MacDougall, e sua última aparição em cena é tão recente que somente faz cinqüenta anos. Não obstante, alguns peritos asseguram que o broche em questão provinha de um período anterior.
A batalha de Red Ford ocorreu de maneira diferente de como eu a retratei. Mais que uma emboscada, John de Lorn se encontrou com o Colin Mor junto a um córrego que desembocava no Loch na Streinge (mais tarde chamado Allt a chomhla chaidh, quer dizer, o córrego do encontro). A discussão degenerou em uma briga e este em uma batalha. Os MacDougall se viram superados em número, e parecia que perderiam, até que um arqueiro disparou sobre o Colin o Grande detrás de uma pedra e o matou.
Até onde chegava o poder dos Campbell nas imediações do Loch Awe antes da guerra é algo que não se tem ciência certa, mas já que o fizeram magistrado municipal de Loch Awe perto do ano 1296, podemos presumir que não foi insignificante. Embora se acredita que os Campbell detiveram a propriedade o castelo de Innis Chonnel anterior a dos MacDougall, cuja existência está confirmada no ano 1308, os historiadores não estão seguros disso. Não obstante, no momento em que transcorre o livro, o castelo estava nas mãos dos MacDougall. Lorn menciona em uma carta ao rei Eduardo os três castelos que possui em Loch Awe.
O ódio entre Bruce e os MacDougall só rivalizava com o de seus parentes os Comyn. A «perseguição de Buchan» que seguiu à batalha do Inverurie (ou batalha de Barra) de 23 de maio de 1308, a qual tem lugar a princípio do livro, parece ser uma das poucas ocasiões nas que Bruce deu rédea solta à vingança. A destruição foi tão devastadora que se diz que demoraram anos em recuperar-se e que se falou dela durante gerações inteiras.
Pelo contrário, o rei Robert sim que aceitou a rendição de William (Uilleam II), o conde do Ross, sem tomar represálias pelo papel que tinha desempenhado Ross na captura e posterior encarceramento das damas de Bruce (sua esposa, sua filha, suas irmãs e a condessa de Buchan). Não muito tempo depois da rendição de Ross, seu filho Hugh (Aodh) casaria-se com a irmã de Bruce, Mathilda.
Conforme contam, Alexander MacDougall, lorde do Argyll, era muito velho e estava doente no momento da batalha do Brander. Rendeu-se ante Bruce depois do assédio ao castelo de Dunstaffnage e atendeu ao primeiro Parlamento do rei em março de 1309, mas depois acompanhou a seu filho no exílio, onde morreu em 1310.
Como é habitual, alguns dos castelos que são mencionados no livro são conhecidos com outros nomes. O castelo de Auldearn se conhece também pelo Old Even e o castelo de Glassery (ou Glassary) conhece-se como castelo do Fincharn.
A tortura medieval dos ratos era muito mais truculenta do que sugiro. Colocavam sobre o estômago da vítima uma jaula fechada com um rato em seu interior e depois a esquentavam em cima. O rato, em sua tentativa de escapar, roía lentamente as vísceras do condenado. Um detalhe… interessante que provavelmente teria dotado ao livro de um «colorido» muito fiel à época.
Finalmente, os leitores do terceiro livro de minha trilogia dos Campbell, O highlander traído, talvez percebam a conexão entre a espada de Arthur e a de Duncan, em que gravaram a lenda: «Inquebrável» que passou de geração em geração dos tempos de Bruce. Apesar de que seja de minha própria mente, é obvio que era costume gravar lendas nas espadas e passá-las ao herdeiro.
Notas
[1] Hora da oração completa. Onde estariam todos juntos, sem exceção e rezariam supostamente o rosário completo.
[2] Uma vestimenta, normalmente bordada com o brasão, usada sobre a armadura.
[3] O Rei Robert the Bruce era chamado pelos ingleses e simpatizantes por King Hood, para insultá-lo por usar uma longa capa com capuz. Hood em inglês significa capuz.
[4] Ela se referiu antes a dores no peito do pai. Possivelmente se trate de insuficiência cardíaca do ventrículo esquerdo, onde ele não “retira” o sangue do pulmão, daí o termo encharcamento.
[5] Um “leão rampante” é representado em pé ereto de perfil, com as patas dianteiras levantadas. A posição das patas traseiras varia de acordo com os costumes locais: o leão pode estar em ambas as patas traseiras afastadas, ou em apenas sobre uma, com a outra também levantada para o ataque; a palavra rampant é frequentemente omitida, especialmente nos brasões mais antigos, pois esta é a posição mais usual de um quadrúpede carnívoro.
[6] Um bardo entre os Highlanders da Escócia, que preservaram e repetiam a tradições das tribos, também, um genealogista.
[7] Adonis era um jovem de grande beleza que nasceu das relações incestuosas que o rei Cíniras de Chipre manteve com a sua filha Mirra. Adônis passou a despertar o amor de Perséfone e Afrodite. Mais tarde as duas deusas passaram a disputar a companhia do menino, e tiveram que submeter-se à sentença de Zeus. Este estipulou que ele passaria um terço do ano com cada uma delas, mas Adônis, que preferia Afrodite, permanecia com ela também o terço restante. Nasce desse mito a ideia do ciclo anual da vegetação, com a semente que permanece sob a terra por quatro meses.
[8] O luchd-taighe eram guardas da comitiva pessoal do chefe, ou em termos coloquiais, a sua posse. Sua finalidade era atender o chefe em todos os momentos. Eles eram bem treinados em armas e ações marítimas, bem como perseguições a outros guerreiros. Era uma grande honra ser escolhido como um dos guardas pessoais do chefe e o prestígio de um chefe era derivada a partir do número destes homens luchd-taighe.
[9] Hobelars eram um tipo de cavalaria ligeira, ou montado de infantaria, durdiante da Idade Média , usado para escaramuças. Eles se originaram no século 13 na Irlanda e, geralmente, montavam os cavalos hobelar, um tipo de cavalo leve e ágil.
[10] O escudo é dividido em 8 triângulos.
[11] Tomás da Inglaterra (ou Tomás da Bretanha) foi um poeta anglo-normando do século XII. Sua única obra conhecida é o poema Tristan, uma das primeiras versões conhecidas da lenda de Tristão e Isolda. O poema foi escrito entre 1155 e 1170, possivelmente para Leonor de Aquitânia, uma vez que a obra sugere uma relação com a corte de Henrique II Plantageneta. Apenas oito fragmentos da obra sobreviveram aos nossos dias, com um total de 3.300 versos, especialmente da parte final da história . Calcula-se que isso represente cerca de um sexto do poema original. A obra de Tomás é contemporânea de outro grande poema sobre o tema de Tristão e Isolda, escrito por um misterioso escritor chamado Béroul e que também chegou de maneira fragmentária aos nossos dias. Comparada à obra de Béroul, o Tristan de Tomás é considerado mais próximo do refinamento do romance cortês.
[12] cama bamba, meio velha ou quebrada.
[13] Os Saxões chamavam ao grupo das pedras eretas (menhires) «Stonehenge» ou «Hanging Stones» (Pedras Suspensas), enquanto os escritores medievais se referem como «Dança de Gigantes». Inigo Jones, famoso arquiteto do século XVII que fez o primeiro estudo sério sobre Stonehenge, considerou-o um Templo romano. Mas William Stukeley, um estudioso de Monumentos e Franco-Maçom do século XVIII, convenceu muita gente de que se tratava de um Templo construído pelos druidas britânicos. Só no século XX os arqueólogos estabeleceram a idade real do Monumento e chegaram a conclusões mais realistas acerca da sua finalidade. A zona de Wiltshire, nos arredores de Stonehenge, é rica em ruínas Pré-Históricas. Woodehenge, Durrington Walls, Cursus e mais de 350 sepulturas são testemunho da intensa atividade comunal dos habitantes, que pastoreavam animais, semeavam trigo e adoravam os seus Deuses na Planície de Salisbury e em torno dela. A construção de Stonehenge teve início cerca de 3500 a. C
[14] Monges beneditinos bastante severos
[15] O aplastapulgares é uma das torturas mais antigas e simples. Embora vários dispositivos mecânicos foram usados para realizar a tortura em si foi o esmagamento das unhas, falanges e juntas em um lento e gradual, estendendo-se a dor por dias, sem causar danos letais para a vítima. O nível de perturbação pode ser controlado, a ponto de quase mutilação do membro. Para crimes de tortura geralmente grave usa-se lentamente, começando com as unhas, passando depois para as falanges e terminando nas juntas, e destruindo completamente as duas mãos.
Capítulo 20
—Retornaram!
Anna correu até a janela de seus aposentos ao perceber a excitação na voz da Mary. Examinou com fruição as figuras com armadura que atravessavam as portas do castelo e quando por fim reconheceu a familiar envergadura de seus ombros exalou profundamente, como se tivesse passado quatro dias contendo a respiração. Havia retornado. Não a tinha abandonado. Dizia a si mesma que era uma loucura pensar que ele fosse capaz de tal coisa. Entretanto, não queria admitir quanto tinha chegado a preocupar-se.
Anna afastou seu trabalho de bordado e saiu correndo do aposento seguindo os passos de sua irmã, que parecia tão emocionada como ela pela volta da partida de reconhecimento. Franziu o cenho. Acaso para sua irmã Mary importava mais o irmão de Arthur do que admitia? Chegaram ao salão justo no momento em que faziam entrar o grupo à câmara de seu pai para dar parte de seu avanço. Fazia um momento que tinham terminado a refeição leve, mas Mary e ela pediram que preparassem algo de comer e beber enquanto aguardavam os homens. Depois de uma espera que lhes pareceu interminável, estes saíram da câmara de seu pai e entraram no salão. O primeiro a fazer foi seu irmão, depois sir Dugald e logo, ao fim, Arthur. Embora estivesse coberto de pó e sujeira, com um rosto maltratado pelo sol, barba de quatro dias e aroma de estrebaria reaquecida, a Anna jamais pareceu mais maravilhoso. Se não fosse pela multidão de homens do clã que se agrupava a seu redor no salão, teria saltado a seus braços.
Afastaram-se um momento enquanto os serventes preparavam as mesas. Desta vez não poderia evitá-la.
—Está bem? —perguntou Anna sem acreditar em seus olhos.
O olhar de Arthur se suavizou ao perceber sua preocupação.
—Sim, moça. Estou bem. Necessito um bom banho, mas, além disso, estou perfeitamente são.
—Alegra-me ouvi-lo — disse mordendo o lábio e olhando-o com vacilação —… Senti tua falta.
Arthur se estremeceu e uma pulsação fez tremer seu queixo.
—Anna…
Ela engoliu em seco e sentiu que de repente lhe quebrava a voz.
—Pensastes em mim?
—Tinha muito em que pensar. —Mas depois, ao ver o rosto que punha, arrependeu-se — Sim, moça. Pensei em você.
Teria ficado contente com isso, a não ser pelo que tanto que custou admiti-lo. As mesas de cavalete estavam já preparadas e os serventes começavam a por pratos com comida. O resto dos homens desfilava para os assentos. E ali foi aonde olhou Arthur do lugar em que estava, junto à câmara de seu pai. Parecia ansioso por reunir-se com eles. Anna não podia enganar-se por mais tempo.
—Não desejas este compromisso. —A verdade ardia. Anna ficou olhando-o fixamente, atormentada pela própria dor de seu peito — É que…? —Mal podia pronunciar as palavras. Tinha comentado que lhe ofereceriam uma esposa como recompensa — É que esperava te casar com outra?
Arthur a olhou com dureza.
—Do que estais falando? Já vos disse que não havia nenhuma outra.
—Então é simplesmente que não me quer.
Parecia que algo o atormentasse.
—Anna… —Arthur pigarreou — Agora não é o momento.
Apesar de que estivessem rodeados de gente, Anna não pôde reprimir toda sua frustração.
—Nunca é o momento. Ou está fora, ou encerrado em alguma reunião ou ocupado praticando. Quando, rogo a Deus que diga, é o momento?
Arthur, visivelmente frustrado, alisou com uma mão seus cabelos encrespados pelo elmo, que lhe caíam em suaves ondas por cima das orelhas. Anna esteve a ponto de acomodar as mechas atrás delas, mas se deteve a tempo.
—Não sei, mas agora mesmo quão único quero é comer algo, tirar toda esta porcaria de cima e dormir algo mais que umas poucas horas.
Devia estar exausto. Por um momento Anna se sentiu culpada, mas não durou muito. Não pensava permitir que seguisse lhe dando voltas.
—Então amanhã. Falaremos amanhã - disse, olhando-o com firmeza — Em particular.
Talvez, mais que atormentado, estivesse assustado. Não pensava que fosse capaz disso, mas ao que parecia estar a sós com a Anna conseguia algo do que não eram capaz dezenas de guerreiros armados. Não sabia se era pra rir ou chorar.
—Não posso. Supõe-se que sairemos de guarda.
—Quando retornarem. —Parecia louco por encontrar outra desculpa, mas Anna o impediu — Já sei que está ocupado preparando a batalha, mas é que não mereço uns minutos de seu tempo?
Arthur lhe sustentou o olhar durante alguns momentos.
—Sim, moça. Claro que o merece.
—Bem. Então vá comer — disse assinalando uma das mesas — Seus irmãos te esperam.
Arthur assentiu levemente e foi reunir se com sua família enquanto Anna dava meia volta e encontrava a sua irmã Mary mais perto do esperado. Observava-a com uma expressão de comiseração no rosto.
—Não passa nada —disse Anna, envergonhada pelo que pudesse ter ouvido — Está cansado. Isso é tudo.
Mary a agarrou sua mão e a apertou.
—Tome cuidado, Annie querida. Há homens que não querem ser amados.
Ficou circunspeta.
—Isso não é certo, Mary. Todo mundo quer ser amado.
Um sorriso de melancolia escureceu a boca perfeita de sua irmã.
—Amas muito, irmãzinha. Mas há gente que não quer esse tipo de cercania. Há gente que prefere que lhes deixem em paz.
Embora Anna não quisesse acreditar nas palavras de sua irmã, perseguiram-na durante todo o dia enquanto esperava a oportunidade para falar com ele.
Arthur saiu a cavalgar pela manhã cedo, retornou a tempo para a refeição do meio-dia e depois participou junto com seus irmãos e o resto dos homens no treinamento vespertino que faziam no pátio. Os exercícios se intensificavam cada vez mais já que se aproximava a batalha. Aproveitavam a luz dos longos dias de verão e não acabavam até as oito da tarde. O jantar era frugal, como também eram as preces vespertinas. Anna se viu tentada de o seguir ao ver que se dirigia para o lago, mas sua mãe a reclamou para que a ajudasse a dirimir uma disputa nas contas do lar, e uma vez que acabou, ele já estava de volta e se encerrou em uma reunião junto aos cavalheiros de alta fila e os guerreiros da meinie de seu pai no que se converteu em um conselho de guerra noturno. Anna o esperou em uma pequena saleta situada no vão da escada, consciente de que Arthur teria que passar por ali a caminho dos barracões. Normalmente somente ia a aquele lugar para ler algum livro, mas estar oculto do olhar por uns cortinados de veludo parecia algo mais particular que lhe esperar no salão, repleto de homens que dormiam. Tinha levado consigo uma vela para ler, mas à medida que caía a noite seus olhos se cansaram demais, de modo que a pôs a um lado.
Devia ser meia-noite quando os homens começaram a sair dos aposentos de seu pai. Arthur foi um dos últimos, mas Anna finalmente viu como entrava pelo corredor junto a seus irmãos. Quando se aproximou de sua posição, ela afastou os cortinados e desceu a escadinha para dirigir-se a ele. Para ouvir o comentário de seu irmão, Arthur a buscou com o olhar com uma expressão mais resolvida que surpreendida e foi a seu encontro, enquanto seus irmãos abriam a porta que conduzia ao barmkin.
—Não deveria ter permanecido acordada - disse.
—Esqueceu que acordamos nos ver hoje? —repôs ela com o cenho franzido.
—Não. —Suspirou — Não esqueci.
Apareceram mais homens no corredor.
—Venha — lhe disse Anna, protegendo-se em uma pequena cova que usavam para armazenar o vinho do senhor do castelo, aonde ninguém lhes incomodaria.
Assim que abriu a porta sucumbiu ao rico e frutífero aroma, que se intensificou ao fechar a estadia. Colocou a vela sobre um dos tonéis e se voltou para olhá-lo. Tratava-se de uma despensa pequena encravada na parede. Um espaço íntimo, muito íntimo. Anna se ruborizou ao conscientizar-se disso. Arthur permanecia ali à luz trêmula das velas como um convidado de pedra, com uma expressão rígida e forçada. Ficou surpresa ao ver que apertava os punhos.
—Isto não é uma boa idéia — disse ele com voz quebrada.
—Por que não?
Arthur a olhou com severidade.
—Não recorda o que aconteceu a última vez que estivemos encerrados em um aposento pequeno?
Anna se ruborizou. Era difícil não recordar à perfeição estando tão perto dele. O calor que desprendia seu corpo a envolvia e sua pele se arrepiava ao recordar as intimidades que tinham compartilhado. Mas não era para isso que o tinha levado ali.
—Só demoraremos uns minutos. Preciso saber… — Ergueu o olhar para examinar seu arrumado e tenso rosto — Quero que me diga se deseja este compromisso ou não.
A franqueza de Anna já não surpreendia a Arthur.
—Anna… — disse tentando lhe distrair — É complicado.
—Isso já disse antes. O que ocultas, Arthur? O que há aí que não quer me contar?
—Há coisas — disse contendo-se e olhando-a com aspereza — Não sou o homem que pensam.
—Sei exatamente o tipo de homem que é.
—Não sabe tudo.
Anna reconheceu o tom de advertência.
—Então me conte isso - Ao ver que não respondia, acrescentou—: Sei o que é o importante. E sei que te quero.
Aquelas palavras pareceram lhe doer. Arthur se aproximou para acariciar a bochecha com uma expressão de tristeza que lhe rompeu o coração.
—Pode ser que pense isso agora, mas logo mudará de opinião.
Seu tom paternalista e essas advertências crípticas a punham fora de si.
—Não o farei — disse Anna com veemência, apertando os punhos para aplacar a vontade que tinha de gritar ou de romper a chorar. Respirou profundamente para acalmar-se e continuou—: É algo muito simples, Arthur: quer se casar comigo, sim ou não?
—O que eu quero não vem ao caso. Estou pensando em você, Anna. Pode ser que agora mesmo não te pareça isso, mas acredite quando lhes digo que o faço por seu próprio bem. Não quero te fazer dano. Tudo pode mudar durante nos próximos dias. A guerra mudará tudo.
Tinha razão. Parecia que todos seus sonhos pendessem de um fio. A guerra estava a ponto de cair sobre eles e tudo o que conheciam mudaria em um abrir e fechar de olhos. A espada de Damocles pendia sobre o poder dos MacDougall nas Highlands. Mas havia algo ao que Anna podia acolher.
—Isso não mudará meus sentimentos por você. São os seus os que estão em julgamento. Não respondestes a minha pergunta — disse depois de uma pausa.
Arthur amaldiçoou e se afastou da porta uns passos, numa tentativa de perambular que não encontrava espaço suficiente. Quase roçava o teto com a cabeça. Parecia um leão à espreita em uma jaula muito pequena. Estava em um estado de rigidez absoluta, irradiando tensão por cada um de seus poros. Ao final deu a volta e a tomou pelo braço com expressão furiosa.
—Sim, maldita seja. Quero me casar contigo.
A escura nuvem que se pousou sobre ela se dissipou. Não era a declaração de amor mais romântica que tivesse ouvido, mas isso bastava. Seu corpo se encheu de calidez, e sorriu.
—Então o resto não importa — disse aproximando-se mais a ele e procurando instintivamente a conexão entre ambos corpos.
Arthur se estremeceu ao notar o contato, mas nessa ocasião Anna não procurou mais razões. Queria-a. Muito. Apesar de que fizesse quanto podia por resistir a isso. A tensão se desprendia de seu corpo reverberando como a pele de um tambor. Seus olhos se pousavam sobre seus lábios com um olhar obscurecido pelo desejo, mas mesmo assim seguia lutando contra isso.
—O que acontecerá não voltará, Anna? Então o que?
Gelou o sangue. Por isso atuava daquele modo? Tentava prepará-la em caso de que morresse no campo de batalha? Não suportava pensar nisso, mas sabia que existia essa possibilidade. Ele podia morrer. Atraiu-o mais para si, aferrando-se aos fortes músculos de seu braço como se jamais pensasse deixá-lo partir. Deus não podia ser tão cruel para afastá-lo dela. Mas e se o fizesse? , pensou com o coração encolhido.
Ela sabia o que queria. Não estava na sua mão controlar o que aconteceria no futuro, mas sim que podia controlar o presente. Talvez sim o tivesse levado a esse lugar com uma segunda intenção.
Arthur era consciente de que aquilo era má idéia, mas tal e como tinha comprovado mais vezes das que queria recordar, era um perfeito tolo no que se referia a Anna MacDougall. O sangue corria cálido por suas veias e uma pátina de suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. O intenso aroma do vinho, o almiscarado cheiro de terra do pequeno aposento e a leve fragrância floral de sua pele o embriagavam de desejo. Estavam muito perto um do outro, e sua necessidade era muito urgente. As imagens do quanto desejava fazer amor com ela davam voltas em sua cabeça deixando-o meio louco. Estavam a sós, maldita seja. Era muito perigoso. Mas se Arthur pensava que a desanimaria lhe falando de um futuro incerto, tinha errado em seus cálculos.
—Não quero pensar na guerra nem no que acontecerá amanhã. Somente quero pensar no presente. Se hoje fosse o último dia que ficássemos juntos, o que é o que queria?
«A você.» Sentiu a pulsação. Queria o que lhe oferecia mais que tudo no mundo.
Eram suas palavras. Sua certeza. O fazia sonhar. Arthur queria acreditar que havia um futuro possível. Queria acreditar, embora fosse por um instante, que Anna podia ser dele. Seu coração bateu como um tambor quando ficou nas pontas dos pés para lhe beijar. Em sua luta por não equilibrar-se sobre ela, Arthur deixou escapar um gemido. Sabia que assim que o fizesse não teria forma de parar. Tinha uma boca cálida e suave, muito doce. Tinha sabor de mel e cheirava como… Deus, cheirava como um jardim recém regado sob o sol estival.
Anna lhe acariciou o queixo com os lábios. Depois, o pescoço. Arthur começou a tremer. Não poderia agüentar aquilo durante muito mais tempo. Via-se incapaz de resistir. Rezava para que a tortura acabasse, mas em vez disso piorou. Anna apertou seus quadris contra ele e se esfregou contra a parte de seu corpo que desejava mais o contato, a parte de seu corpo que estava dura e palpitava, e que era impossível de controlar.
—Aquele dia estivemos tão perto — sussurrou junto ao pescoço de Arthur com um quente fôlego que provocou calafrios em sua pele em chamas— que quero saber como segue. —Uma gota de suor apareceu por sua têmpora. O frio aposento se esquentou em questão de segundos. Anna lhe rodeou o pescoço com seus braços e se grudou a ele. Buscou-o com o olhar — me ensinem Arthur.
Essa petição desavergonhada rompeu o último fio de que pendiam as reservas de Arthur. Soltou um grunhido, empurrou-a contra a porta, prendendo suas mãos por trás da cabeça, e a beijou. Não, devorou-a com seus beijos. Se deu um festim com sua boca fazendo uso dos lábios e a língua, beijando-a como se jamais pudesse saciar-se.
Ela respondeu a seu ardor com mais ardor, engastando sua língua a dele, imitando seus eróticos movimentos. O crepitar na cabeça de Arthur era cada vez mais sonoro. Seu corpo estava cada vez mais tenso. Mas não era suficiente. Tombou-se sobre ela, fez que seus corpos se acoplassem e começou a mover-se, primeiro com delicadeza e depois com mais insistência, à medida que Anna se retorcia e gemia com inocente frustração. Tinha vontade de lhe levantar as saias e afundar-se dentro dela, ver como se desfazia quando ele se aferrava nela mais forte e mais profundo. Uma e outra vez. Reclamando-a para si.
Mas estava tão receptiva, sentia o prazer de uma forma tão pura, que em seu interior cresceu uma onda de ternura que lhe fez afastar-se. Anna ficou piscando com uns olhos incrédulos que nadavam em paixão e a boca meio aberta, com os lábios inchados por seus beijos, mal separados.
—Rogo-lhes isso, não…
—Chist! —disse Arthur sossegando seus protestos com um doce beijo — Não vou parar.
Era muito tarde para isso. Era um homem, não um santo vindo do céu. Tinha muita vontade de possuí-la e ela o tinha levado muito longe. Já teria tempo para as recriminações. Nesse momento, Anna era dele. Mas não a teria contra uma porta como se fosse um animal no cio. Soltou o broche dos Campbell que levava para ajustar a manta e a estendeu sobre o chão de pedra. Depois se sentou sobre ela e lhe estendeu a mão. Anna não duvidou. Aceitou sua mão e permitiu que a recostasse a seu lado com um sorriso que lhe partiu o coração. Havia justo o espaço suficiente para esticar-se entre os tonéis de vinho.
Arthur acariciou seus cabelos e a atraiu para si para beijá-la com toda a paixão e a emoção que se concentravam em seu interior. Beijou-a como se fosse tudo para ele, e Anna se deixou levar pela doce posse daquele beijo. Se aninhou a seu lado e se sentiu cálida, amparada e protegida acima de tudo que acontecia fora do círculo mágico de seu abraço. Sentia… «Paz.» Em seus braços sentia essa paz e alegria que sempre lhe eram esquivas.
Voltou a passar os dedos entre seus cabelos e lhe sustentou o pescoço com sua grande e calosa mão, descrevendo suaves círculos em sua nuca com o polegar.
Poderia passar a vida beijando-o, estendida junto a ele, amoldando-se a seu corpo, sentindo a rígida força de seus músculos contra ela. Seu calor era como uma vagem protetora que os rodeava. As longas e pausadas carícias de sua língua faziam que se derretesse de paixão. Era perfeito. Mas quando essas longas e pausadas carícias pediram mais, quando seus beijos se fizeram mais intensos e profundos, quando começou a apertá-la com mais força e Anna percebeu a dura coluna de aço que pressionava seu ventre, se deu conta de que aqueles beijos não eram suficiente. Sentiu essa estranha sensação formando-se de novo em seu interior. O despertar. Os indícios. A energia incansável que pulsava entre suas pernas e fazia que ansiasse esse contato até o desespero. Mas nessa ocasião estava a par do que aconteceria depois. Recordava a mão de Arthur entre suas pernas, seus dedos dentro dela, os agudos espasmos do momento de liberação.
Recordava perfeitamente a avultada cabeça redonda de sua virilidade golpeando em seu interior de maneira íntima.
Gemeu e moveu os quadris em círculo contra ele, ansiando o alívio que somente a fricção podia lhe oferecer. Tinha o corpo em chamas, e os mamilos cada vez mais eretos e sensíveis à medida que se roçavam contra seu peito. Tentou atraí-lo mais para si, passando as mãos pela larga envergadura de seus ombros, pelos duros músculos de seus braços e suas costas. Apesar de que sob o tecido escocês Arthur só levasse a regata, as meias e os braies, aquelas finas capas de tecido se converteram em uma barreira incômoda. Anna queria tocá-lo. Queria sentir o calor de sua pele vibrando sob a pressão de seus dedos.
Certamente ele se deu conta de sua frustração. Afastou sua boca da dela, tirou o cinturão e passou a regata por cima da cabeça, jogando-a ao chão. Seu torso era tão impressionante como recordava. Ombros largos, braços musculosos e um ventre plano sulcado por linhas rígidas de puro metal cobertos por uma pele ligeiramente bronzeada sublinhada por cicatrizes de diferentes tamanhos. A pior delas era uma em forma de estrela que luzia junto a seu ombro, o tipo de marca que deixa uma flecha ao cravar-se. E agora via com claridade a marca do braço: o leão rampante, símbolo do reino da Escócia. Não podia afastar o olhar dele. Por Deus bendito que era um homem formoso.
—Moça, se segue me olhando deste modo, isto se acabará em um abrir e fechar de olhos.
A rouquidão de sua voz fez que Anna se estremecesse de desejo da cabeça aos pés. Ruborizou-se.
—Eu gosto de te contemplar. —O olhar de Arthur se obscureceu — É magnífico.
Anna, incapaz de esperar um segundo somente mais, acariciou seu seio com as palmas das mãos e essa sensação faiscante a fez gemer. Arthur, por sua parte, proferiu um profundo som gutural e a voltou a tomar em braços. Nessa ocasião não havia volta atrás. Anna cheirava seu desejo e sentia a necessidade que se desprendia dos eróticos arremessos de sua língua. Tudo ocorria muito depressa, mas cada momento se gravava a fogo em sua memória. Queria recordar tudo. O modo em que a saboreava. A maneira em que sua boca descansava sobre a sua. O áspero roçar de seu queixo sobre sua pele. O calor que desprendia seu corpo. O poder daqueles músculos que se esticavam sob suas mãos. O feroz rugir dos batimentos do coração contra seu coração. Queria recordar todas as sensações. Cada um dos aromas. Cada roce.
Estava tão excitada e sensível que sentia a pele quente e avermelhada. Apenas se deu conta de como suas mãos desatavam os nós de sua sobreveste sem mangas e a tiravam pelos ombros. Então se encontrou com que cobria seio e o massageava através do fino tecido de linho de sua regata, ao mesmo tempo em que levava a língua até seu pescoço. Arthur roçou a tensa protuberância de seu mamilo com o polegar, descrevendo círculos, acariciando-o, beliscando-o brandamente entre os dedos.
As mãos de Anna percorriam avidamente suas costas, aferravam-se a seus ombros e lhe arranhavam a pele a cada uma de suas provocadoras carícias. Gemeu da vontade que tinha de romper o tecido e notar o contato direto de seus dedos, sua boca. E seus desejos se fizeram realidade. Primeiro o vestido e depois a regata passaram sobre suas pernas até chegar à cintura e logo por cima da cabeça.
Se não fosse pela forma com que ele a olhava pode ser que nem sequer percebesse. Arthur ergueu a cabeça e passeou o olhar por sua nudez, o que fez que ela se ruborizasse e procurasse cobrir-se, mas ele não pensava permitir-lhe Agarrou-a pelos pulsos e negou com a cabeça.
—Não —disse de maneira brusca com uma voz rouca que destilava violência —É preciosa. —exclamou Arthur, ficando do meio lado e acariciando seu braço como se fosse tão delicada que pudesse rompê-la com somente tocá-la. Acariciou seus seios com o olhar, fazendo que ficassem mais arrepiados ainda. Passou um dedo pela ponta e depois por sua abrupta curva — Jesus! —disse com a respiração entrecortada — Seus seios são de outro mundo.
Arthur soltou um gemido e se inclinou para agarrá-los e levar-lhe à boca. Beijou primeiro um de seus espectadores ápices e logo o outro, deixando-a tremendo de vontade. Quando ao fim a capturou com seus lábios e mergulhou um mamilo em sua boca, Anna gemeu de prazer. Arthur jamais tinha visto nada tão formoso. Era consciente de que deveria conter-se para saborear sua suave pele de pêssego em toda sua imensidão, mas com somente vê-la estivera a ponto de chegar ao limite. Parecia um anjo, esbelta e delicada do mais alto de sua cabeça até as diminutas impigens de seus pés. Se não fosse por esses seios, teria pensado que estava morto e tinha chegado ao céu. Porque seus seios eram puro pecado. Uma fantasia masculina feita realidade. Grandes, mas não em demasia, redondos e erguidos, com a rigidez da juventude; sua suave e cremosa carne estava coroada por mamilos de cor framboesa que faziam a boca água. E tinha gosto disso…
Gemeu de prazer e voltou saborear, rodeando sua cálida e ereta ponta com a língua. Sabor de doces desejos carnais e escuros prazeres melosos.
Queria ir devagar, prolongar cada momento de prazer, mas sua necessidade era muito ardente, muito desesperada, e fora evitada durante muito tempo. Pôs a mão entre as pernas e a explorou com os dedos. Tinha uma ereção de cavalo, mas notar quão molhada estava, saber que estava úmida para ele, fez que lhe pusesse mais duro ainda. Lambeu seus seios e a acariciou com os dedos até que seus quadris começaram a ir contra sua mão e sua respiração entrecortada se voltou irregular. Quando soube que Anna estava a ponto de gozar, liberou-se dos braies e as meias com rapidez e se colocou entre suas pernas.
Seus olhares se encontraram.
Gostaria de dizer que pensou duas vezes, mas não era certo. Tudo que podia pensar era na necessidade de fazê-la sua, que não podia deixá-la escapar. Em que em seus olhos via a aceitação e o amor que jamais pensou que seriam para ele. Um amor que Deus sabia que ele não merecia, mas que desejava mais que nenhuma outra coisa no mundo.
—Por favor — soluçou Anna.
Esse era o convite que Arthur necessitava. Levantou-lhe uma de suas pernas para colocá-la em cima de seu próprio quadril, ao mesmo tempo em que apertava os dentes para reprimir a vontade que tinha de investir com todas suas forças e se dispunha a facilitar entrada. Embora talvez a palavra «facilitar» não fosse a adequada. Ela era estreita e ele era grande. Enorme.
O suor se acumulou sobre suas sobrancelhas.
Apertada. Deus, estava tão incrivelmente apertada… Apertou todos os músculos diante da insistência que crescia em sua virilha. Seus testículos se esticavam ao mesmo tempo em que a pressão subia pela base de sua coluna. O corpo de Anna lutava contra aquela invasão, mas ele não pensava permitir uma negativa. Empurrou um pouquinho mais, fazendo que ela se estremecesse e emitisse um gemido de angústia.
O sangue bulia por suas veias. Parecia estar a ponto de explodir, mas se conteve para dar-lhe tempo a preparar-se antes de enterrar-se completamente entre suas pernas.
«Jesus. Que não empurre mais.»
—Não… não estou segura de que isto vá funcionar —disse Anna com inquietação — E se… e se for pequena demais pra ti?
A risada abriu passo entre o sofrimento através do peito de Arthur. Já explicaria os pormenores do assunto mais tarde.
—Confie em mim, amor. Acoplaremo-nos um ao outro perfeitamente. —Mas o certo é que era a primeira vez que estava com uma virgem — Pode ser que doa e seja incômodo a princípio — disse olhando-a nos olhos — De acordo?
Anna assentiu, mas a viu um pouco menos segura que antes. Não deixou de olhá-la nos olhos um só momento, oferecendo seu apoio tácito à medida que se afundava mais e mais nela, com cada um de seus dolorosos centímetros, um após o outro.
A sensação de ter seu corpo rodeando seu pau e apertando-lhe tanto era quase mais do que podia agüentar. Sabia do muito que gostaria, fazia desonestos esforços para lutar contra a urgência de investir. Esse calor estreito, aveludado e úmido envolvendo-o, espremendo-o. Todos os músculos de seu corpo ficavam rígidos de tensão no tanto que tentava conter-se e fazer as coisas com calma. Sentia-se maravilhado. Mas tinha que fazer que fosse perfeito para ela, paciência era a palavra chave.
«Já falta pouco…»
«Agora.»
O ponto de não retorno. Olhou-a nos olhos, sentiu como seu peito se contraía e deu o empurrão final. Anna gemeu e os olhos se puseram enormes como pratos da dor, mas não gritou. Ao ver o aspecto estóico de seu rosto teve vontade de rir.
—Já verás como depois é melhor, amor, prometo-lhe isso. Tentem só relaxar.
Ela o olhou como se fosse louco.
—Não acredito que isso seja possível.
Mas então Arthur a beijou e Anna comprovou quão errada estava…
Quando a penetrou, Anna sentiu uma pontada de dor e lhe deu vontade de gritar com todas suas forças. Mas se dava conta do que ele sofria, de modo que se reprimiu, consciente de quanto se esforçava por não a machucar. Não era culpa dela que a providência o provesse com um pouco tão… descomunal. Aquilo devia fazer que tudo fosse bastante incômodo…
«Um momento.» Estava-a distraindo com seus beijos, mas por um instante teria jurado que acabava de sentir um… Aí o tinha de novo. Uma espetada. Uma espetada prazenteira. Muito prazenteira. Uma espetada que, de fato, parecia incrivelmente agradável. Seu corpo havia se amoldado a ele e a dor desaparecia. Agora sim a notava, quente e dura, enchendo-a de uma forma que jamais teria imaginado. E então Arthur começou a mover-se. A princípio devagar, inundando-se nela e saindo com investidas pausadas e delicadas. Anna gemia ao notar a maneira em que seus arremessos reverberavam por todo seu corpo. Sentia-se como se Arthur a reclamasse para si, como se a possuísse na mais primitiva das formas. Era uma sensação incrível. Tinha que mover-se com ele, erguer os quadris para coordenar-se com suas investidas e que a enchesse até o mais profundo. Com mais força. E depois mais rápido. Agarrou-se a seus ombros e o atraiu mais para si, desejando sentir todo seu peso sobre ela. Seus corpos pareciam estar fundidos um no outro. Pele contra pele. Tremendamente sensual. Um peso dilacerador. A paixão a capturava com seu trêmulo abraço. As sensações ardiam em seu interior. Tomavam forma. Esperavam o momento. Concentravam-se na mais feminina de suas partes. E também ele o sentia. Era como aço sob seus dedos, músculos tensos e acesos, preparados para explodir.
Mas o que mais a excitava era a expressão de seus olhos. Intensa. Penetrante. Obscurecida não só pelo desejo mas também pela emoção. Nessas profundidades de âmbar dourado via refletido o amor que consumia seu próprio coração. Amava-a. Pode ser que ele não percebera ainda, mas ela sim o fazia.
Mantinha-a pega a si, sem deixá-la ir, enquanto se afundava nela uma vez mais, inundando-se tanto como era possível, e ficava aí. Algo poderoso e mágico passou entre eles. Uma conexão como jamais antes tinha imaginado. À medida que a sensação se formava, a respiração de Anna ficou apanhada no mais alto de seu peito. Por um instante todo pareceu deter-se. Seu corpo se mantinha ao bordo do êxtase, fazendo equilíbrio no precipício celestial. Deixou escapar um guincho quando o primeiro dos espasmos de liberação fez que perdesse o controle e ficasse fosse de si, tremendo de prazer.
—Isso, amor. Venha para mim. —Arthur começou a mover-se de novo, atravessando-a com uma despreocupação selvagem — Oh, Deus. Eu gosto muito. Não posso…
Penetrou-a uma última vez com um profundo gemido de satisfação que parecia rasgar-se de sua própria alma. Seu corpo ficou rígido e logo se estremeceu ao notar que seu desafogo coincidia com a maré ascendente dela. Arthur tinha uma expressão fera e formosa, de uma paixão primitiva. Deixou-se cair sobre a Anna com os ecos da última sensação, ainda com seus corpos unidos. Tudo que ela ouvia era o som de suas respirações pesadas e o violento pulsar de seus corações. Desejava ficar assim para sempre, mas Arthur em seguida se afastou e rompeu a conexão.
O ar frio passou sobre seu úmido e ruborizado corpo, lhe deixando a pele arrepiada. Anna era consciente de sua nudez, mas estava muito exausta para mover-se. Suas pernas pareciam de gelatina. Mas tampouco havia razão para envergonhar-se. Arthur não lhe emprestava atenção. Ficou olhando ao teto, ainda com a respiração entrecortada, mas em um silêncio que não pressagiava nada bom. Não lhe tocava dizer algo? Mordeu o lábio, perguntando-se que seria o que pensava. Tinha parecido maravilhoso… «Mas o que acontecerá se o decepcionei?», pensou sentindo uma pontada de dor.
Ao fim Arthur voltou a cabeça para olhá-la e aproximou sua mão para lhe afastar os cabelos do rosto com delicadeza. Ao ver seu estado de incerteza lhe dirigiu um sorriso de menino que se instalou em seu coração para não partir jamais. Anna sabia que nunca poderia esquecer a expressão de seu rosto nesse momento.
—Sinto muito. Não sei o que dizer. Nunca antes… nunca antes havia sentido algo como isto.
Ela esboçou um amplo sorriso como resposta, incapaz de ocultar sua alegria.
—Sério? Não tenho nada com que comparar, mas me pareceu algo maravilhoso.
—Sim, foi maravilhoso. —Arthur se inclinou sobre ela e a beijou com ternura. Mas quando ela ergueu o olhar para olhá-lo de novo seu olhar se turvou — Jamais me arrependerei do que acaba de ocorrer, Anna. Mas por seu próprio bem eu gostaria que não tivesse acontecido.
Anna sentiu o inconfundível tom de advertência e pareceu que lhe cravava um espinho no coração, mas o evitou. Não queria que nada escurecesse esse momento. Se aninhou sob seu braço e apoiou a cabeça sobre seu ombro, abrigando-se com seu corpo de maneira instintiva.
—Eu me alegro de que tenha acontecido — disse ela.
Agora estavam unidos no mais profundo e nada poderia separá-los.
Arthur baixou o olhar para aquela delicada mulher nua que se aninhava em seus braços e lhe parou o coração. O que acabavam de compartilhar não tinha comparação com nada que tivesse experimentado antes. Tinha compartilhado cama com um número de mulheres mais que razoável, mas para ele fornicar sempre tinha consistido em saciar sua luxúria. Encarregava-se do prazer da mulher e do seu com um só objetivo na cabeça: desafogar. Uma vez que estava completo, não havia mais que fazer. Não se atrasava. E estava claro como a água que tampouco queria rodear a mulher com seus braços e desejar ficar assim para sempre. Comparado com o que tinha acontecido com a Anna, o resto parecia quase mecânico, como se tivesse passado por todos os movimentos simplesmente para conseguir o prêmio. Mas com ela o prêmio era a experiência em si mesmo. O prazer estava na exploração, no descobrimento e nos detalhes. Estava no modo em que ela reagia a suas carícias, a maneira em que arqueava suas costas, a pressão que exerciam seus quadris e os pequenos gemidos que saíam de seus lábios. Estava na expressão de seus olhos quando a penetrava, o rubor que lhe tingia suas bochechas quando se aproximava do orgasmo e o modo em que sua cabeça se inclinava para trás e sua boca se abria quando finalmente chegava.
Não fora capaz de afastar o olhar. Normalmente evitava o contato visual, mas com a Anna procurava essa conexão. Queria desfrutar dessa cercania.
Descansou o queixo sobre seu cocuruto, saboreando a sedosa suavidade de seus cabelos. Era tão doce e formosa… além de endiabradamente confiada. Isso fazia que despertasse todo seu instinto de amparo. E algo mais. Algo quente, terno e poderoso. Algo que jamais pensou que pudesse ser para ele. Acreditava ser diferente. Pensava que não necessitava a ninguém, que estava bem sozinho. Mas se enganava. Não era absolutamente diferente. Necessitava-a. Queria-a. Amava-a com um ardor que lhe parecia surpreendente. Talvez pudesse encontrar alguma forma de explicar-se. De implorar seu perdão. Talvez houvesse esperança…
«Ah, que diabos!» Um nó lhe contraiu as vísceras à medida que voltava para a realidade. A quem pretendia enganar? Anna jamais o perdoaria. Como poderia fazer, quando ele tinha a missão de destruir tudo aquilo que ela amava?
Amava-a, mas isso não mudava nada absolutamente. Somente serviria para que o que estava por chegar fosse mais doloroso. Quando acabasse de cumprir seu encargo, não teriam nada que fazer o um com o outro. Amava-a, mas sua lealdade estava com Bruce. Tinha uma missão que cumprir, não só pelo rei, mas também por seu pai. Em um tempo diferente, em um mundo no que não houvesse guerra nem velhas rixas poderiam ter tido uma oportunidade. Mas não nesse mundo. Não nesse tempo.
E mesmo assim gostaria de… Deus, quanto gostaria que tudo fosse diferente.
Anna ergueu o olhar e o olhou sob suas longas pestanas.
—Estou segura de que não somos o primeiro casal comprometido que antecipa sua noite de bodas.
O sentimento de culpa se fez mais profundo. Esse era o problema: não teria noite de bodas. Não a teria quando ela descobrisse a verdade. Era um bastardo. Um bastardo infame. No que estava pensando? Em realidade, sabia perfeitamente. Pensava que a queria mais que a tudo no mundo e que tinha que fazer o que fosse por conservá-la. Consciente ou inconscientemente, queria unir-se a ela de uma forma que não pudesse ser desfeita. Nem sequer pelo engano ou a traição.
Uma aposta desesperada. Egoísta. Perversa. Somente serviria para que Anna tivesse mais razão para odiá-lo. Mas já fora e não poderia trocá-lo por mais que quisesse.
—Não —disse Arthur — Não somos os primeiros, mas dadas as circunstâncias teríamos que ter esperado. —Atraiu-a fazia sim com uma voz tão feroz como seu abraço. Era um filho de cadela egoísta, mas jurou que quando aquela maldita guerra acabasse se daria uma oportunidade. Lutaria por ela, por eles, se o permitisse — Voltarei para ti, Anna. Voltarei se é que me segue querendo.
Ela o olhou com um sorriso nos lábios, cândida e inocente. Muito confiada.
—Pois claro que seguirei te querendo. Nada poderá mudar isso.
Queria acreditar no que dizia. Queria acreditar mais que tudo no mundo. Mas logo suas palavras seriam postas a prova.
Capítulo 21
—O que se passa, Anna? Está muito calada esta manhã. É que não dormiste bem?
Anna olhou a sua irmã com receio, perguntando-se se suspeitaria algo. Era difícil falar. Luzia uma expressão serena no rosto, uma expressão que se adequava ao sermão matinal ao que acabavam de atender. Anna não tinha nem a menor ideia a respeito do que conversava. Estava muito ocupada em rememorar cada um dos segundos da cena que tinha tido lugar a noite anterior. Não cabia dúvida de que pensar tais coisas em uma capela tinha que ser terrivelmente pecaminoso, mas já tinha suficiente pelo que fazer penitência, de modo que se figurou que o dano acrescentado a sua alma não pioraria a situação.
A recuperação dessas lembranças a fez sorrir. Estava claro que regozijar-se no pecado era inclusive mais pecaminoso ainda, mas o certo é que era feliz. Amava Arthur e ele a amava. Na noite passada o demonstrara. Não retornou à câmara que compartilhava junto a suas irmãs até que já era bastante tarde. Ou cedo. Depende de como se olhasse. Ficou aninhada entre seus braços tanto quanto se atreveu a fazer, mas ao final esteve obrigada a retornar a seu aposento. Essas horas passadas entre os braços de Arthur significavam um dos momentos mais contentes de sua vida.
Sob o protetor arco de seu abraço a guerra, o caos e a incerteza do mundo atual não existiam. À fria luz do dia, entretanto, tudo voltava a ser de outro modo. Cumpria-se o décimo segundo dia de agosto. Faltavam três para que expirasse a trégua. Dizia a si mesma que era a guerra o que a inquietava. Dizia a si mesma que a razão de que Arthur se mostrasse tão taciturno ou de que suas palavras adquirissem o matiz da advertência era a própria guerra. Pensando em tudo o que estava por chegar durante nos próximos dias, a perda de sua virgindade antes das bodas deveria ser o que menos lhe preocupasse. Mas por que lhe tinha falado da possibilidade de não retornar? Teria que pôr fim a aquilo.
—Não me passa nada —disse Anna com firmeza — dormi bem.
Na realidade, as quatro ou cinco horas de sonho de que dispôs dormiu placidamente.
—Pois deve ser um livro magnífico.
Nessa ocasião o tom de voz seco de sua irmã não deixava lugar a dúvidas.
—Pois sim — respondeu Anna sem poder evitar ruborizar-se.
Embora freqüentemente lia até entrada a madrugada em alguma das câmaras entre muros do castelo para evitar incomodar a suas irmãs, era óbvio que Mary tinha adivinhado a verdade.
Seguiam de perto ao resto da família, que atravessava o pátio da capela em direção ao grande salão para romper o jejum. Não obstante, a maioria dos homens já estava no pátio de armas praticando. O ruído metálico das espadas, e a cacofonia das vozes ficava maior à medida que se aproximavam. Anna examinou instintivamente as figuras sob as armaduras em busca dele.» O coração lhe deu um tombo só de vê-lo. Arthur estava do outro lado dos estábulos, de costas a Anna. Ali era onde preparavam as balas de palha, assim que se figurou que estaria praticando com a lança. Perto dele estava seu irmão Dugald, mas ao contrário deste, ele sim estava acompanhado. Impulsionava um dado pra frente e para trás e dava voltas no ar sob o atento olhar de três jovens e de bonitas criadas que lhe observavam como se fosse um mago, assentindo a tudo o que lhes dizia. Tentava ensinar a agarrar a lança uma jovem que tinha de frente a si, mas seus enormes seios se interpunham entre seus braços.
Aqueles dois irmãos não podiam ser mais diferentes. Dugald era um fanfarrão ruidoso, o tipo de homem que somente estava contente quando era o centro da reunião e tinha ao redor o máximo de mulheres possíveis. Arthur era mais tranqüilo. Mais reto. Um homem que se contentava estando em segundo plano.
Mary ergueu o olhar ao céu ao contemplar seu exibicionismo e se afastou dali subindo a escada em direção ao grande salão. Anna se apressou a seguir seus passos sem poder evitar olhar atrás uma vez mais. Sir Dugald ria por algo que havia dito uma das garotas. Anna não ouviu o que lhe respondeu, mas teria jurado que era algo do tipo: «Olhe isto».
Ergueu a lança sobre sua cabeça como se fosse jogá-la ao mesmo tempo que gritava a Arthur:
—Arthur, agarra-a!
Antes que Anna se inteirasse do que estava a ponto de fazer, antes inclusive de que o grito pudesse tomar forma em sua garganta, a lança já estava no ar, projetada em direção a Arthur. Estavam tão perto um do outro que quase não teve tempo de olhar em resposta às palavras do Dugald quando já tinha o dardo sobre ele. Apanhou-o no ar no último instante, com uma só mão. O levou ao joelho com um rápido movimento, rompeu-o em pedaços e devolveu as lascas a seu irmão com o rosto escurecido pela cólera.
Isso recordava algo a Anna.
Uma brisa gelada banhou sua pele. Não tinha visto nada igual mais que uma vez em sua vida. Seu rosto empalideceu no momento. Sossegou com uma mão a exclamação de surpresa e ficou petrificada contra o muro da entrada com o coração em um punho. Tinha acontecido exatamente quão mesmo a noite da floresta do Ayr. Essa noite em que a mandaram a recolher a prata para seu pai e se encontrou com uma emboscada. O cavalheiro que a resgatou tinha feito exatamente o mesmo. «O espião.»
«Não, não pode ser», disse-se Anna, invadida por um ataque de terror que lhe percorria as costas. Tinha que ser uma coincidência. Mas as lembranças se retorciam em sua cabeça e a confundiam. Estava escuro. Não pôde ver seu rosto. Ele falava em voz baixa para mascarar sua voz. Mas o tamanho, a altura e a compleição encaixavam perfeitamente.
Não, não, aquilo não podia ser. Anna se tampou as orelhas e fechou os olhos. Não desejava vê-lo. Não queria pensar em todas as razões que davam pé a essa possibilidade. Em suas ocultas advertências. A sensação de que ocultava algo. Suas tentativas iniciais de evitá-la. O olhar de reconhecimento em seu tio Lachlan MacRuairi. Lhe contraiu o estômago. A cicatriz. Deus, a cicatriz não. Mas a marca de flecha em forma de estrela de seu braço se ajustava à ferida do cavalheiro que a tinha resgatado. A bílis subiu até sua garganta.
Mary se conscientizou de que Anna não ia atrás dela e baixou a escada correndo até a entrada em que sua irmã permanecia como uma estátua pega ao muro.
—O que te passa, Annie? Parece que viu um fantasma.
Assim era. Deus santo, assim era. Anna moveu a cabeça, negando-se a aceitá-lo. Tudo a seu redor começou a dar voltas.
—Não… não me encontro muito bem.
Subiu a escada para sua câmara sem mediar mais palavras e quase não teve tempo de tirar o urinol de debaixo da cama quando já estava esvaziando os magros conteúdos de seu estômago e purgando de passagem seu coração nele.
Arthur olhou em redor do grande salão caminho da câmara de Lorn para o conselho de guerra da noite. Ficou circunspeto ao conscientizar-se de sua ausência. Onde diabos teria se metido? A leve sensação de preocupação que lhe assaltou essa manhã ao não ver Anna tinha piorado com o desenvolvimento da jornada. Alan lhe disse que Anna não se encontrava bem. Uma dor de estômago, mas dado o ocorrido a noite anterior, Arthur não acreditava. Estaria zangada? Arrependia-se do que tinha passado entre eles? A culpa o remoia por dentro. O que teria feito?
Obrigou-se a afastar Anna de seus pensamentos e a concentrar-se na tarefa que tinha ante si. Não sobrava muito tempo. O rei Robert atacaria em quatro dias, e Arthur ainda não tinha conseguido nenhuma informação de utilidade.
Entrou no aposento seguindo ao Dugald, que estava de um humor de cão como jamais antes tinha visto, e se sentou à mesa com o resto dos cavalheiros de alta fila e os membros da meinie de Lorn. Minutos depois de que se congregassem os homens, fez sua entrada Lorn. Mas nessa ocasião não chegava sozinho. Seu pai, o convalescente Alexander MacDougall, ia com ele. O pulso de Arthur se acelerou. Se MacDougall estava ali, provavelmente se trataria de algo importante.
O lorde de Argyll tomou assento na poltrona trono que normalmente ocupava seu filho e deixou ao Lorn uma poltrona menor junto a seu posto. Uma vez que se fez silêncio na sala, Lorn tirou um pergaminho dobrado de sua bolsa e o pôs sobre a mesa. Arthur ficou petrificado ao reconhecê-lo imediatamente. Reprimiu uma maldição obscena. «O mapa.» Ou para ser mais exato, seu mapa. O mapa que tinha desenhado para o rei, que tinha entregue ao mensageiro. Devem ter interceptado antes que chegasse ao Bruce. «Maldição.» Desejou ter-se lembrado de mencioná-lo na última vez que se reuniu com eles.
Os homens se aproximaram para ver o de perto.
—O que é? —perguntou um deles.
Lorn adotou uma expressão severa.
—Um mapa dos arredores de Dunstaffnage — disse, fazendo-o passar — E o número de homens e os fornecimentos a nossa disposição.
Houve várias falações de irritação quando alguns dos homens notaram o que significava. Dugald se aproximou mais e examinou o mapa com tal intensidade que a Arthur lhe arrepiaram os cabelos da nuca. Não havia nada delator no documento. A escritura era minúscula e quanto aos desenhos… Dugald nunca tinha emprestado muita atenção aos «ganchos de ferro» de Arthur mais que para rir deles. Não tinha nada que temer. Mas mesmo assim, o interesse que tomava seu irmão parecia inquietante.
—De onde saiu? —perguntou Dugald.
—O tiraram de um mensageiro do inimigo que meus homens interceptaram faz várias semanas —respondeu Lorn — Mas pela exatidão dos números, suspeito que há um traidor entre nós. —Os murmúrios de indignação e raiva zumbiram por toda a sala e Arthur se uniu a eles — Infelizmente o mensageiro não foi capaz de identificá-lo.
—Como pode estar seguro, milorde? —perguntou Arthur.
Um sorriso de cumplicidade curvou a boca de Lorn.
—Estou.
O qual queria dizer que tinham torturado ao mensageiro.
Lorn examinou os rostos dos homens que lhe rodeavam, o círculo interno de seu mando.
—Mantenham os olhos abertos em busca de algo que se saia da normalidade. Quero encontrar a esse homem — disse esmagando o mapa com a palma da mão — Mas este mapa demonstrou sua utilidade. Tenho um plano para ganhar a partida do usurpador em seu próprio jogo.
Arthur ficou quieto, tentando conter a emoção. Talvez ao final pudesse conseguir um pouco de informação para o rei.
—A que te refere? —perguntou Alan.
—Refiro-me a que faremos que suas próprias táticas se voltem em contrário. Bruce conseguiu vitórias frente a força muito mais poderosos lutando segundo seus próprios meios: escolhendo o lugar e o terreno adequados para o ataque, atirando golpes duros e rápidos desde seus esconderijos, usando o mesmo tipo de estratégias que usaram nossos ancestrais durante séculos, táticas de guerra highlander. E que me crucifiquem se permitir que alguém das Terras Baixas ganhe em meu próprio terreno — disse, fazendo ato seguido uma pausa para que o resto fizesse coro sua aprovação — Não ficaremos aqui esperando ao assédio do castelo como ele acredita. Atacaremos nós primeiro.
Todos começaram a falar ao mesmo tempo. Arthur se obrigou a não unir-se à refrega porque queria ouvir o resto. Mas sabia que aquilo era algo grande, monumental de fato. Lorn tinha razão: o rei não esperaria que os atacassem. Não quando tinham uma fortaleza como Dunstaffnage para cobrir-se. Lorn impôs silêncio na sala com um movimento da mão.
—Esperem que conte o resto para fazer perguntas. —Colocou o mapa mais adiante para que os homens que tinha frente a ele pudessem vê-lo — Bruce e seus homens vêm do este pela estrada do Tyndrum. —Apontou a um canto do mapa, fazendo que a pele de Arthur se arrepiasse ao pressentir algo importante. Lorn moveu o dedo seguindo o caminho e se deteve no caminho de Brander. Arthur sentiu o estômago apertar — Para chegar até Dunstaffnage terão que cruzar estas montanhas. No estreito e longo caminho de Brander, ali será onde ataquemos. Poremos a nossos homens aqui, aqui e aqui — disse assinalando três cúpulas por cima das quais não se via nada, devido aos meandros do caminho.
Arthur reprimiu uma imprecação ao mesmo tempo em que o resto da sala prorrompia em uma onda de excitação. Era o lugar perfeito ao que levar a cabo um ataque surpresa. Os MacDougall surpreenderiam ao Bruce de acima, descendo sobre o exército em marcha em uma abertura estreita de onde o rei não poderia tirar vantagem de sua superioridade numérica.
—Quando? —perguntou Dugald erguendo a voz.
—Nossos informe assinalam que Bruce chegará ao Brander na madrugada do dia quatorze.
«Filho de cadela traiçoeiro.»
A sala ficou em silêncio.
—Mas a trégua não expira até o dia quinze — disse Alan com cautela.
Lorn entreabriu os olhos.
—É o usurpador quem escolheu ignorar o código da batalha, não eu. Bruce parte sobre nossas terras. É ele quem rompe a trégua. —Um raciocínio à própria conveniência como jamais se viu antes. Mas ninguém na sala se atreveu a discutir — Alan —continuou Lorn—, partirá com o grosso das forças amanhã e estarão na posição ao cair a noite, somente para nos assegurar.
A Arthur não surpreendeu saber que Alan estaria ao mando. Essas abruptas ravinas e o irregular terreno seriam difíceis de sulcar inclusive para os guerreiros mais jovens.
—Defenderão vocês o castelo, milorde? —perguntou.
Lorn o fulminou com o olhar.
—Meu pai guardará o castelo —corrigiu — Eu farei cargo de uma frota de galeões e comandarei o ataque daqui — disse assinalando o lugar no que o rio Awe entrava no lago do mesmo nome — Assim, quando o tivermos surpreendido de cima, seguiremos atacando do fronte.
Golpeando ao Bruce de duas direções. Era um plano excelente. Não só se tratava de uma localização perfeita para lançar o ataque, mas sim ao atacar primeiro, e antes que a trégua expirasse, teriam o fator surpresa a seu favor.
Essa intervenção provocou uma inundação de perguntas, mas Arthur já estava concentrado na tarefa que tinha. Tinha que advertir ao rei o antes possível sem que Lorn se inteirasse de que seu plano corria perigo. Teria que arriscar-se a enviar a mensagem nessa mesma noite. Depois, na excitação e o caos que precederiam ao ataque, teria a possibilidade de escapulir-se.
«para sempre.»
Encolheu-lhe o estômago. Tinha ante si o momento que tanto tinha temido e sabia que era inevitável. O momento de dizer adeus. O momento em que se supunha que devia voltar para as sombras e desaparecer sem dizer uma palavra. Isso era o que ele fazia. O que sempre soube que teria que fazer. Simplesmente não esperava que fosse tão tremendamente duro. Parecia covarde partir sem uma explicação. Deixar que Anna descobrisse a verdade por si mesma. Gostaria de prepará-la, lhe dizer que a amava e que nunca quis a machucar. De dizer o que sentia, que seguiria sendo dela sempre que ela quisesse.
Mas não podia. Partiria para dia seguinte sendo um homem e quando retornasse o faria sendo outro. Anna o odiaria por isso. Embora duvidava muito de que coubesse uma mínima possibilidade de que estivessem juntos, Arthur jurou que quando terminasse todo a buscaria para tentar explicar-lhe Sempre que ela quisesse escutá-lo.
«Não pode ser certo. Não é possível.» Anna se negava a acreditar. Mas tampouco podia afastar de si a dúvida que se instalou como um parasita em suas vísceras e não queria partir. A desculpa de sua enfermidade não era falsa. As dúvidas se retorciam e remoíam seu interior, debilitando-a. Passava o dia inteiro no refúgio de seus aposentos tentando convencer-se de que aquilo não era possível, de que ele não a enganaria de tal modo. Mas ficavam muitas perguntas no ar. Umas perguntas que não podiam esperar até o dia seguinte. Para então poderia ser muito tarde. Mary e Juliana acabavam de retornar à câmara fazia pouco para lhe informar de que os homens já dispunham os preparativos prévios à guerra. «Guerra.» O medo acendeu seu peito, e a necessidade de encontrá-lo se tornou desesperada.
Tinha o vestido enrugado e cheio de pelos de Escudeiro depois de ter passado todo o dia tombada na cama, mas não perdeu o tempo em trocar-se. Jogou água no rosto, enxaguou a boca, passou uma escova por seu emaranhado cabelo e se encaminhou às dependências de seu pai para pedir a suas irmãs que desse uma olhada no cachorrinho. Defraudou encontrar a porta aberta, já que esperava que os homens continuassem no conselho de guerra. Não obstante entrou, atraída pelas vozes que procediam do interior.
Seu pai, que estava de pé junto a Alan, observando um pergaminho estendido sobre a mesa, ergueu o olhar ao vê-la entrar na sala.
—Ah, Anna. Encontra-te melhor?
—Sim, pai, muito melhor — respondeu ela, tentando não mostrar a decepção que supunha descobrir que se achavam ali somente eles dois. Certamente Arthur já teria se retirado aos barracões para dormir. O que podia fazer ela, então? Que desculpa inventaria para ir em ao seu encontro essas horas?
—Necessita algo? —perguntou Alan, notando a preocupação de seu rosto.
Quando seu irmão baixou o olhar, Anna se deu conta de que estava retorcendo as abas do vestido.
—Parece desgostada por algo
Não podia chegar a fazer uma idéia.
«Oh, Deus. Teria que contar Anna sentiu um vazio no estômago ao conscientizar-se de que deveria compartilhar suas suspeitas com ambos. Mas não podia. Não até que estivesse completamente segura. Seu pai… doía admitir que a ira de seu pai nem sempre era racional. Não podia estar segura do que faria. Mas tinha que contar tudo.
—É pela guerra. Mary me disse que os homens se preparam para partir amanhã.
—Não há razão para preocupar-se, Anna. Sua mãe, suas irmãs e você estarão a salvo aqui.
—Não acredito que seja isso o que lhe preocupa, pai — disse Alan com um sorriso forçado.
Estava certo. Anna empreendeu a retirada, ansiosa por encontrar Arthur.
—Não queria lhes incomodar — disse olhando o pergaminho sobre a mesa — É óbvio que estão ocupados, deixarei-os que… —acrescentou, detendo-se de repente com uma exclamação de surpresa.
Cravou o olhar no pergaminho e caiu na conta de que o reconhecia, apesar de que nesse momento já estava acabado e tinha um aspecto diferente. Já não parecia um rascunho. Parecia um mapa. «Um mapa.» O que significava aquilo? Se Arthur estava fazendo um mapa para seu pai, por que não lhe havia dito nada? «Tentava ocultá-lo.»
Anna deu vários passos à frente presa de um pavor inexplicável. Tentou dissimular o tremor de sua voz:
—Interessante mapa. —Tinha a garganta muito seca, de modo que, mais que falar, pigarreava — De onde o tirastes?
—Nossos homens o interceptaram de um mensageiro inimigo —respondeu Alan, passando os dedos por seus finos traços — A verdade é que é muito bom. Magnificamente detalhado.
Anna não ouviu mais que as palavras «mensageiro inimigo». Empalideceu ao momento; seus piores temores, aparentemente, confirmaram-se.
«É um espião.»
—Sabe algo a respeito, filha?
Anna voltou o olhar para seu pai. Abriu a boca para pronunciar as palavras que condenariam Arthur, mas ficaram congeladas em sua boca. Não podia. Não podia fazer. Não antes de lhe oferecer uma oportunidade para explicar-se.
—Nada — se apressou a dizer baixando os olhos, incapaz de lhe sustentar o olhar.
Alan a observava com expressão de estranheza.
—Está segura de que não te encontra mal, Annie? Não tem bom aspecto.
Não se encontrava muito bem. Tinha enjôos. Como se o aposento girasse a seu redor ou as tábuas do chão se desprendessem a seus pés. Cambaleou e deu um passo para recuperar o equilíbrio.
—Eu… eu acredito que será melhor que volte para meu aposento.
Alan foi para ela com o desassossego marcado no rosto.
—Acompanho-te.
—Não. —Anna negou com a cabeça energicamente, reprimindo umas lágrimas que lhe ardiam nos olhos — Não é necessário. Estou bem. Sigam com o que estão fazendo.
Anna saiu antes que seu irmão pudesse opor-se. Apressou-se a chegar ao barmkin consumida em uma sensação de sufoco. Abriu a porta da torre da comemoração e se sentiu reconfortada pelo golpe de ar frio da noite. Inspirou profundamente, enchendo os pulmões e procurando estabilizar sua acelerada respiração. Aferrou-se ao corrimão de madeira que coroava a escada como se fosse um cabo de salvamento, deixando que o ar fresco e o tranqüilizador dossel da negra e fechada noite acalmasse a precipitação de seu coração, de seu fôlego e, sobretudo, de sua cabeça. Vários dos homens que vigiavam o barmkin ficaram olhando-a, mas Anna estava muito desgostada para preocupar-se com isso. Desgostada? Não, aturdida. Destroçada. Horrorizada. Sua cabeça ainda dava voltas, incapaz de acreditar.
Tentava decidir o que devia fazer, se percorria o pátio, chamava nas portas dos barracões e perguntava por ele, mandando ao diabo toda correção, quando as portas se abriram e saiu um grupo de soldados vestindo armadura completa. O coração lhe deu um tombo ao conscientizar-se de que um deles era Arthur. Dirigiam-se para os estábulos. Estava partindo. «Partindo.»
Agarrou-se ao corrimão com força até que a madeira se estilhaçou em suas mãos. Ficou olhando com o peito ardendo de dor e uma parte de si ainda recusava a acreditar. Arthur pareceu advertir o calor de seu olhar e deixou pela metade o que estava fazendo para erguer os olhos. Seus olhos se encontraram entre a luz mortiça que proviam as tochas. Arthur disse algo a um dos homens, separou-se do grupo e caminhou em sua direção. Anna inspirou profunda e entrecortadamente e se dispôs a baixar a escada para encontrar-se com ele ao final desta. Seu coração se deteve o ver seu rosto. Como podia lhe olhar com tal cara de preocupação e planejar traí-la ao mesmo tempo?
—O que passou? —perguntou — Fiquei preocupado ao não te ver antes.
Ele se aproximou dela, mas Anna se revolveu. Não podia permitir que a tocasse. Somente serviria para confundi-la mais ainda.
—Preciso falar contigo.
A rigidez de sua voz despertou os temores de Arthur. Dirigiu seu olhar para os estábulos, onde os homens tinham desaparecido.
—Não tenho muito tempo. Estão me esperando.
—Parte… sem dizer adeus?
O pequeno tremor que apareceu em seu queixo o delatava. Sinal de que se sentia culpado.
—Não é mais que a ronda noturna. Estarei de volta em umas horas.
—Está seguro? Não me advertiu de que talvez não retornaria?
Arthur examinou com atenção seu rosto e pareceu conscientizar-se de que algo ia realmente mal. Consciente dos homens que patrulhavam a seu redor, a tomou pelo braço e a levou para o jardim que havia na parte posterior à torre, onde ninguém poderia ouvi-los. Agarrou-a pelos ombros para virá-la para si e a olhou com expressão severa.
—A que se deve todo isto, Anna?
Anna ergueu o queixo, odiando que a tratasse como se fosse uma menina pesada.
—Sei.
—O que é o que sabe?
Um soluço apareceu em seu peito, mas conseguiu controlá-lo. As palavras saíram como um torvelinho.
—Sei a verdade. Sei por que está aqui. Sei que me salvou no Ayr. Sei que trabalham para eles — disse Anna, quase cuspindo essa última palavra, incapaz de pronunciá-la.
Ele trabalhava para o inimigo mortal de sua família.
Ficou imóvel, suas feições tinham sido adestradas para a impassibilidade. A Anna caiu a alma aos pés. Essa falta total de reação lhe condenava mais que uma negação.
—Está transtornada —disse Arthur com calma — Não sabe o que está dizendo.
—Como te atreves! —exclamou Anna com voz tremente e uma emoção que ardia em seu peito até converter-se em um acesso de raiva — Não te atreva a mentir! Vi esta manhã agarrar a lança ao vôo e rompê-la com o joelho. Somente vi isso uma vez em minha vida. Não recorda como saíram a me resgatar aquela noite? Um espião dos rebeldes que se fazia passar por cavalheiro? Recebeu uma flechada no ombro por isso. —Tinha vontade de lhe arrancar a armadura e lhe obrigar a que o reconhecesse — Tem uma cicatriz exatamente no mesmo lugar. —Fez uma pausa para que o negasse, quase esperando que lhe desse uma explicação, mas o silêncio enchia o ar estagnado entre ambos — Vi o mapa, Arthur. O mapa que permitiu que eu acreditasse que era um desenho. O tiraram de um mensageiro inimigo — continuou, desafiando-o ainda com o olhar — Talvez devesse chamar a meu pai e que ele seja quem diga.
Arthur franziu os lábios até que embranqueceram. Agarrou-a pelo cotovelo e a aproximou mais a si.
—Baixe a voz —advertiu — Poderiam me matar somente por me acusar disso.
Anna se serenou, aplacando um tanto sua ira, consciente de que o que dizia era certo. Arthur a dirigiu para um banco de pedra e a fez sentar-se.
—Não se mova.
—Aonde vai? —perguntou Anna, irritada por receber ordens dele.
—Dizer-lhes que me atrasarei — respondeu Arthur, olhando-a com expressão severa.
Capítulo 22
«Pense! Maldita seja, pense!»
Arthur levou um tempo para informar aos homens de seu atraso enquanto tentava acalmar a violenta corrente de sangue que afluía por suas veias. Mas todos seus instintos primários de sobrevivência tinham despertado em uníssono em resposta ao perigo. O pior tinha acontecido. Tinham-no descoberto. Anna tinha adivinhado a verdade.
Amaldiçoou ao idiota de seu irmão por lhe jogar aquela lança, que além de que estivera a ponto de lhe atravessar a cabeça, e também a si mesmo por ser tão pouco cuidadoso com o mapa. Sua missão acabava de ir-se ao vinagre, e, a menos que pudesse encontrar uma maneira de justificá-lo, tudo indicava que não viveria para ver o seguinte pôr-do-sol. Não podia pensar no que significaria seu fracasso para Bruce. Se não os avisasse, iriam diretos para a armadilha. Uma vitória dos MacDougall poderia fazer que a guerra mudasse de novo.
Apesar de não advertir nenhum perigo ao sair dos estábulos, Arthur não tirava as mãos de suas armas, quase esperando encontrar-se aos soldados de Lorn aguardando. Mas Anna não tinha avisado a seu pai. Ainda não, ao menos. Esperava-lhe no banco no que ele a tinha deixado. Respirou algo mais tranqüilo em seu caminho de volta ao cruzar o pátio, embora ainda não tinha claro o que lhe diria. Não era só sua integridade e a missão o que estava em jogo. Se ainda ficava a esperança de uma vida em comum para ambos, seria nesse momento quando teria que conseguir que Anna entendesse suas razões.
Ela não o olhou quando se aproximou, mas sim ficou contemplando a escuridão em silêncio, com um rosto que era uma pálida máscara de angústia. Sentou-se junto a ela com uma sensação de impotência absoluta. Queria tomá-la em seus braços e lhe dizer que tudo sairia bem, mas sabia que não era certo. Tinha-a traído. Pouco importa que não pode evitar.
—Não é o que pensa — disse brandamente.
—Não pode fazer uma mínima idéia do que penso. —A voz de Anna estava carregada de emoção. Quando se voltou para ele, com seus grandes olhos azuis alagados de lágrimas não derramadas, Arthur sentiu uma pontada no coração que lhe fez estremecer — Diga que não é certo, Arthur. Diga que tudo é um engano. Diga que não é o que acredito que é.
Deveria. O que significava uma mentira mais em cima de tantas outras? Podia tentar negá-lo. Talvez chegasse a convencê-la. Mas duvidava muito. Ela sabia. Via-o em seus olhos. E se lhe mentisse nesse momento, jamais teria a possibilidade de que o compreendesse. Se queria que eles tivessem uma oportunidade como casal, teria que lhe contar a verdade.
Olhou-a nos olhos.
—Jamais quis lhe fazer dano.
Anna emitiu um som, um gemido de dor que parecia provir de um animal ferido, um gatinho de pele aveludada apanhado em uma armadilha para ursos. Não pôde evitar. Aproximou-se dela para acalmá-la, mas Anna deu um coice.
—Como é capaz de dizer tal coisa? Utilizaste-me. Mentiu em tudo o que era importante. —As lágrimas brotaram das comissuras de seus olhos e caíram em corrente por suas bochechas — Houve algo real? Ou fazer que me afeiçoasse de ti também era parte do plano?
—O que passou entre nós foi real, Anna. Nunca foste parte do plano. Jamais deveram fazer parte disso. Isto não tem nada que ver contigo.
—Então com o que tem que a ver? Com o Robert Bruce? Com as velhas rixas? Com seu pai? —Arthur apertou os punhos e pigarreou — Assim é por seu pai… Culpa ao meu de sua morte —disse, retirando-se dele — Não é mais que um horrível e retorcido feito de vingança. Quer a destruição de minha família porque seu pai morreu na batalha, não é isso? O que é o que planeja, assassinar a meu pai para vingar a morte do seu? —ficou paralisada pelo horror — meu Deus, isso é o que planeja fazer.
Arthur apertava com força os dentes. Dito por ela, soava como algo infame. Simples. Mas era tudo menos isso. Anna, cega pelo amor que tinha a sua família, estava incapacitada para ver o que acontecia a seu redor. Odiava ter que ser ele quem lhe abrisse os olhos, mas não restava outra alternativa.
—É seu pai quem acabará com o clã e não eu, Anna. Robert Bruce fez o que ninguém acreditava possível. É a melhor opção da Escócia para nos liberar do jugo inglês. Ganhou os corações do povo. Mas o ódio de seu pai e seu orgulho lhe impedem de vê-lo desse modo. Prefere ver uma marionete inglesa no trono… Os MacDougall ficam sozinhos, Anna. Inclusive Ross acabará rendendo-se.
Anna ficou completamente rígida.
—Meu pai faz o que considera correto.
—Não, seu pai faz tudo o que está em sua mão para não admitir a derrota. Não se equivoque em relação às razões de tudo isto. Seu pai preferiria os ver mortos antes que aceitar a derrota.
Advertiu a indignação que ruborizava suas bochechas.
—Vocês não sabe nada de meu pai.
Anna fez uma tentativa de levantar-se, mas ele a agarrou pelo pulso e a obrigou a permanecer sentada.
—Sei mais do que queria a respeito de seu pai. Sei exatamente do que seria capaz por ganhar.
Anna tentou libertar seu braço.
—Me solte.
—Não até que ouça tudo o que tenho a dizer.
Não havia nada que desejasse menos que desiludi-la, mas era consciente de que não podia protegê-la da verdade durante muito mais tempo.
—Não vos disse tudo o que vi o dia em que mataram a meu pai.
—Não quero…
—Entretanto, ouvirá —a interrompeu — Embora não queira fazer. Eu estava nessa colina e o vi tudo, Anna. Meu pai tinha ao seu a mercê de sua espada. Poderia tê-lo matado e, não obstante, teve piedade dele. Seu pai aceitou os termos, acordou a rendição e depois, quando meu pai deu a volta, matou-o.
Anna deixou escapar um grito afogado com uns olhos cheios de horror e incredulidade.
—Está errado. Meu pai jamais faria algo tão desonroso.
Arthur a agarrou firmemente e a obrigou a olhá-lo nos olhos.
—Eu estava ali, Anna. Vi e ouvi tudo, mas não pude fazer nada para detê-lo. Tentei advertir a meu pai, mas era muito tarde. Lorn me ouviu e enviou a seus homens a que me caçassem, e tive que me ocultar na floresta durante uma semana. Quando saí dali, era muito tarde para mudar a história. Ninguém teria acreditado.
Arthur se deu conta do pânico que a sobressaltava. Sentiu seu coração bater fortemente contra o peito. Lutava por aferrar-se a qualquer fio que pudesse preservar suas ilusões em relação à verdadeira pessoa que ela via em seu pai.
—Deve ter interpretado mal o ocorrido. Estava muito longe.
—Não interpretei mal nada, Anna. Ouvi tudo.
Equivocava-se. Tinha que equivocar-se. Não era certo? Seu pai tinha mau gênio, mas ela sabia que tipo de pessoa era.
Voltou-lhe as costas bruscamente.
—Não acredito.
O pesar de seus olhos cortava mais que o cristal.
— Pergunte tu mesma. —Anna não disse nada. Não queria atender a razão — Seu pai não se deterá ante nada para conseguir a vitória, Anna. Nada. Por todos os diabos, se inclusive utilizou a sua própria filha…
Anna ficou tensa, ofendida por tal acusação.
—Já vos disse que a aliança com o Ross foi minha idéia.
—Não estou falando disso. Refiro-me a lhe usar como mensageira.
Anna ficou sem fôlego. Sabia? Céu santo, teria devotado informação sem ser consciente disso?
—Quando? —exclamou — Desde quando sabes?
—Não o descobri até umas semanas, infelizmente. —Seu rosto tinha uma expressão temível — Por todos os Santos, Anna! Sabem o perigo que correstes?
—Sim, mas nunca imaginei de onde provinha.
«De ti.» Ele era o inimigo. Ele a espiou e fez quanto pôde por…
Anna ficou olhando-o ao mesmo tempo em que todas as terríveis conseqüências iam em turba a sua mente. De repente deu um salto para trás, horrorizada. «Não, isso não, por favor.» Lhe revolveu o estômago.
—Por que insistiu em me acompanhar ao norte, Arthur?
—Para te manter a salvo.
—E para evitar uma aliança com o Ross?
—Sim, em caso de que fosse necessário — disse, fazendo frente a seu olhar sem pestanejar. A dor machucava tanto o coração de Anna que se afogava em seus próprios soluços — Mas não é o que pensa. Aquilo não formava parte de meus planos.
Era como se a fustigassem por dentro. Parecia sangrar-se, como se estivesse em carne viva.
—E acha que tenho que acreditar?
Arthur contraiu a mandíbula.
—É a verdade. O que ocorreu naquele aposento foi porque o ciúmes e o medo de te perder me deixaram meio louco. Não me orgulho do que fiz, mas juro Por Deus que não o tinha planejado.
—Ocorreu por acaso, isso quere dizer? E o que passa com o de ontem à noite? Ocorreu também por acaso? —Sua voz se quebrou pela emoção que a embargava — Como pode, Arthur? Sabias o que acabaria passando e mesmo assim me deixou acreditar que te importava, que queria te casar comigo. E não eram mais que mentiras.
Como podia ser tão idiota para oferecer-se a um homem que planejava traí-la, trair a todos eles?
—Não — disse Arthur com rudeza, obrigando-a a lhe olhar nos olhos — Não era mentira. Nada disso era mentira. Eu… — Vacilou, como se aquelas palavras não coubessem em sua boca — Eu te amo, Anna. Nada me faria mais feliz que me casar contigo.
Por um estúpido momento o coração lhe deu um tombo ao escutar essas palavras que tanto tempo tinha esperado. Umas palavras que deviam fazer que tudo fosse perfeito, mas que não conseguiram mais que afundar na desgraça daquele assunto.
Era um homem cruel. Era cruel lhe dizer aquilo que tão desesperadamente ansiava ouvir. Bem certo, não fazia mais que manipulá-la para que não o delatasse.
«Delata-o.» Oh, Deus, o que poderia fazer? Tinha a obrigação de dizer a seu pai o que acabava de descobrir. Mas se o fizesse não cabia a menor duvida do que aconteceria. Arthur morreria. E se não o fizesse, Arthur passaria ao inimigo a informação que tinha obtido. Tratava-se de uma escolha impossível, mas sabia que, apesar de tudo o que Arthur fizesse, não podia ser ela quem jogasse o laço ao seu pescoço. Um só homem não podia derrotar a um exército.
—De verdade espera que acredite que me ama?
Arthur adotou uma postura rígida, mas seguiu olhando-a nos olhos.
—Sim, espero. Não tenho nenhum direito a fazer, mas essa é a verdade. Jamais antes disse essas palavras a ninguém e nunca pensei que o faria. Mas do primeiro momento que te vi, senti algo especial. Sei que você também o sentiu, uma conexão a que não me pude resistir.
—O que sentia era luxúria — disse Anna devolvendo suas palavras. Arthur franziu os lábios. Ela era consciente de que o estava levando ao limite, mas se sentia muito doída e furiosa para que lhe importasse — Como pode esperar que acredite em seu amor quando me mentistes do primeiro dia em que nos conhecemos?
—O que queria que fizesse? Não estava em posição de dizer a verdade. Acredita que eu queria que acontecesse isto? Por Deus santo, é a última pessoa no mundo que queria me ter apaixonado. —Anna se estremeceu. Supunha que isso tinha que fazê-la sentir melhor? Embora lhe doesse que aceitasse seus sentimentos com tal dificuldade, as palavras de Arthur tinham o distintivo da verdade — Tentei me manter à margem —assinalou, dando rédea solta a sua frustração — Mas não me permitiram isso.
—Então é minha culpa, não?
Arthur suspirou e voltou a levar as mão aos cabelos.
—Não, é obvio que não. Inclusive caso tivesse me evitado, eu teria me apaixonado por você a distância. Atraiu-me desde a primeira vez que a vi. Sua calidez. Sua vitalidade. Sua doçura. É tudo que não sabia que perdia na vida, o que não acreditava possível para mim. Jamais quis ter esse tipo de intimidade com alguém até que a conheci. —Apesar de todas suas tentativas para não cair em seus enganos de novo, Anna não pôde evitar que seu coração se comovesse. Arthur a puxou pelo queixo e voltou seu rosto para olhá-la nos olhos — Sei que não posso esperar que acredite, Anna, mas sim espero que tente compreender que o fiz o melhor que pude dadas as difíceis circunstâncias. Estava condenado a lhe trair inclusive antes que nos conhecêssemos.
Os olhos de Anna examinaram seu rosto em busca de sinais de engano, mas somente encontravam sinceridade. Queria acreditar, mas como podia fazer sabendo o que pretendia? Inclusive no caso de que seus sentimentos fossem sinceros, tinha a intenção de traí-la. Ele estava em um lado e ela no outro. Queria matar a seu pai.
Anna voltou o rosto bruscamente, receando sua própria debilidade. Quando a olhava com essa expressão, somente podia pensar em lhe beijar e no quão protegida se sentira entre seus braços, fingindo que tudo sairia bem.
—Como poderia acreditar que te importo quando está aqui para nos espiar, destruir a minha família e se vingar de meu pai? Se me amas de verdade, não poderia fazer.
Os olhos de Arthur brilharam com força na escuridão, como se queria discutir com ela mas compreendesse a inutilidade do gesto.
—O que outra coisa poderia fazer?
—Poderia deixar de lado sua ânsia de vingança. —Olhou-o nos olhos, consciente de que estava a ponto de lhe pedir um impossível, mas sabendo também que essa era a única oportunidade que teria para ambos — Poderia escolher ficar comigo.
Arthur ficou petrificado. Maldita seja por lhe fazer isso! Por lhe fazer escolher. Pedia-lhe quão único não podia dar. Não podia jogar por terra toda sua honra e lealdade, nem sequer por ela. Seu rosto adotou o aspecto do granito.
—Fiz um juramento, Anna. Jurei dar minha espada ao Bruce. —E ao Guarda dos Highlanders, pensou — Ir contra isso seria ir contra minha consciência. Ir contra todo aquilo no que acredito. E apesar de que tenha razões para acreditar o contrário, sou um homem de honra.
Era o dever, a lealdade e a honra o que o tinham levado até ali.
—Mas isto não é só uma questão de honra. Não é certo? —desafiou-o — É uma questão de vingança. Quere a destruição de meu pai.
—Quero justiça — disse Arthur esticando a mandíbula.
Seus grandes olhos o olhavam com expressão luminosa e suplicante, remoendo sua consciência. Anna pôs uma mão sobre a sua, mas pareceu que com ela se agarrava a seu coração.
—É meu pai, Arthur.
Pareceu que todo seu interior se retorcia. Essa suave súplica chegava mais fundo do que gostaria. Como era capaz de lhe fazer isso? Como podia apertar as porcas para que ele se visse na necessidade de fazer quanto pudesse por satisfazê-la? Mas era impossível. Isso não podia fazer.
Durante quatorze anos sua vida se centrou em uma só coisa: desfazer uma ofensa. Tinha esperado muito tempo para encontrar-se com o Lorn cara a cara no campo de batalha. Assim como não podia negar seus sentimentos por ela, tampouco podia evitar sua promessa de justiça.
—Acredita que não sou consciente de que se trata de seu pai? Acha que não passei cada um dos dias destes dois últimos meses desejando que não fosse assim? Eu não queria que acontecesse nada disto, maldita seja.
As lágrimas brilharam nos olhos de Anna.
—Acredito que isso já deixa suficientemente claro. Seus sentimentos por mim são um obstáculo.
—Eu não disse isso. —Arthur apertou os punhos.
—Não têm nada que explicar. Acredite, entendo.
A aspereza de seu tom deixava muito claro os sentimentos de Anna. Levantou-se do banco e caminhou uns passos para o interior do pátio com o olhar perdido na escuridão.
—Parte —disse sem expressão na voz — Parta antes que mude de opinião.
Não podia acreditar que fosse o deixar partir. Por um segundo teve um brilho de esperança. Isso somente podia significar que ela ainda lhe amava, pois ao deixá-lo partir anteporia-o a sua família. E tinha que partir. Não gostava da idéia de deixá-la plantada assim, mas tinha que advertir ao rei. Aproximou-se dela, ficou a seu lado, tomou pelo cotovelo e a atraiu para si com delicadeza. Dava a impressão de ser mais jovem e frágil à luz da lua, com esse rosto pálida que parecia um ovalóide de alabastro.
—Juro-lhe que voltarei assim que possa.
Anna negou com a cabeça sem deixar de olhar ao infinito.
—Já têm feito sua escolha. Se partir agora o fará para sempre — disse, olhando-o ao fim com um rosto imperturbável — Não quero voltar a te ver jamais.
A determinação de sua voz cortava como uma espada.
—Não diz a sério. —Não podia falar sério. Era sua raiva que falava. Mas a rigidez da posição de seu queixo fez que o pânico corresse pelas veias de Arthur. Conhecia essa expressão. Atraiu-a para si com força, consciente de que tinha que fazê-la entrar em razão — Não diga algo do que poderia te arrepender.
Anna escoiceou ao sentir o contato.
—O que faz? Me soltem! —Deu-lhe um empurrão para desembaraçar-se dele.
Mas seus esforços não fizeram mais que aumentar a sensação de pânico de Arthur. Tinha que fazer o ver. Como podia negar? Acaso não sentia ela a energia que desprendiam seus corpos? O calor? Estavam destinados um para o outro.
Ficou sem palavras e sem tempo, de modo que a beijou, capturando sua boca com a dele em um desesperado e feroz abraço. Ela ficou lívida, já sem lutar, simplesmente deprimida sobre seus braços. «Não, maldita seja. Não.» A ausência de reação piorava a sensação de urgência. Beijou-a com mais força, com mais paixão, obrigando-a a abrir os lábios, procurando algo que muito temia lhe estava escapando entre os dedos. Seus lábios estavam quentes e suaves, seguiam tendo sabor de mel, mas nada era como antes. «Ela não quer que a beije.» deteve-se. «Que demônios estou fazendo?» Deixou-a ir ao mesmo tempo em que soltava uma imprecação e ficava olhando com horror. Nunca antes tinha feito algo assim. A idéia de perdê-la fazia que se voltasse louco.
—Deus, Anna! Sinto—disse com uma voz rouca e entrecortada pela aspereza de seu fôlego.
Merecia que lhe dirigisse esse olhar, como se ele fosse o barro que se aderia a seus sapatos.
—Jamais acreditei que fosse um bruto, mas dá a sensação de que está em seu lugar junto ao rei usurpador. Simplesmente tomam quanto querem.
—Anna, eu…
—Parte de uma vez — disse ela com Isso é o melhor que pode fazer. Já têm feito suficiente dano. —Olhou-o nos olhos, desafiante — Acaso pensava que poderia te perdoar isto?
Era a confirmação de seus piores temores. Fora um idiota. Permitia que as emoções turvassem sua percepção da realidade. Pensava que seria possível um futuro para eles pela simples razão de que a queria mais que a tudo no mundo. Mas nunca tivera nem a mais mínima oportunidade. Jamais lhe perdoaria aquilo que a obrigação, a honra e a lealdade lhe impunham. Fixou os olhos em Anna em busca de algum sinal de debilidade, mas ela o olhava com frieza, imutável. A ausência de lágrimas, ira ou emoção não deixava lugar a dúvidas. Tudo tinha acabado. Deus, tudo tinha acabado de verdade.
Arthur sempre soube que poderia chegar este momento, mas nunca esperou sentir-se tão impotente e desesperançado. Jamais pensou que doeria tanto. Parecia que o tivessem quebrado em mil pedaços por dentro e não houvesse nada que fazer a respeito.
—Vos amo, Anna. Sempre te amarei. Nada poderá mudar isso. Espero que algum dia compreenda que nunca quis te fazer dano.
Alongou o braço para tocar sua bochecha uma vez mais, incapaz de deter-se, mas ela se separou dele como se fosse um leproso e sua mão caiu sem força sobre o ar.
—Adeus.
Dito isto, Arthur a olhou pela uma última vez, uma imagem que teria que reter para sempre, deu meia volta e abandonou o lugar.
Jamais esqueceria o aspecto que tinha naquele momento: pequena, sozinha; de uma beleza dolorosa, com seus longos cabelos dourados caindo sobre os ombros em sedosos cachos e seus delicados traços resplandecendo sob a opalescente luz da lua. Tão frágil que poderia romper-se como o cristal. Mas determinada. Com uma determinação atroz.
Parecia ter o peito ardendo e que seu calor se intensificava a cada passo. Acreditava caminhar sobre as brasas do inferno e que o peso de suas pegadas fosse pura agonia. Não podia desprender-se da sensação de que estava mal deixá-la ali de tal modo, de que não fazia o correto nesse momento, depois já não teria oportunidade de fazer. Estava a meio caminho da estrebaria quando se voltou. Mas já era muito tarde. Ela não estava. Olhou para o alto da escada que conduzia à torre da comemoração e alcançou a ver uma mecha de cabelo dourado seguindo a esteira de sua figura como se de um pendão se tratasse antes de desaparecer depois da porta. Uma vez esta se fechou, pareceu que algo se fechava também em seu interior. Para sempre. Era uma parte dele que jamais devia ter aberto. Isso era o que conseguia por relacionar-se intimamente com as pessoas. Estava destinado à solidão. Nunca deve esquecer isso.
Tentou evitar o vazio que ardia em seu interior. Tinha que deixar de pensar nisso. Precisava centrar-se na tarefa que tinha entre as mãos. Mas o rosto de Anna seguia aparecendo ante ele. Perseguia-o. Distraía-o.
Entrou na cavalariça e se apressou a preparar seu cavalo. Apresentar-se voluntário à ronda noturna se provou duplamente providencial. Não só servia como desculpa para sair do castelo, mas sim também significava que não teria que perder tempo voltando para os barracões. Seus pertences mais importantes levava consigo: a cota de malha e as armas. As mudas de roupas e os poucos artigos pessoais que tinha podia deixá-los ali. Os planos tinham mudado. Tinha que partir para sempre, por mais que isso significasse que Lorn estivesse a par de que seu plano estava em perigo. Não ficava mais opções toda vez que Anna tinha descoberto a verdade. Não podia arriscar-se a que ela mudasse de opinião.
Não empregou mais de cinco minutos no estábulo. Não pensava mais que em sair dali quanto antes e pôr terra entre eles. Dizia a si mesmo que isso era o melhor que podia acontecer. Estava bem antes na solidão e voltaria a estar.
Entretanto, não chegou a sair do estábulo. Seus sentidos o advertiram, mas não o fizeram a tempo. De novo suas emoções o distraíram. Embora nesse caso não teria feito diferença alguma.
Abriu a porta do estábulo e se encontrou rodeado. John de Lorn e seu filho Alan flanqueados por ao menos uma vintena de guardas espadas em mão. A mandíbula de Arthur se contraiu pela dor que representava aquela punhalada nas vísceras. Não podia acreditar. Anna o tinha delatado. Talvez teria que ter esperado, mas não acreditava que seria capaz disso. Subestimou o amor que Anna tinha a seu pai e superestimou o que sentia por ele. Não havia razões para que encarasse como uma traição. Mas assim era.
Lorn arqueou uma sobrancelha de maneira indolente.
—Ia a alguma parte, Campbell?
—Sim — respondeu despreocupadamente, como se não estivesse rodeado por homens armados — vou unir me ao grupo de vigilância noturna. —Olhou em redor, sem sinal de fingir sua indignação — O que significa isto?
Lorn sorriu, embora em sua expressão não havia nenhum sinal de simpatia.
—Temo que estamos obrigados a lhe reter um momento. Há vários assuntos que temos que esclarecer.
Arthur deu um passo à frente. Ouviu o tinido do metal enquanto os guardas respondiam a sua afronta elevando as espadas e fechando o cerco a seu redor. Mas não era necessário. Estava apanhado. Talvez conseguisse abrir com golpes através de uma vintena de homens que apontavam a seu pescoço as espadas, mas as portas do castelo já estavam fechadas. Não seria capaz de atravessar sem que todo o castelo se erguesse contra ele. Não havia saída.
Olhou ao Alan, mas não obteria ajuda dele. Mostrava um olhar tão duro e inquebrável como o de seu pai, embora sem esse brilho de maldade acerada. Todos seus instintos clamavam por que lutasse, por desembainhar a espada e levar consigo a alguns homens de Lorn. Mas se obrigou a manter a calma. A não fazer nenhuma tolice. Sua missão era que vinha em primeiro. Se existia a mais remota possibilidade de que pudesse escapar para avisar ao Bruce, teria que considerá-la. Talvez pudesse sair desse embrulho por meio do diálogo. Não estava seguro de quanto havia contado Anna.
—Não pode esperar? —disse — Estão me aguardando.
—Temo que não — repôs Lorn. Fez um gesto com a mão e dois de seus homens mais fortes se adiantaram para agarrar Arthur nos braços — Levem-no às masmorras. Revistem.
«Diabos.» Ao que parecia não teria modo de sair dali por meio do diálogo. Tinha esquecido a nota, a mensagem que pensava deixar na cova essa noite para o rei. Um pequeno pedaço de papel dobrado que levava na bolsa com três palavras que selariam seu destino: «Ataque, 14, Brander».
Embora talvez seu destino tivesse ficado sentenciado dois meses atrás, quando se encontrou cara a cara com a moça que acabava de resgatar de um ataque fatal. A garota que poderia desmascará-lo.
Arthur emitiu um feroz grito de guerra que atravessou a noite e deixou que fosse seu instinto quem tomasse o mando: «Bàs roimh Gèill!». Morrer antes que render-se. Lutou como um selvagem e tombou a cinco soldados antes de cair sob o punho da espada do Alan MacDougall. À medida que a escuridão se abatia sobre ele, soube que aquilo não tinha acabado. E que estava a ponto de piorar.
Queriam-no vivo.
Capítulo 23
Supunha-se que não teria que sentir o coração partir-se. Anna queria que Arthur fosse embora. Tinha mentido. Tinha-a traído. Tinha-a usado. Queria destruir tudo que era importante para ela. Como podia pensar que existia possibilidade alguma de continuar juntos? Inclusive chegava ao ponto de tentar beneficiar-se da paixão que existia entre ambos. Como se um beijo pudesse fazê-la esquecer o que tinha feito. Odiou-o naquele momento. Odiou-o por manchar algo que era formoso e puro.
Dizia a si mesma que isso era o que ela queria, mas assim que Arthur deu meia volta e partiu, o gelo de seu coração começou a rachar-se.
Partia. Abandonava-a.
Jamais voltaria a vê-lo.
«Oh, Deus.» ficou completamente quieta, sem ousar mover-se ao estremecimento de seu interior. Sentia-se como uma fina lâmina de cristal sacudida por uma violenta tormenta de emoções. Forte na superfície e frágil na realidade. Assim que o vento soprasse com força, romperia em mil pedaços diminutos. Não devia sentir-se assim depois do que tinha feito. Não tinha por que sofrer tanto. A dor. O remorso. A desolação. A sensação de que lhe arrancavam o coração. Essa intensidade de emoções parecia pura debilidade. Onde estava seu orgulho? Era uma MacDougall e entretanto, nesse momento, somente se sentia como uma garota que observa como o homem ao que ama parte de sua vida para sempre.
Incapaz de suportar por um momento mais, temendo o que ele veria se desse a volta, pôs-se a correr. Subiu a escada tão rápido como pôde até que alcançou a segurança de sua câmara. Ali se desabou sobre a cama com cuidado de não despertar a suas irmãs, jogou a manta por cima da cabeça e se amassou sentindo-se como uma boneca de trapo. Somente então se deixou levar pela emoção e rompeu a chorar em silenciosos soluços que pareciam arrancados de sua própria alma.
Escudeiro, sentindo sua angústia, se aninhou junto a ela. Anna abraçou ao cachorrinho e fez dessa cálida bola de pelo de amor incondicional sua companhia durante daquela longa e miserável noite.
«Amo-te.»
Não podia tirara as palavras da cabeça. Soavam tão sinceras… Mas Arthur tinha mentido em todo o resto, assim por que teria que acreditar nisso? Inclusive no caso de que fosse certo, não deveria ter importância. Anna repassava o ocorrido uma e outra vez, recordando cada uma das palavras de sua explicação, sua justificação… ou como que pudesse chamar aquilo que tentava fazer. Já era suficiente que estivessem em lados contrários da guerra, mas realmente esperava que ela compreendesse sua necessidade de destruir ao clã familiar? De matar a seu pai, o homem a quem ela mais admirava no mundo? E tudo por certa forma retorcida de vingança? Justiça, tinha chamado ele.
Não queria ouvir suas explicações nem entender suas razões. E tampouco acreditou nem por um momento as mentiras que tinha dito a respeito de seu pai. Ele jamais teria matado a um homem de maneira tão desonrosa. «Faria tudo por ganhar», pensou tapando as orelhas com o travesseiro como se as plumas pudessem conter seus próprios temores. «Pergunte você mesma», tinha-a desafiado Arthur.
Não precisava perguntar. Ela sabia a verdade.
Mas Arthur parecia muito seguro a respeito do que tinha visto.
Anna saiu da cama assim que as primeiras luzes do amanhecer estenderam seu manto pelo chão. Fez suas abluções matinais e passou sigilosamente junto a suas irmãs para sair da câmara. Sabia exatamente o que faria. Demonstraria que Arthur se equivocava. Assim poderia deixar tudo aquilo atrás e deter esse miserável sofrimento de seu coração.
Ainda não tinham disposto as mesas com seus cavaletes e alguns dos homens seguiam ainda despertando em seus lugares do grande salão quando se apressou para os aposentos de seu pai. Sabia que estaria de pé, apesar de que mal tivesse passado uma hora do amanhecer. Quando se preparava para a batalha, John de Lorn virtualmente não dormia. Ouviu sua voz assim que se aproximou da entrada.
—Não me importa quanto tempo dure. Quero saber os nomes.
—Não sei por quanto mais poderá…
Alan deteve em seco suas palavras ao vê-la entrar no aposento. Com somente olhá-lo à cara, Anna soube que algo ia mal. Seu pai estava sentado à mesa. Frente a ele seu ajudante, o capitão da Guarda e seu irmão Alan. Seu pai entreabriu os olhos com ira ao vê-la, enquanto os outros desviaram o olhar, quase como se quisessem evitá-la. Anna, pensando que a irritação de seu pai se devia à interrupção, apressou-se a bater-se em retirada.
—Sinto muito. Voltarei mais tarde.
—Não —respondeu John de Lorn — Tenho que falar contigo. Já acabamos com isto. Não quero mais desculpa —disse ao Alan — Consiga o que quero. Custe o que custar.
Alan franziu o cenho, mas assentiu. Anna sentiu uma pontada no coração ao ver que saía do aposento sem lhe dirigir a palavra, nem sequer um olhar. Tomou assento no banco que havia em frente a seu pai e cruzou os braços sobre o regaço. A intensidade de seu olhar a fazia sentir incômoda em certa forma. Estava furioso e não era por causa da interrupção.
—Se tiver algo que me dizer, chega muito tarde.
A Anna lhe encolheu o coração.
—Algo… algo que lhes dizer?
Seu pai tirou um pedaço de papel de sua bolsa e o pôs sobre a mesa ante ela. Um calafrio percorreu sua nuca ao reconhecer o mapa.
—Sim —disse John de Lorn — Quando viu isto antes, por exemplo. —A vergonha tingiu as bochechas de Anna. Como o tinha averiguado? Seu pai respondeu à pergunta por ela — Sua reação. Que fosse lhe buscar imediatamente depois de ver o mapa confirmou a procedência.
Acaso seu pai os tinha vigiado durante todo o tempo? Não, talvez no pátio, mas não era possível que os tivesse divisado no jardim, pois este não alcançava a ver do salão. Embora, obviamente, tinha visto o suficiente.
—Não esperava isto de ti, Anna.
Inclinou a cabeça, profundamente afetada por tê-lo decepcionado. Não tinha desculpa. Queria dizer que não estava segura, mas sim o estava. Assim que tinha visto o mapa, tinha sabido que Arthur era um espião.
—Sinto muito, pai. Queria lhe dar uma oportunidade para que se explicasse.
—E te satisfez sua explicação? —repôs seu pai com uma voz tão afiada como um látego.
Ela negou com a cabeça. Embora sabia que tinha a obrigação de contar-lhe tudo, essas palavras seguiam sendo muito difíceis de dizer. Teve que recordar que Arthur a tinha abandonado.
—Sua lealdade está com Bruce — começou, detendo-se depois para olhar a seu pai com cautela — Disse que Bruce se ganhou o coração do povo. Que é a melhor alternativa para nos libertar da tirania inglesa de uma vez por todas. E que vamos perder e que será melhor que nos rendamos.
Seu pai ficou vermelho de cólera.
—E acreditou? Arthur Campbell diria tudo para ganhar sua simpatia. Você, pequena insensata… estava te utilizando para escapar. Jamais nos renderemos. E não vamos perder.
A segurança de suas palavras jogou Anna em muitas dúvidas e a fez duvidar de se devia mencionar o resto. Seu pai já estava mais que zangado com ela, mas tinha que acabar com tudo aquilo.
—Afirma que estava ali quando matou a seu pai e que ele viu tudo.
A leve separação do olhar de seu pai poderia significar algo, mas fez que o coração de Anna se detivesse.
—Isso é impossível — disse, descartando a idéia — Não sei o que veria, mas Colin Mor e eu estávamos longe do grupo. Não havia ninguém ali quando combatemos. Em qualquer caso, eu nunca neguei que caísse sob minha espada. Nem que a vitória que consegui para nosso clã fosse a causa da perda das terras dos Campbell no lago Awe. Que Arthur Campbell albergue desejos de vingança por isso é algo inevitável, mas não supõe desculpa alguma.
Obrigou-se a olhar nos olhos, apesar de que se odiasse a si mesmo por repetir a acusação de Arthur.
—Disse que seu pai o tinha sob a ponta de sua espada e que lhes ofereceu a rendição, que aceitou e que depois o assassinou quando deu a volta.
Nessa ocasião a separação do olhar paterno não podia ser interpretada mal. Nem tampouco a tensão de sua mandíbula, nem as rugas brancas que se marcavam ao redor de sua boca. Estava zangado. Zangado sim, mas não quão ofendido deveria. O rosto de Anna empalideceu. «Oh, Deus. É verdade.»
O horror que adivinhou na expressão de sua filha pareceu incomodar ao John de Lorn.
—Aquilo ocorreu faz muito tempo. Fiz o que devia fazer. Colin Mor era cada vez mais poderoso; invadia nossas terras. Teria que detê-lo.
Anna parecia estar na presença de um estranho e que pela primeira vez via o homem que realmente era. Seguia sendo o mesmo pai ao que amava, mas já não era esse homem incapaz para ela de fazer nada mal. Já não era um homem ao que não podia questionar. Tinha deixado de ser um deus. Não, mostrava uma humanidade temível. Parecia-lhe imperfeito e capaz de cometer enganos. Grandes enganos. Enganos execráveis.
Arthur tinha razão. Seu pai faria tudo pra ganhar. Nem sequer se deteria pelo bem de seu próprio clã.
—Tem pouco pelo que me julgar, filha. Você, que deixa que alguém que trai nosso clã parta em liberdade… —Endureceu tanto a voz que quebrou — Sabe o dano que poderia ter feito?
Seu pai tinha razão. Tinha decidido deixar livre Arthur, inclusive sabendo que poderia fazer dano a seu clã, porque não suportava a idéia de converter-se em instrumento de sua morte.
—Não queria que lhe fizessem mal. Eu… lhe tenho carinho. —Anna ficou calada de repente, surpreendida de que seu pai falasse em condicional — O dano que poderia ter feito? —perguntou.
Seu pai franzia o cenho de modo forçado e a brancura de seus lábios contrastava com a cor avermelhada de seu irado rosto.
—Tem sorte de que pudesse mitigar o desastre. Meus homens rodearam ao Campbell ontem à noite quando tentava a fuga. Levava uma mensagem que prova sua culpa —disse com os olhos ardendo de fúria — Uma mensagem que poderia ter arruinado tudo.
Anna não podia respirar do horror que bulia em seu interior. O medo atendia seu coração e o espremia.
—O que têm feito com ele?
—Isso não é de sua incumbência.
O pranto contido lhe ardia na garganta. Nos olhos. O pânico comprimia seus pulmões. Mal pôde pronunciar umas palavras: —Por favor, pai, simplesmente me diga… está vivo?
Ele não respondeu imediatamente, mas sim a observou com seu frio e escrutinador olhar.
—Por agora sim. Tenho algumas pergunta para ele.
Anna fechou os olhos e exalou o ar com uma sensação de alívio assustadora.
—O que farão com ele?
Seu pai a observou com paciência. Era óbvio que não gostava daquele interrogatório.
—Isso depende dele.
—Por favor, tenho que o ver.
Anna tinha que assegurar-se de que Arthur se encontrava bem.
Seu pai pareceu ultrajado por tal petição.
—Para que lhe deixe partir de novo? Não acredito — disse apertando a mandíbula com raiva — Não serviria de nada. Esse homem é perigoso e não se pode confiar nele.
—Arthur jamais me faria mal — disse Anna sem pensar, para imediatamente conscientizar-se de que era a verdade. Ele a amava. Sabia que no fundo era certo. Não mudava nada do passado, mas talvez sim do futuro. O coração lhe encolheu. Se é que tinha um futuro — Por favor…
Seus rogos caíam em ouvidos surdos. Os olhos escuros de seu pai a olharam com uma dureza inquebrável.
—Arthur Campbell já não é teu assunto. Já tem feito suficiente dano. Como posso estar seguro de que não tentará procurar um modo de lhe ajudar? —Os protestos de Anna morreram em sua garganta. Para falar a verdade, tampouco ela podia estar segura. O medo que atendia seu coração ao pensar que Arthur estava encarcerado fazia que se inteirasse de que não era tão fácil evadir-se do que sentia por ele — Não esperava isto de ti, Anna. —A decepção de sua voz a rasgava até o mais profundo, e essa sensação se via agravada pela segurança de que merecia. Mas estava entre duas águas, apanhada entre dois homens que amava. Seu pai a despediu com um gesto anti-social da mão — Estará pronta para partir dentro de uma hora.
Ficou sem respiração.
—Partir? Mas pra onde?
—Seu irmão Ewen partirá como vanguarda do exército com um contingente amplo de homens para assegurar nossas defesas em Innis Chonnel. Irá com ele. Uma vez que tenhamos mandado ao rei Hood ao inferno, fará uma visita a meu primo o bispo do Argyll em Lismore. Ali terá tempo de pensar no que tem feito e em onde reside sua lealdade.
Anna assentiu com lágrimas cada vez mais abundantes. Estava claro que seu pai não confiava nela e não a queria no castelo enquanto ele permanecesse fora. Sabia que poderia ter sido pior, que o castigo de seu pai poderia ter sido muito mais severo. Mas não podia suportar a idéia de abandonar Arthur sem saber o que seria dele.
—Por favor… Farei o que me peça. Mas me prometa simplesmente que não o matarão quando eu esteja fora —disse, engasgando-se com seus soluços — O amo.
—Basta! Põe a prova minha paciência, Anna. Seus ternos desejos para esse homem lhe fazem esquecer seu dever. O único que te libera de um castigo muito pior é saber que talvez eu também tenha parte de culpa por te pedir que o vigiasse. Arthur Campbell é um espião. Sabia o risco que corria quando decidiu nos trair. Não terá nada menos do que mereça.
Arthur já não sentia nada. Fazia horas que tinha ultrapassado a soleira da dor. Tinham-lhe batido, fustigado e quebrado cada um de seus dedos com o aplastapulgares15. Mas sim percebia o sabor do sangue. Esse nauseabundo sabor metálico enchia seu nariz e boca como se estivesse afogando-se nele. Sua cabeça pendurava para frente e seu cabelo, molhado e empapado em suor e sangue, ocultava seu olhar daqueles que lhe rodeavam. Em algum momento da noite chegaram a ser mais de uma dezena os homens que tentavam fazer que se rendesse. Agora que os raios de sol atravessavam as seteras da masmorra, somente ficavam três deles.
Estava preso a uma cadeira, mas não era necessário imobilizá-lo. Já não supunha nenhuma ameaça. Tinham-lhe retorcido tanto o braço direito que tinha saído do ombro. Sua mão esquerda pendurava inerte junto a seu corpo, com cada um de seus ossos quebrados um a um com uma lentidão agonizante. E pensar que tinha rido a primeira vez que tinha visto aquele artefato… Aquela pequena braçadeira de metal parecia inofensiva, certamente nada que pudesse obrigá-lo a lhes contar o que queriam. Mas logo aprendeu como algo simples podia provocar um sofrimento terrível. Mais dor do que jamais tinha imaginado. Estivera a uma volta de lhes contar tudo que queriam saber. Teria dito o que fosse para que parassem.
—Maldito seja, Campbell. Diga simplesmente o que querem saber.
Arthur olhou a Alan MacDougall através do véu emaranhado de seu cabelo empapado. O irmão de Anna permanecia junto à porta como se não pudesse esperar mais para sair dali, com o rosto lívido e contraído. Quase parecia que fosse ele a quem torturavam. O herdeiro de Lorn não tinha estômago para isso. Mas seu ajudante sim. Arthur tinha a impressão de que aquele filho de cadela sádico poderia continuar com isso durante dias e dias. Apesar de não poder falar, emitiu uma espécie de grunhido e negou com a cabeça, sem forças. Não. Ainda não. Não lhes diria nada ainda. Entretanto, a palavra «nunca» já não aparecia entre seus pensamentos.
A cabeça foi para trás, impulsionada pelo novo golpe daquele filho de cadela, que lhe sacudiu com um punho envolto em correntes que, bem, parecia uma marreta.
—Os nomes —exigiu — Quem são os homens que lutam na guarda secreta?
Arthur já não se incomodava em fingir ignorância. Não acreditavam. Anna o tinha condenado sem se dar conta disso. Graças ao acontecido no Ayr, quando ele a resgatou, e também ao último ataque nos bosques, Lorn estava seguro de conhecer menos a um dos membros da infame guarda fantasma. Não podia culpá-la por isso. E pelo que parecia, tampouco podia culpá-la por delatá-lo. Em algum momento da noite entre os golpes e o látego, Arthur percebeu de que, dadas as perguntas que lhe dirigiam, o mais provável era que estava errado. Em caso de que ela o tivesse traído, não havia lhes dito muito.
Percebeu como o punho do filho de cadela voltava para ataque, como uma mancha negra nos limites de sua consciência. Preparou-se de maneira instintiva para o golpe embora soubesse que não serviria de ajuda, já que por seu tamanho e o poder de seus socos, diria que o ajudante provinha de uma longa dinastia de ferreiros. Entretanto, alguém bateu na porta e reclamou ao ajudante de Lorn, de modo que Arthur pôde recuperar um instante. Derrubou-se sobre a cadeira e procurou introduzir um sopro de ar em seus encharcados pulmões. Tinha uma costela quebrada como mínimo, embora achasse que fossem mais.
—Eles o matarão se não contar — disse Alan.
Arthur tomou seu tempo para responder, tentando fazer provisão das forças necessárias para falar.
—Matarão-me de qualquer forma — grunhiu.
Embora Alan não afastou o olhar, sua careta de agonia disse a Arthur que seu rosto devia refletir a dor que sentia.
—Sim, mas será muitíssimo menos doloroso.
E mais rápido.
Contudo, Arthur tinha fracassado já muitas vezes e estava decidido a salvar o que pudesse daquela maldita missão. Se fosse capaz de confrontar o momento final sem revelar os nomes de seus companheiros de irmandade, revestiria sua morte com certa aparência de honra.
Mesmo assim, dada a magnitude catastrófica de seus fracassos, não significaria mais que uma vitória vazia. Tinha perdido tudo. Anna. A oportunidade de destruir ao Lorn e render justiça a seu pai. E a oportunidade de avisar ao rei da ameaça. Bruce e seus homens iriam direto para a emboscada e ele não teria meios para lhes advertir.
Tinha falhado igual falhou a seu pai.
Que lhe batessem até convertê-lo em uma massa sanguinolenta, esfolassem-no até deixá-lo a borda da morte e lhe rompessem os dedos um a um servia para que seus pensamentos não escapassem das quatro paredes da prisão. Mas nos pequenos descansos temia as outras conseqüências que sua captura pudesse conduzir. Lorn amava a sua filha e não lhe faria mal; mesmo assim tinha que perguntar.
—Anna?
Alan o olhou com expressão grave.
—Não está mais aqui — Arthur sentiu o mundo desabar sobre ele. Ao ver a horrorizada expressão de seu rosto, Alan se apressou acrescentar — Está a salvo. Meu pai pensou que era melhor tirá-la do castelo até que…
Alan deteve suas palavras. «Até que esteja morto», disse-se.
O ar voltou a encher seus pulmões. Somente a tinham enviado a outro lugar. Mas então o recordou.
—Não… é seguro — conseguiu dizer. Em vésperas da batalha, Bruce teria linhas de ataque rodeando-os e estreitando o cerco. A severa expressão que se desenhou no rosto do Alan lhe dizia que não se mostrava em desacordo, mas, igual a Arthur, via-se impotente para detê-lo — Meus irmãos? —perguntou Arthur.
Pode ser que Dugald e Gillispie fossem seus inimigos no campo de batalha, mas não queria que eles tivessem que sofrer suas preferências.
—Meu pai não tem razão alguma para acreditar que estejam implicados. Fizeram-lhes um breve interrogatório e pareciam tão surpresos como o resto de nós. —deteve-se, com o olhar confuso — por que salvou minha vida? Não tinha por que fazer.
Arthur sacudiu o cabelo do rosto para lhe olhar nos olhos.
—Sim, tinha que fazer.
Alan assentiu, compreendendo tudo.
—Ama-a de verdade.
Não disse nada. O que teria podido dizer? Nada daquilo importava.
A porta se abriu e o ajudante de Lorn voltou a aparecer na saleta com uma corda na mão. A Arthur lhe acelerou o pulso como reação imediata ao perigo.
—Hora de partir —disse — Os homens estão preparados para partir.
Arthur se preparou para o pior, consciente de que tinha chegado seu final. Tinha ganho. Teriam que o matar. Uma pequena vitória nesse amargo mar de fracassos.
—Então terá que enforcá-lo? —disse Alan.
O ajudante sorriu, brindando Arthur com o primeiro sinal de emoção que percebia em seu feio e curtido rosto.
—Ainda não. A corda é para o fosso. —O alívio que embargou Arthur indicou que não estava tão preparado para morrer como acreditava. Depois do que acabava de passar, o úmido buraco de uma fossa de castigo lhe pareceria o paraíso — Talvez os ratos lhe afrouxem a língua — disse o ajudante com uma gargalhada.
Ou talvez um inferno em vida.
O ataque de terror que atravessou seu corpo serviu para lhe dar um jogo de forças primitivo. Lutou contra o metal de seus grilhões como um possuído. Sua pele arroxeada e em tiras sucumbia diante da sensação de ter ratos percorrendo-a.
Tinha que escapar dali.
Mas não podia. Encadeado e ferido, não era rival para os guardas que o arrastavam dos calabouços até a sala contígua. Ao final nem sequer se preocuparam com a corda, mas sim o jogaram dentro.
Escuridão.
Chiados.
Queda. Impacto.
Um duro e arrepiante golpe.
E depois, felizmente, escuridão. Só escuridão.
Capítulo 24
—Ewen, temo que preciso de um momento de privacidade —disse Anna, fingindo um rubor embaraçoso.
—Já? —Seu irmão a olhou como se ela tivesse cinco anos. Estavam no coração da floresta, perto de um túmulo funerário, a uns três quilômetros do castelo — Por que não fez antes de sair?
Anna o fulminou com o olhar para lhe comunicar que não fazia nenhuma graça que lhe falasse como se fosse sua mãe.
—Porque então não precisava fazer.
Ewen pôs cara feia.
—Pararemos quando chegarmos ao Oban. Está a menos de dois quilômetros.
—Não posso esperar tanto —repôs Anna negando com a cabeça — Por favor… — implorou com voz doída, removendo-se um pouco nos arreios para dar ênfase a sua urgência.
Seu irmão murmurou uma maldição e depois se voltou para dar o alto à vintena de homens que os escoltavam através dos perto de cinqüenta quilômetros que o separavam do Innis Chonnel, uma viagem que era muito mais rápido de navio mas que seu pai, depois de navegar do castelo com sua frota, tinha considerado muito perigosa.
—Te apresse — disse com impaciência — Um de meus homens te acompanha…
—Isso não será necessário — interrompeu Anna bruscamente. «Arruinaria tudo» — Eu… —continuou sem ter que fingir o abafado— Temo que esta manhã comi algo que me tem revolto estômago. Pode ser que tarde um pouco.
A seu irmão pareceu lhe envergonhar que compartilhasse detalhes muito pessoais de um assunto que jamais devia mencionar-se. Anna mesma estava horrorizada pela natureza e o alcance de seu embuste, mas necessitava todo o tempo que fosse possível para escapar. Tinha que voltar para castelo. Não havia explicação para isso, mas do mesmo momento em que tinha saído dos aposentos de sua mãe essa manhã, não tinha conseguira deixar de lado a uma insuportável premonição. Talvez estivesse motivada pelas palavras de seu pai, mas ela sabia que algo sairia mal, terrivelmente mal. E essa sensação não tinha feito mais que piorar à medida que o castelo se desvanecia atrás deles sob a luz do sol. Não sabia o que poderia fazer; simplesmente, mas tinha que fazer algo. Pode ser que não tivesse nenhuma possibilidade de estar juntos, mas tampouco desejava sua morte, e dado que seu pai tinha partido do castelo atrás deles, aquela era sua oportunidade.
Em conta da humilhação que supunha que vinte homens observassem como se afastava para fazer suas necessidades, Anna fez provisão de toda a dignidade com que contava, aceitou a ajuda que lhe oferecia o escudeiro de seu irmão para descer do cavalo, deu-lhe as rédeas e entrou em atitude régia para a densa folhagem de árvores e samambaias. Assim que esteve fora do olhar se arregaçou as saias e se pôs a correr. De ali não demoraria mais de dez minutos em chegar até o castelo. O que demoraria era convencer para que a deixassem entrar nos calabouços onde albergavam aos prisioneiros. Mas esperava conseguir antes que seu irmão Ewen se desse conta de que tinha desaparecido. Não demoraria muito em figurar-se aonde teria ido. E ao contrário dela, ele iria a cavalo.
Correu através das árvores em paralelo à estrada para que não a vissem, procurando fazer o mínimo ruído possível. Mas as folhas secas e os ramos caídos faziam com que o silêncio fosse impossível. Ouviu um ruído atrás dela e quis gritar de raiva. Como tinham descoberto tão logo sua fuga? Escondeu-se depois de um penhasco em uma tentativa em ocultar-se, mas se encontrou com que alguém pegava seu pulso por trás.
—Me solte — disse, e tentou libertar-se.
Como esperava topar-se com seu irmão ou com algum de seus homens, ao dar meia volta e ver um guerreiro de olhar feroz com elmo e nasal ficou lívida. Deixou escapar um grito de alarme, amortecido pela mão do homem.
—Silêncio, moça! Não quero te fazer dano.
Seu temível rosto não inspirava muito confiança. Tinha a compleição de uma montanha e uns traços toscos e rústicos que se adequavam perfeitamente a seu tamanho. Anna se obrigou a ficar quieta, fazendo ver que acreditava o que lhe dizia, mas depois, assim que ele se relaxou, golpeou-lhe tão forte como pôde com o salto da bota e lhe fincou o cotovelo no mais profundo de seu peitilho de couro, estremecendo-se ao golpear as partes de metal.
O homem deixou escapar uma exclamação de surpresa, mas não afrouxou seu abraço o suficiente para que Anna pudesse libertar-se. Voltou a olhar com frustração e ficou imóvel, dessa vez de verdade. Havia algo familiar nele. Não, nele não. Em seu traje. Anna ficou sem respiração. O elmo escurecido, o cotun de couro negro tachonado com metal, o estranho corte da manta… Se tratava da mesma indumentária característica que levavam seu tio e os guerreiros da floresta do Ayr. Aquele homem formava parte da Guarda secreta de Bruce. Um fato que Anna viu confirmado só um momento depois.
—Duvido que se fosse minha sobrinha acreditaria, Santo.
Anna ficou atônita de surpresa ao ver que Lachlan MacRuairi saía de entre as árvores com outro guerreiro.
—Santo, Templário — disse, assinalando em sua direção — Permitam que vos presente a lady Anna MacDougall. —Fez um gesto com a mão ao homem que a agarrava — Pode soltá-la. Não gritará, a menos que queira ver mortos seu irmão e ao resto de seus homens.
Anna se esfregou a boca mal esteve livre, tentando recuperar as sensações. Olhou a seu redor.
—Só são três.
Seu comentário pareceu divertir sinceramente aos homens.
—Dois a mais dos que precisamos — disse o terceiro deles.
Era só um pouco mais baixo que os outros dois. Anna começava a pensar que ser um gigante recoberto de músculos era condição indispensável para ser membro do exército secreto de Bruce. Sob a sombra de seu elmo com nasal, o homem fazia ornamento de um sorriso tão afável como simpático. Templário, tinha o chamado seu tio. Um nome do mais estranho. Era muito jovem para ter lutado contra os infiéis. Fazia trinta e cinco anos da última cruzada. E ao homem que a agarrava MacRuairi o tinha chamado Santo. Anna percebeu de que tinham que ser apelidos, nomes de guerra.
«Guardião!» Assim tinha chamado o guerreiro arrumado a Arthur na floresta. Seria esse seu nome de guerra?
—O que fazes aqui, tio?
Parecia estranho chamar «Tio» a alguém que não era mais que dez anos mais velho que ela. Não parecia muito maior que Arthur, embora devesse ter trinta e três ou trinta e quatro anos.
—Talvez devessea lhes perguntar eu o mesmo. Por que fugistes de seu irmão e de seus homens?
Não lhe surpreendia que MacRuari não respondesse a sua pergunta. Ou estava reconhecendo o terreno ou vigiando o castelo. Como estavam perto da costa, Anna supôs que teria chegado de navio. Lachlan MacRuairi era um pirata dos pés à cabeça.
—Assim oferecem cobertura ao ataque de Bruce contra meu pai além mar — disse ela, tentando adivinhar seu propósito.
Seu tio encolheu os ombros evasivamente.
—Agora me diga, lady Anna, por que vos encontro correndo através da floresta?
—Preciso retornar ao castelo.
—Por que?
Mordeu o lábio enquanto pensava no que devia lhes contar. Mas sabia que não tinha muito tempo. Já a tinham entretido muito. Custaria muito pedir a Deus ajuda retornar ao castelo antes que seu irmão Ewen a alcançasse. Talvez quisessem levá-la?
—Têm cavalos perto? —perguntou.
MacRuairi franziu o cenho.
—Sim.
Anna respirou aliviada.
—Bem. Pode ser que precise sua ajuda para retornar ao castelo. Preciso me assegurar de que Arthur está bem. —Nenhum deles reagiu, e Anna supôs que assim devia ser. Não sabiam que ela estava a par da verdade — Acredito que o chama de Guardião.
MacRuari amaldiçoou.
—Ele lhe disse isso?
Anna negou com a cabeça.
—É uma longa história. Descobri a verdade por mim mesma. Infelizmente, não fui a única. Meu pai também sabe.
MacRuari voltou a amaldiçoar, dessa vez fazendo uso de um impropério que inclusive o próprio pai de Anna rara vez usava.
—Então… está morto.
—Não — repôs ela, desconcertada por sua veemência — Encarcerado. Meu pai o está interrogando.
MacRuairi cuspiu e um olhar de puro ódio atravessou seus escuros traços.
—Em tal caso desejará estar morto. —A que se referia? Perguntou-se Anna. Seu tio, vendo a confusão em seus olhos, o explicou—: Estive do outro lado dos interrogatórios de seu pai.
Tem uns métodos bastante persuasivos e imaginativos na hora de extrair informação. Se Guardião não estiver morto já, logo o estará.
O estômago lhe decompôs para ouvir suas palavras.
—Meu pai jamais…
Não foi a expressão sombria do rosto do MacRuairi o que a deteve, a não ser a lembrança da conversa parcial que tinha ouvido antes de entrar na câmara de seu pai. «Consiga o que quero. Custe o que custar.»
«Oh, Deus.» Anna se sentiu desfalecer. Seu pai o estava torturando. Sabia que esse tipo de coisas ocorria, claro, mas aquilo supunha uma parte feia da guerra em que não queria pensar. E tampouco gostava de pensar que seu pai pudesse estar comprometido em tamanha crueldade.
—Temos que o ajudar — quase gritou, com lágrimas nos olhos.
O coração lhe deu um tombo em ouvir um grito a pouca distância deles.
—Anna!
—Estão-me chamando. Temos que partir já.
MacRuairi negou com a cabeça.
—Não há nenhuma necessidade de que venhas. Nos encarregaremos de tudo.
—Mas…
MacRuairi cortou seus protestos em seco.
—Se vierem conosco, seguirão-nos. Custará-nos menos trabalho lhe ajudar se não suspeitarem nada. Voltem com seu irmão e continuem a viagem.
—Mas pode ser que necessitem minha ajuda. —Anna desejava ver Arthur por si mesma — Como chegarão ao castelo? Como o encontrarão?
O rosto do MacRuairi adotou uma expressão severa.
—Sei onde está. —Pelo modo em que o disse, Anna soube que ele mesmo estivera ali; sentiu um calafrio. Mas o que lhe gelou o sangue foi a angústia que viu refletida em seus olhos. Deus, o que teria feito seu pai? E o que estaria fazendo Arthur? — Já têm feito suficiente —disse — Se Guardião está vivo, ele mesmo lhe agradecerá.
«Se estiver vivo.» Anna reprimiu suas lágrimas e assentiu, consciente de que tinham razão. O melhor modo de ajudar Arthur era que fossem sozinhos para buscá-lo. Mas isso não fazia mais fácil vê-los desaparecer entre as árvores. Queria ir com eles. «Está vivo», dizia a si mesma. Tinha que estar. Se não fosse assim saberia, porque uma parte dela também teria morrido.
Assim que estiveram fora de seu olhar, Anna começou a correr na direção oposta a que tinha tomado para chegar ali. Ao chegar a um pequeno córrego respondeu às chamadas de seu irmão. Teria que dar algumas explicações, mas, tendo em conta a natureza do assunto, não acreditava que Ewen se visse inclinado a lhe formular muitas perguntas. Tudo que Anna podia fazer era rezar para que se produzisse um milagre. Pois isso era o que necessitariam para resgatar Arthur do virtualmente impenetrável castelo de Dunstaffnage antes que fosse muito tarde.
Arthur os deixava aproximar-se. Afinava seus sentidos para captar qualquer sinal de correria ou chiado e permitia que os ratos se aproximassem o suficiente para os agarrar. Assim podia lhes romper o pescoço com uma mão contra sua própria perna, algo que, dado que somente tinha uma mão operativa, parecia de tudo fortuito. O mal era que essa mão estava unida a um braço deslocado, com o que cada movimento lhe produzia uma dor atroz. Tentou recolocar o ombro por si mesmo, mas não tinha a força nem o apoio necessários.
Acabar devorado por ratos famintos não era exatamente o modo em que esperava morrer, mas não sabia por quanto tempo poderia os manter a raia. Cada vez que desmaiava, suas persistentes dentadas despertavam. Tinha perdido muito sangue e a cada hora que passava estava mais débil e pior respondiam seus sentidos. Logo não seria capaz de voltar a despertar.
Teria matado já umas cinqüentas daquelas asquerosas criaturas segundo seus cálculos, mas havia centenas delas ali abaixo. Estremeceu-se. Quando iluminaram o vão com a tocha para jogá-lo lá dentro, o fundo do fosso se via repleto delas. Uma vez fechado, aquele buraco tinha ficado na mais absoluta escuridão. Dependia de seus sentidos, e estes o abandonavam lentamente. Seus olhos começaram a fechar-se. Estava tão cansado que somente queria relaxar-se durante um…
«Ah!», gritou de dor, despertando à realidade graças a uns dentes afiados como facas que se cravavam em seu tornozelo. Esperneou e o rato voou pelos ares.
Supunha que teria que agradecer ao Dugald o que fosse capaz de agüentar tanto tempo ali. Aquelas horas passadas na escura despensa lhe tinham servido de lição. Sabia que tinha que estar alerta e como antecipar os movimentos dos ratos. Mas as reações de Arthur eram cada vez mais lentas. Cada vez escapava um número maior delas e um número maior lhe mordia a mão. Sabia que não poderia durar muito assim. Não viriam a por ele até que não acabasse a batalha, e como tinha perdido a conta do tempo fazia já horas, não sabia quando seria isso.
«Maldição.» Não era só o horror do movimento dos ratos o que estava deixando-o louco, a não ser saber que seus amigos estavam ali fosse dirigindo-se para uma armadilha mortal e que não podia fazer nada para ajudar. Tinha fracassado. «Fracassado.» Fechou os olhos em uma tentativa de que a amarga verdade se desvanecesse. A languidez se abatia sobre ele. Cada vez lhe parecia mais difícil resistir e não deixar-se levar para essa bendita escuridão da inconsciência. Estava tão cansado…
Seus olhos não voltaram a abrir-se. Nada poderia despertá-lo. Nem os ratos, nem a explosão de mil demônios que faria que os guardas corressem até as portas do castelo minutos depois.
