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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


THEO
THEO

 

 

 

 

 

 

 

A noite de ontem – sábado – foi bem mais silenciosa e tranquila que a anterior, pois Tessa, cansada das atividades do dia, acabou adormecendo cedo, sem nem mesmo jantar, e minha tia resolveu fazer o mesmo.

Fui para meu quarto, entrei no banho e estava passando um pouco de hidratante quando Theo apareceu e ficou parado na porta do banheiro apenas me vendo passar o creme pelas pernas. Eu estava vestindo um pijama levinho de verão – camiseta e short –, e meus cabelos se encontravam presos no coque que costumo usar quando cozinho.

Ele se aproximou, retirou grampo por grampo e espalhou as madeixas sobre minhas costas. Inusitadamente, cheirou meus fios longamente, sem encostar em mim, apenas sentindo meu cheiro. É claro que isso já foi o suficiente para que eu ficasse na expectativa de seu toque, sentindo o ar todo vibrando à nossa volta.

Theo deu a volta completa em mim, encarou-me com um meio sorriso muito sexy e acariciou meu rosto suavemente, sem falar nada. Não sei precisar quanto tempo ficamos assim, parados no centro do banheiro, um de frente para o outro, olhando-nos, e as pontas dos dedos dele roçando minha face.

Foi, com certeza, o sexo mais carinhoso que fizemos desde que começamos a dormir juntos. Não houve grandes malabarismos, nem posições diferentes, muito menos frases safadas e brincadeiras. Estávamos tão sensíveis que nossos toques falavam tudo o que precisávamos saber. Nossas bocas se encontraram em todos os momentos, silenciando gemidos, dividindo o prazer, e nossos corpos se encaixaram tão perfeitamente que não tínhamos vontade de parar.

Theo me penetrou devagar, indo profundamente e parando por lá, sem se mexer, olhos nos meus, então voltava a sair quase por completo, beijava-me e mergulhava dentro de mim. Nossas mãos estiveram entrelaçadas durante todo o sexo, minhas pernas abraçadas em seus quadris, recebendo-o por completo, dando-lhe espaço para que me amasse como quisesse.

E foi assim que me senti, sendo amada, sendo degustada, apreciada lentamente como quem desfruta de algo especial. O orgasmo foi tão intenso que Theo precisou tampar minha boca para que o som não saísse do quarto. Ele não quis gozar dentro de mim – mesmo estando de camisinha – e pediu para que eu o chupasse e recebesse seu esperma na boca. Adoro o jeito que ele goza, os sons que faz.

Tomamos banho juntos depois, conversamos e rimos no boxe e nos deitamos juntos. Nós dois estávamos tão cansados – da noite anterior insone e do dia agitado – que acabamos pegando no sono, e eu só acordei agora.

Abro os olhos e olho para o lado, para o homem deitado na cama comigo, e sorrio. Beijo devagar a ponta do seu nariz, mas Theo não esboça nenhum som ou indicação de que está acordado. Sua mão está repousada em cima da minha barriga, e ele ressona baixinho, perdido em seus sonhos noturnos.

Ajeito-me melhor na cama, ficando mais perto dele, sentindo seu corpo nu junto ao meu e fecho os olhos, agradecida por me sentir tão completa e feliz. Eu já era feliz sozinha, tendo minha filha e minha tia comigo, mas o jeito como ele me trata, como faz amor comigo e me abraça quando vai dormir, fortalece essa felicidade.

A mente sonolenta começa a viajar desconexa, relaxando meu corpo, mas, antes que eu mergulhe em sono profundo, uma luz me incomoda e escuto meu nome sendo chamado:

— Duda! — Tento ignorar e voltar a dormir. — Duda, por favor, acorda!

O tom de voz apavorado de tia Do Carmo me faz despertar, e eu pisco antes de entender onde estamos. Theo se remexe ao meu lado e também desperta.

— O que houve? — é ele quem pergunta, e minha tia fica sem jeito, olhando para mim.

Sento-me na cama segurando o lençol sobre os seios.

— Cadê a Tessa?

— Ela acordou há pouco se queixando de dor de cabeça. E...

Theo acende um abajur, e eu solto um grito ao ver a camisola de minha tia cheia de sangue. Sinto meu corpo inteiro gelar, mas, antes que eu me mova, ele salta da cama, agarrando sua calça de pijama e a vestindo como um louco, indo em direção ao corredor.

— É o nariz dela... — Minha tia, que parece em choque, aponta para a porta. — Melhor ir com ele.

Assinto e me levanto, procurando meu pijama, tremendo de susto. Tessa passou o dia todo no sol, e eu fui muito irresponsável por não ter pensado que isso poderia ser prejudicial a ela.

Droga!

Corro até o quarto que ela divide com minha tia e encontro minha menina com uma toalha no nariz, de cabeça curvada para trás, no colo do Theo.

— Sua tia foi buscar gelo — ele informa parecendo bem controlado. — Eu expliquei para Tessa que isso pode acontecer mesmo, depois de um dia agitado e com muita exposição ao sol.

Concordo e olho minha filha com um sorriso de consolo no rosto, tentando disfarçar o medo que estou sentindo. A cama dela está totalmente ensopada de sangue, bem como o chão ao lado, e até a calça do Theo tem respingos.

— O gelo! — Minha tia o entrega para o Theo, embrulhado em um tecido, e ele tira a toalha e a substitui pela bolsa térmica improvisada.

Vou até o banheiro dela, encharco outra toalha com água bem fria e a coloco sobre a testa de Tessa.

— Já está estancando — Theo me acalma. — O gelo fecha os vasos sanguíneos.

Chego a soluçar, e Tessa me olha preocupada.

— Eu estou bem, mamãe! — Sinto sua mãozinha tocar a minha. — Já passou!

Theo sorri por ela estar me consolando, e eu tento um sorriso para acalmá-la.

— Um banho seria bom agora, não? — pergunto.

— Sim, pode deixar comigo! — Tia Do Carmo ajuda minha filha a chegar ao chuveiro.

Espero as duas entrarem e, só quando escuto a água cair, é que deixo de segurar as lágrimas e soluço feito criança assustada, recebendo um abraço carinhoso.

— Ei, fica calma, está tudo bem!

— Eu fiquei em choque quando vi o sangue, não consegui me mover... — Soluço novamente. — Obrigada!

— Tudo bem! Acontecia muito isso comigo quando era criança, é bem comum — explica. — Às vezes eu ficava jogando futebol ou polo aquático ao sol, e sempre à noite o nariz sangrava.

— Tessa não é assim, Theo. — Seco as lágrimas. — Ela tem andado frágil demais.

— Já consultou um médico?

— Na semana que vem. — Olho para o quarto. — Vou limpar isso tudo aqui, porque ela deve sair do banho e voltar a dormir.

— Eu te ajudo! — oferece e já arranca a roupa de cama suja.

Pego os lençóis e fronha e o encaro.

— Se importa se voltarmos amanhã antes do almoço? Eu fico receosa de estar em um local tão isolado quanto este...

— Tem razão. — Beija minha testa. — Assim que amanhecer, vou chamar o pessoal do barco para nos levar de volta.

— Obrigada!

Ele sai do quarto, e eu limpo todo o sangue, coloco lençol e fronha limpos na cama e aguardo minha menina sair do banho.

— Sente-se melhor? — inquiro, abraçando-a assim que aparece.

— Com sono. — Boceja. — Você deita comigo, mamãe?

Faço o que ela pede e a abraço bem apertado, cantando “Se essa rua fosse minha” bem baixinho para ela, igual quando era bebê.

— Mãe? — Tessa se vira para me olhar. — Viu só como o Theo cuidou de mim? — Assinto, mesmo que preocupada com o brilho nos seus olhos. — Um pai cuidaria assim de mim, não é?

— Tessa... Theo não é seu pai, e nós estamos apenas nos conhecendo melhor. Não crie expectativas, minha filha.

Ela fica séria, depois vejo seus olhos se entristecerem, e ela os fecha, adormecendo. Choro baixinho, apertando-a contra mim, querendo que as coisas para ela fossem diferentes, desejando poder suprir toda a falta que ela sente de uma figura paterna. Sempre pensei que isso não acontecia, que ela estava feliz apenas comigo, mas, ao que parece, não é assim. Contudo, não posso deixar que ela se iluda sobre Theo, bem como não posso me iludir sobre ele.

— Duda — minha tia chama. — Pode ir dormir. Eu fico de olho nela.

— Tem certeza?

— Qualquer coisa, te chamo novamente.

Abraço tia Do Carmo e volto para o meu quarto. Theo está no banho, e aproveito esse tempo para pensar um pouco nessa situação toda na qual me meti e, o pior, envolvi minha família também. Para Theodoros Karamanlis, eu sou apenas sua aventura da vez. Daqui a pouco ele irá se acostumar, entediar-se e partir em busca de uma nova companhia.

O telefone dele vibra em cima do criado-mudo, e vejo o nome “Valentina” aparecer e, em seguida, quando a ligação cai, a notificação de oito chamadas dessa mesma pessoa não atendidas.

Tento me manter à margem, não me importar ou mesmo não questionar quem é a tal Valentina que liga para ele às 3h da manhã, mas então o telefone toca novamente, e ele vem correndo do banheiro e o desliga, olhando sem jeito para mim.

— Desculpe por isso. — Coloca o aparelho de volta no móvel.

— Tudo bem. — Forço um sorriso. — Não é da minha conta!

Dou de ombros e me levanto, passando por ele para ir ao banheiro.

— Ela é uma amiga — Theo começa, e eu paro. — Na verdade, já saí com ela algumas vezes, mas não passou disso e...

— Tudo bem, Theo, você não me deve explicações. — Ele parece aliviado por não ter de explicar, e isso só confirma que há mais nessa situação do que ele está me contando. — Vou tomar um banho e tentar voltar a dormir.

— Tessa já está melhor? — Aquiesço. — Que bom!

— Eu lhe agradeço demais por ter cuidado dela.

— Foi um prazer, Maria Eduarda! Ela é uma menina incrível!

Concordo com ele e, por isso mesmo, tenho que protegê-la de uma decepção. Se alguém tiver que sofrer, que seja eu, afinal, a escolha foi minha nesse envolvimento com Theo, então, que eu arque com as consequências disso. Tessa é minha prioridade, e não há nada que eu não faça por sua felicidade.


— Boa noite, doutor! — Vanda me saúda assim que as portas do elevador se abrem e estende a mão para pegar minha pasta.

Entrego-lhe o objeto, paro diante da mesa do hall, com os envelopes todos separados por assunto e examino a correspondência. Separo dois convites para ler depois e responder, e o resto, junto em uma pilha só para jogar no lixo: anúncios, contas – que, mesmo eu tendo autorizado o envio digital, ainda estão vindo em papel – e uma pesquisa da empresa na qual aluguei o iate para o final de semana.

Eles foram rápidos em mandar a correspondência, afinal, faz três dias que cheguei de Angra e devolvi o iate à marina. Abro o envelope, leio as perguntas e decido ignorá-lo, colocando-o junto aos outros que irão para o lixo.

— Como foi seu dia? — Vanda me pergunta assim que entramos na sala principal. — O jantar já está pronto. Vai comer agora ou depois do banho?

— Depois. — Sorrio, pois essa é sempre minha resposta.

Vanda leva minha pasta para o escritório e segue em direção à cozinha. Fico um tempo parado no meio da sala, olhando para a direção em que ela foi, pensando em como minha vida é rotineira e chata. Isso nunca me incomodou antes, mas agora... me sinto um velho solteirão, só faltando Vanda trazer meus chinelos e o pijama de flanela.

Sempre considerei esse padrão, essa solidão como uma coisa favorável. Contudo, algo mudou essa percepção, e isso já não me satisfaz mais. Acho que, finalmente, estou pronto para dividir a vida com alguém, ter filhos e uma família.

A imagem de Tessa aparece em minha mente.

Eu me diverti com a companhia dela, com suas perguntas curiosas, sua gana por aprender e a risada contagiante que parecia capaz de preencher qualquer vazio. Nunca tinha pensando em ter uma filha, uma menina. Toda vez que aventava a ideia de ter um filho, era um homem, um herdeiro para continuar o trabalho de pappoús.

Ainda quero isso, mas também quero uma menina!

Sorrio ao me lembrar das covinhas no rosto de Tessa e na forma como seus olhos se fecham quando sorri largo. A menina me encantou, temo admitir. Vi tantas características dela que penso que um filho meu teria – não no aspecto físico, mas na personalidade. A menina sabe o que quer, é inteligente, astuta e boa negociadora.

— Achei uma biblioteca! — no sábado, durante a viagem, em certo momento ela entrou na sala onde eu estava com sua mãe e anunciou. — Os livros estão em inglês, e eu ainda não aprendi muita coisa. — Deu de ombros. — Ah, tem uma academia também!

— Mesmo? — Interessei-me, pois já havia visto a biblioteca, mas não esse outro local. — Onde?

— Aqui dentro da casa! — disse empolgada. — Tem até piscina!

— Duda, Rita quer falar com você sobre o jantar — dona Maria do Carmo chamou a sobrinha.

— Pode ir lá. — Pisquei para ela. — Vou explorar a tal academia com a Tessa.

— Não deixe que ela mexa nas coisas!

Assenti, e ela seguiu a tia para a cozinha.

— Vamos lá? — Segui a menina por um enorme corredor e entrei em uma magnífica sala de treino, maior e mais equipada que a minha na cobertura. — É uma puta academia!

— Você me deve cinco reais! — anunciou. Olhei-a sem entender, e a malandrinha colocou as mãos na cintura e ergueu uma de suas sobrancelhas. — Disse um palavrão, põe cinco reais no meu cofrinho. É a regra!

— De quem? — Cruzei os braços.

— Da mamãe! — Riu. — Eu ganho muitas notas da tia Manola, mas ainda falta muito até eu conseguir dinheiro para pagar meus estudos.

Bati a mão nos bolsos da calça.

— Minha carteira não está comigo...

— Tudo bem, eu anoto para você me pagar no futuro — ri muito do jeito como ela falou isso.

— E você? — questionei. — Quando você perde seu precioso dinheirinho? Ou não têm regras para você?

— Claro que têm! Você acha que mamãe é boba? — Neguei, pois tinha certeza de que Duda não era. — Quando falo palavrão, perco cinco reais e, quando deixo de executar alguma tarefa, perco dez.

— Entendi. É um bom acordo!

— É, sim! Mamãe diz que isso me ensina a ter responsabilidade, principalmente com o dinheiro, mesmo porque não tenho mesada, como minhas amigas.

— Não tem? — Ela negou. — Então você usa esse dinheiro para comprar coisas para si?

— Não! Eu guardo para estudar — disse tão séria e convicta que senti orgulho dela. — Eu quero estudar belas artes na França um dia...

— Ah, como sua mãe fez indo estudar em Paris.

Tessa assentiu animada.

— Isso! — Seus olhinhos brilharam com o sonho.

Senti uma enorme vontade de ajudá-la na realização desse desejo de alguma forma. Eu poderia investir nela, fazer uma poupança, ainda mais se ela quisesse se tornar uma artista na área na qual eu já trabalho – pintura e escultura. Entretanto, sabia que Duda nunca aceitaria.

— Eu falei um palavrão do cacete! — Tessa arregalou os olhos. — Eita! Falei outro, né? Merda!

Pensei que ela já estava contabilizando quanto eu lhe estava devendo, mas não, começou a rir desenfreadamente a ponto de saírem lágrimas de seus olhos. Por algum motivo estranho, isso me causou um déjà vu, e voltei no tempo, vendo Kyra rindo desse mesmo jeito, com seus olhos verdes rasos d’água e covinhas nas bochechas.

— Você está burlando as regras! — acusou-me. — Não pode ficar xingando somente para me dar dinheiro!

— Eu?! — fingi-me de santo. — Que absurdo, Tessa, eu nunca faria isso!

— Vou fingir que não ouvi, tá bom?

Pôs as mãos na cintura e me encarou toda cheia de si, dona da verdade, uma pose totalmente igual à da minha irmã. Caramba! Acho que vejo muito da Kyra nela por causa dos olhos. A tonalidade deles é muito parecida.

— Você tem olhos de um verde muito incomum — comentei.

— Acho que puxei ao meu pai. Pelo menos, mamãe diz que sim.

A menina não conhece o pai?

Eu queria perguntar mais coisas, saber de sua história, conhecer melhor a Maria Eduarda através de sua filha. Contudo, não o fiz, porque não achei certo interrogar uma menina. Talvez mexesse em algo doloroso para ela mesma, e eu não queria apagar o brilho de felicidade em seu rosto.

Duda chegou à academia em seguida, enquanto Tessa e eu ainda discutíamos sobre o dinheiro dos palavrões e logo quis saber do que estávamos falando. Tomei uma reprimenda por tentar dar dinheiro a ela burlando regras que deveriam ser educativas. Desculpei-me e abracei a cozinheira, ouvindo as risadas da menina.

Naquela mesma noite tomei um susto enorme ao ser acordado com a garota se esvaindo em sangue. Tentei o mais rápido possível estancar o vazamento no nariz – provavelmente algum vaso sanguíneo que se rompera – e acalmar a Duda.

Desperto das lembranças e pego o celular, abro o aplicativo de mensagens e mando uma para Maria Eduarda:

 

 

Deixo o aparelho no quarto enquanto tomo banho, ainda preocupado com a menina. Desde que chegamos, tenho me comunicado com a Duda todos os dias. Na segunda-feira, ela levou Tessa ao médico, que passou muitos exames e algumas vitaminas. Elas aproveitaram o dia de folga e foram comprar material escolar.

Ontem, terça-feira, Tessa passou o dia bem, embora Duda ainda estivesse preocupada com dores de cabeça, sonolência e uma tosse insistente que tinha voltado. Conversamos bastante por telefone, uma experiência nova, pois sempre trocamos mensagens, e acabamos fazendo sexo via ligação, um falando para o outro o que queria fazer, às 3h da manhã!

Desligo o chuveiro quando meu telefone começa a tocar, sabendo que não é Maria Eduarda, pois a essa hora ela está trabalhando.

— Oi, Vivi! — atendo minha amiga.

— Boa noite, Theo! Anda sumido. O que está acontecendo?

Deito-me na cama.

— Tirei uns dias de folga e fui para a praia. Como você está?

— Praia? Sozinho?

Rio com a pergunta invasiva, mesmo já acostumado ao jeito dela.

— Não, não fui sozinho. — Ela fica muda. — O que, além de perscrutar minha vida, você quer?

— Nossa, Theo, somos amigos, pelo amor de Dadá! — Ela parece indignada. — Só quis saber mais de você! Não posso?

— Pode, sim, claro. Agora já sabe! E aí, o que houve?

— Vai ter um evento na sexta-feira naquele clube de jazz a que você me levou uma vez, lembra? — Concordo, pois, apesar de não me lembrar de quando a levei lá, o Bebop é o lugar onde tem os melhores músicos de jazz de São Paulo e o único que frequento. — Marcus e eu vamos dar uma passada lá antes de irmos para o aniversário da Alicinha. Você vai?

Eu nem mesmo sabia sobre tal evento, mas confesso que é um ótimo programa para sexta-feira à noite.

— Talvez — respondo com sinceridade. — Há muito tempo não vou até lá. Pode ser bom.

— Está certo! Vai convidar a Valentina?

— Você ainda não a convidou por mim? — minha voz sai mais sarcástica do que eu pretendia, mas dou de ombros.

— Claro que não! Eu não vou mais interferir nesse assunto entre vocês. Ela ficou bem chateada com seu bolo no meu aniversário e seu sumiço durante esses dias, e, se você ainda pretender investir nela para uma relação, acho que deveria começar a correr atrás!

— Obrigado pelo conselho, minha wingman28!

— Ah, vai para a puta que te pariu, Theo!

Gargalho ao telefone e a escuto me xingar mais vezes antes de desligar na minha cara. É certo que pedi a ajuda de Viviane para encontrar uma esposa, mas ela está intervindo demais. Agradeço por ter me apresentado Valentina e acredito que outra candidata mais perfeita não há, mas quero fazer as coisas ao meu jeito.

No momento, não posso me concentrar ainda na jovem neta de diplomatas. Espero que consiga em breve, pois sinto que tenho pouco tempo, porém, quero aproveitar um pouco mais essa atração que sinto por Maria Eduarda.

Levo o telefone comigo quando vou jantar, esperando que Duda visualize e responda minha mensagem. Somente quando estou tomando café é que ela vem:

 

 

Fico feliz por tudo estar entrando nos eixos na vida dela.

 

 

Duda responde em seguida:

 

 

Eu nunca entendo o que significa esse “rs”, mas acho que deve ser algo bom. Mesmo teclando em tom de brincadeira, eu realmente sinto falta de Duda – da comida também, mas principalmente da sua companhia. Tenho uma ideia e resolvo arriscar, mesmo achando que é muito difícil que ela aceite meu convite.

 

 

 


Estaciono o carro, ajudo minha companheira a descer do veículo e entrego as chaves para o manobrista. Abro um sorriso para ela, linda, maquiada, em um vestido de encher a boca d´água por ser muito sensual. Ofereço o braço para que se apoie e entro no salão.

— Boa noite, doutor Karamanlis! — A recepcionista já me conhece. — Ficamos muito felizes com sua confirmação para esta noite. — Entrega-me o cartão de consumo. — Divirtam-se.

Olha para a minha companhia e sorri admirada.

Sim, ela está linda, e eu sou um cara de sorte!

Assim que passamos pelas portas duplas à prova de som, o delicioso ritmo do jazz me envolve, e abro um enorme sorriso ao reconhecer Georgia on my mind29 sendo brilhantemente cantada por uma bela mulher negra de voz poderosa e sensualidade indiscutível.

Ah, eu amo este lugar!

Olho em volta, notando as mesas com seus abajures acesos no centro, as paredes de tijolos de cerâmica cheias de quadros de grandes lendas do jazz, soul, gospel e R&B. É tudo muito retrô, e eu gosto disso!

— Este lugar parece cenário de filme antigo! — Maria Eduarda parece deslumbrada. — E essa mulher canta lindamente!

— Valeu a pena perder esta noite na cozinha do Hill para vir comigo?

Ela ergue a sobrancelha e sorri.

— Ainda não sei, a noite mal começou. — Ela se aproxima do meu ouvido. — Talvez se você me levar para sentar a alguma dessas mesas lindas, pedir um champanhe e cantar no meu ouvido, possa já começar a ganhar uns pontos.

Gargalho e aperto sua mão, deliciado com o humor dela.

— Só não prometo cantar. — Ela faz um beicinho, e eu a agarro pela cintura, provando sua boca. — Pelo menos, não aqui, mas quem sabe depois, quando estivermos a sós.

— Esperarei ansiosa! — sua voz soa rouca, sensual.

— Você é linda!

Suas bochechas ficam rosadas, e ela sorri sem jeito. Não consigo entender como essa mulher ainda não está acostumada a elogios! É sensual, linda, inteligente, fode absurdamente bem – respiro fundo ao pensar nisso – e cozinha como uma deusa!

Nós nos encaminhamos para uma das mesinhas reservadas mais ao fundo do clube, mas, antes de conseguirmos chegar lá, escuto meu nome sendo chamado:

— Theo! — Viviane aparece, encarando Duda descaradamente. — Oi, meu lindo, você veio!

Cumprimento-a.

— Decidi vir ver a tal artista da qual todos estavam falando empolgados. — Olho para o palco. — Ela é maravilhosa!

— É, sim. — Concorda, mas não tira os olhos de Maria Eduarda. — Marcus a tem ajudado a alavancar a carreira. — Emito apenas um som de total desinteresse ante o que ela está me dizendo. — Você e sua amiga não querem se juntar ao nosso grupo? — Aponta para uma mesa maior, lotada.

— Não, obrigado — corto-a. — Maria Eduarda e eu vamos nos sentar sozinhos. — Olho para Duda. — A propósito, essa é Viviane Lamour, uma amiga de muitos anos.

— É um prazer — Duda a cumprimenta.

— Maria Eduarda? — Sorri. — Belo nome! Trabalha com artes plásticas ou com música?

Duda franze o cenho e nega com a cabeça.

— Comida.

Viviane arregala os olhos, sem entender, e decido acabar com a interação.

— Duda é chef de cozinha — respondo por ela, encerrando a especulação de Viviane. Ou quase. — Vamos...

— Ah... qual restaurante? — Viviane me ignora e foca em minha companhia.

— Eu não...

— Vivi, nós queremos nos sentar, beber e curtir a música — interrompo Maria Eduarda, bem irritado com minha amiga e sócia. — Foi um prazer vê-la esta noite. Desculpe-me com Alicinha por não ir até a festa dela.

— E para Valentina, o que eu digo?

Decido pôr um fim à sua interferência e inconveniência e saio de perto dela, levando Duda comigo, sem nem mesmo nos despedir. Novamente me sinto incomodado pelo nome de Valentina ter surgido enquanto estou com Maria Eduarda. Ela não diz nada, mas sei que, em sua cabeça, deve estar se perguntando o que eu tenho com a outra mulher, afinal, além de ela ter me ligado à madrugada, fui inquirido sobre ela por uma amiga.

— Aqui está bom? — Aponto para uma das mesas, e ela assente.

— Eu realmente gostei muito daqui! — sua voz apreciativa me faz sorrir, e relaxo, deixando o “emputecimento” com Viviane de lado.

Preciso conversar com minha sócia e lhe impor alguns limites. O jeito como me abordou esta noite, em companhia da Maria Eduarda, não me agradou nada, principalmente ao final, pois ter citado Valentina foi pura provocação com a Duda.

— Fico feliz que tenha gostado. — Esfrego o nariz em sua orelha e pergunto baixinho: — Quer dançar?

Maria Eduarda suspira gostoso, e vejo sua pele eriçada. Percebo que a proximidade não afeta somente a mim, mesmo que minha evidência seja mais visível – o volume em minhas calças –, ainda que sob a luz bruxuleante do clube.

A incrível cantora interpreta All the way30, e estendo a mão para Duda. Quando ela toca minha palma, um frisson perpassa meu corpo, sacudindo tudo dentro de mim. Talvez seja o efeito da música combinado ao clima do local, quem sabe até a expectativa de uma noite intensa com Maria Eduarda. O fato é que não tenho explicação racional para o que ela me faz sentir.

Nossos corpos se juntam, ajustam-se, completam-se maravilhosamente bem. O leve perfume que Duda usa é inebriante e me faz aspirar bem fundo para capturá-lo. Sinto o calor que emana dela em minha medula, entranhado em mim, agitando meu sangue e o drenando para a extremidade do meu pênis, deixando-o tão duro e sensível que o simples roçar dela enquanto dançamos me faz gemer.

— Eu quero você — sussurro, e ela me encara.

— Eu também quero você. — Sorri. — Adorei o convite.

Faço um leve carinho em suas costas.

— Pensei que ia ter que implorar para você vir comigo.

Ela respira fundo, fecha os olhos, desfrutando das carícias enquanto dançamos devagar sob a luz baixa do salão.

— É difícil deixar o Hill...

— Eu sei, Maria Eduarda. — Colo minha boca em sua orelha. — Ter você aqui é tudo o que eu queria esta noite. Obrigado por isso. — Sugo seu lóbulo devagar, disfarçadamente, e ela estremece em meus braços. — Tento ter um encontro normal com você, beber, conversar, mas tudo o que eu quero é me fundir a você. Essa química que temos vibra à nossa volta, encontra lugar em minha voz quando falo o quanto te quero. — Ela geme. — Na minha língua, quando te chupo em busca dos seus orgasmos intensos. E na cabeça do meu pau, quando fodo você.

— Theo, você está me deixando louca com essas coisas que está dizendo! — sua voz está tremente.

— Faz parte desse tesão que nos envolve. — Minha mão alcança sua nuca, e os dedos resvalam pela raiz de seus cabelos. — Quando falo o que me faz sentir, deixo tudo o que não é carne para poder ser mais carne do que qualquer outra coisa quando estou dentro de você.

Ela suspira e encosta a cabeça no meu ombro, e eu avanço com os dedos entre suas madeixas, puxando-as devagar, acarinhando, dançando com ela sem deixar de ter contato com sua pele. Concentro-me no ritmo, no som da voz da cantora para baixar um pouco a temperatura entre nós. Convidei-a para uma noite fora do quarto, e é isso que irei fazer. Vamos conversar, ouvir essa ótima banda que está se apresentando aqui hoje e depois iremos para a cobertura trepar até o amanhecer.

A música troca para I put a spell on you31, e Duda ri sobre meus ombros, seu corpo sacudindo levemente, provavelmente reconhecendo a canção de um dos discos que ficaram em sua posse. Ela gostou mesmo dos tesouros – a vitrola e os discos –, e isso é muito gostoso, ter essa afinidade com ela, dividir essa particularidade minha que poucos conhecem.

Uma ideia se forma em minha cabeça e fica cada vez mais insistente, ganhando corpo, e abro um sorriso ao imaginar a reação dela se eu lhe der um equipamento semelhante e discos de presente. A imagem de Duda com olhos brilhantes e sorriso enorme, dando-me abraços e beijos de agradecimento me congela no lugar.

Que merda eu estou pensando?!

Nada disso cabe aqui, no que nós temos! Não quero imaginá-la emocionada com um presente meu, nem mesmo compartilhar com ela as coisas de que gosto. Não é para ser assim.

Duda me olha questionadora por eu ter perdido o ritmo no meio da dança, e começo a questionar minha sabedoria ao ter vindo aqui com ela.

Certo é que saí com inúmeras mulheres, já fui a boates, restaurantes, eventos, e nunca senti esse frio na espinha que me acometeu agora. Talvez por ser Maria Eduarda comigo, e eu, pelo que conheci dela até hoje, imaginar que isso que estamos fazendo – sexo sem compromisso – não é muito a cara dela.

Essa questão me preocupa, pois não quero magoá-la, não quero que tenha ilusões e que se apegue mais do que deveria a mim. Ela não merece isso! Infelizmente, Maria Eduarda não se encaixa nos meus planos, mas é uma mulher incrível, não merece sofrer de jeito algum.

— Algum problema? — questiona-me.

Nego com a cabeça e toco seus lábios com os meus bem devagar, saboreando a maciez de sua boca, o sabor gostoso de sua língua em busca da minha. Ainda não entendo esse elo que me liga a ela.

Sim! É como na música que está sendo cantada agora! Maria Eduarda colocou um feitiço em mim e me fez ser seu.


Nossa noite começou um pouco tumultuada por conta das sensações que tive ao dançar com Maria Eduarda, mas, depois que nos sentamos à mesa e começamos a conversar e a beber, consegui relaxar novamente e curtir.

Devo admitir que a companhia dela se mostrou deliciosamente perfeita. Além de todo o tesão que permeia nossa interação, conseguimos rir juntos, comentar sobre músicas. Ela falou um pouco dos pais, da morte triste de sua mãe e a tragédia que aconteceu com seu irmão envolvido com drogas.

Foi nesse momento que descobri de onde vinha a tenacidade que noto nela, sua teimosia em não vender o bar, e, mesmo sendo muito contraditório, admirei-a por isso. Pois é, peguei-me torcendo por ela contra mim mesmo! Entendi a importância que aquele imóvel tem em sua vida. É mais do que o negócio, é o receptáculo de suas lembranças.

Venho de uma família toda fodida, toda torta e nunca entendi bem como uma família que se apoia, que se ama, convive. Maria Eduarda, mesmo sobrando apenas sua tia e sua filha, mostrou-me como é isso.

— Quando voltei para o Brasil, estava tudo uma loucura! Meu pai precisava de mim, e eu, dele — bebeu mais um gole de seu vinho ao me contar isso. — Eu precisava de apoio para criar minha filha, apoiar meu pai na luta com meu irmão e ainda tentar erguer o Hill.

— Por isso você desistiu do seu sonho.

Ela negou.

— Eu remodelei o meu sonho. — Sorriu como se isso tivesse sido bom. — Eu não era mais a mesma, não tinha que cuidar apenas de mim. Tessa era o mais importante. Meu pai e meu irmão precisavam de mim, e eu faria tudo por eles. Tia Do Carmo já morava aqui e me ajudou muito, principalmente quando o JP morreu e meu pai desmoronou.

— Ele fez tudo o que podia.

— E o que não podia também! — Deu de ombros. — Depois, ele também se foi, e ficamos as três mulheres da família apenas e...

Eu já não ouvia o que ela dizia, pois tive um esclarecimento sobre as dívidas do pai dela. E se não eram só dívidas de jogos? E se ele pegou emprestado para tentar salvar o filho? E se tivessem outras dívidas e por isso Maria Eduarda economizava e trabalhava tanto?

Tudo recaiu sobre os ombros dela, sozinha com uma tia doente e uma criança. Meu coração se apertou ao imaginá-la abrindo mão da vida maravilhosa que teria – porque eu não tenho dúvidas da sua competência – e caindo nesse emaranhado de problemas. Não foi pena o que senti, mas sim um puta orgulho! Que mulher especial era Maria Eduarda Braga Hill!

Peguei sua mão com força e sorri para ela.

— Você é incrível! A mulher mais foda que eu já conheci. — Beijei sua mão, e ela ficou tão sem jeito que não sabia o que fazer.

— Não! Sabe o ditado que diz que a necessidade faz o sapo pular? Foi isso!

— Não foi, Maria Eduarda, e você sabe disso! — Ela sorriu, agradecendo o elogio, e meu pau ficou duro no mesmo instante. — Eu queria te comer agora!

— O quê?! — Riu nervosa. — Ainda tem bastante gente aqui!

Porra, ela pensou que eu quero fazer sexo com ela aqui no clube?, pensei entre surpreso e muito tentado. Obviamente a tentação ganhou, e eu já a imaginei gemendo e gozando no meu pau aqui, sentada no meu colo.

Tentei dissipar o pensamento, mas, a cada pessoa que ia embora, mais eu me sentia tentado. A turma que estava com Viviane saiu do salão, e ele ficou terrivelmente vazio, suscitando-me a vontade de agarrar Duda e a foder o mais rápido possível.

Perdi o controle quando a banda começou a tocar umas músicas mais dançantes e os clientes que ainda restavam se levantaram para dançar. Duda e eu, na mesa do fundo, próxima ao corredor que levava aos banheiros, ficamos esquecidos com nossas bebidas. Não pensei duas vezes; segurei-a pela cintura e a coloquei sobre mim.

— Theo, o que...

Perscrutei seu corpo, tateando-o devagar por sobre o vestido levinho que usava e descobri que a safada estava sem calcinha. Ela riu quando percebeu que eu havia descoberto sua transgressão e me beijou.

Não foi um beijo como os outros que trocamos a noite inteira, mas um esfomeado, molhado, que me dizia que ela estava tão excitada quanto eu. Eu só pensava em abrir o zíper da minha calça e me enterrar em sua boceta molhada, mas a cadeira era desconfortável, e Duda não tinha onde se apoiar para rebolar empalada no meu pênis.

Merda! Tentei pensar rápido, mas meu cérebro parecia liquefeito. Eu era todo sentidos, apenas tinha noção do quanto nos queríamos e que não iríamos esperar chegar até a cobertura. Tinha que ser naquele momento!

E foi!

Em um ataque louco, levantei-me com ela no colo, olhei todos bebendo e dançando, os garçons parados perto do bar, e a carreguei rumos aos banheiros, entrando na primeira porta que achei.

Era o armário onde havia os produtos de limpeza do bar, que alguém, por acidente, deixara aberto. Passei o trinco na porta enquanto ela se agarrava a mim e a apoiei contra a parede, liberando meu pau com uma mão só. Sem nem ao menos tirar a calça, penetrei-a como um doido varrido, mexendo rápido e forte, gemendo alto, delirando com a sensação de alívio, dor, desejo, com a adrenalina lá no alto por causa do local público.

Há muitos anos que eu não faço isso!, lembrei-me saboreando o sexo proibido, sentindo as mãos de Maria Eduarda apertarem meus ombros. Muito, muito tempo se passara desde que eu tinha comido uma mulher dentro de um estabelecimento comercial, sentindo a apreensão de sermos pegos misturada à adrenalina de trepar em local inadequado.

A vaga lembrança nem persistiu, pois Duda tomou conta de todos os meus sentidos, seu cheiro, seus sons e suas reações. Não estávamos usando camisinha, e eu deveria ter sido mais responsável com isso, mas foi impossível raciocinar ou mesmo parar de comê-la com desespero.

Duda gozou deliciosamente no meu pau, molhando-o, deixando-o patinando em sua excitação, e a contração de sua vagina foi todo o estímulo que eu precisava para me derramar dentro dela em uma loucura sem fim e deliciosa.

Ficamos um tempo parados, eu ainda dentro dela, amolecendo devagar, sentindo o reverberar do orgasmo ainda impactando meu corpo. A consciência me tomou assim que o sangue esfriou e me dei conta da irresponsabilidade que havíamos cometido. Não falamos nada. O ar ainda vibrava, o aroma de sexo recendia por todo o ambiente, e continuávamos mudos, agarrados um ao outro.

Foi Duda quem se moveu primeiro, empurrando levemente meus ombros.

— Estou começando a ter câimbras nas pernas. — Sorriu sem jeito, e eu finalmente me afastei de seu corpo.

Duda se arrumou, mas seus olhos se arregalaram logo depois, e a vi ficar branca de susto.

— Oh, meu Deus! — Ela fechou as pernas rapidamente. — Oh, meu Deus!

Sim, as expressões foram suficientes para eu entender duas coisas: ela sentira minha porra escorrer e se dera conta de que eu tinha gozado dentro dela. Caralho!

— Eu sinto muito — desculpei-me. — Eu não consegui... — Estava bem sem jeito. — Eu sei que não é desculpa e que devia ter sido mais responsável...

— Nós dois! — disse baixinho. — Sabíamos que estávamos desprotegidos, e nenhum dos dois quis parar. — Neguei e quis assumir toda a responsabilidade pelo que acontecera, afinal, já havíamos feito sexo sem camisinha, e, em nenhuma das vezes anteriores, eu fora até o fim. No entanto, ela não me permitiu falar: — Eu preciso passar numa farmácia.

Arregalei os olhos.

— Eu te machuquei?

— Não. — Suas faces coraram. — Eu preciso de pílula do dia seguinte. — Foi minha vez de ficar branco. — Sei que elas foram inventadas para possíveis acidentes e que não se deve tomar como forma de prevenção à gravidez, mas, no nosso caso, acho que eu devo usar.

Pílula do dia seguinte, gravidez, nosso caso... Eu tentava raciocinar como ela, mas tudo no que conseguia pensar era em Maria Eduarda gerando um filho meu. Porra! Era assustador, principalmente porque as imagens me agradavam muito! Tentei voltar à razão várias vezes, lembrando que eu só queria ter um filho para agradar meu avô e que, por isso, deveria também escolher uma mulher que ele aprovasse, e Duda não se enquadrava no que Geórgios Karamanlis queria.

Eu tentei! Juro que tentei! Porém, a imagem em minha mente, o que ela me fez sentir não se desvaneceu de forma alguma. Um filho com Maria Eduarda, um irmão para Tessa com, talvez, os mesmos olhos verdes que a menina tinha, iguais aos de Alex, Kyra e de Dorothea Karamanlis, minha avó.

— Theo, eu preciso ir até o banheiro. — Duda me trouxe de volta da maravilhosa visão que eu estava tendo, e aí, sim, consegui pensar com clareza.

— Não é perigoso tomar algo assim? — questionei.

— É uma carga hormonal enorme, não me agrada, mas não, não é perigoso e não pretendo fazer isso sempre. — Respirou fundo. — Vou marcar uma consulta com um ginecologista e pensar em algum método contraceptivo.

— Não seria melhor não tomar, então? — Certamente ela não esperava por isso, pois arregalou os olhos e ficou um pouco boquiaberta. Emendei uma justificativa: — Não me agrada que você tenha que assumir sozinha a responsabilidade de “consertar” algo que eu fiz.

— Theo, eu posso ficar grávida! — ela falou lentamente, talvez imaginando que eu fosse um tanto burro demais para entender.

— E pode também não ficar! — Dei de ombros. — Têm pessoas que tentam por anos e não conseguem.

— E têm algumas que basta uma rapidinha no meio de uma balada para engravidar. — Sorriu e negou. — Não quero arriscar. Não se preocupe comigo, ok?

— Eu sinto muito. — Beijei sua testa. — Não pela transa, que foi espetacular, mas por ter te levado a fazer algo de que não gosta.

— Tudo bem, de verdade. — Apontou para a porta. — Eu preciso realmente ir ao banheiro.

Arrumei minha calça, abri a porta, comprovei que não havia ninguém no corredor e a deixei sair primeiro. Assim que Duda entrou – correndo – no banheiro, encostei a cabeça na parede do depósito e tentei entender que merda estava acontecendo comigo, por que eu me sentia tão decepcionado pelo fato de ela não querer arriscar ter um filho meu.

Porra, Theodoros!

— Eu posso ficar muito acostumada com isso! — Duda fala, tirando-me das lembranças do início desta noite. Acompanho-a erguendo a perna cheia de espuma e vejo a unha pintada de vermelho aparecer entre o sabão. — É muito relaxante.

Chegamos do clube de jazz há pouco mais de uma hora e, claro, fizemos sexo. Diferentemente do que aconteceu no clube, não tínhamos pressa e pudemos saborear cada detalhe um do outro. Gozei dentro dela de novo, pois Duda irá tomar a tal da pílula, e ela me explicou o prazo e como funcionava a coisa toda.

Compreendo que não devo pensar em estender esse caso além do que já o fiz. Contudo, questionei-a sobre a consulta ao ginecologista, mostrei-lhe – podem rir e dizer que foi um pouco tarde – meus exames de saúde em dia, e ela me disse que também os faria antes de começar a tomar um anticoncepcional.

Droga!, pensei naquele momento. Se eu a pedisse em casamento, ela não precisaria de anticoncepcional algum! E, pela primeira vez desde que comecei a sair com ela, senti o peso de ter de agradar ao meu avô. Talvez, se eu não estivesse sendo quase obrigado a me casar, pudesse conhecê-la melhor, ter um relacionamento normal com ela e a pedir em casamento tão somente por querê-la, não por um filho ou por uma promessa, mas apenas por querer tê-la para sempre ao meu lado.

Sim, aperto-me a ela e a escuto suspirar, Maria Eduarda seria alguém com quem eu dividiria minha vida. Infelizmente, o mundo nunca foi justo ou fácil com minhas escolhas, e é por esse motivo que não posso dar as costas ao que prometi ao pappoús.

— Terei que ir para casa em breve — solto antes mesmo de me dar conta de que não é um assunto que eu queira conversar.

— Você já não está em casa agora? — Ela ri.

— Sim, me expressei mal. — Ela se encosta melhor em mim. — Terei que ir visitar meu avô.

— Ah, na Grécia. — Assinto, e ela me vê pelo espelho do banheiro. — Eu esqueço que você é grego, Theo.

— Por quase não ter sotaque?

Ela ri.

— Você tem sotaque. Não percebe, mas tem! Não é por isso, mas não te vejo como um grego, pelo menos, não como os que conheci.

— Isso é bom ou ruim? — Ela faz careta, e eu jogo um pouco de água em seu rosto como provocação. — Você só esteve lá daquela vez em que foi a Zante?

— Sim! — Duda abre um enorme sorriso. — Tínhamos acabado de concluir o curso, e a maioria já possuía algum emprego em vista, então, antes de começarmos, decidimos viajar juntas.

— Foi com um grupo grande, tipo excursão?

— Sim, erámos seis chefs de cuisine dispostas a curtir antes de entrar na loucura da profissão e não ter mais tempo nem para respirar. — Sua face está alegre, e ela parece emotiva. — Sinto falta de todas elas!

— Foram no verão, pelo menos? Ir até a Grécia apenas uma vez só vale se puder conhecer todo seu esplendor turístico, que inclui as praias, e isso é melhor no verão.

— Ah, sim. Fomos em junho. Fez oito anos ano passado.

— Hum... — Cheiro seu pescoço. — Já está na hora de voltar!

— É um convite?

Eu sorrio e nego, mesmo querendo dizer que sim, por mais impossível e idiota que isso seja. Maria Eduarda me faz querer jogar tudo para o alto, esquecer quem sou e tudo o que prometi. Se eu tivesse menos experiência e nenhuma noção do quanto isso é prejudicial, certamente o faria.

— Infelizmente, não dessa vez. É uma reunião de família.

— Eu estava brincando. — Sorri e mostra a língua, bem divertida. — Fico imaginando a repercussão que daria você chegando comigo por lá, com seus irmão e primos sabendo de nossa briga épica por causa do Hill. — O sorriso morre. — Assunto delicado, desculpa. Não deveria brincar com isso.

— É... — Beijo seu pescoço. — Esse assunto é um campo minado.

— Mas você ainda pensa nisso? — Duda insiste. — Ainda pensa em comprar a propriedade? Eu sei que combinamos não misturar os negócios com o que estamos vivendo...

— Não — sou sincero em responder, e ela se surpreende. — Não quero mais comprar o Hill, mas talvez não tenha mais escolha quanto a isso.

— Por que não?

— Sou o diretor, mas, acima de mim, há um conselho administrativo e... — Titubeio, pois ela não sabe sobre a promissória que compramos e não sei como reagirá quando souber. — Não depende só de mim.

— Entendi. — Sorri um pouco triste, mas ainda assim é um belo sorriso. — Ainda que não possa fazê-los desistir de tentar comprar – o que certamente não irão fazer, porque não venderei –, fico feliz em saber que você não quer mais seguir com isso. — Duda se vira para mim, e o que vejo em seus olhos me tira o fôlego. — Muito obrigada!

Ai, caralho!

Beijo-a antes que esse clima nos envolva em algo mais sério e profundo, levando esse clima para um lugar seguro que nós já conhecemos e desfrutamos muito: o sexo.


— Tem certeza de que vocês duas ficarão bem? — tia Do Carmo pergunta antes de entrar no carro de uma de suas amigas do clube de costura.

Rio e praticamente a empurro para dentro do veículo.

— Vamos, sim! Vai logo!

— Está querendo se livrar de mim, é? — Cruza os braços sobre os seios. — O grego combinou de vir te ver nesse final de semana?

— Tia, eu acabei de chegar do apartamento dele! — Rio. — Vamos com calma!

— Eu gostei dele, de verdade, apesar de ser daquela empresa detestável. — Faz careta, e eu rio. — Gostei de como ele agiu com nossa menina. Me surpreendeu.

— A mim também. — Sorrio, soltando um suspiro. — Ele perguntou como ela estava quase todos os dias desta semana. Tomamos um susto lá na ilha.

— Sim! Eu nem gosto de lembrar. — Ela me abraça. — Não estarei muito longe, então, se precisar, me ligue, que venho em minutos...

— Tia, pode ir despreocupada, Tessa e eu ficaremos bem. Vamos na 25 comprar o restante do material escolar que ficou faltando. Ela irá ficar essa noite comigo no Hill, e amanhã à noite a senhora estará de volta!

— Está certo, então. — Finalmente entra no carro. — Quando minha princesa acordar, diga-lhe que deixei beijos.

— Pode deixar.

Aceno por um tempo na calçada e logo subo para o apartamento, conferindo Tessa ainda dormindo. Bocejo e me espreguiço, sentindo todo o cansaço de uma noite inteira sem dormir. Theo e eu não tivemos tempo para isso!

Olho para a cartela com a segunda pílula do dia seguinte que irei tomar daqui umas horas, pois tomei a primeira antes de sair do apartamento dele, bem cedo. É a primeira vez que tomo esse medicamento e não conheço os efeitos colaterais – se tiver algum. Não quis arriscar e fiquei surpresa quando ele disse que não era para eu o tomar. Theo conseguiu me deixar confusa naquele momento, pois achei que ele seria o primeiro a propor que eu o tomasse.

O que aconteceu naquele clube foi uma loucura total, e não cometo esse tipo de doideira há alguns anos. Sem dúvida, nada se compara ao que senti, ao que Theo me fez sentir com seu desespero e falta de freio. Nunca me senti tão desejada e poderosa como na noite passada.

Suspiro e balanço a cabeça.

É incontestável que eu estou apaixonada por ele e, talvez, tenha tido a certeza disso quando me disse que, se fosse por sua vontade, ele não tentaria mais comprar o Hill. Pode parecer bobagem, mas foi o momento mais incrível que já tivemos juntos, porque ali, mesmo de um jeito estranho, eu soube que ele se importa comigo e que não sou apenas uma trepada ocasional. Talvez ele ainda não esteja apaixonado por mim como eu estou por ele, mas certamente sente algo.

Lembro-me do sexo detalhista que fizemos assim que chegamos do clube, dos momentos na banheira, no sofá da sala, debaixo do chuveiro e de novo na cama. O homem tem fogo e muito fôlego, devo admitir.

De manhã, realizei o sonho mais clichê da minha vida e fui preparar o café – na cozinha dele – usando a camisa que vestiu para ir ao clube comigo e tão-somente ela. Ganhei um sexo oral de-li-ci-o-so sobre a bancada da cozinha, tomei meu café e vim embora render a tia Do Carmo e liberá-la para seu final de semana no interior com o clube de costura.

— Ei, mamãe! — Tessa me chama da porta do seu quarto. — Eu acho que tem algo errado...

Assusto-me com sua palidez e as olheiras evidentes em seu rosto. Fomos até a pediatra esta semana, e a doutora Maria Lúcia me passou pedidos de exames e já prescreveu algumas vitaminas.

Corro até ela e, quando encosto em sua pele, constato a febre. Está muito, muito quente!

— Tessa, volte para a cama, eu vou pegar um termômetro e...

Não termino de falar, pois ela desaba no chão, e eu mal tenho tempo de segurá-la.

 

 

Odeio essa espera! Olho para o relógio e bufo, aguardando o resultado do exame de sangue que fizeram em minha filha há alguns minutos. Tessa dorme, já com a temperatura do corpo normalizada, ainda com o soro preso em seu braço.

Foi desesperador o que aconteceu mais cedo hoje. Não pensei duas vezes e a coloquei no carro, vindo direto para a emergência. Ela foi atendida ainda desacordada, medicada, colocada no soro e só acordou quando a temperatura corporal começou a baixar. Estava fraca demais, e o soro a ajudou muito.

Há quase uma hora colheram urina e sangue dela, e Tessa dormiu logo após isso. Minha menina está tão pálida que seus lábios parecem ressecados e arroxeados, e as olheiras estão fundas e muito escuras.

Seguro sua mão, nervosa, sem saber o que está havendo.

— Boa tarde. — Um médico entra no quarto. — A senhora é a mãe?

— Sou, sim. — Levanto-me. — Já sabem o que ela tem?

— Precisamente, não. Mas os exames indicam que seu corpo está combatendo uma infecção bem forte. Suas hemácias estão muito baixas, e o exame de urina retornou com nenhuma anormalidade.

— Então não tem um diagnóstico?

— Não com esses exames, precisaremos de mais alguns, mas não temos como fazer aqui.

Assinto, pois já tinha imaginado.

— A médica dela passou vários pedidos, e Tessa irá fazê-los na segunda-feira de manhã.

— Ah, que bom, então. — Ele sorriu e foi até ela, examinando-a. — A febre cedeu. Vamos mantê-la aqui por mais algumas horas em observação e depois liberá-la para voltar para casa. Não acho recomendável que ela permaneça aqui com suas defesas tão baixas.

— Está certo. E obrigada pelo rápido atendimento.

— É o meu trabalho. — Sorri agradecido e se despede.

Sento-me novamente ao lado dela, e o meu celular vibra com notificação de mensagem.

 

 

Mesmo achando legal, não consigo sorrir nem relaxar com a mensagem de Theo. Não respondo, e ele envia outra.

 

 

Respiro fundo e digito a resposta:

 

 

No mesmo instante ele me liga, e eu vou para o canto da sala de recuperação onde estou com minha filha.

— Oi, Theo.

— O que houve? Sangramento nasal de novo? — Ele parece preocupado.

— Não, febre alta — tento manter a voz firme para não desmoronar. — Quando cheguei aqui na emergência, ela já estava com 40 graus e desacordada.

— Me passa o endereço.

— Não precisa — respondo rapidamente, embora meu coração tenha falhado uma batida com a ideia de ter alguém aqui comigo. — Ela já deve ser liberada e...

— Sua tia está com você? — Nego. — Então me passa o endereço, que vou buscar vocês.

— Eu vim de carro.

— Dionísio pode levá-lo de volta ao Hill. Sua amiga ficou no comando do bar?

— Sim. — Lembro-me da preocupação de Manola. — Eu quase tive que obrigá-la a ficar por lá, pois queria vir para cá também.

— O endereço, Duda. Não quero vocês sozinhas aí.

Cedo e informo o local da unidade onde estamos, e ele desliga.

Não vou mentir que não me sinto consolada com a preocupação e emocionada com o apoio que ele está disposto a nos dar. Estou acostumada a não contar com muita gente para me auxiliar com Tessa. Tia Do Carmo é incrível, e Manola – mesmo com um parafuso a menos – adora minha menina. Além delas, nunca tive mais ninguém.

Tessa acorda, e corro até ela, querendo saber como se sente.

— Com fome...

Sorrio ante a resposta, aliviada – ao menos por hora – ao vê-la ganhando cor e mais força.

 

 

— Para onde estamos indo? — pergunto assim que Theo entra em uma rua que não conheço.

— Minha cobertura — informa parando em um farol. — Sei que Tessa deve estar acostumada, mas não acho conveniente que ela fique sobre o bar hoje. O som pode atrapalhar seu sono e recuperação.

Rolo os olhos.

— Temos acústica, sabia?

— Eu sei, mas ainda assim deve vazar um pouco para cima.

— Vaza um pouco — Tessa é quem revela. — Mas estou acostumada.

Ele volta a prestar atenção na estrada e não muda a rota.

— Theo, não temos como dormir na sua cobertura! Não temos nada conosco e...

— Pedi ao Dionísio que falasse com sua amiga Manola, e ela fez uma pequena mala para vocês duas. — Arregalo os olhos. — Por favor, eu ficarei mais tranquilo com vocês comigo.

Bufo com sua teimosia, mas concordo.

Pelo visto, estou conhecendo a teimosia, arbitrariedade e o controle de Theodoros Karamanlis, o CEO. Esse era um lado dele que ainda não tinha dissecado em meio a tantas camadas que esse homem parece ter.

Tessa tem um sorriso no rosto, provavelmente por poder conhecer a casa dele. Confiro sua temperatura novamente e relaxo por a febre não ter voltado, mas sei que, assim que passar o efeito dos remédios, ela deve voltar, afinal, há uma infecção sendo combatida.

Penso na infecção de garganta e que ela não deve ter sido curada a contento, por isso voltou mais forte. Precisamos fazer os exames o mais rápido possível, pois não quero ter em mente nenhuma doença grave, pois o simples pensamento me causa verdadeiro pavor. Minha filha é tudo para mim, tudo!

Entramos na garagem do prédio onde Theo mora, e Tessa, que passou a viagem toda deitada no meu colo, levanta-se com olhar curioso sobre o local onde ele vive. Retiro o cinto de segurança e saio a fim de ajudar minha filha a descer do veículo, mas Theo se adianta e pega a menina no colo.

— Obrigada! — agradeço emocionada.

— Tudo bem, essa mocinha aqui pesa igual a um passarinho! — Balança a cabeça. — Acho que você está precisando se exercitar mais e comer melhor.

Tessa arregala os olhos.

— Exercitar? Mas isso não é para emagrecer?

Theo ri a caminho do elevador.

— Bobagem, existe o exercício certo para cada coisa. Eu era tão magro que, se você me olhasse de lado, só enxergava uma linha com cabeça. — Tessa ri bastante imaginando o que ele descreveu, e eu seguro meu próprio riso, achando impossível que Theo já tenha sido assim. — Mas sabe por quê? Não gostava de fazer exercícios e ficava no meu tempo livre enfiado no quarto jogando videogame. Ah, saudade do Atari!

— Oh, meu Deus, meu irmão tinha um! — intrometo-me na conversa, já dentro do elevador. — Era uma briga feia lá em casa para jogarmos Pacman!

— Do que vocês estão falando?! — Tessa nos olha como se fôssemos E.T.s.

Theo e eu rimos juntos, e ele explica à minha filha que se tratava de um jogo.

— Mas, Duda, você não tem idade para ter conhecido um Atari!

— Desfrutei pouco, é verdade, porém, meu irmão amargou aquele Atari por muitos anos, pois papai não podia comprar um mais moderno. Eu já tinha uns oito anos quando ele ganhou um Nintendo. Gostaria de ter ficado com o antigo jogo. Tenho boas lembranças.

— Por que não ficou?

Suspiro triste e dou de ombros. A verdade é que, sim, guardei o videogame, mas, quando retornei da França, soube que meu irmão, no afã de conseguir dinheiro para alimentar o vício, vendeu-o a um colecionador, pois o nosso ainda funcionava e tinha os cartuchos. São marcas tão agridoces que carrego comigo, de lembranças boas e ruins sobre o mesmo objeto, que evito pensar nelas.

— E o que você fez para ficar assim tão forte? — Tessa volta ao assunto do corpo de Theo, e sorrio, gostando do timing dela.

— Comi muita proteína para crescer. Frango, bife, porco, cordeiro e muito peixe! Lá onde eu morava, comíamos peixe todo dia, além disso, eu devorava os vegetais no meu prato!

— Até brócolis? — Põe a língua para fora.

— Até brócolis! — Ele abre um sorriso tão afetuoso para ela que meu coração falha uma batida.

Sinto essa coisa totalmente estranha quando Theo interage assim com minha filha. Os dois juntos são tão lindos e se dão tão bem como nunca imaginei que pudesse acontecer. Sei que deveria estar sendo muito mais protetiva com relação a ela, não a deixar se envolver tanto, mas não consigo não adorar a amizade que os dois estão criando.

A porta do elevador se abre, e dou de cara com uma senhora de cabelos grisalhos presos em um coque e um sorriso caloroso.

— Bem-vindos! — ela nos cumprimenta.

— Vanda, essas são nossas hóspedes. — Tessa tem os olhos fixos na mulher, curiosa como ninguém. — Tessa e sua mãe, Maria Eduarda.

— Muito prazer! — Ela estende a mão para mim, mas eu a abraço.

— Eu amei a organização da sua cozinha, parabéns! — elogio-a, e Vanda sorri sem jeito. — É um prazer enorme conhecê-la, Theo disse que não consegue fazer nada sem a senhora por perto.

— Ah, ele disse, é? — Pisca para o patrão, que faz uma careta engraçada.

— Duda, você acaba de entregar o ouro ao bandido! — Faz cara de desolado para Tessa, e minha menina ainda comenta, com voz de reprimenda, que eu falo demais. Como é que é? — Já posso colocar essa prinkípissa32 aqui para descansar?

Ah, puta merda! Não sei do que ele chamou minha filha, mas nunca o ouvi falar em grego, e é totalmente sexy!

— Claro que sim! Dio acabou de entregar as malas delas.

Arregalo os olhos com a informação de Vanda. Então Manola arrumou mesmo nossas roupas!

Seguimos para um dos quartos do piso debaixo, e Theo acomoda Tessa na enorme cama já preparada, inclusive com travesseiros recém-afofados e um edredom muito fofinho. O ar-condicionado mantém a temperatura – que lá fora está comparável à do inferno – muito amena.

— Mamãe, eu quero tomar um banho — Tessa me pede assim que chego ao seu lado.

— Já tomou banho de banheira, Tessa? — Theo pergunta, e meu coração dispara.

Não sei como irei reagir ao ver minha menina dentro da mesma banheira na qual fizemos tantas sacanagens, mas relaxo quando ele abre a porta do banheiro da suíte, e uma versão mais simples da que ele tem na suíte máster aparece.

— Eu posso? — O sorriso dela é enorme.

— Claro! — ele responde. — E a Vanda ainda tem umas surpresas de colocar na água. — O filho da mãe me encara rindo. — É bem divertido.

— É como tomar banho em água com gás! — A governanta de Theo aparece portando uma daquelas bombas de banho. — Vou preparar seu banho.

Quando Vanda volta para o banheiro, Theo se aproxima de mim, abraça-me pela cintura e diz na minha orelha:

— Essa noite vou preparar seu banho também!

— Theo... — repreendo-o.

Ele me dá um selinho e depois fala com minha filha:

— Eu espero que você esteja se sentindo melhor, prinkípissa mou.

Tessa sorri e assente, e ele se despede dela com um beijo na testa.

— Estarei no meu quarto.

Suspiro assim que ele sai e escuto as risadas de Tessa e Vanda.

É, não consigo disfarçar, mas quem pode me julgar?

 

 

Saio do banheiro, após o banho, já com meu pijama posto e escuto uma leve batida à porta. Theo entra no quarto e sorri de leve ao ver Tessa dormindo.

— A febre voltou a ceder?

— Sim. — Dou de ombros. — Será assim até acharmos a infecção e administrarmos os antibióticos corretamente. O médico me passou um bem forte, e isso está ajudando, pois a temperatura não tem se elevado muito, mas ainda assim...

— Você precisa levá-la a um especialista.

— Sim, liguei para a médica dela, que me pediu para fazer os exames o mais rápido possível. Segunda-feira, quando o laboratório abrir...

— Posso pedir que venham amanhã. — Ele pega o celular. — Tenho conhecidos que são donos de um grande laboratório, e eu sempre colho minhas amostras em casa. — Cruzo os braços e levanto as sobrancelhas, e ele entende que eu o acho um esnobe. — Não, é mais por falta de tempo mesmo.

— Eles viriam até aqui em pleno domingo? — Ele assente. — Então, por favor, peça para que venham, eu agradeço. A doutora Maria Lúcia já havia me advertido que a maioria dos exames que passou não seria coberta pelo meu plano de saúde, então eu posso pagar todos de uma vez e fazer mais rápido.

— Não se preocupe com isso, Duda.

— Não! — Toco seu braço. — Theo, é minha filha, minha responsabilidade.

— Eu sei disso, mas quero fazer isso pela pequena. — Ele me abraça forte. — Eu gostaria de poder te ajudar mais, Maria Eduarda. Sei o quanto está preocupada com a saúde de Tessa, então me deixe fazer ao menos isso.

— Você tem ajudado muito já ficando ao nosso lado.

— Eu sei. — Bufa. — Hoje de manhã meu tio me ligou da Grécia. Meu avô piorou de uns dias para cá, e eu terei que ir para casa mais cedo do que imaginei.

Balanço a cabeça, compreendendo a situação dele, mas não deixo de sentir uma pontada de tristeza. Theo tem sido muito presente em minha vida durante todo esse mês e, principalmente nos dois graves incidentes com Tessa, foi meu apoiador.

Concordo em deixar que ele pague pelos exames e, depois de ver o nome do laboratório, sinto-me até aliviada, pois é um dos mais modernos e caros do país. Eu faria qualquer coisa pela minha filha, ainda mais nesses casos, mas como não sei como serão as coisas daqui para frente, manter minha pequena poupança é o sensato a se fazer.

— Quanto tempo você ficará fora? — inquiro, mesmo não tendo nada a ver com a vida dele.

— Três semanas, talvez mais — pela sua expressão e voz, percebo que ele não está muito contente com a viagem. — Não queria deixar vocês sozinhas durante todo esse tempo, mas quero que saiba que o que precisar, Duda, conte comigo.

— Obrigada!

Theo me beija cheio de carinho, passando a mão pelos meus cabelos, e eu me apoio nele, cansada depois de uma noite sem dormir seguida de um dia agitado e tenso como foi o de hoje.

— Você precisa dormir — ele constata. — Vá descansar, que eu fico aqui tomando conta dela. — Nego, mas ele insiste. — Eu ainda dormi nessa manhã e acordei perto do almoço, você, nem isso! Pode ir.

Mais uma vez escuto uma batida à porta, e Theo se separa de mim, pedindo para Vanda entrar.

— Tudo bem? — a governanta questiona olhando para Tessa.

— Sim, ela dormiu agora, sem febre.

A senhora entra no quarto.

— Graças a Deus! — Olha para mim e em seguida para o Theo. — Por que vocês dois não vão descansar e eu fico aqui com a Tessa?

— Não, eu estou...

— É uma ótima ideia! Duda não dorme há mais de 24 horas e deve estar exausta.

— Eu estou bem! — insisto.

— Maria Eduarda, quando Tessa acordar amanhã já estará bem melhor e com muita energia por ter passado o dia na cama — ela diz. Concordo. — Você precisará estar descansada para ficar com ela.

— Viu, só? — Theo aponta para mim. — Vanda criou duas crianças, sabe o que diz!

— E estão todos aí! Continuam me dando dor de cabeça, porque isso nunca passa nem quando elas crescem, mas estão cheias de saúde! — Pega minhas mãos. — Pode confiar em mim. Qualquer alteração, chamarei vocês dois.

O gesto dela me emociona, e eu a abraço de novo, agradecendo sua consideração.

Sigo para a suíte de Theo e o vejo desfazer a cama na qual passei a noite passada inteira acordada com ele, depois me deito. Ele se encosta em mim tempos depois, abraçando-me com força na posição conhecida como “conchinha”.

— Descansa, agapi mou. — Eu me aconchego melhor a ele. — Tudo vai ficar bem com a mikrí prinkípissa33.

— O que é isso que você a tem chamado? — pergunto sonolenta.

— Princesinha. — Ri. — Minha princesa.

Meu coração dispara ao ouvir suas palavras carinhosas.

— Eu amo você, Theo — declaro e adormeço sentindo um beijo no topo da minha cabeça.


“Eu amo você, Theo”

A voz sonolenta de Maria Eduarda ressoa na minha cabeça enquanto faço abdominais sem parar. Não costumo treinar no domingo, mas, depois da noite intensa que tive com ela, foi impossível me concentrar em qualquer coisa aqui no apartamento sem parar de pensar em tudo o que ocorreu durante as horas em que ela e Tessa ficaram aqui.

Depois da declaração de Duda, não consegui pregar os olhos. Fiquei na cama, imóvel, abraçado a ela, com a cabeça a mil por hora. No meio da noite, levantei-me, fiquei um tempo na varanda olhando para a vista de São Paulo, depois fui até o quarto de Tessa.

Vanda estava acordada e tinha acabado de aferir a temperatura da pequena.

— Está normal. — Ela suspirou. — Theodoros, não gosto disso. Essa menina tem algo.

Senti um frio cruzar minha coluna de cima a baixo.

— Por que você acha isso? Duda me disse que ela esteve doente antes de viajar para a praia, infecção na garganta.

Ela negou.

— Não parecem ser casos isolados, as infecções, o sangramento, o desmaio...

— Que desmaio? — perguntei surpreso.

— Duda me contou que Tessa desmaiou na praia e que por isso decidiu ir para lá. — Ela aponta para uma pasta. — E esses exames... Eu criei duas crianças, e nunca nenhum médico me passou exames tão específicos assim.

Olhei para Tessa, preocupado. A menina e dona Do Carmo eram o que restara da família de Maria Eduarda, e eu já tinha notado a importância que elas tinham em sua vida. Nada de mal podia acontecer com Tessa, porque eu não sabia como Duda se recuperaria.

— Amanhã o pessoal do laboratório que faz minhas análises virá aqui para colher as amostras da menina — informei a Vanda, que abriu um enorme sorriso. — Vamos torcer para que seja apenas uma virose.

— O senhor gosta muito delas. É uma novidade ter uma criança aqui, uma boa novidade.

Não respondi, apenas refleti sobre o que ela disse e tive de concordar. As coisas estavam ficando cada vez mais diferentes comigo. Primeiro, a obsessão pela Maria Eduarda, a falta de libido com outras mulheres, então viera o carinho pela Tessa, a preocupação com sua saúde.

Eu nem me lembrava mais como era ter uma criança por perto, mas Tessa me fazia recordar tanto de Kyra, de como eu a adorava, a única neta Karamanlis, a princesinha da família já tão torta naquela época, que pensei ser esse o motivo de eu gostar tanto dela.

Dispensei a Vanda para que dormisse e fiquei velando o sono de Tessa. Acabei adormecendo em algum momento e, quando acordei, dei de cara com um rosto redondo, risonho, com covinhas e olhos verdes.

Meu sorriso se abriu involuntariamente ao vê-la, olhinhos brilhantes e um rosto mais corado.

— Bom dia! — ela me cumprimentou com sua voz doce e sonolenta.

Não resisti e beijei sua testa, sentindo o cheiro doce do perfume dos seus cabelos, e ela me abraçou apertado.

— Bom dia, mikrí prinkípissa! — Ela gargalhou e perguntou do que eu a havia chamado. — Princesinha.

— Ah... Gostei disso. Me ensina a falar?

Passei alguns minutos me divertindo com as tentativas dela de acertar o sotaque grego, e, quando Duda apareceu para informar que o pessoal do laboratório havia chegado, encontrou-nos em meio a risadas.

— Do que vocês estavam rindo? — perguntou quando Tessa foi ao banheiro.

— Sua filha queria aprender grego. — Abracei-a e lhe dei um beijo na testa, ainda com sua voz e a declaração que me fizera ressoando em meus ouvidos, agitando meu coração.

— Não lhe ensinou palavrões, não é?

Ela acertara em cheio, mas neguei, ou melhor, tentei negar que estava ensinando a pequena a driblar a mãe e evitar perder dinheiro do seu cofrinho do palavrão. Obviamente não fui muito convincente, e ela pôs as mãos na cintura e me repreendeu com o olhar.

Foi um começo de manhã muito divertido, porém, depois, senti toda a tensão e dor ao acompanhar a realização dos exames da menina.

Nunca vi tantos tubos de sangue em minha vida. Eles mal enchiam um e já colocavam outro para encher e assim foram formando uma pilha de tubinhos, todos etiquetados, enquanto eu sentia meu coração apertado por causa de Tessa. A menina se mostrou muito corajosa, apenas olhava para a mãe com os olhos rasos de água, mas não chorava, mesmo com a demora e o acesso doloroso em sua veia.

Depois Duda, quando eles saíram do quarto, abraçou-a forte, e eu acompanhei o consolo oferecido para a menina como se tivesse levado um soco na boca do estômago. As palavras doces de Duda, garantindo a ela que tudo ficaria bem, as lágrimas silenciosas que escorreram dos olhos verdinhos de Tessa e o olhar que ela me deu, de soslaio, cheio de medo, causaram-me um enorme nó na garganta.

Lembranças da minha infância me acertaram em cheio, e percebi que nunca tive isso! Nunca vi de tão perto essa relação familiar saudável e “normal”.

Foi naquele instante que eu soube que queria que meus filhos fossem criados assim, sabendo que tinham amor, apoio, consolo em seus pais. Nunca colocaria uma criança neste mundo para passar o que meus irmãos e eu passamos na infância. Não é exagero; claro que nunca nos faltaram coisas materiais, dinheiro e tudo o que ele pode proporcionar, mas não tínhamos a mínima noção de afeto.

Fiquei vendo as duas ali, juntas, dividindo a dor, a apreensão, mas cheias de esperança. Duda afagava os cabelos de Tessa e tentava segurar as lágrimas para não assustar a criança. Foi então que eu notei que aquela mesma mulher que estava ali, cuidando e amparando sua filha de forma emocionante, dissera que me amava.

Compreendi, naquele momento, que não eram palavras de agradecimento ou jogadas no calor de um momento. Maria Eduarda não era assim, nunca diria algo que não estivesse sentindo. Ela realmente me amava, e eu não sabia o que fazer!

Depois de tomarmos o café juntos, levei-as até o Hill, onde Manola as aguardava. Antes de sair do carro, porém, Maria Eduarda resolveu tocar no assunto:

— Sobre o que eu te disse ontem... — Parecia sem jeito. — É o que sinto, mas não te obriga a nada, apenas aconteceu. Desculpe se...

— Não faça isso — interrompi-a. — Não peça desculpas por me amar. Realmente acho que não mereço isso, mas é a melhor coisa que já me aconteceu! — Ela sorriu. — Só não quero vê-la machucada.

O sorriso morreu.

— Bom... ninguém pode prever o que o futuro reserva.

Tentei lhe explicar que eu pouco sabia sobre esse sentimento, mas ela logo se despediu agradecendo por tudo e saiu do carro, seguindo a filha e Manola.

Voltei para a cobertura e dei tantas voltas dentro do meu quarto que poderia ter deixado marcas no assoalho de madeira. Passei a me exercitar e, enquanto isso, tentei avaliar esse mês que passamos juntos, vendo-nos, nossas noites, os dias com Duda e Tessa e tudo o que isso significa para mim. Claro que ainda tinha a promessa ao meu avô, o herdeiro que ele tanto me pede e Valentina.

— Merda! — xingo alto, tentando expurgar esses sentimentos e pensamentos, e abraço minhas pernas, completamente exausto do exercício.

— Acho que a idade está pesando para você de verdade! — escuto a voz debochada de Frank Villazza e levanto a cabeça.

O carcamano está parado na entrada da academia, com uma xícara de café na mão e o maldito sorriso debochado na cara.

— Começou a invadir propriedades, Frank?

Ele gargalha.

— Poderia ser um bom divertimento, mas não. Sua governanta autorizou minha entrada. — Toma mais um gole do café. — Madonna Santa, que café saboroso!

— É, eu sei... é o meu café! — resmungo ao ficar de pé.

— Que humor azedo, Karamanlis! O que foi? Acabou seu whey?

— Vá se foder, Frank! — rio assim que falo isso. — O que você veio fazer aqui?

— Isabella saiu com a irmã e as crianças, então fiquei à toa e...

— Sozinho. — Cruzo os braços. — O solteirão Frank Villazza não consegue mais ficar sozinho!

— É, não consigo, mas, se soubesse que você estaria tão babaca, teria ido até a casa do Hal, afinal, ele tem mulher e filhos como eu, seria mais solidário!

Não respondo, sentindo pela primeira vez a cutucada dele no local certo. Antes, eu agradeceria por não ter sido domesticado, mas agora...

— Eu não sei se seria um bom pai — revelo, e Frank arregala os olhos. — Não sei se seria um bom marido.

— O que aconteceu no passado não pode definir para sempre quem você é — Frank não titubeia em dizer, pois sabe de toda minha história. — Ninguém é obrigado a cometer os mesmos erros e a repetir histórias de vida que não são suas. Você não é seu avô, nem seu pai, tem sua própria escolha, pode decidir o que quer ser e como.

Não é a primeira vez que conversamos sobre isso. Eu vi a mudança acontecer na vida dele, tudo o que sua família sofreu nos últimos anos e como eles se amaram e se apoiaram a cada momento. Sempre usei essa justificativa, de que Frank conseguiu amar e ser um bom pai e companheiro porque tinha o exemplo certo.

Será possível uma pessoa zerar seu histórico familiar ruim e ser diferente daquilo que teve como exemplo a vida toda? Será que eu conseguiria ser assim?

— Vai me contar o que está acontecendo? É seu avô ainda colocando pressão?

Dou de ombros e seco um pouco do suor com a toalha.

— Isso deveria ser o que me preocupa, mas a verdade é que estou confuso.

Frank perde o semblante debochado e suspira.

— Quem é ela?

Balanço a cabeça.

— Maria Eduarda Hill. — Meu amigo arregala os olhos. — Eu sei, completamente inadequada para...

— Vaffanculo! Quem aqui falou em adequação ou inadequação?! Você acha que eu era adequado para Isabella? Ou que Nicholas era para... — Faz careta. — Exemplo ruim. — Gargalho com a implicância costumeira dele com o cunhado. — Enfim... a questão não é essa. O que você precisa saber é o motivo pelo qual, mesmo a achando inadequada, não consegue deixar de querê-la.

— Eu não sei, porra! — digo exasperado, encostando-me contra um aparelho de musculação. — Eu já tive parceiras incríveis, com afinidade, amizade e sexo bom. Já tive fodas loucas, memoráveis, do tipo que você lembra delas quando quer se excitar ou apimentar uma mais ou menos. — Frank concorda. — Mas isso que eu tenho com Maria Eduarda é muito mais do que isso tudo junto.

— Dio Santo! — Ele ri. — Você já contou a ela sobre a promissória?

Nego.

— Vou desistir disso. Já não faz mais sentido, mesmo eu ficando ou não com ela. — Bufo. — Mandei um memorando para o jurídico interromper a ação de execução.

— Isso não pode gerar algum problema? Afinal, era uma das grandes metas da Karamanlis conseguir aquela quadra toda, e desistir sem mais nem menos...

— Dei algumas justificativas, mas é claro que nenhuma delas é consistente o suficiente. Não posso fazer isso com a Duda.

— É melhor contar, Theo — aconselha-me. — Conseguindo ou não, conte.

— Sim, devo isso a ela! Duda é tão sincera e transparente em tudo o que faz que, mesmo não indo em frente, preciso dizer que temos a promissória.

— É o certo a fazer, e se prepare, vai ter que implorar muito seu perdão por ter omitido isso dela. — O canalha ri. — Quem diria! A mosca do amor picou um Karamanlis!

Não respondo nem que sim, nem que não, mesmo porque nem mesmo sei se é esse o caso. Sim, eu gosto dela, adoro estar com ela e não quero que isso acabe agora, mesmo correndo o risco de não conseguir cumprir a promessa ao meu avô. Duda é uma mulher muito diferente de todas as outras que já conheci. Não temos jogos um com o outro, sou direto ao dizer tudo o que quero, e ela faz o mesmo. Ontem ela disse que me amava, mas nem por isso tentou forçar algo, pelo contrário, tomou a responsabilidade do que sente para si mesma para me tranquilizar.

Não estou tranquilo. Não quero que ela sofra e, mesmo sentindo por ela o mesmo que sente por mim, acho que ainda posso foder com tudo e acabar magoando-a. Ai, caralho, como assim sinto por ela o mesmo que sente por mim?!

Arregalo os olhos, e Frank começa a gargalhar, percebendo que eu me dei conta de que amo a cozinheira. Não é possível! Como isso foi acontecer? Como não vi isso chegar? Eu já estive apaixonado antes – ou pensei estar –, e nada se compara ao que sinto pela Duda.

— É, meu amigo! — Frank cruza os braços e sorri. — Lembro-me bem quando me dei conta de que estava de quatro pela Bella. — Balança a cabeça. — No meu caso foi depois de um pé na bunda, então espero sinceramente que você tenha mais sorte que eu nisso.

— Você entende a confusão que isso vai trazer para minha vida? Pappoús...

— Ah, Theo, quantos anos você tem, stronzo? Eu entendo o compromisso familiar, entendo muito, mas é a sua vida, não é um negócio. Não seria justo com você e muito menos com Maria Eduarda que outra pessoa decidisse o destino de vocês.

— Eu sei... — Ponho a mão na cabeça. — Preciso resolver tudo isso: a promissória, Valentina — Frank faz careta —, a promessa ao meu avô.

— Boa sorte! — Frank sorri de lado. — Que tal agora, que já te fiz o enorme favor de te clarear as ideias, você ir tomar um banho e me convidar para almoçar?

— Você se acha, Frank! — Jogo a toalha no cesto de roupa suja. Ele ri e se afasta quando passo perto dele. — Naquele seu hotel não tem comida, não?

— Tem, sim, caspita34! — Fica sério. — Mas eu não quero almoçar sozinho.

Paro e abro um enorme sorriso.

— Está carente! — Abro os braços e avanço até onde ele está.

Frank recua de meu abraço suado e xinga todo o repertório italiano antes de começar o português. Gargalho e apenas bato em suas costas.

— Vou para o banho. Pelo menos prepara uma boa dose de uísque para compensar o almoço — provoco-o.

Ele ri.

— Te trouxe uma garrafa de presente.

— Ah, eu gosto muito da sua companhia!

Frank fica sério, mas vejo que segura o riso.

— Bugiardo35!


A segunda-feira sempre foi meu dia favorito da semana. Era quando eu ia para o escritório e não pensava em mais nada, só no trabalho. Pensava assim desde quando comecei a frequentar a empresa, ainda na Grécia, durante a adolescência. Eu podia ver mais pessoas, conversar, aprender e me sentir útil, não mais aquele peso morto deixado para trás pelos pais.

Agora as segundas têm outro significado ótimo! Folga de Maria Eduarda e a possibilidade de eu estar com ela. Sei que falamos que iria ficar difícil depois da volta de Tessa das férias, mas não, agora eu já a conheço e quero também estar com a menina, então continuo adorando esse dia da semana.

Hoje, antes de vir para a empresa, mandei mensagem para Duda perguntando sobre a saúde de sua filha e como foi a noite de ontem no Hill. Recebi a resposta em seguida. Ela não trabalhou para tomar conta da menina. A tia dela voltou do passeio que estava fazendo, mas ainda assim Maria Eduarda preferiu tomar conta de Tessa pessoalmente, e hoje é seu dia de folga do bar.

 

 

Ela, teimosa como ninguém, respondeu em seguida:

 

 

Ri, pois não era isso que eu tinha em mente.

 

 

 


Gargalhei ao me lembrar do dia em que ficamos falando de comida e Tessa se mostrou uma conhecedora nata da área.

 

 

Rio ao recordar essa troca de mensagens e desligo meu notebook, preparando-me para ir para casa, trocar de roupa e passar pelo Bixiga antes de ir encontrar Duda e Tessa. Estou bem surpreso com essa vontade de ter uma noite familiar. Nunca pensei que isso aconteceria, porém, não me vejo mais sem interagir com a pequena Tessa. A menina conquistou meu coração tanto quanto sua mãe.

— Chefe, chegou um memorando do jurídico. — Rômulo põe o impresso em minha mesa, fazendo meu sorriso de satisfação morrer imediatamente. — Coloco na pauta da próxima reunião?

Leio o documento e travo o maxilar, apertando os dentes de raiva. Sabia que Kostas não ia aceitar cancelar o processo da promissória sem briga, só não esperava que ele fosse tão rápido em acionar os membros do conselho e conseguir uma indicação para a pauta da próxima reunião sobre o assunto.

— Não. Como vou tirar férias e gostaria de estar presente nessa discussão, faça um memorando para todos os membros explicando que, depois de minha volta, faremos uma extraordinária para que eu apresente explicações.

— Certo. — Rômulo parece tenso. — Eu posso adiar minhas férias? Não gostaria de sair da Karamanlis neste momento e...

— Não. — Levanto-me. — Tire suas férias e relaxe, Rômulo. Nada vai acontecer!

Pelo seu semblante, posso perceber que não o convenci.

— Mas... e se eles ficarem tramando contra o doutor? Eu poderia ficar e ir informando...

— Não! Fodam-se eles, Rômulo. — Meu assistente arregala os olhos. — Não vamos alterar nossos planos por causa do meu irmão babaca. Você tire suas férias, e eu tirarei as minhas. Quando voltarmos, nos inteiraremos do que está acontecendo.

— Está certo! Espero que o doutor faça boa viagem! Não virá à empresa amanhã, não é?

— Não, amanhã vou resolver umas coisas antes de embarcar à noite para Atenas. Não se preocupe, Rômulo, vai ficar tudo bem por aqui em nossa ausência. Millos irá garantir isso.

Saio da sala parecendo confiante, mas a verdade é que sei o quanto Kostas pode ser ardiloso. Ele quer me tirar da presidência, isso já ficou claro, mesmo sabendo que não irá ser indicado para ocupar o cargo, e acabei de fornecer munição para que ele conquiste seu intento.

Ligo para Millos, mas meu primo não atende.

— Millos, quando pegar esse recado, me liga. Preciso falar com você antes de viajar.

Merda!

 

 

— Uno! — Tessa grita e mostra sua única carta na mão.

Eu rio, e Maria Eduarda geme, com as mãos repletas de cartas.

Cheguei com duas caixas de pizzas – as maiores que já vi na vida – com seis recheios diferentes, como fui instruído pela Duda. A salgada foi dividida entre marguerita, portuguesa, pepperoni e quatro queijos; já a doce, entre banana com canela e brigadeiro.

Não foi nada surpresa eu chegar ao apartamento dela e encontrar, além de Tessa e dona Do Carmo, a tal Manola – a amiga ameaçadora de Duda –, mas confesso não ter me preparado para encontrar o Dionísio aqui.

Meu motorista – de folga, porque eu o liberei para vir até a casa da Maria Eduarda – estava todo arrumado e perfumado para sair com a Manola. O homem de quase 2m de altura, grande e forte como um armário, ficou sem jeito quando me viu, mas todo derretido enquanto a ruiva bravinha falava com ele.

— O que eu perdi? — perguntei a Duda quando eles saíram para o encontro.

— Sábado, quando você o enviou para pegar roupas minhas e de Tessa, ele conheceu a Manola. — Deu de ombros rindo. — Ontem à noite ele veio ao Hill e a convidou para sair.

— E hoje o Hill não funciona...

— Sim! Você vê problema no seu motorista sair com minha amiga?

Arregalei os olhos e neguei.

— Não, só fiquei surpresa. Manola é um tanto intimidadora, e Dio, além de motorista, é um segurança daqueles bem sisudos. — Ri. — Ele foi fuzileiro naval, é todo certinho e engessado, não sei se combina com sua amiga. — Sussurrei no seu ouvido: — Ela parece meio doida.

Duda me deu um tapa no ombro.

— Ele pode ser certinho e sisudo no trabalho, mas, convenhamos, não está saindo com ela para dirigir ou protegê-la. — Ela ergueu aquela sexy sobrancelha, e tive uma ereção instantânea. — Além dos mais, acho que eles combinam, sim. Manola é linda, ruiva, delicada e tem muita personalidade, e ele é todo grandão, mas os olhos brilham quando fala com ela.

— Os olhos de Dio brilham? — Gargalhei e tomei outro tapa. — Tudo bem, não tenho nada a ver com o que ele faz nas folgas... mas espero que saiba onde está entrando, porque ela já me disse que sabe manipular uma faca muito bem.

— Ela disse, foi? — Aproximou-se de mim. — Eu também sei, Theodoros Karamanlis. — Olhou para trás para conferir Tessa e sua tia arrumando a mesa e segurou meu pau descaradamente. — Mas prefiro manipular outra coisa agora...

— Safadinha... — Beijei-a, e ela me abraçou apertado.

Depois disso ficamos concentrados em detonar toda a quantidade de pizza que eu trouxe. Duda e eu dividimos uma garrafa de vinho, enquanto Tessa e dona Do Carmo tomavam Coca-Cola.

Ouvi, divertido, as histórias do passeio da tia dela com seu clube de costura, permeadas de fofocas picantes de artistas e muitas aventuras. Tessa lamentou ter perdido o primeiro dia de aula, mas me contou que uma amiga foi visitá-la e contou todas as novidades da turma.

O tempo todo eu estive aqui à vontade, curtindo um programa que nunca poderia imaginar que gostaria de fazer, sem glamour, sem exposições, uísque ou música clássica tocando ao fundo. Nessa casa tão simples, com essas pessoas, eu me senti em família.

Volto à realidade quando Duda coloca sua carta sobre o monte e me dá a opção perfeita de virar o jogo. Segundo o que me explicaram das regras, posso combater uma carta que manda o próximo jogador comprar mais duas jogando uma igual – não importa a cor – e, além de não precisar comprar, ainda obrigo o próximo jogador a comprar mais quatro cartas (a soma da carta que combati e da minha). Tessa é a jogadora que vem depois de mim, e ela, que só tem uma carta, ainda tem os olhos brilhantes de quem não consegue esconder a vitória iminente.

Olho para minha mão, ainda procurando saber o que fazer, se devo deixá-la ganhar ou estender o jogo por mais algum tempo, gritando eu mesmo o “uno” dessa vez. Minha decisão é tomada por causa de um bocejo. Dou de ombros e compro as duas cartas, fingindo que estou chateado por isso. Dona Do Carmo volta a bocejar e toma um susto quando Tessa põe sua última carta na pilha e comemora a vitória.

— Eu venci! — Ela puxa a caixa da pizza. — Sou a dona do último pedaço de pizza!

— Filha, tem certeza que aguenta? — Duda pergunta, rindo de sua alegria ao pegar o prêmio.

— Não. — Faz careta. — Mas é minha, e posso fazer o que eu quiser, não é? — Todos concordam, e Tessa estende o pedaço de pizza para mim. — Eu quero dar meu prêmio para o Theo!

Ah, merda!

Pego a pizza com um nó na garganta, emocionado por ela ter me escolhido para receber seu prêmio, e dou uma mordida na fatia, mesmo sem nenhuma vontade de comer mais.

— Obrigado, Tessa! É minha favorita! — Mastigo devagar, e ela me dá um abraço.

— Eu sabia que você queria mais! — diz baixinho no meu ouvido.

Ah, porra!

Como resistir a isso? Abraço-a de volta bem forte, sentindo como se alguém espremesse meu coração e o aquecesse ao mesmo tempo. Eu adoro essa menina! Ela me conquistou totalmente!

— Tessa, você está deixando o Theo roxo por falta de ar. — Maria Eduarda ri. — E não o está deixando comer.

— Ah, é mesmo! — Ela salta para longe e bebe mais um gole de seu refrigerante. — Come tudo, Theo!

Rio sem jeito e tiro mais um pedaço da pizza, obrigando-me a mastigar para que ela fique feliz comigo. É... já estou fazendo tudo por ela!

— Acho melhor irmos dormir — dona Do Carmo diz para Tessa. — Amanhã você retorna ao colégio.

— Theo pode me pôr na cama hoje?

Duda, que está bebendo um gole de seu vinho, tem um pequeno engasgo.

— Tessa, ele ainda está come...

— Tudo bem — interrompo-a. — Termino de comer enquanto ela escova os dentes e depois a coloco para dormir. Pode ser?

Duda abre um enorme sorriso e assente, e Tessa vai correndo até o banheiro.

— Bom, eu também já vou! — dona Do Carmo se despede. — Boa noite, crianças, não façam muito barulho ao jogar... — Maria Eduarda fica vermelha, e eu sinto a pizza agarrar na garganta. — Eu me referia ao Uno! — Aponta para as cartas. — Mas, pelo visto, vocês não querem mais jogar cartas...

—Tia! — Maria Eduarda soa mortificada.

A senhora ri e acena um tchau antes de entrar em seu quarto e fechar a porta. Duda tampa o rosto com as mãos, e eu me levanto para ir até ela e beijá-la, mas Tessa sai do banheiro e me pega pelas mãos.

— Vamos lá, Theo! — Puxa-me. — Você sabe cantar alguma coisa? Há muito tempo mamãe não canta para eu dormir, mas, como é sua primeira vez hoje, eu acho que seria um bom jeito de começar, porque você não deve saber contar histórias, não é? — Ela toma fôlego rapidamente. — Você não tem filhos? Nem sobrinhos?

— Tessa! — Duda a repreende.

— Não, Tessa — respondo-lhe assim que entramos em seu quarto em tons de rosa e azul. — Ainda não tenho filhos, mas estou pensando em ter alguns.

Ela fica séria e me encara.

— Com a mamãe?

Ai, porra!

Respiro fundo.

— Talvez. — Sorrio. — Ainda estamos nos conhecendo melhor.

Ela olha para suas mãos.

— E eu? — sua voz temerosa corta meu coração.

— Você já é prinkípissa mou, lembra? — Ela sorri e aquiesce. — Pronta para dormir?

Ela pula na cama, e eu a cubro com o lençol. O ar-condicionado do quarto dela funciona, e o ambiente está fresco. Tessa agarra um bichinho velho e surrado, e eu imagino que ele deva estar há muitos anos com ela, que talvez a tenha acompanhado desde bebê até os dias de hoje.

— Vai cantar o quê?

Boa pergunta! Nunca conheci nenhuma cantiga de ninar. Não tenho lembrança alguma sobre como é cantar para alguém dormir, mas penso que deva cantar algo relaxante e doce.

— I see tree of green, red roses too, I seem the bloom for me and you. And I think to myself: what a wonderful world!36 — Tessa sorri, ajeitando-se no travesseiro, e eu suavizo ainda mais a voz: — I see skies of blue and clouds of white, the bright blessed days and dark sacred nights, and I think to myself: what a wonderful world!37

Continuo a canção interpretada por Louis Armstrong, e, antes que eu chegue ao final dela, Tessa já está ressonando baixinho.

— É uma bela escolha de canção de ninar! — Duda comenta, encostada ao batente.

Sorrio sem graça e me levanto da banqueta em que me sentei há pouco, enquanto cantava.

— Estive em dúvida entre essa e Somewhere over the rainbow. — Ela ri, e eu olho em volta, notando as dezenas de quadros com fotos da menina. — Achei que talvez ela conhecesse essa última e que por isso a atrapalharia a dormir.

— Provavelmente ela conhece. No curso de inglês, ensinam muitas músicas.

Começo a caminhar para a porta, mas algo sobre a escrivaninha de Tessa chama minha atenção. Pego o porta-retratos na mão, sentindo meu corpo inteiro gelar. Tessa, ainda bebê, mama tranquila em Duda, que está de costas para a câmera, e vejo poderosos cabelos cor-de-rosa presos em um coque

Pego a moldura seguinte e a vejo nitidamente agora, de frente, rindo muito com uma pequena Tessa também usando cabelos coloridos. A história que ela me contou sobre a visita à Grécia com um grupo de amigas começa a se misturar com a de uma mulher sexy dançando em uma boate de Zakynthos, cabelos pintados de rosa ondulando junto ao seu corpo.

Não!

Ponho o porta-retratos com força sobre o móvel e encaro Duda, tentando puxar alguma lembrança de anos atrás, algum reconhecimento de seu rosto.

— Cabelos cor-de-rosa? — pergunto, tentando me conter.

Ela ri, divertida.

— Pois é, de tempos em tempos Tessa e eu colorimos os cabelos e...

— Por que você não disse? — Duda arregala os olhos como se não tivesse entendido. Olho para a menina, dormindo tranquila em sua cama, e, para não a acordar, caminho até sua mãe e a pego pelo braço, levando-a para seu próprio quarto.

— Theo? — Duda questiona.

— Porra, Duda, que merda de jogo é esse?! — Perco a paciência.

— Jogo? Do que você está falando, pelo amor de Deus?

Não acredito que não descobri a verdade antes! Porra, estava na minha cara o tempo todo! Ela deu várias dicas durante esse tempo que ficamos juntos. Claro! Falou de Zakynthos, do grupo de amigas, dos gregos... Merda!

— Por que não me disse que nós já nos conhecíamos!? — Ela fica séria. — A boate, Duda, na Grécia, lembra-se? Frank e eu nos juntamos ao seu grupo, você dançou comigo, e nós trepamos como doidos dentro da porra de um banheiro!

Maria Eduarda fica branca como cera e se apoia contra o aparador do quarto.

— Não... — ela nega, mas, pelo seu rosto, vejo que é verdade.

— Por que o jogo? Por que não me disse que era você? — Ando de um lado para o outro, confuso, sem entender como essa coincidência aconteceu. — Nós estávamos bêbados demais, eu me lembro pouco da noite, tenho flashes do que fizemos no banheiro e...

— Eu não sei do que você está falando... — sua voz está trêmula e nervosa.

De repente uma ideia passa pela minha cabeça. Quando nos conhecemos na Grécia, eu já estava assumindo a Karamanlis, acompanhando o final da transição sob a direção do meu pai e assumindo suas contas. Talvez, na época, ela não soubesse quem eu era, mas, quando me reencontrou naquele restaurante...

Paro de andar e a encaro.

— Você se lembra, não é? — Vou até ela. — Se lembrou quando nos reencontramos. — Mais uma vez ela nega com a cabeça. — Naquele restaurante, você já sabia que eu era o homem da boate, por isso puxou assunto.

— Theo...

Rio.

— Eu só não entendo por que não disse! Achou mais fácil fazer essa encenação de “eu detesto você!” a me dizer a verdade? Para quê? Fodemos gostoso daquela vez, poderíamos repetir a dose novamente! Mas você queria mais, não é? Não queria somente uma noite, queria me ter nas mãos... — Rosno de raiva. — Como eu caí como um pato! — Rio e não me sensibilizo com as lágrimas dela. Achava que Duda era sincera, mas percebo que é só mais uma manipuladora! — Esse jogo de gato e rato comigo funcionou bem, não é?

— Sai daqui... — Ela limpa as lágrimas.

Duda caminha para fora do quarto, mas a seguro pelos braços antes que chegue à porta da sala.

— O quê? — Rio. — Achou que fazendo um joguinho de moça recatada, fugindo de mim, ficando vermelha quando eu dizia que queria te foder, iria me conquistar? — minha voz soa baixa e irritada, mas não transmite nem mesmo um pouco do que sinto. — Fala alguma coisa! Explica alguma coisa!

Ela se solta e se afasta de mim.

— Eu não sei do que você está falando! — Ela treme inteira. — Vai embora, Theodoros!

Xingo e abaixo a cabeça, tentando me controlar para não a sacudir e a obrigar a falar a verdade. Eu não entendo nada! Não compreendo qual era o jogo, o porquê de ter escondido isso de mim e de ainda estar negando.

Duda caminha até a porta e a abre.

— Sai.

— Eu só quero entender, Duda. Só preciso saber por que não me disse a verdade!

— Não tenho nada a te dizer. — Ela ainda continua pálida, mas tem algo em seu rosto, uma expressão determinada que nunca vi antes. — Saia.

Faço o que ela pede, tremendo de raiva, sentindo-me usado, ultrajado, sabendo que há algo nessa história toda que ela não está me contando. Tenho certeza de que Duda é a mulher da boate; a história e a foto comprovam.

— Sinto informar... — encaro-a antes de sair — mas o jogo acabou.

Ela não diz nada, e o único som que escuto ao sair do apartamento é o da porta batendo com força.


Isso só pode ser um pesadelo!

Minhas pernas trêmulas não conseguem sustentar meu corpo, e eu me abaixo devagar, arrastando as costas contra a porta de madeira, ainda ouvindo os passos de Theo descendo as escadas correndo.

Que brincadeira é essa?

Uma conversa que deve ter durado cinco minutos, mas que destruiu tudo e me deixou em pânico total. Como uma noite tão perfeita pôde acabar desse jeito?!

Theo se mostrou um homem completamente diferente do que eu havia imaginado. Nunca poderia supor que ele teria tanta intimidade e carinho com a minha filha, que conviveria com minha tia e se integraria à nossa família como o fez.

No sábado, quando ele nos levou até sua cobertura, cuidou de nós duas com preocupação e zelo, incluindo-nos em sua vida. Foi tão especial que eu tive que dizer a ele como me sentia. Não foi por gratidão ou qualquer coisa do tipo, eu realmente estou apaixonada por ele, de forma que nunca senti com mais ninguém, nem mesmo com Jean-Pierre, o homem com quem pensei em me casar na França.

Soluço ao pensar em todos os sonhos que já estava, mesmo não o devendo fazer, cultivando acerca de nossa relação. Eu sentia que Theo também não era indiferente a mim, não só no sentido carnal, mas em suas emoções. Por vezes notei seu olhar perdido, tentando entender o que estava acontecendo.

Amor! Era o que estava acontecendo conosco.

Agora já não importa. Ele acha que eu o enredei em alguma espécie de jogo, que eu sabia quem ele era desde o começo, que usei a atração que sentíamos um pelo outro para conseguir fazê-lo desistir do Hill. Rio, desgostosa, ao pensar que, nesse momento, ele me compara a uma puta que vende seu corpo em troca de algo.

— Minha filha... — Tia Do Carmo toca meu ombro, e eu a encaro.

Sua expressão preocupada não me passa despercebida, e tento juntar o resto de forças que tenho e me colocar de pé. Seco as lágrimas, mesmo querendo chorar muito mais, consciente de que tenho algo muito mais importante para proteger do que os cacos do meu coração.

— Ele foi embora. — Minha tia arregala os olhos. — Acabou.

— O que houve? — sua voz demonstra surpresa e apreensão. — O que ele fez para deixá-la assim?

— Não era para ser, tia. — Dou de ombros. — Estou chateada, mas vai passar.

— Duda... Minha filha, eu te conheço. E posso não entender nada de relacionamentos, afinal, nunca tive um, mas posso ver como vocês dois estão apaixonados, é nítido!

Seguro um soluço e engulo o choro.

— Não importa. Isso agora não importa mais.

Sigo para o quarto, e ela fica parada no meio da sala, sem entender o que está acontecendo. Pois bem, também não entendo muita coisa, mas a decisão já está tomada: ficar longe de Theodoros Karamanlis.

 

 

Acordei bem cedo hoje e fiz questão de acompanhar Tessa até o colégio, conversar com a professora e deixar todos os meus telefones para que entre em contato comigo caso algo aconteça.

Ainda vai demorar um tempo para saírem os resultados dos exames, e por isso mesmo estamos todos com muita atenção a qualquer alteração que ela possa ter.

Voltei da escola, dispensei o almoço que minha tia preparou e fui adiantar as coisas no Hill. Por conta das férias e da saúde de Tessa, fiquei pouco no restaurante, então preciso me inteirar de tudo. Permaneci em minha sala, onde estou até agora, vendo os balanços de caixa, pagamento de fornecedores, e, com orgulho, li o bilhete do Leonan informando que não há mais nenhum débito com ele e que eu posso ficar tranquila, que tudo está certo, “no comando”.

O alívio foi gigante!

Eu sei que pode parecer loucura, mas vi aquele menino brincando com meu irmão, conheço os pais dele. Sei que tomou o caminho errado, o do crime, e eu realmente gostaria de que ele se emendasse, mas, apesar de tudo, sei que posso confiar nele. Foi um bom amigo para meu irmão na hora mais difícil, arriscou-se para o ajudar, e isso, eu nunca esquecerei. Não obstante, é um alívio não dever mais nada aos “chefes” dele.

Consulto meu saldo no banco e penso no dinheiro que tenho guardado para pagar o agiota que sumiu. Todo mês deposito a quantia, mas não tenho a quem entregá-la. Há meses não tenho notícias, o que é muito estranho, pois o homem é um escroto vigarista.

— Duda! — Manola me chama.

— No escritório! — Ela aparece ao batente da porta com um vestido vermelho, os cabelos presos em um coque e o sorriso de quem não dormiu a noite toda. Sorrio. — Achei que não fosse te ver hoje!

Ela gargalha e dá de ombros.

— Dionísio tem que levar o poderoso chefão para o aeroporto hoje à noite, então resolvi deixar o pobre descansar. — Senta-se ao meu lado. — Você está bem com essa viagem dele para a Grécia?

Respiro fundo e não respondo. Fico um tempo pensando no que fazer enquanto ele está longe, porque certamente não vai esquecer essa história de que me conhece e, quando começar a ligar as datas...

— Duda? — a voz de Manola soa preocupada. — O que aconteceu? Você está pálida.

Olho para ela e não suporto mais, desmorono chorando contra seu abraço.

— Ah, porra, o que aquele grego filho de uma vadia fez contigo?

Não consigo dizer nada, só choro, deixando as lágrimas que mantive presas desde a noite passada fluírem sem freio sobre meu rosto.

— Duda? Ele terminou contigo? Te machucou? Pelo amor de Deus, me conta!

Tento me controlar, seco o rosto, e Manola vai até o filtro pegar água. Bebo devagar, soluçando feito criança, e tento explicar a ela toda a história.

— Lembra que te contei sobre uma viagem a uma ilha grega?

— Sim, quando terminou o curso, não foi?

Assinto.

— Dois homens se juntaram ao nosso grupo. Os dois eram incríveis. Eu me lembro de ter ficado impressionada com um deles, o que tinha olhos azuis.

— Ah, meu Deus! — Manola põe a mão no coração.

— É, era o Theo. Eu nunca soube o nome de nenhum deles, mas agora entendo por que o Frank Villazza me pareceu tão familiar. Foi ele quem saiu com a Ally e com a Èlene.

Manola balança a cabeça, rindo ao se lembrar da história que lhe contei. Foi uma verdadeira guerra para convencer as meninas a voltarem conosco, porque as duas cismaram em ficar com o italiano, pois ele prometera mandá-las de volta em outro voo, no dia seguinte. Era loucura, ninguém conhecia o homem, e nós as tiramos do iate dele.

— Duda... isso significa que ele pode ser o pai da Tessa? — ela diz em voz alta todos os meus temores.

Choro novamente e aquiesço.

— Puta que pariu! Mas que destino mais vadio! — Ela me abraça. — O que você vai fazer?

— Ele acha que eu sabia de tudo o tempo todo. Que o reconheci... — Manola arregala os olhos. — Que me aproveitei do “tesão” que tínhamos desde aquela época para usá-lo e convencê-lo a não continuar tentando comprar o Hill.

— Ele é louco? Isso não faz nenhum sentido!

— Eu sei! Mas estávamos todos bêbados, e ele não se lembra de muita coisa.

Manola franze o cenho.

— Então como ele ligou uma história à outra?

— Ele viu as fotos no quarto da Tessa. — Manola xinga. — Eu não posso arriscar perdê-la, Manola, não posso! Se ela for filha dele, Theo com certeza tentará tirá-la de mim.

— Você não tem ideia mesmo de quem é o pai? — Nego. — Eu nunca achei que o francês fosse o pai, Tessa nada lembra a ele! — Ela pega o celular e depois me mostra uma foto. — Sabe quem é?

Um homem com olhos do mesmo tom dos da minha filha, cabelos lisos e claros como os dela e traços muito semelhantes aparece na foto. Meu coração dispara, e eu nego.

— Alexios Karamanlis. — Tampo o rosto com as mãos. — É um dos caçulas. Tem uma irmã também...

— Com os mesmos olhos. — Manola assente. — O que a difere da minha filha é a cor dos cabelos, que é mais parecida com os de Theo.

— Aquele outro que vinha aqui direto também tem os cabelos mais claros e olhos verdes. É um traço de família, aparentemente. — Minha amiga pega minhas mãos. — Não é melhor abrir o jogo com ele? — Nego. — Duda, e se ele fizer as contas e...

— Ele nunca vai supor que uma transa com camisinha possa ter gerado um filho. Eu pensei muito nessa noite, quase não dormi e acho que a melhor solução é mantê-lo longe de nós. — Manola nega, mas minha decisão está tomada. — Ele já pensa que eu sabia de tudo e que o usei. Imagina se souber que Tessa é filha dele, o que irá pensar?

Ficamos um tempo em silêncio, digerindo todas essas informações.

Não quero perder minha filha, e Theo tem dinheiro e influência para fazer isso se quiser. Não posso arriscar. Mesmo que isso me rasgue por dentro, não posso arriscar!

— Como você está com essa história toda?

Rio conforme as lágrimas escorrem.

— Destruída. Esse passado é como uma sombra sobre mim, você sabe. — Ela assente. — Tantas mentiras criadas, tantas verdades que eu gostaria de esquecer. E agora ele volta com tudo e da pior maneira possível.

Deus do Céu! Por que isso tinha que acontecer agora? Por que ele?

Tessa é a pessoa mais importante da minha vida, é minha filha, meu coração. Nada está acima dela, e por isso mesmo não posso perdê-la. Não sei se o que faço é justo, mas não tenho ideia de como será a reação de Theodoros ao saber a verdade e não posso correr o risco de ele tirar a menina de mim.

— O que você está pensando em fazer? — Manola aponta para os documentos sobre a mesa.

Respiro fundo, armo-me de coragem, ignoro a dor em meu peito e respondo:

— Vou vender o Hill para a Dominus.

— Você tem certeza disso? — Assinto, e ela sorri. — Estarei contigo! Onde quer que você for trabalhar, conte comigo!

Abraço-a, agradecida e emocionada pelo apoio.

— Ainda não sei para onde vou, mas não quero mais ficar em São Paulo. Eu...

Meu telefone celular toca, e reconheço o número da escola de Tessa.

— O que houve?! — atendo apavorada.

— Maria Eduarda Hill? — a mulher do outro lado da linha questiona, e eu confirmo. — É Patrícia Avellar, da escola de Tessa. Estou entrando em contato para avisar que sua filha teve um desmaio em sala de aula e que nós chamamos uma ambulância...

— Ambulância?! — Levanto-me. — Como ela está?

Manola também se põe de pé e pega a chave do utilitário do restaurante, pronta para me levar aonde for preciso.

— Desacordada ainda — sua voz está preocupada. — Estamos indo para o hospital...

Saio correndo com Manola atrás de mim para a garagem do Hill, tremendo e chorando, pegando o nome do hospital, sem saber o que está acontecendo com minha menina.

Meu Deus do Céu, o que é isso tudo?!


O desespero toma conta de mim, pois sinto que algo de muito sério aconteceu com Tessa. Não consigo parar de tremer dentro do carro, agitada, impaciente a cada farol vermelho que temos que esperar abrir para podermos prosseguir até a emergência para a qual Tessa foi levada pela ambulância.

Deve ter sido algo muito sério, sei disso!

Olho para Manola na direção do veículo, porém, tão tensa quanto eu, e tento segurar o choro. Parece que o céu resolver cair sobre minha cabeça de uma só vez!

— Vai dar tudo certo, Duda! Ela estará bem, você vai ver!

Não respondo, apenas fecho os olhos e vou rezando todas as orações que me foram ensinadas na infância, clamando a Deus para que não me tire Tessa, que me leve em seu lugar se preciso.

Mal Manola encosta o carro na guia da calçada, eu já pulo para fora, indo correndo até a recepção e pedindo informações sobre o quadro da minha filha. Avisto a professora que me ligou. Imagino que seja ela, pois seu rosto é de pura aflição, e isso não me parece ser boa coisa.

— Duda Hill? — ela questiona, pois não nos conhecemos. — Que bom que chegou!

— Como está minha filha? O que houve? — pergunto olhando para todos os lados, esperando que alguém do hospital venha com as informações que pedi.

— Acho que está bem agora, mas levamos um susto tão grande! — A mulher chora. — Eu estava dando aula de artes quando de repente ouvi gritos. Tessa estava sangrando e pálida, muito pálida...

— Foi o nariz?

Patrícia nega.

— A boca. As gengivas... — Ela põe a mão no rosto. — Eu achei que ela tivesse batido em algo ou mesmo que algum colega a tivesse atingido, mas não, ela não parava de sangrar e de repente desfaleceu nos meus braços e...

— Maria Eduarda Hill? — uma médica chama meu nome. — A senhora é a mãe de Tessa Hill?

— Sim, sou eu. — Respiro fundo e indago: — Como ela está, doutora?

— Preparando-se para ser transferida. — Arregalo os olhos diante da informação. — Precisamos de sua assinatura em alguns documentos e...

— Espera! Transferida para onde e por quê?

A médica olha a recepção lotada e fecha os olhos.

— Desculpe, plantão tumultuado. — Eu assinto. — Ela chegou aqui ainda com muito sangramento e pressão sanguínea muito baixa. Contivemos a hemorragia, a colocamos no soro, e um dos meus colegas decidiu fazer um hemograma...

— Fizemos um no sábado. Ela estava com contagem de plaquetas baixa e...

— Sim, mas agora não são só as plaquetas. — Ela lê o prontuário em sua mão. — Foi constatada uma pancitopenia, diminuição de todas as células do sangue, o que indica que há algum problema na produção, direto na medula, ou estão sendo destruídas durante a circulação. — Sinto meu corpo inteiro gelar. — Como não temos especialista nem mesmo condições de realizar todos os exames aqui, decidimos transferi-la para um hospital de referência e estamos tentando uma vaga.

Eu me sinto tonta, perplexa demais, e, por sorte, Manola já está perto de mim e me segura com força para que eu não desabe. Preciso ser forte, preciso estar forte até que tudo esteja resolvido.

— É leucemia, doutora? — inquiro. Minha voz quase não sai, tamanho medo que sinto.

— Como disse, precisamos de mais exames, pode ser muita coisa! No momento ela está recebendo uma transfusão sanguínea, e nós já a medicamos.

— Nós podemos vê-la? — Manola pergunta.

— Apenas uma pessoa. Não temos condições de receber mais lá dentro.

Olho para Manola, e ela assente, indo comigo até a porta da enfermaria, permanecendo na recepção enquanto sigo a médica.

Tessa está na cama, recebendo sangue enquanto dorme. Seu rosto está pálido, sua blusa de uniforme, ensopada de sangue. Ponho as mãos sobre o rosto e choro silenciosamente para que ela não escute, engolindo cada soluço de pânico. Não posso perder minha menina!

 

 

Manola me acorda lentamente, e eu abro os olhos esperando ver meu quarto ou mesmo a bancada do Hill, pois muitas vezes cochilei em pé durante um expediente. Infelizmente estou em um quarto de hospital, isolada, vendo minha filha dormindo em sua cama do outro lado do vidro que separa os cômodos.

Os dias não têm sido fáceis! Primeiro, acompanhei a transferência dela para cá e a acomodação dela no quarto. Comentei com o médico que tínhamos feito exames no domingo e lhe dei o nome do laboratório. Não queria que furassem minha pequena de novo, mas eles o fizeram, pois incluíram mais pedidos.

O laboratório de confiança de Theo enviou os resultados – em pedido de urgência – para o médico que nos atendeu, doutor Felipe, um hematologista. Tessa acordou no meio do dia, pouco antes de tirarem sangue novamente, e chorou bem assustada, o que cortou meu coração.

— Você vai ficar boa, minha filha, eu prometo! — disse a ela, querendo muito lhe tocar, mas, como suas defesas estavam muito baixas, eu estava usando luvas, uma roupa especial em cima da minha, touca e máscara.

Os médicos recomendaram que eu ficasse a maior parte do tempo do outro lado do quarto, na parte de espera e que a deixasse sozinha. Eu conseguia falar com ela de fora, mas não era a mesma coisa do que estar perto dela.

— Ela está numa fase bem aguda, então todo cuidado é pouco — explicou o médico. — Os exames não são bons, Maria Eduarda, mas excluímos algumas doenças e espero ter o diagnóstico em breve, aí poderemos iniciar o tratamento, pois o que estamos fazendo até o momento é apenas cuidando para que ela não piore.

Manola foi para o Hill, e eu percebi que estava certa em pensar em vender. Era o momento. Liguei para o número que o representante da Dominus deixou comigo e negociei pelo telefone mesmo, marcando dia e horário para assinarmos os papéis.

Tia Do Carmo ficou com Tessa para que eu finalizasse tudo, e, com muito choro, despedi-me do pessoal do Hill. A Dominus iria manter os funcionários. Arrumei minhas coisas no apartamento e fiquei um bom tempo sentada na minha cama, lembrando-me de todos os momentos que passei dentro daquele lugar, desde meus primeiros anos de vida até hoje.

Lembranças da minha mãe, do meu pai e do meu irmão, minha família, que perdi aos poucos, calaram fundo dentro de mim, e pedi a eles que entendessem o que eu estava fazendo. Foi impossível não lembrar dos momentos com Theo aqui também, nossa primeira vez juntos, mas respirei fundo e foquei no que era mais importante, mesmo sentindo o coração doer por causa do que ainda sinto por ele. Não sei como será a luta daqui para frente. Eu não conseguiria dar conta do Hill – mesmo à distância – e cuidar de Tessa., além dos custos altos de seu tratamento. Viemos para um hospital de referência, e ele não era perto da minha casa.

Fechei o apartamento, levando comigo algumas das lembranças de toda a minha família e retornei ao hospital. Manola, que já tinha separado e visitado alguns imóveis no entorno do hospital, esperava-me para fechar negócio e tratar da mudança da minha família. Minha amiga decidiu não ficar com a Dominus e se dispôs a nos ajudar sempre que necessário. Nos visita direto e está com a vida em suspenso esperando o que vou fazer da minha quando tudo se resolver e eu puder pensar no futuro.

Os dias foram se transformando em noites e em novos dias, e eu nem percebia, pois não saía de dentro do hospital. Uma semana se passou até que o diagnóstico de Tessa fosse revelado. O último exame, uma biópsia da medula óssea, confirmou o diagnóstico tão temido pelo médico: anemia aplástica grave.

As três palavras mais doloridas da minha vida.

Eu tinha tanto medo de ser câncer que não fazia ideia de que essa doença é ainda mais dura do que a leucemia. Doutor Felipe tentou me explicar, amenizar e falar em sobrevida.

Sobrevida!

Não queria nem pensar em passar anos com medo de perdê-la, principalmente caso não achássemos um doador compatível, era uma perspectiva terrível demais.

Eu ia ao quarto dela todos os dias, e nós planejávamos sua festinha para comemorar seu aniversário no dia 2 de abril, e eu via o quanto ela estava esperançosa de já estar em casa. Como eu diria a ela que não seria possível? Que ela teria de ficar à espera de que um doador aparentado fosse compatível para um transplante de medula? Doutor Felipe de pronto descartou a possibilidade de um doador alternativo, ou seja, fora do parentesco dela, explicando que as chances eram muito pequenas de compatibilidade, além da alta chance de rejeição.

Nossas opções eram: achar um parente compatível ou começar um tratamento severo e arriscado usando imunossupressores que a deixaria ainda mais exposta a infecções, mas que poderia impedir a lesão de compartimentos celulares importantes que causam a insuficiência da medula óssea.

Eu precisava entrar em contato com o Theo urgentemente. Nada mais importava, eu tinha que salvar a vida da minha filha.

Liguei para o celular dele, mas infelizmente caiu algumas vezes na caixa postal. Já estava ficando desesperada quando lembrei do Millos, o primo dele e meu primeiro contato com os Karamanlis. No entanto, também não consegui falar com ele no número que eu tinha.

Pensei em ir até a empresa, mas Theo estava de férias na Grécia. Pouco adiantaria se eu fosse até lá. Meu desespero só aumentava a cada dia que passava, e eu via minha filha usando bolsas e mais bolsas de concentrado plaquetário.

Há dois dias consegui completar uma ligação para o celular do Theo e quase chorei de alívio ao ouvir a resposta em português do outro lado da linha:

— Alô?

— Theo! Graças a Deus! Eu precisava muito falar com você...

— Quem fala? — a voz com forte sotaque e uma leve rouquidão típica de quem fuma me fez perceber que não era Theodoros quem me atendera.

— Eu gostaria de falar com Theo. É urgente. Diga a ele que Duda Hill ligou.

— Duda Hill? — O homem pareceu reconhecer meu nome. — No momento, Theodoros não pode atendê-la, pois ele está lambendo as bolas do meu pai, tratando de seu casamento. — Senti meu corpo inteiro gelar. — Então não acho que ele tenha interesse em alguma puta brasileira... Não que ele não goste, pelo contrário, ele gosta muito, mas...

Desliguei o telefone sem conseguir ouvir mais nada, tremendo, sem conseguir entender o que ele quisera dizer com essa conversa louca sobre casamento, puta brasileira e toda essa história. Eu precisava falar com ele sobre a possibilidade de ele ser pai da minha filha e por isso poder salvá-la. Nada mais me importava.

Há quase 15 dias, estou sem sair deste hospital, sem ver ninguém a não ser quem vem nos visitar, sem conseguir dormir ou comer direito, chorando todas as noites, velando o sono da minha pequena. Eu não tenho parentes, não sou compatível, até mesmo minha tia e Manola testaram a compatibilidade para serem opção, mas nenhuma delas também é.

Estou entrando em desespero já. Leio vários estudos sobre o caso e cada vez mais sinto meu coração se quebrar ao perceber que, sem o transplante, as chances de Tessa são mínimas.

— Você cochilou aí toda torta. — Manola sorri sem jeito, despertando-me das lembranças dolorosas. — Não quer ir para o apartamento? Você mal esteve lá desde que o alugamos e...

Levanto-me e pego minha bolsa.

— Preciso ir à Karamanlis — digo determinada. — Não consegui falar com Theo, mas deve haver um maldito irmão dele que possa me ajudar, ou aquele desgraçado do primo que ficava nos rondando feito um abutre, mas que agora sumiu!

— Duda, você tem certeza? Eu posso ligar para o Dionísio e pedir a ele que...

— Não! Chega de recados. Dio disse que Theo tem previsão de voltar somente no final do mês ou mesmo durante o feriado de Carnaval. Não vou perder mais tempo, mesmo porque o doutor disse que pais raramente são compatíveis.

— Sim. — Manola me abraça. — Tenha fé, minha irmã, nossa menina vai sair dessa.

— Ela vai, eu tenho certeza!

Saio do hospital marchando feito uma doida e chamo um Uber assim que chego à calçada, tomando caminho para a Avenida Paulista, onde fica o prédio da empresa em que nunca achei que fosse pisar um dia.

 

 

— Não, infelizmente o doutor Millos não se encontra. A senhorita tem horário agendado?

— Não — digo à recepcionista, ainda no saguão do prédio.

Como fui idiota achando que conseguiria entrar assim, dizendo que queria falar com um dos diretores e pronto, ele iria me atender. Claro que não! Aqui não é uma imobiliária, pelo amor de Deus, é uma empresa de gestão e venda de patrimônio que faz negócios no mundo inteiro!

— Eu posso transferir para a secretária da diretoria e ver se ela consegue agendar algo.

— Por favor, faça isso, eu...

— Minha chave de acesso do elevador parou de funcionar novamente — um homem alto, com ombros muito largos, pele morena e olhos azuis me interrompe, visivelmente irritado. — Me dê uma nova, por favor, e abra um chamado de novo para esses incompetentes.

— Claro, doutor Karamanlis.

Encaro-o com mais atenção, tentando lembrar os nomes dos irmãos do Theo. Alexios é o louro, esse então é...

— Kostas! — lembro e falo em voz alta, chamando sua atenção. — Konstantinos, certo? — Ele arqueia sua sobrancelha e me olha de cima a baixo, abrindo um sorriso lentamente.

— Depende... Quem é você?

— Maria Eduarda Hill. Eu sou...

— Ah... — Ele ri e me analisa de novo. — Eu esperava coisa melhor.

Franzo o cenho, mas decido ignorá-lo, pois meu assunto é urgente.

— Eu preciso falar com um de vocês. Minha filha está muito doente... — explico a ele toda a situação de Tessa, inclusive digo o nome do hospital onde ela está, mas ele parece impassível. — Eu preciso falar com o Theo...

— Ah! Entendi! — Sorri malicioso. — Ele já enjoou de você, não foi? — respiro fundo ao ouvir a voz debochada. — Olha, você deve ter algo muito especial entre as pernas para ele ainda não ter cobrado a promissória.

Encaro-o surpresa.

— Que promissória?

— Ah, não sabia?! — Ele cruza os braços. — A promissória que seu pai, aquele viciado em jogo, assinou com o agiota para alimentar a farra.

Recebo mais esse baque e me escoro contra o balcão da recepção. Imagens do agiota asqueroso, suas ameaças, o medo que senti durante todo esse tempo sem notícias, todo o dinheiro que já entreguei a ele me assolam conforme penso que Theo estava com a maldita promissória!

Maldito mentiroso!

Ele disse para mim que iria tentar fazer a Karamanlis desistir do Hill, mas estava com a promissória enquanto eu sofria sem saber de notícias! Olho para o rosto do nojento e insensível Konstantinos Karamanlis, ponho minha bolsa sobre o ombro e saio da empresa, odiando-me por precisar deles, sabendo que terei de engolir meu orgulho e lhes pedir que testem compatibilidade com Tessa.

Fico um tempo andando sem rumo na Paulista, entro no Parque Trianon para pensar no que fazer e só depois volto para o hospital, chorando e recebendo lencinhos de papel da motorista do Uber, tentando estancar minhas lágrimas de desespero e decepção.

Quem são essas pessoas? Quem é Theodoros Karamanlis? Será que me enganei tanto assim com ele?

Desço do carro e avisto, na porta principal do hospital, um rosto levemente conhecido. A mulher bonita e morena, com cabelos platinados, roupa de grife e bom gosto se aproxima e me entrega um arranjo de flores.

— Soube de sua filha, sinto muito. — Ela percebe que eu não sei quem é. — Viviane Lamour. Nos conhecemos no clube de jazz.

— Ah...

Sorrio sem jeito, consciente do meu rosto inchado de chorar, nariz vermelho e roupa amarrotada de pelo menos dois dias sem trocar. Foda-se!

— Theo me disse que vocês estavam aqui, e eu quis fazer uma visita. — Dá de ombros como se isso não fosse nada, mas meu coração dispara. — Ele agora está ocupado com o noivado com a Valentina, então pensei que talvez você estivesse se sentindo um pouco rejeitada. — Devo ter ficado branca de susto, pois ela sorri. — Bem-vinda ao clube! Ele é assim, nos faz sentir especiais e depois simplesmente parte para outra, descartando sem dó e sem olhar para trás.

Theo noivo?! Valentina... onde eu ouvi esse nome?! Lembro-me dos telefonemas dela à madrugada e da noite em que saí com Theodoros e que encontramos Viviane no clube e ela fez questão de tocar nesse nome, o que incomodou Theo. Recordo-me ainda que ele me contou uma história sobre ter começado a sair com a moça, mas que o relacionamento não tinha vingado.

Noivos?!

Quase não consigo respirar. Não tenho reação, só vejo o sorriso cínico de Viviane. Minhas mãos apertam as flores que ela me entregou, sentindo-as queimarem minhas palmas como se fossem puro veneno.

Deus do Céu, essa mulher já tem ideia do inferno que estou passando, ainda precisava vir aqui para tripudiar de mim?

Tento respirar e encontrar minha voz para lhe responder e, mesmo tremendo inteira, sentindo uma dor horrível ao respirar, como se algo esmagasse meu peito, digo:

— Você não tem sentimentos? Minha filha corre o risco de morrer, e mesmo assim você acha que tem o direito de vir aqui me humilhar? — Jogo as flores contra ela. — Não me interessa o que Theo fez ou deixou de fazer “conosco”, nem mesmo com quem ele está! Não me importa!

Viviane olha para os lados, visivelmente constrangida por eu estar falando alto.

— Ele vai se casar com Valentina, ela lhe dará o filho que ele tanto quer, então concentre-se em sua criança doente e nos deixe em paz!

Arregalo os olhos diante de sua insensibilidade. Sinto vontade de bater nela e nunca senti isso antes, nunca quis tanto partir para a violência como agora. Acalmo-me lembrando que Tessa precisa de mim e que, se me deterem por agressão – porque, juro, se eu tocar nela, vai sair daqui quebrada –, não poderei estar ao lado da minha filha.

Saio de perto dela andando de cabeça erguida até sumir de sua vista. Tremo tanto que meus dentes batem, tamanha fúria, tamanha dor.


— Theodoros Geórgios Karamanlis, meu neto preferido! — pappoús me saúda assim que me vê entrar em sua sala privada na mansão da família em Atenas. O velho Geórgios Karamanlis está sentado em sua poltrona preferida, com um cobertor nas pernas e perto da lareira. Está frio em Atenas, é inverno, mas ainda assim eu sinto um enorme calor na saleta.

Estar de volta a essa casa sempre me traz lembranças agridoces. Passei boa parte da minha vida aqui, desde meu nascimento. Acho que nunca contei isso para vocês, não é? Bem, não é uma história muito longa.

Meu pai, Nikolaous Karamanlis, estava com 19 anos quando engravidou minha mãe, Rhea Matsoukas, com 17 anos e filha de pescadores que mantinham um negócio na cidade com a venda de pescado. Tenho muito dela fisicamente, o formato do rosto, dos olhos, do nariz e não sou tão corpulento quanto Nikkós e Kostas, por exemplo. Herança da família Matsoukas.

Os dois foram obrigados a se casar. Meu avô paterno concordou com isso para dar “legitimidade” ao seu primeiro neto, mas bastou que ela me parisse e os casos do meu pai se tornassem públicos para que a jovem e bela moça aceitasse uma grana gorda de pappoús e sumisse do mapa, deixando documentos de divórcio e um filho recém-nascido para trás.

Não posso reclamar da minha criação na infância. Não tive muito carinho, mas tive atenção da minha giagiá Dorothea, e o pouco sobre “família”, aprendi com ela e depois, com a chegada de Millos para morar conosco, separado de seus pais por questão de sobrevivência e sanidade mental – mas essa não é minha história para contar.

Pois bem, aqui eu cresci com minha avó nos levando à Igreja da Grécia e com meu avô nos ensinando que Deus é ter poder, e o poder advém das posses de uma pessoa. Frequentávamos a escola e erámos tutoreados em casa também, com o próprio Geórgios a nos dar aulas de economia, mercado e transações financeiras diversas. Ainda me lembro de quando meu pai, recém-separado da mãe do Kostas, decidiu ir trabalhar com tio Sergios no Brasil.

Ele conseguiu derrubar o irmão mais novo em pouco tempo e assumiu a Karamanlis de São Paulo. A partir daí começou o desfile de secretárias, prostitutas, dívidas com drogas, escândalos atrás de escândalos.

Balanço a cabeça, determinado a não deixar que dessa vez tudo isso me atinja e eu sinta todas as dores do meu passado novamente. Já foi, é hora de superar!

— Pappoús! — Vou até ele e beijo sua mão, agachando-me aos seus pés. — A ligação do seu médico me assustou. O que houve?

A velha raposa sorri.

— Indigestão, mas parecia um ataque cardíaco.

Não acredito que viajei feito um louco, uma semana antes do prazo, por causa de uma maldita azia! Rio de mim mesmo, tão idiota e sempre fazendo as vontades do vovô.

— Eu abandonei a empresa antes mesmo de Millos voltar de férias, pappoús!

— Theodoros, eu sou a Karamanlis, nada é mais importante que seu avô. — Ele passa a mão em meus cabelos, principalmente na fronte, onde tenho a maior concentração de fios brancos. — Seus cabelos são escuros como os meus. — Ele levanta meu rosto. — Seus olhos são azuis, mas é só o que você tem dos Karamanlis. — Sorri triste. — Infelizmente, o mais parecido comigo é o Konstantinos, mas também herdou o caráter de seu pai.

— Alexios parece com tio Geórgios — provoco um pouco.

— Isso é o que vocês querem enxergar! Não posso assumir que o filho de uma prostituta seja meu neto.

— DNA resolve, sabia?

Ele dá de ombros.

— E Kyra? — pergunta-me, indo direto à ferida. — Minha única neta não vem me ver há anos!

— O senhor sabe que eu não posso ajudar quanto a isso.

— Eu sei, Theodoros, acompanhei e salvei você naquela época. Pobre menina...

— Pappoús! — Levanto-me. — Estava prevista mais uma sessão de tortura antes de seu aniversário? Foi para isso que vim mais cedo?

— Não seja dramático, Theodoros, não te criei um maricas! — Joga o cobertor de lado e se levanta, poderoso, postura ereta, e eu sinto meu sangue ferver.

Filho da puta, enganando a todos com uma aparência frágil, fazendo-nos acreditar que está às portas da morte, quando parece que ainda tem uns 70 anos e não os 90 que fará daqui uns dias!

— Por quê? — questiono o teatrinho enquanto ele diminui a potência da lareira.

— Conhece a máxima do “rei morto, rei posto”? — Assinto. — Quero saber como as coisas ficarão depois da minha morte, mas, como estarei morto... — Ri, e eu franzo o cenho, ainda sem entender. — Bastou um resfriado para seus tios começarem a brigar entre si, e eu quis ver onde ia dar.

— Se fingindo de moribundo para ver o circo pegar fogo. Típico! — Sento-me em uma das poltronas. — Não sei como ainda acredito nas suas doenças.

Ele ri.

— Você não é lá muito esperto, Theodoros — rio por ele me jogar isso na cara e nem faço mais questão de lhe lembrar que eu tinha só 18 anos quando tudo aconteceu. — Mas o que lhe pedi, independentemente de minha saúde, continua valendo.

Bufei.

— Já está sendo providenciado, não se preocupe com isso — corto o assunto.

— Não gosto disso, Theodoros! — Cruza os braços. — Não gosto mesmo!

Bom, nem eu, mas isso não me preocupa mais. Realmente já resolvi essa questão de casamento e filhos, então não vou me preocupar mais com isso. Não enquanto minha cabeça está fervilhando com a última descoberta que fiz.

Maria Eduarda Hill é a mulher com quem transei há quase nove anos em uma boate! É algo tão impossível de se crer que me parece totalmente surreal. Quase uma década depois, nós nos encontramos de novo, e isso me passou despercebido.

Eu sei, já transei com muitas mulheres. Algumas fodas foram bem marcantes devido às circunstâncias, como a da boate, por exemplo. Eu nunca tinha trepado em um banheiro daquela forma, e a adrenalina misturada ao álcool, além dos flashes de lembranças já distorcidas pelo tempo fizeram com que eu usasse essa fantasia por bastante tempo.

Foi realmente muito bom, e é por isso que eu não entendo como não reconheci a Duda em todo esse tempo em que dormimos juntos! Nada nela me fez lembrar aquele momento, nem seus beijos, seu corpo, o jeito como trepamos, nada! Sim, eu sentia um estranho reconhecimento, mas não ligado ao passado, pelo contrário, era algo que eu nunca consegui explicar e que só fez sentido quando me dei conta de que estava apaixonado por ela.

Era mais do que meu corpo que reconhecia aquela mulher.

Gemo, e meu avô me dá uma olhada desconfiada, porém, o ignoro. Nunca pensei em reencontrar a mulher da boate, nunca nem mesmo a procurei ou tentei. Poderia se quisesse. Frank sabia o nome das suas amigas e onde estudavam em Paris, bastava perguntar. Contudo, não, nada me puxou para ela a não ser a fantasia de um sexo etílico e bem diferente do que eu estava acostumado a fazer.

Ainda agora tenho certeza de que Duda é aquela mulher, mas não consigo vê-las como a mesma pessoa. Claro, muitos anos se passaram, Maria Eduarda era mais jovem, ainda não tinha a Tessa, podia estar em uma fase mais liberal e hoje ser mais comedida ou mesmo ter sido assim apenas com o propósito de jogar comigo.

Sinceramente, ainda estou muito confuso com isso tudo. Julgava Maria Eduarda como a pessoa mais sincera que já havia conhecido, e o fato de ela ter escondido de mim que já havíamos nos conhecido, bem como ter continuado a se fazer de desentendida quando descobri tudo mexeram demais comigo.

Ouço uma batida à porta da saleta. Assisto, rindo bastante, ao meu avô voltar à poltrona e cobrir as pernas com um cobertor antes de autorizar a entrada.

— Pai, eu... — Nikkós se interrompe ao me ver.

Olho para trás e o encaro, no alto dos seus quase 2m de altura, pele morena, nariz grande e com a ponta curvada para baixo e enormes olhos azuis. Os cabelos, antes escuros, já estão bem grisalhos, penteados para trás como Kostas os usa também.

— Ora, ora. — Cruza os braços. — Eis que o favorito do vovô retorna ao lar!

Ignoro a provocação dele e apenas o cumprimento com a cabeça. Não estou com o mínimo humor para os melindres de meu pai. Nós já nos resolvemos anos atrás, inclusive com punhos, então não me sinto devedor dele em nenhum momento, mas ele sempre se faz de vítima.

Levanto-me, sem querer estar no mesmo local que ele por muito tempo.

— Vou para meu quarto. Estou cansado da viagem e...

— Amanhã partiremos para Villa Dorothea — meu avô informa.

— Em Porto Cheli?

Ele assente, e eu suspiro cansado.

Nada animador pensar em ficar com meus tios, tias e primos – além do meu pai e sua nova esposa – em uma casa de praia isolada de tudo. Penso no iate, parado na marina há alguns anos e decido que é hora de tirá-lo de lá, prepará-lo e ficar mais tempo nele do que em terra.

Sigo até a saída da sala, mas meu pai me detém.

— Soube que finalmente conseguiram algo para comprar aquele boteco da Vila Madalena. — Ergo uma sobrancelha, mas não lhe respondo. — Você deve estar se sentindo muito satisfeito, não é? Tomou meu lugar, conseguiu avançar no negócio que foi responsável pela minha derrocada na empresa...

— O único responsável pela sua derrocada, em qualquer lugar, não só na Karamanlis, foi você mesmo.

Ele ri da minha resposta, e, antes que eu saia, escuto-o dizer:

— Sabrina está em Atenas, para sua informação.

Travo os punhos, olho para meu avô, que está visivelmente aborrecido com o filho, e sigo para meu quarto, já prevendo o tormento que será essa reunião de família. Meus irmãos e o Millos têm sorte de não estar aqui. É uma tortura equivalente à de Procusto!38

 

 

— Theo! — Andrea me cumprimenta, e fico admirado ao ver o quanto ele cresceu nesses anos em que não vejo tantos da família reunidos.

Claro que, antes de partir com seu séquito para o Peloponeso, meu avô decidiu reunir os filhos e netos que já estão em Atenas para uma “confraternização” familiar. Confesso que nunca me acostumo com a multidão que é essa família, mas, para um homem com sete filhos – um morto sem herdeiros – e 22 netos, a casa pode se considerar vazia com 12 pessoas presentes.

Três dos meus primos mais velhos – filhos de tio Sergios – já se casaram, mas ainda não produziram um bisneto para o velho Karamanlis, por isso a expectativa está em cima de mim. Ano passado um dos meus primos, Ullysses, casou-se com o namorado com quem morava há anos, em Londres, e isso quase matou a velha raposa – inclusive soube que teve uma aposta sobre o assunto entre os primos –, que acabou por renegar mais um neto apenas porque ele decidiu viver sua própria vida como lhe era de direito.

Fato é que estamos sempre à espera da próxima persona non grata da família, pois basta desagradar ao pappoús e ele já anuncia que a pessoa não faz parte mais de seus herdeiros. Alex, infelizmente, foi o primeiro a sentir isso, somente por ser filho de uma garota de programa com a qual Nikkós teve um caso por algum tempo, e agora Ullysses.

— Aí está o menino de ouro! — Ioannis, um dos meus primos mais brincalhões e um grande amigo de Millos, cumprimenta-me. — Phaedra e eu estávamos apostando se você viria ou não.

Eu aceno para sua namorada de longa data, levantando meu copo de uísque.

— Tive que vir. O doutor Pachalakis me ligou dizendo que pappoús estava nas últimas. — Dou de ombros, e Ioannis ri muito.

— Ele ligou para mim também. Cheguei aqui e fui informado que era refluxo.

Ficamos um tempo rindo e conversando sobre as coisas da empresa, pois ele também trabalha na Karamanlis, porém, na parte de estaleiro, pois é engenheiro naval, e toda a operação desse braço da empresa está a seu cargo.

— Soube que o velho está te cobrando um bisneto. — Assinto. — Por favor, o atenda; não pretendo ter filhos tão cedo!

— Estou providenciando isso.

— Isso é uma boa notícia! Até que enfim ouço falar de Theodoros Geórgios se amarrando a alguém.

Odeio quando falam meu nome todo, e, além do meu avô, ninguém mais o faz, apenas quando quer me encher a paciência.

— Boa noite! — meu pai passa por mim com sua nova esposa, uma senhora muito distinta e elegante, e cumprimenta Ioannis.

— Ainda em clima ruim com tio Nikkós? — Não respondo ao meu primo; não é preciso. — Por que não temos pais que prestem? É uma merda, isso!

É, sim. Não tem um só Karamanlis que não seja problemático.

Meu telefone toca, e o nome Valentina aparece na tela. Olho em volta. A “festa” mais parece um enterro ou uma praça de guerra, todos se medindo, avaliando o oponente.

— Com licença — peço a Ioannis e me afasto para atender o telefone.


— Duda?! — Manola se assusta ao me ver. — O que houve? Ele maltratou você? Eu vou matar aquele...

— Não! Nem estive com Millos. — Dou de ombros. — Eu me sinto dentro de um pesadelo! — Soluço. — Está tudo dando tão errado que eu acho que a qualquer hora vou acordar e perceber que tudo está no seu lugar, que eu continuo a trabalhar no Hill, que minha filha está saudável dentro de casa e que nunca um Karamanlis cruzou meu caminho!

Manola me abraça, e eu vejo o olhar preocupado que dá para o quarto onde está a Tessa, pois ela poderá nos ver pelo vidro caso acorde.

— Sente-se, que eu vou pegar um café para você.

Manola sai correndo da sala, e eu fico tentando ordenar os pensamentos para que não enlouqueça. Tento não pensar em Theo e em qualquer coisa relacionada a nós dois neste momento, pois minha prioridade é Tessa, mas as informações que recebi hoje tornam essa tarefa impossível de ser realizada.

Ele mentiu para mim o tempo todo sobre tudo!

Primeiro, nunca houve uma trégua sobre o Hill, pois ele já estava de posse da promissória, por isso o agiota sumiu. O desgraçado já tinha até iniciado o processo de execução dela e assim me obrigaria a levantar todo o dinheiro e a lhe vender o bar. É inacreditável o quanto ele foi ardiloso e cínico.

Lembro-me muito bem de ele falando que não tinha mais interesse em comparar minha propriedade, que iria tentar impedir que a Karamanlis a comprasse. Mentiras e mais mentiras. Ele tramou pelas minhas costas esse tempo todo enquanto fazia amor comigo... Não! Ele nunca disse nesses termos! Enquanto trepávamos, ele armava uma arapuca para que eu fosse obrigada a abrir mão do Hill.

E Valentina...

Manola volta com dois copos descartáveis cheios de café e se senta ao meu lado.

— Quero saber o que houve depois que você saiu daqui e o que aquele filho de uma puta do Theo fez contigo! — Abro a boca para dizer que não estive com ele, mas ela não permite: — Eu sei que ele não está aqui, mas alguma merda fez para ter te deixado nesse estado.

— Ele mentiu para mim — minha voz soa tão magoada e sentida que suspiro. — Ele mentiu sobre tudo! Estava com a promissória esse tempo todo e...

— A promissória do agiota? — Assinto. — Eu vou capar aquele filho de uma égua!

Arregalo os olhos com sua ameaça dita em voz alta, e ela tampa a boca, olhando para o quarto onde Tessa está e se desculpa por ter falado alto. Seu rosto cheio de indignação está vermelho como seus cabelos, e eu soluço, limpando a face com as costas das mãos.

— Sinto-me mal por estar chorando por ele neste momento. — Manola assente e me abraça. — Mas está doendo, Manola. Doendo muito!

— Chora, minha amiga. — Soluço em seus ombros, deixando sua blusa úmida com minhas lágrimas. — Deixe ir tudo para que, quando você se levantar dessa cadeira, possa estar com suas energias concentradas em Tessa.

— Você tem ideia do quanto é difícil? Eu preciso dele aqui, preciso da confirmação da paternidade para poder testar seus irmãos e... — Meus ombros sacodem com o choro ao pensar em Tessa. — Por mais que eu não queira nem olhar para ele nesse momento, eu preciso dele.

— Eu sei, minha amiga. Isso da promissória foi uma traição gigante...

— E tem Valentina. — Manola franze o cenho. — Theo me contou que estava saindo com essa tal Valentina antes de ficarmos juntos. Não sei, senti que havia algo mais que ele não estava me contando, porque nos encontramos com a amiga dele no clube de jazz a que fomos, e ela fez questão de tocar no nome dessa mulher.

— E tem? — a voz de Manola transmite muito temor ao fazer essa pergunta.

— Noivado. — Ela arregala os olhos, e sinto meu coração doer mais uma vez. — A tal amiga fez questão de vir aqui hoje me visitar em nome dele, pois está muito ocupado com a noiva na Grécia.

Manola se põe de pé, andando de um lado para o outro, tentando se controlar. Seu rosto não está nem vermelho mais, mas quase roxo, tamanha sua raiva. Escuto-a bufar, começar a falar, parar e voltar a bufar.

Ponho as mãos sobre a cabeça, tentando parar de chorar, mas não consigo. Pensei que a vida já tivesse me dado todas as surras possíveis com a perda dos meus pais e irmão, mas, aparentemente, não.

Limpo o rosto e vou até o vidro que separa a cama de Tessa do restante do cômodo e a olho dormindo tranquilamente, pálida, mais magra e indefesa. Sinto um abraço pelas costas, e o perfume de Manola chega às minhas narinas. Choro silenciosamente, meu coração destroçado por tudo que está acontecendo.

Eu queria poder contar com Theo nesse momento, como aconteceu na ilha e no dia em que ele nos levou para sua cobertura. Torço para que ele seja realmente o pai de Tessa, mesmo que isso possa significar perdê-la para ele, mas que seja possível salvar sua vida e restaurar sua saúde.

Ele traiu minha confiança, brincou com meus sentimentos e quebrou meu coração, porém, ainda assim preciso dele.

 

 

— Mãe, o Theo já voltou da viagem? — a voz de Tessa é fraca, mas cheia de esperança.

Respiro fundo, abro um sorriso como se o assunto fosse algo bom e respondo:

— Ainda não consegui falar com ele, mas tenho certeza de que pegará o primeiro voo para te ver.

Seu rosto se ilumina, e ela volta a tomar seu café da manhã, sentada em sua cama com a bandeja sobre seu corpo.

— Tio Millos vai falar com ele, não é?

Tio Millos!

Ouvir isso de minha filha é a concretização de que Theo é realmente seu pai. Eu já não tenho dúvidas disso, mas ainda preciso da confirmação do DNA e torço para que um dos seus irmãos ou o próprio Millos seja compatível com Tessa.

De qualquer forma foi um alívio ele ter vindo atrás de mim.

Eu estava olhando Tessa dormir, com Manola abraçada a mim. Nós duas chorávamos em silêncio não só pela minha menina, mas por tudo o que eu tinha descoberto sobre o Theo.

Uma batida à porta nos fez olhar para trás, e então eu vi Millos. Senti imediatamente a Manola ficar tensa e a segurei pela mão, pedindo-lhe calma com o olhar.

Eu preciso deles!

— Posso entrar? — Millos perguntou, e apenas assenti.

O homem alto e forte, vestindo terno, de óculos escuros e cabelos penteados para trás nada lembrava o tatuado vestido de jeans e camisa de malha que havia estado em minha casa e no bar várias vezes para conversar sobre a proposta de compra.

Nós nos conhecemos há muitos anos, e, mesmo que nunca tenhamos tido afinidade por conta da insistência da compra, aprendi a gostar dele, principalmente de sua simplicidade e simpatia. Millos me pareceu sempre ser sensato e calmo, o Karamanlis perfeito para me ajudar a salvar minha filha.

Ele tirou os óculos, e eu reparei em seus olhos verdes, um pouco mais escuros que os da minha filha. Era impossível não comparar seus traços com os dela, buscando alguma coisa que comprovasse que compartilhavam o mesmo sangue.

— Eu soube da Tessa — falou baixo, sem me olhar. — Cheguei à empresa e me encontrei com Kostas, meu primo, e ele me disse que você tinha ido até lá tentar um contato do Theo. — Suspirei, e ele me olhou

— Seu primo é um babaca! — Manola atacou, e ele riu, concordando.

— Ele é, não nego. — Encarou-me. — O que houve com a menina?

Olhei para Manola, que entendeu que eu gostaria de falar com ele a sós. Beijou meu rosto em despedida, olhou com a cara mais feia que conseguia fazer para o Millos e saiu do quarto.

— Tessa precisa de um transplante de medula — fui direto ao assunto, e ele arregalou os olhos. — Há algum tempo ela vinha apresentando sintomas de que não estava bem, mas só descobrimos há pouco o que tem. — Millos olhou para minha filha, ainda dormindo, dentro da área isolada. — Anemia aplástica grave.

— Não pode ser! — Ele fechou os olhos e encostou a testa no vidro. — Perdemos um tio com essa mesma doença — informou, e foi minha vez de ser tomada de surpresa. — Na época, não havia muito o que fazer. Tentaram o transplante. Era algo bem rudimentar ainda, mas ele teve rejeição e...

— Oh, meu Deus!

Comecei a soluçar, e ele me puxou para seu abraço, segurando-me contra seu peito enquanto eu dava vazão ao meu desespero. Eles tiveram uma morte na família com a mesma doença! Não posso perder minha menina!

Podia ouvir o coração de Millos tão disparado quanto o meu, suas mãos me apertando, trêmulas. Senti a tensão e o nervosismo presentes nele ao mesmo tempo em que tentava me consolar.

— Vai dar tudo certo, Duda — sua voz, mesmo um tanto trêmula, era confiante. — Vamos mover céus e terras, você não a perderá.

— Eu preciso falar com o Theo... — Ele me soltou, e eu o encarei. — Vai parecer loucura, mas há a possibilidade de ele ser o pai da Tessa.

Millos ficou um tempo parado, olhando-me apenas, sem nenhuma expressão no rosto, mas eu podia apostar que sua cabeça estava dando voltas e mais voltas com o que eu tinha acabado de revelar.

— Você já contou a ele? — Neguei, e ele respirou fundo. — O que eu posso fazer por vocês neste momento, Duda?

— Eu tentei localizar o Theo, mas na única vez que tive resposta... — Fechei os olhos, tentando diminuir a dor que todas as palavras que ouvira tinham me causado. — Bem, não era ele ao telefone, e acho que, se ele viu minha ligação, não se importou em retornar.

Millos balançou a cabeça.

— Ele não viu a ligação, tenho certeza, senão retornaria. Theo não é assim, ele...

Tive vontade de gritar para ele que sabia da promissória, que sabia do maldito noivado com a tal Valentina, mas não o fiz. Não vinha ao caso. Millos não mentira para mim e talvez nem soubesse do meu envolvimento com seu primo.

— Não importa. Preciso confirmar a paternidade e testar todos vocês como possíveis doadores. — Ele assentiu, mas eu percebia uma inquietação, como se ele quisesse me dizer algo, questionar. — Você pode me ajudar nisso?

— Claro! Farei o que for possível. — Ele respirou fundo. — Você não tem mesmo certeza de que ele é o pai?

— Não. Foi há muito tempo. Eu nem reconheci o Theo, foi ele quem ligou uma coisa à outra e... — Eu realmente não queria entrar nesse assunto com Millos, por isso resumi: — Sempre tive dúvidas sobre a paternidade de Tessa, porque na época eu tinha um namorado e...

— Entendi — Millos cortou o assunto e voltou a olhar para Tessa. — Eu não tenho dúvidas de que ela é uma Karamanlis. — Meu coração pareceu saltar do peito ao ouvir isso. — Ela é idêntica à minha avó quando menina. — Ele sorriu. — Se eu tivesse uma foto aqui comigo, você também não teria dúvidas.

Meu Deus do Céu, então é realmente verdade! Tessa é filha do Theo, uma Karamanlis! Que destino é esse que nos reuniu novamente?

— Eu preciso salvá-la, Millos! — disse em desespero.

— Nós vamos! — Olhou-me com determinação. — Nós vamos!

Naquele momento Tessa acordou, e eu estava tão emocionalmente abalada que Millos se dispôs a entrar, ficar uns momentos com ela enquanto eu me recompunha. Os dois já se conheciam das vezes em que ele tinha estado no Hill para conversar comigo, e minha filha abriu um enorme sorriso e o cumprimentou quando o viu ao meu lado.

Quando retornei do banheiro, já com Manola e tia Do Carmo – que acabara de chegar do nosso apartamento – junto a mim, encontrei os dois rindo e a mãozinha de Tessa na enorme mão de Millos.

— Ele vai ajudar? — Manola perguntou, e eu assenti.

Olhei para tia Do Carmo.

— Achou alguma coisa naquelas revistas que você assina? — Minha tia olhou para Manola, e eu soube que elas haviam achado. — Quero ver.

— Duda, acho melhor...

Estendi a mão, com o coração partido, querendo tomar o choque de ter a confirmação do que Viviane me dissera mais cedo. Tia Do Carmo colocou a revista em minha mão e me disse o número da página.

Por mais que eu achasse que estava forte para ver a notícia, não esperava encontrar o que vi: Theo e uma mulher loira muito bonita, abraçados, saindo de um hotel em Atenas, e o anúncio do casamento iminente dos dois.

— Parece que é verdade... — Minha tia lamentou.

— Essas revistas são muito sensacionalistas também! — Manola logo emendou. — Não podem ver um casal abraçado que já anunciam casamento.

Devolvi a publicação para minha tia e engoli as lágrimas.

— De qualquer forma, mesmo que não se casem, estão juntos na Grécia. — As duas concordaram. — Não muda o fato de que ele mentiu para mim.

Coloquei a roupa especial, as luvas e todo o material de proteção para não pôr Tessa em risco e entrei, despedindo-me de Millos, que prometeu trazer Theo de volta o mais rápido possível.

Na saída, vi Manola falando algo para ele, que negou, mas ela riu e jogou a revista em cima dele e saiu de perto. Não olhei mais nada; sentia-me magoada com tudo isso, apavorada com a possibilidade de perder minha filha e humilhada por ter me deixado usar e ser descartada por um Karamanlis.

Tessa me chama para dizer que já está satisfeita com seu desjejum, e eu deixo para trás as lembranças do dia de ontem. Ainda não tenho notícias de Millos, nem de Theo, e o tempo está passando. Doutor Felipe diz que o tempo entre as transfusões diminuíram muito e que é necessário começar com o tratamento o mais rápido possível.

— Theo! — Tessa grita, olhando em direção ao vidro com um enorme sorriso de felicidade. Meu coração dispara. Sinto meu corpo inteiro gelar de antecipação e olho para ele.


Nada no mundo poderia me preparar para a emoção desse encontro, penso limpando as lágrimas, vendo Theo e Tessa conversarem dentro do quarto. A alegria de minha filha, seu ânimo ao vê-lo, a urgência e preocupação que ele demonstrou, tudo foi muito mais do que eu poderia ter sonhado.

No momento em que o vi, deixei de pensar em todo o mal que causou ao meu coração, deixei de lado como ele me traiu com a promissória e como mentiu para mim sobre Valentina. Naquele momento, só pensei que ele poderia salvar a vida da minha filha.

Não, não esqueci. Seria impossível o fazer com a ferida aberta e sangrando, mas deixei essa dor de lado, num canto, para poder reacender a esperança de curar minha menina. Eu sei que doutor Felipe disse que raramente pais são compatíveis, mas não posso deixar de pedir por essa raridade, não posso deixar de crer, mesmo contra a esperança, mesmo que tudo diga não. Não posso deixar minha fé fenecer.

Durante os dias em que estive aqui neste hospital, pensei muito na coincidência que foi esse reencontro e o motivo de o destino ter feito as coisas desse jeito. Depois do diagnóstico de Tessa, entendi que eu e Theo só nos reunimos de novo porque temos que salvar nossa filha. Esse é o propósito. Não sei como irá acontecer, mas não vamos perdê-la.

Daqui de onde estou, posso ver os olhos dele se repuxarem nos cantos, sorrindo para minha menina, bem como o brilho de seu olhar raso de lágrimas. Ele não esconde a emoção que sente, e eu nunca o vi tão aberto desse jeito. Tessa toca sua mão, e as lágrimas represadas por ele caem, molhando a máscara que recobre seu nariz e boca.

Nossos olhos se encontram, e a mesma fé que tenho dentro de mim, enxergo nele. Nós vamos salvá-la!

— Bom dia! — a voz do doutor Felipe corta o encantamento do momento. — Nós vamos ter que suspender o horário de visitas por enquanto. Vamos fazer alguns procedimentos com a Tessa.

Eu assinto, e ele bate no vidro, chamando Theo para fora da sala.

— Algum problema? — sua voz é temerosa, e ele se desfaz do avental, touca e máscara, porém, continua com as luvas.

— Theo, esse é o doutor Felipe Magalhães, o médico responsável pelo caso da Tessa. — Theodoros não estende a mão para cumprimentá-lo, apenas o encara. — Doutor, esse é Theodoros Karamanlis...

— O pai da Tessa — ele completa, e o médico me olha confuso.

Quando saiu o diagnóstico, a primeira coisa que o médico perguntou foi do histórico familiar, se ela tinha irmãos, avós, tios ou primos, e, quando ele viu que Tessa não possuía o nome do pai na certidão de nascimento, questionou-me se eu tinha condições de apontar quem ele era. Naquele momento eu disse que ainda tinha dúvidas, mas que poderia contatar os possíveis pais para realizar o exame de paternidade.

— Precisamos fazer um DNA para... — tento explicar, mas Theo me interrompe:

— Mera formalidade. Não tenho dúvida alguma de que ela é minha. — Ele se aproxima do doutor Felipe. — Eu gostaria de trazer uma junta médica para avaliar todos os procedimentos e tentarmos achar os melhores tratamentos e...

— Senhor Karamanlis, eu entendo o desespero, mas o senhor encontra-se em um hospital de referência, com todos os aparatos e equipe necessários para o tratamento, qual seja ele.

Theo respira fundo, assente, mas não parece muito convencido.

— Eu gostaria de realizar o teste de compatibilidade o mais rápido possível.

— Como expliquei a Maria Eduarda, pais raramente são compatíveis, mas claro, podemos realizar os testes necessários. — Ele chama um membro de sua equipe. — Poderiam levar os pais de Tessa até a doutora Amália?

— Claro. — A moça, uma enfermeira muito simpática que vem sempre atender Tessa, dá-nos um sorriso. — Queiram me acompanhar por favor.

— Tessa ficará sozinha? — Theo questiona, mas em seguida tia Do Carmo entra no quarto e para em seco ao vê-lo, colocando sua mão sobre a boca e fechando os olhos. Tenho certeza de que ela está agradecendo por ele estar aqui, mesmo que, assim como eu, esteja muito magoada com ele.

Vou até ela para lhe explicar que irei com Theo até a doutora Amália a fim de realizarmos os exames – de compatibilidade e de paternidade –, e ela me abraça.

— Graças a Deus! — Suspira aliviada. — Como você está, minha filha?

— Estou bem, tia. — Sorrio. — Tessa é quem importa agora. As outras coisas, resolvemos depois.

Ela assente, e me despeço, seguindo a enfermeira e Theo até o laboratório.

— Por que você me escondeu que ela podia ser minha filha? — Theo dispara a pergunta e me pega de surpresa.

Respiro fundo.

— Eu não reconheci você, Theo. — Ele me encara. — De verdade, eu não fazia ideia!

— Mas, quando eu disse, você negou!

Assinto e tento controlar as lágrimas. Nunca pensei que iríamos ter essa conversa tão cedo e muito menos no corredor de um hospital.

— Eu tive medo — confesso. — Havia a possibilidade de Tessa ser sua filha, e eu fiquei com medo de você tentar tirá-la de mim.

Ele para no meio do corredor.

— Por que eu faria isso? Por que tiraria minha filha de sua mãe? — Aproxima-se. — Nós estávamos juntos. Você poderia ter confiado em mim e...

Rio, amarga.

— Confiado em você? — Limpo uma lágrima de meu rosto, com raiva. — Assim como fiz na questão do Hill? — Ele fica lívido, e eu percebo que sabe do que estou falando. — Sim, eu sei da promissória que a Karamanlis tem desde o ano passado e que, em nenhum momento, você citou durante o tempo em que “estávamos juntos”.

Um pigarrear chama nossa atenção, e a enfermeira nos olha sem jeito.

— Vocês ainda vêm?

Assinto e caminho rapidamente ao seu lado sem nem mesmo olhar para Theo, embora sentindo sua presença atrás de mim. É risível ele me falar de confiança, quando o tempo todo esteve omitindo de mim uma informação importante, e o pior, dizer que estávamos juntos, quando, na verdade, ele estava fazendo planos de casamento com outra!

Chegamos à sala de coleta de material para exames, e o instalam em uma confortável poltrona antes de começarem a fazer uma pesquisa de sua vida. Perguntam-lhe sobre saúde, histórico familiar, vícios, remédios e etc. O patologista colhe duas amostras de sangue e recomenda a ele que fique um tempo sentado.

— Eu ia te contar da promissória — ele volta ao assunto. — Ia contar naquela noite em que vi as fotos no quarto de Tessa.

— Ah, muito conveniente! Você teve quase um mês para me contar, Theo. Não o fez porque não quis.

— Eu pedi o cancelamento da ação de execução, Duda. Não queria mais que a Karamanlis comprasse sua propriedade. Eu disse a você.

— Assim como disse que saiu com Valentina antes de me conhecer. — Theo arregala os olhos e se levanta parcialmente da poltrona. — Você esteve o tempo todo comigo, mesmo fazendo planos de se casar e ter filhos com ela!

Ele fica pálido, e eu vejo a verdade em seus olhos. Sinto como se uma faca quente fosse enfiada em minha carne, cortando e queimando ao mesmo tempo, causando uma dor terrível. Eu sei que vi a confirmação na revista, mas saber que ele esteve o tempo todo com as duas é difícil demais.

Theo se levanta e tenta me tocar.

— Eu não tinha ideia de que ia me...

— Você ficou noivo, pelo amor de Deus! — Repudio seu toque.

— Do que você está falando?

Rio, não acreditando que ele ache mesmo que eu vou cair nesse jogo.

— Eu vi, Theo, o Brasil inteiro viu! — Dou de ombros. — Vou voltar para perto da minha filha. É isso o que importa no momento. O resto não tem mais sentido.

Saio da sala no exato momento em que a doutora Amália chega para conversar com Theo sobre o cadastro no banco de medula óssea.

Não impeço as lágrimas de caírem. Não me importo de receber olhares preocupados e cheios de pena das pessoas que cruzam comigo pelo corredor. Quero deixar ir. Foi bom conversar com ele, expor tudo o que eu sabia, deixar as coisas em pratos limpos para que pudéssemos nos concentrar apenas em Tessa.

Chego à sala, e o procedimento em minha menina ainda está sendo feito. Manola está com tia Do Carmo e corre até mim quando vê meu estado.

— Ah, meu Deus, o que aquele vadio aprontou agora?

— Nada, só conversamos um pouco. — Toco minha cabeça. — Estou com dor, cansada...

— Vá para o apartamento, tome um banho direito, descanse. Eu fico aqui com a tia, e a gente te informa de qualquer novidade.

— Não quero deixar a Tessa.

— Duda, só por umas horinhas. O doutor a está examinando, vai começar uma nova transfusão, e isso demora horas, então pode ir sem medo.

Olho para dentro do quarto e vejo Tessa sorrir para uma das médicas, que tem pintada no rosto uma enorme borboleta. Concordo em ir, afinal, mal tive tempo para comer e dormir nesses dias. Apenas cochilo, tomo banhos rápidos e engulo qualquer porcaria.

— Tente não criar caso com ele. — Manola faz careta para o meu pedido. — Eu também gostaria muito de lhe dar uns bons tapas, mas...

— Eu sei, vou me comportar, pelo menos até Tessa se restabelecer.

Rio dela e a abraço.

— Obrigada por tudo, minha amiga.

— Não precisa agradecer, somos uma família.

Sim, ela tem razão. Há muito tempo percebi que o que faz com que pessoas se sintam em família nada tem a ver com laços de sangue, mas sim com o amor e confiança que as unem.


Tessa é minha filha!

Não preciso de exame algum para comprovar o que, a todo tempo, algo dentro de mim insistiu para que me desse conta desse fato. As lembranças de Kyra a cada sorriso dela, a sensação de já tê-la visto. Como pude não notar? Minha filha é a imagem de giagiá Dorothea quando criança. Os cabelos, os olhos, o sorriso, em tudo ela lembra a matriarca dos Karamanlis.

Penso nas fotos espalhadas pelos porta-retratos no quarto de minha avó. Ela se orgulhava muito de ter sido tão linda na infância e juventude. Suas fotos de criança traziam muitas memórias importantes para ela, pois eram os únicos registros de seus dois irmãos mais velhos, mortos durante a Batalha da Grécia, quando a Alemanha nazista e a Itália fascista tentaram invadir o país em 1941.

Foi tudo tão estranho e ao mesmo tempo se encaixou tão perfeitamente que eu ainda estou surpreso, mas não em choque.

Os acontecimentos na Grécia foram decisivos para que eu entendesse que, independentemente do que aconteceu no passado, eu me apaixonei pela Duda, não por causa da transa há mais de oito anos, mas sim pela mulher que conheci nesses últimos meses.

Estava disposto a entender o motivo pelo qual ela escondera de mim quem era, que já nos havíamos conhecido e a fazer me admitir a verdade. Não importava o passado, eu aprendera a amar a mulher que ela se mostrara para mim. Eu só não esperava que as mentiras – ou omissões – fossem tão sérias a ponto de ela esconder de mim que eu tinha uma filha.

Cheguei ao Brasil antes do dia previsto. Abri mão de participar da festa de pappoús depois da discussão que tivemos sobre a “futura senhora Theodoros Karamanlis”.

Depois dessa pequena, mas tão importante discussão, arrumei minhas malas, consegui um voo comercial para o Brasil e decidi que iria me dar a chance de ser feliz ao lado de quem eu amava. Só precisava esclarecer as coisas. Eu mesmo tinha muito a contar para ela!

Cheguei a São Paulo e encontrei Dionísio já à minha espera, pois havia mandado mensagem avisando do meu retorno assim que o avião começara a taxiar na pista, já imaginando que demoraria para o desembarque e para eu recuperar minhas malas. Eu não costumava usar voos comerciais, mas acertei na demora.

— Bom dia, doutor! Fez boa viagem? — ele me cumprimentou assim que abriu a porta para que eu entrasse no carro.

— Fiz, sim, Dio. — Não perdi tempo e disse logo meu destino. — Vamos para a casa da Maria Eduarda Hill.

Ele ficou com a porta aberta, parado, olhando-me como se tivesse ocorrido algo. Senti meu corpo inteiro gelar.

— Chefe... a senhorita Hill se mudou.

— O quê?! Como assim se mudou?! — não escondi meu tom de desespero.

— Pelo que a Nola me contou... — fiz careta, pois não sabia quem era “Nola” — ela vendeu o Hill e ia recomeçar a vida em outro lugar.

Foi como se todo o sangue do meu corpo tivesse sido drenado. Fiquei branco feito papel, frio, paralisado. O que acontecera durante os 15 dias em que eu estivera fora?! Não pensei duas vezes e liguei para o Millos.

Meu primo atendeu ao segundo toque:

— Porra, Theo, estou tentando...

— O que você fez, seu imbecil?! — interrompi-o aos berros. — Quem autorizou a Karamanlis a comprar o Hill na minha ausência?!

— Não fomos nós! — ele gritou de volta. — Ela precisou vender com urgência, Theo, e a rede Dominus comprou!

Dionísio entrou no carro e me olhou pelo retrovisor, esperando que eu lhe dissesse para onde iríamos. Não consegui racionar. Minha cabeça dava voltas, só pensava que Duda fugira de mim, que eu a apavorara quando tinha descoberto sobre ela ser a garota da boate, mas por quê?

— Preciso encontrá-la, Millos! — disse em desespero. — Preciso conversar com ela, entender, eu... — Comecei a chorar dentro do carro, sem me importar se Dio estivesse ali ou não. — Eu amo aquela mulher, Millos, não posso perdê-la.

— Theo, ela está no hospital com Tessa — Millos informou em tom grave. — A menina está gravemente doente, Theo, necessita de transplante.

Eu mal conseguia respirar naquele momento. Senti o corpo inteiro arrepiar, o coração parecia ter parado, e o rostinho alegre de Tessa apareceu nitidamente para mim.

— Em qual hospital, Millos?

— Eu sei onde, chefe — Dionísio se intrometeu na conversa e ligou o carro.

— Tem mais, Theo — Millos continuou. — Duda descobriu sobre a promissória e...

— Eu vim disposto a resolver tudo isso com ela, Millos, mas imagino como ela está apavorada por causa da filha. Não sei se...

— Theo, a menina pode ser sua.

Não entendi no primeiro momento o que ele quis dizer, pois, como expliquei várias e várias vezes a vocês, não via conexão entre a minha Duda e a garota dos cabelos rosa, mesmo com todas as evidências de que eram a mesma pessoa.

— Duda me contou sobre vocês terem se conhecido anos atrás e...

Puta que pariu!

Essa era a peça que não se encaixava na história toda, o motivo pelo qual ela ficara tão apavorada quando eu descobrira a verdade, o motivo pelo qual continuara a negar. Tessa poderia ser minha filha, mas como? Eu tinha usado camisinha e, quando a tirara... Não me lembrava de quando a tirara. Não olhara para ela, estava bêbado demais, tinha acabado de fazer um sexo muito louco e de gozar, não olhara a porra da camisinha!

Minha cabeça foi dando voltas até eu chegar ao hospital. A emoção se misturava à revolta por Duda ter escondido isso de mim durante todo esse tempo. Eu já não albergava dúvidas com relação à paternidade. Era claro como o dia que Tessa era minha, eu sentira isso a cada momento em que estivéramos juntos.

Entrei no hospital feito um louco. Demorei a descobrir onde ela estava internada e soube que só poderia ir até o quarto contíguo, pois Tessa estava em isolamento por conta de sua baixíssima imunidade.

Bati à porta do quarto, mas ninguém atendeu, então entrei e vi Tessa no leito do hospital, terminando de comer. Duda estava de costas para mim e recolhia a bandeja com o café da manhã da menina. Então Tessa me viu, e pude ouvir em minha mente, mesmo o som não passando pelo vidro que separava uma área da outra, o meu nome e vi a felicidade em seu rosto.

Minha menina!

Correspondi ao seu sorriso e a cumprimentei, sentindo meu peito explodindo de emoção, até Maria Eduarda se virar e nossos olhos se encontrarem. Fiquei sério, senti a revolta de só ter descoberto que era pai porque minha filha estava em um hospital. Duda me contaria a verdade se Tessa não estivesse doente? Pelo desespero dela naquela noite em que eu vira as fotos, acreditei que não.

Duda disse algo a Tessa e saiu para falar comigo, dispensando a roupa descartável que usava, colocando-a num cesto de lixo.

— Você veio.

Pude sentir a emoção em sua voz, em seus olhos brilhando com lágrimas. Tive vontade de abraçá-la, imaginando tudo o que tinha passado naqueles dias, mas não me aproximei. Tínhamos muito a conversar.

— Como ela está? — perguntei sem rodeios.

— Fazendo transfusões, mas muito fraca. Ela precisa de um doador e...

— Quero falar com ela — interrompi-a. — Por favor.

Duda assentiu, ajudou-me a colocar toda a proteção para que eu não prejudicasse o estado de Tessa e entrei com sérias recomendações de evitar tocá-la ao máximo, mesmo querendo segurá-la contra mim e nunca mais soltá-la.

— Que bom que você voltou, Theo! — Tessa falou cheia de emoção. — Mamãe disse que você viria assim que soubesse. Eu já estava com saudades!

— Meu coração soube, Tessa. — Sorri por detrás da máscara. — Eu sabia que tinha que voltar e agora nunca mais vou ficar longe de você, eu prometo.

Seu rosto se iluminou, as covinhas reaparecem e os olhos brilharam. Senti meus cílios cada vez mais úmidos. A emoção causou um nó em minha garganta tão grande que me impediu de engolir e de respirar direito. Queria muito abraçá-la, mas sabia que não era bom para ela, por isso me contive.

Olhei para fora do quarto e vi Duda contra o vidro que separa os cômodos, rosto inchado de chorar, mas um enorme sorriso. O nó em minha garganta só aumentou, meus olhos queimaram segurando as lágrimas e meu corpo inteiro tremeu com a emoção misturada ao medo.

— Theo... — Tessa me chamou e tocou minha mão por cima da luva. — Não precisa ter medo, eu vou ficar bem!

As lágrimas rolaram nesse exato momento, mas tentei sorrir. Olhei novamente para Duda e a vi secar o rosto, mas ainda soluçando.

Minutos depois tivemos a conversa mais reveladora e misteriosa que eu já tive em minha vida. Ainda estou magoado por ela ter me escondido sobre Tessa, mas acredito no que disse sobre não saber até o momento em que vi as fotos. Acredito nela!

Ainda me sinto zonzo, talvez por causa dos exames e da enxurrada de perguntas para o cadastro no banco de medula. Fiquei muito feliz em poder contribuir com isso, em perceber o quanto é simples e como pode fazer diferença caso eu seja compatível com alguém.

Nunca pensei sobre doação de órgãos – ou mesmo de sangue ou medula –, e esse momento com minha filha me despertou essa consciência, que já deveria ser de todos nós. Podemos, sim, ajudar a salvar vidas!

Sorrio ao pensar em como me referi a Tessa: minha filha.

Eu tenho uma filha!

 

 

Vanda toma um susto ao me ver sentado à mesa da cozinha, xícara de café vazia, bem como meia garrafa de uísque. Sorrio sem jeito para ela, todo amarrotado e entendo sua surpresa, afinal, não tinha previsão de eu estar tão cedo no Brasil, quiçá desse jeito em que me encontro.

O dia ontem foi muito mais emocionante do que eu poderia ter sonhado. Voltei disposto a ter Maria Eduarda em minha vida para sempre, formar uma família com ela e Tessa e acabei descobrindo que a menina é minha filha. Sim, o resultado de DNA saiu no começo da noite e só comprovou aquilo que meus olhos e meu coração já sabiam: Tessa é minha!

Porém, junto à euforia de uma notícia tão boa, veio também a decepção por eu não ser compatível para a doação. No momento, o mais importante é conseguir um doador para que ela volte a ser a menina cheia de vida, aquela minimetralhadora de palavras que conquistou meu coração.

Queria muito dividir a notícia com Maria Eduarda, mas não a vi o resto do dia, nem mesmo quando voltei ao quarto para me despedir de Tessa e soube que minha filha estava dormindo enquanto recebia mais concentrado de hemácias e plaquetas e que Duda havia ido ao apartamento que alugara, a fim de descansar.

Dona Maria do Carmo me informou tudo isso friamente, sem o sorriso acolhedor que sempre me dera, então me despedi, garantindo minha volta no dia seguinte e saí do hospital com a intenção de ir para casa. Não fui.

Fiquei um bom tempo parado na frente do Hill, agora com assinatura da rede Dominus embaixo do nome do pub, olhando para as janelas do apartamento no qual dormi com Maria Eduarda pela primeira vez – ou segunda –, lembrando-me do seu cheiro, do sabor de sua pele, do som dos seus gemidos enquanto gozava.

Sinto falta dela. Queria poder estar comemorando com ela a descoberta de que temos uma filha juntos, mas tenho consciência de que ela nunca teria me contado caso Tessa não precisasse de um transplante urgente.

Deixei um recado para Hal Navega, um amigo que é advogado, adiantando o assunto de Tessa e já perguntando o que era preciso para fazer o reconhecimento de paternidade o mais rápido possível. Imagino que ele irá tomar um susto ao ler a mensagem, mas quero que minha filha tenha meu nome e que saiba quem eu sou o mais rápido possível.

Cheguei à cobertura já de madrugada, morto de fome por ter passado o dia todo dentro do hospital sem comer sequer uma refeição, preparei uns sanduíches, café, e, ainda sem conseguir dormir, tomei umas doses de uísque para tentar clarear as ideias. Duda me disse algumas coisas bem intrigantes, principalmente sobre Valentina, e isso vem martelando em minha cabeça desde então.

— Sou eu mesmo, não um fantasma — tento brincar com Vanda, mas ela ainda tem os olhos arregalados.

— Pois parece, viu? — Aponta para minha roupa. — Mais café?

Ela vai até a máquina, mas nego, levantando-me.

— Vou tomar um banho para ir até o hospital e...

— Quem está no hospital? — ela pergunta preocupada.

Respiro fundo, desejando que isso não fosse verdade.

— Tessa. — Ela põe a mão sobre o peito. — Você tinha razão, o que ela tem é sério.

Vanda para de fazer o café e me encara assustada.

— Como está Maria Eduarda? A menina vai ficar bem? O que ela tem?

Calmamente lhe explico o que aconteceu e termino dizendo que, por causa disso tudo, acabei descobrindo que Tessa é minha filha, que conheci Duda há anos, durante uma viagem para a Grécia enquanto ela ainda estudava na França.

— E vocês não se lembraram disso? — questiona sem acreditar na coincidência. — Nem mesmo tiveram a sensação de que já se conheciam?

— Só posso responder por mim, e não, nunca a associei àquela moça da boate, nunca!

Vanda enruga a testa como sempre faz quando está pensando.

— Um não lembrar, tudo bem, mas os dois? Ainda mais que desse encontro nasceu a menina!

Não digo a ela que Duda não sabia quem era o pai da criança, que ela tinha um namorado na época e que, pelo visto, ele não quis assumir a responsabilidade sem ter certeza de que era realmente o pai. Mais uma coisa que eu não consigo ver a Maria Eduarda que conheço hoje fazendo: trair. Porém, ela era jovem, estava em uma fase de euforia, curtindo um sonho e pode ter se permitido viver aquela experiência comigo.

Dou de ombros e sigo para meu quarto, tomo banho, visto uma roupa limpa e, ainda sem nenhuma vontade de dormir, decido voltar ao hospital para acompanhar minha filha.

Meu celular toca, e eu atendo Millos.

— Bom dia!

— Bom dia, Theo. Notícias da Tessa? — Ele parece preocupado, e eu sei que deve estar.

— Ontem, quando saí de lá, ela estava recebendo mais uma transfusão. — Suspiro e me sento na beirada da cama. — Meu teste deu incompatível.

— O meu também, soube hoje. — Xingo baixinho. — O pessoal do laboratório que você mandou ontem já colheu amostras de Kostas e Alex.

Isso me surpreende.

— Eles aceitaram doar caso sejam compatíveis?

Millos ri, dizendo:

— Alex aceitou assim que eu contei a situação. Kostas, você já conhece... — Bufo de raiva. — Ele faz essa cena de insensível, mas no fundo é só um imbecil tentando chamar a atenção.

— Espero que não banque o imbecil se for compatível.

— Não vai, vou garantir isso. Não se preocupe.

— E Kyra? — minha voz sai baixa ao perguntar por ela. Não sei se toda a mágoa que ela sente de mim permitirá que ela nos ajude nesse momento.

Millos suspira, e eu fecho os olhos.

— Deixei recado; não me respondeu.

— Está certo. Ela tem os motivos dela, e eu compreendo isso.

Eu a feri muito com o que fiz no passado, prejudiquei seu futuro, mexi com seu psicológico. Não tenho ideia do que ela passou depois de tudo aquilo, mas sei que, assim como em meus outros irmãos, deixou feridas profundas nela.

— E a Duda? Conseguiram conversar? — Millos muda de assunto.

Essa é outra questão difícil.

— Pouco. Eu estava de cabeça quente com essa história de ela ter escondido a menina de mim, e ela, magoada por ter descoberto sobre a promissória. Quem contou?

Millos demora um tempo a responder.

— Kostas. — Rio, imaginando o motivo pelo qual perguntei. — Duda esteve na empresa, e por algum motivo ele falou da promissória.

— O único motivo que ele tem: me ferrar! — Lembro da fúria de Maria Eduarda e do assunto estranho sobre Valentina. — Como ela soube de Valentina? Que eu saiba, Kostas não tinha essa informação.

— Era sobre isso que eu queria falar com você — Millos soa frustrado. — Vai mesmo fazer isso? Depois de ter dito que ama Maria Eduarda, vai mesmo se casar com Valentina só para agradar ao pappoús?


Não entendo a pergunta de Millos. Como ele acha que eu seria capaz de me casar com alguém que não a mulher que amo?

— Não, claro que não! — respondo indignado. — Inclusive disse ao vovô minha decisão de não me casar apenas para agradá-lo.

A conversa, que acabou por antecipar minha volta ao país, volta à minha memória, e eu acabo por revisitar cada momento dela, a sensação de libertação e, ao mesmo tempo, de dor.

— Já se entendeu com a futura senhora Karamanlis? — ele me questionou há dois dias. — Estou querendo saber se poderei anunciar seu casamento em minha festa. — Ele sorriu. — Você poderia ter trazido a moça para passar pelo meu crivo e...

Não pude aguentar mais e o interrompi, mesmo sabendo que ele odiava que eu fizesse isso.

— Não vou me casar para lhe agradar e dar a você um bisneto.

— Theo, você prometeu... — Ele tossiu. — Eu estou esperando que meu primeiro bisneto venha de você.

— Eu sei, mas o senhor não tem só a mim como neto. — Dei de ombros e vi a indignação em seus olhos. — Vou ser pai quando tiver que ser pai. Não vou me casar só por isso.

— Você já tem 41 anos, pelo amor de Deus, garoto!

Ri dele e de sua pressa para que eu procriasse. Os tempos mudaram, era o que eu gostaria de dizer a ele somente para provocá-lo, mas decidi ser sincero.

— Eu conheci uma mulher. — Ele ficou sério. — Nós nos envolvemos. Eu pensei que era só uma questão de sexo, mas não.

— Theodoros...

— Eu estou apaixonado por ela e, se tiver que me casar e ter filhos com alguém, será com Maria Eduarda, caso o senhor goste ou não.

Cruzei os braços, esperando uma reação tempestuosa, exigências para saber todo o “currículo” dela e recriminações por ela não ter “pedigree” segundo seus padrões.

— Você não aprendeu nada com o que houve anos atrás, Theodoros? — sua voz fria e debochada foi uma surpresa. Ele iria jogar pesado comigo. — Não percebeu que a paixão só te fodeu, acabou com o pouco que você tinha de família e ainda o humilhou a ponto de você cheirar a peixe?

Meu avô me conhecia muito bem, sabia exatamente onde me cutucar para ferir e sangrar, só que eu já não era mais um “garoto”, sabia muito bem a diferença do que acontecera no passado e do que sentia naquele momento. O que eu sentia por Maria Eduarda não era a paixão desenfreada de um adolescente carente, era amor de um homem experiente que já aprendera com seus erros.

— Não estou pedindo sua aprovação, pappoús. Só lhe informando que espero, sim, cumprir a promessa de me casar e ter filhos, mas nos meus termos, e o principal deles é a mulher ser Maria Eduarda.

Pus-me de pé a fim de encerrar o assunto, mas não seria tão fácil.

— Só espero que ela não seja mais uma p...

— Cuidado, vovô! — interrompi-o novamente. — Não a ofenda. — Ri. — Ela não vem de família rica, nem tradicional, eu não posso tirar qualquer proveito de suas conexões, mas é a mulher que eu amo, e é só o que importa.

Surpreendentemente isso foi o necessário para calar qualquer argumento do todo-poderoso Geórgios Karamanlis.

— Então como você explica o anúncio do noivado do CEO da Karamanlis do Brasil ter saído em uma revista da alta sociedade? — Millos interrompe minhas lembranças e me deixa branco.

— O quê? — Levanto-me, sem entender o que está acontecendo. — Como assim anúncio de noivado? Com Valentina?

Millos ri, percebendo que não sei de nada.

— Isso só pode ser coisa daquele velho manipulador! — exclama, mas para de rir de repente. — Viviane...

— O que tem Viviane, Millos? — Paro de andar de um lado para o outro, sentindo já o gosto amargo da decepção.

— Quando fui atrás da Maria Eduarda no hospital, juro ter visto Viviane entrando em um táxi. Não me liguei muito nisso, estava preocupado com a Tessa, mas... — Ele respira fundo. — Por que Viviane estaria lá?

Ponho a mão na cabeça, lembrando-me da insistência de minha “sócia” com relação à amiga. Sim, pode ter sido tudo uma armação!

Eu estava no jantar na mansão do pappoús em Atenas quando recebi o telefonema de Valentina. Surpreendentemente, ela estava na Grécia também e queria me ver. Encontrei-a no dia seguinte à ligação no saguão do hotel onde estava hospedada. Ela parecia muito feliz, abraçou-me carinhosamente e até tentou me beijar, o que eu impedi a tempo.

— O que você está fazendo aqui, Valentina? — inquiri diretamente.

— Pensei em relaxar uns dias em Santorini e soube que você estaria aqui para uma comemoração familiar, então liguei. Fiz mal?

Respirei fundo.

— Não, claro que não! Quando vai para Santorini?

Ela titubeou, respirou fundo e então sorriu sem jeito.

— Pensei em mudar a rota se você me convidasse para ficarmos juntos. — Ela se grudou em mim. — Não tivemos essa oportunidade no Brasil, aqui poderia ser...

— Não, me desculpe. — Afastei-a. — Eu já devia ter dito isso de forma direta, como gosto de ser com tudo, mas não vai acontecer nada entre nós. Eu sinto muito se dei a entender que...

— Mas Viviane me disse que você precisava de uma esposa e...

Eu ri, na verdade gargalhei, ao ouvir isso. Tudo bem, imaginei que Viviane estaria conduzindo a situação, mas não dessa maneira, não que ela praticamente oferecesse minha mão a alguém.

— Sim, eu precisava, mas não desse jeito. Sinto muito se isso levou você a crer que iríamos nos casar. — Franzi o cenho, curioso ao ver sua expressão de decepção. — Por que uma mulher como você aceitaria uma proposta dessa? Você é jovem, linda, inteligente, rica... não tem por que se submeter a isso!

Naquele momento percebi que alguma coisa estava acontecendo pelas minhas costas. Valentina ficou vermelha, afastou-se de mim como se tivesse asco, mas ao mesmo tempo parecia aliviada e sorriu. Não entendi absolutamente nada e fiquei pasmo quando ela me encarou antes de voltar ao seu quarto no hotel e disse:

— Por amor! — Sorriu triste. — A gente faz qualquer coisa por amor.

Fiquei parado, olhando-a se afastar, tendo certeza de que havia perdido algum detalhe muito importante daquela história, talvez por eu não ter me interessado tanto por ela, por estar enlouquecido pela Duda ou somente por ser burro demais para perceber algo além do óbvio.

De qualquer maneira, o assunto Valentina estava encerrado, ou eu pensei que estivesse, até descobrir, agora, que a história de um noivado que nunca existiu está circulando por aí.

— Viviane... — rosno baixo, sentindo a raiva tomar conta de mim.

Não entendo o motivo, mas sei que há algo por trás disso tudo, do interesse dela em que eu fique com Valentina. Não pode ser dinheiro. Viviane não precisa de mim para nada na empresa, sabe muito bem que, se quiser, pode ficar com tudo, pois não apareço na sociedade por conta do impedimento no estatuto da Karamanlis.

É por isso que sempre confiei nela para tudo! Sempre foi honesta, nunca tive motivo algum para desconfiar dela, pelo contrário! Então qual é a jogada?

— Millos, preciso ir — aviso pouco antes de desligar sem ao menos ouvir seus protestos.

Essa foi uma situação muito séria, não foi uma brincadeira ou qualquer coisa do tipo. Viviane jogou com minha vida e a de Valentina, e eu não entendo o porquê.

Desço para a garagem do prédio fazendo pesquisa para ver se encontro algo sobre o falso noivado e, quando encontro – no site da própria revista de fofocas –, sinto meu sangue ferver ao reconhecer a foto e o local onde foi tirada. Valentina foi parte nisso tudo também, foi até Atenas apenas para armar isso tudo com a amiga. Por quê?

Dirijo feito um doido até o apartamento de Vivi na Vila Mariana. Estaciono o carro de qualquer jeito e aceno para o porteiro, que já me conhece de longa data, e ele autoriza minha entrada no prédio.

Toco a campainha, e Viviane abre a porta, vestida apenas com um roupão de seda, totalmente surpresa com minha presença.

— Theo! — Sorri sem jeito. — Você já voltou? Que surpre...

— Que merda é essa, Vivi? — Mostro a foto na tela do meu celular e entro no apartamento. — O que vocês pretendiam afinal? Que armação mais esdrúxula é essa?

Viviane fica branca, parada no meio da sala.

— Eu não sei do que...

— Não, por favor! Não negue. — Aproximo-me dela. — Você foi atrás da Duda no hospital, Millus te viu saindo de lá. Por quê?

— Eu.. eu... — ela gagueja — queria saber da menina.

— Como você soube que Duda tem uma filha e que Tessa estava internada lá? — Bufo quando ela começa a chorar. — Porra, Viviane, abre o jogo de vez!

Ela soluça.

— Eu só não quero perder você! — sua voz desesperada me assusta. — Não posso perder você, Theo!

— Do que você está falando? — Meu corpo inteiro treme, e não reconheço a mulher desesperada à minha frente. Viviane nunca foi assim, nunca!

— Você nunca percebeu que eu amo você? — indaga baixinho, como se fosse um segredo muito bem guardado que ela tinha medo de revelar. — Como você nunca percebeu que eu amo você?

— Nós nunca falamos sobre isso. — Sinto-me um tanto perdido com essa revelação. — Nossa relação nunca foi sobre sentimentos, Viviane, e eu sempre achei que você sabia e gostava disso.

Ela dá de ombros.

— Eu me apaixonei, mas sabia que não podia mudar as regras do seu jogo, então decidi ser sua amiga. Eu estava satisfeita com isso, com nossa amizade. Me divertia te acompanhar, ser seu braço direito, ter sua confiança, porque sei que você não confia muito nas mulheres. — Ela funga e limpa o nariz. — Mas então seu avô decidiu que queria que você tivesse um filho. Eu pensei em me disponibilizar para fazer isso com você, mas veio essa história de ser uma mulher “de berço”.

Balanço a cabeça, pensando na loucura do que estou ouvindo. Nunca a enganei, nunca sequer lhe dei esperanças ou a iludi com relação ao que tínhamos quando estávamos trepando. Era só sexo, só diversão, e nos divertimos muito! Viviane sempre guardou muito bem esse “amor” que sente por mim, pois nunca percebi, pelo contrário, achava que ela era uma versão feminina minha, pois erámos muito parecidos.

— Por que Valentina? O que você pretendia, afinal?

Viviane sorri.

— Conheci Valentina em uma festa e, já no primeiro contato, soube que a menina de ouro dos “de Sá e Campos” escondia algo da família, e isso a envergonhava muito. — Vivi anda até o aparador de bebidas e se serve de uma dose de uísque. — Ser lésbica era algo que eu sabia que a afastaria da família tão tradicional que esperava que ela seguisse os caminhos do pai ou do avô.

Arregalo os olhos com a revelação, e Viviane ri.

— Homens nunca percebem essas coisas! — debocha. — Precisei de 10 minutos conversando com ela para saber que não curtia os homens que estavam nos convidando para beber com eles. Convidei-a para ir a outro lugar, trepei com ela e pronto.

— Você a usou para continuar próxima a mim? — a ideia é tão revoltante que mal consigo preferir a pergunta, tamanho asco.

— Ela é tudo o que você queria! Tem berço, é jovem, bonita, gosta de artes e é apaixonada por mim. — Bebe um longo gole antes de continuar: — Te daria o tão sonhado herdeiro daquele velho misógino que você tem por avô e me proporcionaria estar perto, ser parte da família. — Ela fecha os olhos e abre um sorriso. Um frio perpassa minha coluna. — Eu conheço você. Sei que não iria se satisfazer com ela, então...

— Você seria nossa amante — completo em total assombro, e ela assente.

— Seria tudo perfeito, mas errei ao escolher uma lésbica e não uma bi. — Dá de ombros como se isso não fosse nada, como se ela não estivesse falando de uma pessoa. — Valentina não conseguia tocar você, sentia nojo dos seus beijos, e eu tinha que compensá-la bem para que continuasse a te ver. — Ri bastante. — A idiota ficava aliviada quando você não aparecia ou desmarcava algo, e eu não entendia o que estava errado, porque você nem ao menos tentou levá-la para a cama!

— Você está doente, Viviane — digo com sinceridade, sentindo pena dela. — Não percebe que tudo isso que fez foi errado?

— Meu querido, no amor e na guerra vale tudo! Eu só não contava com essa “Duda” atrapalhando tudo. — Ela gargalha. — Meu Deus, Theo, eu nunca poderia supor que uma cozinheira de bar cheirando a bolinho iria te atrair.

Respiro fundo antes de pôr um ponto final nessa loucura toda.

— Acabou, Viviane. — Ela concorda. — Conversei com Valentina em Atenas, resolvi essa situação toda e agora, depois de saber de tudo isso...

— Sente pena de mim — seus olhos estão vidrados ao dizer isso.

— Sinto. — Sou sincero. — Acho que você deveria buscar ajuda. Isso não é amor. Quem ama não age assim.

Ela ri.

— O que você sabe sobre isso, Theodoros? — Gargalha. — Você é podre, oco por dentro, um homem que só usa as mulheres e não sente nada por elas. Busca sexo para suprir a carência da merda de vida que tem, sem afeto, sem amigos, sem ninguém!

— Não vou mais investir na sua empresa — informo-lhe, e ela ri, cínica. — A partir de hoje, já não tenho mais nenhuma ligação contigo, nem profissional, nem pessoal. Espero que você entenda isso e que, para seu bem, busque ajuda.

— Foda-se, Theodoros Karamanlis!

— Eu me fodi, pode ter certeza. — Caminho para a saída, e ela se levanta, entrando na minha frente. — Viviane, não...

— Por favor... — Chora e segura minha camisa. — Eu não sei o que vou fazer sem você! Por favor!

Afasto-a de mim.

— Adeus. Espero que você fique bem.

Alcanço a porta e a escuto gritar:

— Isso não acabou, Theo! Você não vai ser feliz sem mim, não vai!

A sua voz fica ecoando em meus ouvidos por muito tempo, acompanha-me enquanto dirijo sem rumo, ainda digerindo tudo o que ouvi, tudo o que ela foi capaz de fazer por uma obsessão. Sinto pena de Valentina, tão enganada nessa história quanto eu, usada por conta de uma situação que já lhe é difícil – a aceitação de sua sexualidade – de maneira vil e cruel.

Pelo visto, Viviane iria pôr a culpa da publicação do falso noivado na moça e iria continuar bancando a amiga desinteressada enquanto tentaria minar meu relacionamento com Maria Eduarda.

Tenho que ter cuidado com ela, principalmente quando todos souberem de Tessa. Viviane não está bem, e uma pessoa assim pode ser capaz de tudo.

Dirijo por mais algum tempo, tentando baixar toda a tensão e me livrar da energia ruim causada por meu confronto com Viviane e sigo para o hospital para ver minha menina e, quem sabe, conseguir conversar com a mãe dela. Deixo o carro no estacionamento do hospital e entro ansioso para rever Tessa, mas, ainda na recepção, paro em seco ao ver Kyra.


Minha irmã tem os olhos e o nariz vermelhos, sinais claros de que andou chorando. Seus cabelos negros estão presos em um rabo de cavalo, suas íris verdes não escondem o espanto ao me ver. Ela mantém o braço esquerdo dobrado para cima, como é recomendado a quem acabou de retirar sangue.

Meu coração dispara, e um sorriso de gratidão preenche meu rosto. Kyra tem motivos para ignorar meu pedido de ajuda, mas não o fez, provavelmente não por minha causa, mas por minha filha, e isso me emociona.

— Obrigado — sussurro ainda com medo de ela passar por mim fingindo que não me vê ou escuta. — Muito obrigado por vir.

— Fiz isso pela menina.

Meus olhos se enchem de lágrimas ao ouvir sua resposta. Não, não estou triste por ela ter dito que fez isso por causa de Tessa, estou emocionado por ela ter me respondido depois de mais de 20 anos de total silêncio.

— Ela lembra você — confesso. — Mesmo antes de eu ter ideia de que era minha filha, olhava para ela e me lembrava de você.

Kyra olha para os lados. Noto que está se esforçando para não chorar.

— Sim, ela mesma notou isso. Os olhos. — Sorri e me encara. — Eu espero poder ajudar, mas agora tenho que ir. — Aponta para a saída, e eu assinto, dando um passo para o lado.

Kyra passa por mim, mas algo me incomoda. Há um bolo em minha garganta, e sinto meu estômago fritar. É como se algo gritasse dentro de mim, mas não encontrasse voz para dizer o que preciso falar para ela.

Vejo-a se afastar, então começo a me mover rapidamente, e ela, percebendo que estou indo atrás de si, para e me encara curiosa.

— Me perdoe! — peço antes de voltar a ser o covarde de sempre. — Eu sei que te causei muito danos, sei que acabei com sua infância, não imagino o que você sofreu, mas creio que não deva ter sido fácil, e você era só uma menininha...

— Theodoros, não...

— Por favor, me escuta! — Soluço, e uma lágrima cai sobre minha camisa. — Eu fui um covarde esses anos todos, achando que era melhor me manter longe, consumido pela culpa de ter destruído o mínimo de família que tínhamos. Não quero mais ser assim, não quero há muito tempo. — Kyra seca o rosto, e eu a puxo para um abraço, apertando-a contra meu corpo. — Não sei se consigo fazer com que você me veja como seu irmão de novo, mas eu morro de orgulho de você, de quem se tornou, da mulher bem-sucedida, independente e linda. Eu sinto muito por não fazer parte da sua vida! Eu quero, Kyra, mas entendo que você não possa me perdoar.

— Theo... — Ela chora copiosamente e não consegue falar.

— Eu amo você, mikrí adelfí39! Nunca deixei de amá-la, e, nesses anos todos, tudo o que eu mais sonhei foi isso! — Aperto-a mais contra mim. — Te abraçar, pedir perdão e dizer o quanto te amo!

Solto-a, e ela tampa o rosto com as mãos, seus ombros trêmulos de chorar. As pessoas passam por nós dois, parados chorando na porta do hospital, e nos olham com pena e curiosidade. Eu não trocaria esse momento por nada. Foi ensaiado há anos de maneira diferente, racional, sem lágrimas, mas aconteceu como deveria ter acontecido.

Kyra arruma sua bolsa no ombro, vira as costas e caminha em direção à calçada. Suspiro resignado, aliviado por ter pedido o perdão que há anos está preso dentro de mim, mesmo sabendo que esse pedido não apaga tudo o que a fiz sofrer.

— Theo. — Ergo os olhos e a vejo parada, um pouco mais distante de mim. — Eu perdoo você.

Kyra se vira e passa as portas de vidro do hospital, indo para longe, mas suas palavras aquecem meu coração como o abraço que acabamos de trocar.

 

 

— Caso algum teste retorne positivo, precisaremos começar a quimioterapia com urgência e...

— Quimioterapia? — Entro na sala onde estão reunidos o doutor Felipe e Maria Eduarda.

Depois do encontro com a Kyra na entrada do hospital, precisei de uns minutos para me reestabelecer, então fui ao banheiro lavar o rosto antes de subir para ver Tessa.

Cheguei ao quarto e só encontrei dona Do Carmo, que me informou que minha filha tinha acabado de dormir depois de ter se alimentado e que Duda estava em reunião com os médicos que estão cuidando do caso de Tessa para saber os próximos passos, já que as transfusões estão ficando cada vez mais perto uma da outra, e isso não é bom.

— A senhora sabe onde estão?

Ela me explicou como chegar à sala, e vim correndo até aqui, pois quero acompanhar cada passo do tratamento da minha filha. Dei leves batidas na porta, porém, ninguém respondeu, então entrei e encontrei o tal doutor Felipe com a mão em cima da mão de Maria Eduarda, explicando a ela algo sobre quimioterapia.

O médico me olha assustado assim que entro, mas não retira a mão de cima da dela. É Maria Eduarda quem retira a sua antes de respirar fundo e me cumprimentar.

— Que bom que chegou. Doutor Felipe estava explicando o que teremos de fazer caso um dos testes dos seus irmãos dê positivo.

Ela está calma, o doutor tem um sorriso simpático, mas eu ainda estou processando aquela mão grande sobre a delicada de Maria Eduarda. A vontade que tive ao entrar na sala foi, ao invés de perguntar sobre a quimioterapia, gritar para ele tirar a mão dela.

Maria Eduarda é minha!

— Senhor Karamanlis? — O médico me aponta uma das cadeiras em volta da mesa redonda, em frente a Maria Eduarda e ao seu lado direito, mas eu tomo assento ao lado dela.

— Vocês estavam falando de quimioterapia. Por que Tessa precisa de quimio se não tem câncer? — volto ao assunto e depois olho de soslaio para Duda, que parece segurar um sorriso. Por causa da minha pergunta ou pelo olhar raivoso que dirigi ao médico quando ele a estava tocando? Será que ela percebeu que, mesmo tendo estado longe por todos esses dias, nossos corpos vibram por estarem próximos de novo? Será que ela sente, assim como eu, a mesma vontade de abraçar, beijar e me fundir a ela?

— Bom, a quimioterapia é necessária para reduzirmos ao máximo a medula com problemas para que receba as células que irão reconstruí-la. — Assinto, entendendo o que ele diz. — Como estava dizendo a Maria Eduarda, nesse período de quimio, devemos ser mais cautelosos, restringir ainda mais o contato com visitantes, adotaremos uma dieta diferenciada e temos que ficar atentos aos efeitos colaterais da medicação.

Fico preocupado e busco os olhos de Duda. Vejo a mesma preocupação espelhada neles. A medicação da quimio é bem pesada, pode causar muita náusea, diarreia, queda de cabelo, entre outros efeitos já conhecidos. Não será fácil, mesmo que por um período bem pequeno, prepará-la para o transplante.

— Caso o transplante não seja possível entre os familiares, teremos que começar a introduzir os imunossupressores combinados com outras medicações para tentar driblar as infecções que poderão ocorrer por mantermos sua defesa muito baixa. — Ele pega um folheto explicativo. — Como a AAG não é muito comum, temos apenas dois tipos de tratamento com essa medicação, mas somente um está disponível aqui no país.

— Vamos conseguir o transplante — digo confiante. — Quando teremos todos os resultados?

— No final do dia, no máximo. O pessoal do laboratório está empenhado nisso. Vocês fizeram o cadastro no banco do REDOME? Mesmo que não sejam compatíveis com Tessa, podem ser com outras pessoas, e o transplante de medula é algo bem simples de ser feito e pode curar muitas pessoas.

— Fizemos, sim — Duda é quem responde. — Obrigada pelos esclarecimentos, doutor.

Ela se põe de pé, e eu a acompanho.

— Estarei sempre à disposição. — Ele a cumprimenta e depois, a mim.

Saímos juntos, em silêncio, pelo corredor até o elevador. Mal espero as portas se fecharem e disparo:

— Eu nunca estive noivo. — Maria Eduarda balança a cabeça e não me olha. — Duda, olha para mim. — Ela o faz. — Não existe noivado algum!

— Eu vi, Theo, naquela revista, e sua amiga fez questão de vir...

— Ela armou isso! — Maria Eduarda arregala os olhos. — Eu soube do noivado agora pela manhã, Millos me contou. Viviane armou isso.

— Por quê?

O elevador para, e nós dois seguimos andando pelo corredor até o quarto de Tessa, porém, antes de entrarmos, quero deixar esse assunto bem claro para ela.

— Eu fiz uma promessa ao meu avô. Ele queria, como presente de aniversário de 90 anos, um bisneto, e, para isso, eu precisaria me casar. — Maria Eduarda parece surpresa e curiosa com a história. — Viviane estava me ajudando a escolher uma candidata a mãe do meu filho.

— O quê? — Ela ri, nervosa.

— É, eu achei que pudesse me casar em um acordo, sem grandes complicações, cada um sabendo até onde poderia ir na relação. — Abaixo a cabeça, envergonhado. — Valentina me foi apresentada como uma possibilidade. Nós saímos algumas vezes, mas nunca tivemos química suficiente para... — Fico sem jeito. — Então conheci você e não consegui pensar em qualquer outra mulher. Por mais que eu visse Valentina como uma candidata perfeita para o que meu avô queria, eu não a queria.

— Então ela foi para a Grécia atrás de você?

— Sim, a mando de Viviane e com o firme propósito de fabricar a notícia que você viu. — Toco-a. — Não houve noivado algum!

— Você continuou pensando em se casar com ela mesmo depois de estarmos juntos?

A pergunta que eu mais temi durante todo o tempo em que pensei em lhe contar, chegou, e eu não tenho muita escolha a não ser usar de toda a sinceridade do mundo.

— Sim, continuei. — Ela se afasta de mim. — Eu prometi ao meu avô e...

— Não podia decepcioná-lo, mesmo correndo o risco de magoar várias pessoas ao longo do caminho. Você tem noção do quanto isso é frio? Você nem mesmo me considerou, não foi? Nem mesmo pensou em um relacionamento mais profundo entre nós e...

— Até pouco tempo, não. — Tenho vontade de me dar um soco, mas preciso ser sincero. — Confesso que só pensei em me casar por causa desse pedido do pappoús, porque, se não fosse por isso, eu não estaria procurando ninguém. — O semblante de Maria Eduarda endurece. — Na minha cabeça, só faria sentido se me casasse com alguém que ele aprovaria e...

— Eu nunca seria aprovada, não é? — sua voz é firme, mas sinto mágoa nela. — Não sei o que seu avô queria, mas certamente não era a dona de um bar, cheirando a frituras e com uma filha a tiracolo.

— Isso já não importa. O que ele quer, se aprova ou não, já não tem nenhum sentido agora.

— Por causa de Tessa? Porque você descobriu que eu sou aquela mulher que te enlouqueceu e atraiu a ponto de você não enxergar mais nada naquela noite? — Abro a boca para falar, mas ela me silencia com um gesto. — Você é o pai da minha filha, mas isso não muda o resto. Continuo a ser a mulher que não se enquadra no que você procura.

Ela se afasta andando sem olhar para trás, e eu percebo que talvez a tenha perdido para sempre. Foram muitas omissões, e o fato de eu não ter tomado uma decisão sobre Valentina antes mesmo que tudo isso acontecesse não ajudou em nada.

Duda não sabe o que sinto por ela. Nunca pude dizer, e talvez agora já não tenha tanta importância, ou ela pense que estou dizendo isso por causa de Tessa.

Respiro fundo e apoio a cabeça contra a parede do corredor, tentando achar uma solução para provar a ela que a amo, que me apaixonei por ela ao longo desse tempo em que ficamos juntos e nada tem a ver com meu avô, com nossa filha ou com o fato de já termos nos conhecido antes.

Meu celular vibra no bolso, e eu atendo uma ligação de Hamilton Navega.

— Oi, Hal.

— Você deve estar querendo me causar um infarto, só pode! — Ele ri. — Estive em reunião a manhã toda e nem tinha olhado meu celular pessoal até esse momento. Como assim fez um DNA e tem uma filha de oito anos?

Olho na direção do quarto onde Tessa está e me afasto, indo em direção ao elevador para resolver mais esse assunto antes de vê-la.

— O nome dela é Tessa Hill, faz oito anos agora no começo de março e está doente. — Engulo saliva com dificuldade, o temor voltando a me assolar. — Está internada à espera de um transplante, e eu gostaria de dizer a ela que sou seu pai, de colocar meu nome e sobrenome em seus documentos o mais rápido possível.

— Tão grave assim ela está, Theo?

Bufo.

— Sim. Estamos em busca de um doador, senão ela começará um tratamento severo e que... — eu não gostaria de estar admitindo isso em voz alta — pode não funcionar.

— Oh, meu Deus! Eu sinto muito, Theo. Sei bem o que você está sentindo, meu amigo.

Sim, ele sabe, pois sua esposa lutou contra o câncer de mama durante algum tempo e eles estiveram prestes a perdê-la antes que a doença entrasse em remissão.

— Eu gostaria de conversar com você. Tenho outras questões, além do reconhecimento de paternidade, e...

— Estarei livre daqui a pouco, não tenho nada marcado para o final da tarde. Ia estudar um pouco, mas podemos nos encontrar.