Alguém o sacudia.
—Guardião! Guardião! Maldita seja, desperte! Não temos muito tempo.
Quem era Guardião?
Abriu os olhos só para fechá-los imediatamente ao sentir que a luz da tocha lhe atravessava o crânio como se fosse uma adaga.
Guardião era ele.
Mas como…?
Voltou a abrir os olhos. Essa vez lentamente, permitindo que se adaptassem à luz.
MacRuairi.
Advertiu o alívio que se refletia no rosto do outro.
—Não estava seguro de que seguissem com vida.
A mente de Arthur estava embotada e pensada com lentidão.
—Eu tampouco estava.
MacRuairi se estremeceu, e Arthur percebeu que não tinha bom aspecto, inclusive diante da tênue luz da tocha. Tinha o rosto macilento e seus olhos foram parar de um lado a outro com inquietação. Quase se diria que tinha um ataque de pânico.
—Saiamos daqui quanto antes. Podes caminhar?
Arthur assentiu e tentou incorporar-se por si só. Tomava cuidado de não olhar para baixo. A tocha mantinha aos ratos longe no momento.
—Acredito que sim.
—Melhor. Não tinha muita vontade de tentar te tirar daqui.
MacRuairi lhe estendeu a mão, mas Arthur a rechaçou e as arrumou para ficar em pé por seus próprios meios.
—Está sozinho? —perguntou.
MacRuairi o olhou de cima abaixo, e em seguida fez uma idéia de qual era seu estado. Franziu o cenho ao conscientizar-se por que rechaçava sua ajuda.
—Não. Santo e Templário estão comigo. Falcão queria vir, mas alguém tinha que ficar com a frota. Não ouviu a explosão?
Arthur negou com a cabeça.
—É assim como conseguistes entrar?
MacRuairi lhe ajudou a assegurar a corda ao redor da cintura e entre as pernas. Umas pernas que, embora tremiam como se fossem as de um potro recém-nascido, conseguiram lhe manter em pé.
—Não, mas não está mal como manobra de distração.
MacRuairi se agarrou a uma segunda corda e subiu rapidamente. Depois içou o corpo de Arthur com a outra, o qual não parecia fácil, já que tinha um peso morto ao outro extremo. Mas MacRuairi, além de ser tão daninho como uma serpente, era além disso tão forte como um maldito boi.
A sensação de alívio que assaltou Arthur ao estar fora daquele buraco infernal era virtualmente assustadora. Tinha vontade de chorar como um menino. MacRuairi se desprendeu da manta que levava e a deu. Arthur tinha esquecido que estava nu. Aceitou-a com gratidão, ajustando-a ao redor da cintura e dos ombros o melhor que podia com sua mão maltratada.
—O cheiro de merda de rato acabará desaparecendo.
Arthur surpreendeu-se ao ver um traço de compaixão no olhar do outro. De repente percebeu a razão pela que MacRuairi parecia estar tão perto do ataque de pânico ali abaixo. Conhecia bem. Certamente, devia ter passado por algo similar.
—E o resto? —perguntou Arthur.
MacRuairi voltou o rosto violentamente, como se lhe incomodasse reconhecer essa greta em sua couraça de gelo.
—O resto demora mais a desaparecer.
«Ou não desaparece nunca.» Arthur ouviu essas palavras não pronunciadas.
—Como me encontrastes?
—A moça nos disse que o tinham feito prisioneiro. O resto… imaginei.
«A moça…»
—Anna? —perguntou Arthur com uma voz aguda por sua incredulidade.
—Sim. Tivemos sorte de vê-la.
MacRuairi lhe explicou que estavam reconhecendo o terreno e comprovando que não houvesse suas mensagens no túmulo funerário quando ouviram aproximar-se de um grupo de cavaleiros. Ao reconhecer a Anna a seguiram e notaram como tentava lhes dar escapar de seu irmão e seus homens.
Arthur estava surpreso.
—Tentou escapar?
—Ao que parecia, queria assegurar-se de que estavam bem.
Arthur murmurou uma maldição. Graças a Deus, não fora ela quem o encontrou. Não queria que se inteirasse jamais do que lhe tinha feito seu pai. Era um banho de realidade muito forte. Melhor que pudesse acolher-se a alguma ilusão. Mas saber que importava o suficiente para ir a seu encontro significava muito para ele. Mais que muito. Devia-lhe a vida. E também lhe dava esperanças.
—Oh, não! —murmurou MacRuairi com desgosto — Têm exatamente o mesmo olhar de parvo do MacSorley. Não temos tempo para isto. Contarei o resto mais tarde.
MacRuairi lhe rodeou a cintura com um braço, com cuidado de evitar seu ombro machucado, e lhe ajudou a caminhar até a porta. Chamou duas vezes sem deixar espaço entre um e outro golpeio, e depois fez uma pausa e repetiu a chamada. A porta se abriu.
—Por todos os demônios, Víbora. Estava a ponto de sair para lhes buscar. —Magnus MacKay, o Santo, jogou uma olhar a Arthur e estremeceu — Está bem, Guardião?
Arthur procurou sorrir, mas fraquejou diante da intensidade da dor.
—Não estou em meu melhor momento, mas me alegro muito de os ver. Como puderam…?
Uma explosão estrondosa clamou atravessando a brisa da noite e deixou sua pergunta no ar. «A brisa da noite.» Deus santo: o ataque!
—Que horas são?
—Pouco depois da meia-noite — disse MacKay.
—Tenho informação para o rei.
—Mais tarde —disse MacRuairi — Não temos tempo. Essa era nossa manobra de distração. Se queremos sair daqui teremos que nos apressar.
MacKay e MacRuairi flanquearam Arthur e o levaram do hall ao interior do calabouço. Um rápido olhar ao chão lhe informou do destino que tinham seguido os guardas. Infelizmente nenhum dos corpos pertencia a seu torturante. O ajudante tinha partido com o Lorn. Uma razão mais pela que desejava com todas suas forças que chegassem ali a tempo. Outra conta que devia saldar.
Saíram à torre que albergava o calabouço dos refugiados na escuridão. Embora o pátio estivesse deserto, ouvia-se a comoção que chegava das portas do castelo. Entretanto, em lugar de dirigir-se para ali, começaram a subir pelo adarve, com o que Arthur soube qual era o plano do MacRuairi. Tinham assegurado três cordas à mureta do baluarte que ficava em frente às portas na parte mais afastada, olhando ao lago. Em geral havia um guarda vigiando o perímetro, mas a explosão tinha feito que se desviasse para a porta.
Arthur olhou para baixo na escuridão e fez uma careta de desgosto.
—Antes teremos que lhe arrumar o ombro — disse MacRuairi. Deu a volta, agarrou-o pela base do ombro e lhe ofereceu sua adaga — Preparado?
Arthur pôs o punho de madeira entre os dentes e assentiu. A dor foi extrema, mas rápido. Depois de um momento, já era capaz de girar o braço livremente sobre seu ombro.
—Fez isto antes? —perguntou Arthur.
—Não —disse MacRuairi com um estranho sorriso no rosto — Mas o vi fazer. Suponho que têm sorte de que aprenda rápido.
Uma vez que teve o braço em seu lugar, Arthur pôde deslizar-se corda abaixo com a ajuda dos outros. Quando estiveram todos em terra, MacRuairi os conduziu para uma parte escura do muro exterior. Ao olhar ao chão, Arthur percebeu de que faltavam algumas das pedras e viu que havia um buraco debaixo elas. Entraram virtualmente arrastados.
—Esta é a parte mais antiga do muro —explicou MacRuairi — As rochas quase se pode esmiuçar.
Esse comentário indicou a Arthur que certamente não era a primeira vez que avançava por esse buraco.
Do outro lado os esperava Gordon.
—Por que demorastes…? —disse detendo-se o ver o estado de Arthur — Diabos, Guardião, parecem um asco.
—Isso dizem — respondeu Arthur secamente.
Tomaram seu tempo em reparar o muro, no caso de algum dia voltarem a necessitá-lo, e pouco depois já corriam seguindo a costa. A pouco menos de um quilômetro encontraram a pequena embarcação que MacSorley tinha escondido na cova.
—Têm que me levar ante o rei. O quanto antes possível —disse Arthur. Sobre o horizonte oriental se viam já os primeiros raios do amanhecer suavizando o céu noturno. Teriam que ir a cavalo, já que a rota marinha para o Brander estaria cercada pela frota de Lorn — Espero que cheguemos a tempo.
—O que é que acontece? —disse MacKay advertindo a urgência do caso — O que averiguastes?
Enquanto navegavam para o oeste e penetravam entre a frota de navios, lá onde o lago Etive se encontrava com o mar aberto, no fiorde de Lorn, Arthur explicou com presteza o plano traiçoeiro do pai de Anna, tanto os detalhes da emboscada como sua decisão de atacar antes do fim da trégua.
Gordon soltou uma imprecação.
—Esse filho de puta traiçoeiro…
Os sentimentos do MacKay eram idênticos, mas os expressou em termos muito mais precisos, para depois acrescentar: —O rei será surpreendido.
—Sim —disse Arthur — Lorn escolheu o lugar muito bem.
Arthur lhes falou do estreito caminho e os escarpados de Ben Cruachan.
—Conheço o lugar —disse MacRuairi — Aos exploradores custará muito encontrá-los.
—E por isso temos que os advertir.
MacRuairi negou com a cabeça de modo sombrio.
—Sairão na primeira hora do amanhecer. Inclusive no caso de que chegássemos antes que alcancem a parte mais estreita do caminho, não seria fácil que um contingente de três mil homens dê meia volta. Toda essa zona é perigosa.
—Não é necessário que dêem meia volta —disse Arthur — Tenho um plano. —Seus três companheiros da Guarda mudaram um olhar — O que? —perguntou.
Foi Gordon quem expressou o que todos estavam pensando.
—Não está em condições de lutar. Nós faremos chegar a mensagem ao rei.
Arthur chiou os dentes.
—Eu vou.
Nada evitaria que lutasse. Se tinha alguma possibilidade no mundo de enfrentar-se ao Lorn no campo de batalha, faria uso dela.
—Só conseguirá dar lentidão a nossa marcha —disse MacRuairi sem rodeios — Não têm forças nem para sentar numa mula, como ides cavalgar em nosso passo? E como diabos acha que poderá agarrar as rédeas com essa mão?
Arthur lhe dirigiu um olhar carregado de veneno.
—Deixem que eu seja quem me preocupe disso.
MacRuairi ficou olhando-o nos olhos e depois de uns segundos assentiu.
—Será melhor que encontremos algo com o que lutar.
Chegaram a tempo e Arthur não caiu do cavalo, embora para sua vergonha esteve muito perto de fazer. Como os homens do MacDougall já estavam posicionados tiveram que rodeá-los pelo sul. Cruzaram com o rei a pouco mais de um quilômetro do lugar. Este não era dado a mostrar seu aborrecimento, mas Quando Arthur lhe informou dos planos de Lorn o fez. Perjurou e chamou Lorn por todos os nomes vis que cabiam sob o sol.
—Pelos pregos de Cristo, como é possível que não soubéssemos? —perguntou sem dirigir-se a ninguém em particular, apesar de que todos os guerreiros sentiram sua parte de culpa pelo que teria significado um desastre. E também o rei, pois sabia melhor que ninguém que não tinha que confiar no código de cavalaria.
—Escondam-se entre as rochas de uma ladeira escarpada —disse Arthur — Não é fácil vê-los se não está procurando.
Pelo olhar que MacLeod dedicava aos rastreadores, Arthur temia, por mais que pudesse compreendê-lo, que pagariam muito caro.
—Dizia que tinham um plano? —perguntou o rei.
—Sim. —Arthur se ajoelhou e desenhou um mapa no chão com um pau — Podemos vencer ao Lorn em seu próprio terreno. Tem a várias centenas de homens nesta posição — disse, marcando um ponto a meio caminho da ladeira — O resto do exército atacará na boca do estreito quando partirem em retirada e os agarrarão entre duas frentes: acima e abaixo. —Arthur assinalou um lugar um pouco mais acima de onde estavam os homens de Lorn — Se enviarem um contingente por cima, seus homens se verão apanhados. Quando a emboscada não der resultados, Lorn se desesperará.
Bruce ficou circunspeto.
—Está seguro de que podemos conseguir que nossos homens cheguem ali em cima? Como descreve, é um terreno escarpado e traiçoeiro. Se nos descobrirem antes de chegar à posição, não servirá de nada.
—Meus highlanders podem fazer —disse Neil Campbell — Conhecem estas terras.
—Está seguro? —perguntou Bruce.
—Sim —disse Neil — Lutam como leões, mas se movem como gatos.
—Eu os levarei —disse Arthur — Conheço bem o terreno.
Neil seguia sendo um dos guerreiros mais formidáveis do reino, mas tinha cinqüenta anos e não estava tão em forma como antes. Bruce pousou o olhar sobre ele, e Arthur se deu conta de sua incerteza. Apesar de que limpara o sangue e a sujeira antes de por a indumentária de guerreiro que lhe tinham emprestado, de que enfaixou a mão e o pulso, de que tivesse comido e bebido suficiente uisgebeatha para devolver a cor a seu rosto, sabia que ainda parecia que uma besta raivosa do inferno o tivesse tragado, tivesse o amassado com seus dentes e o tivesse cuspido depois. Antes que o rei pudesse negar-se, acrescentou: —Posso fazer, senhor. Não me encontro tão mal como parece delatar meu aspecto.
Era uma mentira, mas não muito grande. Saber que estava perto da hora da verdade com o Lorn lhe dava novas forças.
—Ganhaste esse direito, sir Arthur —disse o rei — Sem sua informação, isto poderia ter sido um desastre.
Arthur sabia que a lembrança de Dal Righ fazia dois anos, quando se viu empurrado pelo Lorn a fugir para salvar a vida, seguia muito fresco na memória do rei. Bruce chamou a seu lado a um de seus cavalheiros mais jovens e de um dos mais dignos de confiança que tinha: sir James Douglas. O único que o fazia sombra, o sobrinho do rei e outrora renegado, sir Thomas Randolph, estava com o MacSorley no oeste, preparando o ataque pelo mar em caso de que fosse necessário.
—Douglas, quero que vá com ele —disse o rei. Ato seguido fez gestos a outro dos guerreiros. Gregor MacGregor, o companheiro original de Arthur nos Guardiões dos Highlands, avançou entre outros — Estarão à frente dos arqueiros —disse. E depois se dirigiu a Arthur—: Tome tantos homens como necessita.
—Será melhor que ponham algalguns MacGregor no lote, Guardião — disse Flecha assim que o rei se voltou para se consultar com o Neil e MacLeod — Não podemos permitir que os Campbell levem toda a glória.
Arthur conseguiu esboçar um sorriso. Deus, era fantástico estar de volta. Era fantástico poder brincar a respeito das velhas rixas de sangue entre os MacGregor e os Campbell que em outro momento tinham feito deles inimigos acérrimos.
—Assim são os MacGregor, sempre dispostos a tirar benefício do duro trabalho dos Campbell.
—Necessito algo com o que impressionar às moças —disse MacGregor.
Campbell soltou uma gargalhada. MacGregor não necessitava nada para impressionar às moças. Isso já fazia seu rosto por ele, e não poucas vezes se colocaram com ele por causa disso.
—Se necessitais ajuda para melhorar seu rosto bonito, posso te mandar ao tipo que me fez isto —disse, assinalando seu próprio rosto.
MacGregor fez uma careta de dor.
—O tipo se empregou a fundo. Isso tenho que reconhecer.
—Assegurarei-me de que chegue seu castigo quando o agarrar — disse Arthur secamente.
Ambos sabiam que aquela não seria uma conversa muito longa.
Neil tinha acabado de falar com o rei, e quando viu que Arthur se dispunha a preparar aos homens, levou-o à parte.
—Está seguro de que te encontra bem, irmão? Qualquer um entenderia que não tenha vontade de seguir. Já tem feito suficiente.
«Eu entenderia», era o que queria dizer. Arthur percebia isso no olhar de seu irmão Neil. Mas ambos sabiam que esse não seria o final.
—Estarei bem —lhe assegurou— quando tudo isto tiver acabado.
Capítulo 25
O plano de Arthur funcionou. Junto a Douglas, MacGregor e uma pequena leva dos homens de seu irmão, dirigiu o grupo de guerreiros para um lugar elevado nas montanhas do Ben Cruachan, por cima de onde estavam escondidos os homens do clã de Lorn. Os guerreiros do MacDougall desdobraram uma chuva de flechas e penhascos sobre os «despreparados» soldados assim que o exército de Bruce passou pelo desfiladeiro que havia debaixo deles. Mas o ataque «surpresa» dos MacDougall recebeu outro ataque surpresa como resposta. Os guerreiros de MacDougall ergueram o olhar, horrorizados, e descobriram que Arthur e seus homens deixavam cair outra chuva de flechas de sua própria colheita e saltavam sobre eles como se fossem uma aparição. Ao perder o elemento surpresa e a posição estratégica nas alturas, a emboscada dos MacDougall se transformou em uma disparada. Apanhados entre duas frentes, abaixo e acima, seus homens foram massacrados. Quando Lorn lançou seu ataque frontal na boca do desfiladeiro, em lugar de enfrentar a um exército no que reinava o caos se encontrou com as poderosas hostes de Bruce fortemente armadas.
Arthur correu para descer a montanha e unir-se à luta, atravessando o barulho de soldados em luta com um só objetivo em mente: encontrar ao Lorn. Conseguiu distinguir a Alan MacDougall ao outro lado da ladeira, concentrando seus homens com a valente intenção de liberar uma nova carga. Mas a valentia não seria suficiente. Esperava pelo bem de Anna que se desse conta disso antes que fosse muito tarde.
O estreito funil do desfiladeiro rebateu em parte a vantagem numérica de Bruce, mas o ataque de Lorn não demorou muito em ver-se frustrado. Arthur alcançou a primeira linha de frente justo quando a vanguarda dos MacDougall começava a romper-se. O rei Robert, à cabeça de seu exército, lutando junto a seus cavalheiros de confiança e os membros dos Guardiões das Highlands, ordenava perseguir os fugitivos do clã inimigo. Em sua frenética tentativa de retirar-se ao castelo de Dunstaffnage, muitos dos MacDougall fossem derrubados ou se afogaram ao tentar cruzar a ponte sobre o rio Awe.
Tinham ganhado! A tentativa dos MacDougall de superar ao Bruce fracassava e o rei obtinha sua revanche pela batalha de Dal Righ. Acabavam de romper o cerco do clã mais poderoso das Highlanders. A vitória era doce, mas não seria completa até que Arthur encontrasse ao Lorn.
No caos da retirada, examinou o contingente de fugitivos em busca de seu inimigo. Aliviou-o comprovar que Alan MacDougall liderava a um grupo de seus homens para terreno seguro. Ao ver MacRuairi junto à ponte, Arthur desceu para encontrar-se com ele.
—Onde está?
Não tinha que dizer de quem falava. MacRuairi cuspiu ao chão e assinalou em direção sul à entrada do lago Awe.
—Nunca saiu de seu birlinn. Esse maldito covarde dirigiu a batalha da água. Assim que seus homens se retiraram, fugiu em direção ao lago.
Arthur amaldiçoou sua sorte, negando-se a acreditar que, depois de ter chegado tão longe, lhe seria vedada a possibilidade de justiça no último momento.
—Quanto tempo faz disso?
—Não mais de cinco minutos.
Em tal caso, ainda tinha uma oportunidade. Mas necessitaria os dotes de marinheiro do MacRuairi se queria o apanhar. Lorn possuía três castelos no lago Awe, mas Innis Chonnel, o antigo forte dos Campbell , era o mais novo e melhor fortificado. Ali seria onde iria.
Arthur olhou ao MacRuairi com parcimônia.
—Gostaria de uma regata?
MacRuairi, conhecido por ser um dos mais temidos e ousados piratas sobre o mar, sorriu. Ao menos pareceu que esboçava um sorriso.
—Eu reunirei aos homens. Encarregue-se do navio.
Arthur estava já correndo para a ribeira do rio para chegar ao porto. Era uma corrida que não tinha nenhuma intenção de perder. Nessa ocasião, John de Lorn não escaparia a seu destino fatal.
****
Anna não podia fazer mais que esperar. Mas não saber o que acontecia depois dos grossos muros do castelo do Innis Chonnel era uma autêntica tortura. O coração se encolheu. Não, tortura não. O seu não era nada comparado ao que Arthur estava sofrendo. Nem sequer podia suportar pensar nisso, embora não parecia ser capaz de outra coisa mais que de imaginar o que estava acontecendo, sem saber se estaria vivo ou morto. Era coisa de loucos! Como conseguiria seu tio entrar no castelo, por não falar de o resgatar? «Teria que ter ido com eles.» Assim ao menos saberia o que tinha passado. Mas seu tio estava certo. Não teria conseguido mais que levar a seu irmão de volta ao castelo.
As horas passavam com lentidão. Quando não estava ajoelhada, rezando na pequena capela, Anna procurava manter-se ocupada. Chamaram à batalha à maioria dos soldados, de modo que somente ficava uma pequena reserva de guardas no castelo para defendê-lo. Na noite anterior, já sem mais falsas visitas ao córrego, assim que o grupo chegou ao castelo, Anna organizou aos homens para que preparassem as câmaras, refrescassem o grande salão e fizessem inventário das provisões com que contavam.
O castelo de Innis Chonnel fora construído mais ou menos na mesma época que Dunstaffnage. Apesar de não ser tão grandioso, era uma edificação similar. A fortaleza quadrada fora construída sobre uma base de penhascos no confinante sudoeste da ilha. Seus altos muros de pedra rodeavam um pequeno pátio. Nos cantos tinham levantado duas torres, a maior das quais servia como torre da comemoração, enquanto a segunda se utilizava como calabouço. Entre ambas estava o grande salão. Sobre os muros se edificaram outras dependências de madeira menores que acolhiam os barracões, os arsenais, os estábulos e as cozinhas.
Parecia estranho pensar que aquele tivesse sido o lar de Arthur em sua infância. Anna sempre desfrutava de suas estadias no castelo junto a seu pai, mas nesse momento se sentia estranha. Como se não devesse estar ali. Como se fosse uma intrusa. Sabia que aquilo era ridículo. Os castelos mudavam de mãos com freqüência durante a guerra. Mas depois do que Arthur lhe tinha contado… Anna estava dividida. Dividida entre o pai ao que ainda amava, embora sem dúvida idealizava, e um homem a quem deveria odiar, apesar de não poder fazer. Não queria compreender por que Arthur fizera aquilo, mas o compreendia. Podia entender a lealdade que regia seus atos porque era quão mesma regia os dela. A lealdade ao rei e à pátria. A lealdade ao clã e à família. Sim, isso entendia especialmente.
Arthur era um highlander. Sangue por sangue, assim era como funcionavam as coisas nas Highlands. De modo que vingar seu pai se convertia em seu dever. Mas ela sabia que não se tratava só de vingança. Uma parte dele seguia sendo aquele menino que tinha visto morrer seu pai e seguia pensando que teria que ter evitado. Justiça. Vingança. Mas também significava expiação. Não obstante, compreendê-lo não oferecia a Anna resposta alguma. O que se podia fazer quando amar a um significava perder ao outro?
Depois de uma noite sem descanso, passou o dia seguinte a sua chegada de modo muito similar ao primeiro deles: rezando e procurando manter-se ocupada todo o tempo para não pensar no que acontecia depois dos grossos muros do castelo. Se por acaso seus temores pelo destino de Arthur não bastassem, também tinha a batalha. Quem sabia se nesse momento não teria deixado já de existir o mundo no que ela tinha vivido sempre. Os homens aos que amava podiam jazer mortos ou feridos, e mesmo assim, nos protegidos limites do Innis Chonnel, sobre a incomunicável ilha do lago Awe, tudo tinha uma aparência normal. A brilhante luz do sol seguia brilhando sobre as mansamente onduladas águas do lago, os pássaros seguiam voando e o vento úmido ainda pulverizava seus cabelos quando passeava pelo pátio.
Distinguiu a figura do Ewen, que saía da torre da comemoração.
—Alguma notícia? —perguntou, apesar de saber a resposta de antemão, já que em caso de que se aproximasse alguém ouviria a chamada.
—Não, ainda nada — respondeu seu irmão negando com a cabeça.
Sabia que a espera também era dura para Ewen, embora por diferentes motivos. Ele queria lutar. Não obstante, se culpava a ela seu confinamento em Innis Chonnel, nunca deixou ver.
Anna mordeu o lábio inferior.
—Oxalá soubesse como vão as coisas.
—Oxalá —disse seu irmão com um sorriso — Mas assim que haja algo do que informar…
—Aproximam-se navios, senhor! —gritou um dos guardas da torre vigia.
Anna seguiu a seu irmão em sua fulgurante descida da escada para as almenas. Somente podia distinguir as três velas quadradas que se aproximavam deles do norte a toda velocidade.
—É o pai — disse Ewen com uma voz desencorajada.
Um pressentimento fez que Anna se estremecesse de cima abaixo.
—O que acontece? Algo vai mal?
Ewen não se incomodou em tentar ocultar a verdade.
—Disse que somente viria em caso de que fosse necessário.
«Necessário.» A Anna lhe deteve o coração. Isso significava que o faria se tivesse que bater em retirada.
Tinham perdido!
Anna cambaleou, sentindo que suas pernas eram como gelatina. Pôs a mão na borda da mureta para recuperar o equilíbrio, observou como se aproximavam os navios e rezou por que houvesse outra explicação. Algo diferente que Bruce tivesse ganhado. Então entreabriu os olhos para proteger-se dos brilhos do sol e viu algo mais.
—O que é isso? —disse, assinalando justo trás dos navios que se aproximavam — O que é isso que vem trás?
Mas Ewen estava já ditando ordens.
—Atacam-nos! A seus postos!
Os homens saltaram à ação imediatamente enquanto Anna, incapaz de desviar o olhar, observava aterrorizada como se aproximavam os navios. Ao que parecia, os homens de seu pai não pareciam conscientizar-se de que os perseguiam.
—Atrás! —gritou em uma tentativa de lhes avisar.
Mas o vento levava sua voz.
—Anna, sai daqui!—gritou-lhe Ewen — Isto não é seguro. Vá à torre e tranca a porta.
Anna assentiu em silêncio e fez o que seu irmão lhe pedia. Uma vez dentro, correu para sua câmara do segundo andar para olhar da seteira. Já que a torre da comemoração estava no canto sul do castelo, não pôde ver os navios até que virtualmente estavam já junto ao embarcadouro. Observou com o coração em um punho como começava a batalha justo a seus pés. Viu seu pai situado atrás de seus homens, gritando ordens ao mesmo tempo em que o navio de guerreiros inimigos chegava… ficou petrificada, com o coração lhe dando saltos no interior do peito. Piscou. Não, não era um sonho. Uma intensa onda de alívio abriu caminho em seu interior fazendo que lhe estremecesse o coração.
Arthur estava vivo. Vestia um traje de batalha que não lhe parecia familiar e embora a simples vista, com o rosto e o cabelo resguardados sob o elmo com nasal, fosse impossível de distinguir dos outros guerreiros, sabia que se tratava dele.
«Graças a Deus.»
Então se revelou a absoluta transcendência de sua presença no castelo. O horror se apoderou dela e a apanhou com seu frio abraço. Se Arthur estava ali, somente podia ser por uma razão. Correu para a porta, consciente de que tinha que fazer algo. Tinha que o deter. Não podia permitir que matasse a seu pai.
Arthur o tinha a frente o momento que tanto tinha esperado. Em certo modo parecia adequado que o encontro final tivesse lugar na pequena ilha do Innis Chonnel, sob a sombra entristecedora do castelo que um dia fora seu lar. A corrida fora acirrada, mas ao final MacRuairi deu fé de que sua reputação era merecida. Oculto pela cegante luz do sol, seguiu aos navios em retirada de Lorn sem que estes se inteirassem de sua presença até alcançar aos três birlinn quando se dispunham a atracar. Somente então dispôs Arthur uma descarga de flechas sobre os despreparados MacDougall.
MacRuairi tinha reunido a quarenta piratas de seu clã, algo que seria um combate desigual, já que os MacDougall os triplicavam em número. Mas os homens de MacRuairi estavam mais que dispostos a aceitar o desafio. Patifes, rufiões, esquartejadores, eram qualificativos generosos para alguns MacRuairi que ganhavam a pulso sua reputação como o maior flagelo dos mares. Mas em terra lutavam com a mesma ferocidade.
Os guerreiros de MacRuairi estavam já saltando pela amurada espada empunhada ao grito de «Pelo leão!», ao mesmo tempo em que seu chefe deixava o navio escondido até pô-lo virtualmente em cima dos do MacDougall. Arthur estava ali mesmo, liderando a carga.
Lorn tinha situado a seus homens ao final do embarcadouro com a esperança de conter aos homens de MacRuairi assim que tentassem tomar a terra. Mas os guerreiros de MacDougall não eram rivais para os selvagens ataques de seus parentes. Apesar de que ambos descendessem de filhos de Somerled, o rei norueguês que tinha governado as ilhas cento e cinqüenta anos antes, lutavam de geração em geração pela supremacia. Os MacDougall a tinham ganhado depois da batalha do Larg e receberam o favor dos reis ingleses, mas essa integração fez que se afastassem muito de suas raízes vikings. Os MacRuairi lutavam como os próprios bárbaros que tinham sido até tão pouco tempo que a maioria deles podia seguir recebendo esse nome.
Romperam o muro de contenção dos MacDougall rapidamente e situaram a batalha sobre as rochosas costas da ilha. Arthur estava em desvantagem ao contar só com um braço, por não falar de seu fraco estado; entretanto, em que pese a encontrar-se longe de suas habituais condições para a luta, defendia-se bem. Abria caminho com determinação entre os soldados sem tirar olho ao Lorn em nenhum momento. Este estava na retaguarda da batalha, rodeado pelo protetor círculo de seus homens, entre os que se encontrava seu ajudante. O sangue de Arthur fervia antecipando o momento.
Os MacDougall retrocediam, e logo ficou claro que as superiores força em número de Lorn não ganhariam a partida. Arthur, envolto em um encarniçado combate com um dos homens de MacDougall, ao qual por desgraça conhecia, ouviu o grito de retirada. Amaldiçoou, consciente de que tinha que deter o Lorn e a seu ajudante antes que alcançassem a segurança das portas do castelo.
«Outra vez não.»
Chamou a atenção de alguns homens de MacRuari e lhes disse o que queria deles. Lutou para abrir caminho até o Lorn seguido por esses mesmos homens, que fizeram racho no círculo protetor de Lorn e tiraram ele e a seu ajudante do grupo. Uma vez que Arthur chegou até ali, os homens do MacRuairi se dispersaram para formar uma barreira atrás dele.
Se Lorn não tivesse a poucos metros da segurança dos muros do castelo, Arthur teria desfrutado mais com sua morte, mas tal e como estavam as coisas teve que despachar ao ajudante com presteza. Por mais habilidade que tivesse aquele homem na hora de torturar, não era rival para Arthur, nem sequer com uma só mão.
Ao fim se voltou para Lorn e o alcançou a escassos metros da porta. Seus homens estavam tão ocupados defendendo-se que nenhum deles pôde ir em sua ajuda. Arthur advertiu a raiva em seus olhos quando John de Lorn ergueu a espada contra ele.
—Como escapou? —perguntou com incredulidade.
—Surpreso de me ver?
Um brilho assassino aflorou nos olhos de Lorn.
—Devia ter matado.
—Sim, teria que tê-lo feito.
—É o culpado de todo este desastre. Traíram meus planos para acabar com esse filho da puta assassino.
—Rei Robert — o provocou Arthur, rodeando-o como a uma presa — Diria que melhor que te acostumem a chamá-lo assim, mas temo que não viverá por aqui tempo suficiente.
E dito isto lhe atirou um golpe.
Lorn estava preparado e arrumou para rebatê-lo, embora com muita dificuldade e tremendo com todo o corpo pelo esforço. John de Lorn, em seus dias um dos mais temidos guerreiros das Highlands, já não significava nenhuma ameaça. A idade e a enfermidade cobraram seu preço. Não era covardia, a não ser a enfermidade o que fez que permanecesse no lago e na retaguarda da batalha. O maldito orgulho de Lorn evitava que admitisse quão doente realmente estava.
O segundo golpe de Arthur o tombou de joelhos. Pôs a ponta da espada no pescoço. A touca de malha não serviria de nada contra o afiado aço de sua arma. O sol se refletia no elmo do ancião de mesmo modo em que tinha feito quatorze anos antes quando Arthur observava da distância como seu pai sustentava a folha ante o pescoço desse mesmo homem e lhe oferecia clemência. Era o momento que estivera esperando. Teria sentido a antecipação dessa cena em suas próprias veias. O sabor da vitória tinha que ser doce. Seus músculos teriam que estar tensos, preparados para propinar a cutilada. Mas não sentia nada disso. Somente podia pensar em Anna.
Se o fizesse, seria para ela o que Lorn sempre foi para ele: o homem que tinha matado a seu pai. Talvez seu perdão fosse algo mais do que tinha direito a esperar, mas se assassinasse ao Lorn destruiria qualquer opção que pudesse ficar. Que honra teria em matar a um homem muito doente para lutar? Seu pai já fora vingado. Lorn estava acabado. Sua derrota no Brander tinha acabado com qualquer opção que tivesse de deter Bruce.
Anna tinha razão. O matar então não seria mais que vingança, e Arthur a amava muito mais que qualquer momento efêmero de satisfação que aquilo pudesse lhe proporcionar. Bom, pode ser que não fosse tão efêmero, mas, em qualquer caso, amava-a mais.
Lorn o olhou com fúria sob o visor de ferro de seu elmo.
—A que estais esperando? Faça de uma vez!
Piedade. Apesar de que até esse momento o tivesse esquecido por completo, aquela fora a última lição de seu pai.
—Renda-se ante o rei e lhe deixarei viver.
O rosto de Lorn se retorceu de ira.
—Prefiro a morte.
—E o que será com sua família? O seu clã? Também quer que morram?
Os olhos do John de Lorn estavam incendiados de puro ódio.
—Prefiro isso antes que me render a um assassino.
—Fará que morram suas filhas por seu maldito orgulho?
Aquilo fazia que o sangue de Arthur fervesse. Conhecia Anna. Jamais iria contra seu pai. A família era tudo para ela.
—Dê a Anna sua bênção. Manterei ela a salvo. Sabes tão bem como eu que está acabado. Mas seu clã pode prosseguirr através de nossos filhos, em seus netos.
A raiva de Lorn estava desenfreada. Sobre seus olhos, frágeis de loucura, ressaltavam as veias de sua têmpora e seu rosto aceso. Desafogou-se proferindo uma enxurrada de maldições vis que lhe deixaram jogando espuma pela boca.
—Jamais será sua! Antes prefiro vê-la morta!
—Pai!
Arthur ouviu o grito angustiado que se erguia atrás dele. Anna. Voltou-se de maneira instintiva e deixou suas costas a mercê de Lorn. Exatamente o mesmo que seu pai tinha feito tempo atrás ante seus próprios olhos.
Capítulo 26
Anna chegou ao pátio justo no momento em que Arthur fazia seu pai cair de joelhos.
Oh, Deus, tinha chegado muito tarde!
Correu mais depressa.
Ewen e outros tentavam defender o castelo lançando flechas de maneira seletiva das frestas do adarve, preparados para baixar a grade assim que seu pai e os outros conseguissem retirar-se ao interior. Os guardas estavam tão preocupados observando o que acontecia no exterior que nem sequer a viram penetrar antes seus narizes.
—Milady! —chamou-a um dos guardas — Não podes…
Anna não os escutava. Avançou alguns metros além das portas, mas não chegou muito longe. Os soldados inimigos tinham formado uma linha que separava Arthur e o pai de Anna do resto dos opositores. Quando ela tentou passar entre eles um dos homens a agarrou.
—Pelas chagas de Cristo! —disse, puxando-a pelo pulso — Aonde acha que vai, moça?
Abriu a boca para gritar ao aterrador rufião que a soltasse, mas então ouviu a voz de Arthur e ficou quieta nos braços do soldado. Não acreditava no que ouvia. Arthur brandia uma espada contra o pescoço de seu pai, a ponto de alcançar a vingança e a expiação que motivava seus atos, quando lhe ofereceu piedade. Ofereceu a seu pai a oportunidade de salvar a todos. Uma oportunidade que, depois do que certamente teria feito, seu pai não merecia. A oportunidade de um futuro.
Se deu conta de que Arthur a amava. «Ama-me tanto que está acima de sua sede de vingança.» Mas se as palavras de Arthur enchiam seu coração, as de seu pai o destroçaram. «Antes prefiro vê-la morta.» Anna escapou das garras de seu captor e retrocedeu, angustiada por um horror e uma comoção que a fizeram gritar. «Não diz a sério.»
Entretanto, ela sabia que sim havia dito a sério. Seu pai preferiria vê-la morta antes que casada com o inimigo, embora a amasse. Aquele cruel rechaço à oferta de Arthur fez saltar em pedaços qualquer raio de ilusão que ficasse. Mas seu grito foi um erro. Um erro mais terrível do que poderia ter imaginado. Sua voz teria que ter-se perdido no infernal estrépito da batalha. Ninguém deveria ter ouvido. Mas Arthur ouviu. Voltou-se ao ouvir sua voz e a espada pareceu perder toda sua força.
«Pai nosso que está nos céus…» Sob a sombra do elmo, a visão de seu rosto golpeado e massacrado lhe revolveu o estômago e provocou um acesso de bílis. Mas o pior dos horrores estava por chegar. Viu o brilho da espada de seu pai pela extremidade do olho.
—Não! —gritou dando um passo à frente. Mas o soldado a apanhou antes que pudesse avançar — Cuidado!
«Calcanhar de Aquiles.» Ela era seu calcanhar de Aquiles, mas não podia permitir que morresse por isso.
Arthur deu meia volta e ondeou sua espada pelo ar para rechaçar o golpe mortal do pai de Anna com suficiente força para arrebatar a espada das suas mãos e fazê-la voar. Então ergueu a espada sobre sua cabeça.
Anna se voltou e protegeu seus olhos do horror que estava a ponto de acontecer. Arthur mataria a seu pai, e depois do que este acabava de fazer não poderia culpá-lo de nada. Esperou para ouvir o horripilante som da morte. Mas o silêncio parecia interminável. Estava tudo tão tranqüilo que percebeu de que a batalha que livrava a seu redor também se deteve.
—Vá — ouviu que Arthur dizia — Tem cinco minutos para levar sua filha e a seus homens do castelo.
O olhar de Anna recaiu de novo sobre seu pai. Seu pai, que seguia com vida. Arthur tinha baixado a espada e se afastava dele, enquanto John de Lorn se pôs em pé com o rosto tingido de uma pátina de raiva desafiante.
—É um estúpido.
—E tens a sorte de que sua filha signifique para mim muito mais que sua mísera vida. Mas lhes asseguro que o rei não sente o mesmo. Parte por seu próprio pé ou faça com grilhões, isso não é de minha incumbência, mas partirá.
Um grito chegou das alturas para confirmar suas palavras.
—Navios, milorde. Seis deles vindo para cá.
«Bruce.»
Lorn não pensou. Reuniu a seus homens e ordenou a Ewen evacuar o castelo e reunir quantas armas pudesse levar consigo.
O homem que a agarrava a soltou. Anna correu, mas Arthur já se fora e ficava de lado junto ao resto dos homens de Bruce, entre os que reconheceu a seu tio, para deixar caminho aos MacDougall. MacRuairi não parecia muito contente com tal acerto, mas depois de um rápido mas violento intercâmbio de palavras Arthur e ele ficaram em silêncio. Arthur não parecia disposto a olhá-la.
Por que não a olhava? Anna tinha vontade de correr a seu encontro, mas o via tão distante e afastado… O coração se encolheu pela incerteza. Sempre tinha pensado que seria ele quem a abandonaria e, entretanto, ali permanecia de pé como um sentinela: firme, incondicional e fiel. Um homem com o que se podia contar. Um homem que derrubaria dragões e se arrastaria através das brasas do inferno.
—Vamos, Anna. Temos que partir.
Ewen tinha aparecido atrás dela e lhe puxava o ombro para tirá-la dali.
—Eu… — titubeou, ao mesmo tempo em que desviava o olhar para Arthur, como se esperasse, como se ansiasse que ele dissesse algo.
Ewen, indeciso, olhou-a um instante e se retirou junto a seus homens. Seu pai deve ter captado aquela troca de olhares.
—Não faça, filha. Nem sequer pense nisso.
Anna olhou a seu pai nos olhos. O homem que tinha amado durante toda sua vida. Um homem que era muito mais complexo do que ela pensava. Era difícil conciliar a figura de seu carinhoso pai com a do homem que acabava de ver nesse dia, apesar de que soubesse que se tratava de uma única pessoa. Por um momento desejou voltar a ser aquela menina que se sentava sobre os joelhos de seu pai e o olhava como se fosse um deus. Voltar para momento em que as coisas eram simples.
Se alguma vez pôs em dúvida o amor de Arthur, já não podia fazer. Não depois do que acabava de fazer por ela.
—O amo, pai. Rogo-te isso…
Advertiu a dor que suas palavras causavam antes que seu olhar se endurecesse.
—Não quero ouvir falar mais nada disto. Faz sua escolha. Mas não te engane. Se partir com ele, jamais voltarei a te ver. Estará morta para mim.
As lágrimas afloraram nos olhos de Anna e lhe ardiam na garganta.
—Não diz a sério.
Mas sim dizia.
—Escolhe — exigiu seu pai com raiva.
Anna se encaminhou para o bote em que a esperava seu irmão com lágrimas caindo pelas bochechas. Arthur, incapaz de ver como se afastava, voltou o rosto.
Tinha ouvido cada palavra da dolorosa conversa que Anna acabava de manter com seu pai. Maldito fosse Lorn por fazer isso a sua filha! Por fazê-la escolher entre os dois. Não tinha por que ser assim. Arthur tinha tentado lhe dar uma saída, mas o filho de cadela não queria acolher a ela. Quase se arrependeu de não tê-lo matado. Quase. Mas quando ouviu a Anna dizer que o amava, soube que tinha feito o correto. Embora isso significasse que devia deixá-la partir. Infelizmente, a dor de sua partida não se atenuava absolutamente nessa segunda ocasião. Ardia-lhe o peito. Seus músculos tremiam pela tensão e contenção e parecia que os rasgavam com uma adaga. Queria detê-la, que não subisse naquele maldito bote. Queria dizer que seu lugar era junto a ele. Que a amava. Pedir que o escolhesse.
Mas não podia fazer mais difícil do que já era. Não estava disposto a fazê-la sofrer mais. Bastou um olhar a seu aflito rosto para que se desse conta do terrível preço que se estava cobrando dela o ultimato de seu pai.
—Sinto muito, Ewen. Explica tudo a mãe —disse de repente — Diga o quanto sinto. Sinto muito, mas meu lugar está junto a ele.
Arthur ficou petrificado. Não podia acreditar no que acabava de ouvir. Voltou-se lentamente e a viu abraçar seu irmão.
Despedia-se dele com aquele abraço.
Arthur ficou sem fôlego.
Anna se separou do abraço de seu irmão e aventurou um olhar em sua direção. A incerteza que esta refletia provocou uma pontada no peito de Arthur que rompeu até o último fio de contenção que ficava. Depois de uns poucos e largos passos chegou a seu lado. A voz de Arthur lutava com o esforço por conter a emoção que brotava em seu peito.
—Está segura? Não têm por que fazer. Protegerei a ti e a tua família o melhor que possa, embora partam.
Anna sorriu, com os olhos velados pelas lágrimas.
—Que sejas capaz de fazer isso é a razão que me faz estar segura disso. O amo. Sou sua, se ainda me quiser.
Deus santo, se ainda a queria… Arthur se esqueceu da sujeira e o pó que o cobria, por não falar do fedor da batalha, e tomou Anna em seus braços com um suspiro de alívio que saiu do mais profundo da alma. De um lugar que, pensou, jamais voltaria a abrir. Descansou a bochecha sobre sua cabeça, absorvendo a sedosa e dourada calidez da fragrância de seus cabelos, e a apertou fortemente contra si, muito emocionado para falar. Mas não tinha que dizer nada. A maneira com que ela o rodeava com seus braços e punha sua bochecha contra seu cotun dizia tudo. Tinha escolhido a ele. Não podia acreditar. Jamais pensou que poderia sentir-se de tal modo. Nunca pensou que esse tipo de felicidade lhe estivesse destinada. Mas sua alegria ficava moderada pela consciência de saber quão difícil devia ser para ela.
Separou-se de Anna a seu pesar. Ela ergueu o olhar, acariciada pelos raios do sol, que deixavam em seus belos traços uma luz dourada e suave. Uma luz que se estendia por seu interior como se fosse um quente abraço. Sentiu como se enchia seu interior. Era um homem afortunado.
Ao conscientizar-se de que ainda não tinha respondido, fez uma careta com a boca.
—Se por acaso não o adivinhastes, isso significa um sim.
O sorriso de Anna fez que parasse seu coração.
Pensava que seu destino fosse permanecer sozinho, mas agora sabia que simplesmente estivera esperando que ela chegasse. Juntos confrontariam qualquer obstáculo ou desafio que a vida lhes proporcionasse. Incluindo a seu pai. Arthur a apertou contra si em seu lado enquanto Lorn caminhava para o cais para ocupar seu lugar entre seus homens. Quando passou junto a eles sem lhe dirigir o olhar, Arthur notou que Anna se cambaleava. Apertou-a contra si com mais força, com o desejo de protegê-la contra isso. Aquele filho de cadela estava lhe destroçando o coração.
—Pai! —exclamou com um fio de voz.
Lorn se voltou para olhá-la com expressão gélida. Mas não estava tão pouco afetado como queria aparentar. Nos olhos do ancião havia uma dor real.
—Não há nada mais que dizer. Tomaste sua decisão.
Anna negou com a cabeça.
—Escolho amar aos dois. Mas meu futuro está junto a Arthur.
Lorn a olhou com atenção, e por um instante Arthur pensou que claudicaria. Mas o homem aplacou seu gesto e deu meia volta para partir sem dizer uma palavra mais, condenado por seu próprio orgulho. Cortando suas relações com ela assim, não fazia mais que prejudicar a si mesmo. Anna era a luz, a cola que unia as pessoas a sua volta. Sem ela, suas vidas seriam mais escuras. Arthur sabia. Tinha comprovado em sua própria carne.
Desejava poder economizá-la dessa dor ou sofrer por ela, mas o único que podia fazer era permanecer a seu lado enquanto via como seu pai e seu clã se afastavam no navio. Quando viraram para o lago e desapareceram de seu olhar, Arthur a pegou pelo queixo para que o olhasse nos olhos.
—Juro-te que me assegurarei de que nunca te arrependas disto.
Anna lhe ofereceu um sorriso vacilante através do brilho de suas lágrimas.
—Não farei. É a única decisão que podia tomar. Eu te amo.
Arthur se inclinou e a beijou com doçura. Sua boca era inclusive mais doce e suave do que recordava.
—E eu amo muito a ti.
Queria dizer muitas mais coisas, mas o resto teria que esperar. Os reforços chegariam de um momento a outro.
—Qual é seu quarto? —perguntou Arthur.
Anna ruborizou. Parecia envergonhada.
—Aquela acima, com vista para o lago.
Teria que ter imaginado.
—Eram meus aposentos.
Anna abriu os olhos de par em par e se apressou a dizer:
—Mudarei…
Arthur negou com a cabeça, cortando em seco suas palavras.
—Fique, assim saberei onde te encontrar. —Gostava de pensar nela ocupando seu aposento. Arthur olhou para trás e viu os navios aproximar-se — Vai até lá. Há certas coisas que tenho que atender. Irei te buscar quando tiver acabado.
Anna estirou o braço para acariciar seu queixo.
—Seu pobre rosto.
Arthur fez uma careta de dor.
—Já sei que estou horrível.
Seus olhos se encheram de culpa.
—Deus, Arthur… Sinto tanto.
—Nada disso, moça — repôs ele negando com a cabeça — Isso se acabou. Não podemos mudar o passado. Tudo que podemos fazer é viver o presente e planejar o futuro.
Um futuro que só momentos antes parecia sombrio e agora transbordava de esperança. Observou-a partir, consciente do perto que estivera de perdê-la. Mas agora que estava com ela, Arthur jurou que jamais a deixaria partir.
Não a fez esperar muito. Anna ouviu como batia na porta com suavidade apenas meia hora depois de que zarpassem os navios. Os homens de Bruce não ficaram muito tempo, mas mesmo assim parecia estranho ver que o pátio de armas se enchia de soldados inimigos. Não, inimigos não. Ao escolher ao Arthur também escolhia ao Bruce, embora supôs que levaria algum tempo familiarizar-se com o que em realidade significava aquilo. No momento, simplesmente tentava acostumar-se com a idéia de que não sabia quando poderia voltar a ver sua família, se é que chegaria a fazer. Ao negar-se a se render ante Bruce, a seu pai não ficava mais alternativa que seguir o mesmo caminho até a Inglaterra que tinha tomado meses antes John Comyn, o conde de Buchan. E suspeitava que sua mãe, seus irmãos e suas irmãs logo partiriam junto a ele.
Mas por mais difícil que fora tomar aquela decisão, Anna sabia que tinha escolhido bem. O amor cego que tinha por seu pai era o de uma menina que pensava que ele jamais faria nenhuma maldade. Entretanto, o amor que sentia por Arthur era o de uma mulher. Uma mulher que entendia que as pessoas, inclusive aquelas às que amava, cometiam erros. O perdão era parte do amor.
Ao abrir a porta e vê-lo ali o coração lhe deu um tombo. Sua enorme envergadura enchia a soleira e tinha que encolher-se para entrar no aposento. De repente aquela pequena câmara dava a impressão de ser minúscula. O ar estava impregnado do aroma de sabão. Banhara-se, tirado a armadura e vestia com uma camisa limpa, túnica e meias, que, suspeitava Anna, teria tomado emprestados de algum dos membros de seu clã que partiram. Mas não foi a visceral consciência de sua presença o que a fez jogar-se em seus braços e afundar o rosto em seu amplo e quente peito, a não ser a infantil expressão de incerteza que aparecia seu rosto.
Anna apreciou o suspiro de alívio que percorria o corpo de Arthur ao rodeá-la com seus braços e agarrá-la.
—Encontra-te bem? —perguntou Arthur.
Anna apoiou o queixo sobre seu peito para o olhar e assentiu.
—Estava preocupado?
Uma mecha de cabelo molhado lhe caiu sobre a testa.
—Sim, mais do que queria admitir.
—Tomei uma decisão, Arthur. Sabia o que dizia. Pode ser que em algumas ocasiões não seja nada fácil, mas jamais me arrependerei disso. —Seu irmão Alan tinha razão. Merecia a um homem que a amasse com a mesma intensidade que ela amava. Um homem que derrubasse dragões e se arrastasse sobre as brasas do inferno por ela. Arthur fazia isso e ela jamais o deixaria escapar. Anna se deixou abraçar um instante antes de voltar a falar—: Obrigado pelo que fez. Sei que… — A emoção a embargava — Sei que não foi fácil.
Seu rosto se escureceu, mas somente por uns segundos.
—Jamais me arrependerei disso — disse repetindo suas palavras com um meio sorriso — Salvar a vida de seu pai é um pequeno preço a pagar pela felicidade que recebo em troca.
Anna mordeu o lábio.
—Mas o que passará com Bruce? Não estará zangado porque o deixasse partir?
Arthur fez uma careta.
—Se podemos tomar a primeira reação de seu tio como sinal, provavelmente sim. Mas o rei me deve alguns favores. Acredito que com isto saldamos as contas. Enquanto seu pai abandone a Escócia, estará inclinado a compreendê-lo.
Inclinado. De repente Anna se deu conta de que somente notava uma mão de Arthur nas suas costas. Libertou-se de seu abraço e ao baixar o olhar viu que sua mão esquerda tinha uma pomposa bandagem. Não tinha notado antes porque Arthur levava as luvas.
—O que passou a sua mão?
—Está quebrada — disse Arthur com total naturalidade.
Ficaram olhando-se nos olhos, e Arthur respondeu sua pergunta tácita. Anna só precisou olhar seu maltratado rosto para saber como tinha acontecido.
—Que mais?
—Algumas costelas — respondeu ele, encolhendo-se de ombros — Vários cortes e alguns hematomas. Nada que não possa curar — Houve algo em seus olhos que indicou a Anna justamente o contrário — Não é mais do que mereço pelo que lhe fiz.
—Não — repôs ela negando com a cabeça de maneira categórica — Não diga isso. O que fizeram foi horrível, mas jamais teria exigido tal castigo —continuou com lágrimas nos olhos — Não é que o tenhamos tudo muito fácil, verdade?
Arthur a agarrou pelo queixo e negou com a cabeça.
—Não, amor, mas te prometo que isso mudará. Acabaram-se as mentiras. Acabaram-se os segredos. —Sorriu, franzindo o cenho — Em qualquer caso, já conhece os mais perigosos.
Que formava parte do exército secreto de Bruce.
—Por que te chamam Guardião?
Houve um momento incômodo quando Arthur olhou a seu redor no aposento em busca de algo onde sentar-se e percebeu de que não havia mais que a cama. Não obstante, sentou-se na borda e fez gesto a Anna para que se sentasse junto a ele. Ela notou que tomava cuidado em deixar uns centímetros de separação entre ambos enquanto explicava.
Tinham-no obrigado a abandonar o treinamento antes dos outros para que ocupasse seu posto como espião. A decisão de usar nomes de guerra fora feita em sua ausência. Alguns dos nomes saíram das brincadeiras que se fazia entre eles e outros, como o seu, provinham de suas habilidades.
—Então eu tinha razão —disse Anna com alegria— quando pensava que seria um rastreador perfeito.
Arthur riu.
—Sim, embora não me fez nenhuma graça. Tentava ocultar minhas habilidades, mas parecia pensar em outras coisas.
E em outras coisas começou a pensar Anna. Aproximou-se um pouco mais dele, deixando que seus seios lhe roçassem o braço.
—E o que ocorrerá depois?
Arthur parecia tentar conter-se por todos os meios.
—Agora acredito que será melhor que eu vá. Não deveria estar aqui contigo deste modo. Não sem um sacerdote.
Anna riu e pôs uma mão sobre a perna. Seus potentes músculos se esticaram debaixo de sua palma.
—Não acredito que goste de ter a um sacerdote aqui conosco.
Arthur apertou os dentes; de fato, pareceu apertar todos os músculos de seu corpo.
—Refiro-me até que estejamos casados.
—Tenho a impressão de que é um pouco tarde para nos pôr cerimoniosos, não?
—Não subi com a intenção de… - Arthur não continuou — Maldita seja, Anna, deixe de fazer isso. —Agarrou sua mão e deteve sua incursão pelo interior da coxa — Tento fazer a coisa certa.
—Quer dizer que anteriormente não fez certo? —Anna piscou com exagerada inocência.
Arthur a olhou com recriminação.
—Sabes perfeitamente que não é isso a que me refiro. Aquilo foi absoluta e totalmente perfeito.
Acabou a provocação. Quando ergueu o olhar de novo o fez com todo o amor de seu coração.
—Por favor, Arthur. Preciso me sentir assim uma vez mais. —Anna necessitava a cercania. Necessitava a conexão. Precisava saber que tudo iria bem. Seus olhos se abriram de par em par — A menos que não sejas capaz. Esquecia que…
Arthur a deteve com um ardente beijo que penetrou até o mais profundo de sua alma.
—Claro que sou capaz, maldita seja.
E, assim, procedeu a lhe mostrar com todo luxo de detalhes quão capaz era. Lenta, profunda e meigamente, com todo o amor que albergava em seu coração. E quando os últimos estremecimentos de prazer começaram a extinguir-se, quando ele sustentou seu corpo nu contra o seu arroxeado e maltratado, Anna soube que nos braços daquele fornido e firme guerreiro encontraria por fim a paz.
Epílogo
Castelo de Dunstaffnage, 10 de outubro de 1308
A paz fazia bem, tanto para a Escócia como para Anna. Menos de dois meses depois da derrota de seu pai no Brander, Bruce ganhou a batalha dos grandes líderes da Escócia. Seu avô, Alexander MacDougall, rendeu-se depois de um breve assédio ao castelo de Dunstaffnage, enquanto que o conde de Ross fez o mesmo depois de poucos dias. Bruce perdoou a vida do homem responsável pelo encarceramento de sua mulher, de sua filha e de suas irmãs, assim como da condessa de Buchan, um ato que dava fé do desejo que tinha de ver a Escócia e a seus nobres unidos sob uma mesma bandeira.
«Pelo bem da Escócia.» Anna tinha que admitir que essa filosofia a impressionava. O homem em si…Bom, procurava manter a mente aberta. Tantos anos defendendo uma causa não se esqueciam em questão de semanas. Mas o que Bruce tinha planejado para esse dia faria bastante para que mudasse de opinião. Sabia o que significava aquilo para Arthur.
Seu olhar passeou pelo grande salão e cruzou a maré de membros do clã reunidos em celebração. Alguns deles lhe pareciam familiares, embora quase todos eram estranhos. Tomaria um tempo, mas Anna prometeu que conheceria todos eles. Aquele seria seu lar. Bruce tinha concedido a guarda do castelo de Dunstaffnage a Arthur em gratidão a sua lealdade e pelos serviços prestados. Além disso, sua próxima missão tampouco o afastaria muito. Passaria os seguintes meses fiscalizando o paradeiro de Lorn e Argyll em sua totalidade e riscando mapas de quanto encontrasse.
Arthur tomou a mão de Anna e a apertou carinhosamente.
—Está contente, meu amor?
Anna ergueu o olhar para o homem que estava sentado junto a ela no estrado, um homem que se convertera em seu marido nessa mesma manhã. Lágrimas de alegria cobriram seus olhos ao olhar suas bonitas feições, que já apenas viam pequenos traços do calvário que tinha sofrido.
—Sim, e poderia ser de outra forma? Ao fim tem feito de mim uma mulher honrada e talvez possa voltar a olhar ao pai Gilbert nos olhos.
Arthur riu. Esse profundo e harmonioso som, muito mais livre agora, seguia sendo capaz de lhe arrepiar a pele com um quente formigamento.
—Já te disse que teria que ter partido antes.
—Tinha frio… — Anna fez um biquinho com os lábios.
—Ofereci-te uma manta antes de ir.
—Não queria mais mantas — disse com a mesma teima que a tinha metido em problemas desde o começo.
Queria a ele. Acostumou-se a dormir do seu lado em Innis Chonnel e fora difícil habituar-se de novo ao retornar ao Dunstaffnage no mês anterior. Ver-se às escondidas não era nem metade de excitante e íntimo. E, é obvio, o principal problema de ver-se às escondidas era a possibilidade de que os descobrissem, justamente o que tinha acontecido fazia uma semana, quando o pai Gilbert pegou Arthur saindo de seu aposento.
—Esta noite não necessitará mais mantas — disse ele com um olhar longo e cálido.
Anna não pôde evitar ruborizar-se, apesar de que nos últimos dois meses tivesse perdido a inocência em muitos sentidos, alguns deles de jeitos mais reveladores.
—Acredita que se darão conta se sairmos agora? —perguntou Arthur inclinando-se sobre ela.
O suave sussurro de seu fôlego no ouvido a fez estremecer. Mas o que lhe provocou brilhos de calor entre as pernas foi a mão que se movia de maneira possessiva e determinada sobre sua coxa. As carícias de seu dedo recordavam a sua língua. E se recordava sua língua, não podia esquecer-se de sua boca. E se recordava sua boca, tinha que lembrar-se da maneira em que a tinha despertado essa manhã fazendo-a chorar de prazer. O mesmo dia das bodas, o muito desrespeitoso velhaco!
E então recordou como tinha pago sua diabrura com a mesma moeda incitando-o com sua própria língua. Recordava o delicioso sabor salgado de sua pele, aquela coluna de carne aveludada introduzindo-se cada vez mais profundo em sua boca. A maneira em que o tinha espremido até o final com a sucção de seus lábios, rodeando a grossa e potente cabeça de seu membro com a língua até que Arthur implorasse por não poder conter-se mais. O modo que acabou por perder o controle e lhe sustentara a cabeça com as mãos para meter até o fundo de sua garganta, fazendo que os gritos guturais do alívio retumbassem em seus ouvidos.
O corpo de Anna começou a derreter com a doce calidez da excitação. Então recordou onde estava e se sobressaltou. Afastou-lhe a mão, confiando que ninguém os tivesse visto. Pelo amor de Deus, se tinha os olhos entreabertos! Era ela quem devia o distrair e não ao contrário.
—Não podemos sair. Não até que… — Se deteve ao conscientizar-se de que talvez houvesse falado demais — Somos os convidados de honra.
Arthur pôs cara de surpresa, olhando ao outro extremo da mesa no que havia vários assentos vazios.
«Pelos pregos de Cristo!» Se deu conta. Pois claro que tinha feito. Não havia nada que escapasse a aquele homem tão observador. Anna o agarrou pela mão.
—Vamos, deveríamos dançar.
Ficou circunspeto, sem mover um dedo.
—Passa algo, Anna? Atua de um modo estranho.
Os olhos se puseram como pratos.
—Pois claro que não. Somente quero dançar.
Um sorriso maroto torceu seu gesto.
—Temo que terá que me dar uns minutos.
—Por que?
Arthur baixou o olhar até sua virilha, e as bochechas de Anna se ruborizaram ao ver seu volumoso pacote. Ao que parecia não era a única que estivera relembrando. Olhou do outro lado da mesa, onde estava sentado MacGregor. Este fez uma sutil negação com a cabeça, depois da qual ela voltou a olhar de novo a seu marido, que seguia circunspeto.
—Está segura de que não é por…? Sei que sente falta da sua família.
Um sorriso amargo se desenhou em seus lábios.
—Sinto falta deles, mas isso não significa que não seja feliz. E meu avô está aqui — disse inclinando a cabeça em direção ao chefe dos MacDougall, sentado a poucos assentos de distância de onde estava o rei. Bom, onde estava o rei até um momento.
Uma vez tomado o castelo, sua mãe e suas irmãs receberam permissão para seguir a seu pai e seus irmãos no exílio, mas Bruce queria o apoio de seu avô. Se seria capaz de ganhar o ou não era algo que Anna não sabia, mas estava contente de ter ao menos a um de seus familiares com ela no dia de suas bodas.
E é obvio estava Escudeiro. Um dia obrigaria Arthur que lhe contasse como tinha conseguido tirar o cachorrinho do castelo enquanto este estava sob assédio. Anna ficou a choramingar como uma idiota ao vê-lo e teve que explicar a um confuso Arthur que chorava de felicidade. Após, não houve um só dia que não jurasse que se arrependia assim que o mascote o perseguia, mas ela sabia que em realidade não se importava nem a metade do que dizia. A aceitação, ou melhor dizendo, a confiança no afeto parecia agora mais fácil. E que Arthur se esforçasse tanto por vê-la feliz era algo que a comovia até o extremo. Quando fez o mesmo com seu irmão Alan, antes que o castelo caísse e de que sua família fugisse para Inglaterra, quase a tinha matado da alegria. Ver seu irmão, sabendo que não compartilhava a decisão de seu pai e que não cortaria as relações com ela completamente, era mais do que Anna poderia esperar. Alan era leal a seu pai, mas essa lealdade não estava brigada com seu amor por ela.
Sim, tinha muito que agradecer a seu novo marido.
—E o que tem a ti, Arthur? Sei que certamente te decepciona que não estejam aqui todos seus companheiros da Guarda.
Anna não sabia de todos os detalhes da Guarda de elite de Bruce, nem tampouco perguntou, consciente de que esse segredo preservava a segurança de seu marido. Mas sabia que se tratava dos melhores guerreiros de elite na Escócia, o melhor do melhor em todas as disciplinas de guerra. Sempre pensou que havia algo especial em Arthur, mas nunca imaginou quão especial era.
Também tinha adivinhado algumas das identidades por sua própria conta. Seu tio. Os dois homens que o acompanhavam e tinham ajudado a libertar Arthur, Gordon e MacKay. O bonito até dizer chega do Gregor MacGregor, que tinha formado parte do ataque tantos meses atrás. Seu rosto era difícil de esquecer. E parecia certo suspeitar que o ilhéu de feroz aspecto Tor MacLeod era outro deles, assim como esse nórdico extremamente encantador, Erik MacSorley. Ambos estiveram sentados junto ao rei com suas esposas, embora nesse momento só elas permaneciam ali.
Pode ser que não soubesse todos os detalhes, mas Anna sabia o suficiente para compreender quanto significavam esses homens para Arthur, embora não fosse consciente disso. Entretanto, seria.
Arthur encolheu os ombros como se aquilo não lhe importasse realmente.
—Há paz no norte, mas nas fronteiras continuam as revoltas. Estou seguro de que teriam vindo se fosse possível. Gordon se casará logo. Talvez consiga vê-los todos nesse dia. Há muito que fazer antes que o rei atenda a seu primeiro Parlamento na próxima primavera — continuou, depois de uma pausa — Estou contente de que meus irmãos possam estar aqui. É a primeira vez que estamos todos juntos na mesma estadia há anos.
Sir Dugald e sir Gillispie se renderam junto a seu avô e Ross. Surpreendentemente, não pareciam guardar rancor de Arthur; entretanto, pela expressão de sir Dugald enquanto discutia com sir Neil, não se podia dizer que seus sentimentos fossem os mesmos para seu irmão mais velho.
—Pois pelo que parece, poderiam ter esperado mais tempo.
Arthur sorriu.
—Sempre foram assim. Rivais encarniçados, inclusive quando pequenos. Eu acredito que essa é a razão pela que Dugald se alinhou junto aos ingleses durante tanto tempo, para não ter que acatar ordens do Neil. Já se arrumarão. A seu devido tempo.
Anna advertiu que Arthur voltava o olhar ao redor.
—Está preparado para dançar? —perguntou com inquietação.
Arthur arqueou uma sobrancelha.
—Estou preparado para ir à cama.
O olhar dela se voltou de novo para Gregor MacGregor de maneira inconsciente. Para seu consolo, dessa vez o guerreiro assentiu. Entretanto, quando voltou o olhar para este Arthur tinha os olhos entreabertos.
—Importaria de me dizer por que cada vez que menciono a cama olha ao MacGregor? —Anna se ruborizou — Vai me dizer do que se trata? —exigiu com aborrecimento — Está tramando algo. E não me diga o contrário, porque posso pressentir.
Anna ergueu o queixo, molesta com sua acuidade.
—Acreditava que seu calcanhar de Aquiles fosse eu.
—E é —disse Arthur com um gesto brusco da mão — Mas não o dele.
Não parecia fácil surpreender a alguém que estava pendente de cada matiz, que notava qualquer mudança e advertia qualquer movimento a seu redor. Inclusive tinha percebido as mudanças de seu corpo antes dela e a informou que seria melhor que adiantassem as bodas ou seu filho seria muito grande para ter só dois meses de vida.
Anna o obsequiou com um olhar de suficiência.
—Está ciumento. —Deixou que seu olhar voltasse a recair sobre o fundo da mesa e ficou olhando de maneira pausada, como se o estivesse apreciando — É bastante bonito esse teu amigo.
Sua cara feia piorou mais ainda.
—Pois não será por muito tempo, se continua olhando-o assim. E não me respondeste.
Anna soprou e se deu por vencida.
—Está bem, mas queria que fosse uma surpresa.
—O que queria que fosse uma surpresa?
Depois de um breve passeio além das portas do castelo Arthur descobriu a razão para tanto subterfúgio. De pé numa clareira da floresta, com o halo laranja do sol do entardecer atrás dele, erguia-se o rei Robert Bruce ante um obelisco, investido com toda a cerimônia real que lhe supunha. Junto a ele, alinhados como um pano de fundo, com seus traços mascarados sob os elmos com nasal cobertos de breu, esperavam os outros dez membros da Guarda secreta de Bruce.
Arthur se deteve sobre seus passos e lhe dirigiu um rápido olhar de incredulidade.
—Tiveste algo que ver nisto?
Anna negou com a cabeça.
—Foi idéia do rei Hoo… —começou, detendo-se o ver o rosto que punha seu marido — Foi idéia do rei Robert —se corrigiu, embora esse título ainda não saía de seus lábios com naturalidade — Minha missão era te distrair —disse fazendo uma careta — Uma missão em que, ao que parece, fracassei.
Arthur a agarrou em braços e a beijou.
—Pois eu acredito que a cumpriu que maneira admirável.
Anna transbordou de alegria.
—Vá. Estão esperando.
Por fim Arthur teria a cerimônia da que nunca pôde gozar. A cerimônia que lhe fora negado por seu papel como espião. Aqueles homens eram tão parte dele como ela mesma. Anna cruzou os braços sobre seu ventre. E como logo seria seu bebê.
—Não demorarei muito — disse Arthur trás beijá-la de novo.
—Estarei esperando.
«Sempre.» Do mesmo modo que ele retornaria sempre para ela. Aquele homem que a todo momento olhava à porta como se quisesse fugir, tinha encontrado o lugar ao que pertencia. E em um mundo no que a paz era tão frágil como uma parte de cristal, Anna tinha encontrado a rocha em que apoiar-se.
Observou-o dirigir-se para eles com o peito cheio pelo orgulho e felicidade. Uma vez que chegou lá, Anna começou a afastar-se. Entretanto, mal teve percorrido alguns metros mais à frente do círculo de árvores quando duas mulheres a detiveram.
—Aonde vai? —perguntou em um sussurro Christina, a mulher de Tor MacLeod.
Anna tentou não sentir-se intimidada por sua beleza, mas parecia impossível. Christina era tão deliciosa e refinada como uma princesa de conto de fadas, sobretudo ao compará-la com o aspecto aterrador de seu marido, que parecia tirado das páginas arrancadas de algum livro antigo sobre mitologia nórdica.
—Eu… pensava que não pudesse olhar.
A segunda das mulheres sorriu. Embora não era tão incrivelmente formosa como Christina Fraser, havia algo sereno e agradável em Elyne, a esposa do descarado pirata Erik MacSorley. Anna ficou perplexa quando descobriu que era a filha do conde de Ulster, um amigo íntimo do rei da Inglaterra. Mas também era irmã da esposa encarcerada do rei Robert, Elizabeth. Outra família dividida, ao que parecia.
—Acham que não —disse Elyne — Mas isso não vai me deter. Não tive oportunidade de ver a de meu marido. Não perderia isso por nada do mundo.
—Não se zangarão? —perguntou Anna.
Christina lhe dirigiu um sorriso insolente.
—Superarão. Além disso, quero ver que tipo de marca lhe põem.
Anna a olhou com surpresa.
—Já tem uma. O leão rampante. Pensei que todos os homens o tinham.
—Assim é —respondeu Christina — Mas decidiram acrescentar outra pela aranha da cova. Conhece a história?
Anna assentiu. A história da aranha de Bruce na cova formava já parte da lenda.
—Para honrar a ocasião, Erik decidiu acrescentar uma em forma de gargantilha ao redor de seu braço que parece uma teia de aranha — disse Elyne — Como é marinheiro, incorporou também o birlinn nele —acrescentou com um sorriso — Uma vez que outros o viram, todos decidiram fazer um. —Elyne, entre risadas, ergueu o olhar ao céu como dizendo: «Homens».
—Venha — disse Christina, agarrando-a pelo braço e arrastando-a de novo para as árvores — Já começaram.
As três mulheres contemplaram juntas das sombras como Arthur se ajoelhava ante o rei e tomava o lugar que lhe correspondia por direito próprio entre seus companheiros da Guarda, seus amigos.
«Inquebrável», dizia a gravação na espada que Bruce lhe entregou. Anna não podia estar mais de acordo.
Fim
Nota da Autora
A batalha do Estreito de Brander foi chave na guerra de independência da Escócia. Não só representa um exemplo da mudança de estratégias de Bruce, pois este deu uma emboscada a quem pretendia lhe dar uma, mas sim também assinala a precipitada queda em desgraça dos MacDougall e a mudança de poderes na política das Highlands Ocidentais para outro ramo de descendentes de Somerled, os MacDonald, e também para os Campbell, que se beneficiariam do infortúnio dos MacDougall.
Há certo desacordo entre os historiadores na hora de datar a campanha de Bruce em Argyll após a qual John de Lorn fugiu da Escócia e a queda do castelo de Dunstaffnage. Decantei-me pela data mais convencional do verão do ano de 1308, mas há quem opine que a capitulação final de Argyll não foi antes do ano de 1309.
Embora a forma como narro a batalha seja fictícia, incorporei muitos dos acontecimentos reais, entre os quais se inclui John de Lorn dirigindo seus homens de um birlinn à beira do lago, já que se supunha que estava recuperando-se dessa enfermidade que tinha propiciado a trégua do ano anterior. Diz-se ainda que ao falhar seu ataque, retirou-se a um de seus castelos.
Mas há um detalhe em particular da batalha que foi o que me deu a idéia para a história. Li algo a respeito de um explorador que supostamente tinha advertido ao Bruce da emboscada, com isso salvou sua pele. Aquilo soava como um trabalho perfeito para meu rastreador de elite Arthur Campbell.
O personagem de Arthur Campbell está inspirado vagamente em Arthur de Dunstaffnage, o irmão, ou pode ser que o primo do Neil Campbell. Tal e como sugere seu apelido, foi renomado governante do castelo de Dunstaffnage depois da guerra. Algo que encaixava à perfeição com minha heroína MacDougall, embora Anna seja um personagem fictício e o nome da esposa de Arthur, se é que a houve, não apareceu. Curiosamente, sim existiu um compromisso de matrimônio entre Arthur e Christina das Ilhas MacRuairi, embora nunca chegaram a casar-se.
O que também se adequa à perfeição com Arthur, e deste modo com seu irmão Dugald, é que se dizia que esteve no lado dos ingleses durante um tempo e mais tarde passou ao de Bruce. Arthur de Dunstaffnage não é, provavelmente, o mesmo Arthur progenitor do clã MacArthur. Parece mais plausível que este Arthur proviesse de outro ramo da família, possivelmente mais antiga, os Campbell do Strachur (que significa «filhos de Arthur»). Mas há muita confusão e existem diferentes teorias respeito à linhagem dos MacArthur, incluindo a descendência direta do rei Artur. Um antigo provérbio das Highlands diz: «Não há nada mais antigo que as colinas, MacArthur e o diabo».
Neil Campbell foi um dos partidários de Robert Bruce mais importantes e leais. De fato, ao final Neil acabaria casando-se com a irmã do rei, Mary, quando a libertaram do cativeiro da jaula nas alturas do castelo do Roxburgh, ao redor do ano 1310. Mary voltaria a casar-se depois da morte de Neil, algo comum em uma época em que havia tantos viúvos e viúvas. Aos leitores do primeiro livro da série, O Guerreiro, talvez lhes interesse saber que seu segundo marido foi Alexander Fraser, o irmão da Christina.
Um interessante ponto e aparte na história do Neil dá certo colorido à época: parece ser que sua primeira esposa era filha de Andrew Crawford. Neil e seu irmão Dugald, que foram nomeados guardiães das duas irmãs Crawford, decidiram tomar como esposas de maneira literal: seqüestraram-nas.
John de Lorn, também conhecido como John Bacach (John o Coxo) e como John de Argyll, foi uma figura destacada na política das Highlands Ocidentais, responsável não só da morte do Colin Mor Campbell na batalha de Red Ford, mas também da de seu parente Alexander MacDonald, lorde de Islay, o irmão de Angus Og.
Lorn sofreu enormemente por sua lealdade aos Comyn, a quem estava ligado por matrimônio, e também por seu ódio ao Bruce, algo que, dado que este assassinou ao Comyn o Vermelho, era uma circunstância bastante compreensível.
O uso de mensageiras femininas por parte de Lorn é minha invenção, mas a frustração das missivas que se perdiam não é. A esse período sobreviveram algumas epístolas, entre as que se inclui uma carta recentemente decifrada do oficial do Banff dirigida ao Eduardo II em que se queixa dos assassinatos de seus mensageiros. Do mesmo modo, a frustração de Lorn ao ficar sozinho frente a Bruce e a dificuldade de conseguir apoios dos barões locais está apoiada na correspondência entre Lorn e Eduardo II, em que o primeiro afirma que se vê obrigado a uma trégua com Bruce porque está doente e «os barões de Argyll não me emprestam ajuda alguma» (Robert Bruce, G.W.S. Barrow, Edinburgo University Press, Edinburgo, Escócia, 2005, P. 231).
Não há fonte que confirme a doença de Lorn. O ataque ao coração e os conseguintes problemas coronários são de minha própria invenção, algo que resulta ajustar-se bem a sua propensão a esses violentos ataques de cólera. Paralelamente, também se desconhece a fonte da que provém a enfermidade debilitante que golpeou ao Bruce no inverno do ano 1307. Embora certos rumores históricos a identificam com a lepra, as últimas hipóteses apontam que devia ser escorbuto. Qualquer que fosse a causa, sacudiu com força ao novo rei e, conforme se diz, esteve a ponto de acabar com ele. Supostamente, Bruce foi levado nas costas por seus homens à batalha de Inverurie.
O broche que Lorn leva no capítulo dois, do qual se diz que o arrancaram de Robert durante da batalha de Dal Righ, segue em poder do chefe dos MacDougall, e sua última aparição em cena é tão recente que somente faz cinqüenta anos. Não obstante, alguns peritos asseguram que o broche em questão provinha de um período anterior.
A batalha de Red Ford ocorreu de maneira diferente de como eu a retratei. Mais que uma emboscada, John de Lorn se encontrou com o Colin Mor junto a um córrego que desembocava no Loch na Streinge (mais tarde chamado Allt a chomhla chaidh, quer dizer, o córrego do encontro). A discussão degenerou em uma briga e este em uma batalha. Os MacDougall se viram superados em número, e parecia que perderiam, até que um arqueiro disparou sobre o Colin o Grande detrás de uma pedra e o matou.
Até onde chegava o poder dos Campbell nas imediações do Loch Awe antes da guerra é algo que não se tem ciência certa, mas já que o fizeram magistrado municipal de Loch Awe perto do ano 1296, podemos presumir que não foi insignificante. Embora se acredita que os Campbell detiveram a propriedade o castelo de Innis Chonnel anterior a dos MacDougall, cuja existência está confirmada no ano 1308, os historiadores não estão seguros disso. Não obstante, no momento em que transcorre o livro, o castelo estava nas mãos dos MacDougall. Lorn menciona em uma carta ao rei Eduardo os três castelos que possui em Loch Awe.
O ódio entre Bruce e os MacDougall só rivalizava com o de seus parentes os Comyn. A «perseguição de Buchan» que seguiu à batalha do Inverurie (ou batalha de Barra) de 23 de maio de 1308, a qual tem lugar a princípio do livro, parece ser uma das poucas ocasiões nas que Bruce deu rédea solta à vingança. A destruição foi tão devastadora que se diz que demoraram anos em recuperar-se e que se falou dela durante gerações inteiras.
Pelo contrário, o rei Robert sim que aceitou a rendição de William (Uilleam II), o conde do Ross, sem tomar represálias pelo papel que tinha desempenhado Ross na captura e posterior encarceramento das damas de Bruce (sua esposa, sua filha, suas irmãs e a condessa de Buchan). Não muito tempo depois da rendição de Ross, seu filho Hugh (Aodh) casaria-se com a irmã de Bruce, Mathilda.
Conforme contam, Alexander MacDougall, lorde do Argyll, era muito velho e estava doente no momento da batalha do Brander. Rendeu-se ante Bruce depois do assédio ao castelo de Dunstaffnage e atendeu ao primeiro Parlamento do rei em março de 1309, mas depois acompanhou a seu filho no exílio, onde morreu em 1310.
Como é habitual, alguns dos castelos que são mencionados no livro são conhecidos com outros nomes. O castelo de Auldearn se conhece também pelo Old Even e o castelo de Glassery (ou Glassary) conhece-se como castelo do Fincharn.
A tortura medieval dos ratos era muito mais truculenta do que sugiro. Colocavam sobre o estômago da vítima uma jaula fechada com um rato em seu interior e depois a esquentavam em cima. O rato, em sua tentativa de escapar, roía lentamente as vísceras do condenado. Um detalhe… interessante que provavelmente teria dotado ao livro de um «colorido» muito fiel à época.
Finalmente, os leitores do terceiro livro de minha trilogia dos Campbell, O highlander traído, talvez percebam a conexão entre a espada de Arthur e a de Duncan, em que gravaram a lenda: «Inquebrável» que passou de geração em geração dos tempos de Bruce. Apesar de que seja de minha própria mente, é obvio que era costume gravar lendas nas espadas e passá-las ao herdeiro.
Notas
[1] Hora da oração completa. Onde estariam todos juntos, sem exceção e rezariam supostamente o rosário completo.
[2] Uma vestimenta, normalmente bordada com o brasão, usada sobre a armadura.
[3] O Rei Robert the Bruce era chamado pelos ingleses e simpatizantes por King Hood, para insultá-lo por usar uma longa capa com capuz. Hood em inglês significa capuz.
[4] Ela se referiu antes a dores no peito do pai. Possivelmente se trate de insuficiência cardíaca do ventrículo esquerdo, onde ele não “retira” o sangue do pulmão, daí o termo encharcamento.
[5] Um “leão rampante” é representado em pé ereto de perfil, com as patas dianteiras levantadas. A posição das patas traseiras varia de acordo com os costumes locais: o leão pode estar em ambas as patas traseiras afastadas, ou em apenas sobre uma, com a outra também levantada para o ataque; a palavra rampant é frequentemente omitida, especialmente nos brasões mais antigos, pois esta é a posição mais usual de um quadrúpede carnívoro.
[6] Um bardo entre os Highlanders da Escócia, que preservaram e repetiam a tradições das tribos, também, um genealogista.
[7] Adonis era um jovem de grande beleza que nasceu das relações incestuosas que o rei Cíniras de Chipre manteve com a sua filha Mirra. Adônis passou a despertar o amor de Perséfone e Afrodite. Mais tarde as duas deusas passaram a disputar a companhia do menino, e tiveram que submeter-se à sentença de Zeus. Este estipulou que ele passaria um terço do ano com cada uma delas, mas Adônis, que preferia Afrodite, permanecia com ela também o terço restante. Nasce desse mito a ideia do ciclo anual da vegetação, com a semente que permanece sob a terra por quatro meses.
[8] O luchd-taighe eram guardas da comitiva pessoal do chefe, ou em termos coloquiais, a sua posse. Sua finalidade era atender o chefe em todos os momentos. Eles eram bem treinados em armas e ações marítimas, bem como perseguições a outros guerreiros. Era uma grande honra ser escolhido como um dos guardas pessoais do chefe e o prestígio de um chefe era derivada a partir do número destes homens luchd-taighe.
[9] Hobelars eram um tipo de cavalaria ligeira, ou montado de infantaria, durdiante da Idade Média , usado para escaramuças. Eles se originaram no século 13 na Irlanda e, geralmente, montavam os cavalos hobelar, um tipo de cavalo leve e ágil.
[10] O escudo é dividido em 8 triângulos.
[11] Tomás da Inglaterra (ou Tomás da Bretanha) foi um poeta anglo-normando do século XII. Sua única obra conhecida é o poema Tristan, uma das primeiras versões conhecidas da lenda de Tristão e Isolda. O poema foi escrito entre 1155 e 1170, possivelmente para Leonor de Aquitânia, uma vez que a obra sugere uma relação com a corte de Henrique II Plantageneta. Apenas oito fragmentos da obra sobreviveram aos nossos dias, com um total de 3.300 versos, especialmente da parte final da história . Calcula-se que isso represente cerca de um sexto do poema original. A obra de Tomás é contemporânea de outro grande poema sobre o tema de Tristão e Isolda, escrito por um misterioso escritor chamado Béroul e que também chegou de maneira fragmentária aos nossos dias. Comparada à obra de Béroul, o Tristan de Tomás é considerado mais próximo do refinamento do romance cortês.
[12] cama bamba, meio velha ou quebrada.
[13] Os Saxões chamavam ao grupo das pedras eretas (menhires) «Stonehenge» ou «Hanging Stones» (Pedras Suspensas), enquanto os escritores medievais se referem como «Dança de Gigantes». Inigo Jones, famoso arquiteto do século XVII que fez o primeiro estudo sério sobre Stonehenge, considerou-o um Templo romano. Mas William Stukeley, um estudioso de Monumentos e Franco-Maçom do século XVIII, convenceu muita gente de que se tratava de um Templo construído pelos druidas britânicos. Só no século XX os arqueólogos estabeleceram a idade real do Monumento e chegaram a conclusões mais realistas acerca da sua finalidade. A zona de Wiltshire, nos arredores de Stonehenge, é rica em ruínas Pré-Históricas. Woodehenge, Durrington Walls, Cursus e mais de 350 sepulturas são testemunho da intensa atividade comunal dos habitantes, que pastoreavam animais, semeavam trigo e adoravam os seus Deuses na Planície de Salisbury e em torno dela. A construção de Stonehenge teve início cerca de 3500 a. C
[14] Monges beneditinos bastante severos
[15] O aplastapulgares é uma das torturas mais antigas e simples. Embora vários dispositivos mecânicos foram usados para realizar a tortura em si foi o esmagamento das unhas, falanges e juntas em um lento e gradual, estendendo-se a dor por dias, sem causar danos letais para a vítima. O nível de perturbação pode ser controlado, a ponto de quase mutilação do membro. Para crimes de tortura geralmente grave usa-se lentamente, começando com as unhas, passando depois para as falanges e terminando nas juntas, e destruindo completamente as duas mãos.
Capítulo 20
—Retornaram!
Anna correu até a janela de seus aposentos ao perceber a excitação na voz da Mary. Examinou com fruição as figuras com armadura que atravessavam as portas do castelo e quando por fim reconheceu a familiar envergadura de seus ombros exalou profundamente, como se tivesse passado quatro dias contendo a respiração. Havia retornado. Não a tinha abandonado. Dizia a si mesma que era uma loucura pensar que ele fosse capaz de tal coisa. Entretanto, não queria admitir quanto tinha chegado a preocupar-se.
Anna afastou seu trabalho de bordado e saiu correndo do aposento seguindo os passos de sua irmã, que parecia tão emocionada como ela pela volta da partida de reconhecimento. Franziu o cenho. Acaso para sua irmã Mary importava mais o irmão de Arthur do que admitia? Chegaram ao salão justo no momento em que faziam entrar o grupo à câmara de seu pai para dar parte de seu avanço. Fazia um momento que tinham terminado a refeição leve, mas Mary e ela pediram que preparassem algo de comer e beber enquanto aguardavam os homens. Depois de uma espera que lhes pareceu interminável, estes saíram da câmara de seu pai e entraram no salão. O primeiro a fazer foi seu irmão, depois sir Dugald e logo, ao fim, Arthur. Embora estivesse coberto de pó e sujeira, com um rosto maltratado pelo sol, barba de quatro dias e aroma de estrebaria reaquecida, a Anna jamais pareceu mais maravilhoso. Se não fosse pela multidão de homens do clã que se agrupava a seu redor no salão, teria saltado a seus braços.
Afastaram-se um momento enquanto os serventes preparavam as mesas. Desta vez não poderia evitá-la.
—Está bem? —perguntou Anna sem acreditar em seus olhos.
O olhar de Arthur se suavizou ao perceber sua preocupação.
—Sim, moça. Estou bem. Necessito um bom banho, mas, além disso, estou perfeitamente são.
—Alegra-me ouvi-lo — disse mordendo o lábio e olhando-o com vacilação —… Senti tua falta.
Arthur se estremeceu e uma pulsação fez tremer seu queixo.
—Anna…
Ela engoliu em seco e sentiu que de repente lhe quebrava a voz.
—Pensastes em mim?
—Tinha muito em que pensar. —Mas depois, ao ver o rosto que punha, arrependeu-se — Sim, moça. Pensei em você.
Teria ficado contente com isso, a não ser pelo que tanto que custou admiti-lo. As mesas de cavalete estavam já preparadas e os serventes começavam a por pratos com comida. O resto dos homens desfilava para os assentos. E ali foi aonde olhou Arthur do lugar em que estava, junto à câmara de seu pai. Parecia ansioso por reunir-se com eles. Anna não podia enganar-se por mais tempo.
—Não desejas este compromisso. —A verdade ardia. Anna ficou olhando-o fixamente, atormentada pela própria dor de seu peito — É que…? —Mal podia pronunciar as palavras. Tinha comentado que lhe ofereceriam uma esposa como recompensa — É que esperava te casar com outra?
Arthur a olhou com dureza.
—Do que estais falando? Já vos disse que não havia nenhuma outra.
—Então é simplesmente que não me quer.
Parecia que algo o atormentasse.
—Anna… —Arthur pigarreou — Agora não é o momento.
Apesar de que estivessem rodeados de gente, Anna não pôde reprimir toda sua frustração.
—Nunca é o momento. Ou está fora, ou encerrado em alguma reunião ou ocupado praticando. Quando, rogo a Deus que diga, é o momento?
Arthur, visivelmente frustrado, alisou com uma mão seus cabelos encrespados pelo elmo, que lhe caíam em suaves ondas por cima das orelhas. Anna esteve a ponto de acomodar as mechas atrás delas, mas se deteve a tempo.
—Não sei, mas agora mesmo quão único quero é comer algo, tirar toda esta porcaria de cima e dormir algo mais que umas poucas horas.
Devia estar exausto. Por um momento Anna se sentiu culpada, mas não durou muito. Não pensava permitir que seguisse lhe dando voltas.
—Então amanhã. Falaremos amanhã - disse, olhando-o com firmeza — Em particular.
Talvez, mais que atormentado, estivesse assustado. Não pensava que fosse capaz disso, mas ao que parecia estar a sós com a Anna conseguia algo do que não eram capaz dezenas de guerreiros armados. Não sabia se era pra rir ou chorar.
—Não posso. Supõe-se que sairemos de guarda.
—Quando retornarem. —Parecia louco por encontrar outra desculpa, mas Anna o impediu — Já sei que está ocupado preparando a batalha, mas é que não mereço uns minutos de seu tempo?
Arthur lhe sustentou o olhar durante alguns momentos.
—Sim, moça. Claro que o merece.
—Bem. Então vá comer — disse assinalando uma das mesas — Seus irmãos te esperam.
Arthur assentiu levemente e foi reunir se com sua família enquanto Anna dava meia volta e encontrava a sua irmã Mary mais perto do esperado. Observava-a com uma expressão de comiseração no rosto.
—Não passa nada —disse Anna, envergonhada pelo que pudesse ter ouvido — Está cansado. Isso é tudo.
Mary a agarrou sua mão e a apertou.
—Tome cuidado, Annie querida. Há homens que não querem ser amados.
Ficou circunspeta.
—Isso não é certo, Mary. Todo mundo quer ser amado.
Um sorriso de melancolia escureceu a boca perfeita de sua irmã.
—Amas muito, irmãzinha. Mas há gente que não quer esse tipo de cercania. Há gente que prefere que lhes deixem em paz.
Embora Anna não quisesse acreditar nas palavras de sua irmã, perseguiram-na durante todo o dia enquanto esperava a oportunidade para falar com ele.
Arthur saiu a cavalgar pela manhã cedo, retornou a tempo para a refeição do meio-dia e depois participou junto com seus irmãos e o resto dos homens no treinamento vespertino que faziam no pátio. Os exercícios se intensificavam cada vez mais já que se aproximava a batalha. Aproveitavam a luz dos longos dias de verão e não acabavam até as oito da tarde. O jantar era frugal, como também eram as preces vespertinas. Anna se viu tentada de o seguir ao ver que se dirigia para o lago, mas sua mãe a reclamou para que a ajudasse a dirimir uma disputa nas contas do lar, e uma vez que acabou, ele já estava de volta e se encerrou em uma reunião junto aos cavalheiros de alta fila e os guerreiros da meinie de seu pai no que se converteu em um conselho de guerra noturno. Anna o esperou em uma pequena saleta situada no vão da escada, consciente de que Arthur teria que passar por ali a caminho dos barracões. Normalmente somente ia a aquele lugar para ler algum livro, mas estar oculto do olhar por uns cortinados de veludo parecia algo mais particular que lhe esperar no salão, repleto de homens que dormiam. Tinha levado consigo uma vela para ler, mas à medida que caía a noite seus olhos se cansaram demais, de modo que a pôs a um lado.
Devia ser meia-noite quando os homens começaram a sair dos aposentos de seu pai. Arthur foi um dos últimos, mas Anna finalmente viu como entrava pelo corredor junto a seus irmãos. Quando se aproximou de sua posição, ela afastou os cortinados e desceu a escadinha para dirigir-se a ele. Para ouvir o comentário de seu irmão, Arthur a buscou com o olhar com uma expressão mais resolvida que surpreendida e foi a seu encontro, enquanto seus irmãos abriam a porta que conduzia ao barmkin.
—Não deveria ter permanecido acordada - disse.
—Esqueceu que acordamos nos ver hoje? —repôs ela com o cenho franzido.
—Não. —Suspirou — Não esqueci.
Apareceram mais homens no corredor.
—Venha — lhe disse Anna, protegendo-se em uma pequena cova que usavam para armazenar o vinho do senhor do castelo, aonde ninguém lhes incomodaria.
Assim que abriu a porta sucumbiu ao rico e frutífero aroma, que se intensificou ao fechar a estadia. Colocou a vela sobre um dos tonéis e se voltou para olhá-lo. Tratava-se de uma despensa pequena encravada na parede. Um espaço íntimo, muito íntimo. Anna se ruborizou ao conscientizar-se disso. Arthur permanecia ali à luz trêmula das velas como um convidado de pedra, com uma expressão rígida e forçada. Ficou surpresa ao ver que apertava os punhos.
—Isto não é uma boa idéia — disse ele com voz quebrada.
—Por que não?
Arthur a olhou com severidade.
—Não recorda o que aconteceu a última vez que estivemos encerrados em um aposento pequeno?
Anna se ruborizou. Era difícil não recordar à perfeição estando tão perto dele. O calor que desprendia seu corpo a envolvia e sua pele se arrepiava ao recordar as intimidades que tinham compartilhado. Mas não era para isso que o tinha levado ali.
—Só demoraremos uns minutos. Preciso saber… — Ergueu o olhar para examinar seu arrumado e tenso rosto — Quero que me diga se deseja este compromisso ou não.
A franqueza de Anna já não surpreendia a Arthur.
—Anna… — disse tentando lhe distrair — É complicado.
—Isso já disse antes. O que ocultas, Arthur? O que há aí que não quer me contar?
—Há coisas — disse contendo-se e olhando-a com aspereza — Não sou o homem que pensam.
—Sei exatamente o tipo de homem que é.
—Não sabe tudo.
Anna reconheceu o tom de advertência.
—Então me conte isso - Ao ver que não respondia, acrescentou—: Sei o que é o importante. E sei que te quero.
Aquelas palavras pareceram lhe doer. Arthur se aproximou para acariciar a bochecha com uma expressão de tristeza que lhe rompeu o coração.
—Pode ser que pense isso agora, mas logo mudará de opinião.
Seu tom paternalista e essas advertências crípticas a punham fora de si.
—Não o farei — disse Anna com veemência, apertando os punhos para aplacar a vontade que tinha de gritar ou de romper a chorar. Respirou profundamente para acalmar-se e continuou—: É algo muito simples, Arthur: quer se casar comigo, sim ou não?
—O que eu quero não vem ao caso. Estou pensando em você, Anna. Pode ser que agora mesmo não te pareça isso, mas acredite quando lhes digo que o faço por seu próprio bem. Não quero te fazer dano. Tudo pode mudar durante nos próximos dias. A guerra mudará tudo.
Tinha razão. Parecia que todos seus sonhos pendessem de um fio. A guerra estava a ponto de cair sobre eles e tudo o que conheciam mudaria em um abrir e fechar de olhos. A espada de Damocles pendia sobre o poder dos MacDougall nas Highlands. Mas havia algo ao que Anna podia acolher.
—Isso não mudará meus sentimentos por você. São os seus os que estão em julgamento. Não respondestes a minha pergunta — disse depois de uma pausa.
Arthur amaldiçoou e se afastou da porta uns passos, numa tentativa de perambular que não encontrava espaço suficiente. Quase roçava o teto com a cabeça. Parecia um leão à espreita em uma jaula muito pequena. Estava em um estado de rigidez absoluta, irradiando tensão por cada um de seus poros. Ao final deu a volta e a tomou pelo braço com expressão furiosa.
—Sim, maldita seja. Quero me casar contigo.
A escura nuvem que se pousou sobre ela se dissipou. Não era a declaração de amor mais romântica que tivesse ouvido, mas isso bastava. Seu corpo se encheu de calidez, e sorriu.
—Então o resto não importa — disse aproximando-se mais a ele e procurando instintivamente a conexão entre ambos corpos.
Arthur se estremeceu ao notar o contato, mas nessa ocasião Anna não procurou mais razões. Queria-a. Muito. Apesar de que fizesse quanto podia por resistir a isso. A tensão se desprendia de seu corpo reverberando como a pele de um tambor. Seus olhos se pousavam sobre seus lábios com um olhar obscurecido pelo desejo, mas mesmo assim seguia lutando contra isso.
—O que acontecerá não voltará, Anna? Então o que?
Gelou o sangue. Por isso atuava daquele modo? Tentava prepará-la em caso de que morresse no campo de batalha? Não suportava pensar nisso, mas sabia que existia essa possibilidade. Ele podia morrer. Atraiu-o mais para si, aferrando-se aos fortes músculos de seu braço como se jamais pensasse deixá-lo partir. Deus não podia ser tão cruel para afastá-lo dela. Mas e se o fizesse? , pensou com o coração encolhido.
Ela sabia o que queria. Não estava na sua mão controlar o que aconteceria no futuro, mas sim que podia controlar o presente. Talvez sim o tivesse levado a esse lugar com uma segunda intenção.
Arthur era consciente de que aquilo era má idéia, mas tal e como tinha comprovado mais vezes das que queria recordar, era um perfeito tolo no que se referia a Anna MacDougall. O sangue corria cálido por suas veias e uma pátina de suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. O intenso aroma do vinho, o almiscarado cheiro de terra do pequeno aposento e a leve fragrância floral de sua pele o embriagavam de desejo. Estavam muito perto um do outro, e sua necessidade era muito urgente. As imagens do quanto desejava fazer amor com ela davam voltas em sua cabeça deixando-o meio louco. Estavam a sós, maldita seja. Era muito perigoso. Mas se Arthur pensava que a desanimaria lhe falando de um futuro incerto, tinha errado em seus cálculos.
—Não quero pensar na guerra nem no que acontecerá amanhã. Somente quero pensar no presente. Se hoje fosse o último dia que ficássemos juntos, o que é o que queria?
«A você.» Sentiu a pulsação. Queria o que lhe oferecia mais que tudo no mundo.
Eram suas palavras. Sua certeza. O fazia sonhar. Arthur queria acreditar que havia um futuro possível. Queria acreditar, embora fosse por um instante, que Anna podia ser dele. Seu coração bateu como um tambor quando ficou nas pontas dos pés para lhe beijar. Em sua luta por não equilibrar-se sobre ela, Arthur deixou escapar um gemido. Sabia que assim que o fizesse não teria forma de parar. Tinha uma boca cálida e suave, muito doce. Tinha sabor de mel e cheirava como… Deus, cheirava como um jardim recém regado sob o sol estival.
Anna lhe acariciou o queixo com os lábios. Depois, o pescoço. Arthur começou a tremer. Não poderia agüentar aquilo durante muito mais tempo. Via-se incapaz de resistir. Rezava para que a tortura acabasse, mas em vez disso piorou. Anna apertou seus quadris contra ele e se esfregou contra a parte de seu corpo que desejava mais o contato, a parte de seu corpo que estava dura e palpitava, e que era impossível de controlar.
—Aquele dia estivemos tão perto — sussurrou junto ao pescoço de Arthur com um quente fôlego que provocou calafrios em sua pele em chamas— que quero saber como segue. —Uma gota de suor apareceu por sua têmpora. O frio aposento se esquentou em questão de segundos. Anna lhe rodeou o pescoço com seus braços e se grudou a ele. Buscou-o com o olhar — me ensinem Arthur.
Essa petição desavergonhada rompeu o último fio de que pendiam as reservas de Arthur. Soltou um grunhido, empurrou-a contra a porta, prendendo suas mãos por trás da cabeça, e a beijou. Não, devorou-a com seus beijos. Se deu um festim com sua boca fazendo uso dos lábios e a língua, beijando-a como se jamais pudesse saciar-se.
Ela respondeu a seu ardor com mais ardor, engastando sua língua a dele, imitando seus eróticos movimentos. O crepitar na cabeça de Arthur era cada vez mais sonoro. Seu corpo estava cada vez mais tenso. Mas não era suficiente. Tombou-se sobre ela, fez que seus corpos se acoplassem e começou a mover-se, primeiro com delicadeza e depois com mais insistência, à medida que Anna se retorcia e gemia com inocente frustração. Tinha vontade de lhe levantar as saias e afundar-se dentro dela, ver como se desfazia quando ele se aferrava nela mais forte e mais profundo. Uma e outra vez. Reclamando-a para si.
Mas estava tão receptiva, sentia o prazer de uma forma tão pura, que em seu interior cresceu uma onda de ternura que lhe fez afastar-se. Anna ficou piscando com uns olhos incrédulos que nadavam em paixão e a boca meio aberta, com os lábios inchados por seus beijos, mal separados.
—Rogo-lhes isso, não…
—Chist! —disse Arthur sossegando seus protestos com um doce beijo — Não vou parar.
Era muito tarde para isso. Era um homem, não um santo vindo do céu. Tinha muita vontade de possuí-la e ela o tinha levado muito longe. Já teria tempo para as recriminações. Nesse momento, Anna era dele. Mas não a teria contra uma porta como se fosse um animal no cio. Soltou o broche dos Campbell que levava para ajustar a manta e a estendeu sobre o chão de pedra. Depois se sentou sobre ela e lhe estendeu a mão. Anna não duvidou. Aceitou sua mão e permitiu que a recostasse a seu lado com um sorriso que lhe partiu o coração. Havia justo o espaço suficiente para esticar-se entre os tonéis de vinho.
Arthur acariciou seus cabelos e a atraiu para si para beijá-la com toda a paixão e a emoção que se concentravam em seu interior. Beijou-a como se fosse tudo para ele, e Anna se deixou levar pela doce posse daquele beijo. Se aninhou a seu lado e se sentiu cálida, amparada e protegida acima de tudo que acontecia fora do círculo mágico de seu abraço. Sentia… «Paz.» Em seus braços sentia essa paz e alegria que sempre lhe eram esquivas.
Voltou a passar os dedos entre seus cabelos e lhe sustentou o pescoço com sua grande e calosa mão, descrevendo suaves círculos em sua nuca com o polegar.
Poderia passar a vida beijando-o, estendida junto a ele, amoldando-se a seu corpo, sentindo a rígida força de seus músculos contra ela. Seu calor era como uma vagem protetora que os rodeava. As longas e pausadas carícias de sua língua faziam que se derretesse de paixão. Era perfeito. Mas quando essas longas e pausadas carícias pediram mais, quando seus beijos se fizeram mais intensos e profundos, quando começou a apertá-la com mais força e Anna percebeu a dura coluna de aço que pressionava seu ventre, se deu conta de que aqueles beijos não eram suficiente. Sentiu essa estranha sensação formando-se de novo em seu interior. O despertar. Os indícios. A energia incansável que pulsava entre suas pernas e fazia que ansiasse esse contato até o desespero. Mas nessa ocasião estava a par do que aconteceria depois. Recordava a mão de Arthur entre suas pernas, seus dedos dentro dela, os agudos espasmos do momento de liberação.
Recordava perfeitamente a avultada cabeça redonda de sua virilidade golpeando em seu interior de maneira íntima.
Gemeu e moveu os quadris em círculo contra ele, ansiando o alívio que somente a fricção podia lhe oferecer. Tinha o corpo em chamas, e os mamilos cada vez mais eretos e sensíveis à medida que se roçavam contra seu peito. Tentou atraí-lo mais para si, passando as mãos pela larga envergadura de seus ombros, pelos duros músculos de seus braços e suas costas. Apesar de que sob o tecido escocês Arthur só levasse a regata, as meias e os braies, aquelas finas capas de tecido se converteram em uma barreira incômoda. Anna queria tocá-lo. Queria sentir o calor de sua pele vibrando sob a pressão de seus dedos.
Certamente ele se deu conta de sua frustração. Afastou sua boca da dela, tirou o cinturão e passou a regata por cima da cabeça, jogando-a ao chão. Seu torso era tão impressionante como recordava. Ombros largos, braços musculosos e um ventre plano sulcado por linhas rígidas de puro metal cobertos por uma pele ligeiramente bronzeada sublinhada por cicatrizes de diferentes tamanhos. A pior delas era uma em forma de estrela que luzia junto a seu ombro, o tipo de marca que deixa uma flecha ao cravar-se. E agora via com claridade a marca do braço: o leão rampante, símbolo do reino da Escócia. Não podia afastar o olhar dele. Por Deus bendito que era um homem formoso.
—Moça, se segue me olhando deste modo, isto se acabará em um abrir e fechar de olhos.
A rouquidão de sua voz fez que Anna se estremecesse de desejo da cabeça aos pés. Ruborizou-se.
—Eu gosto de te contemplar. —O olhar de Arthur se obscureceu — É magnífico.
Anna, incapaz de esperar um segundo somente mais, acariciou seu seio com as palmas das mãos e essa sensação faiscante a fez gemer. Arthur, por sua parte, proferiu um profundo som gutural e a voltou a tomar em braços. Nessa ocasião não havia volta atrás. Anna cheirava seu desejo e sentia a necessidade que se desprendia dos eróticos arremessos de sua língua. Tudo ocorria muito depressa, mas cada momento se gravava a fogo em sua memória. Queria recordar tudo. O modo em que a saboreava. A maneira em que sua boca descansava sobre a sua. O áspero roçar de seu queixo sobre sua pele. O calor que desprendia seu corpo. O poder daqueles músculos que se esticavam sob suas mãos. O feroz rugir dos batimentos do coração contra seu coração. Queria recordar todas as sensações. Cada um dos aromas. Cada roce.
Estava tão excitada e sensível que sentia a pele quente e avermelhada. Apenas se deu conta de como suas mãos desatavam os nós de sua sobreveste sem mangas e a tiravam pelos ombros. Então se encontrou com que cobria seio e o massageava através do fino tecido de linho de sua regata, ao mesmo tempo em que levava a língua até seu pescoço. Arthur roçou a tensa protuberância de seu mamilo com o polegar, descrevendo círculos, acariciando-o, beliscando-o brandamente entre os dedos.
As mãos de Anna percorriam avidamente suas costas, aferravam-se a seus ombros e lhe arranhavam a pele a cada uma de suas provocadoras carícias. Gemeu da vontade que tinha de romper o tecido e notar o contato direto de seus dedos, sua boca. E seus desejos se fizeram realidade. Primeiro o vestido e depois a regata passaram sobre suas pernas até chegar à cintura e logo por cima da cabeça.
Se não fosse pela forma com que ele a olhava pode ser que nem sequer percebesse. Arthur ergueu a cabeça e passeou o olhar por sua nudez, o que fez que ela se ruborizasse e procurasse cobrir-se, mas ele não pensava permitir-lhe Agarrou-a pelos pulsos e negou com a cabeça.
—Não —disse de maneira brusca com uma voz rouca que destilava violência —É preciosa. —exclamou Arthur, ficando do meio lado e acariciando seu braço como se fosse tão delicada que pudesse rompê-la com somente tocá-la. Acariciou seus seios com o olhar, fazendo que ficassem mais arrepiados ainda. Passou um dedo pela ponta e depois por sua abrupta curva — Jesus! —disse com a respiração entrecortada — Seus seios são de outro mundo.
Arthur soltou um gemido e se inclinou para agarrá-los e levar-lhe à boca. Beijou primeiro um de seus espectadores ápices e logo o outro, deixando-a tremendo de vontade. Quando ao fim a capturou com seus lábios e mergulhou um mamilo em sua boca, Anna gemeu de prazer. Arthur jamais tinha visto nada tão formoso. Era consciente de que deveria conter-se para saborear sua suave pele de pêssego em toda sua imensidão, mas com somente vê-la estivera a ponto de chegar ao limite. Parecia um anjo, esbelta e delicada do mais alto de sua cabeça até as diminutas impigens de seus pés. Se não fosse por esses seios, teria pensado que estava morto e tinha chegado ao céu. Porque seus seios eram puro pecado. Uma fantasia masculina feita realidade. Grandes, mas não em demasia, redondos e erguidos, com a rigidez da juventude; sua suave e cremosa carne estava coroada por mamilos de cor framboesa que faziam a boca água. E tinha gosto disso…
Gemeu de prazer e voltou saborear, rodeando sua cálida e ereta ponta com a língua. Sabor de doces desejos carnais e escuros prazeres melosos.
Queria ir devagar, prolongar cada momento de prazer, mas sua necessidade era muito ardente, muito desesperada, e fora evitada durante muito tempo. Pôs a mão entre as pernas e a explorou com os dedos. Tinha uma ereção de cavalo, mas notar quão molhada estava, saber que estava úmida para ele, fez que lhe pusesse mais duro ainda. Lambeu seus seios e a acariciou com os dedos até que seus quadris começaram a ir contra sua mão e sua respiração entrecortada se voltou irregular. Quando soube que Anna estava a ponto de gozar, liberou-se dos braies e as meias com rapidez e se colocou entre suas pernas.
Seus olhares se encontraram.
Gostaria de dizer que pensou duas vezes, mas não era certo. Tudo que podia pensar era na necessidade de fazê-la sua, que não podia deixá-la escapar. Em que em seus olhos via a aceitação e o amor que jamais pensou que seriam para ele. Um amor que Deus sabia que ele não merecia, mas que desejava mais que nenhuma outra coisa no mundo.
—Por favor — soluçou Anna.
Esse era o convite que Arthur necessitava. Levantou-lhe uma de suas pernas para colocá-la em cima de seu próprio quadril, ao mesmo tempo em que apertava os dentes para reprimir a vontade que tinha de investir com todas suas forças e se dispunha a facilitar entrada. Embora talvez a palavra «facilitar» não fosse a adequada. Ela era estreita e ele era grande. Enorme.
O suor se acumulou sobre suas sobrancelhas.
Apertada. Deus, estava tão incrivelmente apertada… Apertou todos os músculos diante da insistência que crescia em sua virilha. Seus testículos se esticavam ao mesmo tempo em que a pressão subia pela base de sua coluna. O corpo de Anna lutava contra aquela invasão, mas ele não pensava permitir uma negativa. Empurrou um pouquinho mais, fazendo que ela se estremecesse e emitisse um gemido de angústia.
O sangue bulia por suas veias. Parecia estar a ponto de explodir, mas se conteve para dar-lhe tempo a preparar-se antes de enterrar-se completamente entre suas pernas.
«Jesus. Que não empurre mais.»
—Não… não estou segura de que isto vá funcionar —disse Anna com inquietação — E se… e se for pequena demais pra ti?
A risada abriu passo entre o sofrimento através do peito de Arthur. Já explicaria os pormenores do assunto mais tarde.
—Confie em mim, amor. Acoplaremo-nos um ao outro perfeitamente. —Mas o certo é que era a primeira vez que estava com uma virgem — Pode ser que doa e seja incômodo a princípio — disse olhando-a nos olhos — De acordo?
Anna assentiu, mas a viu um pouco menos segura que antes. Não deixou de olhá-la nos olhos um só momento, oferecendo seu apoio tácito à medida que se afundava mais e mais nela, com cada um de seus dolorosos centímetros, um após o outro.
A sensação de ter seu corpo rodeando seu pau e apertando-lhe tanto era quase mais do que podia agüentar. Sabia do muito que gostaria, fazia desonestos esforços para lutar contra a urgência de investir. Esse calor estreito, aveludado e úmido envolvendo-o, espremendo-o. Todos os músculos de seu corpo ficavam rígidos de tensão no tanto que tentava conter-se e fazer as coisas com calma. Sentia-se maravilhado. Mas tinha que fazer que fosse perfeito para ela, paciência era a palavra chave.
«Já falta pouco…»
«Agora.»
O ponto de não retorno. Olhou-a nos olhos, sentiu como seu peito se contraía e deu o empurrão final. Anna gemeu e os olhos se puseram enormes como pratos da dor, mas não gritou. Ao ver o aspecto estóico de seu rosto teve vontade de rir.
—Já verás como depois é melhor, amor, prometo-lhe isso. Tentem só relaxar.
Ela o olhou como se fosse louco.
—Não acredito que isso seja possível.
Mas então Arthur a beijou e Anna comprovou quão errada estava…
Quando a penetrou, Anna sentiu uma pontada de dor e lhe deu vontade de gritar com todas suas forças. Mas se dava conta do que ele sofria, de modo que se reprimiu, consciente de quanto se esforçava por não a machucar. Não era culpa dela que a providência o provesse com um pouco tão… descomunal. Aquilo devia fazer que tudo fosse bastante incômodo…
«Um momento.» Estava-a distraindo com seus beijos, mas por um instante teria jurado que acabava de sentir um… Aí o tinha de novo. Uma espetada. Uma espetada prazenteira. Muito prazenteira. Uma espetada que, de fato, parecia incrivelmente agradável. Seu corpo havia se amoldado a ele e a dor desaparecia. Agora sim a notava, quente e dura, enchendo-a de uma forma que jamais teria imaginado. E então Arthur começou a mover-se. A princípio devagar, inundando-se nela e saindo com investidas pausadas e delicadas. Anna gemia ao notar a maneira em que seus arremessos reverberavam por todo seu corpo. Sentia-se como se Arthur a reclamasse para si, como se a possuísse na mais primitiva das formas. Era uma sensação incrível. Tinha que mover-se com ele, erguer os quadris para coordenar-se com suas investidas e que a enchesse até o mais profundo. Com mais força. E depois mais rápido. Agarrou-se a seus ombros e o atraiu mais para si, desejando sentir todo seu peso sobre ela. Seus corpos pareciam estar fundidos um no outro. Pele contra pele. Tremendamente sensual. Um peso dilacerador. A paixão a capturava com seu trêmulo abraço. As sensações ardiam em seu interior. Tomavam forma. Esperavam o momento. Concentravam-se na mais feminina de suas partes. E também ele o sentia. Era como aço sob seus dedos, músculos tensos e acesos, preparados para explodir.
Mas o que mais a excitava era a expressão de seus olhos. Intensa. Penetrante. Obscurecida não só pelo desejo mas também pela emoção. Nessas profundidades de âmbar dourado via refletido o amor que consumia seu próprio coração. Amava-a. Pode ser que ele não percebera ainda, mas ela sim o fazia.
Mantinha-a pega a si, sem deixá-la ir, enquanto se afundava nela uma vez mais, inundando-se tanto como era possível, e ficava aí. Algo poderoso e mágico passou entre eles. Uma conexão como jamais antes tinha imaginado. À medida que a sensação se formava, a respiração de Anna ficou apanhada no mais alto de seu peito. Por um instante todo pareceu deter-se. Seu corpo se mantinha ao bordo do êxtase, fazendo equilíbrio no precipício celestial. Deixou escapar um guincho quando o primeiro dos espasmos de liberação fez que perdesse o controle e ficasse fosse de si, tremendo de prazer.
—Isso, amor. Venha para mim. —Arthur começou a mover-se de novo, atravessando-a com uma despreocupação selvagem — Oh, Deus. Eu gosto muito. Não posso…
Penetrou-a uma última vez com um profundo gemido de satisfação que parecia rasgar-se de sua própria alma. Seu corpo ficou rígido e logo se estremeceu ao notar que seu desafogo coincidia com a maré ascendente dela. Arthur tinha uma expressão fera e formosa, de uma paixão primitiva. Deixou-se cair sobre a Anna com os ecos da última sensação, ainda com seus corpos unidos. Tudo que ela ouvia era o som de suas respirações pesadas e o violento pulsar de seus corações. Desejava ficar assim para sempre, mas Arthur em seguida se afastou e rompeu a conexão.
O ar frio passou sobre seu úmido e ruborizado corpo, lhe deixando a pele arrepiada. Anna era consciente de sua nudez, mas estava muito exausta para mover-se. Suas pernas pareciam de gelatina. Mas tampouco havia razão para envergonhar-se. Arthur não lhe emprestava atenção. Ficou olhando ao teto, ainda com a respiração entrecortada, mas em um silêncio que não pressagiava nada bom. Não lhe tocava dizer algo? Mordeu o lábio, perguntando-se que seria o que pensava. Tinha parecido maravilhoso… «Mas o que acontecerá se o decepcionei?», pensou sentindo uma pontada de dor.
Ao fim Arthur voltou a cabeça para olhá-la e aproximou sua mão para lhe afastar os cabelos do rosto com delicadeza. Ao ver seu estado de incerteza lhe dirigiu um sorriso de menino que se instalou em seu coração para não partir jamais. Anna sabia que nunca poderia esquecer a expressão de seu rosto nesse momento.
—Sinto muito. Não sei o que dizer. Nunca antes… nunca antes havia sentido algo como isto.
Ela esboçou um amplo sorriso como resposta, incapaz de ocultar sua alegria.
—Sério? Não tenho nada com que comparar, mas me pareceu algo maravilhoso.
—Sim, foi maravilhoso. —Arthur se inclinou sobre ela e a beijou com ternura. Mas quando ela ergueu o olhar para olhá-lo de novo seu olhar se turvou — Jamais me arrependerei do que acaba de ocorrer, Anna. Mas por seu próprio bem eu gostaria que não tivesse acontecido.
Anna sentiu o inconfundível tom de advertência e pareceu que lhe cravava um espinho no coração, mas o evitou. Não queria que nada escurecesse esse momento. Se aninhou sob seu braço e apoiou a cabeça sobre seu ombro, abrigando-se com seu corpo de maneira instintiva.
—Eu me alegro de que tenha acontecido — disse ela.
Agora estavam unidos no mais profundo e nada poderia separá-los.
Arthur baixou o olhar para aquela delicada mulher nua que se aninhava em seus braços e lhe parou o coração. O que acabavam de compartilhar não tinha comparação com nada que tivesse experimentado antes. Tinha compartilhado cama com um número de mulheres mais que razoável, mas para ele fornicar sempre tinha consistido em saciar sua luxúria. Encarregava-se do prazer da mulher e do seu com um só objetivo na cabeça: desafogar. Uma vez que estava completo, não havia mais que fazer. Não se atrasava. E estava claro como a água que tampouco queria rodear a mulher com seus braços e desejar ficar assim para sempre. Comparado com o que tinha acontecido com a Anna, o resto parecia quase mecânico, como se tivesse passado por todos os movimentos simplesmente para conseguir o prêmio. Mas com ela o prêmio era a experiência em si mesmo. O prazer estava na exploração, no descobrimento e nos detalhes. Estava no modo em que ela reagia a suas carícias, a maneira em que arqueava suas costas, a pressão que exerciam seus quadris e os pequenos gemidos que saíam de seus lábios. Estava na expressão de seus olhos quando a penetrava, o rubor que lhe tingia suas bochechas quando se aproximava do orgasmo e o modo em que sua cabeça se inclinava para trás e sua boca se abria quando finalmente chegava.
Não fora capaz de afastar o olhar. Normalmente evitava o contato visual, mas com a Anna procurava essa conexão. Queria desfrutar dessa cercania.
Descansou o queixo sobre seu cocuruto, saboreando a sedosa suavidade de seus cabelos. Era tão doce e formosa… além de endiabradamente confiada. Isso fazia que despertasse todo seu instinto de amparo. E algo mais. Algo quente, terno e poderoso. Algo que jamais pensou que pudesse ser para ele. Acreditava ser diferente. Pensava que não necessitava a ninguém, que estava bem sozinho. Mas se enganava. Não era absolutamente diferente. Necessitava-a. Queria-a. Amava-a com um ardor que lhe parecia surpreendente. Talvez pudesse encontrar alguma forma de explicar-se. De implorar seu perdão. Talvez houvesse esperança…
«Ah, que diabos!» Um nó lhe contraiu as vísceras à medida que voltava para a realidade. A quem pretendia enganar? Anna jamais o perdoaria. Como poderia fazer, quando ele tinha a missão de destruir tudo aquilo que ela amava?
Amava-a, mas isso não mudava nada absolutamente. Somente serviria para que o que estava por chegar fosse mais doloroso. Quando acabasse de cumprir seu encargo, não teriam nada que fazer o um com o outro. Amava-a, mas sua lealdade estava com Bruce. Tinha uma missão que cumprir, não só pelo rei, mas também por seu pai. Em um tempo diferente, em um mundo no que não houvesse guerra nem velhas rixas poderiam ter tido uma oportunidade. Mas não nesse mundo. Não nesse tempo.
E mesmo assim gostaria de… Deus, quanto gostaria que tudo fosse diferente.
Anna ergueu o olhar e o olhou sob suas longas pestanas.
—Estou segura de que não somos o primeiro casal comprometido que antecipa sua noite de bodas.
O sentimento de culpa se fez mais profundo. Esse era o problema: não teria noite de bodas. Não a teria quando ela descobrisse a verdade. Era um bastardo. Um bastardo infame. No que estava pensando? Em realidade, sabia perfeitamente. Pensava que a queria mais que a tudo no mundo e que tinha que fazer o que fosse por conservá-la. Consciente ou inconscientemente, queria unir-se a ela de uma forma que não pudesse ser desfeita. Nem sequer pelo engano ou a traição.
Uma aposta desesperada. Egoísta. Perversa. Somente serviria para que Anna tivesse mais razão para odiá-lo. Mas já fora e não poderia trocá-lo por mais que quisesse.
—Não —disse Arthur — Não somos os primeiros, mas dadas as circunstâncias teríamos que ter esperado. —Atraiu-a fazia sim com uma voz tão feroz como seu abraço. Era um filho de cadela egoísta, mas jurou que quando aquela maldita guerra acabasse se daria uma oportunidade. Lutaria por ela, por eles, se o permitisse — Voltarei para ti, Anna. Voltarei se é que me segue querendo.
Ela o olhou com um sorriso nos lábios, cândida e inocente. Muito confiada.
—Pois claro que seguirei te querendo. Nada poderá mudar isso.
Queria acreditar no que dizia. Queria acreditar mais que tudo no mundo. Mas logo suas palavras seriam postas a prova.
Capítulo 21
—O que se passa, Anna? Está muito calada esta manhã. É que não dormiste bem?
Anna olhou a sua irmã com receio, perguntando-se se suspeitaria algo. Era difícil falar. Luzia uma expressão serena no rosto, uma expressão que se adequava ao sermão matinal ao que acabavam de atender. Anna não tinha nem a menor ideia a respeito do que conversava. Estava muito ocupada em rememorar cada um dos segundos da cena que tinha tido lugar a noite anterior. Não cabia dúvida de que pensar tais coisas em uma capela tinha que ser terrivelmente pecaminoso, mas já tinha suficiente pelo que fazer penitência, de modo que se figurou que o dano acrescentado a sua alma não pioraria a situação.
A recuperação dessas lembranças a fez sorrir. Estava claro que regozijar-se no pecado era inclusive mais pecaminoso ainda, mas o certo é que era feliz. Amava Arthur e ele a amava. Na noite passada o demonstrara. Não retornou à câmara que compartilhava junto a suas irmãs até que já era bastante tarde. Ou cedo. Depende de como se olhasse. Ficou aninhada entre seus braços tanto quanto se atreveu a fazer, mas ao final esteve obrigada a retornar a seu aposento. Essas horas passadas entre os braços de Arthur significavam um dos momentos mais contentes de sua vida.
Sob o protetor arco de seu abraço a guerra, o caos e a incerteza do mundo atual não existiam. À fria luz do dia, entretanto, tudo voltava a ser de outro modo. Cumpria-se o décimo segundo dia de agosto. Faltavam três para que expirasse a trégua. Dizia a si mesma que era a guerra o que a inquietava. Dizia a si mesma que a razão de que Arthur se mostrasse tão taciturno ou de que suas palavras adquirissem o matiz da advertência era a própria guerra. Pensando em tudo o que estava por chegar durante nos próximos dias, a perda de sua virgindade antes das bodas deveria ser o que menos lhe preocupasse. Mas por que lhe tinha falado da possibilidade de não retornar? Teria que pôr fim a aquilo.
—Não me passa nada —disse Anna com firmeza — dormi bem.
Na realidade, as quatro ou cinco horas de sonho de que dispôs dormiu placidamente.
—Pois deve ser um livro magnífico.
Nessa ocasião o tom de voz seco de sua irmã não deixava lugar a dúvidas.
—Pois sim — respondeu Anna sem poder evitar ruborizar-se.
Embora freqüentemente lia até entrada a madrugada em alguma das câmaras entre muros do castelo para evitar incomodar a suas irmãs, era óbvio que Mary tinha adivinhado a verdade.
Seguiam de perto ao resto da família, que atravessava o pátio da capela em direção ao grande salão para romper o jejum. Não obstante, a maioria dos homens já estava no pátio de armas praticando. O ruído metálico das espadas, e a cacofonia das vozes ficava maior à medida que se aproximavam. Anna examinou instintivamente as figuras sob as armaduras em busca dele.» O coração lhe deu um tombo só de vê-lo. Arthur estava do outro lado dos estábulos, de costas a Anna. Ali era onde preparavam as balas de palha, assim que se figurou que estaria praticando com a lança. Perto dele estava seu irmão Dugald, mas ao contrário deste, ele sim estava acompanhado. Impulsionava um dado pra frente e para trás e dava voltas no ar sob o atento olhar de três jovens e de bonitas criadas que lhe observavam como se fosse um mago, assentindo a tudo o que lhes dizia. Tentava ensinar a agarrar a lança uma jovem que tinha de frente a si, mas seus enormes seios se interpunham entre seus braços.
Aqueles dois irmãos não podiam ser mais diferentes. Dugald era um fanfarrão ruidoso, o tipo de homem que somente estava contente quando era o centro da reunião e tinha ao redor o máximo de mulheres possíveis. Arthur era mais tranqüilo. Mais reto. Um homem que se contentava estando em segundo plano.
Mary ergueu o olhar ao céu ao contemplar seu exibicionismo e se afastou dali subindo a escada em direção ao grande salão. Anna se apressou a seguir seus passos sem poder evitar olhar atrás uma vez mais. Sir Dugald ria por algo que havia dito uma das garotas. Anna não ouviu o que lhe respondeu, mas teria jurado que era algo do tipo: «Olhe isto».
Ergueu a lança sobre sua cabeça como se fosse jogá-la ao mesmo tempo que gritava a Arthur:
—Arthur, agarra-a!
Antes que Anna se inteirasse do que estava a ponto de fazer, antes inclusive de que o grito pudesse tomar forma em sua garganta, a lança já estava no ar, projetada em direção a Arthur. Estavam tão perto um do outro que quase não teve tempo de olhar em resposta às palavras do Dugald quando já tinha o dardo sobre ele. Apanhou-o no ar no último instante, com uma só mão. O levou ao joelho com um rápido movimento, rompeu-o em pedaços e devolveu as lascas a seu irmão com o rosto escurecido pela cólera.
Isso recordava algo a Anna.
Uma brisa gelada banhou sua pele. Não tinha visto nada igual mais que uma vez em sua vida. Seu rosto empalideceu no momento. Sossegou com uma mão a exclamação de surpresa e ficou petrificada contra o muro da entrada com o coração em um punho. Tinha acontecido exatamente quão mesmo a noite da floresta do Ayr. Essa noite em que a mandaram a recolher a prata para seu pai e se encontrou com uma emboscada. O cavalheiro que a resgatou tinha feito exatamente o mesmo. «O espião.»
«Não, não pode ser», disse-se Anna, invadida por um ataque de terror que lhe percorria as costas. Tinha que ser uma coincidência. Mas as lembranças se retorciam em sua cabeça e a confundiam. Estava escuro. Não pôde ver seu rosto. Ele falava em voz baixa para mascarar sua voz. Mas o tamanho, a altura e a compleição encaixavam perfeitamente.
Não, não, aquilo não podia ser. Anna se tampou as orelhas e fechou os olhos. Não desejava vê-lo. Não queria pensar em todas as razões que davam pé a essa possibilidade. Em suas ocultas advertências. A sensação de que ocultava algo. Suas tentativas iniciais de evitá-la. O olhar de reconhecimento em seu tio Lachlan MacRuairi. Lhe contraiu o estômago. A cicatriz. Deus, a cicatriz não. Mas a marca de flecha em forma de estrela de seu braço se ajustava à ferida do cavalheiro que a tinha resgatado. A bílis subiu até sua garganta.
Mary se conscientizou de que Anna não ia atrás dela e baixou a escada correndo até a entrada em que sua irmã permanecia como uma estátua pega ao muro.
—O que te passa, Annie? Parece que viu um fantasma.
Assim era. Deus santo, assim era. Anna moveu a cabeça, negando-se a aceitá-lo. Tudo a seu redor começou a dar voltas.
—Não… não me encontro muito bem.
Subiu a escada para sua câmara sem mediar mais palavras e quase não teve tempo de tirar o urinol de debaixo da cama quando já estava esvaziando os magros conteúdos de seu estômago e purgando de passagem seu coração nele.
Arthur olhou em redor do grande salão caminho da câmara de Lorn para o conselho de guerra da noite. Ficou circunspeto ao conscientizar-se de sua ausência. Onde diabos teria se metido? A leve sensação de preocupação que lhe assaltou essa manhã ao não ver Anna tinha piorado com o desenvolvimento da jornada. Alan lhe disse que Anna não se encontrava bem. Uma dor de estômago, mas dado o ocorrido a noite anterior, Arthur não acreditava. Estaria zangada? Arrependia-se do que tinha passado entre eles? A culpa o remoia por dentro. O que teria feito?
Obrigou-se a afastar Anna de seus pensamentos e a concentrar-se na tarefa que tinha ante si. Não sobrava muito tempo. O rei Robert atacaria em quatro dias, e Arthur ainda não tinha conseguido nenhuma informação de utilidade.
Entrou no aposento seguindo ao Dugald, que estava de um humor de cão como jamais antes tinha visto, e se sentou à mesa com o resto dos cavalheiros de alta fila e os membros da meinie de Lorn. Minutos depois de que se congregassem os homens, fez sua entrada Lorn. Mas nessa ocasião não chegava sozinho. Seu pai, o convalescente Alexander MacDougall, ia com ele. O pulso de Arthur se acelerou. Se MacDougall estava ali, provavelmente se trataria de algo importante.
O lorde de Argyll tomou assento na poltrona trono que normalmente ocupava seu filho e deixou ao Lorn uma poltrona menor junto a seu posto. Uma vez que se fez silêncio na sala, Lorn tirou um pergaminho dobrado de sua bolsa e o pôs sobre a mesa. Arthur ficou petrificado ao reconhecê-lo imediatamente. Reprimiu uma maldição obscena. «O mapa.» Ou para ser mais exato, seu mapa. O mapa que tinha desenhado para o rei, que tinha entregue ao mensageiro. Devem ter interceptado antes que chegasse ao Bruce. «Maldição.» Desejou ter-se lembrado de mencioná-lo na última vez que se reuniu com eles.
Os homens se aproximaram para ver o de perto.
—O que é? —perguntou um deles.
Lorn adotou uma expressão severa.
—Um mapa dos arredores de Dunstaffnage — disse, fazendo-o passar — E o número de homens e os fornecimentos a nossa disposição.
Houve várias falações de irritação quando alguns dos homens notaram o que significava. Dugald se aproximou mais e examinou o mapa com tal intensidade que a Arthur lhe arrepiaram os cabelos da nuca. Não havia nada delator no documento. A escritura era minúscula e quanto aos desenhos… Dugald nunca tinha emprestado muita atenção aos «ganchos de ferro» de Arthur mais que para rir deles. Não tinha nada que temer. Mas mesmo assim, o interesse que tomava seu irmão parecia inquietante.
—De onde saiu? —perguntou Dugald.
—O tiraram de um mensageiro do inimigo que meus homens interceptaram faz várias semanas —respondeu Lorn — Mas pela exatidão dos números, suspeito que há um traidor entre nós. —Os murmúrios de indignação e raiva zumbiram por toda a sala e Arthur se uniu a eles — Infelizmente o mensageiro não foi capaz de identificá-lo.
—Como pode estar seguro, milorde? —perguntou Arthur.
Um sorriso de cumplicidade curvou a boca de Lorn.
—Estou.
O qual queria dizer que tinham torturado ao mensageiro.
Lorn examinou os rostos dos homens que lhe rodeavam, o círculo interno de seu mando.
—Mantenham os olhos abertos em busca de algo que se saia da normalidade. Quero encontrar a esse homem — disse esmagando o mapa com a palma da mão — Mas este mapa demonstrou sua utilidade. Tenho um plano para ganhar a partida do usurpador em seu próprio jogo.
Arthur ficou quieto, tentando conter a emoção. Talvez ao final pudesse conseguir um pouco de informação para o rei.
—A que te refere? —perguntou Alan.
—Refiro-me a que faremos que suas próprias táticas se voltem em contrário. Bruce conseguiu vitórias frente a força muito mais poderosos lutando segundo seus próprios meios: escolhendo o lugar e o terreno adequados para o ataque, atirando golpes duros e rápidos desde seus esconderijos, usando o mesmo tipo de estratégias que usaram nossos ancestrais durante séculos, táticas de guerra highlander. E que me crucifiquem se permitir que alguém das Terras Baixas ganhe em meu próprio terreno — disse, fazendo ato seguido uma pausa para que o resto fizesse coro sua aprovação — Não ficaremos aqui esperando ao assédio do castelo como ele acredita. Atacaremos nós primeiro.
Todos começaram a falar ao mesmo tempo. Arthur se obrigou a não unir-se à refrega porque queria ouvir o resto. Mas sabia que aquilo era algo grande, monumental de fato. Lorn tinha razão: o rei não esperaria que os atacassem. Não quando tinham uma fortaleza como Dunstaffnage para cobrir-se. Lorn impôs silêncio na sala com um movimento da mão.
—Esperem que conte o resto para fazer perguntas. —Colocou o mapa mais adiante para que os homens que tinha frente a ele pudessem vê-lo — Bruce e seus homens vêm do este pela estrada do Tyndrum. —Apontou a um canto do mapa, fazendo que a pele de Arthur se arrepiasse ao pressentir algo importante. Lorn moveu o dedo seguindo o caminho e se deteve no caminho de Brander. Arthur sentiu o estômago apertar — Para chegar até Dunstaffnage terão que cruzar estas montanhas. No estreito e longo caminho de Brander, ali será onde ataquemos. Poremos a nossos homens aqui, aqui e aqui — disse assinalando três cúpulas por cima das quais não se via nada, devido aos meandros do caminho.
Arthur reprimiu uma imprecação ao mesmo tempo em que o resto da sala prorrompia em uma onda de excitação. Era o lugar perfeito ao que levar a cabo um ataque surpresa. Os MacDougall surpreenderiam ao Bruce de acima, descendo sobre o exército em marcha em uma abertura estreita de onde o rei não poderia tirar vantagem de sua superioridade numérica.
—Quando? —perguntou Dugald erguendo a voz.
—Nossos informe assinalam que Bruce chegará ao Brander na madrugada do dia quatorze.
«Filho de cadela traiçoeiro.»
A sala ficou em silêncio.
—Mas a trégua não expira até o dia quinze — disse Alan com cautela.
Lorn entreabriu os olhos.
—É o usurpador quem escolheu ignorar o código da batalha, não eu. Bruce parte sobre nossas terras. É ele quem rompe a trégua. —Um raciocínio à própria conveniência como jamais se viu antes. Mas ninguém na sala se atreveu a discutir — Alan —continuou Lorn—, partirá com o grosso das forças amanhã e estarão na posição ao cair a noite, somente para nos assegurar.
A Arthur não surpreendeu saber que Alan estaria ao mando. Essas abruptas ravinas e o irregular terreno seriam difíceis de sulcar inclusive para os guerreiros mais jovens.
—Defenderão vocês o castelo, milorde? —perguntou.
Lorn o fulminou com o olhar.
—Meu pai guardará o castelo —corrigiu — Eu farei cargo de uma frota de galeões e comandarei o ataque daqui — disse assinalando o lugar no que o rio Awe entrava no lago do mesmo nome — Assim, quando o tivermos surpreendido de cima, seguiremos atacando do fronte.
Golpeando ao Bruce de duas direções. Era um plano excelente. Não só se tratava de uma localização perfeita para lançar o ataque, mas sim ao atacar primeiro, e antes que a trégua expirasse, teriam o fator surpresa a seu favor.
Essa intervenção provocou uma inundação de perguntas, mas Arthur já estava concentrado na tarefa que tinha. Tinha que advertir ao rei o antes possível sem que Lorn se inteirasse de que seu plano corria perigo. Teria que arriscar-se a enviar a mensagem nessa mesma noite. Depois, na excitação e o caos que precederiam ao ataque, teria a possibilidade de escapulir-se.
«para sempre.»
Encolheu-lhe o estômago. Tinha ante si o momento que tanto tinha temido e sabia que era inevitável. O momento de dizer adeus. O momento em que se supunha que devia voltar para as sombras e desaparecer sem dizer uma palavra. Isso era o que ele fazia. O que sempre soube que teria que fazer. Simplesmente não esperava que fosse tão tremendamente duro. Parecia covarde partir sem uma explicação. Deixar que Anna descobrisse a verdade por si mesma. Gostaria de prepará-la, lhe dizer que a amava e que nunca quis a machucar. De dizer o que sentia, que seguiria sendo dela sempre que ela quisesse.
Mas não podia. Partiria para dia seguinte sendo um homem e quando retornasse o faria sendo outro. Anna o odiaria por isso. Embora duvidava muito de que coubesse uma mínima possibilidade de que estivessem juntos, Arthur jurou que quando terminasse todo a buscaria para tentar explicar-lhe Sempre que ela quisesse escutá-lo.
«Não pode ser certo. Não é possível.» Anna se negava a acreditar. Mas tampouco podia afastar de si a dúvida que se instalou como um parasita em suas vísceras e não queria partir. A desculpa de sua enfermidade não era falsa. As dúvidas se retorciam e remoíam seu interior, debilitando-a. Passava o dia inteiro no refúgio de seus aposentos tentando convencer-se de que aquilo não era possível, de que ele não a enganaria de tal modo. Mas ficavam muitas perguntas no ar. Umas perguntas que não podiam esperar até o dia seguinte. Para então poderia ser muito tarde. Mary e Juliana acabavam de retornar à câmara fazia pouco para lhe informar de que os homens já dispunham os preparativos prévios à guerra. «Guerra.» O medo acendeu seu peito, e a necessidade de encontrá-lo se tornou desesperada.
Tinha o vestido enrugado e cheio de pelos de Escudeiro depois de ter passado todo o dia tombada na cama, mas não perdeu o tempo em trocar-se. Jogou água no rosto, enxaguou a boca, passou uma escova por seu emaranhado cabelo e se encaminhou às dependências de seu pai para pedir a suas irmãs que desse uma olhada no cachorrinho. Defraudou encontrar a porta aberta, já que esperava que os homens continuassem no conselho de guerra. Não obstante entrou, atraída pelas vozes que procediam do interior.
Seu pai, que estava de pé junto a Alan, observando um pergaminho estendido sobre a mesa, ergueu o olhar ao vê-la entrar na sala.
—Ah, Anna. Encontra-te melhor?
—Sim, pai, muito melhor — respondeu ela, tentando não mostrar a decepção que supunha descobrir que se achavam ali somente eles dois. Certamente Arthur já teria se retirado aos barracões para dormir. O que podia fazer ela, então? Que desculpa inventaria para ir em ao seu encontro essas horas?
—Necessita algo? —perguntou Alan, notando a preocupação de seu rosto.
Quando seu irmão baixou o olhar, Anna se deu conta de que estava retorcendo as abas do vestido.
—Parece desgostada por algo
Não podia chegar a fazer uma idéia.
«Oh, Deus. Teria que contar Anna sentiu um vazio no estômago ao conscientizar-se de que deveria compartilhar suas suspeitas com ambos. Mas não podia. Não até que estivesse completamente segura. Seu pai… doía admitir que a ira de seu pai nem sempre era racional. Não podia estar segura do que faria. Mas tinha que contar tudo.
—É pela guerra. Mary me disse que os homens se preparam para partir amanhã.
—Não há razão para preocupar-se, Anna. Sua mãe, suas irmãs e você estarão a salvo aqui.
—Não acredito que seja isso o que lhe preocupa, pai — disse Alan com um sorriso forçado.
Estava certo. Anna empreendeu a retirada, ansiosa por encontrar Arthur.
—Não queria lhes incomodar — disse olhando o pergaminho sobre a mesa — É óbvio que estão ocupados, deixarei-os que… —acrescentou, detendo-se de repente com uma exclamação de surpresa.
Cravou o olhar no pergaminho e caiu na conta de que o reconhecia, apesar de que nesse momento já estava acabado e tinha um aspecto diferente. Já não parecia um rascunho. Parecia um mapa. «Um mapa.» O que significava aquilo? Se Arthur estava fazendo um mapa para seu pai, por que não lhe havia dito nada? «Tentava ocultá-lo.»
Anna deu vários passos à frente presa de um pavor inexplicável. Tentou dissimular o tremor de sua voz:
—Interessante mapa. —Tinha a garganta muito seca, de modo que, mais que falar, pigarreava — De onde o tirastes?
—Nossos homens o interceptaram de um mensageiro inimigo —respondeu Alan, passando os dedos por seus finos traços — A verdade é que é muito bom. Magnificamente detalhado.
Anna não ouviu mais que as palavras «mensageiro inimigo». Empalideceu ao momento; seus piores temores, aparentemente, confirmaram-se.
«É um espião.»
—Sabe algo a respeito, filha?
Anna voltou o olhar para seu pai. Abriu a boca para pronunciar as palavras que condenariam Arthur, mas ficaram congeladas em sua boca. Não podia. Não podia fazer. Não antes de lhe oferecer uma oportunidade para explicar-se.
—Nada — se apressou a dizer baixando os olhos, incapaz de lhe sustentar o olhar.
Alan a observava com expressão de estranheza.
—Está segura de que não te encontra mal, Annie? Não tem bom aspecto.
Não se encontrava muito bem. Tinha enjôos. Como se o aposento girasse a seu redor ou as tábuas do chão se desprendessem a seus pés. Cambaleou e deu um passo para recuperar o equilíbrio.
—Eu… eu acredito que será melhor que volte para meu aposento.
Alan foi para ela com o desassossego marcado no rosto.
—Acompanho-te.
—Não. —Anna negou com a cabeça energicamente, reprimindo umas lágrimas que lhe ardiam nos olhos — Não é necessário. Estou bem. Sigam com o que estão fazendo.
Anna saiu antes que seu irmão pudesse opor-se. Apressou-se a chegar ao barmkin consumida em uma sensação de sufoco. Abriu a porta da torre da comemoração e se sentiu reconfortada pelo golpe de ar frio da noite. Inspirou profundamente, enchendo os pulmões e procurando estabilizar sua acelerada respiração. Aferrou-se ao corrimão de madeira que coroava a escada como se fosse um cabo de salvamento, deixando que o ar fresco e o tranqüilizador dossel da negra e fechada noite acalmasse a precipitação de seu coração, de seu fôlego e, sobretudo, de sua cabeça. Vários dos homens que vigiavam o barmkin ficaram olhando-a, mas Anna estava muito desgostada para preocupar-se com isso. Desgostada? Não, aturdida. Destroçada. Horrorizada. Sua cabeça ainda dava voltas, incapaz de acreditar.
Tentava decidir o que devia fazer, se percorria o pátio, chamava nas portas dos barracões e perguntava por ele, mandando ao diabo toda correção, quando as portas se abriram e saiu um grupo de soldados vestindo armadura completa. O coração lhe deu um tombo ao conscientizar-se de que um deles era Arthur. Dirigiam-se para os estábulos. Estava partindo. «Partindo.»
Agarrou-se ao corrimão com força até que a madeira se estilhaçou em suas mãos. Ficou olhando com o peito ardendo de dor e uma parte de si ainda recusava a acreditar. Arthur pareceu advertir o calor de seu olhar e deixou pela metade o que estava fazendo para erguer os olhos. Seus olhos se encontraram entre a luz mortiça que proviam as tochas. Arthur disse algo a um dos homens, separou-se do grupo e caminhou em sua direção. Anna inspirou profunda e entrecortadamente e se dispôs a baixar a escada para encontrar-se com ele ao final desta. Seu coração se deteve o ver seu rosto. Como podia lhe olhar com tal cara de preocupação e planejar traí-la ao mesmo tempo?
—O que passou? —perguntou — Fiquei preocupado ao não te ver antes.
Ele se aproximou dela, mas Anna se revolveu. Não podia permitir que a tocasse. Somente serviria para confundi-la mais ainda.
—Preciso falar contigo.
A rigidez de sua voz despertou os temores de Arthur. Dirigiu seu olhar para os estábulos, onde os homens tinham desaparecido.
—Não tenho muito tempo. Estão me esperando.
—Parte… sem dizer adeus?
O pequeno tremor que apareceu em seu queixo o delatava. Sinal de que se sentia culpado.
—Não é mais que a ronda noturna. Estarei de volta em umas horas.
—Está seguro? Não me advertiu de que talvez não retornaria?
Arthur examinou com atenção seu rosto e pareceu conscientizar-se de que algo ia realmente mal. Consciente dos homens que patrulhavam a seu redor, a tomou pelo braço e a levou para o jardim que havia na parte posterior à torre, onde ninguém poderia ouvi-los. Agarrou-a pelos ombros para virá-la para si e a olhou com expressão severa.
—A que se deve todo isto, Anna?
Anna ergueu o queixo, odiando que a tratasse como se fosse uma menina pesada.
—Sei.
—O que é o que sabe?
Um soluço apareceu em seu peito, mas conseguiu controlá-lo. As palavras saíram como um torvelinho.
—Sei a verdade. Sei por que está aqui. Sei que me salvou no Ayr. Sei que trabalham para eles — disse Anna, quase cuspindo essa última palavra, incapaz de pronunciá-la.
Ele trabalhava para o inimigo mortal de sua família.
Ficou imóvel, suas feições tinham sido adestradas para a impassibilidade. A Anna caiu a alma aos pés. Essa falta total de reação lhe condenava mais que uma negação.
—Está transtornada —disse Arthur com calma — Não sabe o que está dizendo.
—Como te atreves! —exclamou Anna com voz tremente e uma emoção que ardia em seu peito até converter-se em um acesso de raiva — Não te atreva a mentir! Vi esta manhã agarrar a lança ao vôo e rompê-la com o joelho. Somente vi isso uma vez em minha vida. Não recorda como saíram a me resgatar aquela noite? Um espião dos rebeldes que se fazia passar por cavalheiro? Recebeu uma flechada no ombro por isso. —Tinha vontade de lhe arrancar a armadura e lhe obrigar a que o reconhecesse — Tem uma cicatriz exatamente no mesmo lugar. —Fez uma pausa para que o negasse, quase esperando que lhe desse uma explicação, mas o silêncio enchia o ar estagnado entre ambos — Vi o mapa, Arthur. O mapa que permitiu que eu acreditasse que era um desenho. O tiraram de um mensageiro inimigo — continuou, desafiando-o ainda com o olhar — Talvez devesse chamar a meu pai e que ele seja quem diga.
Arthur franziu os lábios até que embranqueceram. Agarrou-a pelo cotovelo e a aproximou mais a si.
—Baixe a voz —advertiu — Poderiam me matar somente por me acusar disso.
Anna se serenou, aplacando um tanto sua ira, consciente de que o que dizia era certo. Arthur a dirigiu para um banco de pedra e a fez sentar-se.
—Não se mova.
—Aonde vai? —perguntou Anna, irritada por receber ordens dele.
—Dizer-lhes que me atrasarei — respondeu Arthur, olhando-a com expressão severa.
Capítulo 22
«Pense! Maldita seja, pense!»
Arthur levou um tempo para informar aos homens de seu atraso enquanto tentava acalmar a violenta corrente de sangue que afluía por suas veias. Mas todos seus instintos primários de sobrevivência tinham despertado em uníssono em resposta ao perigo. O pior tinha acontecido. Tinham-no descoberto. Anna tinha adivinhado a verdade.
Amaldiçoou ao idiota de seu irmão por lhe jogar aquela lança, que além de que estivera a ponto de lhe atravessar a cabeça, e também a si mesmo por ser tão pouco cuidadoso com o mapa. Sua missão acabava de ir-se ao vinagre, e, a menos que pudesse encontrar uma maneira de justificá-lo, tudo indicava que não viveria para ver o seguinte pôr-do-sol. Não podia pensar no que significaria seu fracasso para Bruce. Se não os avisasse, iriam diretos para a armadilha. Uma vitória dos MacDougall poderia fazer que a guerra mudasse de novo.
Apesar de não advertir nenhum perigo ao sair dos estábulos, Arthur não tirava as mãos de suas armas, quase esperando encontrar-se aos soldados de Lorn aguardando. Mas Anna não tinha avisado a seu pai. Ainda não, ao menos. Esperava-lhe no banco no que ele a tinha deixado. Respirou algo mais tranqüilo em seu caminho de volta ao cruzar o pátio, embora ainda não tinha claro o que lhe diria. Não era só sua integridade e a missão o que estava em jogo. Se ainda ficava a esperança de uma vida em comum para ambos, seria nesse momento quando teria que conseguir que Anna entendesse suas razões.
Ela não o olhou quando se aproximou, mas sim ficou contemplando a escuridão em silêncio, com um rosto que era uma pálida máscara de angústia. Sentou-se junto a ela com uma sensação de impotência absoluta. Queria tomá-la em seus braços e lhe dizer que tudo sairia bem, mas sabia que não era certo. Tinha-a traído. Pouco importa que não pode evitar.
—Não é o que pensa — disse brandamente.
—Não pode fazer uma mínima idéia do que penso. —A voz de Anna estava carregada de emoção. Quando se voltou para ele, com seus grandes olhos azuis alagados de lágrimas não derramadas, Arthur sentiu uma pontada no coração que lhe fez estremecer — Diga que não é certo, Arthur. Diga que tudo é um engano. Diga que não é o que acredito que é.
Deveria. O que significava uma mentira mais em cima de tantas outras? Podia tentar negá-lo. Talvez chegasse a convencê-la. Mas duvidava muito. Ela sabia. Via-o em seus olhos. E se lhe mentisse nesse momento, jamais teria a possibilidade de que o compreendesse. Se queria que eles tivessem uma oportunidade como casal, teria que lhe contar a verdade.
Olhou-a nos olhos.
—Jamais quis lhe fazer dano.
Anna emitiu um som, um gemido de dor que parecia provir de um animal ferido, um gatinho de pele aveludada apanhado em uma armadilha para ursos. Não pôde evitar. Aproximou-se dela para acalmá-la, mas Anna deu um coice.
—Como é capaz de dizer tal coisa? Utilizaste-me. Mentiu em tudo o que era importante. —As lágrimas brotaram das comissuras de seus olhos e caíram em corrente por suas bochechas — Houve algo real? Ou fazer que me afeiçoasse de ti também era parte do plano?
—O que passou entre nós foi real, Anna. Nunca foste parte do plano. Jamais deveram fazer parte disso. Isto não tem nada que ver contigo.
—Então com o que tem que a ver? Com o Robert Bruce? Com as velhas rixas? Com seu pai? —Arthur apertou os punhos e pigarreou — Assim é por seu pai… Culpa ao meu de sua morte —disse, retirando-se dele — Não é mais que um horrível e retorcido feito de vingança. Quer a destruição de minha família porque seu pai morreu na batalha, não é isso? O que é o que planeja, assassinar a meu pai para vingar a morte do seu? —ficou paralisada pelo horror — meu Deus, isso é o que planeja fazer.
Arthur apertava com força os dentes. Dito por ela, soava como algo infame. Simples. Mas era tudo menos isso. Anna, cega pelo amor que tinha a sua família, estava incapacitada para ver o que acontecia a seu redor. Odiava ter que ser ele quem lhe abrisse os olhos, mas não restava outra alternativa.
—É seu pai quem acabará com o clã e não eu, Anna. Robert Bruce fez o que ninguém acreditava possível. É a melhor opção da Escócia para nos liberar do jugo inglês. Ganhou os corações do povo. Mas o ódio de seu pai e seu orgulho lhe impedem de vê-lo desse modo. Prefere ver uma marionete inglesa no trono… Os MacDougall ficam sozinhos, Anna. Inclusive Ross acabará rendendo-se.
Anna ficou completamente rígida.
—Meu pai faz o que considera correto.
—Não, seu pai faz tudo o que está em sua mão para não admitir a derrota. Não se equivoque em relação às razões de tudo isto. Seu pai preferiria os ver mortos antes que aceitar a derrota.
Advertiu a indignação que ruborizava suas bochechas.
—Vocês não sabe nada de meu pai.
Anna fez uma tentativa de levantar-se, mas ele a agarrou pelo pulso e a obrigou a permanecer sentada.
—Sei mais do que queria a respeito de seu pai. Sei exatamente do que seria capaz por ganhar.
Anna tentou libertar seu braço.
—Me solte.
—Não até que ouça tudo o que tenho a dizer.
Não havia nada que desejasse menos que desiludi-la, mas era consciente de que não podia protegê-la da verdade durante muito mais tempo.
—Não vos disse tudo o que vi o dia em que mataram a meu pai.
—Não quero…
—Entretanto, ouvirá —a interrompeu — Embora não queira fazer. Eu estava nessa colina e o vi tudo, Anna. Meu pai tinha ao seu a mercê de sua espada. Poderia tê-lo matado e, não obstante, teve piedade dele. Seu pai aceitou os termos, acordou a rendição e depois, quando meu pai deu a volta, matou-o.
Anna deixou escapar um grito afogado com uns olhos cheios de horror e incredulidade.
—Está errado. Meu pai jamais faria algo tão desonroso.
Arthur a agarrou firmemente e a obrigou a olhá-lo nos olhos.
—Eu estava ali, Anna. Vi e ouvi tudo, mas não pude fazer nada para detê-lo. Tentei advertir a meu pai, mas era muito tarde. Lorn me ouviu e enviou a seus homens a que me caçassem, e tive que me ocultar na floresta durante uma semana. Quando saí dali, era muito tarde para mudar a história. Ninguém teria acreditado.
Arthur se deu conta do pânico que a sobressaltava. Sentiu seu coração bater fortemente contra o peito. Lutava por aferrar-se a qualquer fio que pudesse preservar suas ilusões em relação à verdadeira pessoa que ela via em seu pai.
—Deve ter interpretado mal o ocorrido. Estava muito longe.
—Não interpretei mal nada, Anna. Ouvi tudo.
Equivocava-se. Tinha que equivocar-se. Não era certo? Seu pai tinha mau gênio, mas ela sabia que tipo de pessoa era.
Voltou-lhe as costas bruscamente.
—Não acredito.
O pesar de seus olhos cortava mais que o cristal.
— Pergunte tu mesma. —Anna não disse nada. Não queria atender a razão — Seu pai não se deterá ante nada para conseguir a vitória, Anna. Nada. Por todos os diabos, se inclusive utilizou a sua própria filha…
Anna ficou tensa, ofendida por tal acusação.
—Já vos disse que a aliança com o Ross foi minha idéia.
—Não estou falando disso. Refiro-me a lhe usar como mensageira.
Anna ficou sem fôlego. Sabia? Céu santo, teria devotado informação sem ser consciente disso?
—Quando? —exclamou — Desde quando sabes?
—Não o descobri até umas semanas, infelizmente. —Seu rosto tinha uma expressão temível — Por todos os Santos, Anna! Sabem o perigo que correstes?
—Sim, mas nunca imaginei de onde provinha.
«De ti.» Ele era o inimigo. Ele a espiou e fez quanto pôde por…
Anna ficou olhando-o ao mesmo tempo em que todas as terríveis conseqüências iam em turba a sua mente. De repente deu um salto para trás, horrorizada. «Não, isso não, por favor.» Lhe revolveu o estômago.
—Por que insistiu em me acompanhar ao norte, Arthur?
—Para te manter a salvo.
—E para evitar uma aliança com o Ross?
—Sim, em caso de que fosse necessário — disse, fazendo frente a seu olhar sem pestanejar. A dor machucava tanto o coração de Anna que se afogava em seus próprios soluços — Mas não é o que pensa. Aquilo não formava parte de meus planos.
Era como se a fustigassem por dentro. Parecia sangrar-se, como se estivesse em carne viva.
—E acha que tenho que acreditar?
Arthur contraiu a mandíbula.
—É a verdade. O que ocorreu naquele aposento foi porque o ciúmes e o medo de te perder me deixaram meio louco. Não me orgulho do que fiz, mas juro Por Deus que não o tinha planejado.
—Ocorreu por acaso, isso quere dizer? E o que passa com o de ontem à noite? Ocorreu também por acaso? —Sua voz se quebrou pela emoção que a embargava — Como pode, Arthur? Sabias o que acabaria passando e mesmo assim me deixou acreditar que te importava, que queria te casar comigo. E não eram mais que mentiras.
Como podia ser tão idiota para oferecer-se a um homem que planejava traí-la, trair a todos eles?
—Não — disse Arthur com rudeza, obrigando-a a lhe olhar nos olhos — Não era mentira. Nada disso era mentira. Eu… — Vacilou, como se aquelas palavras não coubessem em sua boca — Eu te amo, Anna. Nada me faria mais feliz que me casar contigo.
Por um estúpido momento o coração lhe deu um tombo ao escutar essas palavras que tanto tempo tinha esperado. Umas palavras que deviam fazer que tudo fosse perfeito, mas que não conseguiram mais que afundar na desgraça daquele assunto.
Era um homem cruel. Era cruel lhe dizer aquilo que tão desesperadamente ansiava ouvir. Bem certo, não fazia mais que manipulá-la para que não o delatasse.
«Delata-o.» Oh, Deus, o que poderia fazer? Tinha a obrigação de dizer a seu pai o que acabava de descobrir. Mas se o fizesse não cabia a menor duvida do que aconteceria. Arthur morreria. E se não o fizesse, Arthur passaria ao inimigo a informação que tinha obtido. Tratava-se de uma escolha impossível, mas sabia que, apesar de tudo o que Arthur fizesse, não podia ser ela quem jogasse o laço ao seu pescoço. Um só homem não podia derrotar a um exército.
—De verdade espera que acredite que me ama?
Arthur adotou uma postura rígida, mas seguiu olhando-a nos olhos.
—Sim, espero. Não tenho nenhum direito a fazer, mas essa é a verdade. Jamais antes disse essas palavras a ninguém e nunca pensei que o faria. Mas do primeiro momento que te vi, senti algo especial. Sei que você também o sentiu, uma conexão a que não me pude resistir.
—O que sentia era luxúria — disse Anna devolvendo suas palavras. Arthur franziu os lábios. Ela era consciente de que o estava levando ao limite, mas se sentia muito doída e furiosa para que lhe importasse — Como pode esperar que acredite em seu amor quando me mentistes do primeiro dia em que nos conhecemos?
—O que queria que fizesse? Não estava em posição de dizer a verdade. Acredita que eu queria que acontecesse isto? Por Deus santo, é a última pessoa no mundo que queria me ter apaixonado. —Anna se estremeceu. Supunha que isso tinha que fazê-la sentir melhor? Embora lhe doesse que aceitasse seus sentimentos com tal dificuldade, as palavras de Arthur tinham o distintivo da verdade — Tentei me manter à margem —assinalou, dando rédea solta a sua frustração — Mas não me permitiram isso.
—Então é minha culpa, não?
Arthur suspirou e voltou a levar as mão aos cabelos.
—Não, é obvio que não. Inclusive caso tivesse me evitado, eu teria me apaixonado por você a distância. Atraiu-me desde a primeira vez que a vi. Sua calidez. Sua vitalidade. Sua doçura. É tudo que não sabia que perdia na vida, o que não acreditava possível para mim. Jamais quis ter esse tipo de intimidade com alguém até que a conheci. —Apesar de todas suas tentativas para não cair em seus enganos de novo, Anna não pôde evitar que seu coração se comovesse. Arthur a puxou pelo queixo e voltou seu rosto para olhá-la nos olhos — Sei que não posso esperar que acredite, Anna, mas sim espero que tente compreender que o fiz o melhor que pude dadas as difíceis circunstâncias. Estava condenado a lhe trair inclusive antes que nos conhecêssemos.
Os olhos de Anna examinaram seu rosto em busca de sinais de engano, mas somente encontravam sinceridade. Queria acreditar, mas como podia fazer sabendo o que pretendia? Inclusive no caso de que seus sentimentos fossem sinceros, tinha a intenção de traí-la. Ele estava em um lado e ela no outro. Queria matar a seu pai.
Anna voltou o rosto bruscamente, receando sua própria debilidade. Quando a olhava com essa expressão, somente podia pensar em lhe beijar e no quão protegida se sentira entre seus braços, fingindo que tudo sairia bem.
—Como poderia acreditar que te importo quando está aqui para nos espiar, destruir a minha família e se vingar de meu pai? Se me amas de verdade, não poderia fazer.
Os olhos de Arthur brilharam com força na escuridão, como se queria discutir com ela mas compreendesse a inutilidade do gesto.
—O que outra coisa poderia fazer?
—Poderia deixar de lado sua ânsia de vingança. —Olhou-o nos olhos, consciente de que estava a ponto de lhe pedir um impossível, mas sabendo também que essa era a única oportunidade que teria para ambos — Poderia escolher ficar comigo.
Arthur ficou petrificado. Maldita seja por lhe fazer isso! Por lhe fazer escolher. Pedia-lhe quão único não podia dar. Não podia jogar por terra toda sua honra e lealdade, nem sequer por ela. Seu rosto adotou o aspecto do granito.
—Fiz um juramento, Anna. Jurei dar minha espada ao Bruce. —E ao Guarda dos Highlanders, pensou — Ir contra isso seria ir contra minha consciência. Ir contra todo aquilo no que acredito. E apesar de que tenha razões para acreditar o contrário, sou um homem de honra.
Era o dever, a lealdade e a honra o que o tinham levado até ali.
—Mas isto não é só uma questão de honra. Não é certo? —desafiou-o — É uma questão de vingança. Quere a destruição de meu pai.
—Quero justiça — disse Arthur esticando a mandíbula.
Seus grandes olhos o olhavam com expressão luminosa e suplicante, remoendo sua consciência. Anna pôs uma mão sobre a sua, mas pareceu que com ela se agarrava a seu coração.
—É meu pai, Arthur.
Pareceu que todo seu interior se retorcia. Essa suave súplica chegava mais fundo do que gostaria. Como era capaz de lhe fazer isso? Como podia apertar as porcas para que ele se visse na necessidade de fazer quanto pudesse por satisfazê-la? Mas era impossível. Isso não podia fazer.
Durante quatorze anos sua vida se centrou em uma só coisa: desfazer uma ofensa. Tinha esperado muito tempo para encontrar-se com o Lorn cara a cara no campo de batalha. Assim como não podia negar seus sentimentos por ela, tampouco podia evitar sua promessa de justiça.
—Acredita que não sou consciente de que se trata de seu pai? Acha que não passei cada um dos dias destes dois últimos meses desejando que não fosse assim? Eu não queria que acontecesse nada disto, maldita seja.
As lágrimas brilharam nos olhos de Anna.
—Acredito que isso já deixa suficientemente claro. Seus sentimentos por mim são um obstáculo.
—Eu não disse isso. —Arthur apertou os punhos.
—Não têm nada que explicar. Acredite, entendo.
A aspereza de seu tom deixava muito claro os sentimentos de Anna. Levantou-se do banco e caminhou uns passos para o interior do pátio com o olhar perdido na escuridão.
—Parte —disse sem expressão na voz — Parta antes que mude de opinião.
Não podia acreditar que fosse o deixar partir. Por um segundo teve um brilho de esperança. Isso somente podia significar que ela ainda lhe amava, pois ao deixá-lo partir anteporia-o a sua família. E tinha que partir. Não gostava da idéia de deixá-la plantada assim, mas tinha que advertir ao rei. Aproximou-se dela, ficou a seu lado, tomou pelo cotovelo e a atraiu para si com delicadeza. Dava a impressão de ser mais jovem e frágil à luz da lua, com esse rosto pálida que parecia um ovalóide de alabastro.
—Juro-lhe que voltarei assim que possa.
Anna negou com a cabeça sem deixar de olhar ao infinito.
—Já têm feito sua escolha. Se partir agora o fará para sempre — disse, olhando-o ao fim com um rosto imperturbável — Não quero voltar a te ver jamais.
A determinação de sua voz cortava como uma espada.
—Não diz a sério. —Não podia falar sério. Era sua raiva que falava. Mas a rigidez da posição de seu queixo fez que o pânico corresse pelas veias de Arthur. Conhecia essa expressão. Atraiu-a para si com força, consciente de que tinha que fazê-la entrar em razão — Não diga algo do que poderia te arrepender.
Anna escoiceou ao sentir o contato.
—O que faz? Me soltem! —Deu-lhe um empurrão para desembaraçar-se dele.
Mas seus esforços não fizeram mais que aumentar a sensação de pânico de Arthur. Tinha que fazer o ver. Como podia negar? Acaso não sentia ela a energia que desprendiam seus corpos? O calor? Estavam destinados um para o outro.
Ficou sem palavras e sem tempo, de modo que a beijou, capturando sua boca com a dele em um desesperado e feroz abraço. Ela ficou lívida, já sem lutar, simplesmente deprimida sobre seus braços. «Não, maldita seja. Não.» A ausência de reação piorava a sensação de urgência. Beijou-a com mais força, com mais paixão, obrigando-a a abrir os lábios, procurando algo que muito temia lhe estava escapando entre os dedos. Seus lábios estavam quentes e suaves, seguiam tendo sabor de mel, mas nada era como antes. «Ela não quer que a beije.» deteve-se. «Que demônios estou fazendo?» Deixou-a ir ao mesmo tempo em que soltava uma imprecação e ficava olhando com horror. Nunca antes tinha feito algo assim. A idéia de perdê-la fazia que se voltasse louco.
—Deus, Anna! Sinto—disse com uma voz rouca e entrecortada pela aspereza de seu fôlego.
Merecia que lhe dirigisse esse olhar, como se ele fosse o barro que se aderia a seus sapatos.
—Jamais acreditei que fosse um bruto, mas dá a sensação de que está em seu lugar junto ao rei usurpador. Simplesmente tomam quanto querem.
—Anna, eu…
—Parte de uma vez — disse ela com Isso é o melhor que pode fazer. Já têm feito suficiente dano. —Olhou-o nos olhos, desafiante — Acaso pensava que poderia te perdoar isto?
Era a confirmação de seus piores temores. Fora um idiota. Permitia que as emoções turvassem sua percepção da realidade. Pensava que seria possível um futuro para eles pela simples razão de que a queria mais que a tudo no mundo. Mas nunca tivera nem a mais mínima oportunidade. Jamais lhe perdoaria aquilo que a obrigação, a honra e a lealdade lhe impunham. Fixou os olhos em Anna em busca de algum sinal de debilidade, mas ela o olhava com frieza, imutável. A ausência de lágrimas, ira ou emoção não deixava lugar a dúvidas. Tudo tinha acabado. Deus, tudo tinha acabado de verdade.
Arthur sempre soube que poderia chegar este momento, mas nunca esperou sentir-se tão impotente e desesperançado. Jamais pensou que doeria tanto. Parecia que o tivessem quebrado em mil pedaços por dentro e não houvesse nada que fazer a respeito.
—Vos amo, Anna. Sempre te amarei. Nada poderá mudar isso. Espero que algum dia compreenda que nunca quis te fazer dano.
Alongou o braço para tocar sua bochecha uma vez mais, incapaz de deter-se, mas ela se separou dele como se fosse um leproso e sua mão caiu sem força sobre o ar.
—Adeus.
Dito isto, Arthur a olhou pela uma última vez, uma imagem que teria que reter para sempre, deu meia volta e abandonou o lugar.
Jamais esqueceria o aspecto que tinha naquele momento: pequena, sozinha; de uma beleza dolorosa, com seus longos cabelos dourados caindo sobre os ombros em sedosos cachos e seus delicados traços resplandecendo sob a opalescente luz da lua. Tão frágil que poderia romper-se como o cristal. Mas determinada. Com uma determinação atroz.
Parecia ter o peito ardendo e que seu calor se intensificava a cada passo. Acreditava caminhar sobre as brasas do inferno e que o peso de suas pegadas fosse pura agonia. Não podia desprender-se da sensação de que estava mal deixá-la ali de tal modo, de que não fazia o correto nesse momento, depois já não teria oportunidade de fazer. Estava a meio caminho da estrebaria quando se voltou. Mas já era muito tarde. Ela não estava. Olhou para o alto da escada que conduzia à torre da comemoração e alcançou a ver uma mecha de cabelo dourado seguindo a esteira de sua figura como se de um pendão se tratasse antes de desaparecer depois da porta. Uma vez esta se fechou, pareceu que algo se fechava também em seu interior. Para sempre. Era uma parte dele que jamais devia ter aberto. Isso era o que conseguia por relacionar-se intimamente com as pessoas. Estava destinado à solidão. Nunca deve esquecer isso.
Tentou evitar o vazio que ardia em seu interior. Tinha que deixar de pensar nisso. Precisava centrar-se na tarefa que tinha entre as mãos. Mas o rosto de Anna seguia aparecendo ante ele. Perseguia-o. Distraía-o.
Entrou na cavalariça e se apressou a preparar seu cavalo. Apresentar-se voluntário à ronda noturna se provou duplamente providencial. Não só servia como desculpa para sair do castelo, mas sim também significava que não teria que perder tempo voltando para os barracões. Seus pertences mais importantes levava consigo: a cota de malha e as armas. As mudas de roupas e os poucos artigos pessoais que tinha podia deixá-los ali. Os planos tinham mudado. Tinha que partir para sempre, por mais que isso significasse que Lorn estivesse a par de que seu plano estava em perigo. Não ficava mais opções toda vez que Anna tinha descoberto a verdade. Não podia arriscar-se a que ela mudasse de opinião.
Não empregou mais de cinco minutos no estábulo. Não pensava mais que em sair dali quanto antes e pôr terra entre eles. Dizia a si mesmo que isso era o melhor que podia acontecer. Estava bem antes na solidão e voltaria a estar.
Entretanto, não chegou a sair do estábulo. Seus sentidos o advertiram, mas não o fizeram a tempo. De novo suas emoções o distraíram. Embora nesse caso não teria feito diferença alguma.
Abriu a porta do estábulo e se encontrou rodeado. John de Lorn e seu filho Alan flanqueados por ao menos uma vintena de guardas espadas em mão. A mandíbula de Arthur se contraiu pela dor que representava aquela punhalada nas vísceras. Não podia acreditar. Anna o tinha delatado. Talvez teria que ter esperado, mas não acreditava que seria capaz disso. Subestimou o amor que Anna tinha a seu pai e superestimou o que sentia por ele. Não havia razões para que encarasse como uma traição. Mas assim era.
Lorn arqueou uma sobrancelha de maneira indolente.
—Ia a alguma parte, Campbell?
—Sim — respondeu despreocupadamente, como se não estivesse rodeado por homens armados — vou unir me ao grupo de vigilância noturna. —Olhou em redor, sem sinal de fingir sua indignação — O que significa isto?
Lorn sorriu, embora em sua expressão não havia nenhum sinal de simpatia.
—Temo que estamos obrigados a lhe reter um momento. Há vários assuntos que temos que esclarecer.
Arthur deu um passo à frente. Ouviu o tinido do metal enquanto os guardas respondiam a sua afronta elevando as espadas e fechando o cerco a seu redor. Mas não era necessário. Estava apanhado. Talvez conseguisse abrir com golpes através de uma vintena de homens que apontavam a seu pescoço as espadas, mas as portas do castelo já estavam fechadas. Não seria capaz de atravessar sem que todo o castelo se erguesse contra ele. Não havia saída.
Olhou ao Alan, mas não obteria ajuda dele. Mostrava um olhar tão duro e inquebrável como o de seu pai, embora sem esse brilho de maldade acerada. Todos seus instintos clamavam por que lutasse, por desembainhar a espada e levar consigo a alguns homens de Lorn. Mas se obrigou a manter a calma. A não fazer nenhuma tolice. Sua missão era que vinha em primeiro. Se existia a mais remota possibilidade de que pudesse escapar para avisar ao Bruce, teria que considerá-la. Talvez pudesse sair desse embrulho por meio do diálogo. Não estava seguro de quanto havia contado Anna.
—Não pode esperar? —disse — Estão me aguardando.
—Temo que não — repôs Lorn. Fez um gesto com a mão e dois de seus homens mais fortes se adiantaram para agarrar Arthur nos braços — Levem-no às masmorras. Revistem.
«Diabos.» Ao que parecia não teria modo de sair dali por meio do diálogo. Tinha esquecido a nota, a mensagem que pensava deixar na cova essa noite para o rei. Um pequeno pedaço de papel dobrado que levava na bolsa com três palavras que selariam seu destino: «Ataque, 14, Brander».
Embora talvez seu destino tivesse ficado sentenciado dois meses atrás, quando se encontrou cara a cara com a moça que acabava de resgatar de um ataque fatal. A garota que poderia desmascará-lo.
Arthur emitiu um feroz grito de guerra que atravessou a noite e deixou que fosse seu instinto quem tomasse o mando: «Bàs roimh Gèill!». Morrer antes que render-se. Lutou como um selvagem e tombou a cinco soldados antes de cair sob o punho da espada do Alan MacDougall. À medida que a escuridão se abatia sobre ele, soube que aquilo não tinha acabado. E que estava a ponto de piorar.
Queriam-no vivo.
Capítulo 23
Supunha-se que não teria que sentir o coração partir-se. Anna queria que Arthur fosse embora. Tinha mentido. Tinha-a traído. Tinha-a usado. Queria destruir tudo que era importante para ela. Como podia pensar que existia possibilidade alguma de continuar juntos? Inclusive chegava ao ponto de tentar beneficiar-se da paixão que existia entre ambos. Como se um beijo pudesse fazê-la esquecer o que tinha feito. Odiou-o naquele momento. Odiou-o por manchar algo que era formoso e puro.
Dizia a si mesma que isso era o que ela queria, mas assim que Arthur deu meia volta e partiu, o gelo de seu coração começou a rachar-se.
Partia. Abandonava-a.
Jamais voltaria a vê-lo.
«Oh, Deus.» ficou completamente quieta, sem ousar mover-se ao estremecimento de seu interior. Sentia-se como uma fina lâmina de cristal sacudida por uma violenta tormenta de emoções. Forte na superfície e frágil na realidade. Assim que o vento soprasse com força, romperia em mil pedaços diminutos. Não devia sentir-se assim depois do que tinha feito. Não tinha por que sofrer tanto. A dor. O remorso. A desolação. A sensação de que lhe arrancavam o coração. Essa intensidade de emoções parecia pura debilidade. Onde estava seu orgulho? Era uma MacDougall e entretanto, nesse momento, somente se sentia como uma garota que observa como o homem ao que ama parte de sua vida para sempre.
Incapaz de suportar por um momento mais, temendo o que ele veria se desse a volta, pôs-se a correr. Subiu a escada tão rápido como pôde até que alcançou a segurança de sua câmara. Ali se desabou sobre a cama com cuidado de não despertar a suas irmãs, jogou a manta por cima da cabeça e se amassou sentindo-se como uma boneca de trapo. Somente então se deixou levar pela emoção e rompeu a chorar em silenciosos soluços que pareciam arrancados de sua própria alma.
Escudeiro, sentindo sua angústia, se aninhou junto a ela. Anna abraçou ao cachorrinho e fez dessa cálida bola de pelo de amor incondicional sua companhia durante daquela longa e miserável noite.
«Amo-te.»
Não podia tirara as palavras da cabeça. Soavam tão sinceras… Mas Arthur tinha mentido em todo o resto, assim por que teria que acreditar nisso? Inclusive no caso de que fosse certo, não deveria ter importância. Anna repassava o ocorrido uma e outra vez, recordando cada uma das palavras de sua explicação, sua justificação… ou como que pudesse chamar aquilo que tentava fazer. Já era suficiente que estivessem em lados contrários da guerra, mas realmente esperava que ela compreendesse sua necessidade de destruir ao clã familiar? De matar a seu pai, o homem a quem ela mais admirava no mundo? E tudo por certa forma retorcida de vingança? Justiça, tinha chamado ele.
Não queria ouvir suas explicações nem entender suas razões. E tampouco acreditou nem por um momento as mentiras que tinha dito a respeito de seu pai. Ele jamais teria matado a um homem de maneira tão desonrosa. «Faria tudo por ganhar», pensou tapando as orelhas com o travesseiro como se as plumas pudessem conter seus próprios temores. «Pergunte você mesma», tinha-a desafiado Arthur.
Não precisava perguntar. Ela sabia a verdade.
Mas Arthur parecia muito seguro a respeito do que tinha visto.
Anna saiu da cama assim que as primeiras luzes do amanhecer estenderam seu manto pelo chão. Fez suas abluções matinais e passou sigilosamente junto a suas irmãs para sair da câmara. Sabia exatamente o que faria. Demonstraria que Arthur se equivocava. Assim poderia deixar tudo aquilo atrás e deter esse miserável sofrimento de seu coração.
Ainda não tinham disposto as mesas com seus cavaletes e alguns dos homens seguiam ainda despertando em seus lugares do grande salão quando se apressou para os aposentos de seu pai. Sabia que estaria de pé, apesar de que mal tivesse passado uma hora do amanhecer. Quando se preparava para a batalha, John de Lorn virtualmente não dormia. Ouviu sua voz assim que se aproximou da entrada.
—Não me importa quanto tempo dure. Quero saber os nomes.
—Não sei por quanto mais poderá…
Alan deteve em seco suas palavras ao vê-la entrar no aposento. Com somente olhá-lo à cara, Anna soube que algo ia mal. Seu pai estava sentado à mesa. Frente a ele seu ajudante, o capitão da Guarda e seu irmão Alan. Seu pai entreabriu os olhos com ira ao vê-la, enquanto os outros desviaram o olhar, quase como se quisessem evitá-la. Anna, pensando que a irritação de seu pai se devia à interrupção, apressou-se a bater-se em retirada.
—Sinto muito. Voltarei mais tarde.
—Não —respondeu John de Lorn — Tenho que falar contigo. Já acabamos com isto. Não quero mais desculpa —disse ao Alan — Consiga o que quero. Custe o que custar.
Alan franziu o cenho, mas assentiu. Anna sentiu uma pontada no coração ao ver que saía do aposento sem lhe dirigir a palavra, nem sequer um olhar. Tomou assento no banco que havia em frente a seu pai e cruzou os braços sobre o regaço. A intensidade de seu olhar a fazia sentir incômoda em certa forma. Estava furioso e não era por causa da interrupção.
—Se tiver algo que me dizer, chega muito tarde.
A Anna lhe encolheu o coração.
—Algo… algo que lhes dizer?
Seu pai tirou um pedaço de papel de sua bolsa e o pôs sobre a mesa ante ela. Um calafrio percorreu sua nuca ao reconhecer o mapa.
—Sim —disse John de Lorn — Quando viu isto antes, por exemplo. —A vergonha tingiu as bochechas de Anna. Como o tinha averiguado? Seu pai respondeu à pergunta por ela — Sua reação. Que fosse lhe buscar imediatamente depois de ver o mapa confirmou a procedência.
Acaso seu pai os tinha vigiado durante todo o tempo? Não, talvez no pátio, mas não era possível que os tivesse divisado no jardim, pois este não alcançava a ver do salão. Embora, obviamente, tinha visto o suficiente.
—Não esperava isto de ti, Anna.
Inclinou a cabeça, profundamente afetada por tê-lo decepcionado. Não tinha desculpa. Queria dizer que não estava segura, mas sim o estava. Assim que tinha visto o mapa, tinha sabido que Arthur era um espião.
—Sinto muito, pai. Queria lhe dar uma oportunidade para que se explicasse.
—E te satisfez sua explicação? —repôs seu pai com uma voz tão afiada como um látego.
Ela negou com a cabeça. Embora sabia que tinha a obrigação de contar-lhe tudo, essas palavras seguiam sendo muito difíceis de dizer. Teve que recordar que Arthur a tinha abandonado.
—Sua lealdade está com Bruce — começou, detendo-se depois para olhar a seu pai com cautela — Disse que Bruce se ganhou o coração do povo. Que é a melhor alternativa para nos libertar da tirania inglesa de uma vez por todas. E que vamos perder e que será melhor que nos rendamos.
Seu pai ficou vermelho de cólera.
—E acreditou? Arthur Campbell diria tudo para ganhar sua simpatia. Você, pequena insensata… estava te utilizando para escapar. Jamais nos renderemos. E não vamos perder.
A segurança de suas palavras jogou Anna em muitas dúvidas e a fez duvidar de se devia mencionar o resto. Seu pai já estava mais que zangado com ela, mas tinha que acabar com tudo aquilo.
—Afirma que estava ali quando matou a seu pai e que ele viu tudo.
A leve separação do olhar de seu pai poderia significar algo, mas fez que o coração de Anna se detivesse.
—Isso é impossível — disse, descartando a idéia — Não sei o que veria, mas Colin Mor e eu estávamos longe do grupo. Não havia ninguém ali quando combatemos. Em qualquer caso, eu nunca neguei que caísse sob minha espada. Nem que a vitória que consegui para nosso clã fosse a causa da perda das terras dos Campbell no lago Awe. Que Arthur Campbell albergue desejos de vingança por isso é algo inevitável, mas não supõe desculpa alguma.
Obrigou-se a olhar nos olhos, apesar de que se odiasse a si mesmo por repetir a acusação de Arthur.
—Disse que seu pai o tinha sob a ponta de sua espada e que lhes ofereceu a rendição, que aceitou e que depois o assassinou quando deu a volta.
Nessa ocasião a separação do olhar paterno não podia ser interpretada mal. Nem tampouco a tensão de sua mandíbula, nem as rugas brancas que se marcavam ao redor de sua boca. Estava zangado. Zangado sim, mas não quão ofendido deveria. O rosto de Anna empalideceu. «Oh, Deus. É verdade.»
O horror que adivinhou na expressão de sua filha pareceu incomodar ao John de Lorn.
—Aquilo ocorreu faz muito tempo. Fiz o que devia fazer. Colin Mor era cada vez mais poderoso; invadia nossas terras. Teria que detê-lo.
Anna parecia estar na presença de um estranho e que pela primeira vez via o homem que realmente era. Seguia sendo o mesmo pai ao que amava, mas já não era esse homem incapaz para ela de fazer nada mal. Já não era um homem ao que não podia questionar. Tinha deixado de ser um deus. Não, mostrava uma humanidade temível. Parecia-lhe imperfeito e capaz de cometer enganos. Grandes enganos. Enganos execráveis.
Arthur tinha razão. Seu pai faria tudo pra ganhar. Nem sequer se deteria pelo bem de seu próprio clã.
—Tem pouco pelo que me julgar, filha. Você, que deixa que alguém que trai nosso clã parta em liberdade… —Endureceu tanto a voz que quebrou — Sabe o dano que poderia ter feito?
Seu pai tinha razão. Tinha decidido deixar livre Arthur, inclusive sabendo que poderia fazer dano a seu clã, porque não suportava a idéia de converter-se em instrumento de sua morte.
—Não queria que lhe fizessem mal. Eu… lhe tenho carinho. —Anna ficou calada de repente, surpreendida de que seu pai falasse em condicional — O dano que poderia ter feito? —perguntou.
Seu pai franzia o cenho de modo forçado e a brancura de seus lábios contrastava com a cor avermelhada de seu irado rosto.
—Tem sorte de que pudesse mitigar o desastre. Meus homens rodearam ao Campbell ontem à noite quando tentava a fuga. Levava uma mensagem que prova sua culpa —disse com os olhos ardendo de fúria — Uma mensagem que poderia ter arruinado tudo.
Anna não podia respirar do horror que bulia em seu interior. O medo atendia seu coração e o espremia.
—O que têm feito com ele?
—Isso não é de sua incumbência.
O pranto contido lhe ardia na garganta. Nos olhos. O pânico comprimia seus pulmões. Mal pôde pronunciar umas palavras: —Por favor, pai, simplesmente me diga… está vivo?
Ele não respondeu imediatamente, mas sim a observou com seu frio e escrutinador olhar.
—Por agora sim. Tenho algumas pergunta para ele.
Anna fechou os olhos e exalou o ar com uma sensação de alívio assustadora.
—O que farão com ele?
Seu pai a observou com paciência. Era óbvio que não gostava daquele interrogatório.
—Isso depende dele.
—Por favor, tenho que o ver.
Anna tinha que assegurar-se de que Arthur se encontrava bem.
Seu pai pareceu ultrajado por tal petição.
—Para que lhe deixe partir de novo? Não acredito — disse apertando a mandíbula com raiva — Não serviria de nada. Esse homem é perigoso e não se pode confiar nele.
—Arthur jamais me faria mal — disse Anna sem pensar, para imediatamente conscientizar-se de que era a verdade. Ele a amava. Sabia que no fundo era certo. Não mudava nada do passado, mas talvez sim do futuro. O coração lhe encolheu. Se é que tinha um futuro — Por favor…
Seus rogos caíam em ouvidos surdos. Os olhos escuros de seu pai a olharam com uma dureza inquebrável.
—Arthur Campbell já não é teu assunto. Já tem feito suficiente dano. Como posso estar seguro de que não tentará procurar um modo de lhe ajudar? —Os protestos de Anna morreram em sua garganta. Para falar a verdade, tampouco ela podia estar segura. O medo que atendia seu coração ao pensar que Arthur estava encarcerado fazia que se inteirasse de que não era tão fácil evadir-se do que sentia por ele — Não esperava isto de ti, Anna. —A decepção de sua voz a rasgava até o mais profundo, e essa sensação se via agravada pela segurança de que merecia. Mas estava entre duas águas, apanhada entre dois homens que amava. Seu pai a despediu com um gesto anti-social da mão — Estará pronta para partir dentro de uma hora.
Ficou sem respiração.
—Partir? Mas pra onde?
—Seu irmão Ewen partirá como vanguarda do exército com um contingente amplo de homens para assegurar nossas defesas em Innis Chonnel. Irá com ele. Uma vez que tenhamos mandado ao rei Hood ao inferno, fará uma visita a meu primo o bispo do Argyll em Lismore. Ali terá tempo de pensar no que tem feito e em onde reside sua lealdade.
Anna assentiu com lágrimas cada vez mais abundantes. Estava claro que seu pai não confiava nela e não a queria no castelo enquanto ele permanecesse fora. Sabia que poderia ter sido pior, que o castigo de seu pai poderia ter sido muito mais severo. Mas não podia suportar a idéia de abandonar Arthur sem saber o que seria dele.
—Por favor… Farei o que me peça. Mas me prometa simplesmente que não o matarão quando eu esteja fora —disse, engasgando-se com seus soluços — O amo.
—Basta! Põe a prova minha paciência, Anna. Seus ternos desejos para esse homem lhe fazem esquecer seu dever. O único que te libera de um castigo muito pior é saber que talvez eu também tenha parte de culpa por te pedir que o vigiasse. Arthur Campbell é um espião. Sabia o risco que corria quando decidiu nos trair. Não terá nada menos do que mereça.
Arthur já não sentia nada. Fazia horas que tinha ultrapassado a soleira da dor. Tinham-lhe batido, fustigado e quebrado cada um de seus dedos com o aplastapulgares15. Mas sim percebia o sabor do sangue. Esse nauseabundo sabor metálico enchia seu nariz e boca como se estivesse afogando-se nele. Sua cabeça pendurava para frente e seu cabelo, molhado e empapado em suor e sangue, ocultava seu olhar daqueles que lhe rodeavam. Em algum momento da noite chegaram a ser mais de uma dezena os homens que tentavam fazer que se rendesse. Agora que os raios de sol atravessavam as seteras da masmorra, somente ficavam três deles.
Estava preso a uma cadeira, mas não era necessário imobilizá-lo. Já não supunha nenhuma ameaça. Tinham-lhe retorcido tanto o braço direito que tinha saído do ombro. Sua mão esquerda pendurava inerte junto a seu corpo, com cada um de seus ossos quebrados um a um com uma lentidão agonizante. E pensar que tinha rido a primeira vez que tinha visto aquele artefato… Aquela pequena braçadeira de metal parecia inofensiva, certamente nada que pudesse obrigá-lo a lhes contar o que queriam. Mas logo aprendeu como algo simples podia provocar um sofrimento terrível. Mais dor do que jamais tinha imaginado. Estivera a uma volta de lhes contar tudo que queriam saber. Teria dito o que fosse para que parassem.
—Maldito seja, Campbell. Diga simplesmente o que querem saber.
Arthur olhou a Alan MacDougall através do véu emaranhado de seu cabelo empapado. O irmão de Anna permanecia junto à porta como se não pudesse esperar mais para sair dali, com o rosto lívido e contraído. Quase parecia que fosse ele a quem torturavam. O herdeiro de Lorn não tinha estômago para isso. Mas seu ajudante sim. Arthur tinha a impressão de que aquele filho de cadela sádico poderia continuar com isso durante dias e dias. Apesar de não poder falar, emitiu uma espécie de grunhido e negou com a cabeça, sem forças. Não. Ainda não. Não lhes diria nada ainda. Entretanto, a palavra «nunca» já não aparecia entre seus pensamentos.
A cabeça foi para trás, impulsionada pelo novo golpe daquele filho de cadela, que lhe sacudiu com um punho envolto em correntes que, bem, parecia uma marreta.
—Os nomes —exigiu — Quem são os homens que lutam na guarda secreta?
Arthur já não se incomodava em fingir ignorância. Não acreditavam. Anna o tinha condenado sem se dar conta disso. Graças ao acontecido no Ayr, quando ele a resgatou, e também ao último ataque nos bosques, Lorn estava seguro de conhecer menos a um dos membros da infame guarda fantasma. Não podia culpá-la por isso. E pelo que parecia, tampouco podia culpá-la por delatá-lo. Em algum momento da noite entre os golpes e o látego, Arthur percebeu de que, dadas as perguntas que lhe dirigiam, o mais provável era que estava errado. Em caso de que ela o tivesse traído, não havia lhes dito muito.
Percebeu como o punho do filho de cadela voltava para ataque, como uma mancha negra nos limites de sua consciência. Preparou-se de maneira instintiva para o golpe embora soubesse que não serviria de ajuda, já que por seu tamanho e o poder de seus socos, diria que o ajudante provinha de uma longa dinastia de ferreiros. Entretanto, alguém bateu na porta e reclamou ao ajudante de Lorn, de modo que Arthur pôde recuperar um instante. Derrubou-se sobre a cadeira e procurou introduzir um sopro de ar em seus encharcados pulmões. Tinha uma costela quebrada como mínimo, embora achasse que fossem mais.
—Eles o matarão se não contar — disse Alan.
Arthur tomou seu tempo para responder, tentando fazer provisão das forças necessárias para falar.
—Matarão-me de qualquer forma — grunhiu.
Embora Alan não afastou o olhar, sua careta de agonia disse a Arthur que seu rosto devia refletir a dor que sentia.
—Sim, mas será muitíssimo menos doloroso.
E mais rápido.
Contudo, Arthur tinha fracassado já muitas vezes e estava decidido a salvar o que pudesse daquela maldita missão. Se fosse capaz de confrontar o momento final sem revelar os nomes de seus companheiros de irmandade, revestiria sua morte com certa aparência de honra.
Mesmo assim, dada a magnitude catastrófica de seus fracassos, não significaria mais que uma vitória vazia. Tinha perdido tudo. Anna. A oportunidade de destruir ao Lorn e render justiça a seu pai. E a oportunidade de avisar ao rei da ameaça. Bruce e seus homens iriam direto para a emboscada e ele não teria meios para lhes advertir.
Tinha falhado igual falhou a seu pai.
Que lhe batessem até convertê-lo em uma massa sanguinolenta, esfolassem-no até deixá-lo a borda da morte e lhe rompessem os dedos um a um servia para que seus pensamentos não escapassem das quatro paredes da prisão. Mas nos pequenos descansos temia as outras conseqüências que sua captura pudesse conduzir. Lorn amava a sua filha e não lhe faria mal; mesmo assim tinha que perguntar.
—Anna?
Alan o olhou com expressão grave.
—Não está mais aqui — Arthur sentiu o mundo desabar sobre ele. Ao ver a horrorizada expressão de seu rosto, Alan se apressou acrescentar — Está a salvo. Meu pai pensou que era melhor tirá-la do castelo até que…
Alan deteve suas palavras. «Até que esteja morto», disse-se.
O ar voltou a encher seus pulmões. Somente a tinham enviado a outro lugar. Mas então o recordou.
—Não… é seguro — conseguiu dizer. Em vésperas da batalha, Bruce teria linhas de ataque rodeando-os e estreitando o cerco. A severa expressão que se desenhou no rosto do Alan lhe dizia que não se mostrava em desacordo, mas, igual a Arthur, via-se impotente para detê-lo — Meus irmãos? —perguntou Arthur.
Pode ser que Dugald e Gillispie fossem seus inimigos no campo de batalha, mas não queria que eles tivessem que sofrer suas preferências.
—Meu pai não tem razão alguma para acreditar que estejam implicados. Fizeram-lhes um breve interrogatório e pareciam tão surpresos como o resto de nós. —deteve-se, com o olhar confuso — por que salvou minha vida? Não tinha por que fazer.
Arthur sacudiu o cabelo do rosto para lhe olhar nos olhos.
—Sim, tinha que fazer.
Alan assentiu, compreendendo tudo.
—Ama-a de verdade.
Não disse nada. O que teria podido dizer? Nada daquilo importava.
A porta se abriu e o ajudante de Lorn voltou a aparecer na saleta com uma corda na mão. A Arthur lhe acelerou o pulso como reação imediata ao perigo.
—Hora de partir —disse — Os homens estão preparados para partir.
Arthur se preparou para o pior, consciente de que tinha chegado seu final. Tinha ganho. Teriam que o matar. Uma pequena vitória nesse amargo mar de fracassos.
—Então terá que enforcá-lo? —disse Alan.
O ajudante sorriu, brindando Arthur com o primeiro sinal de emoção que percebia em seu feio e curtido rosto.
—Ainda não. A corda é para o fosso. —O alívio que embargou Arthur indicou que não estava tão preparado para morrer como acreditava. Depois do que acabava de passar, o úmido buraco de uma fossa de castigo lhe pareceria o paraíso — Talvez os ratos lhe afrouxem a língua — disse o ajudante com uma gargalhada.
Ou talvez um inferno em vida.
O ataque de terror que atravessou seu corpo serviu para lhe dar um jogo de forças primitivo. Lutou contra o metal de seus grilhões como um possuído. Sua pele arroxeada e em tiras sucumbia diante da sensação de ter ratos percorrendo-a.
Tinha que escapar dali.
Mas não podia. Encadeado e ferido, não era rival para os guardas que o arrastavam dos calabouços até a sala contígua. Ao final nem sequer se preocuparam com a corda, mas sim o jogaram dentro.
Escuridão.
Chiados.
Queda. Impacto.
Um duro e arrepiante golpe.
E depois, felizmente, escuridão. Só escuridão.
Capítulo 24
—Ewen, temo que preciso de um momento de privacidade —disse Anna, fingindo um rubor embaraçoso.
—Já? —Seu irmão a olhou como se ela tivesse cinco anos. Estavam no coração da floresta, perto de um túmulo funerário, a uns três quilômetros do castelo — Por que não fez antes de sair?
Anna o fulminou com o olhar para lhe comunicar que não fazia nenhuma graça que lhe falasse como se fosse sua mãe.
—Porque então não precisava fazer.
Ewen pôs cara feia.
—Pararemos quando chegarmos ao Oban. Está a menos de dois quilômetros.
—Não posso esperar tanto —repôs Anna negando com a cabeça — Por favor… — implorou com voz doída, removendo-se um pouco nos arreios para dar ênfase a sua urgência.
Seu irmão murmurou uma maldição e depois se voltou para dar o alto à vintena de homens que os escoltavam através dos perto de cinqüenta quilômetros que o separavam do Innis Chonnel, uma viagem que era muito mais rápido de navio mas que seu pai, depois de navegar do castelo com sua frota, tinha considerado muito perigosa.
—Te apresse — disse com impaciência — Um de meus homens te acompanha…
—Isso não será necessário — interrompeu Anna bruscamente. «Arruinaria tudo» — Eu… —continuou sem ter que fingir o abafado— Temo que esta manhã comi algo que me tem revolto estômago. Pode ser que tarde um pouco.
A seu irmão pareceu lhe envergonhar que compartilhasse detalhes muito pessoais de um assunto que jamais devia mencionar-se. Anna mesma estava horrorizada pela natureza e o alcance de seu embuste, mas necessitava todo o tempo que fosse possível para escapar. Tinha que voltar para castelo. Não havia explicação para isso, mas do mesmo momento em que tinha saído dos aposentos de sua mãe essa manhã, não tinha conseguira deixar de lado a uma insuportável premonição. Talvez estivesse motivada pelas palavras de seu pai, mas ela sabia que algo sairia mal, terrivelmente mal. E essa sensação não tinha feito mais que piorar à medida que o castelo se desvanecia atrás deles sob a luz do sol. Não sabia o que poderia fazer; simplesmente, mas tinha que fazer algo. Pode ser que não tivesse nenhuma possibilidade de estar juntos, mas tampouco desejava sua morte, e dado que seu pai tinha partido do castelo atrás deles, aquela era sua oportunidade.
Em conta da humilhação que supunha que vinte homens observassem como se afastava para fazer suas necessidades, Anna fez provisão de toda a dignidade com que contava, aceitou a ajuda que lhe oferecia o escudeiro de seu irmão para descer do cavalo, deu-lhe as rédeas e entrou em atitude régia para a densa folhagem de árvores e samambaias. Assim que esteve fora do olhar se arregaçou as saias e se pôs a correr. De ali não demoraria mais de dez minutos em chegar até o castelo. O que demoraria era convencer para que a deixassem entrar nos calabouços onde albergavam aos prisioneiros. Mas esperava conseguir antes que seu irmão Ewen se desse conta de que tinha desaparecido. Não demoraria muito em figurar-se aonde teria ido. E ao contrário dela, ele iria a cavalo.
Correu através das árvores em paralelo à estrada para que não a vissem, procurando fazer o mínimo ruído possível. Mas as folhas secas e os ramos caídos faziam com que o silêncio fosse impossível. Ouviu um ruído atrás dela e quis gritar de raiva. Como tinham descoberto tão logo sua fuga? Escondeu-se depois de um penhasco em uma tentativa em ocultar-se, mas se encontrou com que alguém pegava seu pulso por trás.
—Me solte — disse, e tentou libertar-se.
Como esperava topar-se com seu irmão ou com algum de seus homens, ao dar meia volta e ver um guerreiro de olhar feroz com elmo e nasal ficou lívida. Deixou escapar um grito de alarme, amortecido pela mão do homem.
—Silêncio, moça! Não quero te fazer dano.
Seu temível rosto não inspirava muito confiança. Tinha a compleição de uma montanha e uns traços toscos e rústicos que se adequavam perfeitamente a seu tamanho. Anna se obrigou a ficar quieta, fazendo ver que acreditava o que lhe dizia, mas depois, assim que ele se relaxou, golpeou-lhe tão forte como pôde com o salto da bota e lhe fincou o cotovelo no mais profundo de seu peitilho de couro, estremecendo-se ao golpear as partes de metal.
O homem deixou escapar uma exclamação de surpresa, mas não afrouxou seu abraço o suficiente para que Anna pudesse libertar-se. Voltou a olhar com frustração e ficou imóvel, dessa vez de verdade. Havia algo familiar nele. Não, nele não. Em seu traje. Anna ficou sem respiração. O elmo escurecido, o cotun de couro negro tachonado com metal, o estranho corte da manta… Se tratava da mesma indumentária característica que levavam seu tio e os guerreiros da floresta do Ayr. Aquele homem formava parte da Guarda secreta de Bruce. Um fato que Anna viu confirmado só um momento depois.
—Duvido que se fosse minha sobrinha acreditaria, Santo.
Anna ficou atônita de surpresa ao ver que Lachlan MacRuairi saía de entre as árvores com outro guerreiro.
—Santo, Templário — disse, assinalando em sua direção — Permitam que vos presente a lady Anna MacDougall. —Fez um gesto com a mão ao homem que a agarrava — Pode soltá-la. Não gritará, a menos que queira ver mortos seu irmão e ao resto de seus homens.
Anna se esfregou a boca mal esteve livre, tentando recuperar as sensações. Olhou a seu redor.
—Só são três.
Seu comentário pareceu divertir sinceramente aos homens.
—Dois a mais dos que precisamos — disse o terceiro deles.
Era só um pouco mais baixo que os outros dois. Anna começava a pensar que ser um gigante recoberto de músculos era condição indispensável para ser membro do exército secreto de Bruce. Sob a sombra de seu elmo com nasal, o homem fazia ornamento de um sorriso tão afável como simpático. Templário, tinha o chamado seu tio. Um nome do mais estranho. Era muito jovem para ter lutado contra os infiéis. Fazia trinta e cinco anos da última cruzada. E ao homem que a agarrava MacRuairi o tinha chamado Santo. Anna percebeu de que tinham que ser apelidos, nomes de guerra.
«Guardião!» Assim tinha chamado o guerreiro arrumado a Arthur na floresta. Seria esse seu nome de guerra?
—O que fazes aqui, tio?
Parecia estranho chamar «Tio» a alguém que não era mais que dez anos mais velho que ela. Não parecia muito maior que Arthur, embora devesse ter trinta e três ou trinta e quatro anos.
—Talvez devessea lhes perguntar eu o mesmo. Por que fugistes de seu irmão e de seus homens?
Não lhe surpreendia que MacRuari não respondesse a sua pergunta. Ou estava reconhecendo o terreno ou vigiando o castelo. Como estavam perto da costa, Anna supôs que teria chegado de navio. Lachlan MacRuairi era um pirata dos pés à cabeça.
—Assim oferecem cobertura ao ataque de Bruce contra meu pai além mar — disse ela, tentando adivinhar seu propósito.
Seu tio encolheu os ombros evasivamente.
—Agora me diga, lady Anna, por que vos encontro correndo através da floresta?
—Preciso retornar ao castelo.
—Por que?
Mordeu o lábio enquanto pensava no que devia lhes contar. Mas sabia que não tinha muito tempo. Já a tinham entretido muito. Custaria muito pedir a Deus ajuda retornar ao castelo antes que seu irmão Ewen a alcançasse. Talvez quisessem levá-la?
—Têm cavalos perto? —perguntou.
MacRuairi franziu o cenho.
—Sim.
Anna respirou aliviada.
—Bem. Pode ser que precise sua ajuda para retornar ao castelo. Preciso me assegurar de que Arthur está bem. —Nenhum deles reagiu, e Anna supôs que assim devia ser. Não sabiam que ela estava a par da verdade — Acredito que o chama de Guardião.
MacRuari amaldiçoou.
—Ele lhe disse isso?
Anna negou com a cabeça.
—É uma longa história. Descobri a verdade por mim mesma. Infelizmente, não fui a única. Meu pai também sabe.
MacRuari voltou a amaldiçoar, dessa vez fazendo uso de um impropério que inclusive o próprio pai de Anna rara vez usava.
—Então… está morto.
—Não — repôs ela, desconcertada por sua veemência — Encarcerado. Meu pai o está interrogando.
MacRuairi cuspiu e um olhar de puro ódio atravessou seus escuros traços.
—Em tal caso desejará estar morto. —A que se referia? Perguntou-se Anna. Seu tio, vendo a confusão em seus olhos, o explicou—: Estive do outro lado dos interrogatórios de seu pai.
Tem uns métodos bastante persuasivos e imaginativos na hora de extrair informação. Se Guardião não estiver morto já, logo o estará.
O estômago lhe decompôs para ouvir suas palavras.
—Meu pai jamais…
Não foi a expressão sombria do rosto do MacRuairi o que a deteve, a não ser a lembrança da conversa parcial que tinha ouvido antes de entrar na câmara de seu pai. «Consiga o que quero. Custe o que custar.»
«Oh, Deus.» Anna se sentiu desfalecer. Seu pai o estava torturando. Sabia que esse tipo de coisas ocorria, claro, mas aquilo supunha uma parte feia da guerra em que não queria pensar. E tampouco gostava de pensar que seu pai pudesse estar comprometido em tamanha crueldade.
—Temos que o ajudar — quase gritou, com lágrimas nos olhos.
O coração lhe deu um tombo em ouvir um grito a pouca distância deles.
—Anna!
—Estão-me chamando. Temos que partir já.
MacRuairi negou com a cabeça.
—Não há nenhuma necessidade de que venhas. Nos encarregaremos de tudo.
—Mas…
MacRuairi cortou seus protestos em seco.
—Se vierem conosco, seguirão-nos. Custará-nos menos trabalho lhe ajudar se não suspeitarem nada. Voltem com seu irmão e continuem a viagem.
—Mas pode ser que necessitem minha ajuda. —Anna desejava ver Arthur por si mesma — Como chegarão ao castelo? Como o encontrarão?
O rosto do MacRuairi adotou uma expressão severa.
—Sei onde está. —Pelo modo em que o disse, Anna soube que ele mesmo estivera ali; sentiu um calafrio. Mas o que lhe gelou o sangue foi a angústia que viu refletida em seus olhos. Deus, o que teria feito seu pai? E o que estaria fazendo Arthur? — Já têm feito suficiente —disse — Se Guardião está vivo, ele mesmo lhe agradecerá.
«Se estiver vivo.» Anna reprimiu suas lágrimas e assentiu, consciente de que tinham razão. O melhor modo de ajudar Arthur era que fossem sozinhos para buscá-lo. Mas isso não fazia mais fácil vê-los desaparecer entre as árvores. Queria ir com eles. «Está vivo», dizia a si mesma. Tinha que estar. Se não fosse assim saberia, porque uma parte dela também teria morrido.
Assim que estiveram fora de seu olhar, Anna começou a correr na direção oposta a que tinha tomado para chegar ali. Ao chegar a um pequeno córrego respondeu às chamadas de seu irmão. Teria que dar algumas explicações, mas, tendo em conta a natureza do assunto, não acreditava que Ewen se visse inclinado a lhe formular muitas perguntas. Tudo que Anna podia fazer era rezar para que se produzisse um milagre. Pois isso era o que necessitariam para resgatar Arthur do virtualmente impenetrável castelo de Dunstaffnage antes que fosse muito tarde.
Arthur os deixava aproximar-se. Afinava seus sentidos para captar qualquer sinal de correria ou chiado e permitia que os ratos se aproximassem o suficiente para os agarrar. Assim podia lhes romper o pescoço com uma mão contra sua própria perna, algo que, dado que somente tinha uma mão operativa, parecia de tudo fortuito. O mal era que essa mão estava unida a um braço deslocado, com o que cada movimento lhe produzia uma dor atroz. Tentou recolocar o ombro por si mesmo, mas não tinha a força nem o apoio necessários.
Acabar devorado por ratos famintos não era exatamente o modo em que esperava morrer, mas não sabia por quanto tempo poderia os manter a raia. Cada vez que desmaiava, suas persistentes dentadas despertavam. Tinha perdido muito sangue e a cada hora que passava estava mais débil e pior respondiam seus sentidos. Logo não seria capaz de voltar a despertar.
Teria matado já umas cinqüentas daquelas asquerosas criaturas segundo seus cálculos, mas havia centenas delas ali abaixo. Estremeceu-se. Quando iluminaram o vão com a tocha para jogá-lo lá dentro, o fundo do fosso se via repleto delas. Uma vez fechado, aquele buraco tinha ficado na mais absoluta escuridão. Dependia de seus sentidos, e estes o abandonavam lentamente. Seus olhos começaram a fechar-se. Estava tão cansado que somente queria relaxar-se durante um…
«Ah!», gritou de dor, despertando à realidade graças a uns dentes afiados como facas que se cravavam em seu tornozelo. Esperneou e o rato voou pelos ares.
Supunha que teria que agradecer ao Dugald o que fosse capaz de agüentar tanto tempo ali. Aquelas horas passadas na escura despensa lhe tinham servido de lição. Sabia que tinha que estar alerta e como antecipar os movimentos dos ratos. Mas as reações de Arthur eram cada vez mais lentas. Cada vez escapava um número maior delas e um número maior lhe mordia a mão. Sabia que não poderia durar muito assim. Não viriam a por ele até que não acabasse a batalha, e como tinha perdido a conta do tempo fazia já horas, não sabia quando seria isso.
«Maldição.» Não era só o horror do movimento dos ratos o que estava deixando-o louco, a não ser saber que seus amigos estavam ali fosse dirigindo-se para uma armadilha mortal e que não podia fazer nada para ajudar. Tinha fracassado. «Fracassado.» Fechou os olhos em uma tentativa de que a amarga verdade se desvanecesse. A languidez se abatia sobre ele. Cada vez lhe parecia mais difícil resistir e não deixar-se levar para essa bendita escuridão da inconsciência. Estava tão cansado…
Seus olhos não voltaram a abrir-se. Nada poderia despertá-lo. Nem os ratos, nem a explosão de mil demônios que faria que os guardas corressem até as portas do castelo minutos depois.
Alguém o sacudia.
—Guardião! Guardião! Maldita seja, desperte! Não temos muito tempo.
Quem era Guardião?
Abriu os olhos só para fechá-los imediatamente ao sentir que a luz da tocha lhe atravessava o crânio como se fosse uma adaga.
Guardião era ele.
Mas como…?
Voltou a abrir os olhos. Essa vez lentamente, permitindo que se adaptassem à luz.
MacRuairi.
Advertiu o alívio que se refletia no rosto do outro.
—Não estava seguro de que seguissem com vida.
A mente de Arthur estava embotada e pensada com lentidão.
—Eu tampouco estava.
MacRuairi se estremeceu, e Arthur percebeu que não tinha bom aspecto, inclusive diante da tênue luz da tocha. Tinha o rosto macilento e seus olhos foram parar de um lado a outro com inquietação. Quase se diria que tinha um ataque de pânico.
—Saiamos daqui quanto antes. Podes caminhar?
Arthur assentiu e tentou incorporar-se por si só. Tomava cuidado de não olhar para baixo. A tocha mantinha aos ratos longe no momento.
—Acredito que sim.
—Melhor. Não tinha muita vontade de tentar te tirar daqui.
MacRuairi lhe estendeu a mão, mas Arthur a rechaçou e as arrumou para ficar em pé por seus próprios meios.
—Está sozinho? —perguntou.
MacRuairi o olhou de cima abaixo, e em seguida fez uma idéia de qual era seu estado. Franziu o cenho ao conscientizar-se por que rechaçava sua ajuda.
—Não. Santo e Templário estão comigo. Falcão queria vir, mas alguém tinha que ficar com a frota. Não ouviu a explosão?
Arthur negou com a cabeça.
—É assim como conseguistes entrar?
MacRuairi lhe ajudou a assegurar a corda ao redor da cintura e entre as pernas. Umas pernas que, embora tremiam como se fossem as de um potro recém-nascido, conseguiram lhe manter em pé.
—Não, mas não está mal como manobra de distração.
MacRuairi se agarrou a uma segunda corda e subiu rapidamente. Depois içou o corpo de Arthur com a outra, o qual não parecia fácil, já que tinha um peso morto ao outro extremo. Mas MacRuairi, além de ser tão daninho como uma serpente, era além disso tão forte como um maldito boi.
A sensação de alívio que assaltou Arthur ao estar fora daquele buraco infernal era virtualmente assustadora. Tinha vontade de chorar como um menino. MacRuairi se desprendeu da manta que levava e a deu. Arthur tinha esquecido que estava nu. Aceitou-a com gratidão, ajustando-a ao redor da cintura e dos ombros o melhor que podia com sua mão maltratada.
—O cheiro de merda de rato acabará desaparecendo.
Arthur surpreendeu-se ao ver um traço de compaixão no olhar do outro. De repente percebeu a razão pela que MacRuairi parecia estar tão perto do ataque de pânico ali abaixo. Conhecia bem. Certamente, devia ter passado por algo similar.
—E o resto? —perguntou Arthur.
MacRuairi voltou o rosto violentamente, como se lhe incomodasse reconhecer essa greta em sua couraça de gelo.
—O resto demora mais a desaparecer.
«Ou não desaparece nunca.» Arthur ouviu essas palavras não pronunciadas.
—Como me encontrastes?
—A moça nos disse que o tinham feito prisioneiro. O resto… imaginei.
«A moça…»
—Anna? —perguntou Arthur com uma voz aguda por sua incredulidade.
—Sim. Tivemos sorte de vê-la.
MacRuairi lhe explicou que estavam reconhecendo o terreno e comprovando que não houvesse suas mensagens no túmulo funerário quando ouviram aproximar-se de um grupo de cavaleiros. Ao reconhecer a Anna a seguiram e notaram como tentava lhes dar escapar de seu irmão e seus homens.
Arthur estava surpreso.
—Tentou escapar?
—Ao que parecia, queria assegurar-se de que estavam bem.
Arthur murmurou uma maldição. Graças a Deus, não fora ela quem o encontrou. Não queria que se inteirasse jamais do que lhe tinha feito seu pai. Era um banho de realidade muito forte. Melhor que pudesse acolher-se a alguma ilusão. Mas saber que importava o suficiente para ir a seu encontro significava muito para ele. Mais que muito. Devia-lhe a vida. E também lhe dava esperanças.
—Oh, não! —murmurou MacRuairi com desgosto — Têm exatamente o mesmo olhar de parvo do MacSorley. Não temos tempo para isto. Contarei o resto mais tarde.
MacRuairi lhe rodeou a cintura com um braço, com cuidado de evitar seu ombro machucado, e lhe ajudou a caminhar até a porta. Chamou duas vezes sem deixar espaço entre um e outro golpeio, e depois fez uma pausa e repetiu a chamada. A porta se abriu.
—Por todos os demônios, Víbora. Estava a ponto de sair para lhes buscar. —Magnus MacKay, o Santo, jogou uma olhar a Arthur e estremeceu — Está bem, Guardião?
Arthur procurou sorrir, mas fraquejou diante da intensidade da dor.
—Não estou em meu melhor momento, mas me alegro muito de os ver. Como puderam…?
Uma explosão estrondosa clamou atravessando a brisa da noite e deixou sua pergunta no ar. «A brisa da noite.» Deus santo: o ataque!
—Que horas são?
—Pouco depois da meia-noite — disse MacKay.
—Tenho informação para o rei.
—Mais tarde —disse MacRuairi — Não temos tempo. Essa era nossa manobra de distração. Se queremos sair daqui teremos que nos apressar.
MacKay e MacRuairi flanquearam Arthur e o levaram do hall ao interior do calabouço. Um rápido olhar ao chão lhe informou do destino que tinham seguido os guardas. Infelizmente nenhum dos corpos pertencia a seu torturante. O ajudante tinha partido com o Lorn. Uma razão mais pela que desejava com todas suas forças que chegassem ali a tempo. Outra conta que devia saldar.
Saíram à torre que albergava o calabouço dos refugiados na escuridão. Embora o pátio estivesse deserto, ouvia-se a comoção que chegava das portas do castelo. Entretanto, em lugar de dirigir-se para ali, começaram a subir pelo adarve, com o que Arthur soube qual era o plano do MacRuairi. Tinham assegurado três cordas à mureta do baluarte que ficava em frente às portas na parte mais afastada, olhando ao lago. Em geral havia um guarda vigiando o perímetro, mas a explosão tinha feito que se desviasse para a porta.
Arthur olhou para baixo na escuridão e fez uma careta de desgosto.
—Antes teremos que lhe arrumar o ombro — disse MacRuairi. Deu a volta, agarrou-o pela base do ombro e lhe ofereceu sua adaga — Preparado?
Arthur pôs o punho de madeira entre os dentes e assentiu. A dor foi extrema, mas rápido. Depois de um momento, já era capaz de girar o braço livremente sobre seu ombro.
—Fez isto antes? —perguntou Arthur.
—Não —disse MacRuairi com um estranho sorriso no rosto — Mas o vi fazer. Suponho que têm sorte de que aprenda rápido.
Uma vez que teve o braço em seu lugar, Arthur pôde deslizar-se corda abaixo com a ajuda dos outros. Quando estiveram todos em terra, MacRuairi os conduziu para uma parte escura do muro exterior. Ao olhar ao chão, Arthur percebeu de que faltavam algumas das pedras e viu que havia um buraco debaixo elas. Entraram virtualmente arrastados.
—Esta é a parte mais antiga do muro —explicou MacRuairi — As rochas quase se pode esmiuçar.
Esse comentário indicou a Arthur que certamente não era a primeira vez que avançava por esse buraco.
Do outro lado os esperava Gordon.
—Por que demorastes…? —disse detendo-se o ver o estado de Arthur — Diabos, Guardião, parecem um asco.
—Isso dizem — respondeu Arthur secamente.
Tomaram seu tempo em reparar o muro, no caso de algum dia voltarem a necessitá-lo, e pouco depois já corriam seguindo a costa. A pouco menos de um quilômetro encontraram a pequena embarcação que MacSorley tinha escondido na cova.
—Têm que me levar ante o rei. O quanto antes possível —disse Arthur. Sobre o horizonte oriental se viam já os primeiros raios do amanhecer suavizando o céu noturno. Teriam que ir a cavalo, já que a rota marinha para o Brander estaria cercada pela frota de Lorn — Espero que cheguemos a tempo.
—O que é que acontece? —disse MacKay advertindo a urgência do caso — O que averiguastes?
Enquanto navegavam para o oeste e penetravam entre a frota de navios, lá onde o lago Etive se encontrava com o mar aberto, no fiorde de Lorn, Arthur explicou com presteza o plano traiçoeiro do pai de Anna, tanto os detalhes da emboscada como sua decisão de atacar antes do fim da trégua.
Gordon soltou uma imprecação.
—Esse filho de puta traiçoeiro…
Os sentimentos do MacKay eram idênticos, mas os expressou em termos muito mais precisos, para depois acrescentar: —O rei será surpreendido.
—Sim —disse Arthur — Lorn escolheu o lugar muito bem.
Arthur lhes falou do estreito caminho e os escarpados de Ben Cruachan.
—Conheço o lugar —disse MacRuairi — Aos exploradores custará muito encontrá-los.
—E por isso temos que os advertir.
MacRuairi negou com a cabeça de modo sombrio.
—Sairão na primeira hora do amanhecer. Inclusive no caso de que chegássemos antes que alcancem a parte mais estreita do caminho, não seria fácil que um contingente de três mil homens dê meia volta. Toda essa zona é perigosa.
—Não é necessário que dêem meia volta —disse Arthur — Tenho um plano. —Seus três companheiros da Guarda mudaram um olhar — O que? —perguntou.
Foi Gordon quem expressou o que todos estavam pensando.
—Não está em condições de lutar. Nós faremos chegar a mensagem ao rei.
Arthur chiou os dentes.
—Eu vou.
Nada evitaria que lutasse. Se tinha alguma possibilidade no mundo de enfrentar-se ao Lorn no campo de batalha, faria uso dela.
—Só conseguirá dar lentidão a nossa marcha —disse MacRuairi sem rodeios — Não têm forças nem para sentar numa mula, como ides cavalgar em nosso passo? E como diabos acha que poderá agarrar as rédeas com essa mão?
Arthur lhe dirigiu um olhar carregado de veneno.
—Deixem que eu seja quem me preocupe disso.
MacRuairi ficou olhando-o nos olhos e depois de uns segundos assentiu.
—Será melhor que encontremos algo com o que lutar.
Chegaram a tempo e Arthur não caiu do cavalo, embora para sua vergonha esteve muito perto de fazer. Como os homens do MacDougall já estavam posicionados tiveram que rodeá-los pelo sul. Cruzaram com o rei a pouco mais de um quilômetro do lugar. Este não era dado a mostrar seu aborrecimento, mas Quando Arthur lhe informou dos planos de Lorn o fez. Perjurou e chamou Lorn por todos os nomes vis que cabiam sob o sol.
—Pelos pregos de Cristo, como é possível que não soubéssemos? —perguntou sem dirigir-se a ninguém em particular, apesar de que todos os guerreiros sentiram sua parte de culpa pelo que teria significado um desastre. E também o rei, pois sabia melhor que ninguém que não tinha que confiar no código de cavalaria.
—Escondam-se entre as rochas de uma ladeira escarpada —disse Arthur — Não é fácil vê-los se não está procurando.
Pelo olhar que MacLeod dedicava aos rastreadores, Arthur temia, por mais que pudesse compreendê-lo, que pagariam muito caro.
—Dizia que tinham um plano? —perguntou o rei.
—Sim. —Arthur se ajoelhou e desenhou um mapa no chão com um pau — Podemos vencer ao Lorn em seu próprio terreno. Tem a várias centenas de homens nesta posição — disse, marcando um ponto a meio caminho da ladeira — O resto do exército atacará na boca do estreito quando partirem em retirada e os agarrarão entre duas frentes: acima e abaixo. —Arthur assinalou um lugar um pouco mais acima de onde estavam os homens de Lorn — Se enviarem um contingente por cima, seus homens se verão apanhados. Quando a emboscada não der resultados, Lorn se desesperará.
Bruce ficou circunspeto.
—Está seguro de que podemos conseguir que nossos homens cheguem ali em cima? Como descreve, é um terreno escarpado e traiçoeiro. Se nos descobrirem antes de chegar à posição, não servirá de nada.
—Meus highlanders podem fazer —disse Neil Campbell — Conhecem estas terras.
—Está seguro? —perguntou Bruce.
—Sim —disse Neil — Lutam como leões, mas se movem como gatos.
—Eu os levarei —disse Arthur — Conheço bem o terreno.
Neil seguia sendo um dos guerreiros mais formidáveis do reino, mas tinha cinqüenta anos e não estava tão em forma como antes. Bruce pousou o olhar sobre ele, e Arthur se deu conta de sua incerteza. Apesar de que limpara o sangue e a sujeira antes de por a indumentária de guerreiro que lhe tinham emprestado, de que enfaixou a mão e o pulso, de que tivesse comido e bebido suficiente uisgebeatha para devolver a cor a seu rosto, sabia que ainda parecia que uma besta raivosa do inferno o tivesse tragado, tivesse o amassado com seus dentes e o tivesse cuspido depois. Antes que o rei pudesse negar-se, acrescentou: —Posso fazer, senhor. Não me encontro tão mal como parece delatar meu aspecto.
Era uma mentira, mas não muito grande. Saber que estava perto da hora da verdade com o Lorn lhe dava novas forças.
—Ganhaste esse direito, sir Arthur —disse o rei — Sem sua informação, isto poderia ter sido um desastre.
Arthur sabia que a lembrança de Dal Righ fazia dois anos, quando se viu empurrado pelo Lorn a fugir para salvar a vida, seguia muito fresco na memória do rei. Bruce chamou a seu lado a um de seus cavalheiros mais jovens e de um dos mais dignos de confiança que tinha: sir James Douglas. O único que o fazia sombra, o sobrinho do rei e outrora renegado, sir Thomas Randolph, estava com o MacSorley no oeste, preparando o ataque pelo mar em caso de que fosse necessário.
—Douglas, quero que vá com ele —disse o rei. Ato seguido fez gestos a outro dos guerreiros. Gregor MacGregor, o companheiro original de Arthur nos Guardiões dos Highlands, avançou entre outros — Estarão à frente dos arqueiros —disse. E depois se dirigiu a Arthur—: Tome tantos homens como necessita.
—Será melhor que ponham algalguns MacGregor no lote, Guardião — disse Flecha assim que o rei se voltou para se consultar com o Neil e MacLeod — Não podemos permitir que os Campbell levem toda a glória.
Arthur conseguiu esboçar um sorriso. Deus, era fantástico estar de volta. Era fantástico poder brincar a respeito das velhas rixas de sangue entre os MacGregor e os Campbell que em outro momento tinham feito deles inimigos acérrimos.
—Assim são os MacGregor, sempre dispostos a tirar benefício do duro trabalho dos Campbell.
—Necessito algo com o que impressionar às moças —disse MacGregor.
Campbell soltou uma gargalhada. MacGregor não necessitava nada para impressionar às moças. Isso já fazia seu rosto por ele, e não poucas vezes se colocaram com ele por causa disso.
—Se necessitais ajuda para melhorar seu rosto bonito, posso te mandar ao tipo que me fez isto —disse, assinalando seu próprio rosto.
MacGregor fez uma careta de dor.
—O tipo se empregou a fundo. Isso tenho que reconhecer.
—Assegurarei-me de que chegue seu castigo quando o agarrar — disse Arthur secamente.
Ambos sabiam que aquela não seria uma conversa muito longa.
Neil tinha acabado de falar com o rei, e quando viu que Arthur se dispunha a preparar aos homens, levou-o à parte.
—Está seguro de que te encontra bem, irmão? Qualquer um entenderia que não tenha vontade de seguir. Já tem feito suficiente.
«Eu entenderia», era o que queria dizer. Arthur percebia isso no olhar de seu irmão Neil. Mas ambos sabiam que esse não seria o final.
—Estarei bem —lhe assegurou— quando tudo isto tiver acabado.
Capítulo 25
O plano de Arthur funcionou. Junto a Douglas, MacGregor e uma pequena leva dos homens de seu irmão, dirigiu o grupo de guerreiros para um lugar elevado nas montanhas do Ben Cruachan, por cima de onde estavam escondidos os homens do clã de Lorn. Os guerreiros do MacDougall desdobraram uma chuva de flechas e penhascos sobre os «despreparados» soldados assim que o exército de Bruce passou pelo desfiladeiro que havia debaixo deles. Mas o ataque «surpresa» dos MacDougall recebeu outro ataque surpresa como resposta. Os guerreiros de MacDougall ergueram o olhar, horrorizados, e descobriram que Arthur e seus homens deixavam cair outra chuva de flechas de sua própria colheita e saltavam sobre eles como se fossem uma aparição. Ao perder o elemento surpresa e a posição estratégica nas alturas, a emboscada dos MacDougall se transformou em uma disparada. Apanhados entre duas frentes, abaixo e acima, seus homens foram massacrados. Quando Lorn lançou seu ataque frontal na boca do desfiladeiro, em lugar de enfrentar a um exército no que reinava o caos se encontrou com as poderosas hostes de Bruce fortemente armadas.
Arthur correu para descer a montanha e unir-se à luta, atravessando o barulho de soldados em luta com um só objetivo em mente: encontrar ao Lorn. Conseguiu distinguir a Alan MacDougall ao outro lado da ladeira, concentrando seus homens com a valente intenção de liberar uma nova carga. Mas a valentia não seria suficiente. Esperava pelo bem de Anna que se desse conta disso antes que fosse muito tarde.
O estreito funil do desfiladeiro rebateu em parte a vantagem numérica de Bruce, mas o ataque de Lorn não demorou muito em ver-se frustrado. Arthur alcançou a primeira linha de frente justo quando a vanguarda dos MacDougall começava a romper-se. O rei Robert, à cabeça de seu exército, lutando junto a seus cavalheiros de confiança e os membros dos Guardiões das Highlands, ordenava perseguir os fugitivos do clã inimigo. Em sua frenética tentativa de retirar-se ao castelo de Dunstaffnage, muitos dos MacDougall fossem derrubados ou se afogaram ao tentar cruzar a ponte sobre o rio Awe.
Tinham ganhado! A tentativa dos MacDougall de superar ao Bruce fracassava e o rei obtinha sua revanche pela batalha de Dal Righ. Acabavam de romper o cerco do clã mais poderoso das Highlanders. A vitória era doce, mas não seria completa até que Arthur encontrasse ao Lorn.
No caos da retirada, examinou o contingente de fugitivos em busca de seu inimigo. Aliviou-o comprovar que Alan MacDougall liderava a um grupo de seus homens para terreno seguro. Ao ver MacRuairi junto à ponte, Arthur desceu para encontrar-se com ele.
—Onde está?
Não tinha que dizer de quem falava. MacRuairi cuspiu ao chão e assinalou em direção sul à entrada do lago Awe.
—Nunca saiu de seu birlinn. Esse maldito covarde dirigiu a batalha da água. Assim que seus homens se retiraram, fugiu em direção ao lago.
Arthur amaldiçoou sua sorte, negando-se a acreditar que, depois de ter chegado tão longe, lhe seria vedada a possibilidade de justiça no último momento.
—Quanto tempo faz disso?
—Não mais de cinco minutos.
Em tal caso, ainda tinha uma oportunidade. Mas necessitaria os dotes de marinheiro do MacRuairi se queria o apanhar. Lorn possuía três castelos no lago Awe, mas Innis Chonnel, o antigo forte dos Campbell , era o mais novo e melhor fortificado. Ali seria onde iria.
Arthur olhou ao MacRuairi com parcimônia.
—Gostaria de uma regata?
MacRuairi, conhecido por ser um dos mais temidos e ousados piratas sobre o mar, sorriu. Ao menos pareceu que esboçava um sorriso.
—Eu reunirei aos homens. Encarregue-se do navio.
Arthur estava já correndo para a ribeira do rio para chegar ao porto. Era uma corrida que não tinha nenhuma intenção de perder. Nessa ocasião, John de Lorn não escaparia a seu destino fatal.
****
Anna não podia fazer mais que esperar. Mas não saber o que acontecia depois dos grossos muros do castelo do Innis Chonnel era uma autêntica tortura. O coração se encolheu. Não, tortura não. O seu não era nada comparado ao que Arthur estava sofrendo. Nem sequer podia suportar pensar nisso, embora não parecia ser capaz de outra coisa mais que de imaginar o que estava acontecendo, sem saber se estaria vivo ou morto. Era coisa de loucos! Como conseguiria seu tio entrar no castelo, por não falar de o resgatar? «Teria que ter ido com eles.» Assim ao menos saberia o que tinha passado. Mas seu tio estava certo. Não teria conseguido mais que levar a seu irmão de volta ao castelo.
As horas passavam com lentidão. Quando não estava ajoelhada, rezando na pequena capela, Anna procurava manter-se ocupada. Chamaram à batalha à maioria dos soldados, de modo que somente ficava uma pequena reserva de guardas no castelo para defendê-lo. Na noite anterior, já sem mais falsas visitas ao córrego, assim que o grupo chegou ao castelo, Anna organizou aos homens para que preparassem as câmaras, refrescassem o grande salão e fizessem inventário das provisões com que contavam.
O castelo de Innis Chonnel fora construído mais ou menos na mesma época que Dunstaffnage. Apesar de não ser tão grandioso, era uma edificação similar. A fortaleza quadrada fora construída sobre uma base de penhascos no confinante sudoeste da ilha. Seus altos muros de pedra rodeavam um pequeno pátio. Nos cantos tinham levantado duas torres, a maior das quais servia como torre da comemoração, enquanto a segunda se utilizava como calabouço. Entre ambas estava o grande salão. Sobre os muros se edificaram outras dependências de madeira menores que acolhiam os barracões, os arsenais, os estábulos e as cozinhas.
Parecia estranho pensar que aquele tivesse sido o lar de Arthur em sua infância. Anna sempre desfrutava de suas estadias no castelo junto a seu pai, mas nesse momento se sentia estranha. Como se não devesse estar ali. Como se fosse uma intrusa. Sabia que aquilo era ridículo. Os castelos mudavam de mãos com freqüência durante a guerra. Mas depois do que Arthur lhe tinha contado… Anna estava dividida. Dividida entre o pai ao que ainda amava, embora sem dúvida idealizava, e um homem a quem deveria odiar, apesar de não poder fazer. Não queria compreender por que Arthur fizera aquilo, mas o compreendia. Podia entender a lealdade que regia seus atos porque era quão mesma regia os dela. A lealdade ao rei e à pátria. A lealdade ao clã e à família. Sim, isso entendia especialmente.
Arthur era um highlander. Sangue por sangue, assim era como funcionavam as coisas nas Highlands. De modo que vingar seu pai se convertia em seu dever. Mas ela sabia que não se tratava só de vingança. Uma parte dele seguia sendo aquele menino que tinha visto morrer seu pai e seguia pensando que teria que ter evitado. Justiça. Vingança. Mas também significava expiação. Não obstante, compreendê-lo não oferecia a Anna resposta alguma. O que se podia fazer quando amar a um significava perder ao outro?
Depois de uma noite sem descanso, passou o dia seguinte a sua chegada de modo muito similar ao primeiro deles: rezando e procurando manter-se ocupada todo o tempo para não pensar no que acontecia depois dos grossos muros do castelo. Se por acaso seus temores pelo destino de Arthur não bastassem, também tinha a batalha. Quem sabia se nesse momento não teria deixado já de existir o mundo no que ela tinha vivido sempre. Os homens aos que amava podiam jazer mortos ou feridos, e mesmo assim, nos protegidos limites do Innis Chonnel, sobre a incomunicável ilha do lago Awe, tudo tinha uma aparência normal. A brilhante luz do sol seguia brilhando sobre as mansamente onduladas águas do lago, os pássaros seguiam voando e o vento úmido ainda pulverizava seus cabelos quando passeava pelo pátio.
Distinguiu a figura do Ewen, que saía da torre da comemoração.
—Alguma notícia? —perguntou, apesar de saber a resposta de antemão, já que em caso de que se aproximasse alguém ouviria a chamada.
—Não, ainda nada — respondeu seu irmão negando com a cabeça.
Sabia que a espera também era dura para Ewen, embora por diferentes motivos. Ele queria lutar. Não obstante, se culpava a ela seu confinamento em Innis Chonnel, nunca deixou ver.
Anna mordeu o lábio inferior.
—Oxalá soubesse como vão as coisas.
—Oxalá —disse seu irmão com um sorriso — Mas assim que haja algo do que informar…
—Aproximam-se navios, senhor! —gritou um dos guardas da torre vigia.
Anna seguiu a seu irmão em sua fulgurante descida da escada para as almenas. Somente podia distinguir as três velas quadradas que se aproximavam deles do norte a toda velocidade.
—É o pai — disse Ewen com uma voz desencorajada.
Um pressentimento fez que Anna se estremecesse de cima abaixo.
—O que acontece? Algo vai mal?
Ewen não se incomodou em tentar ocultar a verdade.
—Disse que somente viria em caso de que fosse necessário.
«Necessário.» A Anna lhe deteve o coração. Isso significava que o faria se tivesse que bater em retirada.
Tinham perdido!
Anna cambaleou, sentindo que suas pernas eram como gelatina. Pôs a mão na borda da mureta para recuperar o equilíbrio, observou como se aproximavam os navios e rezou por que houvesse outra explicação. Algo diferente que Bruce tivesse ganhado. Então entreabriu os olhos para proteger-se dos brilhos do sol e viu algo mais.
—O que é isso? —disse, assinalando justo trás dos navios que se aproximavam — O que é isso que vem trás?
Mas Ewen estava já ditando ordens.
—Atacam-nos! A seus postos!
Os homens saltaram à ação imediatamente enquanto Anna, incapaz de desviar o olhar, observava aterrorizada como se aproximavam os navios. Ao que parecia, os homens de seu pai não pareciam conscientizar-se de que os perseguiam.
—Atrás! —gritou em uma tentativa de lhes avisar.
Mas o vento levava sua voz.
—Anna, sai daqui!—gritou-lhe Ewen — Isto não é seguro. Vá à torre e tranca a porta.
Anna assentiu em silêncio e fez o que seu irmão lhe pedia. Uma vez dentro, correu para sua câmara do segundo andar para olhar da seteira. Já que a torre da comemoração estava no canto sul do castelo, não pôde ver os navios até que virtualmente estavam já junto ao embarcadouro. Observou com o coração em um punho como começava a batalha justo a seus pés. Viu seu pai situado atrás de seus homens, gritando ordens ao mesmo tempo em que o navio de guerreiros inimigos chegava… ficou petrificada, com o coração lhe dando saltos no interior do peito. Piscou. Não, não era um sonho. Uma intensa onda de alívio abriu caminho em seu interior fazendo que lhe estremecesse o coração.
Arthur estava vivo. Vestia um traje de batalha que não lhe parecia familiar e embora a simples vista, com o rosto e o cabelo resguardados sob o elmo com nasal, fosse impossível de distinguir dos outros guerreiros, sabia que se tratava dele.
«Graças a Deus.»
Então se revelou a absoluta transcendência de sua presença no castelo. O horror se apoderou dela e a apanhou com seu frio abraço. Se Arthur estava ali, somente podia ser por uma razão. Correu para a porta, consciente de que tinha que fazer algo. Tinha que o deter. Não podia permitir que matasse a seu pai.
Arthur o tinha a frente o momento que tanto tinha esperado. Em certo modo parecia adequado que o encontro final tivesse lugar na pequena ilha do Innis Chonnel, sob a sombra entristecedora do castelo que um dia fora seu lar. A corrida fora acirrada, mas ao final MacRuairi deu fé de que sua reputação era merecida. Oculto pela cegante luz do sol, seguiu aos navios em retirada de Lorn sem que estes se inteirassem de sua presença até alcançar aos três birlinn quando se dispunham a atracar. Somente então dispôs Arthur uma descarga de flechas sobre os despreparados MacDougall.
MacRuairi tinha reunido a quarenta piratas de seu clã, algo que seria um combate desigual, já que os MacDougall os triplicavam em número. Mas os homens de MacRuairi estavam mais que dispostos a aceitar o desafio. Patifes, rufiões, esquartejadores, eram qualificativos generosos para alguns MacRuairi que ganhavam a pulso sua reputação como o maior flagelo dos mares. Mas em terra lutavam com a mesma ferocidade.
Os guerreiros de MacRuairi estavam já saltando pela amurada espada empunhada ao grito de «Pelo leão!», ao mesmo tempo em que seu chefe deixava o navio escondido até pô-lo virtualmente em cima dos do MacDougall. Arthur estava ali mesmo, liderando a carga.
Lorn tinha situado a seus homens ao final do embarcadouro com a esperança de conter aos homens de MacRuairi assim que tentassem tomar a terra. Mas os guerreiros de MacDougall não eram rivais para os selvagens ataques de seus parentes. Apesar de que ambos descendessem de filhos de Somerled, o rei norueguês que tinha governado as ilhas cento e cinqüenta anos antes, lutavam de geração em geração pela supremacia. Os MacDougall a tinham ganhado depois da batalha do Larg e receberam o favor dos reis ingleses, mas essa integração fez que se afastassem muito de suas raízes vikings. Os MacRuairi lutavam como os próprios bárbaros que tinham sido até tão pouco tempo que a maioria deles podia seguir recebendo esse nome.
Romperam o muro de contenção dos MacDougall rapidamente e situaram a batalha sobre as rochosas costas da ilha. Arthur estava em desvantagem ao contar só com um braço, por não falar de seu fraco estado; entretanto, em que pese a encontrar-se longe de suas habituais condições para a luta, defendia-se bem. Abria caminho com determinação entre os soldados sem tirar olho ao Lorn em nenhum momento. Este estava na retaguarda da batalha, rodeado pelo protetor círculo de seus homens, entre os que se encontrava seu ajudante. O sangue de Arthur fervia antecipando o momento.
Os MacDougall retrocediam, e logo ficou claro que as superiores força em número de Lorn não ganhariam a partida. Arthur, envolto em um encarniçado combate com um dos homens de MacDougall, ao qual por desgraça conhecia, ouviu o grito de retirada. Amaldiçoou, consciente de que tinha que deter o Lorn e a seu ajudante antes que alcançassem a segurança das portas do castelo.
«Outra vez não.»
Chamou a atenção de alguns homens de MacRuari e lhes disse o que queria deles. Lutou para abrir caminho até o Lorn seguido por esses mesmos homens, que fizeram racho no círculo protetor de Lorn e tiraram ele e a seu ajudante do grupo. Uma vez que Arthur chegou até ali, os homens do MacRuairi se dispersaram para formar uma barreira atrás dele.
Se Lorn não tivesse a poucos metros da segurança dos muros do castelo, Arthur teria desfrutado mais com sua morte, mas tal e como estavam as coisas teve que despachar ao ajudante com presteza. Por mais habilidade que tivesse aquele homem na hora de torturar, não era rival para Arthur, nem sequer com uma só mão.
Ao fim se voltou para Lorn e o alcançou a escassos metros da porta. Seus homens estavam tão ocupados defendendo-se que nenhum deles pôde ir em sua ajuda. Arthur advertiu a raiva em seus olhos quando John de Lorn ergueu a espada contra ele.
—Como escapou? —perguntou com incredulidade.
—Surpreso de me ver?
Um brilho assassino aflorou nos olhos de Lorn.
—Devia ter matado.
—Sim, teria que tê-lo feito.
—É o culpado de todo este desastre. Traíram meus planos para acabar com esse filho da puta assassino.
—Rei Robert — o provocou Arthur, rodeando-o como a uma presa — Diria que melhor que te acostumem a chamá-lo assim, mas temo que não viverá por aqui tempo suficiente.
E dito isto lhe atirou um golpe.
Lorn estava preparado e arrumou para rebatê-lo, embora com muita dificuldade e tremendo com todo o corpo pelo esforço. John de Lorn, em seus dias um dos mais temidos guerreiros das Highlands, já não significava nenhuma ameaça. A idade e a enfermidade cobraram seu preço. Não era covardia, a não ser a enfermidade o que fez que permanecesse no lago e na retaguarda da batalha. O maldito orgulho de Lorn evitava que admitisse quão doente realmente estava.
O segundo golpe de Arthur o tombou de joelhos. Pôs a ponta da espada no pescoço. A touca de malha não serviria de nada contra o afiado aço de sua arma. O sol se refletia no elmo do ancião de mesmo modo em que tinha feito quatorze anos antes quando Arthur observava da distância como seu pai sustentava a folha ante o pescoço desse mesmo homem e lhe oferecia clemência. Era o momento que estivera esperando. Teria sentido a antecipação dessa cena em suas próprias veias. O sabor da vitória tinha que ser doce. Seus músculos teriam que estar tensos, preparados para propinar a cutilada. Mas não sentia nada disso. Somente podia pensar em Anna.
Se o fizesse, seria para ela o que Lorn sempre foi para ele: o homem que tinha matado a seu pai. Talvez seu perdão fosse algo mais do que tinha direito a esperar, mas se assassinasse ao Lorn destruiria qualquer opção que pudesse ficar. Que honra teria em matar a um homem muito doente para lutar? Seu pai já fora vingado. Lorn estava acabado. Sua derrota no Brander tinha acabado com qualquer opção que tivesse de deter Bruce.
Anna tinha razão. O matar então não seria mais que vingança, e Arthur a amava muito mais que qualquer momento efêmero de satisfação que aquilo pudesse lhe proporcionar. Bom, pode ser que não fosse tão efêmero, mas, em qualquer caso, amava-a mais.
Lorn o olhou com fúria sob o visor de ferro de seu elmo.
—A que estais esperando? Faça de uma vez!
Piedade. Apesar de que até esse momento o tivesse esquecido por completo, aquela fora a última lição de seu pai.
—Renda-se ante o rei e lhe deixarei viver.
O rosto de Lorn se retorceu de ira.
—Prefiro a morte.
—E o que será com sua família? O seu clã? Também quer que morram?
Os olhos do John de Lorn estavam incendiados de puro ódio.
—Prefiro isso antes que me render a um assassino.
—Fará que morram suas filhas por seu maldito orgulho?
Aquilo fazia que o sangue de Arthur fervesse. Conhecia Anna. Jamais iria contra seu pai. A família era tudo para ela.
—Dê a Anna sua bênção. Manterei ela a salvo. Sabes tão bem como eu que está acabado. Mas seu clã pode prosseguirr através de nossos filhos, em seus netos.
A raiva de Lorn estava desenfreada. Sobre seus olhos, frágeis de loucura, ressaltavam as veias de sua têmpora e seu rosto aceso. Desafogou-se proferindo uma enxurrada de maldições vis que lhe deixaram jogando espuma pela boca.
—Jamais será sua! Antes prefiro vê-la morta!
—Pai!
Arthur ouviu o grito angustiado que se erguia atrás dele. Anna. Voltou-se de maneira instintiva e deixou suas costas a mercê de Lorn. Exatamente o mesmo que seu pai tinha feito tempo atrás ante seus próprios olhos.
Capítulo 26
Anna chegou ao pátio justo no momento em que Arthur fazia seu pai cair de joelhos.
Oh, Deus, tinha chegado muito tarde!
Correu mais depressa.
Ewen e outros tentavam defender o castelo lançando flechas de maneira seletiva das frestas do adarve, preparados para baixar a grade assim que seu pai e os outros conseguissem retirar-se ao interior. Os guardas estavam tão preocupados observando o que acontecia no exterior que nem sequer a viram penetrar antes seus narizes.
—Milady! —chamou-a um dos guardas — Não podes…
Anna não os escutava. Avançou alguns metros além das portas, mas não chegou muito longe. Os soldados inimigos tinham formado uma linha que separava Arthur e o pai de Anna do resto dos opositores. Quando ela tentou passar entre eles um dos homens a agarrou.
—Pelas chagas de Cristo! —disse, puxando-a pelo pulso — Aonde acha que vai, moça?
Abriu a boca para gritar ao aterrador rufião que a soltasse, mas então ouviu a voz de Arthur e ficou quieta nos braços do soldado. Não acreditava no que ouvia. Arthur brandia uma espada contra o pescoço de seu pai, a ponto de alcançar a vingança e a expiação que motivava seus atos, quando lhe ofereceu piedade. Ofereceu a seu pai a oportunidade de salvar a todos. Uma oportunidade que, depois do que certamente teria feito, seu pai não merecia. A oportunidade de um futuro.
Se deu conta de que Arthur a amava. «Ama-me tanto que está acima de sua sede de vingança.» Mas se as palavras de Arthur enchiam seu coração, as de seu pai o destroçaram. «Antes prefiro vê-la morta.» Anna escapou das garras de seu captor e retrocedeu, angustiada por um horror e uma comoção que a fizeram gritar. «Não diz a sério.»
Entretanto, ela sabia que sim havia dito a sério. Seu pai preferiria vê-la morta antes que casada com o inimigo, embora a amasse. Aquele cruel rechaço à oferta de Arthur fez saltar em pedaços qualquer raio de ilusão que ficasse. Mas seu grito foi um erro. Um erro mais terrível do que poderia ter imaginado. Sua voz teria que ter-se perdido no infernal estrépito da batalha. Ninguém deveria ter ouvido. Mas Arthur ouviu. Voltou-se ao ouvir sua voz e a espada pareceu perder toda sua força.
«Pai nosso que está nos céus…» Sob a sombra do elmo, a visão de seu rosto golpeado e massacrado lhe revolveu o estômago e provocou um acesso de bílis. Mas o pior dos horrores estava por chegar. Viu o brilho da espada de seu pai pela extremidade do olho.
—Não! —gritou dando um passo à frente. Mas o soldado a apanhou antes que pudesse avançar — Cuidado!
«Calcanhar de Aquiles.» Ela era seu calcanhar de Aquiles, mas não podia permitir que morresse por isso.
Arthur deu meia volta e ondeou sua espada pelo ar para rechaçar o golpe mortal do pai de Anna com suficiente força para arrebatar a espada das suas mãos e fazê-la voar. Então ergueu a espada sobre sua cabeça.
Anna se voltou e protegeu seus olhos do horror que estava a ponto de acontecer. Arthur mataria a seu pai, e depois do que este acabava de fazer não poderia culpá-lo de nada. Esperou para ouvir o horripilante som da morte. Mas o silêncio parecia interminável. Estava tudo tão tranqüilo que percebeu de que a batalha que livrava a seu redor também se deteve.
—Vá — ouviu que Arthur dizia — Tem cinco minutos para levar sua filha e a seus homens do castelo.
O olhar de Anna recaiu de novo sobre seu pai. Seu pai, que seguia com vida. Arthur tinha baixado a espada e se afastava dele, enquanto John de Lorn se pôs em pé com o rosto tingido de uma pátina de raiva desafiante.
—É um estúpido.
—E tens a sorte de que sua filha signifique para mim muito mais que sua mísera vida. Mas lhes asseguro que o rei não sente o mesmo. Parte por seu próprio pé ou faça com grilhões, isso não é de minha incumbência, mas partirá.
Um grito chegou das alturas para confirmar suas palavras.
—Navios, milorde. Seis deles vindo para cá.
«Bruce.»
Lorn não pensou. Reuniu a seus homens e ordenou a Ewen evacuar o castelo e reunir quantas armas pudesse levar consigo.
O homem que a agarrava a soltou. Anna correu, mas Arthur já se fora e ficava de lado junto ao resto dos homens de Bruce, entre os que reconheceu a seu tio, para deixar caminho aos MacDougall. MacRuairi não parecia muito contente com tal acerto, mas depois de um rápido mas violento intercâmbio de palavras Arthur e ele ficaram em silêncio. Arthur não parecia disposto a olhá-la.
Por que não a olhava? Anna tinha vontade de correr a seu encontro, mas o via tão distante e afastado… O coração se encolheu pela incerteza. Sempre tinha pensado que seria ele quem a abandonaria e, entretanto, ali permanecia de pé como um sentinela: firme, incondicional e fiel. Um homem com o que se podia contar. Um homem que derrubaria dragões e se arrastaria através das brasas do inferno.
—Vamos, Anna. Temos que partir.
Ewen tinha aparecido atrás dela e lhe puxava o ombro para tirá-la dali.
—Eu… — titubeou, ao mesmo tempo em que desviava o olhar para Arthur, como se esperasse, como se ansiasse que ele dissesse algo.
Ewen, indeciso, olhou-a um instante e se retirou junto a seus homens. Seu pai deve ter captado aquela troca de olhares.
—Não faça, filha. Nem sequer pense nisso.
Anna olhou a seu pai nos olhos. O homem que tinha amado durante toda sua vida. Um homem que era muito mais complexo do que ela pensava. Era difícil conciliar a figura de seu carinhoso pai com a do homem que acabava de ver nesse dia, apesar de que soubesse que se tratava de uma única pessoa. Por um momento desejou voltar a ser aquela menina que se sentava sobre os joelhos de seu pai e o olhava como se fosse um deus. Voltar para momento em que as coisas eram simples.
Se alguma vez pôs em dúvida o amor de Arthur, já não podia fazer. Não depois do que acabava de fazer por ela.
—O amo, pai. Rogo-te isso…
Advertiu a dor que suas palavras causavam antes que seu olhar se endurecesse.
—Não quero ouvir falar mais nada disto. Faz sua escolha. Mas não te engane. Se partir com ele, jamais voltarei a te ver. Estará morta para mim.
As lágrimas afloraram nos olhos de Anna e lhe ardiam na garganta.
—Não diz a sério.
Mas sim dizia.
—Escolhe — exigiu seu pai com raiva.
Anna se encaminhou para o bote em que a esperava seu irmão com lágrimas caindo pelas bochechas. Arthur, incapaz de ver como se afastava, voltou o rosto.
Tinha ouvido cada palavra da dolorosa conversa que Anna acabava de manter com seu pai. Maldito fosse Lorn por fazer isso a sua filha! Por fazê-la escolher entre os dois. Não tinha por que ser assim. Arthur tinha tentado lhe dar uma saída, mas o filho de cadela não queria acolher a ela. Quase se arrependeu de não tê-lo matado. Quase. Mas quando ouviu a Anna dizer que o amava, soube que tinha feito o correto. Embora isso significasse que devia deixá-la partir. Infelizmente, a dor de sua partida não se atenuava absolutamente nessa segunda ocasião. Ardia-lhe o peito. Seus músculos tremiam pela tensão e contenção e parecia que os rasgavam com uma adaga. Queria detê-la, que não subisse naquele maldito bote. Queria dizer que seu lugar era junto a ele. Que a amava. Pedir que o escolhesse.
Mas não podia fazer mais difícil do que já era. Não estava disposto a fazê-la sofrer mais. Bastou um olhar a seu aflito rosto para que se desse conta do terrível preço que se estava cobrando dela o ultimato de seu pai.
—Sinto muito, Ewen. Explica tudo a mãe —disse de repente — Diga o quanto sinto. Sinto muito, mas meu lugar está junto a ele.
Arthur ficou petrificado. Não podia acreditar no que acabava de ouvir. Voltou-se lentamente e a viu abraçar seu irmão.
Despedia-se dele com aquele abraço.
Arthur ficou sem fôlego.
Anna se separou do abraço de seu irmão e aventurou um olhar em sua direção. A incerteza que esta refletia provocou uma pontada no peito de Arthur que rompeu até o último fio de contenção que ficava. Depois de uns poucos e largos passos chegou a seu lado. A voz de Arthur lutava com o esforço por conter a emoção que brotava em seu peito.
—Está segura? Não têm por que fazer. Protegerei a ti e a tua família o melhor que possa, embora partam.
Anna sorriu, com os olhos velados pelas lágrimas.
—Que sejas capaz de fazer isso é a razão que me faz estar segura disso. O amo. Sou sua, se ainda me quiser.
Deus santo, se ainda a queria… Arthur se esqueceu da sujeira e o pó que o cobria, por não falar do fedor da batalha, e tomou Anna em seus braços com um suspiro de alívio que saiu do mais profundo da alma. De um lugar que, pensou, jamais voltaria a abrir. Descansou a bochecha sobre sua cabeça, absorvendo a sedosa e dourada calidez da fragrância de seus cabelos, e a apertou fortemente contra si, muito emocionado para falar. Mas não tinha que dizer nada. A maneira com que ela o rodeava com seus braços e punha sua bochecha contra seu cotun dizia tudo. Tinha escolhido a ele. Não podia acreditar. Jamais pensou que poderia sentir-se de tal modo. Nunca pensou que esse tipo de felicidade lhe estivesse destinada. Mas sua alegria ficava moderada pela consciência de saber quão difícil devia ser para ela.
Separou-se de Anna a seu pesar. Ela ergueu o olhar, acariciada pelos raios do sol, que deixavam em seus belos traços uma luz dourada e suave. Uma luz que se estendia por seu interior como se fosse um quente abraço. Sentiu como se enchia seu interior. Era um homem afortunado.
Ao conscientizar-se de que ainda não tinha respondido, fez uma careta com a boca.
—Se por acaso não o adivinhastes, isso significa um sim.
O sorriso de Anna fez que parasse seu coração.
Pensava que seu destino fosse permanecer sozinho, mas agora sabia que simplesmente estivera esperando que ela chegasse. Juntos confrontariam qualquer obstáculo ou desafio que a vida lhes proporcionasse. Incluindo a seu pai. Arthur a apertou contra si em seu lado enquanto Lorn caminhava para o cais para ocupar seu lugar entre seus homens. Quando passou junto a eles sem lhe dirigir o olhar, Arthur notou que Anna se cambaleava. Apertou-a contra si com mais força, com o desejo de protegê-la contra isso. Aquele filho de cadela estava lhe destroçando o coração.
—Pai! —exclamou com um fio de voz.
Lorn se voltou para olhá-la com expressão gélida. Mas não estava tão pouco afetado como queria aparentar. Nos olhos do ancião havia uma dor real.
—Não há nada mais que dizer. Tomaste sua decisão.
Anna negou com a cabeça.
—Escolho amar aos dois. Mas meu futuro está junto a Arthur.
Lorn a olhou com atenção, e por um instante Arthur pensou que claudicaria. Mas o homem aplacou seu gesto e deu meia volta para partir sem dizer uma palavra mais, condenado por seu próprio orgulho. Cortando suas relações com ela assim, não fazia mais que prejudicar a si mesmo. Anna era a luz, a cola que unia as pessoas a sua volta. Sem ela, suas vidas seriam mais escuras. Arthur sabia. Tinha comprovado em sua própria carne.
Desejava poder economizá-la dessa dor ou sofrer por ela, mas o único que podia fazer era permanecer a seu lado enquanto via como seu pai e seu clã se afastavam no navio. Quando viraram para o lago e desapareceram de seu olhar, Arthur a pegou pelo queixo para que o olhasse nos olhos.
—Juro-te que me assegurarei de que nunca te arrependas disto.
Anna lhe ofereceu um sorriso vacilante através do brilho de suas lágrimas.
—Não farei. É a única decisão que podia tomar. Eu te amo.
Arthur se inclinou e a beijou com doçura. Sua boca era inclusive mais doce e suave do que recordava.
—E eu amo muito a ti.
Queria dizer muitas mais coisas, mas o resto teria que esperar. Os reforços chegariam de um momento a outro.
—Qual é seu quarto? —perguntou Arthur.
Anna ruborizou. Parecia envergonhada.
—Aquela acima, com vista para o lago.
Teria que ter imaginado.
—Eram meus aposentos.
Anna abriu os olhos de par em par e se apressou a dizer:
—Mudarei…
Arthur negou com a cabeça, cortando em seco suas palavras.
—Fique, assim saberei onde te encontrar. —Gostava de pensar nela ocupando seu aposento. Arthur olhou para trás e viu os navios aproximar-se — Vai até lá. Há certas coisas que tenho que atender. Irei te buscar quando tiver acabado.
Anna estirou o braço para acariciar seu queixo.
—Seu pobre rosto.
Arthur fez uma careta de dor.
—Já sei que estou horrível.
Seus olhos se encheram de culpa.
—Deus, Arthur… Sinto tanto.
—Nada disso, moça — repôs ele negando com a cabeça — Isso se acabou. Não podemos mudar o passado. Tudo que podemos fazer é viver o presente e planejar o futuro.
Um futuro que só momentos antes parecia sombrio e agora transbordava de esperança. Observou-a partir, consciente do perto que estivera de perdê-la. Mas agora que estava com ela, Arthur jurou que jamais a deixaria partir.
Não a fez esperar muito. Anna ouviu como batia na porta com suavidade apenas meia hora depois de que zarpassem os navios. Os homens de Bruce não ficaram muito tempo, mas mesmo assim parecia estranho ver que o pátio de armas se enchia de soldados inimigos. Não, inimigos não. Ao escolher ao Arthur também escolhia ao Bruce, embora supôs que levaria algum tempo familiarizar-se com o que em realidade significava aquilo. No momento, simplesmente tentava acostumar-se com a idéia de que não sabia quando poderia voltar a ver sua família, se é que chegaria a fazer. Ao negar-se a se render ante Bruce, a seu pai não ficava mais alternativa que seguir o mesmo caminho até a Inglaterra que tinha tomado meses antes John Comyn, o conde de Buchan. E suspeitava que sua mãe, seus irmãos e suas irmãs logo partiriam junto a ele.
Mas por mais difícil que fora tomar aquela decisão, Anna sabia que tinha escolhido bem. O amor cego que tinha por seu pai era o de uma menina que pensava que ele jamais faria nenhuma maldade. Entretanto, o amor que sentia por Arthur era o de uma mulher. Uma mulher que entendia que as pessoas, inclusive aquelas às que amava, cometiam erros. O perdão era parte do amor.
Ao abrir a porta e vê-lo ali o coração lhe deu um tombo. Sua enorme envergadura enchia a soleira e tinha que encolher-se para entrar no aposento. De repente aquela pequena câmara dava a impressão de ser minúscula. O ar estava impregnado do aroma de sabão. Banhara-se, tirado a armadura e vestia com uma camisa limpa, túnica e meias, que, suspeitava Anna, teria tomado emprestados de algum dos membros de seu clã que partiram. Mas não foi a visceral consciência de sua presença o que a fez jogar-se em seus braços e afundar o rosto em seu amplo e quente peito, a não ser a infantil expressão de incerteza que aparecia seu rosto.
Anna apreciou o suspiro de alívio que percorria o corpo de Arthur ao rodeá-la com seus braços e agarrá-la.
—Encontra-te bem? —perguntou Arthur.
Anna apoiou o queixo sobre seu peito para o olhar e assentiu.
—Estava preocupado?
Uma mecha de cabelo molhado lhe caiu sobre a testa.
—Sim, mais do que queria admitir.
—Tomei uma decisão, Arthur. Sabia o que dizia. Pode ser que em algumas ocasiões não seja nada fácil, mas jamais me arrependerei disso. —Seu irmão Alan tinha razão. Merecia a um homem que a amasse com a mesma intensidade que ela amava. Um homem que derrubasse dragões e se arrastasse sobre as brasas do inferno por ela. Arthur fazia isso e ela jamais o deixaria escapar. Anna se deixou abraçar um instante antes de voltar a falar—: Obrigado pelo que fez. Sei que… — A emoção a embargava — Sei que não foi fácil.
Seu rosto se escureceu, mas somente por uns segundos.
—Jamais me arrependerei disso — disse repetindo suas palavras com um meio sorriso — Salvar a vida de seu pai é um pequeno preço a pagar pela felicidade que recebo em troca.
Anna mordeu o lábio.
—Mas o que passará com Bruce? Não estará zangado porque o deixasse partir?
Arthur fez uma careta.
—Se podemos tomar a primeira reação de seu tio como sinal, provavelmente sim. Mas o rei me deve alguns favores. Acredito que com isto saldamos as contas. Enquanto seu pai abandone a Escócia, estará inclinado a compreendê-lo.
Inclinado. De repente Anna se deu conta de que somente notava uma mão de Arthur nas suas costas. Libertou-se de seu abraço e ao baixar o olhar viu que sua mão esquerda tinha uma pomposa bandagem. Não tinha notado antes porque Arthur levava as luvas.
—O que passou a sua mão?
—Está quebrada — disse Arthur com total naturalidade.
Ficaram olhando-se nos olhos, e Arthur respondeu sua pergunta tácita. Anna só precisou olhar seu maltratado rosto para saber como tinha acontecido.
—Que mais?
—Algumas costelas — respondeu ele, encolhendo-se de ombros — Vários cortes e alguns hematomas. Nada que não possa curar — Houve algo em seus olhos que indicou a Anna justamente o contrário — Não é mais do que mereço pelo que lhe fiz.
—Não — repôs ela negando com a cabeça de maneira categórica — Não diga isso. O que fizeram foi horrível, mas jamais teria exigido tal castigo —continuou com lágrimas nos olhos — Não é que o tenhamos tudo muito fácil, verdade?
Arthur a agarrou pelo queixo e negou com a cabeça.
—Não, amor, mas te prometo que isso mudará. Acabaram-se as mentiras. Acabaram-se os segredos. —Sorriu, franzindo o cenho — Em qualquer caso, já conhece os mais perigosos.
Que formava parte do exército secreto de Bruce.
—Por que te chamam Guardião?
Houve um momento incômodo quando Arthur olhou a seu redor no aposento em busca de algo onde sentar-se e percebeu de que não havia mais que a cama. Não obstante, sentou-se na borda e fez gesto a Anna para que se sentasse junto a ele. Ela notou que tomava cuidado em deixar uns centímetros de separação entre ambos enquanto explicava.
Tinham-no obrigado a abandonar o treinamento antes dos outros para que ocupasse seu posto como espião. A decisão de usar nomes de guerra fora feita em sua ausência. Alguns dos nomes saíram das brincadeiras que se fazia entre eles e outros, como o seu, provinham de suas habilidades.
—Então eu tinha razão —disse Anna com alegria— quando pensava que seria um rastreador perfeito.
Arthur riu.
—Sim, embora não me fez nenhuma graça. Tentava ocultar minhas habilidades, mas parecia pensar em outras coisas.
E em outras coisas começou a pensar Anna. Aproximou-se um pouco mais dele, deixando que seus seios lhe roçassem o braço.
—E o que ocorrerá depois?
Arthur parecia tentar conter-se por todos os meios.
—Agora acredito que será melhor que eu vá. Não deveria estar aqui contigo deste modo. Não sem um sacerdote.