— É uma boa ideia! Eu vou ficar um pouco com minha filha. As visitas estão mais restritas, mas quero pelo menos que ela me veja aqui perto dela. — Desço do elevador no piso térreo do hospital. — Assim que sair daqui, eu te mando uma mensagem, e nos encontramos.

— Está certo. Espero que tudo dê certo com sua filha.

— Vai dar. Tem que dar!

Desligo o telefone e vou em direção à cantina do hospital a fim de tomar um café, já que nem consegui almoçar, porém, antes que eu chegue lá, sou parado pela doutora Amália, uma das médicas responsáveis pelo caso de Tessa e a que tem acompanhado os exames de compatibilidade.

— Senhor Karamanlis! — ela me chama, e seu sorriso dispara meu coração.

Temos um doador!


A médica não para de falar, mas eu não consigo ouvir muito bem, pois meus ouvidos estão zunindo, e meu coração, saindo pela boca. Viemos até o seu consultório, onde, segundo ela, estão todos os resultados dos exames.

— É incrível a compatibilidade que achamos, é quase um milagre. Ah, como eu amo a ciência e a genética, é uma matéria quase divina! — Ela pega a pasta e estende para mim uma folha. — Olha essa perfeição!

Pego o resultado com as mãos tremendo. Ainda não sei quais dos meus irmãos será o doador, mas, neste momento, isso importa pouco. Meus olhos embaçados de lágrimas me impedem de ler o documento, e eu rio quando a doutora me estende um lencinho de papel.

— Obrigado. — Seco os olhos.

— Tessa é uma menina muito especial. Eu tenho certeza de que tudo vai dar certo agora. Ser de tipagem AB a ajudou muito, pois recebe qualquer tipo de sangue. Infelizmente, as pessoas não são conscientizadas da importância que é a doação. São apenas 20 minutos que podem salvar muitas vidas.

Eu assinto e volto a pegar o resultado para o ler.

— A doadora é a Kyra! — exclamo com um nó na garganta.

— Sim! Vê. — Ela aponta. — Tipagem e RH iguais e compatibilidade altíssima. Ela é perfeita para a doação.

— Já informou a todos?

— Sim! Acabei de mandar mensagem para o doutor Felipe, e ele deve estar comunicando a Maria Eduarda. — Sorri. — Ela merece essa felicidade, é uma pessoa preocupada com os outros. — Assinto. — Mesmo com o problema da filha, ela fez questão de doar seu sangue para o banco. É uma raridade conseguir um doador universal, O negativo, sabe? Ela se prontificou a fazer da doação um compromisso para a vida.

A doutora continua a falar, mas minha cabeça não processa mais sua voz. Há muitos anos estudei genética, não me lembro dos pormenores, mas há algo aí nessa história que me incomoda.

— Eu entendo pouco do assunto, mas, se ela é doadora universal, por que não pôde doar a medula para a Tessa, que é receptora universal?

— Ah, para transplante isso muda. — Ela parece bem feliz em me explicar, o que demonstra que ama o que faz. — Não levamos em conta apenas a tipagem sanguínea. Como você não se lembra, vou exemplificar. — Ela pega um bloquinho a anota os tipos sanguíneos do gruo ABO. — Para transfusões, Tessa recebe sangue de qualquer um dos tipos com qualquer RH, mas ela só pode doar para A ou B, visto que seu sangue veio da junção desses dois tipos. Já a Maria Eduarda pode doar para qualquer tipo e qualquer RH, pois é doadora universal, o famoso O negativo. Para transplante, além dos fatores de tipagem e RH, nós levamos em conta outros fatores genéticos semelhantes, por isso o transplante alogênico (o que vem de outra pessoa) ideal é entre parentes, pois têm maior chance de ocorrer essas semelhanças genéticas.

Ela continua a explicar, falando de proteínas e células, mas meus olhos estão fixos no nome de minha filha com um baita AB+ ao lado e o de Maria Eduarda com sua tipagem O negativo.

Não, Theo, você não se lembra da matéria, está confundindo as coisas!

— O sangue de Tessa, a senhora disse que vem da junção de A e B? — interrompo-a.

— Sim! Como o da sua irmã, Kyra. — Ela olha as outras folhas. — Seu sangue e o de Konstantinos é A positivo e Alexios é B positivo.

Maria Eduarda é de tipagem O, então...

Olho para a doutora, prestes a perguntar a ela o que significa, então, a mãe da minha filha não ser A, nem B, muito menos AB, mas desisto da indagação, com medo de confirmar o que estou pensando.

Devolvo a ela o resultado do exame de Kyra e agradeço a atenção.

— Nós já estamos entrando em contato com a doadora, e o doutor já vai iniciar os procedimentos para o transplante. — Ela me estende a mão. — Sua filha vai ficar bem!

Sorrio, aliviado, e mando uma mensagem para Millos assim que saio do consultório.

 

 

Imediatamente ele responde:

 

 

É, eu também me senti assim quando li o resultado. A irmã que eu tanto magoei, que passou anos sem falar comigo ou me perdoar e que agora, além de ter me dado o perdão que eu tanto almejada, vai salvar minha filha.

 

 

Millos manda a mensagem seguida de várias canecas de chope. Balanço a cabeça, pois ainda teremos muitos desafios a vencer para a cura de Tessa, mas vê-lo será bom, porque preciso conversar com alguém.

Olho para o elevador e penso que estou há horas no hospital e ainda não consegui ir até minha menina. Queria estar ao lado de Maria Eduarda para comemorarmos a notícia da doação, mas não me sinto capaz de ir até ela sem questionar as coisas que acabei de ver. Preciso, antes, manter a calma, conversar com Millos e Hal e, aí sim, decidir o que fazer.

 

 

Assim que leio a mensagem dele, vou para o estacionamento. Nunca me senti tão cheio de sentimentos como agora. Tenho ainda medo pela minha filha, mas esperança de que ela se recupere; tenho vontade de ir até Maria Eduarda e dizer a ela o que sinto, mas acho que ela está com medo da minha proximidade, principalmente se o que estou pensando for verdade.

Não tem como não ser!, admito para mim mesmo. Não sei a história por trás disso tudo, mas uma coisa é certa: Duda não é mãe biológica de Tessa.

 

 

— Mas o que te faz pensar assim? — Millos questiona, com sua caneca de chope na mão. — Foi somente pela tipagem sanguínea diferente?

Nego, tomando já a segunda dose de uísque.

— Não. A tipagem veio só para confirmar algo que já estava me incomodando. — Suspiro. — Eu estava bêbado demais há nove anos, reconheço, mas ter feito ligação dela com a mulher da boate em nenhum momento foi algo estranho. Já trepei bêbado algumas vezes, talvez não tanto quanto estava daquela vez, mas, quando reencontrava a mulher com quem tinha transado, logo a reconhecia. — Millos assente. — Algo me despertaria lembranças, o beijo, o cheiro, o encaixe dos corpos, não sei, mas nada me despertou.

— Entendo. — Millos termina sua bebida e pede mais uma. — Você só assumiu que ela era a mulher da boate ao ver a foto?

— Sim, embora já tivesse informações suficientes antes. Ela me contou que esteve em Zakynthos com um grupo de amigas da época em que estudava gastronomia em Paris, inclusive falou a época, mas não prestei atenção. Tudo se encaixou quando vi a foto.

Millos franze a testa.

— Mas era ela na foto dando de mamar para Tessa?

Theo dá de ombros.

— Estava de costas, a câmera focou a criança, parte do seio e umas mechas do cabelo colorido apareciam. — Bufo. — Mas tinha outra, e nela Duda aparecia com os cabelos pintados, bem como Tessa.

— Eu já a vi de cabelo colorido — Millos confessa, e eu arregalo os olhos. — Durante o tempo em que ia atrás dela para negociar o bar, a vi com cabelos pintados de rosa em duas ocasiões, sempre na mesma época do ano.

Contei a história do que aconteceu naquela boate para o Millos, e ele, na época, surpreendeu-se bastante. Nunca fui um homem de impulsos, era muito racional, então ter trepado com alguém sem saber o nome e no banheiro de uma boate o surpreendeu tanto quanto a mim. Porém, eu achava que a moça era francesa por causa de seu idioma perfeito, sem sotaque algum, e ele não tinha como fazer conexão entre Duda e essa tal mulher.

— Eu não sei o que fazer! — digo em desespero. — Não entendo essa história toda!

— Você tentou conversar com ela? — Millos pergunta, e eu nego. — Só Maria Eduarda pode te esclarecer tudo isso. Você ainda a quer?

Olho-o como se estivesse louco ao fazer essa pergunta.

— Ela ser ou não mãe de Tessa não muda o que sinto por ela. — Millos sorri ante minha resposta. — Eu me apaixonei pela mulher que encontrei em um bar de um restaurante, num encontro arranjado por você!

Millos levanta sua caneca de chope.

— Não esqueça isso, quero ser padrinho se ela ainda te quiser! — Gemo com a mera hipótese de ela não me querer mais, fazendo Millos rir. — Hal chegou.

Aponta para a entrada do bar, e vejo o elegante advogado adentrar o recinto.

— Ótimo local para uma reunião de trabalho. — Ele nos cumprimenta. — Alguém avisou ao carcamano que estamos aqui? Sabem como ele é quando se sente excluído pelos amigos.

— Ele e Vincenzo estão em reunião com os outros donos de estabelecimentos aqui do terraço do hotel — Millos responde.

Hal me abraça pelos ombros, sentado ao meu lado.

— Como você está?

— Melhor. Achamos um doador.

O rosto do meu amigo se ilumina.

— Ah, então estamos em uma comemoração! — Millos balança a cabeça afirmativamente, mas ele nota meu semblante preocupado. — Vai dar tudo certo agora, tenha fé!

— Eu tenho! — Aprumo meu corpo e bebo o resto do meu uísque. — Tenho uma pergunta estranha para fazer.

— Adoro perguntas estranhas! — Ele cruza os braços, assumindo sua pose de advogado competente. — Faça.

— Caso minha filha tenha sido adotada, o que significa meu reconhecimento de paternidade para essa adoção?

Hal arregala os olhos.

— Adoção legal ou “à brasileira”? — Millos xinga, e eu o olho como se estivesse falando japonês. — Houve um processo de adoção ou o homem apenas registrou a criança como se fosse o pai?

— Não. Ela não tem nome paterno na certidão. — Respiro fundo. — Eu acho que a mãe dela a adotou.

Hal faz careta, e Millos ri.

— Mas que coisa complicada! Você não sabe se a mãe de sua filha é realmente a mãe de sua filha?

Bufo.

— Hal, é uma história longa. Mas, caso ela tenha adotado a menina e eu peça o reconhecimento, corre o risco de essa adoção ser anulada?

Ele nega de pronto, e eu sinto um imenso alívio.

— Se a adoção correu dentro dos trâmites legais, não há por que ela ser anulada. O máximo que poderemos fazer é regularizar a questão da guarda compartilhada para que vocês dois possam decidir juntos os assuntos referentes à criança e discutir pensão alimentícia ou, caso tenha motivos para isso, pedir a reversão da guarda.

Sinto-me muito mais tranquilo agora para conversar com Maria Eduarda sabendo que não sou um risco para ela. Tessa não poderia ter sido criada por pessoa melhor. Eu tenho consciência de que, mesmo não sendo sua mãe biológica, Duda ama demais a minha filha.

— É, meu primo — Millos me chama a atenção. — Tem uma missão difícil pela frente. — Dá um tapinha nas minhas costas. — Convencê-la de seus sentimentos e dizer a ela que sabe sobre a menina.

— Eu entendo agora a reação dela quando vi as fotos e disse que era o homem da boate. Mesmo não tendo certeza da paternidade, teve medo de que eu lhe tirasse Tessa. — Respiro fundo e olho para Millos. — Não sei o que fazer para ela acreditar que o que sinto nada tem a ver com tudo isso.

— Ah, meu Deus! — Hal exclama e pede uma cerveja. — Você ainda está apaixonado pela mulher?! — Balança a cabeça, rindo. — Que história! Que história!


Depois de ter contado tudo o que houve para Hal, continuei a beber enquanto recebia conselhos de como reconquistar Maria Eduarda. Acabei descobrindo que o advogado teve envolvimento direto na perda da minha gerente anterior, Malu Ruschel, pois ajudou que ela e o peão ficassem juntos.

Ah, o peão não era bem um peão!

Por causa desse feito e por ter praticamente apresentado Frank e sua esposa, Hal se sente sumidade em assuntos do coração. Millos, sempre muito reservado e misterioso, manteve-se calado na maioria do tempo, mas não deixei de notar que conferia as horas a todo momento, bem como mandava mensagens para alguém.

Já passava das 10h da noite quando, impossibilitado de dirigir por causa do álcool, os dois me puseram em um táxi – Hal subiria para o escritório do Frank no hotel e iria pegar carona com o carcamano, e Millos estava de moto – e me despacharam para casa.

Ainda estou dentro do carro, meio deitado, esperando chegar a minha casa, quando recebo mensagens de Maria Eduarda, falando do resultado do exame de Kyra e que minha irmã esteve lá com ela para conversar. Ela pergunta por mim, dizendo que Tessa quer me ver, e eu me sinto um lixo por não ter tido coragem de subir e participar desse momento com elas.

Aprumo meu corpo e digito uma pergunta direta:

 

 

Duda me responde de pronto:

 

 

Fecho os olhos, não me sentindo em condições de conversar com ela, mas ansioso demais por isso. Não quero dizer que já sei a verdade, espero que ela me diga, pois a mulher por quem me apaixonei faria dessa forma.

 

 

Começo a chorar como um bebê dentro do carro, assustando o motorista. Não consigo parar de soluçar ao imaginar minha irmã conversando com Maria Eduarda. A culpa pelo que fiz há anos ainda me consome, o senso de dívida que tenho para com meu avô, o motivo pelo qual achei que nunca iria encontrar alguém que me despertasse sentimentos novamente.

Estou aqui querendo sua sinceridade, quando nunca fui honesto com ela.

 

 

Aguardo ansioso a resposta e, quando ela vem juntamente ao endereço do apartamento, sinto o coração disparar e uma pontada de esperança surgir. Tremo dentro do carro, pois sei muito bem o que vou revelar a ela. Preciso que Maria Eduarda saiba quem eu sou de verdade, entenda os motivos que me fizeram ser como sou, conheça meus demônios e, se ainda assim me quiser, poderei me sentir o homem mais rico deste mundo.

O táxi para em frente ao prédio, eu pago a corrida e, um tanto trôpego, aperto o número do apartamento dela pelo interfone.

— É o Theo — digo assim que ela atende.

Entro na construção simples já à procura do elevador e aperto o andar onde ela está morando. Duda me espera na porta do apartamento e se surpreende com meu estado lamentável.

— Me desculpe por isso... — Encosto-me à porta. — Eu precisava vir conversar com você.

Ela assente e, sem dizer nada, afasta-se para eu entrar.

O apartamento deve ter sido alugado já mobiliado. Noto a sala completa, dois ambientes, mas sem nenhuma lembrança pessoal dela.

— O que houve? Por que você está assim?

Respiro fundo.

— Porque eu sou um merda, Maria Eduarda. — Ela arregala os olhos. — Porque estive esses anos todos pagando pelos meus pecados, afetando a vida dos outros ao meu redor e, hoje, com a notícia de que Kyra é compatível e que, mesmo eu a tendo feito sofrer durante anos, vai doar para Tessa, percebi o quanto sou um lixo.

— Theo, não estou entendendo nada! — Ela se aproxima de mim. — Kyra esteve comigo hoje, estava feliz e emocionada. É óbvio que ela te ama e...

— Eu fodi a vida dela, Duda! — falo mais alto do que gostaria, e isso a assusta. — Hoje ela falou comigo pela primeira vez depois de mais de vinte anos de silêncio. — Duda arregala os olhos. — 24 anos para ser exato. — Engulo com dificuldade, sentindo meus olhos queimarem, a emoção transbordar. — Todos me odeiam e têm motivos para isso.

— Não, Theo, ela não...

— Eu fui criado pelo meu avô — começo antes que perca a coragem, e ela percebe que é importante. — Enquanto meu pai mudava de mulher de tempos em tempos, sempre abandonando seus filhos sem olhar para trás, eu crescia sendo educado por meu avô. — Duda se senta, e eu começo a andar pela sala. — Minha mãe era uma moça pobre, mas muito bonita e, quando teve a oportunidade de melhorar de vida e ser independente, não pensou duas vezes: aceitou o dinheiro de pappoús e foi morar na Itália, onde seguiu, por alguns anos, a carreira de modelo.

Lembranças de quando era menino e acompanhava escondido a carreira da mulher que me gerou voltam com tudo, quase me transportando de volta aos momentos e às emoções que eu sentia naquela época. Eu nutri a mesma pergunta por muitos anos: por que ela não me quis? Cresci sonhando em encontrá-la um dia e poder descobrir essa resposta, mas, infelizmente, não tive tempo, pois ela morreu em um acidente de carro quando eu tinha 12 anos de idade.

Deixo de lado a dor do menino que fui, a frustração do adolescente que queria conhecer a mãe e volto a lhe contar a minha história.

— Meu pai, mesmo recém-casado com ela, nunca deixou suas namoradas. — Rio sarcasticamente. — Era assim que ele se referia às amantes: namoradas. Foi de namorada em namorada, em períodos intercalados com esposas, que se formou a nossa família. Kostas, de um casamento relâmpago com uma inglesa, Alex, de uma garota de programa com quem ele teve um caso, e Kyra... — respiro fundo — de uma jovem estagiária da Karamanlis, a única mulher que conseguiu virar a cabeça dele a ponto de renunciar a todas as outras.

A imagem da exuberante Sabrina aparece vívida na minha memória. Ela se casou com Nikkós com apenas 19 anos, adotou Alex e logo engravidou da Kyra. De longe eu acompanhei a formação dessa família e me senti feliz por meus irmãos caçulas.

— Quando Kostas fez 12 anos, seu avô o enviou para morar com o pai, e eu vim junto com ele, de férias, pois em breve iria para os Estados Unidos estudar. — Paro de andar um pouco, já tonto por causa da bebida e de toda a emoção. Há anos não falo sobre isso, não ressuscito essas lembranças, mas sei que é necessário fazer isso. — Conhecia a todos por fotos, falava pouco o português e me encantei com meus irmãos. Eles eram tão felizes, tão diferentes de mim e do taciturno Kostas. Alex me via como um herói, seu irmão mais velho, tinha orgulho disso, e Kyra... — Tampo o rosto com as mãos e choro. Sinto a mão de Maria Eduarda no meu ombro e a abraço forte. — Kyra era como a Tessa é hoje, sabe? Cheia de energia, iluminada, carinhosa, uma criança feliz.

— Theo, você não precisa fazer isso. — Encaro-a. — Não precisa remexer essas lembranças tão doloridas.

— Preciso. — Tomo coragem de me expor completamente para ela. — Eu vim aqui para dizer que eu amo você. — Duda fica imóvel, olhos arregalados e respiração suspensa. — Você disse que me amava uma vez, mas não conhecia o homem que eu sou. Eu não quero mais mentiras e omissões entre nós, por isso estou contando tudo. Se você ainda puder me amar depois de conhecer o verdadeiro Theodoros, nada mais ficará entre nós.

Ela assente, seca o rosto com as mãos – percebo que está tão emocionada quanto eu – e volta a se sentar.

— Meu pai trabalhava demais na época. Ele nunca ligou para os filhos, embora fosse muito mais presente com Alex e Kyra do que tentou ser comigo e com Kostas. Naquelas férias, nós ficávamos mais com nossa madrasta do que com ele. — A percepção do que aconteceu é visível no rosto de Duda. — É, eu não sabia quase nada da vida. Minha criação foi muito rígida, só estudava e estagiava na empresa, não tinha amigos ou mesmo namoradas, então me apaixonar pela mulher do meu pai não foi muita novidade.

Duda fecha os olhos, e eu sinto o choque da revelação.

Ainda me lembro de como eu ficava perto dela, extasiado, principalmente quando estávamos na piscina e a via de biquíni. Sabrina tinha 25 anos na época, e eu tinha completado 17, mas já era alto e, como sempre fiz muitos esportes, corpulento. Não me lembro de ter percebido minha libido antes dela. Nunca fui um adolescente punheteiro, mas acordava ereto todos os dias na casa do meu pai. Sonhava com ela, compunha e tocava músicas em sua homenagem.

Tudo, claro, era muito platônico, afinal, ela era a mulher do meu pai.

— Eu nunca teria dito nada, feito nada ou mesmo insinuado qualquer coisa que pudesse desrespeitá-la, mas ela já havia percebido e não só isso, gostava e alimentava minha adoração. — Duda balança a cabeça e seca novas lágrimas. — Isso começou a mudar quando, alegando “amor materno”, começou a me tocar, acariciando meus cabelos, elogiando meus olhos azuis, ressaltando que eu tinha um belo porte e que, mesmo com pouca idade, que era um homem grande.

Sofro ao me lembrar de como enlouquecia a cada dia, descontando toda a energia da frustração sexual debaixo do chuveiro, gozando com a imagem dela na mente. Durante aquele ano, lembro-me que o país estava em êxtase por ter conquistado o tetracampeonato mundial de futebol. Tudo à minha volta tinha as cores da bandeira do país, ou a imagem do ídolo de Fórmula 1 que tinha perdido a vida naquele ano e de quem eu gostava muito.

Lembro-me de estar usando uma camisa com a foto do famoso carro da McLaren quando ela me chamou em sua suíte. Era madrugada, eu tinha ido à cozinha para pegar água, as crianças estavam todas dormindo, e papai, como sempre, ainda não tinha chegado.

Fui até lá completamente tenso e, quando a vi com uma camisola transparente em cima da cama, soube que ali seria meu fim. Tentei lembrar quem eu era, o que tinha aprendido em casa sobre respeito, certo e errado, mas simplesmente não pude resistir. Ela tocou meu corpo como eu mesmo nem sabia que podia ser feito e me fez tocá-la como eu tinha feito apenas em meus sonhos.

A partir daquele dia, minha primeira transa, eu passei a buscar toda e qualquer oportunidade de estar dentro de Sabrina. As crianças iam para o playground, e eu ficava aprendendo com ela como chupar uma mulher. Meu pai programava uma ida ao cinema, ela e eu inventávamos uma desculpa e saíamos de carro juntos, trepando em motéis baratos da cidade.

No dia em que precisei voltar para casa, em Atenas, chorei como um bebê de colo, e todos se espantaram em como eu tinha, em tão pouco tempo, me apegado “ao meu pai”.

— Minha primeira experiência sexual e, como acreditava na época, meu primeiro amor, era a minha madrasta.

— Theo, você era um menino! — Duda tenta justificar.

Nego.

— Não terminou ali. Não foi somente naquelas férias. — Duda suspira. — Um ano depois, antes de eu começar o college nos Estados Unidos, quis novamente passar férias com meus irmãos. Alex, Kostas e Kyra ficaram felizes em me ver, mas eu só queria estar próximo de Sabrina. Mal cheguei ao país e já estava em alguma espelunca fodendo minha madrasta.

Continuo a contar a história para ela, excluindo alguns detalhes sórdidos desnecessários, mas que não posso deixar de revisitar neste momento.

As férias foram intensas, só que, daquela vez, a qualquer contato que Nikkós tinha com ela, eu enlouquecia de ciúmes. Pensava que a amava e não suportava dividi-la com mais ninguém.

Ele não me toca mais como mulher, ela alegava quando eu questionava seus sentimentos por meu pai. Estamos juntos apenas por causa das crianças. Ah, Theo, eu queria muito poder ficar só com você, mas não posso abandonar seus irmãos, eles precisam de mim.

Aquele argumento quebrava meu coração, e eu me obrigava a engolir o amor que sentia e a entender que eles precisavam mais dela do que qualquer coisa.

Nos Estados Unidos, fiquei uns meses tranquilo, estudava, confraternizava com meus amigos de classe e cheguei até a sair com algumas garotas, ampliando minha experiência e tirando um pouco da “magia” de Sabrina de sobre mim. Até que ela me ligou, em desespero, pedindo para que eu fosse ao Brasil.

Eu estava no meio das provas, tinha entrado para o time de polo da universidade e estava começando a engatar um namoro na esperança de esquecer toda aquela história sórdida com a esposa do meu pai; não tinha como ir.

Foi então que ela revelou que estava grávida e que, como não transava mais com meu pai, o filho era meu. Eu senti o chão sumir com aquela revelação! Fiquei uns instantes mudo, sem saber como agir ou o que pensar, olhando fixamente para um ponto qualquer dentro do meu quarto, vendo, um a um, todos os sonhos e planos que meu avô traçara para mim ruírem.

Eu havia decepcionado minha família!

É seu filho, Theo! Ela soluçava. Será que você se importa tão pouco com isso? Será que puxou ao seu pai?

Aquelas duas perguntas dispararam lembranças e mágoas em mim de uma maneira que meu corpo inteiro sacudiu. Eu não podia agir como meu pai fizera comigo e com meus irmãos, não faria isso! A decisão estava tomada.

Vim para o Brasil, enfrentei a fúria de Nikolaous Karamanlis, vi a confusão e o horror nos olhos dos meus irmãos menores e levei Sabrina comigo para Atenas.

— Vocês tiveram um filho? — Duda me pergunta, interrompendo minhas lembranças, com a voz trêmula.

— Não. Pensamos que meu avô iria nos amparar na Grécia, mas estávamos enganados. Tive que recorrer à família de minha mãe, pessoas que eu não via há anos e que me deram apoio e emprego.

— Você estava disposto a deixar tudo para assumir a criança — Duda afirma, e eu concordo.

— Eu me sentia culpado, mas acreditava que estávamos apaixonados e que, com o nascimento do bebê, as coisas começariam a entrar nos eixos. — Rio em desespero. — Eu não conseguia enxergar nada, era um completo idiota.

— Não! — Duda segura minhas mãos e me puxa para me sentar junto a ela no sofá. — Eu repito: você era um menino! Mesmo com 18 anos, não sabia nada da vida! Foi errado o que fez, mas não pode carregar isso para sempre!

Nego, pois eu sabia o que estava fazendo, sim! Trabalhei de sol a sol, vendi pescado nas ruas e mercados de Atenas, tudo para provar que eu conseguia suprir e ser um pai melhor do que o meu tinha sido.

Claro que viver daquela forma não estava nos planos de Sabrina e, um belo dia, cheguei à casa onde estávamos hospedados com minha tia e soube que ela tinha fugido com um homem que estava com o iate atracado ali por perto.

Quando quis ir atrás dela, preocupado com meu filho, minha tia revelou que, dias antes, Sabrina teve um aborto depois de tomar um medicamento e pediu a ela que não me contasse, e ela decidiu não interferir, porque sentia que a relação não ia durar muito.

Eu fiquei quebrado depois disso, comecei a beber, deixei de trabalhar, e, quando pappoús me encontrou jogado na rua feito um maltrapilho, levou-me de volta para casa, arrumou minhas malas e me despachou de volta para os Estados Unidos.

— Os primeiros anos em Boston foram difíceis, principalmente porque as notícias do Brasil, dos meus irmãos, não eram boas. Eu havia destruído a vida de todos, deixando-os nas mãos de um homem louco, transtornado e que fez da infância de cada um deles um inferno.

— Theo, eu sinto muito que isso tenha acontecido com você, de verdade. — Ela limpa meu rosto, e eu seguro sua mão e a levo até meus lábios. — Você não é mais aquele garoto; eles não são mais crianças.

— Mas nunca puderam me perdoar.

— Não foi culpa sua, seu pai já não era um homem equilibrado — ela pondera, mas isso não tira de mim a sensação de que despertei o monstro dentro dele. — Kyra te perdoou, eu tenho certeza.

Assinto com um sorriso.

— Ela o fez. Eu não sei o que fiz para receber o perdão dela, muito menos para ter você e Tessa na minha vida, e é por isso que não posso perder vocês. Eu não mereço, mas não posso perder vocês.

Duda me olha sem saber o que responder, e eu sinto o corpo inteiro gelar. Ela olha para o alto, e eu posso sentir sua preocupação de onde estou. Minha cabeça dói, não dormi na noite passada e sinto os efeitos da bebida e da confissão que acabei de lhe fazer.

— Eu amo você, Maria Eduarda. — Ela me encara. — Não quero mais nenhum segredo do passado entre nós. Fui sincero com você, mesmo correndo o risco de te perder para sempre. — Encosto-me ao sofá, não consigo segurar um bocejo e fecho os olhos, falando lentamente: — Eu só espero que você possa confiar em mim.


Eu só espero que você possa confiar em mim!

As palavras que Theo disse antes de dormir ficaram reverberando em minha cabeça a noite inteira enquanto eu o observava dormir e andava de um lado para o outro dentro do apartamento que aluguei.

Eu só espero que você possa confiar em mim!

Ele me pediu confiança, abriu-se comigo, e eu pude entender muito do seu jeito fechado com relação à sua família, ao seu passado. O que ele passou não foi fácil, a culpa que carregou, e ainda carrega, deve consumi-lo ao extremo. Fiquei feliz ao saber que Kyra o perdoou e sei que foi um perdão verdadeiro, pois senti afeto toda vez que ela tocou no nome do irmão enquanto esteve comigo e com minha filha no hospital.

Tessa.

Minha filha é o centro do meu mundo desde o primeiro instante. Apaixonei-me por ela na primeira ultrassonografia em que pude ver sua silhueta, o nariz arrebitadinho, as pernas longas e inquietas e a mãozinha sobre o rosto, como se estivesse envergonhada.

Eu faria qualquer coisa por ela, para protegê-la e vê-la feliz.

Ainda não lhe contei que Theo é seu pai e tenho certeza de que, o que foi um choque para mim, vai ser recebido com sorrisos e festa. Ela é totalmente apaixonada por ele e sentirá como se seu maior sonho tivesse se tornado real.

Hoje, pela primeira vez desde que descobri que Theo era o homem da boate, agradeci ao destino por ter nos reunido novamente. Se não tivéssemos nos encontrado, Tessa não teria um doador familiar, e a chance de eu perder minha menina seria palpável. Nós nos encontramos para que pudéssemos salvar sua vida.

E o amor? E o que sinto por ele, e ele por mim?

Eu só espero que você possa confiar em mim!

Eu amo Theo e devo a verdade a ele, mesmo correndo o risco de ele não querer mais nada comigo quando souber, afinal, eu não sou a mulher que ele escolheu naquela noite.

Eu quis ser, fui a primeira a vê-lo entrar, ao lado do amigo, sorrindo, com um copo de uísque na mão e olhando em volta como se procurasse algo. Nunca tinha sido atirada e já havia saído com Jean-Pierre duas vezes, então não fiz sinal algum de que ele me interessara, mesmo tendo interessado.

Eu lembro quando nossos olhares se cruzaram e como o brilho azul me encantou. Ele era perfeito, ainda que eu achasse que estava exagerando um pouco por causa do álcool. Comentei com minha amiga, Thereza, sobre os homens parados no meio da pista nos olhando, e ela, adepta da máxima “viva como se fosse o último dia”, começou a dançar e a fazer gestos para eles.

Theo se aproximou e foi diretamente atraído para ela, enquanto o outro, italiano, conversa com o resto do grupo. Eu assisti, com inveja, admito, ao deslumbre do homem por minha amiga, a forma como ela o conduzia para onde queria, os sorrisos de puro poder que me dava por ter um homem daquele aos seus pés.

Ela amava sentir isso! Sexo, para ela, nada mais era do que um combustível para sua autoestima, mais nada. Não importava se o homem era bonito, feio, rico ou sem um euro no bolso, se a fizesse se sentir poderosa, ela ia para a cama. Ela amava quando eles se arrastavam aos seus pés, sofriam, choravam, imploravam por ela. Era aí que perdia o interesse. Gostava do desafio, da conquista, mas, quando a coisa parecia fácil demais, simplesmente dispensava a relação sem nem considerar os sentimentos de ninguém. Gostava de iludir no percurso. Lembro-me das cartas de amor que me pedia para escrever, dos doces que fazia para presentear algum affair que era mais resistente a se render a ela. Entretanto, como todo o resto, assim que ela os fazia se apaixonarem, ficava entediada e se desinteressava.

Deixo os pensamentos e lembranças de lado quando Theo se remexe no sofá e abre os olhos assustado, mas se acalma quando me vê sentada na poltrona de frente para ele.

— Pensei que tivesse sido um sonho — diz sem jeito, sentando-se.

Vou até a cozinha, pego uma xícara de café que acabei de passar e a entrego a ele.

— Quer aspirinas?

— Não, foi mais cansaço do que bebedeira o que me derrubou ontem. — Sorri. —Tem notícias do hospital?

— Sim, Manola chegou lá agora. Tessa está bem, acordou, comeu, e o doutor já marcou a primeira sessão de quimio para hoje à tarde. Tia Do Carmo disse que ela dormiu a noite toda. — Sorrio. — Acho que está mais calma depois que soube que Kyra irá fazer a doação.

— Sim, graças a Deus. — Ele bebe um gole do café. — Me desculpe por ter desmaiado no seu sofá.

Não digo nada, apenas respiro fundo, esperando que ele termine de beber, tomando coragem para mostrar que confio nele e lhe contar toda a verdade sobre mim.

— Eu não sou a mãe biológica de Tessa — digo num só fôlego, sentindo minhas mãos trêmulas. — A mulher com quem você dançou e transou naquela boate não sou eu.

Espero ver em seu rosto a decepção de saber dessa verdade, mas não, Theo apenas assente, coloca a xícara vazia sobre a mesinha de centro da sala e me olha.

— Eu sei. — Isso me surpreende. — Nunca consegui ver você como se fosse ela. — Sorri. — Nem mesmo quando vi as fotos e o cabelo rosa conseguia me convencer de que vocês eram a mesma pessoa.

— Por quê? Por que não sou tão esfuziante como ela? — Ele parece não entender a pergunta. — Eu lembro como você ficou encantado, vidrado, não percebia mais ninguém. Eu estava lá naquele dia. — Isso, sim, o surpreende. — Fui eu quem a chamou para ir embora.

Nesse momento Theo parece se recordar de mim.

— Eu estava bêbado demais, e ela me atraiu, sim, não vou negar isso. — ouvir isso me faz sentir uma pontada no coração, mesmo sendo totalmente ridículo sentir ciúmes depois de tanto tempo. Theo se senta na beirada do sofá para ficar mais próximo de onde estou. — O que senti lá na Grécia há anos foi tesão misturado à bebida e ao clima da boate, à dança, tudo isso contribuiu para aquela loucura toda, mas, creia-me, não se compara ao que senti desde que te conheci.

— Theo... — tento continuar falando, mas ele não deixa:

— Eu sinto por você a loucura, o desejo, a atração, mas não é só isso. Eu conheci você, Duda, admirei a mulher com quem estava, aprendi a amar você de verdade. Nenhuma fantasia, nenhuma loucura de fim de noite se comparam a isso, e eu espero que você acredite. — Assinto em meio às lágrimas, ouvindo sinceridade em suas palavras. — Eu não sei por que você está criando minha filha ou onde se encontra a mãe biológica dela, mas agradeço por Tessa ter você.

— O nome dela era Thereza, e ficou apavorada quando descobriu que estava grávida. Demorou a descobrir, por isso não pôde abortar. — Choro ao me lembrar de como ela ficou transtornada com isso. — Eu prometi ajudá-la com o bebê, pois ela dizia que não fazia ideia de quem era o pai.

Foi o momento mais difícil da nossa amizade já tão complicada. Não era fácil viver com Thereza, mas eu era grata por ela ter me acolhido em seu apartamento e ter se tornado minha amiga logo que cheguei a Paris. Ela me entendia porque era brasileira também, embora tenha se mudado para Paris muito pequena, quando foi adotada por um casal francês que vivera no Brasil e depois retornara ao seu país de origem levando-a com ele.

Tinha boas condições financeiras, pois seus pais haviam sido executivos de uma empresa de veículos multinacional e lhe deixado, quando morreram em um lapso de tempo de apenas um ano entre um e outro, investimentos rentáveis que permitiram que ela entrasse e saísse de vários cursos até se encontrar na gastronomia.

Mesmo grávida, Thereza não deixou de se divertir, saía todas as noites, enquanto eu trabalhava no L’Amande e dormia durante o dia. Ela fumava, bebia e transava como se não estivesse carregando outro ser dentro de si. Tessa demorou a nascer, duas semanas além do normal, e os médicos tiveram que fazer uma cesariana para retirar a criança, o que a deixou profundamente depressiva, pois marcou seu corpo para sempre.

Eu era apaixonada pela bebê, cuidava dela como se fosse minha desde então e, quando Thereza se recusou a dar de mamar – Tessa tinha três meses – passei a me incumbir, junto com a babá, da tarefa de alimentá-la, o que criou um vínculo ainda maior entre nós duas.

No quinto mês de nascida de Tessa, Thereza se cansou da vida de mãe e me avisou que iria viajar por um tempo, mas que continuaria a arcar com a babá e com o apartamento. Ela só voltou a aparecer quando Tessa tinha pouco mais de um ano. Estava magra, abatida, sem um dente e completamente nervosa.

Reconheci os sinais assim que a vi e chorei a noite toda por ver mais uma pessoa que eu amava se afundando nas drogas. Tentei conversar, Jean-Pierre e Thierry tentaram convencê-la a se tratar, mas ela não reconhecia o que estava acontecendo a si mesma.

Olho para Theo, machucada por todas essas lembranças e continuo:

— Thereza foi achada morta no lixo de uma casa noturna. — Theo fecha os olhos, e eu vejo o espanto em seu semblante. — Além da dor de tê-la perdido, enfrentei o medo de ter de abrir mão de Tessa, afinal, não era minha filha e tinha acabado de ficar órfã. Então descobrimos que ela deixou registrado um documento dizendo que, se algo lhe acontecesse, Tessa ficaria comigo, pois vivíamos juntas. — Sorrio ao me lembrar disso, da sagacidade dela naquele momento. — Além do documento, havia uma carta, e nela Thereza me pedia para não me casar... — Theodoros franze o cenho. — Eu estava noiva de Jean-Pierre, um chef pâtisserie dono de uma padaria muito famosa na cidade.

— Por que ela escreveu isso?

— Porque, segundo ela, além de ele comer quase todas as funcionárias, eles tiveram um caso, e Tessa poderia ser filha dele.

Theodoros xinga e cerra os punhos como se pudesse bater no francês.

— Ele negou, claro, pelo menos por um tempo. — Respiro fundo e dou um sorriso triste. — Quando eu disse que estava disposta a perdoar o que quer que ele tivesse feito, mas que gostaria de que ele e eu adotássemos Tessa, Jean-Pierre simplesmente desapareceu. Vendeu a padaria e se estabeleceu na Suíça.

Theo fica um tempo mudo, olhando para o chão do apartamento, cabisbaixo.

— Foi por isso que voltou ao Brasil? — Encara-me. — Abriu mão de seus sonhos para criar Tessa?

Assinto, chorando, não por tristeza ou arrependimento, mas por sentir novamente o desespero por pensar que não conseguiria mantê-la. Eu ganhava pouco, mal pagava um aluguel, quanto mais uma babá para ficar com ela durante as 14 horas nas quais eu trabalhava.

Tive ajuda enquanto o processo de adoção não estava finalizado, mas foi tão extenuante que eu não me imaginava vivendo assim, sem poder acompanhar o crescimento dela, cansada demais para curtir e me alegrar com suas primeiras palavras. Não dava!

Liguei para casa, aqui no Brasil, contei a história ao papai, e ele me disse para voltar e nos recebeu de braços abertos.

— Ela é minha filha, Theo. Posso não a ter gerado, mas é minha, e eu faria qualquer coisa por ela. — Ele se levanta, ajoelha-se aos meus pés, segura minhas mãos e as beija. — Não a tire de mim! — peço aos prantos. — Mesmo que você não me queira mais, não a tire de mim!

— Eu amo você, Duda. Amo ainda mais depois de ouvir tudo isso, de saber que seu amor por nossa filha foi capaz disso tudo!

Abro um sorriso e sinto o coração disparado pelas palavras dele.

— Nossa filha?

— Sim, nossa filha! — Ele sorri. — Eu sou o pai dela, embora ainda precise aprender muito sobre paternidade, e você é a mãe independentemente se a concebemos juntos ou não. Você é a mãe, e Tessa tem muita sorte por isso!

Ele me puxa para um abraço, mas, antes, olhando dentro dos mesmos olhos azuis que chamaram minha atenção anos atrás, confesso:

— Amo você, Theo.

Ele me beija suavemente. Sinto o gosto salgado das nossas lágrimas se misturando ao doce beijo que trocamos. Suas mãos são carinhosas, deslizam pelos meus cabelos, tocam meu corpo com reverência saudosa de quem não o faz há semanas.

Mesmo em meio à emoção que passamos ontem e hoje, às lágrimas, o desejo nos alcança, nossos corpos despertam, e o sinto tremer de excitação.

— Eu sei que não é um momento para... — começa, mas coloco a mão sobre sua boca.

— Meu quarto é a terceira porta à esquerda do corredor.

Theo não diz mais nada, levanta-se rapidamente e me pega no colo, levando-me até o quarto onde ainda não dormi e me deita na cama devagar, erguendo o vestido que uso lentamente, deixando-o embolado na cintura.

— Eu sou louco pela sua pele. — Arrasta a ponta dos dedos pelas minhas coxas. — Por suas curvas, seu cheiro... — Abaixa-se e começa a aspirar meu perfume no pescoço. — Você é minha, Maria Eduarda.

— E você é meu, Theodoros.

Ele sorri.

— Eu sou! Só seu...

Beijamo-nos com toda a intensidade do momento, nossas línguas se tocando, corpos roçando um contra o outro, corações disparados e pele ardendo de desejo. Suas mãos puxam minha calcinha para baixo, ele geme contra minha boca, e, quando me toca intimamente, contorciono-me de prazer.

Seus dedos habilidosos estimulam meu sexo, brincam com minha lubrificação, exploram minha carne com conhecimento e perícia, deixando-me louca de tesão. Theo separa sua boca da minha e desce deslizando seus lábios sobre meu abdômen desnudo, parando exatamente entre minhas coxas.

— Theo... — gemo seu nome quando sua língua continua a estimulação antes realizada por seus dedos. Adoro o jeito como ele me lambe, a fome com que me suga até que eu goze em sua boca e mate minha sede de prazer.

Seguro-o pelos cabelos, forço-o a me penetrar com a língua o máximo que consegue e depois grito quando ele volta a açoitar meu clitóris. Ele não para, não cansa, chupa, lambe, mastiga até que eu sinta o corpo inteiro retesar e o orgasmo me tire o fôlego.

Ainda estou me recuperando das sensações quando ele, depois de ter arrancado a roupa, invade meu corpo, já muito molhado e quente, de uma só vez e se encaixa em mim perfeitamente.

Abraço seus quadris com minhas pernas e o acompanho em cada movimento, olhos nos olhos, boca resvalando uma na outra, mesmo sem beijar e todas as sensações maravilhosas que só ele me faz sentir, tomando conta de mim.

— Eu amo você... — diz quando estoca mais forte. — É uma delícia poder te amar assim... — Mais uma estocada. — S’agapo40!

Beijo-o, e ele aumenta a velocidade, grudado em mim de um jeito em que nunca o fez antes. É palpável o amor que temos um pelo outro e como ele deixa o sexo ainda mais gostoso e sensível. Ouço sua declaração em cada movimento que seu corpo faz dentro do meu. Mesmo que ele esteja apenas gemendo de prazer, eu o escuto dizer que me ama.

Theo gira na cama, e eu fico sobre ele. Retiro o vestido e sinto imediatamente suas mãos sobre meus seios enquanto o cavalgo. Planto meus pés sobre a colchão e me inclino para trás a fim de ter maior mobilidade, imprimindo um ritmo mais acelerado, potencializando as sensações de prazer.

— Eu vou gozar, Theo! — aviso assim que os primeiros espasmos atingem meus músculos. — Goza comigo!

Mal acabo de falar, e ele se senta, segurando-me contra si enquanto gemo em desespero, o prazer intenso descontrolando meu corpo, e ele me acompanha, seus gemidos ecoando pelo quarto enquanto fala meu nome e repete que me ama.


Uma vez, ainda quando eu era criança, ouvi num comercial de TV que ser mãe é padecer no paraíso. Nunca tinha entendido essa frase, e hoje, analisando-a corretamente, discordo. Ser mãe não é padecer, ser mãe é desfrutar do maior dom existente no mundo: o dom da vida!

Como vocês sabem, Tessa não nasceu de mim, pelo menos, não do meu ventre, mas eu digo que a gerei, sim, dentro do coração desde o momento em que soube que minha amiga estava grávida. Ela nasceu do meu coração duas vezes: a primeira, no dia do seu nascimento propriamente dito; e a segunda, no dia em que recebeu o transplante de medula.

Não é à toa esse dia ser considerado pelos médicos como o dia zero. É a nova chance, é a esperança concreta de continuar vivendo, de restauração da saúde e vida normal.

Fevereiro foi um mês difícil com a doença dela e a falta de um diagnóstico preciso, a viagem de Theo e tudo o que descobri sobre a promissória, a promessa dele ao avô e a fake new de seu noivado com Valentina. Não foi realmente um mês fácil, mas as coisas começaram a mudar no final dele. A começar, claro, pela notícia de que Kyra era compatível e iria doar para a sobrinha; em seguida, com minha reconciliação com Theo, sem mais carregar segredos do passado; e então, com o começo da preparação para que Tessa recebesse o transplante.

Suspiro ao me lembrar da madrugada em que contei ao Theo que não era a mulher da boate, mesmo temendo que isso fosse decepcionante para ele e que o afastasse de mim. Foi bom descobrir que o que temos é muito maior do que qualquer segredo entre nós. O sexo foi maravilhoso, mas a conversa enquanto nos arrumávamos para ir ao hospital foi linda.

— Eu não entendi até agora o motivo pelo qual você pinta seus cabelos de rosa todo ano — ele comentou enquanto secava minhas madeixas castanhas com uma toalha felpuda.

Sorri e dei de ombros.

— No aniversário de Thereza. — Ele parou de passar a toalha pelos meus cabelos e me olhou estarrecido. — Tessa sabe que é minha filha adotiva, do coração, mas não conhece a história da mãe totalmente. Eu não queria que minha menina se sentisse rejeitada, então, o que ela sabe é que a mãe morreu e a deixou sob meus cuidados porque sabia que eu a amava como filha e que cuidaria bem dela.

— O cabelo pintado, então, é um tipo de homenagem? — Assenti. — Você é incrível, Duda!

— Não, eu só amo Tessa demais e não tenho motivo para fazê-la sofrer com uma história que ficou para trás e só a faria infeliz. Eu optei por contar que não era sua mãe biológica porque ela tinha o direito de saber disso, então, quando ficou maiorzinha e viu fotos da Thereza com seus cabelos pink, quis fazer nos dela, e eu embarquei na homenagem.

— Eu amo você ainda mais por isso! — Ele me beijou.

Chegamos ao hospital de mãos dadas naquele dia. Nem preciso dizer que, além de olhares enviesados de Manola, minha tia resolveu conversar em particular com ele e, como minha única parente viva, deixou umas coisas bem claras para ele. E não, eu não sei o teor da conversa, pois nem ela, nem Theo me contaram.

Tessa fez a primeira sessão de quimo, e nós ficamos o tempo todo a observando depois, torcendo para que não tivesse efeitos colaterais e prontos para a assistir no que fosse necessário caso tivesse.

Sofremos um bocado com a febre e as náuseas durante o tratamento, até que o doutor Felipe marcasse o dia do transplante. Theo acompanhou Kyra durante todo o procedimento, que foi simples, mas delicado, pois foi feita uma pulsão e aspirada a medula de dentro do osso da bacia.

Kyra ficou sob observação durante um tempo, e Tessa recebeu, igual a uma transfusão sanguínea, as células que formariam sua medula nova e sadia. Após o transplante, para evitar rejeição, Tessa começou a tomar os imunossupressores, e nós ficamos aguardando os resultados sobre a restauração da medula.

Durante o tratamento antirrejeição, ela ficou muito suscetível a doenças, por isso apenas Theo e eu entrávamos no quarto dela, e o cuidado dele com a filha me fez amá-lo ainda mais.

— Lembra da música que cantou pra mim antes de viajar? — Tessa perguntou a ele. — Eu acho que é uma boa canção de ninar.

Ele sorriu e perguntou se ela queria que ele cantasse para ela novamente, e, claro, era tudo o que ela estava esperando.

Fiquei parada no quarto o ouvindo cantar baixinho, acariciando seus cabelos e beijando, mesmo ainda usando a máscara, sua testa. Quando terminou a canção, Tessa já dormia tranquila segurando o primeiro bichinho de pelúcia que lhe dei. Vi Theo limpar as lágrimas dos olhos, fechá-los e fazer uma oração em sua língua natal.

Aquilo me desconcertou, porque nunca imaginei que ele fosse do tipo religioso. Questionei-lhe depois o que fizera, e ele me disse que era uma oração em agradecimento que aprendera com sua giagiá ainda menino. Pesquisara para relembrar as palavras e a recitara para agradecer a Deus por sua menina.

Nós pouco saíamos de perto de nossa filha, e, por isso, Millos assumiu interinamente a direção da empresa, e Theo só teve que ir até a Karamanlis para explicar o motivo pelo qual pedira o cancelamento da ação executória da promissória e decidira desistir do projeto de quase 10 anos de comprar a propriedade de minha família.

Ele me contou por alto o que aconteceu, mas percebi que seu cargo estava ameaçado.

— Não quer voltar para a empresa? Eu posso ficar com Tessa durante o dia, e você vem quando sair de lá.

Ele negou.

— Minha filha é minha prioridade. O que tiver que acontecer na Karamanlis acontecerá independentemente de eu estar lá ou não.

Eu não poderia estar mais feliz com o homem que amo e pai da minha filha!

Os dias foram passando, e acabei conhecendo mais um membro dessa família tão complicada. Alexios, um dos caçulas, esteve aqui para conhecer Tessa e, embora só pôde acenar para ela do outro lado do vidro, pareceu bem contente em ter uma sobrinha.

Notei a tensão entre ele e Theo e imaginei que isso se devia ao trauma que foi causado a todos no passado. Eles se falam, ao contrário do que aconteceu durante anos com Kyra, mas não têm muito jeito para conversar. Trocaram algumas poucas palavras, um distante do outro, e Alex se foi sem nenhum abraço ou mesmo aperto de mão.

Theo e eu não esperávamos mais nenhum membro da família Karamanlis por aqui, muito menos o tão temido Geórgios Karamanlis, de 90 anos, andando pelo hospital resmungando com seu português precário e uma enfermeira a tiracolo.

Contudo, o melhor vocês não sabem! Eu nem sabia que ele era o avô do Theo quando nos encontramos.

Eu estava voltando para o quarto de Tessa quando vi um velhinho bem-vestido, forte e aprumado tentando andar depressa para alcançar o elevador. Coloquei a perna e o braço nos sensores da porta para a impedir de fechar e o esperei entrar.

— Boa tarde — cumprimentei-o, e ele apenas sacudiu a cabeça de volta.

Parecia impaciente, olhava para o display que contava os andares o tempo todo e resmungava baixinho com sua enfermeira. Quando paramos no andar onde Tessa estava internada, a enfermeira se distraiu com o telefone celular, e ele quase caiu ao passar pelo piso molhado, sinalizado com placa, e eu o segurei pelo braço, impedindo a queda.

— Obrigado — disse com seu forte sotaque e enviou um olhar carrancudo para a mulher que o acompanhava.

— Tudo bem. Posso acompanhá-lo? — eu disse sorrindo. — Será um prazer levá-los até onde precisam ir. Sabem o número do apartamento?

Ele olhou para sua acompanhante, e ela olhou o celular de novo.

— Ala pediátrica, apartamento 42.

Enruguei a testa, pois era o número do quarto onde Tessa estava.

— É para onde estou indo. — Olhei para o velhinho e reconheci os mesmos olhos azuis lindos de Theo. — O senhor é Geórgios Karamanlis?

Primeiro ele me olhou desconfiado, depois me mediu de cima a baixo, até assentir.

— Quem é você? — perguntou sem rodeios.

Porém, antes que eu respondesse, Theo apareceu apressado e parou surpreso quando nos viu de braços dados.

— Pappoús! Millos acabou de me informar que o senhor estava vindo para cá. — Olhou para mim sem entender o que estávamos fazendo juntos, e eu apenas sorri. — Vejo que já conheceu Maria Eduarda.

O velhinho insolente voltou a me olhar desconfiado, mas não se desvencilhou do meu apoio.

— Maria Eduarda — repetiu meu nome. — E minha bisneta?

— Tessa — assegurei que ele soubesse o nome da minha filha. — O nome dela é Tessa, senhor Karamanlis. É um prazer conhecê-lo.

Ele abriu um leve sorriso – se é que aquela careta podia ser considerada assim – e pediu ao Theo que o levasse até Tessa. Claro que ficou muito irritado por não poder entrar no quarto e só vê-la pelo vidro, mas, quando a viu, começou a chorar feito um bebê.

Eu não poderia nunca imaginar que algo assim aconteceria e só soube o motivo do choro quando Theo voltou do hotel onde o avô estava, depois de tê-lo deixado lá com a enfermeira.

— Tessa lembra demais a minha avó e também meu tio Geórgios, o filho mais velho dele, que morreu com a mesma doença que acometeu nossa filha.

Disse a ele que Millos já havia me contado sobre esse tio e que isso, na ocasião, deixara-me muito preocupada com Tessa.

— Eles mal sabiam sobre a doença e não tinham tantos recursos para tratá-la. Estamos falando dos anos 70, Duda. — Assenti. — Eu perguntei ao doutor Felipe se a doença pode ser hereditária ou familiar; ele não soube me informar, disse que os estudos nessa área são inconclusivos.

— Tomara que não seja.

— Sim, tomara que não. — Ele me abraçou. — Sabe que pappoús disse que a Karamanlis nunca teve uma mulher na diretoria, mas, se Tessa for igual à sua falecida esposa, será uma ótima diretora-executiva um dia?

Gargalhei disso.

— Ela será o que quiser ser, Theo. — Ele assentiu. — Sem pressão de ninguém.

— Sim, mas eu fiquei feliz ao ouvir isso. — Ele sorriu. — Pappoús é muito difícil, preconceituoso. Ter percebido que ele aceitou Tessa foi uma surpresa para mim.

— Faria diferença se ele não a aceitasse?

— Nenhuma! — garantiu. — Mas me liberou da promessa de lhe dar um bisneto.

Ergui a sobrancelha.

— Isso quer dizer que não pretende ter mais filhos?

Theo riu, negou e falou baixinho no meu ouvido:

— Se depender do nosso tesão, vamos ter muitos filhos ainda.

Olhei-o assustada, e ele gargalhou.

— Ei, estou atrasada? — a voz de Kyra me traz de volta à realidade, e abro um sorriso.

— Não. Theo ainda está lá dentro enchendo o pobre doutor Felipe de perguntas. — Aponto para os dois homens conversando e para Tessa, no colo do pai, com a expressão mais entediada do mundo.

— Eu adorei essa máscara que ela está usando hoje!

Kyra ri do objeto que uma funcionária da Karamanlis – Kika – mandou para a Tessa. O presente foi todo esterilizado antes do uso e, infelizmente, irá para o lixo no fim do dia, mas minha menina amou usar algo tão divertido quanto uma máscara com estampa de beijinhos.

Minha filha terá que continuar por algum tempo ainda com os medicamentos antirrejeição, fazer visitas periódicas ao hospital, além de seguir uma série de recomendações médicas em casa, mas está feliz por poder deixar o hospital e conhecer seu novo quarto na cobertura de Theo.

Nós ainda não contamos para ela que ele é seu pai. Estávamos esperando que recebesse alta e estivesse estável para lhe darmos a notícia, e esse momento chegou. Olho para Kyra, ao meu lado, sentindo o coração transbordar de alegria, pois sei da importância que a presença dela em nossa família tem para Theo.

Sinceramente espero que ele consiga alcançar o perdão dos outros irmãos e que essa família se acerte. Gostei muito de Alex e Kyra, mas confesso não nutrir bons sentimentos com relação ao Kostas, que sequer veio ver a sobrinha.

— Ah, finalmente!

Theo sai com nossa filha, pela primeira vez depois de tanto tempo no isolamento, e ela dá pulinhos de felicidade em seu colo.

Cumprimento o médico brilhante que salvou a vida de Tessa com o diagnóstico preciso que deu de uma doença tão rara e lhe agradeço por todo o empenho no caso.

— Mamãe, quero logo ir para a casa do Theo!

— É nossa casa, Tessa — ele a corrige. — Vamos todos morar juntos, mamãe, tia Do Carmo, você e eu. Ah, e a Vanda!

— Oba! Vem também, tia Kyra! — a menina convida, e Kyra gargalha.

— Vou visitar tanto você que vai achar que me mudei para sua casa!

Theo abre um sorriso enorme ao ouvir isso, e sua irmã o olha sem jeito.

— Se quiser se mudar, a cobertura é grande — ele brinca com ela.

— Não, eu tenho dois meninos para cuidar, e Tessa não pode ficar perto deles por enquanto. — Theo arregala os olhos, surpreso com a informação. — Um cachorro e um gato, Theo, ambos resgatados de um abrigo. Eu fui para adotar um gatinho, mas me apaixonei pela história da gata que adotou um filhotinho de cachorro e, então, resgatei os dois.

— Ah, tia Kyra, tem fotos? Eu amo animaizinhos!

Os olhos de Tessa brilham quando Theo a instala no assento de elevação do seu carro, todo preocupado com sua segurança.

— Tia Kyra mostra as fotos quando chegarmos em casa, minha filha — digo. Ela faz um bico de insatisfação, mas se despede da tia, que vai até seu próprio carro para nos seguir até em casa.

Casa! Abro um sorriso ao perceber que já penso na cobertura de Theo como sendo nossa casa.

— Qual o motivo do sorriso? — ele me pergunta, sentando-se atrás do volante do carro.

— Estava pensando em como é estranho pensar na sua cobertura como minha casa. — Sorrio. — Nós não fomos nada devagar nisso.

Ele ri.

— Nunca fomos devagar em quase nada, Maria Eduarda. — Gargalha. — E para que ir devagar? Eu amo você, você me ama, temos uma filha juntos. — Beija-me antes de ligar o carro e completar seu raciocínio. — Já somos uma família!

Ele tem razão! Olho para trás e vejo nossa filha com um livro nas mãos, entretida lendo a história. Já somos uma família!


Como é possível a vida dar uma guinada em apenas poucos meses? Sorrio, alisando o cabelo de Tessa enquanto ela dorme. Se alguém me contasse no fim do ano passado que eu iria passar pelo que passei nesses meses, eu iria rir bastante, além de chamar a pessoa de louca.

Beijo a testa da minha filha e saio sem fazer barulho do quarto, seguindo para a sala e me sentando no banco do piano. Não toco, não hoje. Nada de bebidas e músicas para uma noite solitária. Elas se foram. Agora tenho uma família.

Sinto um arrepio de antecipação e medo pelo futuro, mas sei que, com Maria Eduarda e Tessa ao meu lado, vou conseguir passar por qualquer situação. Eu não tive exemplos, nunca estive em uma família de verdade e por isso tenho medo de cometer alguma besteira e foder tudo.

Olho para o porta-retratos de prata recém-colocado sobre um móvel da sala e sorrio ante a beleza da foto. Nela, Tessa está sobre meus ombros e nós olhamos o pôr do sol na Ilha Raj, no primeiro dia em que chegamos lá. Ali eu nunca poderia imaginar que nossos destinos já estavam ligados, mas sentia uma conexão tão forte com aquela criança que, por vezes, surpreendia-me.

Olho em volta do apartamento onde moro há pelo menos oito anos e vejo, pontualmente, cada detalhe diferente da decoração, antes tão fria, agora cheia de vida, calor e sentimentos. Nada aqui agora é sem propósito.

Caminho até uma pequena concha deixada perto do porta-retratos de prata e me lembro do dia que passei com Tessa na praia, onde brincamos de pique-pega e corremos muito. Sinto uma enorme vontade de levar minha menina para a Grécia, mas sei que precisarei esperar até que ela esteja bem para uma viagem como essa.

Em outro móvel, outra foto chama minha atenção. Dessa vez é de Duda, ainda criança, com seus pais e o irmão falecido. Abro um sorriso ao ver a menina linda que ela era e em como a família parecia feliz e harmoniosa. É isso que eu quero para mim! Amor, um lar, sentimento de pertencimento, segurança. É assim que Tessa irá crescer, e os outros filhos que virão.

Uma fotografia tirada no hospital no dia em que pude participar do primeiro aniversário de minha filha me traz lágrimas aos olhos, além das lembranças daquele momento. Foi pouco depois do transplante, e, como ela estava em tratamento e recuperação, suas visitas estavam restritas.

Maria Eduarda e eu ficamos dentro do quarto com ela, enquanto Kyra, Manola e tia Do Carmo seguravam balões e mensagens de aniversário do outro lado do vidro. Foi emocionante. Minha menina tinha acabado de receber outra oportunidade de crescer e se desenvolver, tínhamos motivos em dobro para comemorar sua chegada ao mundo.

Eu estava louco para poder contar a ela que era seu pai, mas sabia que no hospital não era o momento certo. Ainda assim, não deixei de me emocionar no dia em que pude incluir meu nome em sua certidão de nascimento.

Hal navega disse que o procedimento era simples, e realmente foi. Preenchi um formulário requerendo a inclusão do meu nome e do nome dos meus pais na certidão de nascimento de Tessa, que, embora tenha nascido na França, foi registrada no consulado brasileiro por ser filha de brasileira e teve uma nova certidão emitida quando Duda, já morando aqui no Brasil, conseguiu a adoção.

Ela, por ser mãe, precisou concordar com meu pedido em uma anuência expressa. Hal, então, juntou todas essas informações e as levou até o cartório competente, e, antes mesmo de Tessa ter alta, meu nome já constava em seus documentos. Oficialmente e sentimentalmente eu já era seu pai, mas ela ainda não sabia.

Maria Eduarda e eu decidimos que contaríamos a ela no dia da alta médica e preparamos tudo para que ela pudesse já se acostumar à sua nova casa e família.

— Acho que já é hora de você se mudar para cá — eu disse para Duda em uma noite em que dormimos em casa e Tessa ficou com dona Do Carmo no hospital. — Ninguém mais vai naquele apartamento que você alugou, e o em cima do Hill também está vazio, apenas com suas coisas pessoais.

Ela sorriu e se aconchegou ao meu corpo na cama.

— Espero que isso não tenha sido seu pedido de casamento, porque, senão, ele é decepcionante.

Gargalhei.

— Não, não é. — Ela me olhou nos olhos. — No dia em que eu a pedir em casamento, não haverá dúvidas, e sim um belo par de alianças.

— Gostei disso! — Beijou-me. — Eu concordo em vir morar com você, mas não quero deixar tia Do Carmo sozinha. Você se importaria se ela...

— A cobertura é grande, e sua tia, mesmo sendo um tanto intimidadora, é uma pessoa maravilhosa.

Duda se ergueu na cama.

— Não vai mesmo me dizer o que ela te disse quando chegamos juntos no hospital?

Neguei, mas pude ouvir claramente a voz de dona Do Carmo.

— Nunca mais quero ver minha menina chorar por sua causa, está entendido? Ela tenta me proteger das coisas, não gosta de me preocupar, mas eu sabia que você tinha aprontado algo com ela e que ela estava muito triste. — Assenti sem jeito e baixei a cabeça. — Eu vou estar de olho em você, Theodoros, então se esforce ao máximo para ser o pai que Tessa merece e o homem que Duda ama, porque senão...

Senti o mesmo frio na barriga que sentira ao ver o olhar dela durante essa frase inacabada e abracei Maria Eduarda bem forte, prometendo em pensamento nunca a fazer infeliz. Claro que, em algum momento, posso deixá-la triste ou mesmo magoá-la. Não me iludo quanto a vida de casal ser um mar de rosas, mas vou sempre me esforçar para nunca a fazer infeliz.

A felicidade dela e de Tessa passou a ser minha prioridade, e nada no mundo é mais importante que isso.

Depois daquela noite, Vanda começou, junto com dona Do Carmo e Manola, a preparar o apartamento para receber minha família. Como Duda e eu estávamos sempre no hospital com Tessa, participamos pouco dessa transição e só fomos ver o quarto de Tessa, decorado como um presente de Kyra, um pouco antes da alta de nossa filha.

— Kyra, isso ficou perfeito! — elogiei-a emocionado.

— Tessa adora unicórnios, vai ficar deslumbrada! — informou Duda.

Minha irmã ficou emocionada e explicou o motivo pelo qual escolheu aquele tema específico:

— Unicórnios são seres mitológicos que possuem características de pureza e força. Além disso, passam uma mensagem de que tudo é possível, basta acreditar. Eu achei que é uma mensagem positiva para ela nesse momento.

— Sim, é muito sensível de sua parte. — Duda a abraçou.

Fiquei ali olhando as duas emocionadas e me lembrei do abraço que eu e Kyra trocamos depois de tantos anos. Não foi aquele em que a puxei no dia em que foi fazer o teste, mas o no dia em que doou a medula à minha filha. Kyra estava nervosa, apesar de saber bem o que aconteceria. Doutor Felipe a acompanhou em todos os momentos, conversou com ela, explicou detalhadamente como seria feito o processo, que doeria um pouco, que ela ficaria em observação e com o local dolorido depois, mas que não havia risco.

Acompanhei-a e estive ao seu lado durante todo o tempo, segurando sua mão, sorrindo e chorando junto a ela. Talvez eu nunca consiga externar tudo o que sinto por minha irmã, mas acredito que, quando ela olha em meus olhos, sente isso.

Quando Kyra foi encaminhada para o quarto a fim de descansar, velei seu sono, e tantas perguntas se fizeram em minha mente. Eu queria saber da vida dela, de todos esses anos que eu tinha perdido, de como foi sua adolescência, o começo da vida adulta, como foi que ela descobriu o gosto pela decoração e, por fim, por que escolheu trabalhar com eventos.

— Temos tempo. — Ela riu quando foi liberada e eu lhe perguntei tudo isso. — E eu quero o daqui para frente com você, Theo, não quero mais pensar e remexer o passado. — Respeitei esse pedido dela. — Quero ser parte da sua vida e estou feliz por ter você na minha.

— Para sempre! — Abracei-a. — Estarei sempre aqui contigo, sempre, agapi mou!

Sorrio sozinho no meio da sala, revisitando as memórias dessas seis semanas desde o transplante de Tessa até o dia de hoje.

Pego meu celular e passo as fotos que tiramos há poucas horas, na chegada de Tessa a nossa casa. Minha filha pôde receber a festa de aniversário que tanto esperava. Claro que, por causa dos medicamentos e de sua recuperação, ainda não pode comer de tudo, e Manola teve o cuidado ao preparar a comida segundo orientou a nutricionista.

Foi uma verdadeira festa, embora Tessa tenha podido participar pouco, pois não pode se cansar.

Pensam que ela ficou triste por ter de ir ao seu quarto? Absolutamente não! Ficou encantada com a decoração que tia Kyra fez para ela, mexeu em cada objeto, olho seu closet cheio de roupas, sapatos e acessórios de menina e pulou ao descobrir que tinha um banheiro só seu.

Duda demorou a desacelerá-la para que dormisse. Ajudou-a no banho, colocou-lhe o pijama novinho cheio de arco-íris que brilhavam no escuro, e ela se deitou em sua cama de casal com os braços e pernas abertos, usufruindo de todo o enorme espaço só seu.

Eu ainda não tinha pensado em como abordaríamos o assunto da paternidade com ela, mas ele chegou sem que fizéssemos nenhum movimento para isso. Fui abaixar a luz do quarto para que ela pudesse dormir quando a ouvi sussurrar para sua mãe:

— Mamãe, será que agora, que vamos morar com Theo, vou poder chamar ele de papai?

Maria Eduarda me olhou, e eu prendi a respiração por um tempo, preparando-me para o grande momento, ansioso por sua reação e temeroso que ela não aceitasse bem toda a história.

— Tessa me fez uma pergunta, Theo — Duda começou, imaginando que eu não tivesse ouvido. — Queria saber se, agora que vai morar com você, pode te chamar de papai.

Sorri, aproximei-me da cama, sentei-me ao lado de Duda e baguncei o cabelo de Tessa antes de dizer:

— Não só porque você mora comigo, Tessa. — Minha menina sorriu. — Você pode me chamar de papai porque sou o seu papai — tremi ao falar essas palavras, e ela olhou para Duda sem entender. Respirei fundo e continuei, buscando uma explicação simples, sem muitos detalhes, e que ela pudesse entender: — Nós não sabíamos, mas eu conheci sua mãe biológica, tive um namoro rápido com ela, e você nasceu.

— Verdade? — ela me questionou, mas olhava para sua mãe.

— Sim — Duda respondeu. — Theo soube que era seu pai quando fez o exame para doar a medula, por isso tia Kyra foi quem doou, porque é irmã do seu pai. Não é incrível?

Os olhos de Tessa se encheram de lágrimas, e a abracei forte.

— Meu desejo de aniversário se realizou — Tessa me confidenciou baixinho. — Eu pedi isso de presente, lá no hospital. — Sequei suas lágrimas. — Que você fosse meu pai.

— Eu amo você, minha filha. — Ela sorriu quando a chamei assim. — Prometo que farei de tudo para que consiga me amar também.

Foi nesse momento que ela me deu o sorriso mais lindo do mundo.

— Ah, bobinho, eu já te amava mesmo antes de saber que você era meu pai!

Chorei, agarrado aos dois amores da minha vida, intercalando lágrimas e sorrisos, agradecido por ter a chance de ser feliz ao lado delas.

Sim, eu estou feliz demais!

— Ei. — Duda toca meu ombro e me dá um pequeno susto. — Não vai se deitar? Acordei agora há pouco sozinha na cama e fiquei intrigada sobre seu paradeiro.

— Fui ver Tessa e depois acabei ficando por aqui. — Beijo-a e ergo sua mão direita, enfeitada com a aliança de ouro que coloquei ali há menos de duas horas. — Como se sente, futura senhora Karamanlis?

Duda sorri largo, e eu a pego no colo a fim de colocá-la de volta na cama.

— Sabe o que eu pensei? — inquire assim que nos deitamos. — Amanhã, quando Manola chegar aqui e vir a aliança, vai ficar toda curiosa sobre o pedido...

Sua voz risonha me assusta.

— Duda, você não vai...

— Ah, eu vou! — Ela ri solto. — Ela fica me chocando ao falar detalhes do Dionísio! — Eu gemo, não querendo entrar no assunto. — Agora vai saber que fui pedida em casamento no meio do orgasmo, que só vi uma caixinha sendo levantada em minha direção enquanto você chupava minha...

— Duda! — Gargalho, e ela se vira de frente para mim. Ah, Maria Eduarda, minha chef, cozinheira, a irritante dona do Hill que se tornou dona do meu coração! — Eu amo você!

— Eu também! — fala bocejando.

— Que romântico... — Beijo sua testa.

Ela dorme abraçada comigo, e eu me sinto seguro, em casa, amado e feliz.


Um ano depois.


Quem consegue enxergar os emaranhados do destino? Há algumas religiões que acreditam que a vida de uma pessoa é ligada à de outra por um fio que as prende desde o nascimento até a morte. Às vezes esse emaranhado de fiação se enrosca, embola e impede que um chegue ao outro, mas o fio nunca se parte, e, se um dia se encontrarem, nada poderá separá-los.

Acho que Theo e eu temos essa ligação, esse fio do destino nos ligando. Encontramo-nos pela primeira vez há dez anos, numa ilha no meio do mar Jônico, no final de uma noitada, numa boate cheia de jovens sonhadoras. Acho que, quando ele entrou lá, o fio que nos unia me puxou, e eu senti algo naquele olhar que não sabia explicar.

Entretanto, não era o momento ainda, nem para mim, muito menos para ele, reconhecermos isso. Tínhamos um propósito, mesmo sem saber disso, e os anos se passaram. Quando chegou a vez de cumprirmos nossa missão, algo puxou os fios e nos uniu de novo. Percebemos um ao outro, envolvemo-nos mesmo sem ter noção do que enfrentaríamos juntos.

Nossa missão era garantir a vida de Tessa. Nosso reencontro foi orquestrado para que pudéssemos ser a família que nos tornamos. Eu não fazia ideia de que poderia ser feliz como vi meus pais serem, e Theo imaginava que, por nunca ter uma referência positiva, jamais teria uma família.

Ainda bem que estávamos enganados.

— Estamos atrasados! — escuto alguém gritar ao meu redor, mas, sinceramente, não me importo.

A agitação de uma cozinha me fez aprender a não ficar alvoroçada com a pressa alheia, a seguir o tempo de cada preparação, a desfrutar de cada etapa de um prato. Aprendi a ter respeito pelos alimentos e pela hora da refeição, então, a gritaria ao meu redor agora não me assusta.

Fecho os olhos e me concentro apenas na sensação de plenitude, de alegria e amor que sinto transbordando de mim. Ah, como sou feliz! Passei por muita coisa triste nesta vida, mas, nesses últimos meses – um ano, para ser precisa – só sinto felicidade.

Imagino que vocês estejam curiosos para saber o que aconteceu em minha vida nesse período de tempo, então – abro um sorriso preguiçoso –, como tenho um tempo aqui ainda, posso contar com detalhes.

Primeiro de tudo, adianto que minha filha está muito bem de saúde. Não foi fácil para a pequena Tessa a recuperação, mas ela foi brava, mostrando indícios da mulher forte e guerreira que se tornará. Retornamos ao hospital algumas vezes por conta dos medicamentos contra a rejeição que, por vezes, deixavam-na muito suscetível a doenças.

Tessa não pôde retornar à escola, então tomou aulas em casa, e penso que isso foi o mais frustrante de sua recuperação. Por vezes ficou triste, revoltada por não poder brincar com seus amigos, mas o que a consolava era o pai. Theo se tornou seu melhor amigo nesse período.

É, quem viu o CEO posudo, com seus ternos de grife, sua coleção de relógios e seu gosto refinado para uísque nunca poderia imaginá-lo brincando de Barbie, construindo barracas de lençol no meio da sala para passar a noite em um safári de bichinhos de pelúcia ou mesmo assando cookies para uma festa do chá.

Sim, podem acreditar, ele fez tudo isso pela filha!

Os dois passavam horas vendo filmes, e o preferido dele era Moana, porque alegava que ela era uma líder excelente e um bom exemplo de mulher empoderada para Tessa, principalmente por não ter um “par romântico” na história. Pasmem, mas eu tinha razão sobre ele ser ciumento!

Lembro quando recebemos a visita de Frank Villazza, sua esposa e os três filhos. Tessa, claro, ficou encantada com Laura, a filha mais velha do melhor amigo de seu pai, e as duas começaram a brincar sem conseguir parar. Lucca, o irmão gêmeo dela, começou uma guerra de implicância com minha filha, e Theo detectou imediatamente que era interesse.

Pronto, foi o que bastou para ele não tirar os olhos das crianças e ser massivamente ameaçado pelo italiano.

— Eu acho que os dois formarão um belo casal daqui uns anos — Frank dizia com o semblante mais cínico do mundo, sem esconder seu divertimento. — O que acha, Karamanlis? Seremos, além de compadres, parentes por casamento.

— Frank... — Isabella tentava parar as brincadeiras do marido, mas acabava rindo do olhar desesperado de Theo. — Eu ficaria feliz, mas acho que está cedo demais para isso.

Theo gemia enquanto todos nós ríamos. Acho que sentiu na pele pela primeira vez o que era ser pai de uma menina linda, e, claro, não passou despercebido a ele que Frank também tinha uma filha.

— Ah, Laura é linda também! Tenho certeza de que no colégio ela tem alguns admiradores.

— Claro que nã...

— Ah, esses dias ela voltou para casa com cartinha de amor — Isabella disse rindo.

O italiano quase engasgou com o vinho que estivera bebendo e cobrou explicações da esposa.

— Ela me mostrou rindo e ainda ressaltou que os meninos são muito “bobinhos”. — Isabella deu de ombros. — O homem que conseguir conquistar o coração de Laura será um verdadeiro guerreiro.

— Não, será um cadáver!

Eu ri muito da reação do Frank, e aí Theo percebeu que ambos tinham um calcanhar de Aquiles, e os dois acabaram chegando a um entendimento mudo de que não era legal entrar nesse assunto ainda.

Outro episódio que me marcou por causa de seu ciúme foi quando Kyra foi jantar conosco e apareceu com um namorado que mal falava. Eu já havia percebido que minha cunhada tinha um gênio bem forte, era muito decidida e não suportava que lhe ditassem regras, fazia seu próprio destino. Particularmente eu gostava demais do jeito dela, mas entendia que isso também inibia alguns homens e que, por esse motivo, ela preferia uns bem calmos e discretos, diferentes de sua personalidade. Os namoros nunca duravam muito, e isso incomodava Theo, que achava que sua irmã estava sendo usada pelos homens e ficava com o coração destruído a cada término.

— Já pensou que pode ser o contrário? — questionei-lhe uma vez. — Que pode ser ela que não aguenta ficar muito tempo com alguém, que se cansa e põe a fila para andar?

— O quê? Claro que não! Kyra é sensível, doce, não uma devoradora de homens! São eles que não prestam e não a merecem.

— Bom... Acho que você não está enxergando sua irmã muito bem. Ela não é mais uma menininha indefesa, Theo.

Ele não respondeu, apenas bufou e entrou no banheiro ameaçando qualquer um que magoasse “suas meninas”.

Eu me diverti bastante nesses episódios, até sentir em minha própria pele e ter de ser dura com ele.

Desde que nos mudamos para seu apartamento, Theo enfiou na cabeça que iria recomprar o Hill para mim. Tentou negociar várias vezes com o pessoal da Dominus, mas não obteve sucesso. Ficava frustrado por nunca conseguir comprar o lugar, mesmo que para me devolver, e só sossegou quando eu disse que não queria voltar a trabalhar no bar. As lembranças que eu tanto amava estavam espalhadas pelo meu lar e no meu coração; eu podia muito bem seguir meu próprio caminho.

A Karamanlis começou a alugar os imóveis no entorno do pub, e a área vinha se transformando em um point gastronômico, com todo tipo de restaurantes e bares.

Theo quase caiu para trás quando lhe informei que tinha alugado um local para mim na galeria na mesma rua do Hill e que iria abrir um bistrô. Manola foi quem achou o local, e ele era exatamente como eu havia sonhado, pequeno, aconchegante e bem localizado, pois a galeria dava acesso à rua do Hill e à de trás. Havia várias lojinhas já alugadas, e os empreendedores tinham bom gosto, fazendo com que um público seleto frequentasse o local. Um bistrô para servir almoço. Eu daria adeus às noites em claro, poderia trabalhar durante o dia e estar em casa à noite com minha família. Era perfeito, quer dizer, eu achei, mas ele, não.

— Tessa ainda precisa de você e em breve você não poderá...

— Theo, ainda vou reformar, adequar e praticamente vou só gerir o local, pois Manola assumirá a cozinha e montará a equipe.

Ele relutou, apresentou vários motivos para que eu não investisse naquele momento, mas depois o convenci, com muito carinho e amor, que não estava pedindo autorização, só lhe comunicando. Usei o dinheiro da venda do Hill para iniciar o negócio, e em breve será sua inauguração.

Sim, ainda não comecei a trabalhar mesmo depois de um ano desde que vendi o Hill. Vocês querem saber o motivo? Eu posso contar...

— Duda, acho que ele dormiu.

Abro os olhos de repente e olho para Helena, amiga e funcionária de Kyra, notando seu olhar completamente encantado.

Olho para baixo e confirmo que Petros soltou meu seio e dormiu quietinho em meu colo enquanto eu estava perdida em memórias. Levanto-o, encostando sua barriguinha em meu ombro, ouvindo seu arroto forte, mesmo em meio ao sono, e escuto a risada de Tessa.

— Ele é barulhento, mãe! — Ri e olha para Helena. — Solta cada “pum” alto igual ao de um adulto.

A assessora de casamentos cai na gargalhada e ajeita o vestido de dama de honra de Tessa.

— Posso fechar seu vestido agora? — uma das suas ajudantes me pergunta.

Agora que meu filho já se alimentou, podemos seguir com o casamento.

— Pode, sim! — Sorrio quando ela começa a fechar botão por botão nas minhas costas e passa um outro tecido por cima do meu ombro. — Ah, obrigada! — Coloco Petros no sling desenhado junto ao vestido de noiva. — Está pronto para encontrar o papai?

Tessa dá voltas para que eu veja o balanço de seu vestido e, antes de se posicionar à minha frente, dá um beijo na cabeça de seu irmão, que dorme calmamente.

Descobri a gravidez uma semana depois da alta de Tessa. Theo e eu estávamos em uma semana intensa de discussões sobre o casamento: ele queria algo grandioso, e eu, íntimo. Quando passei mal, fui socorrida pela enfermeira de Tessa e obrigada a fazer uma desnecessária bateria de exames para acalmar meu futuro marido.

Foi o momento mais emocionante do mundo quando peguei o exame de sangue e a confirmação da gravidez. Theo não sabia se ria, chorava ou me beijava, então fez tudo ao mesmo tempo.

Contamos para Tessa – confesso que ele estava uma pilha, com medo de nossa filha se ressentir por deixar de ser filha única –, e sua reação foi lindíssima, beijando minha barriga e dando boas-vindas ao bebê.

Foi a gestação mais tranquila deste mundo. Não tive problema algum, nem desejos absurdos – o que gerou certa frustração em Theo, pois esperava por isso –, mas aumentou minha libido ao extremo, o que o deixou satisfeito e extenuado. Meu desejo era ele o tempo todo! Eu chegava a ligar para a empresa para dizer que estava com vontade de fazer amor, e ele, com medo de me deixar “aguada”, saía como um doido para me ver no meio do dia e me satisfazer. É, eu comi meu marido de todos os jeitos possíveis, em todos os locais – privados ou não – e misturei muita comida ao nosso sexo.

A torta com chantilly que usamos na primeira vez que ficamos juntos? Parecia coisa de amador diante do que fizemos. Imaginem que eu blindei seu pau com goiabada derretida e depois me deliciei com o doce! Passei doce de leite em seus gominhos do abdômen, chupei sorvete em seu umbigo e – que ele nunca descubra que contei isso para vocês – lhe dei um delicioso beijo grego com a boca cheia de gelo.

Só paramos de fazer sexo alguns dias antes do parto e por insistência dele!

Petros nasceu depois de 40 semanas de gestação, com quase quatro quilos e 52 centímetros. Revelou ao mundo que era um guloso já nas primeiras horas, pois estava sempre exigindo meu seio com um choro alto e forte.

— Sabe o que quer e como pedir! — Theo dizia encantado, tocando a pequena cabecinha cheia de cabelos negros. — É direto e objetivo como o pai.

Eu rolava os olhos, mas me sentia derreter com suas palavras cheias de orgulho e amor.

— Acho que chegou a hora de oficializarmos nosso casamento, não? — ele sugeriu assim que voltei para casa com o bebê.

— Pappoús está reclamando que Petros nasceu sem a bênção do casamento? — debochei, pois conhecia bem o pensamento de Geórgios Karamanlis.

— Está, sim, mas há meses fala do assunto, e eu já nem lhe dou ouvidos. — Theo deu de ombros. — Sou eu quem quer trocar essa aliança de lugar e unir meu nome ao seu como já uni minha vida.

Ah, tinha como eu resistir a um pedido desse?

Kyra ficou responsável pela organização do casamento e fez isso em tempo recorde: três meses. E bem, aqui estou eu, vestida de branco como manda a tradição, mas com um grande e importante detalhe diferente: ao invés de levar nas mãos um buquê de flores, decidi levar meu filho no colo junto comigo ao encontro de seu pai.

— Todos prontos? — Helena pergunta, pronta para abrir as portas do salão nobre do Villazza SP. — É hora do show!

Estranho quando noto que a música que ecoa no salão não é a que ensaiamos ontem, mas o sorriso encantado de Helena me faz prosseguir mesmo que eu não entenda o que está havendo.

Procuro por Theo no altar, mas tudo o que vejo é um enorme piano onde ele deveria estar. Meu coração dispara quando sua voz ecoa nos autofalantes. Paro devido a surpresa, então sorrio sem acreditar que ele está tocando e cantando em público, coisa que não faz de jeito algum.

A canção também é uma surpresa, diferente do gosto musical dele, mas tão perfeita para este momento que sinto meus olhos marejarem.


Vieste de olhos fechados, num dia marcado, sagrado para mim.

Vieste com a cara e coragem, com malas, viagem, pra dentro de mim,

Meu amor41


Quando chego perto do piano, ele se levanta, deixando que a banda que o acompanha continue a tocar a música apenas no instrumental. Primeiro, Theo beija a testa de Tessa antes que ela fique ao lado de Manola no altar. Depois, vem com um enorme sorriso e olhos brilhantes de lágrimas até onde estou, toca nosso filho, que dorme tranquilo em meu colo, e beija minha testa.

— Obrigado por confiar em mim — diz, e eu me lembro do dia em que apareceu bêbado, contou sua história e me pediu para que confiasse nele. — Obrigado por me fazer feliz.

Não resisto ao amor que vejo em seus lindos olhos azuis, então o beijo arrancando risadas dos convidados por ter quebrado o protocolo. Rimos juntos disso, e dessa vez é ele quem me beija, fazendo o juiz de paz clarear a garganta para que continuemos a caminhada até o altar.

Olho para Kyra, no altar, e percebo seu nervosismo por termos quebrado seu cronograma perfeitamente planejado. Minha cunhada percebe o quanto estamos felizes, principalmente pela visão que tenho dos nossos padrinhos nos esperando, e relaxa.

É, a vida não foi feita para seguir roteiros!


Fim


A noite está sendo um sucesso, e eu não caibo em mim de orgulho da minha esposa. É a primeira e única vez em que o Chez Hill irá servir um jantar, pois abrirá somente de segunda a sábado, no horário do almoço.

Minha chef de cozinha brilha, vestida com sua dolma com seu nome bordado, bem como as bandeiras do Brasil e da França. Olho em volta e reconheço o trabalho primoroso da equipe do meu irmão Alex na reforma e decoração do empreendimento. Está do jeito que minha esposa sempre sonhou, e é um privilégio poder acompanhar essa realização pessoal dela, ainda mais porque sei que abriu mão de tudo, há anos, para cuidar de nossa filha.

Sinto muito orgulho, sim, mas sou completamente apaixonado por ela. Cada dia mais eu a admiro, desejo-a e sou grato por tê-la ao meu lado. Duda é uma mulher especial. Eu não merecia tamanha sorte e me esforço a cada dia para ser o homem que ela me vê, o que ela aprendeu a amar.

Nós nos casamos há um mês e ainda não pudemos ter nossa lua de mel. Em parte, claro, por causa do nosso pequeno Petros, que está com apenas quatro meses e depende dela exclusivamente para seu sustento. O outro motivo para adiarmos a viagem que planejamos foi a inauguração do bistrô.

Maria Eduarda viveu, mesmo grávida, cada momento da montagem deste lugar. Escolheu a dedo cada equipamento, mobília e itens de decoração. Manola e ela passaram meses discutindo cardápio, marketing e escolhendo a equipe que a ruiva brava comandará com o chicote na mão.

É, a mulher é uma pimenta e conseguiu a proeza de deixar meu motorista de quatro, obediente e caseiro, totalmente domado. Os dois estão morando juntos há algum tempo, e Dio parece estar muito feliz.

Eu implico com a Manola – principalmente porque não começamos muito bem –, mas tenho muito carinho e admiração por ela e vejo a amizade sincera que sente por minha esposa, e isso já seria o suficiente para ela ter minha admiração.

Tessa passa correndo por mim, seguida por Laura e Lucca, e faço sinal para o garoto de que estou de olho nele. O filho de Frank ri e dá de ombros, uma atitude que me lembra muito o seu pai, e continua a seguir minha menina. Sorrio achando graça, mas o sorriso morre quando reconheço o doutor Felipe cumprimentando Maria Eduarda.

O médico tem a mão em seu braço e fala com ela cheio de sorrisos, o que me faz cruzar o salão com passadas largas e determinadas e a segurar pela cintura antes de cumprimentar o médico alto e bonitão.

— Boa noite! — ele me saúda de volta. — Estava elogiando o bistrô e parabenizando a Maria Eduarda pelo bebê.

Fecho a cara.

— É meu filho também. Agradeço os parabéns.

O corpo de Duda dá leves sacudidas contra o meu e vejo sua boca apertada, impedindo o sorriso. Ela sabe que estou com ciúmes! Encaro o médico.

— Espero que tenha desfrutado do jantar. — Ele assente. — Agora preciso mostrar algo para minha esposa...

— Claro! — Ele sorri e se despede.

— O que você quer me mostrar?

Não respondo, apenas arrasto Duda para dentro da cozinha, cumprimentando o pessoal que está cuidado da limpeza do local, e sigo para a parte de trás, onde ficam o depósito e a câmara fria.

— Theo? — ela questiona quando abro a porta de metal.

Sinto o frio nos atingir assim que fecho a porta e a encaro. Duda tem a testa franzida e os braços cruzados.

— O que significa...

Impeço-a de falar qualquer coisa, atacando sua boca, fervendo de tesão. Você é minha!, demonstro essa verdade com minha boca, esfregando a língua contra a dela. Você é minha!, minhas mãos cantam essa frase enquanto exploram seu corpo. Eu sou seu!, meu coração responde quando ela se agarra em mim, correspondendo com sofreguidão ao beijo.

Encosto-me contra uma prateleira e a seguro por baixo das nádegas, erguendo-a levemente, encaixando-a contra meu pau latejando de desejo, duro de vontade, desesperado para estar dentro dela mais uma vez.

Trepamos durante o banho, antes de vir para cá, mas minha vontade nunca passa, nem diminui, pelo contrário, cada vez que estou dentro dela, mais me desperta a fome, mais incendeia meu tesão. Somos a mesma carne, somos o mesmo fogo e necessitamos um do toque do outro, da pele e das sensações causadas por essa mistura perfeita de desejo e amor.

Maria Eduarda me completa em todos os aspectos, e eu sei que ela se sente da mesma forma com relação a mim. Somos amigos, companheiros, cúmplices, amantes e pais de duas crianças que nos enchem de orgulho.

— Theo... — ela diz com a boca colada na minha. — Nós vamos congelar aqui dentro.

Rio, esfregando-me a ela, mostrando quanto estou longe de congelar.

— Você é minha! — resmungo.

— Isso tudo é ciúme do doutor Felipe? — Tento negar, mas ela ri. — Eu sou louca por você. Ele tem que ser muito cego para não enxergar isso.

— Homem geralmente é burro, então, mesmo que enxergue, acaba fazendo bobagem. — Balanço a cabeça, segurando em seus peitos. — E você ficou ainda mais linda depois da maternidade. Adoro o volume deles, a textura...

— Estão cheios de leite. — Ela ri. — Nada sexy!

Levanto a sobrancelha.

— Tudo em você é sexy! — Eu a viro de costas, beijo sua nuca, mas não tiro as mãos de seus peitos, pois estão realmente muito gostosos. — Ah, Maria Eduarda... — Afasto-me, e ela me encara curiosa, não deixando de notar meu sorriso safado de quem está cheio de ideias mirabolantes na cabeça. — Acho melhor voltarmos para o salão.

— Não vai me dizer o motivo desse sorriso de gato que comeu o canário?

Gargalho, mas gosto muito da comparação.

— Esse gato aqui ainda vai comer esse canário... — Pisco. — Aguarde-me.

Voltamos para o salão recebendo olhares intrigados do staff, que ainda limpa a cozinha. Deixo-a com um beijo na testa, perto de Manola e seus amigos Lara e Cadu, e sigo ao encontro de Frank, Nicholas e Bernardo, junto às suas respectivas esposas.

— Algum problema? — Frank questiona assim que pego o celular.

— Não, só ansioso para ir para casa descansar.

O carcamano me conhece há muitos anos, por isso dá um sorriso torto e entendido e fala algo no ouvido de Isabella, que ri sem jeito. É, meu amigo, cada um ataca com as armas que tem! Você no ouvido, e eu...

Envio a primeira mensagem e fico observando Duda pegar seu telefone, suas bochechas se tingirem de vermelho e um sorriso aparecer em seu rosto.

 

 

Ela me procura com os olhos, balança a cabeça, mas responde:

 

 

Gosto da resposta provocativa.

 

 

Ela está bebendo água quando lê a mensagem, e eu rio quando engasga e Manola a socorre com um guardanapo, pois babou um pouco o líquido. Sua amiga enxerida acaba por espiar o telefone e rola os olhos, comentando algo para minha esposa, que digita uma mensagem.

 

 

Faço careta ante a cena que se desenha em minha mente, com meu motorista brincando com a sobremesa no quarto, e decido parar a brincadeira.

 

 

Ficamos nos encarando de longe, Duda com sua sobrancelha erguida, desafiando-me a continuar o jogo, e eu deslumbrado, tentando entender como foi possível que eu recebesse tamanho presente em minha vida. Essa mulher é mais do que perfeita; ela foi feita para mim.

Esse ano que vivemos juntos foi inesquecível, repleto de emoções, pois descobri e aprendi como ser pai da minha filha, participar de sua vida, fazer com que ela sentisse que eu estava ali para ficar em sua vida para sempre. E nisso, Duda me ajudou o tempo todo. Enquanto eu aprendia com Tessa, nosso filho se desenvolvia em seu ventre, e nós pudemos, os três, preparar-nos para sua chegada.

Nunca nesses meus 42 anos de vida, eu poderia imaginar experiência semelhante a que tive nos nascimentos dos meus filhos. O de Tessa quando recebeu a medula, e o de Petros quando meu meninão veio ao mundo e o peguei pela primeira vez.

Sorrio ao lembrar que Duda me perguntava como ele era, se estava bem, mas eu não conseguia falar nada, engasgado de sentimentos que nunca havia conhecido, transbordando de amor e cuidado que me deixavam imobilizado. Ouvi a risada da médica que acompanhou o parto e os comentários das enfermeiras sobre eu chorar mais do que o bebê, mas não me importei; meu filho estava em meus braços.

Ah, tanta coisa passou pela minha cabeça naquele momento! O menino carente que eu fui, sonhando em encontrar uma mãe que só veria em revistas, desejando que o pai o notasse e se alegrasse com sua existência, pôde finalmente sorrir. Eu tinha uma família e podia fazer tudo diferente do que tinha sido a minha história.

Tessa e Petros – e os outros que ainda virão, porque não desisti de ter uma família bem grande – significaram um renascimento para mim também, e eu só pude ter esse privilégio por causa de Maria Eduarda Braga Hill Karamanlis.

Pego o celular e respondo sua questão:

 

 

Ela sorri encantada, e leio a declaração de amor em seus lábios, mesmo sem emitirem nenhum som.

O som da risada alta e grave do meu avô me faz olhar em sua direção, para a mesa onde está sentado ao lado de dona Do Carmo e de Petros, que dorme tranquilo no carrinho. Tessa e ele estão fazendo algum tipo de jogo, e os dois se divertem bastante em um duelo em que um tenta capturar o dedão do outro.

Definitivamente, meu avô fica irreconhecível perto da minha filha!

A verdade é que ele se apaixonou por Tessa, e eu vi um lado dele que nunca tinha enxergado antes. Não entendam mal, ainda continua o velho rabugento e preconceituoso de sempre, conservador até a raiz dos cabelos, mas algo forte o ligou a minha menina – talvez a lembrança do filho preferido que perdeu para a mesma doença que Tessa conseguiu vencer – e o fez ser um avô que eu nunca imaginaria que fosse.

Lembro-me de sua visita quando Petros nasceu. Ele aproveitou que outro bisneto nascera e já veio para o Brasil a fim de ficar para o casamento. Ao longo desse ano, ele veio algumas vezes para o país, e a maioria delas foi surpreendente, mas essas são outras histórias. A que quero compartilhar é a do dia em que Tessa o desafiou no jogo de xadrez.

Eu havia comentado com ela o quanto meu avô era apaixonado pelo jogo, então minha filha passou meses estudando, vendo vídeos de estratégias e treinando comigo, até se sentir pronta para desafiar o velho Geórgios Karamanlis. Nem preciso dizer que, depois de horas de partida, minha menina o venceu com um xeque-mate surpreendente, olhou-me vitoriosa, depois beijou a testa do pappoús como se nada demais tivesse acontecido e foi brincar com suas bonecas.

— Theodoros... — ele me chamou, ainda olhando para o tabuleiro. — Sei que, por algum milagre, você engendrou outro herdeiro, agora um varão, mas...

— Eu sei, pappoús, ela é incrível!

— Não! Ela é uma Karamanlis como nenhum de vocês jamais foi! — Isso me surpreendeu, mesmo que tenha sido rude. — Eu confiaria a minha empresa a essa menina agora mesmo e tenho certeza de que ela faria um trabalho melhor que o de todos vocês juntos.

— Pappoús, nós já falamos sobre isso. Tessa gosta de artes, é sensível. Não vamos pressioná-la a nada, por favor.

Ele assentiu, mas eu reconhecia aquele olhar.

— Eu vejo, Theodoros, como eu via em Geórgios II, como vi em você. — Ele me encarou. — A menina nasceu para dirigir a empresa. — Pôs-se de pé. — Você já cumpriu sua missão comigo.

Abri um sorriso, mesmo ainda não concordando com as expectativas dele.

— Já posso morrer, então? — brinquei e, claro, recebi o olhar que ele sempre fazia quando algo o desagradava. — Desculpe, vovô.

As risadas dos dois voltam a ecoar pelo salão, agora seguida das de Laura e Lucca, então sorrio também. Eu acho que quem cumpriu uma missão foi Tessa! Não, não foi a de uma herdeira para a empresa, mas sim a de alegrar os últimos anos de um taciturno grego.

É, respiro fundo e olho ao redor, ainda nem posso acreditar que estão todos aqui!

A Deus, sempre!

A noite de ontem – sábado – foi bem mais silenciosa e tranquila que a anterior, pois Tessa, cansada das atividades do dia, acabou adormecendo cedo, sem nem mesmo jantar, e minha tia resolveu fazer o mesmo.

Fui para meu quarto, entrei no banho e estava passando um pouco de hidratante quando Theo apareceu e ficou parado na porta do banheiro apenas me vendo passar o creme pelas pernas. Eu estava vestindo um pijama levinho de verão – camiseta e short –, e meus cabelos se encontravam presos no coque que costumo usar quando cozinho.

Ele se aproximou, retirou grampo por grampo e espalhou as madeixas sobre minhas costas. Inusitadamente, cheirou meus fios longamente, sem encostar em mim, apenas sentindo meu cheiro. É claro que isso já foi o suficiente para que eu ficasse na expectativa de seu toque, sentindo o ar todo vibrando à nossa volta.

Theo deu a volta completa em mim, encarou-me com um meio sorriso muito sexy e acariciou meu rosto suavemente, sem falar nada. Não sei precisar quanto tempo ficamos assim, parados no centro do banheiro, um de frente para o outro, olhando-nos, e as pontas dos dedos dele roçando minha face.

Foi, com certeza, o sexo mais carinhoso que fizemos desde que começamos a dormir juntos. Não houve grandes malabarismos, nem posições diferentes, muito menos frases safadas e brincadeiras. Estávamos tão sensíveis que nossos toques falavam tudo o que precisávamos saber. Nossas bocas se encontraram em todos os momentos, silenciando gemidos, dividindo o prazer, e nossos corpos se encaixaram tão perfeitamente que não tínhamos vontade de parar.

Theo me penetrou devagar, indo profundamente e parando por lá, sem se mexer, olhos nos meus, então voltava a sair quase por completo, beijava-me e mergulhava dentro de mim. Nossas mãos estiveram entrelaçadas durante todo o sexo, minhas pernas abraçadas em seus quadris, recebendo-o por completo, dando-lhe espaço para que me amasse como quisesse.

E foi assim que me senti, sendo amada, sendo degustada, apreciada lentamente como quem desfruta de algo especial. O orgasmo foi tão intenso que Theo precisou tampar minha boca para que o som não saísse do quarto. Ele não quis gozar dentro de mim – mesmo estando de camisinha – e pediu para que eu o chupasse e recebesse seu esperma na boca. Adoro o jeito que ele goza, os sons que faz.

Tomamos banho juntos depois, conversamos e rimos no boxe e nos deitamos juntos. Nós dois estávamos tão cansados – da noite anterior insone e do dia agitado – que acabamos pegando no sono, e eu só acordei agora.

Abro os olhos e olho para o lado, para o homem deitado na cama comigo, e sorrio. Beijo devagar a ponta do seu nariz, mas Theo não esboça nenhum som ou indicação de que está acordado. Sua mão está repousada em cima da minha barriga, e ele ressona baixinho, perdido em seus sonhos noturnos.

Ajeito-me melhor na cama, ficando mais perto dele, sentindo seu corpo nu junto ao meu e fecho os olhos, agradecida por me sentir tão completa e feliz. Eu já era feliz sozinha, tendo minha filha e minha tia comigo, mas o jeito como ele me trata, como faz amor comigo e me abraça quando vai dormir, fortalece essa felicidade.

A mente sonolenta começa a viajar desconexa, relaxando meu corpo, mas, antes que eu mergulhe em sono profundo, uma luz me incomoda e escuto meu nome sendo chamado:

— Duda! — Tento ignorar e voltar a dormir. — Duda, por favor, acorda!

O tom de voz apavorado de tia Do Carmo me faz despertar, e eu pisco antes de entender onde estamos. Theo se remexe ao meu lado e também desperta.

— O que houve? — é ele quem pergunta, e minha tia fica sem jeito, olhando para mim.

Sento-me na cama segurando o lençol sobre os seios.

— Cadê a Tessa?

— Ela acordou há pouco se queixando de dor de cabeça. E...

Theo acende um abajur, e eu solto um grito ao ver a camisola de minha tia cheia de sangue. Sinto meu corpo inteiro gelar, mas, antes que eu me mova, ele salta da cama, agarrando sua calça de pijama e a vestindo como um louco, indo em direção ao corredor.

— É o nariz dela... — Minha tia, que parece em choque, aponta para a porta. — Melhor ir com ele.

Assinto e me levanto, procurando meu pijama, tremendo de susto. Tessa passou o dia todo no sol, e eu fui muito irresponsável por não ter pensado que isso poderia ser prejudicial a ela.

Droga!

Corro até o quarto que ela divide com minha tia e encontro minha menina com uma toalha no nariz, de cabeça curvada para trás, no colo do Theo.

— Sua tia foi buscar gelo — ele informa parecendo bem controlado. — Eu expliquei para Tessa que isso pode acontecer mesmo, depois de um dia agitado e com muita exposição ao sol.

Concordo e olho minha filha com um sorriso de consolo no rosto, tentando disfarçar o medo que estou sentindo. A cama dela está totalmente ensopada de sangue, bem como o chão ao lado, e até a calça do Theo tem respingos.

— O gelo! — Minha tia o entrega para o Theo, embrulhado em um tecido, e ele tira a toalha e a substitui pela bolsa térmica improvisada.

Vou até o banheiro dela, encharco outra toalha com água bem fria e a coloco sobre a testa de Tessa.

— Já está estancando — Theo me acalma. — O gelo fecha os vasos sanguíneos.

Chego a soluçar, e Tessa me olha preocupada.

— Eu estou bem, mamãe! — Sinto sua mãozinha tocar a minha. — Já passou!

Theo sorri por ela estar me consolando, e eu tento um sorriso para acalmá-la.

— Um banho seria bom agora, não? — pergunto.

— Sim, pode deixar comigo! — Tia Do Carmo ajuda minha filha a chegar ao chuveiro.

Espero as duas entrarem e, só quando escuto a água cair, é que deixo de segurar as lágrimas e soluço feito criança assustada, recebendo um abraço carinhoso.

— Ei, fica calma, está tudo bem!

— Eu fiquei em choque quando vi o sangue, não consegui me mover... — Soluço novamente. — Obrigada!

— Tudo bem! Acontecia muito isso comigo quando era criança, é bem comum — explica. — Às vezes eu ficava jogando futebol ou polo aquático ao sol, e sempre à noite o nariz sangrava.

— Tessa não é assim, Theo. — Seco as lágrimas. — Ela tem andado frágil demais.

— Já consultou um médico?

— Na semana que vem. — Olho para o quarto. — Vou limpar isso tudo aqui, porque ela deve sair do banho e voltar a dormir.

— Eu te ajudo! — oferece e já arranca a roupa de cama suja.

Pego os lençóis e fronha e o encaro.

— Se importa se voltarmos amanhã antes do almoço? Eu fico receosa de estar em um local tão isolado quanto este...

— Tem razão. — Beija minha testa. — Assim que amanhecer, vou chamar o pessoal do barco para nos levar de volta.

— Obrigada!

Ele sai do quarto, e eu limpo todo o sangue, coloco lençol e fronha limpos na cama e aguardo minha menina sair do banho.

— Sente-se melhor? — inquiro, abraçando-a assim que aparece.

— Com sono. — Boceja. — Você deita comigo, mamãe?

Faço o que ela pede e a abraço bem apertado, cantando “Se essa rua fosse minha” bem baixinho para ela, igual quando era bebê.

— Mãe? — Tessa se vira para me olhar. — Viu só como o Theo cuidou de mim? — Assinto, mesmo que preocupada com o brilho nos seus olhos. — Um pai cuidaria assim de mim, não é?

— Tessa... Theo não é seu pai, e nós estamos apenas nos conhecendo melhor. Não crie expectativas, minha filha.

Ela fica séria, depois vejo seus olhos se entristecerem, e ela os fecha, adormecendo. Choro baixinho, apertando-a contra mim, querendo que as coisas para ela fossem diferentes, desejando poder suprir toda a falta que ela sente de uma figura paterna. Sempre pensei que isso não acontecia, que ela estava feliz apenas comigo, mas, ao que parece, não é assim. Contudo, não posso deixar que ela se iluda sobre Theo, bem como não posso me iludir sobre ele.

— Duda — minha tia chama. — Pode ir dormir. Eu fico de olho nela.

— Tem certeza?

— Qualquer coisa, te chamo novamente.

Abraço tia Do Carmo e volto para o meu quarto. Theo está no banho, e aproveito esse tempo para pensar um pouco nessa situação toda na qual me meti e, o pior, envolvi minha família também. Para Theodoros Karamanlis, eu sou apenas sua aventura da vez. Daqui a pouco ele irá se acostumar, entediar-se e partir em busca de uma nova companhia.

O telefone dele vibra em cima do criado-mudo, e vejo o nome “Valentina” aparecer e, em seguida, quando a ligação cai, a notificação de oito chamadas dessa mesma pessoa não atendidas.

Tento me manter à margem, não me importar ou mesmo não questionar quem é a tal Valentina que liga para ele às 3h da manhã, mas então o telefone toca novamente, e ele vem correndo do banheiro e o desliga, olhando sem jeito para mim.

— Desculpe por isso. — Coloca o aparelho de volta no móvel.

— Tudo bem. — Forço um sorriso. — Não é da minha conta!

Dou de ombros e me levanto, passando por ele para ir ao banheiro.

— Ela é uma amiga — Theo começa, e eu paro. — Na verdade, já saí com ela algumas vezes, mas não passou disso e...

— Tudo bem, Theo, você não me deve explicações. — Ele parece aliviado por não ter de explicar, e isso só confirma que há mais nessa situação do que ele está me contando. — Vou tomar um banho e tentar voltar a dormir.

— Tessa já está melhor? — Aquiesço. — Que bom!

— Eu lhe agradeço demais por ter cuidado dela.

— Foi um prazer, Maria Eduarda! Ela é uma menina incrível!

Concordo com ele e, por isso mesmo, tenho que protegê-la de uma decepção. Se alguém tiver que sofrer, que seja eu, afinal, a escolha foi minha nesse envolvimento com Theo, então, que eu arque com as consequências disso. Tessa é minha prioridade, e não há nada que eu não faça por sua felicidade.


— Boa noite, doutor! — Vanda me saúda assim que as portas do elevador se abrem e estende a mão para pegar minha pasta.

Entrego-lhe o objeto, paro diante da mesa do hall, com os envelopes todos separados por assunto e examino a correspondência. Separo dois convites para ler depois e responder, e o resto, junto em uma pilha só para jogar no lixo: anúncios, contas – que, mesmo eu tendo autorizado o envio digital, ainda estão vindo em papel – e uma pesquisa da empresa na qual aluguei o iate para o final de semana.

Eles foram rápidos em mandar a correspondência, afinal, faz três dias que cheguei de Angra e devolvi o iate à marina. Abro o envelope, leio as perguntas e decido ignorá-lo, colocando-o junto aos outros que irão para o lixo.

— Como foi seu dia? — Vanda me pergunta assim que entramos na sala principal. — O jantar já está pronto. Vai comer agora ou depois do banho?

— Depois. — Sorrio, pois essa é sempre minha resposta.

Vanda leva minha pasta para o escritório e segue em direção à cozinha. Fico um tempo parado no meio da sala, olhando para a direção em que ela foi, pensando em como minha vida é rotineira e chata. Isso nunca me incomodou antes, mas agora... me sinto um velho solteirão, só faltando Vanda trazer meus chinelos e o pijama de flanela.

Sempre considerei esse padrão, essa solidão como uma coisa favorável. Contudo, algo mudou essa percepção, e isso já não me satisfaz mais. Acho que, finalmente, estou pronto para dividir a vida com alguém, ter filhos e uma família.

A imagem de Tessa aparece em minha mente.

Eu me diverti com a companhia dela, com suas perguntas curiosas, sua gana por aprender e a risada contagiante que parecia capaz de preencher qualquer vazio. Nunca tinha pensando em ter uma filha, uma menina. Toda vez que aventava a ideia de ter um filho, era um homem, um herdeiro para continuar o trabalho de pappoús.

Ainda quero isso, mas também quero uma menina!

Sorrio ao me lembrar das covinhas no rosto de Tessa e na forma como seus olhos se fecham quando sorri largo. A menina me encantou, temo admitir. Vi tantas características dela que penso que um filho meu teria – não no aspecto físico, mas na personalidade. A menina sabe o que quer, é inteligente, astuta e boa negociadora.

— Achei uma biblioteca! — no sábado, durante a viagem, em certo momento ela entrou na sala onde eu estava com sua mãe e anunciou. — Os livros estão em inglês, e eu ainda não aprendi muita coisa. — Deu de ombros. — Ah, tem uma academia também!

— Mesmo? — Interessei-me, pois já havia visto a biblioteca, mas não esse outro local. — Onde?

— Aqui dentro da casa! — disse empolgada. — Tem até piscina!

— Duda, Rita quer falar com você sobre o jantar — dona Maria do Carmo chamou a sobrinha.

— Pode ir lá. — Pisquei para ela. — Vou explorar a tal academia com a Tessa.

— Não deixe que ela mexa nas coisas!

Assenti, e ela seguiu a tia para a cozinha.

— Vamos lá? — Segui a menina por um enorme corredor e entrei em uma magnífica sala de treino, maior e mais equipada que a minha na cobertura. — É uma puta academia!

— Você me deve cinco reais! — anunciou. Olhei-a sem entender, e a malandrinha colocou as mãos na cintura e ergueu uma de suas sobrancelhas. — Disse um palavrão, põe cinco reais no meu cofrinho. É a regra!

— De quem? — Cruzei os braços.

— Da mamãe! — Riu. — Eu ganho muitas notas da tia Manola, mas ainda falta muito até eu conseguir dinheiro para pagar meus estudos.

Bati a mão nos bolsos da calça.

— Minha carteira não está comigo...

— Tudo bem, eu anoto para você me pagar no futuro — ri muito do jeito como ela falou isso.

— E você? — questionei. — Quando você perde seu precioso dinheirinho? Ou não têm regras para você?

— Claro que têm! Você acha que mamãe é boba? — Neguei, pois tinha certeza de que Duda não era. — Quando falo palavrão, perco cinco reais e, quando deixo de executar alguma tarefa, perco dez.

— Entendi. É um bom acordo!

— É, sim! Mamãe diz que isso me ensina a ter responsabilidade, principalmente com o dinheiro, mesmo porque não tenho mesada, como minhas amigas.

— Não tem? — Ela negou. — Então você usa esse dinheiro para comprar coisas para si?

— Não! Eu guardo para estudar — disse tão séria e convicta que senti orgulho dela. — Eu quero estudar belas artes na França um dia...

— Ah, como sua mãe fez indo estudar em Paris.

Tessa assentiu animada.

— Isso! — Seus olhinhos brilharam com o sonho.

Senti uma enorme vontade de ajudá-la na realização desse desejo de alguma forma. Eu poderia investir nela, fazer uma poupança, ainda mais se ela quisesse se tornar uma artista na área na qual eu já trabalho – pintura e escultura. Entretanto, sabia que Duda nunca aceitaria.

— Eu falei um palavrão do cacete! — Tessa arregalou os olhos. — Eita! Falei outro, né? Merda!

Pensei que ela já estava contabilizando quanto eu lhe estava devendo, mas não, começou a rir desenfreadamente a ponto de saírem lágrimas de seus olhos. Por algum motivo estranho, isso me causou um déjà vu, e voltei no tempo, vendo Kyra rindo desse mesmo jeito, com seus olhos verdes rasos d’água e covinhas nas bochechas.

— Você está burlando as regras! — acusou-me. — Não pode ficar xingando somente para me dar dinheiro!

— Eu?! — fingi-me de santo. — Que absurdo, Tessa, eu nunca faria isso!

— Vou fingir que não ouvi, tá bom?

Pôs as mãos na cintura e me encarou toda cheia de si, dona da verdade, uma pose totalmente igual à da minha irmã. Caramba! Acho que vejo muito da Kyra nela por causa dos olhos. A tonalidade deles é muito parecida.

— Você tem olhos de um verde muito incomum — comentei.

— Acho que puxei ao meu pai. Pelo menos, mamãe diz que sim.

A menina não conhece o pai?

Eu queria perguntar mais coisas, saber de sua história, conhecer melhor a Maria Eduarda através de sua filha. Contudo, não o fiz, porque não achei certo interrogar uma menina. Talvez mexesse em algo doloroso para ela mesma, e eu não queria apagar o brilho de felicidade em seu rosto.

Duda chegou à academia em seguida, enquanto Tessa e eu ainda discutíamos sobre o dinheiro dos palavrões e logo quis saber do que estávamos falando. Tomei uma reprimenda por tentar dar dinheiro a ela burlando regras que deveriam ser educativas. Desculpei-me e abracei a cozinheira, ouvindo as risadas da menina.

Naquela mesma noite tomei um susto enorme ao ser acordado com a garota se esvaindo em sangue. Tentei o mais rápido possível estancar o vazamento no nariz – provavelmente algum vaso sanguíneo que se rompera – e acalmar a Duda.

Desperto das lembranças e pego o celular, abro o aplicativo de mensagens e mando uma para Maria Eduarda:

 

 

Deixo o aparelho no quarto enquanto tomo banho, ainda preocupado com a menina. Desde que chegamos, tenho me comunicado com a Duda todos os dias. Na segunda-feira, ela levou Tessa ao médico, que passou muitos exames e algumas vitaminas. Elas aproveitaram o dia de folga e foram comprar material escolar.

Ontem, terça-feira, Tessa passou o dia bem, embora Duda ainda estivesse preocupada com dores de cabeça, sonolência e uma tosse insistente que tinha voltado. Conversamos bastante por telefone, uma experiência nova, pois sempre trocamos mensagens, e acabamos fazendo sexo via ligação, um falando para o outro o que queria fazer, às 3h da manhã!

Desligo o chuveiro quando meu telefone começa a tocar, sabendo que não é Maria Eduarda, pois a essa hora ela está trabalhando.

— Oi, Vivi! — atendo minha amiga.

— Boa noite, Theo! Anda sumido. O que está acontecendo?

Deito-me na cama.

— Tirei uns dias de folga e fui para a praia. Como você está?

— Praia? Sozinho?

Rio com a pergunta invasiva, mesmo já acostumado ao jeito dela.

— Não, não fui sozinho. — Ela fica muda. — O que, além de perscrutar minha vida, você quer?

— Nossa, Theo, somos amigos, pelo amor de Dadá! — Ela parece indignada. — Só quis saber mais de você! Não posso?

— Pode, sim, claro. Agora já sabe! E aí, o que houve?

— Vai ter um evento na sexta-feira naquele clube de jazz a que você me levou uma vez, lembra? — Concordo, pois, apesar de não me lembrar de quando a levei lá, o Bebop é o lugar onde tem os melhores músicos de jazz de São Paulo e o único que frequento. — Marcus e eu vamos dar uma passada lá antes de irmos para o aniversário da Alicinha. Você vai?

Eu nem mesmo sabia sobre tal evento, mas confesso que é um ótimo programa para sexta-feira à noite.

— Talvez — respondo com sinceridade. — Há muito tempo não vou até lá. Pode ser bom.

— Está certo! Vai convidar a Valentina?

— Você ainda não a convidou por mim? — minha voz sai mais sarcástica do que eu pretendia, mas dou de ombros.

— Claro que não! Eu não vou mais interferir nesse assunto entre vocês. Ela ficou bem chateada com seu bolo no meu aniversário e seu sumiço durante esses dias, e, se você ainda pretender investir nela para uma relação, acho que deveria começar a correr atrás!

— Obrigado pelo conselho, minha wingman28!

— Ah, vai para a puta que te pariu, Theo!

Gargalho ao telefone e a escuto me xingar mais vezes antes de desligar na minha cara. É certo que pedi a ajuda de Viviane para encontrar uma esposa, mas ela está intervindo demais. Agradeço por ter me apresentado Valentina e acredito que outra candidata mais perfeita não há, mas quero fazer as coisas ao meu jeito.

No momento, não posso me concentrar ainda na jovem neta de diplomatas. Espero que consiga em breve, pois sinto que tenho pouco tempo, porém, quero aproveitar um pouco mais essa atração que sinto por Maria Eduarda.

Levo o telefone comigo quando vou jantar, esperando que Duda visualize e responda minha mensagem. Somente quando estou tomando café é que ela vem:

 

 

Fico feliz por tudo estar entrando nos eixos na vida dela.

 

 

Duda responde em seguida:

 

 

Eu nunca entendo o que significa esse “rs”, mas acho que deve ser algo bom. Mesmo teclando em tom de brincadeira, eu realmente sinto falta de Duda – da comida também, mas principalmente da sua companhia. Tenho uma ideia e resolvo arriscar, mesmo achando que é muito difícil que ela aceite meu convite.

 

 

 


Estaciono o carro, ajudo minha companheira a descer do veículo e entrego as chaves para o manobrista. Abro um sorriso para ela, linda, maquiada, em um vestido de encher a boca d´água por ser muito sensual. Ofereço o braço para que se apoie e entro no salão.

— Boa noite, doutor Karamanlis! — A recepcionista já me conhece. — Ficamos muito felizes com sua confirmação para esta noite. — Entrega-me o cartão de consumo. — Divirtam-se.

Olha para a minha companhia e sorri admirada.

Sim, ela está linda, e eu sou um cara de sorte!

Assim que passamos pelas portas duplas à prova de som, o delicioso ritmo do jazz me envolve, e abro um enorme sorriso ao reconhecer Georgia on my mind29 sendo brilhantemente cantada por uma bela mulher negra de voz poderosa e sensualidade indiscutível.

Ah, eu amo este lugar!

Olho em volta, notando as mesas com seus abajures acesos no centro, as paredes de tijolos de cerâmica cheias de quadros de grandes lendas do jazz, soul, gospel e R&B. É tudo muito retrô, e eu gosto disso!

— Este lugar parece cenário de filme antigo! — Maria Eduarda parece deslumbrada. — E essa mulher canta lindamente!

— Valeu a pena perder esta noite na cozinha do Hill para vir comigo?

Ela ergue a sobrancelha e sorri.

— Ainda não sei, a noite mal começou. — Ela se aproxima do meu ouvido. — Talvez se você me levar para sentar a alguma dessas mesas lindas, pedir um champanhe e cantar no meu ouvido, possa já começar a ganhar uns pontos.

Gargalho e aperto sua mão, deliciado com o humor dela.

— Só não prometo cantar. — Ela faz um beicinho, e eu a agarro pela cintura, provando sua boca. — Pelo menos, não aqui, mas quem sabe depois, quando estivermos a sós.

— Esperarei ansiosa! — sua voz soa rouca, sensual.

— Você é linda!

Suas bochechas ficam rosadas, e ela sorri sem jeito. Não consigo entender como essa mulher ainda não está acostumada a elogios! É sensual, linda, inteligente, fode absurdamente bem – respiro fundo ao pensar nisso – e cozinha como uma deusa!

Nós nos encaminhamos para uma das mesinhas reservadas mais ao fundo do clube, mas, antes de conseguirmos chegar lá, escuto meu nome sendo chamado:

— Theo! — Viviane aparece, encarando Duda descaradamente. — Oi, meu lindo, você veio!

Cumprimento-a.

— Decidi vir ver a tal artista da qual todos estavam falando empolgados. — Olho para o palco. — Ela é maravilhosa!

— É, sim. — Concorda, mas não tira os olhos de Maria Eduarda. — Marcus a tem ajudado a alavancar a carreira. — Emito apenas um som de total desinteresse ante o que ela está me dizendo. — Você e sua amiga não querem se juntar ao nosso grupo? — Aponta para uma mesa maior, lotada.

— Não, obrigado — corto-a. — Maria Eduarda e eu vamos nos sentar sozinhos. — Olho para Duda. — A propósito, essa é Viviane Lamour, uma amiga de muitos anos.

— É um prazer — Duda a cumprimenta.

— Maria Eduarda? — Sorri. — Belo nome! Trabalha com artes plásticas ou com música?

Duda franze o cenho e nega com a cabeça.

— Comida.

Viviane arregala os olhos, sem entender, e decido acabar com a interação.

— Duda é chef de cozinha — respondo por ela, encerrando a especulação de Viviane. Ou quase. — Vamos...

— Ah... qual restaurante? — Viviane me ignora e foca em minha companhia.

— Eu não...

— Vivi, nós queremos nos sentar, beber e curtir a música — interrompo Maria Eduarda, bem irritado com minha amiga e sócia. — Foi um prazer vê-la esta noite. Desculpe-me com Alicinha por não ir até a festa dela.

— E para Valentina, o que eu digo?

Decido pôr um fim à sua interferência e inconveniência e saio de perto dela, levando Duda comigo, sem nem mesmo nos despedir. Novamente me sinto incomodado pelo nome de Valentina ter surgido enquanto estou com Maria Eduarda. Ela não diz nada, mas sei que, em sua cabeça, deve estar se perguntando o que eu tenho com a outra mulher, afinal, além de ela ter me ligado à madrugada, fui inquirido sobre ela por uma amiga.

— Aqui está bom? — Aponto para uma das mesas, e ela assente.

— Eu realmente gostei muito daqui! — sua voz apreciativa me faz sorrir, e relaxo, deixando o “emputecimento” com Viviane de lado.

Preciso conversar com minha sócia e lhe impor alguns limites. O jeito como me abordou esta noite, em companhia da Maria Eduarda, não me agradou nada, principalmente ao final, pois ter citado Valentina foi pura provocação com a Duda.

— Fico feliz que tenha gostado. — Esfrego o nariz em sua orelha e pergunto baixinho: — Quer dançar?

Maria Eduarda suspira gostoso, e vejo sua pele eriçada. Percebo que a proximidade não afeta somente a mim, mesmo que minha evidência seja mais visível – o volume em minhas calças –, ainda que sob a luz bruxuleante do clube.

A incrível cantora interpreta All the way30, e estendo a mão para Duda. Quando ela toca minha palma, um frisson perpassa meu corpo, sacudindo tudo dentro de mim. Talvez seja o efeito da música combinado ao clima do local, quem sabe até a expectativa de uma noite intensa com Maria Eduarda. O fato é que não tenho explicação racional para o que ela me faz sentir.

Nossos corpos se juntam, ajustam-se, completam-se maravilhosamente bem. O leve perfume que Duda usa é inebriante e me faz aspirar bem fundo para capturá-lo. Sinto o calor que emana dela em minha medula, entranhado em mim, agitando meu sangue e o drenando para a extremidade do meu pênis, deixando-o tão duro e sensível que o simples roçar dela enquanto dançamos me faz gemer.

— Eu quero você — sussurro, e ela me encara.

— Eu também quero você. — Sorri. — Adorei o convite.

Faço um leve carinho em suas costas.

— Pensei que ia ter que implorar para você vir comigo.

Ela respira fundo, fecha os olhos, desfrutando das carícias enquanto dançamos devagar sob a luz baixa do salão.

— É difícil deixar o Hill...

— Eu sei, Maria Eduarda. — Colo minha boca em sua orelha. — Ter você aqui é tudo o que eu queria esta noite. Obrigado por isso. — Sugo seu lóbulo devagar, disfarçadamente, e ela estremece em meus braços. — Tento ter um encontro normal com você, beber, conversar, mas tudo o que eu quero é me fundir a você. Essa química que temos vibra à nossa volta, encontra lugar em minha voz quando falo o quanto te quero. — Ela geme. — Na minha língua, quando te chupo em busca dos seus orgasmos intensos. E na cabeça do meu pau, quando fodo você.

— Theo, você está me deixando louca com essas coisas que está dizendo! — sua voz está tremente.

— Faz parte desse tesão que nos envolve. — Minha mão alcança sua nuca, e os dedos resvalam pela raiz de seus cabelos. — Quando falo o que me faz sentir, deixo tudo o que não é carne para poder ser mais carne do que qualquer outra coisa quando estou dentro de você.

Ela suspira e encosta a cabeça no meu ombro, e eu avanço com os dedos entre suas madeixas, puxando-as devagar, acarinhando, dançando com ela sem deixar de ter contato com sua pele. Concentro-me no ritmo, no som da voz da cantora para baixar um pouco a temperatura entre nós. Convidei-a para uma noite fora do quarto, e é isso que irei fazer. Vamos conversar, ouvir essa ótima banda que está se apresentando aqui hoje e depois iremos para a cobertura trepar até o amanhecer.

A música troca para I put a spell on you31, e Duda ri sobre meus ombros, seu corpo sacudindo levemente, provavelmente reconhecendo a canção de um dos discos que ficaram em sua posse. Ela gostou mesmo dos tesouros – a vitrola e os discos –, e isso é muito gostoso, ter essa afinidade com ela, dividir essa particularidade minha que poucos conhecem.

Uma ideia se forma em minha cabeça e fica cada vez mais insistente, ganhando corpo, e abro um sorriso ao imaginar a reação dela se eu lhe der um equipamento semelhante e discos de presente. A imagem de Duda com olhos brilhantes e sorriso enorme, dando-me abraços e beijos de agradecimento me congela no lugar.

Que merda eu estou pensando?!

Nada disso cabe aqui, no que nós temos! Não quero imaginá-la emocionada com um presente meu, nem mesmo compartilhar com ela as coisas de que gosto. Não é para ser assim.

Duda me olha questionadora por eu ter perdido o ritmo no meio da dança, e começo a questionar minha sabedoria ao ter vindo aqui com ela.

Certo é que saí com inúmeras mulheres, já fui a boates, restaurantes, eventos, e nunca senti esse frio na espinha que me acometeu agora. Talvez por ser Maria Eduarda comigo, e eu, pelo que conheci dela até hoje, imaginar que isso que estamos fazendo – sexo sem compromisso – não é muito a cara dela.

Essa questão me preocupa, pois não quero magoá-la, não quero que tenha ilusões e que se apegue mais do que deveria a mim. Ela não merece isso! Infelizmente, Maria Eduarda não se encaixa nos meus planos, mas é uma mulher incrível, não merece sofrer de jeito algum.

— Algum problema? — questiona-me.

Nego com a cabeça e toco seus lábios com os meus bem devagar, saboreando a maciez de sua boca, o sabor gostoso de sua língua em busca da minha. Ainda não entendo esse elo que me liga a ela.

Sim! É como na música que está sendo cantada agora! Maria Eduarda colocou um feitiço em mim e me fez ser seu.


Nossa noite começou um pouco tumultuada por conta das sensações que tive ao dançar com Maria Eduarda, mas, depois que nos sentamos à mesa e começamos a conversar e a beber, consegui relaxar novamente e curtir.

Devo admitir que a companhia dela se mostrou deliciosamente perfeita. Além de todo o tesão que permeia nossa interação, conseguimos rir juntos, comentar sobre músicas. Ela falou um pouco dos pais, da morte triste de sua mãe e a tragédia que aconteceu com seu irmão envolvido com drogas.

Foi nesse momento que descobri de onde vinha a tenacidade que noto nela, sua teimosia em não vender o bar, e, mesmo sendo muito contraditório, admirei-a por isso. Pois é, peguei-me torcendo por ela contra mim mesmo! Entendi a importância que aquele imóvel tem em sua vida. É mais do que o negócio, é o receptáculo de suas lembranças.

Venho de uma família toda fodida, toda torta e nunca entendi bem como uma família que se apoia, que se ama, convive. Maria Eduarda, mesmo sobrando apenas sua tia e sua filha, mostrou-me como é isso.

— Quando voltei para o Brasil, estava tudo uma loucura! Meu pai precisava de mim, e eu, dele — bebeu mais um gole de seu vinho ao me contar isso. — Eu precisava de apoio para criar minha filha, apoiar meu pai na luta com meu irmão e ainda tentar erguer o Hill.

— Por isso você desistiu do seu sonho.

Ela negou.

— Eu remodelei o meu sonho. — Sorriu como se isso tivesse sido bom. — Eu não era mais a mesma, não tinha que cuidar apenas de mim. Tessa era o mais importante. Meu pai e meu irmão precisavam de mim, e eu faria tudo por eles. Tia Do Carmo já morava aqui e me ajudou muito, principalmente quando o JP morreu e meu pai desmoronou.

— Ele fez tudo o que podia.

— E o que não podia também! — Deu de ombros. — Depois, ele também se foi, e ficamos as três mulheres da família apenas e...

Eu já não ouvia o que ela dizia, pois tive um esclarecimento sobre as dívidas do pai dela. E se não eram só dívidas de jogos? E se ele pegou emprestado para tentar salvar o filho? E se tivessem outras dívidas e por isso Maria Eduarda economizava e trabalhava tanto?

Tudo recaiu sobre os ombros dela, sozinha com uma tia doente e uma criança. Meu coração se apertou ao imaginá-la abrindo mão da vida maravilhosa que teria – porque eu não tenho dúvidas da sua competência – e caindo nesse emaranhado de problemas. Não foi pena o que senti, mas sim um puta orgulho! Que mulher especial era Maria Eduarda Braga Hill!

Peguei sua mão com força e sorri para ela.

— Você é incrível! A mulher mais foda que eu já conheci. — Beijei sua mão, e ela ficou tão sem jeito que não sabia o que fazer.

— Não! Sabe o ditado que diz que a necessidade faz o sapo pular? Foi isso!

— Não foi, Maria Eduarda, e você sabe disso! — Ela sorriu, agradecendo o elogio, e meu pau ficou duro no mesmo instante. — Eu queria te comer agora!

— O quê?! — Riu nervosa. — Ainda tem bastante gente aqui!

Porra, ela pensou que eu quero fazer sexo com ela aqui no clube?, pensei entre surpreso e muito tentado. Obviamente a tentação ganhou, e eu já a imaginei gemendo e gozando no meu pau aqui, sentada no meu colo.

Tentei dissipar o pensamento, mas, a cada pessoa que ia embora, mais eu me sentia tentado. A turma que estava com Viviane saiu do salão, e ele ficou terrivelmente vazio, suscitando-me a vontade de agarrar Duda e a foder o mais rápido possível.

Perdi o controle quando a banda começou a tocar umas músicas mais dançantes e os clientes que ainda restavam se levantaram para dançar. Duda e eu, na mesa do fundo, próxima ao corredor que levava aos banheiros, ficamos esquecidos com nossas bebidas. Não pensei duas vezes; segurei-a pela cintura e a coloquei sobre mim.

— Theo, o que...

Perscrutei seu corpo, tateando-o devagar por sobre o vestido levinho que usava e descobri que a safada estava sem calcinha. Ela riu quando percebeu que eu havia descoberto sua transgressão e me beijou.

Não foi um beijo como os outros que trocamos a noite inteira, mas um esfomeado, molhado, que me dizia que ela estava tão excitada quanto eu. Eu só pensava em abrir o zíper da minha calça e me enterrar em sua boceta molhada, mas a cadeira era desconfortável, e Duda não tinha onde se apoiar para rebolar empalada no meu pênis.

Merda! Tentei pensar rápido, mas meu cérebro parecia liquefeito. Eu era todo sentidos, apenas tinha noção do quanto nos queríamos e que não iríamos esperar chegar até a cobertura. Tinha que ser naquele momento!

E foi!

Em um ataque louco, levantei-me com ela no colo, olhei todos bebendo e dançando, os garçons parados perto do bar, e a carreguei rumos aos banheiros, entrando na primeira porta que achei.

Era o armário onde havia os produtos de limpeza do bar, que alguém, por acidente, deixara aberto. Passei o trinco na porta enquanto ela se agarrava a mim e a apoiei contra a parede, liberando meu pau com uma mão só. Sem nem ao menos tirar a calça, penetrei-a como um doido varrido, mexendo rápido e forte, gemendo alto, delirando com a sensação de alívio, dor, desejo, com a adrenalina lá no alto por causa do local público.

Há muitos anos que eu não faço isso!, lembrei-me saboreando o sexo proibido, sentindo as mãos de Maria Eduarda apertarem meus ombros. Muito, muito tempo se passara desde que eu tinha comido uma mulher dentro de um estabelecimento comercial, sentindo a apreensão de sermos pegos misturada à adrenalina de trepar em local inadequado.

A vaga lembrança nem persistiu, pois Duda tomou conta de todos os meus sentidos, seu cheiro, seus sons e suas reações. Não estávamos usando camisinha, e eu deveria ter sido mais responsável com isso, mas foi impossível raciocinar ou mesmo parar de comê-la com desespero.

Duda gozou deliciosamente no meu pau, molhando-o, deixando-o patinando em sua excitação, e a contração de sua vagina foi todo o estímulo que eu precisava para me derramar dentro dela em uma loucura sem fim e deliciosa.

Ficamos um tempo parados, eu ainda dentro dela, amolecendo devagar, sentindo o reverberar do orgasmo ainda impactando meu corpo. A consciência me tomou assim que o sangue esfriou e me dei conta da irresponsabilidade que havíamos cometido. Não falamos nada. O ar ainda vibrava, o aroma de sexo recendia por todo o ambiente, e continuávamos mudos, agarrados um ao outro.

Foi Duda quem se moveu primeiro, empurrando levemente meus ombros.

— Estou começando a ter câimbras nas pernas. — Sorriu sem jeito, e eu finalmente me afastei de seu corpo.

Duda se arrumou, mas seus olhos se arregalaram logo depois, e a vi ficar branca de susto.

— Oh, meu Deus! — Ela fechou as pernas rapidamente. — Oh, meu Deus!

Sim, as expressões foram suficientes para eu entender duas coisas: ela sentira minha porra escorrer e se dera conta de que eu tinha gozado dentro dela. Caralho!

— Eu sinto muito — desculpei-me. — Eu não consegui... — Estava bem sem jeito. — Eu sei que não é desculpa e que devia ter sido mais responsável...

— Nós dois! — disse baixinho. — Sabíamos que estávamos desprotegidos, e nenhum dos dois quis parar. — Neguei e quis assumir toda a responsabilidade pelo que acontecera, afinal, já havíamos feito sexo sem camisinha, e, em nenhuma das vezes anteriores, eu fora até o fim. No entanto, ela não me permitiu falar: — Eu preciso passar numa farmácia.

Arregalei os olhos.

— Eu te machuquei?

— Não. — Suas faces coraram. — Eu preciso de pílula do dia seguinte. — Foi minha vez de ficar branco. — Sei que elas foram inventadas para possíveis acidentes e que não se deve tomar como forma de prevenção à gravidez, mas, no nosso caso, acho que eu devo usar.

Pílula do dia seguinte, gravidez, nosso caso... Eu tentava raciocinar como ela, mas tudo no que conseguia pensar era em Maria Eduarda gerando um filho meu. Porra! Era assustador, principalmente porque as imagens me agradavam muito! Tentei voltar à razão várias vezes, lembrando que eu só queria ter um filho para agradar meu avô e que, por isso, deveria também escolher uma mulher que ele aprovasse, e Duda não se enquadrava no que Geórgios Karamanlis queria.

Eu tentei! Juro que tentei! Porém, a imagem em minha mente, o que ela me fez sentir não se desvaneceu de forma alguma. Um filho com Maria Eduarda, um irmão para Tessa com, talvez, os mesmos olhos verdes que a menina tinha, iguais aos de Alex, Kyra e de Dorothea Karamanlis, minha avó.

— Theo, eu preciso ir até o banheiro. — Duda me trouxe de volta da maravilhosa visão que eu estava tendo, e aí, sim, consegui pensar com clareza.

— Não é perigoso tomar algo assim? — questionei.

— É uma carga hormonal enorme, não me agrada, mas não, não é perigoso e não pretendo fazer isso sempre. — Respirou fundo. — Vou marcar uma consulta com um ginecologista e pensar em algum método contraceptivo.

— Não seria melhor não tomar, então? — Certamente ela não esperava por isso, pois arregalou os olhos e ficou um pouco boquiaberta. Emendei uma justificativa: — Não me agrada que você tenha que assumir sozinha a responsabilidade de “consertar” algo que eu fiz.

— Theo, eu posso ficar grávida! — ela falou lentamente, talvez imaginando que eu fosse um tanto burro demais para entender.

— E pode também não ficar! — Dei de ombros. — Têm pessoas que tentam por anos e não conseguem.

— E têm algumas que basta uma rapidinha no meio de uma balada para engravidar. — Sorriu e negou. — Não quero arriscar. Não se preocupe comigo, ok?

— Eu sinto muito. — Beijei sua testa. — Não pela transa, que foi espetacular, mas por ter te levado a fazer algo de que não gosta.

— Tudo bem, de verdade. — Apontou para a porta. — Eu preciso realmente ir ao banheiro.

Arrumei minha calça, abri a porta, comprovei que não havia ninguém no corredor e a deixei sair primeiro. Assim que Duda entrou – correndo – no banheiro, encostei a cabeça na parede do depósito e tentei entender que merda estava acontecendo comigo, por que eu me sentia tão decepcionado pelo fato de ela não querer arriscar ter um filho meu.

Porra, Theodoros!

— Eu posso ficar muito acostumada com isso! — Duda fala, tirando-me das lembranças do início desta noite. Acompanho-a erguendo a perna cheia de espuma e vejo a unha pintada de vermelho aparecer entre o sabão. — É muito relaxante.

Chegamos do clube de jazz há pouco mais de uma hora e, claro, fizemos sexo. Diferentemente do que aconteceu no clube, não tínhamos pressa e pudemos saborear cada detalhe um do outro. Gozei dentro dela de novo, pois Duda irá tomar a tal da pílula, e ela me explicou o prazo e como funcionava a coisa toda.

Compreendo que não devo pensar em estender esse caso além do que já o fiz. Contudo, questionei-a sobre a consulta ao ginecologista, mostrei-lhe – podem rir e dizer que foi um pouco tarde – meus exames de saúde em dia, e ela me disse que também os faria antes de começar a tomar um anticoncepcional.

Droga!, pensei naquele momento. Se eu a pedisse em casamento, ela não precisaria de anticoncepcional algum! E, pela primeira vez desde que comecei a sair com ela, senti o peso de ter de agradar ao meu avô. Talvez, se eu não estivesse sendo quase obrigado a me casar, pudesse conhecê-la melhor, ter um relacionamento normal com ela e a pedir em casamento tão somente por querê-la, não por um filho ou por uma promessa, mas apenas por querer tê-la para sempre ao meu lado.

Sim, aperto-me a ela e a escuto suspirar, Maria Eduarda seria alguém com quem eu dividiria minha vida. Infelizmente, o mundo nunca foi justo ou fácil com minhas escolhas, e é por esse motivo que não posso dar as costas ao que prometi ao pappoús.

— Terei que ir para casa em breve — solto antes mesmo de me dar conta de que não é um assunto que eu queira conversar.

— Você já não está em casa agora? — Ela ri.

— Sim, me expressei mal. — Ela se encosta melhor em mim. — Terei que ir visitar meu avô.

— Ah, na Grécia. — Assinto, e ela me vê pelo espelho do banheiro. — Eu esqueço que você é grego, Theo.

— Por quase não ter sotaque?

Ela ri.

— Você tem sotaque. Não percebe, mas tem! Não é por isso, mas não te vejo como um grego, pelo menos, não como os que conheci.

— Isso é bom ou ruim? — Ela faz careta, e eu jogo um pouco de água em seu rosto como provocação. — Você só esteve lá daquela vez em que foi a Zante?

— Sim! — Duda abre um enorme sorriso. — Tínhamos acabado de concluir o curso, e a maioria já possuía algum emprego em vista, então, antes de começarmos, decidimos viajar juntas.

— Foi com um grupo grande, tipo excursão?

— Sim, erámos seis chefs de cuisine dispostas a curtir antes de entrar na loucura da profissão e não ter mais tempo nem para respirar. — Sua face está alegre, e ela parece emotiva. — Sinto falta de todas elas!

— Foram no verão, pelo menos? Ir até a Grécia apenas uma vez só vale se puder conhecer todo seu esplendor turístico, que inclui as praias, e isso é melhor no verão.

— Ah, sim. Fomos em junho. Fez oito anos ano passado.

— Hum... — Cheiro seu pescoço. — Já está na hora de voltar!

— É um convite?

Eu sorrio e nego, mesmo querendo dizer que sim, por mais impossível e idiota que isso seja. Maria Eduarda me faz querer jogar tudo para o alto, esquecer quem sou e tudo o que prometi. Se eu tivesse menos experiência e nenhuma noção do quanto isso é prejudicial, certamente o faria.

— Infelizmente, não dessa vez. É uma reunião de família.

— Eu estava brincando. — Sorri e mostra a língua, bem divertida. — Fico imaginando a repercussão que daria você chegando comigo por lá, com seus irmão e primos sabendo de nossa briga épica por causa do Hill. — O sorriso morre. — Assunto delicado, desculpa. Não deveria brincar com isso.

— É... — Beijo seu pescoço. — Esse assunto é um campo minado.

— Mas você ainda pensa nisso? — Duda insiste. — Ainda pensa em comprar a propriedade? Eu sei que combinamos não misturar os negócios com o que estamos vivendo...

— Não — sou sincero em responder, e ela se surpreende. — Não quero mais comprar o Hill, mas talvez não tenha mais escolha quanto a isso.

— Por que não?

— Sou o diretor, mas, acima de mim, há um conselho administrativo e... — Titubeio, pois ela não sabe sobre a promissória que compramos e não sei como reagirá quando souber. — Não depende só de mim.

— Entendi. — Sorri um pouco triste, mas ainda assim é um belo sorriso. — Ainda que não possa fazê-los desistir de tentar comprar – o que certamente não irão fazer, porque não venderei –, fico feliz em saber que você não quer mais seguir com isso. — Duda se vira para mim, e o que vejo em seus olhos me tira o fôlego. — Muito obrigada!

Ai, caralho!

Beijo-a antes que esse clima nos envolva em algo mais sério e profundo, levando esse clima para um lugar seguro que nós já conhecemos e desfrutamos muito: o sexo.


— Tem certeza de que vocês duas ficarão bem? — tia Do Carmo pergunta antes de entrar no carro de uma de suas amigas do clube de costura.

Rio e praticamente a empurro para dentro do veículo.

— Vamos, sim! Vai logo!

— Está querendo se livrar de mim, é? — Cruza os braços sobre os seios. — O grego combinou de vir te ver nesse final de semana?

— Tia, eu acabei de chegar do apartamento dele! — Rio. — Vamos com calma!

— Eu gostei dele, de verdade, apesar de ser daquela empresa detestável. — Faz careta, e eu rio. — Gostei de como ele agiu com nossa menina. Me surpreendeu.

— A mim também. — Sorrio, soltando um suspiro. — Ele perguntou como ela estava quase todos os dias desta semana. Tomamos um susto lá na ilha.

— Sim! Eu nem gosto de lembrar. — Ela me abraça. — Não estarei muito longe, então, se precisar, me ligue, que venho em minutos...

— Tia, pode ir despreocupada, Tessa e eu ficaremos bem. Vamos na 25 comprar o restante do material escolar que ficou faltando. Ela irá ficar essa noite comigo no Hill, e amanhã à noite a senhora estará de volta!

— Está certo, então. — Finalmente entra no carro. — Quando minha princesa acordar, diga-lhe que deixei beijos.

— Pode deixar.

Aceno por um tempo na calçada e logo subo para o apartamento, conferindo Tessa ainda dormindo. Bocejo e me espreguiço, sentindo todo o cansaço de uma noite inteira sem dormir. Theo e eu não tivemos tempo para isso!

Olho para a cartela com a segunda pílula do dia seguinte que irei tomar daqui umas horas, pois tomei a primeira antes de sair do apartamento dele, bem cedo. É a primeira vez que tomo esse medicamento e não conheço os efeitos colaterais – se tiver algum. Não quis arriscar e fiquei surpresa quando ele disse que não era para eu o tomar. Theo conseguiu me deixar confusa naquele momento, pois achei que ele seria o primeiro a propor que eu o tomasse.

O que aconteceu naquele clube foi uma loucura total, e não cometo esse tipo de doideira há alguns anos. Sem dúvida, nada se compara ao que senti, ao que Theo me fez sentir com seu desespero e falta de freio. Nunca me senti tão desejada e poderosa como na noite passada.

Suspiro e balanço a cabeça.

É incontestável que eu estou apaixonada por ele e, talvez, tenha tido a certeza disso quando me disse que, se fosse por sua vontade, ele não tentaria mais comprar o Hill. Pode parecer bobagem, mas foi o momento mais incrível que já tivemos juntos, porque ali, mesmo de um jeito estranho, eu soube que ele se importa comigo e que não sou apenas uma trepada ocasional. Talvez ele ainda não esteja apaixonado por mim como eu estou por ele, mas certamente sente algo.

Lembro-me do sexo detalhista que fizemos assim que chegamos do clube, dos momentos na banheira, no sofá da sala, debaixo do chuveiro e de novo na cama. O homem tem fogo e muito fôlego, devo admitir.

De manhã, realizei o sonho mais clichê da minha vida e fui preparar o café – na cozinha dele – usando a camisa que vestiu para ir ao clube comigo e tão-somente ela. Ganhei um sexo oral de-li-ci-o-so sobre a bancada da cozinha, tomei meu café e vim embora render a tia Do Carmo e liberá-la para seu final de semana no interior com o clube de costura.

— Ei, mamãe! — Tessa me chama da porta do seu quarto. — Eu acho que tem algo errado...

Assusto-me com sua palidez e as olheiras evidentes em seu rosto. Fomos até a pediatra esta semana, e a doutora Maria Lúcia me passou pedidos de exames e já prescreveu algumas vitaminas.

Corro até ela e, quando encosto em sua pele, constato a febre. Está muito, muito quente!

— Tessa, volte para a cama, eu vou pegar um termômetro e...

Não termino de falar, pois ela desaba no chão, e eu mal tenho tempo de segurá-la.

 

 

Odeio essa espera! Olho para o relógio e bufo, aguardando o resultado do exame de sangue que fizeram em minha filha há alguns minutos. Tessa dorme, já com a temperatura do corpo normalizada, ainda com o soro preso em seu braço.

Foi desesperador o que aconteceu mais cedo hoje. Não pensei duas vezes e a coloquei no carro, vindo direto para a emergência. Ela foi atendida ainda desacordada, medicada, colocada no soro e só acordou quando a temperatura corporal começou a baixar. Estava fraca demais, e o soro a ajudou muito.

Há quase uma hora colheram urina e sangue dela, e Tessa dormiu logo após isso. Minha menina está tão pálida que seus lábios parecem ressecados e arroxeados, e as olheiras estão fundas e muito escuras.

Seguro sua mão, nervosa, sem saber o que está havendo.

— Boa tarde. — Um médico entra no quarto. — A senhora é a mãe?

— Sou, sim. — Levanto-me. — Já sabem o que ela tem?

— Precisamente, não. Mas os exames indicam que seu corpo está combatendo uma infecção bem forte. Suas hemácias estão muito baixas, e o exame de urina retornou com nenhuma anormalidade.

— Então não tem um diagnóstico?

— Não com esses exames, precisaremos de mais alguns, mas não temos como fazer aqui.

Assinto, pois já tinha imaginado.

— A médica dela passou vários pedidos, e Tessa irá fazê-los na segunda-feira de manhã.

— Ah, que bom, então. — Ele sorriu e foi até ela, examinando-a. — A febre cedeu. Vamos mantê-la aqui por mais algumas horas em observação e depois liberá-la para voltar para casa. Não acho recomendável que ela permaneça aqui com suas defesas tão baixas.

— Está certo. E obrigada pelo rápido atendimento.

— É o meu trabalho. — Sorri agradecido e se despede.

Sento-me novamente ao lado dela, e o meu celular vibra com notificação de mensagem.

 

 

Mesmo achando legal, não consigo sorrir nem relaxar com a mensagem de Theo. Não respondo, e ele envia outra.

 

 

Respiro fundo e digito a resposta:

 

 

No mesmo instante ele me liga, e eu vou para o canto da sala de recuperação onde estou com minha filha.

— Oi, Theo.

— O que houve? Sangramento nasal de novo? — Ele parece preocupado.

— Não, febre alta — tento manter a voz firme para não desmoronar. — Quando cheguei aqui na emergência, ela já estava com 40 graus e desacordada.

— Me passa o endereço.

— Não precisa — respondo rapidamente, embora meu coração tenha falhado uma batida com a ideia de ter alguém aqui comigo. — Ela já deve ser liberada e...

— Sua tia está com você? — Nego. — Então me passa o endereço, que vou buscar vocês.

— Eu vim de carro.

— Dionísio pode levá-lo de volta ao Hill. Sua amiga ficou no comando do bar?

— Sim. — Lembro-me da preocupação de Manola. — Eu quase tive que obrigá-la a ficar por lá, pois queria vir para cá também.

— O endereço, Duda. Não quero vocês sozinhas aí.

Cedo e informo o local da unidade onde estamos, e ele desliga.

Não vou mentir que não me sinto consolada com a preocupação e emocionada com o apoio que ele está disposto a nos dar. Estou acostumada a não contar com muita gente para me auxiliar com Tessa. Tia Do Carmo é incrível, e Manola – mesmo com um parafuso a menos – adora minha menina. Além delas, nunca tive mais ninguém.

Tessa acorda, e corro até ela, querendo saber como se sente.

— Com fome...

Sorrio ante a resposta, aliviada – ao menos por hora – ao vê-la ganhando cor e mais força.

 

 

— Para onde estamos indo? — pergunto assim que Theo entra em uma rua que não conheço.

— Minha cobertura — informa parando em um farol. — Sei que Tessa deve estar acostumada, mas não acho conveniente que ela fique sobre o bar hoje. O som pode atrapalhar seu sono e recuperação.

Rolo os olhos.

— Temos acústica, sabia?

— Eu sei, mas ainda assim deve vazar um pouco para cima.

— Vaza um pouco — Tessa é quem revela. — Mas estou acostumada.

Ele volta a prestar atenção na estrada e não muda a rota.

— Theo, não temos como dormir na sua cobertura! Não temos nada conosco e...

— Pedi ao Dionísio que falasse com sua amiga Manola, e ela fez uma pequena mala para vocês duas. — Arregalo os olhos. — Por favor, eu ficarei mais tranquilo com vocês comigo.

Bufo com sua teimosia, mas concordo.

Pelo visto, estou conhecendo a teimosia, arbitrariedade e o controle de Theodoros Karamanlis, o CEO. Esse era um lado dele que ainda não tinha dissecado em meio a tantas camadas que esse homem parece ter.

Tessa tem um sorriso no rosto, provavelmente por poder conhecer a casa dele. Confiro sua temperatura novamente e relaxo por a febre não ter voltado, mas sei que, assim que passar o efeito dos remédios, ela deve voltar, afinal, há uma infecção sendo combatida.

Penso na infecção de garganta e que ela não deve ter sido curada a contento, por isso voltou mais forte. Precisamos fazer os exames o mais rápido possível, pois não quero ter em mente nenhuma doença grave, pois o simples pensamento me causa verdadeiro pavor. Minha filha é tudo para mim, tudo!

Entramos na garagem do prédio onde Theo mora, e Tessa, que passou a viagem toda deitada no meu colo, levanta-se com olhar curioso sobre o local onde ele vive. Retiro o cinto de segurança e saio a fim de ajudar minha filha a descer do veículo, mas Theo se adianta e pega a menina no colo.

— Obrigada! — agradeço emocionada.

— Tudo bem, essa mocinha aqui pesa igual a um passarinho! — Balança a cabeça. — Acho que você está precisando se exercitar mais e comer melhor.

Tessa arregala os olhos.

— Exercitar? Mas isso não é para emagrecer?

Theo ri a caminho do elevador.

— Bobagem, existe o exercício certo para cada coisa. Eu era tão magro que, se você me olhasse de lado, só enxergava uma linha com cabeça. — Tessa ri bastante imaginando o que ele descreveu, e eu seguro meu próprio riso, achando impossível que Theo já tenha sido assim. — Mas sabe por quê? Não gostava de fazer exercícios e ficava no meu tempo livre enfiado no quarto jogando videogame. Ah, saudade do Atari!

— Oh, meu Deus, meu irmão tinha um! — intrometo-me na conversa, já dentro do elevador. — Era uma briga feia lá em casa para jogarmos Pacman!

— Do que vocês estão falando?! — Tessa nos olha como se fôssemos E.T.s.

Theo e eu rimos juntos, e ele explica à minha filha que se tratava de um jogo.

— Mas, Duda, você não tem idade para ter conhecido um Atari!

— Desfrutei pouco, é verdade, porém, meu irmão amargou aquele Atari por muitos anos, pois papai não podia comprar um mais moderno. Eu já tinha uns oito anos quando ele ganhou um Nintendo. Gostaria de ter ficado com o antigo jogo. Tenho boas lembranças.

— Por que não ficou?

Suspiro triste e dou de ombros. A verdade é que, sim, guardei o videogame, mas, quando retornei da França, soube que meu irmão, no afã de conseguir dinheiro para alimentar o vício, vendeu-o a um colecionador, pois o nosso ainda funcionava e tinha os cartuchos. São marcas tão agridoces que carrego comigo, de lembranças boas e ruins sobre o mesmo objeto, que evito pensar nelas.

— E o que você fez para ficar assim tão forte? — Tessa volta ao assunto do corpo de Theo, e sorrio, gostando do timing dela.

— Comi muita proteína para crescer. Frango, bife, porco, cordeiro e muito peixe! Lá onde eu morava, comíamos peixe todo dia, além disso, eu devorava os vegetais no meu prato!

— Até brócolis? — Põe a língua para fora.

— Até brócolis! — Ele abre um sorriso tão afetuoso para ela que meu coração falha uma batida.

Sinto essa coisa totalmente estranha quando Theo interage assim com minha filha. Os dois juntos são tão lindos e se dão tão bem como nunca imaginei que pudesse acontecer. Sei que deveria estar sendo muito mais protetiva com relação a ela, não a deixar se envolver tanto, mas não consigo não adorar a amizade que os dois estão criando.

A porta do elevador se abre, e dou de cara com uma senhora de cabelos grisalhos presos em um coque e um sorriso caloroso.

— Bem-vindos! — ela nos cumprimenta.

— Vanda, essas são nossas hóspedes. — Tessa tem os olhos fixos na mulher, curiosa como ninguém. — Tessa e sua mãe, Maria Eduarda.

— Muito prazer! — Ela estende a mão para mim, mas eu a abraço.

— Eu amei a organização da sua cozinha, parabéns! — elogio-a, e Vanda sorri sem jeito. — É um prazer enorme conhecê-la, Theo disse que não consegue fazer nada sem a senhora por perto.

— Ah, ele disse, é? — Pisca para o patrão, que faz uma careta engraçada.

— Duda, você acaba de entregar o ouro ao bandido! — Faz cara de desolado para Tessa, e minha menina ainda comenta, com voz de reprimenda, que eu falo demais. Como é que é? — Já posso colocar essa prinkípissa32 aqui para descansar?

Ah, puta merda! Não sei do que ele chamou minha filha, mas nunca o ouvi falar em grego, e é totalmente sexy!

— Claro que sim! Dio acabou de entregar as malas delas.

Arregalo os olhos com a informação de Vanda. Então Manola arrumou mesmo nossas roupas!

Seguimos para um dos quartos do piso debaixo, e Theo acomoda Tessa na enorme cama já preparada, inclusive com travesseiros recém-afofados e um edredom muito fofinho. O ar-condicionado mantém a temperatura – que lá fora está comparável à do inferno – muito amena.

— Mamãe, eu quero tomar um banho — Tessa me pede assim que chego ao seu lado.

— Já tomou banho de banheira, Tessa? — Theo pergunta, e meu coração dispara.

Não sei como irei reagir ao ver minha menina dentro da mesma banheira na qual fizemos tantas sacanagens, mas relaxo quando ele abre a porta do banheiro da suíte, e uma versão mais simples da que ele tem na suíte máster aparece.

— Eu posso? — O sorriso dela é enorme.

— Claro! — ele responde. — E a Vanda ainda tem umas surpresas de colocar na água. — O filho da mãe me encara rindo. — É bem divertido.

— É como tomar banho em água com gás! — A governanta de Theo aparece portando uma daquelas bombas de banho. — Vou preparar seu banho.

Quando Vanda volta para o banheiro, Theo se aproxima de mim, abraça-me pela cintura e diz na minha orelha:

— Essa noite vou preparar seu banho também!

— Theo... — repreendo-o.

Ele me dá um selinho e depois fala com minha filha:

— Eu espero que você esteja se sentindo melhor, prinkípissa mou.

Tessa sorri e assente, e ele se despede dela com um beijo na testa.

— Estarei no meu quarto.

Suspiro assim que ele sai e escuto as risadas de Tessa e Vanda.

É, não consigo disfarçar, mas quem pode me julgar?

 

 

Saio do banheiro, após o banho, já com meu pijama posto e escuto uma leve batida à porta. Theo entra no quarto e sorri de leve ao ver Tessa dormindo.

— A febre voltou a ceder?

— Sim. — Dou de ombros. — Será assim até acharmos a infecção e administrarmos os antibióticos corretamente. O médico me passou um bem forte, e isso está ajudando, pois a temperatura não tem se elevado muito, mas ainda assim...

— Você precisa levá-la a um especialista.

— Sim, liguei para a médica dela, que me pediu para fazer os exames o mais rápido possível. Segunda-feira, quando o laboratório abrir...

— Posso pedir que venham amanhã. — Ele pega o celular. — Tenho conhecidos que são donos de um grande laboratório, e eu sempre colho minhas amostras em casa. — Cruzo os braços e levanto as sobrancelhas, e ele entende que eu o acho um esnobe. — Não, é mais por falta de tempo mesmo.

— Eles viriam até aqui em pleno domingo? — Ele assente. — Então, por favor, peça para que venham, eu agradeço. A doutora Maria Lúcia já havia me advertido que a maioria dos exames que passou não seria coberta pelo meu plano de saúde, então eu posso pagar todos de uma vez e fazer mais rápido.

— Não se preocupe com isso, Duda.

— Não! — Toco seu braço. — Theo, é minha filha, minha responsabilidade.

— Eu sei disso, mas quero fazer isso pela pequena. — Ele me abraça forte. — Eu gostaria de poder te ajudar mais, Maria Eduarda. Sei o quanto está preocupada com a saúde de Tessa, então me deixe fazer ao menos isso.

— Você tem ajudado muito já ficando ao nosso lado.

— Eu sei. — Bufa. — Hoje de manhã meu tio me ligou da Grécia. Meu avô piorou de uns dias para cá, e eu terei que ir para casa mais cedo do que imaginei.

Balanço a cabeça, compreendendo a situação dele, mas não deixo de sentir uma pontada de tristeza. Theo tem sido muito presente em minha vida durante todo esse mês e, principalmente nos dois graves incidentes com Tessa, foi meu apoiador.

Concordo em deixar que ele pague pelos exames e, depois de ver o nome do laboratório, sinto-me até aliviada, pois é um dos mais modernos e caros do país. Eu faria qualquer coisa pela minha filha, ainda mais nesses casos, mas como não sei como serão as coisas daqui para frente, manter minha pequena poupança é o sensato a se fazer.

— Quanto tempo você ficará fora? — inquiro, mesmo não tendo nada a ver com a vida dele.

— Três semanas, talvez mais — pela sua expressão e voz, percebo que ele não está muito contente com a viagem. — Não queria deixar vocês sozinhas durante todo esse tempo, mas quero que saiba que o que precisar, Duda, conte comigo.

— Obrigada!

Theo me beija cheio de carinho, passando a mão pelos meus cabelos, e eu me apoio nele, cansada depois de uma noite sem dormir seguida de um dia agitado e tenso como foi o de hoje.

— Você precisa dormir — ele constata. — Vá descansar, que eu fico aqui tomando conta dela. — Nego, mas ele insiste. — Eu ainda dormi nessa manhã e acordei perto do almoço, você, nem isso! Pode ir.

Mais uma vez escuto uma batida à porta, e Theo se separa de mim, pedindo para Vanda entrar.

— Tudo bem? — a governanta questiona olhando para Tessa.

— Sim, ela dormiu agora, sem febre.

A senhora entra no quarto.

— Graças a Deus! — Olha para mim e em seguida para o Theo. — Por que vocês dois não vão descansar e eu fico aqui com a Tessa?

— Não, eu estou...

— É uma ótima ideia! Duda não dorme há mais de 24 horas e deve estar exausta.

— Eu estou bem! — insisto.

— Maria Eduarda, quando Tessa acordar amanhã já estará bem melhor e com muita energia por ter passado o dia na cama — ela diz. Concordo. — Você precisará estar descansada para ficar com ela.

— Viu, só? — Theo aponta para mim. — Vanda criou duas crianças, sabe o que diz!

— E estão todos aí! Continuam me dando dor de cabeça, porque isso nunca passa nem quando elas crescem, mas estão cheias de saúde! — Pega minhas mãos. — Pode confiar em mim. Qualquer alteração, chamarei vocês dois.

O gesto dela me emociona, e eu a abraço de novo, agradecendo sua consideração.

Sigo para a suíte de Theo e o vejo desfazer a cama na qual passei a noite passada inteira acordada com ele, depois me deito. Ele se encosta em mim tempos depois, abraçando-me com força na posição conhecida como “conchinha”.

— Descansa, agapi mou. — Eu me aconchego melhor a ele. — Tudo vai ficar bem com a mikrí prinkípissa33.

— O que é isso que você a tem chamado? — pergunto sonolenta.

— Princesinha. — Ri. — Minha princesa.

Meu coração dispara ao ouvir suas palavras carinhosas.

— Eu amo você, Theo — declaro e adormeço sentindo um beijo no topo da minha cabeça.


“Eu amo você, Theo”

A voz sonolenta de Maria Eduarda ressoa na minha cabeça enquanto faço abdominais sem parar. Não costumo treinar no domingo, mas, depois da noite intensa que tive com ela, foi impossível me concentrar em qualquer coisa aqui no apartamento sem parar de pensar em tudo o que ocorreu durante as horas em que ela e Tessa ficaram aqui.

Depois da declaração de Duda, não consegui pregar os olhos. Fiquei na cama, imóvel, abraçado a ela, com a cabeça a mil por hora. No meio da noite, levantei-me, fiquei um tempo na varanda olhando para a vista de São Paulo, depois fui até o quarto de Tessa.

Vanda estava acordada e tinha acabado de aferir a temperatura da pequena.

— Está normal. — Ela suspirou. — Theodoros, não gosto disso. Essa menina tem algo.

Senti um frio cruzar minha coluna de cima a baixo.

— Por que você acha isso? Duda me disse que ela esteve doente antes de viajar para a praia, infecção na garganta.

Ela negou.

— Não parecem ser casos isolados, as infecções, o sangramento, o desmaio...

— Que desmaio? — perguntei surpreso.

— Duda me contou que Tessa desmaiou na praia e que por isso decidiu ir para lá. — Ela aponta para uma pasta. — E esses exames... Eu criei duas crianças, e nunca nenhum médico me passou exames tão específicos assim.

Olhei para Tessa, preocupado. A menina e dona Do Carmo eram o que restara da família de Maria Eduarda, e eu já tinha notado a importância que elas tinham em sua vida. Nada de mal podia acontecer com Tessa, porque eu não sabia como Duda se recuperaria.

— Amanhã o pessoal do laboratório que faz minhas análises virá aqui para colher as amostras da menina — informei a Vanda, que abriu um enorme sorriso. — Vamos torcer para que seja apenas uma virose.

— O senhor gosta muito delas. É uma novidade ter uma criança aqui, uma boa novidade.

Não respondi, apenas refleti sobre o que ela disse e tive de concordar. As coisas estavam ficando cada vez mais diferentes comigo. Primeiro, a obsessão pela Maria Eduarda, a falta de libido com outras mulheres, então viera o carinho pela Tessa, a preocupação com sua saúde.

Eu nem me lembrava mais como era ter uma criança por perto, mas Tessa me fazia recordar tanto de Kyra, de como eu a adorava, a única neta Karamanlis, a princesinha da família já tão torta naquela época, que pensei ser esse o motivo de eu gostar tanto dela.

Dispensei a Vanda para que dormisse e fiquei velando o sono de Tessa. Acabei adormecendo em algum momento e, quando acordei, dei de cara com um rosto redondo, risonho, com covinhas e olhos verdes.

Meu sorriso se abriu involuntariamente ao vê-la, olhinhos brilhantes e um rosto mais corado.

— Bom dia! — ela me cumprimentou com sua voz doce e sonolenta.

Não resisti e beijei sua testa, sentindo o cheiro doce do perfume dos seus cabelos, e ela me abraçou apertado.

— Bom dia, mikrí prinkípissa! — Ela gargalhou e perguntou do que eu a havia chamado. — Princesinha.

— Ah... Gostei disso. Me ensina a falar?

Passei alguns minutos me divertindo com as tentativas dela de acertar o sotaque grego, e, quando Duda apareceu para informar que o pessoal do laboratório havia chegado, encontrou-nos em meio a risadas.

— Do que vocês estavam rindo? — perguntou quando Tessa foi ao banheiro.

— Sua filha queria aprender grego. — Abracei-a e lhe dei um beijo na testa, ainda com sua voz e a declaração que me fizera ressoando em meus ouvidos, agitando meu coração.

— Não lhe ensinou palavrões, não é?

Ela acertara em cheio, mas neguei, ou melhor, tentei negar que estava ensinando a pequena a driblar a mãe e evitar perder dinheiro do seu cofrinho do palavrão. Obviamente não fui muito convincente, e ela pôs as mãos na cintura e me repreendeu com o olhar.

Foi um começo de manhã muito divertido, porém, depois, senti toda a tensão e dor ao acompanhar a realização dos exames da menina.

Nunca vi tantos tubos de sangue em minha vida. Eles mal enchiam um e já colocavam outro para encher e assim foram formando uma pilha de tubinhos, todos etiquetados, enquanto eu sentia meu coração apertado por causa de Tessa. A menina se mostrou muito corajosa, apenas olhava para a mãe com os olhos rasos de água, mas não chorava, mesmo com a demora e o acesso doloroso em sua veia.

Depois Duda, quando eles saíram do quarto, abraçou-a forte, e eu acompanhei o consolo oferecido para a menina como se tivesse levado um soco na boca do estômago. As palavras doces de Duda, garantindo a ela que tudo ficaria bem, as lágrimas silenciosas que escorreram dos olhos verdinhos de Tessa e o olhar que ela me deu, de soslaio, cheio de medo, causaram-me um enorme nó na garganta.

Lembranças da minha infância me acertaram em cheio, e percebi que nunca tive isso! Nunca vi de tão perto essa relação familiar saudável e “normal”.

Foi naquele instante que eu soube que queria que meus filhos fossem criados assim, sabendo que tinham amor, apoio, consolo em seus pais. Nunca colocaria uma criança neste mundo para passar o que meus irmãos e eu passamos na infância. Não é exagero; claro que nunca nos faltaram coisas materiais, dinheiro e tudo o que ele pode proporcionar, mas não tínhamos a mínima noção de afeto.

Fiquei vendo as duas ali, juntas, dividindo a dor, a apreensão, mas cheias de esperança. Duda afagava os cabelos de Tessa e tentava segurar as lágrimas para não assustar a criança. Foi então que eu notei que aquela mesma mulher que estava ali, cuidando e amparando sua filha de forma emocionante, dissera que me amava.

Compreendi, naquele momento, que não eram palavras de agradecimento ou jogadas no calor de um momento. Maria Eduarda não era assim, nunca diria algo que não estivesse sentindo. Ela realmente me amava, e eu não sabia o que fazer!

Depois de tomarmos o café juntos, levei-as até o Hill, onde Manola as aguardava. Antes de sair do carro, porém, Maria Eduarda resolveu tocar no assunto:

— Sobre o que eu te disse ontem... — Parecia sem jeito. — É o que sinto, mas não te obriga a nada, apenas aconteceu. Desculpe se...

— Não faça isso — interrompi-a. — Não peça desculpas por me amar. Realmente acho que não mereço isso, mas é a melhor coisa que já me aconteceu! — Ela sorriu. — Só não quero vê-la machucada.

O sorriso morreu.

— Bom... ninguém pode prever o que o futuro reserva.

Tentei lhe explicar que eu pouco sabia sobre esse sentimento, mas ela logo se despediu agradecendo por tudo e saiu do carro, seguindo a filha e Manola.

Voltei para a cobertura e dei tantas voltas dentro do meu quarto que poderia ter deixado marcas no assoalho de madeira. Passei a me exercitar e, enquanto isso, tentei avaliar esse mês que passamos juntos, vendo-nos, nossas noites, os dias com Duda e Tessa e tudo o que isso significa para mim. Claro que ainda tinha a promessa ao meu avô, o herdeiro que ele tanto me pede e Valentina.

— Merda! — xingo alto, tentando expurgar esses sentimentos e pensamentos, e abraço minhas pernas, completamente exausto do exercício.

— Acho que a idade está pesando para você de verdade! — escuto a voz debochada de Frank Villazza e levanto a cabeça.

O carcamano está parado na entrada da academia, com uma xícara de café na mão e o maldito sorriso debochado na cara.

— Começou a invadir propriedades, Frank?

Ele gargalha.

— Poderia ser um bom divertimento, mas não. Sua governanta autorizou minha entrada. — Toma mais um gole do café. — Madonna Santa, que café saboroso!

— É, eu sei... é o meu café! — resmungo ao ficar de pé.

— Que humor azedo, Karamanlis! O que foi? Acabou seu whey?

— Vá se foder, Frank! — rio assim que falo isso. — O que você veio fazer aqui?

— Isabella saiu com a irmã e as crianças, então fiquei à toa e...

— Sozinho. — Cruzo os braços. — O solteirão Frank Villazza não consegue mais ficar sozinho!

— É, não consigo, mas, se soubesse que você estaria tão babaca, teria ido até a casa do Hal, afinal, ele tem mulher e filhos como eu, seria mais solidário!

Não respondo, sentindo pela primeira vez a cutucada dele no local certo. Antes, eu agradeceria por não ter sido domesticado, mas agora...

— Eu não sei se seria um bom pai — revelo, e Frank arregala os olhos. — Não sei se seria um bom marido.

— O que aconteceu no passado não pode definir para sempre quem você é — Frank não titubeia em dizer, pois sabe de toda minha história. — Ninguém é obrigado a cometer os mesmos erros e a repetir histórias de vida que não são suas. Você não é seu avô, nem seu pai, tem sua própria escolha, pode decidir o que quer ser e como.

Não é a primeira vez que conversamos sobre isso. Eu vi a mudança acontecer na vida dele, tudo o que sua família sofreu nos últimos anos e como eles se amaram e se apoiaram a cada momento. Sempre usei essa justificativa, de que Frank conseguiu amar e ser um bom pai e companheiro porque tinha o exemplo certo.

Será possível uma pessoa zerar seu histórico familiar ruim e ser diferente daquilo que teve como exemplo a vida toda? Será que eu conseguiria ser assim?

— Vai me contar o que está acontecendo? É seu avô ainda colocando pressão?

Dou de ombros e seco um pouco do suor com a toalha.

— Isso deveria ser o que me preocupa, mas a verdade é que estou confuso.

Frank perde o semblante debochado e suspira.

— Quem é ela?

Balanço a cabeça.

— Maria Eduarda Hill. — Meu amigo arregala os olhos. — Eu sei, completamente inadequada para...

— Vaffanculo! Quem aqui falou em adequação ou inadequação?! Você acha que eu era adequado para Isabella? Ou que Nicholas era para... — Faz careta. — Exemplo ruim. — Gargalho com a implicância costumeira dele com o cunhado. — Enfim... a questão não é essa. O que você precisa saber é o motivo pelo qual, mesmo a achando inadequada, não consegue deixar de querê-la.

— Eu não sei, porra! — digo exasperado, encostando-me contra um aparelho de musculação. — Eu já tive parceiras incríveis, com afinidade, amizade e sexo bom. Já tive fodas loucas, memoráveis, do tipo que você lembra delas quando quer se excitar ou apimentar uma mais ou menos. — Frank concorda. — Mas isso que eu tenho com Maria Eduarda é muito mais do que isso tudo junto.

— Dio Santo! — Ele ri. — Você já contou a ela sobre a promissória?

Nego.

— Vou desistir disso. Já não faz mais sentido, mesmo eu ficando ou não com ela. — Bufo. — Mandei um memorando para o jurídico interromper a ação de execução.

— Isso não pode gerar algum problema? Afinal, era uma das grandes metas da Karamanlis conseguir aquela quadra toda, e desistir sem mais nem menos...

— Dei algumas justificativas, mas é claro que nenhuma delas é consistente o suficiente. Não posso fazer isso com a Duda.

— É melhor contar, Theo — aconselha-me. — Conseguindo ou não, conte.

— Sim, devo isso a ela! Duda é tão sincera e transparente em tudo o que faz que, mesmo não indo em frente, preciso dizer que temos a promissória.

— É o certo a fazer, e se prepare, vai ter que implorar muito seu perdão por ter omitido isso dela. — O canalha ri. — Quem diria! A mosca do amor picou um Karamanlis!

Não respondo nem que sim, nem que não, mesmo porque nem mesmo sei se é esse o caso. Sim, eu gosto dela, adoro estar com ela e não quero que isso acabe agora, mesmo correndo o risco de não conseguir cumprir a promessa ao meu avô. Duda é uma mulher muito diferente de todas as outras que já conheci. Não temos jogos um com o outro, sou direto ao dizer tudo o que quero, e ela faz o mesmo. Ontem ela disse que me amava, mas nem por isso tentou forçar algo, pelo contrário, tomou a responsabilidade do que sente para si mesma para me tranquilizar.

Não estou tranquilo. Não quero que ela sofra e, mesmo sentindo por ela o mesmo que sente por mim, acho que ainda posso foder com tudo e acabar magoando-a. Ai, caralho, como assim sinto por ela o mesmo que sente por mim?!

Arregalo os olhos, e Frank começa a gargalhar, percebendo que eu me dei conta de que amo a cozinheira. Não é possível! Como isso foi acontecer? Como não vi isso chegar? Eu já estive apaixonado antes – ou pensei estar –, e nada se compara ao que sinto pela Duda.

— É, meu amigo! — Frank cruza os braços e sorri. — Lembro-me bem quando me dei conta de que estava de quatro pela Bella. — Balança a cabeça. — No meu caso foi depois de um pé na bunda, então espero sinceramente que você tenha mais sorte que eu nisso.

— Você entende a confusão que isso vai trazer para minha vida? Pappoús...

— Ah, Theo, quantos anos você tem, stronzo? Eu entendo o compromisso familiar, entendo muito, mas é a sua vida, não é um negócio. Não seria justo com você e muito menos com Maria Eduarda que outra pessoa decidisse o destino de vocês.

— Eu sei... — Ponho a mão na cabeça. — Preciso resolver tudo isso: a promissória, Valentina — Frank faz careta —, a promessa ao meu avô.

— Boa sorte! — Frank sorri de lado. — Que tal agora, que já te fiz o enorme favor de te clarear as ideias, você ir tomar um banho e me convidar para almoçar?

— Você se acha, Frank! — Jogo a toalha no cesto de roupa suja. Ele ri e se afasta quando passo perto dele. — Naquele seu hotel não tem comida, não?

— Tem, sim, caspita34! — Fica sério. — Mas eu não quero almoçar sozinho.

Paro e abro um enorme sorriso.

— Está carente! — Abro os braços e avanço até onde ele está.

Frank recua de meu abraço suado e xinga todo o repertório italiano antes de começar o português. Gargalho e apenas bato em suas costas.

— Vou para o banho. Pelo menos prepara uma boa dose de uísque para compensar o almoço — provoco-o.

Ele ri.

— Te trouxe uma garrafa de presente.

— Ah, eu gosto muito da sua companhia!

Frank fica sério, mas vejo que segura o riso.

— Bugiardo35!


A segunda-feira sempre foi meu dia favorito da semana. Era quando eu ia para o escritório e não pensava em mais nada, só no trabalho. Pensava assim desde quando comecei a frequentar a empresa, ainda na Grécia, durante a adolescência. Eu podia ver mais pessoas, conversar, aprender e me sentir útil, não mais aquele peso morto deixado para trás pelos pais.

Agora as segundas têm outro significado ótimo! Folga de Maria Eduarda e a possibilidade de eu estar com ela. Sei que falamos que iria ficar difícil depois da volta de Tessa das férias, mas não, agora eu já a conheço e quero também estar com a menina, então continuo adorando esse dia da semana.

Hoje, antes de vir para a empresa, mandei mensagem para Duda perguntando sobre a saúde de sua filha e como foi a noite de ontem no Hill. Recebi a resposta em seguida. Ela não trabalhou para tomar conta da menina. A tia dela voltou do passeio que estava fazendo, mas ainda assim Maria Eduarda preferiu tomar conta de Tessa pessoalmente, e hoje é seu dia de folga do bar.

 

 

Ela, teimosa como ninguém, respondeu em seguida:

 

 

Ri, pois não era isso que eu tinha em mente.

 

 

 


Gargalhei ao me lembrar do dia em que ficamos falando de comida e Tessa se mostrou uma conhecedora nata da área.

 

 

Rio ao recordar essa troca de mensagens e desligo meu notebook, preparando-me para ir para casa, trocar de roupa e passar pelo Bixiga antes de ir encontrar Duda e Tessa. Estou bem surpreso com essa vontade de ter uma noite familiar. Nunca pensei que isso aconteceria, porém, não me vejo mais sem interagir com a pequena Tessa. A menina conquistou meu coração tanto quanto sua mãe.

— Chefe, chegou um memorando do jurídico. — Rômulo põe o impresso em minha mesa, fazendo meu sorriso de satisfação morrer imediatamente. — Coloco na pauta da próxima reunião?

Leio o documento e travo o maxilar, apertando os dentes de raiva. Sabia que Kostas não ia aceitar cancelar o processo da promissória sem briga, só não esperava que ele fosse tão rápido em acionar os membros do conselho e conseguir uma indicação para a pauta da próxima reunião sobre o assunto.

— Não. Como vou tirar férias e gostaria de estar presente nessa discussão, faça um memorando para todos os membros explicando que, depois de minha volta, faremos uma extraordinária para que eu apresente explicações.

— Certo. — Rômulo parece tenso. — Eu posso adiar minhas férias? Não gostaria de sair da Karamanlis neste momento e...

— Não. — Levanto-me. — Tire suas férias e relaxe, Rômulo. Nada vai acontecer!

Pelo seu semblante, posso perceber que não o convenci.

— Mas... e se eles ficarem tramando contra o doutor? Eu poderia ficar e ir informando...

— Não! Fodam-se eles, Rômulo. — Meu assistente arregala os olhos. — Não vamos alterar nossos planos por causa do meu irmão babaca. Você tire suas férias, e eu tirarei as minhas. Quando voltarmos, nos inteiraremos do que está acontecendo.

— Está certo! Espero que o doutor faça boa viagem! Não virá à empresa amanhã, não é?

— Não, amanhã vou resolver umas coisas antes de embarcar à noite para Atenas. Não se preocupe, Rômulo, vai ficar tudo bem por aqui em nossa ausência. Millos irá garantir isso.

Saio da sala parecendo confiante, mas a verdade é que sei o quanto Kostas pode ser ardiloso. Ele quer me tirar da presidência, isso já ficou claro, mesmo sabendo que não irá ser indicado para ocupar o cargo, e acabei de fornecer munição para que ele conquiste seu intento.

Ligo para Millos, mas meu primo não atende.

— Millos, quando pegar esse recado, me liga. Preciso falar com você antes de viajar.

Merda!

 

 

— Uno! — Tessa grita e mostra sua única carta na mão.

Eu rio, e Maria Eduarda geme, com as mãos repletas de cartas.

Cheguei com duas caixas de pizzas – as maiores que já vi na vida – com seis recheios diferentes, como fui instruído pela Duda. A salgada foi dividida entre marguerita, portuguesa, pepperoni e quatro queijos; já a doce, entre banana com canela e brigadeiro.

Não foi nada surpresa eu chegar ao apartamento dela e encontrar, além de Tessa e dona Do Carmo, a tal Manola – a amiga ameaçadora de Duda –, mas confesso não ter me preparado para encontrar o Dionísio aqui.

Meu motorista – de folga, porque eu o liberei para vir até a casa da Maria Eduarda – estava todo arrumado e perfumado para sair com a Manola. O homem de quase 2m de altura, grande e forte como um armário, ficou sem jeito quando me viu, mas todo derretido enquanto a ruiva bravinha falava com ele.

— O que eu perdi? — perguntei a Duda quando eles saíram para o encontro.

— Sábado, quando você o enviou para pegar roupas minhas e de Tessa, ele conheceu a Manola. — Deu de ombros rindo. — Ontem à noite ele veio ao Hill e a convidou para sair.

— E hoje o Hill não funciona...

— Sim! Você vê problema no seu motorista sair com minha amiga?

Arregalei os olhos e neguei.

— Não, só fiquei surpresa. Manola é um tanto intimidadora, e Dio, além de motorista, é um segurança daqueles bem sisudos. — Ri. — Ele foi fuzileiro naval, é todo certinho e engessado, não sei se combina com sua amiga. — Sussurrei no seu ouvido: — Ela parece meio doida.

Duda me deu um tapa no ombro.

— Ele pode ser certinho e sisudo no trabalho, mas, convenhamos, não está saindo com ela para dirigir ou protegê-la. — Ela ergueu aquela sexy sobrancelha, e tive uma ereção instantânea. — Além dos mais, acho que eles combinam, sim. Manola é linda, ruiva, delicada e tem muita personalidade, e ele é todo grandão, mas os olhos brilham quando fala com ela.

— Os olhos de Dio brilham? — Gargalhei e tomei outro tapa. — Tudo bem, não tenho nada a ver com o que ele faz nas folgas... mas espero que saiba onde está entrando, porque ela já me disse que sabe manipular uma faca muito bem.

— Ela disse, foi? — Aproximou-se de mim. — Eu também sei, Theodoros Karamanlis. — Olhou para trás para conferir Tessa e sua tia arrumando a mesa e segurou meu pau descaradamente. — Mas prefiro manipular outra coisa agora...

— Safadinha... — Beijei-a, e ela me abraçou apertado.

Depois disso ficamos concentrados em detonar toda a quantidade de pizza que eu trouxe. Duda e eu dividimos uma garrafa de vinho, enquanto Tessa e dona Do Carmo tomavam Coca-Cola.

Ouvi, divertido, as histórias do passeio da tia dela com seu clube de costura, permeadas de fofocas picantes de artistas e muitas aventuras. Tessa lamentou ter perdido o primeiro dia de aula, mas me contou que uma amiga foi visitá-la e contou todas as novidades da turma.

O tempo todo eu estive aqui à vontade, curtindo um programa que nunca poderia imaginar que gostaria de fazer, sem glamour, sem exposições, uísque ou música clássica tocando ao fundo. Nessa casa tão simples, com essas pessoas, eu me senti em família.

Volto à realidade quando Duda coloca sua carta sobre o monte e me dá a opção perfeita de virar o jogo. Segundo o que me explicaram das regras, posso combater uma carta que manda o próximo jogador comprar mais duas jogando uma igual – não importa a cor – e, além de não precisar comprar, ainda obrigo o próximo jogador a comprar mais quatro cartas (a soma da carta que combati e da minha). Tessa é a jogadora que vem depois de mim, e ela, que só tem uma carta, ainda tem os olhos brilhantes de quem não consegue esconder a vitória iminente.

Olho para minha mão, ainda procurando saber o que fazer, se devo deixá-la ganhar ou estender o jogo por mais algum tempo, gritando eu mesmo o “uno” dessa vez. Minha decisão é tomada por causa de um bocejo. Dou de ombros e compro as duas cartas, fingindo que estou chateado por isso. Dona Do Carmo volta a bocejar e toma um susto quando Tessa põe sua última carta na pilha e comemora a vitória.

— Eu venci! — Ela puxa a caixa da pizza. — Sou a dona do último pedaço de pizza!

— Filha, tem certeza que aguenta? — Duda pergunta, rindo de sua alegria ao pegar o prêmio.

— Não. — Faz careta. — Mas é minha, e posso fazer o que eu quiser, não é? — Todos concordam, e Tessa estende o pedaço de pizza para mim. — Eu quero dar meu prêmio para o Theo!

Ah, merda!

Pego a pizza com um nó na garganta, emocionado por ela ter me escolhido para receber seu prêmio, e dou uma mordida na fatia, mesmo sem nenhuma vontade de comer mais.

— Obrigado, Tessa! É minha favorita! — Mastigo devagar, e ela me dá um abraço.

— Eu sabia que você queria mais! — diz baixinho no meu ouvido.

Ah, porra!

Como resistir a isso? Abraço-a de volta bem forte, sentindo como se alguém espremesse meu coração e o aquecesse ao mesmo tempo. Eu adoro essa menina! Ela me conquistou totalmente!

— Tessa, você está deixando o Theo roxo por falta de ar. — Maria Eduarda ri. — E não o está deixando comer.

— Ah, é mesmo! — Ela salta para longe e bebe mais um gole de seu refrigerante. — Come tudo, Theo!

Rio sem jeito e tiro mais um pedaço da pizza, obrigando-me a mastigar para que ela fique feliz comigo. É... já estou fazendo tudo por ela!

— Acho melhor irmos dormir — dona Do Carmo diz para Tessa. — Amanhã você retorna ao colégio.

— Theo pode me pôr na cama hoje?

Duda, que está bebendo um gole de seu vinho, tem um pequeno engasgo.

— Tessa, ele ainda está come...

— Tudo bem — interrompo-a. — Termino de comer enquanto ela escova os dentes e depois a coloco para dormir. Pode ser?

Duda abre um enorme sorriso e assente, e Tessa vai correndo até o banheiro.

— Bom, eu também já vou! — dona Do Carmo se despede. — Boa noite, crianças, não façam muito barulho ao jogar... — Maria Eduarda fica vermelha, e eu sinto a pizza agarrar na garganta. — Eu me referia ao Uno! — Aponta para as cartas. — Mas, pelo visto, vocês não querem mais jogar cartas...

—Tia! — Maria Eduarda soa mortificada.

A senhora ri e acena um tchau antes de entrar em seu quarto e fechar a porta. Duda tampa o rosto com as mãos, e eu me levanto para ir até ela e beijá-la, mas Tessa sai do banheiro e me pega pelas mãos.

— Vamos lá, Theo! — Puxa-me. — Você sabe cantar alguma coisa? Há muito tempo mamãe não canta para eu dormir, mas, como é sua primeira vez hoje, eu acho que seria um bom jeito de começar, porque você não deve saber contar histórias, não é? — Ela toma fôlego rapidamente. — Você não tem filhos? Nem sobrinhos?

— Tessa! — Duda a repreende.

— Não, Tessa — respondo-lhe assim que entramos em seu quarto em tons de rosa e azul. — Ainda não tenho filhos, mas estou pensando em ter alguns.

Ela fica séria e me encara.

— Com a mamãe?

Ai, porra!

Respiro fundo.

— Talvez. — Sorrio. — Ainda estamos nos conhecendo melhor.

Ela olha para suas mãos.

— E eu? — sua voz temerosa corta meu coração.

— Você já é prinkípissa mou, lembra? — Ela sorri e aquiesce. — Pronta para dormir?

Ela pula na cama, e eu a cubro com o lençol. O ar-condicionado do quarto dela funciona, e o ambiente está fresco. Tessa agarra um bichinho velho e surrado, e eu imagino que ele deva estar há muitos anos com ela, que talvez a tenha acompanhado desde bebê até os dias de hoje.

— Vai cantar o quê?

Boa pergunta! Nunca conheci nenhuma cantiga de ninar. Não tenho lembrança alguma sobre como é cantar para alguém dormir, mas penso que deva cantar algo relaxante e doce.

— I see tree of green, red roses too, I seem the bloom for me and you. And I think to myself: what a wonderful world!36 — Tessa sorri, ajeitando-se no travesseiro, e eu suavizo ainda mais a voz: — I see skies of blue and clouds of white, the bright blessed days and dark sacred nights, and I think to myself: what a wonderful world!37

Continuo a canção interpretada por Louis Armstrong, e, antes que eu chegue ao final dela, Tessa já está ressonando baixinho.

— É uma bela escolha de canção de ninar! — Duda comenta, encostada ao batente.

Sorrio sem graça e me levanto da banqueta em que me sentei há pouco, enquanto cantava.

— Estive em dúvida entre essa e Somewhere over the rainbow. — Ela ri, e eu olho em volta, notando as dezenas de quadros com fotos da menina. — Achei que talvez ela conhecesse essa última e que por isso a atrapalharia a dormir.

— Provavelmente ela conhece. No curso de inglês, ensinam muitas músicas.

Começo a caminhar para a porta, mas algo sobre a escrivaninha de Tessa chama minha atenção. Pego o porta-retratos na mão, sentindo meu corpo inteiro gelar. Tessa, ainda bebê, mama tranquila em Duda, que está de costas para a câmera, e vejo poderosos cabelos cor-de-rosa presos em um coque

Pego a moldura seguinte e a vejo nitidamente agora, de frente, rindo muito com uma pequena Tessa também usando cabelos coloridos. A história que ela me contou sobre a visita à Grécia com um grupo de amigas começa a se misturar com a de uma mulher sexy dançando em uma boate de Zakynthos, cabelos pintados de rosa ondulando junto ao seu corpo.

Não!

Ponho o porta-retratos com força sobre o móvel e encaro Duda, tentando puxar alguma lembrança de anos atrás, algum reconhecimento de seu rosto.

— Cabelos cor-de-rosa? — pergunto, tentando me conter.

Ela ri, divertida.

— Pois é, de tempos em tempos Tessa e eu colorimos os cabelos e...

— Por que você não disse? — Duda arregala os olhos como se não tivesse entendido. Olho para a menina, dormindo tranquila em sua cama, e, para não a acordar, caminho até sua mãe e a pego pelo braço, levando-a para seu próprio quarto.

— Theo? — Duda questiona.

— Porra, Duda, que merda de jogo é esse?! — Perco a paciência.

— Jogo? Do que você está falando, pelo amor de Deus?

Não acredito que não descobri a verdade antes! Porra, estava na minha cara o tempo todo! Ela deu várias dicas durante esse tempo que ficamos juntos. Claro! Falou de Zakynthos, do grupo de amigas, dos gregos... Merda!

— Por que não me disse que nós já nos conhecíamos!? — Ela fica séria. — A boate, Duda, na Grécia, lembra-se? Frank e eu nos juntamos ao seu grupo, você dançou comigo, e nós trepamos como doidos dentro da porra de um banheiro!

Maria Eduarda fica branca como cera e se apoia contra o aparador do quarto.

— Não... — ela nega, mas, pelo seu rosto, vejo que é verdade.

— Por que o jogo? Por que não me disse que era você? — Ando de um lado para o outro, confuso, sem entender como essa coincidência aconteceu. — Nós estávamos bêbados demais, eu me lembro pouco da noite, tenho flashes do que fizemos no banheiro e...

— Eu não sei do que você está falando... — sua voz está trêmula e nervosa.

De repente uma ideia passa pela minha cabeça. Quando nos conhecemos na Grécia, eu já estava assumindo a Karamanlis, acompanhando o final da transição sob a direção do meu pai e assumindo suas contas. Talvez, na época, ela não soubesse quem eu era, mas, quando me reencontrou naquele restaurante...

Paro de andar e a encaro.

— Você se lembra, não é? — Vou até ela. — Se lembrou quando nos reencontramos. — Mais uma vez ela nega com a cabeça. — Naquele restaurante, você já sabia que eu era o homem da boate, por isso puxou assunto.

— Theo...

Rio.

— Eu só não entendo por que não disse! Achou mais fácil fazer essa encenação de “eu detesto você!” a me dizer a verdade? Para quê? Fodemos gostoso daquela vez, poderíamos repetir a dose novamente! Mas você queria mais, não é? Não queria somente uma noite, queria me ter nas mãos... — Rosno de raiva. — Como eu caí como um pato! — Rio e não me sensibilizo com as lágrimas dela. Achava que Duda era sincera, mas percebo que é só mais uma manipuladora! — Esse jogo de gato e rato comigo funcionou bem, não é?

— Sai daqui... — Ela limpa as lágrimas.

Duda caminha para fora do quarto, mas a seguro pelos braços antes que chegue à porta da sala.

— O quê? — Rio. — Achou que fazendo um joguinho de moça recatada, fugindo de mim, ficando vermelha quando eu dizia que queria te foder, iria me conquistar? — minha voz soa baixa e irritada, mas não transmite nem mesmo um pouco do que sinto. — Fala alguma coisa! Explica alguma coisa!

Ela se solta e se afasta de mim.

— Eu não sei do que você está falando! — Ela treme inteira. — Vai embora, Theodoros!

Xingo e abaixo a cabeça, tentando me controlar para não a sacudir e a obrigar a falar a verdade. Eu não entendo nada! Não compreendo qual era o jogo, o porquê de ter escondido isso de mim e de ainda estar negando.

Duda caminha até a porta e a abre.

— Sai.

— Eu só quero entender, Duda. Só preciso saber por que não me disse a verdade!

— Não tenho nada a te dizer. — Ela ainda continua pálida, mas tem algo em seu rosto, uma expressão determinada que nunca vi antes. — Saia.

Faço o que ela pede, tremendo de raiva, sentindo-me usado, ultrajado, sabendo que há algo nessa história toda que ela não está me contando. Tenho certeza de que Duda é a mulher da boate; a história e a foto comprovam.

— Sinto informar... — encaro-a antes de sair — mas o jogo acabou.

Ela não diz nada, e o único som que escuto ao sair do apartamento é o da porta batendo com força.


Isso só pode ser um pesadelo!

Minhas pernas trêmulas não conseguem sustentar meu corpo, e eu me abaixo devagar, arrastando as costas contra a porta de madeira, ainda ouvindo os passos de Theo descendo as escadas correndo.

Que brincadeira é essa?

Uma conversa que deve ter durado cinco minutos, mas que destruiu tudo e me deixou em pânico total. Como uma noite tão perfeita pôde acabar desse jeito?!

Theo se mostrou um homem completamente diferente do que eu havia imaginado. Nunca poderia supor que ele teria tanta intimidade e carinho com a minha filha, que conviveria com minha tia e se integraria à nossa família como o fez.

No sábado, quando ele nos levou até sua cobertura, cuidou de nós duas com preocupação e zelo, incluindo-nos em sua vida. Foi tão especial que eu tive que dizer a ele como me sentia. Não foi por gratidão ou qualquer coisa do tipo, eu realmente estou apaixonada por ele, de forma que nunca senti com mais ninguém, nem mesmo com Jean-Pierre, o homem com quem pensei em me casar na França.

Soluço ao pensar em todos os sonhos que já estava, mesmo não o devendo fazer, cultivando acerca de nossa relação. Eu sentia que Theo também não era indiferente a mim, não só no sentido carnal, mas em suas emoções. Por vezes notei seu olhar perdido, tentando entender o que estava acontecendo.

Amor! Era o que estava acontecendo conosco.

Agora já não importa. Ele acha que eu o enredei em alguma espécie de jogo, que eu sabia quem ele era desde o começo, que usei a atração que sentíamos um pelo outro para conseguir fazê-lo desistir do Hill. Rio, desgostosa, ao pensar que, nesse momento, ele me compara a uma puta que vende seu corpo em troca de algo.

— Minha filha... — Tia Do Carmo toca meu ombro, e eu a encaro.

Sua expressão preocupada não me passa despercebida, e tento juntar o resto de forças que tenho e me colocar de pé. Seco as lágrimas, mesmo querendo chorar muito mais, consciente de que tenho algo muito mais importante para proteger do que os cacos do meu coração.

— Ele foi embora. — Minha tia arregala os olhos. — Acabou.

— O que houve? — sua voz demonstra surpresa e apreensão. — O que ele fez para deixá-la assim?

— Não era para ser, tia. — Dou de ombros. — Estou chateada, mas vai passar.

— Duda... Minha filha, eu te conheço. E posso não entender nada de relacionamentos, afinal, nunca tive um, mas posso ver como vocês dois estão apaixonados, é nítido!

Seguro um soluço e engulo o choro.

— Não importa. Isso agora não importa mais.

Sigo para o quarto, e ela fica parada no meio da sala, sem entender o que está acontecendo. Pois bem, também não entendo muita coisa, mas a decisão já está tomada: ficar longe de Theodoros Karamanlis.

 

 

Acordei bem cedo hoje e fiz questão de acompanhar Tessa até o colégio, conversar com a professora e deixar todos os meus telefones para que entre em contato comigo caso algo aconteça.

Ainda vai demorar um tempo para saírem os resultados dos exames, e por isso mesmo estamos todos com muita atenção a qualquer alteração que ela possa ter.

Voltei da escola, dispensei o almoço que minha tia preparou e fui adiantar as coisas no Hill. Por conta das férias e da saúde de Tessa, fiquei pouco no restaurante, então preciso me inteirar de tudo. Permaneci em minha sala, onde estou até agora, vendo os balanços de caixa, pagamento de fornecedores, e, com orgulho, li o bilhete do Leonan informando que não há mais nenhum débito com ele e que eu posso ficar tranquila, que tudo está certo, “no comando”.

O alívio foi gigante!

Eu sei que pode parecer loucura, mas vi aquele menino brincando com meu irmão, conheço os pais dele. Sei que tomou o caminho errado, o do crime, e eu realmente gostaria de que ele se emendasse, mas, apesar de tudo, sei que posso confiar nele. Foi um bom amigo para meu irmão na hora mais difícil, arriscou-se para o ajudar, e isso, eu nunca esquecerei. Não obstante, é um alívio não dever mais nada aos “chefes” dele.

Consulto meu saldo no banco e penso no dinheiro que tenho guardado para pagar o agiota que sumiu. Todo mês deposito a quantia, mas não tenho a quem entregá-la. Há meses não tenho notícias, o que é muito estranho, pois o homem é um escroto vigarista.

— Duda! — Manola me chama.

— No escritório! — Ela aparece ao batente da porta com um vestido vermelho, os cabelos presos em um coque e o sorriso de quem não dormiu a noite toda. Sorrio. — Achei que não fosse te ver hoje!

Ela gargalha e dá de ombros.

— Dionísio tem que levar o poderoso chefão para o aeroporto hoje à noite, então resolvi deixar o pobre descansar. — Senta-se ao meu lado. — Você está bem com essa viagem dele para a Grécia?

Respiro fundo e não respondo. Fico um tempo pensando no que fazer enquanto ele está longe, porque certamente não vai esquecer essa história de que me conhece e, quando começar a ligar as datas...

— Duda? — a voz de Manola soa preocupada. — O que aconteceu? Você está pálida.

Olho para ela e não suporto mais, desmorono chorando contra seu abraço.

— Ah, porra, o que aquele grego filho de uma vadia fez contigo?

Não consigo dizer nada, só choro, deixando as lágrimas que mantive presas desde a noite passada fluírem sem freio sobre meu rosto.

— Duda? Ele terminou contigo? Te machucou? Pelo amor de Deus, me conta!

Tento me controlar, seco o rosto, e Manola vai até o filtro pegar água. Bebo devagar, soluçando feito criança, e tento explicar a ela toda a história.

— Lembra que te contei sobre uma viagem a uma ilha grega?

— Sim, quando terminou o curso, não foi?

Assinto.

— Dois homens se juntaram ao nosso grupo. Os dois eram incríveis. Eu me lembro de ter ficado impressionada com um deles, o que tinha olhos azuis.

— Ah, meu Deus! — Manola põe a mão no coração.

— É, era o Theo. Eu nunca soube o nome de nenhum deles, mas agora entendo por que o Frank Villazza me pareceu tão familiar. Foi ele quem saiu com a Ally e com a Èlene.

Manola balança a cabeça, rindo ao se lembrar da história que lhe contei. Foi uma verdadeira guerra para convencer as meninas a voltarem conosco, porque as duas cismaram em ficar com o italiano, pois ele prometera mandá-las de volta em outro voo, no dia seguinte. Era loucura, ninguém conhecia o homem, e nós as tiramos do iate dele.

— Duda... isso significa que ele pode ser o pai da Tessa? — ela diz em voz alta todos os meus temores.

Choro novamente e aquiesço.

— Puta que pariu! Mas que destino mais vadio! — Ela me abraça. — O que você vai fazer?

— Ele acha que eu sabia de tudo o tempo todo. Que o reconheci... — Manola arregala os olhos. — Que me aproveitei do “tesão” que tínhamos desde aquela época para usá-lo e convencê-lo a não continuar tentando comprar o Hill.

— Ele é louco? Isso não faz nenhum sentido!

— Eu sei! Mas estávamos todos bêbados, e ele não se lembra de muita coisa.

Manola franze o cenho.

— Então como ele ligou uma história à outra?

— Ele viu as fotos no quarto da Tessa. — Manola xinga. — Eu não posso arriscar perdê-la, Manola, não posso! Se ela for filha dele, Theo com certeza tentará tirá-la de mim.

— Você não tem ideia mesmo de quem é o pai? — Nego. — Eu nunca achei que o francês fosse o pai, Tessa nada lembra a ele! — Ela pega o celular e depois me mostra uma foto. — Sabe quem é?

Um homem com olhos do mesmo tom dos da minha filha, cabelos lisos e claros como os dela e traços muito semelhantes aparece na foto. Meu coração dispara, e eu nego.

— Alexios Karamanlis. — Tampo o rosto com as mãos. — É um dos caçulas. Tem uma irmã também...

— Com os mesmos olhos. — Manola assente. — O que a difere da minha filha é a cor dos cabelos, que é mais parecida com os de Theo.

— Aquele outro que vinha aqui direto também tem os cabelos mais claros e olhos verdes. É um traço de família, aparentemente. — Minha amiga pega minhas mãos. — Não é melhor abrir o jogo com ele? — Nego. — Duda, e se ele fizer as contas e...

— Ele nunca vai supor que uma transa com camisinha possa ter gerado um filho. Eu pensei muito nessa noite, quase não dormi e acho que a melhor solução é mantê-lo longe de nós. — Manola nega, mas minha decisão está tomada. — Ele já pensa que eu sabia de tudo e que o usei. Imagina se souber que Tessa é filha dele, o que irá pensar?

Ficamos um tempo em silêncio, digerindo todas essas informações.

Não quero perder minha filha, e Theo tem dinheiro e influência para fazer isso se quiser. Não posso arriscar. Mesmo que isso me rasgue por dentro, não posso arriscar!

— Como você está com essa história toda?

Rio conforme as lágrimas escorrem.

— Destruída. Esse passado é como uma sombra sobre mim, você sabe. — Ela assente. — Tantas mentiras criadas, tantas verdades que eu gostaria de esquecer. E agora ele volta com tudo e da pior maneira possível.

Deus do Céu! Por que isso tinha que acontecer agora? Por que ele?

Tessa é a pessoa mais importante da minha vida, é minha filha, meu coração. Nada está acima dela, e por isso mesmo não posso perdê-la. Não sei se o que faço é justo, mas não tenho ideia de como será a reação de Theodoros ao saber a verdade e não posso correr o risco de ele tirar a menina de mim.

— O que você está pensando em fazer? — Manola aponta para os documentos sobre a mesa.

Respiro fundo, armo-me de coragem, ignoro a dor em meu peito e respondo:

— Vou vender o Hill para a Dominus.

— Você tem certeza disso? — Assinto, e ela sorri. — Estarei contigo! Onde quer que você for trabalhar, conte comigo!

Abraço-a, agradecida e emocionada pelo apoio.

— Ainda não sei para onde vou, mas não quero mais ficar em São Paulo. Eu...

Meu telefone celular toca, e reconheço o número da escola de Tessa.

— O que houve?! — atendo apavorada.

— Maria Eduarda Hill? — a mulher do outro lado da linha questiona, e eu confirmo. — É Patrícia Avellar, da escola de Tessa. Estou entrando em contato para avisar que sua filha teve um desmaio em sala de aula e que nós chamamos uma ambulância...

— Ambulância?! — Levanto-me. — Como ela está?

Manola também se põe de pé e pega a chave do utilitário do restaurante, pronta para me levar aonde for preciso.

— Desacordada ainda — sua voz está preocupada. — Estamos indo para o hospital...

Saio correndo com Manola atrás de mim para a garagem do Hill, tremendo e chorando, pegando o nome do hospital, sem saber o que está acontecendo com minha menina.

Meu Deus do Céu, o que é isso tudo?!


O desespero toma conta de mim, pois sinto que algo de muito sério aconteceu com Tessa. Não consigo parar de tremer dentro do carro, agitada, impaciente a cada farol vermelho que temos que esperar abrir para podermos prosseguir até a emergência para a qual Tessa foi levada pela ambulância.

Deve ter sido algo muito sério, sei disso!

Olho para Manola na direção do veículo, porém, tão tensa quanto eu, e tento segurar o choro. Parece que o céu resolver cair sobre minha cabeça de uma só vez!