Anna riu e pôs uma mão sobre a perna. Seus potentes músculos se esticaram debaixo de sua palma.
—Não acredito que goste de ter a um sacerdote aqui conosco.
Arthur apertou os dentes; de fato, pareceu apertar todos os músculos de seu corpo.
—Refiro-me até que estejamos casados.
—Tenho a impressão de que é um pouco tarde para nos pôr cerimoniosos, não?
—Não subi com a intenção de… - Arthur não continuou — Maldita seja, Anna, deixe de fazer isso. —Agarrou sua mão e deteve sua incursão pelo interior da coxa — Tento fazer a coisa certa.
—Quer dizer que anteriormente não fez certo? —Anna piscou com exagerada inocência.
Arthur a olhou com recriminação.
—Sabes perfeitamente que não é isso a que me refiro. Aquilo foi absoluta e totalmente perfeito.
Acabou a provocação. Quando ergueu o olhar de novo o fez com todo o amor de seu coração.
—Por favor, Arthur. Preciso me sentir assim uma vez mais. —Anna necessitava a cercania. Necessitava a conexão. Precisava saber que tudo iria bem. Seus olhos se abriram de par em par — A menos que não sejas capaz. Esquecia que…
Arthur a deteve com um ardente beijo que penetrou até o mais profundo de sua alma.
—Claro que sou capaz, maldita seja.
E, assim, procedeu a lhe mostrar com todo luxo de detalhes quão capaz era. Lenta, profunda e meigamente, com todo o amor que albergava em seu coração. E quando os últimos estremecimentos de prazer começaram a extinguir-se, quando ele sustentou seu corpo nu contra o seu arroxeado e maltratado, Anna soube que nos braços daquele fornido e firme guerreiro encontraria por fim a paz.
Epílogo
Castelo de Dunstaffnage, 10 de outubro de 1308
A paz fazia bem, tanto para a Escócia como para Anna. Menos de dois meses depois da derrota de seu pai no Brander, Bruce ganhou a batalha dos grandes líderes da Escócia. Seu avô, Alexander MacDougall, rendeu-se depois de um breve assédio ao castelo de Dunstaffnage, enquanto que o conde de Ross fez o mesmo depois de poucos dias. Bruce perdoou a vida do homem responsável pelo encarceramento de sua mulher, de sua filha e de suas irmãs, assim como da condessa de Buchan, um ato que dava fé do desejo que tinha de ver a Escócia e a seus nobres unidos sob uma mesma bandeira.
«Pelo bem da Escócia.» Anna tinha que admitir que essa filosofia a impressionava. O homem em si…Bom, procurava manter a mente aberta. Tantos anos defendendo uma causa não se esqueciam em questão de semanas. Mas o que Bruce tinha planejado para esse dia faria bastante para que mudasse de opinião. Sabia o que significava aquilo para Arthur.
Seu olhar passeou pelo grande salão e cruzou a maré de membros do clã reunidos em celebração. Alguns deles lhe pareciam familiares, embora quase todos eram estranhos. Tomaria um tempo, mas Anna prometeu que conheceria todos eles. Aquele seria seu lar. Bruce tinha concedido a guarda do castelo de Dunstaffnage a Arthur em gratidão a sua lealdade e pelos serviços prestados. Além disso, sua próxima missão tampouco o afastaria muito. Passaria os seguintes meses fiscalizando o paradeiro de Lorn e Argyll em sua totalidade e riscando mapas de quanto encontrasse.
Arthur tomou a mão de Anna e a apertou carinhosamente.
—Está contente, meu amor?
Anna ergueu o olhar para o homem que estava sentado junto a ela no estrado, um homem que se convertera em seu marido nessa mesma manhã. Lágrimas de alegria cobriram seus olhos ao olhar suas bonitas feições, que já apenas viam pequenos traços do calvário que tinha sofrido.
—Sim, e poderia ser de outra forma? Ao fim tem feito de mim uma mulher honrada e talvez possa voltar a olhar ao pai Gilbert nos olhos.
Arthur riu. Esse profundo e harmonioso som, muito mais livre agora, seguia sendo capaz de lhe arrepiar a pele com um quente formigamento.
—Já te disse que teria que ter partido antes.
—Tinha frio… — Anna fez um biquinho com os lábios.
—Ofereci-te uma manta antes de ir.
—Não queria mais mantas — disse com a mesma teima que a tinha metido em problemas desde o começo.
Queria a ele. Acostumou-se a dormir do seu lado em Innis Chonnel e fora difícil habituar-se de novo ao retornar ao Dunstaffnage no mês anterior. Ver-se às escondidas não era nem metade de excitante e íntimo. E, é obvio, o principal problema de ver-se às escondidas era a possibilidade de que os descobrissem, justamente o que tinha acontecido fazia uma semana, quando o pai Gilbert pegou Arthur saindo de seu aposento.
—Esta noite não necessitará mais mantas — disse ele com um olhar longo e cálido.
Anna não pôde evitar ruborizar-se, apesar de que nos últimos dois meses tivesse perdido a inocência em muitos sentidos, alguns deles de jeitos mais reveladores.
—Acredita que se darão conta se sairmos agora? —perguntou Arthur inclinando-se sobre ela.
O suave sussurro de seu fôlego no ouvido a fez estremecer. Mas o que lhe provocou brilhos de calor entre as pernas foi a mão que se movia de maneira possessiva e determinada sobre sua coxa. As carícias de seu dedo recordavam a sua língua. E se recordava sua língua, não podia esquecer-se de sua boca. E se recordava sua boca, tinha que lembrar-se da maneira em que a tinha despertado essa manhã fazendo-a chorar de prazer. O mesmo dia das bodas, o muito desrespeitoso velhaco!
E então recordou como tinha pago sua diabrura com a mesma moeda incitando-o com sua própria língua. Recordava o delicioso sabor salgado de sua pele, aquela coluna de carne aveludada introduzindo-se cada vez mais profundo em sua boca. A maneira em que o tinha espremido até o final com a sucção de seus lábios, rodeando a grossa e potente cabeça de seu membro com a língua até que Arthur implorasse por não poder conter-se mais. O modo que acabou por perder o controle e lhe sustentara a cabeça com as mãos para meter até o fundo de sua garganta, fazendo que os gritos guturais do alívio retumbassem em seus ouvidos.
O corpo de Anna começou a derreter com a doce calidez da excitação. Então recordou onde estava e se sobressaltou. Afastou-lhe a mão, confiando que ninguém os tivesse visto. Pelo amor de Deus, se tinha os olhos entreabertos! Era ela quem devia o distrair e não ao contrário.
—Não podemos sair. Não até que… — Se deteve ao conscientizar-se de que talvez houvesse falado demais — Somos os convidados de honra.
Arthur pôs cara de surpresa, olhando ao outro extremo da mesa no que havia vários assentos vazios.
«Pelos pregos de Cristo!» Se deu conta. Pois claro que tinha feito. Não havia nada que escapasse a aquele homem tão observador. Anna o agarrou pela mão.
—Vamos, deveríamos dançar.
Ficou circunspeto, sem mover um dedo.
—Passa algo, Anna? Atua de um modo estranho.
Os olhos se puseram como pratos.
—Pois claro que não. Somente quero dançar.
Um sorriso maroto torceu seu gesto.
—Temo que terá que me dar uns minutos.
—Por que?
Arthur baixou o olhar até sua virilha, e as bochechas de Anna se ruborizaram ao ver seu volumoso pacote. Ao que parecia não era a única que estivera relembrando. Olhou do outro lado da mesa, onde estava sentado MacGregor. Este fez uma sutil negação com a cabeça, depois da qual ela voltou a olhar de novo a seu marido, que seguia circunspeto.
—Está segura de que não é por…? Sei que sente falta da sua família.
Um sorriso amargo se desenhou em seus lábios.
—Sinto falta deles, mas isso não significa que não seja feliz. E meu avô está aqui — disse inclinando a cabeça em direção ao chefe dos MacDougall, sentado a poucos assentos de distância de onde estava o rei. Bom, onde estava o rei até um momento.
Uma vez tomado o castelo, sua mãe e suas irmãs receberam permissão para seguir a seu pai e seus irmãos no exílio, mas Bruce queria o apoio de seu avô. Se seria capaz de ganhar o ou não era algo que Anna não sabia, mas estava contente de ter ao menos a um de seus familiares com ela no dia de suas bodas.
E é obvio estava Escudeiro. Um dia obrigaria Arthur que lhe contasse como tinha conseguido tirar o cachorrinho do castelo enquanto este estava sob assédio. Anna ficou a choramingar como uma idiota ao vê-lo e teve que explicar a um confuso Arthur que chorava de felicidade. Após, não houve um só dia que não jurasse que se arrependia assim que o mascote o perseguia, mas ela sabia que em realidade não se importava nem a metade do que dizia. A aceitação, ou melhor dizendo, a confiança no afeto parecia agora mais fácil. E que Arthur se esforçasse tanto por vê-la feliz era algo que a comovia até o extremo. Quando fez o mesmo com seu irmão Alan, antes que o castelo caísse e de que sua família fugisse para Inglaterra, quase a tinha matado da alegria. Ver seu irmão, sabendo que não compartilhava a decisão de seu pai e que não cortaria as relações com ela completamente, era mais do que Anna poderia esperar. Alan era leal a seu pai, mas essa lealdade não estava brigada com seu amor por ela.
Sim, tinha muito que agradecer a seu novo marido.
—E o que tem a ti, Arthur? Sei que certamente te decepciona que não estejam aqui todos seus companheiros da Guarda.
Anna não sabia de todos os detalhes da Guarda de elite de Bruce, nem tampouco perguntou, consciente de que esse segredo preservava a segurança de seu marido. Mas sabia que se tratava dos melhores guerreiros de elite na Escócia, o melhor do melhor em todas as disciplinas de guerra. Sempre pensou que havia algo especial em Arthur, mas nunca imaginou quão especial era.
Também tinha adivinhado algumas das identidades por sua própria conta. Seu tio. Os dois homens que o acompanhavam e tinham ajudado a libertar Arthur, Gordon e MacKay. O bonito até dizer chega do Gregor MacGregor, que tinha formado parte do ataque tantos meses atrás. Seu rosto era difícil de esquecer. E parecia certo suspeitar que o ilhéu de feroz aspecto Tor MacLeod era outro deles, assim como esse nórdico extremamente encantador, Erik MacSorley. Ambos estiveram sentados junto ao rei com suas esposas, embora nesse momento só elas permaneciam ali.
Pode ser que não soubesse todos os detalhes, mas Anna sabia o suficiente para compreender quanto significavam esses homens para Arthur, embora não fosse consciente disso. Entretanto, seria.
Arthur encolheu os ombros como se aquilo não lhe importasse realmente.
—Há paz no norte, mas nas fronteiras continuam as revoltas. Estou seguro de que teriam vindo se fosse possível. Gordon se casará logo. Talvez consiga vê-los todos nesse dia. Há muito que fazer antes que o rei atenda a seu primeiro Parlamento na próxima primavera — continuou, depois de uma pausa — Estou contente de que meus irmãos possam estar aqui. É a primeira vez que estamos todos juntos na mesma estadia há anos.
Sir Dugald e sir Gillispie se renderam junto a seu avô e Ross. Surpreendentemente, não pareciam guardar rancor de Arthur; entretanto, pela expressão de sir Dugald enquanto discutia com sir Neil, não se podia dizer que seus sentimentos fossem os mesmos para seu irmão mais velho.
—Pois pelo que parece, poderiam ter esperado mais tempo.
Arthur sorriu.
—Sempre foram assim. Rivais encarniçados, inclusive quando pequenos. Eu acredito que essa é a razão pela que Dugald se alinhou junto aos ingleses durante tanto tempo, para não ter que acatar ordens do Neil. Já se arrumarão. A seu devido tempo.
Anna advertiu que Arthur voltava o olhar ao redor.
—Está preparado para dançar? —perguntou com inquietação.
Arthur arqueou uma sobrancelha.
—Estou preparado para ir à cama.
O olhar dela se voltou de novo para Gregor MacGregor de maneira inconsciente. Para seu consolo, dessa vez o guerreiro assentiu. Entretanto, quando voltou o olhar para este Arthur tinha os olhos entreabertos.
—Importaria de me dizer por que cada vez que menciono a cama olha ao MacGregor? —Anna se ruborizou — Vai me dizer do que se trata? —exigiu com aborrecimento — Está tramando algo. E não me diga o contrário, porque posso pressentir.
Anna ergueu o queixo, molesta com sua acuidade.
—Acreditava que seu calcanhar de Aquiles fosse eu.
—E é —disse Arthur com um gesto brusco da mão — Mas não o dele.
Não parecia fácil surpreender a alguém que estava pendente de cada matiz, que notava qualquer mudança e advertia qualquer movimento a seu redor. Inclusive tinha percebido as mudanças de seu corpo antes dela e a informou que seria melhor que adiantassem as bodas ou seu filho seria muito grande para ter só dois meses de vida.
Anna o obsequiou com um olhar de suficiência.
—Está ciumento. —Deixou que seu olhar voltasse a recair sobre o fundo da mesa e ficou olhando de maneira pausada, como se o estivesse apreciando — É bastante bonito esse teu amigo.
Sua cara feia piorou mais ainda.
—Pois não será por muito tempo, se continua olhando-o assim. E não me respondeste.
Anna soprou e se deu por vencida.
—Está bem, mas queria que fosse uma surpresa.
—O que queria que fosse uma surpresa?
Depois de um breve passeio além das portas do castelo Arthur descobriu a razão para tanto subterfúgio. De pé numa clareira da floresta, com o halo laranja do sol do entardecer atrás dele, erguia-se o rei Robert Bruce ante um obelisco, investido com toda a cerimônia real que lhe supunha. Junto a ele, alinhados como um pano de fundo, com seus traços mascarados sob os elmos com nasal cobertos de breu, esperavam os outros dez membros da Guarda secreta de Bruce.
Arthur se deteve sobre seus passos e lhe dirigiu um rápido olhar de incredulidade.
—Tiveste algo que ver nisto?
Anna negou com a cabeça.
—Foi idéia do rei Hoo… —começou, detendo-se o ver o rosto que punha seu marido — Foi idéia do rei Robert —se corrigiu, embora esse título ainda não saía de seus lábios com naturalidade — Minha missão era te distrair —disse fazendo uma careta — Uma missão em que, ao que parece, fracassei.
Arthur a agarrou em braços e a beijou.
—Pois eu acredito que a cumpriu que maneira admirável.
Anna transbordou de alegria.
—Vá. Estão esperando.
Por fim Arthur teria a cerimônia da que nunca pôde gozar. A cerimônia que lhe fora negado por seu papel como espião. Aqueles homens eram tão parte dele como ela mesma. Anna cruzou os braços sobre seu ventre. E como logo seria seu bebê.
—Não demorarei muito — disse Arthur trás beijá-la de novo.
—Estarei esperando.
«Sempre.» Do mesmo modo que ele retornaria sempre para ela. Aquele homem que a todo momento olhava à porta como se quisesse fugir, tinha encontrado o lugar ao que pertencia. E em um mundo no que a paz era tão frágil como uma parte de cristal, Anna tinha encontrado a rocha em que apoiar-se.
Observou-o dirigir-se para eles com o peito cheio pelo orgulho e felicidade. Uma vez que chegou lá, Anna começou a afastar-se. Entretanto, mal teve percorrido alguns metros mais à frente do círculo de árvores quando duas mulheres a detiveram.
—Aonde vai? —perguntou em um sussurro Christina, a mulher de Tor MacLeod.
Anna tentou não sentir-se intimidada por sua beleza, mas parecia impossível. Christina era tão deliciosa e refinada como uma princesa de conto de fadas, sobretudo ao compará-la com o aspecto aterrador de seu marido, que parecia tirado das páginas arrancadas de algum livro antigo sobre mitologia nórdica.
—Eu… pensava que não pudesse olhar.
A segunda das mulheres sorriu. Embora não era tão incrivelmente formosa como Christina Fraser, havia algo sereno e agradável em Elyne, a esposa do descarado pirata Erik MacSorley. Anna ficou perplexa quando descobriu que era a filha do conde de Ulster, um amigo íntimo do rei da Inglaterra. Mas também era irmã da esposa encarcerada do rei Robert, Elizabeth. Outra família dividida, ao que parecia.
—Acham que não —disse Elyne — Mas isso não vai me deter. Não tive oportunidade de ver a de meu marido. Não perderia isso por nada do mundo.
—Não se zangarão? —perguntou Anna.
Christina lhe dirigiu um sorriso insolente.
—Superarão. Além disso, quero ver que tipo de marca lhe põem.
Anna a olhou com surpresa.
—Já tem uma. O leão rampante. Pensei que todos os homens o tinham.
—Assim é —respondeu Christina — Mas decidiram acrescentar outra pela aranha da cova. Conhece a história?
Anna assentiu. A história da aranha de Bruce na cova formava já parte da lenda.
—Para honrar a ocasião, Erik decidiu acrescentar uma em forma de gargantilha ao redor de seu braço que parece uma teia de aranha — disse Elyne — Como é marinheiro, incorporou também o birlinn nele —acrescentou com um sorriso — Uma vez que outros o viram, todos decidiram fazer um. —Elyne, entre risadas, ergueu o olhar ao céu como dizendo: «Homens».
—Venha — disse Christina, agarrando-a pelo braço e arrastando-a de novo para as árvores — Já começaram.
As três mulheres contemplaram juntas das sombras como Arthur se ajoelhava ante o rei e tomava o lugar que lhe correspondia por direito próprio entre seus companheiros da Guarda, seus amigos.
«Inquebrável», dizia a gravação na espada que Bruce lhe entregou. Anna não podia estar mais de acordo.
Fim
Nota da Autora
A batalha do Estreito de Brander foi chave na guerra de independência da Escócia. Não só representa um exemplo da mudança de estratégias de Bruce, pois este deu uma emboscada a quem pretendia lhe dar uma, mas sim também assinala a precipitada queda em desgraça dos MacDougall e a mudança de poderes na política das Highlands Ocidentais para outro ramo de descendentes de Somerled, os MacDonald, e também para os Campbell, que se beneficiariam do infortúnio dos MacDougall.
Há certo desacordo entre os historiadores na hora de datar a campanha de Bruce em Argyll após a qual John de Lorn fugiu da Escócia e a queda do castelo de Dunstaffnage. Decantei-me pela data mais convencional do verão do ano de 1308, mas há quem opine que a capitulação final de Argyll não foi antes do ano de 1309.
Embora a forma como narro a batalha seja fictícia, incorporei muitos dos acontecimentos reais, entre os quais se inclui John de Lorn dirigindo seus homens de um birlinn à beira do lago, já que se supunha que estava recuperando-se dessa enfermidade que tinha propiciado a trégua do ano anterior. Diz-se ainda que ao falhar seu ataque, retirou-se a um de seus castelos.
Mas há um detalhe em particular da batalha que foi o que me deu a idéia para a história. Li algo a respeito de um explorador que supostamente tinha advertido ao Bruce da emboscada, com isso salvou sua pele. Aquilo soava como um trabalho perfeito para meu rastreador de elite Arthur Campbell.
O personagem de Arthur Campbell está inspirado vagamente em Arthur de Dunstaffnage, o irmão, ou pode ser que o primo do Neil Campbell. Tal e como sugere seu apelido, foi renomado governante do castelo de Dunstaffnage depois da guerra. Algo que encaixava à perfeição com minha heroína MacDougall, embora Anna seja um personagem fictício e o nome da esposa de Arthur, se é que a houve, não apareceu. Curiosamente, sim existiu um compromisso de matrimônio entre Arthur e Christina das Ilhas MacRuairi, embora nunca chegaram a casar-se.
O que também se adequa à perfeição com Arthur, e deste modo com seu irmão Dugald, é que se dizia que esteve no lado dos ingleses durante um tempo e mais tarde passou ao de Bruce. Arthur de Dunstaffnage não é, provavelmente, o mesmo Arthur progenitor do clã MacArthur. Parece mais plausível que este Arthur proviesse de outro ramo da família, possivelmente mais antiga, os Campbell do Strachur (que significa «filhos de Arthur»). Mas há muita confusão e existem diferentes teorias respeito à linhagem dos MacArthur, incluindo a descendência direta do rei Artur. Um antigo provérbio das Highlands diz: «Não há nada mais antigo que as colinas, MacArthur e o diabo».
Neil Campbell foi um dos partidários de Robert Bruce mais importantes e leais. De fato, ao final Neil acabaria casando-se com a irmã do rei, Mary, quando a libertaram do cativeiro da jaula nas alturas do castelo do Roxburgh, ao redor do ano 1310. Mary voltaria a casar-se depois da morte de Neil, algo comum em uma época em que havia tantos viúvos e viúvas. Aos leitores do primeiro livro da série, O Guerreiro, talvez lhes interesse saber que seu segundo marido foi Alexander Fraser, o irmão da Christina.
Um interessante ponto e aparte na história do Neil dá certo colorido à época: parece ser que sua primeira esposa era filha de Andrew Crawford. Neil e seu irmão Dugald, que foram nomeados guardiães das duas irmãs Crawford, decidiram tomar como esposas de maneira literal: seqüestraram-nas.
John de Lorn, também conhecido como John Bacach (John o Coxo) e como John de Argyll, foi uma figura destacada na política das Highlands Ocidentais, responsável não só da morte do Colin Mor Campbell na batalha de Red Ford, mas também da de seu parente Alexander MacDonald, lorde de Islay, o irmão de Angus Og.
Lorn sofreu enormemente por sua lealdade aos Comyn, a quem estava ligado por matrimônio, e também por seu ódio ao Bruce, algo que, dado que este assassinou ao Comyn o Vermelho, era uma circunstância bastante compreensível.
O uso de mensageiras femininas por parte de Lorn é minha invenção, mas a frustração das missivas que se perdiam não é. A esse período sobreviveram algumas epístolas, entre as que se inclui uma carta recentemente decifrada do oficial do Banff dirigida ao Eduardo II em que se queixa dos assassinatos de seus mensageiros. Do mesmo modo, a frustração de Lorn ao ficar sozinho frente a Bruce e a dificuldade de conseguir apoios dos barões locais está apoiada na correspondência entre Lorn e Eduardo II, em que o primeiro afirma que se vê obrigado a uma trégua com Bruce porque está doente e «os barões de Argyll não me emprestam ajuda alguma» (Robert Bruce, G.W.S. Barrow, Edinburgo University Press, Edinburgo, Escócia, 2005, P. 231).
Não há fonte que confirme a doença de Lorn. O ataque ao coração e os conseguintes problemas coronários são de minha própria invenção, algo que resulta ajustar-se bem a sua propensão a esses violentos ataques de cólera. Paralelamente, também se desconhece a fonte da que provém a enfermidade debilitante que golpeou ao Bruce no inverno do ano 1307. Embora certos rumores históricos a identificam com a lepra, as últimas hipóteses apontam que devia ser escorbuto. Qualquer que fosse a causa, sacudiu com força ao novo rei e, conforme se diz, esteve a ponto de acabar com ele. Supostamente, Bruce foi levado nas costas por seus homens à batalha de Inverurie.
O broche que Lorn leva no capítulo dois, do qual se diz que o arrancaram de Robert durante da batalha de Dal Righ, segue em poder do chefe dos MacDougall, e sua última aparição em cena é tão recente que somente faz cinqüenta anos. Não obstante, alguns peritos asseguram que o broche em questão provinha de um período anterior.
A batalha de Red Ford ocorreu de maneira diferente de como eu a retratei. Mais que uma emboscada, John de Lorn se encontrou com o Colin Mor junto a um córrego que desembocava no Loch na Streinge (mais tarde chamado Allt a chomhla chaidh, quer dizer, o córrego do encontro). A discussão degenerou em uma briga e este em uma batalha. Os MacDougall se viram superados em número, e parecia que perderiam, até que um arqueiro disparou sobre o Colin o Grande detrás de uma pedra e o matou.
Até onde chegava o poder dos Campbell nas imediações do Loch Awe antes da guerra é algo que não se tem ciência certa, mas já que o fizeram magistrado municipal de Loch Awe perto do ano 1296, podemos presumir que não foi insignificante. Embora se acredita que os Campbell detiveram a propriedade o castelo de Innis Chonnel anterior a dos MacDougall, cuja existência está confirmada no ano 1308, os historiadores não estão seguros disso. Não obstante, no momento em que transcorre o livro, o castelo estava nas mãos dos MacDougall. Lorn menciona em uma carta ao rei Eduardo os três castelos que possui em Loch Awe.
O ódio entre Bruce e os MacDougall só rivalizava com o de seus parentes os Comyn. A «perseguição de Buchan» que seguiu à batalha do Inverurie (ou batalha de Barra) de 23 de maio de 1308, a qual tem lugar a princípio do livro, parece ser uma das poucas ocasiões nas que Bruce deu rédea solta à vingança. A destruição foi tão devastadora que se diz que demoraram anos em recuperar-se e que se falou dela durante gerações inteiras.
Pelo contrário, o rei Robert sim que aceitou a rendição de William (Uilleam II), o conde do Ross, sem tomar represálias pelo papel que tinha desempenhado Ross na captura e posterior encarceramento das damas de Bruce (sua esposa, sua filha, suas irmãs e a condessa de Buchan). Não muito tempo depois da rendição de Ross, seu filho Hugh (Aodh) casaria-se com a irmã de Bruce, Mathilda.
Conforme contam, Alexander MacDougall, lorde do Argyll, era muito velho e estava doente no momento da batalha do Brander. Rendeu-se ante Bruce depois do assédio ao castelo de Dunstaffnage e atendeu ao primeiro Parlamento do rei em março de 1309, mas depois acompanhou a seu filho no exílio, onde morreu em 1310.
Como é habitual, alguns dos castelos que são mencionados no livro são conhecidos com outros nomes. O castelo de Auldearn se conhece também pelo Old Even e o castelo de Glassery (ou Glassary) conhece-se como castelo do Fincharn.
A tortura medieval dos ratos era muito mais truculenta do que sugiro. Colocavam sobre o estômago da vítima uma jaula fechada com um rato em seu interior e depois a esquentavam em cima. O rato, em sua tentativa de escapar, roía lentamente as vísceras do condenado. Um detalhe… interessante que provavelmente teria dotado ao livro de um «colorido» muito fiel à época.
Finalmente, os leitores do terceiro livro de minha trilogia dos Campbell, O highlander traído, talvez percebam a conexão entre a espada de Arthur e a de Duncan, em que gravaram a lenda: «Inquebrável» que passou de geração em geração dos tempos de Bruce. Apesar de que seja de minha própria mente, é obvio que era costume gravar lendas nas espadas e passá-las ao herdeiro.
Notas
[1] Hora da oração completa. Onde estariam todos juntos, sem exceção e rezariam supostamente o rosário completo.
[2] Uma vestimenta, normalmente bordada com o brasão, usada sobre a armadura.
[3] O Rei Robert the Bruce era chamado pelos ingleses e simpatizantes por King Hood, para insultá-lo por usar uma longa capa com capuz. Hood em inglês significa capuz.
[4] Ela se referiu antes a dores no peito do pai. Possivelmente se trate de insuficiência cardíaca do ventrículo esquerdo, onde ele não “retira” o sangue do pulmão, daí o termo encharcamento.
[5] Um “leão rampante” é representado em pé ereto de perfil, com as patas dianteiras levantadas. A posição das patas traseiras varia de acordo com os costumes locais: o leão pode estar em ambas as patas traseiras afastadas, ou em apenas sobre uma, com a outra também levantada para o ataque; a palavra rampant é frequentemente omitida, especialmente nos brasões mais antigos, pois esta é a posição mais usual de um quadrúpede carnívoro.
[6] Um bardo entre os Highlanders da Escócia, que preservaram e repetiam a tradições das tribos, também, um genealogista.
[7] Adonis era um jovem de grande beleza que nasceu das relações incestuosas que o rei Cíniras de Chipre manteve com a sua filha Mirra. Adônis passou a despertar o amor de Perséfone e Afrodite. Mais tarde as duas deusas passaram a disputar a companhia do menino, e tiveram que submeter-se à sentença de Zeus. Este estipulou que ele passaria um terço do ano com cada uma delas, mas Adônis, que preferia Afrodite, permanecia com ela também o terço restante. Nasce desse mito a ideia do ciclo anual da vegetação, com a semente que permanece sob a terra por quatro meses.
[8] O luchd-taighe eram guardas da comitiva pessoal do chefe, ou em termos coloquiais, a sua posse. Sua finalidade era atender o chefe em todos os momentos. Eles eram bem treinados em armas e ações marítimas, bem como perseguições a outros guerreiros. Era uma grande honra ser escolhido como um dos guardas pessoais do chefe e o prestígio de um chefe era derivada a partir do número destes homens luchd-taighe.
[9] Hobelars eram um tipo de cavalaria ligeira, ou montado de infantaria, durdiante da Idade Média , usado para escaramuças. Eles se originaram no século 13 na Irlanda e, geralmente, montavam os cavalos hobelar, um tipo de cavalo leve e ágil.
[10] O escudo é dividido em 8 triângulos.
[11] Tomás da Inglaterra (ou Tomás da Bretanha) foi um poeta anglo-normando do século XII. Sua única obra conhecida é o poema Tristan, uma das primeiras versões conhecidas da lenda de Tristão e Isolda. O poema foi escrito entre 1155 e 1170, possivelmente para Leonor de Aquitânia, uma vez que a obra sugere uma relação com a corte de Henrique II Plantageneta. Apenas oito fragmentos da obra sobreviveram aos nossos dias, com um total de 3.300 versos, especialmente da parte final da história . Calcula-se que isso represente cerca de um sexto do poema original. A obra de Tomás é contemporânea de outro grande poema sobre o tema de Tristão e Isolda, escrito por um misterioso escritor chamado Béroul e que também chegou de maneira fragmentária aos nossos dias. Comparada à obra de Béroul, o Tristan de Tomás é considerado mais próximo do refinamento do romance cortês.
[12] cama bamba, meio velha ou quebrada.
[13] Os Saxões chamavam ao grupo das pedras eretas (menhires) «Stonehenge» ou «Hanging Stones» (Pedras Suspensas), enquanto os escritores medievais se referem como «Dança de Gigantes». Inigo Jones, famoso arquiteto do século XVII que fez o primeiro estudo sério sobre Stonehenge, considerou-o um Templo romano. Mas William Stukeley, um estudioso de Monumentos e Franco-Maçom do século XVIII, convenceu muita gente de que se tratava de um Templo construído pelos druidas britânicos. Só no século XX os arqueólogos estabeleceram a idade real do Monumento e chegaram a conclusões mais realistas acerca da sua finalidade. A zona de Wiltshire, nos arredores de Stonehenge, é rica em ruínas Pré-Históricas. Woodehenge, Durrington Walls, Cursus e mais de 350 sepulturas são testemunho da intensa atividade comunal dos habitantes, que pastoreavam animais, semeavam trigo e adoravam os seus Deuses na Planície de Salisbury e em torno dela. A construção de Stonehenge teve início cerca de 3500 a. C
[14] Monges beneditinos bastante severos
[15] O aplastapulgares é uma das torturas mais antigas e simples. Embora vários dispositivos mecânicos foram usados para realizar a tortura em si foi o esmagamento das unhas, falanges e juntas em um lento e gradual, estendendo-se a dor por dias, sem causar danos letais para a vítima. O nível de perturbação pode ser controlado, a ponto de quase mutilação do membro. Para crimes de tortura geralmente grave usa-se lentamente, começando com as unhas, passando depois para as falanges e terminando nas juntas, e destruindo completamente as duas mãos.
Capítulo 20
—Retornaram!
Anna correu até a janela de seus aposentos ao perceber a excitação na voz da Mary. Examinou com fruição as figuras com armadura que atravessavam as portas do castelo e quando por fim reconheceu a familiar envergadura de seus ombros exalou profundamente, como se tivesse passado quatro dias contendo a respiração. Havia retornado. Não a tinha abandonado. Dizia a si mesma que era uma loucura pensar que ele fosse capaz de tal coisa. Entretanto, não queria admitir quanto tinha chegado a preocupar-se.
Anna afastou seu trabalho de bordado e saiu correndo do aposento seguindo os passos de sua irmã, que parecia tão emocionada como ela pela volta da partida de reconhecimento. Franziu o cenho. Acaso para sua irmã Mary importava mais o irmão de Arthur do que admitia? Chegaram ao salão justo no momento em que faziam entrar o grupo à câmara de seu pai para dar parte de seu avanço. Fazia um momento que tinham terminado a refeição leve, mas Mary e ela pediram que preparassem algo de comer e beber enquanto aguardavam os homens. Depois de uma espera que lhes pareceu interminável, estes saíram da câmara de seu pai e entraram no salão. O primeiro a fazer foi seu irmão, depois sir Dugald e logo, ao fim, Arthur. Embora estivesse coberto de pó e sujeira, com um rosto maltratado pelo sol, barba de quatro dias e aroma de estrebaria reaquecida, a Anna jamais pareceu mais maravilhoso. Se não fosse pela multidão de homens do clã que se agrupava a seu redor no salão, teria saltado a seus braços.
Afastaram-se um momento enquanto os serventes preparavam as mesas. Desta vez não poderia evitá-la.
—Está bem? —perguntou Anna sem acreditar em seus olhos.
O olhar de Arthur se suavizou ao perceber sua preocupação.
—Sim, moça. Estou bem. Necessito um bom banho, mas, além disso, estou perfeitamente são.
—Alegra-me ouvi-lo — disse mordendo o lábio e olhando-o com vacilação —… Senti tua falta.
Arthur se estremeceu e uma pulsação fez tremer seu queixo.
—Anna…
Ela engoliu em seco e sentiu que de repente lhe quebrava a voz.
—Pensastes em mim?
—Tinha muito em que pensar. —Mas depois, ao ver o rosto que punha, arrependeu-se — Sim, moça. Pensei em você.
Teria ficado contente com isso, a não ser pelo que tanto que custou admiti-lo. As mesas de cavalete estavam já preparadas e os serventes começavam a por pratos com comida. O resto dos homens desfilava para os assentos. E ali foi aonde olhou Arthur do lugar em que estava, junto à câmara de seu pai. Parecia ansioso por reunir-se com eles. Anna não podia enganar-se por mais tempo.
—Não desejas este compromisso. —A verdade ardia. Anna ficou olhando-o fixamente, atormentada pela própria dor de seu peito — É que…? —Mal podia pronunciar as palavras. Tinha comentado que lhe ofereceriam uma esposa como recompensa — É que esperava te casar com outra?
Arthur a olhou com dureza.
—Do que estais falando? Já vos disse que não havia nenhuma outra.
—Então é simplesmente que não me quer.
Parecia que algo o atormentasse.
—Anna… —Arthur pigarreou — Agora não é o momento.
Apesar de que estivessem rodeados de gente, Anna não pôde reprimir toda sua frustração.
—Nunca é o momento. Ou está fora, ou encerrado em alguma reunião ou ocupado praticando. Quando, rogo a Deus que diga, é o momento?
Arthur, visivelmente frustrado, alisou com uma mão seus cabelos encrespados pelo elmo, que lhe caíam em suaves ondas por cima das orelhas. Anna esteve a ponto de acomodar as mechas atrás delas, mas se deteve a tempo.
—Não sei, mas agora mesmo quão único quero é comer algo, tirar toda esta porcaria de cima e dormir algo mais que umas poucas horas.
Devia estar exausto. Por um momento Anna se sentiu culpada, mas não durou muito. Não pensava permitir que seguisse lhe dando voltas.
—Então amanhã. Falaremos amanhã - disse, olhando-o com firmeza — Em particular.
Talvez, mais que atormentado, estivesse assustado. Não pensava que fosse capaz disso, mas ao que parecia estar a sós com a Anna conseguia algo do que não eram capaz dezenas de guerreiros armados. Não sabia se era pra rir ou chorar.
—Não posso. Supõe-se que sairemos de guarda.
—Quando retornarem. —Parecia louco por encontrar outra desculpa, mas Anna o impediu — Já sei que está ocupado preparando a batalha, mas é que não mereço uns minutos de seu tempo?
Arthur lhe sustentou o olhar durante alguns momentos.
—Sim, moça. Claro que o merece.
—Bem. Então vá comer — disse assinalando uma das mesas — Seus irmãos te esperam.
Arthur assentiu levemente e foi reunir se com sua família enquanto Anna dava meia volta e encontrava a sua irmã Mary mais perto do esperado. Observava-a com uma expressão de comiseração no rosto.
—Não passa nada —disse Anna, envergonhada pelo que pudesse ter ouvido — Está cansado. Isso é tudo.
Mary a agarrou sua mão e a apertou.
—Tome cuidado, Annie querida. Há homens que não querem ser amados.
Ficou circunspeta.
—Isso não é certo, Mary. Todo mundo quer ser amado.
Um sorriso de melancolia escureceu a boca perfeita de sua irmã.
—Amas muito, irmãzinha. Mas há gente que não quer esse tipo de cercania. Há gente que prefere que lhes deixem em paz.
Embora Anna não quisesse acreditar nas palavras de sua irmã, perseguiram-na durante todo o dia enquanto esperava a oportunidade para falar com ele.
Arthur saiu a cavalgar pela manhã cedo, retornou a tempo para a refeição do meio-dia e depois participou junto com seus irmãos e o resto dos homens no treinamento vespertino que faziam no pátio. Os exercícios se intensificavam cada vez mais já que se aproximava a batalha. Aproveitavam a luz dos longos dias de verão e não acabavam até as oito da tarde. O jantar era frugal, como também eram as preces vespertinas. Anna se viu tentada de o seguir ao ver que se dirigia para o lago, mas sua mãe a reclamou para que a ajudasse a dirimir uma disputa nas contas do lar, e uma vez que acabou, ele já estava de volta e se encerrou em uma reunião junto aos cavalheiros de alta fila e os guerreiros da meinie de seu pai no que se converteu em um conselho de guerra noturno. Anna o esperou em uma pequena saleta situada no vão da escada, consciente de que Arthur teria que passar por ali a caminho dos barracões. Normalmente somente ia a aquele lugar para ler algum livro, mas estar oculto do olhar por uns cortinados de veludo parecia algo mais particular que lhe esperar no salão, repleto de homens que dormiam. Tinha levado consigo uma vela para ler, mas à medida que caía a noite seus olhos se cansaram demais, de modo que a pôs a um lado.
Devia ser meia-noite quando os homens começaram a sair dos aposentos de seu pai. Arthur foi um dos últimos, mas Anna finalmente viu como entrava pelo corredor junto a seus irmãos. Quando se aproximou de sua posição, ela afastou os cortinados e desceu a escadinha para dirigir-se a ele. Para ouvir o comentário de seu irmão, Arthur a buscou com o olhar com uma expressão mais resolvida que surpreendida e foi a seu encontro, enquanto seus irmãos abriam a porta que conduzia ao barmkin.
—Não deveria ter permanecido acordada - disse.
—Esqueceu que acordamos nos ver hoje? —repôs ela com o cenho franzido.
—Não. —Suspirou — Não esqueci.
Apareceram mais homens no corredor.
—Venha — lhe disse Anna, protegendo-se em uma pequena cova que usavam para armazenar o vinho do senhor do castelo, aonde ninguém lhes incomodaria.
Assim que abriu a porta sucumbiu ao rico e frutífero aroma, que se intensificou ao fechar a estadia. Colocou a vela sobre um dos tonéis e se voltou para olhá-lo. Tratava-se de uma despensa pequena encravada na parede. Um espaço íntimo, muito íntimo. Anna se ruborizou ao conscientizar-se disso. Arthur permanecia ali à luz trêmula das velas como um convidado de pedra, com uma expressão rígida e forçada. Ficou surpresa ao ver que apertava os punhos.
—Isto não é uma boa idéia — disse ele com voz quebrada.
—Por que não?
Arthur a olhou com severidade.
—Não recorda o que aconteceu a última vez que estivemos encerrados em um aposento pequeno?
Anna se ruborizou. Era difícil não recordar à perfeição estando tão perto dele. O calor que desprendia seu corpo a envolvia e sua pele se arrepiava ao recordar as intimidades que tinham compartilhado. Mas não era para isso que o tinha levado ali.
—Só demoraremos uns minutos. Preciso saber… — Ergueu o olhar para examinar seu arrumado e tenso rosto — Quero que me diga se deseja este compromisso ou não.
A franqueza de Anna já não surpreendia a Arthur.
—Anna… — disse tentando lhe distrair — É complicado.
—Isso já disse antes. O que ocultas, Arthur? O que há aí que não quer me contar?
—Há coisas — disse contendo-se e olhando-a com aspereza — Não sou o homem que pensam.
—Sei exatamente o tipo de homem que é.
—Não sabe tudo.
Anna reconheceu o tom de advertência.
—Então me conte isso - Ao ver que não respondia, acrescentou—: Sei o que é o importante. E sei que te quero.
Aquelas palavras pareceram lhe doer. Arthur se aproximou para acariciar a bochecha com uma expressão de tristeza que lhe rompeu o coração.
—Pode ser que pense isso agora, mas logo mudará de opinião.
Seu tom paternalista e essas advertências crípticas a punham fora de si.
—Não o farei — disse Anna com veemência, apertando os punhos para aplacar a vontade que tinha de gritar ou de romper a chorar. Respirou profundamente para acalmar-se e continuou—: É algo muito simples, Arthur: quer se casar comigo, sim ou não?
—O que eu quero não vem ao caso. Estou pensando em você, Anna. Pode ser que agora mesmo não te pareça isso, mas acredite quando lhes digo que o faço por seu próprio bem. Não quero te fazer dano. Tudo pode mudar durante nos próximos dias. A guerra mudará tudo.
Tinha razão. Parecia que todos seus sonhos pendessem de um fio. A guerra estava a ponto de cair sobre eles e tudo o que conheciam mudaria em um abrir e fechar de olhos. A espada de Damocles pendia sobre o poder dos MacDougall nas Highlands. Mas havia algo ao que Anna podia acolher.
—Isso não mudará meus sentimentos por você. São os seus os que estão em julgamento. Não respondestes a minha pergunta — disse depois de uma pausa.
Arthur amaldiçoou e se afastou da porta uns passos, numa tentativa de perambular que não encontrava espaço suficiente. Quase roçava o teto com a cabeça. Parecia um leão à espreita em uma jaula muito pequena. Estava em um estado de rigidez absoluta, irradiando tensão por cada um de seus poros. Ao final deu a volta e a tomou pelo braço com expressão furiosa.
—Sim, maldita seja. Quero me casar contigo.
A escura nuvem que se pousou sobre ela se dissipou. Não era a declaração de amor mais romântica que tivesse ouvido, mas isso bastava. Seu corpo se encheu de calidez, e sorriu.
—Então o resto não importa — disse aproximando-se mais a ele e procurando instintivamente a conexão entre ambos corpos.
Arthur se estremeceu ao notar o contato, mas nessa ocasião Anna não procurou mais razões. Queria-a. Muito. Apesar de que fizesse quanto podia por resistir a isso. A tensão se desprendia de seu corpo reverberando como a pele de um tambor. Seus olhos se pousavam sobre seus lábios com um olhar obscurecido pelo desejo, mas mesmo assim seguia lutando contra isso.
—O que acontecerá não voltará, Anna? Então o que?
Gelou o sangue. Por isso atuava daquele modo? Tentava prepará-la em caso de que morresse no campo de batalha? Não suportava pensar nisso, mas sabia que existia essa possibilidade. Ele podia morrer. Atraiu-o mais para si, aferrando-se aos fortes músculos de seu braço como se jamais pensasse deixá-lo partir. Deus não podia ser tão cruel para afastá-lo dela. Mas e se o fizesse? , pensou com o coração encolhido.
Ela sabia o que queria. Não estava na sua mão controlar o que aconteceria no futuro, mas sim que podia controlar o presente. Talvez sim o tivesse levado a esse lugar com uma segunda intenção.
Arthur era consciente de que aquilo era má idéia, mas tal e como tinha comprovado mais vezes das que queria recordar, era um perfeito tolo no que se referia a Anna MacDougall. O sangue corria cálido por suas veias e uma pátina de suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. O intenso aroma do vinho, o almiscarado cheiro de terra do pequeno aposento e a leve fragrância floral de sua pele o embriagavam de desejo. Estavam muito perto um do outro, e sua necessidade era muito urgente. As imagens do quanto desejava fazer amor com ela davam voltas em sua cabeça deixando-o meio louco. Estavam a sós, maldita seja. Era muito perigoso. Mas se Arthur pensava que a desanimaria lhe falando de um futuro incerto, tinha errado em seus cálculos.
—Não quero pensar na guerra nem no que acontecerá amanhã. Somente quero pensar no presente. Se hoje fosse o último dia que ficássemos juntos, o que é o que queria?
«A você.» Sentiu a pulsação. Queria o que lhe oferecia mais que tudo no mundo.
Eram suas palavras. Sua certeza. O fazia sonhar. Arthur queria acreditar que havia um futuro possível. Queria acreditar, embora fosse por um instante, que Anna podia ser dele. Seu coração bateu como um tambor quando ficou nas pontas dos pés para lhe beijar. Em sua luta por não equilibrar-se sobre ela, Arthur deixou escapar um gemido. Sabia que assim que o fizesse não teria forma de parar. Tinha uma boca cálida e suave, muito doce. Tinha sabor de mel e cheirava como… Deus, cheirava como um jardim recém regado sob o sol estival.
Anna lhe acariciou o queixo com os lábios. Depois, o pescoço. Arthur começou a tremer. Não poderia agüentar aquilo durante muito mais tempo. Via-se incapaz de resistir. Rezava para que a tortura acabasse, mas em vez disso piorou. Anna apertou seus quadris contra ele e se esfregou contra a parte de seu corpo que desejava mais o contato, a parte de seu corpo que estava dura e palpitava, e que era impossível de controlar.
—Aquele dia estivemos tão perto — sussurrou junto ao pescoço de Arthur com um quente fôlego que provocou calafrios em sua pele em chamas— que quero saber como segue. —Uma gota de suor apareceu por sua têmpora. O frio aposento se esquentou em questão de segundos. Anna lhe rodeou o pescoço com seus braços e se grudou a ele. Buscou-o com o olhar — me ensinem Arthur.
Essa petição desavergonhada rompeu o último fio de que pendiam as reservas de Arthur. Soltou um grunhido, empurrou-a contra a porta, prendendo suas mãos por trás da cabeça, e a beijou. Não, devorou-a com seus beijos. Se deu um festim com sua boca fazendo uso dos lábios e a língua, beijando-a como se jamais pudesse saciar-se.
Ela respondeu a seu ardor com mais ardor, engastando sua língua a dele, imitando seus eróticos movimentos. O crepitar na cabeça de Arthur era cada vez mais sonoro. Seu corpo estava cada vez mais tenso. Mas não era suficiente. Tombou-se sobre ela, fez que seus corpos se acoplassem e começou a mover-se, primeiro com delicadeza e depois com mais insistência, à medida que Anna se retorcia e gemia com inocente frustração. Tinha vontade de lhe levantar as saias e afundar-se dentro dela, ver como se desfazia quando ele se aferrava nela mais forte e mais profundo. Uma e outra vez. Reclamando-a para si.
Mas estava tão receptiva, sentia o prazer de uma forma tão pura, que em seu interior cresceu uma onda de ternura que lhe fez afastar-se. Anna ficou piscando com uns olhos incrédulos que nadavam em paixão e a boca meio aberta, com os lábios inchados por seus beijos, mal separados.
—Rogo-lhes isso, não…
—Chist! —disse Arthur sossegando seus protestos com um doce beijo — Não vou parar.
Era muito tarde para isso. Era um homem, não um santo vindo do céu. Tinha muita vontade de possuí-la e ela o tinha levado muito longe. Já teria tempo para as recriminações. Nesse momento, Anna era dele. Mas não a teria contra uma porta como se fosse um animal no cio. Soltou o broche dos Campbell que levava para ajustar a manta e a estendeu sobre o chão de pedra. Depois se sentou sobre ela e lhe estendeu a mão. Anna não duvidou. Aceitou sua mão e permitiu que a recostasse a seu lado com um sorriso que lhe partiu o coração. Havia justo o espaço suficiente para esticar-se entre os tonéis de vinho.
Arthur acariciou seus cabelos e a atraiu para si para beijá-la com toda a paixão e a emoção que se concentravam em seu interior. Beijou-a como se fosse tudo para ele, e Anna se deixou levar pela doce posse daquele beijo. Se aninhou a seu lado e se sentiu cálida, amparada e protegida acima de tudo que acontecia fora do círculo mágico de seu abraço. Sentia… «Paz.» Em seus braços sentia essa paz e alegria que sempre lhe eram esquivas.
Voltou a passar os dedos entre seus cabelos e lhe sustentou o pescoço com sua grande e calosa mão, descrevendo suaves círculos em sua nuca com o polegar.
Poderia passar a vida beijando-o, estendida junto a ele, amoldando-se a seu corpo, sentindo a rígida força de seus músculos contra ela. Seu calor era como uma vagem protetora que os rodeava. As longas e pausadas carícias de sua língua faziam que se derretesse de paixão. Era perfeito. Mas quando essas longas e pausadas carícias pediram mais, quando seus beijos se fizeram mais intensos e profundos, quando começou a apertá-la com mais força e Anna percebeu a dura coluna de aço que pressionava seu ventre, se deu conta de que aqueles beijos não eram suficiente. Sentiu essa estranha sensação formando-se de novo em seu interior. O despertar. Os indícios. A energia incansável que pulsava entre suas pernas e fazia que ansiasse esse contato até o desespero. Mas nessa ocasião estava a par do que aconteceria depois. Recordava a mão de Arthur entre suas pernas, seus dedos dentro dela, os agudos espasmos do momento de liberação.
Recordava perfeitamente a avultada cabeça redonda de sua virilidade golpeando em seu interior de maneira íntima.
Gemeu e moveu os quadris em círculo contra ele, ansiando o alívio que somente a fricção podia lhe oferecer. Tinha o corpo em chamas, e os mamilos cada vez mais eretos e sensíveis à medida que se roçavam contra seu peito. Tentou atraí-lo mais para si, passando as mãos pela larga envergadura de seus ombros, pelos duros músculos de seus braços e suas costas. Apesar de que sob o tecido escocês Arthur só levasse a regata, as meias e os braies, aquelas finas capas de tecido se converteram em uma barreira incômoda. Anna queria tocá-lo. Queria sentir o calor de sua pele vibrando sob a pressão de seus dedos.
Certamente ele se deu conta de sua frustração. Afastou sua boca da dela, tirou o cinturão e passou a regata por cima da cabeça, jogando-a ao chão. Seu torso era tão impressionante como recordava. Ombros largos, braços musculosos e um ventre plano sulcado por linhas rígidas de puro metal cobertos por uma pele ligeiramente bronzeada sublinhada por cicatrizes de diferentes tamanhos. A pior delas era uma em forma de estrela que luzia junto a seu ombro, o tipo de marca que deixa uma flecha ao cravar-se. E agora via com claridade a marca do braço: o leão rampante, símbolo do reino da Escócia. Não podia afastar o olhar dele. Por Deus bendito que era um homem formoso.
—Moça, se segue me olhando deste modo, isto se acabará em um abrir e fechar de olhos.
A rouquidão de sua voz fez que Anna se estremecesse de desejo da cabeça aos pés. Ruborizou-se.
—Eu gosto de te contemplar. —O olhar de Arthur se obscureceu — É magnífico.
Anna, incapaz de esperar um segundo somente mais, acariciou seu seio com as palmas das mãos e essa sensação faiscante a fez gemer. Arthur, por sua parte, proferiu um profundo som gutural e a voltou a tomar em braços. Nessa ocasião não havia volta atrás. Anna cheirava seu desejo e sentia a necessidade que se desprendia dos eróticos arremessos de sua língua. Tudo ocorria muito depressa, mas cada momento se gravava a fogo em sua memória. Queria recordar tudo. O modo em que a saboreava. A maneira em que sua boca descansava sobre a sua. O áspero roçar de seu queixo sobre sua pele. O calor que desprendia seu corpo. O poder daqueles músculos que se esticavam sob suas mãos. O feroz rugir dos batimentos do coração contra seu coração. Queria recordar todas as sensações. Cada um dos aromas. Cada roce.
Estava tão excitada e sensível que sentia a pele quente e avermelhada. Apenas se deu conta de como suas mãos desatavam os nós de sua sobreveste sem mangas e a tiravam pelos ombros. Então se encontrou com que cobria seio e o massageava através do fino tecido de linho de sua regata, ao mesmo tempo em que levava a língua até seu pescoço. Arthur roçou a tensa protuberância de seu mamilo com o polegar, descrevendo círculos, acariciando-o, beliscando-o brandamente entre os dedos.
As mãos de Anna percorriam avidamente suas costas, aferravam-se a seus ombros e lhe arranhavam a pele a cada uma de suas provocadoras carícias. Gemeu da vontade que tinha de romper o tecido e notar o contato direto de seus dedos, sua boca. E seus desejos se fizeram realidade. Primeiro o vestido e depois a regata passaram sobre suas pernas até chegar à cintura e logo por cima da cabeça.
Se não fosse pela forma com que ele a olhava pode ser que nem sequer percebesse. Arthur ergueu a cabeça e passeou o olhar por sua nudez, o que fez que ela se ruborizasse e procurasse cobrir-se, mas ele não pensava permitir-lhe Agarrou-a pelos pulsos e negou com a cabeça.
—Não —disse de maneira brusca com uma voz rouca que destilava violência —É preciosa. —exclamou Arthur, ficando do meio lado e acariciando seu braço como se fosse tão delicada que pudesse rompê-la com somente tocá-la. Acariciou seus seios com o olhar, fazendo que ficassem mais arrepiados ainda. Passou um dedo pela ponta e depois por sua abrupta curva — Jesus! —disse com a respiração entrecortada — Seus seios são de outro mundo.
Arthur soltou um gemido e se inclinou para agarrá-los e levar-lhe à boca. Beijou primeiro um de seus espectadores ápices e logo o outro, deixando-a tremendo de vontade. Quando ao fim a capturou com seus lábios e mergulhou um mamilo em sua boca, Anna gemeu de prazer. Arthur jamais tinha visto nada tão formoso. Era consciente de que deveria conter-se para saborear sua suave pele de pêssego em toda sua imensidão, mas com somente vê-la estivera a ponto de chegar ao limite. Parecia um anjo, esbelta e delicada do mais alto de sua cabeça até as diminutas impigens de seus pés. Se não fosse por esses seios, teria pensado que estava morto e tinha chegado ao céu. Porque seus seios eram puro pecado. Uma fantasia masculina feita realidade. Grandes, mas não em demasia, redondos e erguidos, com a rigidez da juventude; sua suave e cremosa carne estava coroada por mamilos de cor framboesa que faziam a boca água. E tinha gosto disso…
Gemeu de prazer e voltou saborear, rodeando sua cálida e ereta ponta com a língua. Sabor de doces desejos carnais e escuros prazeres melosos.
Queria ir devagar, prolongar cada momento de prazer, mas sua necessidade era muito ardente, muito desesperada, e fora evitada durante muito tempo. Pôs a mão entre as pernas e a explorou com os dedos. Tinha uma ereção de cavalo, mas notar quão molhada estava, saber que estava úmida para ele, fez que lhe pusesse mais duro ainda. Lambeu seus seios e a acariciou com os dedos até que seus quadris começaram a ir contra sua mão e sua respiração entrecortada se voltou irregular. Quando soube que Anna estava a ponto de gozar, liberou-se dos braies e as meias com rapidez e se colocou entre suas pernas.
Seus olhares se encontraram.
Gostaria de dizer que pensou duas vezes, mas não era certo. Tudo que podia pensar era na necessidade de fazê-la sua, que não podia deixá-la escapar. Em que em seus olhos via a aceitação e o amor que jamais pensou que seriam para ele. Um amor que Deus sabia que ele não merecia, mas que desejava mais que nenhuma outra coisa no mundo.
—Por favor — soluçou Anna.
Esse era o convite que Arthur necessitava. Levantou-lhe uma de suas pernas para colocá-la em cima de seu próprio quadril, ao mesmo tempo em que apertava os dentes para reprimir a vontade que tinha de investir com todas suas forças e se dispunha a facilitar entrada. Embora talvez a palavra «facilitar» não fosse a adequada. Ela era estreita e ele era grande. Enorme.
O suor se acumulou sobre suas sobrancelhas.
Apertada. Deus, estava tão incrivelmente apertada… Apertou todos os músculos diante da insistência que crescia em sua virilha. Seus testículos se esticavam ao mesmo tempo em que a pressão subia pela base de sua coluna. O corpo de Anna lutava contra aquela invasão, mas ele não pensava permitir uma negativa. Empurrou um pouquinho mais, fazendo que ela se estremecesse e emitisse um gemido de angústia.
O sangue bulia por suas veias. Parecia estar a ponto de explodir, mas se conteve para dar-lhe tempo a preparar-se antes de enterrar-se completamente entre suas pernas.
«Jesus. Que não empurre mais.»
—Não… não estou segura de que isto vá funcionar —disse Anna com inquietação — E se… e se for pequena demais pra ti?
A risada abriu passo entre o sofrimento através do peito de Arthur. Já explicaria os pormenores do assunto mais tarde.
—Confie em mim, amor. Acoplaremo-nos um ao outro perfeitamente. —Mas o certo é que era a primeira vez que estava com uma virgem — Pode ser que doa e seja incômodo a princípio — disse olhando-a nos olhos — De acordo?
Anna assentiu, mas a viu um pouco menos segura que antes. Não deixou de olhá-la nos olhos um só momento, oferecendo seu apoio tácito à medida que se afundava mais e mais nela, com cada um de seus dolorosos centímetros, um após o outro.
A sensação de ter seu corpo rodeando seu pau e apertando-lhe tanto era quase mais do que podia agüentar. Sabia do muito que gostaria, fazia desonestos esforços para lutar contra a urgência de investir. Esse calor estreito, aveludado e úmido envolvendo-o, espremendo-o. Todos os músculos de seu corpo ficavam rígidos de tensão no tanto que tentava conter-se e fazer as coisas com calma. Sentia-se maravilhado. Mas tinha que fazer que fosse perfeito para ela, paciência era a palavra chave.
«Já falta pouco…»
«Agora.»
O ponto de não retorno. Olhou-a nos olhos, sentiu como seu peito se contraía e deu o empurrão final. Anna gemeu e os olhos se puseram enormes como pratos da dor, mas não gritou. Ao ver o aspecto estóico de seu rosto teve vontade de rir.
—Já verás como depois é melhor, amor, prometo-lhe isso. Tentem só relaxar.
Ela o olhou como se fosse louco.
—Não acredito que isso seja possível.
Mas então Arthur a beijou e Anna comprovou quão errada estava…
Quando a penetrou, Anna sentiu uma pontada de dor e lhe deu vontade de gritar com todas suas forças. Mas se dava conta do que ele sofria, de modo que se reprimiu, consciente de quanto se esforçava por não a machucar. Não era culpa dela que a providência o provesse com um pouco tão… descomunal. Aquilo devia fazer que tudo fosse bastante incômodo…
«Um momento.» Estava-a distraindo com seus beijos, mas por um instante teria jurado que acabava de sentir um… Aí o tinha de novo. Uma espetada. Uma espetada prazenteira. Muito prazenteira. Uma espetada que, de fato, parecia incrivelmente agradável. Seu corpo havia se amoldado a ele e a dor desaparecia. Agora sim a notava, quente e dura, enchendo-a de uma forma que jamais teria imaginado. E então Arthur começou a mover-se. A princípio devagar, inundando-se nela e saindo com investidas pausadas e delicadas. Anna gemia ao notar a maneira em que seus arremessos reverberavam por todo seu corpo. Sentia-se como se Arthur a reclamasse para si, como se a possuísse na mais primitiva das formas. Era uma sensação incrível. Tinha que mover-se com ele, erguer os quadris para coordenar-se com suas investidas e que a enchesse até o mais profundo. Com mais força. E depois mais rápido. Agarrou-se a seus ombros e o atraiu mais para si, desejando sentir todo seu peso sobre ela. Seus corpos pareciam estar fundidos um no outro. Pele contra pele. Tremendamente sensual. Um peso dilacerador. A paixão a capturava com seu trêmulo abraço. As sensações ardiam em seu interior. Tomavam forma. Esperavam o momento. Concentravam-se na mais feminina de suas partes. E também ele o sentia. Era como aço sob seus dedos, músculos tensos e acesos, preparados para explodir.
Mas o que mais a excitava era a expressão de seus olhos. Intensa. Penetrante. Obscurecida não só pelo desejo mas também pela emoção. Nessas profundidades de âmbar dourado via refletido o amor que consumia seu próprio coração. Amava-a. Pode ser que ele não percebera ainda, mas ela sim o fazia.
Mantinha-a pega a si, sem deixá-la ir, enquanto se afundava nela uma vez mais, inundando-se tanto como era possível, e ficava aí. Algo poderoso e mágico passou entre eles. Uma conexão como jamais antes tinha imaginado. À medida que a sensação se formava, a respiração de Anna ficou apanhada no mais alto de seu peito. Por um instante todo pareceu deter-se. Seu corpo se mantinha ao bordo do êxtase, fazendo equilíbrio no precipício celestial. Deixou escapar um guincho quando o primeiro dos espasmos de liberação fez que perdesse o controle e ficasse fosse de si, tremendo de prazer.
—Isso, amor. Venha para mim. —Arthur começou a mover-se de novo, atravessando-a com uma despreocupação selvagem — Oh, Deus. Eu gosto muito. Não posso…
Penetrou-a uma última vez com um profundo gemido de satisfação que parecia rasgar-se de sua própria alma. Seu corpo ficou rígido e logo se estremeceu ao notar que seu desafogo coincidia com a maré ascendente dela. Arthur tinha uma expressão fera e formosa, de uma paixão primitiva. Deixou-se cair sobre a Anna com os ecos da última sensação, ainda com seus corpos unidos. Tudo que ela ouvia era o som de suas respirações pesadas e o violento pulsar de seus corações. Desejava ficar assim para sempre, mas Arthur em seguida se afastou e rompeu a conexão.
O ar frio passou sobre seu úmido e ruborizado corpo, lhe deixando a pele arrepiada. Anna era consciente de sua nudez, mas estava muito exausta para mover-se. Suas pernas pareciam de gelatina. Mas tampouco havia razão para envergonhar-se. Arthur não lhe emprestava atenção. Ficou olhando ao teto, ainda com a respiração entrecortada, mas em um silêncio que não pressagiava nada bom. Não lhe tocava dizer algo? Mordeu o lábio, perguntando-se que seria o que pensava. Tinha parecido maravilhoso… «Mas o que acontecerá se o decepcionei?», pensou sentindo uma pontada de dor.
Ao fim Arthur voltou a cabeça para olhá-la e aproximou sua mão para lhe afastar os cabelos do rosto com delicadeza. Ao ver seu estado de incerteza lhe dirigiu um sorriso de menino que se instalou em seu coração para não partir jamais. Anna sabia que nunca poderia esquecer a expressão de seu rosto nesse momento.
—Sinto muito. Não sei o que dizer. Nunca antes… nunca antes havia sentido algo como isto.
Ela esboçou um amplo sorriso como resposta, incapaz de ocultar sua alegria.
—Sério? Não tenho nada com que comparar, mas me pareceu algo maravilhoso.
—Sim, foi maravilhoso. —Arthur se inclinou sobre ela e a beijou com ternura. Mas quando ela ergueu o olhar para olhá-lo de novo seu olhar se turvou — Jamais me arrependerei do que acaba de ocorrer, Anna. Mas por seu próprio bem eu gostaria que não tivesse acontecido.
Anna sentiu o inconfundível tom de advertência e pareceu que lhe cravava um espinho no coração, mas o evitou. Não queria que nada escurecesse esse momento. Se aninhou sob seu braço e apoiou a cabeça sobre seu ombro, abrigando-se com seu corpo de maneira instintiva.
—Eu me alegro de que tenha acontecido — disse ela.
Agora estavam unidos no mais profundo e nada poderia separá-los.
Arthur baixou o olhar para aquela delicada mulher nua que se aninhava em seus braços e lhe parou o coração. O que acabavam de compartilhar não tinha comparação com nada que tivesse experimentado antes. Tinha compartilhado cama com um número de mulheres mais que razoável, mas para ele fornicar sempre tinha consistido em saciar sua luxúria. Encarregava-se do prazer da mulher e do seu com um só objetivo na cabeça: desafogar. Uma vez que estava completo, não havia mais que fazer. Não se atrasava. E estava claro como a água que tampouco queria rodear a mulher com seus braços e desejar ficar assim para sempre. Comparado com o que tinha acontecido com a Anna, o resto parecia quase mecânico, como se tivesse passado por todos os movimentos simplesmente para conseguir o prêmio. Mas com ela o prêmio era a experiência em si mesmo. O prazer estava na exploração, no descobrimento e nos detalhes. Estava no modo em que ela reagia a suas carícias, a maneira em que arqueava suas costas, a pressão que exerciam seus quadris e os pequenos gemidos que saíam de seus lábios. Estava na expressão de seus olhos quando a penetrava, o rubor que lhe tingia suas bochechas quando se aproximava do orgasmo e o modo em que sua cabeça se inclinava para trás e sua boca se abria quando finalmente chegava.
Não fora capaz de afastar o olhar. Normalmente evitava o contato visual, mas com a Anna procurava essa conexão. Queria desfrutar dessa cercania.
Descansou o queixo sobre seu cocuruto, saboreando a sedosa suavidade de seus cabelos. Era tão doce e formosa… além de endiabradamente confiada. Isso fazia que despertasse todo seu instinto de amparo. E algo mais. Algo quente, terno e poderoso. Algo que jamais pensou que pudesse ser para ele. Acreditava ser diferente. Pensava que não necessitava a ninguém, que estava bem sozinho. Mas se enganava. Não era absolutamente diferente. Necessitava-a. Queria-a. Amava-a com um ardor que lhe parecia surpreendente. Talvez pudesse encontrar alguma forma de explicar-se. De implorar seu perdão. Talvez houvesse esperança…
«Ah, que diabos!» Um nó lhe contraiu as vísceras à medida que voltava para a realidade. A quem pretendia enganar? Anna jamais o perdoaria. Como poderia fazer, quando ele tinha a missão de destruir tudo aquilo que ela amava?
Amava-a, mas isso não mudava nada absolutamente. Somente serviria para que o que estava por chegar fosse mais doloroso. Quando acabasse de cumprir seu encargo, não teriam nada que fazer o um com o outro. Amava-a, mas sua lealdade estava com Bruce. Tinha uma missão que cumprir, não só pelo rei, mas também por seu pai. Em um tempo diferente, em um mundo no que não houvesse guerra nem velhas rixas poderiam ter tido uma oportunidade. Mas não nesse mundo. Não nesse tempo.
E mesmo assim gostaria de… Deus, quanto gostaria que tudo fosse diferente.
Anna ergueu o olhar e o olhou sob suas longas pestanas.
—Estou segura de que não somos o primeiro casal comprometido que antecipa sua noite de bodas.
O sentimento de culpa se fez mais profundo. Esse era o problema: não teria noite de bodas. Não a teria quando ela descobrisse a verdade. Era um bastardo. Um bastardo infame. No que estava pensando? Em realidade, sabia perfeitamente. Pensava que a queria mais que a tudo no mundo e que tinha que fazer o que fosse por conservá-la. Consciente ou inconscientemente, queria unir-se a ela de uma forma que não pudesse ser desfeita. Nem sequer pelo engano ou a traição.
Uma aposta desesperada. Egoísta. Perversa. Somente serviria para que Anna tivesse mais razão para odiá-lo. Mas já fora e não poderia trocá-lo por mais que quisesse.
—Não —disse Arthur — Não somos os primeiros, mas dadas as circunstâncias teríamos que ter esperado. —Atraiu-a fazia sim com uma voz tão feroz como seu abraço. Era um filho de cadela egoísta, mas jurou que quando aquela maldita guerra acabasse se daria uma oportunidade. Lutaria por ela, por eles, se o permitisse — Voltarei para ti, Anna. Voltarei se é que me segue querendo.
Ela o olhou com um sorriso nos lábios, cândida e inocente. Muito confiada.
—Pois claro que seguirei te querendo. Nada poderá mudar isso.
Queria acreditar no que dizia. Queria acreditar mais que tudo no mundo. Mas logo suas palavras seriam postas a prova.
Capítulo 21
—O que se passa, Anna? Está muito calada esta manhã. É que não dormiste bem?
Anna olhou a sua irmã com receio, perguntando-se se suspeitaria algo. Era difícil falar. Luzia uma expressão serena no rosto, uma expressão que se adequava ao sermão matinal ao que acabavam de atender. Anna não tinha nem a menor ideia a respeito do que conversava. Estava muito ocupada em rememorar cada um dos segundos da cena que tinha tido lugar a noite anterior. Não cabia dúvida de que pensar tais coisas em uma capela tinha que ser terrivelmente pecaminoso, mas já tinha suficiente pelo que fazer penitência, de modo que se figurou que o dano acrescentado a sua alma não pioraria a situação.
A recuperação dessas lembranças a fez sorrir. Estava claro que regozijar-se no pecado era inclusive mais pecaminoso ainda, mas o certo é que era feliz. Amava Arthur e ele a amava. Na noite passada o demonstrara. Não retornou à câmara que compartilhava junto a suas irmãs até que já era bastante tarde. Ou cedo. Depende de como se olhasse. Ficou aninhada entre seus braços tanto quanto se atreveu a fazer, mas ao final esteve obrigada a retornar a seu aposento. Essas horas passadas entre os braços de Arthur significavam um dos momentos mais contentes de sua vida.
Sob o protetor arco de seu abraço a guerra, o caos e a incerteza do mundo atual não existiam. À fria luz do dia, entretanto, tudo voltava a ser de outro modo. Cumpria-se o décimo segundo dia de agosto. Faltavam três para que expirasse a trégua. Dizia a si mesma que era a guerra o que a inquietava. Dizia a si mesma que a razão de que Arthur se mostrasse tão taciturno ou de que suas palavras adquirissem o matiz da advertência era a própria guerra. Pensando em tudo o que estava por chegar durante nos próximos dias, a perda de sua virgindade antes das bodas deveria ser o que menos lhe preocupasse. Mas por que lhe tinha falado da possibilidade de não retornar? Teria que pôr fim a aquilo.
—Não me passa nada —disse Anna com firmeza — dormi bem.
Na realidade, as quatro ou cinco horas de sonho de que dispôs dormiu placidamente.
—Pois deve ser um livro magnífico.
Nessa ocasião o tom de voz seco de sua irmã não deixava lugar a dúvidas.
—Pois sim — respondeu Anna sem poder evitar ruborizar-se.
Embora freqüentemente lia até entrada a madrugada em alguma das câmaras entre muros do castelo para evitar incomodar a suas irmãs, era óbvio que Mary tinha adivinhado a verdade.
Seguiam de perto ao resto da família, que atravessava o pátio da capela em direção ao grande salão para romper o jejum. Não obstante, a maioria dos homens já estava no pátio de armas praticando. O ruído metálico das espadas, e a cacofonia das vozes ficava maior à medida que se aproximavam. Anna examinou instintivamente as figuras sob as armaduras em busca dele.» O coração lhe deu um tombo só de vê-lo. Arthur estava do outro lado dos estábulos, de costas a Anna. Ali era onde preparavam as balas de palha, assim que se figurou que estaria praticando com a lança. Perto dele estava seu irmão Dugald, mas ao contrário deste, ele sim estava acompanhado. Impulsionava um dado pra frente e para trás e dava voltas no ar sob o atento olhar de três jovens e de bonitas criadas que lhe observavam como se fosse um mago, assentindo a tudo o que lhes dizia. Tentava ensinar a agarrar a lança uma jovem que tinha de frente a si, mas seus enormes seios se interpunham entre seus braços.
Aqueles dois irmãos não podiam ser mais diferentes. Dugald era um fanfarrão ruidoso, o tipo de homem que somente estava contente quando era o centro da reunião e tinha ao redor o máximo de mulheres possíveis. Arthur era mais tranqüilo. Mais reto. Um homem que se contentava estando em segundo plano.
Mary ergueu o olhar ao céu ao contemplar seu exibicionismo e se afastou dali subindo a escada em direção ao grande salão. Anna se apressou a seguir seus passos sem poder evitar olhar atrás uma vez mais. Sir Dugald ria por algo que havia dito uma das garotas. Anna não ouviu o que lhe respondeu, mas teria jurado que era algo do tipo: «Olhe isto».
Ergueu a lança sobre sua cabeça como se fosse jogá-la ao mesmo tempo que gritava a Arthur:
—Arthur, agarra-a!
Antes que Anna se inteirasse do que estava a ponto de fazer, antes inclusive de que o grito pudesse tomar forma em sua garganta, a lança já estava no ar, projetada em direção a Arthur. Estavam tão perto um do outro que quase não teve tempo de olhar em resposta às palavras do Dugald quando já tinha o dardo sobre ele. Apanhou-o no ar no último instante, com uma só mão. O levou ao joelho com um rápido movimento, rompeu-o em pedaços e devolveu as lascas a seu irmão com o rosto escurecido pela cólera.
Isso recordava algo a Anna.
Uma brisa gelada banhou sua pele. Não tinha visto nada igual mais que uma vez em sua vida. Seu rosto empalideceu no momento. Sossegou com uma mão a exclamação de surpresa e ficou petrificada contra o muro da entrada com o coração em um punho. Tinha acontecido exatamente quão mesmo a noite da floresta do Ayr. Essa noite em que a mandaram a recolher a prata para seu pai e se encontrou com uma emboscada. O cavalheiro que a resgatou tinha feito exatamente o mesmo. «O espião.»
«Não, não pode ser», disse-se Anna, invadida por um ataque de terror que lhe percorria as costas. Tinha que ser uma coincidência. Mas as lembranças se retorciam em sua cabeça e a confundiam. Estava escuro. Não pôde ver seu rosto. Ele falava em voz baixa para mascarar sua voz. Mas o tamanho, a altura e a compleição encaixavam perfeitamente.
Não, não, aquilo não podia ser. Anna se tampou as orelhas e fechou os olhos. Não desejava vê-lo. Não queria pensar em todas as razões que davam pé a essa possibilidade. Em suas ocultas advertências. A sensação de que ocultava algo. Suas tentativas iniciais de evitá-la. O olhar de reconhecimento em seu tio Lachlan MacRuairi. Lhe contraiu o estômago. A cicatriz. Deus, a cicatriz não. Mas a marca de flecha em forma de estrela de seu braço se ajustava à ferida do cavalheiro que a tinha resgatado. A bílis subiu até sua garganta.
Mary se conscientizou de que Anna não ia atrás dela e baixou a escada correndo até a entrada em que sua irmã permanecia como uma estátua pega ao muro.
—O que te passa, Annie? Parece que viu um fantasma.
Assim era. Deus santo, assim era. Anna moveu a cabeça, negando-se a aceitá-lo. Tudo a seu redor começou a dar voltas.
—Não… não me encontro muito bem.
Subiu a escada para sua câmara sem mediar mais palavras e quase não teve tempo de tirar o urinol de debaixo da cama quando já estava esvaziando os magros conteúdos de seu estômago e purgando de passagem seu coração nele.
Arthur olhou em redor do grande salão caminho da câmara de Lorn para o conselho de guerra da noite. Ficou circunspeto ao conscientizar-se de sua ausência. Onde diabos teria se metido? A leve sensação de preocupação que lhe assaltou essa manhã ao não ver Anna tinha piorado com o desenvolvimento da jornada. Alan lhe disse que Anna não se encontrava bem. Uma dor de estômago, mas dado o ocorrido a noite anterior, Arthur não acreditava. Estaria zangada? Arrependia-se do que tinha passado entre eles? A culpa o remoia por dentro. O que teria feito?
Obrigou-se a afastar Anna de seus pensamentos e a concentrar-se na tarefa que tinha ante si. Não sobrava muito tempo. O rei Robert atacaria em quatro dias, e Arthur ainda não tinha conseguido nenhuma informação de utilidade.
Entrou no aposento seguindo ao Dugald, que estava de um humor de cão como jamais antes tinha visto, e se sentou à mesa com o resto dos cavalheiros de alta fila e os membros da meinie de Lorn. Minutos depois de que se congregassem os homens, fez sua entrada Lorn. Mas nessa ocasião não chegava sozinho. Seu pai, o convalescente Alexander MacDougall, ia com ele. O pulso de Arthur se acelerou. Se MacDougall estava ali, provavelmente se trataria de algo importante.
O lorde de Argyll tomou assento na poltrona trono que normalmente ocupava seu filho e deixou ao Lorn uma poltrona menor junto a seu posto. Uma vez que se fez silêncio na sala, Lorn tirou um pergaminho dobrado de sua bolsa e o pôs sobre a mesa. Arthur ficou petrificado ao reconhecê-lo imediatamente. Reprimiu uma maldição obscena. «O mapa.» Ou para ser mais exato, seu mapa. O mapa que tinha desenhado para o rei, que tinha entregue ao mensageiro. Devem ter interceptado antes que chegasse ao Bruce. «Maldição.» Desejou ter-se lembrado de mencioná-lo na última vez que se reuniu com eles.
Os homens se aproximaram para ver o de perto.
—O que é? —perguntou um deles.
Lorn adotou uma expressão severa.
—Um mapa dos arredores de Dunstaffnage — disse, fazendo-o passar — E o número de homens e os fornecimentos a nossa disposição.
Houve várias falações de irritação quando alguns dos homens notaram o que significava. Dugald se aproximou mais e examinou o mapa com tal intensidade que a Arthur lhe arrepiaram os cabelos da nuca. Não havia nada delator no documento. A escritura era minúscula e quanto aos desenhos… Dugald nunca tinha emprestado muita atenção aos «ganchos de ferro» de Arthur mais que para rir deles. Não tinha nada que temer. Mas mesmo assim, o interesse que tomava seu irmão parecia inquietante.
—De onde saiu? —perguntou Dugald.
—O tiraram de um mensageiro do inimigo que meus homens interceptaram faz várias semanas —respondeu Lorn — Mas pela exatidão dos números, suspeito que há um traidor entre nós. —Os murmúrios de indignação e raiva zumbiram por toda a sala e Arthur se uniu a eles — Infelizmente o mensageiro não foi capaz de identificá-lo.
—Como pode estar seguro, milorde? —perguntou Arthur.
Um sorriso de cumplicidade curvou a boca de Lorn.
—Estou.
O qual queria dizer que tinham torturado ao mensageiro.
Lorn examinou os rostos dos homens que lhe rodeavam, o círculo interno de seu mando.
—Mantenham os olhos abertos em busca de algo que se saia da normalidade. Quero encontrar a esse homem — disse esmagando o mapa com a palma da mão — Mas este mapa demonstrou sua utilidade. Tenho um plano para ganhar a partida do usurpador em seu próprio jogo.
Arthur ficou quieto, tentando conter a emoção. Talvez ao final pudesse conseguir um pouco de informação para o rei.
—A que te refere? —perguntou Alan.
—Refiro-me a que faremos que suas próprias táticas se voltem em contrário. Bruce conseguiu vitórias frente a força muito mais poderosos lutando segundo seus próprios meios: escolhendo o lugar e o terreno adequados para o ataque, atirando golpes duros e rápidos desde seus esconderijos, usando o mesmo tipo de estratégias que usaram nossos ancestrais durante séculos, táticas de guerra highlander. E que me crucifiquem se permitir que alguém das Terras Baixas ganhe em meu próprio terreno — disse, fazendo ato seguido uma pausa para que o resto fizesse coro sua aprovação — Não ficaremos aqui esperando ao assédio do castelo como ele acredita. Atacaremos nós primeiro.
Todos começaram a falar ao mesmo tempo. Arthur se obrigou a não unir-se à refrega porque queria ouvir o resto. Mas sabia que aquilo era algo grande, monumental de fato. Lorn tinha razão: o rei não esperaria que os atacassem. Não quando tinham uma fortaleza como Dunstaffnage para cobrir-se. Lorn impôs silêncio na sala com um movimento da mão.
—Esperem que conte o resto para fazer perguntas. —Colocou o mapa mais adiante para que os homens que tinha frente a ele pudessem vê-lo — Bruce e seus homens vêm do este pela estrada do Tyndrum. —Apontou a um canto do mapa, fazendo que a pele de Arthur se arrepiasse ao pressentir algo importante. Lorn moveu o dedo seguindo o caminho e se deteve no caminho de Brander. Arthur sentiu o estômago apertar — Para chegar até Dunstaffnage terão que cruzar estas montanhas. No estreito e longo caminho de Brander, ali será onde ataquemos. Poremos a nossos homens aqui, aqui e aqui — disse assinalando três cúpulas por cima das quais não se via nada, devido aos meandros do caminho.
Arthur reprimiu uma imprecação ao mesmo tempo em que o resto da sala prorrompia em uma onda de excitação. Era o lugar perfeito ao que levar a cabo um ataque surpresa. Os MacDougall surpreenderiam ao Bruce de acima, descendo sobre o exército em marcha em uma abertura estreita de onde o rei não poderia tirar vantagem de sua superioridade numérica.
—Quando? —perguntou Dugald erguendo a voz.
—Nossos informe assinalam que Bruce chegará ao Brander na madrugada do dia quatorze.
«Filho de cadela traiçoeiro.»
A sala ficou em silêncio.
—Mas a trégua não expira até o dia quinze — disse Alan com cautela.
Lorn entreabriu os olhos.
—É o usurpador quem escolheu ignorar o código da batalha, não eu. Bruce parte sobre nossas terras. É ele quem rompe a trégua. —Um raciocínio à própria conveniência como jamais se viu antes. Mas ninguém na sala se atreveu a discutir — Alan —continuou Lorn—, partirá com o grosso das forças amanhã e estarão na posição ao cair a noite, somente para nos assegurar.
A Arthur não surpreendeu saber que Alan estaria ao mando. Essas abruptas ravinas e o irregular terreno seriam difíceis de sulcar inclusive para os guerreiros mais jovens.
—Defenderão vocês o castelo, milorde? —perguntou.
Lorn o fulminou com o olhar.
—Meu pai guardará o castelo —corrigiu — Eu farei cargo de uma frota de galeões e comandarei o ataque daqui — disse assinalando o lugar no que o rio Awe entrava no lago do mesmo nome — Assim, quando o tivermos surpreendido de cima, seguiremos atacando do fronte.
Golpeando ao Bruce de duas direções. Era um plano excelente. Não só se tratava de uma localização perfeita para lançar o ataque, mas sim ao atacar primeiro, e antes que a trégua expirasse, teriam o fator surpresa a seu favor.
Essa intervenção provocou uma inundação de perguntas, mas Arthur já estava concentrado na tarefa que tinha. Tinha que advertir ao rei o antes possível sem que Lorn se inteirasse de que seu plano corria perigo. Teria que arriscar-se a enviar a mensagem nessa mesma noite. Depois, na excitação e o caos que precederiam ao ataque, teria a possibilidade de escapulir-se.
«para sempre.»
Encolheu-lhe o estômago. Tinha ante si o momento que tanto tinha temido e sabia que era inevitável. O momento de dizer adeus. O momento em que se supunha que devia voltar para as sombras e desaparecer sem dizer uma palavra. Isso era o que ele fazia. O que sempre soube que teria que fazer. Simplesmente não esperava que fosse tão tremendamente duro. Parecia covarde partir sem uma explicação. Deixar que Anna descobrisse a verdade por si mesma. Gostaria de prepará-la, lhe dizer que a amava e que nunca quis a machucar. De dizer o que sentia, que seguiria sendo dela sempre que ela quisesse.
Mas não podia. Partiria para dia seguinte sendo um homem e quando retornasse o faria sendo outro. Anna o odiaria por isso. Embora duvidava muito de que coubesse uma mínima possibilidade de que estivessem juntos, Arthur jurou que quando terminasse todo a buscaria para tentar explicar-lhe Sempre que ela quisesse escutá-lo.
«Não pode ser certo. Não é possível.» Anna se negava a acreditar. Mas tampouco podia afastar de si a dúvida que se instalou como um parasita em suas vísceras e não queria partir. A desculpa de sua enfermidade não era falsa. As dúvidas se retorciam e remoíam seu interior, debilitando-a. Passava o dia inteiro no refúgio de seus aposentos tentando convencer-se de que aquilo não era possível, de que ele não a enganaria de tal modo. Mas ficavam muitas perguntas no ar. Umas perguntas que não podiam esperar até o dia seguinte. Para então poderia ser muito tarde. Mary e Juliana acabavam de retornar à câmara fazia pouco para lhe informar de que os homens já dispunham os preparativos prévios à guerra. «Guerra.» O medo acendeu seu peito, e a necessidade de encontrá-lo se tornou desesperada.
Tinha o vestido enrugado e cheio de pelos de Escudeiro depois de ter passado todo o dia tombada na cama, mas não perdeu o tempo em trocar-se. Jogou água no rosto, enxaguou a boca, passou uma escova por seu emaranhado cabelo e se encaminhou às dependências de seu pai para pedir a suas irmãs que desse uma olhada no cachorrinho. Defraudou encontrar a porta aberta, já que esperava que os homens continuassem no conselho de guerra. Não obstante entrou, atraída pelas vozes que procediam do interior.
Seu pai, que estava de pé junto a Alan, observando um pergaminho estendido sobre a mesa, ergueu o olhar ao vê-la entrar na sala.
—Ah, Anna. Encontra-te melhor?
—Sim, pai, muito melhor — respondeu ela, tentando não mostrar a decepção que supunha descobrir que se achavam ali somente eles dois. Certamente Arthur já teria se retirado aos barracões para dormir. O que podia fazer ela, então? Que desculpa inventaria para ir em ao seu encontro essas horas?
—Necessita algo? —perguntou Alan, notando a preocupação de seu rosto.
Quando seu irmão baixou o olhar, Anna se deu conta de que estava retorcendo as abas do vestido.
—Parece desgostada por algo
Não podia chegar a fazer uma idéia.
«Oh, Deus. Teria que contar Anna sentiu um vazio no estômago ao conscientizar-se de que deveria compartilhar suas suspeitas com ambos. Mas não podia. Não até que estivesse completamente segura. Seu pai… doía admitir que a ira de seu pai nem sempre era racional. Não podia estar segura do que faria. Mas tinha que contar tudo.
—É pela guerra. Mary me disse que os homens se preparam para partir amanhã.
—Não há razão para preocupar-se, Anna. Sua mãe, suas irmãs e você estarão a salvo aqui.
—Não acredito que seja isso o que lhe preocupa, pai — disse Alan com um sorriso forçado.
Estava certo. Anna empreendeu a retirada, ansiosa por encontrar Arthur.
—Não queria lhes incomodar — disse olhando o pergaminho sobre a mesa — É óbvio que estão ocupados, deixarei-os que… —acrescentou, detendo-se de repente com uma exclamação de surpresa.
Cravou o olhar no pergaminho e caiu na conta de que o reconhecia, apesar de que nesse momento já estava acabado e tinha um aspecto diferente. Já não parecia um rascunho. Parecia um mapa. «Um mapa.» O que significava aquilo? Se Arthur estava fazendo um mapa para seu pai, por que não lhe havia dito nada? «Tentava ocultá-lo.»
Anna deu vários passos à frente presa de um pavor inexplicável. Tentou dissimular o tremor de sua voz:
—Interessante mapa. —Tinha a garganta muito seca, de modo que, mais que falar, pigarreava — De onde o tirastes?
—Nossos homens o interceptaram de um mensageiro inimigo —respondeu Alan, passando os dedos por seus finos traços — A verdade é que é muito bom. Magnificamente detalhado.
Anna não ouviu mais que as palavras «mensageiro inimigo». Empalideceu ao momento; seus piores temores, aparentemente, confirmaram-se.
«É um espião.»
—Sabe algo a respeito, filha?
Anna voltou o olhar para seu pai. Abriu a boca para pronunciar as palavras que condenariam Arthur, mas ficaram congeladas em sua boca. Não podia. Não podia fazer. Não antes de lhe oferecer uma oportunidade para explicar-se.
—Nada — se apressou a dizer baixando os olhos, incapaz de lhe sustentar o olhar.
Alan a observava com expressão de estranheza.
—Está segura de que não te encontra mal, Annie? Não tem bom aspecto.
Não se encontrava muito bem. Tinha enjôos. Como se o aposento girasse a seu redor ou as tábuas do chão se desprendessem a seus pés. Cambaleou e deu um passo para recuperar o equilíbrio.
—Eu… eu acredito que será melhor que volte para meu aposento.
Alan foi para ela com o desassossego marcado no rosto.
—Acompanho-te.
—Não. —Anna negou com a cabeça energicamente, reprimindo umas lágrimas que lhe ardiam nos olhos — Não é necessário. Estou bem. Sigam com o que estão fazendo.
Anna saiu antes que seu irmão pudesse opor-se. Apressou-se a chegar ao barmkin consumida em uma sensação de sufoco. Abriu a porta da torre da comemoração e se sentiu reconfortada pelo golpe de ar frio da noite. Inspirou profundamente, enchendo os pulmões e procurando estabilizar sua acelerada respiração. Aferrou-se ao corrimão de madeira que coroava a escada como se fosse um cabo de salvamento, deixando que o ar fresco e o tranqüilizador dossel da negra e fechada noite acalmasse a precipitação de seu coração, de seu fôlego e, sobretudo, de sua cabeça. Vários dos homens que vigiavam o barmkin ficaram olhando-a, mas Anna estava muito desgostada para preocupar-se com isso. Desgostada? Não, aturdida. Destroçada. Horrorizada. Sua cabeça ainda dava voltas, incapaz de acreditar.
Tentava decidir o que devia fazer, se percorria o pátio, chamava nas portas dos barracões e perguntava por ele, mandando ao diabo toda correção, quando as portas se abriram e saiu um grupo de soldados vestindo armadura completa. O coração lhe deu um tombo ao conscientizar-se de que um deles era Arthur. Dirigiam-se para os estábulos. Estava partindo. «Partindo.»
Agarrou-se ao corrimão com força até que a madeira se estilhaçou em suas mãos. Ficou olhando com o peito ardendo de dor e uma parte de si ainda recusava a acreditar. Arthur pareceu advertir o calor de seu olhar e deixou pela metade o que estava fazendo para erguer os olhos. Seus olhos se encontraram entre a luz mortiça que proviam as tochas. Arthur disse algo a um dos homens, separou-se do grupo e caminhou em sua direção. Anna inspirou profunda e entrecortadamente e se dispôs a baixar a escada para encontrar-se com ele ao final desta. Seu coração se deteve o ver seu rosto. Como podia lhe olhar com tal cara de preocupação e planejar traí-la ao mesmo tempo?
—O que passou? —perguntou — Fiquei preocupado ao não te ver antes.
Ele se aproximou dela, mas Anna se revolveu. Não podia permitir que a tocasse. Somente serviria para confundi-la mais ainda.
—Preciso falar contigo.
A rigidez de sua voz despertou os temores de Arthur. Dirigiu seu olhar para os estábulos, onde os homens tinham desaparecido.
—Não tenho muito tempo. Estão me esperando.
—Parte… sem dizer adeus?
O pequeno tremor que apareceu em seu queixo o delatava. Sinal de que se sentia culpado.
—Não é mais que a ronda noturna. Estarei de volta em umas horas.
—Está seguro? Não me advertiu de que talvez não retornaria?
Arthur examinou com atenção seu rosto e pareceu conscientizar-se de que algo ia realmente mal. Consciente dos homens que patrulhavam a seu redor, a tomou pelo braço e a levou para o jardim que havia na parte posterior à torre, onde ninguém poderia ouvi-los. Agarrou-a pelos ombros para virá-la para si e a olhou com expressão severa.
—A que se deve todo isto, Anna?
Anna ergueu o queixo, odiando que a tratasse como se fosse uma menina pesada.
—Sei.
—O que é o que sabe?
Um soluço apareceu em seu peito, mas conseguiu controlá-lo. As palavras saíram como um torvelinho.
—Sei a verdade. Sei por que está aqui. Sei que me salvou no Ayr. Sei que trabalham para eles — disse Anna, quase cuspindo essa última palavra, incapaz de pronunciá-la.
Ele trabalhava para o inimigo mortal de sua família.
Ficou imóvel, suas feições tinham sido adestradas para a impassibilidade. A Anna caiu a alma aos pés. Essa falta total de reação lhe condenava mais que uma negação.
—Está transtornada —disse Arthur com calma — Não sabe o que está dizendo.
—Como te atreves! —exclamou Anna com voz tremente e uma emoção que ardia em seu peito até converter-se em um acesso de raiva — Não te atreva a mentir! Vi esta manhã agarrar a lança ao vôo e rompê-la com o joelho. Somente vi isso uma vez em minha vida. Não recorda como saíram a me resgatar aquela noite? Um espião dos rebeldes que se fazia passar por cavalheiro? Recebeu uma flechada no ombro por isso. —Tinha vontade de lhe arrancar a armadura e lhe obrigar a que o reconhecesse — Tem uma cicatriz exatamente no mesmo lugar. —Fez uma pausa para que o negasse, quase esperando que lhe desse uma explicação, mas o silêncio enchia o ar estagnado entre ambos — Vi o mapa, Arthur. O mapa que permitiu que eu acreditasse que era um desenho. O tiraram de um mensageiro inimigo — continuou, desafiando-o ainda com o olhar — Talvez devesse chamar a meu pai e que ele seja quem diga.
Arthur franziu os lábios até que embranqueceram. Agarrou-a pelo cotovelo e a aproximou mais a si.
—Baixe a voz —advertiu — Poderiam me matar somente por me acusar disso.
Anna se serenou, aplacando um tanto sua ira, consciente de que o que dizia era certo. Arthur a dirigiu para um banco de pedra e a fez sentar-se.
—Não se mova.
—Aonde vai? —perguntou Anna, irritada por receber ordens dele.
—Dizer-lhes que me atrasarei — respondeu Arthur, olhando-a com expressão severa.
Capítulo 22
«Pense! Maldita seja, pense!»
Arthur levou um tempo para informar aos homens de seu atraso enquanto tentava acalmar a violenta corrente de sangue que afluía por suas veias. Mas todos seus instintos primários de sobrevivência tinham despertado em uníssono em resposta ao perigo. O pior tinha acontecido. Tinham-no descoberto. Anna tinha adivinhado a verdade.
Amaldiçoou ao idiota de seu irmão por lhe jogar aquela lança, que além de que estivera a ponto de lhe atravessar a cabeça, e também a si mesmo por ser tão pouco cuidadoso com o mapa. Sua missão acabava de ir-se ao vinagre, e, a menos que pudesse encontrar uma maneira de justificá-lo, tudo indicava que não viveria para ver o seguinte pôr-do-sol. Não podia pensar no que significaria seu fracasso para Bruce. Se não os avisasse, iriam diretos para a armadilha. Uma vitória dos MacDougall poderia fazer que a guerra mudasse de novo.
Apesar de não advertir nenhum perigo ao sair dos estábulos, Arthur não tirava as mãos de suas armas, quase esperando encontrar-se aos soldados de Lorn aguardando. Mas Anna não tinha avisado a seu pai. Ainda não, ao menos. Esperava-lhe no banco no que ele a tinha deixado. Respirou algo mais tranqüilo em seu caminho de volta ao cruzar o pátio, embora ainda não tinha claro o que lhe diria. Não era só sua integridade e a missão o que estava em jogo. Se ainda ficava a esperança de uma vida em comum para ambos, seria nesse momento quando teria que conseguir que Anna entendesse suas razões.
Ela não o olhou quando se aproximou, mas sim ficou contemplando a escuridão em silêncio, com um rosto que era uma pálida máscara de angústia. Sentou-se junto a ela com uma sensação de impotência absoluta. Queria tomá-la em seus braços e lhe dizer que tudo sairia bem, mas sabia que não era certo. Tinha-a traído. Pouco importa que não pode evitar.
—Não é o que pensa — disse brandamente.
—Não pode fazer uma mínima idéia do que penso. —A voz de Anna estava carregada de emoção. Quando se voltou para ele, com seus grandes olhos azuis alagados de lágrimas não derramadas, Arthur sentiu uma pontada no coração que lhe fez estremecer — Diga que não é certo, Arthur. Diga que tudo é um engano. Diga que não é o que acredito que é.
Deveria. O que significava uma mentira mais em cima de tantas outras? Podia tentar negá-lo. Talvez chegasse a convencê-la. Mas duvidava muito. Ela sabia. Via-o em seus olhos. E se lhe mentisse nesse momento, jamais teria a possibilidade de que o compreendesse. Se queria que eles tivessem uma oportunidade como casal, teria que lhe contar a verdade.
Olhou-a nos olhos.
—Jamais quis lhe fazer dano.
Anna emitiu um som, um gemido de dor que parecia provir de um animal ferido, um gatinho de pele aveludada apanhado em uma armadilha para ursos. Não pôde evitar. Aproximou-se dela para acalmá-la, mas Anna deu um coice.
—Como é capaz de dizer tal coisa? Utilizaste-me. Mentiu em tudo o que era importante. —As lágrimas brotaram das comissuras de seus olhos e caíram em corrente por suas bochechas — Houve algo real? Ou fazer que me afeiçoasse de ti também era parte do plano?
—O que passou entre nós foi real, Anna. Nunca foste parte do plano. Jamais deveram fazer parte disso. Isto não tem nada que ver contigo.
—Então com o que tem que a ver? Com o Robert Bruce? Com as velhas rixas? Com seu pai? —Arthur apertou os punhos e pigarreou — Assim é por seu pai… Culpa ao meu de sua morte —disse, retirando-se dele — Não é mais que um horrível e retorcido feito de vingança. Quer a destruição de minha família porque seu pai morreu na batalha, não é isso? O que é o que planeja, assassinar a meu pai para vingar a morte do seu? —ficou paralisada pelo horror — meu Deus, isso é o que planeja fazer.
Arthur apertava com força os dentes. Dito por ela, soava como algo infame. Simples. Mas era tudo menos isso. Anna, cega pelo amor que tinha a sua família, estava incapacitada para ver o que acontecia a seu redor. Odiava ter que ser ele quem lhe abrisse os olhos, mas não restava outra alternativa.
—É seu pai quem acabará com o clã e não eu, Anna. Robert Bruce fez o que ninguém acreditava possível. É a melhor opção da Escócia para nos liberar do jugo inglês. Ganhou os corações do povo. Mas o ódio de seu pai e seu orgulho lhe impedem de vê-lo desse modo. Prefere ver uma marionete inglesa no trono… Os MacDougall ficam sozinhos, Anna. Inclusive Ross acabará rendendo-se.
Anna ficou completamente rígida.
—Meu pai faz o que considera correto.
—Não, seu pai faz tudo o que está em sua mão para não admitir a derrota. Não se equivoque em relação às razões de tudo isto. Seu pai preferiria os ver mortos antes que aceitar a derrota.
Advertiu a indignação que ruborizava suas bochechas.
—Vocês não sabe nada de meu pai.
Anna fez uma tentativa de levantar-se, mas ele a agarrou pelo pulso e a obrigou a permanecer sentada.
—Sei mais do que queria a respeito de seu pai. Sei exatamente do que seria capaz por ganhar.
Anna tentou libertar seu braço.
—Me solte.
—Não até que ouça tudo o que tenho a dizer.
Não havia nada que desejasse menos que desiludi-la, mas era consciente de que não podia protegê-la da verdade durante muito mais tempo.
—Não vos disse tudo o que vi o dia em que mataram a meu pai.
—Não quero…
—Entretanto, ouvirá —a interrompeu — Embora não queira fazer. Eu estava nessa colina e o vi tudo, Anna. Meu pai tinha ao seu a mercê de sua espada. Poderia tê-lo matado e, não obstante, teve piedade dele. Seu pai aceitou os termos, acordou a rendição e depois, quando meu pai deu a volta, matou-o.
Anna deixou escapar um grito afogado com uns olhos cheios de horror e incredulidade.
—Está errado. Meu pai jamais faria algo tão desonroso.
Arthur a agarrou firmemente e a obrigou a olhá-lo nos olhos.
—Eu estava ali, Anna. Vi e ouvi tudo, mas não pude fazer nada para detê-lo. Tentei advertir a meu pai, mas era muito tarde. Lorn me ouviu e enviou a seus homens a que me caçassem, e tive que me ocultar na floresta durante uma semana. Quando saí dali, era muito tarde para mudar a história. Ninguém teria acreditado.
Arthur se deu conta do pânico que a sobressaltava. Sentiu seu coração bater fortemente contra o peito. Lutava por aferrar-se a qualquer fio que pudesse preservar suas ilusões em relação à verdadeira pessoa que ela via em seu pai.
—Deve ter interpretado mal o ocorrido. Estava muito longe.
—Não interpretei mal nada, Anna. Ouvi tudo.
Equivocava-se. Tinha que equivocar-se. Não era certo? Seu pai tinha mau gênio, mas ela sabia que tipo de pessoa era.
Voltou-lhe as costas bruscamente.
—Não acredito.
O pesar de seus olhos cortava mais que o cristal.
— Pergunte tu mesma. —Anna não disse nada. Não queria atender a razão — Seu pai não se deterá ante nada para conseguir a vitória, Anna. Nada. Por todos os diabos, se inclusive utilizou a sua própria filha…
Anna ficou tensa, ofendida por tal acusação.
—Já vos disse que a aliança com o Ross foi minha idéia.
—Não estou falando disso. Refiro-me a lhe usar como mensageira.
Anna ficou sem fôlego. Sabia? Céu santo, teria devotado informação sem ser consciente disso?
—Quando? —exclamou — Desde quando sabes?
—Não o descobri até umas semanas, infelizmente. —Seu rosto tinha uma expressão temível — Por todos os Santos, Anna! Sabem o perigo que correstes?
—Sim, mas nunca imaginei de onde provinha.
«De ti.» Ele era o inimigo. Ele a espiou e fez quanto pôde por…
Anna ficou olhando-o ao mesmo tempo em que todas as terríveis conseqüências iam em turba a sua mente. De repente deu um salto para trás, horrorizada. «Não, isso não, por favor.» Lhe revolveu o estômago.
—Por que insistiu em me acompanhar ao norte, Arthur?
—Para te manter a salvo.
—E para evitar uma aliança com o Ross?
—Sim, em caso de que fosse necessário — disse, fazendo frente a seu olhar sem pestanejar. A dor machucava tanto o coração de Anna que se afogava em seus próprios soluços — Mas não é o que pensa. Aquilo não formava parte de meus planos.
Era como se a fustigassem por dentro. Parecia sangrar-se, como se estivesse em carne viva.
—E acha que tenho que acreditar?
Arthur contraiu a mandíbula.
—É a verdade. O que ocorreu naquele aposento foi porque o ciúmes e o medo de te perder me deixaram meio louco. Não me orgulho do que fiz, mas juro Por Deus que não o tinha planejado.
—Ocorreu por acaso, isso quere dizer? E o que passa com o de ontem à noite? Ocorreu também por acaso? —Sua voz se quebrou pela emoção que a embargava — Como pode, Arthur? Sabias o que acabaria passando e mesmo assim me deixou acreditar que te importava, que queria te casar comigo. E não eram mais que mentiras.
Como podia ser tão idiota para oferecer-se a um homem que planejava traí-la, trair a todos eles?
—Não — disse Arthur com rudeza, obrigando-a a lhe olhar nos olhos — Não era mentira. Nada disso era mentira. Eu… — Vacilou, como se aquelas palavras não coubessem em sua boca — Eu te amo, Anna. Nada me faria mais feliz que me casar contigo.
Por um estúpido momento o coração lhe deu um tombo ao escutar essas palavras que tanto tempo tinha esperado. Umas palavras que deviam fazer que tudo fosse perfeito, mas que não conseguiram mais que afundar na desgraça daquele assunto.
Era um homem cruel. Era cruel lhe dizer aquilo que tão desesperadamente ansiava ouvir. Bem certo, não fazia mais que manipulá-la para que não o delatasse.
«Delata-o.» Oh, Deus, o que poderia fazer? Tinha a obrigação de dizer a seu pai o que acabava de descobrir. Mas se o fizesse não cabia a menor duvida do que aconteceria. Arthur morreria. E se não o fizesse, Arthur passaria ao inimigo a informação que tinha obtido. Tratava-se de uma escolha impossível, mas sabia que, apesar de tudo o que Arthur fizesse, não podia ser ela quem jogasse o laço ao seu pescoço. Um só homem não podia derrotar a um exército.
—De verdade espera que acredite que me ama?
Arthur adotou uma postura rígida, mas seguiu olhando-a nos olhos.
—Sim, espero. Não tenho nenhum direito a fazer, mas essa é a verdade. Jamais antes disse essas palavras a ninguém e nunca pensei que o faria. Mas do primeiro momento que te vi, senti algo especial. Sei que você também o sentiu, uma conexão a que não me pude resistir.
—O que sentia era luxúria — disse Anna devolvendo suas palavras. Arthur franziu os lábios. Ela era consciente de que o estava levando ao limite, mas se sentia muito doída e furiosa para que lhe importasse — Como pode esperar que acredite em seu amor quando me mentistes do primeiro dia em que nos conhecemos?
—O que queria que fizesse? Não estava em posição de dizer a verdade. Acredita que eu queria que acontecesse isto? Por Deus santo, é a última pessoa no mundo que queria me ter apaixonado. —Anna se estremeceu. Supunha que isso tinha que fazê-la sentir melhor? Embora lhe doesse que aceitasse seus sentimentos com tal dificuldade, as palavras de Arthur tinham o distintivo da verdade — Tentei me manter à margem —assinalou, dando rédea solta a sua frustração — Mas não me permitiram isso.
—Então é minha culpa, não?
Arthur suspirou e voltou a levar as mão aos cabelos.
—Não, é obvio que não. Inclusive caso tivesse me evitado, eu teria me apaixonado por você a distância. Atraiu-me desde a primeira vez que a vi. Sua calidez. Sua vitalidade. Sua doçura. É tudo que não sabia que perdia na vida, o que não acreditava possível para mim. Jamais quis ter esse tipo de intimidade com alguém até que a conheci. —Apesar de todas suas tentativas para não cair em seus enganos de novo, Anna não pôde evitar que seu coração se comovesse. Arthur a puxou pelo queixo e voltou seu rosto para olhá-la nos olhos — Sei que não posso esperar que acredite, Anna, mas sim espero que tente compreender que o fiz o melhor que pude dadas as difíceis circunstâncias. Estava condenado a lhe trair inclusive antes que nos conhecêssemos.
Os olhos de Anna examinaram seu rosto em busca de sinais de engano, mas somente encontravam sinceridade. Queria acreditar, mas como podia fazer sabendo o que pretendia? Inclusive no caso de que seus sentimentos fossem sinceros, tinha a intenção de traí-la. Ele estava em um lado e ela no outro. Queria matar a seu pai.
Anna voltou o rosto bruscamente, receando sua própria debilidade. Quando a olhava com essa expressão, somente podia pensar em lhe beijar e no quão protegida se sentira entre seus braços, fingindo que tudo sairia bem.
—Como poderia acreditar que te importo quando está aqui para nos espiar, destruir a minha família e se vingar de meu pai? Se me amas de verdade, não poderia fazer.
Os olhos de Arthur brilharam com força na escuridão, como se queria discutir com ela mas compreendesse a inutilidade do gesto.
—O que outra coisa poderia fazer?
—Poderia deixar de lado sua ânsia de vingança. —Olhou-o nos olhos, consciente de que estava a ponto de lhe pedir um impossível, mas sabendo também que essa era a única oportunidade que teria para ambos — Poderia escolher ficar comigo.
Arthur ficou petrificado. Maldita seja por lhe fazer isso! Por lhe fazer escolher. Pedia-lhe quão único não podia dar. Não podia jogar por terra toda sua honra e lealdade, nem sequer por ela. Seu rosto adotou o aspecto do granito.
—Fiz um juramento, Anna. Jurei dar minha espada ao Bruce. —E ao Guarda dos Highlanders, pensou — Ir contra isso seria ir contra minha consciência. Ir contra todo aquilo no que acredito. E apesar de que tenha razões para acreditar o contrário, sou um homem de honra.
Era o dever, a lealdade e a honra o que o tinham levado até ali.
—Mas isto não é só uma questão de honra. Não é certo? —desafiou-o — É uma questão de vingança. Quere a destruição de meu pai.
—Quero justiça — disse Arthur esticando a mandíbula.
Seus grandes olhos o olhavam com expressão luminosa e suplicante, remoendo sua consciência. Anna pôs uma mão sobre a sua, mas pareceu que com ela se agarrava a seu coração.
—É meu pai, Arthur.
Pareceu que todo seu interior se retorcia. Essa suave súplica chegava mais fundo do que gostaria. Como era capaz de lhe fazer isso? Como podia apertar as porcas para que ele se visse na necessidade de fazer quanto pudesse por satisfazê-la? Mas era impossível. Isso não podia fazer.
Durante quatorze anos sua vida se centrou em uma só coisa: desfazer uma ofensa. Tinha esperado muito tempo para encontrar-se com o Lorn cara a cara no campo de batalha. Assim como não podia negar seus sentimentos por ela, tampouco podia evitar sua promessa de justiça.
—Acredita que não sou consciente de que se trata de seu pai? Acha que não passei cada um dos dias destes dois últimos meses desejando que não fosse assim? Eu não queria que acontecesse nada disto, maldita seja.
As lágrimas brilharam nos olhos de Anna.
—Acredito que isso já deixa suficientemente claro. Seus sentimentos por mim são um obstáculo.
—Eu não disse isso. —Arthur apertou os punhos.
—Não têm nada que explicar. Acredite, entendo.
A aspereza de seu tom deixava muito claro os sentimentos de Anna. Levantou-se do banco e caminhou uns passos para o interior do pátio com o olhar perdido na escuridão.
—Parte —disse sem expressão na voz — Parta antes que mude de opinião.
Não podia acreditar que fosse o deixar partir. Por um segundo teve um brilho de esperança. Isso somente podia significar que ela ainda lhe amava, pois ao deixá-lo partir anteporia-o a sua família. E tinha que partir. Não gostava da idéia de deixá-la plantada assim, mas tinha que advertir ao rei. Aproximou-se dela, ficou a seu lado, tomou pelo cotovelo e a atraiu para si com delicadeza. Dava a impressão de ser mais jovem e frágil à luz da lua, com esse rosto pálida que parecia um ovalóide de alabastro.
—Juro-lhe que voltarei assim que possa.
Anna negou com a cabeça sem deixar de olhar ao infinito.
—Já têm feito sua escolha. Se partir agora o fará para sempre — disse, olhando-o ao fim com um rosto imperturbável — Não quero voltar a te ver jamais.
A determinação de sua voz cortava como uma espada.
—Não diz a sério. —Não podia falar sério. Era sua raiva que falava. Mas a rigidez da posição de seu queixo fez que o pânico corresse pelas veias de Arthur. Conhecia essa expressão. Atraiu-a para si com força, consciente de que tinha que fazê-la entrar em razão — Não diga algo do que poderia te arrepender.
Anna escoiceou ao sentir o contato.
—O que faz? Me soltem! —Deu-lhe um empurrão para desembaraçar-se dele.
Mas seus esforços não fizeram mais que aumentar a sensação de pânico de Arthur. Tinha que fazer o ver. Como podia negar? Acaso não sentia ela a energia que desprendiam seus corpos? O calor? Estavam destinados um para o outro.
Ficou sem palavras e sem tempo, de modo que a beijou, capturando sua boca com a dele em um desesperado e feroz abraço. Ela ficou lívida, já sem lutar, simplesmente deprimida sobre seus braços. «Não, maldita seja. Não.» A ausência de reação piorava a sensação de urgência. Beijou-a com mais força, com mais paixão, obrigando-a a abrir os lábios, procurando algo que muito temia lhe estava escapando entre os dedos. Seus lábios estavam quentes e suaves, seguiam tendo sabor de mel, mas nada era como antes. «Ela não quer que a beije.» deteve-se. «Que demônios estou fazendo?» Deixou-a ir ao mesmo tempo em que soltava uma imprecação e ficava olhando com horror. Nunca antes tinha feito algo assim. A idéia de perdê-la fazia que se voltasse louco.
—Deus, Anna! Sinto—disse com uma voz rouca e entrecortada pela aspereza de seu fôlego.
Merecia que lhe dirigisse esse olhar, como se ele fosse o barro que se aderia a seus sapatos.
—Jamais acreditei que fosse um bruto, mas dá a sensação de que está em seu lugar junto ao rei usurpador. Simplesmente tomam quanto querem.
—Anna, eu…
—Parte de uma vez — disse ela com Isso é o melhor que pode fazer. Já têm feito suficiente dano. —Olhou-o nos olhos, desafiante — Acaso pensava que poderia te perdoar isto?
Era a confirmação de seus piores temores. Fora um idiota. Permitia que as emoções turvassem sua percepção da realidade. Pensava que seria possível um futuro para eles pela simples razão de que a queria mais que a tudo no mundo. Mas nunca tivera nem a mais mínima oportunidade. Jamais lhe perdoaria aquilo que a obrigação, a honra e a lealdade lhe impunham. Fixou os olhos em Anna em busca de algum sinal de debilidade, mas ela o olhava com frieza, imutável. A ausência de lágrimas, ira ou emoção não deixava lugar a dúvidas. Tudo tinha acabado. Deus, tudo tinha acabado de verdade.
Arthur sempre soube que poderia chegar este momento, mas nunca esperou sentir-se tão impotente e desesperançado. Jamais pensou que doeria tanto. Parecia que o tivessem quebrado em mil pedaços por dentro e não houvesse nada que fazer a respeito.
—Vos amo, Anna. Sempre te amarei. Nada poderá mudar isso. Espero que algum dia compreenda que nunca quis te fazer dano.
Alongou o braço para tocar sua bochecha uma vez mais, incapaz de deter-se, mas ela se separou dele como se fosse um leproso e sua mão caiu sem força sobre o ar.
—Adeus.
Dito isto, Arthur a olhou pela uma última vez, uma imagem que teria que reter para sempre, deu meia volta e abandonou o lugar.
Jamais esqueceria o aspecto que tinha naquele momento: pequena, sozinha; de uma beleza dolorosa, com seus longos cabelos dourados caindo sobre os ombros em sedosos cachos e seus delicados traços resplandecendo sob a opalescente luz da lua. Tão frágil que poderia romper-se como o cristal. Mas determinada. Com uma determinação atroz.
Parecia ter o peito ardendo e que seu calor se intensificava a cada passo. Acreditava caminhar sobre as brasas do inferno e que o peso de suas pegadas fosse pura agonia. Não podia desprender-se da sensação de que estava mal deixá-la ali de tal modo, de que não fazia o correto nesse momento, depois já não teria oportunidade de fazer. Estava a meio caminho da estrebaria quando se voltou. Mas já era muito tarde. Ela não estava. Olhou para o alto da escada que conduzia à torre da comemoração e alcançou a ver uma mecha de cabelo dourado seguindo a esteira de sua figura como se de um pendão se tratasse antes de desaparecer depois da porta. Uma vez esta se fechou, pareceu que algo se fechava também em seu interior. Para sempre. Era uma parte dele que jamais devia ter aberto. Isso era o que conseguia por relacionar-se intimamente com as pessoas. Estava destinado à solidão. Nunca deve esquecer isso.
Tentou evitar o vazio que ardia em seu interior. Tinha que deixar de pensar nisso. Precisava centrar-se na tarefa que tinha entre as mãos. Mas o rosto de Anna seguia aparecendo ante ele. Perseguia-o. Distraía-o.
Entrou na cavalariça e se apressou a preparar seu cavalo. Apresentar-se voluntário à ronda noturna se provou duplamente providencial. Não só servia como desculpa para sair do castelo, mas sim também significava que não teria que perder tempo voltando para os barracões. Seus pertences mais importantes levava consigo: a cota de malha e as armas. As mudas de roupas e os poucos artigos pessoais que tinha podia deixá-los ali. Os planos tinham mudado. Tinha que partir para sempre, por mais que isso significasse que Lorn estivesse a par de que seu plano estava em perigo. Não ficava mais opções toda vez que Anna tinha descoberto a verdade. Não podia arriscar-se a que ela mudasse de opinião.
Não empregou mais de cinco minutos no estábulo. Não pensava mais que em sair dali quanto antes e pôr terra entre eles. Dizia a si mesmo que isso era o melhor que podia acontecer. Estava bem antes na solidão e voltaria a estar.
Entretanto, não chegou a sair do estábulo. Seus sentidos o advertiram, mas não o fizeram a tempo. De novo suas emoções o distraíram. Embora nesse caso não teria feito diferença alguma.
Abriu a porta do estábulo e se encontrou rodeado. John de Lorn e seu filho Alan flanqueados por ao menos uma vintena de guardas espadas em mão. A mandíbula de Arthur se contraiu pela dor que representava aquela punhalada nas vísceras. Não podia acreditar. Anna o tinha delatado. Talvez teria que ter esperado, mas não acreditava que seria capaz disso. Subestimou o amor que Anna tinha a seu pai e superestimou o que sentia por ele. Não havia razões para que encarasse como uma traição. Mas assim era.
Lorn arqueou uma sobrancelha de maneira indolente.
—Ia a alguma parte, Campbell?
—Sim — respondeu despreocupadamente, como se não estivesse rodeado por homens armados — vou unir me ao grupo de vigilância noturna. —Olhou em redor, sem sinal de fingir sua indignação — O que significa isto?
Lorn sorriu, embora em sua expressão não havia nenhum sinal de simpatia.
—Temo que estamos obrigados a lhe reter um momento. Há vários assuntos que temos que esclarecer.
Arthur deu um passo à frente. Ouviu o tinido do metal enquanto os guardas respondiam a sua afronta elevando as espadas e fechando o cerco a seu redor. Mas não era necessário. Estava apanhado. Talvez conseguisse abrir com golpes através de uma vintena de homens que apontavam a seu pescoço as espadas, mas as portas do castelo já estavam fechadas. Não seria capaz de atravessar sem que todo o castelo se erguesse contra ele. Não havia saída.
Olhou ao Alan, mas não obteria ajuda dele. Mostrava um olhar tão duro e inquebrável como o de seu pai, embora sem esse brilho de maldade acerada. Todos seus instintos clamavam por que lutasse, por desembainhar a espada e levar consigo a alguns homens de Lorn. Mas se obrigou a manter a calma. A não fazer nenhuma tolice. Sua missão era que vinha em primeiro. Se existia a mais remota possibilidade de que pudesse escapar para avisar ao Bruce, teria que considerá-la. Talvez pudesse sair desse embrulho por meio do diálogo. Não estava seguro de quanto havia contado Anna.
—Não pode esperar? —disse — Estão me aguardando.
—Temo que não — repôs Lorn. Fez um gesto com a mão e dois de seus homens mais fortes se adiantaram para agarrar Arthur nos braços — Levem-no às masmorras. Revistem.
«Diabos.» Ao que parecia não teria modo de sair dali por meio do diálogo. Tinha esquecido a nota, a mensagem que pensava deixar na cova essa noite para o rei. Um pequeno pedaço de papel dobrado que levava na bolsa com três palavras que selariam seu destino: «Ataque, 14, Brander».
Embora talvez seu destino tivesse ficado sentenciado dois meses atrás, quando se encontrou cara a cara com a moça que acabava de resgatar de um ataque fatal. A garota que poderia desmascará-lo.
Arthur emitiu um feroz grito de guerra que atravessou a noite e deixou que fosse seu instinto quem tomasse o mando: «Bàs roimh Gèill!». Morrer antes que render-se. Lutou como um selvagem e tombou a cinco soldados antes de cair sob o punho da espada do Alan MacDougall. À medida que a escuridão se abatia sobre ele, soube que aquilo não tinha acabado. E que estava a ponto de piorar.
Queriam-no vivo.
Capítulo 23
Supunha-se que não teria que sentir o coração partir-se. Anna queria que Arthur fosse embora. Tinha mentido. Tinha-a traído. Tinha-a usado. Queria destruir tudo que era importante para ela. Como podia pensar que existia possibilidade alguma de continuar juntos? Inclusive chegava ao ponto de tentar beneficiar-se da paixão que existia entre ambos. Como se um beijo pudesse fazê-la esquecer o que tinha feito. Odiou-o naquele momento. Odiou-o por manchar algo que era formoso e puro.
Dizia a si mesma que isso era o que ela queria, mas assim que Arthur deu meia volta e partiu, o gelo de seu coração começou a rachar-se.
Partia. Abandonava-a.
Jamais voltaria a vê-lo.
«Oh, Deus.» ficou completamente quieta, sem ousar mover-se ao estremecimento de seu interior. Sentia-se como uma fina lâmina de cristal sacudida por uma violenta tormenta de emoções. Forte na superfície e frágil na realidade. Assim que o vento soprasse com força, romperia em mil pedaços diminutos. Não devia sentir-se assim depois do que tinha feito. Não tinha por que sofrer tanto. A dor. O remorso. A desolação. A sensação de que lhe arrancavam o coração. Essa intensidade de emoções parecia pura debilidade. Onde estava seu orgulho? Era uma MacDougall e entretanto, nesse momento, somente se sentia como uma garota que observa como o homem ao que ama parte de sua vida para sempre.
Incapaz de suportar por um momento mais, temendo o que ele veria se desse a volta, pôs-se a correr. Subiu a escada tão rápido como pôde até que alcançou a segurança de sua câmara. Ali se desabou sobre a cama com cuidado de não despertar a suas irmãs, jogou a manta por cima da cabeça e se amassou sentindo-se como uma boneca de trapo. Somente então se deixou levar pela emoção e rompeu a chorar em silenciosos soluços que pareciam arrancados de sua própria alma.
Escudeiro, sentindo sua angústia, se aninhou junto a ela. Anna abraçou ao cachorrinho e fez dessa cálida bola de pelo de amor incondicional sua companhia durante daquela longa e miserável noite.
«Amo-te.»
Não podia tirara as palavras da cabeça. Soavam tão sinceras… Mas Arthur tinha mentido em todo o resto, assim por que teria que acreditar nisso? Inclusive no caso de que fosse certo, não deveria ter importância. Anna repassava o ocorrido uma e outra vez, recordando cada uma das palavras de sua explicação, sua justificação… ou como que pudesse chamar aquilo que tentava fazer. Já era suficiente que estivessem em lados contrários da guerra, mas realmente esperava que ela compreendesse sua necessidade de destruir ao clã familiar? De matar a seu pai, o homem a quem ela mais admirava no mundo? E tudo por certa forma retorcida de vingança? Justiça, tinha chamado ele.
Não queria ouvir suas explicações nem entender suas razões. E tampouco acreditou nem por um momento as mentiras que tinha dito a respeito de seu pai. Ele jamais teria matado a um homem de maneira tão desonrosa. «Faria tudo por ganhar», pensou tapando as orelhas com o travesseiro como se as plumas pudessem conter seus próprios temores. «Pergunte você mesma», tinha-a desafiado Arthur.
Não precisava perguntar. Ela sabia a verdade.
Mas Arthur parecia muito seguro a respeito do que tinha visto.
Anna saiu da cama assim que as primeiras luzes do amanhecer estenderam seu manto pelo chão. Fez suas abluções matinais e passou sigilosamente junto a suas irmãs para sair da câmara. Sabia exatamente o que faria. Demonstraria que Arthur se equivocava. Assim poderia deixar tudo aquilo atrás e deter esse miserável sofrimento de seu coração.
Ainda não tinham disposto as mesas com seus cavaletes e alguns dos homens seguiam ainda despertando em seus lugares do grande salão quando se apressou para os aposentos de seu pai. Sabia que estaria de pé, apesar de que mal tivesse passado uma hora do amanhecer. Quando se preparava para a batalha, John de Lorn virtualmente não dormia. Ouviu sua voz assim que se aproximou da entrada.
—Não me importa quanto tempo dure. Quero saber os nomes.
—Não sei por quanto mais poderá…
Alan deteve em seco suas palavras ao vê-la entrar no aposento. Com somente olhá-lo à cara, Anna soube que algo ia mal. Seu pai estava sentado à mesa. Frente a ele seu ajudante, o capitão da Guarda e seu irmão Alan. Seu pai entreabriu os olhos com ira ao vê-la, enquanto os outros desviaram o olhar, quase como se quisessem evitá-la. Anna, pensando que a irritação de seu pai se devia à interrupção, apressou-se a bater-se em retirada.
—Sinto muito. Voltarei mais tarde.
—Não —respondeu John de Lorn — Tenho que falar contigo. Já acabamos com isto. Não quero mais desculpa —disse ao Alan — Consiga o que quero. Custe o que custar.
Alan franziu o cenho, mas assentiu. Anna sentiu uma pontada no coração ao ver que saía do aposento sem lhe dirigir a palavra, nem sequer um olhar. Tomou assento no banco que havia em frente a seu pai e cruzou os braços sobre o regaço. A intensidade de seu olhar a fazia sentir incômoda em certa forma. Estava furioso e não era por causa da interrupção.
—Se tiver algo que me dizer, chega muito tarde.
A Anna lhe encolheu o coração.
—Algo… algo que lhes dizer?
Seu pai tirou um pedaço de papel de sua bolsa e o pôs sobre a mesa ante ela. Um calafrio percorreu sua nuca ao reconhecer o mapa.
—Sim —disse John de Lorn — Quando viu isto antes, por exemplo. —A vergonha tingiu as bochechas de Anna. Como o tinha averiguado? Seu pai respondeu à pergunta por ela — Sua reação. Que fosse lhe buscar imediatamente depois de ver o mapa confirmou a procedência.
Acaso seu pai os tinha vigiado durante todo o tempo? Não, talvez no pátio, mas não era possível que os tivesse divisado no jardim, pois este não alcançava a ver do salão. Embora, obviamente, tinha visto o suficiente.
—Não esperava isto de ti, Anna.
Inclinou a cabeça, profundamente afetada por tê-lo decepcionado. Não tinha desculpa. Queria dizer que não estava segura, mas sim o estava. Assim que tinha visto o mapa, tinha sabido que Arthur era um espião.
—Sinto muito, pai. Queria lhe dar uma oportunidade para que se explicasse.
—E te satisfez sua explicação? —repôs seu pai com uma voz tão afiada como um látego.
Ela negou com a cabeça. Embora sabia que tinha a obrigação de contar-lhe tudo, essas palavras seguiam sendo muito difíceis de dizer. Teve que recordar que Arthur a tinha abandonado.
—Sua lealdade está com Bruce — começou, detendo-se depois para olhar a seu pai com cautela — Disse que Bruce se ganhou o coração do povo. Que é a melhor alternativa para nos libertar da tirania inglesa de uma vez por todas. E que vamos perder e que será melhor que nos rendamos.
Seu pai ficou vermelho de cólera.
—E acreditou? Arthur Campbell diria tudo para ganhar sua simpatia. Você, pequena insensata… estava te utilizando para escapar. Jamais nos renderemos. E não vamos perder.
A segurança de suas palavras jogou Anna em muitas dúvidas e a fez duvidar de se devia mencionar o resto. Seu pai já estava mais que zangado com ela, mas tinha que acabar com tudo aquilo.
—Afirma que estava ali quando matou a seu pai e que ele viu tudo.
A leve separação do olhar de seu pai poderia significar algo, mas fez que o coração de Anna se detivesse.
—Isso é impossível — disse, descartando a idéia — Não sei o que veria, mas Colin Mor e eu estávamos longe do grupo. Não havia ninguém ali quando combatemos. Em qualquer caso, eu nunca neguei que caísse sob minha espada. Nem que a vitória que consegui para nosso clã fosse a causa da perda das terras dos Campbell no lago Awe. Que Arthur Campbell albergue desejos de vingança por isso é algo inevitável, mas não supõe desculpa alguma.
Obrigou-se a olhar nos olhos, apesar de que se odiasse a si mesmo por repetir a acusação de Arthur.
—Disse que seu pai o tinha sob a ponta de sua espada e que lhes ofereceu a rendição, que aceitou e que depois o assassinou quando deu a volta.
Nessa ocasião a separação do olhar paterno não podia ser interpretada mal. Nem tampouco a tensão de sua mandíbula, nem as rugas brancas que se marcavam ao redor de sua boca. Estava zangado. Zangado sim, mas não quão ofendido deveria. O rosto de Anna empalideceu. «Oh, Deus. É verdade.»
O horror que adivinhou na expressão de sua filha pareceu incomodar ao John de Lorn.
—Aquilo ocorreu faz muito tempo. Fiz o que devia fazer. Colin Mor era cada vez mais poderoso; invadia nossas terras. Teria que detê-lo.
Anna parecia estar na presença de um estranho e que pela primeira vez via o homem que realmente era. Seguia sendo o mesmo pai ao que amava, mas já não era esse homem incapaz para ela de fazer nada mal. Já não era um homem ao que não podia questionar. Tinha deixado de ser um deus. Não, mostrava uma humanidade temível. Parecia-lhe imperfeito e capaz de cometer enganos. Grandes enganos. Enganos execráveis.
Arthur tinha razão. Seu pai faria tudo pra ganhar. Nem sequer se deteria pelo bem de seu próprio clã.
—Tem pouco pelo que me julgar, filha. Você, que deixa que alguém que trai nosso clã parta em liberdade… —Endureceu tanto a voz que quebrou — Sabe o dano que poderia ter feito?
Seu pai tinha razão. Tinha decidido deixar livre Arthur, inclusive sabendo que poderia fazer dano a seu clã, porque não suportava a idéia de converter-se em instrumento de sua morte.
—Não queria que lhe fizessem mal. Eu… lhe tenho carinho. —Anna ficou calada de repente, surpreendida de que seu pai falasse em condicional — O dano que poderia ter feito? —perguntou.
Seu pai franzia o cenho de modo forçado e a brancura de seus lábios contrastava com a cor avermelhada de seu irado rosto.
—Tem sorte de que pudesse mitigar o desastre. Meus homens rodearam ao Campbell ontem à noite quando tentava a fuga. Levava uma mensagem que prova sua culpa —disse com os olhos ardendo de fúria — Uma mensagem que poderia ter arruinado tudo.
Anna não podia respirar do horror que bulia em seu interior. O medo atendia seu coração e o espremia.
—O que têm feito com ele?
—Isso não é de sua incumbência.
O pranto contido lhe ardia na garganta. Nos olhos. O pânico comprimia seus pulmões. Mal pôde pronunciar umas palavras: —Por favor, pai, simplesmente me diga… está vivo?
Ele não respondeu imediatamente, mas sim a observou com seu frio e escrutinador olhar.
—Por agora sim. Tenho algumas pergunta para ele.
Anna fechou os olhos e exalou o ar com uma sensação de alívio assustadora.
—O que farão com ele?
Seu pai a observou com paciência. Era óbvio que não gostava daquele interrogatório.
—Isso depende dele.
—Por favor, tenho que o ver.
Anna tinha que assegurar-se de que Arthur se encontrava bem.
Seu pai pareceu ultrajado por tal petição.
—Para que lhe deixe partir de novo? Não acredito — disse apertando a mandíbula com raiva — Não serviria de nada. Esse homem é perigoso e não se pode confiar nele.
—Arthur jamais me faria mal — disse Anna sem pensar, para imediatamente conscientizar-se de que era a verdade. Ele a amava. Sabia que no fundo era certo. Não mudava nada do passado, mas talvez sim do futuro. O coração lhe encolheu. Se é que tinha um futuro — Por favor…
Seus rogos caíam em ouvidos surdos. Os olhos escuros de seu pai a olharam com uma dureza inquebrável.
—Arthur Campbell já não é teu assunto. Já tem feito suficiente dano. Como posso estar seguro de que não tentará procurar um modo de lhe ajudar? —Os protestos de Anna morreram em sua garganta. Para falar a verdade, tampouco ela podia estar segura. O medo que atendia seu coração ao pensar que Arthur estava encarcerado fazia que se inteirasse de que não era tão fácil evadir-se do que sentia por ele — Não esperava isto de ti, Anna. —A decepção de sua voz a rasgava até o mais profundo, e essa sensação se via agravada pela segurança de que merecia. Mas estava entre duas águas, apanhada entre dois homens que amava. Seu pai a despediu com um gesto anti-social da mão — Estará pronta para partir dentro de uma hora.
Ficou sem respiração.
—Partir? Mas pra onde?
—Seu irmão Ewen partirá como vanguarda do exército com um contingente amplo de homens para assegurar nossas defesas em Innis Chonnel. Irá com ele. Uma vez que tenhamos mandado ao rei Hood ao inferno, fará uma visita a meu primo o bispo do Argyll em Lismore. Ali terá tempo de pensar no que tem feito e em onde reside sua lealdade.
Anna assentiu com lágrimas cada vez mais abundantes. Estava claro que seu pai não confiava nela e não a queria no castelo enquanto ele permanecesse fora. Sabia que poderia ter sido pior, que o castigo de seu pai poderia ter sido muito mais severo. Mas não podia suportar a idéia de abandonar Arthur sem saber o que seria dele.
—Por favor… Farei o que me peça. Mas me prometa simplesmente que não o matarão quando eu esteja fora —disse, engasgando-se com seus soluços — O amo.
—Basta! Põe a prova minha paciência, Anna. Seus ternos desejos para esse homem lhe fazem esquecer seu dever. O único que te libera de um castigo muito pior é saber que talvez eu também tenha parte de culpa por te pedir que o vigiasse. Arthur Campbell é um espião. Sabia o risco que corria quando decidiu nos trair. Não terá nada menos do que mereça.
Arthur já não sentia nada. Fazia horas que tinha ultrapassado a soleira da dor. Tinham-lhe batido, fustigado e quebrado cada um de seus dedos com o aplastapulgares15. Mas sim percebia o sabor do sangue. Esse nauseabundo sabor metálico enchia seu nariz e boca como se estivesse afogando-se nele. Sua cabeça pendurava para frente e seu cabelo, molhado e empapado em suor e sangue, ocultava seu olhar daqueles que lhe rodeavam. Em algum momento da noite chegaram a ser mais de uma dezena os homens que tentavam fazer que se rendesse. Agora que os raios de sol atravessavam as seteras da masmorra, somente ficavam três deles.
Estava preso a uma cadeira, mas não era necessário imobilizá-lo. Já não supunha nenhuma ameaça. Tinham-lhe retorcido tanto o braço direito que tinha saído do ombro. Sua mão esquerda pendurava inerte junto a seu corpo, com cada um de seus ossos quebrados um a um com uma lentidão agonizante. E pensar que tinha rido a primeira vez que tinha visto aquele artefato… Aquela pequena braçadeira de metal parecia inofensiva, certamente nada que pudesse obrigá-lo a lhes contar o que queriam. Mas logo aprendeu como algo simples podia provocar um sofrimento terrível. Mais dor do que jamais tinha imaginado. Estivera a uma volta de lhes contar tudo que queriam saber. Teria dito o que fosse para que parassem.
—Maldito seja, Campbell. Diga simplesmente o que querem saber.
Arthur olhou a Alan MacDougall através do véu emaranhado de seu cabelo empapado. O irmão de Anna permanecia junto à porta como se não pudesse esperar mais para sair dali, com o rosto lívido e contraído. Quase parecia que fosse ele a quem torturavam. O herdeiro de Lorn não tinha estômago para isso. Mas seu ajudante sim. Arthur tinha a impressão de que aquele filho de cadela sádico poderia continuar com isso durante dias e dias. Apesar de não poder falar, emitiu uma espécie de grunhido e negou com a cabeça, sem forças. Não. Ainda não. Não lhes diria nada ainda. Entretanto, a palavra «nunca» já não aparecia entre seus pensamentos.
A cabeça foi para trás, impulsionada pelo novo golpe daquele filho de cadela, que lhe sacudiu com um punho envolto em correntes que, bem, parecia uma marreta.
—Os nomes —exigiu — Quem são os homens que lutam na guarda secreta?
Arthur já não se incomodava em fingir ignorância. Não acreditavam. Anna o tinha condenado sem se dar conta disso. Graças ao acontecido no Ayr, quando ele a resgatou, e também ao último ataque nos bosques, Lorn estava seguro de conhecer menos a um dos membros da infame guarda fantasma. Não podia culpá-la por isso. E pelo que parecia, tampouco podia culpá-la por delatá-lo. Em algum momento da noite entre os golpes e o látego, Arthur percebeu de que, dadas as perguntas que lhe dirigiam, o mais provável era que estava errado. Em caso de que ela o tivesse traído, não havia lhes dito muito.
Percebeu como o punho do filho de cadela voltava para ataque, como uma mancha negra nos limites de sua consciência. Preparou-se de maneira instintiva para o golpe embora soubesse que não serviria de ajuda, já que por seu tamanho e o poder de seus socos, diria que o ajudante provinha de uma longa dinastia de ferreiros. Entretanto, alguém bateu na porta e reclamou ao ajudante de Lorn, de modo que Arthur pôde recuperar um instante. Derrubou-se sobre a cadeira e procurou introduzir um sopro de ar em seus encharcados pulmões. Tinha uma costela quebrada como mínimo, embora achasse que fossem mais.
—Eles o matarão se não contar — disse Alan.
Arthur tomou seu tempo para responder, tentando fazer provisão das forças necessárias para falar.
—Matarão-me de qualquer forma — grunhiu.
Embora Alan não afastou o olhar, sua careta de agonia disse a Arthur que seu rosto devia refletir a dor que sentia.
—Sim, mas será muitíssimo menos doloroso.
E mais rápido.
Contudo, Arthur tinha fracassado já muitas vezes e estava decidido a salvar o que pudesse daquela maldita missão. Se fosse capaz de confrontar o momento final sem revelar os nomes de seus companheiros de irmandade, revestiria sua morte com certa aparência de honra.
Mesmo assim, dada a magnitude catastrófica de seus fracassos, não significaria mais que uma vitória vazia. Tinha perdido tudo. Anna. A oportunidade de destruir ao Lorn e render justiça a seu pai. E a oportunidade de avisar ao rei da ameaça. Bruce e seus homens iriam direto para a emboscada e ele não teria meios para lhes advertir.
Tinha falhado igual falhou a seu pai.
Que lhe batessem até convertê-lo em uma massa sanguinolenta, esfolassem-no até deixá-lo a borda da morte e lhe rompessem os dedos um a um servia para que seus pensamentos não escapassem das quatro paredes da prisão. Mas nos pequenos descansos temia as outras conseqüências que sua captura pudesse conduzir. Lorn amava a sua filha e não lhe faria mal; mesmo assim tinha que perguntar.
—Anna?
Alan o olhou com expressão grave.
—Não está mais aqui — Arthur sentiu o mundo desabar sobre ele. Ao ver a horrorizada expressão de seu rosto, Alan se apressou acrescentar — Está a salvo. Meu pai pensou que era melhor tirá-la do castelo até que…
Alan deteve suas palavras. «Até que esteja morto», disse-se.
O ar voltou a encher seus pulmões. Somente a tinham enviado a outro lugar. Mas então o recordou.
—Não… é seguro — conseguiu dizer. Em vésperas da batalha, Bruce teria linhas de ataque rodeando-os e estreitando o cerco. A severa expressão que se desenhou no rosto do Alan lhe dizia que não se mostrava em desacordo, mas, igual a Arthur, via-se impotente para detê-lo — Meus irmãos? —perguntou Arthur.
Pode ser que Dugald e Gillispie fossem seus inimigos no campo de batalha, mas não queria que eles tivessem que sofrer suas preferências.
—Meu pai não tem razão alguma para acreditar que estejam implicados. Fizeram-lhes um breve interrogatório e pareciam tão surpresos como o resto de nós. —deteve-se, com o olhar confuso — por que salvou minha vida? Não tinha por que fazer.
Arthur sacudiu o cabelo do rosto para lhe olhar nos olhos.
—Sim, tinha que fazer.
Alan assentiu, compreendendo tudo.
—Ama-a de verdade.
Não disse nada. O que teria podido dizer? Nada daquilo importava.
A porta se abriu e o ajudante de Lorn voltou a aparecer na saleta com uma corda na mão. A Arthur lhe acelerou o pulso como reação imediata ao perigo.
—Hora de partir —disse — Os homens estão preparados para partir.
Arthur se preparou para o pior, consciente de que tinha chegado seu final. Tinha ganho. Teriam que o matar. Uma pequena vitória nesse amargo mar de fracassos.
—Então terá que enforcá-lo? —disse Alan.
O ajudante sorriu, brindando Arthur com o primeiro sinal de emoção que percebia em seu feio e curtido rosto.
—Ainda não. A corda é para o fosso. —O alívio que embargou Arthur indicou que não estava tão preparado para morrer como acreditava. Depois do que acabava de passar, o úmido buraco de uma fossa de castigo lhe pareceria o paraíso — Talvez os ratos lhe afrouxem a língua — disse o ajudante com uma gargalhada.
Ou talvez um inferno em vida.
O ataque de terror que atravessou seu corpo serviu para lhe dar um jogo de forças primitivo. Lutou contra o metal de seus grilhões como um possuído. Sua pele arroxeada e em tiras sucumbia diante da sensação de ter ratos percorrendo-a.
Tinha que escapar dali.
Mas não podia. Encadeado e ferido, não era rival para os guardas que o arrastavam dos calabouços até a sala contígua. Ao final nem sequer se preocuparam com a corda, mas sim o jogaram dentro.
Escuridão.
Chiados.
Queda. Impacto.
Um duro e arrepiante golpe.
E depois, felizmente, escuridão. Só escuridão.
Capítulo 24
—Ewen, temo que preciso de um momento de privacidade —disse Anna, fingindo um rubor embaraçoso.
—Já? —Seu irmão a olhou como se ela tivesse cinco anos. Estavam no coração da floresta, perto de um túmulo funerário, a uns três quilômetros do castelo — Por que não fez antes de sair?
Anna o fulminou com o olhar para lhe comunicar que não fazia nenhuma graça que lhe falasse como se fosse sua mãe.
—Porque então não precisava fazer.
Ewen pôs cara feia.
—Pararemos quando chegarmos ao Oban. Está a menos de dois quilômetros.
—Não posso esperar tanto —repôs Anna negando com a cabeça — Por favor… — implorou com voz doída, removendo-se um pouco nos arreios para dar ênfase a sua urgência.
Seu irmão murmurou uma maldição e depois se voltou para dar o alto à vintena de homens que os escoltavam através dos perto de cinqüenta quilômetros que o separavam do Innis Chonnel, uma viagem que era muito mais rápido de navio mas que seu pai, depois de navegar do castelo com sua frota, tinha considerado muito perigosa.
—Te apresse — disse com impaciência — Um de meus homens te acompanha…
—Isso não será necessário — interrompeu Anna bruscamente. «Arruinaria tudo» — Eu… —continuou sem ter que fingir o abafado— Temo que esta manhã comi algo que me tem revolto estômago. Pode ser que tarde um pouco.
A seu irmão pareceu lhe envergonhar que compartilhasse detalhes muito pessoais de um assunto que jamais devia mencionar-se. Anna mesma estava horrorizada pela natureza e o alcance de seu embuste, mas necessitava todo o tempo que fosse possível para escapar. Tinha que voltar para castelo. Não havia explicação para isso, mas do mesmo momento em que tinha saído dos aposentos de sua mãe essa manhã, não tinha conseguira deixar de lado a uma insuportável premonição. Talvez estivesse motivada pelas palavras de seu pai, mas ela sabia que algo sairia mal, terrivelmente mal. E essa sensação não tinha feito mais que piorar à medida que o castelo se desvanecia atrás deles sob a luz do sol. Não sabia o que poderia fazer; simplesmente, mas tinha que fazer algo. Pode ser que não tivesse nenhuma possibilidade de estar juntos, mas tampouco desejava sua morte, e dado que seu pai tinha partido do castelo atrás deles, aquela era sua oportunidade.
Em conta da humilhação que supunha que vinte homens observassem como se afastava para fazer suas necessidades, Anna fez provisão de toda a dignidade com que contava, aceitou a ajuda que lhe oferecia o escudeiro de seu irmão para descer do cavalo, deu-lhe as rédeas e entrou em atitude régia para a densa folhagem de árvores e samambaias. Assim que esteve fora do olhar se arregaçou as saias e se pôs a correr. De ali não demoraria mais de dez minutos em chegar até o castelo. O que demoraria era convencer para que a deixassem entrar nos calabouços onde albergavam aos prisioneiros. Mas esperava conseguir antes que seu irmão Ewen se desse conta de que tinha desaparecido. Não demoraria muito em figurar-se aonde teria ido. E ao contrário dela, ele iria a cavalo.
Correu através das árvores em paralelo à estrada para que não a vissem, procurando fazer o mínimo ruído possível. Mas as folhas secas e os ramos caídos faziam com que o silêncio fosse impossível. Ouviu um ruído atrás dela e quis gritar de raiva. Como tinham descoberto tão logo sua fuga? Escondeu-se depois de um penhasco em uma tentativa em ocultar-se, mas se encontrou com que alguém pegava seu pulso por trás.
—Me solte — disse, e tentou libertar-se.
Como esperava topar-se com seu irmão ou com algum de seus homens, ao dar meia volta e ver um guerreiro de olhar feroz com elmo e nasal ficou lívida. Deixou escapar um grito de alarme, amortecido pela mão do homem.
—Silêncio, moça! Não quero te fazer dano.
Seu temível rosto não inspirava muito confiança. Tinha a compleição de uma montanha e uns traços toscos e rústicos que se adequavam perfeitamente a seu tamanho. Anna se obrigou a ficar quieta, fazendo ver que acreditava o que lhe dizia, mas depois, assim que ele se relaxou, golpeou-lhe tão forte como pôde com o salto da bota e lhe fincou o cotovelo no mais profundo de seu peitilho de couro, estremecendo-se ao golpear as partes de metal.
O homem deixou escapar uma exclamação de surpresa, mas não afrouxou seu abraço o suficiente para que Anna pudesse libertar-se. Voltou a olhar com frustração e ficou imóvel, dessa vez de verdade. Havia algo familiar nele. Não, nele não. Em seu traje. Anna ficou sem respiração. O elmo escurecido, o cotun de couro negro tachonado com metal, o estranho corte da manta… Se tratava da mesma indumentária característica que levavam seu tio e os guerreiros da floresta do Ayr. Aquele homem formava parte da Guarda secreta de Bruce. Um fato que Anna viu confirmado só um momento depois.
—Duvido que se fosse minha sobrinha acreditaria, Santo.
Anna ficou atônita de surpresa ao ver que Lachlan MacRuairi saía de entre as árvores com outro guerreiro.
—Santo, Templário — disse, assinalando em sua direção — Permitam que vos presente a lady Anna MacDougall. —Fez um gesto com a mão ao homem que a agarrava — Pode soltá-la. Não gritará, a menos que queira ver mortos seu irmão e ao resto de seus homens.
Anna se esfregou a boca mal esteve livre, tentando recuperar as sensações. Olhou a seu redor.
—Só são três.
Seu comentário pareceu divertir sinceramente aos homens.
—Dois a mais dos que precisamos — disse o terceiro deles.
Era só um pouco mais baixo que os outros dois. Anna começava a pensar que ser um gigante recoberto de músculos era condição indispensável para ser membro do exército secreto de Bruce. Sob a sombra de seu elmo com nasal, o homem fazia ornamento de um sorriso tão afável como simpático. Templário, tinha o chamado seu tio. Um nome do mais estranho. Era muito jovem para ter lutado contra os infiéis. Fazia trinta e cinco anos da última cruzada. E ao homem que a agarrava MacRuairi o tinha chamado Santo. Anna percebeu de que tinham que ser apelidos, nomes de guerra.
«Guardião!» Assim tinha chamado o guerreiro arrumado a Arthur na floresta. Seria esse seu nome de guerra?
—O que fazes aqui, tio?
Parecia estranho chamar «Tio» a alguém que não era mais que dez anos mais velho que ela. Não parecia muito maior que Arthur, embora devesse ter trinta e três ou trinta e quatro anos.
—Talvez devessea lhes perguntar eu o mesmo. Por que fugistes de seu irmão e de seus homens?
Não lhe surpreendia que MacRuari não respondesse a sua pergunta. Ou estava reconhecendo o terreno ou vigiando o castelo. Como estavam perto da costa, Anna supôs que teria chegado de navio. Lachlan MacRuairi era um pirata dos pés à cabeça.
—Assim oferecem cobertura ao ataque de Bruce contra meu pai além mar — disse ela, tentando adivinhar seu propósito.
Seu tio encolheu os ombros evasivamente.
—Agora me diga, lady Anna, por que vos encontro correndo através da floresta?
—Preciso retornar ao castelo.
—Por que?
Mordeu o lábio enquanto pensava no que devia lhes contar. Mas sabia que não tinha muito tempo. Já a tinham entretido muito. Custaria muito pedir a Deus ajuda retornar ao castelo antes que seu irmão Ewen a alcançasse. Talvez quisessem levá-la?
—Têm cavalos perto? —perguntou.
MacRuairi franziu o cenho.
—Sim.
Anna respirou aliviada.
—Bem. Pode ser que precise sua ajuda para retornar ao castelo. Preciso me assegurar de que Arthur está bem. —Nenhum deles reagiu, e Anna supôs que assim devia ser. Não sabiam que ela estava a par da verdade — Acredito que o chama de Guardião.
MacRuari amaldiçoou.
—Ele lhe disse isso?
Anna negou com a cabeça.
—É uma longa história. Descobri a verdade por mim mesma. Infelizmente, não fui a única. Meu pai também sabe.
MacRuari voltou a amaldiçoar, dessa vez fazendo uso de um impropério que inclusive o próprio pai de Anna rara vez usava.
—Então… está morto.
—Não — repôs ela, desconcertada por sua veemência — Encarcerado. Meu pai o está interrogando.
MacRuairi cuspiu e um olhar de puro ódio atravessou seus escuros traços.
—Em tal caso desejará estar morto. —A que se referia? Perguntou-se Anna. Seu tio, vendo a confusão em seus olhos, o explicou—: Estive do outro lado dos interrogatórios de seu pai.
Tem uns métodos bastante persuasivos e imaginativos na hora de extrair informação. Se Guardião não estiver morto já, logo o estará.
O estômago lhe decompôs para ouvir suas palavras.
—Meu pai jamais…
Não foi a expressão sombria do rosto do MacRuairi o que a deteve, a não ser a lembrança da conversa parcial que tinha ouvido antes de entrar na câmara de seu pai. «Consiga o que quero. Custe o que custar.»
«Oh, Deus.» Anna se sentiu desfalecer. Seu pai o estava torturando. Sabia que esse tipo de coisas ocorria, claro, mas aquilo supunha uma parte feia da guerra em que não queria pensar. E tampouco gostava de pensar que seu pai pudesse estar comprometido em tamanha crueldade.
—Temos que o ajudar — quase gritou, com lágrimas nos olhos.
O coração lhe deu um tombo em ouvir um grito a pouca distância deles.
—Anna!
—Estão-me chamando. Temos que partir já.
MacRuairi negou com a cabeça.
—Não há nenhuma necessidade de que venhas. Nos encarregaremos de tudo.
—Mas…
MacRuairi cortou seus protestos em seco.
—Se vierem conosco, seguirão-nos. Custará-nos menos trabalho lhe ajudar se não suspeitarem nada. Voltem com seu irmão e continuem a viagem.
—Mas pode ser que necessitem minha ajuda. —Anna desejava ver Arthur por si mesma — Como chegarão ao castelo? Como o encontrarão?
O rosto do MacRuairi adotou uma expressão severa.
—Sei onde está. —Pelo modo em que o disse, Anna soube que ele mesmo estivera ali; sentiu um calafrio. Mas o que lhe gelou o sangue foi a angústia que viu refletida em seus olhos. Deus, o que teria feito seu pai? E o que estaria fazendo Arthur? — Já têm feito suficiente —disse — Se Guardião está vivo, ele mesmo lhe agradecerá.
«Se estiver vivo.» Anna reprimiu suas lágrimas e assentiu, consciente de que tinham razão. O melhor modo de ajudar Arthur era que fossem sozinhos para buscá-lo. Mas isso não fazia mais fácil vê-los desaparecer entre as árvores. Queria ir com eles. «Está vivo», dizia a si mesma. Tinha que estar. Se não fosse assim saberia, porque uma parte dela também teria morrido.
Assim que estiveram fora de seu olhar, Anna começou a correr na direção oposta a que tinha tomado para chegar ali. Ao chegar a um pequeno córrego respondeu às chamadas de seu irmão. Teria que dar algumas explicações, mas, tendo em conta a natureza do assunto, não acreditava que Ewen se visse inclinado a lhe formular muitas perguntas. Tudo que Anna podia fazer era rezar para que se produzisse um milagre. Pois isso era o que necessitariam para resgatar Arthur do virtualmente impenetrável castelo de Dunstaffnage antes que fosse muito tarde.
Arthur os deixava aproximar-se. Afinava seus sentidos para captar qualquer sinal de correria ou chiado e permitia que os ratos se aproximassem o suficiente para os agarrar. Assim podia lhes romper o pescoço com uma mão contra sua própria perna, algo que, dado que somente tinha uma mão operativa, parecia de tudo fortuito. O mal era que essa mão estava unida a um braço deslocado, com o que cada movimento lhe produzia uma dor atroz. Tentou recolocar o ombro por si mesmo, mas não tinha a força nem o apoio necessários.
Acabar devorado por ratos famintos não era exatamente o modo em que esperava morrer, mas não sabia por quanto tempo poderia os manter a raia. Cada vez que desmaiava, suas persistentes dentadas despertavam. Tinha perdido muito sangue e a cada hora que passava estava mais débil e pior respondiam seus sentidos. Logo não seria capaz de voltar a despertar.
Teria matado já umas cinqüentas daquelas asquerosas criaturas segundo seus cálculos, mas havia centenas delas ali abaixo. Estremeceu-se. Quando iluminaram o vão com a tocha para jogá-lo lá dentro, o fundo do fosso se via repleto delas. Uma vez fechado, aquele buraco tinha ficado na mais absoluta escuridão. Dependia de seus sentidos, e estes o abandonavam lentamente. Seus olhos começaram a fechar-se. Estava tão cansado que somente queria relaxar-se durante um…
«Ah!», gritou de dor, despertando à realidade graças a uns dentes afiados como facas que se cravavam em seu tornozelo. Esperneou e o rato voou pelos ares.
Supunha que teria que agradecer ao Dugald o que fosse capaz de agüentar tanto tempo ali. Aquelas horas passadas na escura despensa lhe tinham servido de lição. Sabia que tinha que estar alerta e como antecipar os movimentos dos ratos. Mas as reações de Arthur eram cada vez mais lentas. Cada vez escapava um número maior delas e um número maior lhe mordia a mão. Sabia que não poderia durar muito assim. Não viriam a por ele até que não acabasse a batalha, e como tinha perdido a conta do tempo fazia já horas, não sabia quando seria isso.
«Maldição.» Não era só o horror do movimento dos ratos o que estava deixando-o louco, a não ser saber que seus amigos estavam ali fosse dirigindo-se para uma armadilha mortal e que não podia fazer nada para ajudar. Tinha fracassado. «Fracassado.» Fechou os olhos em uma tentativa de que a amarga verdade se desvanecesse. A languidez se abatia sobre ele. Cada vez lhe parecia mais difícil resistir e não deixar-se levar para essa bendita escuridão da inconsciência. Estava tão cansado…
Seus olhos não voltaram a abrir-se. Nada poderia despertá-lo. Nem os ratos, nem a explosão de mil demônios que faria que os guardas corressem até as portas do castelo minutos depois.
Alguém o sacudia.
—Guardião! Guardião! Maldita seja, desperte! Não temos muito tempo.
Quem era Guardião?
Abriu os olhos só para fechá-los imediatamente ao sentir que a luz da tocha lhe atravessava o crânio como se fosse uma adaga.
Guardião era ele.
Mas como…?
Voltou a abrir os olhos. Essa vez lentamente, permitindo que se adaptassem à luz.
MacRuairi.
Advertiu o alívio que se refletia no rosto do outro.
—Não estava seguro de que seguissem com vida.
A mente de Arthur estava embotada e pensada com lentidão.
—Eu tampouco estava.
MacRuairi se estremeceu, e Arthur percebeu que não tinha bom aspecto, inclusive diante da tênue luz da tocha. Tinha o rosto macilento e seus olhos foram parar de um lado a outro com inquietação. Quase se diria que tinha um ataque de pânico.
—Saiamos daqui quanto antes. Podes caminhar?
Arthur assentiu e tentou incorporar-se por si só. Tomava cuidado de não olhar para baixo. A tocha mantinha aos ratos longe no momento.
—Acredito que sim.
—Melhor. Não tinha muita vontade de tentar te tirar daqui.
MacRuairi lhe estendeu a mão, mas Arthur a rechaçou e as arrumou para ficar em pé por seus próprios meios.
—Está sozinho? —perguntou.
MacRuairi o olhou de cima abaixo, e em seguida fez uma idéia de qual era seu estado. Franziu o cenho ao conscientizar-se por que rechaçava sua ajuda.
—Não. Santo e Templário estão comigo. Falcão queria vir, mas alguém tinha que ficar com a frota. Não ouviu a explosão?
Arthur negou com a cabeça.
—É assim como conseguistes entrar?
MacRuairi lhe ajudou a assegurar a corda ao redor da cintura e entre as pernas. Umas pernas que, embora tremiam como se fossem as de um potro recém-nascido, conseguiram lhe manter em pé.
—Não, mas não está mal como manobra de distração.
MacRuairi se agarrou a uma segunda corda e subiu rapidamente. Depois içou o corpo de Arthur com a outra, o qual não parecia fácil, já que tinha um peso morto ao outro extremo. Mas MacRuairi, além de ser tão daninho como uma serpente, era além disso tão forte como um maldito boi.
A sensação de alívio que assaltou Arthur ao estar fora daquele buraco infernal era virtualmente assustadora. Tinha vontade de chorar como um menino. MacRuairi se desprendeu da manta que levava e a deu. Arthur tinha esquecido que estava nu. Aceitou-a com gratidão, ajustando-a ao redor da cintura e dos ombros o melhor que podia com sua mão maltratada.
—O cheiro de merda de rato acabará desaparecendo.
Arthur surpreendeu-se ao ver um traço de compaixão no olhar do outro. De repente percebeu a razão pela que MacRuairi parecia estar tão perto do ataque de pânico ali abaixo. Conhecia bem. Certamente, devia ter passado por algo similar.
—E o resto? —perguntou Arthur.
MacRuairi voltou o rosto violentamente, como se lhe incomodasse reconhecer essa greta em sua couraça de gelo.
—O resto demora mais a desaparecer.
«Ou não desaparece nunca.» Arthur ouviu essas palavras não pronunciadas.
—Como me encontrastes?
—A moça nos disse que o tinham feito prisioneiro. O resto… imaginei.
«A moça…»
—Anna? —perguntou Arthur com uma voz aguda por sua incredulidade.
—Sim. Tivemos sorte de vê-la.
MacRuairi lhe explicou que estavam reconhecendo o terreno e comprovando que não houvesse suas mensagens no túmulo funerário quando ouviram aproximar-se de um grupo de cavaleiros. Ao reconhecer a Anna a seguiram e notaram como tentava lhes dar escapar de seu irmão e seus homens.
Arthur estava surpreso.
—Tentou escapar?
—Ao que parecia, queria assegurar-se de que estavam bem.
Arthur murmurou uma maldição. Graças a Deus, não fora ela quem o encontrou. Não queria que se inteirasse jamais do que lhe tinha feito seu pai. Era um banho de realidade muito forte. Melhor que pudesse acolher-se a alguma ilusão. Mas saber que importava o suficiente para ir a seu encontro significava muito para ele. Mais que muito. Devia-lhe a vida. E também lhe dava esperanças.
—Oh, não! —murmurou MacRuairi com desgosto — Têm exatamente o mesmo olhar de parvo do MacSorley. Não temos tempo para isto. Contarei o resto mais tarde.
MacRuairi lhe rodeou a cintura com um braço, com cuidado de evitar seu ombro machucado, e lhe ajudou a caminhar até a porta. Chamou duas vezes sem deixar espaço entre um e outro golpeio, e depois fez uma pausa e repetiu a chamada. A porta se abriu.
—Por todos os demônios, Víbora. Estava a ponto de sair para lhes buscar. —Magnus MacKay, o Santo, jogou uma olhar a Arthur e estremeceu — Está bem, Guardião?
Arthur procurou sorrir, mas fraquejou diante da intensidade da dor.
—Não estou em meu melhor momento, mas me alegro muito de os ver. Como puderam…?
Uma explosão estrondosa clamou atravessando a brisa da noite e deixou sua pergunta no ar. «A brisa da noite.» Deus santo: o ataque!
—Que horas são?
—Pouco depois da meia-noite — disse MacKay.
—Tenho informação para o rei.
—Mais tarde —disse MacRuairi — Não temos tempo. Essa era nossa manobra de distração. Se queremos sair daqui teremos que nos apressar.
MacKay e MacRuairi flanquearam Arthur e o levaram do hall ao interior do calabouço. Um rápido olhar ao chão lhe informou do destino que tinham seguido os guardas. Infelizmente nenhum dos corpos pertencia a seu torturante. O ajudante tinha partido com o Lorn. Uma razão mais pela que desejava com todas suas forças que chegassem ali a tempo. Outra conta que devia saldar.
Saíram à torre que albergava o calabouço dos refugiados na escuridão. Embora o pátio estivesse deserto, ouvia-se a comoção que chegava das portas do castelo. Entretanto, em lugar de dirigir-se para ali, começaram a subir pelo adarve, com o que Arthur soube qual era o plano do MacRuairi. Tinham assegurado três cordas à mureta do baluarte que ficava em frente às portas na parte mais afastada, olhando ao lago. Em geral havia um guarda vigiando o perímetro, mas a explosão tinha feito que se desviasse para a porta.
Arthur olhou para baixo na escuridão e fez uma careta de desgosto.
—Antes teremos que lhe arrumar o ombro — disse MacRuairi. Deu a volta, agarrou-o pela base do ombro e lhe ofereceu sua adaga — Preparado?
Arthur pôs o punho de madeira entre os dentes e assentiu. A dor foi extrema, mas rápido. Depois de um momento, já era capaz de girar o braço livremente sobre seu ombro.
—Fez isto antes? —perguntou Arthur.
—Não —disse MacRuairi com um estranho sorriso no rosto — Mas o vi fazer. Suponho que têm sorte de que aprenda rápido.
Uma vez que teve o braço em seu lugar, Arthur pôde deslizar-se corda abaixo com a ajuda dos outros. Quando estiveram todos em terra, MacRuairi os conduziu para uma parte escura do muro exterior. Ao olhar ao chão, Arthur percebeu de que faltavam algumas das pedras e viu que havia um buraco debaixo elas. Entraram virtualmente arrastados.
—Esta é a parte mais antiga do muro —explicou MacRuairi — As rochas quase se pode esmiuçar.
Esse comentário indicou a Arthur que certamente não era a primeira vez que avançava por esse buraco.
Do outro lado os esperava Gordon.
—Por que demorastes…? —disse detendo-se o ver o estado de Arthur — Diabos, Guardião, parecem um asco.
—Isso dizem — respondeu Arthur secamente.
Tomaram seu tempo em reparar o muro, no caso de algum dia voltarem a necessitá-lo, e pouco depois já corriam seguindo a costa. A pouco menos de um quilômetro encontraram a pequena embarcação que MacSorley tinha escondido na cova.
—Têm que me levar ante o rei. O quanto antes possível —disse Arthur. Sobre o horizonte oriental se viam já os primeiros raios do amanhecer suavizando o céu noturno. Teriam que ir a cavalo, já que a rota marinha para o Brander estaria cercada pela frota de Lorn — Espero que cheguemos a tempo.
—O que é que acontece? —disse MacKay advertindo a urgência do caso — O que averiguastes?
Enquanto navegavam para o oeste e penetravam entre a frota de navios, lá onde o lago Etive se encontrava com o mar aberto, no fiorde de Lorn, Arthur explicou com presteza o plano traiçoeiro do pai de Anna, tanto os detalhes da emboscada como sua decisão de atacar antes do fim da trégua.
Gordon soltou uma imprecação.
—Esse filho de puta traiçoeiro…
Os sentimentos do MacKay eram idênticos, mas os expressou em termos muito mais precisos, para depois acrescentar: —O rei será surpreendido.
—Sim —disse Arthur — Lorn escolheu o lugar muito bem.
Arthur lhes falou do estreito caminho e os escarpados de Ben Cruachan.
—Conheço o lugar —disse MacRuairi — Aos exploradores custará muito encontrá-los.
—E por isso temos que os advertir.
MacRuairi negou com a cabeça de modo sombrio.
—Sairão na primeira hora do amanhecer. Inclusive no caso de que chegássemos antes que alcancem a parte mais estreita do caminho, não seria fácil que um contingente de três mil homens dê meia volta. Toda essa zona é perigosa.
—Não é necessário que dêem meia volta —disse Arthur — Tenho um plano. —Seus três companheiros da Guarda mudaram um olhar — O que? —perguntou.
Foi Gordon quem expressou o que todos estavam pensando.
—Não está em condições de lutar. Nós faremos chegar a mensagem ao rei.
Arthur chiou os dentes.
—Eu vou.
Nada evitaria que lutasse. Se tinha alguma possibilidade no mundo de enfrentar-se ao Lorn no campo de batalha, faria uso dela.
—Só conseguirá dar lentidão a nossa marcha —disse MacRuairi sem rodeios — Não têm forças nem para sentar numa mula, como ides cavalgar em nosso passo? E como diabos acha que poderá agarrar as rédeas com essa mão?
Arthur lhe dirigiu um olhar carregado de veneno.
—Deixem que eu seja quem me preocupe disso.
MacRuairi ficou olhando-o nos olhos e depois de uns segundos assentiu.
—Será melhor que encontremos algo com o que lutar.
Chegaram a tempo e Arthur não caiu do cavalo, embora para sua vergonha esteve muito perto de fazer. Como os homens do MacDougall já estavam posicionados tiveram que rodeá-los pelo sul. Cruzaram com o rei a pouco mais de um quilômetro do lugar. Este não era dado a mostrar seu aborrecimento, mas Quando Arthur lhe informou dos planos de Lorn o fez. Perjurou e chamou Lorn por todos os nomes vis que cabiam sob o sol.
—Pelos pregos de Cristo, como é possível que não soubéssemos? —perguntou sem dirigir-se a ninguém em particular, apesar de que todos os guerreiros sentiram sua parte de culpa pelo que teria significado um desastre. E também o rei, pois sabia melhor que ninguém que não tinha que confiar no código de cavalaria.
—Escondam-se entre as rochas de uma ladeira escarpada —disse Arthur — Não é fácil vê-los se não está procurando.
Pelo olhar que MacLeod dedicava aos rastreadores, Arthur temia, por mais que pudesse compreendê-lo, que pagariam muito caro.
—Dizia que tinham um plano? —perguntou o rei.
—Sim. —Arthur se ajoelhou e desenhou um mapa no chão com um pau — Podemos vencer ao Lorn em seu próprio terreno. Tem a várias centenas de homens nesta posição — disse, marcando um ponto a meio caminho da ladeira — O resto do exército atacará na boca do estreito quando partirem em retirada e os agarrarão entre duas frentes: acima e abaixo. —Arthur assinalou um lugar um pouco mais acima de onde estavam os homens de Lorn — Se enviarem um contingente por cima, seus homens se verão apanhados. Quando a emboscada não der resultados, Lorn se desesperará.
Bruce ficou circunspeto.
—Está seguro de que podemos conseguir que nossos homens cheguem ali em cima? Como descreve, é um terreno escarpado e traiçoeiro. Se nos descobrirem antes de chegar à posição, não servirá de nada.
—Meus highlanders podem fazer —disse Neil Campbell — Conhecem estas terras.
—Está seguro? —perguntou Bruce.
—Sim —disse Neil — Lutam como leões, mas se movem como gatos.
—Eu os levarei —disse Arthur — Conheço bem o terreno.
Neil seguia sendo um dos guerreiros mais formidáveis do reino, mas tinha cinqüenta anos e não estava tão em forma como antes. Bruce pousou o olhar sobre ele, e Arthur se deu conta de sua incerteza. Apesar de que limpara o sangue e a sujeira antes de por a indumentária de guerreiro que lhe tinham emprestado, de que enfaixou a mão e o pulso, de que tivesse comido e bebido suficiente uisgebeatha para devolver a cor a seu rosto, sabia que ainda parecia que uma besta raivosa do inferno o tivesse tragado, tivesse o amassado com seus dentes e o tivesse cuspido depois. Antes que o rei pudesse negar-se, acrescentou: —Posso fazer, senhor. Não me encontro tão mal como parece delatar meu aspecto.
Era uma mentira, mas não muito grande. Saber que estava perto da hora da verdade com o Lorn lhe dava novas forças.
—Ganhaste esse direito, sir Arthur —disse o rei — Sem sua informação, isto poderia ter sido um desastre.
Arthur sabia que a lembrança de Dal Righ fazia dois anos, quando se viu empurrado pelo Lorn a fugir para salvar a vida, seguia muito fresco na memória do rei. Bruce chamou a seu lado a um de seus cavalheiros mais jovens e de um dos mais dignos de confiança que tinha: sir James Douglas. O único que o fazia sombra, o sobrinho do rei e outrora renegado, sir Thomas Randolph, estava com o MacSorley no oeste, preparando o ataque pelo mar em caso de que fosse necessário.
—Douglas, quero que vá com ele —disse o rei. Ato seguido fez gestos a outro dos guerreiros. Gregor MacGregor, o companheiro original de Arthur nos Guardiões dos Highlands, avançou entre outros — Estarão à frente dos arqueiros —disse. E depois se dirigiu a Arthur—: Tome tantos homens como necessita.
—Será melhor que ponham algalguns MacGregor no lote, Guardião — disse Flecha assim que o rei se voltou para se consultar com o Neil e MacLeod — Não podemos permitir que os Campbell levem toda a glória.
Arthur conseguiu esboçar um sorriso. Deus, era fantástico estar de volta. Era fantástico poder brincar a respeito das velhas rixas de sangue entre os MacGregor e os Campbell que em outro momento tinham feito deles inimigos acérrimos.
—Assim são os MacGregor, sempre dispostos a tirar benefício do duro trabalho dos Campbell.
—Necessito algo com o que impressionar às moças —disse MacGregor.
Campbell soltou uma gargalhada. MacGregor não necessitava nada para impressionar às moças. Isso já fazia seu rosto por ele, e não poucas vezes se colocaram com ele por causa disso.
—Se necessitais ajuda para melhorar seu rosto bonito, posso te mandar ao tipo que me fez isto —disse, assinalando seu próprio rosto.
MacGregor fez uma careta de dor.
—O tipo se empregou a fundo. Isso tenho que reconhecer.
—Assegurarei-me de que chegue seu castigo quando o agarrar — disse Arthur secamente.
Ambos sabiam que aquela não seria uma conversa muito longa.
Neil tinha acabado de falar com o rei, e quando viu que Arthur se dispunha a preparar aos homens, levou-o à parte.
—Está seguro de que te encontra bem, irmão? Qualquer um entenderia que não tenha vontade de seguir. Já tem feito suficiente.
«Eu entenderia», era o que queria dizer. Arthur percebia isso no olhar de seu irmão Neil. Mas ambos sabiam que esse não seria o final.
—Estarei bem —lhe assegurou— quando tudo isto tiver acabado.
Capítulo 25
O plano de Arthur funcionou. Junto a Douglas, MacGregor e uma pequena leva dos homens de seu irmão, dirigiu o grupo de guerreiros para um lugar elevado nas montanhas do Ben Cruachan, por cima de onde estavam escondidos os homens do clã de Lorn. Os guerreiros do MacDougall desdobraram uma chuva de flechas e penhascos sobre os «despreparados» soldados assim que o exército de Bruce passou pelo desfiladeiro que havia debaixo deles. Mas o ataque «surpresa» dos MacDougall recebeu outro ataque surpresa como resposta. Os guerreiros de MacDougall ergueram o olhar, horrorizados, e descobriram que Arthur e seus homens deixavam cair outra chuva de flechas de sua própria colheita e saltavam sobre eles como se fossem uma aparição. Ao perder o elemento surpresa e a posição estratégica nas alturas, a emboscada dos MacDougall se transformou em uma disparada. Apanhados entre duas frentes, abaixo e acima, seus homens foram massacrados. Quando Lorn lançou seu ataque frontal na boca do desfiladeiro, em lugar de enfrentar a um exército no que reinava o caos se encontrou com as poderosas hostes de Bruce fortemente armadas.
Arthur correu para descer a montanha e unir-se à luta, atravessando o barulho de soldados em luta com um só objetivo em mente: encontrar ao Lorn. Conseguiu distinguir a Alan MacDougall ao outro lado da ladeira, concentrando seus homens com a valente intenção de liberar uma nova carga. Mas a valentia não seria suficiente. Esperava pelo bem de Anna que se desse conta disso antes que fosse muito tarde.
O estreito funil do desfiladeiro rebateu em parte a vantagem numérica de Bruce, mas o ataque de Lorn não demorou muito em ver-se frustrado. Arthur alcançou a primeira linha de frente justo quando a vanguarda dos MacDougall começava a romper-se. O rei Robert, à cabeça de seu exército, lutando junto a seus cavalheiros de confiança e os membros dos Guardiões das Highlands, ordenava perseguir os fugitivos do clã inimigo. Em sua frenética tentativa de retirar-se ao castelo de Dunstaffnage, muitos dos MacDougall fossem derrubados ou se afogaram ao tentar cruzar a ponte sobre o rio Awe.
Tinham ganhado! A tentativa dos MacDougall de superar ao Bruce fracassava e o rei obtinha sua revanche pela batalha de Dal Righ. Acabavam de romper o cerco do clã mais poderoso das Highlanders. A vitória era doce, mas não seria completa até que Arthur encontrasse ao Lorn.
No caos da retirada, examinou o contingente de fugitivos em busca de seu inimigo. Aliviou-o comprovar que Alan MacDougall liderava a um grupo de seus homens para terreno seguro. Ao ver MacRuairi junto à ponte, Arthur desceu para encontrar-se com ele.
—Onde está?
Não tinha que dizer de quem falava. MacRuairi cuspiu ao chão e assinalou em direção sul à entrada do lago Awe.
—Nunca saiu de seu birlinn. Esse maldito covarde dirigiu a batalha da água. Assim que seus homens se retiraram, fugiu em direção ao lago.
Arthur amaldiçoou sua sorte, negando-se a acreditar que, depois de ter chegado tão longe, lhe seria vedada a possibilidade de justiça no último momento.
—Quanto tempo faz disso?
—Não mais de cinco minutos.
Em tal caso, ainda tinha uma oportunidade. Mas necessitaria os dotes de marinheiro do MacRuairi se queria o apanhar. Lorn possuía três castelos no lago Awe, mas Innis Chonnel, o antigo forte dos Campbell , era o mais novo e melhor fortificado. Ali seria onde iria.
Arthur olhou ao MacRuairi com parcimônia.
—Gostaria de uma regata?
MacRuairi, conhecido por ser um dos mais temidos e ousados piratas sobre o mar, sorriu. Ao menos pareceu que esboçava um sorriso.
—Eu reunirei aos homens. Encarregue-se do navio.
Arthur estava já correndo para a ribeira do rio para chegar ao porto. Era uma corrida que não tinha nenhuma intenção de perder. Nessa ocasião, John de Lorn não escaparia a seu destino fatal.
****
Anna não podia fazer mais que esperar. Mas não saber o que acontecia depois dos grossos muros do castelo do Innis Chonnel era uma autêntica tortura. O coração se encolheu. Não, tortura não. O seu não era nada comparado ao que Arthur estava sofrendo. Nem sequer podia suportar pensar nisso, embora não parecia ser capaz de outra coisa mais que de imaginar o que estava acontecendo, sem saber se estaria vivo ou morto. Era coisa de loucos! Como conseguiria seu tio entrar no castelo, por não falar de o resgatar? «Teria que ter ido com eles.» Assim ao menos saberia o que tinha passado. Mas seu tio estava certo. Não teria conseguido mais que levar a seu irmão de volta ao castelo.
As horas passavam com lentidão. Quando não estava ajoelhada, rezando na pequena capela, Anna procurava manter-se ocupada. Chamaram à batalha à maioria dos soldados, de modo que somente ficava uma pequena reserva de guardas no castelo para defendê-lo. Na noite anterior, já sem mais falsas visitas ao córrego, assim que o grupo chegou ao castelo, Anna organizou aos homens para que preparassem as câmaras, refrescassem o grande salão e fizessem inventário das provisões com que contavam.
O castelo de Innis Chonnel fora construído mais ou menos na mesma época que Dunstaffnage. Apesar de não ser tão grandioso, era uma edificação similar. A fortaleza quadrada fora construída sobre uma base de penhascos no confinante sudoeste da ilha. Seus altos muros de pedra rodeavam um pequeno pátio. Nos cantos tinham levantado duas torres, a maior das quais servia como torre da comemoração, enquanto a segunda se utilizava como calabouço. Entre ambas estava o grande salão. Sobre os muros se edificaram outras dependências de madeira menores que acolhiam os barracões, os arsenais, os estábulos e as cozinhas.
Parecia estranho pensar que aquele tivesse sido o lar de Arthur em sua infância. Anna sempre desfrutava de suas estadias no castelo junto a seu pai, mas nesse momento se sentia estranha. Como se não devesse estar ali. Como se fosse uma intrusa. Sabia que aquilo era ridículo. Os castelos mudavam de mãos com freqüência durante a guerra. Mas depois do que Arthur lhe tinha contado… Anna estava dividida. Dividida entre o pai ao que ainda amava, embora sem dúvida idealizava, e um homem a quem deveria odiar, apesar de não poder fazer. Não queria compreender por que Arthur fizera aquilo, mas o compreendia. Podia entender a lealdade que regia seus atos porque era quão mesma regia os dela. A lealdade ao rei e à pátria. A lealdade ao clã e à família. Sim, isso entendia especialmente.
Arthur era um highlander. Sangue por sangue, assim era como funcionavam as coisas nas Highlands. De modo que vingar seu pai se convertia em seu dever. Mas ela sabia que não se tratava só de vingança. Uma parte dele seguia sendo aquele menino que tinha visto morrer seu pai e seguia pensando que teria que ter evitado. Justiça. Vingança. Mas também significava expiação. Não obstante, compreendê-lo não oferecia a Anna resposta alguma. O que se podia fazer quando amar a um significava perder ao outro?
Depois de uma noite sem descanso, passou o dia seguinte a sua chegada de modo muito similar ao primeiro deles: rezando e procurando manter-se ocupada todo o tempo para não pensar no que acontecia depois dos grossos muros do castelo. Se por acaso seus temores pelo destino de Arthur não bastassem, também tinha a batalha. Quem sabia se nesse momento não teria deixado já de existir o mundo no que ela tinha vivido sempre. Os homens aos que amava podiam jazer mortos ou feridos, e mesmo assim, nos protegidos limites do Innis Chonnel, sobre a incomunicável ilha do lago Awe, tudo tinha uma aparência normal. A brilhante luz do sol seguia brilhando sobre as mansamente onduladas águas do lago, os pássaros seguiam voando e o vento úmido ainda pulverizava seus cabelos quando passeava pelo pátio.
Distinguiu a figura do Ewen, que saía da torre da comemoração.
—Alguma notícia? —perguntou, apesar de saber a resposta de antemão, já que em caso de que se aproximasse alguém ouviria a chamada.
—Não, ainda nada — respondeu seu irmão negando com a cabeça.
Sabia que a espera também era dura para Ewen, embora por diferentes motivos. Ele queria lutar. Não obstante, se culpava a ela seu confinamento em Innis Chonnel, nunca deixou ver.
Anna mordeu o lábio inferior.
—Oxalá soubesse como vão as coisas.
—Oxalá —disse seu irmão com um sorriso — Mas assim que haja algo do que informar…
—Aproximam-se navios, senhor! —gritou um dos guardas da torre vigia.
Anna seguiu a seu irmão em sua fulgurante descida da escada para as almenas. Somente podia distinguir as três velas quadradas que se aproximavam deles do norte a toda velocidade.
—É o pai — disse Ewen com uma voz desencorajada.
Um pressentimento fez que Anna se estremecesse de cima abaixo.
—O que acontece? Algo vai mal?
Ewen não se incomodou em tentar ocultar a verdade.
—Disse que somente viria em caso de que fosse necessário.
«Necessário.» A Anna lhe deteve o coração. Isso significava que o faria se tivesse que bater em retirada.
Tinham perdido!
Anna cambaleou, sentindo que suas pernas eram como gelatina. Pôs a mão na borda da mureta para recuperar o equilíbrio, observou como se aproximavam os navios e rezou por que houvesse outra explicação. Algo diferente que Bruce tivesse ganhado. Então entreabriu os olhos para proteger-se dos brilhos do sol e viu algo mais.
—O que é isso? —disse, assinalando justo trás dos navios que se aproximavam — O que é isso que vem trás?
Mas Ewen estava já ditando ordens.
—Atacam-nos! A seus postos!
Os homens saltaram à ação imediatamente enquanto Anna, incapaz de desviar o olhar, observava aterrorizada como se aproximavam os navios. Ao que parecia, os homens de seu pai não pareciam conscientizar-se de que os perseguiam.
—Atrás! —gritou em uma tentativa de lhes avisar.
Mas o vento levava sua voz.
—Anna, sai daqui!—gritou-lhe Ewen — Isto não é seguro. Vá à torre e tranca a porta.
Anna assentiu em silêncio e fez o que seu irmão lhe pedia. Uma vez dentro, correu para sua câmara do segundo andar para olhar da seteira. Já que a torre da comemoração estava no canto sul do castelo, não pôde ver os navios até que virtualmente estavam já junto ao embarcadouro. Observou com o coração em um punho como começava a batalha justo a seus pés. Viu seu pai situado atrás de seus homens, gritando ordens ao mesmo tempo em que o navio de guerreiros inimigos chegava… ficou petrificada, com o coração lhe dando saltos no interior do peito. Piscou. Não, não era um sonho. Uma intensa onda de alívio abriu caminho em seu interior fazendo que lhe estremecesse o coração.
Arthur estava vivo. Vestia um traje de batalha que não lhe parecia familiar e embora a simples vista, com o rosto e o cabelo resguardados sob o elmo com nasal, fosse impossível de distinguir dos outros guerreiros, sabia que se tratava dele.
«Graças a Deus.»
Então se revelou a absoluta transcendência de sua presença no castelo. O horror se apoderou dela e a apanhou com seu frio abraço. Se Arthur estava ali, somente podia ser por uma razão. Correu para a porta, consciente de que tinha que fazer algo. Tinha que o deter. Não podia permitir que matasse a seu pai.
Arthur o tinha a frente o momento que tanto tinha esperado. Em certo modo parecia adequado que o encontro final tivesse lugar na pequena ilha do Innis Chonnel, sob a sombra entristecedora do castelo que um dia fora seu lar. A corrida fora acirrada, mas ao final MacRuairi deu fé de que sua reputação era merecida. Oculto pela cegante luz do sol, seguiu aos navios em retirada de Lorn sem que estes se inteirassem de sua presença até alcançar aos três birlinn quando se dispunham a atracar. Somente então dispôs Arthur uma descarga de flechas sobre os despreparados MacDougall.
MacRuairi tinha reunido a quarenta piratas de seu clã, algo que seria um combate desigual, já que os MacDougall os triplicavam em número. Mas os homens de MacRuairi estavam mais que dispostos a aceitar o desafio. Patifes, rufiões, esquartejadores, eram qualificativos generosos para alguns MacRuairi que ganhavam a pulso sua reputação como o maior flagelo dos mares. Mas em terra lutavam com a mesma ferocidade.
Os guerreiros de MacRuairi estavam já saltando pela amurada espada empunhada ao grito de «Pelo leão!», ao mesmo tempo em que seu chefe deixava o navio escondido até pô-lo virtualmente em cima dos do MacDougall. Arthur estava ali mesmo, liderando a carga.
Lorn tinha situado a seus homens ao final do embarcadouro com a esperança de conter aos homens de MacRuairi assim que tentassem tomar a terra. Mas os guerreiros de MacDougall não eram rivais para os selvagens ataques de seus parentes. Apesar de que ambos descendessem de filhos de Somerled, o rei norueguês que tinha governado as ilhas cento e cinqüenta anos antes, lutavam de geração em geração pela supremacia. Os MacDougall a tinham ganhado depois da batalha do Larg e receberam o favor dos reis ingleses, mas essa integração fez que se afastassem muito de suas raízes vikings. Os MacRuairi lutavam como os próprios bárbaros que tinham sido até tão pouco tempo que a maioria deles podia seguir recebendo esse nome.
Romperam o muro de contenção dos MacDougall rapidamente e situaram a batalha sobre as rochosas costas da ilha. Arthur estava em desvantagem ao contar só com um braço, por não falar de seu fraco estado; entretanto, em que pese a encontrar-se longe de suas habituais condições para a luta, defendia-se bem. Abria caminho com determinação entre os soldados sem tirar olho ao Lorn em nenhum momento. Este estava na retaguarda da batalha, rodeado pelo protetor círculo de seus homens, entre os que se encontrava seu ajudante. O sangue de Arthur fervia antecipando o momento.
Os MacDougall retrocediam, e logo ficou claro que as superiores força em número de Lorn não ganhariam a partida. Arthur, envolto em um encarniçado combate com um dos homens de MacDougall, ao qual por desgraça conhecia, ouviu o grito de retirada. Amaldiçoou, consciente de que tinha que deter o Lorn e a seu ajudante antes que alcançassem a segurança das portas do castelo.
«Outra vez não.»
Chamou a atenção de alguns homens de MacRuari e lhes disse o que queria deles. Lutou para abrir caminho até o Lorn seguido por esses mesmos homens, que fizeram racho no círculo protetor de Lorn e tiraram ele e a seu ajudante do grupo. Uma vez que Arthur chegou até ali, os homens do MacRuairi se dispersaram para formar uma barreira atrás dele.
Se Lorn não tivesse a poucos metros da segurança dos muros do castelo, Arthur teria desfrutado mais com sua morte, mas tal e como estavam as coisas teve que despachar ao ajudante com presteza. Por mais habilidade que tivesse aquele homem na hora de torturar, não era rival para Arthur, nem sequer com uma só mão.
Ao fim se voltou para Lorn e o alcançou a escassos metros da porta. Seus homens estavam tão ocupados defendendo-se que nenhum deles pôde ir em sua ajuda. Arthur advertiu a raiva em seus olhos quando John de Lorn ergueu a espada contra ele.
—Como escapou? —perguntou com incredulidade.
—Surpreso de me ver?
Um brilho assassino aflorou nos olhos de Lorn.
—Devia ter matado.
—Sim, teria que tê-lo feito.
—É o culpado de todo este desastre. Traíram meus planos para acabar com esse filho da puta assassino.
—Rei Robert — o provocou Arthur, rodeando-o como a uma presa — Diria que melhor que te acostumem a chamá-lo assim, mas temo que não viverá por aqui tempo suficiente.
E dito isto lhe atirou um golpe.
Lorn estava preparado e arrumou para rebatê-lo, embora com muita dificuldade e tremendo com todo o corpo pelo esforço. John de Lorn, em seus dias um dos mais temidos guerreiros das Highlands, já não significava nenhuma ameaça. A idade e a enfermidade cobraram seu preço. Não era covardia, a não ser a enfermidade o que fez que permanecesse no lago e na retaguarda da batalha. O maldito orgulho de Lorn evitava que admitisse quão doente realmente estava.
O segundo golpe de Arthur o tombou de joelhos. Pôs a ponta da espada no pescoço. A touca de malha não serviria de nada contra o afiado aço de sua arma. O sol se refletia no elmo do ancião de mesmo modo em que tinha feito quatorze anos antes quando Arthur observava da distância como seu pai sustentava a folha ante o pescoço desse mesmo homem e lhe oferecia clemência. Era o momento que estivera esperando. Teria sentido a antecipação dessa cena em suas próprias veias. O sabor da vitória tinha que ser doce. Seus músculos teriam que estar tensos, preparados para propinar a cutilada. Mas não sentia nada disso. Somente podia pensar em Anna.
Se o fizesse, seria para ela o que Lorn sempre foi para ele: o homem que tinha matado a seu pai. Talvez seu perdão fosse algo mais do que tinha direito a esperar, mas se assassinasse ao Lorn destruiria qualquer opção que pudesse ficar. Que honra teria em matar a um homem muito doente para lutar? Seu pai já fora vingado. Lorn estava acabado. Sua derrota no Brander tinha acabado com qualquer opção que tivesse de deter Bruce.
Anna tinha razão. O matar então não seria mais que vingança, e Arthur a amava muito mais que qualquer momento efêmero de satisfação que aquilo pudesse lhe proporcionar. Bom, pode ser que não fosse tão efêmero, mas, em qualquer caso, amava-a mais.
Lorn o olhou com fúria sob o visor de ferro de seu elmo.
—A que estais esperando? Faça de uma vez!
Piedade. Apesar de que até esse momento o tivesse esquecido por completo, aquela fora a última lição de seu pai.
—Renda-se ante o rei e lhe deixarei viver.
O rosto de Lorn se retorceu de ira.
—Prefiro a morte.
—E o que será com sua família? O seu clã? Também quer que morram?
Os olhos do John de Lorn estavam incendiados de puro ódio.
—Prefiro isso antes que me render a um assassino.
—Fará que morram suas filhas por seu maldito orgulho?
Aquilo fazia que o sangue de Arthur fervesse. Conhecia Anna. Jamais iria contra seu pai. A família era tudo para ela.
—Dê a Anna sua bênção. Manterei ela a salvo. Sabes tão bem como eu que está acabado. Mas seu clã pode prosseguirr através de nossos filhos, em seus netos.
A raiva de Lorn estava desenfreada. Sobre seus olhos, frágeis de loucura, ressaltavam as veias de sua têmpora e seu rosto aceso. Desafogou-se proferindo uma enxurrada de maldições vis que lhe deixaram jogando espuma pela boca.
—Jamais será sua! Antes prefiro vê-la morta!
—Pai!
Arthur ouviu o grito angustiado que se erguia atrás dele. Anna. Voltou-se de maneira instintiva e deixou suas costas a mercê de Lorn. Exatamente o mesmo que seu pai tinha feito tempo atrás ante seus próprios olhos.
Capítulo 26
Anna chegou ao pátio justo no momento em que Arthur fazia seu pai cair de joelhos.
Oh, Deus, tinha chegado muito tarde!
Correu mais depressa.
Ewen e outros tentavam defender o castelo lançando flechas de maneira seletiva das frestas do adarve, preparados para baixar a grade assim que seu pai e os outros conseguissem retirar-se ao interior. Os guardas estavam tão preocupados observando o que acontecia no exterior que nem sequer a viram penetrar antes seus narizes.
—Milady! —chamou-a um dos guardas — Não podes…
Anna não os escutava. Avançou alguns metros além das portas, mas não chegou muito longe. Os soldados inimigos tinham formado uma linha que separava Arthur e o pai de Anna do resto dos opositores. Quando ela tentou passar entre eles um dos homens a agarrou.
—Pelas chagas de Cristo! —disse, puxando-a pelo pulso — Aonde acha que vai, moça?
Abriu a boca para gritar ao aterrador rufião que a soltasse, mas então ouviu a voz de Arthur e ficou quieta nos braços do soldado. Não acreditava no que ouvia. Arthur brandia uma espada contra o pescoço de seu pai, a ponto de alcançar a vingança e a expiação que motivava seus atos, quando lhe ofereceu piedade. Ofereceu a seu pai a oportunidade de salvar a todos. Uma oportunidade que, depois do que certamente teria feito, seu pai não merecia. A oportunidade de um futuro.
Se deu conta de que Arthur a amava. «Ama-me tanto que está acima de sua sede de vingança.» Mas se as palavras de Arthur enchiam seu coração, as de seu pai o destroçaram. «Antes prefiro vê-la morta.» Anna escapou das garras de seu captor e retrocedeu, angustiada por um horror e uma comoção que a fizeram gritar. «Não diz a sério.»
Entretanto, ela sabia que sim havia dito a sério. Seu pai preferiria vê-la morta antes que casada com o inimigo, embora a amasse. Aquele cruel rechaço à oferta de Arthur fez saltar em pedaços qualquer raio de ilusão que ficasse. Mas seu grito foi um erro. Um erro mais terrível do que poderia ter imaginado. Sua voz teria que ter-se perdido no infernal estrépito da batalha. Ninguém deveria ter ouvido. Mas Arthur ouviu. Voltou-se ao ouvir sua voz e a espada pareceu perder toda sua força.
«Pai nosso que está nos céus…» Sob a sombra do elmo, a visão de seu rosto golpeado e massacrado lhe revolveu o estômago e provocou um acesso de bílis. Mas o pior dos horrores estava por chegar. Viu o brilho da espada de seu pai pela extremidade do olho.
—Não! —gritou dando um passo à frente. Mas o soldado a apanhou antes que pudesse avançar — Cuidado!
«Calcanhar de Aquiles.» Ela era seu calcanhar de Aquiles, mas não podia permitir que morresse por isso.
Arthur deu meia volta e ondeou sua espada pelo ar para rechaçar o golpe mortal do pai de Anna com suficiente força para arrebatar a espada das suas mãos e fazê-la voar. Então ergueu a espada sobre sua cabeça.
Anna se voltou e protegeu seus olhos do horror que estava a ponto de acontecer. Arthur mataria a seu pai, e depois do que este acabava de fazer não poderia culpá-lo de nada. Esperou para ouvir o horripilante som da morte. Mas o silêncio parecia interminável. Estava tudo tão tranqüilo que percebeu de que a batalha que livrava a seu redor também se deteve.
—Vá — ouviu que Arthur dizia — Tem cinco minutos para levar sua filha e a seus homens do castelo.
O olhar de Anna recaiu de novo sobre seu pai. Seu pai, que seguia com vida. Arthur tinha baixado a espada e se afastava dele, enquanto John de Lorn se pôs em pé com o rosto tingido de uma pátina de raiva desafiante.
—É um estúpido.
—E tens a sorte de que sua filha signifique para mim muito mais que sua mísera vida. Mas lhes asseguro que o rei não sente o mesmo. Parte por seu próprio pé ou faça com grilhões, isso não é de minha incumbência, mas partirá.
Um grito chegou das alturas para confirmar suas palavras.
—Navios, milorde. Seis deles vindo para cá.
«Bruce.»
Lorn não pensou. Reuniu a seus homens e ordenou a Ewen evacuar o castelo e reunir quantas armas pudesse levar consigo.
O homem que a agarrava a soltou. Anna correu, mas Arthur já se fora e ficava de lado junto ao resto dos homens de Bruce, entre os que reconheceu a seu tio, para deixar caminho aos MacDougall. MacRuairi não parecia muito contente com tal acerto, mas depois de um rápido mas violento intercâmbio de palavras Arthur e ele ficaram em silêncio. Arthur não parecia disposto a olhá-la.
Por que não a olhava? Anna tinha vontade de correr a seu encontro, mas o via tão distante e afastado… O coração se encolheu pela incerteza. Sempre tinha pensado que seria ele quem a abandonaria e, entretanto, ali permanecia de pé como um sentinela: firme, incondicional e fiel. Um homem com o que se podia contar. Um homem que derrubaria dragões e se arrastaria através das brasas do inferno.
—Vamos, Anna. Temos que partir.
Ewen tinha aparecido atrás dela e lhe puxava o ombro para tirá-la dali.
—Eu… — titubeou, ao mesmo tempo em que desviava o olhar para Arthur, como se esperasse, como se ansiasse que ele dissesse algo.
Ewen, indeciso, olhou-a um instante e se retirou junto a seus homens. Seu pai deve ter captado aquela troca de olhares.
—Não faça, filha. Nem sequer pense nisso.
Anna olhou a seu pai nos olhos. O homem que tinha amado durante toda sua vida. Um homem que era muito mais complexo do que ela pensava. Era difícil conciliar a figura de seu carinhoso pai com a do homem que acabava de ver nesse dia, apesar de que soubesse que se tratava de uma única pessoa. Por um momento desejou voltar a ser aquela menina que se sentava sobre os joelhos de seu pai e o olhava como se fosse um deus. Voltar para momento em que as coisas eram simples.
Se alguma vez pôs em dúvida o amor de Arthur, já não podia fazer. Não depois do que acabava de fazer por ela.
—O amo, pai. Rogo-te isso…
Advertiu a dor que suas palavras causavam antes que seu olhar se endurecesse.
—Não quero ouvir falar mais nada disto. Faz sua escolha. Mas não te engane. Se partir com ele, jamais voltarei a te ver. Estará morta para mim.
As lágrimas afloraram nos olhos de Anna e lhe ardiam na garganta.
—Não diz a sério.
Mas sim dizia.
—Escolhe — exigiu seu pai com raiva.
Anna se encaminhou para o bote em que a esperava seu irmão com lágrimas caindo pelas bochechas. Arthur, incapaz de ver como se afastava, voltou o rosto.
Tinha ouvido cada palavra da dolorosa conversa que Anna acabava de manter com seu pai. Maldito fosse Lorn por fazer isso a sua filha! Por fazê-la escolher entre os dois. Não tinha por que ser assim. Arthur tinha tentado lhe dar uma saída, mas o filho de cadela não queria acolher a ela. Quase se arrependeu de não tê-lo matado. Quase. Mas quando ouviu a Anna dizer que o amava, soube que tinha feito o correto. Embora isso significasse que devia deixá-la partir. Infelizmente, a dor de sua partida não se atenuava absolutamente nessa segunda ocasião. Ardia-lhe o peito. Seus músculos tremiam pela tensão e contenção e parecia que os rasgavam com uma adaga. Queria detê-la, que não subisse naquele maldito bote. Queria dizer que seu lugar era junto a ele. Que a amava. Pedir que o escolhesse.
Mas não podia fazer mais difícil do que já era. Não estava disposto a fazê-la sofrer mais. Bastou um olhar a seu aflito rosto para que se desse conta do terrível preço que se estava cobrando dela o ultimato de seu pai.
—Sinto muito, Ewen. Explica tudo a mãe —disse de repente — Diga o quanto sinto. Sinto muito, mas meu lugar está junto a ele.
Arthur ficou petrificado. Não podia acreditar no que acabava de ouvir. Voltou-se lentamente e a viu abraçar seu irmão.
Despedia-se dele com aquele abraço.
Arthur ficou sem fôlego.
Anna se separou do abraço de seu irmão e aventurou um olhar em sua direção. A incerteza que esta refletia provocou uma pontada no peito de Arthur que rompeu até o último fio de contenção que ficava. Depois de uns poucos e largos passos chegou a seu lado. A voz de Arthur lutava com o esforço por conter a emoção que brotava em seu peito.
—Está segura? Não têm por que fazer. Protegerei a ti e a tua família o melhor que possa, embora partam.
Anna sorriu, com os olhos velados pelas lágrimas.
—Que sejas capaz de fazer isso é a razão que me faz estar segura disso. O amo. Sou sua, se ainda me quiser.
Deus santo, se ainda a queria… Arthur se esqueceu da sujeira e o pó que o cobria, por não falar do fedor da batalha, e tomou Anna em seus braços com um suspiro de alívio que saiu do mais profundo da alma. De um lugar que, pensou, jamais voltaria a abrir. Descansou a bochecha sobre sua cabeça, absorvendo a sedosa e dourada calidez da fragrância de seus cabelos, e a apertou fortemente contra si, muito emocionado para falar. Mas não tinha que dizer nada. A maneira com que ela o rodeava com seus braços e punha sua bochecha contra seu cotun dizia tudo. Tinha escolhido a ele. Não podia acreditar. Jamais pensou que poderia sentir-se de tal modo. Nunca pensou que esse tipo de felicidade lhe estivesse destinada. Mas sua alegria ficava moderada pela consciência de saber quão difícil devia ser para ela.
Separou-se de Anna a seu pesar. Ela ergueu o olhar, acariciada pelos raios do sol, que deixavam em seus belos traços uma luz dourada e suave. Uma luz que se estendia por seu interior como se fosse um quente abraço. Sentiu como se enchia seu interior. Era um homem afortunado.
Ao conscientizar-se de que ainda não tinha respondido, fez uma careta com a boca.
—Se por acaso não o adivinhastes, isso significa um sim.
O sorriso de Anna fez que parasse seu coração.
Pensava que seu destino fosse permanecer sozinho, mas agora sabia que simplesmente estivera esperando que ela chegasse. Juntos confrontariam qualquer obstáculo ou desafio que a vida lhes proporcionasse. Incluindo a seu pai. Arthur a apertou contra si em seu lado enquanto Lorn caminhava para o cais para ocupar seu lugar entre seus homens. Quando passou junto a eles sem lhe dirigir o olhar, Arthur notou que Anna se cambaleava. Apertou-a contra si com mais força, com o desejo de protegê-la contra isso. Aquele filho de cadela estava lhe destroçando o coração.
—Pai! —exclamou com um fio de voz.
Lorn se voltou para olhá-la com expressão gélida. Mas não estava tão pouco afetado como queria aparentar. Nos olhos do ancião havia uma dor real.
—Não há nada mais que dizer. Tomaste sua decisão.
Anna negou com a cabeça.
—Escolho amar aos dois. Mas meu futuro está junto a Arthur.
Lorn a olhou com atenção, e por um instante Arthur pensou que claudicaria. Mas o homem aplacou seu gesto e deu meia volta para partir sem dizer uma palavra mais, condenado por seu próprio orgulho. Cortando suas relações com ela assim, não fazia mais que prejudicar a si mesmo. Anna era a luz, a cola que unia as pessoas a sua volta. Sem ela, suas vidas seriam mais escuras. Arthur sabia. Tinha comprovado em sua própria carne.
Desejava poder economizá-la dessa dor ou sofrer por ela, mas o único que podia fazer era permanecer a seu lado enquanto via como seu pai e seu clã se afastavam no navio. Quando viraram para o lago e desapareceram de seu olhar, Arthur a pegou pelo queixo para que o olhasse nos olhos.
—Juro-te que me assegurarei de que nunca te arrependas disto.
Anna lhe ofereceu um sorriso vacilante através do brilho de suas lágrimas.
—Não farei. É a única decisão que podia tomar. Eu te amo.
Arthur se inclinou e a beijou com doçura. Sua boca era inclusive mais doce e suave do que recordava.
—E eu amo muito a ti.
Queria dizer muitas mais coisas, mas o resto teria que esperar. Os reforços chegariam de um momento a outro.
—Qual é seu quarto? —perguntou Arthur.
Anna ruborizou. Parecia envergonhada.
—Aquela acima, com vista para o lago.
Teria que ter imaginado.
—Eram meus aposentos.
Anna abriu os olhos de par em par e se apressou a dizer:
—Mudarei…
Arthur negou com a cabeça, cortando em seco suas palavras.
—Fique, assim saberei onde te encontrar. —Gostava de pensar nela ocupando seu aposento. Arthur olhou para trás e viu os navios aproximar-se — Vai até lá. Há certas coisas que tenho que atender. Irei te buscar quando tiver acabado.
Anna estirou o braço para acariciar seu queixo.
—Seu pobre rosto.
Arthur fez uma careta de dor.
—Já sei que estou horrível.
Seus olhos se encheram de culpa.
—Deus, Arthur… Sinto tanto.
—Nada disso, moça — repôs ele negando com a cabeça — Isso se acabou. Não podemos mudar o passado. Tudo que podemos fazer é viver o presente e planejar o futuro.
Um futuro que só momentos antes parecia sombrio e agora transbordava de esperança. Observou-a partir, consciente do perto que estivera de perdê-la. Mas agora que estava com ela, Arthur jurou que jamais a deixaria partir.
Não a fez esperar muito. Anna ouviu como batia na porta com suavidade apenas meia hora depois de que zarpassem os navios. Os homens de Bruce não ficaram muito tempo, mas mesmo assim parecia estranho ver que o pátio de armas se enchia de soldados inimigos. Não, inimigos não. Ao escolher ao Arthur também escolhia ao Bruce, embora supôs que levaria algum tempo familiarizar-se com o que em realidade significava aquilo. No momento, simplesmente tentava acostumar-se com a idéia de que não sabia quando poderia voltar a ver sua família, se é que chegaria a fazer. Ao negar-se a se render ante Bruce, a seu pai não ficava mais alternativa que seguir o mesmo caminho até a Inglaterra que tinha tomado meses antes John Comyn, o conde de Buchan. E suspeitava que sua mãe, seus irmãos e suas irmãs logo partiriam junto a ele.
Mas por mais difícil que fora tomar aquela decisão, Anna sabia que tinha escolhido bem. O amor cego que tinha por seu pai era o de uma menina que pensava que ele jamais faria nenhuma maldade. Entretanto, o amor que sentia por Arthur era o de uma mulher. Uma mulher que entendia que as pessoas, inclusive aquelas às que amava, cometiam erros. O perdão era parte do amor.
Ao abrir a porta e vê-lo ali o coração lhe deu um tombo. Sua enorme envergadura enchia a soleira e tinha que encolher-se para entrar no aposento. De repente aquela pequena câmara dava a impressão de ser minúscula. O ar estava impregnado do aroma de sabão. Banhara-se, tirado a armadura e vestia com uma camisa limpa, túnica e meias, que, suspeitava Anna, teria tomado emprestados de algum dos membros de seu clã que partiram. Mas não foi a visceral consciência de sua presença o que a fez jogar-se em seus braços e afundar o rosto em seu amplo e quente peito, a não ser a infantil expressão de incerteza que aparecia seu rosto.
Anna apreciou o suspiro de alívio que percorria o corpo de Arthur ao rodeá-la com seus braços e agarrá-la.
—Encontra-te bem? —perguntou Arthur.
Anna apoiou o queixo sobre seu peito para o olhar e assentiu.
—Estava preocupado?
Uma mecha de cabelo molhado lhe caiu sobre a testa.
—Sim, mais do que queria admitir.
—Tomei uma decisão, Arthur. Sabia o que dizia. Pode ser que em algumas ocasiões não seja nada fácil, mas jamais me arrependerei disso. —Seu irmão Alan tinha razão. Merecia a um homem que a amasse com a mesma intensidade que ela amava. Um homem que derrubasse dragões e se arrastasse sobre as brasas do inferno por ela. Arthur fazia isso e ela jamais o deixaria escapar. Anna se deixou abraçar um instante antes de voltar a falar—: Obrigado pelo que fez. Sei que… — A emoção a embargava — Sei que não foi fácil.
Seu rosto se escureceu, mas somente por uns segundos.
—Jamais me arrependerei disso — disse repetindo suas palavras com um meio sorriso — Salvar a vida de seu pai é um pequeno preço a pagar pela felicidade que recebo em troca.
Anna mordeu o lábio.
—Mas o que passará com Bruce? Não estará zangado porque o deixasse partir?
Arthur fez uma careta.
—Se podemos tomar a primeira reação de seu tio como sinal, provavelmente sim. Mas o rei me deve alguns favores. Acredito que com isto saldamos as contas. Enquanto seu pai abandone a Escócia, estará inclinado a compreendê-lo.
Inclinado. De repente Anna se deu conta de que somente notava uma mão de Arthur nas suas costas. Libertou-se de seu abraço e ao baixar o olhar viu que sua mão esquerda tinha uma pomposa bandagem. Não tinha notado antes porque Arthur levava as luvas.
—O que passou a sua mão?
—Está quebrada — disse Arthur com total naturalidade.
Ficaram olhando-se nos olhos, e Arthur respondeu sua pergunta tácita. Anna só precisou olhar seu maltratado rosto para saber como tinha acontecido.
—Que mais?
—Algumas costelas — respondeu ele, encolhendo-se de ombros — Vários cortes e alguns hematomas. Nada que não possa curar — Houve algo em seus olhos que indicou a Anna justamente o contrário — Não é mais do que mereço pelo que lhe fiz.
—Não — repôs ela negando com a cabeça de maneira categórica — Não diga isso. O que fizeram foi horrível, mas jamais teria exigido tal castigo —continuou com lágrimas nos olhos — Não é que o tenhamos tudo muito fácil, verdade?
Arthur a agarrou pelo queixo e negou com a cabeça.
—Não, amor, mas te prometo que isso mudará. Acabaram-se as mentiras. Acabaram-se os segredos. —Sorriu, franzindo o cenho — Em qualquer caso, já conhece os mais perigosos.
Que formava parte do exército secreto de Bruce.
—Por que te chamam Guardião?
Houve um momento incômodo quando Arthur olhou a seu redor no aposento em busca de algo onde sentar-se e percebeu de que não havia mais que a cama. Não obstante, sentou-se na borda e fez gesto a Anna para que se sentasse junto a ele. Ela notou que tomava cuidado em deixar uns centímetros de separação entre ambos enquanto explicava.
Tinham-no obrigado a abandonar o treinamento antes dos outros para que ocupasse seu posto como espião. A decisão de usar nomes de guerra fora feita em sua ausência. Alguns dos nomes saíram das brincadeiras que se fazia entre eles e outros, como o seu, provinham de suas habilidades.
—Então eu tinha razão —disse Anna com alegria— quando pensava que seria um rastreador perfeito.
Arthur riu.
—Sim, embora não me fez nenhuma graça. Tentava ocultar minhas habilidades, mas parecia pensar em outras coisas.
E em outras coisas começou a pensar Anna. Aproximou-se um pouco mais dele, deixando que seus seios lhe roçassem o braço.
—E o que ocorrerá depois?
Arthur parecia tentar conter-se por todos os meios.
—Agora acredito que será melhor que eu vá. Não deveria estar aqui contigo deste modo. Não sem um sacerdote.
Anna riu e pôs uma mão sobre a perna. Seus potentes músculos se esticaram debaixo de sua palma.
—Não acredito que goste de ter a um sacerdote aqui conosco.
Arthur apertou os dentes; de fato, pareceu apertar todos os músculos de seu corpo.
—Refiro-me até que estejamos casados.
—Tenho a impressão de que é um pouco tarde para nos pôr cerimoniosos, não?
—Não subi com a intenção de… - Arthur não continuou — Maldita seja, Anna, deixe de fazer isso. —Agarrou sua mão e deteve sua incursão pelo interior da coxa — Tento fazer a coisa certa.
—Quer dizer que anteriormente não fez certo? —Anna piscou com exagerada inocência.
Arthur a olhou com recriminação.
—Sabes perfeitamente que não é isso a que me refiro. Aquilo foi absoluta e totalmente perfeito.
Acabou a provocação. Quando ergueu o olhar de novo o fez com todo o amor de seu coração.
—Por favor, Arthur. Preciso me sentir assim uma vez mais. —Anna necessitava a cercania. Necessitava a conexão. Precisava saber que tudo iria bem. Seus olhos se abriram de par em par — A menos que não sejas capaz. Esquecia que…
Arthur a deteve com um ardente beijo que penetrou até o mais profundo de sua alma.
—Claro que sou capaz, maldita seja.
E, assim, procedeu a lhe mostrar com todo luxo de detalhes quão capaz era. Lenta, profunda e meigamente, com todo o amor que albergava em seu coração. E quando os últimos estremecimentos de prazer começaram a extinguir-se, quando ele sustentou seu corpo nu contra o seu arroxeado e maltratado, Anna soube que nos braços daquele fornido e firme guerreiro encontraria por fim a paz.
Epílogo
Castelo de Dunstaffnage, 10 de outubro de 1308
A paz fazia bem, tanto para a Escócia como para Anna. Menos de dois meses depois da derrota de seu pai no Brander, Bruce ganhou a batalha dos grandes líderes da Escócia. Seu avô, Alexander MacDougall, rendeu-se depois de um breve assédio ao castelo de Dunstaffnage, enquanto que o conde de Ross fez o mesmo depois de poucos dias. Bruce perdoou a vida do homem responsável pelo encarceramento de sua mulher, de sua filha e de suas irmãs, assim como da condessa de Buchan, um ato que dava fé do desejo que tinha de ver a Escócia e a seus nobres unidos sob uma mesma bandeira.
«Pelo bem da Escócia.» Anna tinha que admitir que essa filosofia a impressionava. O homem em si…Bom, procurava manter a mente aberta. Tantos anos defendendo uma causa não se esqueciam em questão de semanas. Mas o que Bruce tinha planejado para esse dia faria bastante para que mudasse de opinião. Sabia o que significava aquilo para Arthur.
Seu olhar passeou pelo grande salão e cruzou a maré de membros do clã reunidos em celebração. Alguns deles lhe pareciam familiares, embora quase todos eram estranhos. Tomaria um tempo, mas Anna prometeu que conheceria todos eles. Aquele seria seu lar. Bruce tinha concedido a guarda do castelo de Dunstaffnage a Arthur em gratidão a sua lealdade e pelos serviços prestados. Além disso, sua próxima missão tampouco o afastaria muito. Passaria os seguintes meses fiscalizando o paradeiro de Lorn e Argyll em sua totalidade e riscando mapas de quanto encontrasse.
Arthur tomou a mão de Anna e a apertou carinhosamente.
—Está contente, meu amor?
Anna ergueu o olhar para o homem que estava sentado junto a ela no estrado, um homem que se convertera em seu marido nessa mesma manhã. Lágrimas de alegria cobriram seus olhos ao olhar suas bonitas feições, que já apenas viam pequenos traços do calvário que tinha sofrido.
—Sim, e poderia ser de outra forma? Ao fim tem feito de mim uma mulher honrada e talvez possa voltar a olhar ao pai Gilbert nos olhos.
Arthur riu. Esse profundo e harmonioso som, muito mais livre agora, seguia sendo capaz de lhe arrepiar a pele com um quente formigamento.
—Já te disse que teria que ter partido antes.
—Tinha frio… — Anna fez um biquinho com os lábios.
—Ofereci-te uma manta antes de ir.
—Não queria mais mantas — disse com a mesma teima que a tinha metido em problemas desde o começo.
Queria a ele. Acostumou-se a dormir do seu lado em Innis Chonnel e fora difícil habituar-se de novo ao retornar ao Dunstaffnage no mês anterior. Ver-se às escondidas não era nem metade de excitante e íntimo. E, é obvio, o principal problema de ver-se às escondidas era a possibilidade de que os descobrissem, justamente o que tinha acontecido fazia uma semana, quando o pai Gilbert pegou Arthur saindo de seu aposento.
—Esta noite não necessitará mais mantas — disse ele com um olhar longo e cálido.
Anna não pôde evitar ruborizar-se, apesar de que nos últimos dois meses tivesse perdido a inocência em muitos sentidos, alguns deles de jeitos mais reveladores.
—Acredita que se darão conta se sairmos agora? —perguntou Arthur inclinando-se sobre ela.
O suave sussurro de seu fôlego no ouvido a fez estremecer. Mas o que lhe provocou brilhos de calor entre as pernas foi a mão que se movia de maneira possessiva e determinada sobre sua coxa. As carícias de seu dedo recordavam a sua língua. E se recordava sua língua, não podia esquecer-se de sua boca. E se recordava sua boca, tinha que lembrar-se da maneira em que a tinha despertado essa manhã fazendo-a chorar de prazer. O mesmo dia das bodas, o muito desrespeitoso velhaco!
E então recordou como tinha pago sua diabrura com a mesma moeda incitando-o com sua própria língua. Recordava o delicioso sabor salgado de sua pele, aquela coluna de carne aveludada introduzindo-se cada vez mais profundo em sua boca. A maneira em que o tinha espremido até o final com a sucção de seus lábios, rodeando a grossa e potente cabeça de seu membro com a língua até que Arthur implorasse por não poder conter-se mais. O modo que acabou por perder o controle e lhe sustentara a cabeça com as mãos para meter até o fundo de sua garganta, fazendo que os gritos guturais do alívio retumbassem em seus ouvidos.
O corpo de Anna começou a derreter com a doce calidez da excitação. Então recordou onde estava e se sobressaltou. Afastou-lhe a mão, confiando que ninguém os tivesse visto. Pelo amor de Deus, se tinha os olhos entreabertos! Era ela quem devia o distrair e não ao contrário.
—Não podemos sair. Não até que… — Se deteve ao conscientizar-se de que talvez houvesse falado demais — Somos os convidados de honra.
Arthur pôs cara de surpresa, olhando ao outro extremo da mesa no que havia vários assentos vazios.
«Pelos pregos de Cristo!» Se deu conta. Pois claro que tinha feito. Não havia nada que escapasse a aquele homem tão observador. Anna o agarrou pela mão.
—Vamos, deveríamos dançar.
Ficou circunspeto, sem mover um dedo.
—Passa algo, Anna? Atua de um modo estranho.
Os olhos se puseram como pratos.
—Pois claro que não. Somente quero dançar.
Um sorriso maroto torceu seu gesto.
—Temo que terá que me dar uns minutos.
—Por que?
Arthur baixou o olhar até sua virilha, e as bochechas de Anna se ruborizaram ao ver seu volumoso pacote. Ao que parecia não era a única que estivera relembrando. Olhou do outro lado da mesa, onde estava sentado MacGregor. Este fez uma sutil negação com a cabeça, depois da qual ela voltou a olhar de novo a seu marido, que seguia circunspeto.
—Está segura de que não é por…? Sei que sente falta da sua família.
Um sorriso amargo se desenhou em seus lábios.
—Sinto falta deles, mas isso não significa que não seja feliz. E meu avô está aqui — disse inclinando a cabeça em direção ao chefe dos MacDougall, sentado a poucos assentos de distância de onde estava o rei. Bom, onde estava o rei até um momento.
Uma vez tomado o castelo, sua mãe e suas irmãs receberam permissão para seguir a seu pai e seus irmãos no exílio, mas Bruce queria o apoio de seu avô. Se seria capaz de ganhar o ou não era algo que Anna não sabia, mas estava contente de ter ao menos a um de seus familiares com ela no dia de suas bodas.
E é obvio estava Escudeiro. Um dia obrigaria Arthur que lhe contasse como tinha conseguido tirar o cachorrinho do castelo enquanto este estava sob assédio. Anna ficou a choramingar como uma idiota ao vê-lo e teve que explicar a um confuso Arthur que chorava de felicidade. Após, não houve um só dia que não jurasse que se arrependia assim que o mascote o perseguia, mas ela sabia que em realidade não se importava nem a metade do que dizia. A aceitação, ou melhor dizendo, a confiança no afeto parecia agora mais fácil. E que Arthur se esforçasse tanto por vê-la feliz era algo que a comovia até o extremo. Quando fez o mesmo com seu irmão Alan, antes que o castelo caísse e de que sua família fugisse para Inglaterra, quase a tinha matado da alegria. Ver seu irmão, sabendo que não compartilhava a decisão de seu pai e que não cortaria as relações com ela completamente, era mais do que Anna poderia esperar. Alan era leal a seu pai, mas essa lealdade não estava brigada com seu amor por ela.
Sim, tinha muito que agradecer a seu novo marido.
—E o que tem a ti, Arthur? Sei que certamente te decepciona que não estejam aqui todos seus companheiros da Guarda.
Anna não sabia de todos os detalhes da Guarda de elite de Bruce, nem tampouco perguntou, consciente de que esse segredo preservava a segurança de seu marido. Mas sabia que se tratava dos melhores guerreiros de elite na Escócia, o melhor do melhor em todas as disciplinas de guerra. Sempre pensou que havia algo especial em Arthur, mas nunca imaginou quão especial era.
Também tinha adivinhado algumas das identidades por sua própria conta. Seu tio. Os dois homens que o acompanhavam e tinham ajudado a libertar Arthur, Gordon e MacKay. O bonito até dizer chega do Gregor MacGregor, que tinha formado parte do ataque tantos meses atrás. Seu rosto era difícil de esquecer. E parecia certo suspeitar que o ilhéu de feroz aspecto Tor MacLeod era outro deles, assim como esse nórdico extremamente encantador, Erik MacSorley. Ambos estiveram sentados junto ao rei com suas esposas, embora nesse momento só elas permaneciam ali.
Pode ser que não soubesse todos os detalhes, mas Anna sabia o suficiente para compreender quanto significavam esses homens para Arthur, embora não fosse consciente disso. Entretanto, seria.
Arthur encolheu os ombros como se aquilo não lhe importasse realmente.
—Há paz no norte, mas nas fronteiras continuam as revoltas. Estou seguro de que teriam vindo se fosse possível. Gordon se casará logo. Talvez consiga vê-los todos nesse dia. Há muito que fazer antes que o rei atenda a seu primeiro Parlamento na próxima primavera — continuou, depois de uma pausa — Estou contente de que meus irmãos possam estar aqui. É a primeira vez que estamos todos juntos na mesma estadia há anos.
Sir Dugald e sir Gillispie se renderam junto a seu avô e Ross. Surpreendentemente, não pareciam guardar rancor de Arthur; entretanto, pela expressão de sir Dugald enquanto discutia com sir Neil, não se podia dizer que seus sentimentos fossem os mesmos para seu irmão mais velho.
—Pois pelo que parece, poderiam ter esperado mais tempo.
Arthur sorriu.
—Sempre foram assim. Rivais encarniçados, inclusive quando pequenos. Eu acredito que essa é a razão pela que Dugald se alinhou junto aos ingleses durante tanto tempo, para não ter que acatar ordens do Neil. Já se arrumarão. A seu devido tempo.
Anna advertiu que Arthur voltava o olhar ao redor.
—Está preparado para dançar? —perguntou com inquietação.
Arthur arqueou uma sobrancelha.
—Estou preparado para ir à cama.
O olhar dela se voltou de novo para Gregor MacGregor de maneira inconsciente. Para seu consolo, dessa vez o guerreiro assentiu. Entretanto, quando voltou o olhar para este Arthur tinha os olhos entreabertos.
—Importaria de me dizer por que cada vez que menciono a cama olha ao MacGregor? —Anna se ruborizou — Vai me dizer do que se trata? —exigiu com aborrecimento — Está tramando algo. E não me diga o contrário, porque posso pressentir.
Anna ergueu o queixo, molesta com sua acuidade.
—Acreditava que seu calcanhar de Aquiles fosse eu.
—E é —disse Arthur com um gesto brusco da mão — Mas não o dele.
Não parecia fácil surpreender a alguém que estava pendente de cada matiz, que notava qualquer mudança e advertia qualquer movimento a seu redor. Inclusive tinha percebido as mudanças de seu corpo antes dela e a informou que seria melhor que adiantassem as bodas ou seu filho seria muito grande para ter só dois meses de vida.
Anna o obsequiou com um olhar de suficiência.
—Está ciumento. —Deixou que seu olhar voltasse a recair sobre o fundo da mesa e ficou olhando de maneira pausada, como se o estivesse apreciando — É bastante bonito esse teu amigo.
Sua cara feia piorou mais ainda.
—Pois não será por muito tempo, se continua olhando-o assim. E não me respondeste.
Anna soprou e se deu por vencida.
—Está bem, mas queria que fosse uma surpresa.
—O que queria que fosse uma surpresa?
Depois de um breve passeio além das portas do castelo Arthur descobriu a razão para tanto subterfúgio. De pé numa clareira da floresta, com o halo laranja do sol do entardecer atrás dele, erguia-se o rei Robert Bruce ante um obelisco, investido com toda a cerimônia real que lhe supunha. Junto a ele, alinhados como um pano de fundo, com seus traços mascarados sob os elmos com nasal cobertos de breu, esperavam os outros dez membros da Guarda secreta de Bruce.
Arthur se deteve sobre seus passos e lhe dirigiu um rápido olhar de incredulidade.
—Tiveste algo que ver nisto?
Anna negou com a cabeça.
—Foi idéia do rei Hoo… —começou, detendo-se o ver o rosto que punha seu marido — Foi idéia do rei Robert —se corrigiu, embora esse título ainda não saía de seus lábios com naturalidade — Minha missão era te distrair —disse fazendo uma careta — Uma missão em que, ao que parece, fracassei.
Arthur a agarrou em braços e a beijou.
—Pois eu acredito que a cumpriu que maneira admirável.
Anna transbordou de alegria.
—Vá. Estão esperando.
Por fim Arthur teria a cerimônia da que nunca pôde gozar. A cerimônia que lhe fora negado por seu papel como espião. Aqueles homens eram tão parte dele como ela mesma. Anna cruzou os braços sobre seu ventre. E como logo seria seu bebê.
—Não demorarei muito — disse Arthur trás beijá-la de novo.
—Estarei esperando.
«Sempre.» Do mesmo modo que ele retornaria sempre para ela. Aquele homem que a todo momento olhava à porta como se quisesse fugir, tinha encontrado o lugar ao que pertencia. E em um mundo no que a paz era tão frágil como uma parte de cristal, Anna tinha encontrado a rocha em que apoiar-se.
Observou-o dirigir-se para eles com o peito cheio pelo orgulho e felicidade. Uma vez que chegou lá, Anna começou a afastar-se. Entretanto, mal teve percorrido alguns metros mais à frente do círculo de árvores quando duas mulheres a detiveram.
—Aonde vai? —perguntou em um sussurro Christina, a mulher de Tor MacLeod.
Anna tentou não sentir-se intimidada por sua beleza, mas parecia impossível. Christina era tão deliciosa e refinada como uma princesa de conto de fadas, sobretudo ao compará-la com o aspecto aterrador de seu marido, que parecia tirado das páginas arrancadas de algum livro antigo sobre mitologia nórdica.
—Eu… pensava que não pudesse olhar.
A segunda das mulheres sorriu. Embora não era tão incrivelmente formosa como Christina Fraser, havia algo sereno e agradável em Elyne, a esposa do descarado pirata Erik MacSorley. Anna ficou perplexa quando descobriu que era a filha do conde de Ulster, um amigo íntimo do rei da Inglaterra. Mas também era irmã da esposa encarcerada do rei Robert, Elizabeth. Outra família dividida, ao que parecia.
—Acham que não —disse Elyne — Mas isso não vai me deter. Não tive oportunidade de ver a de meu marido. Não perderia isso por nada do mundo.
—Não se zangarão? —perguntou Anna.
Christina lhe dirigiu um sorriso insolente.
—Superarão. Além disso, quero ver que tipo de marca lhe põem.
Anna a olhou com surpresa.
—Já tem uma. O leão rampante. Pensei que todos os homens o tinham.
—Assim é —respondeu Christina — Mas decidiram acrescentar outra pela aranha da cova. Conhece a história?
Anna assentiu. A história da aranha de Bruce na cova formava já parte da lenda.
—Para honrar a ocasião, Erik decidiu acrescentar uma em forma de gargantilha ao redor de seu braço que parece uma teia de aranha — disse Elyne — Como é marinheiro, incorporou também o birlinn nele —acrescentou com um sorriso — Uma vez que outros o viram, todos decidiram fazer um. —Elyne, entre risadas, ergueu o olhar ao céu como dizendo: «Homens».
—Venha — disse Christina, agarrando-a pelo braço e arrastando-a de novo para as árvores — Já começaram.
As três mulheres contemplaram juntas das sombras como Arthur se ajoelhava ante o rei e tomava o lugar que lhe correspondia por direito próprio entre seus companheiros da Guarda, seus amigos.
«Inquebrável», dizia a gravação na espada que Bruce lhe entregou. Anna não podia estar mais de acordo.
Fim
Nota da Autora
A batalha do Estreito de Brander foi chave na guerra de independência da Escócia. Não só representa um exemplo da mudança de estratégias de Bruce, pois este deu uma emboscada a quem pretendia lhe dar uma, mas sim também assinala a precipitada queda em desgraça dos MacDougall e a mudança de poderes na política das Highlands Ocidentais para outro ramo de descendentes de Somerled, os MacDonald, e também para os Campbell, que se beneficiariam do infortúnio dos MacDougall.
Há certo desacordo entre os historiadores na hora de datar a campanha de Bruce em Argyll após a qual John de Lorn fugiu da Escócia e a queda do castelo de Dunstaffnage. Decantei-me pela data mais convencional do verão do ano de 1308, mas há quem opine que a capitulação final de Argyll não foi antes do ano de 1309.
Embora a forma como narro a batalha seja fictícia, incorporei muitos dos acontecimentos reais, entre os quais se inclui John de Lorn dirigindo seus homens de um birlinn à beira do lago, já que se supunha que estava recuperando-se dessa enfermidade que tinha propiciado a trégua do ano anterior. Diz-se ainda que ao falhar seu ataque, retirou-se a um de seus castelos.
Mas há um detalhe em particular da batalha que foi o que me deu a idéia para a história. Li algo a respeito de um explorador que supostamente tinha advertido ao Bruce da emboscada, com isso salvou sua pele. Aquilo soava como um trabalho perfeito para meu rastreador de elite Arthur Campbell.
O personagem de Arthur Campbell está inspirado vagamente em Arthur de Dunstaffnage, o irmão, ou pode ser que o primo do Neil Campbell. Tal e como sugere seu apelido, foi renomado governante do castelo de Dunstaffnage depois da guerra. Algo que encaixava à perfeição com minha heroína MacDougall, embora Anna seja um personagem fictício e o nome da esposa de Arthur, se é que a houve, não apareceu. Curiosamente, sim existiu um compromisso de matrimônio entre Arthur e Christina das Ilhas MacRuairi, embora nunca chegaram a casar-se.
O que também se adequa à perfeição com Arthur, e deste modo com seu irmão Dugald, é que se dizia que esteve no lado dos ingleses durante um tempo e mais tarde passou ao de Bruce. Arthur de Dunstaffnage não é, provavelmente, o mesmo Arthur progenitor do clã MacArthur. Parece mais plausível que este Arthur proviesse de outro ramo da família, possivelmente mais antiga, os Campbell do Strachur (que significa «filhos de Arthur»). Mas há muita confusão e existem diferentes teorias respeito à linhagem dos MacArthur, incluindo a descendência direta do rei Artur. Um antigo provérbio das Highlands diz: «Não há nada mais antigo que as colinas, MacArthur e o diabo».
Neil Campbell foi um dos partidários de Robert Bruce mais importantes e leais. De fato, ao final Neil acabaria casando-se com a irmã do rei, Mary, quando a libertaram do cativeiro da jaula nas alturas do castelo do Roxburgh, ao redor do ano 1310. Mary voltaria a casar-se depois da morte de Neil, algo comum em uma época em que havia tantos viúvos e viúvas. Aos leitores do primeiro livro da série, O Guerreiro, talvez lhes interesse saber que seu segundo marido foi Alexander Fraser, o irmão da Christina.
Um interessante ponto e aparte na história do Neil dá certo colorido à época: parece ser que sua primeira esposa era filha de Andrew Crawford. Neil e seu irmão Dugald, que foram nomeados guardiães das duas irmãs Crawford, decidiram tomar como esposas de maneira literal: seqüestraram-nas.
John de Lorn, também conhecido como John Bacach (John o Coxo) e como John de Argyll, foi uma figura destacada na política das Highlands Ocidentais, responsável não só da morte do Colin Mor Campbell na batalha de Red Ford, mas também da de seu parente Alexander MacDonald, lorde de Islay, o irmão de Angus Og.
Lorn sofreu enormemente por sua lealdade aos Comyn, a quem estava ligado por matrimônio, e também por seu ódio ao Bruce, algo que, dado que este assassinou ao Comyn o Vermelho, era uma circunstância bastante compreensível.
O uso de mensageiras femininas por parte de Lorn é minha invenção, mas a frustração das missivas que se perdiam não é. A esse período sobreviveram algumas epístolas, entre as que se inclui uma carta recentemente decifrada do oficial do Banff dirigida ao Eduardo II em que se queixa dos assassinatos de seus mensageiros. Do mesmo modo, a frustração de Lorn ao ficar sozinho frente a Bruce e a dificuldade de conseguir apoios dos barões locais está apoiada na correspondência entre Lorn e Eduardo II, em que o primeiro afirma que se vê obrigado a uma trégua com Bruce porque está doente e «os barões de Argyll não me emprestam ajuda alguma» (Robert Bruce, G.W.S. Barrow, Edinburgo University Press, Edinburgo, Escócia, 2005, P. 231).
Não há fonte que confirme a doença de Lorn. O ataque ao coração e os conseguintes problemas coronários são de minha própria invenção, algo que resulta ajustar-se bem a sua propensão a esses violentos ataques de cólera. Paralelamente, também se desconhece a fonte da que provém a enfermidade debilitante que golpeou ao Bruce no inverno do ano 1307. Embora certos rumores históricos a identificam com a lepra, as últimas hipóteses apontam que devia ser escorbuto. Qualquer que fosse a causa, sacudiu com força ao novo rei e, conforme se diz, esteve a ponto de acabar com ele. Supostamente, Bruce foi levado nas costas por seus homens à batalha de Inverurie.
O broche que Lorn leva no capítulo dois, do qual se diz que o arrancaram de Robert durante da batalha de Dal Righ, segue em poder do chefe dos MacDougall, e sua última aparição em cena é tão recente que somente faz cinqüenta anos. Não obstante, alguns peritos asseguram que o broche em questão provinha de um período anterior.
A batalha de Red Ford ocorreu de maneira diferente de como eu a retratei. Mais que uma emboscada, John de Lorn se encontrou com o Colin Mor junto a um córrego que desembocava no Loch na Streinge (mais tarde chamado Allt a chomhla chaidh, quer dizer, o córrego do encontro). A discussão degenerou em uma briga e este em uma batalha. Os MacDougall se viram superados em número, e parecia que perderiam, até que um arqueiro disparou sobre o Colin o Grande detrás de uma pedra e o matou.
Até onde chegava o poder dos Campbell nas imediações do Loch Awe antes da guerra é algo que não se tem ciência certa, mas já que o fizeram magistrado municipal de Loch Awe perto do ano 1296, podemos presumir que não foi insignificante. Embora se acredita que os Campbell detiveram a propriedade o castelo de Innis Chonnel anterior a dos MacDougall, cuja existência está confirmada no ano 1308, os historiadores não estão seguros disso. Não obstante, no momento em que transcorre o livro, o castelo estava nas mãos dos MacDougall. Lorn menciona em uma carta ao rei Eduardo os três castelos que possui em Loch Awe.
O ódio entre Bruce e os MacDougall só rivalizava com o de seus parentes os Comyn. A «perseguição de Buchan» que seguiu à batalha do Inverurie (ou batalha de Barra) de 23 de maio de 1308, a qual tem lugar a princípio do livro, parece ser uma das poucas ocasiões nas que Bruce deu rédea solta à vingança. A destruição foi tão devastadora que se diz que demoraram anos em recuperar-se e que se falou dela durante gerações inteiras.
Pelo contrário, o rei Robert sim que aceitou a rendição de William (Uilleam II), o conde do Ross, sem tomar represálias pelo papel que tinha desempenhado Ross na captura e posterior encarceramento das damas de Bruce (sua esposa, sua filha, suas irmãs e a condessa de Buchan). Não muito tempo depois da rendição de Ross, seu filho Hugh (Aodh) casaria-se com a irmã de Bruce, Mathilda.
Conforme contam, Alexander MacDougall, lorde do Argyll, era muito velho e estava doente no momento da batalha do Brander. Rendeu-se ante Bruce depois do assédio ao castelo de Dunstaffnage e atendeu ao primeiro Parlamento do rei em março de 1309, mas depois acompanhou a seu filho no exílio, onde morreu em 1310.
Como é habitual, alguns dos castelos que são mencionados no livro são conhecidos com outros nomes. O castelo de Auldearn se conhece também pelo Old Even e o castelo de Glassery (ou Glassary) conhece-se como castelo do Fincharn.
A tortura medieval dos ratos era muito mais truculenta do que sugiro. Colocavam sobre o estômago da vítima uma jaula fechada com um rato em seu interior e depois a esquentavam em cima. O rato, em sua tentativa de escapar, roía lentamente as vísceras do condenado. Um detalhe… interessante que provavelmente teria dotado ao livro de um «colorido» muito fiel à época.
Finalmente, os leitores do terceiro livro de minha trilogia dos Campbell, O highlander traído, talvez percebam a conexão entre a espada de Arthur e a de Duncan, em que gravaram a lenda: «Inquebrável» que passou de geração em geração dos tempos de Bruce. Apesar de que seja de minha própria mente, é obvio que era costume gravar lendas nas espadas e passá-las ao herdeiro.
Notas
[1] Hora da oração completa. Onde estariam todos juntos, sem exceção e rezariam supostamente o rosário completo.
[2] Uma vestimenta, normalmente bordada com o brasão, usada sobre a armadura.
[3] O Rei Robert the Bruce era chamado pelos ingleses e simpatizantes por King Hood, para insultá-lo por usar uma longa capa com capuz. Hood em inglês significa capuz.
[4] Ela se referiu antes a dores no peito do pai. Possivelmente se trate de insuficiência cardíaca do ventrículo esquerdo, onde ele não “retira” o sangue do pulmão, daí o termo encharcamento.
[5] Um “leão rampante” é representado em pé ereto de perfil, com as patas dianteiras levantadas. A posição das patas traseiras varia de acordo com os costumes locais: o leão pode estar em ambas as patas traseiras afastadas, ou em apenas sobre uma, com a outra também levantada para o ataque; a palavra rampant é frequentemente omitida, especialmente nos brasões mais antigos, pois esta é a posição mais usual de um quadrúpede carnívoro.
[6] Um bardo entre os Highlanders da Escócia, que preservaram e repetiam a tradições das tribos, também, um genealogista.
[7] Adonis era um jovem de grande beleza que nasceu das relações incestuosas que o rei Cíniras de Chipre manteve com a sua filha Mirra. Adônis passou a despertar o amor de Perséfone e Afrodite. Mais tarde as duas deusas passaram a disputar a companhia do menino, e tiveram que submeter-se à sentença de Zeus. Este estipulou que ele passaria um terço do ano com cada uma delas, mas Adônis, que preferia Afrodite, permanecia com ela também o terço restante. Nasce desse mito a ideia do ciclo anual da vegetação, com a semente que permanece sob a terra por quatro meses.
[8] O luchd-taighe eram guardas da comitiva pessoal do chefe, ou em termos coloquiais, a sua posse. Sua finalidade era atender o chefe em todos os momentos. Eles eram bem treinados em armas e ações marítimas, bem como perseguições a outros guerreiros. Era uma grande honra ser escolhido como um dos guardas pessoais do chefe e o prestígio de um chefe era derivada a partir do número destes homens luchd-taighe.
[9] Hobelars eram um tipo de cavalaria ligeira, ou montado de infantaria, durdiante da Idade Média , usado para escaramuças. Eles se originaram no século 13 na Irlanda e, geralmente, montavam os cavalos hobelar, um tipo de cavalo leve e ágil.
[10] O escudo é dividido em 8 triângulos.
[11] Tomás da Inglaterra (ou Tomás da Bretanha) foi um poeta anglo-normando do século XII. Sua única obra conhecida é o poema Tristan, uma das primeiras versões conhecidas da lenda de Tristão e Isolda. O poema foi escrito entre 1155 e 1170, possivelmente para Leonor de Aquitânia, uma vez que a obra sugere uma relação com a corte de Henrique II Plantageneta. Apenas oito fragmentos da obra sobreviveram aos nossos dias, com um total de 3.300 versos, especialmente da parte final da história . Calcula-se que isso represente cerca de um sexto do poema original. A obra de Tomás é contemporânea de outro grande poema sobre o tema de Tristão e Isolda, escrito por um misterioso escritor chamado Béroul e que também chegou de maneira fragmentária aos nossos dias. Comparada à obra de Béroul, o Tristan de Tomás é considerado mais próximo do refinamento do romance cortês.
[12] cama bamba, meio velha ou quebrada.
[13] Os Saxões chamavam ao grupo das pedras eretas (menhires) «Stonehenge» ou «Hanging Stones» (Pedras Suspensas), enquanto os escritores medievais se referem como «Dança de Gigantes». Inigo Jones, famoso arquiteto do século XVII que fez o primeiro estudo sério sobre Stonehenge, considerou-o um Templo romano. Mas William Stukeley, um estudioso de Monumentos e Franco-Maçom do século XVIII, convenceu muita gente de que se tratava de um Templo construído pelos druidas britânicos. Só no século XX os arqueólogos estabeleceram a idade real do Monumento e chegaram a conclusões mais realistas acerca da sua finalidade. A zona de Wiltshire, nos arredores de Stonehenge, é rica em ruínas Pré-Históricas. Woodehenge, Durrington Walls, Cursus e mais de 350 sepulturas são testemunho da intensa atividade comunal dos habitantes, que pastoreavam animais, semeavam trigo e adoravam os seus Deuses na Planície de Salisbury e em torno dela. A construção de Stonehenge teve início cerca de 3500 a. C
[14] Monges beneditinos bastante severos
[15] O aplastapulgares é uma das torturas mais antigas e simples. Embora vários dispositivos mecânicos foram usados para realizar a tortura em si foi o esmagamento das unhas, falanges e juntas em um lento e gradual, estendendo-se a dor por dias, sem causar danos letais para a vítima. O nível de perturbação pode ser controlado, a ponto de quase mutilação do membro. Para crimes de tortura geralmente grave usa-se lentamente, começando com as unhas, passando depois para as falanges e terminando nas juntas, e destruindo completamente as duas mãos.
Capítulo 20
—Retornaram!
Anna correu até a janela de seus aposentos ao perceber a excitação na voz da Mary. Examinou com fruição as figuras com armadura que atravessavam as portas do castelo e quando por fim reconheceu a familiar envergadura de seus ombros exalou profundamente, como se tivesse passado quatro dias contendo a respiração. Havia retornado. Não a tinha abandonado. Dizia a si mesma que era uma loucura pensar que ele fosse capaz de tal coisa. Entretanto, não queria admitir quanto tinha chegado a preocupar-se.
Anna afastou seu trabalho de bordado e saiu correndo do aposento seguindo os passos de sua irmã, que parecia tão emocionada como ela pela volta da partida de reconhecimento. Franziu o cenho. Acaso para sua irmã Mary importava mais o irmão de Arthur do que admitia? Chegaram ao salão justo no momento em que faziam entrar o grupo à câmara de seu pai para dar parte de seu avanço. Fazia um momento que tinham terminado a refeição leve, mas Mary e ela pediram que preparassem algo de comer e beber enquanto aguardavam os homens. Depois de uma espera que lhes pareceu interminável, estes saíram da câmara de seu pai e entraram no salão. O primeiro a fazer foi seu irmão, depois sir Dugald e logo, ao fim, Arthur. Embora estivesse coberto de pó e sujeira, com um rosto maltratado pelo sol, barba de quatro dias e aroma de estrebaria reaquecida, a Anna jamais pareceu mais maravilhoso. Se não fosse pela multidão de homens do clã que se agrupava a seu redor no salão, teria saltado a seus braços.
Afastaram-se um momento enquanto os serventes preparavam as mesas. Desta vez não poderia evitá-la.
—Está bem? —perguntou Anna sem acreditar em seus olhos.
O olhar de Arthur se suavizou ao perceber sua preocupação.
—Sim, moça. Estou bem. Necessito um bom banho, mas, além disso, estou perfeitamente são.
—Alegra-me ouvi-lo — disse mordendo o lábio e olhando-o com vacilação —… Senti tua falta.
Arthur se estremeceu e uma pulsação fez tremer seu queixo.
—Anna…
Ela engoliu em seco e sentiu que de repente lhe quebrava a voz.
—Pensastes em mim?
—Tinha muito em que pensar. —Mas depois, ao ver o rosto que punha, arrependeu-se — Sim, moça. Pensei em você.
Teria ficado contente com isso, a não ser pelo que tanto que custou admiti-lo. As mesas de cavalete estavam já preparadas e os serventes começavam a por pratos com comida. O resto dos homens desfilava para os assentos. E ali foi aonde olhou Arthur do lugar em que estava, junto à câmara de seu pai. Parecia ansioso por reunir-se com eles. Anna não podia enganar-se por mais tempo.
—Não desejas este compromisso. —A verdade ardia. Anna ficou olhando-o fixamente, atormentada pela própria dor de seu peito — É que…? —Mal podia pronunciar as palavras. Tinha comentado que lhe ofereceriam uma esposa como recompensa — É que esperava te casar com outra?
Arthur a olhou com dureza.
—Do que estais falando? Já vos disse que não havia nenhuma outra.
—Então é simplesmente que não me quer.
Parecia que algo o atormentasse.
—Anna… —Arthur pigarreou — Agora não é o momento.
Apesar de que estivessem rodeados de gente, Anna não pôde reprimir toda sua frustração.
—Nunca é o momento. Ou está fora, ou encerrado em alguma reunião ou ocupado praticando. Quando, rogo a Deus que diga, é o momento?
Arthur, visivelmente frustrado, alisou com uma mão seus cabelos encrespados pelo elmo, que lhe caíam em suaves ondas por cima das orelhas. Anna esteve a ponto de acomodar as mechas atrás delas, mas se deteve a tempo.
—Não sei, mas agora mesmo quão único quero é comer algo, tirar toda esta porcaria de cima e dormir algo mais que umas poucas horas.
Devia estar exausto. Por um momento Anna se sentiu culpada, mas não durou muito. Não pensava permitir que seguisse lhe dando voltas.
—Então amanhã. Falaremos amanhã - disse, olhando-o com firmeza — Em particular.
Talvez, mais que atormentado, estivesse assustado. Não pensava que fosse capaz disso, mas ao que parecia estar a sós com a Anna conseguia algo do que não eram capaz dezenas de guerreiros armados. Não sabia se era pra rir ou chorar.
—Não posso. Supõe-se que sairemos de guarda.
—Quando retornarem. —Parecia louco por encontrar outra desculpa, mas Anna o impediu — Já sei que está ocupado preparando a batalha, mas é que não mereço uns minutos de seu tempo?
Arthur lhe sustentou o olhar durante alguns momentos.
—Sim, moça. Claro que o merece.
—Bem. Então vá comer — disse assinalando uma das mesas — Seus irmãos te esperam.
Arthur assentiu levemente e foi reunir se com sua família enquanto Anna dava meia volta e encontrava a sua irmã Mary mais perto do esperado. Observava-a com uma expressão de comiseração no rosto.
—Não passa nada —disse Anna, envergonhada pelo que pudesse ter ouvido — Está cansado. Isso é tudo.
Mary a agarrou sua mão e a apertou.
—Tome cuidado, Annie querida. Há homens que não querem ser amados.
Ficou circunspeta.
—Isso não é certo, Mary. Todo mundo quer ser amado.
Um sorriso de melancolia escureceu a boca perfeita de sua irmã.
—Amas muito, irmãzinha. Mas há gente que não quer esse tipo de cercania. Há gente que prefere que lhes deixem em paz.
Embora Anna não quisesse acreditar nas palavras de sua irmã, perseguiram-na durante todo o dia enquanto esperava a oportunidade para falar com ele.
Arthur saiu a cavalgar pela manhã cedo, retornou a tempo para a refeição do meio-dia e depois participou junto com seus irmãos e o resto dos homens no treinamento vespertino que faziam no pátio. Os exercícios se intensificavam cada vez mais já que se aproximava a batalha. Aproveitavam a luz dos longos dias de verão e não acabavam até as oito da tarde. O jantar era frugal, como também eram as preces vespertinas. Anna se viu tentada de o seguir ao ver que se dirigia para o lago, mas sua mãe a reclamou para que a ajudasse a dirimir uma disputa nas contas do lar, e uma vez que acabou, ele já estava de volta e se encerrou em uma reunião junto aos cavalheiros de alta fila e os guerreiros da meinie de seu pai no que se converteu em um conselho de guerra noturno. Anna o esperou em uma pequena saleta situada no vão da escada, consciente de que Arthur teria que passar por ali a caminho dos barracões. Normalmente somente ia a aquele lugar para ler algum livro, mas estar oculto do olhar por uns cortinados de veludo parecia algo mais particular que lhe esperar no salão, repleto de homens que dormiam. Tinha levado consigo uma vela para ler, mas à medida que caía a noite seus olhos se cansaram demais, de modo que a pôs a um lado.
Devia ser meia-noite quando os homens começaram a sair dos aposentos de seu pai. Arthur foi um dos últimos, mas Anna finalmente viu como entrava pelo corredor junto a seus irmãos. Quando se aproximou de sua posição, ela afastou os cortinados e desceu a escadinha para dirigir-se a ele. Para ouvir o comentário de seu irmão, Arthur a buscou com o olhar com uma expressão mais resolvida que surpreendida e foi a seu encontro, enquanto seus irmãos abriam a porta que conduzia ao barmkin.
—Não deveria ter permanecido acordada - disse.
—Esqueceu que acordamos nos ver hoje? —repôs ela com o cenho franzido.
—Não. —Suspirou — Não esqueci.
Apareceram mais homens no corredor.
—Venha — lhe disse Anna, protegendo-se em uma pequena cova que usavam para armazenar o vinho do senhor do castelo, aonde ninguém lhes incomodaria.
Assim que abriu a porta sucumbiu ao rico e frutífero aroma, que se intensificou ao fechar a estadia. Colocou a vela sobre um dos tonéis e se voltou para olhá-lo. Tratava-se de uma despensa pequena encravada na parede. Um espaço íntimo, muito íntimo. Anna se ruborizou ao conscientizar-se disso. Arthur permanecia ali à luz trêmula das velas como um convidado de pedra, com uma expressão rígida e forçada. Ficou surpresa ao ver que apertava os punhos.
—Isto não é uma boa idéia — disse ele com voz quebrada.
—Por que não?
Arthur a olhou com severidade.
—Não recorda o que aconteceu a última vez que estivemos encerrados em um aposento pequeno?
Anna se ruborizou. Era difícil não recordar à perfeição estando tão perto dele. O calor que desprendia seu corpo a envolvia e sua pele se arrepiava ao recordar as intimidades que tinham compartilhado. Mas não era para isso que o tinha levado ali.
—Só demoraremos uns minutos. Preciso saber… — Ergueu o olhar para examinar seu arrumado e tenso rosto — Quero que me diga se deseja este compromisso ou não.
A franqueza de Anna já não surpreendia a Arthur.
—Anna… — disse tentando lhe distrair — É complicado.
—Isso já disse antes. O que ocultas, Arthur? O que há aí que não quer me contar?
—Há coisas — disse contendo-se e olhando-a com aspereza — Não sou o homem que pensam.
—Sei exatamente o tipo de homem que é.
—Não sabe tudo.
Anna reconheceu o tom de advertência.
—Então me conte isso - Ao ver que não respondia, acrescentou—: Sei o que é o importante. E sei que te quero.
Aquelas palavras pareceram lhe doer. Arthur se aproximou para acariciar a bochecha com uma expressão de tristeza que lhe rompeu o coração.
—Pode ser que pense isso agora, mas logo mudará de opinião.
Seu tom paternalista e essas advertências crípticas a punham fora de si.
—Não o farei — disse Anna com veemência, apertando os punhos para aplacar a vontade que tinha de gritar ou de romper a chorar. Respirou profundamente para acalmar-se e continuou—: É algo muito simples, Arthur: quer se casar comigo, sim ou não?
—O que eu quero não vem ao caso. Estou pensando em você, Anna. Pode ser que agora mesmo não te pareça isso, mas acredite quando lhes digo que o faço por seu próprio bem. Não quero te fazer dano. Tudo pode mudar durante nos próximos dias. A guerra mudará tudo.
Tinha razão. Parecia que todos seus sonhos pendessem de um fio. A guerra estava a ponto de cair sobre eles e tudo o que conheciam mudaria em um abrir e fechar de olhos. A espada de Damocles pendia sobre o poder dos MacDougall nas Highlands. Mas havia algo ao que Anna podia acolher.
—Isso não mudará meus sentimentos por você. São os seus os que estão em julgamento. Não respondestes a minha pergunta — disse depois de uma pausa.
Arthur amaldiçoou e se afastou da porta uns passos, numa tentativa de perambular que não encontrava espaço suficiente. Quase roçava o teto com a cabeça. Parecia um leão à espreita em uma jaula muito pequena. Estava em um estado de rigidez absoluta, irradiando tensão por cada um de seus poros. Ao final deu a volta e a tomou pelo braço com expressão furiosa.
—Sim, maldita seja. Quero me casar contigo.
A escura nuvem que se pousou sobre ela se dissipou. Não era a declaração de amor mais romântica que tivesse ouvido, mas isso bastava. Seu corpo se encheu de calidez, e sorriu.
—Então o resto não importa — disse aproximando-se mais a ele e procurando instintivamente a conexão entre ambos corpos.
Arthur se estremeceu ao notar o contato, mas nessa ocasião Anna não procurou mais razões. Queria-a. Muito. Apesar de que fizesse quanto podia por resistir a isso. A tensão se desprendia de seu corpo reverberando como a pele de um tambor. Seus olhos se pousavam sobre seus lábios com um olhar obscurecido pelo desejo, mas mesmo assim seguia lutando contra isso.
—O que acontecerá não voltará, Anna? Então o que?
Gelou o sangue. Por isso atuava daquele modo? Tentava prepará-la em caso de que morresse no campo de batalha? Não suportava pensar nisso, mas sabia que existia essa possibilidade. Ele podia morrer. Atraiu-o mais para si, aferrando-se aos fortes músculos de seu braço como se jamais pensasse deixá-lo partir. Deus não podia ser tão cruel para afastá-lo dela. Mas e se o fizesse? , pensou com o coração encolhido.
Ela sabia o que queria. Não estava na sua mão controlar o que aconteceria no futuro, mas sim que podia controlar o presente. Talvez sim o tivesse levado a esse lugar com uma segunda intenção.
Arthur era consciente de que aquilo era má idéia, mas tal e como tinha comprovado mais vezes das que queria recordar, era um perfeito tolo no que se referia a Anna MacDougall. O sangue corria cálido por suas veias e uma pátina de suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. O intenso aroma do vinho, o almiscarado cheiro de terra do pequeno aposento e a leve fragrância floral de sua pele o embriagavam de desejo. Estavam muito perto um do outro, e sua necessidade era muito urgente. As imagens do quanto desejava fazer amor com ela davam voltas em sua cabeça deixando-o meio louco. Estavam a sós, maldita seja. Era muito perigoso. Mas se Arthur pensava que a desanimaria lhe falando de um futuro incerto, tinha errado em seus cálculos.
—Não quero pensar na guerra nem no que acontecerá amanhã. Somente quero pensar no presente. Se hoje fosse o último dia que ficássemos juntos, o que é o que queria?
«A você.» Sentiu a pulsação. Queria o que lhe oferecia mais que tudo no mundo.
Eram suas palavras. Sua certeza. O fazia sonhar. Arthur queria acreditar que havia um futuro possível. Queria acreditar, embora fosse por um instante, que Anna podia ser dele. Seu coração bateu como um tambor quando ficou nas pontas dos pés para lhe beijar. Em sua luta por não equilibrar-se sobre ela, Arthur deixou escapar um gemido. Sabia que assim que o fizesse não teria forma de parar. Tinha uma boca cálida e suave, muito doce. Tinha sabor de mel e cheirava como… Deus, cheirava como um jardim recém regado sob o sol estival.
Anna lhe acariciou o queixo com os lábios. Depois, o pescoço. Arthur começou a tremer. Não poderia agüentar aquilo durante muito mais tempo. Via-se incapaz de resistir. Rezava para que a tortura acabasse, mas em vez disso piorou. Anna apertou seus quadris contra ele e se esfregou contra a parte de seu corpo que desejava mais o contato, a parte de seu corpo que estava dura e palpitava, e que era impossível de controlar.
—Aquele dia estivemos tão perto — sussurrou junto ao pescoço de Arthur com um quente fôlego que provocou calafrios em sua pele em chamas— que quero saber como segue. —Uma gota de suor apareceu por sua têmpora. O frio aposento se esquentou em questão de segundos. Anna lhe rodeou o pescoço com seus braços e se grudou a ele. Buscou-o com o olhar — me ensinem Arthur.
Essa petição desavergonhada rompeu o último fio de que pendiam as reservas de Arthur. Soltou um grunhido, empurrou-a contra a porta, prendendo suas mãos por trás da cabeça, e a beijou. Não, devorou-a com seus beijos. Se deu um festim com sua boca fazendo uso dos lábios e a língua, beijando-a como se jamais pudesse saciar-se.
Ela respondeu a seu ardor com mais ardor, engastando sua língua a dele, imitando seus eróticos movimentos. O crepitar na cabeça de Arthur era cada vez mais sonoro. Seu corpo estava cada vez mais tenso. Mas não era suficiente. Tombou-se sobre ela, fez que seus corpos se acoplassem e começou a mover-se, primeiro com delicadeza e depois com mais insistência, à medida que Anna se retorcia e gemia com inocente frustração. Tinha vontade de lhe levantar as saias e afundar-se dentro dela, ver como se desfazia quando ele se aferrava nela mais forte e mais profundo. Uma e outra vez. Reclamando-a para si.
Mas estava tão receptiva, sentia o prazer de uma forma tão pura, que em seu interior cresceu uma onda de ternura que lhe fez afastar-se. Anna ficou piscando com uns olhos incrédulos que nadavam em paixão e a boca meio aberta, com os lábios inchados por seus beijos, mal separados.
—Rogo-lhes isso, não…
—Chist! —disse Arthur sossegando seus protestos com um doce beijo — Não vou parar.
Era muito tarde para isso. Era um homem, não um santo vindo do céu. Tinha muita vontade de possuí-la e ela o tinha levado muito longe. Já teria tempo para as recriminações. Nesse momento, Anna era dele. Mas não a teria contra uma porta como se fosse um animal no cio. Soltou o broche dos Campbell que levava para ajustar a manta e a estendeu sobre o chão de pedra. Depois se sentou sobre ela e lhe estendeu a mão. Anna não duvidou. Aceitou sua mão e permitiu que a recostasse a seu lado com um sorriso que lhe partiu o coração. Havia justo o espaço suficiente para esticar-se entre os tonéis de vinho.
Arthur acariciou seus cabelos e a atraiu para si para beijá-la com toda a paixão e a emoção que se concentravam em seu interior. Beijou-a como se fosse tudo para ele, e Anna se deixou levar pela doce posse daquele beijo. Se aninhou a seu lado e se sentiu cálida, amparada e protegida acima de tudo que acontecia fora do círculo mágico de seu abraço. Sentia… «Paz.» Em seus braços sentia essa paz e alegria que sempre lhe eram esquivas.
Voltou a passar os dedos entre seus cabelos e lhe sustentou o pescoço com sua grande e calosa mão, descrevendo suaves círculos em sua nuca com o polegar.
Poderia passar a vida beijando-o, estendida junto a ele, amoldando-se a seu corpo, sentindo a rígida força de seus músculos contra ela. Seu calor era como uma vagem protetora que os rodeava. As longas e pausadas carícias de sua língua faziam que se derretesse de paixão. Era perfeito. Mas quando essas longas e pausadas carícias pediram mais, quando seus beijos se fizeram mais intensos e profundos, quando começou a apertá-la com mais força e Anna percebeu a dura coluna de aço que pressionava seu ventre, se deu conta de que aqueles beijos não eram suficiente. Sentiu essa estranha sensação formando-se de novo em seu interior. O despertar. Os indícios. A energia incansável que pulsava entre suas pernas e fazia que ansiasse esse contato até o desespero. Mas nessa ocasião estava a par do que aconteceria depois. Recordava a mão de Arthur entre suas pernas, seus dedos dentro dela, os agudos espasmos do momento de liberação.
Recordava perfeitamente a avultada cabeça redonda de sua virilidade golpeando em seu interior de maneira íntima.
Gemeu e moveu os quadris em círculo contra ele, ansiando o alívio que somente a fricção podia lhe oferecer. Tinha o corpo em chamas, e os mamilos cada vez mais eretos e sensíveis à medida que se roçavam contra seu peito. Tentou atraí-lo mais para si, passando as mãos pela larga envergadura de seus ombros, pelos duros músculos de seus braços e suas costas. Apesar de que sob o tecido escocês Arthur só levasse a regata, as meias e os braies, aquelas finas capas de tecido se converteram em uma barreira incômoda. Anna queria tocá-lo. Queria sentir o calor de sua pele vibrando sob a pressão de seus dedos.
Certamente ele se deu conta de sua frustração. Afastou sua boca da dela, tirou o cinturão e passou a regata por cima da cabeça, jogando-a ao chão. Seu torso era tão impressionante como recordava. Ombros largos, braços musculosos e um ventre plano sulcado por linhas rígidas de puro metal cobertos por uma pele ligeiramente bronzeada sublinhada por cicatrizes de diferentes tamanhos. A pior delas era uma em forma de estrela que luzia junto a seu ombro, o tipo de marca que deixa uma flecha ao cravar-se. E agora via com claridade a marca do braço: o leão rampante, símbolo do reino da Escócia. Não podia afastar o olhar dele. Por Deus bendito que era um homem formoso.
—Moça, se segue me olhando deste modo, isto se acabará em um abrir e fechar de olhos.
A rouquidão de sua voz fez que Anna se estremecesse de desejo da cabeça aos pés. Ruborizou-se.
—Eu gosto de te contemplar. —O olhar de Arthur se obscureceu — É magnífico.
Anna, incapaz de esperar um segundo somente mais, acariciou seu seio com as palmas das mãos e essa sensação faiscante a fez gemer. Arthur, por sua parte, proferiu um profundo som gutural e a voltou a tomar em braços. Nessa ocasião não havia volta atrás. Anna cheirava seu desejo e sentia a necessidade que se desprendia dos eróticos arremessos de sua língua. Tudo ocorria muito depressa, mas cada momento se gravava a fogo em sua memória. Queria recordar tudo. O modo em que a saboreava. A maneira em que sua boca descansava sobre a sua. O áspero roçar de seu queixo sobre sua pele. O calor que desprendia seu corpo. O poder daqueles músculos que se esticavam sob suas mãos. O feroz rugir dos batimentos do coração contra seu coração. Queria recordar todas as sensações. Cada um dos aromas. Cada roce.
Estava tão excitada e sensível que sentia a pele quente e avermelhada. Apenas se deu conta de como suas mãos desatavam os nós de sua sobreveste sem mangas e a tiravam pelos ombros. Então se encontrou com que cobria seio e o massageava através do fino tecido de linho de sua regata, ao mesmo tempo em que levava a língua até seu pescoço. Arthur roçou a tensa protuberância de seu mamilo com o polegar, descrevendo círculos, acariciando-o, beliscando-o brandamente entre os dedos.
As mãos de Anna percorriam avidamente suas costas, aferravam-se a seus ombros e lhe arranhavam a pele a cada uma de suas provocadoras carícias. Gemeu da vontade que tinha de romper o tecido e notar o contato direto de seus dedos, sua boca. E seus desejos se fizeram realidade. Primeiro o vestido e depois a regata passaram sobre suas pernas até chegar à cintura e logo por cima da cabeça.
Se não fosse pela forma com que ele a olhava pode ser que nem sequer percebesse. Arthur ergueu a cabeça e passeou o olhar por sua nudez, o que fez que ela se ruborizasse e procurasse cobrir-se, mas ele não pensava permitir-lhe Agarrou-a pelos pulsos e negou com a cabeça.
—Não —disse de maneira brusca com uma voz rouca que destilava violência —É preciosa. —exclamou Arthur, ficando do meio lado e acariciando seu braço como se fosse tão delicada que pudesse rompê-la com somente tocá-la. Acariciou seus seios com o olhar, fazendo que ficassem mais arrepiados ainda. Passou um dedo pela ponta e depois por sua abrupta curva — Jesus! —disse com a respiração entrecortada — Seus seios são de outro mundo.
Arthur soltou um gemido e se inclinou para agarrá-los e levar-lhe à boca. Beijou primeiro um de seus espectadores ápices e logo o outro, deixando-a tremendo de vontade. Quando ao fim a capturou com seus lábios e mergulhou um mamilo em sua boca, Anna gemeu de prazer. Arthur jamais tinha visto nada tão formoso. Era consciente de que deveria conter-se para saborear sua suave pele de pêssego em toda sua imensidão, mas com somente vê-la estivera a ponto de chegar ao limite. Parecia um anjo, esbelta e delicada do mais alto de sua cabeça até as diminutas impigens de seus pés. Se não fosse por esses seios, teria pensado que estava morto e tinha chegado ao céu. Porque seus seios eram puro pecado. Uma fantasia masculina feita realidade. Grandes, mas não em demasia, redondos e erguidos, com a rigidez da juventude; sua suave e cremosa carne estava coroada por mamilos de cor framboesa que faziam a boca água. E tinha gosto disso…
Gemeu de prazer e voltou saborear, rodeando sua cálida e ereta ponta com a língua. Sabor de doces desejos carnais e escuros prazeres melosos.