— Vai dar tudo certo, Duda! Ela estará bem, você vai ver!

Não respondo, apenas fecho os olhos e vou rezando todas as orações que me foram ensinadas na infância, clamando a Deus para que não me tire Tessa, que me leve em seu lugar se preciso.

Mal Manola encosta o carro na guia da calçada, eu já pulo para fora, indo correndo até a recepção e pedindo informações sobre o quadro da minha filha. Avisto a professora que me ligou. Imagino que seja ela, pois seu rosto é de pura aflição, e isso não me parece ser boa coisa.

— Duda Hill? — ela questiona, pois não nos conhecemos. — Que bom que chegou!

— Como está minha filha? O que houve? — pergunto olhando para todos os lados, esperando que alguém do hospital venha com as informações que pedi.

— Acho que está bem agora, mas levamos um susto tão grande! — A mulher chora. — Eu estava dando aula de artes quando de repente ouvi gritos. Tessa estava sangrando e pálida, muito pálida...

— Foi o nariz?

Patrícia nega.

— A boca. As gengivas... — Ela põe a mão no rosto. — Eu achei que ela tivesse batido em algo ou mesmo que algum colega a tivesse atingido, mas não, ela não parava de sangrar e de repente desfaleceu nos meus braços e...

— Maria Eduarda Hill? — uma médica chama meu nome. — A senhora é a mãe de Tessa Hill?

— Sim, sou eu. — Respiro fundo e indago: — Como ela está, doutora?

— Preparando-se para ser transferida. — Arregalo os olhos diante da informação. — Precisamos de sua assinatura em alguns documentos e...

— Espera! Transferida para onde e por quê?

A médica olha a recepção lotada e fecha os olhos.

— Desculpe, plantão tumultuado. — Eu assinto. — Ela chegou aqui ainda com muito sangramento e pressão sanguínea muito baixa. Contivemos a hemorragia, a colocamos no soro, e um dos meus colegas decidiu fazer um hemograma...

— Fizemos um no sábado. Ela estava com contagem de plaquetas baixa e...

— Sim, mas agora não são só as plaquetas. — Ela lê o prontuário em sua mão. — Foi constatada uma pancitopenia, diminuição de todas as células do sangue, o que indica que há algum problema na produção, direto na medula, ou estão sendo destruídas durante a circulação. — Sinto meu corpo inteiro gelar. — Como não temos especialista nem mesmo condições de realizar todos os exames aqui, decidimos transferi-la para um hospital de referência e estamos tentando uma vaga.

Eu me sinto tonta, perplexa demais, e, por sorte, Manola já está perto de mim e me segura com força para que eu não desabe. Preciso ser forte, preciso estar forte até que tudo esteja resolvido.

— É leucemia, doutora? — inquiro. Minha voz quase não sai, tamanho medo que sinto.

— Como disse, precisamos de mais exames, pode ser muita coisa! No momento ela está recebendo uma transfusão sanguínea, e nós já a medicamos.

— Nós podemos vê-la? — Manola pergunta.

— Apenas uma pessoa. Não temos condições de receber mais lá dentro.

Olho para Manola, e ela assente, indo comigo até a porta da enfermaria, permanecendo na recepção enquanto sigo a médica.

Tessa está na cama, recebendo sangue enquanto dorme. Seu rosto está pálido, sua blusa de uniforme, ensopada de sangue. Ponho as mãos sobre o rosto e choro silenciosamente para que ela não escute, engolindo cada soluço de pânico. Não posso perder minha menina!

 

 

Manola me acorda lentamente, e eu abro os olhos esperando ver meu quarto ou mesmo a bancada do Hill, pois muitas vezes cochilei em pé durante um expediente. Infelizmente estou em um quarto de hospital, isolada, vendo minha filha dormindo em sua cama do outro lado do vidro que separa os cômodos.

Os dias não têm sido fáceis! Primeiro, acompanhei a transferência dela para cá e a acomodação dela no quarto. Comentei com o médico que tínhamos feito exames no domingo e lhe dei o nome do laboratório. Não queria que furassem minha pequena de novo, mas eles o fizeram, pois incluíram mais pedidos.

O laboratório de confiança de Theo enviou os resultados – em pedido de urgência – para o médico que nos atendeu, doutor Felipe, um hematologista. Tessa acordou no meio do dia, pouco antes de tirarem sangue novamente, e chorou bem assustada, o que cortou meu coração.

— Você vai ficar boa, minha filha, eu prometo! — disse a ela, querendo muito lhe tocar, mas, como suas defesas estavam muito baixas, eu estava usando luvas, uma roupa especial em cima da minha, touca e máscara.

Os médicos recomendaram que eu ficasse a maior parte do tempo do outro lado do quarto, na parte de espera e que a deixasse sozinha. Eu conseguia falar com ela de fora, mas não era a mesma coisa do que estar perto dela.

— Ela está numa fase bem aguda, então todo cuidado é pouco — explicou o médico. — Os exames não são bons, Maria Eduarda, mas excluímos algumas doenças e espero ter o diagnóstico em breve, aí poderemos iniciar o tratamento, pois o que estamos fazendo até o momento é apenas cuidando para que ela não piore.

Manola foi para o Hill, e eu percebi que estava certa em pensar em vender. Era o momento. Liguei para o número que o representante da Dominus deixou comigo e negociei pelo telefone mesmo, marcando dia e horário para assinarmos os papéis.

Tia Do Carmo ficou com Tessa para que eu finalizasse tudo, e, com muito choro, despedi-me do pessoal do Hill. A Dominus iria manter os funcionários. Arrumei minhas coisas no apartamento e fiquei um bom tempo sentada na minha cama, lembrando-me de todos os momentos que passei dentro daquele lugar, desde meus primeiros anos de vida até hoje.

Lembranças da minha mãe, do meu pai e do meu irmão, minha família, que perdi aos poucos, calaram fundo dentro de mim, e pedi a eles que entendessem o que eu estava fazendo. Foi impossível não lembrar dos momentos com Theo aqui também, nossa primeira vez juntos, mas respirei fundo e foquei no que era mais importante, mesmo sentindo o coração doer por causa do que ainda sinto por ele. Não sei como será a luta daqui para frente. Eu não conseguiria dar conta do Hill – mesmo à distância – e cuidar de Tessa., além dos custos altos de seu tratamento. Viemos para um hospital de referência, e ele não era perto da minha casa.

Fechei o apartamento, levando comigo algumas das lembranças de toda a minha família e retornei ao hospital. Manola, que já tinha separado e visitado alguns imóveis no entorno do hospital, esperava-me para fechar negócio e tratar da mudança da minha família. Minha amiga decidiu não ficar com a Dominus e se dispôs a nos ajudar sempre que necessário. Nos visita direto e está com a vida em suspenso esperando o que vou fazer da minha quando tudo se resolver e eu puder pensar no futuro.

Os dias foram se transformando em noites e em novos dias, e eu nem percebia, pois não saía de dentro do hospital. Uma semana se passou até que o diagnóstico de Tessa fosse revelado. O último exame, uma biópsia da medula óssea, confirmou o diagnóstico tão temido pelo médico: anemia aplástica grave.

As três palavras mais doloridas da minha vida.

Eu tinha tanto medo de ser câncer que não fazia ideia de que essa doença é ainda mais dura do que a leucemia. Doutor Felipe tentou me explicar, amenizar e falar em sobrevida.

Sobrevida!

Não queria nem pensar em passar anos com medo de perdê-la, principalmente caso não achássemos um doador compatível, era uma perspectiva terrível demais.

Eu ia ao quarto dela todos os dias, e nós planejávamos sua festinha para comemorar seu aniversário no dia 2 de abril, e eu via o quanto ela estava esperançosa de já estar em casa. Como eu diria a ela que não seria possível? Que ela teria de ficar à espera de que um doador aparentado fosse compatível para um transplante de medula? Doutor Felipe de pronto descartou a possibilidade de um doador alternativo, ou seja, fora do parentesco dela, explicando que as chances eram muito pequenas de compatibilidade, além da alta chance de rejeição.

Nossas opções eram: achar um parente compatível ou começar um tratamento severo e arriscado usando imunossupressores que a deixaria ainda mais exposta a infecções, mas que poderia impedir a lesão de compartimentos celulares importantes que causam a insuficiência da medula óssea.

Eu precisava entrar em contato com o Theo urgentemente. Nada mais importava, eu tinha que salvar a vida da minha filha.

Liguei para o celular dele, mas infelizmente caiu algumas vezes na caixa postal. Já estava ficando desesperada quando lembrei do Millos, o primo dele e meu primeiro contato com os Karamanlis. No entanto, também não consegui falar com ele no número que eu tinha.

Pensei em ir até a empresa, mas Theo estava de férias na Grécia. Pouco adiantaria se eu fosse até lá. Meu desespero só aumentava a cada dia que passava, e eu via minha filha usando bolsas e mais bolsas de concentrado plaquetário.

Há dois dias consegui completar uma ligação para o celular do Theo e quase chorei de alívio ao ouvir a resposta em português do outro lado da linha:

— Alô?

— Theo! Graças a Deus! Eu precisava muito falar com você...

— Quem fala? — a voz com forte sotaque e uma leve rouquidão típica de quem fuma me fez perceber que não era Theodoros quem me atendera.

— Eu gostaria de falar com Theo. É urgente. Diga a ele que Duda Hill ligou.

— Duda Hill? — O homem pareceu reconhecer meu nome. — No momento, Theodoros não pode atendê-la, pois ele está lambendo as bolas do meu pai, tratando de seu casamento. — Senti meu corpo inteiro gelar. — Então não acho que ele tenha interesse em alguma puta brasileira... Não que ele não goste, pelo contrário, ele gosta muito, mas...

Desliguei o telefone sem conseguir ouvir mais nada, tremendo, sem conseguir entender o que ele quisera dizer com essa conversa louca sobre casamento, puta brasileira e toda essa história. Eu precisava falar com ele sobre a possibilidade de ele ser pai da minha filha e por isso poder salvá-la. Nada mais me importava.

Há quase 15 dias, estou sem sair deste hospital, sem ver ninguém a não ser quem vem nos visitar, sem conseguir dormir ou comer direito, chorando todas as noites, velando o sono da minha pequena. Eu não tenho parentes, não sou compatível, até mesmo minha tia e Manola testaram a compatibilidade para serem opção, mas nenhuma delas também é.

Estou entrando em desespero já. Leio vários estudos sobre o caso e cada vez mais sinto meu coração se quebrar ao perceber que, sem o transplante, as chances de Tessa são mínimas.

— Você cochilou aí toda torta. — Manola sorri sem jeito, despertando-me das lembranças dolorosas. — Não quer ir para o apartamento? Você mal esteve lá desde que o alugamos e...

Levanto-me e pego minha bolsa.

— Preciso ir à Karamanlis — digo determinada. — Não consegui falar com Theo, mas deve haver um maldito irmão dele que possa me ajudar, ou aquele desgraçado do primo que ficava nos rondando feito um abutre, mas que agora sumiu!

— Duda, você tem certeza? Eu posso ligar para o Dionísio e pedir a ele que...

— Não! Chega de recados. Dio disse que Theo tem previsão de voltar somente no final do mês ou mesmo durante o feriado de Carnaval. Não vou perder mais tempo, mesmo porque o doutor disse que pais raramente são compatíveis.

— Sim. — Manola me abraça. — Tenha fé, minha irmã, nossa menina vai sair dessa.

— Ela vai, eu tenho certeza!

Saio do hospital marchando feito uma doida e chamo um Uber assim que chego à calçada, tomando caminho para a Avenida Paulista, onde fica o prédio da empresa em que nunca achei que fosse pisar um dia.

 

 

— Não, infelizmente o doutor Millos não se encontra. A senhorita tem horário agendado?

— Não — digo à recepcionista, ainda no saguão do prédio.

Como fui idiota achando que conseguiria entrar assim, dizendo que queria falar com um dos diretores e pronto, ele iria me atender. Claro que não! Aqui não é uma imobiliária, pelo amor de Deus, é uma empresa de gestão e venda de patrimônio que faz negócios no mundo inteiro!

— Eu posso transferir para a secretária da diretoria e ver se ela consegue agendar algo.

— Por favor, faça isso, eu...

— Minha chave de acesso do elevador parou de funcionar novamente — um homem alto, com ombros muito largos, pele morena e olhos azuis me interrompe, visivelmente irritado. — Me dê uma nova, por favor, e abra um chamado de novo para esses incompetentes.

— Claro, doutor Karamanlis.

Encaro-o com mais atenção, tentando lembrar os nomes dos irmãos do Theo. Alexios é o louro, esse então é...

— Kostas! — lembro e falo em voz alta, chamando sua atenção. — Konstantinos, certo? — Ele arqueia sua sobrancelha e me olha de cima a baixo, abrindo um sorriso lentamente.

— Depende... Quem é você?

— Maria Eduarda Hill. Eu sou...

— Ah... — Ele ri e me analisa de novo. — Eu esperava coisa melhor.

Franzo o cenho, mas decido ignorá-lo, pois meu assunto é urgente.

— Eu preciso falar com um de vocês. Minha filha está muito doente... — explico a ele toda a situação de Tessa, inclusive digo o nome do hospital onde ela está, mas ele parece impassível. — Eu preciso falar com o Theo...

— Ah! Entendi! — Sorri malicioso. — Ele já enjoou de você, não foi? — respiro fundo ao ouvir a voz debochada. — Olha, você deve ter algo muito especial entre as pernas para ele ainda não ter cobrado a promissória.

Encaro-o surpresa.

— Que promissória?

— Ah, não sabia?! — Ele cruza os braços. — A promissória que seu pai, aquele viciado em jogo, assinou com o agiota para alimentar a farra.

Recebo mais esse baque e me escoro contra o balcão da recepção. Imagens do agiota asqueroso, suas ameaças, o medo que senti durante todo esse tempo sem notícias, todo o dinheiro que já entreguei a ele me assolam conforme penso que Theo estava com a maldita promissória!

Maldito mentiroso!

Ele disse para mim que iria tentar fazer a Karamanlis desistir do Hill, mas estava com a promissória enquanto eu sofria sem saber de notícias! Olho para o rosto do nojento e insensível Konstantinos Karamanlis, ponho minha bolsa sobre o ombro e saio da empresa, odiando-me por precisar deles, sabendo que terei de engolir meu orgulho e lhes pedir que testem compatibilidade com Tessa.

Fico um tempo andando sem rumo na Paulista, entro no Parque Trianon para pensar no que fazer e só depois volto para o hospital, chorando e recebendo lencinhos de papel da motorista do Uber, tentando estancar minhas lágrimas de desespero e decepção.

Quem são essas pessoas? Quem é Theodoros Karamanlis? Será que me enganei tanto assim com ele?

Desço do carro e avisto, na porta principal do hospital, um rosto levemente conhecido. A mulher bonita e morena, com cabelos platinados, roupa de grife e bom gosto se aproxima e me entrega um arranjo de flores.

— Soube de sua filha, sinto muito. — Ela percebe que eu não sei quem é. — Viviane Lamour. Nos conhecemos no clube de jazz.

— Ah...

Sorrio sem jeito, consciente do meu rosto inchado de chorar, nariz vermelho e roupa amarrotada de pelo menos dois dias sem trocar. Foda-se!

— Theo me disse que vocês estavam aqui, e eu quis fazer uma visita. — Dá de ombros como se isso não fosse nada, mas meu coração dispara. — Ele agora está ocupado com o noivado com a Valentina, então pensei que talvez você estivesse se sentindo um pouco rejeitada. — Devo ter ficado branca de susto, pois ela sorri. — Bem-vinda ao clube! Ele é assim, nos faz sentir especiais e depois simplesmente parte para outra, descartando sem dó e sem olhar para trás.

Theo noivo?! Valentina... onde eu ouvi esse nome?! Lembro-me dos telefonemas dela à madrugada e da noite em que saí com Theodoros e que encontramos Viviane no clube e ela fez questão de tocar nesse nome, o que incomodou Theo. Recordo-me ainda que ele me contou uma história sobre ter começado a sair com a moça, mas que o relacionamento não tinha vingado.

Noivos?!

Quase não consigo respirar. Não tenho reação, só vejo o sorriso cínico de Viviane. Minhas mãos apertam as flores que ela me entregou, sentindo-as queimarem minhas palmas como se fossem puro veneno.

Deus do Céu, essa mulher já tem ideia do inferno que estou passando, ainda precisava vir aqui para tripudiar de mim?

Tento respirar e encontrar minha voz para lhe responder e, mesmo tremendo inteira, sentindo uma dor horrível ao respirar, como se algo esmagasse meu peito, digo:

— Você não tem sentimentos? Minha filha corre o risco de morrer, e mesmo assim você acha que tem o direito de vir aqui me humilhar? — Jogo as flores contra ela. — Não me interessa o que Theo fez ou deixou de fazer “conosco”, nem mesmo com quem ele está! Não me importa!

Viviane olha para os lados, visivelmente constrangida por eu estar falando alto.

— Ele vai se casar com Valentina, ela lhe dará o filho que ele tanto quer, então concentre-se em sua criança doente e nos deixe em paz!

Arregalo os olhos diante de sua insensibilidade. Sinto vontade de bater nela e nunca senti isso antes, nunca quis tanto partir para a violência como agora. Acalmo-me lembrando que Tessa precisa de mim e que, se me deterem por agressão – porque, juro, se eu tocar nela, vai sair daqui quebrada –, não poderei estar ao lado da minha filha.

Saio de perto dela andando de cabeça erguida até sumir de sua vista. Tremo tanto que meus dentes batem, tamanha fúria, tamanha dor.


— Theodoros Geórgios Karamanlis, meu neto preferido! — pappoús me saúda assim que me vê entrar em sua sala privada na mansão da família em Atenas. O velho Geórgios Karamanlis está sentado em sua poltrona preferida, com um cobertor nas pernas e perto da lareira. Está frio em Atenas, é inverno, mas ainda assim eu sinto um enorme calor na saleta.

Estar de volta a essa casa sempre me traz lembranças agridoces. Passei boa parte da minha vida aqui, desde meu nascimento. Acho que nunca contei isso para vocês, não é? Bem, não é uma história muito longa.

Meu pai, Nikolaous Karamanlis, estava com 19 anos quando engravidou minha mãe, Rhea Matsoukas, com 17 anos e filha de pescadores que mantinham um negócio na cidade com a venda de pescado. Tenho muito dela fisicamente, o formato do rosto, dos olhos, do nariz e não sou tão corpulento quanto Nikkós e Kostas, por exemplo. Herança da família Matsoukas.

Os dois foram obrigados a se casar. Meu avô paterno concordou com isso para dar “legitimidade” ao seu primeiro neto, mas bastou que ela me parisse e os casos do meu pai se tornassem públicos para que a jovem e bela moça aceitasse uma grana gorda de pappoús e sumisse do mapa, deixando documentos de divórcio e um filho recém-nascido para trás.

Não posso reclamar da minha criação na infância. Não tive muito carinho, mas tive atenção da minha giagiá Dorothea, e o pouco sobre “família”, aprendi com ela e depois, com a chegada de Millos para morar conosco, separado de seus pais por questão de sobrevivência e sanidade mental – mas essa não é minha história para contar.

Pois bem, aqui eu cresci com minha avó nos levando à Igreja da Grécia e com meu avô nos ensinando que Deus é ter poder, e o poder advém das posses de uma pessoa. Frequentávamos a escola e erámos tutoreados em casa também, com o próprio Geórgios a nos dar aulas de economia, mercado e transações financeiras diversas. Ainda me lembro de quando meu pai, recém-separado da mãe do Kostas, decidiu ir trabalhar com tio Sergios no Brasil.

Ele conseguiu derrubar o irmão mais novo em pouco tempo e assumiu a Karamanlis de São Paulo. A partir daí começou o desfile de secretárias, prostitutas, dívidas com drogas, escândalos atrás de escândalos.

Balanço a cabeça, determinado a não deixar que dessa vez tudo isso me atinja e eu sinta todas as dores do meu passado novamente. Já foi, é hora de superar!

— Pappoús! — Vou até ele e beijo sua mão, agachando-me aos seus pés. — A ligação do seu médico me assustou. O que houve?

A velha raposa sorri.

— Indigestão, mas parecia um ataque cardíaco.

Não acredito que viajei feito um louco, uma semana antes do prazo, por causa de uma maldita azia! Rio de mim mesmo, tão idiota e sempre fazendo as vontades do vovô.

— Eu abandonei a empresa antes mesmo de Millos voltar de férias, pappoús!

— Theodoros, eu sou a Karamanlis, nada é mais importante que seu avô. — Ele passa a mão em meus cabelos, principalmente na fronte, onde tenho a maior concentração de fios brancos. — Seus cabelos são escuros como os meus. — Ele levanta meu rosto. — Seus olhos são azuis, mas é só o que você tem dos Karamanlis. — Sorri triste. — Infelizmente, o mais parecido comigo é o Konstantinos, mas também herdou o caráter de seu pai.

— Alexios parece com tio Geórgios — provoco um pouco.

— Isso é o que vocês querem enxergar! Não posso assumir que o filho de uma prostituta seja meu neto.

— DNA resolve, sabia?

Ele dá de ombros.

— E Kyra? — pergunta-me, indo direto à ferida. — Minha única neta não vem me ver há anos!

— O senhor sabe que eu não posso ajudar quanto a isso.

— Eu sei, Theodoros, acompanhei e salvei você naquela época. Pobre menina...

— Pappoús! — Levanto-me. — Estava prevista mais uma sessão de tortura antes de seu aniversário? Foi para isso que vim mais cedo?

— Não seja dramático, Theodoros, não te criei um maricas! — Joga o cobertor de lado e se levanta, poderoso, postura ereta, e eu sinto meu sangue ferver.

Filho da puta, enganando a todos com uma aparência frágil, fazendo-nos acreditar que está às portas da morte, quando parece que ainda tem uns 70 anos e não os 90 que fará daqui uns dias!

— Por quê? — questiono o teatrinho enquanto ele diminui a potência da lareira.

— Conhece a máxima do “rei morto, rei posto”? — Assinto. — Quero saber como as coisas ficarão depois da minha morte, mas, como estarei morto... — Ri, e eu franzo o cenho, ainda sem entender. — Bastou um resfriado para seus tios começarem a brigar entre si, e eu quis ver onde ia dar.

— Se fingindo de moribundo para ver o circo pegar fogo. Típico! — Sento-me em uma das poltronas. — Não sei como ainda acredito nas suas doenças.

Ele ri.

— Você não é lá muito esperto, Theodoros — rio por ele me jogar isso na cara e nem faço mais questão de lhe lembrar que eu tinha só 18 anos quando tudo aconteceu. — Mas o que lhe pedi, independentemente de minha saúde, continua valendo.

Bufei.

— Já está sendo providenciado, não se preocupe com isso — corto o assunto.

— Não gosto disso, Theodoros! — Cruza os braços. — Não gosto mesmo!

Bom, nem eu, mas isso não me preocupa mais. Realmente já resolvi essa questão de casamento e filhos, então não vou me preocupar mais com isso. Não enquanto minha cabeça está fervilhando com a última descoberta que fiz.

Maria Eduarda Hill é a mulher com quem transei há quase nove anos em uma boate! É algo tão impossível de se crer que me parece totalmente surreal. Quase uma década depois, nós nos encontramos de novo, e isso me passou despercebido.

Eu sei, já transei com muitas mulheres. Algumas fodas foram bem marcantes devido às circunstâncias, como a da boate, por exemplo. Eu nunca tinha trepado em um banheiro daquela forma, e a adrenalina misturada ao álcool, além dos flashes de lembranças já distorcidas pelo tempo fizeram com que eu usasse essa fantasia por bastante tempo.

Foi realmente muito bom, e é por isso que eu não entendo como não reconheci a Duda em todo esse tempo em que dormimos juntos! Nada nela me fez lembrar aquele momento, nem seus beijos, seu corpo, o jeito como trepamos, nada! Sim, eu sentia um estranho reconhecimento, mas não ligado ao passado, pelo contrário, era algo que eu nunca consegui explicar e que só fez sentido quando me dei conta de que estava apaixonado por ela.

Era mais do que meu corpo que reconhecia aquela mulher.

Gemo, e meu avô me dá uma olhada desconfiada, porém, o ignoro. Nunca pensei em reencontrar a mulher da boate, nunca nem mesmo a procurei ou tentei. Poderia se quisesse. Frank sabia o nome das suas amigas e onde estudavam em Paris, bastava perguntar. Contudo, não, nada me puxou para ela a não ser a fantasia de um sexo etílico e bem diferente do que eu estava acostumado a fazer.

Ainda agora tenho certeza de que Duda é aquela mulher, mas não consigo vê-las como a mesma pessoa. Claro, muitos anos se passaram, Maria Eduarda era mais jovem, ainda não tinha a Tessa, podia estar em uma fase mais liberal e hoje ser mais comedida ou mesmo ter sido assim apenas com o propósito de jogar comigo.

Sinceramente, ainda estou muito confuso com isso tudo. Julgava Maria Eduarda como a pessoa mais sincera que já havia conhecido, e o fato de ela ter escondido de mim que já havíamos nos conhecido, bem como ter continuado a se fazer de desentendida quando descobri tudo mexeram demais comigo.

Ouço uma batida à porta da saleta. Assisto, rindo bastante, ao meu avô voltar à poltrona e cobrir as pernas com um cobertor antes de autorizar a entrada.

— Pai, eu... — Nikkós se interrompe ao me ver.

Olho para trás e o encaro, no alto dos seus quase 2m de altura, pele morena, nariz grande e com a ponta curvada para baixo e enormes olhos azuis. Os cabelos, antes escuros, já estão bem grisalhos, penteados para trás como Kostas os usa também.

— Ora, ora. — Cruza os braços. — Eis que o favorito do vovô retorna ao lar!

Ignoro a provocação dele e apenas o cumprimento com a cabeça. Não estou com o mínimo humor para os melindres de meu pai. Nós já nos resolvemos anos atrás, inclusive com punhos, então não me sinto devedor dele em nenhum momento, mas ele sempre se faz de vítima.

Levanto-me, sem querer estar no mesmo local que ele por muito tempo.

— Vou para meu quarto. Estou cansado da viagem e...

— Amanhã partiremos para Villa Dorothea — meu avô informa.

— Em Porto Cheli?

Ele assente, e eu suspiro cansado.

Nada animador pensar em ficar com meus tios, tias e primos – além do meu pai e sua nova esposa – em uma casa de praia isolada de tudo. Penso no iate, parado na marina há alguns anos e decido que é hora de tirá-lo de lá, prepará-lo e ficar mais tempo nele do que em terra.

Sigo até a saída da sala, mas meu pai me detém.

— Soube que finalmente conseguiram algo para comprar aquele boteco da Vila Madalena. — Ergo uma sobrancelha, mas não lhe respondo. — Você deve estar se sentindo muito satisfeito, não é? Tomou meu lugar, conseguiu avançar no negócio que foi responsável pela minha derrocada na empresa...

— O único responsável pela sua derrocada, em qualquer lugar, não só na Karamanlis, foi você mesmo.

Ele ri da minha resposta, e, antes que eu saia, escuto-o dizer:

— Sabrina está em Atenas, para sua informação.

Travo os punhos, olho para meu avô, que está visivelmente aborrecido com o filho, e sigo para meu quarto, já prevendo o tormento que será essa reunião de família. Meus irmãos e o Millos têm sorte de não estar aqui. É uma tortura equivalente à de Procusto!38

 

 

— Theo! — Andrea me cumprimenta, e fico admirado ao ver o quanto ele cresceu nesses anos em que não vejo tantos da família reunidos.

Claro que, antes de partir com seu séquito para o Peloponeso, meu avô decidiu reunir os filhos e netos que já estão em Atenas para uma “confraternização” familiar. Confesso que nunca me acostumo com a multidão que é essa família, mas, para um homem com sete filhos – um morto sem herdeiros – e 22 netos, a casa pode se considerar vazia com 12 pessoas presentes.

Três dos meus primos mais velhos – filhos de tio Sergios – já se casaram, mas ainda não produziram um bisneto para o velho Karamanlis, por isso a expectativa está em cima de mim. Ano passado um dos meus primos, Ullysses, casou-se com o namorado com quem morava há anos, em Londres, e isso quase matou a velha raposa – inclusive soube que teve uma aposta sobre o assunto entre os primos –, que acabou por renegar mais um neto apenas porque ele decidiu viver sua própria vida como lhe era de direito.

Fato é que estamos sempre à espera da próxima persona non grata da família, pois basta desagradar ao pappoús e ele já anuncia que a pessoa não faz parte mais de seus herdeiros. Alex, infelizmente, foi o primeiro a sentir isso, somente por ser filho de uma garota de programa com a qual Nikkós teve um caso por algum tempo, e agora Ullysses.

— Aí está o menino de ouro! — Ioannis, um dos meus primos mais brincalhões e um grande amigo de Millos, cumprimenta-me. — Phaedra e eu estávamos apostando se você viria ou não.

Eu aceno para sua namorada de longa data, levantando meu copo de uísque.

— Tive que vir. O doutor Pachalakis me ligou dizendo que pappoús estava nas últimas. — Dou de ombros, e Ioannis ri muito.

— Ele ligou para mim também. Cheguei aqui e fui informado que era refluxo.

Ficamos um tempo rindo e conversando sobre as coisas da empresa, pois ele também trabalha na Karamanlis, porém, na parte de estaleiro, pois é engenheiro naval, e toda a operação desse braço da empresa está a seu cargo.

— Soube que o velho está te cobrando um bisneto. — Assinto. — Por favor, o atenda; não pretendo ter filhos tão cedo!

— Estou providenciando isso.

— Isso é uma boa notícia! Até que enfim ouço falar de Theodoros Geórgios se amarrando a alguém.

Odeio quando falam meu nome todo, e, além do meu avô, ninguém mais o faz, apenas quando quer me encher a paciência.

— Boa noite! — meu pai passa por mim com sua nova esposa, uma senhora muito distinta e elegante, e cumprimenta Ioannis.

— Ainda em clima ruim com tio Nikkós? — Não respondo ao meu primo; não é preciso. — Por que não temos pais que prestem? É uma merda, isso!

É, sim. Não tem um só Karamanlis que não seja problemático.

Meu telefone toca, e o nome Valentina aparece na tela. Olho em volta. A “festa” mais parece um enterro ou uma praça de guerra, todos se medindo, avaliando o oponente.

— Com licença — peço a Ioannis e me afasto para atender o telefone.


— Duda?! — Manola se assusta ao me ver. — O que houve? Ele maltratou você? Eu vou matar aquele...

— Não! Nem estive com Millos. — Dou de ombros. — Eu me sinto dentro de um pesadelo! — Soluço. — Está tudo dando tão errado que eu acho que a qualquer hora vou acordar e perceber que tudo está no seu lugar, que eu continuo a trabalhar no Hill, que minha filha está saudável dentro de casa e que nunca um Karamanlis cruzou meu caminho!

Manola me abraça, e eu vejo o olhar preocupado que dá para o quarto onde está a Tessa, pois ela poderá nos ver pelo vidro caso acorde.

— Sente-se, que eu vou pegar um café para você.

Manola sai correndo da sala, e eu fico tentando ordenar os pensamentos para que não enlouqueça. Tento não pensar em Theo e em qualquer coisa relacionada a nós dois neste momento, pois minha prioridade é Tessa, mas as informações que recebi hoje tornam essa tarefa impossível de ser realizada.

Ele mentiu para mim o tempo todo sobre tudo!

Primeiro, nunca houve uma trégua sobre o Hill, pois ele já estava de posse da promissória, por isso o agiota sumiu. O desgraçado já tinha até iniciado o processo de execução dela e assim me obrigaria a levantar todo o dinheiro e a lhe vender o bar. É inacreditável o quanto ele foi ardiloso e cínico.

Lembro-me muito bem de ele falando que não tinha mais interesse em comparar minha propriedade, que iria tentar impedir que a Karamanlis a comprasse. Mentiras e mais mentiras. Ele tramou pelas minhas costas esse tempo todo enquanto fazia amor comigo... Não! Ele nunca disse nesses termos! Enquanto trepávamos, ele armava uma arapuca para que eu fosse obrigada a abrir mão do Hill.

E Valentina...

Manola volta com dois copos descartáveis cheios de café e se senta ao meu lado.

— Quero saber o que houve depois que você saiu daqui e o que aquele filho de uma puta do Theo fez contigo! — Abro a boca para dizer que não estive com ele, mas ela não permite: — Eu sei que ele não está aqui, mas alguma merda fez para ter te deixado nesse estado.

— Ele mentiu para mim — minha voz soa tão magoada e sentida que suspiro. — Ele mentiu sobre tudo! Estava com a promissória esse tempo todo e...

— A promissória do agiota? — Assinto. — Eu vou capar aquele filho de uma égua!

Arregalo os olhos com sua ameaça dita em voz alta, e ela tampa a boca, olhando para o quarto onde Tessa está e se desculpa por ter falado alto. Seu rosto cheio de indignação está vermelho como seus cabelos, e eu soluço, limpando a face com as costas das mãos.

— Sinto-me mal por estar chorando por ele neste momento. — Manola assente e me abraça. — Mas está doendo, Manola. Doendo muito!

— Chora, minha amiga. — Soluço em seus ombros, deixando sua blusa úmida com minhas lágrimas. — Deixe ir tudo para que, quando você se levantar dessa cadeira, possa estar com suas energias concentradas em Tessa.

— Você tem ideia do quanto é difícil? Eu preciso dele aqui, preciso da confirmação da paternidade para poder testar seus irmãos e... — Meus ombros sacodem com o choro ao pensar em Tessa. — Por mais que eu não queira nem olhar para ele nesse momento, eu preciso dele.

— Eu sei, minha amiga. Isso da promissória foi uma traição gigante...

— E tem Valentina. — Manola franze o cenho. — Theo me contou que estava saindo com essa tal Valentina antes de ficarmos juntos. Não sei, senti que havia algo mais que ele não estava me contando, porque nos encontramos com a amiga dele no clube de jazz a que fomos, e ela fez questão de tocar no nome dessa mulher.

— E tem? — a voz de Manola transmite muito temor ao fazer essa pergunta.

— Noivado. — Ela arregala os olhos, e sinto meu coração doer mais uma vez. — A tal amiga fez questão de vir aqui hoje me visitar em nome dele, pois está muito ocupado com a noiva na Grécia.

Manola se põe de pé, andando de um lado para o outro, tentando se controlar. Seu rosto não está nem vermelho mais, mas quase roxo, tamanha sua raiva. Escuto-a bufar, começar a falar, parar e voltar a bufar.

Ponho as mãos sobre a cabeça, tentando parar de chorar, mas não consigo. Pensei que a vida já tivesse me dado todas as surras possíveis com a perda dos meus pais e irmão, mas, aparentemente, não.

Limpo o rosto e vou até o vidro que separa a cama de Tessa do restante do cômodo e a olho dormindo tranquilamente, pálida, mais magra e indefesa. Sinto um abraço pelas costas, e o perfume de Manola chega às minhas narinas. Choro silenciosamente, meu coração destroçado por tudo que está acontecendo.

Eu queria poder contar com Theo nesse momento, como aconteceu na ilha e no dia em que ele nos levou para sua cobertura. Torço para que ele seja realmente o pai de Tessa, mesmo que isso possa significar perdê-la para ele, mas que seja possível salvar sua vida e restaurar sua saúde.

Ele traiu minha confiança, brincou com meus sentimentos e quebrou meu coração, porém, ainda assim preciso dele.

 

 

— Mãe, o Theo já voltou da viagem? — a voz de Tessa é fraca, mas cheia de esperança.

Respiro fundo, abro um sorriso como se o assunto fosse algo bom e respondo:

— Ainda não consegui falar com ele, mas tenho certeza de que pegará o primeiro voo para te ver.

Seu rosto se ilumina, e ela volta a tomar seu café da manhã, sentada em sua cama com a bandeja sobre seu corpo.

— Tio Millos vai falar com ele, não é?

Tio Millos!

Ouvir isso de minha filha é a concretização de que Theo é realmente seu pai. Eu já não tenho dúvidas disso, mas ainda preciso da confirmação do DNA e torço para que um dos seus irmãos ou o próprio Millos seja compatível com Tessa.

De qualquer forma foi um alívio ele ter vindo atrás de mim.

Eu estava olhando Tessa dormir, com Manola abraçada a mim. Nós duas chorávamos em silêncio não só pela minha menina, mas por tudo o que eu tinha descoberto sobre o Theo.

Uma batida à porta nos fez olhar para trás, e então eu vi Millos. Senti imediatamente a Manola ficar tensa e a segurei pela mão, pedindo-lhe calma com o olhar.

Eu preciso deles!

— Posso entrar? — Millos perguntou, e apenas assenti.

O homem alto e forte, vestindo terno, de óculos escuros e cabelos penteados para trás nada lembrava o tatuado vestido de jeans e camisa de malha que havia estado em minha casa e no bar várias vezes para conversar sobre a proposta de compra.

Nós nos conhecemos há muitos anos, e, mesmo que nunca tenhamos tido afinidade por conta da insistência da compra, aprendi a gostar dele, principalmente de sua simplicidade e simpatia. Millos me pareceu sempre ser sensato e calmo, o Karamanlis perfeito para me ajudar a salvar minha filha.

Ele tirou os óculos, e eu reparei em seus olhos verdes, um pouco mais escuros que os da minha filha. Era impossível não comparar seus traços com os dela, buscando alguma coisa que comprovasse que compartilhavam o mesmo sangue.

— Eu soube da Tessa — falou baixo, sem me olhar. — Cheguei à empresa e me encontrei com Kostas, meu primo, e ele me disse que você tinha ido até lá tentar um contato do Theo. — Suspirei, e ele me olhou

— Seu primo é um babaca! — Manola atacou, e ele riu, concordando.

— Ele é, não nego. — Encarou-me. — O que houve com a menina?

Olhei para Manola, que entendeu que eu gostaria de falar com ele a sós. Beijou meu rosto em despedida, olhou com a cara mais feia que conseguia fazer para o Millos e saiu do quarto.

— Tessa precisa de um transplante de medula — fui direto ao assunto, e ele arregalou os olhos. — Há algum tempo ela vinha apresentando sintomas de que não estava bem, mas só descobrimos há pouco o que tem. — Millos olhou para minha filha, ainda dormindo, dentro da área isolada. — Anemia aplástica grave.

— Não pode ser! — Ele fechou os olhos e encostou a testa no vidro. — Perdemos um tio com essa mesma doença — informou, e foi minha vez de ser tomada de surpresa. — Na época, não havia muito o que fazer. Tentaram o transplante. Era algo bem rudimentar ainda, mas ele teve rejeição e...

— Oh, meu Deus!

Comecei a soluçar, e ele me puxou para seu abraço, segurando-me contra seu peito enquanto eu dava vazão ao meu desespero. Eles tiveram uma morte na família com a mesma doença! Não posso perder minha menina!

Podia ouvir o coração de Millos tão disparado quanto o meu, suas mãos me apertando, trêmulas. Senti a tensão e o nervosismo presentes nele ao mesmo tempo em que tentava me consolar.

— Vai dar tudo certo, Duda — sua voz, mesmo um tanto trêmula, era confiante. — Vamos mover céus e terras, você não a perderá.

— Eu preciso falar com o Theo... — Ele me soltou, e eu o encarei. — Vai parecer loucura, mas há a possibilidade de ele ser o pai da Tessa.

Millos ficou um tempo parado, olhando-me apenas, sem nenhuma expressão no rosto, mas eu podia apostar que sua cabeça estava dando voltas e mais voltas com o que eu tinha acabado de revelar.

— Você já contou a ele? — Neguei, e ele respirou fundo. — O que eu posso fazer por vocês neste momento, Duda?

— Eu tentei localizar o Theo, mas na única vez que tive resposta... — Fechei os olhos, tentando diminuir a dor que todas as palavras que ouvira tinham me causado. — Bem, não era ele ao telefone, e acho que, se ele viu minha ligação, não se importou em retornar.

Millos balançou a cabeça.

— Ele não viu a ligação, tenho certeza, senão retornaria. Theo não é assim, ele...

Tive vontade de gritar para ele que sabia da promissória, que sabia do maldito noivado com a tal Valentina, mas não o fiz. Não vinha ao caso. Millos não mentira para mim e talvez nem soubesse do meu envolvimento com seu primo.

— Não importa. Preciso confirmar a paternidade e testar todos vocês como possíveis doadores. — Ele assentiu, mas eu percebia uma inquietação, como se ele quisesse me dizer algo, questionar. — Você pode me ajudar nisso?

— Claro! Farei o que for possível. — Ele respirou fundo. — Você não tem mesmo certeza de que ele é o pai?

— Não. Foi há muito tempo. Eu nem reconheci o Theo, foi ele quem ligou uma coisa à outra e... — Eu realmente não queria entrar nesse assunto com Millos, por isso resumi: — Sempre tive dúvidas sobre a paternidade de Tessa, porque na época eu tinha um namorado e...

— Entendi — Millos cortou o assunto e voltou a olhar para Tessa. — Eu não tenho dúvidas de que ela é uma Karamanlis. — Meu coração pareceu saltar do peito ao ouvir isso. — Ela é idêntica à minha avó quando menina. — Ele sorriu. — Se eu tivesse uma foto aqui comigo, você também não teria dúvidas.

Meu Deus do Céu, então é realmente verdade! Tessa é filha do Theo, uma Karamanlis! Que destino é esse que nos reuniu novamente?

— Eu preciso salvá-la, Millos! — disse em desespero.

— Nós vamos! — Olhou-me com determinação. — Nós vamos!

Naquele momento Tessa acordou, e eu estava tão emocionalmente abalada que Millos se dispôs a entrar, ficar uns momentos com ela enquanto eu me recompunha. Os dois já se conheciam das vezes em que ele tinha estado no Hill para conversar comigo, e minha filha abriu um enorme sorriso e o cumprimentou quando o viu ao meu lado.

Quando retornei do banheiro, já com Manola e tia Do Carmo – que acabara de chegar do nosso apartamento – junto a mim, encontrei os dois rindo e a mãozinha de Tessa na enorme mão de Millos.

— Ele vai ajudar? — Manola perguntou, e eu assenti.

Olhei para tia Do Carmo.

— Achou alguma coisa naquelas revistas que você assina? — Minha tia olhou para Manola, e eu soube que elas haviam achado. — Quero ver.

— Duda, acho melhor...

Estendi a mão, com o coração partido, querendo tomar o choque de ter a confirmação do que Viviane me dissera mais cedo. Tia Do Carmo colocou a revista em minha mão e me disse o número da página.

Por mais que eu achasse que estava forte para ver a notícia, não esperava encontrar o que vi: Theo e uma mulher loira muito bonita, abraçados, saindo de um hotel em Atenas, e o anúncio do casamento iminente dos dois.

— Parece que é verdade... — Minha tia lamentou.

— Essas revistas são muito sensacionalistas também! — Manola logo emendou. — Não podem ver um casal abraçado que já anunciam casamento.

Devolvi a publicação para minha tia e engoli as lágrimas.

— De qualquer forma, mesmo que não se casem, estão juntos na Grécia. — As duas concordaram. — Não muda o fato de que ele mentiu para mim.

Coloquei a roupa especial, as luvas e todo o material de proteção para não pôr Tessa em risco e entrei, despedindo-me de Millos, que prometeu trazer Theo de volta o mais rápido possível.

Na saída, vi Manola falando algo para ele, que negou, mas ela riu e jogou a revista em cima dele e saiu de perto. Não olhei mais nada; sentia-me magoada com tudo isso, apavorada com a possibilidade de perder minha filha e humilhada por ter me deixado usar e ser descartada por um Karamanlis.

Tessa me chama para dizer que já está satisfeita com seu desjejum, e eu deixo para trás as lembranças do dia de ontem. Ainda não tenho notícias de Millos, nem de Theo, e o tempo está passando. Doutor Felipe diz que o tempo entre as transfusões diminuíram muito e que é necessário começar com o tratamento o mais rápido possível.

— Theo! — Tessa grita, olhando em direção ao vidro com um enorme sorriso de felicidade. Meu coração dispara. Sinto meu corpo inteiro gelar de antecipação e olho para ele.


Nada no mundo poderia me preparar para a emoção desse encontro, penso limpando as lágrimas, vendo Theo e Tessa conversarem dentro do quarto. A alegria de minha filha, seu ânimo ao vê-lo, a urgência e preocupação que ele demonstrou, tudo foi muito mais do que eu poderia ter sonhado.

No momento em que o vi, deixei de pensar em todo o mal que causou ao meu coração, deixei de lado como ele me traiu com a promissória e como mentiu para mim sobre Valentina. Naquele momento, só pensei que ele poderia salvar a vida da minha filha.

Não, não esqueci. Seria impossível o fazer com a ferida aberta e sangrando, mas deixei essa dor de lado, num canto, para poder reacender a esperança de curar minha menina. Eu sei que doutor Felipe disse que raramente pais são compatíveis, mas não posso deixar de pedir por essa raridade, não posso deixar de crer, mesmo contra a esperança, mesmo que tudo diga não. Não posso deixar minha fé fenecer.

Durante os dias em que estive aqui neste hospital, pensei muito na coincidência que foi esse reencontro e o motivo de o destino ter feito as coisas desse jeito. Depois do diagnóstico de Tessa, entendi que eu e Theo só nos reunimos de novo porque temos que salvar nossa filha. Esse é o propósito. Não sei como irá acontecer, mas não vamos perdê-la.

Daqui de onde estou, posso ver os olhos dele se repuxarem nos cantos, sorrindo para minha menina, bem como o brilho de seu olhar raso de lágrimas. Ele não esconde a emoção que sente, e eu nunca o vi tão aberto desse jeito. Tessa toca sua mão, e as lágrimas represadas por ele caem, molhando a máscara que recobre seu nariz e boca.

Nossos olhos se encontram, e a mesma fé que tenho dentro de mim, enxergo nele. Nós vamos salvá-la!

— Bom dia! — a voz do doutor Felipe corta o encantamento do momento. — Nós vamos ter que suspender o horário de visitas por enquanto. Vamos fazer alguns procedimentos com a Tessa.

Eu assinto, e ele bate no vidro, chamando Theo para fora da sala.

— Algum problema? — sua voz é temerosa, e ele se desfaz do avental, touca e máscara, porém, continua com as luvas.

— Theo, esse é o doutor Felipe Magalhães, o médico responsável pelo caso da Tessa. — Theodoros não estende a mão para cumprimentá-lo, apenas o encara. — Doutor, esse é Theodoros Karamanlis...

— O pai da Tessa — ele completa, e o médico me olha confuso.

Quando saiu o diagnóstico, a primeira coisa que o médico perguntou foi do histórico familiar, se ela tinha irmãos, avós, tios ou primos, e, quando ele viu que Tessa não possuía o nome do pai na certidão de nascimento, questionou-me se eu tinha condições de apontar quem ele era. Naquele momento eu disse que ainda tinha dúvidas, mas que poderia contatar os possíveis pais para realizar o exame de paternidade.

— Precisamos fazer um DNA para... — tento explicar, mas Theo me interrompe:

— Mera formalidade. Não tenho dúvida alguma de que ela é minha. — Ele se aproxima do doutor Felipe. — Eu gostaria de trazer uma junta médica para avaliar todos os procedimentos e tentarmos achar os melhores tratamentos e...

— Senhor Karamanlis, eu entendo o desespero, mas o senhor encontra-se em um hospital de referência, com todos os aparatos e equipe necessários para o tratamento, qual seja ele.

Theo respira fundo, assente, mas não parece muito convencido.

— Eu gostaria de realizar o teste de compatibilidade o mais rápido possível.

— Como expliquei a Maria Eduarda, pais raramente são compatíveis, mas claro, podemos realizar os testes necessários. — Ele chama um membro de sua equipe. — Poderiam levar os pais de Tessa até a doutora Amália?

— Claro. — A moça, uma enfermeira muito simpática que vem sempre atender Tessa, dá-nos um sorriso. — Queiram me acompanhar por favor.

— Tessa ficará sozinha? — Theo questiona, mas em seguida tia Do Carmo entra no quarto e para em seco ao vê-lo, colocando sua mão sobre a boca e fechando os olhos. Tenho certeza de que ela está agradecendo por ele estar aqui, mesmo que, assim como eu, esteja muito magoada com ele.

Vou até ela para lhe explicar que irei com Theo até a doutora Amália a fim de realizarmos os exames – de compatibilidade e de paternidade –, e ela me abraça.

— Graças a Deus! — Suspira aliviada. — Como você está, minha filha?

— Estou bem, tia. — Sorrio. — Tessa é quem importa agora. As outras coisas, resolvemos depois.

Ela assente, e me despeço, seguindo a enfermeira e Theo até o laboratório.

— Por que você me escondeu que ela podia ser minha filha? — Theo dispara a pergunta e me pega de surpresa.

Respiro fundo.

— Eu não reconheci você, Theo. — Ele me encara. — De verdade, eu não fazia ideia!

— Mas, quando eu disse, você negou!

Assinto e tento controlar as lágrimas. Nunca pensei que iríamos ter essa conversa tão cedo e muito menos no corredor de um hospital.

— Eu tive medo — confesso. — Havia a possibilidade de Tessa ser sua filha, e eu fiquei com medo de você tentar tirá-la de mim.

Ele para no meio do corredor.

— Por que eu faria isso? Por que tiraria minha filha de sua mãe? — Aproxima-se. — Nós estávamos juntos. Você poderia ter confiado em mim e...

Rio, amarga.

— Confiado em você? — Limpo uma lágrima de meu rosto, com raiva. — Assim como fiz na questão do Hill? — Ele fica lívido, e eu percebo que sabe do que estou falando. — Sim, eu sei da promissória que a Karamanlis tem desde o ano passado e que, em nenhum momento, você citou durante o tempo em que “estávamos juntos”.

Um pigarrear chama nossa atenção, e a enfermeira nos olha sem jeito.

— Vocês ainda vêm?

Assinto e caminho rapidamente ao seu lado sem nem mesmo olhar para Theo, embora sentindo sua presença atrás de mim. É risível ele me falar de confiança, quando o tempo todo esteve omitindo de mim uma informação importante, e o pior, dizer que estávamos juntos, quando, na verdade, ele estava fazendo planos de casamento com outra!

Chegamos à sala de coleta de material para exames, e o instalam em uma confortável poltrona antes de começarem a fazer uma pesquisa de sua vida. Perguntam-lhe sobre saúde, histórico familiar, vícios, remédios e etc. O patologista colhe duas amostras de sangue e recomenda a ele que fique um tempo sentado.

— Eu ia te contar da promissória — ele volta ao assunto. — Ia contar naquela noite em que vi as fotos no quarto de Tessa.

— Ah, muito conveniente! Você teve quase um mês para me contar, Theo. Não o fez porque não quis.

— Eu pedi o cancelamento da ação de execução, Duda. Não queria mais que a Karamanlis comprasse sua propriedade. Eu disse a você.

— Assim como disse que saiu com Valentina antes de me conhecer. — Theo arregala os olhos e se levanta parcialmente da poltrona. — Você esteve o tempo todo comigo, mesmo fazendo planos de se casar e ter filhos com ela!

Ele fica pálido, e eu vejo a verdade em seus olhos. Sinto como se uma faca quente fosse enfiada em minha carne, cortando e queimando ao mesmo tempo, causando uma dor terrível. Eu sei que vi a confirmação na revista, mas saber que ele esteve o tempo todo com as duas é difícil demais.

Theo se levanta e tenta me tocar.

— Eu não tinha ideia de que ia me...

— Você ficou noivo, pelo amor de Deus! — Repudio seu toque.

— Do que você está falando?

Rio, não acreditando que ele ache mesmo que eu vou cair nesse jogo.

— Eu vi, Theo, o Brasil inteiro viu! — Dou de ombros. — Vou voltar para perto da minha filha. É isso o que importa no momento. O resto não tem mais sentido.

Saio da sala no exato momento em que a doutora Amália chega para conversar com Theo sobre o cadastro no banco de medula óssea.

Não impeço as lágrimas de caírem. Não me importo de receber olhares preocupados e cheios de pena das pessoas que cruzam comigo pelo corredor. Quero deixar ir. Foi bom conversar com ele, expor tudo o que eu sabia, deixar as coisas em pratos limpos para que pudéssemos nos concentrar apenas em Tessa.

Chego à sala, e o procedimento em minha menina ainda está sendo feito. Manola está com tia Do Carmo e corre até mim quando vê meu estado.

— Ah, meu Deus, o que aquele vadio aprontou agora?

— Nada, só conversamos um pouco. — Toco minha cabeça. — Estou com dor, cansada...

— Vá para o apartamento, tome um banho direito, descanse. Eu fico aqui com a tia, e a gente te informa de qualquer novidade.

— Não quero deixar a Tessa.

— Duda, só por umas horinhas. O doutor a está examinando, vai começar uma nova transfusão, e isso demora horas, então pode ir sem medo.

Olho para dentro do quarto e vejo Tessa sorrir para uma das médicas, que tem pintada no rosto uma enorme borboleta. Concordo em ir, afinal, mal tive tempo para comer e dormir nesses dias. Apenas cochilo, tomo banhos rápidos e engulo qualquer porcaria.

— Tente não criar caso com ele. — Manola faz careta para o meu pedido. — Eu também gostaria muito de lhe dar uns bons tapas, mas...

— Eu sei, vou me comportar, pelo menos até Tessa se restabelecer.

Rio dela e a abraço.

— Obrigada por tudo, minha amiga.

— Não precisa agradecer, somos uma família.

Sim, ela tem razão. Há muito tempo percebi que o que faz com que pessoas se sintam em família nada tem a ver com laços de sangue, mas sim com o amor e confiança que as unem.


Tessa é minha filha!

Não preciso de exame algum para comprovar o que, a todo tempo, algo dentro de mim insistiu para que me desse conta desse fato. As lembranças de Kyra a cada sorriso dela, a sensação de já tê-la visto. Como pude não notar? Minha filha é a imagem de giagiá Dorothea quando criança. Os cabelos, os olhos, o sorriso, em tudo ela lembra a matriarca dos Karamanlis.

Penso nas fotos espalhadas pelos porta-retratos no quarto de minha avó. Ela se orgulhava muito de ter sido tão linda na infância e juventude. Suas fotos de criança traziam muitas memórias importantes para ela, pois eram os únicos registros de seus dois irmãos mais velhos, mortos durante a Batalha da Grécia, quando a Alemanha nazista e a Itália fascista tentaram invadir o país em 1941.

Foi tudo tão estranho e ao mesmo tempo se encaixou tão perfeitamente que eu ainda estou surpreso, mas não em choque.

Os acontecimentos na Grécia foram decisivos para que eu entendesse que, independentemente do que aconteceu no passado, eu me apaixonei pela Duda, não por causa da transa há mais de oito anos, mas sim pela mulher que conheci nesses últimos meses.

Estava disposto a entender o motivo pelo qual ela escondera de mim quem era, que já nos havíamos conhecido e a fazer me admitir a verdade. Não importava o passado, eu aprendera a amar a mulher que ela se mostrara para mim. Eu só não esperava que as mentiras – ou omissões – fossem tão sérias a ponto de ela esconder de mim que eu tinha uma filha.

Cheguei ao Brasil antes do dia previsto. Abri mão de participar da festa de pappoús depois da discussão que tivemos sobre a “futura senhora Theodoros Karamanlis”.

Depois dessa pequena, mas tão importante discussão, arrumei minhas malas, consegui um voo comercial para o Brasil e decidi que iria me dar a chance de ser feliz ao lado de quem eu amava. Só precisava esclarecer as coisas. Eu mesmo tinha muito a contar para ela!

Cheguei a São Paulo e encontrei Dionísio já à minha espera, pois havia mandado mensagem avisando do meu retorno assim que o avião começara a taxiar na pista, já imaginando que demoraria para o desembarque e para eu recuperar minhas malas. Eu não costumava usar voos comerciais, mas acertei na demora.

— Bom dia, doutor! Fez boa viagem? — ele me cumprimentou assim que abriu a porta para que eu entrasse no carro.

— Fiz, sim, Dio. — Não perdi tempo e disse logo meu destino. — Vamos para a casa da Maria Eduarda Hill.

Ele ficou com a porta aberta, parado, olhando-me como se tivesse ocorrido algo. Senti meu corpo inteiro gelar.

— Chefe... a senhorita Hill se mudou.

— O quê?! Como assim se mudou?! — não escondi meu tom de desespero.

— Pelo que a Nola me contou... — fiz careta, pois não sabia quem era “Nola” — ela vendeu o Hill e ia recomeçar a vida em outro lugar.

Foi como se todo o sangue do meu corpo tivesse sido drenado. Fiquei branco feito papel, frio, paralisado. O que acontecera durante os 15 dias em que eu estivera fora?! Não pensei duas vezes e liguei para o Millos.

Meu primo atendeu ao segundo toque:

— Porra, Theo, estou tentando...

— O que você fez, seu imbecil?! — interrompi-o aos berros. — Quem autorizou a Karamanlis a comprar o Hill na minha ausência?!

— Não fomos nós! — ele gritou de volta. — Ela precisou vender com urgência, Theo, e a rede Dominus comprou!

Dionísio entrou no carro e me olhou pelo retrovisor, esperando que eu lhe dissesse para onde iríamos. Não consegui racionar. Minha cabeça dava voltas, só pensava que Duda fugira de mim, que eu a apavorara quando tinha descoberto sobre ela ser a garota da boate, mas por quê?

— Preciso encontrá-la, Millos! — disse em desespero. — Preciso conversar com ela, entender, eu... — Comecei a chorar dentro do carro, sem me importar se Dio estivesse ali ou não. — Eu amo aquela mulher, Millos, não posso perdê-la.

— Theo, ela está no hospital com Tessa — Millos informou em tom grave. — A menina está gravemente doente, Theo, necessita de transplante.

Eu mal conseguia respirar naquele momento. Senti o corpo inteiro arrepiar, o coração parecia ter parado, e o rostinho alegre de Tessa apareceu nitidamente para mim.

— Em qual hospital, Millos?

— Eu sei onde, chefe — Dionísio se intrometeu na conversa e ligou o carro.

— Tem mais, Theo — Millos continuou. — Duda descobriu sobre a promissória e...

— Eu vim disposto a resolver tudo isso com ela, Millos, mas imagino como ela está apavorada por causa da filha. Não sei se...

— Theo, a menina pode ser sua.

Não entendi no primeiro momento o que ele quis dizer, pois, como expliquei várias e várias vezes a vocês, não via conexão entre a minha Duda e a garota dos cabelos rosa, mesmo com todas as evidências de que eram a mesma pessoa.

— Duda me contou sobre vocês terem se conhecido anos atrás e...

Puta que pariu!

Essa era a peça que não se encaixava na história toda, o motivo pelo qual ela ficara tão apavorada quando eu descobrira a verdade, o motivo pelo qual continuara a negar. Tessa poderia ser minha filha, mas como? Eu tinha usado camisinha e, quando a tirara... Não me lembrava de quando a tirara. Não olhara para ela, estava bêbado demais, tinha acabado de fazer um sexo muito louco e de gozar, não olhara a porra da camisinha!

Minha cabeça foi dando voltas até eu chegar ao hospital. A emoção se misturava à revolta por Duda ter escondido isso de mim durante todo esse tempo. Eu já não albergava dúvidas com relação à paternidade. Era claro como o dia que Tessa era minha, eu sentira isso a cada momento em que estivéramos juntos.

Entrei no hospital feito um louco. Demorei a descobrir onde ela estava internada e soube que só poderia ir até o quarto contíguo, pois Tessa estava em isolamento por conta de sua baixíssima imunidade.

Bati à porta do quarto, mas ninguém atendeu, então entrei e vi Tessa no leito do hospital, terminando de comer. Duda estava de costas para mim e recolhia a bandeja com o café da manhã da menina. Então Tessa me viu, e pude ouvir em minha mente, mesmo o som não passando pelo vidro que separava uma área da outra, o meu nome e vi a felicidade em seu rosto.

Minha menina!

Correspondi ao seu sorriso e a cumprimentei, sentindo meu peito explodindo de emoção, até Maria Eduarda se virar e nossos olhos se encontrarem. Fiquei sério, senti a revolta de só ter descoberto que era pai porque minha filha estava em um hospital. Duda me contaria a verdade se Tessa não estivesse doente? Pelo desespero dela naquela noite em que eu vira as fotos, acreditei que não.

Duda disse algo a Tessa e saiu para falar comigo, dispensando a roupa descartável que usava, colocando-a num cesto de lixo.

— Você veio.

Pude sentir a emoção em sua voz, em seus olhos brilhando com lágrimas. Tive vontade de abraçá-la, imaginando tudo o que tinha passado naqueles dias, mas não me aproximei. Tínhamos muito a conversar.

— Como ela está? — perguntei sem rodeios.

— Fazendo transfusões, mas muito fraca. Ela precisa de um doador e...

— Quero falar com ela — interrompi-a. — Por favor.

Duda assentiu, ajudou-me a colocar toda a proteção para que eu não prejudicasse o estado de Tessa e entrei com sérias recomendações de evitar tocá-la ao máximo, mesmo querendo segurá-la contra mim e nunca mais soltá-la.

— Que bom que você voltou, Theo! — Tessa falou cheia de emoção. — Mamãe disse que você viria assim que soubesse. Eu já estava com saudades!

— Meu coração soube, Tessa. — Sorri por detrás da máscara. — Eu sabia que tinha que voltar e agora nunca mais vou ficar longe de você, eu prometo.

Seu rosto se iluminou, as covinhas reaparecem e os olhos brilharam. Senti meus cílios cada vez mais úmidos. A emoção causou um nó em minha garganta tão grande que me impediu de engolir e de respirar direito. Queria muito abraçá-la, mas sabia que não era bom para ela, por isso me contive.

Olhei para fora do quarto e vi Duda contra o vidro que separa os cômodos, rosto inchado de chorar, mas um enorme sorriso. O nó em minha garganta só aumentou, meus olhos queimaram segurando as lágrimas e meu corpo inteiro tremeu com a emoção misturada ao medo.

— Theo... — Tessa me chamou e tocou minha mão por cima da luva. — Não precisa ter medo, eu vou ficar bem!

As lágrimas rolaram nesse exato momento, mas tentei sorrir. Olhei novamente para Duda e a vi secar o rosto, mas ainda soluçando.

Minutos depois tivemos a conversa mais reveladora e misteriosa que eu já tive em minha vida. Ainda estou magoado por ela ter me escondido sobre Tessa, mas acredito no que disse sobre não saber até o momento em que vi as fotos. Acredito nela!

Ainda me sinto zonzo, talvez por causa dos exames e da enxurrada de perguntas para o cadastro no banco de medula. Fiquei muito feliz em poder contribuir com isso, em perceber o quanto é simples e como pode fazer diferença caso eu seja compatível com alguém.

Nunca pensei sobre doação de órgãos – ou mesmo de sangue ou medula –, e esse momento com minha filha me despertou essa consciência, que já deveria ser de todos nós. Podemos, sim, ajudar a salvar vidas!

Sorrio ao pensar em como me referi a Tessa: minha filha.

Eu tenho uma filha!

 

 

Vanda toma um susto ao me ver sentado à mesa da cozinha, xícara de café vazia, bem como meia garrafa de uísque. Sorrio sem jeito para ela, todo amarrotado e entendo sua surpresa, afinal, não tinha previsão de eu estar tão cedo no Brasil, quiçá desse jeito em que me encontro.

O dia ontem foi muito mais emocionante do que eu poderia ter sonhado. Voltei disposto a ter Maria Eduarda em minha vida para sempre, formar uma família com ela e Tessa e acabei descobrindo que a menina é minha filha. Sim, o resultado de DNA saiu no começo da noite e só comprovou aquilo que meus olhos e meu coração já sabiam: Tessa é minha!

Porém, junto à euforia de uma notícia tão boa, veio também a decepção por eu não ser compatível para a doação. No momento, o mais importante é conseguir um doador para que ela volte a ser a menina cheia de vida, aquela minimetralhadora de palavras que conquistou meu coração.

Queria muito dividir a notícia com Maria Eduarda, mas não a vi o resto do dia, nem mesmo quando voltei ao quarto para me despedir de Tessa e soube que minha filha estava dormindo enquanto recebia mais concentrado de hemácias e plaquetas e que Duda havia ido ao apartamento que alugara, a fim de descansar.

Dona Maria do Carmo me informou tudo isso friamente, sem o sorriso acolhedor que sempre me dera, então me despedi, garantindo minha volta no dia seguinte e saí do hospital com a intenção de ir para casa. Não fui.

Fiquei um bom tempo parado na frente do Hill, agora com assinatura da rede Dominus embaixo do nome do pub, olhando para as janelas do apartamento no qual dormi com Maria Eduarda pela primeira vez – ou segunda –, lembrando-me do seu cheiro, do sabor de sua pele, do som dos seus gemidos enquanto gozava.

Sinto falta dela. Queria poder estar comemorando com ela a descoberta de que temos uma filha juntos, mas tenho consciência de que ela nunca teria me contado caso Tessa não precisasse de um transplante urgente.

Deixei um recado para Hal Navega, um amigo que é advogado, adiantando o assunto de Tessa e já perguntando o que era preciso para fazer o reconhecimento de paternidade o mais rápido possível. Imagino que ele irá tomar um susto ao ler a mensagem, mas quero que minha filha tenha meu nome e que saiba quem eu sou o mais rápido possível.

Cheguei à cobertura já de madrugada, morto de fome por ter passado o dia todo dentro do hospital sem comer sequer uma refeição, preparei uns sanduíches, café, e, ainda sem conseguir dormir, tomei umas doses de uísque para tentar clarear as ideias. Duda me disse algumas coisas bem intrigantes, principalmente sobre Valentina, e isso vem martelando em minha cabeça desde então.

— Sou eu mesmo, não um fantasma — tento brincar com Vanda, mas ela ainda tem os olhos arregalados.

— Pois parece, viu? — Aponta para minha roupa. — Mais café?

Ela vai até a máquina, mas nego, levantando-me.

— Vou tomar um banho para ir até o hospital e...

— Quem está no hospital? — ela pergunta preocupada.

Respiro fundo, desejando que isso não fosse verdade.

— Tessa. — Ela põe a mão sobre o peito. — Você tinha razão, o que ela tem é sério.

Vanda para de fazer o café e me encara assustada.

— Como está Maria Eduarda? A menina vai ficar bem? O que ela tem?

Calmamente lhe explico o que aconteceu e termino dizendo que, por causa disso tudo, acabei descobrindo que Tessa é minha filha, que conheci Duda há anos, durante uma viagem para a Grécia enquanto ela ainda estudava na França.

— E vocês não se lembraram disso? — questiona sem acreditar na coincidência. — Nem mesmo tiveram a sensação de que já se conheciam?

— Só posso responder por mim, e não, nunca a associei àquela moça da boate, nunca!

Vanda enruga a testa como sempre faz quando está pensando.

— Um não lembrar, tudo bem, mas os dois? Ainda mais que desse encontro nasceu a menina!

Não digo a ela que Duda não sabia quem era o pai da criança, que ela tinha um namorado na época e que, pelo visto, ele não quis assumir a responsabilidade sem ter certeza de que era realmente o pai. Mais uma coisa que eu não consigo ver a Maria Eduarda que conheço hoje fazendo: trair. Porém, ela era jovem, estava em uma fase de euforia, curtindo um sonho e pode ter se permitido viver aquela experiência comigo.

Dou de ombros e sigo para meu quarto, tomo banho, visto uma roupa limpa e, ainda sem nenhuma vontade de dormir, decido voltar ao hospital para acompanhar minha filha.

Meu celular toca, e eu atendo Millos.

— Bom dia!

— Bom dia, Theo. Notícias da Tessa? — Ele parece preocupado, e eu sei que deve estar.

— Ontem, quando saí de lá, ela estava recebendo mais uma transfusão. — Suspiro e me sento na beirada da cama. — Meu teste deu incompatível.

— O meu também, soube hoje. — Xingo baixinho. — O pessoal do laboratório que você mandou ontem já colheu amostras de Kostas e Alex.

Isso me surpreende.

— Eles aceitaram doar caso sejam compatíveis?

Millos ri, dizendo:

— Alex aceitou assim que eu contei a situação. Kostas, você já conhece... — Bufo de raiva. — Ele faz essa cena de insensível, mas no fundo é só um imbecil tentando chamar a atenção.

— Espero que não banque o imbecil se for compatível.

— Não vai, vou garantir isso. Não se preocupe.

— E Kyra? — minha voz sai baixa ao perguntar por ela. Não sei se toda a mágoa que ela sente de mim permitirá que ela nos ajude nesse momento.

Millos suspira, e eu fecho os olhos.

— Deixei recado; não me respondeu.

— Está certo. Ela tem os motivos dela, e eu compreendo isso.

Eu a feri muito com o que fiz no passado, prejudiquei seu futuro, mexi com seu psicológico. Não tenho ideia do que ela passou depois de tudo aquilo, mas sei que, assim como em meus outros irmãos, deixou feridas profundas nela.

— E a Duda? Conseguiram conversar? — Millos muda de assunto.

Essa é outra questão difícil.

— Pouco. Eu estava de cabeça quente com essa história de ela ter escondido a menina de mim, e ela, magoada por ter descoberto sobre a promissória. Quem contou?

Millos demora um tempo a responder.

— Kostas. — Rio, imaginando o motivo pelo qual perguntei. — Duda esteve na empresa, e por algum motivo ele falou da promissória.

— O único motivo que ele tem: me ferrar! — Lembro da fúria de Maria Eduarda e do assunto estranho sobre Valentina. — Como ela soube de Valentina? Que eu saiba, Kostas não tinha essa informação.

— Era sobre isso que eu queria falar com você — Millos soa frustrado. — Vai mesmo fazer isso? Depois de ter dito que ama Maria Eduarda, vai mesmo se casar com Valentina só para agradar ao pappoús?


Não entendo a pergunta de Millos. Como ele acha que eu seria capaz de me casar com alguém que não a mulher que amo?

— Não, claro que não! — respondo indignado. — Inclusive disse ao vovô minha decisão de não me casar apenas para agradá-lo.

A conversa, que acabou por antecipar minha volta ao país, volta à minha memória, e eu acabo por revisitar cada momento dela, a sensação de libertação e, ao mesmo tempo, de dor.

— Já se entendeu com a futura senhora Karamanlis? — ele me questionou há dois dias. — Estou querendo saber se poderei anunciar seu casamento em minha festa. — Ele sorriu. — Você poderia ter trazido a moça para passar pelo meu crivo e...

Não pude aguentar mais e o interrompi, mesmo sabendo que ele odiava que eu fizesse isso.

— Não vou me casar para lhe agradar e dar a você um bisneto.

— Theo, você prometeu... — Ele tossiu. — Eu estou esperando que meu primeiro bisneto venha de você.

— Eu sei, mas o senhor não tem só a mim como neto. — Dei de ombros e vi a indignação em seus olhos. — Vou ser pai quando tiver que ser pai. Não vou me casar só por isso.

— Você já tem 41 anos, pelo amor de Deus, garoto!

Ri dele e de sua pressa para que eu procriasse. Os tempos mudaram, era o que eu gostaria de dizer a ele somente para provocá-lo, mas decidi ser sincero.

— Eu conheci uma mulher. — Ele ficou sério. — Nós nos envolvemos. Eu pensei que era só uma questão de sexo, mas não.

— Theodoros...

— Eu estou apaixonado por ela e, se tiver que me casar e ter filhos com alguém, será com Maria Eduarda, caso o senhor goste ou não.

Cruzei os braços, esperando uma reação tempestuosa, exigências para saber todo o “currículo” dela e recriminações por ela não ter “pedigree” segundo seus padrões.

— Você não aprendeu nada com o que houve anos atrás, Theodoros? — sua voz fria e debochada foi uma surpresa. Ele iria jogar pesado comigo. — Não percebeu que a paixão só te fodeu, acabou com o pouco que você tinha de família e ainda o humilhou a ponto de você cheirar a peixe?

Meu avô me conhecia muito bem, sabia exatamente onde me cutucar para ferir e sangrar, só que eu já não era mais um “garoto”, sabia muito bem a diferença do que acontecera no passado e do que sentia naquele momento. O que eu sentia por Maria Eduarda não era a paixão desenfreada de um adolescente carente, era amor de um homem experiente que já aprendera com seus erros.

— Não estou pedindo sua aprovação, pappoús. Só lhe informando que espero, sim, cumprir a promessa de me casar e ter filhos, mas nos meus termos, e o principal deles é a mulher ser Maria Eduarda.

Pus-me de pé a fim de encerrar o assunto, mas não seria tão fácil.

— Só espero que ela não seja mais uma p...

— Cuidado, vovô! — interrompi-o novamente. — Não a ofenda. — Ri. — Ela não vem de família rica, nem tradicional, eu não posso tirar qualquer proveito de suas conexões, mas é a mulher que eu amo, e é só o que importa.

Surpreendentemente isso foi o necessário para calar qualquer argumento do todo-poderoso Geórgios Karamanlis.

— Então como você explica o anúncio do noivado do CEO da Karamanlis do Brasil ter saído em uma revista da alta sociedade? — Millos interrompe minhas lembranças e me deixa branco.

— O quê? — Levanto-me, sem entender o que está acontecendo. — Como assim anúncio de noivado? Com Valentina?

Millos ri, percebendo que não sei de nada.

— Isso só pode ser coisa daquele velho manipulador! — exclama, mas para de rir de repente. — Viviane...

— O que tem Viviane, Millos? — Paro de andar de um lado para o outro, sentindo já o gosto amargo da decepção.

— Quando fui atrás da Maria Eduarda no hospital, juro ter visto Viviane entrando em um táxi. Não me liguei muito nisso, estava preocupado com a Tessa, mas... — Ele respira fundo. — Por que Viviane estaria lá?

Ponho a mão na cabeça, lembrando-me da insistência de minha “sócia” com relação à amiga. Sim, pode ter sido tudo uma armação!

Eu estava no jantar na mansão do pappoús em Atenas quando recebi o telefonema de Valentina. Surpreendentemente, ela estava na Grécia também e queria me ver. Encontrei-a no dia seguinte à ligação no saguão do hotel onde estava hospedada. Ela parecia muito feliz, abraçou-me carinhosamente e até tentou me beijar, o que eu impedi a tempo.

— O que você está fazendo aqui, Valentina? — inquiri diretamente.

— Pensei em relaxar uns dias em Santorini e soube que você estaria aqui para uma comemoração familiar, então liguei. Fiz mal?

Respirei fundo.

— Não, claro que não! Quando vai para Santorini?

Ela titubeou, respirou fundo e então sorriu sem jeito.

— Pensei em mudar a rota se você me convidasse para ficarmos juntos. — Ela se grudou em mim. — Não tivemos essa oportunidade no Brasil, aqui poderia ser...

— Não, me desculpe. — Afastei-a. — Eu já devia ter dito isso de forma direta, como gosto de ser com tudo, mas não vai acontecer nada entre nós. Eu sinto muito se dei a entender que...

— Mas Viviane me disse que você precisava de uma esposa e...

Eu ri, na verdade gargalhei, ao ouvir isso. Tudo bem, imaginei que Viviane estaria conduzindo a situação, mas não dessa maneira, não que ela praticamente oferecesse minha mão a alguém.

— Sim, eu precisava, mas não desse jeito. Sinto muito se isso levou você a crer que iríamos nos casar. — Franzi o cenho, curioso ao ver sua expressão de decepção. — Por que uma mulher como você aceitaria uma proposta dessa? Você é jovem, linda, inteligente, rica... não tem por que se submeter a isso!

Naquele momento percebi que alguma coisa estava acontecendo pelas minhas costas. Valentina ficou vermelha, afastou-se de mim como se tivesse asco, mas ao mesmo tempo parecia aliviada e sorriu. Não entendi absolutamente nada e fiquei pasmo quando ela me encarou antes de voltar ao seu quarto no hotel e disse:

— Por amor! — Sorriu triste. — A gente faz qualquer coisa por amor.

Fiquei parado, olhando-a se afastar, tendo certeza de que havia perdido algum detalhe muito importante daquela história, talvez por eu não ter me interessado tanto por ela, por estar enlouquecido pela Duda ou somente por ser burro demais para perceber algo além do óbvio.

De qualquer maneira, o assunto Valentina estava encerrado, ou eu pensei que estivesse, até descobrir, agora, que a história de um noivado que nunca existiu está circulando por aí.

— Viviane... — rosno baixo, sentindo a raiva tomar conta de mim.

Não entendo o motivo, mas sei que há algo por trás disso tudo, do interesse dela em que eu fique com Valentina. Não pode ser dinheiro. Viviane não precisa de mim para nada na empresa, sabe muito bem que, se quiser, pode ficar com tudo, pois não apareço na sociedade por conta do impedimento no estatuto da Karamanlis.

É por isso que sempre confiei nela para tudo! Sempre foi honesta, nunca tive motivo algum para desconfiar dela, pelo contrário! Então qual é a jogada?

— Millos, preciso ir — aviso pouco antes de desligar sem ao menos ouvir seus protestos.

Essa foi uma situação muito séria, não foi uma brincadeira ou qualquer coisa do tipo. Viviane jogou com minha vida e a de Valentina, e eu não entendo o porquê.

Desço para a garagem do prédio fazendo pesquisa para ver se encontro algo sobre o falso noivado e, quando encontro – no site da própria revista de fofocas –, sinto meu sangue ferver ao reconhecer a foto e o local onde foi tirada. Valentina foi parte nisso tudo também, foi até Atenas apenas para armar isso tudo com a amiga. Por quê?

Dirijo feito um doido até o apartamento de Vivi na Vila Mariana. Estaciono o carro de qualquer jeito e aceno para o porteiro, que já me conhece de longa data, e ele autoriza minha entrada no prédio.

Toco a campainha, e Viviane abre a porta, vestida apenas com um roupão de seda, totalmente surpresa com minha presença.

— Theo! — Sorri sem jeito. — Você já voltou? Que surpre...

— Que merda é essa, Vivi? — Mostro a foto na tela do meu celular e entro no apartamento. — O que vocês pretendiam afinal? Que armação mais esdrúxula é essa?

Viviane fica branca, parada no meio da sala.

— Eu não sei do que...

— Não, por favor! Não negue. — Aproximo-me dela. — Você foi atrás da Duda no hospital, Millus te viu saindo de lá. Por quê?

— Eu.. eu... — ela gagueja — queria saber da menina.

— Como você soube que Duda tem uma filha e que Tessa estava internada lá? — Bufo quando ela começa a chorar. — Porra, Viviane, abre o jogo de vez!

Ela soluça.

— Eu só não quero perder você! — sua voz desesperada me assusta. — Não posso perder você, Theo!

— Do que você está falando? — Meu corpo inteiro treme, e não reconheço a mulher desesperada à minha frente. Viviane nunca foi assim, nunca!

— Você nunca percebeu que eu amo você? — indaga baixinho, como se fosse um segredo muito bem guardado que ela tinha medo de revelar. — Como você nunca percebeu que eu amo você?

— Nós nunca falamos sobre isso. — Sinto-me um tanto perdido com essa revelação. — Nossa relação nunca foi sobre sentimentos, Viviane, e eu sempre achei que você sabia e gostava disso.

Ela dá de ombros.

— Eu me apaixonei, mas sabia que não podia mudar as regras do seu jogo, então decidi ser sua amiga. Eu estava satisfeita com isso, com nossa amizade. Me divertia te acompanhar, ser seu braço direito, ter sua confiança, porque sei que você não confia muito nas mulheres. — Ela funga e limpa o nariz. — Mas então seu avô decidiu que queria que você tivesse um filho. Eu pensei em me disponibilizar para fazer isso com você, mas veio essa história de ser uma mulher “de berço”.

Balanço a cabeça, pensando na loucura do que estou ouvindo. Nunca a enganei, nunca sequer lhe dei esperanças ou a iludi com relação ao que tínhamos quando estávamos trepando. Era só sexo, só diversão, e nos divertimos muito! Viviane sempre guardou muito bem esse “amor” que sente por mim, pois nunca percebi, pelo contrário, achava que ela era uma versão feminina minha, pois erámos muito parecidos.

— Por que Valentina? O que você pretendia, afinal?

Viviane sorri.

— Conheci Valentina em uma festa e, já no primeiro contato, soube que a menina de ouro dos “de Sá e Campos” escondia algo da família, e isso a envergonhava muito. — Vivi anda até o aparador de bebidas e se serve de uma dose de uísque. — Ser lésbica era algo que eu sabia que a afastaria da família tão tradicional que esperava que ela seguisse os caminhos do pai ou do avô.

Arregalo os olhos com a revelação, e Viviane ri.

— Homens nunca percebem essas coisas! — debocha. — Precisei de 10 minutos conversando com ela para saber que não curtia os homens que estavam nos convidando para beber com eles. Convidei-a para ir a outro lugar, trepei com ela e pronto.

— Você a usou para continuar próxima a mim? — a ideia é tão revoltante que mal consigo preferir a pergunta, tamanho asco.

— Ela é tudo o que você queria! Tem berço, é jovem, bonita, gosta de artes e é apaixonada por mim. — Bebe um longo gole antes de continuar: — Te daria o tão sonhado herdeiro daquele velho misógino que você tem por avô e me proporcionaria estar perto, ser parte da família. — Ela fecha os olhos e abre um sorriso. Um frio perpassa minha coluna. — Eu conheço você. Sei que não iria se satisfazer com ela, então...

— Você seria nossa amante — completo em total assombro, e ela assente.

— Seria tudo perfeito, mas errei ao escolher uma lésbica e não uma bi. — Dá de ombros como se isso não fosse nada, como se ela não estivesse falando de uma pessoa. — Valentina não conseguia tocar você, sentia nojo dos seus beijos, e eu tinha que compensá-la bem para que continuasse a te ver. — Ri bastante. — A idiota ficava aliviada quando você não aparecia ou desmarcava algo, e eu não entendia o que estava errado, porque você nem ao menos tentou levá-la para a cama!

— Você está doente, Viviane — digo com sinceridade, sentindo pena dela. — Não percebe que tudo isso que fez foi errado?

— Meu querido, no amor e na guerra vale tudo! Eu só não contava com essa “Duda” atrapalhando tudo. — Ela gargalha. — Meu Deus, Theo, eu nunca poderia supor que uma cozinheira de bar cheirando a bolinho iria te atrair.

Respiro fundo antes de pôr um ponto final nessa loucura toda.

— Acabou, Viviane. — Ela concorda. — Conversei com Valentina em Atenas, resolvi essa situação toda e agora, depois de saber de tudo isso...

— Sente pena de mim — seus olhos estão vidrados ao dizer isso.

— Sinto. — Sou sincero. — Acho que você deveria buscar ajuda. Isso não é amor. Quem ama não age assim.

Ela ri.

— O que você sabe sobre isso, Theodoros? — Gargalha. — Você é podre, oco por dentro, um homem que só usa as mulheres e não sente nada por elas. Busca sexo para suprir a carência da merda de vida que tem, sem afeto, sem amigos, sem ninguém!

— Não vou mais investir na sua empresa — informo-lhe, e ela ri, cínica. — A partir de hoje, já não tenho mais nenhuma ligação contigo, nem profissional, nem pessoal. Espero que você entenda isso e que, para seu bem, busque ajuda.

— Foda-se, Theodoros Karamanlis!

— Eu me fodi, pode ter certeza. — Caminho para a saída, e ela se levanta, entrando na minha frente. — Viviane, não...

— Por favor... — Chora e segura minha camisa. — Eu não sei o que vou fazer sem você! Por favor!

Afasto-a de mim.

— Adeus. Espero que você fique bem.

Alcanço a porta e a escuto gritar:

— Isso não acabou, Theo! Você não vai ser feliz sem mim, não vai!

A sua voz fica ecoando em meus ouvidos por muito tempo, acompanha-me enquanto dirijo sem rumo, ainda digerindo tudo o que ouvi, tudo o que ela foi capaz de fazer por uma obsessão. Sinto pena de Valentina, tão enganada nessa história quanto eu, usada por conta de uma situação que já lhe é difícil – a aceitação de sua sexualidade – de maneira vil e cruel.

Pelo visto, Viviane iria pôr a culpa da publicação do falso noivado na moça e iria continuar bancando a amiga desinteressada enquanto tentaria minar meu relacionamento com Maria Eduarda.

Tenho que ter cuidado com ela, principalmente quando todos souberem de Tessa. Viviane não está bem, e uma pessoa assim pode ser capaz de tudo.

Dirijo por mais algum tempo, tentando baixar toda a tensão e me livrar da energia ruim causada por meu confronto com Viviane e sigo para o hospital para ver minha menina e, quem sabe, conseguir conversar com a mãe dela. Deixo o carro no estacionamento do hospital e entro ansioso para rever Tessa, mas, ainda na recepção, paro em seco ao ver Kyra.


Minha irmã tem os olhos e o nariz vermelhos, sinais claros de que andou chorando. Seus cabelos negros estão presos em um rabo de cavalo, suas íris verdes não escondem o espanto ao me ver. Ela mantém o braço esquerdo dobrado para cima, como é recomendado a quem acabou de retirar sangue.

Meu coração dispara, e um sorriso de gratidão preenche meu rosto. Kyra tem motivos para ignorar meu pedido de ajuda, mas não o fez, provavelmente não por minha causa, mas por minha filha, e isso me emociona.

— Obrigado — sussurro ainda com medo de ela passar por mim fingindo que não me vê ou escuta. — Muito obrigado por vir.

— Fiz isso pela menina.

Meus olhos se enchem de lágrimas ao ouvir sua resposta. Não, não estou triste por ela ter dito que fez isso por causa de Tessa, estou emocionado por ela ter me respondido depois de mais de 20 anos de total silêncio.

— Ela lembra você — confesso. — Mesmo antes de eu ter ideia de que era minha filha, olhava para ela e me lembrava de você.

Kyra olha para os lados. Noto que está se esforçando para não chorar.

— Sim, ela mesma notou isso. Os olhos. — Sorri e me encara. — Eu espero poder ajudar, mas agora tenho que ir. — Aponta para a saída, e eu assinto, dando um passo para o lado.

Kyra passa por mim, mas algo me incomoda. Há um bolo em minha garganta, e sinto meu estômago fritar. É como se algo gritasse dentro de mim, mas não encontrasse voz para dizer o que preciso falar para ela.

Vejo-a se afastar, então começo a me mover rapidamente, e ela, percebendo que estou indo atrás de si, para e me encara curiosa.

— Me perdoe! — peço antes de voltar a ser o covarde de sempre. — Eu sei que te causei muito danos, sei que acabei com sua infância, não imagino o que você sofreu, mas creio que não deva ter sido fácil, e você era só uma menininha...

— Theodoros, não...

— Por favor, me escuta! — Soluço, e uma lágrima cai sobre minha camisa. — Eu fui um covarde esses anos todos, achando que era melhor me manter longe, consumido pela culpa de ter destruído o mínimo de família que tínhamos. Não quero mais ser assim, não quero há muito tempo. — Kyra seca o rosto, e eu a puxo para um abraço, apertando-a contra meu corpo. — Não sei se consigo fazer com que você me veja como seu irmão de novo, mas eu morro de orgulho de você, de quem se tornou, da mulher bem-sucedida, independente e linda. Eu sinto muito por não fazer parte da sua vida! Eu quero, Kyra, mas entendo que você não possa me perdoar.

— Theo... — Ela chora copiosamente e não consegue falar.

— Eu amo você, mikrí adelfí39! Nunca deixei de amá-la, e, nesses anos todos, tudo o que eu mais sonhei foi isso! — Aperto-a mais contra mim. — Te abraçar, pedir perdão e dizer o quanto te amo!

Solto-a, e ela tampa o rosto com as mãos, seus ombros trêmulos de chorar. As pessoas passam por nós dois, parados chorando na porta do hospital, e nos olham com pena e curiosidade. Eu não trocaria esse momento por nada. Foi ensaiado há anos de maneira diferente, racional, sem lágrimas, mas aconteceu como deveria ter acontecido.

Kyra arruma sua bolsa no ombro, vira as costas e caminha em direção à calçada. Suspiro resignado, aliviado por ter pedido o perdão que há anos está preso dentro de mim, mesmo sabendo que esse pedido não apaga tudo o que a fiz sofrer.

— Theo. — Ergo os olhos e a vejo parada, um pouco mais distante de mim. — Eu perdoo você.

Kyra se vira e passa as portas de vidro do hospital, indo para longe, mas suas palavras aquecem meu coração como o abraço que acabamos de trocar.

 

 

— Caso algum teste retorne positivo, precisaremos começar a quimioterapia com urgência e...

— Quimioterapia? — Entro na sala onde estão reunidos o doutor Felipe e Maria Eduarda.

Depois do encontro com a Kyra na entrada do hospital, precisei de uns minutos para me reestabelecer, então fui ao banheiro lavar o rosto antes de subir para ver Tessa.

Cheguei ao quarto e só encontrei dona Do Carmo, que me informou que minha filha tinha acabado de dormir depois de ter se alimentado e que Duda estava em reunião com os médicos que estão cuidando do caso de Tessa para saber os próximos passos, já que as transfusões estão ficando cada vez mais perto uma da outra, e isso não é bom.

— A senhora sabe onde estão?

Ela me explicou como chegar à sala, e vim correndo até aqui, pois quero acompanhar cada passo do tratamento da minha filha. Dei leves batidas na porta, porém, ninguém respondeu, então entrei e encontrei o tal doutor Felipe com a mão em cima da mão de Maria Eduarda, explicando a ela algo sobre quimioterapia.

O médico me olha assustado assim que entro, mas não retira a mão de cima da dela. É Maria Eduarda quem retira a sua antes de respirar fundo e me cumprimentar.

— Que bom que chegou. Doutor Felipe estava explicando o que teremos de fazer caso um dos testes dos seus irmãos dê positivo.

Ela está calma, o doutor tem um sorriso simpático, mas eu ainda estou processando aquela mão grande sobre a delicada de Maria Eduarda. A vontade que tive ao entrar na sala foi, ao invés de perguntar sobre a quimioterapia, gritar para ele tirar a mão dela.

Maria Eduarda é minha!

— Senhor Karamanlis? — O médico me aponta uma das cadeiras em volta da mesa redonda, em frente a Maria Eduarda e ao seu lado direito, mas eu tomo assento ao lado dela.

— Vocês estavam falando de quimioterapia. Por que Tessa precisa de quimio se não tem câncer? — volto ao assunto e depois olho de soslaio para Duda, que parece segurar um sorriso. Por causa da minha pergunta ou pelo olhar raivoso que dirigi ao médico quando ele a estava tocando? Será que ela percebeu que, mesmo tendo estado longe por todos esses dias, nossos corpos vibram por estarem próximos de novo? Será que ela sente, assim como eu, a mesma vontade de abraçar, beijar e me fundir a ela?

— Bom, a quimioterapia é necessária para reduzirmos ao máximo a medula com problemas para que receba as células que irão reconstruí-la. — Assinto, entendendo o que ele diz. — Como estava dizendo a Maria Eduarda, nesse período de quimio, devemos ser mais cautelosos, restringir ainda mais o contato com visitantes, adotaremos uma dieta diferenciada e temos que ficar atentos aos efeitos colaterais da medicação.

Fico preocupado e busco os olhos de Duda. Vejo a mesma preocupação espelhada neles. A medicação da quimio é bem pesada, pode causar muita náusea, diarreia, queda de cabelo, entre outros efeitos já conhecidos. Não será fácil, mesmo que por um período bem pequeno, prepará-la para o transplante.

— Caso o transplante não seja possível entre os familiares, teremos que começar a introduzir os imunossupressores combinados com outras medicações para tentar driblar as infecções que poderão ocorrer por mantermos sua defesa muito baixa. — Ele pega um folheto explicativo. — Como a AAG não é muito comum, temos apenas dois tipos de tratamento com essa medicação, mas somente um está disponível aqui no país.

— Vamos conseguir o transplante — digo confiante. — Quando teremos todos os resultados?

— No final do dia, no máximo. O pessoal do laboratório está empenhado nisso. Vocês fizeram o cadastro no banco do REDOME? Mesmo que não sejam compatíveis com Tessa, podem ser com outras pessoas, e o transplante de medula é algo bem simples de ser feito e pode curar muitas pessoas.

— Fizemos, sim — Duda é quem responde. — Obrigada pelos esclarecimentos, doutor.

Ela se põe de pé, e eu a acompanho.

— Estarei sempre à disposição. — Ele a cumprimenta e depois, a mim.

Saímos juntos, em silêncio, pelo corredor até o elevador. Mal espero as portas se fecharem e disparo:

— Eu nunca estive noivo. — Maria Eduarda balança a cabeça e não me olha. — Duda, olha para mim. — Ela o faz. — Não existe noivado algum!

— Eu vi, Theo, naquela revista, e sua amiga fez questão de vir...

— Ela armou isso! — Maria Eduarda arregala os olhos. — Eu soube do noivado agora pela manhã, Millos me contou. Viviane armou isso.

— Por quê?

O elevador para, e nós dois seguimos andando pelo corredor até o quarto de Tessa, porém, antes de entrarmos, quero deixar esse assunto bem claro para ela.

— Eu fiz uma promessa ao meu avô. Ele queria, como presente de aniversário de 90 anos, um bisneto, e, para isso, eu precisaria me casar. — Maria Eduarda parece surpresa e curiosa com a história. — Viviane estava me ajudando a escolher uma candidata a mãe do meu filho.

— O quê? — Ela ri, nervosa.

— É, eu achei que pudesse me casar em um acordo, sem grandes complicações, cada um sabendo até onde poderia ir na relação. — Abaixo a cabeça, envergonhado. — Valentina me foi apresentada como uma possibilidade. Nós saímos algumas vezes, mas nunca tivemos química suficiente para... — Fico sem jeito. — Então conheci você e não consegui pensar em qualquer outra mulher. Por mais que eu visse Valentina como uma candidata perfeita para o que meu avô queria, eu não a queria.

— Então ela foi para a Grécia atrás de você?

— Sim, a mando de Viviane e com o firme propósito de fabricar a notícia que você viu. — Toco-a. — Não houve noivado algum!

— Você continuou pensando em se casar com ela mesmo depois de estarmos juntos?

A pergunta que eu mais temi durante todo o tempo em que pensei em lhe contar, chegou, e eu não tenho muita escolha a não ser usar de toda a sinceridade do mundo.

— Sim, continuei. — Ela se afasta de mim. — Eu prometi ao meu avô e...

— Não podia decepcioná-lo, mesmo correndo o risco de magoar várias pessoas ao longo do caminho. Você tem noção do quanto isso é frio? Você nem mesmo me considerou, não foi? Nem mesmo pensou em um relacionamento mais profundo entre nós e...

— Até pouco tempo, não. — Tenho vontade de me dar um soco, mas preciso ser sincero. — Confesso que só pensei em me casar por causa desse pedido do pappoús, porque, se não fosse por isso, eu não estaria procurando ninguém. — O semblante de Maria Eduarda endurece. — Na minha cabeça, só faria sentido se me casasse com alguém que ele aprovaria e...

— Eu nunca seria aprovada, não é? — sua voz é firme, mas sinto mágoa nela. — Não sei o que seu avô queria, mas certamente não era a dona de um bar, cheirando a frituras e com uma filha a tiracolo.

— Isso já não importa. O que ele quer, se aprova ou não, já não tem nenhum sentido agora.

— Por causa de Tessa? Porque você descobriu que eu sou aquela mulher que te enlouqueceu e atraiu a ponto de você não enxergar mais nada naquela noite? — Abro a boca para falar, mas ela me silencia com um gesto. — Você é o pai da minha filha, mas isso não muda o resto. Continuo a ser a mulher que não se enquadra no que você procura.

Ela se afasta andando sem olhar para trás, e eu percebo que talvez a tenha perdido para sempre. Foram muitas omissões, e o fato de eu não ter tomado uma decisão sobre Valentina antes mesmo que tudo isso acontecesse não ajudou em nada.

Duda não sabe o que sinto por ela. Nunca pude dizer, e talvez agora já não tenha tanta importância, ou ela pense que estou dizendo isso por causa de Tessa.

Respiro fundo e apoio a cabeça contra a parede do corredor, tentando achar uma solução para provar a ela que a amo, que me apaixonei por ela ao longo desse tempo em que ficamos juntos e nada tem a ver com meu avô, com nossa filha ou com o fato de já termos nos conhecido antes.

Meu celular vibra no bolso, e eu atendo uma ligação de Hamilton Navega.

— Oi, Hal.

— Você deve estar querendo me causar um infarto, só pode! — Ele ri. — Estive em reunião a manhã toda e nem tinha olhado meu celular pessoal até esse momento. Como assim fez um DNA e tem uma filha de oito anos?

Olho na direção do quarto onde Tessa está e me afasto, indo em direção ao elevador para resolver mais esse assunto antes de vê-la.

— O nome dela é Tessa Hill, faz oito anos agora no começo de março e está doente. — Engulo saliva com dificuldade, o temor voltando a me assolar. — Está internada à espera de um transplante, e eu gostaria de dizer a ela que sou seu pai, de colocar meu nome e sobrenome em seus documentos o mais rápido possível.

— Tão grave assim ela está, Theo?

Bufo.

— Sim. Estamos em busca de um doador, senão ela começará um tratamento severo e que... — eu não gostaria de estar admitindo isso em voz alta — pode não funcionar.

— Oh, meu Deus! Eu sinto muito, Theo. Sei bem o que você está sentindo, meu amigo.

Sim, ele sabe, pois sua esposa lutou contra o câncer de mama durante algum tempo e eles estiveram prestes a perdê-la antes que a doença entrasse em remissão.

— Eu gostaria de conversar com você. Tenho outras questões, além do reconhecimento de paternidade, e...

— Estarei livre daqui a pouco, não tenho nada marcado para o final da tarde. Ia estudar um pouco, mas podemos nos encontrar.

— É uma boa ideia! Eu vou ficar um pouco com minha filha. As visitas estão mais restritas, mas quero pelo menos que ela me veja aqui perto dela. — Desço do elevador no piso térreo do hospital. — Assim que sair daqui, eu te mando uma mensagem, e nos encontramos.

— Está certo. Espero que tudo dê certo com sua filha.

— Vai dar. Tem que dar!

Desligo o telefone e vou em direção à cantina do hospital a fim de tomar um café, já que nem consegui almoçar, porém, antes que eu chegue lá, sou parado pela doutora Amália, uma das médicas responsáveis pelo caso de Tessa e a que tem acompanhado os exames de compatibilidade.

— Senhor Karamanlis! — ela me chama, e seu sorriso dispara meu coração.

Temos um doador!


A médica não para de falar, mas eu não consigo ouvir muito bem, pois meus ouvidos estão zunindo, e meu coração, saindo pela boca. Viemos até o seu consultório, onde, segundo ela, estão todos os resultados dos exames.

— É incrível a compatibilidade que achamos, é quase um milagre. Ah, como eu amo a ciência e a genética, é uma matéria quase divina! — Ela pega a pasta e estende para mim uma folha. — Olha essa perfeição!

Pego o resultado com as mãos tremendo. Ainda não sei quais dos meus irmãos será o doador, mas, neste momento, isso importa pouco. Meus olhos embaçados de lágrimas me impedem de ler o documento, e eu rio quando a doutora me estende um lencinho de papel.

— Obrigado. — Seco os olhos.

— Tessa é uma menina muito especial. Eu tenho certeza de que tudo vai dar certo agora. Ser de tipagem AB a ajudou muito, pois recebe qualquer tipo de sangue. Infelizmente, as pessoas não são conscientizadas da importância que é a doação. São apenas 20 minutos que podem salvar muitas vidas.

Eu assinto e volto a pegar o resultado para o ler.

— A doadora é a Kyra! — exclamo com um nó na garganta.

— Sim! Vê. — Ela aponta. — Tipagem e RH iguais e compatibilidade altíssima. Ela é perfeita para a doação.

— Já informou a todos?

— Sim! Acabei de mandar mensagem para o doutor Felipe, e ele deve estar comunicando a Maria Eduarda. — Sorri. — Ela merece essa felicidade, é uma pessoa preocupada com os outros. — Assinto. — Mesmo com o problema da filha, ela fez questão de doar seu sangue para o banco. É uma raridade conseguir um doador universal, O negativo, sabe? Ela se prontificou a fazer da doação um compromisso para a vida.

A doutora continua a falar, mas minha cabeça não processa mais sua voz. Há muitos anos estudei genética, não me lembro dos pormenores, mas há algo aí nessa história que me incomoda.

— Eu entendo pouco do assunto, mas, se ela é doadora universal, por que não pôde doar a medula para a Tessa, que é receptora universal?

— Ah, para transplante isso muda. — Ela parece bem feliz em me explicar, o que demonstra que ama o que faz. — Não levamos em conta apenas a tipagem sanguínea. Como você não se lembra, vou exemplificar. — Ela pega um bloquinho a anota os tipos sanguíneos do gruo ABO. — Para transfusões, Tessa recebe sangue de qualquer um dos tipos com qualquer RH, mas ela só pode doar para A ou B, visto que seu sangue veio da junção desses dois tipos. Já a Maria Eduarda pode doar para qualquer tipo e qualquer RH, pois é doadora universal, o famoso O negativo. Para transplante, além dos fatores de tipagem e RH, nós levamos em conta outros fatores genéticos semelhantes, por isso o transplante alogênico (o que vem de outra pessoa) ideal é entre parentes, pois têm maior chance de ocorrer essas semelhanças genéticas.

Ela continua a explicar, falando de proteínas e células, mas meus olhos estão fixos no nome de minha filha com um baita AB+ ao lado e o de Maria Eduarda com sua tipagem O negativo.

Não, Theo, você não se lembra da matéria, está confundindo as coisas!

— O sangue de Tessa, a senhora disse que vem da junção de A e B? — interrompo-a.

— Sim! Como o da sua irmã, Kyra. — Ela olha as outras folhas. — Seu sangue e o de Konstantinos é A positivo e Alexios é B positivo.

Maria Eduarda é de tipagem O, então...

Olho para a doutora, prestes a perguntar a ela o que significa, então, a mãe da minha filha não ser A, nem B, muito menos AB, mas desisto da indagação, com medo de confirmar o que estou pensando.

Devolvo a ela o resultado do exame de Kyra e agradeço a atenção.

— Nós já estamos entrando em contato com a doadora, e o doutor já vai iniciar os procedimentos para o transplante. — Ela me estende a mão. — Sua filha vai ficar bem!

Sorrio, aliviado, e mando uma mensagem para Millos assim que saio do consultório.

 

 

Imediatamente ele responde:

 

 

É, eu também me senti assim quando li o resultado. A irmã que eu tanto magoei, que passou anos sem falar comigo ou me perdoar e que agora, além de ter me dado o perdão que eu tanto almejada, vai salvar minha filha.

 

 

Millos manda a mensagem seguida de várias canecas de chope. Balanço a cabeça, pois ainda teremos muitos desafios a vencer para a cura de Tessa, mas vê-lo será bom, porque preciso conversar com alguém.

Olho para o elevador e penso que estou há horas no hospital e ainda não consegui ir até minha menina. Queria estar ao lado de Maria Eduarda para comemorarmos a notícia da doação, mas não me sinto capaz de ir até ela sem questionar as coisas que acabei de ver. Preciso, antes, manter a calma, conversar com Millos e Hal e, aí sim, decidir o que fazer.