Queria ir devagar, prolongar cada momento de prazer, mas sua necessidade era muito ardente, muito desesperada, e fora evitada durante muito tempo. Pôs a mão entre as pernas e a explorou com os dedos. Tinha uma ereção de cavalo, mas notar quão molhada estava, saber que estava úmida para ele, fez que lhe pusesse mais duro ainda. Lambeu seus seios e a acariciou com os dedos até que seus quadris começaram a ir contra sua mão e sua respiração entrecortada se voltou irregular. Quando soube que Anna estava a ponto de gozar, liberou-se dos braies e as meias com rapidez e se colocou entre suas pernas.
Seus olhares se encontraram.
Gostaria de dizer que pensou duas vezes, mas não era certo. Tudo que podia pensar era na necessidade de fazê-la sua, que não podia deixá-la escapar. Em que em seus olhos via a aceitação e o amor que jamais pensou que seriam para ele. Um amor que Deus sabia que ele não merecia, mas que desejava mais que nenhuma outra coisa no mundo.
—Por favor — soluçou Anna.
Esse era o convite que Arthur necessitava. Levantou-lhe uma de suas pernas para colocá-la em cima de seu próprio quadril, ao mesmo tempo em que apertava os dentes para reprimir a vontade que tinha de investir com todas suas forças e se dispunha a facilitar entrada. Embora talvez a palavra «facilitar» não fosse a adequada. Ela era estreita e ele era grande. Enorme.
O suor se acumulou sobre suas sobrancelhas.
Apertada. Deus, estava tão incrivelmente apertada… Apertou todos os músculos diante da insistência que crescia em sua virilha. Seus testículos se esticavam ao mesmo tempo em que a pressão subia pela base de sua coluna. O corpo de Anna lutava contra aquela invasão, mas ele não pensava permitir uma negativa. Empurrou um pouquinho mais, fazendo que ela se estremecesse e emitisse um gemido de angústia.
O sangue bulia por suas veias. Parecia estar a ponto de explodir, mas se conteve para dar-lhe tempo a preparar-se antes de enterrar-se completamente entre suas pernas.
«Jesus. Que não empurre mais.»
—Não… não estou segura de que isto vá funcionar —disse Anna com inquietação — E se… e se for pequena demais pra ti?
A risada abriu passo entre o sofrimento através do peito de Arthur. Já explicaria os pormenores do assunto mais tarde.
—Confie em mim, amor. Acoplaremo-nos um ao outro perfeitamente. —Mas o certo é que era a primeira vez que estava com uma virgem — Pode ser que doa e seja incômodo a princípio — disse olhando-a nos olhos — De acordo?
Anna assentiu, mas a viu um pouco menos segura que antes. Não deixou de olhá-la nos olhos um só momento, oferecendo seu apoio tácito à medida que se afundava mais e mais nela, com cada um de seus dolorosos centímetros, um após o outro.
A sensação de ter seu corpo rodeando seu pau e apertando-lhe tanto era quase mais do que podia agüentar. Sabia do muito que gostaria, fazia desonestos esforços para lutar contra a urgência de investir. Esse calor estreito, aveludado e úmido envolvendo-o, espremendo-o. Todos os músculos de seu corpo ficavam rígidos de tensão no tanto que tentava conter-se e fazer as coisas com calma. Sentia-se maravilhado. Mas tinha que fazer que fosse perfeito para ela, paciência era a palavra chave.
«Já falta pouco…»
«Agora.»
O ponto de não retorno. Olhou-a nos olhos, sentiu como seu peito se contraía e deu o empurrão final. Anna gemeu e os olhos se puseram enormes como pratos da dor, mas não gritou. Ao ver o aspecto estóico de seu rosto teve vontade de rir.
—Já verás como depois é melhor, amor, prometo-lhe isso. Tentem só relaxar.
Ela o olhou como se fosse louco.
—Não acredito que isso seja possível.
Mas então Arthur a beijou e Anna comprovou quão errada estava…
Quando a penetrou, Anna sentiu uma pontada de dor e lhe deu vontade de gritar com todas suas forças. Mas se dava conta do que ele sofria, de modo que se reprimiu, consciente de quanto se esforçava por não a machucar. Não era culpa dela que a providência o provesse com um pouco tão… descomunal. Aquilo devia fazer que tudo fosse bastante incômodo…
«Um momento.» Estava-a distraindo com seus beijos, mas por um instante teria jurado que acabava de sentir um… Aí o tinha de novo. Uma espetada. Uma espetada prazenteira. Muito prazenteira. Uma espetada que, de fato, parecia incrivelmente agradável. Seu corpo havia se amoldado a ele e a dor desaparecia. Agora sim a notava, quente e dura, enchendo-a de uma forma que jamais teria imaginado. E então Arthur começou a mover-se. A princípio devagar, inundando-se nela e saindo com investidas pausadas e delicadas. Anna gemia ao notar a maneira em que seus arremessos reverberavam por todo seu corpo. Sentia-se como se Arthur a reclamasse para si, como se a possuísse na mais primitiva das formas. Era uma sensação incrível. Tinha que mover-se com ele, erguer os quadris para coordenar-se com suas investidas e que a enchesse até o mais profundo. Com mais força. E depois mais rápido. Agarrou-se a seus ombros e o atraiu mais para si, desejando sentir todo seu peso sobre ela. Seus corpos pareciam estar fundidos um no outro. Pele contra pele. Tremendamente sensual. Um peso dilacerador. A paixão a capturava com seu trêmulo abraço. As sensações ardiam em seu interior. Tomavam forma. Esperavam o momento. Concentravam-se na mais feminina de suas partes. E também ele o sentia. Era como aço sob seus dedos, músculos tensos e acesos, preparados para explodir.
Mas o que mais a excitava era a expressão de seus olhos. Intensa. Penetrante. Obscurecida não só pelo desejo mas também pela emoção. Nessas profundidades de âmbar dourado via refletido o amor que consumia seu próprio coração. Amava-a. Pode ser que ele não percebera ainda, mas ela sim o fazia.
Mantinha-a pega a si, sem deixá-la ir, enquanto se afundava nela uma vez mais, inundando-se tanto como era possível, e ficava aí. Algo poderoso e mágico passou entre eles. Uma conexão como jamais antes tinha imaginado. À medida que a sensação se formava, a respiração de Anna ficou apanhada no mais alto de seu peito. Por um instante todo pareceu deter-se. Seu corpo se mantinha ao bordo do êxtase, fazendo equilíbrio no precipício celestial. Deixou escapar um guincho quando o primeiro dos espasmos de liberação fez que perdesse o controle e ficasse fosse de si, tremendo de prazer.
—Isso, amor. Venha para mim. —Arthur começou a mover-se de novo, atravessando-a com uma despreocupação selvagem — Oh, Deus. Eu gosto muito. Não posso…
Penetrou-a uma última vez com um profundo gemido de satisfação que parecia rasgar-se de sua própria alma. Seu corpo ficou rígido e logo se estremeceu ao notar que seu desafogo coincidia com a maré ascendente dela. Arthur tinha uma expressão fera e formosa, de uma paixão primitiva. Deixou-se cair sobre a Anna com os ecos da última sensação, ainda com seus corpos unidos. Tudo que ela ouvia era o som de suas respirações pesadas e o violento pulsar de seus corações. Desejava ficar assim para sempre, mas Arthur em seguida se afastou e rompeu a conexão.
O ar frio passou sobre seu úmido e ruborizado corpo, lhe deixando a pele arrepiada. Anna era consciente de sua nudez, mas estava muito exausta para mover-se. Suas pernas pareciam de gelatina. Mas tampouco havia razão para envergonhar-se. Arthur não lhe emprestava atenção. Ficou olhando ao teto, ainda com a respiração entrecortada, mas em um silêncio que não pressagiava nada bom. Não lhe tocava dizer algo? Mordeu o lábio, perguntando-se que seria o que pensava. Tinha parecido maravilhoso… «Mas o que acontecerá se o decepcionei?», pensou sentindo uma pontada de dor.
Ao fim Arthur voltou a cabeça para olhá-la e aproximou sua mão para lhe afastar os cabelos do rosto com delicadeza. Ao ver seu estado de incerteza lhe dirigiu um sorriso de menino que se instalou em seu coração para não partir jamais. Anna sabia que nunca poderia esquecer a expressão de seu rosto nesse momento.
—Sinto muito. Não sei o que dizer. Nunca antes… nunca antes havia sentido algo como isto.
Ela esboçou um amplo sorriso como resposta, incapaz de ocultar sua alegria.
—Sério? Não tenho nada com que comparar, mas me pareceu algo maravilhoso.
—Sim, foi maravilhoso. —Arthur se inclinou sobre ela e a beijou com ternura. Mas quando ela ergueu o olhar para olhá-lo de novo seu olhar se turvou — Jamais me arrependerei do que acaba de ocorrer, Anna. Mas por seu próprio bem eu gostaria que não tivesse acontecido.
Anna sentiu o inconfundível tom de advertência e pareceu que lhe cravava um espinho no coração, mas o evitou. Não queria que nada escurecesse esse momento. Se aninhou sob seu braço e apoiou a cabeça sobre seu ombro, abrigando-se com seu corpo de maneira instintiva.
—Eu me alegro de que tenha acontecido — disse ela.
Agora estavam unidos no mais profundo e nada poderia separá-los.
Arthur baixou o olhar para aquela delicada mulher nua que se aninhava em seus braços e lhe parou o coração. O que acabavam de compartilhar não tinha comparação com nada que tivesse experimentado antes. Tinha compartilhado cama com um número de mulheres mais que razoável, mas para ele fornicar sempre tinha consistido em saciar sua luxúria. Encarregava-se do prazer da mulher e do seu com um só objetivo na cabeça: desafogar. Uma vez que estava completo, não havia mais que fazer. Não se atrasava. E estava claro como a água que tampouco queria rodear a mulher com seus braços e desejar ficar assim para sempre. Comparado com o que tinha acontecido com a Anna, o resto parecia quase mecânico, como se tivesse passado por todos os movimentos simplesmente para conseguir o prêmio. Mas com ela o prêmio era a experiência em si mesmo. O prazer estava na exploração, no descobrimento e nos detalhes. Estava no modo em que ela reagia a suas carícias, a maneira em que arqueava suas costas, a pressão que exerciam seus quadris e os pequenos gemidos que saíam de seus lábios. Estava na expressão de seus olhos quando a penetrava, o rubor que lhe tingia suas bochechas quando se aproximava do orgasmo e o modo em que sua cabeça se inclinava para trás e sua boca se abria quando finalmente chegava.
Não fora capaz de afastar o olhar. Normalmente evitava o contato visual, mas com a Anna procurava essa conexão. Queria desfrutar dessa cercania.
Descansou o queixo sobre seu cocuruto, saboreando a sedosa suavidade de seus cabelos. Era tão doce e formosa… além de endiabradamente confiada. Isso fazia que despertasse todo seu instinto de amparo. E algo mais. Algo quente, terno e poderoso. Algo que jamais pensou que pudesse ser para ele. Acreditava ser diferente. Pensava que não necessitava a ninguém, que estava bem sozinho. Mas se enganava. Não era absolutamente diferente. Necessitava-a. Queria-a. Amava-a com um ardor que lhe parecia surpreendente. Talvez pudesse encontrar alguma forma de explicar-se. De implorar seu perdão. Talvez houvesse esperança…
«Ah, que diabos!» Um nó lhe contraiu as vísceras à medida que voltava para a realidade. A quem pretendia enganar? Anna jamais o perdoaria. Como poderia fazer, quando ele tinha a missão de destruir tudo aquilo que ela amava?
Amava-a, mas isso não mudava nada absolutamente. Somente serviria para que o que estava por chegar fosse mais doloroso. Quando acabasse de cumprir seu encargo, não teriam nada que fazer o um com o outro. Amava-a, mas sua lealdade estava com Bruce. Tinha uma missão que cumprir, não só pelo rei, mas também por seu pai. Em um tempo diferente, em um mundo no que não houvesse guerra nem velhas rixas poderiam ter tido uma oportunidade. Mas não nesse mundo. Não nesse tempo.
E mesmo assim gostaria de… Deus, quanto gostaria que tudo fosse diferente.
Anna ergueu o olhar e o olhou sob suas longas pestanas.
—Estou segura de que não somos o primeiro casal comprometido que antecipa sua noite de bodas.
O sentimento de culpa se fez mais profundo. Esse era o problema: não teria noite de bodas. Não a teria quando ela descobrisse a verdade. Era um bastardo. Um bastardo infame. No que estava pensando? Em realidade, sabia perfeitamente. Pensava que a queria mais que a tudo no mundo e que tinha que fazer o que fosse por conservá-la. Consciente ou inconscientemente, queria unir-se a ela de uma forma que não pudesse ser desfeita. Nem sequer pelo engano ou a traição.
Uma aposta desesperada. Egoísta. Perversa. Somente serviria para que Anna tivesse mais razão para odiá-lo. Mas já fora e não poderia trocá-lo por mais que quisesse.
—Não —disse Arthur — Não somos os primeiros, mas dadas as circunstâncias teríamos que ter esperado. —Atraiu-a fazia sim com uma voz tão feroz como seu abraço. Era um filho de cadela egoísta, mas jurou que quando aquela maldita guerra acabasse se daria uma oportunidade. Lutaria por ela, por eles, se o permitisse — Voltarei para ti, Anna. Voltarei se é que me segue querendo.
Ela o olhou com um sorriso nos lábios, cândida e inocente. Muito confiada.
—Pois claro que seguirei te querendo. Nada poderá mudar isso.
Queria acreditar no que dizia. Queria acreditar mais que tudo no mundo. Mas logo suas palavras seriam postas a prova.
Capítulo 21
—O que se passa, Anna? Está muito calada esta manhã. É que não dormiste bem?
Anna olhou a sua irmã com receio, perguntando-se se suspeitaria algo. Era difícil falar. Luzia uma expressão serena no rosto, uma expressão que se adequava ao sermão matinal ao que acabavam de atender. Anna não tinha nem a menor ideia a respeito do que conversava. Estava muito ocupada em rememorar cada um dos segundos da cena que tinha tido lugar a noite anterior. Não cabia dúvida de que pensar tais coisas em uma capela tinha que ser terrivelmente pecaminoso, mas já tinha suficiente pelo que fazer penitência, de modo que se figurou que o dano acrescentado a sua alma não pioraria a situação.
A recuperação dessas lembranças a fez sorrir. Estava claro que regozijar-se no pecado era inclusive mais pecaminoso ainda, mas o certo é que era feliz. Amava Arthur e ele a amava. Na noite passada o demonstrara. Não retornou à câmara que compartilhava junto a suas irmãs até que já era bastante tarde. Ou cedo. Depende de como se olhasse. Ficou aninhada entre seus braços tanto quanto se atreveu a fazer, mas ao final esteve obrigada a retornar a seu aposento. Essas horas passadas entre os braços de Arthur significavam um dos momentos mais contentes de sua vida.
Sob o protetor arco de seu abraço a guerra, o caos e a incerteza do mundo atual não existiam. À fria luz do dia, entretanto, tudo voltava a ser de outro modo. Cumpria-se o décimo segundo dia de agosto. Faltavam três para que expirasse a trégua. Dizia a si mesma que era a guerra o que a inquietava. Dizia a si mesma que a razão de que Arthur se mostrasse tão taciturno ou de que suas palavras adquirissem o matiz da advertência era a própria guerra. Pensando em tudo o que estava por chegar durante nos próximos dias, a perda de sua virgindade antes das bodas deveria ser o que menos lhe preocupasse. Mas por que lhe tinha falado da possibilidade de não retornar? Teria que pôr fim a aquilo.
—Não me passa nada —disse Anna com firmeza — dormi bem.
Na realidade, as quatro ou cinco horas de sonho de que dispôs dormiu placidamente.
—Pois deve ser um livro magnífico.
Nessa ocasião o tom de voz seco de sua irmã não deixava lugar a dúvidas.
—Pois sim — respondeu Anna sem poder evitar ruborizar-se.
Embora freqüentemente lia até entrada a madrugada em alguma das câmaras entre muros do castelo para evitar incomodar a suas irmãs, era óbvio que Mary tinha adivinhado a verdade.
Seguiam de perto ao resto da família, que atravessava o pátio da capela em direção ao grande salão para romper o jejum. Não obstante, a maioria dos homens já estava no pátio de armas praticando. O ruído metálico das espadas, e a cacofonia das vozes ficava maior à medida que se aproximavam. Anna examinou instintivamente as figuras sob as armaduras em busca dele.» O coração lhe deu um tombo só de vê-lo. Arthur estava do outro lado dos estábulos, de costas a Anna. Ali era onde preparavam as balas de palha, assim que se figurou que estaria praticando com a lança. Perto dele estava seu irmão Dugald, mas ao contrário deste, ele sim estava acompanhado. Impulsionava um dado pra frente e para trás e dava voltas no ar sob o atento olhar de três jovens e de bonitas criadas que lhe observavam como se fosse um mago, assentindo a tudo o que lhes dizia. Tentava ensinar a agarrar a lança uma jovem que tinha de frente a si, mas seus enormes seios se interpunham entre seus braços.
Aqueles dois irmãos não podiam ser mais diferentes. Dugald era um fanfarrão ruidoso, o tipo de homem que somente estava contente quando era o centro da reunião e tinha ao redor o máximo de mulheres possíveis. Arthur era mais tranqüilo. Mais reto. Um homem que se contentava estando em segundo plano.
Mary ergueu o olhar ao céu ao contemplar seu exibicionismo e se afastou dali subindo a escada em direção ao grande salão. Anna se apressou a seguir seus passos sem poder evitar olhar atrás uma vez mais. Sir Dugald ria por algo que havia dito uma das garotas. Anna não ouviu o que lhe respondeu, mas teria jurado que era algo do tipo: «Olhe isto».
Ergueu a lança sobre sua cabeça como se fosse jogá-la ao mesmo tempo que gritava a Arthur:
—Arthur, agarra-a!
Antes que Anna se inteirasse do que estava a ponto de fazer, antes inclusive de que o grito pudesse tomar forma em sua garganta, a lança já estava no ar, projetada em direção a Arthur. Estavam tão perto um do outro que quase não teve tempo de olhar em resposta às palavras do Dugald quando já tinha o dardo sobre ele. Apanhou-o no ar no último instante, com uma só mão. O levou ao joelho com um rápido movimento, rompeu-o em pedaços e devolveu as lascas a seu irmão com o rosto escurecido pela cólera.
Isso recordava algo a Anna.
Uma brisa gelada banhou sua pele. Não tinha visto nada igual mais que uma vez em sua vida. Seu rosto empalideceu no momento. Sossegou com uma mão a exclamação de surpresa e ficou petrificada contra o muro da entrada com o coração em um punho. Tinha acontecido exatamente quão mesmo a noite da floresta do Ayr. Essa noite em que a mandaram a recolher a prata para seu pai e se encontrou com uma emboscada. O cavalheiro que a resgatou tinha feito exatamente o mesmo. «O espião.»
«Não, não pode ser», disse-se Anna, invadida por um ataque de terror que lhe percorria as costas. Tinha que ser uma coincidência. Mas as lembranças se retorciam em sua cabeça e a confundiam. Estava escuro. Não pôde ver seu rosto. Ele falava em voz baixa para mascarar sua voz. Mas o tamanho, a altura e a compleição encaixavam perfeitamente.
Não, não, aquilo não podia ser. Anna se tampou as orelhas e fechou os olhos. Não desejava vê-lo. Não queria pensar em todas as razões que davam pé a essa possibilidade. Em suas ocultas advertências. A sensação de que ocultava algo. Suas tentativas iniciais de evitá-la. O olhar de reconhecimento em seu tio Lachlan MacRuairi. Lhe contraiu o estômago. A cicatriz. Deus, a cicatriz não. Mas a marca de flecha em forma de estrela de seu braço se ajustava à ferida do cavalheiro que a tinha resgatado. A bílis subiu até sua garganta.
Mary se conscientizou de que Anna não ia atrás dela e baixou a escada correndo até a entrada em que sua irmã permanecia como uma estátua pega ao muro.
—O que te passa, Annie? Parece que viu um fantasma.
Assim era. Deus santo, assim era. Anna moveu a cabeça, negando-se a aceitá-lo. Tudo a seu redor começou a dar voltas.
—Não… não me encontro muito bem.
Subiu a escada para sua câmara sem mediar mais palavras e quase não teve tempo de tirar o urinol de debaixo da cama quando já estava esvaziando os magros conteúdos de seu estômago e purgando de passagem seu coração nele.
Arthur olhou em redor do grande salão caminho da câmara de Lorn para o conselho de guerra da noite. Ficou circunspeto ao conscientizar-se de sua ausência. Onde diabos teria se metido? A leve sensação de preocupação que lhe assaltou essa manhã ao não ver Anna tinha piorado com o desenvolvimento da jornada. Alan lhe disse que Anna não se encontrava bem. Uma dor de estômago, mas dado o ocorrido a noite anterior, Arthur não acreditava. Estaria zangada? Arrependia-se do que tinha passado entre eles? A culpa o remoia por dentro. O que teria feito?
Obrigou-se a afastar Anna de seus pensamentos e a concentrar-se na tarefa que tinha ante si. Não sobrava muito tempo. O rei Robert atacaria em quatro dias, e Arthur ainda não tinha conseguido nenhuma informação de utilidade.
Entrou no aposento seguindo ao Dugald, que estava de um humor de cão como jamais antes tinha visto, e se sentou à mesa com o resto dos cavalheiros de alta fila e os membros da meinie de Lorn. Minutos depois de que se congregassem os homens, fez sua entrada Lorn. Mas nessa ocasião não chegava sozinho. Seu pai, o convalescente Alexander MacDougall, ia com ele. O pulso de Arthur se acelerou. Se MacDougall estava ali, provavelmente se trataria de algo importante.
O lorde de Argyll tomou assento na poltrona trono que normalmente ocupava seu filho e deixou ao Lorn uma poltrona menor junto a seu posto. Uma vez que se fez silêncio na sala, Lorn tirou um pergaminho dobrado de sua bolsa e o pôs sobre a mesa. Arthur ficou petrificado ao reconhecê-lo imediatamente. Reprimiu uma maldição obscena. «O mapa.» Ou para ser mais exato, seu mapa. O mapa que tinha desenhado para o rei, que tinha entregue ao mensageiro. Devem ter interceptado antes que chegasse ao Bruce. «Maldição.» Desejou ter-se lembrado de mencioná-lo na última vez que se reuniu com eles.
Os homens se aproximaram para ver o de perto.
—O que é? —perguntou um deles.
Lorn adotou uma expressão severa.
—Um mapa dos arredores de Dunstaffnage — disse, fazendo-o passar — E o número de homens e os fornecimentos a nossa disposição.
Houve várias falações de irritação quando alguns dos homens notaram o que significava. Dugald se aproximou mais e examinou o mapa com tal intensidade que a Arthur lhe arrepiaram os cabelos da nuca. Não havia nada delator no documento. A escritura era minúscula e quanto aos desenhos… Dugald nunca tinha emprestado muita atenção aos «ganchos de ferro» de Arthur mais que para rir deles. Não tinha nada que temer. Mas mesmo assim, o interesse que tomava seu irmão parecia inquietante.
—De onde saiu? —perguntou Dugald.
—O tiraram de um mensageiro do inimigo que meus homens interceptaram faz várias semanas —respondeu Lorn — Mas pela exatidão dos números, suspeito que há um traidor entre nós. —Os murmúrios de indignação e raiva zumbiram por toda a sala e Arthur se uniu a eles — Infelizmente o mensageiro não foi capaz de identificá-lo.
—Como pode estar seguro, milorde? —perguntou Arthur.
Um sorriso de cumplicidade curvou a boca de Lorn.
—Estou.
O qual queria dizer que tinham torturado ao mensageiro.
Lorn examinou os rostos dos homens que lhe rodeavam, o círculo interno de seu mando.
—Mantenham os olhos abertos em busca de algo que se saia da normalidade. Quero encontrar a esse homem — disse esmagando o mapa com a palma da mão — Mas este mapa demonstrou sua utilidade. Tenho um plano para ganhar a partida do usurpador em seu próprio jogo.
Arthur ficou quieto, tentando conter a emoção. Talvez ao final pudesse conseguir um pouco de informação para o rei.
—A que te refere? —perguntou Alan.
—Refiro-me a que faremos que suas próprias táticas se voltem em contrário. Bruce conseguiu vitórias frente a força muito mais poderosos lutando segundo seus próprios meios: escolhendo o lugar e o terreno adequados para o ataque, atirando golpes duros e rápidos desde seus esconderijos, usando o mesmo tipo de estratégias que usaram nossos ancestrais durante séculos, táticas de guerra highlander. E que me crucifiquem se permitir que alguém das Terras Baixas ganhe em meu próprio terreno — disse, fazendo ato seguido uma pausa para que o resto fizesse coro sua aprovação — Não ficaremos aqui esperando ao assédio do castelo como ele acredita. Atacaremos nós primeiro.
Todos começaram a falar ao mesmo tempo. Arthur se obrigou a não unir-se à refrega porque queria ouvir o resto. Mas sabia que aquilo era algo grande, monumental de fato. Lorn tinha razão: o rei não esperaria que os atacassem. Não quando tinham uma fortaleza como Dunstaffnage para cobrir-se. Lorn impôs silêncio na sala com um movimento da mão.
—Esperem que conte o resto para fazer perguntas. —Colocou o mapa mais adiante para que os homens que tinha frente a ele pudessem vê-lo — Bruce e seus homens vêm do este pela estrada do Tyndrum. —Apontou a um canto do mapa, fazendo que a pele de Arthur se arrepiasse ao pressentir algo importante. Lorn moveu o dedo seguindo o caminho e se deteve no caminho de Brander. Arthur sentiu o estômago apertar — Para chegar até Dunstaffnage terão que cruzar estas montanhas. No estreito e longo caminho de Brander, ali será onde ataquemos. Poremos a nossos homens aqui, aqui e aqui — disse assinalando três cúpulas por cima das quais não se via nada, devido aos meandros do caminho.
Arthur reprimiu uma imprecação ao mesmo tempo em que o resto da sala prorrompia em uma onda de excitação. Era o lugar perfeito ao que levar a cabo um ataque surpresa. Os MacDougall surpreenderiam ao Bruce de acima, descendo sobre o exército em marcha em uma abertura estreita de onde o rei não poderia tirar vantagem de sua superioridade numérica.
—Quando? —perguntou Dugald erguendo a voz.
—Nossos informe assinalam que Bruce chegará ao Brander na madrugada do dia quatorze.
«Filho de cadela traiçoeiro.»
A sala ficou em silêncio.
—Mas a trégua não expira até o dia quinze — disse Alan com cautela.
Lorn entreabriu os olhos.
—É o usurpador quem escolheu ignorar o código da batalha, não eu. Bruce parte sobre nossas terras. É ele quem rompe a trégua. —Um raciocínio à própria conveniência como jamais se viu antes. Mas ninguém na sala se atreveu a discutir — Alan —continuou Lorn—, partirá com o grosso das forças amanhã e estarão na posição ao cair a noite, somente para nos assegurar.
A Arthur não surpreendeu saber que Alan estaria ao mando. Essas abruptas ravinas e o irregular terreno seriam difíceis de sulcar inclusive para os guerreiros mais jovens.
—Defenderão vocês o castelo, milorde? —perguntou.
Lorn o fulminou com o olhar.
—Meu pai guardará o castelo —corrigiu — Eu farei cargo de uma frota de galeões e comandarei o ataque daqui — disse assinalando o lugar no que o rio Awe entrava no lago do mesmo nome — Assim, quando o tivermos surpreendido de cima, seguiremos atacando do fronte.
Golpeando ao Bruce de duas direções. Era um plano excelente. Não só se tratava de uma localização perfeita para lançar o ataque, mas sim ao atacar primeiro, e antes que a trégua expirasse, teriam o fator surpresa a seu favor.
Essa intervenção provocou uma inundação de perguntas, mas Arthur já estava concentrado na tarefa que tinha. Tinha que advertir ao rei o antes possível sem que Lorn se inteirasse de que seu plano corria perigo. Teria que arriscar-se a enviar a mensagem nessa mesma noite. Depois, na excitação e o caos que precederiam ao ataque, teria a possibilidade de escapulir-se.
«para sempre.»
Encolheu-lhe o estômago. Tinha ante si o momento que tanto tinha temido e sabia que era inevitável. O momento de dizer adeus. O momento em que se supunha que devia voltar para as sombras e desaparecer sem dizer uma palavra. Isso era o que ele fazia. O que sempre soube que teria que fazer. Simplesmente não esperava que fosse tão tremendamente duro. Parecia covarde partir sem uma explicação. Deixar que Anna descobrisse a verdade por si mesma. Gostaria de prepará-la, lhe dizer que a amava e que nunca quis a machucar. De dizer o que sentia, que seguiria sendo dela sempre que ela quisesse.
Mas não podia. Partiria para dia seguinte sendo um homem e quando retornasse o faria sendo outro. Anna o odiaria por isso. Embora duvidava muito de que coubesse uma mínima possibilidade de que estivessem juntos, Arthur jurou que quando terminasse todo a buscaria para tentar explicar-lhe Sempre que ela quisesse escutá-lo.
«Não pode ser certo. Não é possível.» Anna se negava a acreditar. Mas tampouco podia afastar de si a dúvida que se instalou como um parasita em suas vísceras e não queria partir. A desculpa de sua enfermidade não era falsa. As dúvidas se retorciam e remoíam seu interior, debilitando-a. Passava o dia inteiro no refúgio de seus aposentos tentando convencer-se de que aquilo não era possível, de que ele não a enganaria de tal modo. Mas ficavam muitas perguntas no ar. Umas perguntas que não podiam esperar até o dia seguinte. Para então poderia ser muito tarde. Mary e Juliana acabavam de retornar à câmara fazia pouco para lhe informar de que os homens já dispunham os preparativos prévios à guerra. «Guerra.» O medo acendeu seu peito, e a necessidade de encontrá-lo se tornou desesperada.
Tinha o vestido enrugado e cheio de pelos de Escudeiro depois de ter passado todo o dia tombada na cama, mas não perdeu o tempo em trocar-se. Jogou água no rosto, enxaguou a boca, passou uma escova por seu emaranhado cabelo e se encaminhou às dependências de seu pai para pedir a suas irmãs que desse uma olhada no cachorrinho. Defraudou encontrar a porta aberta, já que esperava que os homens continuassem no conselho de guerra. Não obstante entrou, atraída pelas vozes que procediam do interior.
Seu pai, que estava de pé junto a Alan, observando um pergaminho estendido sobre a mesa, ergueu o olhar ao vê-la entrar na sala.
—Ah, Anna. Encontra-te melhor?
—Sim, pai, muito melhor — respondeu ela, tentando não mostrar a decepção que supunha descobrir que se achavam ali somente eles dois. Certamente Arthur já teria se retirado aos barracões para dormir. O que podia fazer ela, então? Que desculpa inventaria para ir em ao seu encontro essas horas?
—Necessita algo? —perguntou Alan, notando a preocupação de seu rosto.
Quando seu irmão baixou o olhar, Anna se deu conta de que estava retorcendo as abas do vestido.
—Parece desgostada por algo
Não podia chegar a fazer uma idéia.
«Oh, Deus. Teria que contar Anna sentiu um vazio no estômago ao conscientizar-se de que deveria compartilhar suas suspeitas com ambos. Mas não podia. Não até que estivesse completamente segura. Seu pai… doía admitir que a ira de seu pai nem sempre era racional. Não podia estar segura do que faria. Mas tinha que contar tudo.
—É pela guerra. Mary me disse que os homens se preparam para partir amanhã.
—Não há razão para preocupar-se, Anna. Sua mãe, suas irmãs e você estarão a salvo aqui.
—Não acredito que seja isso o que lhe preocupa, pai — disse Alan com um sorriso forçado.
Estava certo. Anna empreendeu a retirada, ansiosa por encontrar Arthur.
—Não queria lhes incomodar — disse olhando o pergaminho sobre a mesa — É óbvio que estão ocupados, deixarei-os que… —acrescentou, detendo-se de repente com uma exclamação de surpresa.
Cravou o olhar no pergaminho e caiu na conta de que o reconhecia, apesar de que nesse momento já estava acabado e tinha um aspecto diferente. Já não parecia um rascunho. Parecia um mapa. «Um mapa.» O que significava aquilo? Se Arthur estava fazendo um mapa para seu pai, por que não lhe havia dito nada? «Tentava ocultá-lo.»
Anna deu vários passos à frente presa de um pavor inexplicável. Tentou dissimular o tremor de sua voz:
—Interessante mapa. —Tinha a garganta muito seca, de modo que, mais que falar, pigarreava — De onde o tirastes?
—Nossos homens o interceptaram de um mensageiro inimigo —respondeu Alan, passando os dedos por seus finos traços — A verdade é que é muito bom. Magnificamente detalhado.
Anna não ouviu mais que as palavras «mensageiro inimigo». Empalideceu ao momento; seus piores temores, aparentemente, confirmaram-se.
«É um espião.»
—Sabe algo a respeito, filha?
Anna voltou o olhar para seu pai. Abriu a boca para pronunciar as palavras que condenariam Arthur, mas ficaram congeladas em sua boca. Não podia. Não podia fazer. Não antes de lhe oferecer uma oportunidade para explicar-se.
—Nada — se apressou a dizer baixando os olhos, incapaz de lhe sustentar o olhar.
Alan a observava com expressão de estranheza.
—Está segura de que não te encontra mal, Annie? Não tem bom aspecto.
Não se encontrava muito bem. Tinha enjôos. Como se o aposento girasse a seu redor ou as tábuas do chão se desprendessem a seus pés. Cambaleou e deu um passo para recuperar o equilíbrio.
—Eu… eu acredito que será melhor que volte para meu aposento.
Alan foi para ela com o desassossego marcado no rosto.
—Acompanho-te.
—Não. —Anna negou com a cabeça energicamente, reprimindo umas lágrimas que lhe ardiam nos olhos — Não é necessário. Estou bem. Sigam com o que estão fazendo.
Anna saiu antes que seu irmão pudesse opor-se. Apressou-se a chegar ao barmkin consumida em uma sensação de sufoco. Abriu a porta da torre da comemoração e se sentiu reconfortada pelo golpe de ar frio da noite. Inspirou profundamente, enchendo os pulmões e procurando estabilizar sua acelerada respiração. Aferrou-se ao corrimão de madeira que coroava a escada como se fosse um cabo de salvamento, deixando que o ar fresco e o tranqüilizador dossel da negra e fechada noite acalmasse a precipitação de seu coração, de seu fôlego e, sobretudo, de sua cabeça. Vários dos homens que vigiavam o barmkin ficaram olhando-a, mas Anna estava muito desgostada para preocupar-se com isso. Desgostada? Não, aturdida. Destroçada. Horrorizada. Sua cabeça ainda dava voltas, incapaz de acreditar.
Tentava decidir o que devia fazer, se percorria o pátio, chamava nas portas dos barracões e perguntava por ele, mandando ao diabo toda correção, quando as portas se abriram e saiu um grupo de soldados vestindo armadura completa. O coração lhe deu um tombo ao conscientizar-se de que um deles era Arthur. Dirigiam-se para os estábulos. Estava partindo. «Partindo.»
Agarrou-se ao corrimão com força até que a madeira se estilhaçou em suas mãos. Ficou olhando com o peito ardendo de dor e uma parte de si ainda recusava a acreditar. Arthur pareceu advertir o calor de seu olhar e deixou pela metade o que estava fazendo para erguer os olhos. Seus olhos se encontraram entre a luz mortiça que proviam as tochas. Arthur disse algo a um dos homens, separou-se do grupo e caminhou em sua direção. Anna inspirou profunda e entrecortadamente e se dispôs a baixar a escada para encontrar-se com ele ao final desta. Seu coração se deteve o ver seu rosto. Como podia lhe olhar com tal cara de preocupação e planejar traí-la ao mesmo tempo?
—O que passou? —perguntou — Fiquei preocupado ao não te ver antes.
Ele se aproximou dela, mas Anna se revolveu. Não podia permitir que a tocasse. Somente serviria para confundi-la mais ainda.
—Preciso falar contigo.
A rigidez de sua voz despertou os temores de Arthur. Dirigiu seu olhar para os estábulos, onde os homens tinham desaparecido.
—Não tenho muito tempo. Estão me esperando.
—Parte… sem dizer adeus?
O pequeno tremor que apareceu em seu queixo o delatava. Sinal de que se sentia culpado.
—Não é mais que a ronda noturna. Estarei de volta em umas horas.
—Está seguro? Não me advertiu de que talvez não retornaria?
Arthur examinou com atenção seu rosto e pareceu conscientizar-se de que algo ia realmente mal. Consciente dos homens que patrulhavam a seu redor, a tomou pelo braço e a levou para o jardim que havia na parte posterior à torre, onde ninguém poderia ouvi-los. Agarrou-a pelos ombros para virá-la para si e a olhou com expressão severa.
—A que se deve todo isto, Anna?
Anna ergueu o queixo, odiando que a tratasse como se fosse uma menina pesada.
—Sei.
—O que é o que sabe?
Um soluço apareceu em seu peito, mas conseguiu controlá-lo. As palavras saíram como um torvelinho.
—Sei a verdade. Sei por que está aqui. Sei que me salvou no Ayr. Sei que trabalham para eles — disse Anna, quase cuspindo essa última palavra, incapaz de pronunciá-la.
Ele trabalhava para o inimigo mortal de sua família.
Ficou imóvel, suas feições tinham sido adestradas para a impassibilidade. A Anna caiu a alma aos pés. Essa falta total de reação lhe condenava mais que uma negação.
—Está transtornada —disse Arthur com calma — Não sabe o que está dizendo.
—Como te atreves! —exclamou Anna com voz tremente e uma emoção que ardia em seu peito até converter-se em um acesso de raiva — Não te atreva a mentir! Vi esta manhã agarrar a lança ao vôo e rompê-la com o joelho. Somente vi isso uma vez em minha vida. Não recorda como saíram a me resgatar aquela noite? Um espião dos rebeldes que se fazia passar por cavalheiro? Recebeu uma flechada no ombro por isso. —Tinha vontade de lhe arrancar a armadura e lhe obrigar a que o reconhecesse — Tem uma cicatriz exatamente no mesmo lugar. —Fez uma pausa para que o negasse, quase esperando que lhe desse uma explicação, mas o silêncio enchia o ar estagnado entre ambos — Vi o mapa, Arthur. O mapa que permitiu que eu acreditasse que era um desenho. O tiraram de um mensageiro inimigo — continuou, desafiando-o ainda com o olhar — Talvez devesse chamar a meu pai e que ele seja quem diga.
Arthur franziu os lábios até que embranqueceram. Agarrou-a pelo cotovelo e a aproximou mais a si.
—Baixe a voz —advertiu — Poderiam me matar somente por me acusar disso.
Anna se serenou, aplacando um tanto sua ira, consciente de que o que dizia era certo. Arthur a dirigiu para um banco de pedra e a fez sentar-se.
—Não se mova.
—Aonde vai? —perguntou Anna, irritada por receber ordens dele.
—Dizer-lhes que me atrasarei — respondeu Arthur, olhando-a com expressão severa.
Capítulo 22
«Pense! Maldita seja, pense!»
Arthur levou um tempo para informar aos homens de seu atraso enquanto tentava acalmar a violenta corrente de sangue que afluía por suas veias. Mas todos seus instintos primários de sobrevivência tinham despertado em uníssono em resposta ao perigo. O pior tinha acontecido. Tinham-no descoberto. Anna tinha adivinhado a verdade.
Amaldiçoou ao idiota de seu irmão por lhe jogar aquela lança, que além de que estivera a ponto de lhe atravessar a cabeça, e também a si mesmo por ser tão pouco cuidadoso com o mapa. Sua missão acabava de ir-se ao vinagre, e, a menos que pudesse encontrar uma maneira de justificá-lo, tudo indicava que não viveria para ver o seguinte pôr-do-sol. Não podia pensar no que significaria seu fracasso para Bruce. Se não os avisasse, iriam diretos para a armadilha. Uma vitória dos MacDougall poderia fazer que a guerra mudasse de novo.
Apesar de não advertir nenhum perigo ao sair dos estábulos, Arthur não tirava as mãos de suas armas, quase esperando encontrar-se aos soldados de Lorn aguardando. Mas Anna não tinha avisado a seu pai. Ainda não, ao menos. Esperava-lhe no banco no que ele a tinha deixado. Respirou algo mais tranqüilo em seu caminho de volta ao cruzar o pátio, embora ainda não tinha claro o que lhe diria. Não era só sua integridade e a missão o que estava em jogo. Se ainda ficava a esperança de uma vida em comum para ambos, seria nesse momento quando teria que conseguir que Anna entendesse suas razões.
Ela não o olhou quando se aproximou, mas sim ficou contemplando a escuridão em silêncio, com um rosto que era uma pálida máscara de angústia. Sentou-se junto a ela com uma sensação de impotência absoluta. Queria tomá-la em seus braços e lhe dizer que tudo sairia bem, mas sabia que não era certo. Tinha-a traído. Pouco importa que não pode evitar.
—Não é o que pensa — disse brandamente.
—Não pode fazer uma mínima idéia do que penso. —A voz de Anna estava carregada de emoção. Quando se voltou para ele, com seus grandes olhos azuis alagados de lágrimas não derramadas, Arthur sentiu uma pontada no coração que lhe fez estremecer — Diga que não é certo, Arthur. Diga que tudo é um engano. Diga que não é o que acredito que é.
Deveria. O que significava uma mentira mais em cima de tantas outras? Podia tentar negá-lo. Talvez chegasse a convencê-la. Mas duvidava muito. Ela sabia. Via-o em seus olhos. E se lhe mentisse nesse momento, jamais teria a possibilidade de que o compreendesse. Se queria que eles tivessem uma oportunidade como casal, teria que lhe contar a verdade.
Olhou-a nos olhos.
—Jamais quis lhe fazer dano.
Anna emitiu um som, um gemido de dor que parecia provir de um animal ferido, um gatinho de pele aveludada apanhado em uma armadilha para ursos. Não pôde evitar. Aproximou-se dela para acalmá-la, mas Anna deu um coice.
—Como é capaz de dizer tal coisa? Utilizaste-me. Mentiu em tudo o que era importante. —As lágrimas brotaram das comissuras de seus olhos e caíram em corrente por suas bochechas — Houve algo real? Ou fazer que me afeiçoasse de ti também era parte do plano?
—O que passou entre nós foi real, Anna. Nunca foste parte do plano. Jamais deveram fazer parte disso. Isto não tem nada que ver contigo.
—Então com o que tem que a ver? Com o Robert Bruce? Com as velhas rixas? Com seu pai? —Arthur apertou os punhos e pigarreou — Assim é por seu pai… Culpa ao meu de sua morte —disse, retirando-se dele — Não é mais que um horrível e retorcido feito de vingança. Quer a destruição de minha família porque seu pai morreu na batalha, não é isso? O que é o que planeja, assassinar a meu pai para vingar a morte do seu? —ficou paralisada pelo horror — meu Deus, isso é o que planeja fazer.
Arthur apertava com força os dentes. Dito por ela, soava como algo infame. Simples. Mas era tudo menos isso. Anna, cega pelo amor que tinha a sua família, estava incapacitada para ver o que acontecia a seu redor. Odiava ter que ser ele quem lhe abrisse os olhos, mas não restava outra alternativa.
—É seu pai quem acabará com o clã e não eu, Anna. Robert Bruce fez o que ninguém acreditava possível. É a melhor opção da Escócia para nos liberar do jugo inglês. Ganhou os corações do povo. Mas o ódio de seu pai e seu orgulho lhe impedem de vê-lo desse modo. Prefere ver uma marionete inglesa no trono… Os MacDougall ficam sozinhos, Anna. Inclusive Ross acabará rendendo-se.
Anna ficou completamente rígida.
—Meu pai faz o que considera correto.
—Não, seu pai faz tudo o que está em sua mão para não admitir a derrota. Não se equivoque em relação às razões de tudo isto. Seu pai preferiria os ver mortos antes que aceitar a derrota.
Advertiu a indignação que ruborizava suas bochechas.
—Vocês não sabe nada de meu pai.
Anna fez uma tentativa de levantar-se, mas ele a agarrou pelo pulso e a obrigou a permanecer sentada.
—Sei mais do que queria a respeito de seu pai. Sei exatamente do que seria capaz por ganhar.
Anna tentou libertar seu braço.
—Me solte.
—Não até que ouça tudo o que tenho a dizer.
Não havia nada que desejasse menos que desiludi-la, mas era consciente de que não podia protegê-la da verdade durante muito mais tempo.
—Não vos disse tudo o que vi o dia em que mataram a meu pai.
—Não quero…
—Entretanto, ouvirá —a interrompeu — Embora não queira fazer. Eu estava nessa colina e o vi tudo, Anna. Meu pai tinha ao seu a mercê de sua espada. Poderia tê-lo matado e, não obstante, teve piedade dele. Seu pai aceitou os termos, acordou a rendição e depois, quando meu pai deu a volta, matou-o.
Anna deixou escapar um grito afogado com uns olhos cheios de horror e incredulidade.
—Está errado. Meu pai jamais faria algo tão desonroso.
Arthur a agarrou firmemente e a obrigou a olhá-lo nos olhos.
—Eu estava ali, Anna. Vi e ouvi tudo, mas não pude fazer nada para detê-lo. Tentei advertir a meu pai, mas era muito tarde. Lorn me ouviu e enviou a seus homens a que me caçassem, e tive que me ocultar na floresta durante uma semana. Quando saí dali, era muito tarde para mudar a história. Ninguém teria acreditado.
Arthur se deu conta do pânico que a sobressaltava. Sentiu seu coração bater fortemente contra o peito. Lutava por aferrar-se a qualquer fio que pudesse preservar suas ilusões em relação à verdadeira pessoa que ela via em seu pai.
—Deve ter interpretado mal o ocorrido. Estava muito longe.
—Não interpretei mal nada, Anna. Ouvi tudo.
Equivocava-se. Tinha que equivocar-se. Não era certo? Seu pai tinha mau gênio, mas ela sabia que tipo de pessoa era.
Voltou-lhe as costas bruscamente.
—Não acredito.
O pesar de seus olhos cortava mais que o cristal.
— Pergunte tu mesma. —Anna não disse nada. Não queria atender a razão — Seu pai não se deterá ante nada para conseguir a vitória, Anna. Nada. Por todos os diabos, se inclusive utilizou a sua própria filha…
Anna ficou tensa, ofendida por tal acusação.
—Já vos disse que a aliança com o Ross foi minha idéia.
—Não estou falando disso. Refiro-me a lhe usar como mensageira.
Anna ficou sem fôlego. Sabia? Céu santo, teria devotado informação sem ser consciente disso?
—Quando? —exclamou — Desde quando sabes?
—Não o descobri até umas semanas, infelizmente. —Seu rosto tinha uma expressão temível — Por todos os Santos, Anna! Sabem o perigo que correstes?
—Sim, mas nunca imaginei de onde provinha.
«De ti.» Ele era o inimigo. Ele a espiou e fez quanto pôde por…
Anna ficou olhando-o ao mesmo tempo em que todas as terríveis conseqüências iam em turba a sua mente. De repente deu um salto para trás, horrorizada. «Não, isso não, por favor.» Lhe revolveu o estômago.
—Por que insistiu em me acompanhar ao norte, Arthur?
—Para te manter a salvo.
—E para evitar uma aliança com o Ross?
—Sim, em caso de que fosse necessário — disse, fazendo frente a seu olhar sem pestanejar. A dor machucava tanto o coração de Anna que se afogava em seus próprios soluços — Mas não é o que pensa. Aquilo não formava parte de meus planos.
Era como se a fustigassem por dentro. Parecia sangrar-se, como se estivesse em carne viva.
—E acha que tenho que acreditar?
Arthur contraiu a mandíbula.
—É a verdade. O que ocorreu naquele aposento foi porque o ciúmes e o medo de te perder me deixaram meio louco. Não me orgulho do que fiz, mas juro Por Deus que não o tinha planejado.
—Ocorreu por acaso, isso quere dizer? E o que passa com o de ontem à noite? Ocorreu também por acaso? —Sua voz se quebrou pela emoção que a embargava — Como pode, Arthur? Sabias o que acabaria passando e mesmo assim me deixou acreditar que te importava, que queria te casar comigo. E não eram mais que mentiras.
Como podia ser tão idiota para oferecer-se a um homem que planejava traí-la, trair a todos eles?
—Não — disse Arthur com rudeza, obrigando-a a lhe olhar nos olhos — Não era mentira. Nada disso era mentira. Eu… — Vacilou, como se aquelas palavras não coubessem em sua boca — Eu te amo, Anna. Nada me faria mais feliz que me casar contigo.
Por um estúpido momento o coração lhe deu um tombo ao escutar essas palavras que tanto tempo tinha esperado. Umas palavras que deviam fazer que tudo fosse perfeito, mas que não conseguiram mais que afundar na desgraça daquele assunto.
Era um homem cruel. Era cruel lhe dizer aquilo que tão desesperadamente ansiava ouvir. Bem certo, não fazia mais que manipulá-la para que não o delatasse.
«Delata-o.» Oh, Deus, o que poderia fazer? Tinha a obrigação de dizer a seu pai o que acabava de descobrir. Mas se o fizesse não cabia a menor duvida do que aconteceria. Arthur morreria. E se não o fizesse, Arthur passaria ao inimigo a informação que tinha obtido. Tratava-se de uma escolha impossível, mas sabia que, apesar de tudo o que Arthur fizesse, não podia ser ela quem jogasse o laço ao seu pescoço. Um só homem não podia derrotar a um exército.
—De verdade espera que acredite que me ama?
Arthur adotou uma postura rígida, mas seguiu olhando-a nos olhos.
—Sim, espero. Não tenho nenhum direito a fazer, mas essa é a verdade. Jamais antes disse essas palavras a ninguém e nunca pensei que o faria. Mas do primeiro momento que te vi, senti algo especial. Sei que você também o sentiu, uma conexão a que não me pude resistir.
—O que sentia era luxúria — disse Anna devolvendo suas palavras. Arthur franziu os lábios. Ela era consciente de que o estava levando ao limite, mas se sentia muito doída e furiosa para que lhe importasse — Como pode esperar que acredite em seu amor quando me mentistes do primeiro dia em que nos conhecemos?
—O que queria que fizesse? Não estava em posição de dizer a verdade. Acredita que eu queria que acontecesse isto? Por Deus santo, é a última pessoa no mundo que queria me ter apaixonado. —Anna se estremeceu. Supunha que isso tinha que fazê-la sentir melhor? Embora lhe doesse que aceitasse seus sentimentos com tal dificuldade, as palavras de Arthur tinham o distintivo da verdade — Tentei me manter à margem —assinalou, dando rédea solta a sua frustração — Mas não me permitiram isso.
—Então é minha culpa, não?
Arthur suspirou e voltou a levar as mão aos cabelos.
—Não, é obvio que não. Inclusive caso tivesse me evitado, eu teria me apaixonado por você a distância. Atraiu-me desde a primeira vez que a vi. Sua calidez. Sua vitalidade. Sua doçura. É tudo que não sabia que perdia na vida, o que não acreditava possível para mim. Jamais quis ter esse tipo de intimidade com alguém até que a conheci. —Apesar de todas suas tentativas para não cair em seus enganos de novo, Anna não pôde evitar que seu coração se comovesse. Arthur a puxou pelo queixo e voltou seu rosto para olhá-la nos olhos — Sei que não posso esperar que acredite, Anna, mas sim espero que tente compreender que o fiz o melhor que pude dadas as difíceis circunstâncias. Estava condenado a lhe trair inclusive antes que nos conhecêssemos.
Os olhos de Anna examinaram seu rosto em busca de sinais de engano, mas somente encontravam sinceridade. Queria acreditar, mas como podia fazer sabendo o que pretendia? Inclusive no caso de que seus sentimentos fossem sinceros, tinha a intenção de traí-la. Ele estava em um lado e ela no outro. Queria matar a seu pai.
Anna voltou o rosto bruscamente, receando sua própria debilidade. Quando a olhava com essa expressão, somente podia pensar em lhe beijar e no quão protegida se sentira entre seus braços, fingindo que tudo sairia bem.
—Como poderia acreditar que te importo quando está aqui para nos espiar, destruir a minha família e se vingar de meu pai? Se me amas de verdade, não poderia fazer.
Os olhos de Arthur brilharam com força na escuridão, como se queria discutir com ela mas compreendesse a inutilidade do gesto.
—O que outra coisa poderia fazer?
—Poderia deixar de lado sua ânsia de vingança. —Olhou-o nos olhos, consciente de que estava a ponto de lhe pedir um impossível, mas sabendo também que essa era a única oportunidade que teria para ambos — Poderia escolher ficar comigo.
Arthur ficou petrificado. Maldita seja por lhe fazer isso! Por lhe fazer escolher. Pedia-lhe quão único não podia dar. Não podia jogar por terra toda sua honra e lealdade, nem sequer por ela. Seu rosto adotou o aspecto do granito.
—Fiz um juramento, Anna. Jurei dar minha espada ao Bruce. —E ao Guarda dos Highlanders, pensou — Ir contra isso seria ir contra minha consciência. Ir contra todo aquilo no que acredito. E apesar de que tenha razões para acreditar o contrário, sou um homem de honra.
Era o dever, a lealdade e a honra o que o tinham levado até ali.
—Mas isto não é só uma questão de honra. Não é certo? —desafiou-o — É uma questão de vingança. Quere a destruição de meu pai.
—Quero justiça — disse Arthur esticando a mandíbula.
Seus grandes olhos o olhavam com expressão luminosa e suplicante, remoendo sua consciência. Anna pôs uma mão sobre a sua, mas pareceu que com ela se agarrava a seu coração.
—É meu pai, Arthur.
Pareceu que todo seu interior se retorcia. Essa suave súplica chegava mais fundo do que gostaria. Como era capaz de lhe fazer isso? Como podia apertar as porcas para que ele se visse na necessidade de fazer quanto pudesse por satisfazê-la? Mas era impossível. Isso não podia fazer.
Durante quatorze anos sua vida se centrou em uma só coisa: desfazer uma ofensa. Tinha esperado muito tempo para encontrar-se com o Lorn cara a cara no campo de batalha. Assim como não podia negar seus sentimentos por ela, tampouco podia evitar sua promessa de justiça.
—Acredita que não sou consciente de que se trata de seu pai? Acha que não passei cada um dos dias destes dois últimos meses desejando que não fosse assim? Eu não queria que acontecesse nada disto, maldita seja.
As lágrimas brilharam nos olhos de Anna.
—Acredito que isso já deixa suficientemente claro. Seus sentimentos por mim são um obstáculo.
—Eu não disse isso. —Arthur apertou os punhos.
—Não têm nada que explicar. Acredite, entendo.
A aspereza de seu tom deixava muito claro os sentimentos de Anna. Levantou-se do banco e caminhou uns passos para o interior do pátio com o olhar perdido na escuridão.
—Parte —disse sem expressão na voz — Parta antes que mude de opinião.
Não podia acreditar que fosse o deixar partir. Por um segundo teve um brilho de esperança. Isso somente podia significar que ela ainda lhe amava, pois ao deixá-lo partir anteporia-o a sua família. E tinha que partir. Não gostava da idéia de deixá-la plantada assim, mas tinha que advertir ao rei. Aproximou-se dela, ficou a seu lado, tomou pelo cotovelo e a atraiu para si com delicadeza. Dava a impressão de ser mais jovem e frágil à luz da lua, com esse rosto pálida que parecia um ovalóide de alabastro.
—Juro-lhe que voltarei assim que possa.
Anna negou com a cabeça sem deixar de olhar ao infinito.
—Já têm feito sua escolha. Se partir agora o fará para sempre — disse, olhando-o ao fim com um rosto imperturbável — Não quero voltar a te ver jamais.
A determinação de sua voz cortava como uma espada.
—Não diz a sério. —Não podia falar sério. Era sua raiva que falava. Mas a rigidez da posição de seu queixo fez que o pânico corresse pelas veias de Arthur. Conhecia essa expressão. Atraiu-a para si com força, consciente de que tinha que fazê-la entrar em razão — Não diga algo do que poderia te arrepender.
Anna escoiceou ao sentir o contato.
—O que faz? Me soltem! —Deu-lhe um empurrão para desembaraçar-se dele.
Mas seus esforços não fizeram mais que aumentar a sensação de pânico de Arthur. Tinha que fazer o ver. Como podia negar? Acaso não sentia ela a energia que desprendiam seus corpos? O calor? Estavam destinados um para o outro.
Ficou sem palavras e sem tempo, de modo que a beijou, capturando sua boca com a dele em um desesperado e feroz abraço. Ela ficou lívida, já sem lutar, simplesmente deprimida sobre seus braços. «Não, maldita seja. Não.» A ausência de reação piorava a sensação de urgência. Beijou-a com mais força, com mais paixão, obrigando-a a abrir os lábios, procurando algo que muito temia lhe estava escapando entre os dedos. Seus lábios estavam quentes e suaves, seguiam tendo sabor de mel, mas nada era como antes. «Ela não quer que a beije.» deteve-se. «Que demônios estou fazendo?» Deixou-a ir ao mesmo tempo em que soltava uma imprecação e ficava olhando com horror. Nunca antes tinha feito algo assim. A idéia de perdê-la fazia que se voltasse louco.
—Deus, Anna! Sinto—disse com uma voz rouca e entrecortada pela aspereza de seu fôlego.
Merecia que lhe dirigisse esse olhar, como se ele fosse o barro que se aderia a seus sapatos.
—Jamais acreditei que fosse um bruto, mas dá a sensação de que está em seu lugar junto ao rei usurpador. Simplesmente tomam quanto querem.
—Anna, eu…
—Parte de uma vez — disse ela com Isso é o melhor que pode fazer. Já têm feito suficiente dano. —Olhou-o nos olhos, desafiante — Acaso pensava que poderia te perdoar isto?
Era a confirmação de seus piores temores. Fora um idiota. Permitia que as emoções turvassem sua percepção da realidade. Pensava que seria possível um futuro para eles pela simples razão de que a queria mais que a tudo no mundo. Mas nunca tivera nem a mais mínima oportunidade. Jamais lhe perdoaria aquilo que a obrigação, a honra e a lealdade lhe impunham. Fixou os olhos em Anna em busca de algum sinal de debilidade, mas ela o olhava com frieza, imutável. A ausência de lágrimas, ira ou emoção não deixava lugar a dúvidas. Tudo tinha acabado. Deus, tudo tinha acabado de verdade.
Arthur sempre soube que poderia chegar este momento, mas nunca esperou sentir-se tão impotente e desesperançado. Jamais pensou que doeria tanto. Parecia que o tivessem quebrado em mil pedaços por dentro e não houvesse nada que fazer a respeito.
—Vos amo, Anna. Sempre te amarei. Nada poderá mudar isso. Espero que algum dia compreenda que nunca quis te fazer dano.
Alongou o braço para tocar sua bochecha uma vez mais, incapaz de deter-se, mas ela se separou dele como se fosse um leproso e sua mão caiu sem força sobre o ar.
—Adeus.
Dito isto, Arthur a olhou pela uma última vez, uma imagem que teria que reter para sempre, deu meia volta e abandonou o lugar.
Jamais esqueceria o aspecto que tinha naquele momento: pequena, sozinha; de uma beleza dolorosa, com seus longos cabelos dourados caindo sobre os ombros em sedosos cachos e seus delicados traços resplandecendo sob a opalescente luz da lua. Tão frágil que poderia romper-se como o cristal. Mas determinada. Com uma determinação atroz.
Parecia ter o peito ardendo e que seu calor se intensificava a cada passo. Acreditava caminhar sobre as brasas do inferno e que o peso de suas pegadas fosse pura agonia. Não podia desprender-se da sensação de que estava mal deixá-la ali de tal modo, de que não fazia o correto nesse momento, depois já não teria oportunidade de fazer. Estava a meio caminho da estrebaria quando se voltou. Mas já era muito tarde. Ela não estava. Olhou para o alto da escada que conduzia à torre da comemoração e alcançou a ver uma mecha de cabelo dourado seguindo a esteira de sua figura como se de um pendão se tratasse antes de desaparecer depois da porta. Uma vez esta se fechou, pareceu que algo se fechava também em seu interior. Para sempre. Era uma parte dele que jamais devia ter aberto. Isso era o que conseguia por relacionar-se intimamente com as pessoas. Estava destinado à solidão. Nunca deve esquecer isso.
Tentou evitar o vazio que ardia em seu interior. Tinha que deixar de pensar nisso. Precisava centrar-se na tarefa que tinha entre as mãos. Mas o rosto de Anna seguia aparecendo ante ele. Perseguia-o. Distraía-o.
Entrou na cavalariça e se apressou a preparar seu cavalo. Apresentar-se voluntário à ronda noturna se provou duplamente providencial. Não só servia como desculpa para sair do castelo, mas sim também significava que não teria que perder tempo voltando para os barracões. Seus pertences mais importantes levava consigo: a cota de malha e as armas. As mudas de roupas e os poucos artigos pessoais que tinha podia deixá-los ali. Os planos tinham mudado. Tinha que partir para sempre, por mais que isso significasse que Lorn estivesse a par de que seu plano estava em perigo. Não ficava mais opções toda vez que Anna tinha descoberto a verdade. Não podia arriscar-se a que ela mudasse de opinião.
Não empregou mais de cinco minutos no estábulo. Não pensava mais que em sair dali quanto antes e pôr terra entre eles. Dizia a si mesmo que isso era o melhor que podia acontecer. Estava bem antes na solidão e voltaria a estar.
Entretanto, não chegou a sair do estábulo. Seus sentidos o advertiram, mas não o fizeram a tempo. De novo suas emoções o distraíram. Embora nesse caso não teria feito diferença alguma.
Abriu a porta do estábulo e se encontrou rodeado. John de Lorn e seu filho Alan flanqueados por ao menos uma vintena de guardas espadas em mão. A mandíbula de Arthur se contraiu pela dor que representava aquela punhalada nas vísceras. Não podia acreditar. Anna o tinha delatado. Talvez teria que ter esperado, mas não acreditava que seria capaz disso. Subestimou o amor que Anna tinha a seu pai e superestimou o que sentia por ele. Não havia razões para que encarasse como uma traição. Mas assim era.
Lorn arqueou uma sobrancelha de maneira indolente.
—Ia a alguma parte, Campbell?
—Sim — respondeu despreocupadamente, como se não estivesse rodeado por homens armados — vou unir me ao grupo de vigilância noturna. —Olhou em redor, sem sinal de fingir sua indignação — O que significa isto?
Lorn sorriu, embora em sua expressão não havia nenhum sinal de simpatia.
—Temo que estamos obrigados a lhe reter um momento. Há vários assuntos que temos que esclarecer.
Arthur deu um passo à frente. Ouviu o tinido do metal enquanto os guardas respondiam a sua afronta elevando as espadas e fechando o cerco a seu redor. Mas não era necessário. Estava apanhado. Talvez conseguisse abrir com golpes através de uma vintena de homens que apontavam a seu pescoço as espadas, mas as portas do castelo já estavam fechadas. Não seria capaz de atravessar sem que todo o castelo se erguesse contra ele. Não havia saída.
Olhou ao Alan, mas não obteria ajuda dele. Mostrava um olhar tão duro e inquebrável como o de seu pai, embora sem esse brilho de maldade acerada. Todos seus instintos clamavam por que lutasse, por desembainhar a espada e levar consigo a alguns homens de Lorn. Mas se obrigou a manter a calma. A não fazer nenhuma tolice. Sua missão era que vinha em primeiro. Se existia a mais remota possibilidade de que pudesse escapar para avisar ao Bruce, teria que considerá-la. Talvez pudesse sair desse embrulho por meio do diálogo. Não estava seguro de quanto havia contado Anna.
—Não pode esperar? —disse — Estão me aguardando.
—Temo que não — repôs Lorn. Fez um gesto com a mão e dois de seus homens mais fortes se adiantaram para agarrar Arthur nos braços — Levem-no às masmorras. Revistem.
«Diabos.» Ao que parecia não teria modo de sair dali por meio do diálogo. Tinha esquecido a nota, a mensagem que pensava deixar na cova essa noite para o rei. Um pequeno pedaço de papel dobrado que levava na bolsa com três palavras que selariam seu destino: «Ataque, 14, Brander».
Embora talvez seu destino tivesse ficado sentenciado dois meses atrás, quando se encontrou cara a cara com a moça que acabava de resgatar de um ataque fatal. A garota que poderia desmascará-lo.
Arthur emitiu um feroz grito de guerra que atravessou a noite e deixou que fosse seu instinto quem tomasse o mando: «Bàs roimh Gèill!». Morrer antes que render-se. Lutou como um selvagem e tombou a cinco soldados antes de cair sob o punho da espada do Alan MacDougall. À medida que a escuridão se abatia sobre ele, soube que aquilo não tinha acabado. E que estava a ponto de piorar.
Queriam-no vivo.
Capítulo 23
Supunha-se que não teria que sentir o coração partir-se. Anna queria que Arthur fosse embora. Tinha mentido. Tinha-a traído. Tinha-a usado. Queria destruir tudo que era importante para ela. Como podia pensar que existia possibilidade alguma de continuar juntos? Inclusive chegava ao ponto de tentar beneficiar-se da paixão que existia entre ambos. Como se um beijo pudesse fazê-la esquecer o que tinha feito. Odiou-o naquele momento. Odiou-o por manchar algo que era formoso e puro.
Dizia a si mesma que isso era o que ela queria, mas assim que Arthur deu meia volta e partiu, o gelo de seu coração começou a rachar-se.
Partia. Abandonava-a.
Jamais voltaria a vê-lo.
«Oh, Deus.» ficou completamente quieta, sem ousar mover-se ao estremecimento de seu interior. Sentia-se como uma fina lâmina de cristal sacudida por uma violenta tormenta de emoções. Forte na superfície e frágil na realidade. Assim que o vento soprasse com força, romperia em mil pedaços diminutos. Não devia sentir-se assim depois do que tinha feito. Não tinha por que sofrer tanto. A dor. O remorso. A desolação. A sensação de que lhe arrancavam o coração. Essa intensidade de emoções parecia pura debilidade. Onde estava seu orgulho? Era uma MacDougall e entretanto, nesse momento, somente se sentia como uma garota que observa como o homem ao que ama parte de sua vida para sempre.
Incapaz de suportar por um momento mais, temendo o que ele veria se desse a volta, pôs-se a correr. Subiu a escada tão rápido como pôde até que alcançou a segurança de sua câmara. Ali se desabou sobre a cama com cuidado de não despertar a suas irmãs, jogou a manta por cima da cabeça e se amassou sentindo-se como uma boneca de trapo. Somente então se deixou levar pela emoção e rompeu a chorar em silenciosos soluços que pareciam arrancados de sua própria alma.
Escudeiro, sentindo sua angústia, se aninhou junto a ela. Anna abraçou ao cachorrinho e fez dessa cálida bola de pelo de amor incondicional sua companhia durante daquela longa e miserável noite.
«Amo-te.»
Não podia tirara as palavras da cabeça. Soavam tão sinceras… Mas Arthur tinha mentido em todo o resto, assim por que teria que acreditar nisso? Inclusive no caso de que fosse certo, não deveria ter importância. Anna repassava o ocorrido uma e outra vez, recordando cada uma das palavras de sua explicação, sua justificação… ou como que pudesse chamar aquilo que tentava fazer. Já era suficiente que estivessem em lados contrários da guerra, mas realmente esperava que ela compreendesse sua necessidade de destruir ao clã familiar? De matar a seu pai, o homem a quem ela mais admirava no mundo? E tudo por certa forma retorcida de vingança? Justiça, tinha chamado ele.
Não queria ouvir suas explicações nem entender suas razões. E tampouco acreditou nem por um momento as mentiras que tinha dito a respeito de seu pai. Ele jamais teria matado a um homem de maneira tão desonrosa. «Faria tudo por ganhar», pensou tapando as orelhas com o travesseiro como se as plumas pudessem conter seus próprios temores. «Pergunte você mesma», tinha-a desafiado Arthur.
Não precisava perguntar. Ela sabia a verdade.
Mas Arthur parecia muito seguro a respeito do que tinha visto.
Anna saiu da cama assim que as primeiras luzes do amanhecer estenderam seu manto pelo chão. Fez suas abluções matinais e passou sigilosamente junto a suas irmãs para sair da câmara. Sabia exatamente o que faria. Demonstraria que Arthur se equivocava. Assim poderia deixar tudo aquilo atrás e deter esse miserável sofrimento de seu coração.
Ainda não tinham disposto as mesas com seus cavaletes e alguns dos homens seguiam ainda despertando em seus lugares do grande salão quando se apressou para os aposentos de seu pai. Sabia que estaria de pé, apesar de que mal tivesse passado uma hora do amanhecer. Quando se preparava para a batalha, John de Lorn virtualmente não dormia. Ouviu sua voz assim que se aproximou da entrada.
—Não me importa quanto tempo dure. Quero saber os nomes.
—Não sei por quanto mais poderá…
Alan deteve em seco suas palavras ao vê-la entrar no aposento. Com somente olhá-lo à cara, Anna soube que algo ia mal. Seu pai estava sentado à mesa. Frente a ele seu ajudante, o capitão da Guarda e seu irmão Alan. Seu pai entreabriu os olhos com ira ao vê-la, enquanto os outros desviaram o olhar, quase como se quisessem evitá-la. Anna, pensando que a irritação de seu pai se devia à interrupção, apressou-se a bater-se em retirada.
—Sinto muito. Voltarei mais tarde.
—Não —respondeu John de Lorn — Tenho que falar contigo. Já acabamos com isto. Não quero mais desculpa —disse ao Alan — Consiga o que quero. Custe o que custar.
Alan franziu o cenho, mas assentiu. Anna sentiu uma pontada no coração ao ver que saía do aposento sem lhe dirigir a palavra, nem sequer um olhar. Tomou assento no banco que havia em frente a seu pai e cruzou os braços sobre o regaço. A intensidade de seu olhar a fazia sentir incômoda em certa forma. Estava furioso e não era por causa da interrupção.
—Se tiver algo que me dizer, chega muito tarde.
A Anna lhe encolheu o coração.
—Algo… algo que lhes dizer?
Seu pai tirou um pedaço de papel de sua bolsa e o pôs sobre a mesa ante ela. Um calafrio percorreu sua nuca ao reconhecer o mapa.
—Sim —disse John de Lorn — Quando viu isto antes, por exemplo. —A vergonha tingiu as bochechas de Anna. Como o tinha averiguado? Seu pai respondeu à pergunta por ela — Sua reação. Que fosse lhe buscar imediatamente depois de ver o mapa confirmou a procedência.
Acaso seu pai os tinha vigiado durante todo o tempo? Não, talvez no pátio, mas não era possível que os tivesse divisado no jardim, pois este não alcançava a ver do salão. Embora, obviamente, tinha visto o suficiente.
—Não esperava isto de ti, Anna.
Inclinou a cabeça, profundamente afetada por tê-lo decepcionado. Não tinha desculpa. Queria dizer que não estava segura, mas sim o estava. Assim que tinha visto o mapa, tinha sabido que Arthur era um espião.
—Sinto muito, pai. Queria lhe dar uma oportunidade para que se explicasse.
—E te satisfez sua explicação? —repôs seu pai com uma voz tão afiada como um látego.
Ela negou com a cabeça. Embora sabia que tinha a obrigação de contar-lhe tudo, essas palavras seguiam sendo muito difíceis de dizer. Teve que recordar que Arthur a tinha abandonado.
—Sua lealdade está com Bruce — começou, detendo-se depois para olhar a seu pai com cautela — Disse que Bruce se ganhou o coração do povo. Que é a melhor alternativa para nos libertar da tirania inglesa de uma vez por todas. E que vamos perder e que será melhor que nos rendamos.
Seu pai ficou vermelho de cólera.
—E acreditou? Arthur Campbell diria tudo para ganhar sua simpatia. Você, pequena insensata… estava te utilizando para escapar. Jamais nos renderemos. E não vamos perder.
A segurança de suas palavras jogou Anna em muitas dúvidas e a fez duvidar de se devia mencionar o resto. Seu pai já estava mais que zangado com ela, mas tinha que acabar com tudo aquilo.
—Afirma que estava ali quando matou a seu pai e que ele viu tudo.
A leve separação do olhar de seu pai poderia significar algo, mas fez que o coração de Anna se detivesse.
—Isso é impossível — disse, descartando a idéia — Não sei o que veria, mas Colin Mor e eu estávamos longe do grupo. Não havia ninguém ali quando combatemos. Em qualquer caso, eu nunca neguei que caísse sob minha espada. Nem que a vitória que consegui para nosso clã fosse a causa da perda das terras dos Campbell no lago Awe. Que Arthur Campbell albergue desejos de vingança por isso é algo inevitável, mas não supõe desculpa alguma.
Obrigou-se a olhar nos olhos, apesar de que se odiasse a si mesmo por repetir a acusação de Arthur.
—Disse que seu pai o tinha sob a ponta de sua espada e que lhes ofereceu a rendição, que aceitou e que depois o assassinou quando deu a volta.
Nessa ocasião a separação do olhar paterno não podia ser interpretada mal. Nem tampouco a tensão de sua mandíbula, nem as rugas brancas que se marcavam ao redor de sua boca. Estava zangado. Zangado sim, mas não quão ofendido deveria. O rosto de Anna empalideceu. «Oh, Deus. É verdade.»
O horror que adivinhou na expressão de sua filha pareceu incomodar ao John de Lorn.
—Aquilo ocorreu faz muito tempo. Fiz o que devia fazer. Colin Mor era cada vez mais poderoso; invadia nossas terras. Teria que detê-lo.
Anna parecia estar na presença de um estranho e que pela primeira vez via o homem que realmente era. Seguia sendo o mesmo pai ao que amava, mas já não era esse homem incapaz para ela de fazer nada mal. Já não era um homem ao que não podia questionar. Tinha deixado de ser um deus. Não, mostrava uma humanidade temível. Parecia-lhe imperfeito e capaz de cometer enganos. Grandes enganos. Enganos execráveis.
Arthur tinha razão. Seu pai faria tudo pra ganhar. Nem sequer se deteria pelo bem de seu próprio clã.
—Tem pouco pelo que me julgar, filha. Você, que deixa que alguém que trai nosso clã parta em liberdade… —Endureceu tanto a voz que quebrou — Sabe o dano que poderia ter feito?
Seu pai tinha razão. Tinha decidido deixar livre Arthur, inclusive sabendo que poderia fazer dano a seu clã, porque não suportava a idéia de converter-se em instrumento de sua morte.
—Não queria que lhe fizessem mal. Eu… lhe tenho carinho. —Anna ficou calada de repente, surpreendida de que seu pai falasse em condicional — O dano que poderia ter feito? —perguntou.
Seu pai franzia o cenho de modo forçado e a brancura de seus lábios contrastava com a cor avermelhada de seu irado rosto.
—Tem sorte de que pudesse mitigar o desastre. Meus homens rodearam ao Campbell ontem à noite quando tentava a fuga. Levava uma mensagem que prova sua culpa —disse com os olhos ardendo de fúria — Uma mensagem que poderia ter arruinado tudo.
Anna não podia respirar do horror que bulia em seu interior. O medo atendia seu coração e o espremia.
—O que têm feito com ele?
—Isso não é de sua incumbência.
O pranto contido lhe ardia na garganta. Nos olhos. O pânico comprimia seus pulmões. Mal pôde pronunciar umas palavras: —Por favor, pai, simplesmente me diga… está vivo?
Ele não respondeu imediatamente, mas sim a observou com seu frio e escrutinador olhar.
—Por agora sim. Tenho algumas pergunta para ele.
Anna fechou os olhos e exalou o ar com uma sensação de alívio assustadora.
—O que farão com ele?
Seu pai a observou com paciência. Era óbvio que não gostava daquele interrogatório.
—Isso depende dele.
—Por favor, tenho que o ver.
Anna tinha que assegurar-se de que Arthur se encontrava bem.
Seu pai pareceu ultrajado por tal petição.
—Para que lhe deixe partir de novo? Não acredito — disse apertando a mandíbula com raiva — Não serviria de nada. Esse homem é perigoso e não se pode confiar nele.
—Arthur jamais me faria mal — disse Anna sem pensar, para imediatamente conscientizar-se de que era a verdade. Ele a amava. Sabia que no fundo era certo. Não mudava nada do passado, mas talvez sim do futuro. O coração lhe encolheu. Se é que tinha um futuro — Por favor…
Seus rogos caíam em ouvidos surdos. Os olhos escuros de seu pai a olharam com uma dureza inquebrável.
—Arthur Campbell já não é teu assunto. Já tem feito suficiente dano. Como posso estar seguro de que não tentará procurar um modo de lhe ajudar? —Os protestos de Anna morreram em sua garganta. Para falar a verdade, tampouco ela podia estar segura. O medo que atendia seu coração ao pensar que Arthur estava encarcerado fazia que se inteirasse de que não era tão fácil evadir-se do que sentia por ele — Não esperava isto de ti, Anna. —A decepção de sua voz a rasgava até o mais profundo, e essa sensação se via agravada pela segurança de que merecia. Mas estava entre duas águas, apanhada entre dois homens que amava. Seu pai a despediu com um gesto anti-social da mão — Estará pronta para partir dentro de uma hora.
Ficou sem respiração.
—Partir? Mas pra onde?
—Seu irmão Ewen partirá como vanguarda do exército com um contingente amplo de homens para assegurar nossas defesas em Innis Chonnel. Irá com ele. Uma vez que tenhamos mandado ao rei Hood ao inferno, fará uma visita a meu primo o bispo do Argyll em Lismore. Ali terá tempo de pensar no que tem feito e em onde reside sua lealdade.
Anna assentiu com lágrimas cada vez mais abundantes. Estava claro que seu pai não confiava nela e não a queria no castelo enquanto ele permanecesse fora. Sabia que poderia ter sido pior, que o castigo de seu pai poderia ter sido muito mais severo. Mas não podia suportar a idéia de abandonar Arthur sem saber o que seria dele.
—Por favor… Farei o que me peça. Mas me prometa simplesmente que não o matarão quando eu esteja fora —disse, engasgando-se com seus soluços — O amo.
—Basta! Põe a prova minha paciência, Anna. Seus ternos desejos para esse homem lhe fazem esquecer seu dever. O único que te libera de um castigo muito pior é saber que talvez eu também tenha parte de culpa por te pedir que o vigiasse. Arthur Campbell é um espião. Sabia o risco que corria quando decidiu nos trair. Não terá nada menos do que mereça.
Arthur já não sentia nada. Fazia horas que tinha ultrapassado a soleira da dor. Tinham-lhe batido, fustigado e quebrado cada um de seus dedos com o aplastapulgares15. Mas sim percebia o sabor do sangue. Esse nauseabundo sabor metálico enchia seu nariz e boca como se estivesse afogando-se nele. Sua cabeça pendurava para frente e seu cabelo, molhado e empapado em suor e sangue, ocultava seu olhar daqueles que lhe rodeavam. Em algum momento da noite chegaram a ser mais de uma dezena os homens que tentavam fazer que se rendesse. Agora que os raios de sol atravessavam as seteras da masmorra, somente ficavam três deles.
Estava preso a uma cadeira, mas não era necessário imobilizá-lo. Já não supunha nenhuma ameaça. Tinham-lhe retorcido tanto o braço direito que tinha saído do ombro. Sua mão esquerda pendurava inerte junto a seu corpo, com cada um de seus ossos quebrados um a um com uma lentidão agonizante. E pensar que tinha rido a primeira vez que tinha visto aquele artefato… Aquela pequena braçadeira de metal parecia inofensiva, certamente nada que pudesse obrigá-lo a lhes contar o que queriam. Mas logo aprendeu como algo simples podia provocar um sofrimento terrível. Mais dor do que jamais tinha imaginado. Estivera a uma volta de lhes contar tudo que queriam saber. Teria dito o que fosse para que parassem.
—Maldito seja, Campbell. Diga simplesmente o que querem saber.
Arthur olhou a Alan MacDougall através do véu emaranhado de seu cabelo empapado. O irmão de Anna permanecia junto à porta como se não pudesse esperar mais para sair dali, com o rosto lívido e contraído. Quase parecia que fosse ele a quem torturavam. O herdeiro de Lorn não tinha estômago para isso. Mas seu ajudante sim. Arthur tinha a impressão de que aquele filho de cadela sádico poderia continuar com isso durante dias e dias. Apesar de não poder falar, emitiu uma espécie de grunhido e negou com a cabeça, sem forças. Não. Ainda não. Não lhes diria nada ainda. Entretanto, a palavra «nunca» já não aparecia entre seus pensamentos.
A cabeça foi para trás, impulsionada pelo novo golpe daquele filho de cadela, que lhe sacudiu com um punho envolto em correntes que, bem, parecia uma marreta.
—Os nomes —exigiu — Quem são os homens que lutam na guarda secreta?
Arthur já não se incomodava em fingir ignorância. Não acreditavam. Anna o tinha condenado sem se dar conta disso. Graças ao acontecido no Ayr, quando ele a resgatou, e também ao último ataque nos bosques, Lorn estava seguro de conhecer menos a um dos membros da infame guarda fantasma. Não podia culpá-la por isso. E pelo que parecia, tampouco podia culpá-la por delatá-lo. Em algum momento da noite entre os golpes e o látego, Arthur percebeu de que, dadas as perguntas que lhe dirigiam, o mais provável era que estava errado. Em caso de que ela o tivesse traído, não havia lhes dito muito.
Percebeu como o punho do filho de cadela voltava para ataque, como uma mancha negra nos limites de sua consciência. Preparou-se de maneira instintiva para o golpe embora soubesse que não serviria de ajuda, já que por seu tamanho e o poder de seus socos, diria que o ajudante provinha de uma longa dinastia de ferreiros. Entretanto, alguém bateu na porta e reclamou ao ajudante de Lorn, de modo que Arthur pôde recuperar um instante. Derrubou-se sobre a cadeira e procurou introduzir um sopro de ar em seus encharcados pulmões. Tinha uma costela quebrada como mínimo, embora achasse que fossem mais.
—Eles o matarão se não contar — disse Alan.
Arthur tomou seu tempo para responder, tentando fazer provisão das forças necessárias para falar.
—Matarão-me de qualquer forma — grunhiu.
Embora Alan não afastou o olhar, sua careta de agonia disse a Arthur que seu rosto devia refletir a dor que sentia.
—Sim, mas será muitíssimo menos doloroso.
E mais rápido.
Contudo, Arthur tinha fracassado já muitas vezes e estava decidido a salvar o que pudesse daquela maldita missão. Se fosse capaz de confrontar o momento final sem revelar os nomes de seus companheiros de irmandade, revestiria sua morte com certa aparência de honra.
Mesmo assim, dada a magnitude catastrófica de seus fracassos, não significaria mais que uma vitória vazia. Tinha perdido tudo. Anna. A oportunidade de destruir ao Lorn e render justiça a seu pai. E a oportunidade de avisar ao rei da ameaça. Bruce e seus homens iriam direto para a emboscada e ele não teria meios para lhes advertir.
Tinha falhado igual falhou a seu pai.
Que lhe batessem até convertê-lo em uma massa sanguinolenta, esfolassem-no até deixá-lo a borda da morte e lhe rompessem os dedos um a um servia para que seus pensamentos não escapassem das quatro paredes da prisão. Mas nos pequenos descansos temia as outras conseqüências que sua captura pudesse conduzir. Lorn amava a sua filha e não lhe faria mal; mesmo assim tinha que perguntar.
—Anna?
Alan o olhou com expressão grave.
—Não está mais aqui — Arthur sentiu o mundo desabar sobre ele. Ao ver a horrorizada expressão de seu rosto, Alan se apressou acrescentar — Está a salvo. Meu pai pensou que era melhor tirá-la do castelo até que…
Alan deteve suas palavras. «Até que esteja morto», disse-se.
O ar voltou a encher seus pulmões. Somente a tinham enviado a outro lugar. Mas então o recordou.
—Não… é seguro — conseguiu dizer. Em vésperas da batalha, Bruce teria linhas de ataque rodeando-os e estreitando o cerco. A severa expressão que se desenhou no rosto do Alan lhe dizia que não se mostrava em desacordo, mas, igual a Arthur, via-se impotente para detê-lo — Meus irmãos? —perguntou Arthur.
Pode ser que Dugald e Gillispie fossem seus inimigos no campo de batalha, mas não queria que eles tivessem que sofrer suas preferências.
—Meu pai não tem razão alguma para acreditar que estejam implicados. Fizeram-lhes um breve interrogatório e pareciam tão surpresos como o resto de nós. —deteve-se, com o olhar confuso — por que salvou minha vida? Não tinha por que fazer.
Arthur sacudiu o cabelo do rosto para lhe olhar nos olhos.
—Sim, tinha que fazer.
Alan assentiu, compreendendo tudo.
—Ama-a de verdade.
Não disse nada. O que teria podido dizer? Nada daquilo importava.
A porta se abriu e o ajudante de Lorn voltou a aparecer na saleta com uma corda na mão. A Arthur lhe acelerou o pulso como reação imediata ao perigo.
—Hora de partir —disse — Os homens estão preparados para partir.
Arthur se preparou para o pior, consciente de que tinha chegado seu final. Tinha ganho. Teriam que o matar. Uma pequena vitória nesse amargo mar de fracassos.
—Então terá que enforcá-lo? —disse Alan.
O ajudante sorriu, brindando Arthur com o primeiro sinal de emoção que percebia em seu feio e curtido rosto.
—Ainda não. A corda é para o fosso. —O alívio que embargou Arthur indicou que não estava tão preparado para morrer como acreditava. Depois do que acabava de passar, o úmido buraco de uma fossa de castigo lhe pareceria o paraíso — Talvez os ratos lhe afrouxem a língua — disse o ajudante com uma gargalhada.
Ou talvez um inferno em vida.
O ataque de terror que atravessou seu corpo serviu para lhe dar um jogo de forças primitivo. Lutou contra o metal de seus grilhões como um possuído. Sua pele arroxeada e em tiras sucumbia diante da sensação de ter ratos percorrendo-a.
Tinha que escapar dali.
Mas não podia. Encadeado e ferido, não era rival para os guardas que o arrastavam dos calabouços até a sala contígua. Ao final nem sequer se preocuparam com a corda, mas sim o jogaram dentro.
Escuridão.
Chiados.
Queda. Impacto.
Um duro e arrepiante golpe.
E depois, felizmente, escuridão. Só escuridão.
Capítulo 24
—Ewen, temo que preciso de um momento de privacidade —disse Anna, fingindo um rubor embaraçoso.
—Já? —Seu irmão a olhou como se ela tivesse cinco anos. Estavam no coração da floresta, perto de um túmulo funerário, a uns três quilômetros do castelo — Por que não fez antes de sair?
Anna o fulminou com o olhar para lhe comunicar que não fazia nenhuma graça que lhe falasse como se fosse sua mãe.
—Porque então não precisava fazer.
Ewen pôs cara feia.
—Pararemos quando chegarmos ao Oban. Está a menos de dois quilômetros.
—Não posso esperar tanto —repôs Anna negando com a cabeça — Por favor… — implorou com voz doída, removendo-se um pouco nos arreios para dar ênfase a sua urgência.
Seu irmão murmurou uma maldição e depois se voltou para dar o alto à vintena de homens que os escoltavam através dos perto de cinqüenta quilômetros que o separavam do Innis Chonnel, uma viagem que era muito mais rápido de navio mas que seu pai, depois de navegar do castelo com sua frota, tinha considerado muito perigosa.
—Te apresse — disse com impaciência — Um de meus homens te acompanha…
—Isso não será necessário — interrompeu Anna bruscamente. «Arruinaria tudo» — Eu… —continuou sem ter que fingir o abafado— Temo que esta manhã comi algo que me tem revolto estômago. Pode ser que tarde um pouco.
A seu irmão pareceu lhe envergonhar que compartilhasse detalhes muito pessoais de um assunto que jamais devia mencionar-se. Anna mesma estava horrorizada pela natureza e o alcance de seu embuste, mas necessitava todo o tempo que fosse possível para escapar. Tinha que voltar para castelo. Não havia explicação para isso, mas do mesmo momento em que tinha saído dos aposentos de sua mãe essa manhã, não tinha conseguira deixar de lado a uma insuportável premonição. Talvez estivesse motivada pelas palavras de seu pai, mas ela sabia que algo sairia mal, terrivelmente mal. E essa sensação não tinha feito mais que piorar à medida que o castelo se desvanecia atrás deles sob a luz do sol. Não sabia o que poderia fazer; simplesmente, mas tinha que fazer algo. Pode ser que não tivesse nenhuma possibilidade de estar juntos, mas tampouco desejava sua morte, e dado que seu pai tinha partido do castelo atrás deles, aquela era sua oportunidade.
Em conta da humilhação que supunha que vinte homens observassem como se afastava para fazer suas necessidades, Anna fez provisão de toda a dignidade com que contava, aceitou a ajuda que lhe oferecia o escudeiro de seu irmão para descer do cavalo, deu-lhe as rédeas e entrou em atitude régia para a densa folhagem de árvores e samambaias. Assim que esteve fora do olhar se arregaçou as saias e se pôs a correr. De ali não demoraria mais de dez minutos em chegar até o castelo. O que demoraria era convencer para que a deixassem entrar nos calabouços onde albergavam aos prisioneiros. Mas esperava conseguir antes que seu irmão Ewen se desse conta de que tinha desaparecido. Não demoraria muito em figurar-se aonde teria ido. E ao contrário dela, ele iria a cavalo.
Correu através das árvores em paralelo à estrada para que não a vissem, procurando fazer o mínimo ruído possível. Mas as folhas secas e os ramos caídos faziam com que o silêncio fosse impossível. Ouviu um ruído atrás dela e quis gritar de raiva. Como tinham descoberto tão logo sua fuga? Escondeu-se depois de um penhasco em uma tentativa em ocultar-se, mas se encontrou com que alguém pegava seu pulso por trás.
—Me solte — disse, e tentou libertar-se.
Como esperava topar-se com seu irmão ou com algum de seus homens, ao dar meia volta e ver um guerreiro de olhar feroz com elmo e nasal ficou lívida. Deixou escapar um grito de alarme, amortecido pela mão do homem.
—Silêncio, moça! Não quero te fazer dano.
Seu temível rosto não inspirava muito confiança. Tinha a compleição de uma montanha e uns traços toscos e rústicos que se adequavam perfeitamente a seu tamanho. Anna se obrigou a ficar quieta, fazendo ver que acreditava o que lhe dizia, mas depois, assim que ele se relaxou, golpeou-lhe tão forte como pôde com o salto da bota e lhe fincou o cotovelo no mais profundo de seu peitilho de couro, estremecendo-se ao golpear as partes de metal.
O homem deixou escapar uma exclamação de surpresa, mas não afrouxou seu abraço o suficiente para que Anna pudesse libertar-se. Voltou a olhar com frustração e ficou imóvel, dessa vez de verdade. Havia algo familiar nele. Não, nele não. Em seu traje. Anna ficou sem respiração. O elmo escurecido, o cotun de couro negro tachonado com metal, o estranho corte da manta… Se tratava da mesma indumentária característica que levavam seu tio e os guerreiros da floresta do Ayr. Aquele homem formava parte da Guarda secreta de Bruce. Um fato que Anna viu confirmado só um momento depois.
—Duvido que se fosse minha sobrinha acreditaria, Santo.
Anna ficou atônita de surpresa ao ver que Lachlan MacRuairi saía de entre as árvores com outro guerreiro.
—Santo, Templário — disse, assinalando em sua direção — Permitam que vos presente a lady Anna MacDougall. —Fez um gesto com a mão ao homem que a agarrava — Pode soltá-la. Não gritará, a menos que queira ver mortos seu irmão e ao resto de seus homens.
Anna se esfregou a boca mal esteve livre, tentando recuperar as sensações. Olhou a seu redor.
—Só são três.
Seu comentário pareceu divertir sinceramente aos homens.
—Dois a mais dos que precisamos — disse o terceiro deles.
Era só um pouco mais baixo que os outros dois. Anna começava a pensar que ser um gigante recoberto de músculos era condição indispensável para ser membro do exército secreto de Bruce. Sob a sombra de seu elmo com nasal, o homem fazia ornamento de um sorriso tão afável como simpático. Templário, tinha o chamado seu tio. Um nome do mais estranho. Era muito jovem para ter lutado contra os infiéis. Fazia trinta e cinco anos da última cruzada. E ao homem que a agarrava MacRuairi o tinha chamado Santo. Anna percebeu de que tinham que ser apelidos, nomes de guerra.
«Guardião!» Assim tinha chamado o guerreiro arrumado a Arthur na floresta. Seria esse seu nome de guerra?
—O que fazes aqui, tio?
Parecia estranho chamar «Tio» a alguém que não era mais que dez anos mais velho que ela. Não parecia muito maior que Arthur, embora devesse ter trinta e três ou trinta e quatro anos.
—Talvez devessea lhes perguntar eu o mesmo. Por que fugistes de seu irmão e de seus homens?
Não lhe surpreendia que MacRuari não respondesse a sua pergunta. Ou estava reconhecendo o terreno ou vigiando o castelo. Como estavam perto da costa, Anna supôs que teria chegado de navio. Lachlan MacRuairi era um pirata dos pés à cabeça.
—Assim oferecem cobertura ao ataque de Bruce contra meu pai além mar — disse ela, tentando adivinhar seu propósito.
Seu tio encolheu os ombros evasivamente.
—Agora me diga, lady Anna, por que vos encontro correndo através da floresta?
—Preciso retornar ao castelo.
—Por que?
Mordeu o lábio enquanto pensava no que devia lhes contar. Mas sabia que não tinha muito tempo. Já a tinham entretido muito. Custaria muito pedir a Deus ajuda retornar ao castelo antes que seu irmão Ewen a alcançasse. Talvez quisessem levá-la?
—Têm cavalos perto? —perguntou.
MacRuairi franziu o cenho.
—Sim.
Anna respirou aliviada.
—Bem. Pode ser que precise sua ajuda para retornar ao castelo. Preciso me assegurar de que Arthur está bem. —Nenhum deles reagiu, e Anna supôs que assim devia ser. Não sabiam que ela estava a par da verdade — Acredito que o chama de Guardião.
MacRuari amaldiçoou.
—Ele lhe disse isso?
Anna negou com a cabeça.
—É uma longa história. Descobri a verdade por mim mesma. Infelizmente, não fui a única. Meu pai também sabe.
MacRuari voltou a amaldiçoar, dessa vez fazendo uso de um impropério que inclusive o próprio pai de Anna rara vez usava.
—Então… está morto.
—Não — repôs ela, desconcertada por sua veemência — Encarcerado. Meu pai o está interrogando.
MacRuairi cuspiu e um olhar de puro ódio atravessou seus escuros traços.
—Em tal caso desejará estar morto. —A que se referia? Perguntou-se Anna. Seu tio, vendo a confusão em seus olhos, o explicou—: Estive do outro lado dos interrogatórios de seu pai.
Tem uns métodos bastante persuasivos e imaginativos na hora de extrair informação. Se Guardião não estiver morto já, logo o estará.
O estômago lhe decompôs para ouvir suas palavras.
—Meu pai jamais…
Não foi a expressão sombria do rosto do MacRuairi o que a deteve, a não ser a lembrança da conversa parcial que tinha ouvido antes de entrar na câmara de seu pai. «Consiga o que quero. Custe o que custar.»
«Oh, Deus.» Anna se sentiu desfalecer. Seu pai o estava torturando. Sabia que esse tipo de coisas ocorria, claro, mas aquilo supunha uma parte feia da guerra em que não queria pensar. E tampouco gostava de pensar que seu pai pudesse estar comprometido em tamanha crueldade.
—Temos que o ajudar — quase gritou, com lágrimas nos olhos.
O coração lhe deu um tombo em ouvir um grito a pouca distância deles.
—Anna!
—Estão-me chamando. Temos que partir já.
MacRuairi negou com a cabeça.
—Não há nenhuma necessidade de que venhas. Nos encarregaremos de tudo.
—Mas…
MacRuairi cortou seus protestos em seco.
—Se vierem conosco, seguirão-nos. Custará-nos menos trabalho lhe ajudar se não suspeitarem nada. Voltem com seu irmão e continuem a viagem.
—Mas pode ser que necessitem minha ajuda. —Anna desejava ver Arthur por si mesma — Como chegarão ao castelo? Como o encontrarão?
O rosto do MacRuairi adotou uma expressão severa.
—Sei onde está. —Pelo modo em que o disse, Anna soube que ele mesmo estivera ali; sentiu um calafrio. Mas o que lhe gelou o sangue foi a angústia que viu refletida em seus olhos. Deus, o que teria feito seu pai? E o que estaria fazendo Arthur? — Já têm feito suficiente —disse — Se Guardião está vivo, ele mesmo lhe agradecerá.
«Se estiver vivo.» Anna reprimiu suas lágrimas e assentiu, consciente de que tinham razão. O melhor modo de ajudar Arthur era que fossem sozinhos para buscá-lo. Mas isso não fazia mais fácil vê-los desaparecer entre as árvores. Queria ir com eles. «Está vivo», dizia a si mesma. Tinha que estar. Se não fosse assim saberia, porque uma parte dela também teria morrido.
Assim que estiveram fora de seu olhar, Anna começou a correr na direção oposta a que tinha tomado para chegar ali. Ao chegar a um pequeno córrego respondeu às chamadas de seu irmão. Teria que dar algumas explicações, mas, tendo em conta a natureza do assunto, não acreditava que Ewen se visse inclinado a lhe formular muitas perguntas. Tudo que Anna podia fazer era rezar para que se produzisse um milagre. Pois isso era o que necessitariam para resgatar Arthur do virtualmente impenetrável castelo de Dunstaffnage antes que fosse muito tarde.
Arthur os deixava aproximar-se. Afinava seus sentidos para captar qualquer sinal de correria ou chiado e permitia que os ratos se aproximassem o suficiente para os agarrar. Assim podia lhes romper o pescoço com uma mão contra sua própria perna, algo que, dado que somente tinha uma mão operativa, parecia de tudo fortuito. O mal era que essa mão estava unida a um braço deslocado, com o que cada movimento lhe produzia uma dor atroz. Tentou recolocar o ombro por si mesmo, mas não tinha a força nem o apoio necessários.
Acabar devorado por ratos famintos não era exatamente o modo em que esperava morrer, mas não sabia por quanto tempo poderia os manter a raia. Cada vez que desmaiava, suas persistentes dentadas despertavam. Tinha perdido muito sangue e a cada hora que passava estava mais débil e pior respondiam seus sentidos. Logo não seria capaz de voltar a despertar.
Teria matado já umas cinqüentas daquelas asquerosas criaturas segundo seus cálculos, mas havia centenas delas ali abaixo. Estremeceu-se. Quando iluminaram o vão com a tocha para jogá-lo lá dentro, o fundo do fosso se via repleto delas. Uma vez fechado, aquele buraco tinha ficado na mais absoluta escuridão. Dependia de seus sentidos, e estes o abandonavam lentamente. Seus olhos começaram a fechar-se. Estava tão cansado que somente queria relaxar-se durante um…
«Ah!», gritou de dor, despertando à realidade graças a uns dentes afiados como facas que se cravavam em seu tornozelo. Esperneou e o rato voou pelos ares.
Supunha que teria que agradecer ao Dugald o que fosse capaz de agüentar tanto tempo ali. Aquelas horas passadas na escura despensa lhe tinham servido de lição. Sabia que tinha que estar alerta e como antecipar os movimentos dos ratos. Mas as reações de Arthur eram cada vez mais lentas. Cada vez escapava um número maior delas e um número maior lhe mordia a mão. Sabia que não poderia durar muito assim. Não viriam a por ele até que não acabasse a batalha, e como tinha perdido a conta do tempo fazia já horas, não sabia quando seria isso.
«Maldição.» Não era só o horror do movimento dos ratos o que estava deixando-o louco, a não ser saber que seus amigos estavam ali fosse dirigindo-se para uma armadilha mortal e que não podia fazer nada para ajudar. Tinha fracassado. «Fracassado.» Fechou os olhos em uma tentativa de que a amarga verdade se desvanecesse. A languidez se abatia sobre ele. Cada vez lhe parecia mais difícil resistir e não deixar-se levar para essa bendita escuridão da inconsciência. Estava tão cansado…
Seus olhos não voltaram a abrir-se. Nada poderia despertá-lo. Nem os ratos, nem a explosão de mil demônios que faria que os guardas corressem até as portas do castelo minutos depois.
Alguém o sacudia.
—Guardião! Guardião! Maldita seja, desperte! Não temos muito tempo.
Quem era Guardião?
Abriu os olhos só para fechá-los imediatamente ao sentir que a luz da tocha lhe atravessava o crânio como se fosse uma adaga.
Guardião era ele.
Mas como…?
Voltou a abrir os olhos. Essa vez lentamente, permitindo que se adaptassem à luz.
MacRuairi.
Advertiu o alívio que se refletia no rosto do outro.
—Não estava seguro de que seguissem com vida.
A mente de Arthur estava embotada e pensada com lentidão.
—Eu tampouco estava.
MacRuairi se estremeceu, e Arthur percebeu que não tinha bom aspecto, inclusive diante da tênue luz da tocha. Tinha o rosto macilento e seus olhos foram parar de um lado a outro com inquietação. Quase se diria que tinha um ataque de pânico.
—Saiamos daqui quanto antes. Podes caminhar?
Arthur assentiu e tentou incorporar-se por si só. Tomava cuidado de não olhar para baixo. A tocha mantinha aos ratos longe no momento.
—Acredito que sim.
—Melhor. Não tinha muita vontade de tentar te tirar daqui.
MacRuairi lhe estendeu a mão, mas Arthur a rechaçou e as arrumou para ficar em pé por seus próprios meios.
—Está sozinho? —perguntou.
MacRuairi o olhou de cima abaixo, e em seguida fez uma idéia de qual era seu estado. Franziu o cenho ao conscientizar-se por que rechaçava sua ajuda.
—Não. Santo e Templário estão comigo. Falcão queria vir, mas alguém tinha que ficar com a frota. Não ouviu a explosão?
Arthur negou com a cabeça.
—É assim como conseguistes entrar?
MacRuairi lhe ajudou a assegurar a corda ao redor da cintura e entre as pernas. Umas pernas que, embora tremiam como se fossem as de um potro recém-nascido, conseguiram lhe manter em pé.
—Não, mas não está mal como manobra de distração.
MacRuairi se agarrou a uma segunda corda e subiu rapidamente. Depois içou o corpo de Arthur com a outra, o qual não parecia fácil, já que tinha um peso morto ao outro extremo. Mas MacRuairi, além de ser tão daninho como uma serpente, era além disso tão forte como um maldito boi.
A sensação de alívio que assaltou Arthur ao estar fora daquele buraco infernal era virtualmente assustadora. Tinha vontade de chorar como um menino. MacRuairi se desprendeu da manta que levava e a deu. Arthur tinha esquecido que estava nu. Aceitou-a com gratidão, ajustando-a ao redor da cintura e dos ombros o melhor que podia com sua mão maltratada.
—O cheiro de merda de rato acabará desaparecendo.
Arthur surpreendeu-se ao ver um traço de compaixão no olhar do outro. De repente percebeu a razão pela que MacRuairi parecia estar tão perto do ataque de pânico ali abaixo. Conhecia bem. Certamente, devia ter passado por algo similar.
—E o resto? —perguntou Arthur.
MacRuairi voltou o rosto violentamente, como se lhe incomodasse reconhecer essa greta em sua couraça de gelo.
—O resto demora mais a desaparecer.
«Ou não desaparece nunca.» Arthur ouviu essas palavras não pronunciadas.
—Como me encontrastes?
—A moça nos disse que o tinham feito prisioneiro. O resto… imaginei.
«A moça…»
—Anna? —perguntou Arthur com uma voz aguda por sua incredulidade.
—Sim. Tivemos sorte de vê-la.
MacRuairi lhe explicou que estavam reconhecendo o terreno e comprovando que não houvesse suas mensagens no túmulo funerário quando ouviram aproximar-se de um grupo de cavaleiros. Ao reconhecer a Anna a seguiram e notaram como tentava lhes dar escapar de seu irmão e seus homens.
Arthur estava surpreso.
—Tentou escapar?
—Ao que parecia, queria assegurar-se de que estavam bem.
Arthur murmurou uma maldição. Graças a Deus, não fora ela quem o encontrou. Não queria que se inteirasse jamais do que lhe tinha feito seu pai. Era um banho de realidade muito forte. Melhor que pudesse acolher-se a alguma ilusão. Mas saber que importava o suficiente para ir a seu encontro significava muito para ele. Mais que muito. Devia-lhe a vida. E também lhe dava esperanças.
—Oh, não! —murmurou MacRuairi com desgosto — Têm exatamente o mesmo olhar de parvo do MacSorley. Não temos tempo para isto. Contarei o resto mais tarde.
MacRuairi lhe rodeou a cintura com um braço, com cuidado de evitar seu ombro machucado, e lhe ajudou a caminhar até a porta. Chamou duas vezes sem deixar espaço entre um e outro golpeio, e depois fez uma pausa e repetiu a chamada. A porta se abriu.
—Por todos os demônios, Víbora. Estava a ponto de sair para lhes buscar. —Magnus MacKay, o Santo, jogou uma olhar a Arthur e estremeceu — Está bem, Guardião?
Arthur procurou sorrir, mas fraquejou diante da intensidade da dor.
—Não estou em meu melhor momento, mas me alegro muito de os ver. Como puderam…?
Uma explosão estrondosa clamou atravessando a brisa da noite e deixou sua pergunta no ar. «A brisa da noite.» Deus santo: o ataque!
—Que horas são?
—Pouco depois da meia-noite — disse MacKay.
—Tenho informação para o rei.
—Mais tarde —disse MacRuairi — Não temos tempo. Essa era nossa manobra de distração. Se queremos sair daqui teremos que nos apressar.
MacKay e MacRuairi flanquearam Arthur e o levaram do hall ao interior do calabouço. Um rápido olhar ao chão lhe informou do destino que tinham seguido os guardas. Infelizmente nenhum dos corpos pertencia a seu torturante. O ajudante tinha partido com o Lorn. Uma razão mais pela que desejava com todas suas forças que chegassem ali a tempo. Outra conta que devia saldar.
Saíram à torre que albergava o calabouço dos refugiados na escuridão. Embora o pátio estivesse deserto, ouvia-se a comoção que chegava das portas do castelo. Entretanto, em lugar de dirigir-se para ali, começaram a subir pelo adarve, com o que Arthur soube qual era o plano do MacRuairi. Tinham assegurado três cordas à mureta do baluarte que ficava em frente às portas na parte mais afastada, olhando ao lago. Em geral havia um guarda vigiando o perímetro, mas a explosão tinha feito que se desviasse para a porta.
Arthur olhou para baixo na escuridão e fez uma careta de desgosto.
—Antes teremos que lhe arrumar o ombro — disse MacRuairi. Deu a volta, agarrou-o pela base do ombro e lhe ofereceu sua adaga — Preparado?
Arthur pôs o punho de madeira entre os dentes e assentiu. A dor foi extrema, mas rápido. Depois de um momento, já era capaz de girar o braço livremente sobre seu ombro.
—Fez isto antes? —perguntou Arthur.
—Não —disse MacRuairi com um estranho sorriso no rosto — Mas o vi fazer. Suponho que têm sorte de que aprenda rápido.
Uma vez que teve o braço em seu lugar, Arthur pôde deslizar-se corda abaixo com a ajuda dos outros. Quando estiveram todos em terra, MacRuairi os conduziu para uma parte escura do muro exterior. Ao olhar ao chão, Arthur percebeu de que faltavam algumas das pedras e viu que havia um buraco debaixo elas. Entraram virtualmente arrastados.
—Esta é a parte mais antiga do muro —explicou MacRuairi — As rochas quase se pode esmiuçar.
Esse comentário indicou a Arthur que certamente não era a primeira vez que avançava por esse buraco.
Do outro lado os esperava Gordon.
—Por que demorastes…? —disse detendo-se o ver o estado de Arthur — Diabos, Guardião, parecem um asco.
—Isso dizem — respondeu Arthur secamente.
Tomaram seu tempo em reparar o muro, no caso de algum dia voltarem a necessitá-lo, e pouco depois já corriam seguindo a costa. A pouco menos de um quilômetro encontraram a pequena embarcação que MacSorley tinha escondido na cova.
—Têm que me levar ante o rei. O quanto antes possível —disse Arthur. Sobre o horizonte oriental se viam já os primeiros raios do amanhecer suavizando o céu noturno. Teriam que ir a cavalo, já que a rota marinha para o Brander estaria cercada pela frota de Lorn — Espero que cheguemos a tempo.
—O que é que acontece? —disse MacKay advertindo a urgência do caso — O que averiguastes?
Enquanto navegavam para o oeste e penetravam entre a frota de navios, lá onde o lago Etive se encontrava com o mar aberto, no fiorde de Lorn, Arthur explicou com presteza o plano traiçoeiro do pai de Anna, tanto os detalhes da emboscada como sua decisão de atacar antes do fim da trégua.
Gordon soltou uma imprecação.
—Esse filho de puta traiçoeiro…
Os sentimentos do MacKay eram idênticos, mas os expressou em termos muito mais precisos, para depois acrescentar: —O rei será surpreendido.
—Sim —disse Arthur — Lorn escolheu o lugar muito bem.
Arthur lhes falou do estreito caminho e os escarpados de Ben Cruachan.
—Conheço o lugar —disse MacRuairi — Aos exploradores custará muito encontrá-los.
—E por isso temos que os advertir.
MacRuairi negou com a cabeça de modo sombrio.
—Sairão na primeira hora do amanhecer. Inclusive no caso de que chegássemos antes que alcancem a parte mais estreita do caminho, não seria fácil que um contingente de três mil homens dê meia volta. Toda essa zona é perigosa.
—Não é necessário que dêem meia volta —disse Arthur — Tenho um plano. —Seus três companheiros da Guarda mudaram um olhar — O que? —perguntou.
Foi Gordon quem expressou o que todos estavam pensando.
—Não está em condições de lutar. Nós faremos chegar a mensagem ao rei.
Arthur chiou os dentes.
—Eu vou.
Nada evitaria que lutasse. Se tinha alguma possibilidade no mundo de enfrentar-se ao Lorn no campo de batalha, faria uso dela.
—Só conseguirá dar lentidão a nossa marcha —disse MacRuairi sem rodeios — Não têm forças nem para sentar numa mula, como ides cavalgar em nosso passo? E como diabos acha que poderá agarrar as rédeas com essa mão?
Arthur lhe dirigiu um olhar carregado de veneno.
—Deixem que eu seja quem me preocupe disso.
MacRuairi ficou olhando-o nos olhos e depois de uns segundos assentiu.
—Será melhor que encontremos algo com o que lutar.
Chegaram a tempo e Arthur não caiu do cavalo, embora para sua vergonha esteve muito perto de fazer. Como os homens do MacDougall já estavam posicionados tiveram que rodeá-los pelo sul. Cruzaram com o rei a pouco mais de um quilômetro do lugar. Este não era dado a mostrar seu aborrecimento, mas Quando Arthur lhe informou dos planos de Lorn o fez. Perjurou e chamou Lorn por todos os nomes vis que cabiam sob o sol.
—Pelos pregos de Cristo, como é possível que não soubéssemos? —perguntou sem dirigir-se a ninguém em particular, apesar de que todos os guerreiros sentiram sua parte de culpa pelo que teria significado um desastre. E também o rei, pois sabia melhor que ninguém que não tinha que confiar no código de cavalaria.
—Escondam-se entre as rochas de uma ladeira escarpada —disse Arthur — Não é fácil vê-los se não está procurando.
Pelo olhar que MacLeod dedicava aos rastreadores, Arthur temia, por mais que pudesse compreendê-lo, que pagariam muito caro.
—Dizia que tinham um plano? —perguntou o rei.
—Sim. —Arthur se ajoelhou e desenhou um mapa no chão com um pau — Podemos vencer ao Lorn em seu próprio terreno. Tem a várias centenas de homens nesta posição — disse, marcando um ponto a meio caminho da ladeira — O resto do exército atacará na boca do estreito quando partirem em retirada e os agarrarão entre duas frentes: acima e abaixo. —Arthur assinalou um lugar um pouco mais acima de onde estavam os homens de Lorn — Se enviarem um contingente por cima, seus homens se verão apanhados. Quando a emboscada não der resultados, Lorn se desesperará.
Bruce ficou circunspeto.
—Está seguro de que podemos conseguir que nossos homens cheguem ali em cima? Como descreve, é um terreno escarpado e traiçoeiro. Se nos descobrirem antes de chegar à posição, não servirá de nada.
—Meus highlanders podem fazer —disse Neil Campbell — Conhecem estas terras.
—Está seguro? —perguntou Bruce.
—Sim —disse Neil — Lutam como leões, mas se movem como gatos.
—Eu os levarei —disse Arthur — Conheço bem o terreno.
Neil seguia sendo um dos guerreiros mais formidáveis do reino, mas tinha cinqüenta anos e não estava tão em forma como antes. Bruce pousou o olhar sobre ele, e Arthur se deu conta de sua incerteza. Apesar de que limpara o sangue e a sujeira antes de por a indumentária de guerreiro que lhe tinham emprestado, de que enfaixou a mão e o pulso, de que tivesse comido e bebido suficiente uisgebeatha para devolver a cor a seu rosto, sabia que ainda parecia que uma besta raivosa do inferno o tivesse tragado, tivesse o amassado com seus dentes e o tivesse cuspido depois. Antes que o rei pudesse negar-se, acrescentou: —Posso fazer, senhor. Não me encontro tão mal como parece delatar meu aspecto.
Era uma mentira, mas não muito grande. Saber que estava perto da hora da verdade com o Lorn lhe dava novas forças.
—Ganhaste esse direito, sir Arthur —disse o rei — Sem sua informação, isto poderia ter sido um desastre.
Arthur sabia que a lembrança de Dal Righ fazia dois anos, quando se viu empurrado pelo Lorn a fugir para salvar a vida, seguia muito fresco na memória do rei. Bruce chamou a seu lado a um de seus cavalheiros mais jovens e de um dos mais dignos de confiança que tinha: sir James Douglas. O único que o fazia sombra, o sobrinho do rei e outrora renegado, sir Thomas Randolph, estava com o MacSorley no oeste, preparando o ataque pelo mar em caso de que fosse necessário.
—Douglas, quero que vá com ele —disse o rei. Ato seguido fez gestos a outro dos guerreiros. Gregor MacGregor, o companheiro original de Arthur nos Guardiões dos Highlands, avançou entre outros — Estarão à frente dos arqueiros —disse. E depois se dirigiu a Arthur—: Tome tantos homens como necessita.
—Será melhor que ponham algalguns MacGregor no lote, Guardião — disse Flecha assim que o rei se voltou para se consultar com o Neil e MacLeod — Não podemos permitir que os Campbell levem toda a glória.
Arthur conseguiu esboçar um sorriso. Deus, era fantástico estar de volta. Era fantástico poder brincar a respeito das velhas rixas de sangue entre os MacGregor e os Campbell que em outro momento tinham feito deles inimigos acérrimos.
—Assim são os MacGregor, sempre dispostos a tirar benefício do duro trabalho dos Campbell.
—Necessito algo com o que impressionar às moças —disse MacGregor.
Campbell soltou uma gargalhada. MacGregor não necessitava nada para impressionar às moças. Isso já fazia seu rosto por ele, e não poucas vezes se colocaram com ele por causa disso.
—Se necessitais ajuda para melhorar seu rosto bonito, posso te mandar ao tipo que me fez isto —disse, assinalando seu próprio rosto.
MacGregor fez uma careta de dor.
—O tipo se empregou a fundo. Isso tenho que reconhecer.
—Assegurarei-me de que chegue seu castigo quando o agarrar — disse Arthur secamente.
Ambos sabiam que aquela não seria uma conversa muito longa.
Neil tinha acabado de falar com o rei, e quando viu que Arthur se dispunha a preparar aos homens, levou-o à parte.
—Está seguro de que te encontra bem, irmão? Qualquer um entenderia que não tenha vontade de seguir. Já tem feito suficiente.
«Eu entenderia», era o que queria dizer. Arthur percebia isso no olhar de seu irmão Neil. Mas ambos sabiam que esse não seria o final.
—Estarei bem —lhe assegurou— quando tudo isto tiver acabado.
Capítulo 25
O plano de Arthur funcionou. Junto a Douglas, MacGregor e uma pequena leva dos homens de seu irmão, dirigiu o grupo de guerreiros para um lugar elevado nas montanhas do Ben Cruachan, por cima de onde estavam escondidos os homens do clã de Lorn. Os guerreiros do MacDougall desdobraram uma chuva de flechas e penhascos sobre os «despreparados» soldados assim que o exército de Bruce passou pelo desfiladeiro que havia debaixo deles. Mas o ataque «surpresa» dos MacDougall recebeu outro ataque surpresa como resposta. Os guerreiros de MacDougall ergueram o olhar, horrorizados, e descobriram que Arthur e seus homens deixavam cair outra chuva de flechas de sua própria colheita e saltavam sobre eles como se fossem uma aparição. Ao perder o elemento surpresa e a posição estratégica nas alturas, a emboscada dos MacDougall se transformou em uma disparada. Apanhados entre duas frentes, abaixo e acima, seus homens foram massacrados. Quando Lorn lançou seu ataque frontal na boca do desfiladeiro, em lugar de enfrentar a um exército no que reinava o caos se encontrou com as poderosas hostes de Bruce fortemente armadas.
Arthur correu para descer a montanha e unir-se à luta, atravessando o barulho de soldados em luta com um só objetivo em mente: encontrar ao Lorn. Conseguiu distinguir a Alan MacDougall ao outro lado da ladeira, concentrando seus homens com a valente intenção de liberar uma nova carga. Mas a valentia não seria suficiente. Esperava pelo bem de Anna que se desse conta disso antes que fosse muito tarde.
O estreito funil do desfiladeiro rebateu em parte a vantagem numérica de Bruce, mas o ataque de Lorn não demorou muito em ver-se frustrado. Arthur alcançou a primeira linha de frente justo quando a vanguarda dos MacDougall começava a romper-se. O rei Robert, à cabeça de seu exército, lutando junto a seus cavalheiros de confiança e os membros dos Guardiões das Highlands, ordenava perseguir os fugitivos do clã inimigo. Em sua frenética tentativa de retirar-se ao castelo de Dunstaffnage, muitos dos MacDougall fossem derrubados ou se afogaram ao tentar cruzar a ponte sobre o rio Awe.
Tinham ganhado! A tentativa dos MacDougall de superar ao Bruce fracassava e o rei obtinha sua revanche pela batalha de Dal Righ. Acabavam de romper o cerco do clã mais poderoso das Highlanders. A vitória era doce, mas não seria completa até que Arthur encontrasse ao Lorn.
No caos da retirada, examinou o contingente de fugitivos em busca de seu inimigo. Aliviou-o comprovar que Alan MacDougall liderava a um grupo de seus homens para terreno seguro. Ao ver MacRuairi junto à ponte, Arthur desceu para encontrar-se com ele.
—Onde está?
Não tinha que dizer de quem falava. MacRuairi cuspiu ao chão e assinalou em direção sul à entrada do lago Awe.
—Nunca saiu de seu birlinn. Esse maldito covarde dirigiu a batalha da água. Assim que seus homens se retiraram, fugiu em direção ao lago.
Arthur amaldiçoou sua sorte, negando-se a acreditar que, depois de ter chegado tão longe, lhe seria vedada a possibilidade de justiça no último momento.
—Quanto tempo faz disso?
—Não mais de cinco minutos.
Em tal caso, ainda tinha uma oportunidade. Mas necessitaria os dotes de marinheiro do MacRuairi se queria o apanhar. Lorn possuía três castelos no lago Awe, mas Innis Chonnel, o antigo forte dos Campbell , era o mais novo e melhor fortificado. Ali seria onde iria.
Arthur olhou ao MacRuairi com parcimônia.
—Gostaria de uma regata?
MacRuairi, conhecido por ser um dos mais temidos e ousados piratas sobre o mar, sorriu. Ao menos pareceu que esboçava um sorriso.
—Eu reunirei aos homens. Encarregue-se do navio.
Arthur estava já correndo para a ribeira do rio para chegar ao porto. Era uma corrida que não tinha nenhuma intenção de perder. Nessa ocasião, John de Lorn não escaparia a seu destino fatal.
****
Anna não podia fazer mais que esperar. Mas não saber o que acontecia depois dos grossos muros do castelo do Innis Chonnel era uma autêntica tortura. O coração se encolheu. Não, tortura não. O seu não era nada comparado ao que Arthur estava sofrendo. Nem sequer podia suportar pensar nisso, embora não parecia ser capaz de outra coisa mais que de imaginar o que estava acontecendo, sem saber se estaria vivo ou morto. Era coisa de loucos! Como conseguiria seu tio entrar no castelo, por não falar de o resgatar? «Teria que ter ido com eles.» Assim ao menos saberia o que tinha passado. Mas seu tio estava certo. Não teria conseguido mais que levar a seu irmão de volta ao castelo.
As horas passavam com lentidão. Quando não estava ajoelhada, rezando na pequena capela, Anna procurava manter-se ocupada. Chamaram à batalha à maioria dos soldados, de modo que somente ficava uma pequena reserva de guardas no castelo para defendê-lo. Na noite anterior, já sem mais falsas visitas ao córrego, assim que o grupo chegou ao castelo, Anna organizou aos homens para que preparassem as câmaras, refrescassem o grande salão e fizessem inventário das provisões com que contavam.
O castelo de Innis Chonnel fora construído mais ou menos na mesma época que Dunstaffnage. Apesar de não ser tão grandioso, era uma edificação similar. A fortaleza quadrada fora construída sobre uma base de penhascos no confinante sudoeste da ilha. Seus altos muros de pedra rodeavam um pequeno pátio. Nos cantos tinham levantado duas torres, a maior das quais servia como torre da comemoração, enquanto a segunda se utilizava como calabouço. Entre ambas estava o grande salão. Sobre os muros se edificaram outras dependências de madeira menores que acolhiam os barracões, os arsenais, os estábulos e as cozinhas.
Parecia estranho pensar que aquele tivesse sido o lar de Arthur em sua infância. Anna sempre desfrutava de suas estadias no castelo junto a seu pai, mas nesse momento se sentia estranha. Como se não devesse estar ali. Como se fosse uma intrusa. Sabia que aquilo era ridículo. Os castelos mudavam de mãos com freqüência durante a guerra. Mas depois do que Arthur lhe tinha contado… Anna estava dividida. Dividida entre o pai ao que ainda amava, embora sem dúvida idealizava, e um homem a quem deveria odiar, apesar de não poder fazer. Não queria compreender por que Arthur fizera aquilo, mas o compreendia. Podia entender a lealdade que regia seus atos porque era quão mesma regia os dela. A lealdade ao rei e à pátria. A lealdade ao clã e à família. Sim, isso entendia especialmente.
Arthur era um highlander. Sangue por sangue, assim era como funcionavam as coisas nas Highlands. De modo que vingar seu pai se convertia em seu dever. Mas ela sabia que não se tratava só de vingança. Uma parte dele seguia sendo aquele menino que tinha visto morrer seu pai e seguia pensando que teria que ter evitado. Justiça. Vingança. Mas também significava expiação. Não obstante, compreendê-lo não oferecia a Anna resposta alguma. O que se podia fazer quando amar a um significava perder ao outro?
Depois de uma noite sem descanso, passou o dia seguinte a sua chegada de modo muito similar ao primeiro deles: rezando e procurando manter-se ocupada todo o tempo para não pensar no que acontecia depois dos grossos muros do castelo. Se por acaso seus temores pelo destino de Arthur não bastassem, também tinha a batalha. Quem sabia se nesse momento não teria deixado já de existir o mundo no que ela tinha vivido sempre. Os homens aos que amava podiam jazer mortos ou feridos, e mesmo assim, nos protegidos limites do Innis Chonnel, sobre a incomunicável ilha do lago Awe, tudo tinha uma aparência normal. A brilhante luz do sol seguia brilhando sobre as mansamente onduladas águas do lago, os pássaros seguiam voando e o vento úmido ainda pulverizava seus cabelos quando passeava pelo pátio.
Distinguiu a figura do Ewen, que saía da torre da comemoração.
—Alguma notícia? —perguntou, apesar de saber a resposta de antemão, já que em caso de que se aproximasse alguém ouviria a chamada.
—Não, ainda nada — respondeu seu irmão negando com a cabeça.
Sabia que a espera também era dura para Ewen, embora por diferentes motivos. Ele queria lutar. Não obstante, se culpava a ela seu confinamento em Innis Chonnel, nunca deixou ver.
Anna mordeu o lábio inferior.
—Oxalá soubesse como vão as coisas.
—Oxalá —disse seu irmão com um sorriso — Mas assim que haja algo do que informar…
—Aproximam-se navios, senhor! —gritou um dos guardas da torre vigia.
Anna seguiu a seu irmão em sua fulgurante descida da escada para as almenas. Somente podia distinguir as três velas quadradas que se aproximavam deles do norte a toda velocidade.
—É o pai — disse Ewen com uma voz desencorajada.
Um pressentimento fez que Anna se estremecesse de cima abaixo.
—O que acontece? Algo vai mal?
Ewen não se incomodou em tentar ocultar a verdade.
—Disse que somente viria em caso de que fosse necessário.
«Necessário.» A Anna lhe deteve o coração. Isso significava que o faria se tivesse que bater em retirada.
Tinham perdido!
Anna cambaleou, sentindo que suas pernas eram como gelatina. Pôs a mão na borda da mureta para recuperar o equilíbrio, observou como se aproximavam os navios e rezou por que houvesse outra explicação. Algo diferente que Bruce tivesse ganhado. Então entreabriu os olhos para proteger-se dos brilhos do sol e viu algo mais.
—O que é isso? —disse, assinalando justo trás dos navios que se aproximavam — O que é isso que vem trás?
Mas Ewen estava já ditando ordens.
—Atacam-nos! A seus postos!
Os homens saltaram à ação imediatamente enquanto Anna, incapaz de desviar o olhar, observava aterrorizada como se aproximavam os navios. Ao que parecia, os homens de seu pai não pareciam conscientizar-se de que os perseguiam.
—Atrás! —gritou em uma tentativa de lhes avisar.
Mas o vento levava sua voz.
—Anna, sai daqui!—gritou-lhe Ewen — Isto não é seguro. Vá à torre e tranca a porta.
Anna assentiu em silêncio e fez o que seu irmão lhe pedia. Uma vez dentro, correu para sua câmara do segundo andar para olhar da seteira. Já que a torre da comemoração estava no canto sul do castelo, não pôde ver os navios até que virtualmente estavam já junto ao embarcadouro. Observou com o coração em um punho como começava a batalha justo a seus pés. Viu seu pai situado atrás de seus homens, gritando ordens ao mesmo tempo em que o navio de guerreiros inimigos chegava… ficou petrificada, com o coração lhe dando saltos no interior do peito. Piscou. Não, não era um sonho. Uma intensa onda de alívio abriu caminho em seu interior fazendo que lhe estremecesse o coração.
Arthur estava vivo. Vestia um traje de batalha que não lhe parecia familiar e embora a simples vista, com o rosto e o cabelo resguardados sob o elmo com nasal, fosse impossível de distinguir dos outros guerreiros, sabia que se tratava dele.
«Graças a Deus.»
Então se revelou a absoluta transcendência de sua presença no castelo. O horror se apoderou dela e a apanhou com seu frio abraço. Se Arthur estava ali, somente podia ser por uma razão. Correu para a porta, consciente de que tinha que fazer algo. Tinha que o deter. Não podia permitir que matasse a seu pai.
Arthur o tinha a frente o momento que tanto tinha esperado. Em certo modo parecia adequado que o encontro final tivesse lugar na pequena ilha do Innis Chonnel, sob a sombra entristecedora do castelo que um dia fora seu lar. A corrida fora acirrada, mas ao final MacRuairi deu fé de que sua reputação era merecida. Oculto pela cegante luz do sol, seguiu aos navios em retirada de Lorn sem que estes se inteirassem de sua presença até alcançar aos três birlinn quando se dispunham a atracar. Somente então dispôs Arthur uma descarga de flechas sobre os despreparados MacDougall.
MacRuairi tinha reunido a quarenta piratas de seu clã, algo que seria um combate desigual, já que os MacDougall os triplicavam em número. Mas os homens de MacRuairi estavam mais que dispostos a aceitar o desafio. Patifes, rufiões, esquartejadores, eram qualificativos generosos para alguns MacRuairi que ganhavam a pulso sua reputação como o maior flagelo dos mares. Mas em terra lutavam com a mesma ferocidade.
Os guerreiros de MacRuairi estavam já saltando pela amurada espada empunhada ao grito de «Pelo leão!», ao mesmo tempo em que seu chefe deixava o navio escondido até pô-lo virtualmente em cima dos do MacDougall. Arthur estava ali mesmo, liderando a carga.
Lorn tinha situado a seus homens ao final do embarcadouro com a esperança de conter aos homens de MacRuairi assim que tentassem tomar a terra. Mas os guerreiros de MacDougall não eram rivais para os selvagens ataques de seus parentes. Apesar de que ambos descendessem de filhos de Somerled, o rei norueguês que tinha governado as ilhas cento e cinqüenta anos antes, lutavam de geração em geração pela supremacia. Os MacDougall a tinham ganhado depois da batalha do Larg e receberam o favor dos reis ingleses, mas essa integração fez que se afastassem muito de suas raízes vikings. Os MacRuairi lutavam como os próprios bárbaros que tinham sido até tão pouco tempo que a maioria deles podia seguir recebendo esse nome.
Romperam o muro de contenção dos MacDougall rapidamente e situaram a batalha sobre as rochosas costas da ilha. Arthur estava em desvantagem ao contar só com um braço, por não falar de seu fraco estado; entretanto, em que pese a encontrar-se longe de suas habituais condições para a luta, defendia-se bem. Abria caminho com determinação entre os soldados sem tirar olho ao Lorn em nenhum momento. Este estava na retaguarda da batalha, rodeado pelo protetor círculo de seus homens, entre os que se encontrava seu ajudante. O sangue de Arthur fervia antecipando o momento.
Os MacDougall retrocediam, e logo ficou claro que as superiores força em número de Lorn não ganhariam a partida. Arthur, envolto em um encarniçado combate com um dos homens de MacDougall, ao qual por desgraça conhecia, ouviu o grito de retirada. Amaldiçoou, consciente de que tinha que deter o Lorn e a seu ajudante antes que alcançassem a segurança das portas do castelo.
«Outra vez não.»
Chamou a atenção de alguns homens de MacRuari e lhes disse o que queria deles. Lutou para abrir caminho até o Lorn seguido por esses mesmos homens, que fizeram racho no círculo protetor de Lorn e tiraram ele e a seu ajudante do grupo. Uma vez que Arthur chegou até ali, os homens do MacRuairi se dispersaram para formar uma barreira atrás dele.
Se Lorn não tivesse a poucos metros da segurança dos muros do castelo, Arthur teria desfrutado mais com sua morte, mas tal e como estavam as coisas teve que despachar ao ajudante com presteza. Por mais habilidade que tivesse aquele homem na hora de torturar, não era rival para Arthur, nem sequer com uma só mão.
Ao fim se voltou para Lorn e o alcançou a escassos metros da porta. Seus homens estavam tão ocupados defendendo-se que nenhum deles pôde ir em sua ajuda. Arthur advertiu a raiva em seus olhos quando John de Lorn ergueu a espada contra ele.
—Como escapou? —perguntou com incredulidade.