 

 

Assim que leio a mensagem dele, vou para o estacionamento. Nunca me senti tão cheio de sentimentos como agora. Tenho ainda medo pela minha filha, mas esperança de que ela se recupere; tenho vontade de ir até Maria Eduarda e dizer a ela o que sinto, mas acho que ela está com medo da minha proximidade, principalmente se o que estou pensando for verdade.

Não tem como não ser!, admito para mim mesmo. Não sei a história por trás disso tudo, mas uma coisa é certa: Duda não é mãe biológica de Tessa.

 

 

— Mas o que te faz pensar assim? — Millos questiona, com sua caneca de chope na mão. — Foi somente pela tipagem sanguínea diferente?

Nego, tomando já a segunda dose de uísque.

— Não. A tipagem veio só para confirmar algo que já estava me incomodando. — Suspiro. — Eu estava bêbado demais há nove anos, reconheço, mas ter feito ligação dela com a mulher da boate em nenhum momento foi algo estranho. Já trepei bêbado algumas vezes, talvez não tanto quanto estava daquela vez, mas, quando reencontrava a mulher com quem tinha transado, logo a reconhecia. — Millos assente. — Algo me despertaria lembranças, o beijo, o cheiro, o encaixe dos corpos, não sei, mas nada me despertou.

— Entendo. — Millos termina sua bebida e pede mais uma. — Você só assumiu que ela era a mulher da boate ao ver a foto?

— Sim, embora já tivesse informações suficientes antes. Ela me contou que esteve em Zakynthos com um grupo de amigas da época em que estudava gastronomia em Paris, inclusive falou a época, mas não prestei atenção. Tudo se encaixou quando vi a foto.

Millos franze a testa.

— Mas era ela na foto dando de mamar para Tessa?

Theo dá de ombros.

— Estava de costas, a câmera focou a criança, parte do seio e umas mechas do cabelo colorido apareciam. — Bufo. — Mas tinha outra, e nela Duda aparecia com os cabelos pintados, bem como Tessa.

— Eu já a vi de cabelo colorido — Millos confessa, e eu arregalo os olhos. — Durante o tempo em que ia atrás dela para negociar o bar, a vi com cabelos pintados de rosa em duas ocasiões, sempre na mesma época do ano.

Contei a história do que aconteceu naquela boate para o Millos, e ele, na época, surpreendeu-se bastante. Nunca fui um homem de impulsos, era muito racional, então ter trepado com alguém sem saber o nome e no banheiro de uma boate o surpreendeu tanto quanto a mim. Porém, eu achava que a moça era francesa por causa de seu idioma perfeito, sem sotaque algum, e ele não tinha como fazer conexão entre Duda e essa tal mulher.

— Eu não sei o que fazer! — digo em desespero. — Não entendo essa história toda!

— Você tentou conversar com ela? — Millos pergunta, e eu nego. — Só Maria Eduarda pode te esclarecer tudo isso. Você ainda a quer?

Olho-o como se estivesse louco ao fazer essa pergunta.

— Ela ser ou não mãe de Tessa não muda o que sinto por ela. — Millos sorri ante minha resposta. — Eu me apaixonei pela mulher que encontrei em um bar de um restaurante, num encontro arranjado por você!

Millos levanta sua caneca de chope.

— Não esqueça isso, quero ser padrinho se ela ainda te quiser! — Gemo com a mera hipótese de ela não me querer mais, fazendo Millos rir. — Hal chegou.

Aponta para a entrada do bar, e vejo o elegante advogado adentrar o recinto.

— Ótimo local para uma reunião de trabalho. — Ele nos cumprimenta. — Alguém avisou ao carcamano que estamos aqui? Sabem como ele é quando se sente excluído pelos amigos.

— Ele e Vincenzo estão em reunião com os outros donos de estabelecimentos aqui do terraço do hotel — Millos responde.

Hal me abraça pelos ombros, sentado ao meu lado.

— Como você está?

— Melhor. Achamos um doador.

O rosto do meu amigo se ilumina.

— Ah, então estamos em uma comemoração! — Millos balança a cabeça afirmativamente, mas ele nota meu semblante preocupado. — Vai dar tudo certo agora, tenha fé!

— Eu tenho! — Aprumo meu corpo e bebo o resto do meu uísque. — Tenho uma pergunta estranha para fazer.

— Adoro perguntas estranhas! — Ele cruza os braços, assumindo sua pose de advogado competente. — Faça.

— Caso minha filha tenha sido adotada, o que significa meu reconhecimento de paternidade para essa adoção?

Hal arregala os olhos.

— Adoção legal ou “à brasileira”? — Millos xinga, e eu o olho como se estivesse falando japonês. — Houve um processo de adoção ou o homem apenas registrou a criança como se fosse o pai?

— Não. Ela não tem nome paterno na certidão. — Respiro fundo. — Eu acho que a mãe dela a adotou.

Hal faz careta, e Millos ri.

— Mas que coisa complicada! Você não sabe se a mãe de sua filha é realmente a mãe de sua filha?

Bufo.

— Hal, é uma história longa. Mas, caso ela tenha adotado a menina e eu peça o reconhecimento, corre o risco de essa adoção ser anulada?

Ele nega de pronto, e eu sinto um imenso alívio.

— Se a adoção correu dentro dos trâmites legais, não há por que ela ser anulada. O máximo que poderemos fazer é regularizar a questão da guarda compartilhada para que vocês dois possam decidir juntos os assuntos referentes à criança e discutir pensão alimentícia ou, caso tenha motivos para isso, pedir a reversão da guarda.

Sinto-me muito mais tranquilo agora para conversar com Maria Eduarda sabendo que não sou um risco para ela. Tessa não poderia ter sido criada por pessoa melhor. Eu tenho consciência de que, mesmo não sendo sua mãe biológica, Duda ama demais a minha filha.

— É, meu primo — Millos me chama a atenção. — Tem uma missão difícil pela frente. — Dá um tapinha nas minhas costas. — Convencê-la de seus sentimentos e dizer a ela que sabe sobre a menina.

— Eu entendo agora a reação dela quando vi as fotos e disse que era o homem da boate. Mesmo não tendo certeza da paternidade, teve medo de que eu lhe tirasse Tessa. — Respiro fundo e olho para Millos. — Não sei o que fazer para ela acreditar que o que sinto nada tem a ver com tudo isso.

— Ah, meu Deus! — Hal exclama e pede uma cerveja. — Você ainda está apaixonado pela mulher?! — Balança a cabeça, rindo. — Que história! Que história!


Depois de ter contado tudo o que houve para Hal, continuei a beber enquanto recebia conselhos de como reconquistar Maria Eduarda. Acabei descobrindo que o advogado teve envolvimento direto na perda da minha gerente anterior, Malu Ruschel, pois ajudou que ela e o peão ficassem juntos.

Ah, o peão não era bem um peão!

Por causa desse feito e por ter praticamente apresentado Frank e sua esposa, Hal se sente sumidade em assuntos do coração. Millos, sempre muito reservado e misterioso, manteve-se calado na maioria do tempo, mas não deixei de notar que conferia as horas a todo momento, bem como mandava mensagens para alguém.

Já passava das 10h da noite quando, impossibilitado de dirigir por causa do álcool, os dois me puseram em um táxi – Hal subiria para o escritório do Frank no hotel e iria pegar carona com o carcamano, e Millos estava de moto – e me despacharam para casa.

Ainda estou dentro do carro, meio deitado, esperando chegar a minha casa, quando recebo mensagens de Maria Eduarda, falando do resultado do exame de Kyra e que minha irmã esteve lá com ela para conversar. Ela pergunta por mim, dizendo que Tessa quer me ver, e eu me sinto um lixo por não ter tido coragem de subir e participar desse momento com elas.

Aprumo meu corpo e digito uma pergunta direta:

 

 

Duda me responde de pronto:

 

 

Fecho os olhos, não me sentindo em condições de conversar com ela, mas ansioso demais por isso. Não quero dizer que já sei a verdade, espero que ela me diga, pois a mulher por quem me apaixonei faria dessa forma.

 

 

Começo a chorar como um bebê dentro do carro, assustando o motorista. Não consigo parar de soluçar ao imaginar minha irmã conversando com Maria Eduarda. A culpa pelo que fiz há anos ainda me consome, o senso de dívida que tenho para com meu avô, o motivo pelo qual achei que nunca iria encontrar alguém que me despertasse sentimentos novamente.

Estou aqui querendo sua sinceridade, quando nunca fui honesto com ela.

 

 

Aguardo ansioso a resposta e, quando ela vem juntamente ao endereço do apartamento, sinto o coração disparar e uma pontada de esperança surgir. Tremo dentro do carro, pois sei muito bem o que vou revelar a ela. Preciso que Maria Eduarda saiba quem eu sou de verdade, entenda os motivos que me fizeram ser como sou, conheça meus demônios e, se ainda assim me quiser, poderei me sentir o homem mais rico deste mundo.

O táxi para em frente ao prédio, eu pago a corrida e, um tanto trôpego, aperto o número do apartamento dela pelo interfone.

— É o Theo — digo assim que ela atende.

Entro na construção simples já à procura do elevador e aperto o andar onde ela está morando. Duda me espera na porta do apartamento e se surpreende com meu estado lamentável.

— Me desculpe por isso... — Encosto-me à porta. — Eu precisava vir conversar com você.

Ela assente e, sem dizer nada, afasta-se para eu entrar.

O apartamento deve ter sido alugado já mobiliado. Noto a sala completa, dois ambientes, mas sem nenhuma lembrança pessoal dela.

— O que houve? Por que você está assim?

Respiro fundo.

— Porque eu sou um merda, Maria Eduarda. — Ela arregala os olhos. — Porque estive esses anos todos pagando pelos meus pecados, afetando a vida dos outros ao meu redor e, hoje, com a notícia de que Kyra é compatível e que, mesmo eu a tendo feito sofrer durante anos, vai doar para Tessa, percebi o quanto sou um lixo.

— Theo, não estou entendendo nada! — Ela se aproxima de mim. — Kyra esteve comigo hoje, estava feliz e emocionada. É óbvio que ela te ama e...

— Eu fodi a vida dela, Duda! — falo mais alto do que gostaria, e isso a assusta. — Hoje ela falou comigo pela primeira vez depois de mais de vinte anos de silêncio. — Duda arregala os olhos. — 24 anos para ser exato. — Engulo com dificuldade, sentindo meus olhos queimarem, a emoção transbordar. — Todos me odeiam e têm motivos para isso.

— Não, Theo, ela não...

— Eu fui criado pelo meu avô — começo antes que perca a coragem, e ela percebe que é importante. — Enquanto meu pai mudava de mulher de tempos em tempos, sempre abandonando seus filhos sem olhar para trás, eu crescia sendo educado por meu avô. — Duda se senta, e eu começo a andar pela sala. — Minha mãe era uma moça pobre, mas muito bonita e, quando teve a oportunidade de melhorar de vida e ser independente, não pensou duas vezes: aceitou o dinheiro de pappoús e foi morar na Itália, onde seguiu, por alguns anos, a carreira de modelo.

Lembranças de quando era menino e acompanhava escondido a carreira da mulher que me gerou voltam com tudo, quase me transportando de volta aos momentos e às emoções que eu sentia naquela época. Eu nutri a mesma pergunta por muitos anos: por que ela não me quis? Cresci sonhando em encontrá-la um dia e poder descobrir essa resposta, mas, infelizmente, não tive tempo, pois ela morreu em um acidente de carro quando eu tinha 12 anos de idade.

Deixo de lado a dor do menino que fui, a frustração do adolescente que queria conhecer a mãe e volto a lhe contar a minha história.

— Meu pai, mesmo recém-casado com ela, nunca deixou suas namoradas. — Rio sarcasticamente. — Era assim que ele se referia às amantes: namoradas. Foi de namorada em namorada, em períodos intercalados com esposas, que se formou a nossa família. Kostas, de um casamento relâmpago com uma inglesa, Alex, de uma garota de programa com quem ele teve um caso, e Kyra... — respiro fundo — de uma jovem estagiária da Karamanlis, a única mulher que conseguiu virar a cabeça dele a ponto de renunciar a todas as outras.

A imagem da exuberante Sabrina aparece vívida na minha memória. Ela se casou com Nikkós com apenas 19 anos, adotou Alex e logo engravidou da Kyra. De longe eu acompanhei a formação dessa família e me senti feliz por meus irmãos caçulas.

— Quando Kostas fez 12 anos, seu avô o enviou para morar com o pai, e eu vim junto com ele, de férias, pois em breve iria para os Estados Unidos estudar. — Paro de andar um pouco, já tonto por causa da bebida e de toda a emoção. Há anos não falo sobre isso, não ressuscito essas lembranças, mas sei que é necessário fazer isso. — Conhecia a todos por fotos, falava pouco o português e me encantei com meus irmãos. Eles eram tão felizes, tão diferentes de mim e do taciturno Kostas. Alex me via como um herói, seu irmão mais velho, tinha orgulho disso, e Kyra... — Tampo o rosto com as mãos e choro. Sinto a mão de Maria Eduarda no meu ombro e a abraço forte. — Kyra era como a Tessa é hoje, sabe? Cheia de energia, iluminada, carinhosa, uma criança feliz.

— Theo, você não precisa fazer isso. — Encaro-a. — Não precisa remexer essas lembranças tão doloridas.

— Preciso. — Tomo coragem de me expor completamente para ela. — Eu vim aqui para dizer que eu amo você. — Duda fica imóvel, olhos arregalados e respiração suspensa. — Você disse que me amava uma vez, mas não conhecia o homem que eu sou. Eu não quero mais mentiras e omissões entre nós, por isso estou contando tudo. Se você ainda puder me amar depois de conhecer o verdadeiro Theodoros, nada mais ficará entre nós.

Ela assente, seca o rosto com as mãos – percebo que está tão emocionada quanto eu – e volta a se sentar.

— Meu pai trabalhava demais na época. Ele nunca ligou para os filhos, embora fosse muito mais presente com Alex e Kyra do que tentou ser comigo e com Kostas. Naquelas férias, nós ficávamos mais com nossa madrasta do que com ele. — A percepção do que aconteceu é visível no rosto de Duda. — É, eu não sabia quase nada da vida. Minha criação foi muito rígida, só estudava e estagiava na empresa, não tinha amigos ou mesmo namoradas, então me apaixonar pela mulher do meu pai não foi muita novidade.

Duda fecha os olhos, e eu sinto o choque da revelação.

Ainda me lembro de como eu ficava perto dela, extasiado, principalmente quando estávamos na piscina e a via de biquíni. Sabrina tinha 25 anos na época, e eu tinha completado 17, mas já era alto e, como sempre fiz muitos esportes, corpulento. Não me lembro de ter percebido minha libido antes dela. Nunca fui um adolescente punheteiro, mas acordava ereto todos os dias na casa do meu pai. Sonhava com ela, compunha e tocava músicas em sua homenagem.

Tudo, claro, era muito platônico, afinal, ela era a mulher do meu pai.

— Eu nunca teria dito nada, feito nada ou mesmo insinuado qualquer coisa que pudesse desrespeitá-la, mas ela já havia percebido e não só isso, gostava e alimentava minha adoração. — Duda balança a cabeça e seca novas lágrimas. — Isso começou a mudar quando, alegando “amor materno”, começou a me tocar, acariciando meus cabelos, elogiando meus olhos azuis, ressaltando que eu tinha um belo porte e que, mesmo com pouca idade, que era um homem grande.

Sofro ao me lembrar de como enlouquecia a cada dia, descontando toda a energia da frustração sexual debaixo do chuveiro, gozando com a imagem dela na mente. Durante aquele ano, lembro-me que o país estava em êxtase por ter conquistado o tetracampeonato mundial de futebol. Tudo à minha volta tinha as cores da bandeira do país, ou a imagem do ídolo de Fórmula 1 que tinha perdido a vida naquele ano e de quem eu gostava muito.

Lembro-me de estar usando uma camisa com a foto do famoso carro da McLaren quando ela me chamou em sua suíte. Era madrugada, eu tinha ido à cozinha para pegar água, as crianças estavam todas dormindo, e papai, como sempre, ainda não tinha chegado.

Fui até lá completamente tenso e, quando a vi com uma camisola transparente em cima da cama, soube que ali seria meu fim. Tentei lembrar quem eu era, o que tinha aprendido em casa sobre respeito, certo e errado, mas simplesmente não pude resistir. Ela tocou meu corpo como eu mesmo nem sabia que podia ser feito e me fez tocá-la como eu tinha feito apenas em meus sonhos.

A partir daquele dia, minha primeira transa, eu passei a buscar toda e qualquer oportunidade de estar dentro de Sabrina. As crianças iam para o playground, e eu ficava aprendendo com ela como chupar uma mulher. Meu pai programava uma ida ao cinema, ela e eu inventávamos uma desculpa e saíamos de carro juntos, trepando em motéis baratos da cidade.

No dia em que precisei voltar para casa, em Atenas, chorei como um bebê de colo, e todos se espantaram em como eu tinha, em tão pouco tempo, me apegado “ao meu pai”.

— Minha primeira experiência sexual e, como acreditava na época, meu primeiro amor, era a minha madrasta.

— Theo, você era um menino! — Duda tenta justificar.

Nego.

— Não terminou ali. Não foi somente naquelas férias. — Duda suspira. — Um ano depois, antes de eu começar o college nos Estados Unidos, quis novamente passar férias com meus irmãos. Alex, Kostas e Kyra ficaram felizes em me ver, mas eu só queria estar próximo de Sabrina. Mal cheguei ao país e já estava em alguma espelunca fodendo minha madrasta.

Continuo a contar a história para ela, excluindo alguns detalhes sórdidos desnecessários, mas que não posso deixar de revisitar neste momento.

As férias foram intensas, só que, daquela vez, a qualquer contato que Nikkós tinha com ela, eu enlouquecia de ciúmes. Pensava que a amava e não suportava dividi-la com mais ninguém.

Ele não me toca mais como mulher, ela alegava quando eu questionava seus sentimentos por meu pai. Estamos juntos apenas por causa das crianças. Ah, Theo, eu queria muito poder ficar só com você, mas não posso abandonar seus irmãos, eles precisam de mim.

Aquele argumento quebrava meu coração, e eu me obrigava a engolir o amor que sentia e a entender que eles precisavam mais dela do que qualquer coisa.

Nos Estados Unidos, fiquei uns meses tranquilo, estudava, confraternizava com meus amigos de classe e cheguei até a sair com algumas garotas, ampliando minha experiência e tirando um pouco da “magia” de Sabrina de sobre mim. Até que ela me ligou, em desespero, pedindo para que eu fosse ao Brasil.

Eu estava no meio das provas, tinha entrado para o time de polo da universidade e estava começando a engatar um namoro na esperança de esquecer toda aquela história sórdida com a esposa do meu pai; não tinha como ir.

Foi então que ela revelou que estava grávida e que, como não transava mais com meu pai, o filho era meu. Eu senti o chão sumir com aquela revelação! Fiquei uns instantes mudo, sem saber como agir ou o que pensar, olhando fixamente para um ponto qualquer dentro do meu quarto, vendo, um a um, todos os sonhos e planos que meu avô traçara para mim ruírem.

Eu havia decepcionado minha família!

É seu filho, Theo! Ela soluçava. Será que você se importa tão pouco com isso? Será que puxou ao seu pai?

Aquelas duas perguntas dispararam lembranças e mágoas em mim de uma maneira que meu corpo inteiro sacudiu. Eu não podia agir como meu pai fizera comigo e com meus irmãos, não faria isso! A decisão estava tomada.

Vim para o Brasil, enfrentei a fúria de Nikolaous Karamanlis, vi a confusão e o horror nos olhos dos meus irmãos menores e levei Sabrina comigo para Atenas.

— Vocês tiveram um filho? — Duda me pergunta, interrompendo minhas lembranças, com a voz trêmula.

— Não. Pensamos que meu avô iria nos amparar na Grécia, mas estávamos enganados. Tive que recorrer à família de minha mãe, pessoas que eu não via há anos e que me deram apoio e emprego.

— Você estava disposto a deixar tudo para assumir a criança — Duda afirma, e eu concordo.

— Eu me sentia culpado, mas acreditava que estávamos apaixonados e que, com o nascimento do bebê, as coisas começariam a entrar nos eixos. — Rio em desespero. — Eu não conseguia enxergar nada, era um completo idiota.

— Não! — Duda segura minhas mãos e me puxa para me sentar junto a ela no sofá. — Eu repito: você era um menino! Mesmo com 18 anos, não sabia nada da vida! Foi errado o que fez, mas não pode carregar isso para sempre!

Nego, pois eu sabia o que estava fazendo, sim! Trabalhei de sol a sol, vendi pescado nas ruas e mercados de Atenas, tudo para provar que eu conseguia suprir e ser um pai melhor do que o meu tinha sido.

Claro que viver daquela forma não estava nos planos de Sabrina e, um belo dia, cheguei à casa onde estávamos hospedados com minha tia e soube que ela tinha fugido com um homem que estava com o iate atracado ali por perto.

Quando quis ir atrás dela, preocupado com meu filho, minha tia revelou que, dias antes, Sabrina teve um aborto depois de tomar um medicamento e pediu a ela que não me contasse, e ela decidiu não interferir, porque sentia que a relação não ia durar muito.

Eu fiquei quebrado depois disso, comecei a beber, deixei de trabalhar, e, quando pappoús me encontrou jogado na rua feito um maltrapilho, levou-me de volta para casa, arrumou minhas malas e me despachou de volta para os Estados Unidos.

— Os primeiros anos em Boston foram difíceis, principalmente porque as notícias do Brasil, dos meus irmãos, não eram boas. Eu havia destruído a vida de todos, deixando-os nas mãos de um homem louco, transtornado e que fez da infância de cada um deles um inferno.

— Theo, eu sinto muito que isso tenha acontecido com você, de verdade. — Ela limpa meu rosto, e eu seguro sua mão e a levo até meus lábios. — Você não é mais aquele garoto; eles não são mais crianças.

— Mas nunca puderam me perdoar.

— Não foi culpa sua, seu pai já não era um homem equilibrado — ela pondera, mas isso não tira de mim a sensação de que despertei o monstro dentro dele. — Kyra te perdoou, eu tenho certeza.

Assinto com um sorriso.

— Ela o fez. Eu não sei o que fiz para receber o perdão dela, muito menos para ter você e Tessa na minha vida, e é por isso que não posso perder vocês. Eu não mereço, mas não posso perder vocês.

Duda me olha sem saber o que responder, e eu sinto o corpo inteiro gelar. Ela olha para o alto, e eu posso sentir sua preocupação de onde estou. Minha cabeça dói, não dormi na noite passada e sinto os efeitos da bebida e da confissão que acabei de lhe fazer.

— Eu amo você, Maria Eduarda. — Ela me encara. — Não quero mais nenhum segredo do passado entre nós. Fui sincero com você, mesmo correndo o risco de te perder para sempre. — Encosto-me ao sofá, não consigo segurar um bocejo e fecho os olhos, falando lentamente: — Eu só espero que você possa confiar em mim.


Eu só espero que você possa confiar em mim!

As palavras que Theo disse antes de dormir ficaram reverberando em minha cabeça a noite inteira enquanto eu o observava dormir e andava de um lado para o outro dentro do apartamento que aluguei.

Eu só espero que você possa confiar em mim!

Ele me pediu confiança, abriu-se comigo, e eu pude entender muito do seu jeito fechado com relação à sua família, ao seu passado. O que ele passou não foi fácil, a culpa que carregou, e ainda carrega, deve consumi-lo ao extremo. Fiquei feliz ao saber que Kyra o perdoou e sei que foi um perdão verdadeiro, pois senti afeto toda vez que ela tocou no nome do irmão enquanto esteve comigo e com minha filha no hospital.

Tessa.

Minha filha é o centro do meu mundo desde o primeiro instante. Apaixonei-me por ela na primeira ultrassonografia em que pude ver sua silhueta, o nariz arrebitadinho, as pernas longas e inquietas e a mãozinha sobre o rosto, como se estivesse envergonhada.

Eu faria qualquer coisa por ela, para protegê-la e vê-la feliz.

Ainda não lhe contei que Theo é seu pai e tenho certeza de que, o que foi um choque para mim, vai ser recebido com sorrisos e festa. Ela é totalmente apaixonada por ele e sentirá como se seu maior sonho tivesse se tornado real.

Hoje, pela primeira vez desde que descobri que Theo era o homem da boate, agradeci ao destino por ter nos reunido novamente. Se não tivéssemos nos encontrado, Tessa não teria um doador familiar, e a chance de eu perder minha menina seria palpável. Nós nos encontramos para que pudéssemos salvar sua vida.

E o amor? E o que sinto por ele, e ele por mim?

Eu só espero que você possa confiar em mim!

Eu amo Theo e devo a verdade a ele, mesmo correndo o risco de ele não querer mais nada comigo quando souber, afinal, eu não sou a mulher que ele escolheu naquela noite.

Eu quis ser, fui a primeira a vê-lo entrar, ao lado do amigo, sorrindo, com um copo de uísque na mão e olhando em volta como se procurasse algo. Nunca tinha sido atirada e já havia saído com Jean-Pierre duas vezes, então não fiz sinal algum de que ele me interessara, mesmo tendo interessado.

Eu lembro quando nossos olhares se cruzaram e como o brilho azul me encantou. Ele era perfeito, ainda que eu achasse que estava exagerando um pouco por causa do álcool. Comentei com minha amiga, Thereza, sobre os homens parados no meio da pista nos olhando, e ela, adepta da máxima “viva como se fosse o último dia”, começou a dançar e a fazer gestos para eles.

Theo se aproximou e foi diretamente atraído para ela, enquanto o outro, italiano, conversa com o resto do grupo. Eu assisti, com inveja, admito, ao deslumbre do homem por minha amiga, a forma como ela o conduzia para onde queria, os sorrisos de puro poder que me dava por ter um homem daquele aos seus pés.

Ela amava sentir isso! Sexo, para ela, nada mais era do que um combustível para sua autoestima, mais nada. Não importava se o homem era bonito, feio, rico ou sem um euro no bolso, se a fizesse se sentir poderosa, ela ia para a cama. Ela amava quando eles se arrastavam aos seus pés, sofriam, choravam, imploravam por ela. Era aí que perdia o interesse. Gostava do desafio, da conquista, mas, quando a coisa parecia fácil demais, simplesmente dispensava a relação sem nem considerar os sentimentos de ninguém. Gostava de iludir no percurso. Lembro-me das cartas de amor que me pedia para escrever, dos doces que fazia para presentear algum affair que era mais resistente a se render a ela. Entretanto, como todo o resto, assim que ela os fazia se apaixonarem, ficava entediada e se desinteressava.

Deixo os pensamentos e lembranças de lado quando Theo se remexe no sofá e abre os olhos assustado, mas se acalma quando me vê sentada na poltrona de frente para ele.

— Pensei que tivesse sido um sonho — diz sem jeito, sentando-se.

Vou até a cozinha, pego uma xícara de café que acabei de passar e a entrego a ele.

— Quer aspirinas?

— Não, foi mais cansaço do que bebedeira o que me derrubou ontem. — Sorri. —Tem notícias do hospital?

— Sim, Manola chegou lá agora. Tessa está bem, acordou, comeu, e o doutor já marcou a primeira sessão de quimio para hoje à tarde. Tia Do Carmo disse que ela dormiu a noite toda. — Sorrio. — Acho que está mais calma depois que soube que Kyra irá fazer a doação.

— Sim, graças a Deus. — Ele bebe um gole do café. — Me desculpe por ter desmaiado no seu sofá.

Não digo nada, apenas respiro fundo, esperando que ele termine de beber, tomando coragem para mostrar que confio nele e lhe contar toda a verdade sobre mim.

— Eu não sou a mãe biológica de Tessa — digo num só fôlego, sentindo minhas mãos trêmulas. — A mulher com quem você dançou e transou naquela boate não sou eu.

Espero ver em seu rosto a decepção de saber dessa verdade, mas não, Theo apenas assente, coloca a xícara vazia sobre a mesinha de centro da sala e me olha.

— Eu sei. — Isso me surpreende. — Nunca consegui ver você como se fosse ela. — Sorri. — Nem mesmo quando vi as fotos e o cabelo rosa conseguia me convencer de que vocês eram a mesma pessoa.

— Por quê? Por que não sou tão esfuziante como ela? — Ele parece não entender a pergunta. — Eu lembro como você ficou encantado, vidrado, não percebia mais ninguém. Eu estava lá naquele dia. — Isso, sim, o surpreende. — Fui eu quem a chamou para ir embora.

Nesse momento Theo parece se recordar de mim.

— Eu estava bêbado demais, e ela me atraiu, sim, não vou negar isso. — ouvir isso me faz sentir uma pontada no coração, mesmo sendo totalmente ridículo sentir ciúmes depois de tanto tempo. Theo se senta na beirada do sofá para ficar mais próximo de onde estou. — O que senti lá na Grécia há anos foi tesão misturado à bebida e ao clima da boate, à dança, tudo isso contribuiu para aquela loucura toda, mas, creia-me, não se compara ao que senti desde que te conheci.

— Theo... — tento continuar falando, mas ele não deixa:

— Eu sinto por você a loucura, o desejo, a atração, mas não é só isso. Eu conheci você, Duda, admirei a mulher com quem estava, aprendi a amar você de verdade. Nenhuma fantasia, nenhuma loucura de fim de noite se comparam a isso, e eu espero que você acredite. — Assinto em meio às lágrimas, ouvindo sinceridade em suas palavras. — Eu não sei por que você está criando minha filha ou onde se encontra a mãe biológica dela, mas agradeço por Tessa ter você.

— O nome dela era Thereza, e ficou apavorada quando descobriu que estava grávida. Demorou a descobrir, por isso não pôde abortar. — Choro ao me lembrar de como ela ficou transtornada com isso. — Eu prometi ajudá-la com o bebê, pois ela dizia que não fazia ideia de quem era o pai.

Foi o momento mais difícil da nossa amizade já tão complicada. Não era fácil viver com Thereza, mas eu era grata por ela ter me acolhido em seu apartamento e ter se tornado minha amiga logo que cheguei a Paris. Ela me entendia porque era brasileira também, embora tenha se mudado para Paris muito pequena, quando foi adotada por um casal francês que vivera no Brasil e depois retornara ao seu país de origem levando-a com ele.

Tinha boas condições financeiras, pois seus pais haviam sido executivos de uma empresa de veículos multinacional e lhe deixado, quando morreram em um lapso de tempo de apenas um ano entre um e outro, investimentos rentáveis que permitiram que ela entrasse e saísse de vários cursos até se encontrar na gastronomia.

Mesmo grávida, Thereza não deixou de se divertir, saía todas as noites, enquanto eu trabalhava no L’Amande e dormia durante o dia. Ela fumava, bebia e transava como se não estivesse carregando outro ser dentro de si. Tessa demorou a nascer, duas semanas além do normal, e os médicos tiveram que fazer uma cesariana para retirar a criança, o que a deixou profundamente depressiva, pois marcou seu corpo para sempre.

Eu era apaixonada pela bebê, cuidava dela como se fosse minha desde então e, quando Thereza se recusou a dar de mamar – Tessa tinha três meses – passei a me incumbir, junto com a babá, da tarefa de alimentá-la, o que criou um vínculo ainda maior entre nós duas.

No quinto mês de nascida de Tessa, Thereza se cansou da vida de mãe e me avisou que iria viajar por um tempo, mas que continuaria a arcar com a babá e com o apartamento. Ela só voltou a aparecer quando Tessa tinha pouco mais de um ano. Estava magra, abatida, sem um dente e completamente nervosa.

Reconheci os sinais assim que a vi e chorei a noite toda por ver mais uma pessoa que eu amava se afundando nas drogas. Tentei conversar, Jean-Pierre e Thierry tentaram convencê-la a se tratar, mas ela não reconhecia o que estava acontecendo a si mesma.

Olho para Theo, machucada por todas essas lembranças e continuo:

— Thereza foi achada morta no lixo de uma casa noturna. — Theo fecha os olhos, e eu vejo o espanto em seu semblante. — Além da dor de tê-la perdido, enfrentei o medo de ter de abrir mão de Tessa, afinal, não era minha filha e tinha acabado de ficar órfã. Então descobrimos que ela deixou registrado um documento dizendo que, se algo lhe acontecesse, Tessa ficaria comigo, pois vivíamos juntas. — Sorrio ao me lembrar disso, da sagacidade dela naquele momento. — Além do documento, havia uma carta, e nela Thereza me pedia para não me casar... — Theodoros franze o cenho. — Eu estava noiva de Jean-Pierre, um chef pâtisserie dono de uma padaria muito famosa na cidade.

— Por que ela escreveu isso?

— Porque, segundo ela, além de ele comer quase todas as funcionárias, eles tiveram um caso, e Tessa poderia ser filha dele.

Theodoros xinga e cerra os punhos como se pudesse bater no francês.

— Ele negou, claro, pelo menos por um tempo. — Respiro fundo e dou um sorriso triste. — Quando eu disse que estava disposta a perdoar o que quer que ele tivesse feito, mas que gostaria de que ele e eu adotássemos Tessa, Jean-Pierre simplesmente desapareceu. Vendeu a padaria e se estabeleceu na Suíça.

Theo fica um tempo mudo, olhando para o chão do apartamento, cabisbaixo.

— Foi por isso que voltou ao Brasil? — Encara-me. — Abriu mão de seus sonhos para criar Tessa?

Assinto, chorando, não por tristeza ou arrependimento, mas por sentir novamente o desespero por pensar que não conseguiria mantê-la. Eu ganhava pouco, mal pagava um aluguel, quanto mais uma babá para ficar com ela durante as 14 horas nas quais eu trabalhava.

Tive ajuda enquanto o processo de adoção não estava finalizado, mas foi tão extenuante que eu não me imaginava vivendo assim, sem poder acompanhar o crescimento dela, cansada demais para curtir e me alegrar com suas primeiras palavras. Não dava!

Liguei para casa, aqui no Brasil, contei a história ao papai, e ele me disse para voltar e nos recebeu de braços abertos.

— Ela é minha filha, Theo. Posso não a ter gerado, mas é minha, e eu faria qualquer coisa por ela. — Ele se levanta, ajoelha-se aos meus pés, segura minhas mãos e as beija. — Não a tire de mim! — peço aos prantos. — Mesmo que você não me queira mais, não a tire de mim!

— Eu amo você, Duda. Amo ainda mais depois de ouvir tudo isso, de saber que seu amor por nossa filha foi capaz disso tudo!

Abro um sorriso e sinto o coração disparado pelas palavras dele.

— Nossa filha?

— Sim, nossa filha! — Ele sorri. — Eu sou o pai dela, embora ainda precise aprender muito sobre paternidade, e você é a mãe independentemente se a concebemos juntos ou não. Você é a mãe, e Tessa tem muita sorte por isso!

Ele me puxa para um abraço, mas, antes, olhando dentro dos mesmos olhos azuis que chamaram minha atenção anos atrás, confesso:

— Amo você, Theo.

Ele me beija suavemente. Sinto o gosto salgado das nossas lágrimas se misturando ao doce beijo que trocamos. Suas mãos são carinhosas, deslizam pelos meus cabelos, tocam meu corpo com reverência saudosa de quem não o faz há semanas.

Mesmo em meio à emoção que passamos ontem e hoje, às lágrimas, o desejo nos alcança, nossos corpos despertam, e o sinto tremer de excitação.

— Eu sei que não é um momento para... — começa, mas coloco a mão sobre sua boca.

— Meu quarto é a terceira porta à esquerda do corredor.

Theo não diz mais nada, levanta-se rapidamente e me pega no colo, levando-me até o quarto onde ainda não dormi e me deita na cama devagar, erguendo o vestido que uso lentamente, deixando-o embolado na cintura.

— Eu sou louco pela sua pele. — Arrasta a ponta dos dedos pelas minhas coxas. — Por suas curvas, seu cheiro... — Abaixa-se e começa a aspirar meu perfume no pescoço. — Você é minha, Maria Eduarda.

— E você é meu, Theodoros.

Ele sorri.

— Eu sou! Só seu...

Beijamo-nos com toda a intensidade do momento, nossas línguas se tocando, corpos roçando um contra o outro, corações disparados e pele ardendo de desejo. Suas mãos puxam minha calcinha para baixo, ele geme contra minha boca, e, quando me toca intimamente, contorciono-me de prazer.

Seus dedos habilidosos estimulam meu sexo, brincam com minha lubrificação, exploram minha carne com conhecimento e perícia, deixando-me louca de tesão. Theo separa sua boca da minha e desce deslizando seus lábios sobre meu abdômen desnudo, parando exatamente entre minhas coxas.

— Theo... — gemo seu nome quando sua língua continua a estimulação antes realizada por seus dedos. Adoro o jeito como ele me lambe, a fome com que me suga até que eu goze em sua boca e mate minha sede de prazer.

Seguro-o pelos cabelos, forço-o a me penetrar com a língua o máximo que consegue e depois grito quando ele volta a açoitar meu clitóris. Ele não para, não cansa, chupa, lambe, mastiga até que eu sinta o corpo inteiro retesar e o orgasmo me tire o fôlego.

Ainda estou me recuperando das sensações quando ele, depois de ter arrancado a roupa, invade meu corpo, já muito molhado e quente, de uma só vez e se encaixa em mim perfeitamente.

Abraço seus quadris com minhas pernas e o acompanho em cada movimento, olhos nos olhos, boca resvalando uma na outra, mesmo sem beijar e todas as sensações maravilhosas que só ele me faz sentir, tomando conta de mim.

— Eu amo você... — diz quando estoca mais forte. — É uma delícia poder te amar assim... — Mais uma estocada. — S’agapo40!

Beijo-o, e ele aumenta a velocidade, grudado em mim de um jeito em que nunca o fez antes. É palpável o amor que temos um pelo outro e como ele deixa o sexo ainda mais gostoso e sensível. Ouço sua declaração em cada movimento que seu corpo faz dentro do meu. Mesmo que ele esteja apenas gemendo de prazer, eu o escuto dizer que me ama.

Theo gira na cama, e eu fico sobre ele. Retiro o vestido e sinto imediatamente suas mãos sobre meus seios enquanto o cavalgo. Planto meus pés sobre a colchão e me inclino para trás a fim de ter maior mobilidade, imprimindo um ritmo mais acelerado, potencializando as sensações de prazer.

— Eu vou gozar, Theo! — aviso assim que os primeiros espasmos atingem meus músculos. — Goza comigo!

Mal acabo de falar, e ele se senta, segurando-me contra si enquanto gemo em desespero, o prazer intenso descontrolando meu corpo, e ele me acompanha, seus gemidos ecoando pelo quarto enquanto fala meu nome e repete que me ama.


Uma vez, ainda quando eu era criança, ouvi num comercial de TV que ser mãe é padecer no paraíso. Nunca tinha entendido essa frase, e hoje, analisando-a corretamente, discordo. Ser mãe não é padecer, ser mãe é desfrutar do maior dom existente no mundo: o dom da vida!

Como vocês sabem, Tessa não nasceu de mim, pelo menos, não do meu ventre, mas eu digo que a gerei, sim, dentro do coração desde o momento em que soube que minha amiga estava grávida. Ela nasceu do meu coração duas vezes: a primeira, no dia do seu nascimento propriamente dito; e a segunda, no dia em que recebeu o transplante de medula.

Não é à toa esse dia ser considerado pelos médicos como o dia zero. É a nova chance, é a esperança concreta de continuar vivendo, de restauração da saúde e vida normal.

Fevereiro foi um mês difícil com a doença dela e a falta de um diagnóstico preciso, a viagem de Theo e tudo o que descobri sobre a promissória, a promessa dele ao avô e a fake new de seu noivado com Valentina. Não foi realmente um mês fácil, mas as coisas começaram a mudar no final dele. A começar, claro, pela notícia de que Kyra era compatível e iria doar para a sobrinha; em seguida, com minha reconciliação com Theo, sem mais carregar segredos do passado; e então, com o começo da preparação para que Tessa recebesse o transplante.

Suspiro ao me lembrar da madrugada em que contei ao Theo que não era a mulher da boate, mesmo temendo que isso fosse decepcionante para ele e que o afastasse de mim. Foi bom descobrir que o que temos é muito maior do que qualquer segredo entre nós. O sexo foi maravilhoso, mas a conversa enquanto nos arrumávamos para ir ao hospital foi linda.

— Eu não entendi até agora o motivo pelo qual você pinta seus cabelos de rosa todo ano — ele comentou enquanto secava minhas madeixas castanhas com uma toalha felpuda.

Sorri e dei de ombros.

— No aniversário de Thereza. — Ele parou de passar a toalha pelos meus cabelos e me olhou estarrecido. — Tessa sabe que é minha filha adotiva, do coração, mas não conhece a história da mãe totalmente. Eu não queria que minha menina se sentisse rejeitada, então, o que ela sabe é que a mãe morreu e a deixou sob meus cuidados porque sabia que eu a amava como filha e que cuidaria bem dela.

— O cabelo pintado, então, é um tipo de homenagem? — Assenti. — Você é incrível, Duda!

— Não, eu só amo Tessa demais e não tenho motivo para fazê-la sofrer com uma história que ficou para trás e só a faria infeliz. Eu optei por contar que não era sua mãe biológica porque ela tinha o direito de saber disso, então, quando ficou maiorzinha e viu fotos da Thereza com seus cabelos pink, quis fazer nos dela, e eu embarquei na homenagem.

— Eu amo você ainda mais por isso! — Ele me beijou.

Chegamos ao hospital de mãos dadas naquele dia. Nem preciso dizer que, além de olhares enviesados de Manola, minha tia resolveu conversar em particular com ele e, como minha única parente viva, deixou umas coisas bem claras para ele. E não, eu não sei o teor da conversa, pois nem ela, nem Theo me contaram.

Tessa fez a primeira sessão de quimo, e nós ficamos o tempo todo a observando depois, torcendo para que não tivesse efeitos colaterais e prontos para a assistir no que fosse necessário caso tivesse.

Sofremos um bocado com a febre e as náuseas durante o tratamento, até que o doutor Felipe marcasse o dia do transplante. Theo acompanhou Kyra durante todo o procedimento, que foi simples, mas delicado, pois foi feita uma pulsão e aspirada a medula de dentro do osso da bacia.

Kyra ficou sob observação durante um tempo, e Tessa recebeu, igual a uma transfusão sanguínea, as células que formariam sua medula nova e sadia. Após o transplante, para evitar rejeição, Tessa começou a tomar os imunossupressores, e nós ficamos aguardando os resultados sobre a restauração da medula.

Durante o tratamento antirrejeição, ela ficou muito suscetível a doenças, por isso apenas Theo e eu entrávamos no quarto dela, e o cuidado dele com a filha me fez amá-lo ainda mais.

— Lembra da música que cantou pra mim antes de viajar? — Tessa perguntou a ele. — Eu acho que é uma boa canção de ninar.

Ele sorriu e perguntou se ela queria que ele cantasse para ela novamente, e, claro, era tudo o que ela estava esperando.

Fiquei parada no quarto o ouvindo cantar baixinho, acariciando seus cabelos e beijando, mesmo ainda usando a máscara, sua testa. Quando terminou a canção, Tessa já dormia tranquila segurando o primeiro bichinho de pelúcia que lhe dei. Vi Theo limpar as lágrimas dos olhos, fechá-los e fazer uma oração em sua língua natal.

Aquilo me desconcertou, porque nunca imaginei que ele fosse do tipo religioso. Questionei-lhe depois o que fizera, e ele me disse que era uma oração em agradecimento que aprendera com sua giagiá ainda menino. Pesquisara para relembrar as palavras e a recitara para agradecer a Deus por sua menina.

Nós pouco saíamos de perto de nossa filha, e, por isso, Millos assumiu interinamente a direção da empresa, e Theo só teve que ir até a Karamanlis para explicar o motivo pelo qual pedira o cancelamento da ação executória da promissória e decidira desistir do projeto de quase 10 anos de comprar a propriedade de minha família.

Ele me contou por alto o que aconteceu, mas percebi que seu cargo estava ameaçado.

— Não quer voltar para a empresa? Eu posso ficar com Tessa durante o dia, e você vem quando sair de lá.

Ele negou.

— Minha filha é minha prioridade. O que tiver que acontecer na Karamanlis acontecerá independentemente de eu estar lá ou não.

Eu não poderia estar mais feliz com o homem que amo e pai da minha filha!

Os dias foram passando, e acabei conhecendo mais um membro dessa família tão complicada. Alexios, um dos caçulas, esteve aqui para conhecer Tessa e, embora só pôde acenar para ela do outro lado do vidro, pareceu bem contente em ter uma sobrinha.

Notei a tensão entre ele e Theo e imaginei que isso se devia ao trauma que foi causado a todos no passado. Eles se falam, ao contrário do que aconteceu durante anos com Kyra, mas não têm muito jeito para conversar. Trocaram algumas poucas palavras, um distante do outro, e Alex se foi sem nenhum abraço ou mesmo aperto de mão.

Theo e eu não esperávamos mais nenhum membro da família Karamanlis por aqui, muito menos o tão temido Geórgios Karamanlis, de 90 anos, andando pelo hospital resmungando com seu português precário e uma enfermeira a tiracolo.

Contudo, o melhor vocês não sabem! Eu nem sabia que ele era o avô do Theo quando nos encontramos.

Eu estava voltando para o quarto de Tessa quando vi um velhinho bem-vestido, forte e aprumado tentando andar depressa para alcançar o elevador. Coloquei a perna e o braço nos sensores da porta para a impedir de fechar e o esperei entrar.

— Boa tarde — cumprimentei-o, e ele apenas sacudiu a cabeça de volta.

Parecia impaciente, olhava para o display que contava os andares o tempo todo e resmungava baixinho com sua enfermeira. Quando paramos no andar onde Tessa estava internada, a enfermeira se distraiu com o telefone celular, e ele quase caiu ao passar pelo piso molhado, sinalizado com placa, e eu o segurei pelo braço, impedindo a queda.

— Obrigado — disse com seu forte sotaque e enviou um olhar carrancudo para a mulher que o acompanhava.

— Tudo bem. Posso acompanhá-lo? — eu disse sorrindo. — Será um prazer levá-los até onde precisam ir. Sabem o número do apartamento?

Ele olhou para sua acompanhante, e ela olhou o celular de novo.

— Ala pediátrica, apartamento 42.

Enruguei a testa, pois era o número do quarto onde Tessa estava.

— É para onde estou indo. — Olhei para o velhinho e reconheci os mesmos olhos azuis lindos de Theo. — O senhor é Geórgios Karamanlis?

Primeiro ele me olhou desconfiado, depois me mediu de cima a baixo, até assentir.

— Quem é você? — perguntou sem rodeios.

Porém, antes que eu respondesse, Theo apareceu apressado e parou surpreso quando nos viu de braços dados.

— Pappoús! Millos acabou de me informar que o senhor estava vindo para cá. — Olhou para mim sem entender o que estávamos fazendo juntos, e eu apenas sorri. — Vejo que já conheceu Maria Eduarda.

O velhinho insolente voltou a me olhar desconfiado, mas não se desvencilhou do meu apoio.

— Maria Eduarda — repetiu meu nome. — E minha bisneta?

— Tessa — assegurei que ele soubesse o nome da minha filha. — O nome dela é Tessa, senhor Karamanlis. É um prazer conhecê-lo.

Ele abriu um leve sorriso – se é que aquela careta podia ser considerada assim – e pediu ao Theo que o levasse até Tessa. Claro que ficou muito irritado por não poder entrar no quarto e só vê-la pelo vidro, mas, quando a viu, começou a chorar feito um bebê.

Eu não poderia nunca imaginar que algo assim aconteceria e só soube o motivo do choro quando Theo voltou do hotel onde o avô estava, depois de tê-lo deixado lá com a enfermeira.

— Tessa lembra demais a minha avó e também meu tio Geórgios, o filho mais velho dele, que morreu com a mesma doença que acometeu nossa filha.

Disse a ele que Millos já havia me contado sobre esse tio e que isso, na ocasião, deixara-me muito preocupada com Tessa.

— Eles mal sabiam sobre a doença e não tinham tantos recursos para tratá-la. Estamos falando dos anos 70, Duda. — Assenti. — Eu perguntei ao doutor Felipe se a doença pode ser hereditária ou familiar; ele não soube me informar, disse que os estudos nessa área são inconclusivos.

— Tomara que não seja.

— Sim, tomara que não. — Ele me abraçou. — Sabe que pappoús disse que a Karamanlis nunca teve uma mulher na diretoria, mas, se Tessa for igual à sua falecida esposa, será uma ótima diretora-executiva um dia?

Gargalhei disso.

— Ela será o que quiser ser, Theo. — Ele assentiu. — Sem pressão de ninguém.

— Sim, mas eu fiquei feliz ao ouvir isso. — Ele sorriu. — Pappoús é muito difícil, preconceituoso. Ter percebido que ele aceitou Tessa foi uma surpresa para mim.

— Faria diferença se ele não a aceitasse?

— Nenhuma! — garantiu. — Mas me liberou da promessa de lhe dar um bisneto.

Ergui a sobrancelha.

— Isso quer dizer que não pretende ter mais filhos?

Theo riu, negou e falou baixinho no meu ouvido:

— Se depender do nosso tesão, vamos ter muitos filhos ainda.

Olhei-o assustada, e ele gargalhou.

— Ei, estou atrasada? — a voz de Kyra me traz de volta à realidade, e abro um sorriso.

— Não. Theo ainda está lá dentro enchendo o pobre doutor Felipe de perguntas. — Aponto para os dois homens conversando e para Tessa, no colo do pai, com a expressão mais entediada do mundo.

— Eu adorei essa máscara que ela está usando hoje!

Kyra ri do objeto que uma funcionária da Karamanlis – Kika – mandou para a Tessa. O presente foi todo esterilizado antes do uso e, infelizmente, irá para o lixo no fim do dia, mas minha menina amou usar algo tão divertido quanto uma máscara com estampa de beijinhos.

Minha filha terá que continuar por algum tempo ainda com os medicamentos antirrejeição, fazer visitas periódicas ao hospital, além de seguir uma série de recomendações médicas em casa, mas está feliz por poder deixar o hospital e conhecer seu novo quarto na cobertura de Theo.

Nós ainda não contamos para ela que ele é seu pai. Estávamos esperando que recebesse alta e estivesse estável para lhe darmos a notícia, e esse momento chegou. Olho para Kyra, ao meu lado, sentindo o coração transbordar de alegria, pois sei da importância que a presença dela em nossa família tem para Theo.

Sinceramente espero que ele consiga alcançar o perdão dos outros irmãos e que essa família se acerte. Gostei muito de Alex e Kyra, mas confesso não nutrir bons sentimentos com relação ao Kostas, que sequer veio ver a sobrinha.

— Ah, finalmente!

Theo sai com nossa filha, pela primeira vez depois de tanto tempo no isolamento, e ela dá pulinhos de felicidade em seu colo.

Cumprimento o médico brilhante que salvou a vida de Tessa com o diagnóstico preciso que deu de uma doença tão rara e lhe agradeço por todo o empenho no caso.

— Mamãe, quero logo ir para a casa do Theo!

— É nossa casa, Tessa — ele a corrige. — Vamos todos morar juntos, mamãe, tia Do Carmo, você e eu. Ah, e a Vanda!

— Oba! Vem também, tia Kyra! — a menina convida, e Kyra gargalha.

— Vou visitar tanto você que vai achar que me mudei para sua casa!

Theo abre um sorriso enorme ao ouvir isso, e sua irmã o olha sem jeito.

— Se quiser se mudar, a cobertura é grande — ele brinca com ela.

— Não, eu tenho dois meninos para cuidar, e Tessa não pode ficar perto deles por enquanto. — Theo arregala os olhos, surpreso com a informação. — Um cachorro e um gato, Theo, ambos resgatados de um abrigo. Eu fui para adotar um gatinho, mas me apaixonei pela história da gata que adotou um filhotinho de cachorro e, então, resgatei os dois.

— Ah, tia Kyra, tem fotos? Eu amo animaizinhos!

Os olhos de Tessa brilham quando Theo a instala no assento de elevação do seu carro, todo preocupado com sua segurança.

— Tia Kyra mostra as fotos quando chegarmos em casa, minha filha — digo. Ela faz um bico de insatisfação, mas se despede da tia, que vai até seu próprio carro para nos seguir até em casa.

Casa! Abro um sorriso ao perceber que já penso na cobertura de Theo como sendo nossa casa.

— Qual o motivo do sorriso? — ele me pergunta, sentando-se atrás do volante do carro.

— Estava pensando em como é estranho pensar na sua cobertura como minha casa. — Sorrio. — Nós não fomos nada devagar nisso.

Ele ri.

— Nunca fomos devagar em quase nada, Maria Eduarda. — Gargalha. — E para que ir devagar? Eu amo você, você me ama, temos uma filha juntos. — Beija-me antes de ligar o carro e completar seu raciocínio. — Já somos uma família!

Ele tem razão! Olho para trás e vejo nossa filha com um livro nas mãos, entretida lendo a história. Já somos uma família!


Como é possível a vida dar uma guinada em apenas poucos meses? Sorrio, alisando o cabelo de Tessa enquanto ela dorme. Se alguém me contasse no fim do ano passado que eu iria passar pelo que passei nesses meses, eu iria rir bastante, além de chamar a pessoa de louca.

Beijo a testa da minha filha e saio sem fazer barulho do quarto, seguindo para a sala e me sentando no banco do piano. Não toco, não hoje. Nada de bebidas e músicas para uma noite solitária. Elas se foram. Agora tenho uma família.

Sinto um arrepio de antecipação e medo pelo futuro, mas sei que, com Maria Eduarda e Tessa ao meu lado, vou conseguir passar por qualquer situação. Eu não tive exemplos, nunca estive em uma família de verdade e por isso tenho medo de cometer alguma besteira e foder tudo.

Olho para o porta-retratos de prata recém-colocado sobre um móvel da sala e sorrio ante a beleza da foto. Nela, Tessa está sobre meus ombros e nós olhamos o pôr do sol na Ilha Raj, no primeiro dia em que chegamos lá. Ali eu nunca poderia imaginar que nossos destinos já estavam ligados, mas sentia uma conexão tão forte com aquela criança que, por vezes, surpreendia-me.

Olho em volta do apartamento onde moro há pelo menos oito anos e vejo, pontualmente, cada detalhe diferente da decoração, antes tão fria, agora cheia de vida, calor e sentimentos. Nada aqui agora é sem propósito.

Caminho até uma pequena concha deixada perto do porta-retratos de prata e me lembro do dia que passei com Tessa na praia, onde brincamos de pique-pega e corremos muito. Sinto uma enorme vontade de levar minha menina para a Grécia, mas sei que precisarei esperar até que ela esteja bem para uma viagem como essa.

Em outro móvel, outra foto chama minha atenção. Dessa vez é de Duda, ainda criança, com seus pais e o irmão falecido. Abro um sorriso ao ver a menina linda que ela era e em como a família parecia feliz e harmoniosa. É isso que eu quero para mim! Amor, um lar, sentimento de pertencimento, segurança. É assim que Tessa irá crescer, e os outros filhos que virão.

Uma fotografia tirada no hospital no dia em que pude participar do primeiro aniversário de minha filha me traz lágrimas aos olhos, além das lembranças daquele momento. Foi pouco depois do transplante, e, como ela estava em tratamento e recuperação, suas visitas estavam restritas.

Maria Eduarda e eu ficamos dentro do quarto com ela, enquanto Kyra, Manola e tia Do Carmo seguravam balões e mensagens de aniversário do outro lado do vidro. Foi emocionante. Minha menina tinha acabado de receber outra oportunidade de crescer e se desenvolver, tínhamos motivos em dobro para comemorar sua chegada ao mundo.

Eu estava louco para poder contar a ela que era seu pai, mas sabia que no hospital não era o momento certo. Ainda assim, não deixei de me emocionar no dia em que pude incluir meu nome em sua certidão de nascimento.

Hal navega disse que o procedimento era simples, e realmente foi. Preenchi um formulário requerendo a inclusão do meu nome e do nome dos meus pais na certidão de nascimento de Tessa, que, embora tenha nascido na França, foi registrada no consulado brasileiro por ser filha de brasileira e teve uma nova certidão emitida quando Duda, já morando aqui no Brasil, conseguiu a adoção.

Ela, por ser mãe, precisou concordar com meu pedido em uma anuência expressa. Hal, então, juntou todas essas informações e as levou até o cartório competente, e, antes mesmo de Tessa ter alta, meu nome já constava em seus documentos. Oficialmente e sentimentalmente eu já era seu pai, mas ela ainda não sabia.

Maria Eduarda e eu decidimos que contaríamos a ela no dia da alta médica e preparamos tudo para que ela pudesse já se acostumar à sua nova casa e família.

— Acho que já é hora de você se mudar para cá — eu disse para Duda em uma noite em que dormimos em casa e Tessa ficou com dona Do Carmo no hospital. — Ninguém mais vai naquele apartamento que você alugou, e o em cima do Hill também está vazio, apenas com suas coisas pessoais.

Ela sorriu e se aconchegou ao meu corpo na cama.

— Espero que isso não tenha sido seu pedido de casamento, porque, senão, ele é decepcionante.

Gargalhei.

— Não, não é. — Ela me olhou nos olhos. — No dia em que eu a pedir em casamento, não haverá dúvidas, e sim um belo par de alianças.

— Gostei disso! — Beijou-me. — Eu concordo em vir morar com você, mas não quero deixar tia Do Carmo sozinha. Você se importaria se ela...

— A cobertura é grande, e sua tia, mesmo sendo um tanto intimidadora, é uma pessoa maravilhosa.

Duda se ergueu na cama.

— Não vai mesmo me dizer o que ela te disse quando chegamos juntos no hospital?

Neguei, mas pude ouvir claramente a voz de dona Do Carmo.

— Nunca mais quero ver minha menina chorar por sua causa, está entendido? Ela tenta me proteger das coisas, não gosta de me preocupar, mas eu sabia que você tinha aprontado algo com ela e que ela estava muito triste. — Assenti sem jeito e baixei a cabeça. — Eu vou estar de olho em você, Theodoros, então se esforce ao máximo para ser o pai que Tessa merece e o homem que Duda ama, porque senão...

Senti o mesmo frio na barriga que sentira ao ver o olhar dela durante essa frase inacabada e abracei Maria Eduarda bem forte, prometendo em pensamento nunca a fazer infeliz. Claro que, em algum momento, posso deixá-la triste ou mesmo magoá-la. Não me iludo quanto a vida de casal ser um mar de rosas, mas vou sempre me esforçar para nunca a fazer infeliz.

A felicidade dela e de Tessa passou a ser minha prioridade, e nada no mundo é mais importante que isso.

Depois daquela noite, Vanda começou, junto com dona Do Carmo e Manola, a preparar o apartamento para receber minha família. Como Duda e eu estávamos sempre no hospital com Tessa, participamos pouco dessa transição e só fomos ver o quarto de Tessa, decorado como um presente de Kyra, um pouco antes da alta de nossa filha.

— Kyra, isso ficou perfeito! — elogiei-a emocionado.

— Tessa adora unicórnios, vai ficar deslumbrada! — informou Duda.

Minha irmã ficou emocionada e explicou o motivo pelo qual escolheu aquele tema específico:

— Unicórnios são seres mitológicos que possuem características de pureza e força. Além disso, passam uma mensagem de que tudo é possível, basta acreditar. Eu achei que é uma mensagem positiva para ela nesse momento.

— Sim, é muito sensível de sua parte. — Duda a abraçou.

Fiquei ali olhando as duas emocionadas e me lembrei do abraço que eu e Kyra trocamos depois de tantos anos. Não foi aquele em que a puxei no dia em que foi fazer o teste, mas o no dia em que doou a medula à minha filha. Kyra estava nervosa, apesar de saber bem o que aconteceria. Doutor Felipe a acompanhou em todos os momentos, conversou com ela, explicou detalhadamente como seria feito o processo, que doeria um pouco, que ela ficaria em observação e com o local dolorido depois, mas que não havia risco.

Acompanhei-a e estive ao seu lado durante todo o tempo, segurando sua mão, sorrindo e chorando junto a ela. Talvez eu nunca consiga externar tudo o que sinto por minha irmã, mas acredito que, quando ela olha em meus olhos, sente isso.

Quando Kyra foi encaminhada para o quarto a fim de descansar, velei seu sono, e tantas perguntas se fizeram em minha mente. Eu queria saber da vida dela, de todos esses anos que eu tinha perdido, de como foi sua adolescência, o começo da vida adulta, como foi que ela descobriu o gosto pela decoração e, por fim, por que escolheu trabalhar com eventos.

— Temos tempo. — Ela riu quando foi liberada e eu lhe perguntei tudo isso. — E eu quero o daqui para frente com você, Theo, não quero mais pensar e remexer o passado. — Respeitei esse pedido dela. — Quero ser parte da sua vida e estou feliz por ter você na minha.

— Para sempre! — Abracei-a. — Estarei sempre aqui contigo, sempre, agapi mou!

Sorrio sozinho no meio da sala, revisitando as memórias dessas seis semanas desde o transplante de Tessa até o dia de hoje.

Pego meu celular e passo as fotos que tiramos há poucas horas, na chegada de Tessa a nossa casa. Minha filha pôde receber a festa de aniversário que tanto esperava. Claro que, por causa dos medicamentos e de sua recuperação, ainda não pode comer de tudo, e Manola teve o cuidado ao preparar a comida segundo orientou a nutricionista.

Foi uma verdadeira festa, embora Tessa tenha podido participar pouco, pois não pode se cansar.

Pensam que ela ficou triste por ter de ir ao seu quarto? Absolutamente não! Ficou encantada com a decoração que tia Kyra fez para ela, mexeu em cada objeto, olho seu closet cheio de roupas, sapatos e acessórios de menina e pulou ao descobrir que tinha um banheiro só seu.

Duda demorou a desacelerá-la para que dormisse. Ajudou-a no banho, colocou-lhe o pijama novinho cheio de arco-íris que brilhavam no escuro, e ela se deitou em sua cama de casal com os braços e pernas abertos, usufruindo de todo o enorme espaço só seu.

Eu ainda não tinha pensado em como abordaríamos o assunto da paternidade com ela, mas ele chegou sem que fizéssemos nenhum movimento para isso. Fui abaixar a luz do quarto para que ela pudesse dormir quando a ouvi sussurrar para sua mãe:

— Mamãe, será que agora, que vamos morar com Theo, vou poder chamar ele de papai?

Maria Eduarda me olhou, e eu prendi a respiração por um tempo, preparando-me para o grande momento, ansioso por sua reação e temeroso que ela não aceitasse bem toda a história.

— Tessa me fez uma pergunta, Theo — Duda começou, imaginando que eu não tivesse ouvido. — Queria saber se, agora que vai morar com você, pode te chamar de papai.

Sorri, aproximei-me da cama, sentei-me ao lado de Duda e baguncei o cabelo de Tessa antes de dizer:

— Não só porque você mora comigo, Tessa. — Minha menina sorriu. — Você pode me chamar de papai porque sou o seu papai — tremi ao falar essas palavras, e ela olhou para Duda sem entender. Respirei fundo e continuei, buscando uma explicação simples, sem muitos detalhes, e que ela pudesse entender: — Nós não sabíamos, mas eu conheci sua mãe biológica, tive um namoro rápido com ela, e você nasceu.

— Verdade? — ela me questionou, mas olhava para sua mãe.

— Sim — Duda respondeu. — Theo soube que era seu pai quando fez o exame para doar a medula, por isso tia Kyra foi quem doou, porque é irmã do seu pai. Não é incrível?

Os olhos de Tessa se encheram de lágrimas, e a abracei forte.

— Meu desejo de aniversário se realizou — Tessa me confidenciou baixinho. — Eu pedi isso de presente, lá no hospital. — Sequei suas lágrimas. — Que você fosse meu pai.

— Eu amo você, minha filha. — Ela sorriu quando a chamei assim. — Prometo que farei de tudo para que consiga me amar também.

Foi nesse momento que ela me deu o sorriso mais lindo do mundo.

— Ah, bobinho, eu já te amava mesmo antes de saber que você era meu pai!

Chorei, agarrado aos dois amores da minha vida, intercalando lágrimas e sorrisos, agradecido por ter a chance de ser feliz ao lado delas.

Sim, eu estou feliz demais!

— Ei. — Duda toca meu ombro e me dá um pequeno susto. — Não vai se deitar? Acordei agora há pouco sozinha na cama e fiquei intrigada sobre seu paradeiro.

— Fui ver Tessa e depois acabei ficando por aqui. — Beijo-a e ergo sua mão direita, enfeitada com a aliança de ouro que coloquei ali há menos de duas horas. — Como se sente, futura senhora Karamanlis?

Duda sorri largo, e eu a pego no colo a fim de colocá-la de volta na cama.

— Sabe o que eu pensei? — inquire assim que nos deitamos. — Amanhã, quando Manola chegar aqui e vir a aliança, vai ficar toda curiosa sobre o pedido...

Sua voz risonha me assusta.

— Duda, você não vai...

— Ah, eu vou! — Ela ri solto. — Ela fica me chocando ao falar detalhes do Dionísio! — Eu gemo, não querendo entrar no assunto. — Agora vai saber que fui pedida em casamento no meio do orgasmo, que só vi uma caixinha sendo levantada em minha direção enquanto você chupava minha...

— Duda! — Gargalho, e ela se vira de frente para mim. Ah, Maria Eduarda, minha chef, cozinheira, a irritante dona do Hill que se tornou dona do meu coração! — Eu amo você!

— Eu também! — fala bocejando.

— Que romântico... — Beijo sua testa.

Ela dorme abraçada comigo, e eu me sinto seguro, em casa, amado e feliz.


Um ano depois.


Quem consegue enxergar os emaranhados do destino? Há algumas religiões que acreditam que a vida de uma pessoa é ligada à de outra por um fio que as prende desde o nascimento até a morte. Às vezes esse emaranhado de fiação se enrosca, embola e impede que um chegue ao outro, mas o fio nunca se parte, e, se um dia se encontrarem, nada poderá separá-los.

Acho que Theo e eu temos essa ligação, esse fio do destino nos ligando. Encontramo-nos pela primeira vez há dez anos, numa ilha no meio do mar Jônico, no final de uma noitada, numa boate cheia de jovens sonhadoras. Acho que, quando ele entrou lá, o fio que nos unia me puxou, e eu senti algo naquele olhar que não sabia explicar.

Entretanto, não era o momento ainda, nem para mim, muito menos para ele, reconhecermos isso. Tínhamos um propósito, mesmo sem saber disso, e os anos se passaram. Quando chegou a vez de cumprirmos nossa missão, algo puxou os fios e nos uniu de novo. Percebemos um ao outro, envolvemo-nos mesmo sem ter noção do que enfrentaríamos juntos.

Nossa missão era garantir a vida de Tessa. Nosso reencontro foi orquestrado para que pudéssemos ser a família que nos tornamos. Eu não fazia ideia de que poderia ser feliz como vi meus pais serem, e Theo imaginava que, por nunca ter uma referência positiva, jamais teria uma família.

Ainda bem que estávamos enganados.

— Estamos atrasados! — escuto alguém gritar ao meu redor, mas, sinceramente, não me importo.

A agitação de uma cozinha me fez aprender a não ficar alvoroçada com a pressa alheia, a seguir o tempo de cada preparação, a desfrutar de cada etapa de um prato. Aprendi a ter respeito pelos alimentos e pela hora da refeição, então, a gritaria ao meu redor agora não me assusta.

Fecho os olhos e me concentro apenas na sensação de plenitude, de alegria e amor que sinto transbordando de mim. Ah, como sou feliz! Passei por muita coisa triste nesta vida, mas, nesses últimos meses – um ano, para ser precisa – só sinto felicidade.

Imagino que vocês estejam curiosos para saber o que aconteceu em minha vida nesse período de tempo, então – abro um sorriso preguiçoso –, como tenho um tempo aqui ainda, posso contar com detalhes.

Primeiro de tudo, adianto que minha filha está muito bem de saúde. Não foi fácil para a pequena Tessa a recuperação, mas ela foi brava, mostrando indícios da mulher forte e guerreira que se tornará. Retornamos ao hospital algumas vezes por conta dos medicamentos contra a rejeição que, por vezes, deixavam-na muito suscetível a doenças.

Tessa não pôde retornar à escola, então tomou aulas em casa, e penso que isso foi o mais frustrante de sua recuperação. Por vezes ficou triste, revoltada por não poder brincar com seus amigos, mas o que a consolava era o pai. Theo se tornou seu melhor amigo nesse período.

É, quem viu o CEO posudo, com seus ternos de grife, sua coleção de relógios e seu gosto refinado para uísque nunca poderia imaginá-lo brincando de Barbie, construindo barracas de lençol no meio da sala para passar a noite em um safári de bichinhos de pelúcia ou mesmo assando cookies para uma festa do chá.

Sim, podem acreditar, ele fez tudo isso pela filha!

Os dois passavam horas vendo filmes, e o preferido dele era Moana, porque alegava que ela era uma líder excelente e um bom exemplo de mulher empoderada para Tessa, principalmente por não ter um “par romântico” na história. Pasmem, mas eu tinha razão sobre ele ser ciumento!

Lembro quando recebemos a visita de Frank Villazza, sua esposa e os três filhos. Tessa, claro, ficou encantada com Laura, a filha mais velha do melhor amigo de seu pai, e as duas começaram a brincar sem conseguir parar. Lucca, o irmão gêmeo dela, começou uma guerra de implicância com minha filha, e Theo detectou imediatamente que era interesse.

Pronto, foi o que bastou para ele não tirar os olhos das crianças e ser massivamente ameaçado pelo italiano.

— Eu acho que os dois formarão um belo casal daqui uns anos — Frank dizia com o semblante mais cínico do mundo, sem esconder seu divertimento. — O que acha, Karamanlis? Seremos, além de compadres, parentes por casamento.

— Frank... — Isabella tentava parar as brincadeiras do marido, mas acabava rindo do olhar desesperado de Theo. — Eu ficaria feliz, mas acho que está cedo demais para isso.

Theo gemia enquanto todos nós ríamos. Acho que sentiu na pele pela primeira vez o que era ser pai de uma menina linda, e, claro, não passou despercebido a ele que Frank também tinha uma filha.

— Ah, Laura é linda também! Tenho certeza de que no colégio ela tem alguns admiradores.

— Claro que nã...

— Ah, esses dias ela voltou para casa com cartinha de amor — Isabella disse rindo.

O italiano quase engasgou com o vinho que estivera bebendo e cobrou explicações da esposa.

— Ela me mostrou rindo e ainda ressaltou que os meninos são muito “bobinhos”. — Isabella deu de ombros. — O homem que conseguir conquistar o coração de Laura será um verdadeiro guerreiro.

— Não, será um cadáver!

Eu ri muito da reação do Frank, e aí Theo percebeu que ambos tinham um calcanhar de Aquiles, e os dois acabaram chegando a um entendimento mudo de que não era legal entrar nesse assunto ainda.

Outro episódio que me marcou por causa de seu ciúme foi quando Kyra foi jantar conosco e apareceu com um namorado que mal falava. Eu já havia percebido que minha cunhada tinha um gênio bem forte, era muito decidida e não suportava que lhe ditassem regras, fazia seu próprio destino. Particularmente eu gostava demais do jeito dela, mas entendia que isso também inibia alguns homens e que, por esse motivo, ela preferia uns bem calmos e discretos, diferentes de sua personalidade. Os namoros nunca duravam muito, e isso incomodava Theo, que achava que sua irmã estava sendo usada pelos homens e ficava com o coração destruído a cada término.

— Já pensou que pode ser o contrário? — questionei-lhe uma vez. — Que pode ser ela que não aguenta ficar muito tempo com alguém, que se cansa e põe a fila para andar?

— O quê? Claro que não! Kyra é sensível, doce, não uma devoradora de homens! São eles que não prestam e não a merecem.

— Bom... Acho que você não está enxergando sua irmã muito bem. Ela não é mais uma menininha indefesa, Theo.

Ele não respondeu, apenas bufou e entrou no banheiro ameaçando qualquer um que magoasse “suas meninas”.

Eu me diverti bastante nesses episódios, até sentir em minha própria pele e ter de ser dura com ele.

Desde que nos mudamos para seu apartamento, Theo enfiou na cabeça que iria recomprar o Hill para mim. Tentou negociar várias vezes com o pessoal da Dominus, mas não obteve sucesso. Ficava frustrado por nunca conseguir comprar o lugar, mesmo que para me devolver, e só sossegou quando eu disse que não queria voltar a trabalhar no bar. As lembranças que eu tanto amava estavam espalhadas pelo meu lar e no meu coração; eu podia muito bem seguir meu próprio caminho.

A Karamanlis começou a alugar os imóveis no entorno do pub, e a área vinha se transformando em um point gastronômico, com todo tipo de restaurantes e bares.

Theo quase caiu para trás quando lhe informei que tinha alugado um local para mim na galeria na mesma rua do Hill e que iria abrir um bistrô. Manola foi quem achou o local, e ele era exatamente como eu havia sonhado, pequeno, aconchegante e bem localizado, pois a galeria dava acesso à rua do Hill e à de trás. Havia várias lojinhas já alugadas, e os empreendedores tinham bom gosto, fazendo com que um público seleto frequentasse o local. Um bistrô para servir almoço. Eu daria adeus às noites em claro, poderia trabalhar durante o dia e estar em casa à noite com minha família. Era perfeito, quer dizer, eu achei, mas ele, não.

— Tessa ainda precisa de você e em breve você não poderá...

— Theo, ainda vou reformar, adequar e praticamente vou só gerir o local, pois Manola assumirá a cozinha e montará a equipe.

Ele relutou, apresentou vários motivos para que eu não investisse naquele momento, mas depois o convenci, com muito carinho e amor, que não estava pedindo autorização, só lhe comunicando. Usei o dinheiro da venda do Hill para iniciar o negócio, e em breve será sua inauguração.

Sim, ainda não comecei a trabalhar mesmo depois de um ano desde que vendi o Hill. Vocês querem saber o motivo? Eu posso contar...

— Duda, acho que ele dormiu.

Abro os olhos de repente e olho para Helena, amiga e funcionária de Kyra, notando seu olhar completamente encantado.

Olho para baixo e confirmo que Petros soltou meu seio e dormiu quietinho em meu colo enquanto eu estava perdida em memórias. Levanto-o, encostando sua barriguinha em meu ombro, ouvindo seu arroto forte, mesmo em meio ao sono, e escuto a risada de Tessa.

— Ele é barulhento, mãe! — Ri e olha para Helena. — Solta cada “pum” alto igual ao de um adulto.

A assessora de casamentos cai na gargalhada e ajeita o vestido de dama de honra de Tessa.

— Posso fechar seu vestido agora? — uma das suas ajudantes me pergunta.

Agora que meu filho já se alimentou, podemos seguir com o casamento.

— Pode, sim! — Sorrio quando ela começa a fechar botão por botão nas minhas costas e passa um outro tecido por cima do meu ombro. — Ah, obrigada! — Coloco Petros no sling desenhado junto ao vestido de noiva. — Está pronto para encontrar o papai?

Tessa dá voltas para que eu veja o balanço de seu vestido e, antes de se posicionar à minha frente, dá um beijo na cabeça de seu irmão, que dorme calmamente.

Descobri a gravidez uma semana depois da alta de Tessa. Theo e eu estávamos em uma semana intensa de discussões sobre o casamento: ele queria algo grandioso, e eu, íntimo. Quando passei mal, fui socorrida pela enfermeira de Tessa e obrigada a fazer uma desnecessária bateria de exames para acalmar meu futuro marido.

Foi o momento mais emocionante do mundo quando peguei o exame de sangue e a confirmação da gravidez. Theo não sabia se ria, chorava ou me beijava, então fez tudo ao mesmo tempo.

Contamos para Tessa – confesso que ele estava uma pilha, com medo de nossa filha se ressentir por deixar de ser filha única –, e sua reação foi lindíssima, beijando minha barriga e dando boas-vindas ao bebê.

Foi a gestação mais tranquila deste mundo. Não tive problema algum, nem desejos absurdos – o que gerou certa frustração em Theo, pois esperava por isso –, mas aumentou minha libido ao extremo, o que o deixou satisfeito e extenuado. Meu desejo era ele o tempo todo! Eu chegava a ligar para a empresa para dizer que estava com vontade de fazer amor, e ele, com medo de me deixar “aguada”, saía como um doido para me ver no meio do dia e me satisfazer. É, eu comi meu marido de todos os jeitos possíveis, em todos os locais – privados ou não – e misturei muita comida ao nosso sexo.

A torta com chantilly que usamos na primeira vez que ficamos juntos? Parecia coisa de amador diante do que fizemos. Imaginem que eu blindei seu pau com goiabada derretida e depois me deliciei com o doce! Passei doce de leite em seus gominhos do abdômen, chupei sorvete em seu umbigo e – que ele nunca descubra que contei isso para vocês – lhe dei um delicioso beijo grego com a boca cheia de gelo.

Só paramos de fazer sexo alguns dias antes do parto e por insistência dele!

Petros nasceu depois de 40 semanas de gestação, com quase quatro quilos e 52 centímetros. Revelou ao mundo que era um guloso já nas primeiras horas, pois estava sempre exigindo meu seio com um choro alto e forte.

— Sabe o que quer e como pedir! — Theo dizia encantado, tocando a pequena cabecinha cheia de cabelos negros. — É direto e objetivo como o pai.

Eu rolava os olhos, mas me sentia derreter com suas palavras cheias de orgulho e amor.

— Acho que chegou a hora de oficializarmos nosso casamento, não? — ele sugeriu assim que voltei para casa com o bebê.

— Pappoús está reclamando que Petros nasceu sem a bênção do casamento? — debochei, pois conhecia bem o pensamento de Geórgios Karamanlis.

— Está, sim, mas há meses fala do assunto, e eu já nem lhe dou ouvidos. — Theo deu de ombros. — Sou eu quem quer trocar essa aliança de lugar e unir meu nome ao seu como já uni minha vida.

Ah, tinha como eu resistir a um pedido desse?

Kyra ficou responsável pela organização do casamento e fez isso em tempo recorde: três meses. E bem, aqui estou eu, vestida de branco como manda a tradição, mas com um grande e importante detalhe diferente: ao invés de levar nas mãos um buquê de flores, decidi levar meu filho no colo junto comigo ao encontro de seu pai.

— Todos prontos? — Helena pergunta, pronta para abrir as portas do salão nobre do Villazza SP. — É hora do show!

Estranho quando noto que a música que ecoa no salão não é a que ensaiamos ontem, mas o sorriso encantado de Helena me faz prosseguir mesmo que eu não entenda o que está havendo.

Procuro por Theo no altar, mas tudo o que vejo é um enorme piano onde ele deveria estar. Meu coração dispara quando sua voz ecoa nos autofalantes. Paro devido a surpresa, então sorrio sem acreditar que ele está tocando e cantando em público, coisa que não faz de jeito algum.

A canção também é uma surpresa, diferente do gosto musical dele, mas tão perfeita para este momento que sinto meus olhos marejarem.


Vieste de olhos fechados, num dia marcado, sagrado para mim.

Vieste com a cara e coragem, com malas, viagem, pra dentro de mim,

Meu amor41


Quando chego perto do piano, ele se levanta, deixando que a banda que o acompanha continue a tocar a música apenas no instrumental. Primeiro, Theo beija a testa de Tessa antes que ela fique ao lado de Manola no altar. Depois, vem com um enorme sorriso e olhos brilhantes de lágrimas até onde estou, toca nosso filho, que dorme tranquilo em meu colo, e beija minha testa.

— Obrigado por confiar em mim — diz, e eu me lembro do dia em que apareceu bêbado, contou sua história e me pediu para que confiasse nele. — Obrigado por me fazer feliz.

Não resisto ao amor que vejo em seus lindos olhos azuis, então o beijo arrancando risadas dos convidados por ter quebrado o protocolo. Rimos juntos disso, e dessa vez é ele quem me beija, fazendo o juiz de paz clarear a garganta para que continuemos a caminhada até o altar.

Olho para Kyra, no altar, e percebo seu nervosismo por termos quebrado seu cronograma perfeitamente planejado. Minha cunhada percebe o quanto estamos felizes, principalmente pela visão que tenho dos nossos padrinhos nos esperando, e relaxa.

É, a vida não foi feita para seguir roteiros!


Fim


A noite está sendo um sucesso, e eu não caibo em mim de orgulho da minha esposa. É a primeira e única vez em que o Chez Hill irá servir um jantar, pois abrirá somente de segunda a sábado, no horário do almoço.

Minha chef de cozinha brilha, vestida com sua dolma com seu nome bordado, bem como as bandeiras do Brasil e da França. Olho em volta e reconheço o trabalho primoroso da equipe do meu irmão Alex na reforma e decoração do empreendimento. Está do jeito que minha esposa sempre sonhou, e é um privilégio poder acompanhar essa realização pessoal dela, ainda mais porque sei que abriu mão de tudo, há anos, para cuidar de nossa filha.

Sinto muito orgulho, sim, mas sou completamente apaixonado por ela. Cada dia mais eu a admiro, desejo-a e sou grato por tê-la ao meu lado. Duda é uma mulher especial. Eu não merecia tamanha sorte e me esforço a cada dia para ser o homem que ela me vê, o que ela aprendeu a amar.

Nós nos casamos há um mês e ainda não pudemos ter nossa lua de mel. Em parte, claro, por causa do nosso pequeno Petros, que está com apenas quatro meses e depende dela exclusivamente para seu sustento. O outro motivo para adiarmos a viagem que planejamos foi a inauguração do bistrô.

Maria Eduarda viveu, mesmo grávida, cada momento da montagem deste lugar. Escolheu a dedo cada equipamento, mobília e itens de decoração. Manola e ela passaram meses discutindo cardápio, marketing e escolhendo a equipe que a ruiva brava comandará com o chicote na mão.

É, a mulher é uma pimenta e conseguiu a proeza de deixar meu motorista de quatro, obediente e caseiro, totalmente domado. Os dois estão morando juntos há algum tempo, e Dio parece estar muito feliz.

Eu implico com a Manola – principalmente porque não começamos muito bem –, mas tenho muito carinho e admiração por ela e vejo a amizade sincera que sente por minha esposa, e isso já seria o suficiente para ela ter minha admiração.

Tessa passa correndo por mim, seguida por Laura e Lucca, e faço sinal para o garoto de que estou de olho nele. O filho de Frank ri e dá de ombros, uma atitude que me lembra muito o seu pai, e continua a seguir minha menina. Sorrio achando graça, mas o sorriso morre quando reconheço o doutor Felipe cumprimentando Maria Eduarda.

O médico tem a mão em seu braço e fala com ela cheio de sorrisos, o que me faz cruzar o salão com passadas largas e determinadas e a segurar pela cintura antes de cumprimentar o médico alto e bonitão.

— Boa noite! — ele me saúda de volta. — Estava elogiando o bistrô e parabenizando a Maria Eduarda pelo bebê.

Fecho a cara.

— É meu filho também. Agradeço os parabéns.

O corpo de Duda dá leves sacudidas contra o meu e vejo sua boca apertada, impedindo o sorriso. Ela sabe que estou com ciúmes! Encaro o médico.

— Espero que tenha desfrutado do jantar. — Ele assente. — Agora preciso mostrar algo para minha esposa...

— Claro! — Ele sorri e se despede.

— O que você quer me mostrar?

Não respondo, apenas arrasto Duda para dentro da cozinha, cumprimentando o pessoal que está cuidado da limpeza do local, e sigo para a parte de trás, onde ficam o depósito e a câmara fria.

— Theo? — ela questiona quando abro a porta de metal.

Sinto o frio nos atingir assim que fecho a porta e a encaro. Duda tem a testa franzida e os braços cruzados.

— O que significa...

Impeço-a de falar qualquer coisa, atacando sua boca, fervendo de tesão. Você é minha!, demonstro essa verdade com minha boca, esfregando a língua contra a dela. Você é minha!, minhas mãos cantam essa frase enquanto exploram seu corpo. Eu sou seu!, meu coração responde quando ela se agarra em mim, correspondendo com sofreguidão ao beijo.

Encosto-me contra uma prateleira e a seguro por baixo das nádegas, erguendo-a levemente, encaixando-a contra meu pau latejando de desejo, duro de vontade, desesperado para estar dentro dela mais uma vez.

Trepamos durante o banho, antes de vir para cá, mas minha vontade nunca passa, nem diminui, pelo contrário, cada vez que estou dentro dela, mais me desperta a fome, mais incendeia meu tesão. Somos a mesma carne, somos o mesmo fogo e necessitamos um do toque do outro, da pele e das sensações causadas por essa mistura perfeita de desejo e amor.

Maria Eduarda me completa em todos os aspectos, e eu sei que ela se sente da mesma forma com relação a mim. Somos amigos, companheiros, cúmplices, amantes e pais de duas crianças que nos enchem de orgulho.

— Theo... — ela diz com a boca colada na minha. — Nós vamos congelar aqui dentro.

Rio, esfregando-me a ela, mostrando quanto estou longe de congelar.

— Você é minha! — resmungo.

— Isso tudo é ciúme do doutor Felipe? — Tento negar, mas ela ri. — Eu sou louca por você. Ele tem que ser muito cego para não enxergar isso.

— Homem geralmente é burro, então, mesmo que enxergue, acaba fazendo bobagem. — Balanço a cabeça, segurando em seus peitos. — E você ficou ainda mais linda depois da maternidade. Adoro o volume deles, a textura...

— Estão cheios de leite. — Ela ri. — Nada sexy!

Levanto a sobrancelha.

— Tudo em você é sexy! — Eu a viro de costas, beijo sua nuca, mas não tiro as mãos de seus peitos, pois estão realmente muito gostosos. — Ah, Maria Eduarda... — Afasto-me, e ela me encara curiosa, não deixando de notar meu sorriso safado de quem está cheio de ideias mirabolantes na cabeça. — Acho melhor voltarmos para o salão.

— Não vai me dizer o motivo desse sorriso de gato que comeu o canário?

Gargalho, mas gosto muito da comparação.

— Esse gato aqui ainda vai comer esse canário... — Pisco. — Aguarde-me.

Voltamos para o salão recebendo olhares intrigados do staff, que ainda limpa a cozinha. Deixo-a com um beijo na testa, perto de Manola e seus amigos Lara e Cadu, e sigo ao encontro de Frank, Nicholas e Bernardo, junto às suas respectivas esposas.

— Algum problema? — Frank questiona assim que pego o celular.

— Não, só ansioso para ir para casa descansar.

O carcamano me conhece há muitos anos, por isso dá um sorriso torto e entendido e fala algo no ouvido de Isabella, que ri sem jeito. É, meu amigo, cada um ataca com as armas que tem! Você no ouvido, e eu...

Envio a primeira mensagem e fico observando Duda pegar seu telefone, suas bochechas se tingirem de vermelho e um sorriso aparecer em seu rosto.

 

 

Ela me procura com os olhos, balança a cabeça, mas responde:

 

 

Gosto da resposta provocativa.

 

 

Ela está bebendo água quando lê a mensagem, e eu rio quando engasga e Manola a socorre com um guardanapo, pois babou um pouco o líquido. Sua amiga enxerida acaba por espiar o telefone e rola os olhos, comentando algo para minha esposa, que digita uma mensagem.

 

 

Faço careta ante a cena que se desenha em minha mente, com meu motorista brincando com a sobremesa no quarto, e decido parar a brincadeira.

 

 

Ficamos nos encarando de longe, Duda com sua sobrancelha erguida, desafiando-me a continuar o jogo, e eu deslumbrado, tentando entender como foi possível que eu recebesse tamanho presente em minha vida. Essa mulher é mais do que perfeita; ela foi feita para mim.

Esse ano que vivemos juntos foi inesquecível, repleto de emoções, pois descobri e aprendi como ser pai da minha filha, participar de sua vida, fazer com que ela sentisse que eu estava ali para ficar em sua vida para sempre. E nisso, Duda me ajudou o tempo todo. Enquanto eu aprendia com Tessa, nosso filho se desenvolvia em seu ventre, e nós pudemos, os três, preparar-nos para sua chegada.

Nunca nesses meus 42 anos de vida, eu poderia imaginar experiência semelhante a que tive nos nascimentos dos meus filhos. O de Tessa quando recebeu a medula, e o de Petros quando meu meninão veio ao mundo e o peguei pela primeira vez.

Sorrio ao lembrar que Duda me perguntava como ele era, se estava bem, mas eu não conseguia falar nada, engasgado de sentimentos que nunca havia conhecido, transbordando de amor e cuidado que me deixavam imobilizado. Ouvi a risada da médica que acompanhou o parto e os comentários das enfermeiras sobre eu chorar mais do que o bebê, mas não me importei; meu filho estava em meus braços.

Ah, tanta coisa passou pela minha cabeça naquele momento! O menino carente que eu fui, sonhando em encontrar uma mãe que só veria em revistas, desejando que o pai o notasse e se alegrasse com sua existência, pôde finalmente sorrir. Eu tinha uma família e podia fazer tudo diferente do que tinha sido a minha história.

Tessa e Petros – e os outros que ainda virão, porque não desisti de ter uma família bem grande – significaram um renascimento para mim também, e eu só pude ter esse privilégio por causa de Maria Eduarda Braga Hill Karamanlis.

Pego o celular e respondo sua questão:

 

 

Ela sorri encantada, e leio a declaração de amor em seus lábios, mesmo sem emitirem nenhum som.

O som da risada alta e grave do meu avô me faz olhar em sua direção, para a mesa onde está sentado ao lado de dona Do Carmo e de Petros, que dorme tranquilo no carrinho. Tessa e ele estão fazendo algum tipo de jogo, e os dois se divertem bastante em um duelo em que um tenta capturar o dedão do outro.

Definitivamente, meu avô fica irreconhecível perto da minha filha!

A verdade é que ele se apaixonou por Tessa, e eu vi um lado dele que nunca tinha enxergado antes. Não entendam mal, ainda continua o velho rabugento e preconceituoso de sempre, conservador até a raiz dos cabelos, mas algo forte o ligou a minha menina – talvez a lembrança do filho preferido que perdeu para a mesma doença que Tessa conseguiu vencer – e o fez ser um avô que eu nunca imaginaria que fosse.

Lembro-me de sua visita quando Petros nasceu. Ele aproveitou que outro bisneto nascera e já veio para o Brasil a fim de ficar para o casamento. Ao longo desse ano, ele veio algumas vezes para o país, e a maioria delas foi surpreendente, mas essas são outras histórias. A que quero compartilhar é a do dia em que Tessa o desafiou no jogo de xadrez.

Eu havia comentado com ela o quanto meu avô era apaixonado pelo jogo, então minha filha passou meses estudando, vendo vídeos de estratégias e treinando comigo, até se sentir pronta para desafiar o velho Geórgios Karamanlis. Nem preciso dizer que, depois de horas de partida, minha menina o venceu com um xeque-mate surpreendente, olhou-me vitoriosa, depois beijou a testa do pappoús como se nada demais tivesse acontecido e foi brincar com suas bonecas.

— Theodoros... — ele me chamou, ainda olhando para o tabuleiro. — Sei que, por algum milagre, você engendrou outro herdeiro, agora um varão, mas...

— Eu sei, pappoús, ela é incrível!

— Não! Ela é uma Karamanlis como nenhum de vocês jamais foi! — Isso me surpreendeu, mesmo que tenha sido rude. — Eu confiaria a minha empresa a essa menina agora mesmo e tenho certeza de que ela faria um trabalho melhor que o de todos vocês juntos.

— Pappoús, nós já falamos sobre isso. Tessa gosta de artes, é sensível. Não vamos pressioná-la a nada, por favor.

Ele assentiu, mas eu reconhecia aquele olhar.

— Eu vejo, Theodoros, como eu via em Geórgios II, como vi em você. — Ele me encarou. — A menina nasceu para dirigir a empresa. — Pôs-se de pé. — Você já cumpriu sua missão comigo.

Abri um sorriso, mesmo ainda não concordando com as expectativas dele.

— Já posso morrer, então? — brinquei e, claro, recebi o olhar que ele sempre fazia quando algo o desagradava. — Desculpe, vovô.

As risadas dos dois voltam a ecoar pelo salão, agora seguida das de Laura e Lucca, então sorrio também. Eu acho que quem cumpriu uma missão foi Tessa! Não, não foi a de uma herdeira para a empresa, mas sim a de alegrar os últimos anos de um taciturno grego.

É, respiro fundo e olho ao redor, ainda nem posso acreditar que estão todos aqui!

A Deus, sempre!

A noite de ontem – sábado – foi bem mais silenciosa e tranquila que a anterior, pois Tessa, cansada das atividades do dia, acabou adormecendo cedo, sem nem mesmo jantar, e minha tia resolveu fazer o mesmo.

Fui para meu quarto, entrei no banho e estava passando um pouco de hidratante quando Theo apareceu e ficou parado na porta do banheiro apenas me vendo passar o creme pelas pernas. Eu estava vestindo um pijama levinho de verão – camiseta e short –, e meus cabelos se encontravam presos no coque que costumo usar quando cozinho.

Ele se aproximou, retirou grampo por grampo e espalhou as madeixas sobre minhas costas. Inusitadamente, cheirou meus fios longamente, sem encostar em mim, apenas sentindo meu cheiro. É claro que isso já foi o suficiente para que eu ficasse na expectativa de seu toque, sentindo o ar todo vibrando à nossa volta.

Theo deu a volta completa em mim, encarou-me com um meio sorriso muito sexy e acariciou meu rosto suavemente, sem falar nada. Não sei precisar quanto tempo ficamos assim, parados no centro do banheiro, um de frente para o outro, olhando-nos, e as pontas dos dedos dele roçando minha face.

Foi, com certeza, o sexo mais carinhoso que fizemos desde que começamos a dormir juntos. Não houve grandes malabarismos, nem posições diferentes, muito menos frases safadas e brincadeiras. Estávamos tão sensíveis que nossos toques falavam tudo o que precisávamos saber. Nossas bocas se encontraram em todos os momentos, silenciando gemidos, dividindo o prazer, e nossos corpos se encaixaram tão perfeitamente que não tínhamos vontade de parar.

Theo me penetrou devagar, indo profundamente e parando por lá, sem se mexer, olhos nos meus, então voltava a sair quase por completo, beijava-me e mergulhava dentro de mim. Nossas mãos estiveram entrelaçadas durante todo o sexo, minhas pernas abraçadas em seus quadris, recebendo-o por completo, dando-lhe espaço para que me amasse como quisesse.

E foi assim que me senti, sendo amada, sendo degustada, apreciada lentamente como quem desfruta de algo especial. O orgasmo foi tão intenso que Theo precisou tampar minha boca para que o som não saísse do quarto. Ele não quis gozar dentro de mim – mesmo estando de camisinha – e pediu para que eu o chupasse e recebesse seu esperma na boca. Adoro o jeito que ele goza, os sons que faz.

Tomamos banho juntos depois, conversamos e rimos no boxe e nos deitamos juntos. Nós dois estávamos tão cansados – da noite anterior insone e do dia agitado – que acabamos pegando no sono, e eu só acordei agora.

Abro os olhos e olho para o lado, para o homem deitado na cama comigo, e sorrio. Beijo devagar a ponta do seu nariz, mas Theo não esboça nenhum som ou indicação de que está acordado. Sua mão está repousada em cima da minha barriga, e ele ressona baixinho, perdido em seus sonhos noturnos.

Ajeito-me melhor na cama, ficando mais perto dele, sentindo seu corpo nu junto ao meu e fecho os olhos, agradecida por me sentir tão completa e feliz. Eu já era feliz sozinha, tendo minha filha e minha tia comigo, mas o jeito como ele me trata, como faz amor comigo e me abraça quando vai dormir, fortalece essa felicidade.

A mente sonolenta começa a viajar desconexa, relaxando meu corpo, mas, antes que eu mergulhe em sono profundo, uma luz me incomoda e escuto meu nome sendo chamado:

— Duda! — Tento ignorar e voltar a dormir. — Duda, por favor, acorda!

O tom de voz apavorado de tia Do Carmo me faz despertar, e eu pisco antes de entender onde estamos. Theo se remexe ao meu lado e também desperta.

— O que houve? — é ele quem pergunta, e minha tia fica sem jeito, olhando para mim.

Sento-me na cama segurando o lençol sobre os seios.

— Cadê a Tessa?

— Ela acordou há pouco se queixando de dor de cabeça. E...

Theo acende um abajur, e eu solto um grito ao ver a camisola de minha tia cheia de sangue. Sinto meu corpo inteiro gelar, mas, antes que eu me mova, ele salta da cama, agarrando sua calça de pijama e a vestindo como um louco, indo em direção ao corredor.

— É o nariz dela... — Minha tia, que parece em choque, aponta para a porta. — Melhor ir com ele.

Assinto e me levanto, procurando meu pijama, tremendo de susto. Tessa passou o dia todo no sol, e eu fui muito irresponsável por não ter pensado que isso poderia ser prejudicial a ela.

Droga!

Corro até o quarto que ela divide com minha tia e encontro minha menina com uma toalha no nariz, de cabeça curvada para trás, no colo do Theo.

— Sua tia foi buscar gelo — ele informa parecendo bem controlado. — Eu expliquei para Tessa que isso pode acontecer mesmo, depois de um dia agitado e com muita exposição ao sol.

Concordo e olho minha filha com um sorriso de consolo no rosto, tentando disfarçar o medo que estou sentindo. A cama dela está totalmente ensopada de sangue, bem como o chão ao lado, e até a calça do Theo tem respingos.

— O gelo! — Minha tia o entrega para o Theo, embrulhado em um tecido, e ele tira a toalha e a substitui pela bolsa térmica improvisada.

Vou até o banheiro dela, encharco outra toalha com água bem fria e a coloco sobre a testa de Tessa.

— Já está estancando — Theo me acalma. — O gelo fecha os vasos sanguíneos.

Chego a soluçar, e Tessa me olha preocupada.

— Eu estou bem, mamãe! — Sinto sua mãozinha tocar a minha. — Já passou!

Theo sorri por ela estar me consolando, e eu tento um sorriso para acalmá-la.

— Um banho seria bom agora, não? — pergunto.

— Sim, pode deixar comigo! — Tia Do Carmo ajuda minha filha a chegar ao chuveiro.

Espero as duas entrarem e, só quando escuto a água cair, é que deixo de segurar as lágrimas e soluço feito criança assustada, recebendo um abraço carinhoso.

— Ei, fica calma, está tudo bem!

— Eu fiquei em choque quando vi o sangue, não consegui me mover... — Soluço novamente. — Obrigada!

— Tudo bem! Acontecia muito isso comigo quando era criança, é bem comum — explica. — Às vezes eu ficava jogando futebol ou polo aquático ao sol, e sempre à noite o nariz sangrava.

— Tessa não é assim, Theo. — Seco as lágrimas. — Ela tem andado frágil demais.

— Já consultou um médico?

— Na semana que vem. — Olho para o quarto. — Vou limpar isso tudo aqui, porque ela deve sair do banho e voltar a dormir.

— Eu te ajudo! — oferece e já arranca a roupa de cama suja.

Pego os lençóis e fronha e o encaro.

— Se importa se voltarmos amanhã antes do almoço? Eu fico receosa de estar em um local tão isolado quanto este...

— Tem razão. — Beija minha testa. — Assim que amanhecer, vou chamar o pessoal do barco para nos levar de volta.

— Obrigada!

Ele sai do quarto, e eu limpo todo o sangue, coloco lençol e fronha limpos na cama e aguardo minha menina sair do banho.

— Sente-se melhor? — inquiro, abraçando-a assim que aparece.

— Com sono. — Boceja. — Você deita comigo, mamãe?

Faço o que ela pede e a abraço bem apertado, cantando “Se essa rua fosse minha” bem baixinho para ela, igual quando era bebê.

— Mãe? — Tessa se vira para me olhar. — Viu só como o Theo cuidou de mim? — Assinto, mesmo que preocupada com o brilho nos seus olhos. — Um pai cuidaria assim de mim, não é?

— Tessa... Theo não é seu pai, e nós estamos apenas nos conhecendo melhor. Não crie expectativas, minha filha.

Ela fica séria, depois vejo seus olhos se entristecerem, e ela os fecha, adormecendo. Choro baixinho, apertando-a contra mim, querendo que as coisas para ela fossem diferentes, desejando poder suprir toda a falta que ela sente de uma figura paterna. Sempre pensei que isso não acontecia, que ela estava feliz apenas comigo, mas, ao que parece, não é assim. Contudo, não posso deixar que ela se iluda sobre Theo, bem como não posso me iludir sobre ele.

— Duda — minha tia chama. — Pode ir dormir. Eu fico de olho nela.

— Tem certeza?

— Qualquer coisa, te chamo novamente.

Abraço tia Do Carmo e volto para o meu quarto. Theo está no banho, e aproveito esse tempo para pensar um pouco nessa situação toda na qual me meti e, o pior, envolvi minha família também. Para Theodoros Karamanlis, eu sou apenas sua aventura da vez. Daqui a pouco ele irá se acostumar, entediar-se e partir em busca de uma nova companhia.

O telefone dele vibra em cima do criado-mudo, e vejo o nome “Valentina” aparecer e, em seguida, quando a ligação cai, a notificação de oito chamadas dessa mesma pessoa não atendidas.

Tento me manter à margem, não me importar ou mesmo não questionar quem é a tal Valentina que liga para ele às 3h da manhã, mas então o telefone toca novamente, e ele vem correndo do banheiro e o desliga, olhando sem jeito para mim.

— Desculpe por isso. — Coloca o aparelho de volta no móvel.

— Tudo bem. — Forço um sorriso. — Não é da minha conta!

Dou de ombros e me levanto, passando por ele para ir ao banheiro.

— Ela é uma amiga — Theo começa, e eu paro. — Na verdade, já saí com ela algumas vezes, mas não passou disso e...

— Tudo bem, Theo, você não me deve explicações. — Ele parece aliviado por não ter de explicar, e isso só confirma que há mais nessa situação do que ele está me contando. — Vou tomar um banho e tentar voltar a dormir.

— Tessa já está melhor? — Aquiesço. — Que bom!

— Eu lhe agradeço demais por ter cuidado dela.

— Foi um prazer, Maria Eduarda! Ela é uma menina incrível!

Concordo com ele e, por isso mesmo, tenho que protegê-la de uma decepção. Se alguém tiver que sofrer, que seja eu, afinal, a escolha foi minha nesse envolvimento com Theo, então, que eu arque com as consequências disso. Tessa é minha prioridade, e não há nada que eu não faça por sua felicidade.


— Boa noite, doutor! — Vanda me saúda assim que as portas do elevador se abrem e estende a mão para pegar minha pasta.

Entrego-lhe o objeto, paro diante da mesa do hall, com os envelopes todos separados por assunto e examino a correspondência. Separo dois convites para ler depois e responder, e o resto, junto em uma pilha só para jogar no lixo: anúncios, contas – que, mesmo eu tendo autorizado o envio digital, ainda estão vindo em papel – e uma pesquisa da empresa na qual aluguei o iate para o final de semana.

Eles foram rápidos em mandar a correspondência, afinal, faz três dias que cheguei de Angra e devolvi o iate à marina. Abro o envelope, leio as perguntas e decido ignorá-lo, colocando-o junto aos outros que irão para o lixo.