—Surpreso de me ver?
Um brilho assassino aflorou nos olhos de Lorn.
—Devia ter matado.
—Sim, teria que tê-lo feito.
—É o culpado de todo este desastre. Traíram meus planos para acabar com esse filho da puta assassino.
—Rei Robert — o provocou Arthur, rodeando-o como a uma presa — Diria que melhor que te acostumem a chamá-lo assim, mas temo que não viverá por aqui tempo suficiente.
E dito isto lhe atirou um golpe.
Lorn estava preparado e arrumou para rebatê-lo, embora com muita dificuldade e tremendo com todo o corpo pelo esforço. John de Lorn, em seus dias um dos mais temidos guerreiros das Highlands, já não significava nenhuma ameaça. A idade e a enfermidade cobraram seu preço. Não era covardia, a não ser a enfermidade o que fez que permanecesse no lago e na retaguarda da batalha. O maldito orgulho de Lorn evitava que admitisse quão doente realmente estava.
O segundo golpe de Arthur o tombou de joelhos. Pôs a ponta da espada no pescoço. A touca de malha não serviria de nada contra o afiado aço de sua arma. O sol se refletia no elmo do ancião de mesmo modo em que tinha feito quatorze anos antes quando Arthur observava da distância como seu pai sustentava a folha ante o pescoço desse mesmo homem e lhe oferecia clemência. Era o momento que estivera esperando. Teria sentido a antecipação dessa cena em suas próprias veias. O sabor da vitória tinha que ser doce. Seus músculos teriam que estar tensos, preparados para propinar a cutilada. Mas não sentia nada disso. Somente podia pensar em Anna.
Se o fizesse, seria para ela o que Lorn sempre foi para ele: o homem que tinha matado a seu pai. Talvez seu perdão fosse algo mais do que tinha direito a esperar, mas se assassinasse ao Lorn destruiria qualquer opção que pudesse ficar. Que honra teria em matar a um homem muito doente para lutar? Seu pai já fora vingado. Lorn estava acabado. Sua derrota no Brander tinha acabado com qualquer opção que tivesse de deter Bruce.
Anna tinha razão. O matar então não seria mais que vingança, e Arthur a amava muito mais que qualquer momento efêmero de satisfação que aquilo pudesse lhe proporcionar. Bom, pode ser que não fosse tão efêmero, mas, em qualquer caso, amava-a mais.
Lorn o olhou com fúria sob o visor de ferro de seu elmo.
—A que estais esperando? Faça de uma vez!
Piedade. Apesar de que até esse momento o tivesse esquecido por completo, aquela fora a última lição de seu pai.
—Renda-se ante o rei e lhe deixarei viver.
O rosto de Lorn se retorceu de ira.
—Prefiro a morte.
—E o que será com sua família? O seu clã? Também quer que morram?
Os olhos do John de Lorn estavam incendiados de puro ódio.
—Prefiro isso antes que me render a um assassino.
—Fará que morram suas filhas por seu maldito orgulho?
Aquilo fazia que o sangue de Arthur fervesse. Conhecia Anna. Jamais iria contra seu pai. A família era tudo para ela.
—Dê a Anna sua bênção. Manterei ela a salvo. Sabes tão bem como eu que está acabado. Mas seu clã pode prosseguirr através de nossos filhos, em seus netos.
A raiva de Lorn estava desenfreada. Sobre seus olhos, frágeis de loucura, ressaltavam as veias de sua têmpora e seu rosto aceso. Desafogou-se proferindo uma enxurrada de maldições vis que lhe deixaram jogando espuma pela boca.
—Jamais será sua! Antes prefiro vê-la morta!
—Pai!
Arthur ouviu o grito angustiado que se erguia atrás dele. Anna. Voltou-se de maneira instintiva e deixou suas costas a mercê de Lorn. Exatamente o mesmo que seu pai tinha feito tempo atrás ante seus próprios olhos.
Capítulo 26
Anna chegou ao pátio justo no momento em que Arthur fazia seu pai cair de joelhos.
Oh, Deus, tinha chegado muito tarde!
Correu mais depressa.
Ewen e outros tentavam defender o castelo lançando flechas de maneira seletiva das frestas do adarve, preparados para baixar a grade assim que seu pai e os outros conseguissem retirar-se ao interior. Os guardas estavam tão preocupados observando o que acontecia no exterior que nem sequer a viram penetrar antes seus narizes.
—Milady! —chamou-a um dos guardas — Não podes…
Anna não os escutava. Avançou alguns metros além das portas, mas não chegou muito longe. Os soldados inimigos tinham formado uma linha que separava Arthur e o pai de Anna do resto dos opositores. Quando ela tentou passar entre eles um dos homens a agarrou.
—Pelas chagas de Cristo! —disse, puxando-a pelo pulso — Aonde acha que vai, moça?
Abriu a boca para gritar ao aterrador rufião que a soltasse, mas então ouviu a voz de Arthur e ficou quieta nos braços do soldado. Não acreditava no que ouvia. Arthur brandia uma espada contra o pescoço de seu pai, a ponto de alcançar a vingança e a expiação que motivava seus atos, quando lhe ofereceu piedade. Ofereceu a seu pai a oportunidade de salvar a todos. Uma oportunidade que, depois do que certamente teria feito, seu pai não merecia. A oportunidade de um futuro.
Se deu conta de que Arthur a amava. «Ama-me tanto que está acima de sua sede de vingança.» Mas se as palavras de Arthur enchiam seu coração, as de seu pai o destroçaram. «Antes prefiro vê-la morta.» Anna escapou das garras de seu captor e retrocedeu, angustiada por um horror e uma comoção que a fizeram gritar. «Não diz a sério.»
Entretanto, ela sabia que sim havia dito a sério. Seu pai preferiria vê-la morta antes que casada com o inimigo, embora a amasse. Aquele cruel rechaço à oferta de Arthur fez saltar em pedaços qualquer raio de ilusão que ficasse. Mas seu grito foi um erro. Um erro mais terrível do que poderia ter imaginado. Sua voz teria que ter-se perdido no infernal estrépito da batalha. Ninguém deveria ter ouvido. Mas Arthur ouviu. Voltou-se ao ouvir sua voz e a espada pareceu perder toda sua força.
«Pai nosso que está nos céus…» Sob a sombra do elmo, a visão de seu rosto golpeado e massacrado lhe revolveu o estômago e provocou um acesso de bílis. Mas o pior dos horrores estava por chegar. Viu o brilho da espada de seu pai pela extremidade do olho.
—Não! —gritou dando um passo à frente. Mas o soldado a apanhou antes que pudesse avançar — Cuidado!
«Calcanhar de Aquiles.» Ela era seu calcanhar de Aquiles, mas não podia permitir que morresse por isso.
Arthur deu meia volta e ondeou sua espada pelo ar para rechaçar o golpe mortal do pai de Anna com suficiente força para arrebatar a espada das suas mãos e fazê-la voar. Então ergueu a espada sobre sua cabeça.
Anna se voltou e protegeu seus olhos do horror que estava a ponto de acontecer. Arthur mataria a seu pai, e depois do que este acabava de fazer não poderia culpá-lo de nada. Esperou para ouvir o horripilante som da morte. Mas o silêncio parecia interminável. Estava tudo tão tranqüilo que percebeu de que a batalha que livrava a seu redor também se deteve.
—Vá — ouviu que Arthur dizia — Tem cinco minutos para levar sua filha e a seus homens do castelo.
O olhar de Anna recaiu de novo sobre seu pai. Seu pai, que seguia com vida. Arthur tinha baixado a espada e se afastava dele, enquanto John de Lorn se pôs em pé com o rosto tingido de uma pátina de raiva desafiante.
—É um estúpido.
—E tens a sorte de que sua filha signifique para mim muito mais que sua mísera vida. Mas lhes asseguro que o rei não sente o mesmo. Parte por seu próprio pé ou faça com grilhões, isso não é de minha incumbência, mas partirá.
Um grito chegou das alturas para confirmar suas palavras.
—Navios, milorde. Seis deles vindo para cá.
«Bruce.»
Lorn não pensou. Reuniu a seus homens e ordenou a Ewen evacuar o castelo e reunir quantas armas pudesse levar consigo.
O homem que a agarrava a soltou. Anna correu, mas Arthur já se fora e ficava de lado junto ao resto dos homens de Bruce, entre os que reconheceu a seu tio, para deixar caminho aos MacDougall. MacRuairi não parecia muito contente com tal acerto, mas depois de um rápido mas violento intercâmbio de palavras Arthur e ele ficaram em silêncio. Arthur não parecia disposto a olhá-la.
Por que não a olhava? Anna tinha vontade de correr a seu encontro, mas o via tão distante e afastado… O coração se encolheu pela incerteza. Sempre tinha pensado que seria ele quem a abandonaria e, entretanto, ali permanecia de pé como um sentinela: firme, incondicional e fiel. Um homem com o que se podia contar. Um homem que derrubaria dragões e se arrastaria através das brasas do inferno.
—Vamos, Anna. Temos que partir.
Ewen tinha aparecido atrás dela e lhe puxava o ombro para tirá-la dali.
—Eu… — titubeou, ao mesmo tempo em que desviava o olhar para Arthur, como se esperasse, como se ansiasse que ele dissesse algo.
Ewen, indeciso, olhou-a um instante e se retirou junto a seus homens. Seu pai deve ter captado aquela troca de olhares.
—Não faça, filha. Nem sequer pense nisso.
Anna olhou a seu pai nos olhos. O homem que tinha amado durante toda sua vida. Um homem que era muito mais complexo do que ela pensava. Era difícil conciliar a figura de seu carinhoso pai com a do homem que acabava de ver nesse dia, apesar de que soubesse que se tratava de uma única pessoa. Por um momento desejou voltar a ser aquela menina que se sentava sobre os joelhos de seu pai e o olhava como se fosse um deus. Voltar para momento em que as coisas eram simples.
Se alguma vez pôs em dúvida o amor de Arthur, já não podia fazer. Não depois do que acabava de fazer por ela.
—O amo, pai. Rogo-te isso…
Advertiu a dor que suas palavras causavam antes que seu olhar se endurecesse.
—Não quero ouvir falar mais nada disto. Faz sua escolha. Mas não te engane. Se partir com ele, jamais voltarei a te ver. Estará morta para mim.
As lágrimas afloraram nos olhos de Anna e lhe ardiam na garganta.
—Não diz a sério.
Mas sim dizia.
—Escolhe — exigiu seu pai com raiva.
Anna se encaminhou para o bote em que a esperava seu irmão com lágrimas caindo pelas bochechas. Arthur, incapaz de ver como se afastava, voltou o rosto.
Tinha ouvido cada palavra da dolorosa conversa que Anna acabava de manter com seu pai. Maldito fosse Lorn por fazer isso a sua filha! Por fazê-la escolher entre os dois. Não tinha por que ser assim. Arthur tinha tentado lhe dar uma saída, mas o filho de cadela não queria acolher a ela. Quase se arrependeu de não tê-lo matado. Quase. Mas quando ouviu a Anna dizer que o amava, soube que tinha feito o correto. Embora isso significasse que devia deixá-la partir. Infelizmente, a dor de sua partida não se atenuava absolutamente nessa segunda ocasião. Ardia-lhe o peito. Seus músculos tremiam pela tensão e contenção e parecia que os rasgavam com uma adaga. Queria detê-la, que não subisse naquele maldito bote. Queria dizer que seu lugar era junto a ele. Que a amava. Pedir que o escolhesse.
Mas não podia fazer mais difícil do que já era. Não estava disposto a fazê-la sofrer mais. Bastou um olhar a seu aflito rosto para que se desse conta do terrível preço que se estava cobrando dela o ultimato de seu pai.
—Sinto muito, Ewen. Explica tudo a mãe —disse de repente — Diga o quanto sinto. Sinto muito, mas meu lugar está junto a ele.
Arthur ficou petrificado. Não podia acreditar no que acabava de ouvir. Voltou-se lentamente e a viu abraçar seu irmão.
Despedia-se dele com aquele abraço.
Arthur ficou sem fôlego.
Anna se separou do abraço de seu irmão e aventurou um olhar em sua direção. A incerteza que esta refletia provocou uma pontada no peito de Arthur que rompeu até o último fio de contenção que ficava. Depois de uns poucos e largos passos chegou a seu lado. A voz de Arthur lutava com o esforço por conter a emoção que brotava em seu peito.
—Está segura? Não têm por que fazer. Protegerei a ti e a tua família o melhor que possa, embora partam.
Anna sorriu, com os olhos velados pelas lágrimas.
—Que sejas capaz de fazer isso é a razão que me faz estar segura disso. O amo. Sou sua, se ainda me quiser.
Deus santo, se ainda a queria… Arthur se esqueceu da sujeira e o pó que o cobria, por não falar do fedor da batalha, e tomou Anna em seus braços com um suspiro de alívio que saiu do mais profundo da alma. De um lugar que, pensou, jamais voltaria a abrir. Descansou a bochecha sobre sua cabeça, absorvendo a sedosa e dourada calidez da fragrância de seus cabelos, e a apertou fortemente contra si, muito emocionado para falar. Mas não tinha que dizer nada. A maneira com que ela o rodeava com seus braços e punha sua bochecha contra seu cotun dizia tudo. Tinha escolhido a ele. Não podia acreditar. Jamais pensou que poderia sentir-se de tal modo. Nunca pensou que esse tipo de felicidade lhe estivesse destinada. Mas sua alegria ficava moderada pela consciência de saber quão difícil devia ser para ela.
Separou-se de Anna a seu pesar. Ela ergueu o olhar, acariciada pelos raios do sol, que deixavam em seus belos traços uma luz dourada e suave. Uma luz que se estendia por seu interior como se fosse um quente abraço. Sentiu como se enchia seu interior. Era um homem afortunado.
Ao conscientizar-se de que ainda não tinha respondido, fez uma careta com a boca.
—Se por acaso não o adivinhastes, isso significa um sim.
O sorriso de Anna fez que parasse seu coração.
Pensava que seu destino fosse permanecer sozinho, mas agora sabia que simplesmente estivera esperando que ela chegasse. Juntos confrontariam qualquer obstáculo ou desafio que a vida lhes proporcionasse. Incluindo a seu pai. Arthur a apertou contra si em seu lado enquanto Lorn caminhava para o cais para ocupar seu lugar entre seus homens. Quando passou junto a eles sem lhe dirigir o olhar, Arthur notou que Anna se cambaleava. Apertou-a contra si com mais força, com o desejo de protegê-la contra isso. Aquele filho de cadela estava lhe destroçando o coração.
—Pai! —exclamou com um fio de voz.
Lorn se voltou para olhá-la com expressão gélida. Mas não estava tão pouco afetado como queria aparentar. Nos olhos do ancião havia uma dor real.
—Não há nada mais que dizer. Tomaste sua decisão.
Anna negou com a cabeça.
—Escolho amar aos dois. Mas meu futuro está junto a Arthur.
Lorn a olhou com atenção, e por um instante Arthur pensou que claudicaria. Mas o homem aplacou seu gesto e deu meia volta para partir sem dizer uma palavra mais, condenado por seu próprio orgulho. Cortando suas relações com ela assim, não fazia mais que prejudicar a si mesmo. Anna era a luz, a cola que unia as pessoas a sua volta. Sem ela, suas vidas seriam mais escuras. Arthur sabia. Tinha comprovado em sua própria carne.
Desejava poder economizá-la dessa dor ou sofrer por ela, mas o único que podia fazer era permanecer a seu lado enquanto via como seu pai e seu clã se afastavam no navio. Quando viraram para o lago e desapareceram de seu olhar, Arthur a pegou pelo queixo para que o olhasse nos olhos.
—Juro-te que me assegurarei de que nunca te arrependas disto.
Anna lhe ofereceu um sorriso vacilante através do brilho de suas lágrimas.
—Não farei. É a única decisão que podia tomar. Eu te amo.
Arthur se inclinou e a beijou com doçura. Sua boca era inclusive mais doce e suave do que recordava.
—E eu amo muito a ti.
Queria dizer muitas mais coisas, mas o resto teria que esperar. Os reforços chegariam de um momento a outro.
—Qual é seu quarto? —perguntou Arthur.
Anna ruborizou. Parecia envergonhada.
—Aquela acima, com vista para o lago.
Teria que ter imaginado.
—Eram meus aposentos.
Anna abriu os olhos de par em par e se apressou a dizer:
—Mudarei…
Arthur negou com a cabeça, cortando em seco suas palavras.
—Fique, assim saberei onde te encontrar. —Gostava de pensar nela ocupando seu aposento. Arthur olhou para trás e viu os navios aproximar-se — Vai até lá. Há certas coisas que tenho que atender. Irei te buscar quando tiver acabado.
Anna estirou o braço para acariciar seu queixo.
—Seu pobre rosto.
Arthur fez uma careta de dor.
—Já sei que estou horrível.
Seus olhos se encheram de culpa.
—Deus, Arthur… Sinto tanto.
—Nada disso, moça — repôs ele negando com a cabeça — Isso se acabou. Não podemos mudar o passado. Tudo que podemos fazer é viver o presente e planejar o futuro.
Um futuro que só momentos antes parecia sombrio e agora transbordava de esperança. Observou-a partir, consciente do perto que estivera de perdê-la. Mas agora que estava com ela, Arthur jurou que jamais a deixaria partir.
Não a fez esperar muito. Anna ouviu como batia na porta com suavidade apenas meia hora depois de que zarpassem os navios. Os homens de Bruce não ficaram muito tempo, mas mesmo assim parecia estranho ver que o pátio de armas se enchia de soldados inimigos. Não, inimigos não. Ao escolher ao Arthur também escolhia ao Bruce, embora supôs que levaria algum tempo familiarizar-se com o que em realidade significava aquilo. No momento, simplesmente tentava acostumar-se com a idéia de que não sabia quando poderia voltar a ver sua família, se é que chegaria a fazer. Ao negar-se a se render ante Bruce, a seu pai não ficava mais alternativa que seguir o mesmo caminho até a Inglaterra que tinha tomado meses antes John Comyn, o conde de Buchan. E suspeitava que sua mãe, seus irmãos e suas irmãs logo partiriam junto a ele.
Mas por mais difícil que fora tomar aquela decisão, Anna sabia que tinha escolhido bem. O amor cego que tinha por seu pai era o de uma menina que pensava que ele jamais faria nenhuma maldade. Entretanto, o amor que sentia por Arthur era o de uma mulher. Uma mulher que entendia que as pessoas, inclusive aquelas às que amava, cometiam erros. O perdão era parte do amor.
Ao abrir a porta e vê-lo ali o coração lhe deu um tombo. Sua enorme envergadura enchia a soleira e tinha que encolher-se para entrar no aposento. De repente aquela pequena câmara dava a impressão de ser minúscula. O ar estava impregnado do aroma de sabão. Banhara-se, tirado a armadura e vestia com uma camisa limpa, túnica e meias, que, suspeitava Anna, teria tomado emprestados de algum dos membros de seu clã que partiram. Mas não foi a visceral consciência de sua presença o que a fez jogar-se em seus braços e afundar o rosto em seu amplo e quente peito, a não ser a infantil expressão de incerteza que aparecia seu rosto.
Anna apreciou o suspiro de alívio que percorria o corpo de Arthur ao rodeá-la com seus braços e agarrá-la.
—Encontra-te bem? —perguntou Arthur.
Anna apoiou o queixo sobre seu peito para o olhar e assentiu.
—Estava preocupado?
Uma mecha de cabelo molhado lhe caiu sobre a testa.
—Sim, mais do que queria admitir.
—Tomei uma decisão, Arthur. Sabia o que dizia. Pode ser que em algumas ocasiões não seja nada fácil, mas jamais me arrependerei disso. —Seu irmão Alan tinha razão. Merecia a um homem que a amasse com a mesma intensidade que ela amava. Um homem que derrubasse dragões e se arrastasse sobre as brasas do inferno por ela. Arthur fazia isso e ela jamais o deixaria escapar. Anna se deixou abraçar um instante antes de voltar a falar—: Obrigado pelo que fez. Sei que… — A emoção a embargava — Sei que não foi fácil.
Seu rosto se escureceu, mas somente por uns segundos.
—Jamais me arrependerei disso — disse repetindo suas palavras com um meio sorriso — Salvar a vida de seu pai é um pequeno preço a pagar pela felicidade que recebo em troca.
Anna mordeu o lábio.
—Mas o que passará com Bruce? Não estará zangado porque o deixasse partir?
Arthur fez uma careta.
—Se podemos tomar a primeira reação de seu tio como sinal, provavelmente sim. Mas o rei me deve alguns favores. Acredito que com isto saldamos as contas. Enquanto seu pai abandone a Escócia, estará inclinado a compreendê-lo.
Inclinado. De repente Anna se deu conta de que somente notava uma mão de Arthur nas suas costas. Libertou-se de seu abraço e ao baixar o olhar viu que sua mão esquerda tinha uma pomposa bandagem. Não tinha notado antes porque Arthur levava as luvas.
—O que passou a sua mão?
—Está quebrada — disse Arthur com total naturalidade.
Ficaram olhando-se nos olhos, e Arthur respondeu sua pergunta tácita. Anna só precisou olhar seu maltratado rosto para saber como tinha acontecido.
—Que mais?
—Algumas costelas — respondeu ele, encolhendo-se de ombros — Vários cortes e alguns hematomas. Nada que não possa curar — Houve algo em seus olhos que indicou a Anna justamente o contrário — Não é mais do que mereço pelo que lhe fiz.
—Não — repôs ela negando com a cabeça de maneira categórica — Não diga isso. O que fizeram foi horrível, mas jamais teria exigido tal castigo —continuou com lágrimas nos olhos — Não é que o tenhamos tudo muito fácil, verdade?
Arthur a agarrou pelo queixo e negou com a cabeça.
—Não, amor, mas te prometo que isso mudará. Acabaram-se as mentiras. Acabaram-se os segredos. —Sorriu, franzindo o cenho — Em qualquer caso, já conhece os mais perigosos.
Que formava parte do exército secreto de Bruce.
—Por que te chamam Guardião?
Houve um momento incômodo quando Arthur olhou a seu redor no aposento em busca de algo onde sentar-se e percebeu de que não havia mais que a cama. Não obstante, sentou-se na borda e fez gesto a Anna para que se sentasse junto a ele. Ela notou que tomava cuidado em deixar uns centímetros de separação entre ambos enquanto explicava.
Tinham-no obrigado a abandonar o treinamento antes dos outros para que ocupasse seu posto como espião. A decisão de usar nomes de guerra fora feita em sua ausência. Alguns dos nomes saíram das brincadeiras que se fazia entre eles e outros, como o seu, provinham de suas habilidades.
—Então eu tinha razão —disse Anna com alegria— quando pensava que seria um rastreador perfeito.
Arthur riu.
—Sim, embora não me fez nenhuma graça. Tentava ocultar minhas habilidades, mas parecia pensar em outras coisas.
E em outras coisas começou a pensar Anna. Aproximou-se um pouco mais dele, deixando que seus seios lhe roçassem o braço.
—E o que ocorrerá depois?
Arthur parecia tentar conter-se por todos os meios.
—Agora acredito que será melhor que eu vá. Não deveria estar aqui contigo deste modo. Não sem um sacerdote.
Anna riu e pôs uma mão sobre a perna. Seus potentes músculos se esticaram debaixo de sua palma.
—Não acredito que goste de ter a um sacerdote aqui conosco.
Arthur apertou os dentes; de fato, pareceu apertar todos os músculos de seu corpo.
—Refiro-me até que estejamos casados.
—Tenho a impressão de que é um pouco tarde para nos pôr cerimoniosos, não?
—Não subi com a intenção de… - Arthur não continuou — Maldita seja, Anna, deixe de fazer isso. —Agarrou sua mão e deteve sua incursão pelo interior da coxa — Tento fazer a coisa certa.
—Quer dizer que anteriormente não fez certo? —Anna piscou com exagerada inocência.
Arthur a olhou com recriminação.
—Sabes perfeitamente que não é isso a que me refiro. Aquilo foi absoluta e totalmente perfeito.
Acabou a provocação. Quando ergueu o olhar de novo o fez com todo o amor de seu coração.
—Por favor, Arthur. Preciso me sentir assim uma vez mais. —Anna necessitava a cercania. Necessitava a conexão. Precisava saber que tudo iria bem. Seus olhos se abriram de par em par — A menos que não sejas capaz. Esquecia que…
Arthur a deteve com um ardente beijo que penetrou até o mais profundo de sua alma.
—Claro que sou capaz, maldita seja.
E, assim, procedeu a lhe mostrar com todo luxo de detalhes quão capaz era. Lenta, profunda e meigamente, com todo o amor que albergava em seu coração. E quando os últimos estremecimentos de prazer começaram a extinguir-se, quando ele sustentou seu corpo nu contra o seu arroxeado e maltratado, Anna soube que nos braços daquele fornido e firme guerreiro encontraria por fim a paz.
Epílogo
Castelo de Dunstaffnage, 10 de outubro de 1308
A paz fazia bem, tanto para a Escócia como para Anna. Menos de dois meses depois da derrota de seu pai no Brander, Bruce ganhou a batalha dos grandes líderes da Escócia. Seu avô, Alexander MacDougall, rendeu-se depois de um breve assédio ao castelo de Dunstaffnage, enquanto que o conde de Ross fez o mesmo depois de poucos dias. Bruce perdoou a vida do homem responsável pelo encarceramento de sua mulher, de sua filha e de suas irmãs, assim como da condessa de Buchan, um ato que dava fé do desejo que tinha de ver a Escócia e a seus nobres unidos sob uma mesma bandeira.
«Pelo bem da Escócia.» Anna tinha que admitir que essa filosofia a impressionava. O homem em si…Bom, procurava manter a mente aberta. Tantos anos defendendo uma causa não se esqueciam em questão de semanas. Mas o que Bruce tinha planejado para esse dia faria bastante para que mudasse de opinião. Sabia o que significava aquilo para Arthur.
Seu olhar passeou pelo grande salão e cruzou a maré de membros do clã reunidos em celebração. Alguns deles lhe pareciam familiares, embora quase todos eram estranhos. Tomaria um tempo, mas Anna prometeu que conheceria todos eles. Aquele seria seu lar. Bruce tinha concedido a guarda do castelo de Dunstaffnage a Arthur em gratidão a sua lealdade e pelos serviços prestados. Além disso, sua próxima missão tampouco o afastaria muito. Passaria os seguintes meses fiscalizando o paradeiro de Lorn e Argyll em sua totalidade e riscando mapas de quanto encontrasse.
Arthur tomou a mão de Anna e a apertou carinhosamente.
—Está contente, meu amor?
Anna ergueu o olhar para o homem que estava sentado junto a ela no estrado, um homem que se convertera em seu marido nessa mesma manhã. Lágrimas de alegria cobriram seus olhos ao olhar suas bonitas feições, que já apenas viam pequenos traços do calvário que tinha sofrido.
—Sim, e poderia ser de outra forma? Ao fim tem feito de mim uma mulher honrada e talvez possa voltar a olhar ao pai Gilbert nos olhos.
Arthur riu. Esse profundo e harmonioso som, muito mais livre agora, seguia sendo capaz de lhe arrepiar a pele com um quente formigamento.
—Já te disse que teria que ter partido antes.
—Tinha frio… — Anna fez um biquinho com os lábios.
—Ofereci-te uma manta antes de ir.
—Não queria mais mantas — disse com a mesma teima que a tinha metido em problemas desde o começo.
Queria a ele. Acostumou-se a dormir do seu lado em Innis Chonnel e fora difícil habituar-se de novo ao retornar ao Dunstaffnage no mês anterior. Ver-se às escondidas não era nem metade de excitante e íntimo. E, é obvio, o principal problema de ver-se às escondidas era a possibilidade de que os descobrissem, justamente o que tinha acontecido fazia uma semana, quando o pai Gilbert pegou Arthur saindo de seu aposento.
—Esta noite não necessitará mais mantas — disse ele com um olhar longo e cálido.
Anna não pôde evitar ruborizar-se, apesar de que nos últimos dois meses tivesse perdido a inocência em muitos sentidos, alguns deles de jeitos mais reveladores.
—Acredita que se darão conta se sairmos agora? —perguntou Arthur inclinando-se sobre ela.
O suave sussurro de seu fôlego no ouvido a fez estremecer. Mas o que lhe provocou brilhos de calor entre as pernas foi a mão que se movia de maneira possessiva e determinada sobre sua coxa. As carícias de seu dedo recordavam a sua língua. E se recordava sua língua, não podia esquecer-se de sua boca. E se recordava sua boca, tinha que lembrar-se da maneira em que a tinha despertado essa manhã fazendo-a chorar de prazer. O mesmo dia das bodas, o muito desrespeitoso velhaco!
E então recordou como tinha pago sua diabrura com a mesma moeda incitando-o com sua própria língua. Recordava o delicioso sabor salgado de sua pele, aquela coluna de carne aveludada introduzindo-se cada vez mais profundo em sua boca. A maneira em que o tinha espremido até o final com a sucção de seus lábios, rodeando a grossa e potente cabeça de seu membro com a língua até que Arthur implorasse por não poder conter-se mais. O modo que acabou por perder o controle e lhe sustentara a cabeça com as mãos para meter até o fundo de sua garganta, fazendo que os gritos guturais do alívio retumbassem em seus ouvidos.
O corpo de Anna começou a derreter com a doce calidez da excitação. Então recordou onde estava e se sobressaltou. Afastou-lhe a mão, confiando que ninguém os tivesse visto. Pelo amor de Deus, se tinha os olhos entreabertos! Era ela quem devia o distrair e não ao contrário.
—Não podemos sair. Não até que… — Se deteve ao conscientizar-se de que talvez houvesse falado demais — Somos os convidados de honra.
Arthur pôs cara de surpresa, olhando ao outro extremo da mesa no que havia vários assentos vazios.
«Pelos pregos de Cristo!» Se deu conta. Pois claro que tinha feito. Não havia nada que escapasse a aquele homem tão observador. Anna o agarrou pela mão.
—Vamos, deveríamos dançar.
Ficou circunspeto, sem mover um dedo.
—Passa algo, Anna? Atua de um modo estranho.
Os olhos se puseram como pratos.
—Pois claro que não. Somente quero dançar.
Um sorriso maroto torceu seu gesto.
—Temo que terá que me dar uns minutos.
—Por que?
Arthur baixou o olhar até sua virilha, e as bochechas de Anna se ruborizaram ao ver seu volumoso pacote. Ao que parecia não era a única que estivera relembrando. Olhou do outro lado da mesa, onde estava sentado MacGregor. Este fez uma sutil negação com a cabeça, depois da qual ela voltou a olhar de novo a seu marido, que seguia circunspeto.
—Está segura de que não é por…? Sei que sente falta da sua família.
Um sorriso amargo se desenhou em seus lábios.
—Sinto falta deles, mas isso não significa que não seja feliz. E meu avô está aqui — disse inclinando a cabeça em direção ao chefe dos MacDougall, sentado a poucos assentos de distância de onde estava o rei. Bom, onde estava o rei até um momento.
Uma vez tomado o castelo, sua mãe e suas irmãs receberam permissão para seguir a seu pai e seus irmãos no exílio, mas Bruce queria o apoio de seu avô. Se seria capaz de ganhar o ou não era algo que Anna não sabia, mas estava contente de ter ao menos a um de seus familiares com ela no dia de suas bodas.
E é obvio estava Escudeiro. Um dia obrigaria Arthur que lhe contasse como tinha conseguido tirar o cachorrinho do castelo enquanto este estava sob assédio. Anna ficou a choramingar como uma idiota ao vê-lo e teve que explicar a um confuso Arthur que chorava de felicidade. Após, não houve um só dia que não jurasse que se arrependia assim que o mascote o perseguia, mas ela sabia que em realidade não se importava nem a metade do que dizia. A aceitação, ou melhor dizendo, a confiança no afeto parecia agora mais fácil. E que Arthur se esforçasse tanto por vê-la feliz era algo que a comovia até o extremo. Quando fez o mesmo com seu irmão Alan, antes que o castelo caísse e de que sua família fugisse para Inglaterra, quase a tinha matado da alegria. Ver seu irmão, sabendo que não compartilhava a decisão de seu pai e que não cortaria as relações com ela completamente, era mais do que Anna poderia esperar. Alan era leal a seu pai, mas essa lealdade não estava brigada com seu amor por ela.
Sim, tinha muito que agradecer a seu novo marido.
—E o que tem a ti, Arthur? Sei que certamente te decepciona que não estejam aqui todos seus companheiros da Guarda.
Anna não sabia de todos os detalhes da Guarda de elite de Bruce, nem tampouco perguntou, consciente de que esse segredo preservava a segurança de seu marido. Mas sabia que se tratava dos melhores guerreiros de elite na Escócia, o melhor do melhor em todas as disciplinas de guerra. Sempre pensou que havia algo especial em Arthur, mas nunca imaginou quão especial era.
Também tinha adivinhado algumas das identidades por sua própria conta. Seu tio. Os dois homens que o acompanhavam e tinham ajudado a libertar Arthur, Gordon e MacKay. O bonito até dizer chega do Gregor MacGregor, que tinha formado parte do ataque tantos meses atrás. Seu rosto era difícil de esquecer. E parecia certo suspeitar que o ilhéu de feroz aspecto Tor MacLeod era outro deles, assim como esse nórdico extremamente encantador, Erik MacSorley. Ambos estiveram sentados junto ao rei com suas esposas, embora nesse momento só elas permaneciam ali.
Pode ser que não soubesse todos os detalhes, mas Anna sabia o suficiente para compreender quanto significavam esses homens para Arthur, embora não fosse consciente disso. Entretanto, seria.
Arthur encolheu os ombros como se aquilo não lhe importasse realmente.
—Há paz no norte, mas nas fronteiras continuam as revoltas. Estou seguro de que teriam vindo se fosse possível. Gordon se casará logo. Talvez consiga vê-los todos nesse dia. Há muito que fazer antes que o rei atenda a seu primeiro Parlamento na próxima primavera — continuou, depois de uma pausa — Estou contente de que meus irmãos possam estar aqui. É a primeira vez que estamos todos juntos na mesma estadia há anos.
Sir Dugald e sir Gillispie se renderam junto a seu avô e Ross. Surpreendentemente, não pareciam guardar rancor de Arthur; entretanto, pela expressão de sir Dugald enquanto discutia com sir Neil, não se podia dizer que seus sentimentos fossem os mesmos para seu irmão mais velho.
—Pois pelo que parece, poderiam ter esperado mais tempo.
Arthur sorriu.
—Sempre foram assim. Rivais encarniçados, inclusive quando pequenos. Eu acredito que essa é a razão pela que Dugald se alinhou junto aos ingleses durante tanto tempo, para não ter que acatar ordens do Neil. Já se arrumarão. A seu devido tempo.
Anna advertiu que Arthur voltava o olhar ao redor.
—Está preparado para dançar? —perguntou com inquietação.
Arthur arqueou uma sobrancelha.
—Estou preparado para ir à cama.
O olhar dela se voltou de novo para Gregor MacGregor de maneira inconsciente. Para seu consolo, dessa vez o guerreiro assentiu. Entretanto, quando voltou o olhar para este Arthur tinha os olhos entreabertos.
—Importaria de me dizer por que cada vez que menciono a cama olha ao MacGregor? —Anna se ruborizou — Vai me dizer do que se trata? —exigiu com aborrecimento — Está tramando algo. E não me diga o contrário, porque posso pressentir.
Anna ergueu o queixo, molesta com sua acuidade.
—Acreditava que seu calcanhar de Aquiles fosse eu.
—E é —disse Arthur com um gesto brusco da mão — Mas não o dele.
Não parecia fácil surpreender a alguém que estava pendente de cada matiz, que notava qualquer mudança e advertia qualquer movimento a seu redor. Inclusive tinha percebido as mudanças de seu corpo antes dela e a informou que seria melhor que adiantassem as bodas ou seu filho seria muito grande para ter só dois meses de vida.
Anna o obsequiou com um olhar de suficiência.
—Está ciumento. —Deixou que seu olhar voltasse a recair sobre o fundo da mesa e ficou olhando de maneira pausada, como se o estivesse apreciando — É bastante bonito esse teu amigo.
Sua cara feia piorou mais ainda.
—Pois não será por muito tempo, se continua olhando-o assim. E não me respondeste.
Anna soprou e se deu por vencida.
—Está bem, mas queria que fosse uma surpresa.
—O que queria que fosse uma surpresa?
Depois de um breve passeio além das portas do castelo Arthur descobriu a razão para tanto subterfúgio. De pé numa clareira da floresta, com o halo laranja do sol do entardecer atrás dele, erguia-se o rei Robert Bruce ante um obelisco, investido com toda a cerimônia real que lhe supunha. Junto a ele, alinhados como um pano de fundo, com seus traços mascarados sob os elmos com nasal cobertos de breu, esperavam os outros dez membros da Guarda secreta de Bruce.
Arthur se deteve sobre seus passos e lhe dirigiu um rápido olhar de incredulidade.
—Tiveste algo que ver nisto?
Anna negou com a cabeça.
—Foi idéia do rei Hoo… —começou, detendo-se o ver o rosto que punha seu marido — Foi idéia do rei Robert —se corrigiu, embora esse título ainda não saía de seus lábios com naturalidade — Minha missão era te distrair —disse fazendo uma careta — Uma missão em que, ao que parece, fracassei.
Arthur a agarrou em braços e a beijou.
—Pois eu acredito que a cumpriu que maneira admirável.
Anna transbordou de alegria.
—Vá. Estão esperando.
Por fim Arthur teria a cerimônia da que nunca pôde gozar. A cerimônia que lhe fora negado por seu papel como espião. Aqueles homens eram tão parte dele como ela mesma. Anna cruzou os braços sobre seu ventre. E como logo seria seu bebê.
—Não demorarei muito — disse Arthur trás beijá-la de novo.
—Estarei esperando.
«Sempre.» Do mesmo modo que ele retornaria sempre para ela. Aquele homem que a todo momento olhava à porta como se quisesse fugir, tinha encontrado o lugar ao que pertencia. E em um mundo no que a paz era tão frágil como uma parte de cristal, Anna tinha encontrado a rocha em que apoiar-se.
Observou-o dirigir-se para eles com o peito cheio pelo orgulho e felicidade. Uma vez que chegou lá, Anna começou a afastar-se. Entretanto, mal teve percorrido alguns metros mais à frente do círculo de árvores quando duas mulheres a detiveram.
—Aonde vai? —perguntou em um sussurro Christina, a mulher de Tor MacLeod.
Anna tentou não sentir-se intimidada por sua beleza, mas parecia impossível. Christina era tão deliciosa e refinada como uma princesa de conto de fadas, sobretudo ao compará-la com o aspecto aterrador de seu marido, que parecia tirado das páginas arrancadas de algum livro antigo sobre mitologia nórdica.
—Eu… pensava que não pudesse olhar.
A segunda das mulheres sorriu. Embora não era tão incrivelmente formosa como Christina Fraser, havia algo sereno e agradável em Elyne, a esposa do descarado pirata Erik MacSorley. Anna ficou perplexa quando descobriu que era a filha do conde de Ulster, um amigo íntimo do rei da Inglaterra. Mas também era irmã da esposa encarcerada do rei Robert, Elizabeth. Outra família dividida, ao que parecia.
—Acham que não —disse Elyne — Mas isso não vai me deter. Não tive oportunidade de ver a de meu marido. Não perderia isso por nada do mundo.
—Não se zangarão? —perguntou Anna.
Christina lhe dirigiu um sorriso insolente.
—Superarão. Além disso, quero ver que tipo de marca lhe põem.
Anna a olhou com surpresa.
—Já tem uma. O leão rampante. Pensei que todos os homens o tinham.
—Assim é —respondeu Christina — Mas decidiram acrescentar outra pela aranha da cova. Conhece a história?
Anna assentiu. A história da aranha de Bruce na cova formava já parte da lenda.
—Para honrar a ocasião, Erik decidiu acrescentar uma em forma de gargantilha ao redor de seu braço que parece uma teia de aranha — disse Elyne — Como é marinheiro, incorporou também o birlinn nele —acrescentou com um sorriso — Uma vez que outros o viram, todos decidiram fazer um. —Elyne, entre risadas, ergueu o olhar ao céu como dizendo: «Homens».
—Venha — disse Christina, agarrando-a pelo braço e arrastando-a de novo para as árvores — Já começaram.
As três mulheres contemplaram juntas das sombras como Arthur se ajoelhava ante o rei e tomava o lugar que lhe correspondia por direito próprio entre seus companheiros da Guarda, seus amigos.
«Inquebrável», dizia a gravação na espada que Bruce lhe entregou. Anna não podia estar mais de acordo.
Fim
Nota da Autora
A batalha do Estreito de Brander foi chave na guerra de independência da Escócia. Não só representa um exemplo da mudança de estratégias de Bruce, pois este deu uma emboscada a quem pretendia lhe dar uma, mas sim também assinala a precipitada queda em desgraça dos MacDougall e a mudança de poderes na política das Highlands Ocidentais para outro ramo de descendentes de Somerled, os MacDonald, e também para os Campbell, que se beneficiariam do infortúnio dos MacDougall.
Há certo desacordo entre os historiadores na hora de datar a campanha de Bruce em Argyll após a qual John de Lorn fugiu da Escócia e a queda do castelo de Dunstaffnage. Decantei-me pela data mais convencional do verão do ano de 1308, mas há quem opine que a capitulação final de Argyll não foi antes do ano de 1309.
Embora a forma como narro a batalha seja fictícia, incorporei muitos dos acontecimentos reais, entre os quais se inclui John de Lorn dirigindo seus homens de um birlinn à beira do lago, já que se supunha que estava recuperando-se dessa enfermidade que tinha propiciado a trégua do ano anterior. Diz-se ainda que ao falhar seu ataque, retirou-se a um de seus castelos.
Mas há um detalhe em particular da batalha que foi o que me deu a idéia para a história. Li algo a respeito de um explorador que supostamente tinha advertido ao Bruce da emboscada, com isso salvou sua pele. Aquilo soava como um trabalho perfeito para meu rastreador de elite Arthur Campbell.
O personagem de Arthur Campbell está inspirado vagamente em Arthur de Dunstaffnage, o irmão, ou pode ser que o primo do Neil Campbell. Tal e como sugere seu apelido, foi renomado governante do castelo de Dunstaffnage depois da guerra. Algo que encaixava à perfeição com minha heroína MacDougall, embora Anna seja um personagem fictício e o nome da esposa de Arthur, se é que a houve, não apareceu. Curiosamente, sim existiu um compromisso de matrimônio entre Arthur e Christina das Ilhas MacRuairi, embora nunca chegaram a casar-se.
O que também se adequa à perfeição com Arthur, e deste modo com seu irmão Dugald, é que se dizia que esteve no lado dos ingleses durante um tempo e mais tarde passou ao de Bruce. Arthur de Dunstaffnage não é, provavelmente, o mesmo Arthur progenitor do clã MacArthur. Parece mais plausível que este Arthur proviesse de outro ramo da família, possivelmente mais antiga, os Campbell do Strachur (que significa «filhos de Arthur»). Mas há muita confusão e existem diferentes teorias respeito à linhagem dos MacArthur, incluindo a descendência direta do rei Artur. Um antigo provérbio das Highlands diz: «Não há nada mais antigo que as colinas, MacArthur e o diabo».
Neil Campbell foi um dos partidários de Robert Bruce mais importantes e leais. De fato, ao final Neil acabaria casando-se com a irmã do rei, Mary, quando a libertaram do cativeiro da jaula nas alturas do castelo do Roxburgh, ao redor do ano 1310. Mary voltaria a casar-se depois da morte de Neil, algo comum em uma época em que havia tantos viúvos e viúvas. Aos leitores do primeiro livro da série, O Guerreiro, talvez lhes interesse saber que seu segundo marido foi Alexander Fraser, o irmão da Christina.
Um interessante ponto e aparte na história do Neil dá certo colorido à época: parece ser que sua primeira esposa era filha de Andrew Crawford. Neil e seu irmão Dugald, que foram nomeados guardiães das duas irmãs Crawford, decidiram tomar como esposas de maneira literal: seqüestraram-nas.
John de Lorn, também conhecido como John Bacach (John o Coxo) e como John de Argyll, foi uma figura destacada na política das Highlands Ocidentais, responsável não só da morte do Colin Mor Campbell na batalha de Red Ford, mas também da de seu parente Alexander MacDonald, lorde de Islay, o irmão de Angus Og.
Lorn sofreu enormemente por sua lealdade aos Comyn, a quem estava ligado por matrimônio, e também por seu ódio ao Bruce, algo que, dado que este assassinou ao Comyn o Vermelho, era uma circunstância bastante compreensível.
O uso de mensageiras femininas por parte de Lorn é minha invenção, mas a frustração das missivas que se perdiam não é. A esse período sobreviveram algumas epístolas, entre as que se inclui uma carta recentemente decifrada do oficial do Banff dirigida ao Eduardo II em que se queixa dos assassinatos de seus mensageiros. Do mesmo modo, a frustração de Lorn ao ficar sozinho frente a Bruce e a dificuldade de conseguir apoios dos barões locais está apoiada na correspondência entre Lorn e Eduardo II, em que o primeiro afirma que se vê obrigado a uma trégua com Bruce porque está doente e «os barões de Argyll não me emprestam ajuda alguma» (Robert Bruce, G.W.S. Barrow, Edinburgo University Press, Edinburgo, Escócia, 2005, P. 231).
Não há fonte que confirme a doença de Lorn. O ataque ao coração e os conseguintes problemas coronários são de minha própria invenção, algo que resulta ajustar-se bem a sua propensão a esses violentos ataques de cólera. Paralelamente, também se desconhece a fonte da que provém a enfermidade debilitante que golpeou ao Bruce no inverno do ano 1307. Embora certos rumores históricos a identificam com a lepra, as últimas hipóteses apontam que devia ser escorbuto. Qualquer que fosse a causa, sacudiu com força ao novo rei e, conforme se diz, esteve a ponto de acabar com ele. Supostamente, Bruce foi levado nas costas por seus homens à batalha de Inverurie.
O broche que Lorn leva no capítulo dois, do qual se diz que o arrancaram de Robert durante da batalha de Dal Righ, segue em poder do chefe dos MacDougall, e sua última aparição em cena é tão recente que somente faz cinqüenta anos. Não obstante, alguns peritos asseguram que o broche em questão provinha de um período anterior.
A batalha de Red Ford ocorreu de maneira diferente de como eu a retratei. Mais que uma emboscada, John de Lorn se encontrou com o Colin Mor junto a um córrego que desembocava no Loch na Streinge (mais tarde chamado Allt a chomhla chaidh, quer dizer, o córrego do encontro). A discussão degenerou em uma briga e este em uma batalha. Os MacDougall se viram superados em número, e parecia que perderiam, até que um arqueiro disparou sobre o Colin o Grande detrás de uma pedra e o matou.
Até onde chegava o poder dos Campbell nas imediações do Loch Awe antes da guerra é algo que não se tem ciência certa, mas já que o fizeram magistrado municipal de Loch Awe perto do ano 1296, podemos presumir que não foi insignificante. Embora se acredita que os Campbell detiveram a propriedade o castelo de Innis Chonnel anterior a dos MacDougall, cuja existência está confirmada no ano 1308, os historiadores não estão seguros disso. Não obstante, no momento em que transcorre o livro, o castelo estava nas mãos dos MacDougall. Lorn menciona em uma carta ao rei Eduardo os três castelos que possui em Loch Awe.
O ódio entre Bruce e os MacDougall só rivalizava com o de seus parentes os Comyn. A «perseguição de Buchan» que seguiu à batalha do Inverurie (ou batalha de Barra) de 23 de maio de 1308, a qual tem lugar a princípio do livro, parece ser uma das poucas ocasiões nas que Bruce deu rédea solta à vingança. A destruição foi tão devastadora que se diz que demoraram anos em recuperar-se e que se falou dela durante gerações inteiras.
Pelo contrário, o rei Robert sim que aceitou a rendição de William (Uilleam II), o conde do Ross, sem tomar represálias pelo papel que tinha desempenhado Ross na captura e posterior encarceramento das damas de Bruce (sua esposa, sua filha, suas irmãs e a condessa de Buchan). Não muito tempo depois da rendição de Ross, seu filho Hugh (Aodh) casaria-se com a irmã de Bruce, Mathilda.
Conforme contam, Alexander MacDougall, lorde do Argyll, era muito velho e estava doente no momento da batalha do Brander. Rendeu-se ante Bruce depois do assédio ao castelo de Dunstaffnage e atendeu ao primeiro Parlamento do rei em março de 1309, mas depois acompanhou a seu filho no exílio, onde morreu em 1310.
Como é habitual, alguns dos castelos que são mencionados no livro são conhecidos com outros nomes. O castelo de Auldearn se conhece também pelo Old Even e o castelo de Glassery (ou Glassary) conhece-se como castelo do Fincharn.
A tortura medieval dos ratos era muito mais truculenta do que sugiro. Colocavam sobre o estômago da vítima uma jaula fechada com um rato em seu interior e depois a esquentavam em cima. O rato, em sua tentativa de escapar, roía lentamente as vísceras do condenado. Um detalhe… interessante que provavelmente teria dotado ao livro de um «colorido» muito fiel à época.
Finalmente, os leitores do terceiro livro de minha trilogia dos Campbell, O highlander traído, talvez percebam a conexão entre a espada de Arthur e a de Duncan, em que gravaram a lenda: «Inquebrável» que passou de geração em geração dos tempos de Bruce. Apesar de que seja de minha própria mente, é obvio que era costume gravar lendas nas espadas e passá-las ao herdeiro.
Notas
[1] Hora da oração completa. Onde estariam todos juntos, sem exceção e rezariam supostamente o rosário completo.
[2] Uma vestimenta, normalmente bordada com o brasão, usada sobre a armadura.
[3] O Rei Robert the Bruce era chamado pelos ingleses e simpatizantes por King Hood, para insultá-lo por usar uma longa capa com capuz. Hood em inglês significa capuz.
[4] Ela se referiu antes a dores no peito do pai. Possivelmente se trate de insuficiência cardíaca do ventrículo esquerdo, onde ele não “retira” o sangue do pulmão, daí o termo encharcamento.
[5] Um “leão rampante” é representado em pé ereto de perfil, com as patas dianteiras levantadas. A posição das patas traseiras varia de acordo com os costumes locais: o leão pode estar em ambas as patas traseiras afastadas, ou em apenas sobre uma, com a outra também levantada para o ataque; a palavra rampant é frequentemente omitida, especialmente nos brasões mais antigos, pois esta é a posição mais usual de um quadrúpede carnívoro.
[6] Um bardo entre os Highlanders da Escócia, que preservaram e repetiam a tradições das tribos, também, um genealogista.
[7] Adonis era um jovem de grande beleza que nasceu das relações incestuosas que o rei Cíniras de Chipre manteve com a sua filha Mirra. Adônis passou a despertar o amor de Perséfone e Afrodite. Mais tarde as duas deusas passaram a disputar a companhia do menino, e tiveram que submeter-se à sentença de Zeus. Este estipulou que ele passaria um terço do ano com cada uma delas, mas Adônis, que preferia Afrodite, permanecia com ela também o terço restante. Nasce desse mito a ideia do ciclo anual da vegetação, com a semente que permanece sob a terra por quatro meses.
[8] O luchd-taighe eram guardas da comitiva pessoal do chefe, ou em termos coloquiais, a sua posse. Sua finalidade era atender o chefe em todos os momentos. Eles eram bem treinados em armas e ações marítimas, bem como perseguições a outros guerreiros. Era uma grande honra ser escolhido como um dos guardas pessoais do chefe e o prestígio de um chefe era derivada a partir do número destes homens luchd-taighe.
[9] Hobelars eram um tipo de cavalaria ligeira, ou montado de infantaria, durdiante da Idade Média , usado para escaramuças. Eles se originaram no século 13 na Irlanda e, geralmente, montavam os cavalos hobelar, um tipo de cavalo leve e ágil.
[10] O escudo é dividido em 8 triângulos.
[11] Tomás da Inglaterra (ou Tomás da Bretanha) foi um poeta anglo-normando do século XII. Sua única obra conhecida é o poema Tristan, uma das primeiras versões conhecidas da lenda de Tristão e Isolda. O poema foi escrito entre 1155 e 1170, possivelmente para Leonor de Aquitânia, uma vez que a obra sugere uma relação com a corte de Henrique II Plantageneta. Apenas oito fragmentos da obra sobreviveram aos nossos dias, com um total de 3.300 versos, especialmente da parte final da história . Calcula-se que isso represente cerca de um sexto do poema original. A obra de Tomás é contemporânea de outro grande poema sobre o tema de Tristão e Isolda, escrito por um misterioso escritor chamado Béroul e que também chegou de maneira fragmentária aos nossos dias. Comparada à obra de Béroul, o Tristan de Tomás é considerado mais próximo do refinamento do romance cortês.
[12] cama bamba, meio velha ou quebrada.
[13] Os Saxões chamavam ao grupo das pedras eretas (menhires) «Stonehenge» ou «Hanging Stones» (Pedras Suspensas), enquanto os escritores medievais se referem como «Dança de Gigantes». Inigo Jones, famoso arquiteto do século XVII que fez o primeiro estudo sério sobre Stonehenge, considerou-o um Templo romano. Mas William Stukeley, um estudioso de Monumentos e Franco-Maçom do século XVIII, convenceu muita gente de que se tratava de um Templo construído pelos druidas britânicos. Só no século XX os arqueólogos estabeleceram a idade real do Monumento e chegaram a conclusões mais realistas acerca da sua finalidade. A zona de Wiltshire, nos arredores de Stonehenge, é rica em ruínas Pré-Históricas. Woodehenge, Durrington Walls, Cursus e mais de 350 sepulturas são testemunho da intensa atividade comunal dos habitantes, que pastoreavam animais, semeavam trigo e adoravam os seus Deuses na Planície de Salisbury e em torno dela. A construção de Stonehenge teve início cerca de 3500 a. C
[14] Monges beneditinos bastante severos
[15] O aplastapulgares é uma das torturas mais antigas e simples. Embora vários dispositivos mecânicos foram usados para realizar a tortura em si foi o esmagamento das unhas, falanges e juntas em um lento e gradual, estendendo-se a dor por dias, sem causar danos letais para a vítima. O nível de perturbação pode ser controlado, a ponto de quase mutilação do membro. Para crimes de tortura geralmente grave usa-se lentamente, começando com as unhas, passando depois para as falanges e terminando nas juntas, e destruindo completamente as duas mãos.
Capítulo 20
—Retornaram!
Anna correu até a janela de seus aposentos ao perceber a excitação na voz da Mary. Examinou com fruição as figuras com armadura que atravessavam as portas do castelo e quando por fim reconheceu a familiar envergadura de seus ombros exalou profundamente, como se tivesse passado quatro dias contendo a respiração. Havia retornado. Não a tinha abandonado. Dizia a si mesma que era uma loucura pensar que ele fosse capaz de tal coisa. Entretanto, não queria admitir quanto tinha chegado a preocupar-se.
Anna afastou seu trabalho de bordado e saiu correndo do aposento seguindo os passos de sua irmã, que parecia tão emocionada como ela pela volta da partida de reconhecimento. Franziu o cenho. Acaso para sua irmã Mary importava mais o irmão de Arthur do que admitia? Chegaram ao salão justo no momento em que faziam entrar o grupo à câmara de seu pai para dar parte de seu avanço. Fazia um momento que tinham terminado a refeição leve, mas Mary e ela pediram que preparassem algo de comer e beber enquanto aguardavam os homens. Depois de uma espera que lhes pareceu interminável, estes saíram da câmara de seu pai e entraram no salão. O primeiro a fazer foi seu irmão, depois sir Dugald e logo, ao fim, Arthur. Embora estivesse coberto de pó e sujeira, com um rosto maltratado pelo sol, barba de quatro dias e aroma de estrebaria reaquecida, a Anna jamais pareceu mais maravilhoso. Se não fosse pela multidão de homens do clã que se agrupava a seu redor no salão, teria saltado a seus braços.
Afastaram-se um momento enquanto os serventes preparavam as mesas. Desta vez não poderia evitá-la.
—Está bem? —perguntou Anna sem acreditar em seus olhos.
O olhar de Arthur se suavizou ao perceber sua preocupação.
—Sim, moça. Estou bem. Necessito um bom banho, mas, além disso, estou perfeitamente são.
—Alegra-me ouvi-lo — disse mordendo o lábio e olhando-o com vacilação —… Senti tua falta.
Arthur se estremeceu e uma pulsação fez tremer seu queixo.
—Anna…
Ela engoliu em seco e sentiu que de repente lhe quebrava a voz.
—Pensastes em mim?
—Tinha muito em que pensar. —Mas depois, ao ver o rosto que punha, arrependeu-se — Sim, moça. Pensei em você.
Teria ficado contente com isso, a não ser pelo que tanto que custou admiti-lo. As mesas de cavalete estavam já preparadas e os serventes começavam a por pratos com comida. O resto dos homens desfilava para os assentos. E ali foi aonde olhou Arthur do lugar em que estava, junto à câmara de seu pai. Parecia ansioso por reunir-se com eles. Anna não podia enganar-se por mais tempo.
—Não desejas este compromisso. —A verdade ardia. Anna ficou olhando-o fixamente, atormentada pela própria dor de seu peito — É que…? —Mal podia pronunciar as palavras. Tinha comentado que lhe ofereceriam uma esposa como recompensa — É que esperava te casar com outra?
Arthur a olhou com dureza.
—Do que estais falando? Já vos disse que não havia nenhuma outra.
—Então é simplesmente que não me quer.
Parecia que algo o atormentasse.
—Anna… —Arthur pigarreou — Agora não é o momento.
Apesar de que estivessem rodeados de gente, Anna não pôde reprimir toda sua frustração.
—Nunca é o momento. Ou está fora, ou encerrado em alguma reunião ou ocupado praticando. Quando, rogo a Deus que diga, é o momento?
Arthur, visivelmente frustrado, alisou com uma mão seus cabelos encrespados pelo elmo, que lhe caíam em suaves ondas por cima das orelhas. Anna esteve a ponto de acomodar as mechas atrás delas, mas se deteve a tempo.
—Não sei, mas agora mesmo quão único quero é comer algo, tirar toda esta porcaria de cima e dormir algo mais que umas poucas horas.
Devia estar exausto. Por um momento Anna se sentiu culpada, mas não durou muito. Não pensava permitir que seguisse lhe dando voltas.
—Então amanhã. Falaremos amanhã - disse, olhando-o com firmeza — Em particular.
Talvez, mais que atormentado, estivesse assustado. Não pensava que fosse capaz disso, mas ao que parecia estar a sós com a Anna conseguia algo do que não eram capaz dezenas de guerreiros armados. Não sabia se era pra rir ou chorar.
—Não posso. Supõe-se que sairemos de guarda.
—Quando retornarem. —Parecia louco por encontrar outra desculpa, mas Anna o impediu — Já sei que está ocupado preparando a batalha, mas é que não mereço uns minutos de seu tempo?
Arthur lhe sustentou o olhar durante alguns momentos.
—Sim, moça. Claro que o merece.
—Bem. Então vá comer — disse assinalando uma das mesas — Seus irmãos te esperam.
Arthur assentiu levemente e foi reunir se com sua família enquanto Anna dava meia volta e encontrava a sua irmã Mary mais perto do esperado. Observava-a com uma expressão de comiseração no rosto.
—Não passa nada —disse Anna, envergonhada pelo que pudesse ter ouvido — Está cansado. Isso é tudo.
Mary a agarrou sua mão e a apertou.
—Tome cuidado, Annie querida. Há homens que não querem ser amados.
Ficou circunspeta.
—Isso não é certo, Mary. Todo mundo quer ser amado.
Um sorriso de melancolia escureceu a boca perfeita de sua irmã.
—Amas muito, irmãzinha. Mas há gente que não quer esse tipo de cercania. Há gente que prefere que lhes deixem em paz.
Embora Anna não quisesse acreditar nas palavras de sua irmã, perseguiram-na durante todo o dia enquanto esperava a oportunidade para falar com ele.
Arthur saiu a cavalgar pela manhã cedo, retornou a tempo para a refeição do meio-dia e depois participou junto com seus irmãos e o resto dos homens no treinamento vespertino que faziam no pátio. Os exercícios se intensificavam cada vez mais já que se aproximava a batalha. Aproveitavam a luz dos longos dias de verão e não acabavam até as oito da tarde. O jantar era frugal, como também eram as preces vespertinas. Anna se viu tentada de o seguir ao ver que se dirigia para o lago, mas sua mãe a reclamou para que a ajudasse a dirimir uma disputa nas contas do lar, e uma vez que acabou, ele já estava de volta e se encerrou em uma reunião junto aos cavalheiros de alta fila e os guerreiros da meinie de seu pai no que se converteu em um conselho de guerra noturno. Anna o esperou em uma pequena saleta situada no vão da escada, consciente de que Arthur teria que passar por ali a caminho dos barracões. Normalmente somente ia a aquele lugar para ler algum livro, mas estar oculto do olhar por uns cortinados de veludo parecia algo mais particular que lhe esperar no salão, repleto de homens que dormiam. Tinha levado consigo uma vela para ler, mas à medida que caía a noite seus olhos se cansaram demais, de modo que a pôs a um lado.
Devia ser meia-noite quando os homens começaram a sair dos aposentos de seu pai. Arthur foi um dos últimos, mas Anna finalmente viu como entrava pelo corredor junto a seus irmãos. Quando se aproximou de sua posição, ela afastou os cortinados e desceu a escadinha para dirigir-se a ele. Para ouvir o comentário de seu irmão, Arthur a buscou com o olhar com uma expressão mais resolvida que surpreendida e foi a seu encontro, enquanto seus irmãos abriam a porta que conduzia ao barmkin.
—Não deveria ter permanecido acordada - disse.
—Esqueceu que acordamos nos ver hoje? —repôs ela com o cenho franzido.
—Não. —Suspirou — Não esqueci.
Apareceram mais homens no corredor.
—Venha — lhe disse Anna, protegendo-se em uma pequena cova que usavam para armazenar o vinho do senhor do castelo, aonde ninguém lhes incomodaria.
Assim que abriu a porta sucumbiu ao rico e frutífero aroma, que se intensificou ao fechar a estadia. Colocou a vela sobre um dos tonéis e se voltou para olhá-lo. Tratava-se de uma despensa pequena encravada na parede. Um espaço íntimo, muito íntimo. Anna se ruborizou ao conscientizar-se disso. Arthur permanecia ali à luz trêmula das velas como um convidado de pedra, com uma expressão rígida e forçada. Ficou surpresa ao ver que apertava os punhos.
—Isto não é uma boa idéia — disse ele com voz quebrada.
—Por que não?
Arthur a olhou com severidade.
—Não recorda o que aconteceu a última vez que estivemos encerrados em um aposento pequeno?
Anna se ruborizou. Era difícil não recordar à perfeição estando tão perto dele. O calor que desprendia seu corpo a envolvia e sua pele se arrepiava ao recordar as intimidades que tinham compartilhado. Mas não era para isso que o tinha levado ali.
—Só demoraremos uns minutos. Preciso saber… — Ergueu o olhar para examinar seu arrumado e tenso rosto — Quero que me diga se deseja este compromisso ou não.
A franqueza de Anna já não surpreendia a Arthur.
—Anna… — disse tentando lhe distrair — É complicado.
—Isso já disse antes. O que ocultas, Arthur? O que há aí que não quer me contar?
—Há coisas — disse contendo-se e olhando-a com aspereza — Não sou o homem que pensam.
—Sei exatamente o tipo de homem que é.
—Não sabe tudo.
Anna reconheceu o tom de advertência.
—Então me conte isso - Ao ver que não respondia, acrescentou—: Sei o que é o importante. E sei que te quero.
Aquelas palavras pareceram lhe doer. Arthur se aproximou para acariciar a bochecha com uma expressão de tristeza que lhe rompeu o coração.
—Pode ser que pense isso agora, mas logo mudará de opinião.
Seu tom paternalista e essas advertências crípticas a punham fora de si.
—Não o farei — disse Anna com veemência, apertando os punhos para aplacar a vontade que tinha de gritar ou de romper a chorar. Respirou profundamente para acalmar-se e continuou—: É algo muito simples, Arthur: quer se casar comigo, sim ou não?
—O que eu quero não vem ao caso. Estou pensando em você, Anna. Pode ser que agora mesmo não te pareça isso, mas acredite quando lhes digo que o faço por seu próprio bem. Não quero te fazer dano. Tudo pode mudar durante nos próximos dias. A guerra mudará tudo.
Tinha razão. Parecia que todos seus sonhos pendessem de um fio. A guerra estava a ponto de cair sobre eles e tudo o que conheciam mudaria em um abrir e fechar de olhos. A espada de Damocles pendia sobre o poder dos MacDougall nas Highlands. Mas havia algo ao que Anna podia acolher.
—Isso não mudará meus sentimentos por você. São os seus os que estão em julgamento. Não respondestes a minha pergunta — disse depois de uma pausa.
Arthur amaldiçoou e se afastou da porta uns passos, numa tentativa de perambular que não encontrava espaço suficiente. Quase roçava o teto com a cabeça. Parecia um leão à espreita em uma jaula muito pequena. Estava em um estado de rigidez absoluta, irradiando tensão por cada um de seus poros. Ao final deu a volta e a tomou pelo braço com expressão furiosa.
—Sim, maldita seja. Quero me casar contigo.
A escura nuvem que se pousou sobre ela se dissipou. Não era a declaração de amor mais romântica que tivesse ouvido, mas isso bastava. Seu corpo se encheu de calidez, e sorriu.
—Então o resto não importa — disse aproximando-se mais a ele e procurando instintivamente a conexão entre ambos corpos.
Arthur se estremeceu ao notar o contato, mas nessa ocasião Anna não procurou mais razões. Queria-a. Muito. Apesar de que fizesse quanto podia por resistir a isso. A tensão se desprendia de seu corpo reverberando como a pele de um tambor. Seus olhos se pousavam sobre seus lábios com um olhar obscurecido pelo desejo, mas mesmo assim seguia lutando contra isso.
—O que acontecerá não voltará, Anna? Então o que?
Gelou o sangue. Por isso atuava daquele modo? Tentava prepará-la em caso de que morresse no campo de batalha? Não suportava pensar nisso, mas sabia que existia essa possibilidade. Ele podia morrer. Atraiu-o mais para si, aferrando-se aos fortes músculos de seu braço como se jamais pensasse deixá-lo partir. Deus não podia ser tão cruel para afastá-lo dela. Mas e se o fizesse? , pensou com o coração encolhido.
Ela sabia o que queria. Não estava na sua mão controlar o que aconteceria no futuro, mas sim que podia controlar o presente. Talvez sim o tivesse levado a esse lugar com uma segunda intenção.
Arthur era consciente de que aquilo era má idéia, mas tal e como tinha comprovado mais vezes das que queria recordar, era um perfeito tolo no que se referia a Anna MacDougall. O sangue corria cálido por suas veias e uma pátina de suor se acumulava sobre suas sobrancelhas. O intenso aroma do vinho, o almiscarado cheiro de terra do pequeno aposento e a leve fragrância floral de sua pele o embriagavam de desejo. Estavam muito perto um do outro, e sua necessidade era muito urgente. As imagens do quanto desejava fazer amor com ela davam voltas em sua cabeça deixando-o meio louco. Estavam a sós, maldita seja. Era muito perigoso. Mas se Arthur pensava que a desanimaria lhe falando de um futuro incerto, tinha errado em seus cálculos.
—Não quero pensar na guerra nem no que acontecerá amanhã. Somente quero pensar no presente. Se hoje fosse o último dia que ficássemos juntos, o que é o que queria?
«A você.» Sentiu a pulsação. Queria o que lhe oferecia mais que tudo no mundo.
Eram suas palavras. Sua certeza. O fazia sonhar. Arthur queria acreditar que havia um futuro possível. Queria acreditar, embora fosse por um instante, que Anna podia ser dele. Seu coração bateu como um tambor quando ficou nas pontas dos pés para lhe beijar. Em sua luta por não equilibrar-se sobre ela, Arthur deixou escapar um gemido. Sabia que assim que o fizesse não teria forma de parar. Tinha uma boca cálida e suave, muito doce. Tinha sabor de mel e cheirava como… Deus, cheirava como um jardim recém regado sob o sol estival.
Anna lhe acariciou o queixo com os lábios. Depois, o pescoço. Arthur começou a tremer. Não poderia agüentar aquilo durante muito mais tempo. Via-se incapaz de resistir. Rezava para que a tortura acabasse, mas em vez disso piorou. Anna apertou seus quadris contra ele e se esfregou contra a parte de seu corpo que desejava mais o contato, a parte de seu corpo que estava dura e palpitava, e que era impossível de controlar.
—Aquele dia estivemos tão perto — sussurrou junto ao pescoço de Arthur com um quente fôlego que provocou calafrios em sua pele em chamas— que quero saber como segue. —Uma gota de suor apareceu por sua têmpora. O frio aposento se esquentou em questão de segundos. Anna lhe rodeou o pescoço com seus braços e se grudou a ele. Buscou-o com o olhar — me ensinem Arthur.
Essa petição desavergonhada rompeu o último fio de que pendiam as reservas de Arthur. Soltou um grunhido, empurrou-a contra a porta, prendendo suas mãos por trás da cabeça, e a beijou. Não, devorou-a com seus beijos. Se deu um festim com sua boca fazendo uso dos lábios e a língua, beijando-a como se jamais pudesse saciar-se.
Ela respondeu a seu ardor com mais ardor, engastando sua língua a dele, imitando seus eróticos movimentos. O crepitar na cabeça de Arthur era cada vez mais sonoro. Seu corpo estava cada vez mais tenso. Mas não era suficiente. Tombou-se sobre ela, fez que seus corpos se acoplassem e começou a mover-se, primeiro com delicadeza e depois com mais insistência, à medida que Anna se retorcia e gemia com inocente frustração. Tinha vontade de lhe levantar as saias e afundar-se dentro dela, ver como se desfazia quando ele se aferrava nela mais forte e mais profundo. Uma e outra vez. Reclamando-a para si.
Mas estava tão receptiva, sentia o prazer de uma forma tão pura, que em seu interior cresceu uma onda de ternura que lhe fez afastar-se. Anna ficou piscando com uns olhos incrédulos que nadavam em paixão e a boca meio aberta, com os lábios inchados por seus beijos, mal separados.
—Rogo-lhes isso, não…
—Chist! —disse Arthur sossegando seus protestos com um doce beijo — Não vou parar.
Era muito tarde para isso. Era um homem, não um santo vindo do céu. Tinha muita vontade de possuí-la e ela o tinha levado muito longe. Já teria tempo para as recriminações. Nesse momento, Anna era dele. Mas não a teria contra uma porta como se fosse um animal no cio. Soltou o broche dos Campbell que levava para ajustar a manta e a estendeu sobre o chão de pedra. Depois se sentou sobre ela e lhe estendeu a mão. Anna não duvidou. Aceitou sua mão e permitiu que a recostasse a seu lado com um sorriso que lhe partiu o coração. Havia justo o espaço suficiente para esticar-se entre os tonéis de vinho.
Arthur acariciou seus cabelos e a atraiu para si para beijá-la com toda a paixão e a emoção que se concentravam em seu interior. Beijou-a como se fosse tudo para ele, e Anna se deixou levar pela doce posse daquele beijo. Se aninhou a seu lado e se sentiu cálida, amparada e protegida acima de tudo que acontecia fora do círculo mágico de seu abraço. Sentia… «Paz.» Em seus braços sentia essa paz e alegria que sempre lhe eram esquivas.
Voltou a passar os dedos entre seus cabelos e lhe sustentou o pescoço com sua grande e calosa mão, descrevendo suaves círculos em sua nuca com o polegar.
Poderia passar a vida beijando-o, estendida junto a ele, amoldando-se a seu corpo, sentindo a rígida força de seus músculos contra ela. Seu calor era como uma vagem protetora que os rodeava. As longas e pausadas carícias de sua língua faziam que se derretesse de paixão. Era perfeito. Mas quando essas longas e pausadas carícias pediram mais, quando seus beijos se fizeram mais intensos e profundos, quando começou a apertá-la com mais força e Anna percebeu a dura coluna de aço que pressionava seu ventre, se deu conta de que aqueles beijos não eram suficiente. Sentiu essa estranha sensação formando-se de novo em seu interior. O despertar. Os indícios. A energia incansável que pulsava entre suas pernas e fazia que ansiasse esse contato até o desespero. Mas nessa ocasião estava a par do que aconteceria depois. Recordava a mão de Arthur entre suas pernas, seus dedos dentro dela, os agudos espasmos do momento de liberação.
Recordava perfeitamente a avultada cabeça redonda de sua virilidade golpeando em seu interior de maneira íntima.
Gemeu e moveu os quadris em círculo contra ele, ansiando o alívio que somente a fricção podia lhe oferecer. Tinha o corpo em chamas, e os mamilos cada vez mais eretos e sensíveis à medida que se roçavam contra seu peito. Tentou atraí-lo mais para si, passando as mãos pela larga envergadura de seus ombros, pelos duros músculos de seus braços e suas costas. Apesar de que sob o tecido escocês Arthur só levasse a regata, as meias e os braies, aquelas finas capas de tecido se converteram em uma barreira incômoda. Anna queria tocá-lo. Queria sentir o calor de sua pele vibrando sob a pressão de seus dedos.
Certamente ele se deu conta de sua frustração. Afastou sua boca da dela, tirou o cinturão e passou a regata por cima da cabeça, jogando-a ao chão. Seu torso era tão impressionante como recordava. Ombros largos, braços musculosos e um ventre plano sulcado por linhas rígidas de puro metal cobertos por uma pele ligeiramente bronzeada sublinhada por cicatrizes de diferentes tamanhos. A pior delas era uma em forma de estrela que luzia junto a seu ombro, o tipo de marca que deixa uma flecha ao cravar-se. E agora via com claridade a marca do braço: o leão rampante, símbolo do reino da Escócia. Não podia afastar o olhar dele. Por Deus bendito que era um homem formoso.
—Moça, se segue me olhando deste modo, isto se acabará em um abrir e fechar de olhos.
A rouquidão de sua voz fez que Anna se estremecesse de desejo da cabeça aos pés. Ruborizou-se.
—Eu gosto de te contemplar. —O olhar de Arthur se obscureceu — É magnífico.
Anna, incapaz de esperar um segundo somente mais, acariciou seu seio com as palmas das mãos e essa sensação faiscante a fez gemer. Arthur, por sua parte, proferiu um profundo som gutural e a voltou a tomar em braços. Nessa ocasião não havia volta atrás. Anna cheirava seu desejo e sentia a necessidade que se desprendia dos eróticos arremessos de sua língua. Tudo ocorria muito depressa, mas cada momento se gravava a fogo em sua memória. Queria recordar tudo. O modo em que a saboreava. A maneira em que sua boca descansava sobre a sua. O áspero roçar de seu queixo sobre sua pele. O calor que desprendia seu corpo. O poder daqueles músculos que se esticavam sob suas mãos. O feroz rugir dos batimentos do coração contra seu coração. Queria recordar todas as sensações. Cada um dos aromas. Cada roce.
Estava tão excitada e sensível que sentia a pele quente e avermelhada. Apenas se deu conta de como suas mãos desatavam os nós de sua sobreveste sem mangas e a tiravam pelos ombros. Então se encontrou com que cobria seio e o massageava através do fino tecido de linho de sua regata, ao mesmo tempo em que levava a língua até seu pescoço. Arthur roçou a tensa protuberância de seu mamilo com o polegar, descrevendo círculos, acariciando-o, beliscando-o brandamente entre os dedos.
As mãos de Anna percorriam avidamente suas costas, aferravam-se a seus ombros e lhe arranhavam a pele a cada uma de suas provocadoras carícias. Gemeu da vontade que tinha de romper o tecido e notar o contato direto de seus dedos, sua boca. E seus desejos se fizeram realidade. Primeiro o vestido e depois a regata passaram sobre suas pernas até chegar à cintura e logo por cima da cabeça.
Se não fosse pela forma com que ele a olhava pode ser que nem sequer percebesse. Arthur ergueu a cabeça e passeou o olhar por sua nudez, o que fez que ela se ruborizasse e procurasse cobrir-se, mas ele não pensava permitir-lhe Agarrou-a pelos pulsos e negou com a cabeça.
—Não —disse de maneira brusca com uma voz rouca que destilava violência —É preciosa. —exclamou Arthur, ficando do meio lado e acariciando seu braço como se fosse tão delicada que pudesse rompê-la com somente tocá-la. Acariciou seus seios com o olhar, fazendo que ficassem mais arrepiados ainda. Passou um dedo pela ponta e depois por sua abrupta curva — Jesus! —disse com a respiração entrecortada — Seus seios são de outro mundo.
Arthur soltou um gemido e se inclinou para agarrá-los e levar-lhe à boca. Beijou primeiro um de seus espectadores ápices e logo o outro, deixando-a tremendo de vontade. Quando ao fim a capturou com seus lábios e mergulhou um mamilo em sua boca, Anna gemeu de prazer. Arthur jamais tinha visto nada tão formoso. Era consciente de que deveria conter-se para saborear sua suave pele de pêssego em toda sua imensidão, mas com somente vê-la estivera a ponto de chegar ao limite. Parecia um anjo, esbelta e delicada do mais alto de sua cabeça até as diminutas impigens de seus pés. Se não fosse por esses seios, teria pensado que estava morto e tinha chegado ao céu. Porque seus seios eram puro pecado. Uma fantasia masculina feita realidade. Grandes, mas não em demasia, redondos e erguidos, com a rigidez da juventude; sua suave e cremosa carne estava coroada por mamilos de cor framboesa que faziam a boca água. E tinha gosto disso…
Gemeu de prazer e voltou saborear, rodeando sua cálida e ereta ponta com a língua. Sabor de doces desejos carnais e escuros prazeres melosos.
Queria ir devagar, prolongar cada momento de prazer, mas sua necessidade era muito ardente, muito desesperada, e fora evitada durante muito tempo. Pôs a mão entre as pernas e a explorou com os dedos. Tinha uma ereção de cavalo, mas notar quão molhada estava, saber que estava úmida para ele, fez que lhe pusesse mais duro ainda. Lambeu seus seios e a acariciou com os dedos até que seus quadris começaram a ir contra sua mão e sua respiração entrecortada se voltou irregular. Quando soube que Anna estava a ponto de gozar, liberou-se dos braies e as meias com rapidez e se colocou entre suas pernas.
Seus olhares se encontraram.
Gostaria de dizer que pensou duas vezes, mas não era certo. Tudo que podia pensar era na necessidade de fazê-la sua, que não podia deixá-la escapar. Em que em seus olhos via a aceitação e o amor que jamais pensou que seriam para ele. Um amor que Deus sabia que ele não merecia, mas que desejava mais que nenhuma outra coisa no mundo.
—Por favor — soluçou Anna.
Esse era o convite que Arthur necessitava. Levantou-lhe uma de suas pernas para colocá-la em cima de seu próprio quadril, ao mesmo tempo em que apertava os dentes para reprimir a vontade que tinha de investir com todas suas forças e se dispunha a facilitar entrada. Embora talvez a palavra «facilitar» não fosse a adequada. Ela era estreita e ele era grande. Enorme.
O suor se acumulou sobre suas sobrancelhas.
Apertada. Deus, estava tão incrivelmente apertada… Apertou todos os músculos diante da insistência que crescia em sua virilha. Seus testículos se esticavam ao mesmo tempo em que a pressão subia pela base de sua coluna. O corpo de Anna lutava contra aquela invasão, mas ele não pensava permitir uma negativa. Empurrou um pouquinho mais, fazendo que ela se estremecesse e emitisse um gemido de angústia.
O sangue bulia por suas veias. Parecia estar a ponto de explodir, mas se conteve para dar-lhe tempo a preparar-se antes de enterrar-se completamente entre suas pernas.
«Jesus. Que não empurre mais.»
—Não… não estou segura de que isto vá funcionar —disse Anna com inquietação — E se… e se for pequena demais pra ti?
A risada abriu passo entre o sofrimento através do peito de Arthur. Já explicaria os pormenores do assunto mais tarde.
—Confie em mim, amor. Acoplaremo-nos um ao outro perfeitamente. —Mas o certo é que era a primeira vez que estava com uma virgem — Pode ser que doa e seja incômodo a princípio — disse olhando-a nos olhos — De acordo?
Anna assentiu, mas a viu um pouco menos segura que antes. Não deixou de olhá-la nos olhos um só momento, oferecendo seu apoio tácito à medida que se afundava mais e mais nela, com cada um de seus dolorosos centímetros, um após o outro.
A sensação de ter seu corpo rodeando seu pau e apertando-lhe tanto era quase mais do que podia agüentar. Sabia do muito que gostaria, fazia desonestos esforços para lutar contra a urgência de investir. Esse calor estreito, aveludado e úmido envolvendo-o, espremendo-o. Todos os músculos de seu corpo ficavam rígidos de tensão no tanto que tentava conter-se e fazer as coisas com calma. Sentia-se maravilhado. Mas tinha que fazer que fosse perfeito para ela, paciência era a palavra chave.
«Já falta pouco…»
«Agora.»
O ponto de não retorno. Olhou-a nos olhos, sentiu como seu peito se contraía e deu o empurrão final. Anna gemeu e os olhos se puseram enormes como pratos da dor, mas não gritou. Ao ver o aspecto estóico de seu rosto teve vontade de rir.
—Já verás como depois é melhor, amor, prometo-lhe isso. Tentem só relaxar.
Ela o olhou como se fosse louco.
—Não acredito que isso seja possível.
Mas então Arthur a beijou e Anna comprovou quão errada estava…
Quando a penetrou, Anna sentiu uma pontada de dor e lhe deu vontade de gritar com todas suas forças. Mas se dava conta do que ele sofria, de modo que se reprimiu, consciente de quanto se esforçava por não a machucar. Não era culpa dela que a providência o provesse com um pouco tão… descomunal. Aquilo devia fazer que tudo fosse bastante incômodo…
«Um momento.» Estava-a distraindo com seus beijos, mas por um instante teria jurado que acabava de sentir um… Aí o tinha de novo. Uma espetada. Uma espetada prazenteira. Muito prazenteira. Uma espetada que, de fato, parecia incrivelmente agradável. Seu corpo havia se amoldado a ele e a dor desaparecia. Agora sim a notava, quente e dura, enchendo-a de uma forma que jamais teria imaginado. E então Arthur começou a mover-se. A princípio devagar, inundando-se nela e saindo com investidas pausadas e delicadas. Anna gemia ao notar a maneira em que seus arremessos reverberavam por todo seu corpo. Sentia-se como se Arthur a reclamasse para si, como se a possuísse na mais primitiva das formas. Era uma sensação incrível. Tinha que mover-se com ele, erguer os quadris para coordenar-se com suas investidas e que a enchesse até o mais profundo. Com mais força. E depois mais rápido. Agarrou-se a seus ombros e o atraiu mais para si, desejando sentir todo seu peso sobre ela. Seus corpos pareciam estar fundidos um no outro. Pele contra pele. Tremendamente sensual. Um peso dilacerador. A paixão a capturava com seu trêmulo abraço. As sensações ardiam em seu interior. Tomavam forma. Esperavam o momento. Concentravam-se na mais feminina de suas partes. E também ele o sentia. Era como aço sob seus dedos, músculos tensos e acesos, preparados para explodir.
Mas o que mais a excitava era a expressão de seus olhos. Intensa. Penetrante. Obscurecida não só pelo desejo mas também pela emoção. Nessas profundidades de âmbar dourado via refletido o amor que consumia seu próprio coração. Amava-a. Pode ser que ele não percebera ainda, mas ela sim o fazia.
Mantinha-a pega a si, sem deixá-la ir, enquanto se afundava nela uma vez mais, inundando-se tanto como era possível, e ficava aí. Algo poderoso e mágico passou entre eles. Uma conexão como jamais antes tinha imaginado. À medida que a sensação se formava, a respiração de Anna ficou apanhada no mais alto de seu peito. Por um instante todo pareceu deter-se. Seu corpo se mantinha ao bordo do êxtase, fazendo equilíbrio no precipício celestial. Deixou escapar um guincho quando o primeiro dos espasmos de liberação fez que perdesse o controle e ficasse fosse de si, tremendo de prazer.
—Isso, amor. Venha para mim. —Arthur começou a mover-se de novo, atravessando-a com uma despreocupação selvagem — Oh, Deus. Eu gosto muito. Não posso…
Penetrou-a uma última vez com um profundo gemido de satisfação que parecia rasgar-se de sua própria alma. Seu corpo ficou rígido e logo se estremeceu ao notar que seu desafogo coincidia com a maré ascendente dela. Arthur tinha uma expressão fera e formosa, de uma paixão primitiva. Deixou-se cair sobre a Anna com os ecos da última sensação, ainda com seus corpos unidos. Tudo que ela ouvia era o som de suas respirações pesadas e o violento pulsar de seus corações. Desejava ficar assim para sempre, mas Arthur em seguida se afastou e rompeu a conexão.
O ar frio passou sobre seu úmido e ruborizado corpo, lhe deixando a pele arrepiada. Anna era consciente de sua nudez, mas estava muito exausta para mover-se. Suas pernas pareciam de gelatina. Mas tampouco havia razão para envergonhar-se. Arthur não lhe emprestava atenção. Ficou olhando ao teto, ainda com a respiração entrecortada, mas em um silêncio que não pressagiava nada bom. Não lhe tocava dizer algo? Mordeu o lábio, perguntando-se que seria o que pensava. Tinha parecido maravilhoso… «Mas o que acontecerá se o decepcionei?», pensou sentindo uma pontada de dor.
Ao fim Arthur voltou a cabeça para olhá-la e aproximou sua mão para lhe afastar os cabelos do rosto com delicadeza. Ao ver seu estado de incerteza lhe dirigiu um sorriso de menino que se instalou em seu coração para não partir jamais. Anna sabia que nunca poderia esquecer a expressão de seu rosto nesse momento.
—Sinto muito. Não sei o que dizer. Nunca antes… nunca antes havia sentido algo como isto.
Ela esboçou um amplo sorriso como resposta, incapaz de ocultar sua alegria.
—Sério? Não tenho nada com que comparar, mas me pareceu algo maravilhoso.
—Sim, foi maravilhoso. —Arthur se inclinou sobre ela e a beijou com ternura. Mas quando ela ergueu o olhar para olhá-lo de novo seu olhar se turvou — Jamais me arrependerei do que acaba de ocorrer, Anna. Mas por seu próprio bem eu gostaria que não tivesse acontecido.
Anna sentiu o inconfundível tom de advertência e pareceu que lhe cravava um espinho no coração, mas o evitou. Não queria que nada escurecesse esse momento. Se aninhou sob seu braço e apoiou a cabeça sobre seu ombro, abrigando-se com seu corpo de maneira instintiva.
—Eu me alegro de que tenha acontecido — disse ela.
Agora estavam unidos no mais profundo e nada poderia separá-los.
Arthur baixou o olhar para aquela delicada mulher nua que se aninhava em seus braços e lhe parou o coração. O que acabavam de compartilhar não tinha comparação com nada que tivesse experimentado antes. Tinha compartilhado cama com um número de mulheres mais que razoável, mas para ele fornicar sempre tinha consistido em saciar sua luxúria. Encarregava-se do prazer da mulher e do seu com um só objetivo na cabeça: desafogar. Uma vez que estava completo, não havia mais que fazer. Não se atrasava. E estava claro como a água que tampouco queria rodear a mulher com seus braços e desejar ficar assim para sempre. Comparado com o que tinha acontecido com a Anna, o resto parecia quase mecânico, como se tivesse passado por todos os movimentos simplesmente para conseguir o prêmio. Mas com ela o prêmio era a experiência em si mesmo. O prazer estava na exploração, no descobrimento e nos detalhes. Estava no modo em que ela reagia a suas carícias, a maneira em que arqueava suas costas, a pressão que exerciam seus quadris e os pequenos gemidos que saíam de seus lábios. Estava na expressão de seus olhos quando a penetrava, o rubor que lhe tingia suas bochechas quando se aproximava do orgasmo e o modo em que sua cabeça se inclinava para trás e sua boca se abria quando finalmente chegava.
Não fora capaz de afastar o olhar. Normalmente evitava o contato visual, mas com a Anna procurava essa conexão. Queria desfrutar dessa cercania.
Descansou o queixo sobre seu cocuruto, saboreando a sedosa suavidade de seus cabelos. Era tão doce e formosa… além de endiabradamente confiada. Isso fazia que despertasse todo seu instinto de amparo. E algo mais. Algo quente, terno e poderoso. Algo que jamais pensou que pudesse ser para ele. Acreditava ser diferente. Pensava que não necessitava a ninguém, que estava bem sozinho. Mas se enganava. Não era absolutamente diferente. Necessitava-a. Queria-a. Amava-a com um ardor que lhe parecia surpreendente. Talvez pudesse encontrar alguma forma de explicar-se. De implorar seu perdão. Talvez houvesse esperança…
«Ah, que diabos!» Um nó lhe contraiu as vísceras à medida que voltava para a realidade. A quem pretendia enganar? Anna jamais o perdoaria. Como poderia fazer, quando ele tinha a missão de destruir tudo aquilo que ela amava?
Amava-a, mas isso não mudava nada absolutamente. Somente serviria para que o que estava por chegar fosse mais doloroso. Quando acabasse de cumprir seu encargo, não teriam nada que fazer o um com o outro. Amava-a, mas sua lealdade estava com Bruce. Tinha uma missão que cumprir, não só pelo rei, mas também por seu pai. Em um tempo diferente, em um mundo no que não houvesse guerra nem velhas rixas poderiam ter tido uma oportunidade. Mas não nesse mundo. Não nesse tempo.
E mesmo assim gostaria de… Deus, quanto gostaria que tudo fosse diferente.
Anna ergueu o olhar e o olhou sob suas longas pestanas.
—Estou segura de que não somos o primeiro casal comprometido que antecipa sua noite de bodas.
O sentimento de culpa se fez mais profundo. Esse era o problema: não teria noite de bodas. Não a teria quando ela descobrisse a verdade. Era um bastardo. Um bastardo infame. No que estava pensando? Em realidade, sabia perfeitamente. Pensava que a queria mais que a tudo no mundo e que tinha que fazer o que fosse por conservá-la. Consciente ou inconscientemente, queria unir-se a ela de uma forma que não pudesse ser desfeita. Nem sequer pelo engano ou a traição.
Uma aposta desesperada. Egoísta. Perversa. Somente serviria para que Anna tivesse mais razão para odiá-lo. Mas já fora e não poderia trocá-lo por mais que quisesse.
—Não —disse Arthur — Não somos os primeiros, mas dadas as circunstâncias teríamos que ter esperado. —Atraiu-a fazia sim com uma voz tão feroz como seu abraço. Era um filho de cadela egoísta, mas jurou que quando aquela maldita guerra acabasse se daria uma oportunidade. Lutaria por ela, por eles, se o permitisse — Voltarei para ti, Anna. Voltarei se é que me segue querendo.
Ela o olhou com um sorriso nos lábios, cândida e inocente. Muito confiada.
—Pois claro que seguirei te querendo. Nada poderá mudar isso.
Queria acreditar no que dizia. Queria acreditar mais que tudo no mundo. Mas logo suas palavras seriam postas a prova.
Capítulo 21
—O que se passa, Anna? Está muito calada esta manhã. É que não dormiste bem?
Anna olhou a sua irmã com receio, perguntando-se se suspeitaria algo. Era difícil falar. Luzia uma expressão serena no rosto, uma expressão que se adequava ao sermão matinal ao que acabavam de atender. Anna não tinha nem a menor ideia a respeito do que conversava. Estava muito ocupada em rememorar cada um dos segundos da cena que tinha tido lugar a noite anterior. Não cabia dúvida de que pensar tais coisas em uma capela tinha que ser terrivelmente pecaminoso, mas já tinha suficiente pelo que fazer penitência, de modo que se figurou que o dano acrescentado a sua alma não pioraria a situação.
A recuperação dessas lembranças a fez sorrir. Estava claro que regozijar-se no pecado era inclusive mais pecaminoso ainda, mas o certo é que era feliz. Amava Arthur e ele a amava. Na noite passada o demonstrara. Não retornou à câmara que compartilhava junto a suas irmãs até que já era bastante tarde. Ou cedo. Depende de como se olhasse. Ficou aninhada entre seus braços tanto quanto se atreveu a fazer, mas ao final esteve obrigada a retornar a seu aposento. Essas horas passadas entre os braços de Arthur significavam um dos momentos mais contentes de sua vida.
Sob o protetor arco de seu abraço a guerra, o caos e a incerteza do mundo atual não existiam. À fria luz do dia, entretanto, tudo voltava a ser de outro modo. Cumpria-se o décimo segundo dia de agosto. Faltavam três para que expirasse a trégua. Dizia a si mesma que era a guerra o que a inquietava. Dizia a si mesma que a razão de que Arthur se mostrasse tão taciturno ou de que suas palavras adquirissem o matiz da advertência era a própria guerra. Pensando em tudo o que estava por chegar durante nos próximos dias, a perda de sua virgindade antes das bodas deveria ser o que menos lhe preocupasse. Mas por que lhe tinha falado da possibilidade de não retornar? Teria que pôr fim a aquilo.
—Não me passa nada —disse Anna com firmeza — dormi bem.
Na realidade, as quatro ou cinco horas de sonho de que dispôs dormiu placidamente.
—Pois deve ser um livro magnífico.
Nessa ocasião o tom de voz seco de sua irmã não deixava lugar a dúvidas.
—Pois sim — respondeu Anna sem poder evitar ruborizar-se.
Embora freqüentemente lia até entrada a madrugada em alguma das câmaras entre muros do castelo para evitar incomodar a suas irmãs, era óbvio que Mary tinha adivinhado a verdade.
Seguiam de perto ao resto da família, que atravessava o pátio da capela em direção ao grande salão para romper o jejum. Não obstante, a maioria dos homens já estava no pátio de armas praticando. O ruído metálico das espadas, e a cacofonia das vozes ficava maior à medida que se aproximavam. Anna examinou instintivamente as figuras sob as armaduras em busca dele.» O coração lhe deu um tombo só de vê-lo. Arthur estava do outro lado dos estábulos, de costas a Anna. Ali era onde preparavam as balas de palha, assim que se figurou que estaria praticando com a lança. Perto dele estava seu irmão Dugald, mas ao contrário deste, ele sim estava acompanhado. Impulsionava um dado pra frente e para trás e dava voltas no ar sob o atento olhar de três jovens e de bonitas criadas que lhe observavam como se fosse um mago, assentindo a tudo o que lhes dizia. Tentava ensinar a agarrar a lança uma jovem que tinha de frente a si, mas seus enormes seios se interpunham entre seus braços.
Aqueles dois irmãos não podiam ser mais diferentes. Dugald era um fanfarrão ruidoso, o tipo de homem que somente estava contente quando era o centro da reunião e tinha ao redor o máximo de mulheres possíveis. Arthur era mais tranqüilo. Mais reto. Um homem que se contentava estando em segundo plano.
Mary ergueu o olhar ao céu ao contemplar seu exibicionismo e se afastou dali subindo a escada em direção ao grande salão. Anna se apressou a seguir seus passos sem poder evitar olhar atrás uma vez mais. Sir Dugald ria por algo que havia dito uma das garotas. Anna não ouviu o que lhe respondeu, mas teria jurado que era algo do tipo: «Olhe isto».
Ergueu a lança sobre sua cabeça como se fosse jogá-la ao mesmo tempo que gritava a Arthur:
—Arthur, agarra-a!
Antes que Anna se inteirasse do que estava a ponto de fazer, antes inclusive de que o grito pudesse tomar forma em sua garganta, a lança já estava no ar, projetada em direção a Arthur. Estavam tão perto um do outro que quase não teve tempo de olhar em resposta às palavras do Dugald quando já tinha o dardo sobre ele. Apanhou-o no ar no último instante, com uma só mão. O levou ao joelho com um rápido movimento, rompeu-o em pedaços e devolveu as lascas a seu irmão com o rosto escurecido pela cólera.
Isso recordava algo a Anna.
Uma brisa gelada banhou sua pele. Não tinha visto nada igual mais que uma vez em sua vida. Seu rosto empalideceu no momento. Sossegou com uma mão a exclamação de surpresa e ficou petrificada contra o muro da entrada com o coração em um punho. Tinha acontecido exatamente quão mesmo a noite da floresta do Ayr. Essa noite em que a mandaram a recolher a prata para seu pai e se encontrou com uma emboscada. O cavalheiro que a resgatou tinha feito exatamente o mesmo. «O espião.»
«Não, não pode ser», disse-se Anna, invadida por um ataque de terror que lhe percorria as costas. Tinha que ser uma coincidência. Mas as lembranças se retorciam em sua cabeça e a confundiam. Estava escuro. Não pôde ver seu rosto. Ele falava em voz baixa para mascarar sua voz. Mas o tamanho, a altura e a compleição encaixavam perfeitamente.
Não, não, aquilo não podia ser. Anna se tampou as orelhas e fechou os olhos. Não desejava vê-lo. Não queria pensar em todas as razões que davam pé a essa possibilidade. Em suas ocultas advertências. A sensação de que ocultava algo. Suas tentativas iniciais de evitá-la. O olhar de reconhecimento em seu tio Lachlan MacRuairi. Lhe contraiu o estômago. A cicatriz. Deus, a cicatriz não. Mas a marca de flecha em forma de estrela de seu braço se ajustava à ferida do cavalheiro que a tinha resgatado. A bílis subiu até sua garganta.
Mary se conscientizou de que Anna não ia atrás dela e baixou a escada correndo até a entrada em que sua irmã permanecia como uma estátua pega ao muro.
—O que te passa, Annie? Parece que viu um fantasma.
Assim era. Deus santo, assim era. Anna moveu a cabeça, negando-se a aceitá-lo. Tudo a seu redor começou a dar voltas.
—Não… não me encontro muito bem.
Subiu a escada para sua câmara sem mediar mais palavras e quase não teve tempo de tirar o urinol de debaixo da cama quando já estava esvaziando os magros conteúdos de seu estômago e purgando de passagem seu coração nele.
Arthur olhou em redor do grande salão caminho da câmara de Lorn para o conselho de guerra da noite. Ficou circunspeto ao conscientizar-se de sua ausência. Onde diabos teria se metido? A leve sensação de preocupação que lhe assaltou essa manhã ao não ver Anna tinha piorado com o desenvolvimento da jornada. Alan lhe disse que Anna não se encontrava bem. Uma dor de estômago, mas dado o ocorrido a noite anterior, Arthur não acreditava. Estaria zangada? Arrependia-se do que tinha passado entre eles? A culpa o remoia por dentro. O que teria feito?
Obrigou-se a afastar Anna de seus pensamentos e a concentrar-se na tarefa que tinha ante si. Não sobrava muito tempo. O rei Robert atacaria em quatro dias, e Arthur ainda não tinha conseguido nenhuma informação de utilidade.
Entrou no aposento seguindo ao Dugald, que estava de um humor de cão como jamais antes tinha visto, e se sentou à mesa com o resto dos cavalheiros de alta fila e os membros da meinie de Lorn. Minutos depois de que se congregassem os homens, fez sua entrada Lorn. Mas nessa ocasião não chegava sozinho. Seu pai, o convalescente Alexander MacDougall, ia com ele. O pulso de Arthur se acelerou. Se MacDougall estava ali, provavelmente se trataria de algo importante.
O lorde de Argyll tomou assento na poltrona trono que normalmente ocupava seu filho e deixou ao Lorn uma poltrona menor junto a seu posto. Uma vez que se fez silêncio na sala, Lorn tirou um pergaminho dobrado de sua bolsa e o pôs sobre a mesa. Arthur ficou petrificado ao reconhecê-lo imediatamente. Reprimiu uma maldição obscena. «O mapa.» Ou para ser mais exato, seu mapa. O mapa que tinha desenhado para o rei, que tinha entregue ao mensageiro. Devem ter interceptado antes que chegasse ao Bruce. «Maldição.» Desejou ter-se lembrado de mencioná-lo na última vez que se reuniu com eles.
Os homens se aproximaram para ver o de perto.
—O que é? —perguntou um deles.
Lorn adotou uma expressão severa.
—Um mapa dos arredores de Dunstaffnage — disse, fazendo-o passar — E o número de homens e os fornecimentos a nossa disposição.
Houve várias falações de irritação quando alguns dos homens notaram o que significava. Dugald se aproximou mais e examinou o mapa com tal intensidade que a Arthur lhe arrepiaram os cabelos da nuca. Não havia nada delator no documento. A escritura era minúscula e quanto aos desenhos… Dugald nunca tinha emprestado muita atenção aos «ganchos de ferro» de Arthur mais que para rir deles. Não tinha nada que temer. Mas mesmo assim, o interesse que tomava seu irmão parecia inquietante.
—De onde saiu? —perguntou Dugald.
—O tiraram de um mensageiro do inimigo que meus homens interceptaram faz várias semanas —respondeu Lorn — Mas pela exatidão dos números, suspeito que há um traidor entre nós. —Os murmúrios de indignação e raiva zumbiram por toda a sala e Arthur se uniu a eles — Infelizmente o mensageiro não foi capaz de identificá-lo.
—Como pode estar seguro, milorde? —perguntou Arthur.
Um sorriso de cumplicidade curvou a boca de Lorn.
—Estou.
O qual queria dizer que tinham torturado ao mensageiro.
Lorn examinou os rostos dos homens que lhe rodeavam, o círculo interno de seu mando.
—Mantenham os olhos abertos em busca de algo que se saia da normalidade. Quero encontrar a esse homem — disse esmagando o mapa com a palma da mão — Mas este mapa demonstrou sua utilidade. Tenho um plano para ganhar a partida do usurpador em seu próprio jogo.
Arthur ficou quieto, tentando conter a emoção. Talvez ao final pudesse conseguir um pouco de informação para o rei.
—A que te refere? —perguntou Alan.
—Refiro-me a que faremos que suas próprias táticas se voltem em contrário. Bruce conseguiu vitórias frente a força muito mais poderosos lutando segundo seus próprios meios: escolhendo o lugar e o terreno adequados para o ataque, atirando golpes duros e rápidos desde seus esconderijos, usando o mesmo tipo de estratégias que usaram nossos ancestrais durante séculos, táticas de guerra highlander. E que me crucifiquem se permitir que alguém das Terras Baixas ganhe em meu próprio terreno — disse, fazendo ato seguido uma pausa para que o resto fizesse coro sua aprovação — Não ficaremos aqui esperando ao assédio do castelo como ele acredita. Atacaremos nós primeiro.
Todos começaram a falar ao mesmo tempo. Arthur se obrigou a não unir-se à refrega porque queria ouvir o resto. Mas sabia que aquilo era algo grande, monumental de fato. Lorn tinha razão: o rei não esperaria que os atacassem. Não quando tinham uma fortaleza como Dunstaffnage para cobrir-se. Lorn impôs silêncio na sala com um movimento da mão.
—Esperem que conte o resto para fazer perguntas. —Colocou o mapa mais adiante para que os homens que tinha frente a ele pudessem vê-lo — Bruce e seus homens vêm do este pela estrada do Tyndrum. —Apontou a um canto do mapa, fazendo que a pele de Arthur se arrepiasse ao pressentir algo importante. Lorn moveu o dedo seguindo o caminho e se deteve no caminho de Brander. Arthur sentiu o estômago apertar — Para chegar até Dunstaffnage terão que cruzar estas montanhas. No estreito e longo caminho de Brander, ali será onde ataquemos. Poremos a nossos homens aqui, aqui e aqui — disse assinalando três cúpulas por cima das quais não se via nada, devido aos meandros do caminho.
Arthur reprimiu uma imprecação ao mesmo tempo em que o resto da sala prorrompia em uma onda de excitação. Era o lugar perfeito ao que levar a cabo um ataque surpresa. Os MacDougall surpreenderiam ao Bruce de acima, descendo sobre o exército em marcha em uma abertura estreita de onde o rei não poderia tirar vantagem de sua superioridade numérica.
—Quando? —perguntou Dugald erguendo a voz.
—Nossos informe assinalam que Bruce chegará ao Brander na madrugada do dia quatorze.
«Filho de cadela traiçoeiro.»
A sala ficou em silêncio.
—Mas a trégua não expira até o dia quinze — disse Alan com cautela.
Lorn entreabriu os olhos.
—É o usurpador quem escolheu ignorar o código da batalha, não eu. Bruce parte sobre nossas terras. É ele quem rompe a trégua. —Um raciocínio à própria conveniência como jamais se viu antes. Mas ninguém na sala se atreveu a discutir — Alan —continuou Lorn—, partirá com o grosso das forças amanhã e estarão na posição ao cair a noite, somente para nos assegurar.
A Arthur não surpreendeu saber que Alan estaria ao mando. Essas abruptas ravinas e o irregular terreno seriam difíceis de sulcar inclusive para os guerreiros mais jovens.
—Defenderão vocês o castelo, milorde? —perguntou.
Lorn o fulminou com o olhar.
—Meu pai guardará o castelo —corrigiu — Eu farei cargo de uma frota de galeões e comandarei o ataque daqui — disse assinalando o lugar no que o rio Awe entrava no lago do mesmo nome — Assim, quando o tivermos surpreendido de cima, seguiremos atacando do fronte.
Golpeando ao Bruce de duas direções. Era um plano excelente. Não só se tratava de uma localização perfeita para lançar o ataque, mas sim ao atacar primeiro, e antes que a trégua expirasse, teriam o fator surpresa a seu favor.
Essa intervenção provocou uma inundação de perguntas, mas Arthur já estava concentrado na tarefa que tinha. Tinha que advertir ao rei o antes possível sem que Lorn se inteirasse de que seu plano corria perigo. Teria que arriscar-se a enviar a mensagem nessa mesma noite. Depois, na excitação e o caos que precederiam ao ataque, teria a possibilidade de escapulir-se.
«para sempre.»
Encolheu-lhe o estômago. Tinha ante si o momento que tanto tinha temido e sabia que era inevitável. O momento de dizer adeus. O momento em que se supunha que devia voltar para as sombras e desaparecer sem dizer uma palavra. Isso era o que ele fazia. O que sempre soube que teria que fazer. Simplesmente não esperava que fosse tão tremendamente duro. Parecia covarde partir sem uma explicação. Deixar que Anna descobrisse a verdade por si mesma. Gostaria de prepará-la, lhe dizer que a amava e que nunca quis a machucar. De dizer o que sentia, que seguiria sendo dela sempre que ela quisesse.
Mas não podia. Partiria para dia seguinte sendo um homem e quando retornasse o faria sendo outro. Anna o odiaria por isso. Embora duvidava muito de que coubesse uma mínima possibilidade de que estivessem juntos, Arthur jurou que quando terminasse todo a buscaria para tentar explicar-lhe Sempre que ela quisesse escutá-lo.
«Não pode ser certo. Não é possível.» Anna se negava a acreditar. Mas tampouco podia afastar de si a dúvida que se instalou como um parasita em suas vísceras e não queria partir. A desculpa de sua enfermidade não era falsa. As dúvidas se retorciam e remoíam seu interior, debilitando-a. Passava o dia inteiro no refúgio de seus aposentos tentando convencer-se de que aquilo não era possível, de que ele não a enganaria de tal modo. Mas ficavam muitas perguntas no ar. Umas perguntas que não podiam esperar até o dia seguinte. Para então poderia ser muito tarde. Mary e Juliana acabavam de retornar à câmara fazia pouco para lhe informar de que os homens já dispunham os preparativos prévios à guerra. «Guerra.» O medo acendeu seu peito, e a necessidade de encontrá-lo se tornou desesperada.
Tinha o vestido enrugado e cheio de pelos de Escudeiro depois de ter passado todo o dia tombada na cama, mas não perdeu o tempo em trocar-se. Jogou água no rosto, enxaguou a boca, passou uma escova por seu emaranhado cabelo e se encaminhou às dependências de seu pai para pedir a suas irmãs que desse uma olhada no cachorrinho. Defraudou encontrar a porta aberta, já que esperava que os homens continuassem no conselho de guerra. Não obstante entrou, atraída pelas vozes que procediam do interior.
Seu pai, que estava de pé junto a Alan, observando um pergaminho estendido sobre a mesa, ergueu o olhar ao vê-la entrar na sala.
—Ah, Anna. Encontra-te melhor?
—Sim, pai, muito melhor — respondeu ela, tentando não mostrar a decepção que supunha descobrir que se achavam ali somente eles dois. Certamente Arthur já teria se retirado aos barracões para dormir. O que podia fazer ela, então? Que desculpa inventaria para ir em ao seu encontro essas horas?
—Necessita algo? —perguntou Alan, notando a preocupação de seu rosto.
Quando seu irmão baixou o olhar, Anna se deu conta de que estava retorcendo as abas do vestido.
—Parece desgostada por algo
Não podia chegar a fazer uma idéia.
«Oh, Deus. Teria que contar Anna sentiu um vazio no estômago ao conscientizar-se de que deveria compartilhar suas suspeitas com ambos. Mas não podia. Não até que estivesse completamente segura. Seu pai… doía admitir que a ira de seu pai nem sempre era racional. Não podia estar segura do que faria. Mas tinha que contar tudo.
—É pela guerra. Mary me disse que os homens se preparam para partir amanhã.
—Não há razão para preocupar-se, Anna. Sua mãe, suas irmãs e você estarão a salvo aqui.
—Não acredito que seja isso o que lhe preocupa, pai — disse Alan com um sorriso forçado.
Estava certo. Anna empreendeu a retirada, ansiosa por encontrar Arthur.
—Não queria lhes incomodar — disse olhando o pergaminho sobre a mesa — É óbvio que estão ocupados, deixarei-os que… —acrescentou, detendo-se de repente com uma exclamação de surpresa.
Cravou o olhar no pergaminho e caiu na conta de que o reconhecia, apesar de que nesse momento já estava acabado e tinha um aspecto diferente. Já não parecia um rascunho. Parecia um mapa. «Um mapa.» O que significava aquilo? Se Arthur estava fazendo um mapa para seu pai, por que não lhe havia dito nada? «Tentava ocultá-lo.»
Anna deu vários passos à frente presa de um pavor inexplicável. Tentou dissimular o tremor de sua voz:
—Interessante mapa. —Tinha a garganta muito seca, de modo que, mais que falar, pigarreava — De onde o tirastes?
—Nossos homens o interceptaram de um mensageiro inimigo —respondeu Alan, passando os dedos por seus finos traços — A verdade é que é muito bom. Magnificamente detalhado.
Anna não ouviu mais que as palavras «mensageiro inimigo». Empalideceu ao momento; seus piores temores, aparentemente, confirmaram-se.
«É um espião.»
—Sabe algo a respeito, filha?
Anna voltou o olhar para seu pai. Abriu a boca para pronunciar as palavras que condenariam Arthur, mas ficaram congeladas em sua boca. Não podia. Não podia fazer. Não antes de lhe oferecer uma oportunidade para explicar-se.
—Nada — se apressou a dizer baixando os olhos, incapaz de lhe sustentar o olhar.
Alan a observava com expressão de estranheza.
—Está segura de que não te encontra mal, Annie? Não tem bom aspecto.
Não se encontrava muito bem. Tinha enjôos. Como se o aposento girasse a seu redor ou as tábuas do chão se desprendessem a seus pés. Cambaleou e deu um passo para recuperar o equilíbrio.
—Eu… eu acredito que será melhor que volte para meu aposento.
Alan foi para ela com o desassossego marcado no rosto.
—Acompanho-te.
—Não. —Anna negou com a cabeça energicamente, reprimindo umas lágrimas que lhe ardiam nos olhos — Não é necessário. Estou bem. Sigam com o que estão fazendo.
Anna saiu antes que seu irmão pudesse opor-se. Apressou-se a chegar ao barmkin consumida em uma sensação de sufoco. Abriu a porta da torre da comemoração e se sentiu reconfortada pelo golpe de ar frio da noite. Inspirou profundamente, enchendo os pulmões e procurando estabilizar sua acelerada respiração. Aferrou-se ao corrimão de madeira que coroava a escada como se fosse um cabo de salvamento, deixando que o ar fresco e o tranqüilizador dossel da negra e fechada noite acalmasse a precipitação de seu coração, de seu fôlego e, sobretudo, de sua cabeça. Vários dos homens que vigiavam o barmkin ficaram olhando-a, mas Anna estava muito desgostada para preocupar-se com isso. Desgostada? Não, aturdida. Destroçada. Horrorizada. Sua cabeça ainda dava voltas, incapaz de acreditar.
Tentava decidir o que devia fazer, se percorria o pátio, chamava nas portas dos barracões e perguntava por ele, mandando ao diabo toda correção, quando as portas se abriram e saiu um grupo de soldados vestindo armadura completa. O coração lhe deu um tombo ao conscientizar-se de que um deles era Arthur. Dirigiam-se para os estábulos. Estava partindo. «Partindo.»
Agarrou-se ao corrimão com força até que a madeira se estilhaçou em suas mãos. Ficou olhando com o peito ardendo de dor e uma parte de si ainda recusava a acreditar. Arthur pareceu advertir o calor de seu olhar e deixou pela metade o que estava fazendo para erguer os olhos. Seus olhos se encontraram entre a luz mortiça que proviam as tochas. Arthur disse algo a um dos homens, separou-se do grupo e caminhou em sua direção. Anna inspirou profunda e entrecortadamente e se dispôs a baixar a escada para encontrar-se com ele ao final desta. Seu coração se deteve o ver seu rosto. Como podia lhe olhar com tal cara de preocupação e planejar traí-la ao mesmo tempo?
—O que passou? —perguntou — Fiquei preocupado ao não te ver antes.
Ele se aproximou dela, mas Anna se revolveu. Não podia permitir que a tocasse. Somente serviria para confundi-la mais ainda.
—Preciso falar contigo.
A rigidez de sua voz despertou os temores de Arthur. Dirigiu seu olhar para os estábulos, onde os homens tinham desaparecido.
—Não tenho muito tempo. Estão me esperando.
—Parte… sem dizer adeus?
O pequeno tremor que apareceu em seu queixo o delatava. Sinal de que se sentia culpado.
—Não é mais que a ronda noturna. Estarei de volta em umas horas.
—Está seguro? Não me advertiu de que talvez não retornaria?
Arthur examinou com atenção seu rosto e pareceu conscientizar-se de que algo ia realmente mal. Consciente dos homens que patrulhavam a seu redor, a tomou pelo braço e a levou para o jardim que havia na parte posterior à torre, onde ninguém poderia ouvi-los. Agarrou-a pelos ombros para virá-la para si e a olhou com expressão severa.
—A que se deve todo isto, Anna?
Anna ergueu o queixo, odiando que a tratasse como se fosse uma menina pesada.
—Sei.
—O que é o que sabe?
Um soluço apareceu em seu peito, mas conseguiu controlá-lo. As palavras saíram como um torvelinho.
—Sei a verdade. Sei por que está aqui. Sei que me salvou no Ayr. Sei que trabalham para eles — disse Anna, quase cuspindo essa última palavra, incapaz de pronunciá-la.
Ele trabalhava para o inimigo mortal de sua família.
Ficou imóvel, suas feições tinham sido adestradas para a impassibilidade. A Anna caiu a alma aos pés. Essa falta total de reação lhe condenava mais que uma negação.
—Está transtornada —disse Arthur com calma — Não sabe o que está dizendo.
—Como te atreves! —exclamou Anna com voz tremente e uma emoção que ardia em seu peito até converter-se em um acesso de raiva — Não te atreva a mentir! Vi esta manhã agarrar a lança ao vôo e rompê-la com o joelho. Somente vi isso uma vez em minha vida. Não recorda como saíram a me resgatar aquela noite? Um espião dos rebeldes que se fazia passar por cavalheiro? Recebeu uma flechada no ombro por isso. —Tinha vontade de lhe arrancar a armadura e lhe obrigar a que o reconhecesse — Tem uma cicatriz exatamente no mesmo lugar. —Fez uma pausa para que o negasse, quase esperando que lhe desse uma explicação, mas o silêncio enchia o ar estagnado entre ambos — Vi o mapa, Arthur. O mapa que permitiu que eu acreditasse que era um desenho. O tiraram de um mensageiro inimigo — continuou, desafiando-o ainda com o olhar — Talvez devesse chamar a meu pai e que ele seja quem diga.
Arthur franziu os lábios até que embranqueceram. Agarrou-a pelo cotovelo e a aproximou mais a si.
—Baixe a voz —advertiu — Poderiam me matar somente por me acusar disso.
Anna se serenou, aplacando um tanto sua ira, consciente de que o que dizia era certo. Arthur a dirigiu para um banco de pedra e a fez sentar-se.
—Não se mova.
—Aonde vai? —perguntou Anna, irritada por receber ordens dele.
—Dizer-lhes que me atrasarei — respondeu Arthur, olhando-a com expressão severa.
Capítulo 22
«Pense! Maldita seja, pense!»
Arthur levou um tempo para informar aos homens de seu atraso enquanto tentava acalmar a violenta corrente de sangue que afluía por suas veias. Mas todos seus instintos primários de sobrevivência tinham despertado em uníssono em resposta ao perigo. O pior tinha acontecido. Tinham-no descoberto. Anna tinha adivinhado a verdade.
Amaldiçoou ao idiota de seu irmão por lhe jogar aquela lança, que além de que estivera a ponto de lhe atravessar a cabeça, e também a si mesmo por ser tão pouco cuidadoso com o mapa. Sua missão acabava de ir-se ao vinagre, e, a menos que pudesse encontrar uma maneira de justificá-lo, tudo indicava que não viveria para ver o seguinte pôr-do-sol. Não podia pensar no que significaria seu fracasso para Bruce. Se não os avisasse, iriam diretos para a armadilha. Uma vitória dos MacDougall poderia fazer que a guerra mudasse de novo.
Apesar de não advertir nenhum perigo ao sair dos estábulos, Arthur não tirava as mãos de suas armas, quase esperando encontrar-se aos soldados de Lorn aguardando. Mas Anna não tinha avisado a seu pai. Ainda não, ao menos. Esperava-lhe no banco no que ele a tinha deixado. Respirou algo mais tranqüilo em seu caminho de volta ao cruzar o pátio, embora ainda não tinha claro o que lhe diria. Não era só sua integridade e a missão o que estava em jogo. Se ainda ficava a esperança de uma vida em comum para ambos, seria nesse momento quando teria que conseguir que Anna entendesse suas razões.
Ela não o olhou quando se aproximou, mas sim ficou contemplando a escuridão em silêncio, com um rosto que era uma pálida máscara de angústia. Sentou-se junto a ela com uma sensação de impotência absoluta. Queria tomá-la em seus braços e lhe dizer que tudo sairia bem, mas sabia que não era certo. Tinha-a traído. Pouco importa que não pode evitar.
—Não é o que pensa — disse brandamente.
—Não pode fazer uma mínima idéia do que penso. —A voz de Anna estava carregada de emoção. Quando se voltou para ele, com seus grandes olhos azuis alagados de lágrimas não derramadas, Arthur sentiu uma pontada no coração que lhe fez estremecer — Diga que não é certo, Arthur. Diga que tudo é um engano. Diga que não é o que acredito que é.
Deveria. O que significava uma mentira mais em cima de tantas outras? Podia tentar negá-lo. Talvez chegasse a convencê-la. Mas duvidava muito. Ela sabia. Via-o em seus olhos. E se lhe mentisse nesse momento, jamais teria a possibilidade de que o compreendesse. Se queria que eles tivessem uma oportunidade como casal, teria que lhe contar a verdade.
Olhou-a nos olhos.
—Jamais quis lhe fazer dano.
Anna emitiu um som, um gemido de dor que parecia provir de um animal ferido, um gatinho de pele aveludada apanhado em uma armadilha para ursos. Não pôde evitar. Aproximou-se dela para acalmá-la, mas Anna deu um coice.
—Como é capaz de dizer tal coisa? Utilizaste-me. Mentiu em tudo o que era importante. —As lágrimas brotaram das comissuras de seus olhos e caíram em corrente por suas bochechas — Houve algo real? Ou fazer que me afeiçoasse de ti também era parte do plano?
—O que passou entre nós foi real, Anna. Nunca foste parte do plano. Jamais deveram fazer parte disso. Isto não tem nada que ver contigo.
—Então com o que tem que a ver? Com o Robert Bruce? Com as velhas rixas? Com seu pai? —Arthur apertou os punhos e pigarreou — Assim é por seu pai… Culpa ao meu de sua morte —disse, retirando-se dele — Não é mais que um horrível e retorcido feito de vingança. Quer a destruição de minha família porque seu pai morreu na batalha, não é isso? O que é o que planeja, assassinar a meu pai para vingar a morte do seu? —ficou paralisada pelo horror — meu Deus, isso é o que planeja fazer.
Arthur apertava com força os dentes. Dito por ela, soava como algo infame. Simples. Mas era tudo menos isso. Anna, cega pelo amor que tinha a sua família, estava incapacitada para ver o que acontecia a seu redor. Odiava ter que ser ele quem lhe abrisse os olhos, mas não restava outra alternativa.
—É seu pai quem acabará com o clã e não eu, Anna. Robert Bruce fez o que ninguém acreditava possível. É a melhor opção da Escócia para nos liberar do jugo inglês. Ganhou os corações do povo. Mas o ódio de seu pai e seu orgulho lhe impedem de vê-lo desse modo. Prefere ver uma marionete inglesa no trono… Os MacDougall ficam sozinhos, Anna. Inclusive Ross acabará rendendo-se.
Anna ficou completamente rígida.
—Meu pai faz o que considera correto.
—Não, seu pai faz tudo o que está em sua mão para não admitir a derrota. Não se equivoque em relação às razões de tudo isto. Seu pai preferiria os ver mortos antes que aceitar a derrota.
Advertiu a indignação que ruborizava suas bochechas.
—Vocês não sabe nada de meu pai.
Anna fez uma tentativa de levantar-se, mas ele a agarrou pelo pulso e a obrigou a permanecer sentada.
—Sei mais do que queria a respeito de seu pai. Sei exatamente do que seria capaz por ganhar.
Anna tentou libertar seu braço.
—Me solte.
—Não até que ouça tudo o que tenho a dizer.
Não havia nada que desejasse menos que desiludi-la, mas era consciente de que não podia protegê-la da verdade durante muito mais tempo.
—Não vos disse tudo o que vi o dia em que mataram a meu pai.
—Não quero…
—Entretanto, ouvirá —a interrompeu — Embora não queira fazer. Eu estava nessa colina e o vi tudo, Anna. Meu pai tinha ao seu a mercê de sua espada. Poderia tê-lo matado e, não obstante, teve piedade dele. Seu pai aceitou os termos, acordou a rendição e depois, quando meu pai deu a volta, matou-o.
Anna deixou escapar um grito afogado com uns olhos cheios de horror e incredulidade.
—Está errado. Meu pai jamais faria algo tão desonroso.
Arthur a agarrou firmemente e a obrigou a olhá-lo nos olhos.
—Eu estava ali, Anna. Vi e ouvi tudo, mas não pude fazer nada para detê-lo. Tentei advertir a meu pai, mas era muito tarde. Lorn me ouviu e enviou a seus homens a que me caçassem, e tive que me ocultar na floresta durante uma semana. Quando saí dali, era muito tarde para mudar a história. Ninguém teria acreditado.
Arthur se deu conta do pânico que a sobressaltava. Sentiu seu coração bater fortemente contra o peito. Lutava por aferrar-se a qualquer fio que pudesse preservar suas ilusões em relação à verdadeira pessoa que ela via em seu pai.
—Deve ter interpretado mal o ocorrido. Estava muito longe.
—Não interpretei mal nada, Anna. Ouvi tudo.
Equivocava-se. Tinha que equivocar-se. Não era certo? Seu pai tinha mau gênio, mas ela sabia que tipo de pessoa era.
Voltou-lhe as costas bruscamente.
—Não acredito.
O pesar de seus olhos cortava mais que o cristal.
— Pergunte tu mesma. —Anna não disse nada. Não queria atender a razão — Seu pai não se deterá ante nada para conseguir a vitória, Anna. Nada. Por todos os diabos, se inclusive utilizou a sua própria filha…
Anna ficou tensa, ofendida por tal acusação.
—Já vos disse que a aliança com o Ross foi minha idéia.
—Não estou falando disso. Refiro-me a lhe usar como mensageira.
Anna ficou sem fôlego. Sabia? Céu santo, teria devotado informação sem ser consciente disso?
—Quando? —exclamou — Desde quando sabes?
—Não o descobri até umas semanas, infelizmente. —Seu rosto tinha uma expressão temível — Por todos os Santos, Anna! Sabem o perigo que correstes?
—Sim, mas nunca imaginei de onde provinha.
«De ti.» Ele era o inimigo. Ele a espiou e fez quanto pôde por…
Anna ficou olhando-o ao mesmo tempo em que todas as terríveis conseqüências iam em turba a sua mente. De repente deu um salto para trás, horrorizada. «Não, isso não, por favor.» Lhe revolveu o estômago.
—Por que insistiu em me acompanhar ao norte, Arthur?
—Para te manter a salvo.
—E para evitar uma aliança com o Ross?
—Sim, em caso de que fosse necessário — disse, fazendo frente a seu olhar sem pestanejar. A dor machucava tanto o coração de Anna que se afogava em seus próprios soluços — Mas não é o que pensa. Aquilo não formava parte de meus planos.
Era como se a fustigassem por dentro. Parecia sangrar-se, como se estivesse em carne viva.
—E acha que tenho que acreditar?
Arthur contraiu a mandíbula.
—É a verdade. O que ocorreu naquele aposento foi porque o ciúmes e o medo de te perder me deixaram meio louco. Não me orgulho do que fiz, mas juro Por Deus que não o tinha planejado.
—Ocorreu por acaso, isso quere dizer? E o que passa com o de ontem à noite? Ocorreu também por acaso? —Sua voz se quebrou pela emoção que a embargava — Como pode, Arthur? Sabias o que acabaria passando e mesmo assim me deixou acreditar que te importava, que queria te casar comigo. E não eram mais que mentiras.
Como podia ser tão idiota para oferecer-se a um homem que planejava traí-la, trair a todos eles?
—Não — disse Arthur com rudeza, obrigando-a a lhe olhar nos olhos — Não era mentira. Nada disso era mentira. Eu… — Vacilou, como se aquelas palavras não coubessem em sua boca — Eu te amo, Anna. Nada me faria mais feliz que me casar contigo.
Por um estúpido momento o coração lhe deu um tombo ao escutar essas palavras que tanto tempo tinha esperado. Umas palavras que deviam fazer que tudo fosse perfeito, mas que não conseguiram mais que afundar na desgraça daquele assunto.
Era um homem cruel. Era cruel lhe dizer aquilo que tão desesperadamente ansiava ouvir. Bem certo, não fazia mais que manipulá-la para que não o delatasse.
«Delata-o.» Oh, Deus, o que poderia fazer? Tinha a obrigação de dizer a seu pai o que acabava de descobrir. Mas se o fizesse não cabia a menor duvida do que aconteceria. Arthur morreria. E se não o fizesse, Arthur passaria ao inimigo a informação que tinha obtido. Tratava-se de uma escolha impossível, mas sabia que, apesar de tudo o que Arthur fizesse, não podia ser ela quem jogasse o laço ao seu pescoço. Um só homem não podia derrotar a um exército.
—De verdade espera que acredite que me ama?
Arthur adotou uma postura rígida, mas seguiu olhando-a nos olhos.
—Sim, espero. Não tenho nenhum direito a fazer, mas essa é a verdade. Jamais antes disse essas palavras a ninguém e nunca pensei que o faria. Mas do primeiro momento que te vi, senti algo especial. Sei que você também o sentiu, uma conexão a que não me pude resistir.
—O que sentia era luxúria — disse Anna devolvendo suas palavras. Arthur franziu os lábios. Ela era consciente de que o estava levando ao limite, mas se sentia muito doída e furiosa para que lhe importasse — Como pode esperar que acredite em seu amor quando me mentistes do primeiro dia em que nos conhecemos?
—O que queria que fizesse? Não estava em posição de dizer a verdade. Acredita que eu queria que acontecesse isto? Por Deus santo, é a última pessoa no mundo que queria me ter apaixonado. —Anna se estremeceu. Supunha que isso tinha que fazê-la sentir melhor? Embora lhe doesse que aceitasse seus sentimentos com tal dificuldade, as palavras de Arthur tinham o distintivo da verdade — Tentei me manter à margem —assinalou, dando rédea solta a sua frustração — Mas não me permitiram isso.
—Então é minha culpa, não?
Arthur suspirou e voltou a levar as mão aos cabelos.
—Não, é obvio que não. Inclusive caso tivesse me evitado, eu teria me apaixonado por você a distância. Atraiu-me desde a primeira vez que a vi. Sua calidez. Sua vitalidade. Sua doçura. É tudo que não sabia que perdia na vida, o que não acreditava possível para mim. Jamais quis ter esse tipo de intimidade com alguém até que a conheci. —Apesar de todas suas tentativas para não cair em seus enganos de novo, Anna não pôde evitar que seu coração se comovesse. Arthur a puxou pelo queixo e voltou seu rosto para olhá-la nos olhos — Sei que não posso esperar que acredite, Anna, mas sim espero que tente compreender que o fiz o melhor que pude dadas as difíceis circunstâncias. Estava condenado a lhe trair inclusive antes que nos conhecêssemos.
Os olhos de Anna examinaram seu rosto em busca de sinais de engano, mas somente encontravam sinceridade. Queria acreditar, mas como podia fazer sabendo o que pretendia? Inclusive no caso de que seus sentimentos fossem sinceros, tinha a intenção de traí-la. Ele estava em um lado e ela no outro. Queria matar a seu pai.
Anna voltou o rosto bruscamente, receando sua própria debilidade. Quando a olhava com essa expressão, somente podia pensar em lhe beijar e no quão protegida se sentira entre seus braços, fingindo que tudo sairia bem.
—Como poderia acreditar que te importo quando está aqui para nos espiar, destruir a minha família e se vingar de meu pai? Se me amas de verdade, não poderia fazer.
Os olhos de Arthur brilharam com força na escuridão, como se queria discutir com ela mas compreendesse a inutilidade do gesto.
—O que outra coisa poderia fazer?
—Poderia deixar de lado sua ânsia de vingança. —Olhou-o nos olhos, consciente de que estava a ponto de lhe pedir um impossível, mas sabendo também que essa era a única oportunidade que teria para ambos — Poderia escolher ficar comigo.
Arthur ficou petrificado. Maldita seja por lhe fazer isso! Por lhe fazer escolher. Pedia-lhe quão único não podia dar. Não podia jogar por terra toda sua honra e lealdade, nem sequer por ela. Seu rosto adotou o aspecto do granito.
—Fiz um juramento, Anna. Jurei dar minha espada ao Bruce. —E ao Guarda dos Highlanders, pensou — Ir contra isso seria ir contra minha consciência. Ir contra todo aquilo no que acredito. E apesar de que tenha razões para acreditar o contrário, sou um homem de honra.
Era o dever, a lealdade e a honra o que o tinham levado até ali.
—Mas isto não é só uma questão de honra. Não é certo? —desafiou-o — É uma questão de vingança. Quere a destruição de meu pai.
—Quero justiça — disse Arthur esticando a mandíbula.
Seus grandes olhos o olhavam com expressão luminosa e suplicante, remoendo sua consciência. Anna pôs uma mão sobre a sua, mas pareceu que com ela se agarrava a seu coração.
—É meu pai, Arthur.
Pareceu que todo seu interior se retorcia. Essa suave súplica chegava mais fundo do que gostaria. Como era capaz de lhe fazer isso? Como podia apertar as porcas para que ele se visse na necessidade de fazer quanto pudesse por satisfazê-la? Mas era impossível. Isso não podia fazer.
Durante quatorze anos sua vida se centrou em uma só coisa: desfazer uma ofensa. Tinha esperado muito tempo para encontrar-se com o Lorn cara a cara no campo de batalha. Assim como não podia negar seus sentimentos por ela, tampouco podia evitar sua promessa de justiça.