— Como foi seu dia? — Vanda me pergunta assim que entramos na sala principal. — O jantar já está pronto. Vai comer agora ou depois do banho?

— Depois. — Sorrio, pois essa é sempre minha resposta.

Vanda leva minha pasta para o escritório e segue em direção à cozinha. Fico um tempo parado no meio da sala, olhando para a direção em que ela foi, pensando em como minha vida é rotineira e chata. Isso nunca me incomodou antes, mas agora... me sinto um velho solteirão, só faltando Vanda trazer meus chinelos e o pijama de flanela.

Sempre considerei esse padrão, essa solidão como uma coisa favorável. Contudo, algo mudou essa percepção, e isso já não me satisfaz mais. Acho que, finalmente, estou pronto para dividir a vida com alguém, ter filhos e uma família.

A imagem de Tessa aparece em minha mente.

Eu me diverti com a companhia dela, com suas perguntas curiosas, sua gana por aprender e a risada contagiante que parecia capaz de preencher qualquer vazio. Nunca tinha pensando em ter uma filha, uma menina. Toda vez que aventava a ideia de ter um filho, era um homem, um herdeiro para continuar o trabalho de pappoús.

Ainda quero isso, mas também quero uma menina!

Sorrio ao me lembrar das covinhas no rosto de Tessa e na forma como seus olhos se fecham quando sorri largo. A menina me encantou, temo admitir. Vi tantas características dela que penso que um filho meu teria – não no aspecto físico, mas na personalidade. A menina sabe o que quer, é inteligente, astuta e boa negociadora.

— Achei uma biblioteca! — no sábado, durante a viagem, em certo momento ela entrou na sala onde eu estava com sua mãe e anunciou. — Os livros estão em inglês, e eu ainda não aprendi muita coisa. — Deu de ombros. — Ah, tem uma academia também!

— Mesmo? — Interessei-me, pois já havia visto a biblioteca, mas não esse outro local. — Onde?

— Aqui dentro da casa! — disse empolgada. — Tem até piscina!

— Duda, Rita quer falar com você sobre o jantar — dona Maria do Carmo chamou a sobrinha.

— Pode ir lá. — Pisquei para ela. — Vou explorar a tal academia com a Tessa.

— Não deixe que ela mexa nas coisas!

Assenti, e ela seguiu a tia para a cozinha.

— Vamos lá? — Segui a menina por um enorme corredor e entrei em uma magnífica sala de treino, maior e mais equipada que a minha na cobertura. — É uma puta academia!

— Você me deve cinco reais! — anunciou. Olhei-a sem entender, e a malandrinha colocou as mãos na cintura e ergueu uma de suas sobrancelhas. — Disse um palavrão, põe cinco reais no meu cofrinho. É a regra!

— De quem? — Cruzei os braços.

— Da mamãe! — Riu. — Eu ganho muitas notas da tia Manola, mas ainda falta muito até eu conseguir dinheiro para pagar meus estudos.

Bati a mão nos bolsos da calça.

— Minha carteira não está comigo...

— Tudo bem, eu anoto para você me pagar no futuro — ri muito do jeito como ela falou isso.

— E você? — questionei. — Quando você perde seu precioso dinheirinho? Ou não têm regras para você?

— Claro que têm! Você acha que mamãe é boba? — Neguei, pois tinha certeza de que Duda não era. — Quando falo palavrão, perco cinco reais e, quando deixo de executar alguma tarefa, perco dez.

— Entendi. É um bom acordo!

— É, sim! Mamãe diz que isso me ensina a ter responsabilidade, principalmente com o dinheiro, mesmo porque não tenho mesada, como minhas amigas.

— Não tem? — Ela negou. — Então você usa esse dinheiro para comprar coisas para si?

— Não! Eu guardo para estudar — disse tão séria e convicta que senti orgulho dela. — Eu quero estudar belas artes na França um dia...

— Ah, como sua mãe fez indo estudar em Paris.

Tessa assentiu animada.

— Isso! — Seus olhinhos brilharam com o sonho.

Senti uma enorme vontade de ajudá-la na realização desse desejo de alguma forma. Eu poderia investir nela, fazer uma poupança, ainda mais se ela quisesse se tornar uma artista na área na qual eu já trabalho – pintura e escultura. Entretanto, sabia que Duda nunca aceitaria.

— Eu falei um palavrão do cacete! — Tessa arregalou os olhos. — Eita! Falei outro, né? Merda!

Pensei que ela já estava contabilizando quanto eu lhe estava devendo, mas não, começou a rir desenfreadamente a ponto de saírem lágrimas de seus olhos. Por algum motivo estranho, isso me causou um déjà vu, e voltei no tempo, vendo Kyra rindo desse mesmo jeito, com seus olhos verdes rasos d’água e covinhas nas bochechas.

— Você está burlando as regras! — acusou-me. — Não pode ficar xingando somente para me dar dinheiro!

— Eu?! — fingi-me de santo. — Que absurdo, Tessa, eu nunca faria isso!

— Vou fingir que não ouvi, tá bom?

Pôs as mãos na cintura e me encarou toda cheia de si, dona da verdade, uma pose totalmente igual à da minha irmã. Caramba! Acho que vejo muito da Kyra nela por causa dos olhos. A tonalidade deles é muito parecida.

— Você tem olhos de um verde muito incomum — comentei.

— Acho que puxei ao meu pai. Pelo menos, mamãe diz que sim.

A menina não conhece o pai?

Eu queria perguntar mais coisas, saber de sua história, conhecer melhor a Maria Eduarda através de sua filha. Contudo, não o fiz, porque não achei certo interrogar uma menina. Talvez mexesse em algo doloroso para ela mesma, e eu não queria apagar o brilho de felicidade em seu rosto.

Duda chegou à academia em seguida, enquanto Tessa e eu ainda discutíamos sobre o dinheiro dos palavrões e logo quis saber do que estávamos falando. Tomei uma reprimenda por tentar dar dinheiro a ela burlando regras que deveriam ser educativas. Desculpei-me e abracei a cozinheira, ouvindo as risadas da menina.

Naquela mesma noite tomei um susto enorme ao ser acordado com a garota se esvaindo em sangue. Tentei o mais rápido possível estancar o vazamento no nariz – provavelmente algum vaso sanguíneo que se rompera – e acalmar a Duda.

Desperto das lembranças e pego o celular, abro o aplicativo de mensagens e mando uma para Maria Eduarda:

 

 

Deixo o aparelho no quarto enquanto tomo banho, ainda preocupado com a menina. Desde que chegamos, tenho me comunicado com a Duda todos os dias. Na segunda-feira, ela levou Tessa ao médico, que passou muitos exames e algumas vitaminas. Elas aproveitaram o dia de folga e foram comprar material escolar.

Ontem, terça-feira, Tessa passou o dia bem, embora Duda ainda estivesse preocupada com dores de cabeça, sonolência e uma tosse insistente que tinha voltado. Conversamos bastante por telefone, uma experiência nova, pois sempre trocamos mensagens, e acabamos fazendo sexo via ligação, um falando para o outro o que queria fazer, às 3h da manhã!

Desligo o chuveiro quando meu telefone começa a tocar, sabendo que não é Maria Eduarda, pois a essa hora ela está trabalhando.

— Oi, Vivi! — atendo minha amiga.

— Boa noite, Theo! Anda sumido. O que está acontecendo?

Deito-me na cama.

— Tirei uns dias de folga e fui para a praia. Como você está?

— Praia? Sozinho?

Rio com a pergunta invasiva, mesmo já acostumado ao jeito dela.

— Não, não fui sozinho. — Ela fica muda. — O que, além de perscrutar minha vida, você quer?

— Nossa, Theo, somos amigos, pelo amor de Dadá! — Ela parece indignada. — Só quis saber mais de você! Não posso?

— Pode, sim, claro. Agora já sabe! E aí, o que houve?

— Vai ter um evento na sexta-feira naquele clube de jazz a que você me levou uma vez, lembra? — Concordo, pois, apesar de não me lembrar de quando a levei lá, o Bebop é o lugar onde tem os melhores músicos de jazz de São Paulo e o único que frequento. — Marcus e eu vamos dar uma passada lá antes de irmos para o aniversário da Alicinha. Você vai?

Eu nem mesmo sabia sobre tal evento, mas confesso que é um ótimo programa para sexta-feira à noite.

— Talvez — respondo com sinceridade. — Há muito tempo não vou até lá. Pode ser bom.

— Está certo! Vai convidar a Valentina?

— Você ainda não a convidou por mim? — minha voz sai mais sarcástica do que eu pretendia, mas dou de ombros.

— Claro que não! Eu não vou mais interferir nesse assunto entre vocês. Ela ficou bem chateada com seu bolo no meu aniversário e seu sumiço durante esses dias, e, se você ainda pretender investir nela para uma relação, acho que deveria começar a correr atrás!

— Obrigado pelo conselho, minha wingman28!

— Ah, vai para a puta que te pariu, Theo!

Gargalho ao telefone e a escuto me xingar mais vezes antes de desligar na minha cara. É certo que pedi a ajuda de Viviane para encontrar uma esposa, mas ela está intervindo demais. Agradeço por ter me apresentado Valentina e acredito que outra candidata mais perfeita não há, mas quero fazer as coisas ao meu jeito.

No momento, não posso me concentrar ainda na jovem neta de diplomatas. Espero que consiga em breve, pois sinto que tenho pouco tempo, porém, quero aproveitar um pouco mais essa atração que sinto por Maria Eduarda.

Levo o telefone comigo quando vou jantar, esperando que Duda visualize e responda minha mensagem. Somente quando estou tomando café é que ela vem:

 

 

Fico feliz por tudo estar entrando nos eixos na vida dela.

 

 

Duda responde em seguida:

 

 

Eu nunca entendo o que significa esse “rs”, mas acho que deve ser algo bom. Mesmo teclando em tom de brincadeira, eu realmente sinto falta de Duda – da comida também, mas principalmente da sua companhia. Tenho uma ideia e resolvo arriscar, mesmo achando que é muito difícil que ela aceite meu convite.

 

 

 


Estaciono o carro, ajudo minha companheira a descer do veículo e entrego as chaves para o manobrista. Abro um sorriso para ela, linda, maquiada, em um vestido de encher a boca d´água por ser muito sensual. Ofereço o braço para que se apoie e entro no salão.

— Boa noite, doutor Karamanlis! — A recepcionista já me conhece. — Ficamos muito felizes com sua confirmação para esta noite. — Entrega-me o cartão de consumo. — Divirtam-se.

Olha para a minha companhia e sorri admirada.

Sim, ela está linda, e eu sou um cara de sorte!

Assim que passamos pelas portas duplas à prova de som, o delicioso ritmo do jazz me envolve, e abro um enorme sorriso ao reconhecer Georgia on my mind29 sendo brilhantemente cantada por uma bela mulher negra de voz poderosa e sensualidade indiscutível.

Ah, eu amo este lugar!

Olho em volta, notando as mesas com seus abajures acesos no centro, as paredes de tijolos de cerâmica cheias de quadros de grandes lendas do jazz, soul, gospel e R&B. É tudo muito retrô, e eu gosto disso!

— Este lugar parece cenário de filme antigo! — Maria Eduarda parece deslumbrada. — E essa mulher canta lindamente!

— Valeu a pena perder esta noite na cozinha do Hill para vir comigo?

Ela ergue a sobrancelha e sorri.

— Ainda não sei, a noite mal começou. — Ela se aproxima do meu ouvido. — Talvez se você me levar para sentar a alguma dessas mesas lindas, pedir um champanhe e cantar no meu ouvido, possa já começar a ganhar uns pontos.

Gargalho e aperto sua mão, deliciado com o humor dela.

— Só não prometo cantar. — Ela faz um beicinho, e eu a agarro pela cintura, provando sua boca. — Pelo menos, não aqui, mas quem sabe depois, quando estivermos a sós.

— Esperarei ansiosa! — sua voz soa rouca, sensual.

— Você é linda!

Suas bochechas ficam rosadas, e ela sorri sem jeito. Não consigo entender como essa mulher ainda não está acostumada a elogios! É sensual, linda, inteligente, fode absurdamente bem – respiro fundo ao pensar nisso – e cozinha como uma deusa!

Nós nos encaminhamos para uma das mesinhas reservadas mais ao fundo do clube, mas, antes de conseguirmos chegar lá, escuto meu nome sendo chamado:

— Theo! — Viviane aparece, encarando Duda descaradamente. — Oi, meu lindo, você veio!

Cumprimento-a.

— Decidi vir ver a tal artista da qual todos estavam falando empolgados. — Olho para o palco. — Ela é maravilhosa!

— É, sim. — Concorda, mas não tira os olhos de Maria Eduarda. — Marcus a tem ajudado a alavancar a carreira. — Emito apenas um som de total desinteresse ante o que ela está me dizendo. — Você e sua amiga não querem se juntar ao nosso grupo? — Aponta para uma mesa maior, lotada.

— Não, obrigado — corto-a. — Maria Eduarda e eu vamos nos sentar sozinhos. — Olho para Duda. — A propósito, essa é Viviane Lamour, uma amiga de muitos anos.

— É um prazer — Duda a cumprimenta.

— Maria Eduarda? — Sorri. — Belo nome! Trabalha com artes plásticas ou com música?

Duda franze o cenho e nega com a cabeça.

— Comida.

Viviane arregala os olhos, sem entender, e decido acabar com a interação.

— Duda é chef de cozinha — respondo por ela, encerrando a especulação de Viviane. Ou quase. — Vamos...

— Ah... qual restaurante? — Viviane me ignora e foca em minha companhia.

— Eu não...

— Vivi, nós queremos nos sentar, beber e curtir a música — interrompo Maria Eduarda, bem irritado com minha amiga e sócia. — Foi um prazer vê-la esta noite. Desculpe-me com Alicinha por não ir até a festa dela.

— E para Valentina, o que eu digo?

Decido pôr um fim à sua interferência e inconveniência e saio de perto dela, levando Duda comigo, sem nem mesmo nos despedir. Novamente me sinto incomodado pelo nome de Valentina ter surgido enquanto estou com Maria Eduarda. Ela não diz nada, mas sei que, em sua cabeça, deve estar se perguntando o que eu tenho com a outra mulher, afinal, além de ela ter me ligado à madrugada, fui inquirido sobre ela por uma amiga.

— Aqui está bom? — Aponto para uma das mesas, e ela assente.

— Eu realmente gostei muito daqui! — sua voz apreciativa me faz sorrir, e relaxo, deixando o “emputecimento” com Viviane de lado.

Preciso conversar com minha sócia e lhe impor alguns limites. O jeito como me abordou esta noite, em companhia da Maria Eduarda, não me agradou nada, principalmente ao final, pois ter citado Valentina foi pura provocação com a Duda.

— Fico feliz que tenha gostado. — Esfrego o nariz em sua orelha e pergunto baixinho: — Quer dançar?

Maria Eduarda suspira gostoso, e vejo sua pele eriçada. Percebo que a proximidade não afeta somente a mim, mesmo que minha evidência seja mais visível – o volume em minhas calças –, ainda que sob a luz bruxuleante do clube.

A incrível cantora interpreta All the way30, e estendo a mão para Duda. Quando ela toca minha palma, um frisson perpassa meu corpo, sacudindo tudo dentro de mim. Talvez seja o efeito da música combinado ao clima do local, quem sabe até a expectativa de uma noite intensa com Maria Eduarda. O fato é que não tenho explicação racional para o que ela me faz sentir.

Nossos corpos se juntam, ajustam-se, completam-se maravilhosamente bem. O leve perfume que Duda usa é inebriante e me faz aspirar bem fundo para capturá-lo. Sinto o calor que emana dela em minha medula, entranhado em mim, agitando meu sangue e o drenando para a extremidade do meu pênis, deixando-o tão duro e sensível que o simples roçar dela enquanto dançamos me faz gemer.

— Eu quero você — sussurro, e ela me encara.

— Eu também quero você. — Sorri. — Adorei o convite.

Faço um leve carinho em suas costas.

— Pensei que ia ter que implorar para você vir comigo.

Ela respira fundo, fecha os olhos, desfrutando das carícias enquanto dançamos devagar sob a luz baixa do salão.

— É difícil deixar o Hill...

— Eu sei, Maria Eduarda. — Colo minha boca em sua orelha. — Ter você aqui é tudo o que eu queria esta noite. Obrigado por isso. — Sugo seu lóbulo devagar, disfarçadamente, e ela estremece em meus braços. — Tento ter um encontro normal com você, beber, conversar, mas tudo o que eu quero é me fundir a você. Essa química que temos vibra à nossa volta, encontra lugar em minha voz quando falo o quanto te quero. — Ela geme. — Na minha língua, quando te chupo em busca dos seus orgasmos intensos. E na cabeça do meu pau, quando fodo você.

— Theo, você está me deixando louca com essas coisas que está dizendo! — sua voz está tremente.

— Faz parte desse tesão que nos envolve. — Minha mão alcança sua nuca, e os dedos resvalam pela raiz de seus cabelos. — Quando falo o que me faz sentir, deixo tudo o que não é carne para poder ser mais carne do que qualquer outra coisa quando estou dentro de você.

Ela suspira e encosta a cabeça no meu ombro, e eu avanço com os dedos entre suas madeixas, puxando-as devagar, acarinhando, dançando com ela sem deixar de ter contato com sua pele. Concentro-me no ritmo, no som da voz da cantora para baixar um pouco a temperatura entre nós. Convidei-a para uma noite fora do quarto, e é isso que irei fazer. Vamos conversar, ouvir essa ótima banda que está se apresentando aqui hoje e depois iremos para a cobertura trepar até o amanhecer.

A música troca para I put a spell on you31, e Duda ri sobre meus ombros, seu corpo sacudindo levemente, provavelmente reconhecendo a canção de um dos discos que ficaram em sua posse. Ela gostou mesmo dos tesouros – a vitrola e os discos –, e isso é muito gostoso, ter essa afinidade com ela, dividir essa particularidade minha que poucos conhecem.

Uma ideia se forma em minha cabeça e fica cada vez mais insistente, ganhando corpo, e abro um sorriso ao imaginar a reação dela se eu lhe der um equipamento semelhante e discos de presente. A imagem de Duda com olhos brilhantes e sorriso enorme, dando-me abraços e beijos de agradecimento me congela no lugar.

Que merda eu estou pensando?!

Nada disso cabe aqui, no que nós temos! Não quero imaginá-la emocionada com um presente meu, nem mesmo compartilhar com ela as coisas de que gosto. Não é para ser assim.

Duda me olha questionadora por eu ter perdido o ritmo no meio da dança, e começo a questionar minha sabedoria ao ter vindo aqui com ela.

Certo é que saí com inúmeras mulheres, já fui a boates, restaurantes, eventos, e nunca senti esse frio na espinha que me acometeu agora. Talvez por ser Maria Eduarda comigo, e eu, pelo que conheci dela até hoje, imaginar que isso que estamos fazendo – sexo sem compromisso – não é muito a cara dela.

Essa questão me preocupa, pois não quero magoá-la, não quero que tenha ilusões e que se apegue mais do que deveria a mim. Ela não merece isso! Infelizmente, Maria Eduarda não se encaixa nos meus planos, mas é uma mulher incrível, não merece sofrer de jeito algum.

— Algum problema? — questiona-me.

Nego com a cabeça e toco seus lábios com os meus bem devagar, saboreando a maciez de sua boca, o sabor gostoso de sua língua em busca da minha. Ainda não entendo esse elo que me liga a ela.

Sim! É como na música que está sendo cantada agora! Maria Eduarda colocou um feitiço em mim e me fez ser seu.


Nossa noite começou um pouco tumultuada por conta das sensações que tive ao dançar com Maria Eduarda, mas, depois que nos sentamos à mesa e começamos a conversar e a beber, consegui relaxar novamente e curtir.

Devo admitir que a companhia dela se mostrou deliciosamente perfeita. Além de todo o tesão que permeia nossa interação, conseguimos rir juntos, comentar sobre músicas. Ela falou um pouco dos pais, da morte triste de sua mãe e a tragédia que aconteceu com seu irmão envolvido com drogas.

Foi nesse momento que descobri de onde vinha a tenacidade que noto nela, sua teimosia em não vender o bar, e, mesmo sendo muito contraditório, admirei-a por isso. Pois é, peguei-me torcendo por ela contra mim mesmo! Entendi a importância que aquele imóvel tem em sua vida. É mais do que o negócio, é o receptáculo de suas lembranças.

Venho de uma família toda fodida, toda torta e nunca entendi bem como uma família que se apoia, que se ama, convive. Maria Eduarda, mesmo sobrando apenas sua tia e sua filha, mostrou-me como é isso.

— Quando voltei para o Brasil, estava tudo uma loucura! Meu pai precisava de mim, e eu, dele — bebeu mais um gole de seu vinho ao me contar isso. — Eu precisava de apoio para criar minha filha, apoiar meu pai na luta com meu irmão e ainda tentar erguer o Hill.

— Por isso você desistiu do seu sonho.

Ela negou.

— Eu remodelei o meu sonho. — Sorriu como se isso tivesse sido bom. — Eu não era mais a mesma, não tinha que cuidar apenas de mim. Tessa era o mais importante. Meu pai e meu irmão precisavam de mim, e eu faria tudo por eles. Tia Do Carmo já morava aqui e me ajudou muito, principalmente quando o JP morreu e meu pai desmoronou.

— Ele fez tudo o que podia.

— E o que não podia também! — Deu de ombros. — Depois, ele também se foi, e ficamos as três mulheres da família apenas e...

Eu já não ouvia o que ela dizia, pois tive um esclarecimento sobre as dívidas do pai dela. E se não eram só dívidas de jogos? E se ele pegou emprestado para tentar salvar o filho? E se tivessem outras dívidas e por isso Maria Eduarda economizava e trabalhava tanto?

Tudo recaiu sobre os ombros dela, sozinha com uma tia doente e uma criança. Meu coração se apertou ao imaginá-la abrindo mão da vida maravilhosa que teria – porque eu não tenho dúvidas da sua competência – e caindo nesse emaranhado de problemas. Não foi pena o que senti, mas sim um puta orgulho! Que mulher especial era Maria Eduarda Braga Hill!

Peguei sua mão com força e sorri para ela.

— Você é incrível! A mulher mais foda que eu já conheci. — Beijei sua mão, e ela ficou tão sem jeito que não sabia o que fazer.

— Não! Sabe o ditado que diz que a necessidade faz o sapo pular? Foi isso!

— Não foi, Maria Eduarda, e você sabe disso! — Ela sorriu, agradecendo o elogio, e meu pau ficou duro no mesmo instante. — Eu queria te comer agora!

— O quê?! — Riu nervosa. — Ainda tem bastante gente aqui!

Porra, ela pensou que eu quero fazer sexo com ela aqui no clube?, pensei entre surpreso e muito tentado. Obviamente a tentação ganhou, e eu já a imaginei gemendo e gozando no meu pau aqui, sentada no meu colo.

Tentei dissipar o pensamento, mas, a cada pessoa que ia embora, mais eu me sentia tentado. A turma que estava com Viviane saiu do salão, e ele ficou terrivelmente vazio, suscitando-me a vontade de agarrar Duda e a foder o mais rápido possível.

Perdi o controle quando a banda começou a tocar umas músicas mais dançantes e os clientes que ainda restavam se levantaram para dançar. Duda e eu, na mesa do fundo, próxima ao corredor que levava aos banheiros, ficamos esquecidos com nossas bebidas. Não pensei duas vezes; segurei-a pela cintura e a coloquei sobre mim.

— Theo, o que...

Perscrutei seu corpo, tateando-o devagar por sobre o vestido levinho que usava e descobri que a safada estava sem calcinha. Ela riu quando percebeu que eu havia descoberto sua transgressão e me beijou.

Não foi um beijo como os outros que trocamos a noite inteira, mas um esfomeado, molhado, que me dizia que ela estava tão excitada quanto eu. Eu só pensava em abrir o zíper da minha calça e me enterrar em sua boceta molhada, mas a cadeira era desconfortável, e Duda não tinha onde se apoiar para rebolar empalada no meu pênis.

Merda! Tentei pensar rápido, mas meu cérebro parecia liquefeito. Eu era todo sentidos, apenas tinha noção do quanto nos queríamos e que não iríamos esperar chegar até a cobertura. Tinha que ser naquele momento!

E foi!

Em um ataque louco, levantei-me com ela no colo, olhei todos bebendo e dançando, os garçons parados perto do bar, e a carreguei rumos aos banheiros, entrando na primeira porta que achei.

Era o armário onde havia os produtos de limpeza do bar, que alguém, por acidente, deixara aberto. Passei o trinco na porta enquanto ela se agarrava a mim e a apoiei contra a parede, liberando meu pau com uma mão só. Sem nem ao menos tirar a calça, penetrei-a como um doido varrido, mexendo rápido e forte, gemendo alto, delirando com a sensação de alívio, dor, desejo, com a adrenalina lá no alto por causa do local público.

Há muitos anos que eu não faço isso!, lembrei-me saboreando o sexo proibido, sentindo as mãos de Maria Eduarda apertarem meus ombros. Muito, muito tempo se passara desde que eu tinha comido uma mulher dentro de um estabelecimento comercial, sentindo a apreensão de sermos pegos misturada à adrenalina de trepar em local inadequado.

A vaga lembrança nem persistiu, pois Duda tomou conta de todos os meus sentidos, seu cheiro, seus sons e suas reações. Não estávamos usando camisinha, e eu deveria ter sido mais responsável com isso, mas foi impossível raciocinar ou mesmo parar de comê-la com desespero.

Duda gozou deliciosamente no meu pau, molhando-o, deixando-o patinando em sua excitação, e a contração de sua vagina foi todo o estímulo que eu precisava para me derramar dentro dela em uma loucura sem fim e deliciosa.

Ficamos um tempo parados, eu ainda dentro dela, amolecendo devagar, sentindo o reverberar do orgasmo ainda impactando meu corpo. A consciência me tomou assim que o sangue esfriou e me dei conta da irresponsabilidade que havíamos cometido. Não falamos nada. O ar ainda vibrava, o aroma de sexo recendia por todo o ambiente, e continuávamos mudos, agarrados um ao outro.

Foi Duda quem se moveu primeiro, empurrando levemente meus ombros.

— Estou começando a ter câimbras nas pernas. — Sorriu sem jeito, e eu finalmente me afastei de seu corpo.

Duda se arrumou, mas seus olhos se arregalaram logo depois, e a vi ficar branca de susto.

— Oh, meu Deus! — Ela fechou as pernas rapidamente. — Oh, meu Deus!

Sim, as expressões foram suficientes para eu entender duas coisas: ela sentira minha porra escorrer e se dera conta de que eu tinha gozado dentro dela. Caralho!

— Eu sinto muito — desculpei-me. — Eu não consegui... — Estava bem sem jeito. — Eu sei que não é desculpa e que devia ter sido mais responsável...

— Nós dois! — disse baixinho. — Sabíamos que estávamos desprotegidos, e nenhum dos dois quis parar. — Neguei e quis assumir toda a responsabilidade pelo que acontecera, afinal, já havíamos feito sexo sem camisinha, e, em nenhuma das vezes anteriores, eu fora até o fim. No entanto, ela não me permitiu falar: — Eu preciso passar numa farmácia.

Arregalei os olhos.

— Eu te machuquei?

— Não. — Suas faces coraram. — Eu preciso de pílula do dia seguinte. — Foi minha vez de ficar branco. — Sei que elas foram inventadas para possíveis acidentes e que não se deve tomar como forma de prevenção à gravidez, mas, no nosso caso, acho que eu devo usar.

Pílula do dia seguinte, gravidez, nosso caso... Eu tentava raciocinar como ela, mas tudo no que conseguia pensar era em Maria Eduarda gerando um filho meu. Porra! Era assustador, principalmente porque as imagens me agradavam muito! Tentei voltar à razão várias vezes, lembrando que eu só queria ter um filho para agradar meu avô e que, por isso, deveria também escolher uma mulher que ele aprovasse, e Duda não se enquadrava no que Geórgios Karamanlis queria.

Eu tentei! Juro que tentei! Porém, a imagem em minha mente, o que ela me fez sentir não se desvaneceu de forma alguma. Um filho com Maria Eduarda, um irmão para Tessa com, talvez, os mesmos olhos verdes que a menina tinha, iguais aos de Alex, Kyra e de Dorothea Karamanlis, minha avó.

— Theo, eu preciso ir até o banheiro. — Duda me trouxe de volta da maravilhosa visão que eu estava tendo, e aí, sim, consegui pensar com clareza.

— Não é perigoso tomar algo assim? — questionei.

— É uma carga hormonal enorme, não me agrada, mas não, não é perigoso e não pretendo fazer isso sempre. — Respirou fundo. — Vou marcar uma consulta com um ginecologista e pensar em algum método contraceptivo.

— Não seria melhor não tomar, então? — Certamente ela não esperava por isso, pois arregalou os olhos e ficou um pouco boquiaberta. Emendei uma justificativa: — Não me agrada que você tenha que assumir sozinha a responsabilidade de “consertar” algo que eu fiz.

— Theo, eu posso ficar grávida! — ela falou lentamente, talvez imaginando que eu fosse um tanto burro demais para entender.

— E pode também não ficar! — Dei de ombros. — Têm pessoas que tentam por anos e não conseguem.

— E têm algumas que basta uma rapidinha no meio de uma balada para engravidar. — Sorriu e negou. — Não quero arriscar. Não se preocupe comigo, ok?

— Eu sinto muito. — Beijei sua testa. — Não pela transa, que foi espetacular, mas por ter te levado a fazer algo de que não gosta.

— Tudo bem, de verdade. — Apontou para a porta. — Eu preciso realmente ir ao banheiro.

Arrumei minha calça, abri a porta, comprovei que não havia ninguém no corredor e a deixei sair primeiro. Assim que Duda entrou – correndo – no banheiro, encostei a cabeça na parede do depósito e tentei entender que merda estava acontecendo comigo, por que eu me sentia tão decepcionado pelo fato de ela não querer arriscar ter um filho meu.

Porra, Theodoros!

— Eu posso ficar muito acostumada com isso! — Duda fala, tirando-me das lembranças do início desta noite. Acompanho-a erguendo a perna cheia de espuma e vejo a unha pintada de vermelho aparecer entre o sabão. — É muito relaxante.

Chegamos do clube de jazz há pouco mais de uma hora e, claro, fizemos sexo. Diferentemente do que aconteceu no clube, não tínhamos pressa e pudemos saborear cada detalhe um do outro. Gozei dentro dela de novo, pois Duda irá tomar a tal da pílula, e ela me explicou o prazo e como funcionava a coisa toda.

Compreendo que não devo pensar em estender esse caso além do que já o fiz. Contudo, questionei-a sobre a consulta ao ginecologista, mostrei-lhe – podem rir e dizer que foi um pouco tarde – meus exames de saúde em dia, e ela me disse que também os faria antes de começar a tomar um anticoncepcional.

Droga!, pensei naquele momento. Se eu a pedisse em casamento, ela não precisaria de anticoncepcional algum! E, pela primeira vez desde que comecei a sair com ela, senti o peso de ter de agradar ao meu avô. Talvez, se eu não estivesse sendo quase obrigado a me casar, pudesse conhecê-la melhor, ter um relacionamento normal com ela e a pedir em casamento tão somente por querê-la, não por um filho ou por uma promessa, mas apenas por querer tê-la para sempre ao meu lado.

Sim, aperto-me a ela e a escuto suspirar, Maria Eduarda seria alguém com quem eu dividiria minha vida. Infelizmente, o mundo nunca foi justo ou fácil com minhas escolhas, e é por esse motivo que não posso dar as costas ao que prometi ao pappoús.

— Terei que ir para casa em breve — solto antes mesmo de me dar conta de que não é um assunto que eu queira conversar.

— Você já não está em casa agora? — Ela ri.

— Sim, me expressei mal. — Ela se encosta melhor em mim. — Terei que ir visitar meu avô.

— Ah, na Grécia. — Assinto, e ela me vê pelo espelho do banheiro. — Eu esqueço que você é grego, Theo.

— Por quase não ter sotaque?

Ela ri.

— Você tem sotaque. Não percebe, mas tem! Não é por isso, mas não te vejo como um grego, pelo menos, não como os que conheci.

— Isso é bom ou ruim? — Ela faz careta, e eu jogo um pouco de água em seu rosto como provocação. — Você só esteve lá daquela vez em que foi a Zante?

— Sim! — Duda abre um enorme sorriso. — Tínhamos acabado de concluir o curso, e a maioria já possuía algum emprego em vista, então, antes de começarmos, decidimos viajar juntas.

— Foi com um grupo grande, tipo excursão?

— Sim, erámos seis chefs de cuisine dispostas a curtir antes de entrar na loucura da profissão e não ter mais tempo nem para respirar. — Sua face está alegre, e ela parece emotiva. — Sinto falta de todas elas!

— Foram no verão, pelo menos? Ir até a Grécia apenas uma vez só vale se puder conhecer todo seu esplendor turístico, que inclui as praias, e isso é melhor no verão.

— Ah, sim. Fomos em junho. Fez oito anos ano passado.

— Hum... — Cheiro seu pescoço. — Já está na hora de voltar!

— É um convite?

Eu sorrio e nego, mesmo querendo dizer que sim, por mais impossível e idiota que isso seja. Maria Eduarda me faz querer jogar tudo para o alto, esquecer quem sou e tudo o que prometi. Se eu tivesse menos experiência e nenhuma noção do quanto isso é prejudicial, certamente o faria.

— Infelizmente, não dessa vez. É uma reunião de família.

— Eu estava brincando. — Sorri e mostra a língua, bem divertida. — Fico imaginando a repercussão que daria você chegando comigo por lá, com seus irmão e primos sabendo de nossa briga épica por causa do Hill. — O sorriso morre. — Assunto delicado, desculpa. Não deveria brincar com isso.

— É... — Beijo seu pescoço. — Esse assunto é um campo minado.

— Mas você ainda pensa nisso? — Duda insiste. — Ainda pensa em comprar a propriedade? Eu sei que combinamos não misturar os negócios com o que estamos vivendo...

— Não — sou sincero em responder, e ela se surpreende. — Não quero mais comprar o Hill, mas talvez não tenha mais escolha quanto a isso.

— Por que não?

— Sou o diretor, mas, acima de mim, há um conselho administrativo e... — Titubeio, pois ela não sabe sobre a promissória que compramos e não sei como reagirá quando souber. — Não depende só de mim.

— Entendi. — Sorri um pouco triste, mas ainda assim é um belo sorriso. — Ainda que não possa fazê-los desistir de tentar comprar – o que certamente não irão fazer, porque não venderei –, fico feliz em saber que você não quer mais seguir com isso. — Duda se vira para mim, e o que vejo em seus olhos me tira o fôlego. — Muito obrigada!

Ai, caralho!

Beijo-a antes que esse clima nos envolva em algo mais sério e profundo, levando esse clima para um lugar seguro que nós já conhecemos e desfrutamos muito: o sexo.


— Tem certeza de que vocês duas ficarão bem? — tia Do Carmo pergunta antes de entrar no carro de uma de suas amigas do clube de costura.

Rio e praticamente a empurro para dentro do veículo.

— Vamos, sim! Vai logo!

— Está querendo se livrar de mim, é? — Cruza os braços sobre os seios. — O grego combinou de vir te ver nesse final de semana?

— Tia, eu acabei de chegar do apartamento dele! — Rio. — Vamos com calma!

— Eu gostei dele, de verdade, apesar de ser daquela empresa detestável. — Faz careta, e eu rio. — Gostei de como ele agiu com nossa menina. Me surpreendeu.

— A mim também. — Sorrio, soltando um suspiro. — Ele perguntou como ela estava quase todos os dias desta semana. Tomamos um susto lá na ilha.

— Sim! Eu nem gosto de lembrar. — Ela me abraça. — Não estarei muito longe, então, se precisar, me ligue, que venho em minutos...

— Tia, pode ir despreocupada, Tessa e eu ficaremos bem. Vamos na 25 comprar o restante do material escolar que ficou faltando. Ela irá ficar essa noite comigo no Hill, e amanhã à noite a senhora estará de volta!

— Está certo, então. — Finalmente entra no carro. — Quando minha princesa acordar, diga-lhe que deixei beijos.

— Pode deixar.

Aceno por um tempo na calçada e logo subo para o apartamento, conferindo Tessa ainda dormindo. Bocejo e me espreguiço, sentindo todo o cansaço de uma noite inteira sem dormir. Theo e eu não tivemos tempo para isso!

Olho para a cartela com a segunda pílula do dia seguinte que irei tomar daqui umas horas, pois tomei a primeira antes de sair do apartamento dele, bem cedo. É a primeira vez que tomo esse medicamento e não conheço os efeitos colaterais – se tiver algum. Não quis arriscar e fiquei surpresa quando ele disse que não era para eu o tomar. Theo conseguiu me deixar confusa naquele momento, pois achei que ele seria o primeiro a propor que eu o tomasse.

O que aconteceu naquele clube foi uma loucura total, e não cometo esse tipo de doideira há alguns anos. Sem dúvida, nada se compara ao que senti, ao que Theo me fez sentir com seu desespero e falta de freio. Nunca me senti tão desejada e poderosa como na noite passada.

Suspiro e balanço a cabeça.

É incontestável que eu estou apaixonada por ele e, talvez, tenha tido a certeza disso quando me disse que, se fosse por sua vontade, ele não tentaria mais comprar o Hill. Pode parecer bobagem, mas foi o momento mais incrível que já tivemos juntos, porque ali, mesmo de um jeito estranho, eu soube que ele se importa comigo e que não sou apenas uma trepada ocasional. Talvez ele ainda não esteja apaixonado por mim como eu estou por ele, mas certamente sente algo.

Lembro-me do sexo detalhista que fizemos assim que chegamos do clube, dos momentos na banheira, no sofá da sala, debaixo do chuveiro e de novo na cama. O homem tem fogo e muito fôlego, devo admitir.

De manhã, realizei o sonho mais clichê da minha vida e fui preparar o café – na cozinha dele – usando a camisa que vestiu para ir ao clube comigo e tão-somente ela. Ganhei um sexo oral de-li-ci-o-so sobre a bancada da cozinha, tomei meu café e vim embora render a tia Do Carmo e liberá-la para seu final de semana no interior com o clube de costura.

— Ei, mamãe! — Tessa me chama da porta do seu quarto. — Eu acho que tem algo errado...

Assusto-me com sua palidez e as olheiras evidentes em seu rosto. Fomos até a pediatra esta semana, e a doutora Maria Lúcia me passou pedidos de exames e já prescreveu algumas vitaminas.

Corro até ela e, quando encosto em sua pele, constato a febre. Está muito, muito quente!

— Tessa, volte para a cama, eu vou pegar um termômetro e...

Não termino de falar, pois ela desaba no chão, e eu mal tenho tempo de segurá-la.

 

 

Odeio essa espera! Olho para o relógio e bufo, aguardando o resultado do exame de sangue que fizeram em minha filha há alguns minutos. Tessa dorme, já com a temperatura do corpo normalizada, ainda com o soro preso em seu braço.

Foi desesperador o que aconteceu mais cedo hoje. Não pensei duas vezes e a coloquei no carro, vindo direto para a emergência. Ela foi atendida ainda desacordada, medicada, colocada no soro e só acordou quando a temperatura corporal começou a baixar. Estava fraca demais, e o soro a ajudou muito.

Há quase uma hora colheram urina e sangue dela, e Tessa dormiu logo após isso. Minha menina está tão pálida que seus lábios parecem ressecados e arroxeados, e as olheiras estão fundas e muito escuras.

Seguro sua mão, nervosa, sem saber o que está havendo.

— Boa tarde. — Um médico entra no quarto. — A senhora é a mãe?

— Sou, sim. — Levanto-me. — Já sabem o que ela tem?

— Precisamente, não. Mas os exames indicam que seu corpo está combatendo uma infecção bem forte. Suas hemácias estão muito baixas, e o exame de urina retornou com nenhuma anormalidade.

— Então não tem um diagnóstico?

— Não com esses exames, precisaremos de mais alguns, mas não temos como fazer aqui.

Assinto, pois já tinha imaginado.

— A médica dela passou vários pedidos, e Tessa irá fazê-los na segunda-feira de manhã.

— Ah, que bom, então. — Ele sorriu e foi até ela, examinando-a. — A febre cedeu. Vamos mantê-la aqui por mais algumas horas em observação e depois liberá-la para voltar para casa. Não acho recomendável que ela permaneça aqui com suas defesas tão baixas.

— Está certo. E obrigada pelo rápido atendimento.

— É o meu trabalho. — Sorri agradecido e se despede.

Sento-me novamente ao lado dela, e o meu celular vibra com notificação de mensagem.

 

 

Mesmo achando legal, não consigo sorrir nem relaxar com a mensagem de Theo. Não respondo, e ele envia outra.

 

 

Respiro fundo e digito a resposta:

 

 

No mesmo instante ele me liga, e eu vou para o canto da sala de recuperação onde estou com minha filha.

— Oi, Theo.

— O que houve? Sangramento nasal de novo? — Ele parece preocupado.

— Não, febre alta — tento manter a voz firme para não desmoronar. — Quando cheguei aqui na emergência, ela já estava com 40 graus e desacordada.

— Me passa o endereço.

— Não precisa — respondo rapidamente, embora meu coração tenha falhado uma batida com a ideia de ter alguém aqui comigo. — Ela já deve ser liberada e...

— Sua tia está com você? — Nego. — Então me passa o endereço, que vou buscar vocês.

— Eu vim de carro.

— Dionísio pode levá-lo de volta ao Hill. Sua amiga ficou no comando do bar?

— Sim. — Lembro-me da preocupação de Manola. — Eu quase tive que obrigá-la a ficar por lá, pois queria vir para cá também.

— O endereço, Duda. Não quero vocês sozinhas aí.

Cedo e informo o local da unidade onde estamos, e ele desliga.

Não vou mentir que não me sinto consolada com a preocupação e emocionada com o apoio que ele está disposto a nos dar. Estou acostumada a não contar com muita gente para me auxiliar com Tessa. Tia Do Carmo é incrível, e Manola – mesmo com um parafuso a menos – adora minha menina. Além delas, nunca tive mais ninguém.

Tessa acorda, e corro até ela, querendo saber como se sente.

— Com fome...

Sorrio ante a resposta, aliviada – ao menos por hora – ao vê-la ganhando cor e mais força.

 

 

— Para onde estamos indo? — pergunto assim que Theo entra em uma rua que não conheço.

— Minha cobertura — informa parando em um farol. — Sei que Tessa deve estar acostumada, mas não acho conveniente que ela fique sobre o bar hoje. O som pode atrapalhar seu sono e recuperação.

Rolo os olhos.

— Temos acústica, sabia?

— Eu sei, mas ainda assim deve vazar um pouco para cima.

— Vaza um pouco — Tessa é quem revela. — Mas estou acostumada.

Ele volta a prestar atenção na estrada e não muda a rota.

— Theo, não temos como dormir na sua cobertura! Não temos nada conosco e...

— Pedi ao Dionísio que falasse com sua amiga Manola, e ela fez uma pequena mala para vocês duas. — Arregalo os olhos. — Por favor, eu ficarei mais tranquilo com vocês comigo.

Bufo com sua teimosia, mas concordo.

Pelo visto, estou conhecendo a teimosia, arbitrariedade e o controle de Theodoros Karamanlis, o CEO. Esse era um lado dele que ainda não tinha dissecado em meio a tantas camadas que esse homem parece ter.

Tessa tem um sorriso no rosto, provavelmente por poder conhecer a casa dele. Confiro sua temperatura novamente e relaxo por a febre não ter voltado, mas sei que, assim que passar o efeito dos remédios, ela deve voltar, afinal, há uma infecção sendo combatida.

Penso na infecção de garganta e que ela não deve ter sido curada a contento, por isso voltou mais forte. Precisamos fazer os exames o mais rápido possível, pois não quero ter em mente nenhuma doença grave, pois o simples pensamento me causa verdadeiro pavor. Minha filha é tudo para mim, tudo!

Entramos na garagem do prédio onde Theo mora, e Tessa, que passou a viagem toda deitada no meu colo, levanta-se com olhar curioso sobre o local onde ele vive. Retiro o cinto de segurança e saio a fim de ajudar minha filha a descer do veículo, mas Theo se adianta e pega a menina no colo.

— Obrigada! — agradeço emocionada.

— Tudo bem, essa mocinha aqui pesa igual a um passarinho! — Balança a cabeça. — Acho que você está precisando se exercitar mais e comer melhor.

Tessa arregala os olhos.

— Exercitar? Mas isso não é para emagrecer?

Theo ri a caminho do elevador.

— Bobagem, existe o exercício certo para cada coisa. Eu era tão magro que, se você me olhasse de lado, só enxergava uma linha com cabeça. — Tessa ri bastante imaginando o que ele descreveu, e eu seguro meu próprio riso, achando impossível que Theo já tenha sido assim. — Mas sabe por quê? Não gostava de fazer exercícios e ficava no meu tempo livre enfiado no quarto jogando videogame. Ah, saudade do Atari!

— Oh, meu Deus, meu irmão tinha um! — intrometo-me na conversa, já dentro do elevador. — Era uma briga feia lá em casa para jogarmos Pacman!

— Do que vocês estão falando?! — Tessa nos olha como se fôssemos E.T.s.

Theo e eu rimos juntos, e ele explica à minha filha que se tratava de um jogo.

— Mas, Duda, você não tem idade para ter conhecido um Atari!

— Desfrutei pouco, é verdade, porém, meu irmão amargou aquele Atari por muitos anos, pois papai não podia comprar um mais moderno. Eu já tinha uns oito anos quando ele ganhou um Nintendo. Gostaria de ter ficado com o antigo jogo. Tenho boas lembranças.

— Por que não ficou?

Suspiro triste e dou de ombros. A verdade é que, sim, guardei o videogame, mas, quando retornei da França, soube que meu irmão, no afã de conseguir dinheiro para alimentar o vício, vendeu-o a um colecionador, pois o nosso ainda funcionava e tinha os cartuchos. São marcas tão agridoces que carrego comigo, de lembranças boas e ruins sobre o mesmo objeto, que evito pensar nelas.

— E o que você fez para ficar assim tão forte? — Tessa volta ao assunto do corpo de Theo, e sorrio, gostando do timing dela.

— Comi muita proteína para crescer. Frango, bife, porco, cordeiro e muito peixe! Lá onde eu morava, comíamos peixe todo dia, além disso, eu devorava os vegetais no meu prato!

— Até brócolis? — Põe a língua para fora.

— Até brócolis! — Ele abre um sorriso tão afetuoso para ela que meu coração falha uma batida.

Sinto essa coisa totalmente estranha quando Theo interage assim com minha filha. Os dois juntos são tão lindos e se dão tão bem como nunca imaginei que pudesse acontecer. Sei que deveria estar sendo muito mais protetiva com relação a ela, não a deixar se envolver tanto, mas não consigo não adorar a amizade que os dois estão criando.

A porta do elevador se abre, e dou de cara com uma senhora de cabelos grisalhos presos em um coque e um sorriso caloroso.

— Bem-vindos! — ela nos cumprimenta.

— Vanda, essas são nossas hóspedes. — Tessa tem os olhos fixos na mulher, curiosa como ninguém. — Tessa e sua mãe, Maria Eduarda.

— Muito prazer! — Ela estende a mão para mim, mas eu a abraço.

— Eu amei a organização da sua cozinha, parabéns! — elogio-a, e Vanda sorri sem jeito. — É um prazer enorme conhecê-la, Theo disse que não consegue fazer nada sem a senhora por perto.

— Ah, ele disse, é? — Pisca para o patrão, que faz uma careta engraçada.

— Duda, você acaba de entregar o ouro ao bandido! — Faz cara de desolado para Tessa, e minha menina ainda comenta, com voz de reprimenda, que eu falo demais. Como é que é? — Já posso colocar essa prinkípissa32 aqui para descansar?

Ah, puta merda! Não sei do que ele chamou minha filha, mas nunca o ouvi falar em grego, e é totalmente sexy!

— Claro que sim! Dio acabou de entregar as malas delas.

Arregalo os olhos com a informação de Vanda. Então Manola arrumou mesmo nossas roupas!

Seguimos para um dos quartos do piso debaixo, e Theo acomoda Tessa na enorme cama já preparada, inclusive com travesseiros recém-afofados e um edredom muito fofinho. O ar-condicionado mantém a temperatura – que lá fora está comparável à do inferno – muito amena.

— Mamãe, eu quero tomar um banho — Tessa me pede assim que chego ao seu lado.

— Já tomou banho de banheira, Tessa? — Theo pergunta, e meu coração dispara.

Não sei como irei reagir ao ver minha menina dentro da mesma banheira na qual fizemos tantas sacanagens, mas relaxo quando ele abre a porta do banheiro da suíte, e uma versão mais simples da que ele tem na suíte máster aparece.

— Eu posso? — O sorriso dela é enorme.

— Claro! — ele responde. — E a Vanda ainda tem umas surpresas de colocar na água. — O filho da mãe me encara rindo. — É bem divertido.

— É como tomar banho em água com gás! — A governanta de Theo aparece portando uma daquelas bombas de banho. — Vou preparar seu banho.

Quando Vanda volta para o banheiro, Theo se aproxima de mim, abraça-me pela cintura e diz na minha orelha:

— Essa noite vou preparar seu banho também!

— Theo... — repreendo-o.

Ele me dá um selinho e depois fala com minha filha:

— Eu espero que você esteja se sentindo melhor, prinkípissa mou.

Tessa sorri e assente, e ele se despede dela com um beijo na testa.

— Estarei no meu quarto.

Suspiro assim que ele sai e escuto as risadas de Tessa e Vanda.

É, não consigo disfarçar, mas quem pode me julgar?

 

 

Saio do banheiro, após o banho, já com meu pijama posto e escuto uma leve batida à porta. Theo entra no quarto e sorri de leve ao ver Tessa dormindo.

— A febre voltou a ceder?

— Sim. — Dou de ombros. — Será assim até acharmos a infecção e administrarmos os antibióticos corretamente. O médico me passou um bem forte, e isso está ajudando, pois a temperatura não tem se elevado muito, mas ainda assim...

— Você precisa levá-la a um especialista.

— Sim, liguei para a médica dela, que me pediu para fazer os exames o mais rápido possível. Segunda-feira, quando o laboratório abrir...

— Posso pedir que venham amanhã. — Ele pega o celular. — Tenho conhecidos que são donos de um grande laboratório, e eu sempre colho minhas amostras em casa. — Cruzo os braços e levanto as sobrancelhas, e ele entende que eu o acho um esnobe. — Não, é mais por falta de tempo mesmo.

— Eles viriam até aqui em pleno domingo? — Ele assente. — Então, por favor, peça para que venham, eu agradeço. A doutora Maria Lúcia já havia me advertido que a maioria dos exames que passou não seria coberta pelo meu plano de saúde, então eu posso pagar todos de uma vez e fazer mais rápido.

— Não se preocupe com isso, Duda.

— Não! — Toco seu braço. — Theo, é minha filha, minha responsabilidade.

— Eu sei disso, mas quero fazer isso pela pequena. — Ele me abraça forte. — Eu gostaria de poder te ajudar mais, Maria Eduarda. Sei o quanto está preocupada com a saúde de Tessa, então me deixe fazer ao menos isso.

— Você tem ajudado muito já ficando ao nosso lado.

— Eu sei. — Bufa. — Hoje de manhã meu tio me ligou da Grécia. Meu avô piorou de uns dias para cá, e eu terei que ir para casa mais cedo do que imaginei.

Balanço a cabeça, compreendendo a situação dele, mas não deixo de sentir uma pontada de tristeza. Theo tem sido muito presente em minha vida durante todo esse mês e, principalmente nos dois graves incidentes com Tessa, foi meu apoiador.

Concordo em deixar que ele pague pelos exames e, depois de ver o nome do laboratório, sinto-me até aliviada, pois é um dos mais modernos e caros do país. Eu faria qualquer coisa pela minha filha, ainda mais nesses casos, mas como não sei como serão as coisas daqui para frente, manter minha pequena poupança é o sensato a se fazer.

— Quanto tempo você ficará fora? — inquiro, mesmo não tendo nada a ver com a vida dele.

— Três semanas, talvez mais — pela sua expressão e voz, percebo que ele não está muito contente com a viagem. — Não queria deixar vocês sozinhas durante todo esse tempo, mas quero que saiba que o que precisar, Duda, conte comigo.

— Obrigada!

Theo me beija cheio de carinho, passando a mão pelos meus cabelos, e eu me apoio nele, cansada depois de uma noite sem dormir seguida de um dia agitado e tenso como foi o de hoje.

— Você precisa dormir — ele constata. — Vá descansar, que eu fico aqui tomando conta dela. — Nego, mas ele insiste. — Eu ainda dormi nessa manhã e acordei perto do almoço, você, nem isso! Pode ir.

Mais uma vez escuto uma batida à porta, e Theo se separa de mim, pedindo para Vanda entrar.

— Tudo bem? — a governanta questiona olhando para Tessa.

— Sim, ela dormiu agora, sem febre.

A senhora entra no quarto.

— Graças a Deus! — Olha para mim e em seguida para o Theo. — Por que vocês dois não vão descansar e eu fico aqui com a Tessa?

— Não, eu estou...

— É uma ótima ideia! Duda não dorme há mais de 24 horas e deve estar exausta.

— Eu estou bem! — insisto.

— Maria Eduarda, quando Tessa acordar amanhã já estará bem melhor e com muita energia por ter passado o dia na cama — ela diz. Concordo. — Você precisará estar descansada para ficar com ela.

— Viu, só? — Theo aponta para mim. — Vanda criou duas crianças, sabe o que diz!

— E estão todos aí! Continuam me dando dor de cabeça, porque isso nunca passa nem quando elas crescem, mas estão cheias de saúde! — Pega minhas mãos. — Pode confiar em mim. Qualquer alteração, chamarei vocês dois.

O gesto dela me emociona, e eu a abraço de novo, agradecendo sua consideração.

Sigo para a suíte de Theo e o vejo desfazer a cama na qual passei a noite passada inteira acordada com ele, depois me deito. Ele se encosta em mim tempos depois, abraçando-me com força na posição conhecida como “conchinha”.

— Descansa, agapi mou. — Eu me aconchego melhor a ele. — Tudo vai ficar bem com a mikrí prinkípissa33.

— O que é isso que você a tem chamado? — pergunto sonolenta.

— Princesinha. — Ri. — Minha princesa.

Meu coração dispara ao ouvir suas palavras carinhosas.

— Eu amo você, Theo — declaro e adormeço sentindo um beijo no topo da minha cabeça.


“Eu amo você, Theo”

A voz sonolenta de Maria Eduarda ressoa na minha cabeça enquanto faço abdominais sem parar. Não costumo treinar no domingo, mas, depois da noite intensa que tive com ela, foi impossível me concentrar em qualquer coisa aqui no apartamento sem parar de pensar em tudo o que ocorreu durante as horas em que ela e Tessa ficaram aqui.

Depois da declaração de Duda, não consegui pregar os olhos. Fiquei na cama, imóvel, abraçado a ela, com a cabeça a mil por hora. No meio da noite, levantei-me, fiquei um tempo na varanda olhando para a vista de São Paulo, depois fui até o quarto de Tessa.

Vanda estava acordada e tinha acabado de aferir a temperatura da pequena.

— Está normal. — Ela suspirou. — Theodoros, não gosto disso. Essa menina tem algo.

Senti um frio cruzar minha coluna de cima a baixo.

— Por que você acha isso? Duda me disse que ela esteve doente antes de viajar para a praia, infecção na garganta.

Ela negou.

— Não parecem ser casos isolados, as infecções, o sangramento, o desmaio...

— Que desmaio? — perguntei surpreso.

— Duda me contou que Tessa desmaiou na praia e que por isso decidiu ir para lá. — Ela aponta para uma pasta. — E esses exames... Eu criei duas crianças, e nunca nenhum médico me passou exames tão específicos assim.

Olhei para Tessa, preocupado. A menina e dona Do Carmo eram o que restara da família de Maria Eduarda, e eu já tinha notado a importância que elas tinham em sua vida. Nada de mal podia acontecer com Tessa, porque eu não sabia como Duda se recuperaria.

— Amanhã o pessoal do laboratório que faz minhas análises virá aqui para colher as amostras da menina — informei a Vanda, que abriu um enorme sorriso. — Vamos torcer para que seja apenas uma virose.

— O senhor gosta muito delas. É uma novidade ter uma criança aqui, uma boa novidade.

Não respondi, apenas refleti sobre o que ela disse e tive de concordar. As coisas estavam ficando cada vez mais diferentes comigo. Primeiro, a obsessão pela Maria Eduarda, a falta de libido com outras mulheres, então viera o carinho pela Tessa, a preocupação com sua saúde.

Eu nem me lembrava mais como era ter uma criança por perto, mas Tessa me fazia recordar tanto de Kyra, de como eu a adorava, a única neta Karamanlis, a princesinha da família já tão torta naquela época, que pensei ser esse o motivo de eu gostar tanto dela.

Dispensei a Vanda para que dormisse e fiquei velando o sono de Tessa. Acabei adormecendo em algum momento e, quando acordei, dei de cara com um rosto redondo, risonho, com covinhas e olhos verdes.

Meu sorriso se abriu involuntariamente ao vê-la, olhinhos brilhantes e um rosto mais corado.

— Bom dia! — ela me cumprimentou com sua voz doce e sonolenta.

Não resisti e beijei sua testa, sentindo o cheiro doce do perfume dos seus cabelos, e ela me abraçou apertado.

— Bom dia, mikrí prinkípissa! — Ela gargalhou e perguntou do que eu a havia chamado. — Princesinha.

— Ah... Gostei disso. Me ensina a falar?

Passei alguns minutos me divertindo com as tentativas dela de acertar o sotaque grego, e, quando Duda apareceu para informar que o pessoal do laboratório havia chegado, encontrou-nos em meio a risadas.

— Do que vocês estavam rindo? — perguntou quando Tessa foi ao banheiro.

— Sua filha queria aprender grego. — Abracei-a e lhe dei um beijo na testa, ainda com sua voz e a declaração que me fizera ressoando em meus ouvidos, agitando meu coração.

— Não lhe ensinou palavrões, não é?

Ela acertara em cheio, mas neguei, ou melhor, tentei negar que estava ensinando a pequena a driblar a mãe e evitar perder dinheiro do seu cofrinho do palavrão. Obviamente não fui muito convincente, e ela pôs as mãos na cintura e me repreendeu com o olhar.

Foi um começo de manhã muito divertido, porém, depois, senti toda a tensão e dor ao acompanhar a realização dos exames da menina.

Nunca vi tantos tubos de sangue em minha vida. Eles mal enchiam um e já colocavam outro para encher e assim foram formando uma pilha de tubinhos, todos etiquetados, enquanto eu sentia meu coração apertado por causa de Tessa. A menina se mostrou muito corajosa, apenas olhava para a mãe com os olhos rasos de água, mas não chorava, mesmo com a demora e o acesso doloroso em sua veia.

Depois Duda, quando eles saíram do quarto, abraçou-a forte, e eu acompanhei o consolo oferecido para a menina como se tivesse levado um soco na boca do estômago. As palavras doces de Duda, garantindo a ela que tudo ficaria bem, as lágrimas silenciosas que escorreram dos olhos verdinhos de Tessa e o olhar que ela me deu, de soslaio, cheio de medo, causaram-me um enorme nó na garganta.

Lembranças da minha infância me acertaram em cheio, e percebi que nunca tive isso! Nunca vi de tão perto essa relação familiar saudável e “normal”.

Foi naquele instante que eu soube que queria que meus filhos fossem criados assim, sabendo que tinham amor, apoio, consolo em seus pais. Nunca colocaria uma criança neste mundo para passar o que meus irmãos e eu passamos na infância. Não é exagero; claro que nunca nos faltaram coisas materiais, dinheiro e tudo o que ele pode proporcionar, mas não tínhamos a mínima noção de afeto.

Fiquei vendo as duas ali, juntas, dividindo a dor, a apreensão, mas cheias de esperança. Duda afagava os cabelos de Tessa e tentava segurar as lágrimas para não assustar a criança. Foi então que eu notei que aquela mesma mulher que estava ali, cuidando e amparando sua filha de forma emocionante, dissera que me amava.

Compreendi, naquele momento, que não eram palavras de agradecimento ou jogadas no calor de um momento. Maria Eduarda não era assim, nunca diria algo que não estivesse sentindo. Ela realmente me amava, e eu não sabia o que fazer!

Depois de tomarmos o café juntos, levei-as até o Hill, onde Manola as aguardava. Antes de sair do carro, porém, Maria Eduarda resolveu tocar no assunto:

— Sobre o que eu te disse ontem... — Parecia sem jeito. — É o que sinto, mas não te obriga a nada, apenas aconteceu. Desculpe se...

— Não faça isso — interrompi-a. — Não peça desculpas por me amar. Realmente acho que não mereço isso, mas é a melhor coisa que já me aconteceu! — Ela sorriu. — Só não quero vê-la machucada.

O sorriso morreu.

— Bom... ninguém pode prever o que o futuro reserva.

Tentei lhe explicar que eu pouco sabia sobre esse sentimento, mas ela logo se despediu agradecendo por tudo e saiu do carro, seguindo a filha e Manola.

Voltei para a cobertura e dei tantas voltas dentro do meu quarto que poderia ter deixado marcas no assoalho de madeira. Passei a me exercitar e, enquanto isso, tentei avaliar esse mês que passamos juntos, vendo-nos, nossas noites, os dias com Duda e Tessa e tudo o que isso significa para mim. Claro que ainda tinha a promessa ao meu avô, o herdeiro que ele tanto me pede e Valentina.

— Merda! — xingo alto, tentando expurgar esses sentimentos e pensamentos, e abraço minhas pernas, completamente exausto do exercício.

— Acho que a idade está pesando para você de verdade! — escuto a voz debochada de Frank Villazza e levanto a cabeça.

O carcamano está parado na entrada da academia, com uma xícara de café na mão e o maldito sorriso debochado na cara.

— Começou a invadir propriedades, Frank?

Ele gargalha.

— Poderia ser um bom divertimento, mas não. Sua governanta autorizou minha entrada. — Toma mais um gole do café. — Madonna Santa, que café saboroso!

— É, eu sei... é o meu café! — resmungo ao ficar de pé.

— Que humor azedo, Karamanlis! O que foi? Acabou seu whey?

— Vá se foder, Frank! — rio assim que falo isso. — O que você veio fazer aqui?

— Isabella saiu com a irmã e as crianças, então fiquei à toa e...

— Sozinho. — Cruzo os braços. — O solteirão Frank Villazza não consegue mais ficar sozinho!

— É, não consigo, mas, se soubesse que você estaria tão babaca, teria ido até a casa do Hal, afinal, ele tem mulher e filhos como eu, seria mais solidário!

Não respondo, sentindo pela primeira vez a cutucada dele no local certo. Antes, eu agradeceria por não ter sido domesticado, mas agora...

— Eu não sei se seria um bom pai — revelo, e Frank arregala os olhos. — Não sei se seria um bom marido.

— O que aconteceu no passado não pode definir para sempre quem você é — Frank não titubeia em dizer, pois sabe de toda minha história. — Ninguém é obrigado a cometer os mesmos erros e a repetir histórias de vida que não são suas. Você não é seu avô, nem seu pai, tem sua própria escolha, pode decidir o que quer ser e como.

Não é a primeira vez que conversamos sobre isso. Eu vi a mudança acontecer na vida dele, tudo o que sua família sofreu nos últimos anos e como eles se amaram e se apoiaram a cada momento. Sempre usei essa justificativa, de que Frank conseguiu amar e ser um bom pai e companheiro porque tinha o exemplo certo.

Será possível uma pessoa zerar seu histórico familiar ruim e ser diferente daquilo que teve como exemplo a vida toda? Será que eu conseguiria ser assim?

— Vai me contar o que está acontecendo? É seu avô ainda colocando pressão?

Dou de ombros e seco um pouco do suor com a toalha.

— Isso deveria ser o que me preocupa, mas a verdade é que estou confuso.

Frank perde o semblante debochado e suspira.

— Quem é ela?

Balanço a cabeça.

— Maria Eduarda Hill. — Meu amigo arregala os olhos. — Eu sei, completamente inadequada para...

— Vaffanculo! Quem aqui falou em adequação ou inadequação?! Você acha que eu era adequado para Isabella? Ou que Nicholas era para... — Faz careta. — Exemplo ruim. — Gargalho com a implicância costumeira dele com o cunhado. — Enfim... a questão não é essa. O que você precisa saber é o motivo pelo qual, mesmo a achando inadequada, não consegue deixar de querê-la.

— Eu não sei, porra! — digo exasperado, encostando-me contra um aparelho de musculação. — Eu já tive parceiras incríveis, com afinidade, amizade e sexo bom. Já tive fodas loucas, memoráveis, do tipo que você lembra delas quando quer se excitar ou apimentar uma mais ou menos. — Frank concorda. — Mas isso que eu tenho com Maria Eduarda é muito mais do que isso tudo junto.

— Dio Santo! — Ele ri. — Você já contou a ela sobre a promissória?

Nego.

— Vou desistir disso. Já não faz mais sentido, mesmo eu ficando ou não com ela. — Bufo. — Mandei um memorando para o jurídico interromper a ação de execução.

— Isso não pode gerar algum problema? Afinal, era uma das grandes metas da Karamanlis conseguir aquela quadra toda, e desistir sem mais nem menos...

— Dei algumas justificativas, mas é claro que nenhuma delas é consistente o suficiente. Não posso fazer isso com a Duda.

— É melhor contar, Theo — aconselha-me. — Conseguindo ou não, conte.

— Sim, devo isso a ela! Duda é tão sincera e transparente em tudo o que faz que, mesmo não indo em frente, preciso dizer que temos a promissória.

— É o certo a fazer, e se prepare, vai ter que implorar muito seu perdão por ter omitido isso dela. — O canalha ri. — Quem diria! A mosca do amor picou um Karamanlis!

Não respondo nem que sim, nem que não, mesmo porque nem mesmo sei se é esse o caso. Sim, eu gosto dela, adoro estar com ela e não quero que isso acabe agora, mesmo correndo o risco de não conseguir cumprir a promessa ao meu avô. Duda é uma mulher muito diferente de todas as outras que já conheci. Não temos jogos um com o outro, sou direto ao dizer tudo o que quero, e ela faz o mesmo. Ontem ela disse que me amava, mas nem por isso tentou forçar algo, pelo contrário, tomou a responsabilidade do que sente para si mesma para me tranquilizar.

Não estou tranquilo. Não quero que ela sofra e, mesmo sentindo por ela o mesmo que sente por mim, acho que ainda posso foder com tudo e acabar magoando-a. Ai, caralho, como assim sinto por ela o mesmo que sente por mim?!

Arregalo os olhos, e Frank começa a gargalhar, percebendo que eu me dei conta de que amo a cozinheira. Não é possível! Como isso foi acontecer? Como não vi isso chegar? Eu já estive apaixonado antes – ou pensei estar –, e nada se compara ao que sinto pela Duda.

— É, meu amigo! — Frank cruza os braços e sorri. — Lembro-me bem quando me dei conta de que estava de quatro pela Bella. — Balança a cabeça. — No meu caso foi depois de um pé na bunda, então espero sinceramente que você tenha mais sorte que eu nisso.

— Você entende a confusão que isso vai trazer para minha vida? Pappoús...

— Ah, Theo, quantos anos você tem, stronzo? Eu entendo o compromisso familiar, entendo muito, mas é a sua vida, não é um negócio. Não seria justo com você e muito menos com Maria Eduarda que outra pessoa decidisse o destino de vocês.

— Eu sei... — Ponho a mão na cabeça. — Preciso resolver tudo isso: a promissória, Valentina — Frank faz careta —, a promessa ao meu avô.

— Boa sorte! — Frank sorri de lado. — Que tal agora, que já te fiz o enorme favor de te clarear as ideias, você ir tomar um banho e me convidar para almoçar?

— Você se acha, Frank! — Jogo a toalha no cesto de roupa suja. Ele ri e se afasta quando passo perto dele. — Naquele seu hotel não tem comida, não?

— Tem, sim, caspita34! — Fica sério. — Mas eu não quero almoçar sozinho.

Paro e abro um enorme sorriso.

— Está carente! — Abro os braços e avanço até onde ele está.

Frank recua de meu abraço suado e xinga todo o repertório italiano antes de começar o português. Gargalho e apenas bato em suas costas.

— Vou para o banho. Pelo menos prepara uma boa dose de uísque para compensar o almoço — provoco-o.

Ele ri.

— Te trouxe uma garrafa de presente.

— Ah, eu gosto muito da sua companhia!

Frank fica sério, mas vejo que segura o riso.

— Bugiardo35!


A segunda-feira sempre foi meu dia favorito da semana. Era quando eu ia para o escritório e não pensava em mais nada, só no trabalho. Pensava assim desde quando comecei a frequentar a empresa, ainda na Grécia, durante a adolescência. Eu podia ver mais pessoas, conversar, aprender e me sentir útil, não mais aquele peso morto deixado para trás pelos pais.

Agora as segundas têm outro significado ótimo! Folga de Maria Eduarda e a possibilidade de eu estar com ela. Sei que falamos que iria ficar difícil depois da volta de Tessa das férias, mas não, agora eu já a conheço e quero também estar com a menina, então continuo adorando esse dia da semana.

Hoje, antes de vir para a empresa, mandei mensagem para Duda perguntando sobre a saúde de sua filha e como foi a noite de ontem no Hill. Recebi a resposta em seguida. Ela não trabalhou para tomar conta da menina. A tia dela voltou do passeio que estava fazendo, mas ainda assim Maria Eduarda preferiu tomar conta de Tessa pessoalmente, e hoje é seu dia de folga do bar.

 

 

Ela, teimosa como ninguém, respondeu em seguida:

 

 

Ri, pois não era isso que eu tinha em mente.

 

 

 


Gargalhei ao me lembrar do dia em que ficamos falando de comida e Tessa se mostrou uma conhecedora nata da área.

 

 

Rio ao recordar essa troca de mensagens e desligo meu notebook, preparando-me para ir para casa, trocar de roupa e passar pelo Bixiga antes de ir encontrar Duda e Tessa. Estou bem surpreso com essa vontade de ter uma noite familiar. Nunca pensei que isso aconteceria, porém, não me vejo mais sem interagir com a pequena Tessa. A menina conquistou meu coração tanto quanto sua mãe.

— Chefe, chegou um memorando do jurídico. — Rômulo põe o impresso em minha mesa, fazendo meu sorriso de satisfação morrer imediatamente. — Coloco na pauta da próxima reunião?

Leio o documento e travo o maxilar, apertando os dentes de raiva. Sabia que Kostas não ia aceitar cancelar o processo da promissória sem briga, só não esperava que ele fosse tão rápido em acionar os membros do conselho e conseguir uma indicação para a pauta da próxima reunião sobre o assunto.

— Não. Como vou tirar férias e gostaria de estar presente nessa discussão, faça um memorando para todos os membros explicando que, depois de minha volta, faremos uma extraordinária para que eu apresente explicações.

— Certo. — Rômulo parece tenso. — Eu posso adiar minhas férias? Não gostaria de sair da Karamanlis neste momento e...

— Não. — Levanto-me. — Tire suas férias e relaxe, Rômulo. Nada vai acontecer!

Pelo seu semblante, posso perceber que não o convenci.

— Mas... e se eles ficarem tramando contra o doutor? Eu poderia ficar e ir informando...

— Não! Fodam-se eles, Rômulo. — Meu assistente arregala os olhos. — Não vamos alterar nossos planos por causa do meu irmão babaca. Você tire suas férias, e eu tirarei as minhas. Quando voltarmos, nos inteiraremos do que está acontecendo.

— Está certo! Espero que o doutor faça boa viagem! Não virá à empresa amanhã, não é?

— Não, amanhã vou resolver umas coisas antes de embarcar à noite para Atenas. Não se preocupe, Rômulo, vai ficar tudo bem por aqui em nossa ausência. Millos irá garantir isso.

Saio da sala parecendo confiante, mas a verdade é que sei o quanto Kostas pode ser ardiloso. Ele quer me tirar da presidência, isso já ficou claro, mesmo sabendo que não irá ser indicado para ocupar o cargo, e acabei de fornecer munição para que ele conquiste seu intento.

Ligo para Millos, mas meu primo não atende.

— Millos, quando pegar esse recado, me liga. Preciso falar com você antes de viajar.

Merda!

 

 

— Uno! — Tessa grita e mostra sua única carta na mão.

Eu rio, e Maria Eduarda geme, com as mãos repletas de cartas.

Cheguei com duas caixas de pizzas – as maiores que já vi na vida – com seis recheios diferentes, como fui instruído pela Duda. A salgada foi dividida entre marguerita, portuguesa, pepperoni e quatro queijos; já a doce, entre banana com canela e brigadeiro.

Não foi nada surpresa eu chegar ao apartamento dela e encontrar, além de Tessa e dona Do Carmo, a tal Manola – a amiga ameaçadora de Duda –, mas confesso não ter me preparado para encontrar o Dionísio aqui.

Meu motorista – de folga, porque eu o liberei para vir até a casa da Maria Eduarda – estava todo arrumado e perfumado para sair com a Manola. O homem de quase 2m de altura, grande e forte como um armário, ficou sem jeito quando me viu, mas todo derretido enquanto a ruiva bravinha falava com ele.

— O que eu perdi? — perguntei a Duda quando eles saíram para o encontro.

— Sábado, quando você o enviou para pegar roupas minhas e de Tessa, ele conheceu a Manola. — Deu de ombros rindo. — Ontem à noite ele veio ao Hill e a convidou para sair.

— E hoje o Hill não funciona...

— Sim! Você vê problema no seu motorista sair com minha amiga?

Arregalei os olhos e neguei.

— Não, só fiquei surpresa. Manola é um tanto intimidadora, e Dio, além de motorista, é um segurança daqueles bem sisudos. — Ri. — Ele foi fuzileiro naval, é todo certinho e engessado, não sei se combina com sua amiga. — Sussurrei no seu ouvido: — Ela parece meio doida.

Duda me deu um tapa no ombro.

— Ele pode ser certinho e sisudo no trabalho, mas, convenhamos, não está saindo com ela para dirigir ou protegê-la. — Ela ergueu aquela sexy sobrancelha, e tive uma ereção instantânea. — Além dos mais, acho que eles combinam, sim. Manola é linda, ruiva, delicada e tem muita personalidade, e ele é todo grandão, mas os olhos brilham quando fala com ela.

— Os olhos de Dio brilham? — Gargalhei e tomei outro tapa. — Tudo bem, não tenho nada a ver com o que ele faz nas folgas... mas espero que saiba onde está entrando, porque ela já me disse que sabe manipular uma faca muito bem.

— Ela disse, foi? — Aproximou-se de mim. — Eu também sei, Theodoros Karamanlis. — Olhou para trás para conferir Tessa e sua tia arrumando a mesa e segurou meu pau descaradamente. — Mas prefiro manipular outra coisa agora...

— Safadinha... — Beijei-a, e ela me abraçou apertado.

Depois disso ficamos concentrados em detonar toda a quantidade de pizza que eu trouxe. Duda e eu dividimos uma garrafa de vinho, enquanto Tessa e dona Do Carmo tomavam Coca-Cola.

Ouvi, divertido, as histórias do passeio da tia dela com seu clube de costura, permeadas de fofocas picantes de artistas e muitas aventuras. Tessa lamentou ter perdido o primeiro dia de aula, mas me contou que uma amiga foi visitá-la e contou todas as novidades da turma.

O tempo todo eu estive aqui à vontade, curtindo um programa que nunca poderia imaginar que gostaria de fazer, sem glamour, sem exposições, uísque ou música clássica tocando ao fundo. Nessa casa tão simples, com essas pessoas, eu me senti em família.

Volto à realidade quando Duda coloca sua carta sobre o monte e me dá a opção perfeita de virar o jogo. Segundo o que me explicaram das regras, posso combater uma carta que manda o próximo jogador comprar mais duas jogando uma igual – não importa a cor – e, além de não precisar comprar, ainda obrigo o próximo jogador a comprar mais quatro cartas (a soma da carta que combati e da minha). Tessa é a jogadora que vem depois de mim, e ela, que só tem uma carta, ainda tem os olhos brilhantes de quem não consegue esconder a vitória iminente.

Olho para minha mão, ainda procurando saber o que fazer, se devo deixá-la ganhar ou estender o jogo por mais algum tempo, gritando eu mesmo o “uno” dessa vez. Minha decisão é tomada por causa de um bocejo. Dou de ombros e compro as duas cartas, fingindo que estou chateado por isso. Dona Do Carmo volta a bocejar e toma um susto quando Tessa põe sua última carta na pilha e comemora a vitória.

— Eu venci! — Ela puxa a caixa da pizza. — Sou a dona do último pedaço de pizza!

— Filha, tem certeza que aguenta? — Duda pergunta, rindo de sua alegria ao pegar o prêmio.

— Não. — Faz careta. — Mas é minha, e posso fazer o que eu quiser, não é? — Todos concordam, e Tessa estende o pedaço de pizza para mim. — Eu quero dar meu prêmio para o Theo!

Ah, merda!

Pego a pizza com um nó na garganta, emocionado por ela ter me escolhido para receber seu prêmio, e dou uma mordida na fatia, mesmo sem nenhuma vontade de comer mais.

— Obrigado, Tessa! É minha favorita! — Mastigo devagar, e ela me dá um abraço.

— Eu sabia que você queria mais! — diz baixinho no meu ouvido.

Ah, porra!

Como resistir a isso? Abraço-a de volta bem forte, sentindo como se alguém espremesse meu coração e o aquecesse ao mesmo tempo. Eu adoro essa menina! Ela me conquistou totalmente!

— Tessa, você está deixando o Theo roxo por falta de ar. — Maria Eduarda ri. — E não o está deixando comer.

— Ah, é mesmo! — Ela salta para longe e bebe mais um gole de seu refrigerante. — Come tudo, Theo!

Rio sem jeito e tiro mais um pedaço da pizza, obrigando-me a mastigar para que ela fique feliz comigo. É... já estou fazendo tudo por ela!

— Acho melhor irmos dormir — dona Do Carmo diz para Tessa. — Amanhã você retorna ao colégio.

— Theo pode me pôr na cama hoje?

Duda, que está bebendo um gole de seu vinho, tem um pequeno engasgo.

— Tessa, ele ainda está come...

— Tudo bem — interrompo-a. — Termino de comer enquanto ela escova os dentes e depois a coloco para dormir. Pode ser?

Duda abre um enorme sorriso e assente, e Tessa vai correndo até o banheiro.

— Bom, eu também já vou! — dona Do Carmo se despede. — Boa noite, crianças, não façam muito barulho ao jogar... — Maria Eduarda fica vermelha, e eu sinto a pizza agarrar na garganta. — Eu me referia ao Uno! — Aponta para as cartas. — Mas, pelo visto, vocês não querem mais jogar cartas...

—Tia! — Maria Eduarda soa mortificada.

A senhora ri e acena um tchau antes de entrar em seu quarto e fechar a porta. Duda tampa o rosto com as mãos, e eu me levanto para ir até ela e beijá-la, mas Tessa sai do banheiro e me pega pelas mãos.

— Vamos lá, Theo! — Puxa-me. — Você sabe cantar alguma coisa? Há muito tempo mamãe não canta para eu dormir, mas, como é sua primeira vez hoje, eu acho que seria um bom jeito de começar, porque você não deve saber contar histórias, não é? — Ela toma fôlego rapidamente. — Você não tem filhos? Nem sobrinhos?

— Tessa! — Duda a repreende.

— Não, Tessa — respondo-lhe assim que entramos em seu quarto em tons de rosa e azul. — Ainda não tenho filhos, mas estou pensando em ter alguns.

Ela fica séria e me encara.

— Com a mamãe?

Ai, porra!

Respiro fundo.

— Talvez. — Sorrio. — Ainda estamos nos conhecendo melhor.

Ela olha para suas mãos.

— E eu? — sua voz temerosa corta meu coração.

— Você já é prinkípissa mou, lembra? — Ela sorri e aquiesce. — Pronta para dormir?

Ela pula na cama, e eu a cubro com o lençol. O ar-condicionado do quarto dela funciona, e o ambiente está fresco. Tessa agarra um bichinho velho e surrado, e eu imagino que ele deva estar há muitos anos com ela, que talvez a tenha acompanhado desde bebê até os dias de hoje.

— Vai cantar o quê?

Boa pergunta! Nunca conheci nenhuma cantiga de ninar. Não tenho lembrança alguma sobre como é cantar para alguém dormir, mas penso que deva cantar algo relaxante e doce.

— I see tree of green, red roses too, I seem the bloom for me and you. And I think to myself: what a wonderful world!36 — Tessa sorri, ajeitando-se no travesseiro, e eu suavizo ainda mais a voz: — I see skies of blue and clouds of white, the bright blessed days and dark sacred nights, and I think to myself: what a wonderful world!37

Continuo a canção interpretada por Louis Armstrong, e, antes que eu chegue ao final dela, Tessa já está ressonando baixinho.

— É uma bela escolha de canção de ninar! — Duda comenta, encostada ao batente.

Sorrio sem graça e me levanto da banqueta em que me sentei há pouco, enquanto cantava.

— Estive em dúvida entre essa e Somewhere over the rainbow. — Ela ri, e eu olho em volta, notando as dezenas de quadros com fotos da menina. — Achei que talvez ela conhecesse essa última e que por isso a atrapalharia a dormir.

— Provavelmente ela conhece. No curso de inglês, ensinam muitas músicas.

Começo a caminhar para a porta, mas algo sobre a escrivaninha de Tessa chama minha atenção. Pego o porta-retratos na mão, sentindo meu corpo inteiro gelar. Tessa, ainda bebê, mama tranquila em Duda, que está de costas para a câmera, e vejo poderosos cabelos cor-de-rosa presos em um coque

Pego a moldura seguinte e a vejo nitidamente agora, de frente, rindo muito com uma pequena Tessa também usando cabelos coloridos. A história que ela me contou sobre a visita à Grécia com um grupo de amigas começa a se misturar com a de uma mulher sexy dançando em uma boate de Zakynthos, cabelos pintados de rosa ondulando junto ao seu corpo.

Não!

Ponho o porta-retratos com força sobre o móvel e encaro Duda, tentando puxar alguma lembrança de anos atrás, algum reconhecimento de seu rosto.

— Cabelos cor-de-rosa? — pergunto, tentando me conter.

Ela ri, divertida.

— Pois é, de tempos em tempos Tessa e eu colorimos os cabelos e...

— Por que você não disse? — Duda arregala os olhos como se não tivesse entendido. Olho para a menina, dormindo tranquila em sua cama, e, para não a acordar, caminho até sua mãe e a pego pelo braço, levando-a para seu próprio quarto.

— Theo? — Duda questiona.

— Porra, Duda, que merda de jogo é esse?! — Perco a paciência.

— Jogo? Do que você está falando, pelo amor de Deus?

Não acredito que não descobri a verdade antes! Porra, estava na minha cara o tempo todo! Ela deu várias dicas durante esse tempo que ficamos juntos. Claro! Falou de Zakynthos, do grupo de amigas, dos gregos... Merda!

— Por que não me disse que nós já nos conhecíamos!? — Ela fica séria. — A boate, Duda, na Grécia, lembra-se? Frank e eu nos juntamos ao seu grupo, você dançou comigo, e nós trepamos como doidos dentro da porra de um banheiro!

Maria Eduarda fica branca como cera e se apoia contra o aparador do quarto.

— Não... — ela nega, mas, pelo seu rosto, vejo que é verdade.

— Por que o jogo? Por que não me disse que era você? — Ando de um lado para o outro, confuso, sem entender como essa coincidência aconteceu. — Nós estávamos bêbados demais, eu me lembro pouco da noite, tenho flashes do que fizemos no banheiro e...

— Eu não sei do que você está falando... — sua voz está trêmula e nervosa.

De repente uma ideia passa pela minha cabeça. Quando nos conhecemos na Grécia, eu já estava assumindo a Karamanlis, acompanhando o final da transição sob a direção do meu pai e assumindo suas contas. Talvez, na época, ela não soubesse quem eu era, mas, quando me reencontrou naquele restaurante...

Paro de andar e a encaro.

— Você se lembra, não é? — Vou até ela. — Se lembrou quando nos reencontramos. — Mais uma vez ela nega com a cabeça. — Naquele restaurante, você já sabia que eu era o homem da boate, por isso puxou assunto.

— Theo...

Rio.

— Eu só não entendo por que não disse! Achou mais fácil fazer essa encenação de “eu detesto você!” a me dizer a verdade? Para quê? Fodemos gostoso daquela vez, poderíamos repetir a dose novamente! Mas você queria mais, não é? Não queria somente uma noite, queria me ter nas mãos... — Rosno de raiva. — Como eu caí como um pato! — Rio e não me sensibilizo com as lágrimas dela. Achava que Duda era sincera, mas percebo que é só mais uma manipuladora! — Esse jogo de gato e rato comigo funcionou bem, não é?

— Sai daqui... — Ela limpa as lágrimas.

Duda caminha para fora do quarto, mas a seguro pelos braços antes que chegue à porta da sala.

— O quê? — Rio. — Achou que fazendo um joguinho de moça recatada, fugindo de mim, ficando vermelha quando eu dizia que queria te foder, iria me conquistar? — minha voz soa baixa e irritada, mas não transmite nem mesmo um pouco do que sinto. — Fala alguma coisa! Explica alguma coisa!

Ela se solta e se afasta de mim.

— Eu não sei do que você está falando! — Ela treme inteira. — Vai embora, Theodoros!

Xingo e abaixo a cabeça, tentando me controlar para não a sacudir e a obrigar a falar a verdade. Eu não entendo nada! Não compreendo qual era o jogo, o porquê de ter escondido isso de mim e de ainda estar negando.

Duda caminha até a porta e a abre.

— Sai.

— Eu só quero entender, Duda. Só preciso saber por que não me disse a verdade!

— Não tenho nada a te dizer. — Ela ainda continua pálida, mas tem algo em seu rosto, uma expressão determinada que nunca vi antes. — Saia.

Faço o que ela pede, tremendo de raiva, sentindo-me usado, ultrajado, sabendo que há algo nessa história toda que ela não está me contando. Tenho certeza de que Duda é a mulher da boate; a história e a foto comprovam.

— Sinto informar... — encaro-a antes de sair — mas o jogo acabou.

Ela não diz nada, e o único som que escuto ao sair do apartamento é o da porta batendo com força.


Isso só pode ser um pesadelo!

Minhas pernas trêmulas não conseguem sustentar meu corpo, e eu me abaixo devagar, arrastando as costas contra a porta de madeira, ainda ouvindo os passos de Theo descendo as escadas correndo.

Que brincadeira é essa?

Uma conversa que deve ter durado cinco minutos, mas que destruiu tudo e me deixou em pânico total. Como uma noite tão perfeita pôde acabar desse jeito?!

Theo se mostrou um homem completamente diferente do que eu havia imaginado. Nunca poderia supor que ele teria tanta intimidade e carinho com a minha filha, que conviveria com minha tia e se integraria à nossa família como o fez.

No sábado, quando ele nos levou até sua cobertura, cuidou de nós duas com preocupação e zelo, incluindo-nos em sua vida. Foi tão especial que eu tive que dizer a ele como me sentia. Não foi por gratidão ou qualquer coisa do tipo, eu realmente estou apaixonada por ele, de forma que nunca senti com mais ninguém, nem mesmo com Jean-Pierre, o homem com quem pensei em me casar na França.

Soluço ao pensar em todos os sonhos que já estava, mesmo não o devendo fazer, cultivando acerca de nossa relação. Eu sentia que Theo também não era indiferente a mim, não só no sentido carnal, mas em suas emoções. Por vezes notei seu olhar perdido, tentando entender o que estava acontecendo.

Amor! Era o que estava acontecendo conosco.

Agora já não importa. Ele acha que eu o enredei em alguma espécie de jogo, que eu sabia quem ele era desde o começo, que usei a atração que sentíamos um pelo outro para conseguir fazê-lo desistir do Hill. Rio, desgostosa, ao pensar que, nesse momento, ele me compara a uma puta que vende seu corpo em troca de algo.

— Minha filha... — Tia Do Carmo toca meu ombro, e eu a encaro.

Sua expressão preocupada não me passa despercebida, e tento juntar o resto de forças que tenho e me colocar de pé. Seco as lágrimas, mesmo querendo chorar muito mais, consciente de que tenho algo muito mais importante para proteger do que os cacos do meu coração.

— Ele foi embora. — Minha tia arregala os olhos. — Acabou.

— O que houve? — sua voz demonstra surpresa e apreensão. — O que ele fez para deixá-la assim?

— Não era para ser, tia. — Dou de ombros. — Estou chateada, mas vai passar.

— Duda... Minha filha, eu te conheço. E posso não entender nada de relacionamentos, afinal, nunca tive um, mas posso ver como vocês dois estão apaixonados, é nítido!

Seguro um soluço e engulo o choro.

— Não importa. Isso agora não importa mais.

Sigo para o quarto, e ela fica parada no meio da sala, sem entender o que está acontecendo. Pois bem, também não entendo muita coisa, mas a decisão já está tomada: ficar longe de Theodoros Karamanlis.

 

 

Acordei bem cedo hoje e fiz questão de acompanhar Tessa até o colégio, conversar com a professora e deixar todos os meus telefones para que entre em contato comigo caso algo aconteça.

Ainda vai demorar um tempo para saírem os resultados dos exames, e por isso mesmo estamos todos com muita atenção a qualquer alteração que ela possa ter.

Voltei da escola, dispensei o almoço que minha tia preparou e fui adiantar as coisas no Hill. Por conta das férias e da saúde de Tessa, fiquei pouco no restaurante, então preciso me inteirar de tudo. Permaneci em minha sala, onde estou até agora, vendo os balanços de caixa, pagamento de fornecedores, e, com orgulho, li o bilhete do Leonan informando que não há mais nenhum débito com ele e que eu posso ficar tranquila, que tudo está certo, “no comando”.

O alívio foi gigante!

Eu sei que pode parecer loucura, mas vi aquele menino brincando com meu irmão, conheço os pais dele. Sei que tomou o caminho errado, o do crime, e eu realmente gostaria de que ele se emendasse, mas, apesar de tudo, sei que posso confiar nele. Foi um bom amigo para meu irmão na hora mais difícil, arriscou-se para o ajudar, e isso, eu nunca esquecerei. Não obstante, é um alívio não dever mais nada aos “chefes” dele.

Consulto meu saldo no banco e penso no dinheiro que tenho guardado para pagar o agiota que sumiu. Todo mês deposito a quantia, mas não tenho a quem entregá-la. Há meses não tenho notícias, o que é muito estranho, pois o homem é um escroto vigarista.

— Duda! — Manola me chama.

— No escritório! — Ela aparece ao batente da porta com um vestido vermelho, os cabelos presos em um coque e o sorriso de quem não dormiu a noite toda. Sorrio. — Achei que não fosse te ver hoje!

Ela gargalha e dá de ombros.

— Dionísio tem que levar o poderoso chefão para o aeroporto hoje à noite, então resolvi deixar o pobre descansar. — Senta-se ao meu lado. — Você está bem com essa viagem dele para a Grécia?

Respiro fundo e não respondo. Fico um tempo pensando no que fazer enquanto ele está longe, porque certamente não vai esquecer essa história de que me conhece e, quando começar a ligar as datas...

— Duda? — a voz de Manola soa preocupada. — O que aconteceu? Você está pálida.

Olho para ela e não suporto mais, desmorono chorando contra seu abraço.

— Ah, porra, o que aquele grego filho de uma vadia fez contigo?

Não consigo dizer nada, só choro, deixando as lágrimas que mantive presas desde a noite passada fluírem sem freio sobre meu rosto.

— Duda? Ele terminou contigo? Te machucou? Pelo amor de Deus, me conta!

Tento me controlar, seco o rosto, e Manola vai até o filtro pegar água. Bebo devagar, soluçando feito criança, e tento explicar a ela toda a história.

— Lembra que te contei sobre uma viagem a uma ilha grega?

— Sim, quando terminou o curso, não foi?

Assinto.

— Dois homens se juntaram ao nosso grupo. Os dois eram incríveis. Eu me lembro de ter ficado impressionada com um deles, o que tinha olhos azuis.

— Ah, meu Deus! — Manola põe a mão no coração.

— É, era o Theo. Eu nunca soube o nome de nenhum deles, mas agora entendo por que o Frank Villazza me pareceu tão familiar. Foi ele quem saiu com a Ally e com a Èlene.

Manola balança a cabeça, rindo ao se lembrar da história que lhe contei. Foi uma verdadeira guerra para convencer as meninas a voltarem conosco, porque as duas cismaram em ficar com o italiano, pois ele prometera mandá-las de volta em outro voo, no dia seguinte. Era loucura, ninguém conhecia o homem, e nós as tiramos do iate dele.

— Duda... isso significa que ele pode ser o pai da Tessa? — ela diz em voz alta todos os meus temores.

Choro novamente e aquiesço.

— Puta que pariu! Mas que destino mais vadio! — Ela me abraça. — O que você vai fazer?

— Ele acha que eu sabia de tudo o tempo todo. Que o reconheci... — Manola arregala os olhos. — Que me aproveitei do “tesão” que tínhamos desde aquela época para usá-lo e convencê-lo a não continuar tentando comprar o Hill.

— Ele é louco? Isso não faz nenhum sentido!

— Eu sei! Mas estávamos todos bêbados, e ele não se lembra de muita coisa.

Manola franze o cenho.

— Então como ele ligou uma história à outra?

— Ele viu as fotos no quarto da Tessa. — Manola xinga. — Eu não posso arriscar perdê-la, Manola, não posso! Se ela for filha dele, Theo com certeza tentará tirá-la de mim.

— Você não tem ideia mesmo de quem é o pai? — Nego. — Eu nunca achei que o francês fosse o pai, Tessa nada lembra a ele! — Ela pega o celular e depois me mostra uma foto. — Sabe quem é?

Um homem com olhos do mesmo tom dos da minha filha, cabelos lisos e claros como os dela e traços muito semelhantes aparece na foto. Meu coração dispara, e eu nego.

— Alexios Karamanlis. — Tampo o rosto com as mãos. — É um dos caçulas. Tem uma irmã também...

— Com os mesmos olhos. — Manola assente. — O que a difere da minha filha é a cor dos cabelos, que é mais parecida com os de Theo.

— Aquele outro que vinha aqui direto também tem os cabelos mais claros e olhos verdes. É um traço de família, aparentemente. — Minha amiga pega minhas mãos. — Não é melhor abrir o jogo com ele? — Nego. — Duda, e se ele fizer as contas e...

— Ele nunca vai supor que uma transa com camisinha possa ter gerado um filho. Eu pensei muito nessa noite, quase não dormi e acho que a melhor solução é mantê-lo longe de nós. — Manola nega, mas minha decisão está tomada. — Ele já pensa que eu sabia de tudo e que o usei. Imagina se souber que Tessa é filha dele, o que irá pensar?

Ficamos um tempo em silêncio, digerindo todas essas informações.

Não quero perder minha filha, e Theo tem dinheiro e influência para fazer isso se quiser. Não posso arriscar. Mesmo que isso me rasgue por dentro, não posso arriscar!

— Como você está com essa história toda?

Rio conforme as lágrimas escorrem.

— Destruída. Esse passado é como uma sombra sobre mim, você sabe. — Ela assente. — Tantas mentiras criadas, tantas verdades que eu gostaria de esquecer. E agora ele volta com tudo e da pior maneira possível.

Deus do Céu! Por que isso tinha que acontecer agora? Por que ele?

Tessa é a pessoa mais importante da minha vida, é minha filha, meu coração. Nada está acima dela, e por isso mesmo não posso perdê-la. Não sei se o que faço é justo, mas não tenho ideia de como será a reação de Theodoros ao saber a verdade e não posso correr o risco de ele tirar a menina de mim.

— O que você está pensando em fazer? — Manola aponta para os documentos sobre a mesa.

Respiro fundo, armo-me de coragem, ignoro a dor em meu peito e respondo:

— Vou vender o Hill para a Dominus.

— Você tem certeza disso? — Assinto, e ela sorri. — Estarei contigo! Onde quer que você for trabalhar, conte comigo!

Abraço-a, agradecida e emocionada pelo apoio.

— Ainda não sei para onde vou, mas não quero mais ficar em São Paulo. Eu...

Meu telefone celular toca, e reconheço o número da escola de Tessa.

— O que houve?! — atendo apavorada.

— Maria Eduarda Hill? — a mulher do outro lado da linha questiona, e eu confirmo. — É Patrícia Avellar, da escola de Tessa. Estou entrando em contato para avisar que sua filha teve um desmaio em sala de aula e que nós chamamos uma ambulância...

— Ambulância?! — Levanto-me. — Como ela está?

Manola também se põe de pé e pega a chave do utilitário do restaurante, pronta para me levar aonde for preciso.

— Desacordada ainda — sua voz está preocupada. — Estamos indo para o hospital...

Saio correndo com Manola atrás de mim para a garagem do Hill, tremendo e chorando, pegando o nome do hospital, sem saber o que está acontecendo com minha menina.

Meu Deus do Céu, o que é isso tudo?!


O desespero toma conta de mim, pois sinto que algo de muito sério aconteceu com Tessa. Não consigo parar de tremer dentro do carro, agitada, impaciente a cada farol vermelho que temos que esperar abrir para podermos prosseguir até a emergência para a qual Tessa foi levada pela ambulância.

Deve ter sido algo muito sério, sei disso!

Olho para Manola na direção do veículo, porém, tão tensa quanto eu, e tento segurar o choro. Parece que o céu resolver cair sobre minha cabeça de uma só vez!

— Vai dar tudo certo, Duda! Ela estará bem, você vai ver!

Não respondo, apenas fecho os olhos e vou rezando todas as orações que me foram ensinadas na infância, clamando a Deus para que não me tire Tessa, que me leve em seu lugar se preciso.

Mal Manola encosta o carro na guia da calçada, eu já pulo para fora, indo correndo até a recepção e pedindo informações sobre o quadro da minha filha. Avisto a professora que me ligou. Imagino que seja ela, pois seu rosto é de pura aflição, e isso não me parece ser boa coisa.

— Duda Hill? — ela questiona, pois não nos conhecemos. — Que bom que chegou!

— Como está minha filha? O que houve? — pergunto olhando para todos os lados, esperando que alguém do hospital venha com as informações que pedi.

— Acho que está bem agora, mas levamos um susto tão grande! — A mulher chora. — Eu estava dando aula de artes quando de repente ouvi gritos. Tessa estava sangrando e pálida, muito pálida...

— Foi o nariz?

Patrícia nega.

— A boca. As gengivas... — Ela põe a mão no rosto. — Eu achei que ela tivesse batido em algo ou mesmo que algum colega a tivesse atingido, mas não, ela não parava de sangrar e de repente desfaleceu nos meus braços e...

— Maria Eduarda Hill? — uma médica chama meu nome. — A senhora é a mãe de Tessa Hill?

— Sim, sou eu. — Respiro fundo e indago: — Como ela está, doutora?

— Preparando-se para ser transferida. — Arregalo os olhos diante da informação. — Precisamos de sua assinatura em alguns documentos e...

— Espera! Transferida para onde e por quê?

A médica olha a recepção lotada e fecha os olhos.

— Desculpe, plantão tumultuado. — Eu assinto. — Ela chegou aqui ainda com muito sangramento e pressão sanguínea muito baixa. Contivemos a hemorragia, a colocamos no soro, e um dos meus colegas decidiu fazer um hemograma...

— Fizemos um no sábado. Ela estava com contagem de plaquetas baixa e...

— Sim, mas agora não são só as plaquetas. — Ela lê o prontuário em sua mão. — Foi constatada uma pancitopenia, diminuição de todas as células do sangue, o que indica que há algum problema na produção, direto na medula, ou estão sendo destruídas durante a circulação. — Sinto meu corpo inteiro gelar. — Como não temos especialista nem mesmo condições de realizar todos os exames aqui, decidimos transferi-la para um hospital de referência e estamos tentando uma vaga.

Eu me sinto tonta, perplexa demais, e, por sorte, Manola já está perto de mim e me segura com força para que eu não desabe. Preciso ser forte, preciso estar forte até que tudo esteja resolvido.

— É leucemia, doutora? — inquiro. Minha voz quase não sai, tamanho medo que sinto.

— Como disse, precisamos de mais exames, pode ser muita coisa! No momento ela está recebendo uma transfusão sanguínea, e nós já a medicamos.

— Nós podemos vê-la? — Manola pergunta.

— Apenas uma pessoa. Não temos condições de receber mais lá dentro.

Olho para Manola, e ela assente, indo comigo até a porta da enfermaria, permanecendo na recepção enquanto sigo a médica.

Tessa está na cama, recebendo sangue enquanto dorme. Seu rosto está pálido, sua blusa de uniforme, ensopada de sangue. Ponho as mãos sobre o rosto e choro silenciosamente para que ela não escute, engolindo cada soluço de pânico. Não posso perder minha menina!

 

 

Manola me acorda lentamente, e eu abro os olhos esperando ver meu quarto ou mesmo a bancada do Hill, pois muitas vezes cochilei em pé durante um expediente. Infelizmente estou em um quarto de hospital, isolada, vendo minha filha dormindo em sua cama do outro lado do vidro que separa os cômodos.

Os dias não têm sido fáceis! Primeiro, acompanhei a transferência dela para cá e a acomodação dela no quarto. Comentei com o médico que tínhamos feito exames no domingo e lhe dei o nome do laboratório. Não queria que furassem minha pequena de novo, mas eles o fizeram, pois incluíram mais pedidos.

O laboratório de confiança de Theo enviou os resultados – em pedido de urgência – para o médico que nos atendeu, doutor Felipe, um hematologista. Tessa acordou no meio do dia, pouco antes de tirarem sangue novamente, e chorou bem assustada, o que cortou meu coração.

— Você vai ficar boa, minha filha, eu prometo! — disse a ela, querendo muito lhe tocar, mas, como suas defesas estavam muito baixas, eu estava usando luvas, uma roupa especial em cima da minha, touca e máscara.

Os médicos recomendaram que eu ficasse a maior parte do tempo do outro lado do quarto, na parte de espera e que a deixasse sozinha. Eu conseguia falar com ela de fora, mas não era a mesma coisa do que estar perto dela.

— Ela está numa fase bem aguda, então todo cuidado é pouco — explicou o médico. — Os exames não são bons, Maria Eduarda, mas excluímos algumas doenças e espero ter o diagnóstico em breve, aí poderemos iniciar o tratamento, pois o que estamos fazendo até o momento é apenas cuidando para que ela não piore.

Manola foi para o Hill, e eu percebi que estava certa em pensar em vender. Era o momento. Liguei para o número que o representante da Dominus deixou comigo e negociei pelo telefone mesmo, marcando dia e horário para assinarmos os papéis.