—Acredita que não sou consciente de que se trata de seu pai? Acha que não passei cada um dos dias destes dois últimos meses desejando que não fosse assim? Eu não queria que acontecesse nada disto, maldita seja.
As lágrimas brilharam nos olhos de Anna.
—Acredito que isso já deixa suficientemente claro. Seus sentimentos por mim são um obstáculo.
—Eu não disse isso. —Arthur apertou os punhos.
—Não têm nada que explicar. Acredite, entendo.
A aspereza de seu tom deixava muito claro os sentimentos de Anna. Levantou-se do banco e caminhou uns passos para o interior do pátio com o olhar perdido na escuridão.
—Parte —disse sem expressão na voz — Parta antes que mude de opinião.
Não podia acreditar que fosse o deixar partir. Por um segundo teve um brilho de esperança. Isso somente podia significar que ela ainda lhe amava, pois ao deixá-lo partir anteporia-o a sua família. E tinha que partir. Não gostava da idéia de deixá-la plantada assim, mas tinha que advertir ao rei. Aproximou-se dela, ficou a seu lado, tomou pelo cotovelo e a atraiu para si com delicadeza. Dava a impressão de ser mais jovem e frágil à luz da lua, com esse rosto pálida que parecia um ovalóide de alabastro.
—Juro-lhe que voltarei assim que possa.
Anna negou com a cabeça sem deixar de olhar ao infinito.
—Já têm feito sua escolha. Se partir agora o fará para sempre — disse, olhando-o ao fim com um rosto imperturbável — Não quero voltar a te ver jamais.
A determinação de sua voz cortava como uma espada.
—Não diz a sério. —Não podia falar sério. Era sua raiva que falava. Mas a rigidez da posição de seu queixo fez que o pânico corresse pelas veias de Arthur. Conhecia essa expressão. Atraiu-a para si com força, consciente de que tinha que fazê-la entrar em razão — Não diga algo do que poderia te arrepender.
Anna escoiceou ao sentir o contato.
—O que faz? Me soltem! —Deu-lhe um empurrão para desembaraçar-se dele.
Mas seus esforços não fizeram mais que aumentar a sensação de pânico de Arthur. Tinha que fazer o ver. Como podia negar? Acaso não sentia ela a energia que desprendiam seus corpos? O calor? Estavam destinados um para o outro.
Ficou sem palavras e sem tempo, de modo que a beijou, capturando sua boca com a dele em um desesperado e feroz abraço. Ela ficou lívida, já sem lutar, simplesmente deprimida sobre seus braços. «Não, maldita seja. Não.» A ausência de reação piorava a sensação de urgência. Beijou-a com mais força, com mais paixão, obrigando-a a abrir os lábios, procurando algo que muito temia lhe estava escapando entre os dedos. Seus lábios estavam quentes e suaves, seguiam tendo sabor de mel, mas nada era como antes. «Ela não quer que a beije.» deteve-se. «Que demônios estou fazendo?» Deixou-a ir ao mesmo tempo em que soltava uma imprecação e ficava olhando com horror. Nunca antes tinha feito algo assim. A idéia de perdê-la fazia que se voltasse louco.
—Deus, Anna! Sinto—disse com uma voz rouca e entrecortada pela aspereza de seu fôlego.
Merecia que lhe dirigisse esse olhar, como se ele fosse o barro que se aderia a seus sapatos.
—Jamais acreditei que fosse um bruto, mas dá a sensação de que está em seu lugar junto ao rei usurpador. Simplesmente tomam quanto querem.
—Anna, eu…
—Parte de uma vez — disse ela com Isso é o melhor que pode fazer. Já têm feito suficiente dano. —Olhou-o nos olhos, desafiante — Acaso pensava que poderia te perdoar isto?
Era a confirmação de seus piores temores. Fora um idiota. Permitia que as emoções turvassem sua percepção da realidade. Pensava que seria possível um futuro para eles pela simples razão de que a queria mais que a tudo no mundo. Mas nunca tivera nem a mais mínima oportunidade. Jamais lhe perdoaria aquilo que a obrigação, a honra e a lealdade lhe impunham. Fixou os olhos em Anna em busca de algum sinal de debilidade, mas ela o olhava com frieza, imutável. A ausência de lágrimas, ira ou emoção não deixava lugar a dúvidas. Tudo tinha acabado. Deus, tudo tinha acabado de verdade.
Arthur sempre soube que poderia chegar este momento, mas nunca esperou sentir-se tão impotente e desesperançado. Jamais pensou que doeria tanto. Parecia que o tivessem quebrado em mil pedaços por dentro e não houvesse nada que fazer a respeito.
—Vos amo, Anna. Sempre te amarei. Nada poderá mudar isso. Espero que algum dia compreenda que nunca quis te fazer dano.
Alongou o braço para tocar sua bochecha uma vez mais, incapaz de deter-se, mas ela se separou dele como se fosse um leproso e sua mão caiu sem força sobre o ar.
—Adeus.
Dito isto, Arthur a olhou pela uma última vez, uma imagem que teria que reter para sempre, deu meia volta e abandonou o lugar.
Jamais esqueceria o aspecto que tinha naquele momento: pequena, sozinha; de uma beleza dolorosa, com seus longos cabelos dourados caindo sobre os ombros em sedosos cachos e seus delicados traços resplandecendo sob a opalescente luz da lua. Tão frágil que poderia romper-se como o cristal. Mas determinada. Com uma determinação atroz.
Parecia ter o peito ardendo e que seu calor se intensificava a cada passo. Acreditava caminhar sobre as brasas do inferno e que o peso de suas pegadas fosse pura agonia. Não podia desprender-se da sensação de que estava mal deixá-la ali de tal modo, de que não fazia o correto nesse momento, depois já não teria oportunidade de fazer. Estava a meio caminho da estrebaria quando se voltou. Mas já era muito tarde. Ela não estava. Olhou para o alto da escada que conduzia à torre da comemoração e alcançou a ver uma mecha de cabelo dourado seguindo a esteira de sua figura como se de um pendão se tratasse antes de desaparecer depois da porta. Uma vez esta se fechou, pareceu que algo se fechava também em seu interior. Para sempre. Era uma parte dele que jamais devia ter aberto. Isso era o que conseguia por relacionar-se intimamente com as pessoas. Estava destinado à solidão. Nunca deve esquecer isso.
Tentou evitar o vazio que ardia em seu interior. Tinha que deixar de pensar nisso. Precisava centrar-se na tarefa que tinha entre as mãos. Mas o rosto de Anna seguia aparecendo ante ele. Perseguia-o. Distraía-o.
Entrou na cavalariça e se apressou a preparar seu cavalo. Apresentar-se voluntário à ronda noturna se provou duplamente providencial. Não só servia como desculpa para sair do castelo, mas sim também significava que não teria que perder tempo voltando para os barracões. Seus pertences mais importantes levava consigo: a cota de malha e as armas. As mudas de roupas e os poucos artigos pessoais que tinha podia deixá-los ali. Os planos tinham mudado. Tinha que partir para sempre, por mais que isso significasse que Lorn estivesse a par de que seu plano estava em perigo. Não ficava mais opções toda vez que Anna tinha descoberto a verdade. Não podia arriscar-se a que ela mudasse de opinião.
Não empregou mais de cinco minutos no estábulo. Não pensava mais que em sair dali quanto antes e pôr terra entre eles. Dizia a si mesmo que isso era o melhor que podia acontecer. Estava bem antes na solidão e voltaria a estar.
Entretanto, não chegou a sair do estábulo. Seus sentidos o advertiram, mas não o fizeram a tempo. De novo suas emoções o distraíram. Embora nesse caso não teria feito diferença alguma.
Abriu a porta do estábulo e se encontrou rodeado. John de Lorn e seu filho Alan flanqueados por ao menos uma vintena de guardas espadas em mão. A mandíbula de Arthur se contraiu pela dor que representava aquela punhalada nas vísceras. Não podia acreditar. Anna o tinha delatado. Talvez teria que ter esperado, mas não acreditava que seria capaz disso. Subestimou o amor que Anna tinha a seu pai e superestimou o que sentia por ele. Não havia razões para que encarasse como uma traição. Mas assim era.
Lorn arqueou uma sobrancelha de maneira indolente.
—Ia a alguma parte, Campbell?
—Sim — respondeu despreocupadamente, como se não estivesse rodeado por homens armados — vou unir me ao grupo de vigilância noturna. —Olhou em redor, sem sinal de fingir sua indignação — O que significa isto?
Lorn sorriu, embora em sua expressão não havia nenhum sinal de simpatia.
—Temo que estamos obrigados a lhe reter um momento. Há vários assuntos que temos que esclarecer.
Arthur deu um passo à frente. Ouviu o tinido do metal enquanto os guardas respondiam a sua afronta elevando as espadas e fechando o cerco a seu redor. Mas não era necessário. Estava apanhado. Talvez conseguisse abrir com golpes através de uma vintena de homens que apontavam a seu pescoço as espadas, mas as portas do castelo já estavam fechadas. Não seria capaz de atravessar sem que todo o castelo se erguesse contra ele. Não havia saída.
Olhou ao Alan, mas não obteria ajuda dele. Mostrava um olhar tão duro e inquebrável como o de seu pai, embora sem esse brilho de maldade acerada. Todos seus instintos clamavam por que lutasse, por desembainhar a espada e levar consigo a alguns homens de Lorn. Mas se obrigou a manter a calma. A não fazer nenhuma tolice. Sua missão era que vinha em primeiro. Se existia a mais remota possibilidade de que pudesse escapar para avisar ao Bruce, teria que considerá-la. Talvez pudesse sair desse embrulho por meio do diálogo. Não estava seguro de quanto havia contado Anna.
—Não pode esperar? —disse — Estão me aguardando.
—Temo que não — repôs Lorn. Fez um gesto com a mão e dois de seus homens mais fortes se adiantaram para agarrar Arthur nos braços — Levem-no às masmorras. Revistem.
«Diabos.» Ao que parecia não teria modo de sair dali por meio do diálogo. Tinha esquecido a nota, a mensagem que pensava deixar na cova essa noite para o rei. Um pequeno pedaço de papel dobrado que levava na bolsa com três palavras que selariam seu destino: «Ataque, 14, Brander».
Embora talvez seu destino tivesse ficado sentenciado dois meses atrás, quando se encontrou cara a cara com a moça que acabava de resgatar de um ataque fatal. A garota que poderia desmascará-lo.
Arthur emitiu um feroz grito de guerra que atravessou a noite e deixou que fosse seu instinto quem tomasse o mando: «Bàs roimh Gèill!». Morrer antes que render-se. Lutou como um selvagem e tombou a cinco soldados antes de cair sob o punho da espada do Alan MacDougall. À medida que a escuridão se abatia sobre ele, soube que aquilo não tinha acabado. E que estava a ponto de piorar.
Queriam-no vivo.
Capítulo 23
Supunha-se que não teria que sentir o coração partir-se. Anna queria que Arthur fosse embora. Tinha mentido. Tinha-a traído. Tinha-a usado. Queria destruir tudo que era importante para ela. Como podia pensar que existia possibilidade alguma de continuar juntos? Inclusive chegava ao ponto de tentar beneficiar-se da paixão que existia entre ambos. Como se um beijo pudesse fazê-la esquecer o que tinha feito. Odiou-o naquele momento. Odiou-o por manchar algo que era formoso e puro.
Dizia a si mesma que isso era o que ela queria, mas assim que Arthur deu meia volta e partiu, o gelo de seu coração começou a rachar-se.
Partia. Abandonava-a.
Jamais voltaria a vê-lo.
«Oh, Deus.» ficou completamente quieta, sem ousar mover-se ao estremecimento de seu interior. Sentia-se como uma fina lâmina de cristal sacudida por uma violenta tormenta de emoções. Forte na superfície e frágil na realidade. Assim que o vento soprasse com força, romperia em mil pedaços diminutos. Não devia sentir-se assim depois do que tinha feito. Não tinha por que sofrer tanto. A dor. O remorso. A desolação. A sensação de que lhe arrancavam o coração. Essa intensidade de emoções parecia pura debilidade. Onde estava seu orgulho? Era uma MacDougall e entretanto, nesse momento, somente se sentia como uma garota que observa como o homem ao que ama parte de sua vida para sempre.
Incapaz de suportar por um momento mais, temendo o que ele veria se desse a volta, pôs-se a correr. Subiu a escada tão rápido como pôde até que alcançou a segurança de sua câmara. Ali se desabou sobre a cama com cuidado de não despertar a suas irmãs, jogou a manta por cima da cabeça e se amassou sentindo-se como uma boneca de trapo. Somente então se deixou levar pela emoção e rompeu a chorar em silenciosos soluços que pareciam arrancados de sua própria alma.
Escudeiro, sentindo sua angústia, se aninhou junto a ela. Anna abraçou ao cachorrinho e fez dessa cálida bola de pelo de amor incondicional sua companhia durante daquela longa e miserável noite.
«Amo-te.»
Não podia tirara as palavras da cabeça. Soavam tão sinceras… Mas Arthur tinha mentido em todo o resto, assim por que teria que acreditar nisso? Inclusive no caso de que fosse certo, não deveria ter importância. Anna repassava o ocorrido uma e outra vez, recordando cada uma das palavras de sua explicação, sua justificação… ou como que pudesse chamar aquilo que tentava fazer. Já era suficiente que estivessem em lados contrários da guerra, mas realmente esperava que ela compreendesse sua necessidade de destruir ao clã familiar? De matar a seu pai, o homem a quem ela mais admirava no mundo? E tudo por certa forma retorcida de vingança? Justiça, tinha chamado ele.
Não queria ouvir suas explicações nem entender suas razões. E tampouco acreditou nem por um momento as mentiras que tinha dito a respeito de seu pai. Ele jamais teria matado a um homem de maneira tão desonrosa. «Faria tudo por ganhar», pensou tapando as orelhas com o travesseiro como se as plumas pudessem conter seus próprios temores. «Pergunte você mesma», tinha-a desafiado Arthur.
Não precisava perguntar. Ela sabia a verdade.
Mas Arthur parecia muito seguro a respeito do que tinha visto.
Anna saiu da cama assim que as primeiras luzes do amanhecer estenderam seu manto pelo chão. Fez suas abluções matinais e passou sigilosamente junto a suas irmãs para sair da câmara. Sabia exatamente o que faria. Demonstraria que Arthur se equivocava. Assim poderia deixar tudo aquilo atrás e deter esse miserável sofrimento de seu coração.
Ainda não tinham disposto as mesas com seus cavaletes e alguns dos homens seguiam ainda despertando em seus lugares do grande salão quando se apressou para os aposentos de seu pai. Sabia que estaria de pé, apesar de que mal tivesse passado uma hora do amanhecer. Quando se preparava para a batalha, John de Lorn virtualmente não dormia. Ouviu sua voz assim que se aproximou da entrada.
—Não me importa quanto tempo dure. Quero saber os nomes.
—Não sei por quanto mais poderá…
Alan deteve em seco suas palavras ao vê-la entrar no aposento. Com somente olhá-lo à cara, Anna soube que algo ia mal. Seu pai estava sentado à mesa. Frente a ele seu ajudante, o capitão da Guarda e seu irmão Alan. Seu pai entreabriu os olhos com ira ao vê-la, enquanto os outros desviaram o olhar, quase como se quisessem evitá-la. Anna, pensando que a irritação de seu pai se devia à interrupção, apressou-se a bater-se em retirada.
—Sinto muito. Voltarei mais tarde.
—Não —respondeu John de Lorn — Tenho que falar contigo. Já acabamos com isto. Não quero mais desculpa —disse ao Alan — Consiga o que quero. Custe o que custar.
Alan franziu o cenho, mas assentiu. Anna sentiu uma pontada no coração ao ver que saía do aposento sem lhe dirigir a palavra, nem sequer um olhar. Tomou assento no banco que havia em frente a seu pai e cruzou os braços sobre o regaço. A intensidade de seu olhar a fazia sentir incômoda em certa forma. Estava furioso e não era por causa da interrupção.
—Se tiver algo que me dizer, chega muito tarde.
A Anna lhe encolheu o coração.
—Algo… algo que lhes dizer?
Seu pai tirou um pedaço de papel de sua bolsa e o pôs sobre a mesa ante ela. Um calafrio percorreu sua nuca ao reconhecer o mapa.
—Sim —disse John de Lorn — Quando viu isto antes, por exemplo. —A vergonha tingiu as bochechas de Anna. Como o tinha averiguado? Seu pai respondeu à pergunta por ela — Sua reação. Que fosse lhe buscar imediatamente depois de ver o mapa confirmou a procedência.
Acaso seu pai os tinha vigiado durante todo o tempo? Não, talvez no pátio, mas não era possível que os tivesse divisado no jardim, pois este não alcançava a ver do salão. Embora, obviamente, tinha visto o suficiente.
—Não esperava isto de ti, Anna.
Inclinou a cabeça, profundamente afetada por tê-lo decepcionado. Não tinha desculpa. Queria dizer que não estava segura, mas sim o estava. Assim que tinha visto o mapa, tinha sabido que Arthur era um espião.
—Sinto muito, pai. Queria lhe dar uma oportunidade para que se explicasse.
—E te satisfez sua explicação? —repôs seu pai com uma voz tão afiada como um látego.
Ela negou com a cabeça. Embora sabia que tinha a obrigação de contar-lhe tudo, essas palavras seguiam sendo muito difíceis de dizer. Teve que recordar que Arthur a tinha abandonado.
—Sua lealdade está com Bruce — começou, detendo-se depois para olhar a seu pai com cautela — Disse que Bruce se ganhou o coração do povo. Que é a melhor alternativa para nos libertar da tirania inglesa de uma vez por todas. E que vamos perder e que será melhor que nos rendamos.
Seu pai ficou vermelho de cólera.
—E acreditou? Arthur Campbell diria tudo para ganhar sua simpatia. Você, pequena insensata… estava te utilizando para escapar. Jamais nos renderemos. E não vamos perder.
A segurança de suas palavras jogou Anna em muitas dúvidas e a fez duvidar de se devia mencionar o resto. Seu pai já estava mais que zangado com ela, mas tinha que acabar com tudo aquilo.
—Afirma que estava ali quando matou a seu pai e que ele viu tudo.
A leve separação do olhar de seu pai poderia significar algo, mas fez que o coração de Anna se detivesse.
—Isso é impossível — disse, descartando a idéia — Não sei o que veria, mas Colin Mor e eu estávamos longe do grupo. Não havia ninguém ali quando combatemos. Em qualquer caso, eu nunca neguei que caísse sob minha espada. Nem que a vitória que consegui para nosso clã fosse a causa da perda das terras dos Campbell no lago Awe. Que Arthur Campbell albergue desejos de vingança por isso é algo inevitável, mas não supõe desculpa alguma.
Obrigou-se a olhar nos olhos, apesar de que se odiasse a si mesmo por repetir a acusação de Arthur.
—Disse que seu pai o tinha sob a ponta de sua espada e que lhes ofereceu a rendição, que aceitou e que depois o assassinou quando deu a volta.
Nessa ocasião a separação do olhar paterno não podia ser interpretada mal. Nem tampouco a tensão de sua mandíbula, nem as rugas brancas que se marcavam ao redor de sua boca. Estava zangado. Zangado sim, mas não quão ofendido deveria. O rosto de Anna empalideceu. «Oh, Deus. É verdade.»
O horror que adivinhou na expressão de sua filha pareceu incomodar ao John de Lorn.
—Aquilo ocorreu faz muito tempo. Fiz o que devia fazer. Colin Mor era cada vez mais poderoso; invadia nossas terras. Teria que detê-lo.
Anna parecia estar na presença de um estranho e que pela primeira vez via o homem que realmente era. Seguia sendo o mesmo pai ao que amava, mas já não era esse homem incapaz para ela de fazer nada mal. Já não era um homem ao que não podia questionar. Tinha deixado de ser um deus. Não, mostrava uma humanidade temível. Parecia-lhe imperfeito e capaz de cometer enganos. Grandes enganos. Enganos execráveis.
Arthur tinha razão. Seu pai faria tudo pra ganhar. Nem sequer se deteria pelo bem de seu próprio clã.
—Tem pouco pelo que me julgar, filha. Você, que deixa que alguém que trai nosso clã parta em liberdade… —Endureceu tanto a voz que quebrou — Sabe o dano que poderia ter feito?
Seu pai tinha razão. Tinha decidido deixar livre Arthur, inclusive sabendo que poderia fazer dano a seu clã, porque não suportava a idéia de converter-se em instrumento de sua morte.
—Não queria que lhe fizessem mal. Eu… lhe tenho carinho. —Anna ficou calada de repente, surpreendida de que seu pai falasse em condicional — O dano que poderia ter feito? —perguntou.
Seu pai franzia o cenho de modo forçado e a brancura de seus lábios contrastava com a cor avermelhada de seu irado rosto.
—Tem sorte de que pudesse mitigar o desastre. Meus homens rodearam ao Campbell ontem à noite quando tentava a fuga. Levava uma mensagem que prova sua culpa —disse com os olhos ardendo de fúria — Uma mensagem que poderia ter arruinado tudo.
Anna não podia respirar do horror que bulia em seu interior. O medo atendia seu coração e o espremia.
—O que têm feito com ele?
—Isso não é de sua incumbência.
O pranto contido lhe ardia na garganta. Nos olhos. O pânico comprimia seus pulmões. Mal pôde pronunciar umas palavras: —Por favor, pai, simplesmente me diga… está vivo?
Ele não respondeu imediatamente, mas sim a observou com seu frio e escrutinador olhar.
—Por agora sim. Tenho algumas pergunta para ele.
Anna fechou os olhos e exalou o ar com uma sensação de alívio assustadora.
—O que farão com ele?
Seu pai a observou com paciência. Era óbvio que não gostava daquele interrogatório.
—Isso depende dele.
—Por favor, tenho que o ver.
Anna tinha que assegurar-se de que Arthur se encontrava bem.
Seu pai pareceu ultrajado por tal petição.
—Para que lhe deixe partir de novo? Não acredito — disse apertando a mandíbula com raiva — Não serviria de nada. Esse homem é perigoso e não se pode confiar nele.
—Arthur jamais me faria mal — disse Anna sem pensar, para imediatamente conscientizar-se de que era a verdade. Ele a amava. Sabia que no fundo era certo. Não mudava nada do passado, mas talvez sim do futuro. O coração lhe encolheu. Se é que tinha um futuro — Por favor…
Seus rogos caíam em ouvidos surdos. Os olhos escuros de seu pai a olharam com uma dureza inquebrável.
—Arthur Campbell já não é teu assunto. Já tem feito suficiente dano. Como posso estar seguro de que não tentará procurar um modo de lhe ajudar? —Os protestos de Anna morreram em sua garganta. Para falar a verdade, tampouco ela podia estar segura. O medo que atendia seu coração ao pensar que Arthur estava encarcerado fazia que se inteirasse de que não era tão fácil evadir-se do que sentia por ele — Não esperava isto de ti, Anna. —A decepção de sua voz a rasgava até o mais profundo, e essa sensação se via agravada pela segurança de que merecia. Mas estava entre duas águas, apanhada entre dois homens que amava. Seu pai a despediu com um gesto anti-social da mão — Estará pronta para partir dentro de uma hora.
Ficou sem respiração.
—Partir? Mas pra onde?
—Seu irmão Ewen partirá como vanguarda do exército com um contingente amplo de homens para assegurar nossas defesas em Innis Chonnel. Irá com ele. Uma vez que tenhamos mandado ao rei Hood ao inferno, fará uma visita a meu primo o bispo do Argyll em Lismore. Ali terá tempo de pensar no que tem feito e em onde reside sua lealdade.
Anna assentiu com lágrimas cada vez mais abundantes. Estava claro que seu pai não confiava nela e não a queria no castelo enquanto ele permanecesse fora. Sabia que poderia ter sido pior, que o castigo de seu pai poderia ter sido muito mais severo. Mas não podia suportar a idéia de abandonar Arthur sem saber o que seria dele.
—Por favor… Farei o que me peça. Mas me prometa simplesmente que não o matarão quando eu esteja fora —disse, engasgando-se com seus soluços — O amo.
—Basta! Põe a prova minha paciência, Anna. Seus ternos desejos para esse homem lhe fazem esquecer seu dever. O único que te libera de um castigo muito pior é saber que talvez eu também tenha parte de culpa por te pedir que o vigiasse. Arthur Campbell é um espião. Sabia o risco que corria quando decidiu nos trair. Não terá nada menos do que mereça.
Arthur já não sentia nada. Fazia horas que tinha ultrapassado a soleira da dor. Tinham-lhe batido, fustigado e quebrado cada um de seus dedos com o aplastapulgares15. Mas sim percebia o sabor do sangue. Esse nauseabundo sabor metálico enchia seu nariz e boca como se estivesse afogando-se nele. Sua cabeça pendurava para frente e seu cabelo, molhado e empapado em suor e sangue, ocultava seu olhar daqueles que lhe rodeavam. Em algum momento da noite chegaram a ser mais de uma dezena os homens que tentavam fazer que se rendesse. Agora que os raios de sol atravessavam as seteras da masmorra, somente ficavam três deles.
Estava preso a uma cadeira, mas não era necessário imobilizá-lo. Já não supunha nenhuma ameaça. Tinham-lhe retorcido tanto o braço direito que tinha saído do ombro. Sua mão esquerda pendurava inerte junto a seu corpo, com cada um de seus ossos quebrados um a um com uma lentidão agonizante. E pensar que tinha rido a primeira vez que tinha visto aquele artefato… Aquela pequena braçadeira de metal parecia inofensiva, certamente nada que pudesse obrigá-lo a lhes contar o que queriam. Mas logo aprendeu como algo simples podia provocar um sofrimento terrível. Mais dor do que jamais tinha imaginado. Estivera a uma volta de lhes contar tudo que queriam saber. Teria dito o que fosse para que parassem.
—Maldito seja, Campbell. Diga simplesmente o que querem saber.
Arthur olhou a Alan MacDougall através do véu emaranhado de seu cabelo empapado. O irmão de Anna permanecia junto à porta como se não pudesse esperar mais para sair dali, com o rosto lívido e contraído. Quase parecia que fosse ele a quem torturavam. O herdeiro de Lorn não tinha estômago para isso. Mas seu ajudante sim. Arthur tinha a impressão de que aquele filho de cadela sádico poderia continuar com isso durante dias e dias. Apesar de não poder falar, emitiu uma espécie de grunhido e negou com a cabeça, sem forças. Não. Ainda não. Não lhes diria nada ainda. Entretanto, a palavra «nunca» já não aparecia entre seus pensamentos.
A cabeça foi para trás, impulsionada pelo novo golpe daquele filho de cadela, que lhe sacudiu com um punho envolto em correntes que, bem, parecia uma marreta.
—Os nomes —exigiu — Quem são os homens que lutam na guarda secreta?
Arthur já não se incomodava em fingir ignorância. Não acreditavam. Anna o tinha condenado sem se dar conta disso. Graças ao acontecido no Ayr, quando ele a resgatou, e também ao último ataque nos bosques, Lorn estava seguro de conhecer menos a um dos membros da infame guarda fantasma. Não podia culpá-la por isso. E pelo que parecia, tampouco podia culpá-la por delatá-lo. Em algum momento da noite entre os golpes e o látego, Arthur percebeu de que, dadas as perguntas que lhe dirigiam, o mais provável era que estava errado. Em caso de que ela o tivesse traído, não havia lhes dito muito.
Percebeu como o punho do filho de cadela voltava para ataque, como uma mancha negra nos limites de sua consciência. Preparou-se de maneira instintiva para o golpe embora soubesse que não serviria de ajuda, já que por seu tamanho e o poder de seus socos, diria que o ajudante provinha de uma longa dinastia de ferreiros. Entretanto, alguém bateu na porta e reclamou ao ajudante de Lorn, de modo que Arthur pôde recuperar um instante. Derrubou-se sobre a cadeira e procurou introduzir um sopro de ar em seus encharcados pulmões. Tinha uma costela quebrada como mínimo, embora achasse que fossem mais.
—Eles o matarão se não contar — disse Alan.
Arthur tomou seu tempo para responder, tentando fazer provisão das forças necessárias para falar.
—Matarão-me de qualquer forma — grunhiu.
Embora Alan não afastou o olhar, sua careta de agonia disse a Arthur que seu rosto devia refletir a dor que sentia.
—Sim, mas será muitíssimo menos doloroso.
E mais rápido.
Contudo, Arthur tinha fracassado já muitas vezes e estava decidido a salvar o que pudesse daquela maldita missão. Se fosse capaz de confrontar o momento final sem revelar os nomes de seus companheiros de irmandade, revestiria sua morte com certa aparência de honra.
Mesmo assim, dada a magnitude catastrófica de seus fracassos, não significaria mais que uma vitória vazia. Tinha perdido tudo. Anna. A oportunidade de destruir ao Lorn e render justiça a seu pai. E a oportunidade de avisar ao rei da ameaça. Bruce e seus homens iriam direto para a emboscada e ele não teria meios para lhes advertir.
Tinha falhado igual falhou a seu pai.
Que lhe batessem até convertê-lo em uma massa sanguinolenta, esfolassem-no até deixá-lo a borda da morte e lhe rompessem os dedos um a um servia para que seus pensamentos não escapassem das quatro paredes da prisão. Mas nos pequenos descansos temia as outras conseqüências que sua captura pudesse conduzir. Lorn amava a sua filha e não lhe faria mal; mesmo assim tinha que perguntar.
—Anna?
Alan o olhou com expressão grave.
—Não está mais aqui — Arthur sentiu o mundo desabar sobre ele. Ao ver a horrorizada expressão de seu rosto, Alan se apressou acrescentar — Está a salvo. Meu pai pensou que era melhor tirá-la do castelo até que…
Alan deteve suas palavras. «Até que esteja morto», disse-se.
O ar voltou a encher seus pulmões. Somente a tinham enviado a outro lugar. Mas então o recordou.
—Não… é seguro — conseguiu dizer. Em vésperas da batalha, Bruce teria linhas de ataque rodeando-os e estreitando o cerco. A severa expressão que se desenhou no rosto do Alan lhe dizia que não se mostrava em desacordo, mas, igual a Arthur, via-se impotente para detê-lo — Meus irmãos? —perguntou Arthur.
Pode ser que Dugald e Gillispie fossem seus inimigos no campo de batalha, mas não queria que eles tivessem que sofrer suas preferências.
—Meu pai não tem razão alguma para acreditar que estejam implicados. Fizeram-lhes um breve interrogatório e pareciam tão surpresos como o resto de nós. —deteve-se, com o olhar confuso — por que salvou minha vida? Não tinha por que fazer.
Arthur sacudiu o cabelo do rosto para lhe olhar nos olhos.
—Sim, tinha que fazer.
Alan assentiu, compreendendo tudo.
—Ama-a de verdade.
Não disse nada. O que teria podido dizer? Nada daquilo importava.
A porta se abriu e o ajudante de Lorn voltou a aparecer na saleta com uma corda na mão. A Arthur lhe acelerou o pulso como reação imediata ao perigo.
—Hora de partir —disse — Os homens estão preparados para partir.
Arthur se preparou para o pior, consciente de que tinha chegado seu final. Tinha ganho. Teriam que o matar. Uma pequena vitória nesse amargo mar de fracassos.
—Então terá que enforcá-lo? —disse Alan.
O ajudante sorriu, brindando Arthur com o primeiro sinal de emoção que percebia em seu feio e curtido rosto.
—Ainda não. A corda é para o fosso. —O alívio que embargou Arthur indicou que não estava tão preparado para morrer como acreditava. Depois do que acabava de passar, o úmido buraco de uma fossa de castigo lhe pareceria o paraíso — Talvez os ratos lhe afrouxem a língua — disse o ajudante com uma gargalhada.
Ou talvez um inferno em vida.
O ataque de terror que atravessou seu corpo serviu para lhe dar um jogo de forças primitivo. Lutou contra o metal de seus grilhões como um possuído. Sua pele arroxeada e em tiras sucumbia diante da sensação de ter ratos percorrendo-a.
Tinha que escapar dali.
Mas não podia. Encadeado e ferido, não era rival para os guardas que o arrastavam dos calabouços até a sala contígua. Ao final nem sequer se preocuparam com a corda, mas sim o jogaram dentro.
Escuridão.
Chiados.
Queda. Impacto.
Um duro e arrepiante golpe.
E depois, felizmente, escuridão. Só escuridão.
Capítulo 24
—Ewen, temo que preciso de um momento de privacidade —disse Anna, fingindo um rubor embaraçoso.
—Já? —Seu irmão a olhou como se ela tivesse cinco anos. Estavam no coração da floresta, perto de um túmulo funerário, a uns três quilômetros do castelo — Por que não fez antes de sair?
Anna o fulminou com o olhar para lhe comunicar que não fazia nenhuma graça que lhe falasse como se fosse sua mãe.
—Porque então não precisava fazer.
Ewen pôs cara feia.
—Pararemos quando chegarmos ao Oban. Está a menos de dois quilômetros.
—Não posso esperar tanto —repôs Anna negando com a cabeça — Por favor… — implorou com voz doída, removendo-se um pouco nos arreios para dar ênfase a sua urgência.
Seu irmão murmurou uma maldição e depois se voltou para dar o alto à vintena de homens que os escoltavam através dos perto de cinqüenta quilômetros que o separavam do Innis Chonnel, uma viagem que era muito mais rápido de navio mas que seu pai, depois de navegar do castelo com sua frota, tinha considerado muito perigosa.
—Te apresse — disse com impaciência — Um de meus homens te acompanha…
—Isso não será necessário — interrompeu Anna bruscamente. «Arruinaria tudo» — Eu… —continuou sem ter que fingir o abafado— Temo que esta manhã comi algo que me tem revolto estômago. Pode ser que tarde um pouco.
A seu irmão pareceu lhe envergonhar que compartilhasse detalhes muito pessoais de um assunto que jamais devia mencionar-se. Anna mesma estava horrorizada pela natureza e o alcance de seu embuste, mas necessitava todo o tempo que fosse possível para escapar. Tinha que voltar para castelo. Não havia explicação para isso, mas do mesmo momento em que tinha saído dos aposentos de sua mãe essa manhã, não tinha conseguira deixar de lado a uma insuportável premonição. Talvez estivesse motivada pelas palavras de seu pai, mas ela sabia que algo sairia mal, terrivelmente mal. E essa sensação não tinha feito mais que piorar à medida que o castelo se desvanecia atrás deles sob a luz do sol. Não sabia o que poderia fazer; simplesmente, mas tinha que fazer algo. Pode ser que não tivesse nenhuma possibilidade de estar juntos, mas tampouco desejava sua morte, e dado que seu pai tinha partido do castelo atrás deles, aquela era sua oportunidade.
Em conta da humilhação que supunha que vinte homens observassem como se afastava para fazer suas necessidades, Anna fez provisão de toda a dignidade com que contava, aceitou a ajuda que lhe oferecia o escudeiro de seu irmão para descer do cavalo, deu-lhe as rédeas e entrou em atitude régia para a densa folhagem de árvores e samambaias. Assim que esteve fora do olhar se arregaçou as saias e se pôs a correr. De ali não demoraria mais de dez minutos em chegar até o castelo. O que demoraria era convencer para que a deixassem entrar nos calabouços onde albergavam aos prisioneiros. Mas esperava conseguir antes que seu irmão Ewen se desse conta de que tinha desaparecido. Não demoraria muito em figurar-se aonde teria ido. E ao contrário dela, ele iria a cavalo.
Correu através das árvores em paralelo à estrada para que não a vissem, procurando fazer o mínimo ruído possível. Mas as folhas secas e os ramos caídos faziam com que o silêncio fosse impossível. Ouviu um ruído atrás dela e quis gritar de raiva. Como tinham descoberto tão logo sua fuga? Escondeu-se depois de um penhasco em uma tentativa em ocultar-se, mas se encontrou com que alguém pegava seu pulso por trás.
—Me solte — disse, e tentou libertar-se.
Como esperava topar-se com seu irmão ou com algum de seus homens, ao dar meia volta e ver um guerreiro de olhar feroz com elmo e nasal ficou lívida. Deixou escapar um grito de alarme, amortecido pela mão do homem.
—Silêncio, moça! Não quero te fazer dano.
Seu temível rosto não inspirava muito confiança. Tinha a compleição de uma montanha e uns traços toscos e rústicos que se adequavam perfeitamente a seu tamanho. Anna se obrigou a ficar quieta, fazendo ver que acreditava o que lhe dizia, mas depois, assim que ele se relaxou, golpeou-lhe tão forte como pôde com o salto da bota e lhe fincou o cotovelo no mais profundo de seu peitilho de couro, estremecendo-se ao golpear as partes de metal.
O homem deixou escapar uma exclamação de surpresa, mas não afrouxou seu abraço o suficiente para que Anna pudesse libertar-se. Voltou a olhar com frustração e ficou imóvel, dessa vez de verdade. Havia algo familiar nele. Não, nele não. Em seu traje. Anna ficou sem respiração. O elmo escurecido, o cotun de couro negro tachonado com metal, o estranho corte da manta… Se tratava da mesma indumentária característica que levavam seu tio e os guerreiros da floresta do Ayr. Aquele homem formava parte da Guarda secreta de Bruce. Um fato que Anna viu confirmado só um momento depois.
—Duvido que se fosse minha sobrinha acreditaria, Santo.
Anna ficou atônita de surpresa ao ver que Lachlan MacRuairi saía de entre as árvores com outro guerreiro.
—Santo, Templário — disse, assinalando em sua direção — Permitam que vos presente a lady Anna MacDougall. —Fez um gesto com a mão ao homem que a agarrava — Pode soltá-la. Não gritará, a menos que queira ver mortos seu irmão e ao resto de seus homens.
Anna se esfregou a boca mal esteve livre, tentando recuperar as sensações. Olhou a seu redor.
—Só são três.
Seu comentário pareceu divertir sinceramente aos homens.
—Dois a mais dos que precisamos — disse o terceiro deles.
Era só um pouco mais baixo que os outros dois. Anna começava a pensar que ser um gigante recoberto de músculos era condição indispensável para ser membro do exército secreto de Bruce. Sob a sombra de seu elmo com nasal, o homem fazia ornamento de um sorriso tão afável como simpático. Templário, tinha o chamado seu tio. Um nome do mais estranho. Era muito jovem para ter lutado contra os infiéis. Fazia trinta e cinco anos da última cruzada. E ao homem que a agarrava MacRuairi o tinha chamado Santo. Anna percebeu de que tinham que ser apelidos, nomes de guerra.
«Guardião!» Assim tinha chamado o guerreiro arrumado a Arthur na floresta. Seria esse seu nome de guerra?
—O que fazes aqui, tio?
Parecia estranho chamar «Tio» a alguém que não era mais que dez anos mais velho que ela. Não parecia muito maior que Arthur, embora devesse ter trinta e três ou trinta e quatro anos.
—Talvez devessea lhes perguntar eu o mesmo. Por que fugistes de seu irmão e de seus homens?
Não lhe surpreendia que MacRuari não respondesse a sua pergunta. Ou estava reconhecendo o terreno ou vigiando o castelo. Como estavam perto da costa, Anna supôs que teria chegado de navio. Lachlan MacRuairi era um pirata dos pés à cabeça.
—Assim oferecem cobertura ao ataque de Bruce contra meu pai além mar — disse ela, tentando adivinhar seu propósito.
Seu tio encolheu os ombros evasivamente.
—Agora me diga, lady Anna, por que vos encontro correndo através da floresta?
—Preciso retornar ao castelo.
—Por que?
Mordeu o lábio enquanto pensava no que devia lhes contar. Mas sabia que não tinha muito tempo. Já a tinham entretido muito. Custaria muito pedir a Deus ajuda retornar ao castelo antes que seu irmão Ewen a alcançasse. Talvez quisessem levá-la?
—Têm cavalos perto? —perguntou.
MacRuairi franziu o cenho.
—Sim.
Anna respirou aliviada.
—Bem. Pode ser que precise sua ajuda para retornar ao castelo. Preciso me assegurar de que Arthur está bem. —Nenhum deles reagiu, e Anna supôs que assim devia ser. Não sabiam que ela estava a par da verdade — Acredito que o chama de Guardião.
MacRuari amaldiçoou.
—Ele lhe disse isso?
Anna negou com a cabeça.
—É uma longa história. Descobri a verdade por mim mesma. Infelizmente, não fui a única. Meu pai também sabe.
MacRuari voltou a amaldiçoar, dessa vez fazendo uso de um impropério que inclusive o próprio pai de Anna rara vez usava.
—Então… está morto.
—Não — repôs ela, desconcertada por sua veemência — Encarcerado. Meu pai o está interrogando.
MacRuairi cuspiu e um olhar de puro ódio atravessou seus escuros traços.
—Em tal caso desejará estar morto. —A que se referia? Perguntou-se Anna. Seu tio, vendo a confusão em seus olhos, o explicou—: Estive do outro lado dos interrogatórios de seu pai.
Tem uns métodos bastante persuasivos e imaginativos na hora de extrair informação. Se Guardião não estiver morto já, logo o estará.
O estômago lhe decompôs para ouvir suas palavras.
—Meu pai jamais…
Não foi a expressão sombria do rosto do MacRuairi o que a deteve, a não ser a lembrança da conversa parcial que tinha ouvido antes de entrar na câmara de seu pai. «Consiga o que quero. Custe o que custar.»
«Oh, Deus.» Anna se sentiu desfalecer. Seu pai o estava torturando. Sabia que esse tipo de coisas ocorria, claro, mas aquilo supunha uma parte feia da guerra em que não queria pensar. E tampouco gostava de pensar que seu pai pudesse estar comprometido em tamanha crueldade.
—Temos que o ajudar — quase gritou, com lágrimas nos olhos.
O coração lhe deu um tombo em ouvir um grito a pouca distância deles.
—Anna!
—Estão-me chamando. Temos que partir já.
MacRuairi negou com a cabeça.
—Não há nenhuma necessidade de que venhas. Nos encarregaremos de tudo.
—Mas…
MacRuairi cortou seus protestos em seco.
—Se vierem conosco, seguirão-nos. Custará-nos menos trabalho lhe ajudar se não suspeitarem nada. Voltem com seu irmão e continuem a viagem.
—Mas pode ser que necessitem minha ajuda. —Anna desejava ver Arthur por si mesma — Como chegarão ao castelo? Como o encontrarão?
O rosto do MacRuairi adotou uma expressão severa.
—Sei onde está. —Pelo modo em que o disse, Anna soube que ele mesmo estivera ali; sentiu um calafrio. Mas o que lhe gelou o sangue foi a angústia que viu refletida em seus olhos. Deus, o que teria feito seu pai? E o que estaria fazendo Arthur? — Já têm feito suficiente —disse — Se Guardião está vivo, ele mesmo lhe agradecerá.
«Se estiver vivo.» Anna reprimiu suas lágrimas e assentiu, consciente de que tinham razão. O melhor modo de ajudar Arthur era que fossem sozinhos para buscá-lo. Mas isso não fazia mais fácil vê-los desaparecer entre as árvores. Queria ir com eles. «Está vivo», dizia a si mesma. Tinha que estar. Se não fosse assim saberia, porque uma parte dela também teria morrido.
Assim que estiveram fora de seu olhar, Anna começou a correr na direção oposta a que tinha tomado para chegar ali. Ao chegar a um pequeno córrego respondeu às chamadas de seu irmão. Teria que dar algumas explicações, mas, tendo em conta a natureza do assunto, não acreditava que Ewen se visse inclinado a lhe formular muitas perguntas. Tudo que Anna podia fazer era rezar para que se produzisse um milagre. Pois isso era o que necessitariam para resgatar Arthur do virtualmente impenetrável castelo de Dunstaffnage antes que fosse muito tarde.
Arthur os deixava aproximar-se. Afinava seus sentidos para captar qualquer sinal de correria ou chiado e permitia que os ratos se aproximassem o suficiente para os agarrar. Assim podia lhes romper o pescoço com uma mão contra sua própria perna, algo que, dado que somente tinha uma mão operativa, parecia de tudo fortuito. O mal era que essa mão estava unida a um braço deslocado, com o que cada movimento lhe produzia uma dor atroz. Tentou recolocar o ombro por si mesmo, mas não tinha a força nem o apoio necessários.
Acabar devorado por ratos famintos não era exatamente o modo em que esperava morrer, mas não sabia por quanto tempo poderia os manter a raia. Cada vez que desmaiava, suas persistentes dentadas despertavam. Tinha perdido muito sangue e a cada hora que passava estava mais débil e pior respondiam seus sentidos. Logo não seria capaz de voltar a despertar.
Teria matado já umas cinqüentas daquelas asquerosas criaturas segundo seus cálculos, mas havia centenas delas ali abaixo. Estremeceu-se. Quando iluminaram o vão com a tocha para jogá-lo lá dentro, o fundo do fosso se via repleto delas. Uma vez fechado, aquele buraco tinha ficado na mais absoluta escuridão. Dependia de seus sentidos, e estes o abandonavam lentamente. Seus olhos começaram a fechar-se. Estava tão cansado que somente queria relaxar-se durante um…
«Ah!», gritou de dor, despertando à realidade graças a uns dentes afiados como facas que se cravavam em seu tornozelo. Esperneou e o rato voou pelos ares.
Supunha que teria que agradecer ao Dugald o que fosse capaz de agüentar tanto tempo ali. Aquelas horas passadas na escura despensa lhe tinham servido de lição. Sabia que tinha que estar alerta e como antecipar os movimentos dos ratos. Mas as reações de Arthur eram cada vez mais lentas. Cada vez escapava um número maior delas e um número maior lhe mordia a mão. Sabia que não poderia durar muito assim. Não viriam a por ele até que não acabasse a batalha, e como tinha perdido a conta do tempo fazia já horas, não sabia quando seria isso.
«Maldição.» Não era só o horror do movimento dos ratos o que estava deixando-o louco, a não ser saber que seus amigos estavam ali fosse dirigindo-se para uma armadilha mortal e que não podia fazer nada para ajudar. Tinha fracassado. «Fracassado.» Fechou os olhos em uma tentativa de que a amarga verdade se desvanecesse. A languidez se abatia sobre ele. Cada vez lhe parecia mais difícil resistir e não deixar-se levar para essa bendita escuridão da inconsciência. Estava tão cansado…
Seus olhos não voltaram a abrir-se. Nada poderia despertá-lo. Nem os ratos, nem a explosão de mil demônios que faria que os guardas corressem até as portas do castelo minutos depois.
Alguém o sacudia.
—Guardião! Guardião! Maldita seja, desperte! Não temos muito tempo.
Quem era Guardião?
Abriu os olhos só para fechá-los imediatamente ao sentir que a luz da tocha lhe atravessava o crânio como se fosse uma adaga.
Guardião era ele.
Mas como…?
Voltou a abrir os olhos. Essa vez lentamente, permitindo que se adaptassem à luz.
MacRuairi.
Advertiu o alívio que se refletia no rosto do outro.
—Não estava seguro de que seguissem com vida.
A mente de Arthur estava embotada e pensada com lentidão.
—Eu tampouco estava.
MacRuairi se estremeceu, e Arthur percebeu que não tinha bom aspecto, inclusive diante da tênue luz da tocha. Tinha o rosto macilento e seus olhos foram parar de um lado a outro com inquietação. Quase se diria que tinha um ataque de pânico.
—Saiamos daqui quanto antes. Podes caminhar?
Arthur assentiu e tentou incorporar-se por si só. Tomava cuidado de não olhar para baixo. A tocha mantinha aos ratos longe no momento.
—Acredito que sim.
—Melhor. Não tinha muita vontade de tentar te tirar daqui.
MacRuairi lhe estendeu a mão, mas Arthur a rechaçou e as arrumou para ficar em pé por seus próprios meios.
—Está sozinho? —perguntou.
MacRuairi o olhou de cima abaixo, e em seguida fez uma idéia de qual era seu estado. Franziu o cenho ao conscientizar-se por que rechaçava sua ajuda.
—Não. Santo e Templário estão comigo. Falcão queria vir, mas alguém tinha que ficar com a frota. Não ouviu a explosão?
Arthur negou com a cabeça.
—É assim como conseguistes entrar?
MacRuairi lhe ajudou a assegurar a corda ao redor da cintura e entre as pernas. Umas pernas que, embora tremiam como se fossem as de um potro recém-nascido, conseguiram lhe manter em pé.
—Não, mas não está mal como manobra de distração.
MacRuairi se agarrou a uma segunda corda e subiu rapidamente. Depois içou o corpo de Arthur com a outra, o qual não parecia fácil, já que tinha um peso morto ao outro extremo. Mas MacRuairi, além de ser tão daninho como uma serpente, era além disso tão forte como um maldito boi.
A sensação de alívio que assaltou Arthur ao estar fora daquele buraco infernal era virtualmente assustadora. Tinha vontade de chorar como um menino. MacRuairi se desprendeu da manta que levava e a deu. Arthur tinha esquecido que estava nu. Aceitou-a com gratidão, ajustando-a ao redor da cintura e dos ombros o melhor que podia com sua mão maltratada.
—O cheiro de merda de rato acabará desaparecendo.
Arthur surpreendeu-se ao ver um traço de compaixão no olhar do outro. De repente percebeu a razão pela que MacRuairi parecia estar tão perto do ataque de pânico ali abaixo. Conhecia bem. Certamente, devia ter passado por algo similar.
—E o resto? —perguntou Arthur.
MacRuairi voltou o rosto violentamente, como se lhe incomodasse reconhecer essa greta em sua couraça de gelo.
—O resto demora mais a desaparecer.
«Ou não desaparece nunca.» Arthur ouviu essas palavras não pronunciadas.
—Como me encontrastes?
—A moça nos disse que o tinham feito prisioneiro. O resto… imaginei.
«A moça…»
—Anna? —perguntou Arthur com uma voz aguda por sua incredulidade.
—Sim. Tivemos sorte de vê-la.
MacRuairi lhe explicou que estavam reconhecendo o terreno e comprovando que não houvesse suas mensagens no túmulo funerário quando ouviram aproximar-se de um grupo de cavaleiros. Ao reconhecer a Anna a seguiram e notaram como tentava lhes dar escapar de seu irmão e seus homens.
Arthur estava surpreso.
—Tentou escapar?
—Ao que parecia, queria assegurar-se de que estavam bem.
Arthur murmurou uma maldição. Graças a Deus, não fora ela quem o encontrou. Não queria que se inteirasse jamais do que lhe tinha feito seu pai. Era um banho de realidade muito forte. Melhor que pudesse acolher-se a alguma ilusão. Mas saber que importava o suficiente para ir a seu encontro significava muito para ele. Mais que muito. Devia-lhe a vida. E também lhe dava esperanças.
—Oh, não! —murmurou MacRuairi com desgosto — Têm exatamente o mesmo olhar de parvo do MacSorley. Não temos tempo para isto. Contarei o resto mais tarde.
MacRuairi lhe rodeou a cintura com um braço, com cuidado de evitar seu ombro machucado, e lhe ajudou a caminhar até a porta. Chamou duas vezes sem deixar espaço entre um e outro golpeio, e depois fez uma pausa e repetiu a chamada. A porta se abriu.
—Por todos os demônios, Víbora. Estava a ponto de sair para lhes buscar. —Magnus MacKay, o Santo, jogou uma olhar a Arthur e estremeceu — Está bem, Guardião?
Arthur procurou sorrir, mas fraquejou diante da intensidade da dor.
—Não estou em meu melhor momento, mas me alegro muito de os ver. Como puderam…?
Uma explosão estrondosa clamou atravessando a brisa da noite e deixou sua pergunta no ar. «A brisa da noite.» Deus santo: o ataque!
—Que horas são?
—Pouco depois da meia-noite — disse MacKay.
—Tenho informação para o rei.
—Mais tarde —disse MacRuairi — Não temos tempo. Essa era nossa manobra de distração. Se queremos sair daqui teremos que nos apressar.
MacKay e MacRuairi flanquearam Arthur e o levaram do hall ao interior do calabouço. Um rápido olhar ao chão lhe informou do destino que tinham seguido os guardas. Infelizmente nenhum dos corpos pertencia a seu torturante. O ajudante tinha partido com o Lorn. Uma razão mais pela que desejava com todas suas forças que chegassem ali a tempo. Outra conta que devia saldar.
Saíram à torre que albergava o calabouço dos refugiados na escuridão. Embora o pátio estivesse deserto, ouvia-se a comoção que chegava das portas do castelo. Entretanto, em lugar de dirigir-se para ali, começaram a subir pelo adarve, com o que Arthur soube qual era o plano do MacRuairi. Tinham assegurado três cordas à mureta do baluarte que ficava em frente às portas na parte mais afastada, olhando ao lago. Em geral havia um guarda vigiando o perímetro, mas a explosão tinha feito que se desviasse para a porta.
Arthur olhou para baixo na escuridão e fez uma careta de desgosto.
—Antes teremos que lhe arrumar o ombro — disse MacRuairi. Deu a volta, agarrou-o pela base do ombro e lhe ofereceu sua adaga — Preparado?
Arthur pôs o punho de madeira entre os dentes e assentiu. A dor foi extrema, mas rápido. Depois de um momento, já era capaz de girar o braço livremente sobre seu ombro.
—Fez isto antes? —perguntou Arthur.
—Não —disse MacRuairi com um estranho sorriso no rosto — Mas o vi fazer. Suponho que têm sorte de que aprenda rápido.
Uma vez que teve o braço em seu lugar, Arthur pôde deslizar-se corda abaixo com a ajuda dos outros. Quando estiveram todos em terra, MacRuairi os conduziu para uma parte escura do muro exterior. Ao olhar ao chão, Arthur percebeu de que faltavam algumas das pedras e viu que havia um buraco debaixo elas. Entraram virtualmente arrastados.
—Esta é a parte mais antiga do muro —explicou MacRuairi — As rochas quase se pode esmiuçar.
Esse comentário indicou a Arthur que certamente não era a primeira vez que avançava por esse buraco.
Do outro lado os esperava Gordon.
—Por que demorastes…? —disse detendo-se o ver o estado de Arthur — Diabos, Guardião, parecem um asco.
—Isso dizem — respondeu Arthur secamente.
Tomaram seu tempo em reparar o muro, no caso de algum dia voltarem a necessitá-lo, e pouco depois já corriam seguindo a costa. A pouco menos de um quilômetro encontraram a pequena embarcação que MacSorley tinha escondido na cova.
—Têm que me levar ante o rei. O quanto antes possível —disse Arthur. Sobre o horizonte oriental se viam já os primeiros raios do amanhecer suavizando o céu noturno. Teriam que ir a cavalo, já que a rota marinha para o Brander estaria cercada pela frota de Lorn — Espero que cheguemos a tempo.
—O que é que acontece? —disse MacKay advertindo a urgência do caso — O que averiguastes?
Enquanto navegavam para o oeste e penetravam entre a frota de navios, lá onde o lago Etive se encontrava com o mar aberto, no fiorde de Lorn, Arthur explicou com presteza o plano traiçoeiro do pai de Anna, tanto os detalhes da emboscada como sua decisão de atacar antes do fim da trégua.
Gordon soltou uma imprecação.
—Esse filho de puta traiçoeiro…
Os sentimentos do MacKay eram idênticos, mas os expressou em termos muito mais precisos, para depois acrescentar: —O rei será surpreendido.
—Sim —disse Arthur — Lorn escolheu o lugar muito bem.
Arthur lhes falou do estreito caminho e os escarpados de Ben Cruachan.
—Conheço o lugar —disse MacRuairi — Aos exploradores custará muito encontrá-los.
—E por isso temos que os advertir.
MacRuairi negou com a cabeça de modo sombrio.
—Sairão na primeira hora do amanhecer. Inclusive no caso de que chegássemos antes que alcancem a parte mais estreita do caminho, não seria fácil que um contingente de três mil homens dê meia volta. Toda essa zona é perigosa.
—Não é necessário que dêem meia volta —disse Arthur — Tenho um plano. —Seus três companheiros da Guarda mudaram um olhar — O que? —perguntou.
Foi Gordon quem expressou o que todos estavam pensando.
—Não está em condições de lutar. Nós faremos chegar a mensagem ao rei.
Arthur chiou os dentes.
—Eu vou.
Nada evitaria que lutasse. Se tinha alguma possibilidade no mundo de enfrentar-se ao Lorn no campo de batalha, faria uso dela.
—Só conseguirá dar lentidão a nossa marcha —disse MacRuairi sem rodeios — Não têm forças nem para sentar numa mula, como ides cavalgar em nosso passo? E como diabos acha que poderá agarrar as rédeas com essa mão?
Arthur lhe dirigiu um olhar carregado de veneno.
—Deixem que eu seja quem me preocupe disso.
MacRuairi ficou olhando-o nos olhos e depois de uns segundos assentiu.
—Será melhor que encontremos algo com o que lutar.
Chegaram a tempo e Arthur não caiu do cavalo, embora para sua vergonha esteve muito perto de fazer. Como os homens do MacDougall já estavam posicionados tiveram que rodeá-los pelo sul. Cruzaram com o rei a pouco mais de um quilômetro do lugar. Este não era dado a mostrar seu aborrecimento, mas Quando Arthur lhe informou dos planos de Lorn o fez. Perjurou e chamou Lorn por todos os nomes vis que cabiam sob o sol.
—Pelos pregos de Cristo, como é possível que não soubéssemos? —perguntou sem dirigir-se a ninguém em particular, apesar de que todos os guerreiros sentiram sua parte de culpa pelo que teria significado um desastre. E também o rei, pois sabia melhor que ninguém que não tinha que confiar no código de cavalaria.
—Escondam-se entre as rochas de uma ladeira escarpada —disse Arthur — Não é fácil vê-los se não está procurando.
Pelo olhar que MacLeod dedicava aos rastreadores, Arthur temia, por mais que pudesse compreendê-lo, que pagariam muito caro.
—Dizia que tinham um plano? —perguntou o rei.
—Sim. —Arthur se ajoelhou e desenhou um mapa no chão com um pau — Podemos vencer ao Lorn em seu próprio terreno. Tem a várias centenas de homens nesta posição — disse, marcando um ponto a meio caminho da ladeira — O resto do exército atacará na boca do estreito quando partirem em retirada e os agarrarão entre duas frentes: acima e abaixo. —Arthur assinalou um lugar um pouco mais acima de onde estavam os homens de Lorn — Se enviarem um contingente por cima, seus homens se verão apanhados. Quando a emboscada não der resultados, Lorn se desesperará.
Bruce ficou circunspeto.
—Está seguro de que podemos conseguir que nossos homens cheguem ali em cima? Como descreve, é um terreno escarpado e traiçoeiro. Se nos descobrirem antes de chegar à posição, não servirá de nada.
—Meus highlanders podem fazer —disse Neil Campbell — Conhecem estas terras.
—Está seguro? —perguntou Bruce.
—Sim —disse Neil — Lutam como leões, mas se movem como gatos.
—Eu os levarei —disse Arthur — Conheço bem o terreno.
Neil seguia sendo um dos guerreiros mais formidáveis do reino, mas tinha cinqüenta anos e não estava tão em forma como antes. Bruce pousou o olhar sobre ele, e Arthur se deu conta de sua incerteza. Apesar de que limpara o sangue e a sujeira antes de por a indumentária de guerreiro que lhe tinham emprestado, de que enfaixou a mão e o pulso, de que tivesse comido e bebido suficiente uisgebeatha para devolver a cor a seu rosto, sabia que ainda parecia que uma besta raivosa do inferno o tivesse tragado, tivesse o amassado com seus dentes e o tivesse cuspido depois. Antes que o rei pudesse negar-se, acrescentou: —Posso fazer, senhor. Não me encontro tão mal como parece delatar meu aspecto.
Era uma mentira, mas não muito grande. Saber que estava perto da hora da verdade com o Lorn lhe dava novas forças.
—Ganhaste esse direito, sir Arthur —disse o rei — Sem sua informação, isto poderia ter sido um desastre.
Arthur sabia que a lembrança de Dal Righ fazia dois anos, quando se viu empurrado pelo Lorn a fugir para salvar a vida, seguia muito fresco na memória do rei. Bruce chamou a seu lado a um de seus cavalheiros mais jovens e de um dos mais dignos de confiança que tinha: sir James Douglas. O único que o fazia sombra, o sobrinho do rei e outrora renegado, sir Thomas Randolph, estava com o MacSorley no oeste, preparando o ataque pelo mar em caso de que fosse necessário.
—Douglas, quero que vá com ele —disse o rei. Ato seguido fez gestos a outro dos guerreiros. Gregor MacGregor, o companheiro original de Arthur nos Guardiões dos Highlands, avançou entre outros — Estarão à frente dos arqueiros —disse. E depois se dirigiu a Arthur—: Tome tantos homens como necessita.
—Será melhor que ponham algalguns MacGregor no lote, Guardião — disse Flecha assim que o rei se voltou para se consultar com o Neil e MacLeod — Não podemos permitir que os Campbell levem toda a glória.
Arthur conseguiu esboçar um sorriso. Deus, era fantástico estar de volta. Era fantástico poder brincar a respeito das velhas rixas de sangue entre os MacGregor e os Campbell que em outro momento tinham feito deles inimigos acérrimos.
—Assim são os MacGregor, sempre dispostos a tirar benefício do duro trabalho dos Campbell.
—Necessito algo com o que impressionar às moças —disse MacGregor.
Campbell soltou uma gargalhada. MacGregor não necessitava nada para impressionar às moças. Isso já fazia seu rosto por ele, e não poucas vezes se colocaram com ele por causa disso.
—Se necessitais ajuda para melhorar seu rosto bonito, posso te mandar ao tipo que me fez isto —disse, assinalando seu próprio rosto.
MacGregor fez uma careta de dor.
—O tipo se empregou a fundo. Isso tenho que reconhecer.
—Assegurarei-me de que chegue seu castigo quando o agarrar — disse Arthur secamente.
Ambos sabiam que aquela não seria uma conversa muito longa.
Neil tinha acabado de falar com o rei, e quando viu que Arthur se dispunha a preparar aos homens, levou-o à parte.
—Está seguro de que te encontra bem, irmão? Qualquer um entenderia que não tenha vontade de seguir. Já tem feito suficiente.
«Eu entenderia», era o que queria dizer. Arthur percebia isso no olhar de seu irmão Neil. Mas ambos sabiam que esse não seria o final.
—Estarei bem —lhe assegurou— quando tudo isto tiver acabado.
Capítulo 25
O plano de Arthur funcionou. Junto a Douglas, MacGregor e uma pequena leva dos homens de seu irmão, dirigiu o grupo de guerreiros para um lugar elevado nas montanhas do Ben Cruachan, por cima de onde estavam escondidos os homens do clã de Lorn. Os guerreiros do MacDougall desdobraram uma chuva de flechas e penhascos sobre os «despreparados» soldados assim que o exército de Bruce passou pelo desfiladeiro que havia debaixo deles. Mas o ataque «surpresa» dos MacDougall recebeu outro ataque surpresa como resposta. Os guerreiros de MacDougall ergueram o olhar, horrorizados, e descobriram que Arthur e seus homens deixavam cair outra chuva de flechas de sua própria colheita e saltavam sobre eles como se fossem uma aparição. Ao perder o elemento surpresa e a posição estratégica nas alturas, a emboscada dos MacDougall se transformou em uma disparada. Apanhados entre duas frentes, abaixo e acima, seus homens foram massacrados. Quando Lorn lançou seu ataque frontal na boca do desfiladeiro, em lugar de enfrentar a um exército no que reinava o caos se encontrou com as poderosas hostes de Bruce fortemente armadas.
Arthur correu para descer a montanha e unir-se à luta, atravessando o barulho de soldados em luta com um só objetivo em mente: encontrar ao Lorn. Conseguiu distinguir a Alan MacDougall ao outro lado da ladeira, concentrando seus homens com a valente intenção de liberar uma nova carga. Mas a valentia não seria suficiente. Esperava pelo bem de Anna que se desse conta disso antes que fosse muito tarde.
O estreito funil do desfiladeiro rebateu em parte a vantagem numérica de Bruce, mas o ataque de Lorn não demorou muito em ver-se frustrado. Arthur alcançou a primeira linha de frente justo quando a vanguarda dos MacDougall começava a romper-se. O rei Robert, à cabeça de seu exército, lutando junto a seus cavalheiros de confiança e os membros dos Guardiões das Highlands, ordenava perseguir os fugitivos do clã inimigo. Em sua frenética tentativa de retirar-se ao castelo de Dunstaffnage, muitos dos MacDougall fossem derrubados ou se afogaram ao tentar cruzar a ponte sobre o rio Awe.
Tinham ganhado! A tentativa dos MacDougall de superar ao Bruce fracassava e o rei obtinha sua revanche pela batalha de Dal Righ. Acabavam de romper o cerco do clã mais poderoso das Highlanders. A vitória era doce, mas não seria completa até que Arthur encontrasse ao Lorn.
No caos da retirada, examinou o contingente de fugitivos em busca de seu inimigo. Aliviou-o comprovar que Alan MacDougall liderava a um grupo de seus homens para terreno seguro. Ao ver MacRuairi junto à ponte, Arthur desceu para encontrar-se com ele.
—Onde está?
Não tinha que dizer de quem falava. MacRuairi cuspiu ao chão e assinalou em direção sul à entrada do lago Awe.
—Nunca saiu de seu birlinn. Esse maldito covarde dirigiu a batalha da água. Assim que seus homens se retiraram, fugiu em direção ao lago.
Arthur amaldiçoou sua sorte, negando-se a acreditar que, depois de ter chegado tão longe, lhe seria vedada a possibilidade de justiça no último momento.
—Quanto tempo faz disso?
—Não mais de cinco minutos.
Em tal caso, ainda tinha uma oportunidade. Mas necessitaria os dotes de marinheiro do MacRuairi se queria o apanhar. Lorn possuía três castelos no lago Awe, mas Innis Chonnel, o antigo forte dos Campbell , era o mais novo e melhor fortificado. Ali seria onde iria.
Arthur olhou ao MacRuairi com parcimônia.
—Gostaria de uma regata?
MacRuairi, conhecido por ser um dos mais temidos e ousados piratas sobre o mar, sorriu. Ao menos pareceu que esboçava um sorriso.
—Eu reunirei aos homens. Encarregue-se do navio.
Arthur estava já correndo para a ribeira do rio para chegar ao porto. Era uma corrida que não tinha nenhuma intenção de perder. Nessa ocasião, John de Lorn não escaparia a seu destino fatal.
****
Anna não podia fazer mais que esperar. Mas não saber o que acontecia depois dos grossos muros do castelo do Innis Chonnel era uma autêntica tortura. O coração se encolheu. Não, tortura não. O seu não era nada comparado ao que Arthur estava sofrendo. Nem sequer podia suportar pensar nisso, embora não parecia ser capaz de outra coisa mais que de imaginar o que estava acontecendo, sem saber se estaria vivo ou morto. Era coisa de loucos! Como conseguiria seu tio entrar no castelo, por não falar de o resgatar? «Teria que ter ido com eles.» Assim ao menos saberia o que tinha passado. Mas seu tio estava certo. Não teria conseguido mais que levar a seu irmão de volta ao castelo.
As horas passavam com lentidão. Quando não estava ajoelhada, rezando na pequena capela, Anna procurava manter-se ocupada. Chamaram à batalha à maioria dos soldados, de modo que somente ficava uma pequena reserva de guardas no castelo para defendê-lo. Na noite anterior, já sem mais falsas visitas ao córrego, assim que o grupo chegou ao castelo, Anna organizou aos homens para que preparassem as câmaras, refrescassem o grande salão e fizessem inventário das provisões com que contavam.
O castelo de Innis Chonnel fora construído mais ou menos na mesma época que Dunstaffnage. Apesar de não ser tão grandioso, era uma edificação similar. A fortaleza quadrada fora construída sobre uma base de penhascos no confinante sudoeste da ilha. Seus altos muros de pedra rodeavam um pequeno pátio. Nos cantos tinham levantado duas torres, a maior das quais servia como torre da comemoração, enquanto a segunda se utilizava como calabouço. Entre ambas estava o grande salão. Sobre os muros se edificaram outras dependências de madeira menores que acolhiam os barracões, os arsenais, os estábulos e as cozinhas.
Parecia estranho pensar que aquele tivesse sido o lar de Arthur em sua infância. Anna sempre desfrutava de suas estadias no castelo junto a seu pai, mas nesse momento se sentia estranha. Como se não devesse estar ali. Como se fosse uma intrusa. Sabia que aquilo era ridículo. Os castelos mudavam de mãos com freqüência durante a guerra. Mas depois do que Arthur lhe tinha contado… Anna estava dividida. Dividida entre o pai ao que ainda amava, embora sem dúvida idealizava, e um homem a quem deveria odiar, apesar de não poder fazer. Não queria compreender por que Arthur fizera aquilo, mas o compreendia. Podia entender a lealdade que regia seus atos porque era quão mesma regia os dela. A lealdade ao rei e à pátria. A lealdade ao clã e à família. Sim, isso entendia especialmente.
Arthur era um highlander. Sangue por sangue, assim era como funcionavam as coisas nas Highlands. De modo que vingar seu pai se convertia em seu dever. Mas ela sabia que não se tratava só de vingança. Uma parte dele seguia sendo aquele menino que tinha visto morrer seu pai e seguia pensando que teria que ter evitado. Justiça. Vingança. Mas também significava expiação. Não obstante, compreendê-lo não oferecia a Anna resposta alguma. O que se podia fazer quando amar a um significava perder ao outro?
Depois de uma noite sem descanso, passou o dia seguinte a sua chegada de modo muito similar ao primeiro deles: rezando e procurando manter-se ocupada todo o tempo para não pensar no que acontecia depois dos grossos muros do castelo. Se por acaso seus temores pelo destino de Arthur não bastassem, também tinha a batalha. Quem sabia se nesse momento não teria deixado já de existir o mundo no que ela tinha vivido sempre. Os homens aos que amava podiam jazer mortos ou feridos, e mesmo assim, nos protegidos limites do Innis Chonnel, sobre a incomunicável ilha do lago Awe, tudo tinha uma aparência normal. A brilhante luz do sol seguia brilhando sobre as mansamente onduladas águas do lago, os pássaros seguiam voando e o vento úmido ainda pulverizava seus cabelos quando passeava pelo pátio.
Distinguiu a figura do Ewen, que saía da torre da comemoração.
—Alguma notícia? —perguntou, apesar de saber a resposta de antemão, já que em caso de que se aproximasse alguém ouviria a chamada.
—Não, ainda nada — respondeu seu irmão negando com a cabeça.
Sabia que a espera também era dura para Ewen, embora por diferentes motivos. Ele queria lutar. Não obstante, se culpava a ela seu confinamento em Innis Chonnel, nunca deixou ver.
Anna mordeu o lábio inferior.
—Oxalá soubesse como vão as coisas.
—Oxalá —disse seu irmão com um sorriso — Mas assim que haja algo do que informar…
—Aproximam-se navios, senhor! —gritou um dos guardas da torre vigia.
Anna seguiu a seu irmão em sua fulgurante descida da escada para as almenas. Somente podia distinguir as três velas quadradas que se aproximavam deles do norte a toda velocidade.
—É o pai — disse Ewen com uma voz desencorajada.
Um pressentimento fez que Anna se estremecesse de cima abaixo.
—O que acontece? Algo vai mal?
Ewen não se incomodou em tentar ocultar a verdade.
—Disse que somente viria em caso de que fosse necessário.
«Necessário.» A Anna lhe deteve o coração. Isso significava que o faria se tivesse que bater em retirada.
Tinham perdido!
Anna cambaleou, sentindo que suas pernas eram como gelatina. Pôs a mão na borda da mureta para recuperar o equilíbrio, observou como se aproximavam os navios e rezou por que houvesse outra explicação. Algo diferente que Bruce tivesse ganhado. Então entreabriu os olhos para proteger-se dos brilhos do sol e viu algo mais.
—O que é isso? —disse, assinalando justo trás dos navios que se aproximavam — O que é isso que vem trás?
Mas Ewen estava já ditando ordens.
—Atacam-nos! A seus postos!
Os homens saltaram à ação imediatamente enquanto Anna, incapaz de desviar o olhar, observava aterrorizada como se aproximavam os navios. Ao que parecia, os homens de seu pai não pareciam conscientizar-se de que os perseguiam.
—Atrás! —gritou em uma tentativa de lhes avisar.
Mas o vento levava sua voz.
—Anna, sai daqui!—gritou-lhe Ewen — Isto não é seguro. Vá à torre e tranca a porta.
Anna assentiu em silêncio e fez o que seu irmão lhe pedia. Uma vez dentro, correu para sua câmara do segundo andar para olhar da seteira. Já que a torre da comemoração estava no canto sul do castelo, não pôde ver os navios até que virtualmente estavam já junto ao embarcadouro. Observou com o coração em um punho como começava a batalha justo a seus pés. Viu seu pai situado atrás de seus homens, gritando ordens ao mesmo tempo em que o navio de guerreiros inimigos chegava… ficou petrificada, com o coração lhe dando saltos no interior do peito. Piscou. Não, não era um sonho. Uma intensa onda de alívio abriu caminho em seu interior fazendo que lhe estremecesse o coração.
Arthur estava vivo. Vestia um traje de batalha que não lhe parecia familiar e embora a simples vista, com o rosto e o cabelo resguardados sob o elmo com nasal, fosse impossível de distinguir dos outros guerreiros, sabia que se tratava dele.
«Graças a Deus.»
Então se revelou a absoluta transcendência de sua presença no castelo. O horror se apoderou dela e a apanhou com seu frio abraço. Se Arthur estava ali, somente podia ser por uma razão. Correu para a porta, consciente de que tinha que fazer algo. Tinha que o deter. Não podia permitir que matasse a seu pai.
Arthur o tinha a frente o momento que tanto tinha esperado. Em certo modo parecia adequado que o encontro final tivesse lugar na pequena ilha do Innis Chonnel, sob a sombra entristecedora do castelo que um dia fora seu lar. A corrida fora acirrada, mas ao final MacRuairi deu fé de que sua reputação era merecida. Oculto pela cegante luz do sol, seguiu aos navios em retirada de Lorn sem que estes se inteirassem de sua presença até alcançar aos três birlinn quando se dispunham a atracar. Somente então dispôs Arthur uma descarga de flechas sobre os despreparados MacDougall.
MacRuairi tinha reunido a quarenta piratas de seu clã, algo que seria um combate desigual, já que os MacDougall os triplicavam em número. Mas os homens de MacRuairi estavam mais que dispostos a aceitar o desafio. Patifes, rufiões, esquartejadores, eram qualificativos generosos para alguns MacRuairi que ganhavam a pulso sua reputação como o maior flagelo dos mares. Mas em terra lutavam com a mesma ferocidade.
Os guerreiros de MacRuairi estavam já saltando pela amurada espada empunhada ao grito de «Pelo leão!», ao mesmo tempo em que seu chefe deixava o navio escondido até pô-lo virtualmente em cima dos do MacDougall. Arthur estava ali mesmo, liderando a carga.
Lorn tinha situado a seus homens ao final do embarcadouro com a esperança de conter aos homens de MacRuairi assim que tentassem tomar a terra. Mas os guerreiros de MacDougall não eram rivais para os selvagens ataques de seus parentes. Apesar de que ambos descendessem de filhos de Somerled, o rei norueguês que tinha governado as ilhas cento e cinqüenta anos antes, lutavam de geração em geração pela supremacia. Os MacDougall a tinham ganhado depois da batalha do Larg e receberam o favor dos reis ingleses, mas essa integração fez que se afastassem muito de suas raízes vikings. Os MacRuairi lutavam como os próprios bárbaros que tinham sido até tão pouco tempo que a maioria deles podia seguir recebendo esse nome.
Romperam o muro de contenção dos MacDougall rapidamente e situaram a batalha sobre as rochosas costas da ilha. Arthur estava em desvantagem ao contar só com um braço, por não falar de seu fraco estado; entretanto, em que pese a encontrar-se longe de suas habituais condições para a luta, defendia-se bem. Abria caminho com determinação entre os soldados sem tirar olho ao Lorn em nenhum momento. Este estava na retaguarda da batalha, rodeado pelo protetor círculo de seus homens, entre os que se encontrava seu ajudante. O sangue de Arthur fervia antecipando o momento.
Os MacDougall retrocediam, e logo ficou claro que as superiores força em número de Lorn não ganhariam a partida. Arthur, envolto em um encarniçado combate com um dos homens de MacDougall, ao qual por desgraça conhecia, ouviu o grito de retirada. Amaldiçoou, consciente de que tinha que deter o Lorn e a seu ajudante antes que alcançassem a segurança das portas do castelo.
«Outra vez não.»
Chamou a atenção de alguns homens de MacRuari e lhes disse o que queria deles. Lutou para abrir caminho até o Lorn seguido por esses mesmos homens, que fizeram racho no círculo protetor de Lorn e tiraram ele e a seu ajudante do grupo. Uma vez que Arthur chegou até ali, os homens do MacRuairi se dispersaram para formar uma barreira atrás dele.
Se Lorn não tivesse a poucos metros da segurança dos muros do castelo, Arthur teria desfrutado mais com sua morte, mas tal e como estavam as coisas teve que despachar ao ajudante com presteza. Por mais habilidade que tivesse aquele homem na hora de torturar, não era rival para Arthur, nem sequer com uma só mão.
Ao fim se voltou para Lorn e o alcançou a escassos metros da porta. Seus homens estavam tão ocupados defendendo-se que nenhum deles pôde ir em sua ajuda. Arthur advertiu a raiva em seus olhos quando John de Lorn ergueu a espada contra ele.
—Como escapou? —perguntou com incredulidade.
—Surpreso de me ver?
Um brilho assassino aflorou nos olhos de Lorn.
—Devia ter matado.
—Sim, teria que tê-lo feito.
—É o culpado de todo este desastre. Traíram meus planos para acabar com esse filho da puta assassino.
—Rei Robert — o provocou Arthur, rodeando-o como a uma presa — Diria que melhor que te acostumem a chamá-lo assim, mas temo que não viverá por aqui tempo suficiente.
E dito isto lhe atirou um golpe.
Lorn estava preparado e arrumou para rebatê-lo, embora com muita dificuldade e tremendo com todo o corpo pelo esforço. John de Lorn, em seus dias um dos mais temidos guerreiros das Highlands, já não significava nenhuma ameaça. A idade e a enfermidade cobraram seu preço. Não era covardia, a não ser a enfermidade o que fez que permanecesse no lago e na retaguarda da batalha. O maldito orgulho de Lorn evitava que admitisse quão doente realmente estava.
O segundo golpe de Arthur o tombou de joelhos. Pôs a ponta da espada no pescoço. A touca de malha não serviria de nada contra o afiado aço de sua arma. O sol se refletia no elmo do ancião de mesmo modo em que tinha feito quatorze anos antes quando Arthur observava da distância como seu pai sustentava a folha ante o pescoço desse mesmo homem e lhe oferecia clemência. Era o momento que estivera esperando. Teria sentido a antecipação dessa cena em suas próprias veias. O sabor da vitória tinha que ser doce. Seus músculos teriam que estar tensos, preparados para propinar a cutilada. Mas não sentia nada disso. Somente podia pensar em Anna.
Se o fizesse, seria para ela o que Lorn sempre foi para ele: o homem que tinha matado a seu pai. Talvez seu perdão fosse algo mais do que tinha direito a esperar, mas se assassinasse ao Lorn destruiria qualquer opção que pudesse ficar. Que honra teria em matar a um homem muito doente para lutar? Seu pai já fora vingado. Lorn estava acabado. Sua derrota no Brander tinha acabado com qualquer opção que tivesse de deter Bruce.
Anna tinha razão. O matar então não seria mais que vingança, e Arthur a amava muito mais que qualquer momento efêmero de satisfação que aquilo pudesse lhe proporcionar. Bom, pode ser que não fosse tão efêmero, mas, em qualquer caso, amava-a mais.
Lorn o olhou com fúria sob o visor de ferro de seu elmo.
—A que estais esperando? Faça de uma vez!
Piedade. Apesar de que até esse momento o tivesse esquecido por completo, aquela fora a última lição de seu pai.
—Renda-se ante o rei e lhe deixarei viver.
O rosto de Lorn se retorceu de ira.
—Prefiro a morte.
—E o que será com sua família? O seu clã? Também quer que morram?
Os olhos do John de Lorn estavam incendiados de puro ódio.
—Prefiro isso antes que me render a um assassino.
—Fará que morram suas filhas por seu maldito orgulho?
Aquilo fazia que o sangue de Arthur fervesse. Conhecia Anna. Jamais iria contra seu pai. A família era tudo para ela.
—Dê a Anna sua bênção. Manterei ela a salvo. Sabes tão bem como eu que está acabado. Mas seu clã pode prosseguirr através de nossos filhos, em seus netos.
A raiva de Lorn estava desenfreada. Sobre seus olhos, frágeis de loucura, ressaltavam as veias de sua têmpora e seu rosto aceso. Desafogou-se proferindo uma enxurrada de maldições vis que lhe deixaram jogando espuma pela boca.
—Jamais será sua! Antes prefiro vê-la morta!
—Pai!
Arthur ouviu o grito angustiado que se erguia atrás dele. Anna. Voltou-se de maneira instintiva e deixou suas costas a mercê de Lorn. Exatamente o mesmo que seu pai tinha feito tempo atrás ante seus próprios olhos.
Capítulo 26
Anna chegou ao pátio justo no momento em que Arthur fazia seu pai cair de joelhos.
Oh, Deus, tinha chegado muito tarde!
Correu mais depressa.
Ewen e outros tentavam defender o castelo lançando flechas de maneira seletiva das frestas do adarve, preparados para baixar a grade assim que seu pai e os outros conseguissem retirar-se ao interior. Os guardas estavam tão preocupados observando o que acontecia no exterior que nem sequer a viram penetrar antes seus narizes.
—Milady! —chamou-a um dos guardas — Não podes…
Anna não os escutava. Avançou alguns metros além das portas, mas não chegou muito longe. Os soldados inimigos tinham formado uma linha que separava Arthur e o pai de Anna do resto dos opositores. Quando ela tentou passar entre eles um dos homens a agarrou.
—Pelas chagas de Cristo! —disse, puxando-a pelo pulso — Aonde acha que vai, moça?
Abriu a boca para gritar ao aterrador rufião que a soltasse, mas então ouviu a voz de Arthur e ficou quieta nos braços do soldado. Não acreditava no que ouvia. Arthur brandia uma espada contra o pescoço de seu pai, a ponto de alcançar a vingança e a expiação que motivava seus atos, quando lhe ofereceu piedade. Ofereceu a seu pai a oportunidade de salvar a todos. Uma oportunidade que, depois do que certamente teria feito, seu pai não merecia. A oportunidade de um futuro.
Se deu conta de que Arthur a amava. «Ama-me tanto que está acima de sua sede de vingança.» Mas se as palavras de Arthur enchiam seu coração, as de seu pai o destroçaram. «Antes prefiro vê-la morta.» Anna escapou das garras de seu captor e retrocedeu, angustiada por um horror e uma comoção que a fizeram gritar. «Não diz a sério.»
Entretanto, ela sabia que sim havia dito a sério. Seu pai preferiria vê-la morta antes que casada com o inimigo, embora a amasse. Aquele cruel rechaço à oferta de Arthur fez saltar em pedaços qualquer raio de ilusão que ficasse. Mas seu grito foi um erro. Um erro mais terrível do que poderia ter imaginado. Sua voz teria que ter-se perdido no infernal estrépito da batalha. Ninguém deveria ter ouvido. Mas Arthur ouviu. Voltou-se ao ouvir sua voz e a espada pareceu perder toda sua força.
«Pai nosso que está nos céus…» Sob a sombra do elmo, a visão de seu rosto golpeado e massacrado lhe revolveu o estômago e provocou um acesso de bílis. Mas o pior dos horrores estava por chegar. Viu o brilho da espada de seu pai pela extremidade do olho.
—Não! —gritou dando um passo à frente. Mas o soldado a apanhou antes que pudesse avançar — Cuidado!
«Calcanhar de Aquiles.» Ela era seu calcanhar de Aquiles, mas não podia permitir que morresse por isso.
Arthur deu meia volta e ondeou sua espada pelo ar para rechaçar o golpe mortal do pai de Anna com suficiente força para arrebatar a espada das suas mãos e fazê-la voar. Então ergueu a espada sobre sua cabeça.
Anna se voltou e protegeu seus olhos do horror que estava a ponto de acontecer. Arthur mataria a seu pai, e depois do que este acabava de fazer não poderia culpá-lo de nada. Esperou para ouvir o horripilante som da morte. Mas o silêncio parecia interminável. Estava tudo tão tranqüilo que percebeu de que a batalha que livrava a seu redor também se deteve.
—Vá — ouviu que Arthur dizia — Tem cinco minutos para levar sua filha e a seus homens do castelo.
O olhar de Anna recaiu de novo sobre seu pai. Seu pai, que seguia com vida. Arthur tinha baixado a espada e se afastava dele, enquanto John de Lorn se pôs em pé com o rosto tingido de uma pátina de raiva desafiante.
—É um estúpido.
—E tens a sorte de que sua filha signifique para mim muito mais que sua mísera vida. Mas lhes asseguro que o rei não sente o mesmo. Parte por seu próprio pé ou faça com grilhões, isso não é de minha incumbência, mas partirá.
Um grito chegou das alturas para confirmar suas palavras.
—Navios, milorde. Seis deles vindo para cá.
«Bruce.»
Lorn não pensou. Reuniu a seus homens e ordenou a Ewen evacuar o castelo e reunir quantas armas pudesse levar consigo.
O homem que a agarrava a soltou. Anna correu, mas Arthur já se fora e ficava de lado junto ao resto dos homens de Bruce, entre os que reconheceu a seu tio, para deixar caminho aos MacDougall. MacRuairi não parecia muito contente com tal acerto, mas depois de um rápido mas violento intercâmbio de palavras Arthur e ele ficaram em silêncio. Arthur não parecia disposto a olhá-la.
Por que não a olhava? Anna tinha vontade de correr a seu encontro, mas o via tão distante e afastado… O coração se encolheu pela incerteza. Sempre tinha pensado que seria ele quem a abandonaria e, entretanto, ali permanecia de pé como um sentinela: firme, incondicional e fiel. Um homem com o que se podia contar. Um homem que derrubaria dragões e se arrastaria através das brasas do inferno.
—Vamos, Anna. Temos que partir.
Ewen tinha aparecido atrás dela e lhe puxava o ombro para tirá-la dali.
—Eu… — titubeou, ao mesmo tempo em que desviava o olhar para Arthur, como se esperasse, como se ansiasse que ele dissesse algo.
Ewen, indeciso, olhou-a um instante e se retirou junto a seus homens. Seu pai deve ter captado aquela troca de olhares.
—Não faça, filha. Nem sequer pense nisso.
Anna olhou a seu pai nos olhos. O homem que tinha amado durante toda sua vida. Um homem que era muito mais complexo do que ela pensava. Era difícil conciliar a figura de seu carinhoso pai com a do homem que acabava de ver nesse dia, apesar de que soubesse que se tratava de uma única pessoa. Por um momento desejou voltar a ser aquela menina que se sentava sobre os joelhos de seu pai e o olhava como se fosse um deus. Voltar para momento em que as coisas eram simples.
Se alguma vez pôs em dúvida o amor de Arthur, já não podia fazer. Não depois do que acabava de fazer por ela.
—O amo, pai. Rogo-te isso…
Advertiu a dor que suas palavras causavam antes que seu olhar se endurecesse.
—Não quero ouvir falar mais nada disto. Faz sua escolha. Mas não te engane. Se partir com ele, jamais voltarei a te ver. Estará morta para mim.
As lágrimas afloraram nos olhos de Anna e lhe ardiam na garganta.
—Não diz a sério.
Mas sim dizia.
—Escolhe — exigiu seu pai com raiva.
Anna se encaminhou para o bote em que a esperava seu irmão com lágrimas caindo pelas bochechas. Arthur, incapaz de ver como se afastava, voltou o rosto.
Tinha ouvido cada palavra da dolorosa conversa que Anna acabava de manter com seu pai. Maldito fosse Lorn por fazer isso a sua filha! Por fazê-la escolher entre os dois. Não tinha por que ser assim. Arthur tinha tentado lhe dar uma saída, mas o filho de cadela não queria acolher a ela. Quase se arrependeu de não tê-lo matado. Quase. Mas quando ouviu a Anna dizer que o amava, soube que tinha feito o correto. Embora isso significasse que devia deixá-la partir. Infelizmente, a dor de sua partida não se atenuava absolutamente nessa segunda ocasião. Ardia-lhe o peito. Seus músculos tremiam pela tensão e contenção e parecia que os rasgavam com uma adaga. Queria detê-la, que não subisse naquele maldito bote. Queria dizer que seu lugar era junto a ele. Que a amava. Pedir que o escolhesse.
Mas não podia fazer mais difícil do que já era. Não estava disposto a fazê-la sofrer mais. Bastou um olhar a seu aflito rosto para que se desse conta do terrível preço que se estava cobrando dela o ultimato de seu pai.
—Sinto muito, Ewen. Explica tudo a mãe —disse de repente — Diga o quanto sinto. Sinto muito, mas meu lugar está junto a ele.
Arthur ficou petrificado. Não podia acreditar no que acabava de ouvir. Voltou-se lentamente e a viu abraçar seu irmão.
Despedia-se dele com aquele abraço.
Arthur ficou sem fôlego.
Anna se separou do abraço de seu irmão e aventurou um olhar em sua direção. A incerteza que esta refletia provocou uma pontada no peito de Arthur que rompeu até o último fio de contenção que ficava. Depois de uns poucos e largos passos chegou a seu lado. A voz de Arthur lutava com o esforço por conter a emoção que brotava em seu peito.
—Está segura? Não têm por que fazer. Protegerei a ti e a tua família o melhor que possa, embora partam.
Anna sorriu, com os olhos velados pelas lágrimas.
—Que sejas capaz de fazer isso é a razão que me faz estar segura disso. O amo. Sou sua, se ainda me quiser.
Deus santo, se ainda a queria… Arthur se esqueceu da sujeira e o pó que o cobria, por não falar do fedor da batalha, e tomou Anna em seus braços com um suspiro de alívio que saiu do mais profundo da alma. De um lugar que, pensou, jamais voltaria a abrir. Descansou a bochecha sobre sua cabeça, absorvendo a sedosa e dourada calidez da fragrância de seus cabelos, e a apertou fortemente contra si, muito emocionado para falar. Mas não tinha que dizer nada. A maneira com que ela o rodeava com seus braços e punha sua bochecha contra seu cotun dizia tudo. Tinha escolhido a ele. Não podia acreditar. Jamais pensou que poderia sentir-se de tal modo. Nunca pensou que esse tipo de felicidade lhe estivesse destinada. Mas sua alegria ficava moderada pela consciência de saber quão difícil devia ser para ela.
Separou-se de Anna a seu pesar. Ela ergueu o olhar, acariciada pelos raios do sol, que deixavam em seus belos traços uma luz dourada e suave. Uma luz que se estendia por seu interior como se fosse um quente abraço. Sentiu como se enchia seu interior. Era um homem afortunado.
Ao conscientizar-se de que ainda não tinha respondido, fez uma careta com a boca.
—Se por acaso não o adivinhastes, isso significa um sim.
O sorriso de Anna fez que parasse seu coração.
Pensava que seu destino fosse permanecer sozinho, mas agora sabia que simplesmente estivera esperando que ela chegasse. Juntos confrontariam qualquer obstáculo ou desafio que a vida lhes proporcionasse. Incluindo a seu pai. Arthur a apertou contra si em seu lado enquanto Lorn caminhava para o cais para ocupar seu lugar entre seus homens. Quando passou junto a eles sem lhe dirigir o olhar, Arthur notou que Anna se cambaleava. Apertou-a contra si com mais força, com o desejo de protegê-la contra isso. Aquele filho de cadela estava lhe destroçando o coração.
—Pai! —exclamou com um fio de voz.
Lorn se voltou para olhá-la com expressão gélida. Mas não estava tão pouco afetado como queria aparentar. Nos olhos do ancião havia uma dor real.
—Não há nada mais que dizer. Tomaste sua decisão.
Anna negou com a cabeça.
—Escolho amar aos dois. Mas meu futuro está junto a Arthur.
Lorn a olhou com atenção, e por um instante Arthur pensou que claudicaria. Mas o homem aplacou seu gesto e deu meia volta para partir sem dizer uma palavra mais, condenado por seu próprio orgulho. Cortando suas relações com ela assim, não fazia mais que prejudicar a si mesmo. Anna era a luz, a cola que unia as pessoas a sua volta. Sem ela, suas vidas seriam mais escuras. Arthur sabia. Tinha comprovado em sua própria carne.
Desejava poder economizá-la dessa dor ou sofrer por ela, mas o único que podia fazer era permanecer a seu lado enquanto via como seu pai e seu clã se afastavam no navio. Quando viraram para o lago e desapareceram de seu olhar, Arthur a pegou pelo queixo para que o olhasse nos olhos.
—Juro-te que me assegurarei de que nunca te arrependas disto.
Anna lhe ofereceu um sorriso vacilante através do brilho de suas lágrimas.
—Não farei. É a única decisão que podia tomar. Eu te amo.
Arthur se inclinou e a beijou com doçura. Sua boca era inclusive mais doce e suave do que recordava.
—E eu amo muito a ti.
Queria dizer muitas mais coisas, mas o resto teria que esperar. Os reforços chegariam de um momento a outro.
—Qual é seu quarto? —perguntou Arthur.
Anna ruborizou. Parecia envergonhada.
—Aquela acima, com vista para o lago.
Teria que ter imaginado.
—Eram meus aposentos.
Anna abriu os olhos de par em par e se apressou a dizer:
—Mudarei…
Arthur negou com a cabeça, cortando em seco suas palavras.
—Fique, assim saberei onde te encontrar. —Gostava de pensar nela ocupando seu aposento. Arthur olhou para trás e viu os navios aproximar-se — Vai até lá. Há certas coisas que tenho que atender. Irei te buscar quando tiver acabado.
Anna estirou o braço para acariciar seu queixo.
—Seu pobre rosto.
Arthur fez uma careta de dor.
—Já sei que estou horrível.
Seus olhos se encheram de culpa.
—Deus, Arthur… Sinto tanto.
—Nada disso, moça — repôs ele negando com a cabeça — Isso se acabou. Não podemos mudar o passado. Tudo que podemos fazer é viver o presente e planejar o futuro.
Um futuro que só momentos antes parecia sombrio e agora transbordava de esperança. Observou-a partir, consciente do perto que estivera de perdê-la. Mas agora que estava com ela, Arthur jurou que jamais a deixaria partir.
Não a fez esperar muito. Anna ouviu como batia na porta com suavidade apenas meia hora depois de que zarpassem os navios. Os homens de Bruce não ficaram muito tempo, mas mesmo assim parecia estranho ver que o pátio de armas se enchia de soldados inimigos. Não, inimigos não. Ao escolher ao Arthur também escolhia ao Bruce, embora supôs que levaria algum tempo familiarizar-se com o que em realidade significava aquilo. No momento, simplesmente tentava acostumar-se com a idéia de que não sabia quando poderia voltar a ver sua família, se é que chegaria a fazer. Ao negar-se a se render ante Bruce, a seu pai não ficava mais alternativa que seguir o mesmo caminho até a Inglaterra que tinha tomado meses antes John Comyn, o conde de Buchan. E suspeitava que sua mãe, seus irmãos e suas irmãs logo partiriam junto a ele.
Mas por mais difícil que fora tomar aquela decisão, Anna sabia que tinha escolhido bem. O amor cego que tinha por seu pai era o de uma menina que pensava que ele jamais faria nenhuma maldade. Entretanto, o amor que sentia por Arthur era o de uma mulher. Uma mulher que entendia que as pessoas, inclusive aquelas às que amava, cometiam erros. O perdão era parte do amor.
Ao abrir a porta e vê-lo ali o coração lhe deu um tombo. Sua enorme envergadura enchia a soleira e tinha que encolher-se para entrar no aposento. De repente aquela pequena câmara dava a impressão de ser minúscula. O ar estava impregnado do aroma de sabão. Banhara-se, tirado a armadura e vestia com uma camisa limpa, túnica e meias, que, suspeitava Anna, teria tomado emprestados de algum dos membros de seu clã que partiram. Mas não foi a visceral consciência de sua presença o que a fez jogar-se em seus braços e afundar o rosto em seu amplo e quente peito, a não ser a infantil expressão de incerteza que aparecia seu rosto.
Anna apreciou o suspiro de alívio que percorria o corpo de Arthur ao rodeá-la com seus braços e agarrá-la.
—Encontra-te bem? —perguntou Arthur.
Anna apoiou o queixo sobre seu peito para o olhar e assentiu.
—Estava preocupado?
Uma mecha de cabelo molhado lhe caiu sobre a testa.
—Sim, mais do que queria admitir.
—Tomei uma decisão, Arthur. Sabia o que dizia. Pode ser que em algumas ocasiões não seja nada fácil, mas jamais me arrependerei disso. —Seu irmão Alan tinha razão. Merecia a um homem que a amasse com a mesma intensidade que ela amava. Um homem que derrubasse dragões e se arrastasse sobre as brasas do inferno por ela. Arthur fazia isso e ela jamais o deixaria escapar. Anna se deixou abraçar um instante antes de voltar a falar—: Obrigado pelo que fez. Sei que… — A emoção a embargava — Sei que não foi fácil.
Seu rosto se escureceu, mas somente por uns segundos.
—Jamais me arrependerei disso — disse repetindo suas palavras com um meio sorriso — Salvar a vida de seu pai é um pequeno preço a pagar pela felicidade que recebo em troca.
Anna mordeu o lábio.
—Mas o que passará com Bruce? Não estará zangado porque o deixasse partir?
Arthur fez uma careta.
—Se podemos tomar a primeira reação de seu tio como sinal, provavelmente sim. Mas o rei me deve alguns favores. Acredito que com isto saldamos as contas. Enquanto seu pai abandone a Escócia, estará inclinado a compreendê-lo.
Inclinado. De repente Anna se deu conta de que somente notava uma mão de Arthur nas suas costas. Libertou-se de seu abraço e ao baixar o olhar viu que sua mão esquerda tinha uma pomposa bandagem. Não tinha notado antes porque Arthur levava as luvas.
—O que passou a sua mão?
—Está quebrada — disse Arthur com total naturalidade.
Ficaram olhando-se nos olhos, e Arthur respondeu sua pergunta tácita. Anna só precisou olhar seu maltratado rosto para saber como tinha acontecido.
—Que mais?
—Algumas costelas — respondeu ele, encolhendo-se de ombros — Vários cortes e alguns hematomas. Nada que não possa curar — Houve algo em seus olhos que indicou a Anna justamente o contrário — Não é mais do que mereço pelo que lhe fiz.
—Não — repôs ela negando com a cabeça de maneira categórica — Não diga isso. O que fizeram foi horrível, mas jamais teria exigido tal castigo —continuou com lágrimas nos olhos — Não é que o tenhamos tudo muito fácil, verdade?
Arthur a agarrou pelo queixo e negou com a cabeça.
—Não, amor, mas te prometo que isso mudará. Acabaram-se as mentiras. Acabaram-se os segredos. —Sorriu, franzindo o cenho — Em qualquer caso, já conhece os mais perigosos.
Que formava parte do exército secreto de Bruce.
—Por que te chamam Guardião?
Houve um momento incômodo quando Arthur olhou a seu redor no aposento em busca de algo onde sentar-se e percebeu de que não havia mais que a cama. Não obstante, sentou-se na borda e fez gesto a Anna para que se sentasse junto a ele. Ela notou que tomava cuidado em deixar uns centímetros de separação entre ambos enquanto explicava.
Tinham-no obrigado a abandonar o treinamento antes dos outros para que ocupasse seu posto como espião. A decisão de usar nomes de guerra fora feita em sua ausência. Alguns dos nomes saíram das brincadeiras que se fazia entre eles e outros, como o seu, provinham de suas habilidades.
—Então eu tinha razão —disse Anna com alegria— quando pensava que seria um rastreador perfeito.
Arthur riu.
—Sim, embora não me fez nenhuma graça. Tentava ocultar minhas habilidades, mas parecia pensar em outras coisas.
E em outras coisas começou a pensar Anna. Aproximou-se um pouco mais dele, deixando que seus seios lhe roçassem o braço.
—E o que ocorrerá depois?
Arthur parecia tentar conter-se por todos os meios.
—Agora acredito que será melhor que eu vá. Não deveria estar aqui contigo deste modo. Não sem um sacerdote.
Anna riu e pôs uma mão sobre a perna. Seus potentes músculos se esticaram debaixo de sua palma.
—Não acredito que goste de ter a um sacerdote aqui conosco.
Arthur apertou os dentes; de fato, pareceu apertar todos os músculos de seu corpo.
—Refiro-me até que estejamos casados.
—Tenho a impressão de que é um pouco tarde para nos pôr cerimoniosos, não?
—Não subi com a intenção de… - Arthur não continuou — Maldita seja, Anna, deixe de fazer isso. —Agarrou sua mão e deteve sua incursão pelo interior da coxa — Tento fazer a coisa certa.
—Quer dizer que anteriormente não fez certo? —Anna piscou com exagerada inocência.
Arthur a olhou com recriminação.
—Sabes perfeitamente que não é isso a que me refiro. Aquilo foi absoluta e totalmente perfeito.
Acabou a provocação. Quando ergueu o olhar de novo o fez com todo o amor de seu coração.
—Por favor, Arthur. Preciso me sentir assim uma vez mais. —Anna necessitava a cercania. Necessitava a conexão. Precisava saber que tudo iria bem. Seus olhos se abriram de par em par — A menos que não sejas capaz. Esquecia que…
Arthur a deteve com um ardente beijo que penetrou até o mais profundo de sua alma.
—Claro que sou capaz, maldita seja.
E, assim, procedeu a lhe mostrar com todo luxo de detalhes quão capaz era. Lenta, profunda e meigamente, com todo o amor que albergava em seu coração. E quando os últimos estremecimentos de prazer começaram a extinguir-se, quando ele sustentou seu corpo nu contra o seu arroxeado e maltratado, Anna soube que nos braços daquele fornido e firme guerreiro encontraria por fim a paz.
Epílogo
Castelo de Dunstaffnage, 10 de outubro de 1308
A paz fazia bem, tanto para a Escócia como para Anna. Menos de dois meses depois da derrota de seu pai no Brander, Bruce ganhou a batalha dos grandes líderes da Escócia. Seu avô, Alexander MacDougall, rendeu-se depois de um breve assédio ao castelo de Dunstaffnage, enquanto que o conde de Ross fez o mesmo depois de poucos dias. Bruce perdoou a vida do homem responsável pelo encarceramento de sua mulher, de sua filha e de suas irmãs, assim como da condessa de Buchan, um ato que dava fé do desejo que tinha de ver a Escócia e a seus nobres unidos sob uma mesma bandeira.
«Pelo bem da Escócia.» Anna tinha que admitir que essa filosofia a impressionava. O homem em si…Bom, procurava manter a mente aberta. Tantos anos defendendo uma causa não se esqueciam em questão de semanas. Mas o que Bruce tinha planejado para esse dia faria bastante para que mudasse de opinião. Sabia o que significava aquilo para Arthur.
Seu olhar passeou pelo grande salão e cruzou a maré de membros do clã reunidos em celebração. Alguns deles lhe pareciam familiares, embora quase todos eram estranhos. Tomaria um tempo, mas Anna prometeu que conheceria todos eles. Aquele seria seu lar. Bruce tinha concedido a guarda do castelo de Dunstaffnage a Arthur em gratidão a sua lealdade e pelos serviços prestados. Além disso, sua próxima missão tampouco o afastaria muito. Passaria os seguintes meses fiscalizando o paradeiro de Lorn e Argyll em sua totalidade e riscando mapas de quanto encontrasse.
Arthur tomou a mão de Anna e a apertou carinhosamente.
—Está contente, meu amor?
Anna ergueu o olhar para o homem que estava sentado junto a ela no estrado, um homem que se convertera em seu marido nessa mesma manhã. Lágrimas de alegria cobriram seus olhos ao olhar suas bonitas feições, que já apenas viam pequenos traços do calvário que tinha sofrido.
—Sim, e poderia ser de outra forma? Ao fim tem feito de mim uma mulher honrada e talvez possa voltar a olhar ao pai Gilbert nos olhos.
Arthur riu. Esse profundo e harmonioso som, muito mais livre agora, seguia sendo capaz de lhe arrepiar a pele com um quente formigamento.
—Já te disse que teria que ter partido antes.
—Tinha frio… — Anna fez um biquinho com os lábios.
—Ofereci-te uma manta antes de ir.
—Não queria mais mantas — disse com a mesma teima que a tinha metido em problemas desde o começo.
Queria a ele. Acostumou-se a dormir do seu lado em Innis Chonnel e fora difícil habituar-se de novo ao retornar ao Dunstaffnage no mês anterior. Ver-se às escondidas não era nem metade de excitante e íntimo. E, é obvio, o principal problema de ver-se às escondidas era a possibilidade de que os descobrissem, justamente o que tinha acontecido fazia uma semana, quando o pai Gilbert pegou Arthur saindo de seu aposento.
—Esta noite não necessitará mais mantas — disse ele com um olhar longo e cálido.
Anna não pôde evitar ruborizar-se, apesar de que nos últimos dois meses tivesse perdido a inocência em muitos sentidos, alguns deles de jeitos mais reveladores.
—Acredita que se darão conta se sairmos agora? —perguntou Arthur inclinando-se sobre ela.
O suave sussurro de seu fôlego no ouvido a fez estremecer. Mas o que lhe provocou brilhos de calor entre as pernas foi a mão que se movia de maneira possessiva e determinada sobre sua coxa. As carícias de seu dedo recordavam a sua língua. E se recordava sua língua, não podia esquecer-se de sua boca. E se recordava sua boca, tinha que lembrar-se da maneira em que a tinha despertado essa manhã fazendo-a chorar de prazer. O mesmo dia das bodas, o muito desrespeitoso velhaco!
E então recordou como tinha pago sua diabrura com a mesma moeda incitando-o com sua própria língua. Recordava o delicioso sabor salgado de sua pele, aquela coluna de carne aveludada introduzindo-se cada vez mais profundo em sua boca. A maneira em que o tinha espremido até o final com a sucção de seus lábios, rodeando a grossa e potente cabeça de seu membro com a língua até que Arthur implorasse por não poder conter-se mais. O modo que acabou por perder o controle e lhe sustentara a cabeça com as mãos para meter até o fundo de sua garganta, fazendo que os gritos guturais do alívio retumbassem em seus ouvidos.
O corpo de Anna começou a derreter com a doce calidez da excitação. Então recordou onde estava e se sobressaltou. Afastou-lhe a mão, confiando que ninguém os tivesse visto. Pelo amor de Deus, se tinha os olhos entreabertos! Era ela quem devia o distrair e não ao contrário.
—Não podemos sair. Não até que… — Se deteve ao conscientizar-se de que talvez houvesse falado demais — Somos os convidados de honra.
Arthur pôs cara de surpresa, olhando ao outro extremo da mesa no que havia vários assentos vazios.
«Pelos pregos de Cristo!» Se deu conta. Pois claro que tinha feito. Não havia nada que escapasse a aquele homem tão observador. Anna o agarrou pela mão.
—Vamos, deveríamos dançar.
Ficou circunspeto, sem mover um dedo.
—Passa algo, Anna? Atua de um modo estranho.
Os olhos se puseram como pratos.
—Pois claro que não. Somente quero dançar.
Um sorriso maroto torceu seu gesto.
—Temo que terá que me dar uns minutos.
—Por que?
Arthur baixou o olhar até sua virilha, e as bochechas de Anna se ruborizaram ao ver seu volumoso pacote. Ao que parecia não era a única que estivera relembrando. Olhou do outro lado da mesa, onde estava sentado MacGregor. Este fez uma sutil negação com a cabeça, depois da qual ela voltou a olhar de novo a seu marido, que seguia circunspeto.
—Está segura de que não é por…? Sei que sente falta da sua família.
Um sorriso amargo se desenhou em seus lábios.
—Sinto falta deles, mas isso não significa que não seja feliz. E meu avô está aqui — disse inclinando a cabeça em direção ao chefe dos MacDougall, sentado a poucos assentos de distância de onde estava o rei. Bom, onde estava o rei até um momento.
Uma vez tomado o castelo, sua mãe e suas irmãs receberam permissão para seguir a seu pai e seus irmãos no exílio, mas Bruce queria o apoio de seu avô. Se seria capaz de ganhar o ou não era algo que Anna não sabia, mas estava contente de ter ao menos a um de seus familiares com ela no dia de suas bodas.
E é obvio estava Escudeiro. Um dia obrigaria Arthur que lhe contasse como tinha conseguido tirar o cachorrinho do castelo enquanto este estava sob assédio. Anna ficou a choramingar como uma idiota ao vê-lo e teve que explicar a um confuso Arthur que chorava de felicidade. Após, não houve um só dia que não jurasse que se arrependia assim que o mascote o perseguia, mas ela sabia que em realidade não se importava nem a metade do que dizia. A aceitação, ou melhor dizendo, a confiança no afeto parecia agora mais fácil. E que Arthur se esforçasse tanto por vê-la feliz era algo que a comovia até o extremo. Quando fez o mesmo com seu irmão Alan, antes que o castelo caísse e de que sua família fugisse para Inglaterra, quase a tinha matado da alegria. Ver seu irmão, sabendo que não compartilhava a decisão de seu pai e que não cortaria as relações com ela completamente, era mais do que Anna poderia esperar. Alan era leal a seu pai, mas essa lealdade não estava brigada com seu amor por ela.
Sim, tinha muito que agradecer a seu novo marido.
—E o que tem a ti, Arthur? Sei que certamente te decepciona que não estejam aqui todos seus companheiros da Guarda.
Anna não sabia de todos os detalhes da Guarda de elite de Bruce, nem tampouco perguntou, consciente de que esse segredo preservava a segurança de seu marido. Mas sabia que se tratava dos melhores guerreiros de elite na Escócia, o melhor do melhor em todas as disciplinas de guerra. Sempre pensou que havia algo especial em Arthur, mas nunca imaginou quão especial era.
Também tinha adivinhado algumas das identidades por sua própria conta. Seu tio. Os dois homens que o acompanhavam e tinham ajudado a libertar Arthur, Gordon e MacKay. O bonito até dizer chega do Gregor MacGregor, que tinha formado parte do ataque tantos meses atrás. Seu rosto era difícil de esquecer. E parecia certo suspeitar que o ilhéu de feroz aspecto Tor MacLeod era outro deles, assim como esse nórdico extremamente encantador, Erik MacSorley. Ambos estiveram sentados junto ao rei com suas esposas, embora nesse momento só elas permaneciam ali.
Pode ser que não soubesse todos os detalhes, mas Anna sabia o suficiente para compreender quanto significavam esses homens para Arthur, embora não fosse consciente disso. Entretanto, seria.
Arthur encolheu os ombros como se aquilo não lhe importasse realmente.
—Há paz no norte, mas nas fronteiras continuam as revoltas. Estou seguro de que teriam vindo se fosse possível. Gordon se casará logo. Talvez consiga vê-los todos nesse dia. Há muito que fazer antes que o rei atenda a seu primeiro Parlamento na próxima primavera — continuou, depois de uma pausa — Estou contente de que meus irmãos possam estar aqui. É a primeira vez que estamos todos juntos na mesma estadia há anos.
Sir Dugald e sir Gillispie se renderam junto a seu avô e Ross. Surpreendentemente, não pareciam guardar rancor de Arthur; entretanto, pela expressão de sir Dugald enquanto discutia com sir Neil, não se podia dizer que seus sentimentos fossem os mesmos para seu irmão mais velho.
—Pois pelo que parece, poderiam ter esperado mais tempo.
Arthur sorriu.
—Sempre foram assim. Rivais encarniçados, inclusive quando pequenos. Eu acredito que essa é a razão pela que Dugald se alinhou junto aos ingleses durante tanto tempo, para não ter que acatar ordens do Neil. Já se arrumarão. A seu devido tempo.
Anna advertiu que Arthur voltava o olhar ao redor.
—Está preparado para dançar? —perguntou com inquietação.
Arthur arqueou uma sobrancelha.
—Estou preparado para ir à cama.
O olhar dela se voltou de novo para Gregor MacGregor de maneira inconsciente. Para seu consolo, dessa vez o guerreiro assentiu. Entretanto, quando voltou o olhar para este Arthur tinha os olhos entreabertos.
—Importaria de me dizer por que cada vez que menciono a cama olha ao MacGregor? —Anna se ruborizou — Vai me dizer do que se trata? —exigiu com aborrecimento — Está tramando algo. E não me diga o contrário, porque posso pressentir.
Anna ergueu o queixo, molesta com sua acuidade.
—Acreditava que seu calcanhar de Aquiles fosse eu.
—E é —disse Arthur com um gesto brusco da mão — Mas não o dele.
Não parecia fácil surpreender a alguém que estava pendente de cada matiz, que notava qualquer mudança e advertia qualquer movimento a seu redor. Inclusive tinha percebido as mudanças de seu corpo antes dela e a informou que seria melhor que adiantassem as bodas ou seu filho seria muito grande para ter só dois meses de vida.
Anna o obsequiou com um olhar de suficiência.
—Está ciumento. —Deixou que seu olhar voltasse a recair sobre o fundo da mesa e ficou olhando de maneira pausada, como se o estivesse apreciando — É bastante bonito esse teu amigo.
Sua cara feia piorou mais ainda.
—Pois não será por muito tempo, se continua olhando-o assim. E não me respondeste.
Anna soprou e se deu por vencida.
—Está bem, mas queria que fosse uma surpresa.
—O que queria que fosse uma surpresa?
Depois de um breve passeio além das portas do castelo Arthur descobriu a razão para tanto subterfúgio. De pé numa clareira da floresta, com o halo laranja do sol do entardecer atrás dele, erguia-se o rei Robert Bruce ante um obelisco, investido com toda a cerimônia real que lhe supunha. Junto a ele, alinhados como um pano de fundo, com seus traços mascarados sob os elmos com nasal cobertos de breu, esperavam os outros dez membros da Guarda secreta de Bruce.
Arthur se deteve sobre seus passos e lhe dirigiu um rápido olhar de incredulidade.
—Tiveste algo que ver nisto?
Anna negou com a cabeça.
—Foi idéia do rei Hoo… —começou, detendo-se o ver o rosto que punha seu marido — Foi idéia do rei Robert —se corrigiu, embora esse título ainda não saía de seus lábios com naturalidade — Minha missão era te distrair —disse fazendo uma careta — Uma missão em que, ao que parece, fracassei.
Arthur a agarrou em braços e a beijou.
—Pois eu acredito que a cumpriu que maneira admirável.
Anna transbordou de alegria.
—Vá. Estão esperando.
Por fim Arthur teria a cerimônia da que nunca pôde gozar. A cerimônia que lhe fora negado por seu papel como espião. Aqueles homens eram tão parte dele como ela mesma. Anna cruzou os braços sobre seu ventre. E como logo seria seu bebê.
—Não demorarei muito — disse Arthur trás beijá-la de novo.
—Estarei esperando.
«Sempre.» Do mesmo modo que ele retornaria sempre para ela. Aquele homem que a todo momento olhava à porta como se quisesse fugir, tinha encontrado o lugar ao que pertencia. E em um mundo no que a paz era tão frágil como uma parte de cristal, Anna tinha encontrado a rocha em que apoiar-se.
Observou-o dirigir-se para eles com o peito cheio pelo orgulho e felicidade. Uma vez que chegou lá, Anna começou a afastar-se. Entretanto, mal teve percorrido alguns metros mais à frente do círculo de árvores quando duas mulheres a detiveram.
—Aonde vai? —perguntou em um sussurro Christina, a mulher de Tor MacLeod.
Anna tentou não sentir-se intimidada por sua beleza, mas parecia impossível. Christina era tão deliciosa e refinada como uma princesa de conto de fadas, sobretudo ao compará-la com o aspecto aterrador de seu marido, que parecia tirado das páginas arrancadas de algum livro antigo sobre mitologia nórdica.
—Eu… pensava que não pudesse olhar.
A segunda das mulheres sorriu. Embora não era tão incrivelmente formosa como Christina Fraser, havia algo sereno e agradável em Elyne, a esposa do descarado pirata Erik MacSorley. Anna ficou perplexa quando descobriu que era a filha do conde de Ulster, um amigo íntimo do rei da Inglaterra. Mas também era irmã da esposa encarcerada do rei Robert, Elizabeth. Outra família dividida, ao que parecia.
—Acham que não —disse Elyne — Mas isso não vai me deter. Não tive oportunidade de ver a de meu marido. Não perderia isso por nada do mundo.
—Não se zangarão? —perguntou Anna.
Christina lhe dirigiu um sorriso insolente.
—Superarão. Além disso, quero ver que tipo de marca lhe põem.
Anna a olhou com surpresa.
—Já tem uma. O leão rampante. Pensei que todos os homens o tinham.
—Assim é —respondeu Christina — Mas decidiram acrescentar outra pela aranha da cova. Conhece a história?
Anna assentiu. A história da aranha de Bruce na cova formava já parte da lenda.
—Para honrar a ocasião, Erik decidiu acrescentar uma em forma de gargantilha ao redor de seu braço que parece uma teia de aranha — disse Elyne — Como é marinheiro, incorporou também o birlinn nele —acrescentou com um sorriso — Uma vez que outros o viram, todos decidiram fazer um. —Elyne, entre risadas, ergueu o olhar ao céu como dizendo: «Homens».
—Venha — disse Christina, agarrando-a pelo braço e arrastando-a de novo para as árvores — Já começaram.
As três mulheres contemplaram juntas das sombras como Arthur se ajoelhava ante o rei e tomava o lugar que lhe correspondia por direito próprio entre seus companheiros da Guarda, seus amigos.
«Inquebrável», dizia a gravação na espada que Bruce lhe entregou. Anna não podia estar mais de acordo.
Fim
Nota da Autora
A batalha do Estreito de Brander foi chave na guerra de independência da Escócia. Não só representa um exemplo da mudança de estratégias de Bruce, pois este deu uma emboscada a quem pretendia lhe dar uma, mas sim também assinala a precipitada queda em desgraça dos MacDougall e a mudança de poderes na política das Highlands Ocidentais para outro ramo de descendentes de Somerled, os MacDonald, e também para os Campbell, que se beneficiariam do infortúnio dos MacDougall.
Há certo desacordo entre os historiadores na hora de datar a campanha de Bruce em Argyll após a qual John de Lorn fugiu da Escócia e a queda do castelo de Dunstaffnage. Decantei-me pela data mais convencional do verão do ano de 1308, mas há quem opine que a capitulação final de Argyll não foi antes do ano de 1309.
Embora a forma como narro a batalha seja fictícia, incorporei muitos dos acontecimentos reais, entre os quais se inclui John de Lorn dirigindo seus homens de um birlinn à beira do lago, já que se supunha que estava recuperando-se dessa enfermidade que tinha propiciado a trégua do ano anterior. Diz-se ainda que ao falhar seu ataque, retirou-se a um de seus castelos.
Mas há um detalhe em particular da batalha que foi o que me deu a idéia para a história. Li algo a respeito de um explorador que supostamente tinha advertido ao Bruce da emboscada, com isso salvou sua pele. Aquilo soava como um trabalho perfeito para meu rastreador de elite Arthur Campbell.
O personagem de Arthur Campbell está inspirado vagamente em Arthur de Dunstaffnage, o irmão, ou pode ser que o primo do Neil Campbell. Tal e como sugere seu apelido, foi renomado governante do castelo de Dunstaffnage depois da guerra. Algo que encaixava à perfeição com minha heroína MacDougall, embora Anna seja um personagem fictício e o nome da esposa de Arthur, se é que a houve, não apareceu. Curiosamente, sim existiu um compromisso de matrimônio entre Arthur e Christina das Ilhas MacRuairi, embora nunca chegaram a casar-se.
O que também se adequa à perfeição com Arthur, e deste modo com seu irmão Dugald, é que se dizia que esteve no lado dos ingleses durante um tempo e mais tarde passou ao de Bruce. Arthur de Dunstaffnage não é, provavelmente, o mesmo Arthur progenitor do clã MacArthur. Parece mais plausível que este Arthur proviesse de outro ramo da família, possivelmente mais antiga, os Campbell do Strachur (que significa «filhos de Arthur»). Mas há muita confusão e existem diferentes teorias respeito à linhagem dos MacArthur, incluindo a descendência direta do rei Artur. Um antigo provérbio das Highlands diz: «Não há nada mais antigo que as colinas, MacArthur e o diabo».
Neil Campbell foi um dos partidários de Robert Bruce mais importantes e leais. De fato, ao final Neil acabaria casando-se com a irmã do rei, Mary, quando a libertaram do cativeiro da jaula nas alturas do castelo do Roxburgh, ao redor do ano 1310. Mary voltaria a casar-se depois da morte de Neil, algo comum em uma época em que havia tantos viúvos e viúvas. Aos leitores do primeiro livro da série, O Guerreiro, talvez lhes interesse saber que seu segundo marido foi Alexander Fraser, o irmão da Christina.
Um interessante ponto e aparte na história do Neil dá certo colorido à época: parece ser que sua primeira esposa era filha de Andrew Crawford. Neil e seu irmão Dugald, que foram nomeados guardiães das duas irmãs Crawford, decidiram tomar como esposas de maneira literal: seqüestraram-nas.
John de Lorn, também conhecido como John Bacach (John o Coxo) e como John de Argyll, foi uma figura destacada na política das Highlands Ocidentais, responsável não só da morte do Colin Mor Campbell na batalha de Red Ford, mas também da de seu parente Alexander MacDonald, lorde de Islay, o irmão de Angus Og.
Lorn sofreu enormemente por sua lealdade aos Comyn, a quem estava ligado por matrimônio, e também por seu ódio ao Bruce, algo que, dado que este assassinou ao Comyn o Vermelho, era uma circunstância bastante compreensível.
O uso de mensageiras femininas por parte de Lorn é minha invenção, mas a frustração das missivas que se perdiam não é. A esse período sobreviveram algumas epístolas, entre as que se inclui uma carta recentemente decifrada do oficial do Banff dirigida ao Eduardo II em que se queixa dos assassinatos de seus mensageiros. Do mesmo modo, a frustração de Lorn ao ficar sozinho frente a Bruce e a dificuldade de conseguir apoios dos barões locais está apoiada na correspondência entre Lorn e Eduardo II, em que o primeiro afirma que se vê obrigado a uma trégua com Bruce porque está doente e «os barões de Argyll não me emprestam ajuda alguma» (Robert Bruce, G.W.S. Barrow, Edinburgo University Press, Edinburgo, Escócia, 2005, P. 231).
Não há fonte que confirme a doença de Lorn. O ataque ao coração e os conseguintes problemas coronários são de minha própria invenção, algo que resulta ajustar-se bem a sua propensão a esses violentos ataques de cólera. Paralelamente, também se desconhece a fonte da que provém a enfermidade debilitante que golpeou ao Bruce no inverno do ano 1307. Embora certos rumores históricos a identificam com a lepra, as últimas hipóteses apontam que devia ser escorbuto. Qualquer que fosse a causa, sacudiu com força ao novo rei e, conforme se diz, esteve a ponto de acabar com ele. Supostamente, Bruce foi levado nas costas por seus homens à batalha de Inverurie.
O broche que Lorn leva no capítulo dois, do qual se diz que o arrancaram de Robert durante da batalha de Dal Righ, segue em poder do chefe dos MacDougall, e sua última aparição em cena é tão recente que somente faz cinqüenta anos. Não obstante, alguns peritos asseguram que o broche em questão provinha de um período anterior.
A batalha de Red Ford ocorreu de maneira diferente de como eu a retratei. Mais que uma emboscada, John de Lorn se encontrou com o Colin Mor junto a um córrego que desembocava no Loch na Streinge (mais tarde chamado Allt a chomhla chaidh, quer dizer, o córrego do encontro). A discussão degenerou em uma briga e este em uma batalha. Os MacDougall se viram superados em número, e parecia que perderiam, até que um arqueiro disparou sobre o Colin o Grande detrás de uma pedra e o matou.
Até onde chegava o poder dos Campbell nas imediações do Loch Awe antes da guerra é algo que não se tem ciência certa, mas já que o fizeram magistrado municipal de Loch Awe perto do ano 1296, podemos presumir que não foi insignificante. Embora se acredita que os Campbell detiveram a propriedade o castelo de Innis Chonnel anterior a dos MacDougall, cuja existência está confirmada no ano 1308, os historiadores não estão seguros disso. Não obstante, no momento em que transcorre o livro, o castelo estava nas mãos dos MacDougall. Lorn menciona em uma carta ao rei Eduardo os três castelos que possui em Loch Awe.
O ódio entre Bruce e os MacDougall só rivalizava com o de seus parentes os Comyn. A «perseguição de Buchan» que seguiu à batalha do Inverurie (ou batalha de Barra) de 23 de maio de 1308, a qual tem lugar a princípio do livro, parece ser uma das poucas ocasiões nas que Bruce deu rédea solta à vingança. A destruição foi tão devastadora que se diz que demoraram anos em recuperar-se e que se falou dela durante gerações inteiras.
Pelo contrário, o rei Robert sim que aceitou a rendição de William (Uilleam II), o conde do Ross, sem tomar represálias pelo papel que tinha desempenhado Ross na captura e posterior encarceramento das damas de Bruce (sua esposa, sua filha, suas irmãs e a condessa de Buchan). Não muito tempo depois da rendição de Ross, seu filho Hugh (Aodh) casaria-se com a irmã de Bruce, Mathilda.
Conforme contam, Alexander MacDougall, lorde do Argyll, era muito velho e estava doente no momento da batalha do Brander. Rendeu-se ante Bruce depois do assédio ao castelo de Dunstaffnage e atendeu ao primeiro Parlamento do rei em março de 1309, mas depois acompanhou a seu filho no exílio, onde morreu em 1310.
Como é habitual, alguns dos castelos que são mencionados no livro são conhecidos com outros nomes. O castelo de Auldearn se conhece também pelo Old Even e o castelo de Glassery (ou Glassary) conhece-se como castelo do Fincharn.
A tortura medieval dos ratos era muito mais truculenta do que sugiro. Colocavam sobre o estômago da vítima uma jaula fechada com um rato em seu interior e depois a esquentavam em cima. O rato, em sua tentativa de escapar, roía lentamente as vísceras do condenado. Um detalhe… interessante que provavelmente teria dotado ao livro de um «colorido» muito fiel à época.
Finalmente, os leitores do terceiro livro de minha trilogia dos Campbell, O highlander traído, talvez percebam a conexão entre a espada de Arthur e a de Duncan, em que gravaram a lenda: «Inquebrável» que passou de geração em geração dos tempos de Bruce. Apesar de que seja de minha própria mente, é obvio que era costume gravar lendas nas espadas e passá-las ao herdeiro.
Notas
[1] Hora da oração completa. Onde estariam todos juntos, sem exceção e rezariam supostamente o rosário completo.
[2] Uma vestimenta, normalmente bordada com o brasão, usada sobre a armadura.
[3] O Rei Robert the Bruce era chamado pelos ingleses e simpatizantes por King Hood, para insultá-lo por usar uma longa capa com capuz. Hood em inglês significa capuz.
[4] Ela se referiu antes a dores no peito do pai. Possivelmente se trate de insuficiência cardíaca do ventrículo esquerdo, onde ele não “retira” o sangue do pulmão, daí o termo encharcamento.
[5] Um “leão rampante” é representado em pé ereto de perfil, com as patas dianteiras levantadas. A posição das patas traseiras varia de acordo com os costumes locais: o leão pode estar em ambas as patas traseiras afastadas, ou em apenas sobre uma, com a outra também levantada para o ataque; a palavra rampant é frequentemente omitida, especialmente nos brasões mais antigos, pois esta é a posição mais usual de um quadrúpede carnívoro.
[6] Um bardo entre os Highlanders da Escócia, que preservaram e repetiam a tradições das tribos, também, um genealogista.
[7] Adonis era um jovem de grande beleza que nasceu das relações incestuosas que o rei Cíniras de Chipre manteve com a sua filha Mirra. Adônis passou a despertar o amor de Perséfone e Afrodite. Mais tarde as duas deusas passaram a disputar a companhia do menino, e tiveram que submeter-se à sentença de Zeus. Este estipulou que ele passaria um terço do ano com cada uma delas, mas Adônis, que preferia Afrodite, permanecia com ela também o terço restante. Nasce desse mito a ideia do ciclo anual da vegetação, com a semente que permanece sob a terra por quatro meses.
[8] O luchd-taighe eram guardas da comitiva pessoal do chefe, ou em termos coloquiais, a sua posse. Sua finalidade era atender o chefe em todos os momentos. Eles eram bem treinados em armas e ações marítimas, bem como perseguições a outros guerreiros. Era uma grande honra ser escolhido como um dos guardas pessoais do chefe e o prestígio de um chefe era derivada a partir do número destes homens luchd-taighe.
[9] Hobelars eram um tipo de cavalaria ligeira, ou montado de infantaria, durdiante da Idade Média , usado para escaramuças. Eles se originaram no século 13 na Irlanda e, geralmente, montavam os cavalos hobelar, um tipo de cavalo leve e ágil.
[10] O escudo é dividido em 8 triângulos.
[11] Tomás da Inglaterra (ou Tomás da Bretanha) foi um poeta anglo-normando do século XII. Sua única obra conhecida é o poema Tristan, uma das primeiras versões conhecidas da lenda de Tristão e Isolda. O poema foi escrito entre 1155 e 1170, possivelmente para Leonor de Aquitânia, uma vez que a obra sugere uma relação com a corte de Henrique II Plantageneta. Apenas oito fragmentos da obra sobreviveram aos nossos dias, com um total de 3.300 versos, especialmente da parte final da história . Calcula-se que isso represente cerca de um sexto do poema original. A obra de Tomás é contemporânea de outro grande poema sobre o tema de Tristão e Isolda, escrito por um misterioso escritor chamado Béroul e que também chegou de maneira fragmentária aos nossos dias. Comparada à obra de Béroul, o Tristan de Tomás é considerado mais próximo do refinamento do romance cortês.
[12] cama bamba, meio velha ou quebrada.
[13] Os Saxões chamavam ao grupo das pedras eretas (menhires) «Stonehenge» ou «Hanging Stones» (Pedras Suspensas), enquanto os escritores medievais se referem como «Dança de Gigantes». Inigo Jones, famoso arquiteto do século XVII que fez o primeiro estudo sério sobre Stonehenge, considerou-o um Templo romano. Mas William Stukeley, um estudioso de Monumentos e Franco-Maçom do século XVIII, convenceu muita gente de que se tratava de um Templo construído pelos druidas britânicos. Só no século XX os arqueólogos estabeleceram a idade real do Monumento e chegaram a conclusões mais realistas acerca da sua finalidade. A zona de Wiltshire, nos arredores de Stonehenge, é rica em ruínas Pré-Históricas. Woodehenge, Durrington Walls, Cursus e mais de 350 sepulturas são testemunho da intensa atividade comunal dos habitantes, que pastoreavam animais, semeavam trigo e adoravam os seus Deuses na Planície de Salisbury e em torno dela. A construção de Stonehenge teve início cerca de 3500 a. C
[14] Monges beneditinos bastante severos
[15] O aplastapulgares é uma das torturas mais antigas e simples. Embora vários dispositivos mecânicos foram usados para realizar a tortura em si foi o esmagamento das unhas, falanges e juntas em um lento e gradual, estendendo-se a dor por dias, sem causar danos letais para a vítima. O nível de perturbação pode ser controlado, a ponto de quase mutilação do membro. Para crimes de tortura geralmente grave usa-se lentamente, começando com as unhas, passando depois para as falanges e terminando nas juntas, e destruindo completamente as duas mãos.
Monica McCarty
O melhor da literatura para todos os gostos e idades