Tia Do Carmo ficou com Tessa para que eu finalizasse tudo, e, com muito choro, despedi-me do pessoal do Hill. A Dominus iria manter os funcionários. Arrumei minhas coisas no apartamento e fiquei um bom tempo sentada na minha cama, lembrando-me de todos os momentos que passei dentro daquele lugar, desde meus primeiros anos de vida até hoje.

Lembranças da minha mãe, do meu pai e do meu irmão, minha família, que perdi aos poucos, calaram fundo dentro de mim, e pedi a eles que entendessem o que eu estava fazendo. Foi impossível não lembrar dos momentos com Theo aqui também, nossa primeira vez juntos, mas respirei fundo e foquei no que era mais importante, mesmo sentindo o coração doer por causa do que ainda sinto por ele. Não sei como será a luta daqui para frente. Eu não conseguiria dar conta do Hill – mesmo à distância – e cuidar de Tessa., além dos custos altos de seu tratamento. Viemos para um hospital de referência, e ele não era perto da minha casa.

Fechei o apartamento, levando comigo algumas das lembranças de toda a minha família e retornei ao hospital. Manola, que já tinha separado e visitado alguns imóveis no entorno do hospital, esperava-me para fechar negócio e tratar da mudança da minha família. Minha amiga decidiu não ficar com a Dominus e se dispôs a nos ajudar sempre que necessário. Nos visita direto e está com a vida em suspenso esperando o que vou fazer da minha quando tudo se resolver e eu puder pensar no futuro.

Os dias foram se transformando em noites e em novos dias, e eu nem percebia, pois não saía de dentro do hospital. Uma semana se passou até que o diagnóstico de Tessa fosse revelado. O último exame, uma biópsia da medula óssea, confirmou o diagnóstico tão temido pelo médico: anemia aplástica grave.

As três palavras mais doloridas da minha vida.

Eu tinha tanto medo de ser câncer que não fazia ideia de que essa doença é ainda mais dura do que a leucemia. Doutor Felipe tentou me explicar, amenizar e falar em sobrevida.

Sobrevida!

Não queria nem pensar em passar anos com medo de perdê-la, principalmente caso não achássemos um doador compatível, era uma perspectiva terrível demais.

Eu ia ao quarto dela todos os dias, e nós planejávamos sua festinha para comemorar seu aniversário no dia 2 de abril, e eu via o quanto ela estava esperançosa de já estar em casa. Como eu diria a ela que não seria possível? Que ela teria de ficar à espera de que um doador aparentado fosse compatível para um transplante de medula? Doutor Felipe de pronto descartou a possibilidade de um doador alternativo, ou seja, fora do parentesco dela, explicando que as chances eram muito pequenas de compatibilidade, além da alta chance de rejeição.

Nossas opções eram: achar um parente compatível ou começar um tratamento severo e arriscado usando imunossupressores que a deixaria ainda mais exposta a infecções, mas que poderia impedir a lesão de compartimentos celulares importantes que causam a insuficiência da medula óssea.

Eu precisava entrar em contato com o Theo urgentemente. Nada mais importava, eu tinha que salvar a vida da minha filha.

Liguei para o celular dele, mas infelizmente caiu algumas vezes na caixa postal. Já estava ficando desesperada quando lembrei do Millos, o primo dele e meu primeiro contato com os Karamanlis. No entanto, também não consegui falar com ele no número que eu tinha.

Pensei em ir até a empresa, mas Theo estava de férias na Grécia. Pouco adiantaria se eu fosse até lá. Meu desespero só aumentava a cada dia que passava, e eu via minha filha usando bolsas e mais bolsas de concentrado plaquetário.

Há dois dias consegui completar uma ligação para o celular do Theo e quase chorei de alívio ao ouvir a resposta em português do outro lado da linha:

— Alô?

— Theo! Graças a Deus! Eu precisava muito falar com você...

— Quem fala? — a voz com forte sotaque e uma leve rouquidão típica de quem fuma me fez perceber que não era Theodoros quem me atendera.

— Eu gostaria de falar com Theo. É urgente. Diga a ele que Duda Hill ligou.

— Duda Hill? — O homem pareceu reconhecer meu nome. — No momento, Theodoros não pode atendê-la, pois ele está lambendo as bolas do meu pai, tratando de seu casamento. — Senti meu corpo inteiro gelar. — Então não acho que ele tenha interesse em alguma puta brasileira... Não que ele não goste, pelo contrário, ele gosta muito, mas...

Desliguei o telefone sem conseguir ouvir mais nada, tremendo, sem conseguir entender o que ele quisera dizer com essa conversa louca sobre casamento, puta brasileira e toda essa história. Eu precisava falar com ele sobre a possibilidade de ele ser pai da minha filha e por isso poder salvá-la. Nada mais me importava.

Há quase 15 dias, estou sem sair deste hospital, sem ver ninguém a não ser quem vem nos visitar, sem conseguir dormir ou comer direito, chorando todas as noites, velando o sono da minha pequena. Eu não tenho parentes, não sou compatível, até mesmo minha tia e Manola testaram a compatibilidade para serem opção, mas nenhuma delas também é.

Estou entrando em desespero já. Leio vários estudos sobre o caso e cada vez mais sinto meu coração se quebrar ao perceber que, sem o transplante, as chances de Tessa são mínimas.

— Você cochilou aí toda torta. — Manola sorri sem jeito, despertando-me das lembranças dolorosas. — Não quer ir para o apartamento? Você mal esteve lá desde que o alugamos e...

Levanto-me e pego minha bolsa.

— Preciso ir à Karamanlis — digo determinada. — Não consegui falar com Theo, mas deve haver um maldito irmão dele que possa me ajudar, ou aquele desgraçado do primo que ficava nos rondando feito um abutre, mas que agora sumiu!

— Duda, você tem certeza? Eu posso ligar para o Dionísio e pedir a ele que...

— Não! Chega de recados. Dio disse que Theo tem previsão de voltar somente no final do mês ou mesmo durante o feriado de Carnaval. Não vou perder mais tempo, mesmo porque o doutor disse que pais raramente são compatíveis.

— Sim. — Manola me abraça. — Tenha fé, minha irmã, nossa menina vai sair dessa.

— Ela vai, eu tenho certeza!

Saio do hospital marchando feito uma doida e chamo um Uber assim que chego à calçada, tomando caminho para a Avenida Paulista, onde fica o prédio da empresa em que nunca achei que fosse pisar um dia.

 

 

— Não, infelizmente o doutor Millos não se encontra. A senhorita tem horário agendado?

— Não — digo à recepcionista, ainda no saguão do prédio.

Como fui idiota achando que conseguiria entrar assim, dizendo que queria falar com um dos diretores e pronto, ele iria me atender. Claro que não! Aqui não é uma imobiliária, pelo amor de Deus, é uma empresa de gestão e venda de patrimônio que faz negócios no mundo inteiro!

— Eu posso transferir para a secretária da diretoria e ver se ela consegue agendar algo.

— Por favor, faça isso, eu...

— Minha chave de acesso do elevador parou de funcionar novamente — um homem alto, com ombros muito largos, pele morena e olhos azuis me interrompe, visivelmente irritado. — Me dê uma nova, por favor, e abra um chamado de novo para esses incompetentes.

— Claro, doutor Karamanlis.

Encaro-o com mais atenção, tentando lembrar os nomes dos irmãos do Theo. Alexios é o louro, esse então é...

— Kostas! — lembro e falo em voz alta, chamando sua atenção. — Konstantinos, certo? — Ele arqueia sua sobrancelha e me olha de cima a baixo, abrindo um sorriso lentamente.

— Depende... Quem é você?

— Maria Eduarda Hill. Eu sou...

— Ah... — Ele ri e me analisa de novo. — Eu esperava coisa melhor.

Franzo o cenho, mas decido ignorá-lo, pois meu assunto é urgente.

— Eu preciso falar com um de vocês. Minha filha está muito doente... — explico a ele toda a situação de Tessa, inclusive digo o nome do hospital onde ela está, mas ele parece impassível. — Eu preciso falar com o Theo...

— Ah! Entendi! — Sorri malicioso. — Ele já enjoou de você, não foi? — respiro fundo ao ouvir a voz debochada. — Olha, você deve ter algo muito especial entre as pernas para ele ainda não ter cobrado a promissória.

Encaro-o surpresa.

— Que promissória?

— Ah, não sabia?! — Ele cruza os braços. — A promissória que seu pai, aquele viciado em jogo, assinou com o agiota para alimentar a farra.

Recebo mais esse baque e me escoro contra o balcão da recepção. Imagens do agiota asqueroso, suas ameaças, o medo que senti durante todo esse tempo sem notícias, todo o dinheiro que já entreguei a ele me assolam conforme penso que Theo estava com a maldita promissória!

Maldito mentiroso!

Ele disse para mim que iria tentar fazer a Karamanlis desistir do Hill, mas estava com a promissória enquanto eu sofria sem saber de notícias! Olho para o rosto do nojento e insensível Konstantinos Karamanlis, ponho minha bolsa sobre o ombro e saio da empresa, odiando-me por precisar deles, sabendo que terei de engolir meu orgulho e lhes pedir que testem compatibilidade com Tessa.

Fico um tempo andando sem rumo na Paulista, entro no Parque Trianon para pensar no que fazer e só depois volto para o hospital, chorando e recebendo lencinhos de papel da motorista do Uber, tentando estancar minhas lágrimas de desespero e decepção.

Quem são essas pessoas? Quem é Theodoros Karamanlis? Será que me enganei tanto assim com ele?

Desço do carro e avisto, na porta principal do hospital, um rosto levemente conhecido. A mulher bonita e morena, com cabelos platinados, roupa de grife e bom gosto se aproxima e me entrega um arranjo de flores.

— Soube de sua filha, sinto muito. — Ela percebe que eu não sei quem é. — Viviane Lamour. Nos conhecemos no clube de jazz.

— Ah...

Sorrio sem jeito, consciente do meu rosto inchado de chorar, nariz vermelho e roupa amarrotada de pelo menos dois dias sem trocar. Foda-se!

— Theo me disse que vocês estavam aqui, e eu quis fazer uma visita. — Dá de ombros como se isso não fosse nada, mas meu coração dispara. — Ele agora está ocupado com o noivado com a Valentina, então pensei que talvez você estivesse se sentindo um pouco rejeitada. — Devo ter ficado branca de susto, pois ela sorri. — Bem-vinda ao clube! Ele é assim, nos faz sentir especiais e depois simplesmente parte para outra, descartando sem dó e sem olhar para trás.

Theo noivo?! Valentina... onde eu ouvi esse nome?! Lembro-me dos telefonemas dela à madrugada e da noite em que saí com Theodoros e que encontramos Viviane no clube e ela fez questão de tocar nesse nome, o que incomodou Theo. Recordo-me ainda que ele me contou uma história sobre ter começado a sair com a moça, mas que o relacionamento não tinha vingado.

Noivos?!

Quase não consigo respirar. Não tenho reação, só vejo o sorriso cínico de Viviane. Minhas mãos apertam as flores que ela me entregou, sentindo-as queimarem minhas palmas como se fossem puro veneno.

Deus do Céu, essa mulher já tem ideia do inferno que estou passando, ainda precisava vir aqui para tripudiar de mim?

Tento respirar e encontrar minha voz para lhe responder e, mesmo tremendo inteira, sentindo uma dor horrível ao respirar, como se algo esmagasse meu peito, digo:

— Você não tem sentimentos? Minha filha corre o risco de morrer, e mesmo assim você acha que tem o direito de vir aqui me humilhar? — Jogo as flores contra ela. — Não me interessa o que Theo fez ou deixou de fazer “conosco”, nem mesmo com quem ele está! Não me importa!

Viviane olha para os lados, visivelmente constrangida por eu estar falando alto.

— Ele vai se casar com Valentina, ela lhe dará o filho que ele tanto quer, então concentre-se em sua criança doente e nos deixe em paz!

Arregalo os olhos diante de sua insensibilidade. Sinto vontade de bater nela e nunca senti isso antes, nunca quis tanto partir para a violência como agora. Acalmo-me lembrando que Tessa precisa de mim e que, se me deterem por agressão – porque, juro, se eu tocar nela, vai sair daqui quebrada –, não poderei estar ao lado da minha filha.

Saio de perto dela andando de cabeça erguida até sumir de sua vista. Tremo tanto que meus dentes batem, tamanha fúria, tamanha dor.


— Theodoros Geórgios Karamanlis, meu neto preferido! — pappoús me saúda assim que me vê entrar em sua sala privada na mansão da família em Atenas. O velho Geórgios Karamanlis está sentado em sua poltrona preferida, com um cobertor nas pernas e perto da lareira. Está frio em Atenas, é inverno, mas ainda assim eu sinto um enorme calor na saleta.

Estar de volta a essa casa sempre me traz lembranças agridoces. Passei boa parte da minha vida aqui, desde meu nascimento. Acho que nunca contei isso para vocês, não é? Bem, não é uma história muito longa.

Meu pai, Nikolaous Karamanlis, estava com 19 anos quando engravidou minha mãe, Rhea Matsoukas, com 17 anos e filha de pescadores que mantinham um negócio na cidade com a venda de pescado. Tenho muito dela fisicamente, o formato do rosto, dos olhos, do nariz e não sou tão corpulento quanto Nikkós e Kostas, por exemplo. Herança da família Matsoukas.

Os dois foram obrigados a se casar. Meu avô paterno concordou com isso para dar “legitimidade” ao seu primeiro neto, mas bastou que ela me parisse e os casos do meu pai se tornassem públicos para que a jovem e bela moça aceitasse uma grana gorda de pappoús e sumisse do mapa, deixando documentos de divórcio e um filho recém-nascido para trás.

Não posso reclamar da minha criação na infância. Não tive muito carinho, mas tive atenção da minha giagiá Dorothea, e o pouco sobre “família”, aprendi com ela e depois, com a chegada de Millos para morar conosco, separado de seus pais por questão de sobrevivência e sanidade mental – mas essa não é minha história para contar.

Pois bem, aqui eu cresci com minha avó nos levando à Igreja da Grécia e com meu avô nos ensinando que Deus é ter poder, e o poder advém das posses de uma pessoa. Frequentávamos a escola e erámos tutoreados em casa também, com o próprio Geórgios a nos dar aulas de economia, mercado e transações financeiras diversas. Ainda me lembro de quando meu pai, recém-separado da mãe do Kostas, decidiu ir trabalhar com tio Sergios no Brasil.

Ele conseguiu derrubar o irmão mais novo em pouco tempo e assumiu a Karamanlis de São Paulo. A partir daí começou o desfile de secretárias, prostitutas, dívidas com drogas, escândalos atrás de escândalos.

Balanço a cabeça, determinado a não deixar que dessa vez tudo isso me atinja e eu sinta todas as dores do meu passado novamente. Já foi, é hora de superar!

— Pappoús! — Vou até ele e beijo sua mão, agachando-me aos seus pés. — A ligação do seu médico me assustou. O que houve?

A velha raposa sorri.

— Indigestão, mas parecia um ataque cardíaco.

Não acredito que viajei feito um louco, uma semana antes do prazo, por causa de uma maldita azia! Rio de mim mesmo, tão idiota e sempre fazendo as vontades do vovô.

— Eu abandonei a empresa antes mesmo de Millos voltar de férias, pappoús!

— Theodoros, eu sou a Karamanlis, nada é mais importante que seu avô. — Ele passa a mão em meus cabelos, principalmente na fronte, onde tenho a maior concentração de fios brancos. — Seus cabelos são escuros como os meus. — Ele levanta meu rosto. — Seus olhos são azuis, mas é só o que você tem dos Karamanlis. — Sorri triste. — Infelizmente, o mais parecido comigo é o Konstantinos, mas também herdou o caráter de seu pai.

— Alexios parece com tio Geórgios — provoco um pouco.

— Isso é o que vocês querem enxergar! Não posso assumir que o filho de uma prostituta seja meu neto.

— DNA resolve, sabia?

Ele dá de ombros.

— E Kyra? — pergunta-me, indo direto à ferida. — Minha única neta não vem me ver há anos!

— O senhor sabe que eu não posso ajudar quanto a isso.

— Eu sei, Theodoros, acompanhei e salvei você naquela época. Pobre menina...

— Pappoús! — Levanto-me. — Estava prevista mais uma sessão de tortura antes de seu aniversário? Foi para isso que vim mais cedo?

— Não seja dramático, Theodoros, não te criei um maricas! — Joga o cobertor de lado e se levanta, poderoso, postura ereta, e eu sinto meu sangue ferver.

Filho da puta, enganando a todos com uma aparência frágil, fazendo-nos acreditar que está às portas da morte, quando parece que ainda tem uns 70 anos e não os 90 que fará daqui uns dias!

— Por quê? — questiono o teatrinho enquanto ele diminui a potência da lareira.

— Conhece a máxima do “rei morto, rei posto”? — Assinto. — Quero saber como as coisas ficarão depois da minha morte, mas, como estarei morto... — Ri, e eu franzo o cenho, ainda sem entender. — Bastou um resfriado para seus tios começarem a brigar entre si, e eu quis ver onde ia dar.

— Se fingindo de moribundo para ver o circo pegar fogo. Típico! — Sento-me em uma das poltronas. — Não sei como ainda acredito nas suas doenças.

Ele ri.

— Você não é lá muito esperto, Theodoros — rio por ele me jogar isso na cara e nem faço mais questão de lhe lembrar que eu tinha só 18 anos quando tudo aconteceu. — Mas o que lhe pedi, independentemente de minha saúde, continua valendo.

Bufei.

— Já está sendo providenciado, não se preocupe com isso — corto o assunto.

— Não gosto disso, Theodoros! — Cruza os braços. — Não gosto mesmo!

Bom, nem eu, mas isso não me preocupa mais. Realmente já resolvi essa questão de casamento e filhos, então não vou me preocupar mais com isso. Não enquanto minha cabeça está fervilhando com a última descoberta que fiz.

Maria Eduarda Hill é a mulher com quem transei há quase nove anos em uma boate! É algo tão impossível de se crer que me parece totalmente surreal. Quase uma década depois, nós nos encontramos de novo, e isso me passou despercebido.

Eu sei, já transei com muitas mulheres. Algumas fodas foram bem marcantes devido às circunstâncias, como a da boate, por exemplo. Eu nunca tinha trepado em um banheiro daquela forma, e a adrenalina misturada ao álcool, além dos flashes de lembranças já distorcidas pelo tempo fizeram com que eu usasse essa fantasia por bastante tempo.

Foi realmente muito bom, e é por isso que eu não entendo como não reconheci a Duda em todo esse tempo em que dormimos juntos! Nada nela me fez lembrar aquele momento, nem seus beijos, seu corpo, o jeito como trepamos, nada! Sim, eu sentia um estranho reconhecimento, mas não ligado ao passado, pelo contrário, era algo que eu nunca consegui explicar e que só fez sentido quando me dei conta de que estava apaixonado por ela.

Era mais do que meu corpo que reconhecia aquela mulher.

Gemo, e meu avô me dá uma olhada desconfiada, porém, o ignoro. Nunca pensei em reencontrar a mulher da boate, nunca nem mesmo a procurei ou tentei. Poderia se quisesse. Frank sabia o nome das suas amigas e onde estudavam em Paris, bastava perguntar. Contudo, não, nada me puxou para ela a não ser a fantasia de um sexo etílico e bem diferente do que eu estava acostumado a fazer.

Ainda agora tenho certeza de que Duda é aquela mulher, mas não consigo vê-las como a mesma pessoa. Claro, muitos anos se passaram, Maria Eduarda era mais jovem, ainda não tinha a Tessa, podia estar em uma fase mais liberal e hoje ser mais comedida ou mesmo ter sido assim apenas com o propósito de jogar comigo.

Sinceramente, ainda estou muito confuso com isso tudo. Julgava Maria Eduarda como a pessoa mais sincera que já havia conhecido, e o fato de ela ter escondido de mim que já havíamos nos conhecido, bem como ter continuado a se fazer de desentendida quando descobri tudo mexeram demais comigo.

Ouço uma batida à porta da saleta. Assisto, rindo bastante, ao meu avô voltar à poltrona e cobrir as pernas com um cobertor antes de autorizar a entrada.

— Pai, eu... — Nikkós se interrompe ao me ver.

Olho para trás e o encaro, no alto dos seus quase 2m de altura, pele morena, nariz grande e com a ponta curvada para baixo e enormes olhos azuis. Os cabelos, antes escuros, já estão bem grisalhos, penteados para trás como Kostas os usa também.

— Ora, ora. — Cruza os braços. — Eis que o favorito do vovô retorna ao lar!

Ignoro a provocação dele e apenas o cumprimento com a cabeça. Não estou com o mínimo humor para os melindres de meu pai. Nós já nos resolvemos anos atrás, inclusive com punhos, então não me sinto devedor dele em nenhum momento, mas ele sempre se faz de vítima.

Levanto-me, sem querer estar no mesmo local que ele por muito tempo.

— Vou para meu quarto. Estou cansado da viagem e...

— Amanhã partiremos para Villa Dorothea — meu avô informa.

— Em Porto Cheli?

Ele assente, e eu suspiro cansado.

Nada animador pensar em ficar com meus tios, tias e primos – além do meu pai e sua nova esposa – em uma casa de praia isolada de tudo. Penso no iate, parado na marina há alguns anos e decido que é hora de tirá-lo de lá, prepará-lo e ficar mais tempo nele do que em terra.

Sigo até a saída da sala, mas meu pai me detém.

— Soube que finalmente conseguiram algo para comprar aquele boteco da Vila Madalena. — Ergo uma sobrancelha, mas não lhe respondo. — Você deve estar se sentindo muito satisfeito, não é? Tomou meu lugar, conseguiu avançar no negócio que foi responsável pela minha derrocada na empresa...

— O único responsável pela sua derrocada, em qualquer lugar, não só na Karamanlis, foi você mesmo.

Ele ri da minha resposta, e, antes que eu saia, escuto-o dizer:

— Sabrina está em Atenas, para sua informação.

Travo os punhos, olho para meu avô, que está visivelmente aborrecido com o filho, e sigo para meu quarto, já prevendo o tormento que será essa reunião de família. Meus irmãos e o Millos têm sorte de não estar aqui. É uma tortura equivalente à de Procusto!38

 

 

— Theo! — Andrea me cumprimenta, e fico admirado ao ver o quanto ele cresceu nesses anos em que não vejo tantos da família reunidos.

Claro que, antes de partir com seu séquito para o Peloponeso, meu avô decidiu reunir os filhos e netos que já estão em Atenas para uma “confraternização” familiar. Confesso que nunca me acostumo com a multidão que é essa família, mas, para um homem com sete filhos – um morto sem herdeiros – e 22 netos, a casa pode se considerar vazia com 12 pessoas presentes.

Três dos meus primos mais velhos – filhos de tio Sergios – já se casaram, mas ainda não produziram um bisneto para o velho Karamanlis, por isso a expectativa está em cima de mim. Ano passado um dos meus primos, Ullysses, casou-se com o namorado com quem morava há anos, em Londres, e isso quase matou a velha raposa – inclusive soube que teve uma aposta sobre o assunto entre os primos –, que acabou por renegar mais um neto apenas porque ele decidiu viver sua própria vida como lhe era de direito.

Fato é que estamos sempre à espera da próxima persona non grata da família, pois basta desagradar ao pappoús e ele já anuncia que a pessoa não faz parte mais de seus herdeiros. Alex, infelizmente, foi o primeiro a sentir isso, somente por ser filho de uma garota de programa com a qual Nikkós teve um caso por algum tempo, e agora Ullysses.

— Aí está o menino de ouro! — Ioannis, um dos meus primos mais brincalhões e um grande amigo de Millos, cumprimenta-me. — Phaedra e eu estávamos apostando se você viria ou não.

Eu aceno para sua namorada de longa data, levantando meu copo de uísque.

— Tive que vir. O doutor Pachalakis me ligou dizendo que pappoús estava nas últimas. — Dou de ombros, e Ioannis ri muito.

— Ele ligou para mim também. Cheguei aqui e fui informado que era refluxo.

Ficamos um tempo rindo e conversando sobre as coisas da empresa, pois ele também trabalha na Karamanlis, porém, na parte de estaleiro, pois é engenheiro naval, e toda a operação desse braço da empresa está a seu cargo.

— Soube que o velho está te cobrando um bisneto. — Assinto. — Por favor, o atenda; não pretendo ter filhos tão cedo!

— Estou providenciando isso.

— Isso é uma boa notícia! Até que enfim ouço falar de Theodoros Geórgios se amarrando a alguém.

Odeio quando falam meu nome todo, e, além do meu avô, ninguém mais o faz, apenas quando quer me encher a paciência.

— Boa noite! — meu pai passa por mim com sua nova esposa, uma senhora muito distinta e elegante, e cumprimenta Ioannis.

— Ainda em clima ruim com tio Nikkós? — Não respondo ao meu primo; não é preciso. — Por que não temos pais que prestem? É uma merda, isso!

É, sim. Não tem um só Karamanlis que não seja problemático.

Meu telefone toca, e o nome Valentina aparece na tela. Olho em volta. A “festa” mais parece um enterro ou uma praça de guerra, todos se medindo, avaliando o oponente.

— Com licença — peço a Ioannis e me afasto para atender o telefone.


— Duda?! — Manola se assusta ao me ver. — O que houve? Ele maltratou você? Eu vou matar aquele...

— Não! Nem estive com Millos. — Dou de ombros. — Eu me sinto dentro de um pesadelo! — Soluço. — Está tudo dando tão errado que eu acho que a qualquer hora vou acordar e perceber que tudo está no seu lugar, que eu continuo a trabalhar no Hill, que minha filha está saudável dentro de casa e que nunca um Karamanlis cruzou meu caminho!

Manola me abraça, e eu vejo o olhar preocupado que dá para o quarto onde está a Tessa, pois ela poderá nos ver pelo vidro caso acorde.

— Sente-se, que eu vou pegar um café para você.

Manola sai correndo da sala, e eu fico tentando ordenar os pensamentos para que não enlouqueça. Tento não pensar em Theo e em qualquer coisa relacionada a nós dois neste momento, pois minha prioridade é Tessa, mas as informações que recebi hoje tornam essa tarefa impossível de ser realizada.

Ele mentiu para mim o tempo todo sobre tudo!

Primeiro, nunca houve uma trégua sobre o Hill, pois ele já estava de posse da promissória, por isso o agiota sumiu. O desgraçado já tinha até iniciado o processo de execução dela e assim me obrigaria a levantar todo o dinheiro e a lhe vender o bar. É inacreditável o quanto ele foi ardiloso e cínico.

Lembro-me muito bem de ele falando que não tinha mais interesse em comparar minha propriedade, que iria tentar impedir que a Karamanlis a comprasse. Mentiras e mais mentiras. Ele tramou pelas minhas costas esse tempo todo enquanto fazia amor comigo... Não! Ele nunca disse nesses termos! Enquanto trepávamos, ele armava uma arapuca para que eu fosse obrigada a abrir mão do Hill.

E Valentina...

Manola volta com dois copos descartáveis cheios de café e se senta ao meu lado.

— Quero saber o que houve depois que você saiu daqui e o que aquele filho de uma puta do Theo fez contigo! — Abro a boca para dizer que não estive com ele, mas ela não permite: — Eu sei que ele não está aqui, mas alguma merda fez para ter te deixado nesse estado.

— Ele mentiu para mim — minha voz soa tão magoada e sentida que suspiro. — Ele mentiu sobre tudo! Estava com a promissória esse tempo todo e...

— A promissória do agiota? — Assinto. — Eu vou capar aquele filho de uma égua!

Arregalo os olhos com sua ameaça dita em voz alta, e ela tampa a boca, olhando para o quarto onde Tessa está e se desculpa por ter falado alto. Seu rosto cheio de indignação está vermelho como seus cabelos, e eu soluço, limpando a face com as costas das mãos.

— Sinto-me mal por estar chorando por ele neste momento. — Manola assente e me abraça. — Mas está doendo, Manola. Doendo muito!

— Chora, minha amiga. — Soluço em seus ombros, deixando sua blusa úmida com minhas lágrimas. — Deixe ir tudo para que, quando você se levantar dessa cadeira, possa estar com suas energias concentradas em Tessa.

— Você tem ideia do quanto é difícil? Eu preciso dele aqui, preciso da confirmação da paternidade para poder testar seus irmãos e... — Meus ombros sacodem com o choro ao pensar em Tessa. — Por mais que eu não queira nem olhar para ele nesse momento, eu preciso dele.

— Eu sei, minha amiga. Isso da promissória foi uma traição gigante...

— E tem Valentina. — Manola franze o cenho. — Theo me contou que estava saindo com essa tal Valentina antes de ficarmos juntos. Não sei, senti que havia algo mais que ele não estava me contando, porque nos encontramos com a amiga dele no clube de jazz a que fomos, e ela fez questão de tocar no nome dessa mulher.

— E tem? — a voz de Manola transmite muito temor ao fazer essa pergunta.

— Noivado. — Ela arregala os olhos, e sinto meu coração doer mais uma vez. — A tal amiga fez questão de vir aqui hoje me visitar em nome dele, pois está muito ocupado com a noiva na Grécia.

Manola se põe de pé, andando de um lado para o outro, tentando se controlar. Seu rosto não está nem vermelho mais, mas quase roxo, tamanha sua raiva. Escuto-a bufar, começar a falar, parar e voltar a bufar.

Ponho as mãos sobre a cabeça, tentando parar de chorar, mas não consigo. Pensei que a vida já tivesse me dado todas as surras possíveis com a perda dos meus pais e irmão, mas, aparentemente, não.

Limpo o rosto e vou até o vidro que separa a cama de Tessa do restante do cômodo e a olho dormindo tranquilamente, pálida, mais magra e indefesa. Sinto um abraço pelas costas, e o perfume de Manola chega às minhas narinas. Choro silenciosamente, meu coração destroçado por tudo que está acontecendo.

Eu queria poder contar com Theo nesse momento, como aconteceu na ilha e no dia em que ele nos levou para sua cobertura. Torço para que ele seja realmente o pai de Tessa, mesmo que isso possa significar perdê-la para ele, mas que seja possível salvar sua vida e restaurar sua saúde.

Ele traiu minha confiança, brincou com meus sentimentos e quebrou meu coração, porém, ainda assim preciso dele.

 

 

— Mãe, o Theo já voltou da viagem? — a voz de Tessa é fraca, mas cheia de esperança.

Respiro fundo, abro um sorriso como se o assunto fosse algo bom e respondo:

— Ainda não consegui falar com ele, mas tenho certeza de que pegará o primeiro voo para te ver.

Seu rosto se ilumina, e ela volta a tomar seu café da manhã, sentada em sua cama com a bandeja sobre seu corpo.

— Tio Millos vai falar com ele, não é?

Tio Millos!

Ouvir isso de minha filha é a concretização de que Theo é realmente seu pai. Eu já não tenho dúvidas disso, mas ainda preciso da confirmação do DNA e torço para que um dos seus irmãos ou o próprio Millos seja compatível com Tessa.

De qualquer forma foi um alívio ele ter vindo atrás de mim.

Eu estava olhando Tessa dormir, com Manola abraçada a mim. Nós duas chorávamos em silêncio não só pela minha menina, mas por tudo o que eu tinha descoberto sobre o Theo.

Uma batida à porta nos fez olhar para trás, e então eu vi Millos. Senti imediatamente a Manola ficar tensa e a segurei pela mão, pedindo-lhe calma com o olhar.

Eu preciso deles!

— Posso entrar? — Millos perguntou, e apenas assenti.

O homem alto e forte, vestindo terno, de óculos escuros e cabelos penteados para trás nada lembrava o tatuado vestido de jeans e camisa de malha que havia estado em minha casa e no bar várias vezes para conversar sobre a proposta de compra.

Nós nos conhecemos há muitos anos, e, mesmo que nunca tenhamos tido afinidade por conta da insistência da compra, aprendi a gostar dele, principalmente de sua simplicidade e simpatia. Millos me pareceu sempre ser sensato e calmo, o Karamanlis perfeito para me ajudar a salvar minha filha.

Ele tirou os óculos, e eu reparei em seus olhos verdes, um pouco mais escuros que os da minha filha. Era impossível não comparar seus traços com os dela, buscando alguma coisa que comprovasse que compartilhavam o mesmo sangue.

— Eu soube da Tessa — falou baixo, sem me olhar. — Cheguei à empresa e me encontrei com Kostas, meu primo, e ele me disse que você tinha ido até lá tentar um contato do Theo. — Suspirei, e ele me olhou

— Seu primo é um babaca! — Manola atacou, e ele riu, concordando.

— Ele é, não nego. — Encarou-me. — O que houve com a menina?

Olhei para Manola, que entendeu que eu gostaria de falar com ele a sós. Beijou meu rosto em despedida, olhou com a cara mais feia que conseguia fazer para o Millos e saiu do quarto.

— Tessa precisa de um transplante de medula — fui direto ao assunto, e ele arregalou os olhos. — Há algum tempo ela vinha apresentando sintomas de que não estava bem, mas só descobrimos há pouco o que tem. — Millos olhou para minha filha, ainda dormindo, dentro da área isolada. — Anemia aplástica grave.

— Não pode ser! — Ele fechou os olhos e encostou a testa no vidro. — Perdemos um tio com essa mesma doença — informou, e foi minha vez de ser tomada de surpresa. — Na época, não havia muito o que fazer. Tentaram o transplante. Era algo bem rudimentar ainda, mas ele teve rejeição e...

— Oh, meu Deus!

Comecei a soluçar, e ele me puxou para seu abraço, segurando-me contra seu peito enquanto eu dava vazão ao meu desespero. Eles tiveram uma morte na família com a mesma doença! Não posso perder minha menina!

Podia ouvir o coração de Millos tão disparado quanto o meu, suas mãos me apertando, trêmulas. Senti a tensão e o nervosismo presentes nele ao mesmo tempo em que tentava me consolar.

— Vai dar tudo certo, Duda — sua voz, mesmo um tanto trêmula, era confiante. — Vamos mover céus e terras, você não a perderá.

— Eu preciso falar com o Theo... — Ele me soltou, e eu o encarei. — Vai parecer loucura, mas há a possibilidade de ele ser o pai da Tessa.

Millos ficou um tempo parado, olhando-me apenas, sem nenhuma expressão no rosto, mas eu podia apostar que sua cabeça estava dando voltas e mais voltas com o que eu tinha acabado de revelar.

— Você já contou a ele? — Neguei, e ele respirou fundo. — O que eu posso fazer por vocês neste momento, Duda?

— Eu tentei localizar o Theo, mas na única vez que tive resposta... — Fechei os olhos, tentando diminuir a dor que todas as palavras que ouvira tinham me causado. — Bem, não era ele ao telefone, e acho que, se ele viu minha ligação, não se importou em retornar.

Millos balançou a cabeça.

— Ele não viu a ligação, tenho certeza, senão retornaria. Theo não é assim, ele...

Tive vontade de gritar para ele que sabia da promissória, que sabia do maldito noivado com a tal Valentina, mas não o fiz. Não vinha ao caso. Millos não mentira para mim e talvez nem soubesse do meu envolvimento com seu primo.

— Não importa. Preciso confirmar a paternidade e testar todos vocês como possíveis doadores. — Ele assentiu, mas eu percebia uma inquietação, como se ele quisesse me dizer algo, questionar. — Você pode me ajudar nisso?

— Claro! Farei o que for possível. — Ele respirou fundo. — Você não tem mesmo certeza de que ele é o pai?

— Não. Foi há muito tempo. Eu nem reconheci o Theo, foi ele quem ligou uma coisa à outra e... — Eu realmente não queria entrar nesse assunto com Millos, por isso resumi: — Sempre tive dúvidas sobre a paternidade de Tessa, porque na época eu tinha um namorado e...

— Entendi — Millos cortou o assunto e voltou a olhar para Tessa. — Eu não tenho dúvidas de que ela é uma Karamanlis. — Meu coração pareceu saltar do peito ao ouvir isso. — Ela é idêntica à minha avó quando menina. — Ele sorriu. — Se eu tivesse uma foto aqui comigo, você também não teria dúvidas.

Meu Deus do Céu, então é realmente verdade! Tessa é filha do Theo, uma Karamanlis! Que destino é esse que nos reuniu novamente?

— Eu preciso salvá-la, Millos! — disse em desespero.

— Nós vamos! — Olhou-me com determinação. — Nós vamos!

Naquele momento Tessa acordou, e eu estava tão emocionalmente abalada que Millos se dispôs a entrar, ficar uns momentos com ela enquanto eu me recompunha. Os dois já se conheciam das vezes em que ele tinha estado no Hill para conversar comigo, e minha filha abriu um enorme sorriso e o cumprimentou quando o viu ao meu lado.

Quando retornei do banheiro, já com Manola e tia Do Carmo – que acabara de chegar do nosso apartamento – junto a mim, encontrei os dois rindo e a mãozinha de Tessa na enorme mão de Millos.

— Ele vai ajudar? — Manola perguntou, e eu assenti.

Olhei para tia Do Carmo.

— Achou alguma coisa naquelas revistas que você assina? — Minha tia olhou para Manola, e eu soube que elas haviam achado. — Quero ver.

— Duda, acho melhor...

Estendi a mão, com o coração partido, querendo tomar o choque de ter a confirmação do que Viviane me dissera mais cedo. Tia Do Carmo colocou a revista em minha mão e me disse o número da página.

Por mais que eu achasse que estava forte para ver a notícia, não esperava encontrar o que vi: Theo e uma mulher loira muito bonita, abraçados, saindo de um hotel em Atenas, e o anúncio do casamento iminente dos dois.

— Parece que é verdade... — Minha tia lamentou.

— Essas revistas são muito sensacionalistas também! — Manola logo emendou. — Não podem ver um casal abraçado que já anunciam casamento.

Devolvi a publicação para minha tia e engoli as lágrimas.

— De qualquer forma, mesmo que não se casem, estão juntos na Grécia. — As duas concordaram. — Não muda o fato de que ele mentiu para mim.

Coloquei a roupa especial, as luvas e todo o material de proteção para não pôr Tessa em risco e entrei, despedindo-me de Millos, que prometeu trazer Theo de volta o mais rápido possível.

Na saída, vi Manola falando algo para ele, que negou, mas ela riu e jogou a revista em cima dele e saiu de perto. Não olhei mais nada; sentia-me magoada com tudo isso, apavorada com a possibilidade de perder minha filha e humilhada por ter me deixado usar e ser descartada por um Karamanlis.

Tessa me chama para dizer que já está satisfeita com seu desjejum, e eu deixo para trás as lembranças do dia de ontem. Ainda não tenho notícias de Millos, nem de Theo, e o tempo está passando. Doutor Felipe diz que o tempo entre as transfusões diminuíram muito e que é necessário começar com o tratamento o mais rápido possível.

— Theo! — Tessa grita, olhando em direção ao vidro com um enorme sorriso de felicidade. Meu coração dispara. Sinto meu corpo inteiro gelar de antecipação e olho para ele.


Nada no mundo poderia me preparar para a emoção desse encontro, penso limpando as lágrimas, vendo Theo e Tessa conversarem dentro do quarto. A alegria de minha filha, seu ânimo ao vê-lo, a urgência e preocupação que ele demonstrou, tudo foi muito mais do que eu poderia ter sonhado.

No momento em que o vi, deixei de pensar em todo o mal que causou ao meu coração, deixei de lado como ele me traiu com a promissória e como mentiu para mim sobre Valentina. Naquele momento, só pensei que ele poderia salvar a vida da minha filha.

Não, não esqueci. Seria impossível o fazer com a ferida aberta e sangrando, mas deixei essa dor de lado, num canto, para poder reacender a esperança de curar minha menina. Eu sei que doutor Felipe disse que raramente pais são compatíveis, mas não posso deixar de pedir por essa raridade, não posso deixar de crer, mesmo contra a esperança, mesmo que tudo diga não. Não posso deixar minha fé fenecer.

Durante os dias em que estive aqui neste hospital, pensei muito na coincidência que foi esse reencontro e o motivo de o destino ter feito as coisas desse jeito. Depois do diagnóstico de Tessa, entendi que eu e Theo só nos reunimos de novo porque temos que salvar nossa filha. Esse é o propósito. Não sei como irá acontecer, mas não vamos perdê-la.

Daqui de onde estou, posso ver os olhos dele se repuxarem nos cantos, sorrindo para minha menina, bem como o brilho de seu olhar raso de lágrimas. Ele não esconde a emoção que sente, e eu nunca o vi tão aberto desse jeito. Tessa toca sua mão, e as lágrimas represadas por ele caem, molhando a máscara que recobre seu nariz e boca.

Nossos olhos se encontram, e a mesma fé que tenho dentro de mim, enxergo nele. Nós vamos salvá-la!

— Bom dia! — a voz do doutor Felipe corta o encantamento do momento. — Nós vamos ter que suspender o horário de visitas por enquanto. Vamos fazer alguns procedimentos com a Tessa.

Eu assinto, e ele bate no vidro, chamando Theo para fora da sala.

— Algum problema? — sua voz é temerosa, e ele se desfaz do avental, touca e máscara, porém, continua com as luvas.

— Theo, esse é o doutor Felipe Magalhães, o médico responsável pelo caso da Tessa. — Theodoros não estende a mão para cumprimentá-lo, apenas o encara. — Doutor, esse é Theodoros Karamanlis...

— O pai da Tessa — ele completa, e o médico me olha confuso.

Quando saiu o diagnóstico, a primeira coisa que o médico perguntou foi do histórico familiar, se ela tinha irmãos, avós, tios ou primos, e, quando ele viu que Tessa não possuía o nome do pai na certidão de nascimento, questionou-me se eu tinha condições de apontar quem ele era. Naquele momento eu disse que ainda tinha dúvidas, mas que poderia contatar os possíveis pais para realizar o exame de paternidade.

— Precisamos fazer um DNA para... — tento explicar, mas Theo me interrompe:

— Mera formalidade. Não tenho dúvida alguma de que ela é minha. — Ele se aproxima do doutor Felipe. — Eu gostaria de trazer uma junta médica para avaliar todos os procedimentos e tentarmos achar os melhores tratamentos e...

— Senhor Karamanlis, eu entendo o desespero, mas o senhor encontra-se em um hospital de referência, com todos os aparatos e equipe necessários para o tratamento, qual seja ele.

Theo respira fundo, assente, mas não parece muito convencido.

— Eu gostaria de realizar o teste de compatibilidade o mais rápido possível.

— Como expliquei a Maria Eduarda, pais raramente são compatíveis, mas claro, podemos realizar os testes necessários. — Ele chama um membro de sua equipe. — Poderiam levar os pais de Tessa até a doutora Amália?

— Claro. — A moça, uma enfermeira muito simpática que vem sempre atender Tessa, dá-nos um sorriso. — Queiram me acompanhar por favor.

— Tessa ficará sozinha? — Theo questiona, mas em seguida tia Do Carmo entra no quarto e para em seco ao vê-lo, colocando sua mão sobre a boca e fechando os olhos. Tenho certeza de que ela está agradecendo por ele estar aqui, mesmo que, assim como eu, esteja muito magoada com ele.

Vou até ela para lhe explicar que irei com Theo até a doutora Amália a fim de realizarmos os exames – de compatibilidade e de paternidade –, e ela me abraça.

— Graças a Deus! — Suspira aliviada. — Como você está, minha filha?

— Estou bem, tia. — Sorrio. — Tessa é quem importa agora. As outras coisas, resolvemos depois.

Ela assente, e me despeço, seguindo a enfermeira e Theo até o laboratório.

— Por que você me escondeu que ela podia ser minha filha? — Theo dispara a pergunta e me pega de surpresa.

Respiro fundo.

— Eu não reconheci você, Theo. — Ele me encara. — De verdade, eu não fazia ideia!

— Mas, quando eu disse, você negou!

Assinto e tento controlar as lágrimas. Nunca pensei que iríamos ter essa conversa tão cedo e muito menos no corredor de um hospital.

— Eu tive medo — confesso. — Havia a possibilidade de Tessa ser sua filha, e eu fiquei com medo de você tentar tirá-la de mim.

Ele para no meio do corredor.

— Por que eu faria isso? Por que tiraria minha filha de sua mãe? — Aproxima-se. — Nós estávamos juntos. Você poderia ter confiado em mim e...

Rio, amarga.

— Confiado em você? — Limpo uma lágrima de meu rosto, com raiva. — Assim como fiz na questão do Hill? — Ele fica lívido, e eu percebo que sabe do que estou falando. — Sim, eu sei da promissória que a Karamanlis tem desde o ano passado e que, em nenhum momento, você citou durante o tempo em que “estávamos juntos”.

Um pigarrear chama nossa atenção, e a enfermeira nos olha sem jeito.

— Vocês ainda vêm?

Assinto e caminho rapidamente ao seu lado sem nem mesmo olhar para Theo, embora sentindo sua presença atrás de mim. É risível ele me falar de confiança, quando o tempo todo esteve omitindo de mim uma informação importante, e o pior, dizer que estávamos juntos, quando, na verdade, ele estava fazendo planos de casamento com outra!

Chegamos à sala de coleta de material para exames, e o instalam em uma confortável poltrona antes de começarem a fazer uma pesquisa de sua vida. Perguntam-lhe sobre saúde, histórico familiar, vícios, remédios e etc. O patologista colhe duas amostras de sangue e recomenda a ele que fique um tempo sentado.

— Eu ia te contar da promissória — ele volta ao assunto. — Ia contar naquela noite em que vi as fotos no quarto de Tessa.

— Ah, muito conveniente! Você teve quase um mês para me contar, Theo. Não o fez porque não quis.

— Eu pedi o cancelamento da ação de execução, Duda. Não queria mais que a Karamanlis comprasse sua propriedade. Eu disse a você.

— Assim como disse que saiu com Valentina antes de me conhecer. — Theo arregala os olhos e se levanta parcialmente da poltrona. — Você esteve o tempo todo comigo, mesmo fazendo planos de se casar e ter filhos com ela!

Ele fica pálido, e eu vejo a verdade em seus olhos. Sinto como se uma faca quente fosse enfiada em minha carne, cortando e queimando ao mesmo tempo, causando uma dor terrível. Eu sei que vi a confirmação na revista, mas saber que ele esteve o tempo todo com as duas é difícil demais.

Theo se levanta e tenta me tocar.

— Eu não tinha ideia de que ia me...

— Você ficou noivo, pelo amor de Deus! — Repudio seu toque.

— Do que você está falando?

Rio, não acreditando que ele ache mesmo que eu vou cair nesse jogo.

— Eu vi, Theo, o Brasil inteiro viu! — Dou de ombros. — Vou voltar para perto da minha filha. É isso o que importa no momento. O resto não tem mais sentido.

Saio da sala no exato momento em que a doutora Amália chega para conversar com Theo sobre o cadastro no banco de medula óssea.

Não impeço as lágrimas de caírem. Não me importo de receber olhares preocupados e cheios de pena das pessoas que cruzam comigo pelo corredor. Quero deixar ir. Foi bom conversar com ele, expor tudo o que eu sabia, deixar as coisas em pratos limpos para que pudéssemos nos concentrar apenas em Tessa.

Chego à sala, e o procedimento em minha menina ainda está sendo feito. Manola está com tia Do Carmo e corre até mim quando vê meu estado.

— Ah, meu Deus, o que aquele vadio aprontou agora?

— Nada, só conversamos um pouco. — Toco minha cabeça. — Estou com dor, cansada...

— Vá para o apartamento, tome um banho direito, descanse. Eu fico aqui com a tia, e a gente te informa de qualquer novidade.

— Não quero deixar a Tessa.

— Duda, só por umas horinhas. O doutor a está examinando, vai começar uma nova transfusão, e isso demora horas, então pode ir sem medo.

Olho para dentro do quarto e vejo Tessa sorrir para uma das médicas, que tem pintada no rosto uma enorme borboleta. Concordo em ir, afinal, mal tive tempo para comer e dormir nesses dias. Apenas cochilo, tomo banhos rápidos e engulo qualquer porcaria.

— Tente não criar caso com ele. — Manola faz careta para o meu pedido. — Eu também gostaria muito de lhe dar uns bons tapas, mas...

— Eu sei, vou me comportar, pelo menos até Tessa se restabelecer.

Rio dela e a abraço.

— Obrigada por tudo, minha amiga.

— Não precisa agradecer, somos uma família.

Sim, ela tem razão. Há muito tempo percebi que o que faz com que pessoas se sintam em família nada tem a ver com laços de sangue, mas sim com o amor e confiança que as unem.


Tessa é minha filha!

Não preciso de exame algum para comprovar o que, a todo tempo, algo dentro de mim insistiu para que me desse conta desse fato. As lembranças de Kyra a cada sorriso dela, a sensação de já tê-la visto. Como pude não notar? Minha filha é a imagem de giagiá Dorothea quando criança. Os cabelos, os olhos, o sorriso, em tudo ela lembra a matriarca dos Karamanlis.

Penso nas fotos espalhadas pelos porta-retratos no quarto de minha avó. Ela se orgulhava muito de ter sido tão linda na infância e juventude. Suas fotos de criança traziam muitas memórias importantes para ela, pois eram os únicos registros de seus dois irmãos mais velhos, mortos durante a Batalha da Grécia, quando a Alemanha nazista e a Itália fascista tentaram invadir o país em 1941.

Foi tudo tão estranho e ao mesmo tempo se encaixou tão perfeitamente que eu ainda estou surpreso, mas não em choque.

Os acontecimentos na Grécia foram decisivos para que eu entendesse que, independentemente do que aconteceu no passado, eu me apaixonei pela Duda, não por causa da transa há mais de oito anos, mas sim pela mulher que conheci nesses últimos meses.

Estava disposto a entender o motivo pelo qual ela escondera de mim quem era, que já nos havíamos conhecido e a fazer me admitir a verdade. Não importava o passado, eu aprendera a amar a mulher que ela se mostrara para mim. Eu só não esperava que as mentiras – ou omissões – fossem tão sérias a ponto de ela esconder de mim que eu tinha uma filha.

Cheguei ao Brasil antes do dia previsto. Abri mão de participar da festa de pappoús depois da discussão que tivemos sobre a “futura senhora Theodoros Karamanlis”.

Depois dessa pequena, mas tão importante discussão, arrumei minhas malas, consegui um voo comercial para o Brasil e decidi que iria me dar a chance de ser feliz ao lado de quem eu amava. Só precisava esclarecer as coisas. Eu mesmo tinha muito a contar para ela!

Cheguei a São Paulo e encontrei Dionísio já à minha espera, pois havia mandado mensagem avisando do meu retorno assim que o avião começara a taxiar na pista, já imaginando que demoraria para o desembarque e para eu recuperar minhas malas. Eu não costumava usar voos comerciais, mas acertei na demora.

— Bom dia, doutor! Fez boa viagem? — ele me cumprimentou assim que abriu a porta para que eu entrasse no carro.

— Fiz, sim, Dio. — Não perdi tempo e disse logo meu destino. — Vamos para a casa da Maria Eduarda Hill.

Ele ficou com a porta aberta, parado, olhando-me como se tivesse ocorrido algo. Senti meu corpo inteiro gelar.

— Chefe... a senhorita Hill se mudou.

— O quê?! Como assim se mudou?! — não escondi meu tom de desespero.

— Pelo que a Nola me contou... — fiz careta, pois não sabia quem era “Nola” — ela vendeu o Hill e ia recomeçar a vida em outro lugar.

Foi como se todo o sangue do meu corpo tivesse sido drenado. Fiquei branco feito papel, frio, paralisado. O que acontecera durante os 15 dias em que eu estivera fora?! Não pensei duas vezes e liguei para o Millos.

Meu primo atendeu ao segundo toque:

— Porra, Theo, estou tentando...

— O que você fez, seu imbecil?! — interrompi-o aos berros. — Quem autorizou a Karamanlis a comprar o Hill na minha ausência?!

— Não fomos nós! — ele gritou de volta. — Ela precisou vender com urgência, Theo, e a rede Dominus comprou!

Dionísio entrou no carro e me olhou pelo retrovisor, esperando que eu lhe dissesse para onde iríamos. Não consegui racionar. Minha cabeça dava voltas, só pensava que Duda fugira de mim, que eu a apavorara quando tinha descoberto sobre ela ser a garota da boate, mas por quê?

— Preciso encontrá-la, Millos! — disse em desespero. — Preciso conversar com ela, entender, eu... — Comecei a chorar dentro do carro, sem me importar se Dio estivesse ali ou não. — Eu amo aquela mulher, Millos, não posso perdê-la.

— Theo, ela está no hospital com Tessa — Millos informou em tom grave. — A menina está gravemente doente, Theo, necessita de transplante.

Eu mal conseguia respirar naquele momento. Senti o corpo inteiro arrepiar, o coração parecia ter parado, e o rostinho alegre de Tessa apareceu nitidamente para mim.

— Em qual hospital, Millos?

— Eu sei onde, chefe — Dionísio se intrometeu na conversa e ligou o carro.

— Tem mais, Theo — Millos continuou. — Duda descobriu sobre a promissória e...

— Eu vim disposto a resolver tudo isso com ela, Millos, mas imagino como ela está apavorada por causa da filha. Não sei se...

— Theo, a menina pode ser sua.

Não entendi no primeiro momento o que ele quis dizer, pois, como expliquei várias e várias vezes a vocês, não via conexão entre a minha Duda e a garota dos cabelos rosa, mesmo com todas as evidências de que eram a mesma pessoa.

— Duda me contou sobre vocês terem se conhecido anos atrás e...

Puta que pariu!

Essa era a peça que não se encaixava na história toda, o motivo pelo qual ela ficara tão apavorada quando eu descobrira a verdade, o motivo pelo qual continuara a negar. Tessa poderia ser minha filha, mas como? Eu tinha usado camisinha e, quando a tirara... Não me lembrava de quando a tirara. Não olhara para ela, estava bêbado demais, tinha acabado de fazer um sexo muito louco e de gozar, não olhara a porra da camisinha!

Minha cabeça foi dando voltas até eu chegar ao hospital. A emoção se misturava à revolta por Duda ter escondido isso de mim durante todo esse tempo. Eu já não albergava dúvidas com relação à paternidade. Era claro como o dia que Tessa era minha, eu sentira isso a cada momento em que estivéramos juntos.

Entrei no hospital feito um louco. Demorei a descobrir onde ela estava internada e soube que só poderia ir até o quarto contíguo, pois Tessa estava em isolamento por conta de sua baixíssima imunidade.

Bati à porta do quarto, mas ninguém atendeu, então entrei e vi Tessa no leito do hospital, terminando de comer. Duda estava de costas para mim e recolhia a bandeja com o café da manhã da menina. Então Tessa me viu, e pude ouvir em minha mente, mesmo o som não passando pelo vidro que separava uma área da outra, o meu nome e vi a felicidade em seu rosto.

Minha menina!

Correspondi ao seu sorriso e a cumprimentei, sentindo meu peito explodindo de emoção, até Maria Eduarda se virar e nossos olhos se encontrarem. Fiquei sério, senti a revolta de só ter descoberto que era pai porque minha filha estava em um hospital. Duda me contaria a verdade se Tessa não estivesse doente? Pelo desespero dela naquela noite em que eu vira as fotos, acreditei que não.

Duda disse algo a Tessa e saiu para falar comigo, dispensando a roupa descartável que usava, colocando-a num cesto de lixo.

— Você veio.

Pude sentir a emoção em sua voz, em seus olhos brilhando com lágrimas. Tive vontade de abraçá-la, imaginando tudo o que tinha passado naqueles dias, mas não me aproximei. Tínhamos muito a conversar.

— Como ela está? — perguntei sem rodeios.

— Fazendo transfusões, mas muito fraca. Ela precisa de um doador e...

— Quero falar com ela — interrompi-a. — Por favor.

Duda assentiu, ajudou-me a colocar toda a proteção para que eu não prejudicasse o estado de Tessa e entrei com sérias recomendações de evitar tocá-la ao máximo, mesmo querendo segurá-la contra mim e nunca mais soltá-la.

— Que bom que você voltou, Theo! — Tessa falou cheia de emoção. — Mamãe disse que você viria assim que soubesse. Eu já estava com saudades!

— Meu coração soube, Tessa. — Sorri por detrás da máscara. — Eu sabia que tinha que voltar e agora nunca mais vou ficar longe de você, eu prometo.

Seu rosto se iluminou, as covinhas reaparecem e os olhos brilharam. Senti meus cílios cada vez mais úmidos. A emoção causou um nó em minha garganta tão grande que me impediu de engolir e de respirar direito. Queria muito abraçá-la, mas sabia que não era bom para ela, por isso me contive.

Olhei para fora do quarto e vi Duda contra o vidro que separa os cômodos, rosto inchado de chorar, mas um enorme sorriso. O nó em minha garganta só aumentou, meus olhos queimaram segurando as lágrimas e meu corpo inteiro tremeu com a emoção misturada ao medo.

— Theo... — Tessa me chamou e tocou minha mão por cima da luva. — Não precisa ter medo, eu vou ficar bem!

As lágrimas rolaram nesse exato momento, mas tentei sorrir. Olhei novamente para Duda e a vi secar o rosto, mas ainda soluçando.

Minutos depois tivemos a conversa mais reveladora e misteriosa que eu já tive em minha vida. Ainda estou magoado por ela ter me escondido sobre Tessa, mas acredito no que disse sobre não saber até o momento em que vi as fotos. Acredito nela!

Ainda me sinto zonzo, talvez por causa dos exames e da enxurrada de perguntas para o cadastro no banco de medula. Fiquei muito feliz em poder contribuir com isso, em perceber o quanto é simples e como pode fazer diferença caso eu seja compatível com alguém.

Nunca pensei sobre doação de órgãos – ou mesmo de sangue ou medula –, e esse momento com minha filha me despertou essa consciência, que já deveria ser de todos nós. Podemos, sim, ajudar a salvar vidas!

Sorrio ao pensar em como me referi a Tessa: minha filha.

Eu tenho uma filha!

 

 

Vanda toma um susto ao me ver sentado à mesa da cozinha, xícara de café vazia, bem como meia garrafa de uísque. Sorrio sem jeito para ela, todo amarrotado e entendo sua surpresa, afinal, não tinha previsão de eu estar tão cedo no Brasil, quiçá desse jeito em que me encontro.

O dia ontem foi muito mais emocionante do que eu poderia ter sonhado. Voltei disposto a ter Maria Eduarda em minha vida para sempre, formar uma família com ela e Tessa e acabei descobrindo que a menina é minha filha. Sim, o resultado de DNA saiu no começo da noite e só comprovou aquilo que meus olhos e meu coração já sabiam: Tessa é minha!

Porém, junto à euforia de uma notícia tão boa, veio também a decepção por eu não ser compatível para a doação. No momento, o mais importante é conseguir um doador para que ela volte a ser a menina cheia de vida, aquela minimetralhadora de palavras que conquistou meu coração.

Queria muito dividir a notícia com Maria Eduarda, mas não a vi o resto do dia, nem mesmo quando voltei ao quarto para me despedir de Tessa e soube que minha filha estava dormindo enquanto recebia mais concentrado de hemácias e plaquetas e que Duda havia ido ao apartamento que alugara, a fim de descansar.

Dona Maria do Carmo me informou tudo isso friamente, sem o sorriso acolhedor que sempre me dera, então me despedi, garantindo minha volta no dia seguinte e saí do hospital com a intenção de ir para casa. Não fui.

Fiquei um bom tempo parado na frente do Hill, agora com assinatura da rede Dominus embaixo do nome do pub, olhando para as janelas do apartamento no qual dormi com Maria Eduarda pela primeira vez – ou segunda –, lembrando-me do seu cheiro, do sabor de sua pele, do som dos seus gemidos enquanto gozava.

Sinto falta dela. Queria poder estar comemorando com ela a descoberta de que temos uma filha juntos, mas tenho consciência de que ela nunca teria me contado caso Tessa não precisasse de um transplante urgente.

Deixei um recado para Hal Navega, um amigo que é advogado, adiantando o assunto de Tessa e já perguntando o que era preciso para fazer o reconhecimento de paternidade o mais rápido possível. Imagino que ele irá tomar um susto ao ler a mensagem, mas quero que minha filha tenha meu nome e que saiba quem eu sou o mais rápido possível.

Cheguei à cobertura já de madrugada, morto de fome por ter passado o dia todo dentro do hospital sem comer sequer uma refeição, preparei uns sanduíches, café, e, ainda sem conseguir dormir, tomei umas doses de uísque para tentar clarear as ideias. Duda me disse algumas coisas bem intrigantes, principalmente sobre Valentina, e isso vem martelando em minha cabeça desde então.

— Sou eu mesmo, não um fantasma — tento brincar com Vanda, mas ela ainda tem os olhos arregalados.

— Pois parece, viu? — Aponta para minha roupa. — Mais café?

Ela vai até a máquina, mas nego, levantando-me.

— Vou tomar um banho para ir até o hospital e...

— Quem está no hospital? — ela pergunta preocupada.

Respiro fundo, desejando que isso não fosse verdade.

— Tessa. — Ela põe a mão sobre o peito. — Você tinha razão, o que ela tem é sério.

Vanda para de fazer o café e me encara assustada.

— Como está Maria Eduarda? A menina vai ficar bem? O que ela tem?

Calmamente lhe explico o que aconteceu e termino dizendo que, por causa disso tudo, acabei descobrindo que Tessa é minha filha, que conheci Duda há anos, durante uma viagem para a Grécia enquanto ela ainda estudava na França.

— E vocês não se lembraram disso? — questiona sem acreditar na coincidência. — Nem mesmo tiveram a sensação de que já se conheciam?

— Só posso responder por mim, e não, nunca a associei àquela moça da boate, nunca!

Vanda enruga a testa como sempre faz quando está pensando.

— Um não lembrar, tudo bem, mas os dois? Ainda mais que desse encontro nasceu a menina!

Não digo a ela que Duda não sabia quem era o pai da criança, que ela tinha um namorado na época e que, pelo visto, ele não quis assumir a responsabilidade sem ter certeza de que era realmente o pai. Mais uma coisa que eu não consigo ver a Maria Eduarda que conheço hoje fazendo: trair. Porém, ela era jovem, estava em uma fase de euforia, curtindo um sonho e pode ter se permitido viver aquela experiência comigo.

Dou de ombros e sigo para meu quarto, tomo banho, visto uma roupa limpa e, ainda sem nenhuma vontade de dormir, decido voltar ao hospital para acompanhar minha filha.

Meu celular toca, e eu atendo Millos.

— Bom dia!

— Bom dia, Theo. Notícias da Tessa? — Ele parece preocupado, e eu sei que deve estar.

— Ontem, quando saí de lá, ela estava recebendo mais uma transfusão. — Suspiro e me sento na beirada da cama. — Meu teste deu incompatível.

— O meu também, soube hoje. — Xingo baixinho. — O pessoal do laboratório que você mandou ontem já colheu amostras de Kostas e Alex.

Isso me surpreende.

— Eles aceitaram doar caso sejam compatíveis?

Millos ri, dizendo:

— Alex aceitou assim que eu contei a situação. Kostas, você já conhece... — Bufo de raiva. — Ele faz essa cena de insensível, mas no fundo é só um imbecil tentando chamar a atenção.

— Espero que não banque o imbecil se for compatível.

— Não vai, vou garantir isso. Não se preocupe.

— E Kyra? — minha voz sai baixa ao perguntar por ela. Não sei se toda a mágoa que ela sente de mim permitirá que ela nos ajude nesse momento.

Millos suspira, e eu fecho os olhos.

— Deixei recado; não me respondeu.

— Está certo. Ela tem os motivos dela, e eu compreendo isso.

Eu a feri muito com o que fiz no passado, prejudiquei seu futuro, mexi com seu psicológico. Não tenho ideia do que ela passou depois de tudo aquilo, mas sei que, assim como em meus outros irmãos, deixou feridas profundas nela.

— E a Duda? Conseguiram conversar? — Millos muda de assunto.

Essa é outra questão difícil.

— Pouco. Eu estava de cabeça quente com essa história de ela ter escondido a menina de mim, e ela, magoada por ter descoberto sobre a promissória. Quem contou?

Millos demora um tempo a responder.

— Kostas. — Rio, imaginando o motivo pelo qual perguntei. — Duda esteve na empresa, e por algum motivo ele falou da promissória.

— O único motivo que ele tem: me ferrar! — Lembro da fúria de Maria Eduarda e do assunto estranho sobre Valentina. — Como ela soube de Valentina? Que eu saiba, Kostas não tinha essa informação.

— Era sobre isso que eu queria falar com você — Millos soa frustrado. — Vai mesmo fazer isso? Depois de ter dito que ama Maria Eduarda, vai mesmo se casar com Valentina só para agradar ao pappoús?


Não entendo a pergunta de Millos. Como ele acha que eu seria capaz de me casar com alguém que não a mulher que amo?

— Não, claro que não! — respondo indignado. — Inclusive disse ao vovô minha decisão de não me casar apenas para agradá-lo.

A conversa, que acabou por antecipar minha volta ao país, volta à minha memória, e eu acabo por revisitar cada momento dela, a sensação de libertação e, ao mesmo tempo, de dor.

— Já se entendeu com a futura senhora Karamanlis? — ele me questionou há dois dias. — Estou querendo saber se poderei anunciar seu casamento em minha festa. — Ele sorriu. — Você poderia ter trazido a moça para passar pelo meu crivo e...

Não pude aguentar mais e o interrompi, mesmo sabendo que ele odiava que eu fizesse isso.

— Não vou me casar para lhe agradar e dar a você um bisneto.

— Theo, você prometeu... — Ele tossiu. — Eu estou esperando que meu primeiro bisneto venha de você.

— Eu sei, mas o senhor não tem só a mim como neto. — Dei de ombros e vi a indignação em seus olhos. — Vou ser pai quando tiver que ser pai. Não vou me casar só por isso.

— Você já tem 41 anos, pelo amor de Deus, garoto!

Ri dele e de sua pressa para que eu procriasse. Os tempos mudaram, era o que eu gostaria de dizer a ele somente para provocá-lo, mas decidi ser sincero.

— Eu conheci uma mulher. — Ele ficou sério. — Nós nos envolvemos. Eu pensei que era só uma questão de sexo, mas não.

— Theodoros...

— Eu estou apaixonado por ela e, se tiver que me casar e ter filhos com alguém, será com Maria Eduarda, caso o senhor goste ou não.

Cruzei os braços, esperando uma reação tempestuosa, exigências para saber todo o “currículo” dela e recriminações por ela não ter “pedigree” segundo seus padrões.

— Você não aprendeu nada com o que houve anos atrás, Theodoros? — sua voz fria e debochada foi uma surpresa. Ele iria jogar pesado comigo. — Não percebeu que a paixão só te fodeu, acabou com o pouco que você tinha de família e ainda o humilhou a ponto de você cheirar a peixe?

Meu avô me conhecia muito bem, sabia exatamente onde me cutucar para ferir e sangrar, só que eu já não era mais um “garoto”, sabia muito bem a diferença do que acontecera no passado e do que sentia naquele momento. O que eu sentia por Maria Eduarda não era a paixão desenfreada de um adolescente carente, era amor de um homem experiente que já aprendera com seus erros.

— Não estou pedindo sua aprovação, pappoús. Só lhe informando que espero, sim, cumprir a promessa de me casar e ter filhos, mas nos meus termos, e o principal deles é a mulher ser Maria Eduarda.

Pus-me de pé a fim de encerrar o assunto, mas não seria tão fácil.

— Só espero que ela não seja mais uma p...

— Cuidado, vovô! — interrompi-o novamente. — Não a ofenda. — Ri. — Ela não vem de família rica, nem tradicional, eu não posso tirar qualquer proveito de suas conexões, mas é a mulher que eu amo, e é só o que importa.

Surpreendentemente isso foi o necessário para calar qualquer argumento do todo-poderoso Geórgios Karamanlis.

— Então como você explica o anúncio do noivado do CEO da Karamanlis do Brasil ter saído em uma revista da alta sociedade? — Millos interrompe minhas lembranças e me deixa branco.

— O quê? — Levanto-me, sem entender o que está acontecendo. — Como assim anúncio de noivado? Com Valentina?

Millos ri, percebendo que não sei de nada.

— Isso só pode ser coisa daquele velho manipulador! — exclama, mas para de rir de repente. — Viviane...

— O que tem Viviane, Millos? — Paro de andar de um lado para o outro, sentindo já o gosto amargo da decepção.

— Quando fui atrás da Maria Eduarda no hospital, juro ter visto Viviane entrando em um táxi. Não me liguei muito nisso, estava preocupado com a Tessa, mas... — Ele respira fundo. — Por que Viviane estaria lá?

Ponho a mão na cabeça, lembrando-me da insistência de minha “sócia” com relação à amiga. Sim, pode ter sido tudo uma armação!

Eu estava no jantar na mansão do pappoús em Atenas quando recebi o telefonema de Valentina. Surpreendentemente, ela estava na Grécia também e queria me ver. Encontrei-a no dia seguinte à ligação no saguão do hotel onde estava hospedada. Ela parecia muito feliz, abraçou-me carinhosamente e até tentou me beijar, o que eu impedi a tempo.

— O que você está fazendo aqui, Valentina? — inquiri diretamente.

— Pensei em relaxar uns dias em Santorini e soube que você estaria aqui para uma comemoração familiar, então liguei. Fiz mal?

Respirei fundo.

— Não, claro que não! Quando vai para Santorini?

Ela titubeou, respirou fundo e então sorriu sem jeito.

— Pensei em mudar a rota se você me convidasse para ficarmos juntos. — Ela se grudou em mim. — Não tivemos essa oportunidade no Brasil, aqui poderia ser...

— Não, me desculpe. — Afastei-a. — Eu já devia ter dito isso de forma direta, como gosto de ser com tudo, mas não vai acontecer nada entre nós. Eu sinto muito se dei a entender que...

— Mas Viviane me disse que você precisava de uma esposa e...

Eu ri, na verdade gargalhei, ao ouvir isso. Tudo bem, imaginei que Viviane estaria conduzindo a situação, mas não dessa maneira, não que ela praticamente oferecesse minha mão a alguém.

— Sim, eu precisava, mas não desse jeito. Sinto muito se isso levou você a crer que iríamos nos casar. — Franzi o cenho, curioso ao ver sua expressão de decepção. — Por que uma mulher como você aceitaria uma proposta dessa? Você é jovem, linda, inteligente, rica... não tem por que se submeter a isso!

Naquele momento percebi que alguma coisa estava acontecendo pelas minhas costas. Valentina ficou vermelha, afastou-se de mim como se tivesse asco, mas ao mesmo tempo parecia aliviada e sorriu. Não entendi absolutamente nada e fiquei pasmo quando ela me encarou antes de voltar ao seu quarto no hotel e disse:

— Por amor! — Sorriu triste. — A gente faz qualquer coisa por amor.

Fiquei parado, olhando-a se afastar, tendo certeza de que havia perdido algum detalhe muito importante daquela história, talvez por eu não ter me interessado tanto por ela, por estar enlouquecido pela Duda ou somente por ser burro demais para perceber algo além do óbvio.

De qualquer maneira, o assunto Valentina estava encerrado, ou eu pensei que estivesse, até descobrir, agora, que a história de um noivado que nunca existiu está circulando por aí.

— Viviane... — rosno baixo, sentindo a raiva tomar conta de mim.

Não entendo o motivo, mas sei que há algo por trás disso tudo, do interesse dela em que eu fique com Valentina. Não pode ser dinheiro. Viviane não precisa de mim para nada na empresa, sabe muito bem que, se quiser, pode ficar com tudo, pois não apareço na sociedade por conta do impedimento no estatuto da Karamanlis.

É por isso que sempre confiei nela para tudo! Sempre foi honesta, nunca tive motivo algum para desconfiar dela, pelo contrário! Então qual é a jogada?

— Millos, preciso ir — aviso pouco antes de desligar sem ao menos ouvir seus protestos.

Essa foi uma situação muito séria, não foi uma brincadeira ou qualquer coisa do tipo. Viviane jogou com minha vida e a de Valentina, e eu não entendo o porquê.

Desço para a garagem do prédio fazendo pesquisa para ver se encontro algo sobre o falso noivado e, quando encontro – no site da própria revista de fofocas –, sinto meu sangue ferver ao reconhecer a foto e o local onde foi tirada. Valentina foi parte nisso tudo também, foi até Atenas apenas para armar isso tudo com a amiga. Por quê?

Dirijo feito um doido até o apartamento de Vivi na Vila Mariana. Estaciono o carro de qualquer jeito e aceno para o porteiro, que já me conhece de longa data, e ele autoriza minha entrada no prédio.

Toco a campainha, e Viviane abre a porta, vestida apenas com um roupão de seda, totalmente surpresa com minha presença.

— Theo! — Sorri sem jeito. — Você já voltou? Que surpre...

— Que merda é essa, Vivi? — Mostro a foto na tela do meu celular e entro no apartamento. — O que vocês pretendiam afinal? Que armação mais esdrúxula é essa?

Viviane fica branca, parada no meio da sala.

— Eu não sei do que...

— Não, por favor! Não negue. — Aproximo-me dela. — Você foi atrás da Duda no hospital, Millus te viu saindo de lá. Por quê?

— Eu.. eu... — ela gagueja — queria saber da menina.

— Como você soube que Duda tem uma filha e que Tessa estava internada lá? — Bufo quando ela começa a chorar. — Porra, Viviane, abre o jogo de vez!

Ela soluça.

— Eu só não quero perder você! — sua voz desesperada me assusta. — Não posso perder você, Theo!

— Do que você está falando? — Meu corpo inteiro treme, e não reconheço a mulher desesperada à minha frente. Viviane nunca foi assim, nunca!

— Você nunca percebeu que eu amo você? — indaga baixinho, como se fosse um segredo muito bem guardado que ela tinha medo de revelar. — Como você nunca percebeu que eu amo você?

— Nós nunca falamos sobre isso. — Sinto-me um tanto perdido com essa revelação. — Nossa relação nunca foi sobre sentimentos, Viviane, e eu sempre achei que você sabia e gostava disso.

Ela dá de ombros.

— Eu me apaixonei, mas sabia que não podia mudar as regras do seu jogo, então decidi ser sua amiga. Eu estava satisfeita com isso, com nossa amizade. Me divertia te acompanhar, ser seu braço direito, ter sua confiança, porque sei que você não confia muito nas mulheres. — Ela funga e limpa o nariz. — Mas então seu avô decidiu que queria que você tivesse um filho. Eu pensei em me disponibilizar para fazer isso com você, mas veio essa história de ser uma mulher “de berço”.

Balanço a cabeça, pensando na loucura do que estou ouvindo. Nunca a enganei, nunca sequer lhe dei esperanças ou a iludi com relação ao que tínhamos quando estávamos trepando. Era só sexo, só diversão, e nos divertimos muito! Viviane sempre guardou muito bem esse “amor” que sente por mim, pois nunca percebi, pelo contrário, achava que ela era uma versão feminina minha, pois erámos muito parecidos.

— Por que Valentina? O que você pretendia, afinal?

Viviane sorri.

— Conheci Valentina em uma festa e, já no primeiro contato, soube que a menina de ouro dos “de Sá e Campos” escondia algo da família, e isso a envergonhava muito. — Vivi anda até o aparador de bebidas e se serve de uma dose de uísque. — Ser lésbica era algo que eu sabia que a afastaria da família tão tradicional que esperava que ela seguisse os caminhos do pai ou do avô.

Arregalo os olhos com a revelação, e Viviane ri.

— Homens nunca percebem essas coisas! — debocha. — Precisei de 10 minutos conversando com ela para saber que não curtia os homens que estavam nos convidando para beber com eles. Convidei-a para ir a outro lugar, trepei com ela e pronto.

— Você a usou para continuar próxima a mim? — a ideia é tão revoltante que mal consigo preferir a pergunta, tamanho asco.

— Ela é tudo o que você queria! Tem berço, é jovem, bonita, gosta de artes e é apaixonada por mim. — Bebe um longo gole antes de continuar: — Te daria o tão sonhado herdeiro daquele velho misógino que você tem por avô e me proporcionaria estar perto, ser parte da família. — Ela fecha os olhos e abre um sorriso. Um frio perpassa minha coluna. — Eu conheço você. Sei que não iria se satisfazer com ela, então...

— Você seria nossa amante — completo em total assombro, e ela assente.

— Seria tudo perfeito, mas errei ao escolher uma lésbica e não uma bi. — Dá de ombros como se isso não fosse nada, como se ela não estivesse falando de uma pessoa. — Valentina não conseguia tocar você, sentia nojo dos seus beijos, e eu tinha que compensá-la bem para que continuasse a te ver. — Ri bastante. — A idiota ficava aliviada quando você não aparecia ou desmarcava algo, e eu não entendia o que estava errado, porque você nem ao menos tentou levá-la para a cama!

— Você está doente, Viviane — digo com sinceridade, sentindo pena dela. — Não percebe que tudo isso que fez foi errado?

— Meu querido, no amor e na guerra vale tudo! Eu só não contava com essa “Duda” atrapalhando tudo. — Ela gargalha. — Meu Deus, Theo, eu nunca poderia supor que uma cozinheira de bar cheirando a bolinho iria te atrair.

Respiro fundo antes de pôr um ponto final nessa loucura toda.

— Acabou, Viviane. — Ela concorda. — Conversei com Valentina em Atenas, resolvi essa situação toda e agora, depois de saber de tudo isso...

— Sente pena de mim — seus olhos estão vidrados ao dizer isso.

— Sinto. — Sou sincero. — Acho que você deveria buscar ajuda. Isso não é amor. Quem ama não age assim.

Ela ri.

— O que você sabe sobre isso, Theodoros? — Gargalha. — Você é podre, oco por dentro, um homem que só usa as mulheres e não sente nada por elas. Busca sexo para suprir a carência da merda de vida que tem, sem afeto, sem amigos, sem ninguém!

— Não vou mais investir na sua empresa — informo-lhe, e ela ri, cínica. — A partir de hoje, já não tenho mais nenhuma ligação contigo, nem profissional, nem pessoal. Espero que você entenda isso e que, para seu bem, busque ajuda.

— Foda-se, Theodoros Karamanlis!

— Eu me fodi, pode ter certeza. — Caminho para a saída, e ela se levanta, entrando na minha frente. — Viviane, não...

— Por favor... — Chora e segura minha camisa. — Eu não sei o que vou fazer sem você! Por favor!

Afasto-a de mim.

— Adeus. Espero que você fique bem.

Alcanço a porta e a escuto gritar:

— Isso não acabou, Theo! Você não vai ser feliz sem mim, não vai!

A sua voz fica ecoando em meus ouvidos por muito tempo, acompanha-me enquanto dirijo sem rumo, ainda digerindo tudo o que ouvi, tudo o que ela foi capaz de fazer por uma obsessão. Sinto pena de Valentina, tão enganada nessa história quanto eu, usada por conta de uma situação que já lhe é difícil – a aceitação de sua sexualidade – de maneira vil e cruel.

Pelo visto, Viviane iria pôr a culpa da publicação do falso noivado na moça e iria continuar bancando a amiga desinteressada enquanto tentaria minar meu relacionamento com Maria Eduarda.

Tenho que ter cuidado com ela, principalmente quando todos souberem de Tessa. Viviane não está bem, e uma pessoa assim pode ser capaz de tudo.

Dirijo por mais algum tempo, tentando baixar toda a tensão e me livrar da energia ruim causada por meu confronto com Viviane e sigo para o hospital para ver minha menina e, quem sabe, conseguir conversar com a mãe dela. Deixo o carro no estacionamento do hospital e entro ansioso para rever Tessa, mas, ainda na recepção, paro em seco ao ver Kyra.


Minha irmã tem os olhos e o nariz vermelhos, sinais claros de que andou chorando. Seus cabelos negros estão presos em um rabo de cavalo, suas íris verdes não escondem o espanto ao me ver. Ela mantém o braço esquerdo dobrado para cima, como é recomendado a quem acabou de retirar sangue.

Meu coração dispara, e um sorriso de gratidão preenche meu rosto. Kyra tem motivos para ignorar meu pedido de ajuda, mas não o fez, provavelmente não por minha causa, mas por minha filha, e isso me emociona.

— Obrigado — sussurro ainda com medo de ela passar por mim fingindo que não me vê ou escuta. — Muito obrigado por vir.

— Fiz isso pela menina.

Meus olhos se enchem de lágrimas ao ouvir sua resposta. Não, não estou triste por ela ter dito que fez isso por causa de Tessa, estou emocionado por ela ter me respondido depois de mais de 20 anos de total silêncio.

— Ela lembra você — confesso. — Mesmo antes de eu ter ideia de que era minha filha, olhava para ela e me lembrava de você.

Kyra olha para os lados. Noto que está se esforçando para não chorar.

— Sim, ela mesma notou isso. Os olhos. — Sorri e me encara. — Eu espero poder ajudar, mas agora tenho que ir. — Aponta para a saída, e eu assinto, dando um passo para o lado.

Kyra passa por mim, mas algo me incomoda. Há um bolo em minha garganta, e sinto meu estômago fritar. É como se algo gritasse dentro de mim, mas não encontrasse voz para dizer o que preciso falar para ela.

Vejo-a se afastar, então começo a me mover rapidamente, e ela, percebendo que estou indo atrás de si, para e me encara curiosa.

— Me perdoe! — peço antes de voltar a ser o covarde de sempre. — Eu sei que te causei muito danos, sei que acabei com sua infância, não imagino o que você sofreu, mas creio que não deva ter sido fácil, e você era só uma menininha...

— Theodoros, não...

— Por favor, me escuta! — Soluço, e uma lágrima cai sobre minha camisa. — Eu fui um covarde esses anos todos, achando que era melhor me manter longe, consumido pela culpa de ter destruído o mínimo de família que tínhamos. Não quero mais ser assim, não quero há muito tempo. — Kyra seca o rosto, e eu a puxo para um abraço, apertando-a contra meu corpo. — Não sei se consigo fazer com que você me veja como seu irmão de novo, mas eu morro de orgulho de você, de quem se tornou, da mulher bem-sucedida, independente e linda. Eu sinto muito por não fazer parte da sua vida! Eu quero, Kyra, mas entendo que você não possa me perdoar.

— Theo... — Ela chora copiosamente e não consegue falar.

— Eu amo você, mikrí adelfí39! Nunca deixei de amá-la, e, nesses anos todos, tudo o que eu mais sonhei foi isso! — Aperto-a mais contra mim. — Te abraçar, pedir perdão e dizer o quanto te amo!

Solto-a, e ela tampa o rosto com as mãos, seus ombros trêmulos de chorar. As pessoas passam por nós dois, parados chorando na porta do hospital, e nos olham com pena e curiosidade. Eu não trocaria esse momento por nada. Foi ensaiado há anos de maneira diferente, racional, sem lágrimas, mas aconteceu como deveria ter acontecido.

Kyra arruma sua bolsa no ombro, vira as costas e caminha em direção à calçada. Suspiro resignado, aliviado por ter pedido o perdão que há anos está preso dentro de mim, mesmo sabendo que esse pedido não apaga tudo o que a fiz sofrer.

— Theo. — Ergo os olhos e a vejo parada, um pouco mais distante de mim. — Eu perdoo você.

Kyra se vira e passa as portas de vidro do hospital, indo para longe, mas suas palavras aquecem meu coração como o abraço que acabamos de trocar.

 

 

— Caso algum teste retorne positivo, precisaremos começar a quimioterapia com urgência e...

— Quimioterapia? — Entro na sala onde estão reunidos o doutor Felipe e Maria Eduarda.

Depois do encontro com a Kyra na entrada do hospital, precisei de uns minutos para me reestabelecer, então fui ao banheiro lavar o rosto antes de subir para ver Tessa.

Cheguei ao quarto e só encontrei dona Do Carmo, que me informou que minha filha tinha acabado de dormir depois de ter se alimentado e que Duda estava em reunião com os médicos que estão cuidando do caso de Tessa para saber os próximos passos, já que as transfusões estão ficando cada vez mais perto uma da outra, e isso não é bom.

— A senhora sabe onde estão?

Ela me explicou como chegar à sala, e vim correndo até aqui, pois quero acompanhar cada passo do tratamento da minha filha. Dei leves batidas na porta, porém, ninguém respondeu, então entrei e encontrei o tal doutor Felipe com a mão em cima da mão de Maria Eduarda, explicando a ela algo sobre quimioterapia.

O médico me olha assustado assim que entro, mas não retira a mão de cima da dela. É Maria Eduarda quem retira a sua antes de respirar fundo e me cumprimentar.

— Que bom que chegou. Doutor Felipe estava explicando o que teremos de fazer caso um dos testes dos seus irmãos dê positivo.

Ela está calma, o doutor tem um sorriso simpático, mas eu ainda estou processando aquela mão grande sobre a delicada de Maria Eduarda. A vontade que tive ao entrar na sala foi, ao invés de perguntar sobre a quimioterapia, gritar para ele tirar a mão dela.

Maria Eduarda é minha!

— Senhor Karamanlis? — O médico me aponta uma das cadeiras em volta da mesa redonda, em frente a Maria Eduarda e ao seu lado direito, mas eu tomo assento ao lado dela.

— Vocês estavam falando de quimioterapia. Por que Tessa precisa de quimio se não tem câncer? — volto ao assunto e depois olho de soslaio para Duda, que parece segurar um sorriso. Por causa da minha pergunta ou pelo olhar raivoso que dirigi ao médico quando ele a estava tocando? Será que ela percebeu que, mesmo tendo estado longe por todos esses dias, nossos corpos vibram por estarem próximos de novo? Será que ela sente, assim como eu, a mesma vontade de abraçar, beijar e me fundir a ela?

— Bom, a quimioterapia é necessária para reduzirmos ao máximo a medula com problemas para que receba as células que irão reconstruí-la. — Assinto, entendendo o que ele diz. — Como estava dizendo a Maria Eduarda, nesse período de quimio, devemos ser mais cautelosos, restringir ainda mais o contato com visitantes, adotaremos uma dieta diferenciada e temos que ficar atentos aos efeitos colaterais da medicação.

Fico preocupado e busco os olhos de Duda. Vejo a mesma preocupação espelhada neles. A medicação da quimio é bem pesada, pode causar muita náusea, diarreia, queda de cabelo, entre outros efeitos já conhecidos. Não será fácil, mesmo que por um período bem pequeno, prepará-la para o transplante.

— Caso o transplante não seja possível entre os familiares, teremos que começar a introduzir os imunossupressores combinados com outras medicações para tentar driblar as infecções que poderão ocorrer por mantermos sua defesa muito baixa. — Ele pega um folheto explicativo. — Como a AAG não é muito comum, temos apenas dois tipos de tratamento com essa medicação, mas somente um está disponível aqui no país.

— Vamos conseguir o transplante — digo confiante. — Quando teremos todos os resultados?

— No final do dia, no máximo. O pessoal do laboratório está empenhado nisso. Vocês fizeram o cadastro no banco do REDOME? Mesmo que não sejam compatíveis com Tessa, podem ser com outras pessoas, e o transplante de medula é algo bem simples de ser feito e pode curar muitas pessoas.

— Fizemos, sim — Duda é quem responde. — Obrigada pelos esclarecimentos, doutor.

Ela se põe de pé, e eu a acompanho.

— Estarei sempre à disposição. — Ele a cumprimenta e depois, a mim.

Saímos juntos, em silêncio, pelo corredor até o elevador. Mal espero as portas se fecharem e disparo:

— Eu nunca estive noivo. — Maria Eduarda balança a cabeça e não me olha. — Duda, olha para mim. — Ela o faz. — Não existe noivado algum!

— Eu vi, Theo, naquela revista, e sua amiga fez questão de vir...

— Ela armou isso! — Maria Eduarda arregala os olhos. — Eu soube do noivado agora pela manhã, Millos me contou. Viviane armou isso.

— Por quê?

O elevador para, e nós dois seguimos andando pelo corredor até o quarto de Tessa, porém, antes de entrarmos, quero deixar esse assunto bem claro para ela.

— Eu fiz uma promessa ao meu avô. Ele queria, como presente de aniversário de 90 anos, um bisneto, e, para isso, eu precisaria me casar. — Maria Eduarda parece surpresa e curiosa com a história. — Viviane estava me ajudando a escolher uma candidata a mãe do meu filho.

— O quê? — Ela ri, nervosa.

— É, eu achei que pudesse me casar em um acordo, sem grandes complicações, cada um sabendo até onde poderia ir na relação. — Abaixo a cabeça, envergonhado. — Valentina me foi apresentada como uma possibilidade. Nós saímos algumas vezes, mas nunca tivemos química suficiente para... — Fico sem jeito. — Então conheci você e não consegui pensar em qualquer outra mulher. Por mais que eu visse Valentina como uma candidata perfeita para o que meu avô queria, eu não a queria.

— Então ela foi para a Grécia atrás de você?

— Sim, a mando de Viviane e com o firme propósito de fabricar a notícia que você viu. — Toco-a. — Não houve noivado algum!

— Você continuou pensando em se casar com ela mesmo depois de estarmos juntos?

A pergunta que eu mais temi durante todo o tempo em que pensei em lhe contar, chegou, e eu não tenho muita escolha a não ser usar de toda a sinceridade do mundo.

— Sim, continuei. — Ela se afasta de mim. — Eu prometi ao meu avô e...

— Não podia decepcioná-lo, mesmo correndo o risco de magoar várias pessoas ao longo do caminho. Você tem noção do quanto isso é frio? Você nem mesmo me considerou, não foi? Nem mesmo pensou em um relacionamento mais profundo entre nós e...

— Até pouco tempo, não. — Tenho vontade de me dar um soco, mas preciso ser sincero. — Confesso que só pensei em me casar por causa desse pedido do pappoús, porque, se não fosse por isso, eu não estaria procurando ninguém. — O semblante de Maria Eduarda endurece. — Na minha cabeça, só faria sentido se me casasse com alguém que ele aprovaria e...

— Eu nunca seria aprovada, não é? — sua voz é firme, mas sinto mágoa nela. — Não sei o que seu avô queria, mas certamente não era a dona de um bar, cheirando a frituras e com uma filha a tiracolo.

— Isso já não importa. O que ele quer, se aprova ou não, já não tem nenhum sentido agora.

— Por causa de Tessa? Porque você descobriu que eu sou aquela mulher que te enlouqueceu e atraiu a ponto de você não enxergar mais nada naquela noite? — Abro a boca para falar, mas ela me silencia com um gesto. — Você é o pai da minha filha, mas isso não muda o resto. Continuo a ser a mulher que não se enquadra no que você procura.

Ela se afasta andando sem olhar para trás, e eu percebo que talvez a tenha perdido para sempre. Foram muitas omissões, e o fato de eu não ter tomado uma decisão sobre Valentina antes mesmo que tudo isso acontecesse não ajudou em nada.

Duda não sabe o que sinto por ela. Nunca pude dizer, e talvez agora já não tenha tanta importância, ou ela pense que estou dizendo isso por causa de Tessa.

Respiro fundo e apoio a cabeça contra a parede do corredor, tentando achar uma solução para provar a ela que a amo, que me apaixonei por ela ao longo desse tempo em que ficamos juntos e nada tem a ver com meu avô, com nossa filha ou com o fato de já termos nos conhecido antes.

Meu celular vibra no bolso, e eu atendo uma ligação de Hamilton Navega.

— Oi, Hal.

— Você deve estar querendo me causar um infarto, só pode! — Ele ri. — Estive em reunião a manhã toda e nem tinha olhado meu celular pessoal até esse momento. Como assim fez um DNA e tem uma filha de oito anos?

Olho na direção do quarto onde Tessa está e me afasto, indo em direção ao elevador para resolver mais esse assunto antes de vê-la.

— O nome dela é Tessa Hill, faz oito anos agora no começo de março e está doente. — Engulo saliva com dificuldade, o temor voltando a me assolar. — Está internada à espera de um transplante, e eu gostaria de dizer a ela que sou seu pai, de colocar meu nome e sobrenome em seus documentos o mais rápido possível.

— Tão grave assim ela está, Theo?

Bufo.

— Sim. Estamos em busca de um doador, senão ela começará um tratamento severo e que... — eu não gostaria de estar admitindo isso em voz alta — pode não funcionar.

— Oh, meu Deus! Eu sinto muito, Theo. Sei bem o que você está sentindo, meu amigo.

Sim, ele sabe, pois sua esposa lutou contra o câncer de mama durante algum tempo e eles estiveram prestes a perdê-la antes que a doença entrasse em remissão.

— Eu gostaria de conversar com você. Tenho outras questões, além do reconhecimento de paternidade, e...

— Estarei livre daqui a pouco, não tenho nada marcado para o final da tarde. Ia estudar um pouco, mas podemos nos encontrar.

— É uma boa ideia! Eu vou ficar um pouco com minha filha. As visitas estão mais restritas, mas quero pelo menos que ela me veja aqui perto dela. — Desço do elevador no piso térreo do hospital. — Assim que sair daqui, eu te mando uma mensagem, e nos encontramos.

— Está certo. Espero que tudo dê certo com sua filha.

— Vai dar. Tem que dar!

Desligo o telefone e vou em direção à cantina do hospital a fim de tomar um café, já que nem consegui almoçar, porém, antes que eu chegue lá, sou parado pela doutora Amália, uma das médicas responsáveis pelo caso de Tessa e a que tem acompanhado os exames de compatibilidade.

— Senhor Karamanlis! — ela me chama, e seu sorriso dispara meu coração.

Temos um doador!


A médica não para de falar, mas eu não consigo ouvir muito bem, pois meus ouvidos estão zunindo, e meu coração, saindo pela boca. Viemos até o seu consultório, onde, segundo ela, estão todos os resultados dos exames.

— É incrível a compatibilidade que achamos, é quase um milagre. Ah, como eu amo a ciência e a genética, é uma matéria quase divina! — Ela pega a pasta e estende para mim uma folha. — Olha essa perfeição!

Pego o resultado com as mãos tremendo. Ainda não sei quais dos meus irmãos será o doador, mas, neste momento, isso importa pouco. Meus olhos embaçados de lágrimas me impedem de ler o documento, e eu rio quando a doutora me estende um lencinho de papel.

— Obrigado. — Seco os olhos.

— Tessa é uma menina muito especial. Eu tenho certeza de que tudo vai dar certo agora. Ser de tipagem AB a ajudou muito, pois recebe qualquer tipo de sangue. Infelizmente, as pessoas não são conscientizadas da importância que é a doação. São apenas 20 minutos que podem salvar muitas vidas.

Eu assinto e volto a pegar o resultado para o ler.

— A doadora é a Kyra! — exclamo com um nó na garganta.

— Sim! Vê. — Ela aponta. — Tipagem e RH iguais e compatibilidade altíssima. Ela é perfeita para a doação.

— Já informou a todos?

— Sim! Acabei de mandar mensagem para o doutor Felipe, e ele deve estar comunicando a Maria Eduarda. — Sorri. — Ela merece essa felicidade, é uma pessoa preocupada com os outros. — Assinto. — Mesmo com o problema da filha, ela fez questão de doar seu sangue para o banco. É uma raridade conseguir um doador universal, O negativo, sabe? Ela se prontificou a fazer da doação um compromisso para a vida.

A doutora continua a falar, mas minha cabeça não processa mais sua voz. Há muitos anos estudei genética, não me lembro dos pormenores, mas há algo aí nessa história que me incomoda.

— Eu entendo pouco do assunto, mas, se ela é doadora universal, por que não pôde doar a medula para a Tessa, que é receptora universal?

— Ah, para transplante isso muda. — Ela parece bem feliz em me explicar, o que demonstra que ama o que faz. — Não levamos em conta apenas a tipagem sanguínea. Como você não se lembra, vou exemplificar. — Ela pega um bloquinho a anota os tipos sanguíneos do gruo ABO. — Para transfusões, Tessa recebe sangue de qualquer um dos tipos com qualquer RH, mas ela só pode doar para A ou B, visto que seu sangue veio da junção desses dois tipos. Já a Maria Eduarda pode doar para qualquer tipo e qualquer RH, pois é doadora universal, o famoso O negativo. Para transplante, além dos fatores de tipagem e RH, nós levamos em conta outros fatores genéticos semelhantes, por isso o transplante alogênico (o que vem de outra pessoa) ideal é entre parentes, pois têm maior chance de ocorrer essas semelhanças genéticas.

Ela continua a explicar, falando de proteínas e células, mas meus olhos estão fixos no nome de minha filha com um baita AB+ ao lado e o de Maria Eduarda com sua tipagem O negativo.

Não, Theo, você não se lembra da matéria, está confundindo as coisas!

— O sangue de Tessa, a senhora disse que vem da junção de A e B? — interrompo-a.

— Sim! Como o da sua irmã, Kyra. — Ela olha as outras folhas. — Seu sangue e o de Konstantinos é A positivo e Alexios é B positivo.

Maria Eduarda é de tipagem O, então...

Olho para a doutora, prestes a perguntar a ela o que significa, então, a mãe da minha filha não ser A, nem B, muito menos AB, mas desisto da indagação, com medo de confirmar o que estou pensando.

Devolvo a ela o resultado do exame de Kyra e agradeço a atenção.

— Nós já estamos entrando em contato com a doadora, e o doutor já vai iniciar os procedimentos para o transplante. — Ela me estende a mão. — Sua filha vai ficar bem!

Sorrio, aliviado, e mando uma mensagem para Millos assim que saio do consultório.

 

 

Imediatamente ele responde:

 

 

É, eu também me senti assim quando li o resultado. A irmã que eu tanto magoei, que passou anos sem falar comigo ou me perdoar e que agora, além de ter me dado o perdão que eu tanto almejada, vai salvar minha filha.

 

 

Millos manda a mensagem seguida de várias canecas de chope. Balanço a cabeça, pois ainda teremos muitos desafios a vencer para a cura de Tessa, mas vê-lo será bom, porque preciso conversar com alguém.

Olho para o elevador e penso que estou há horas no hospital e ainda não consegui ir até minha menina. Queria estar ao lado de Maria Eduarda para comemorarmos a notícia da doação, mas não me sinto capaz de ir até ela sem questionar as coisas que acabei de ver. Preciso, antes, manter a calma, conversar com Millos e Hal e, aí sim, decidir o que fazer.

 

 

Assim que leio a mensagem dele, vou para o estacionamento. Nunca me senti tão cheio de sentimentos como agora. Tenho ainda medo pela minha filha, mas esperança de que ela se recupere; tenho vontade de ir até Maria Eduarda e dizer a ela o que sinto, mas acho que ela está com medo da minha proximidade, principalmente se o que estou pensando for verdade.

Não tem como não ser!, admito para mim mesmo. Não sei a história por trás disso tudo, mas uma coisa é certa: Duda não é mãe biológica de Tessa.

 

 

— Mas o que te faz pensar assim? — Millos questiona, com sua caneca de chope na mão. — Foi somente pela tipagem sanguínea diferente?

Nego, tomando já a segunda dose de uísque.

— Não. A tipagem veio só para confirmar algo que já estava me incomodando. — Suspiro. — Eu estava bêbado demais há nove anos, reconheço, mas ter feito ligação dela com a mulher da boate em nenhum momento foi algo estranho. Já trepei bêbado algumas vezes, talvez não tanto quanto estava daquela vez, mas, quando reencontrava a mulher com quem tinha transado, logo a reconhecia. — Millos assente. — Algo me despertaria lembranças, o beijo, o cheiro, o encaixe dos corpos, não sei, mas nada me despertou.

— Entendo. — Millos termina sua bebida e pede mais uma. — Você só assumiu que ela era a mulher da boate ao ver a foto?

— Sim, embora já tivesse informações suficientes antes. Ela me contou que esteve em Zakynthos com um grupo de amigas da época em que estudava gastronomia em Paris, inclusive falou a época, mas não prestei atenção. Tudo se encaixou quando vi a foto.

Millos franze a testa.

— Mas era ela na foto dando de mamar para Tessa?

Theo dá de ombros.

— Estava de costas, a câmera focou a criança, parte do seio e umas mechas do cabelo colorido apareciam. — Bufo. — Mas tinha outra, e nela Duda aparecia com os cabelos pintados, bem como Tessa.

— Eu já a vi de cabelo colorido — Millos confessa, e eu arregalo os olhos. — Durante o tempo em que ia atrás dela para negociar o bar, a vi com cabelos pintados de rosa em duas ocasiões, sempre na mesma época do ano.

Contei a história do que aconteceu naquela boate para o Millos, e ele, na época, surpreendeu-se bastante. Nunca fui um homem de impulsos, era muito racional, então ter trepado com alguém sem saber o nome e no banheiro de uma boate o surpreendeu tanto quanto a mim. Porém, eu achava que a moça era francesa por causa de seu idioma perfeito, sem sotaque algum, e ele não tinha como fazer conexão entre Duda e essa tal mulher.

— Eu não sei o que fazer! — digo em desespero. — Não entendo essa história toda!

— Você tentou conversar com ela? — Millos pergunta, e eu nego. — Só Maria Eduarda pode te esclarecer tudo isso. Você ainda a quer?

Olho-o como se estivesse louco ao fazer essa pergunta.

— Ela ser ou não mãe de Tessa não muda o que sinto por ela. — Millos sorri ante minha resposta. — Eu me apaixonei pela mulher que encontrei em um bar de um restaurante, num encontro arranjado por você!

Millos levanta sua caneca de chope.

— Não esqueça isso, quero ser padrinho se ela ainda te quiser! — Gemo com a mera hipótese de ela não me querer mais, fazendo Millos rir. — Hal chegou.

Aponta para a entrada do bar, e vejo o elegante advogado adentrar o recinto.

— Ótimo local para uma reunião de trabalho. — Ele nos cumprimenta. — Alguém avisou ao carcamano que estamos aqui? Sabem como ele é quando se sente excluído pelos amigos.

— Ele e Vincenzo estão em reunião com os outros donos de estabelecimentos aqui do terraço do hotel — Millos responde.

Hal me abraça pelos ombros, sentado ao meu lado.

— Como você está?

— Melhor. Achamos um doador.

O rosto do meu amigo se ilumina.

— Ah, então estamos em uma comemoração! — Millos balança a cabeça afirmativamente, mas ele nota meu semblante preocupado. — Vai dar tudo certo agora, tenha fé!

— Eu tenho! — Aprumo meu corpo e bebo o resto do meu uísque. — Tenho uma pergunta estranha para fazer.

— Adoro perguntas estranhas! — Ele cruza os braços, assumindo sua pose de advogado competente. — Faça.

— Caso minha filha tenha sido adotada, o que significa meu reconhecimento de paternidade para essa adoção?

Hal arregala os olhos.

— Adoção legal ou “à brasileira”? — Millos xinga, e eu o olho como se estivesse falando japonês. — Houve um processo de adoção ou o homem apenas registrou a criança como se fosse o pai?

— Não. Ela não tem nome paterno na certidão. — Respiro fundo. — Eu acho que a mãe dela a adotou.

Hal faz careta, e Millos ri.

— Mas que coisa complicada! Você não sabe se a mãe de sua filha é realmente a mãe de sua filha?

Bufo.

— Hal, é uma história longa. Mas, caso ela tenha adotado a menina e eu peça o reconhecimento, corre o risco de essa adoção ser anulada?

Ele nega de pronto, e eu sinto um imenso alívio.

— Se a adoção correu dentro dos trâmites legais, não há por que ela ser anulada. O máximo que poderemos fazer é regularizar a questão da guarda compartilhada para que vocês dois possam decidir juntos os assuntos referentes à criança e discutir pensão alimentícia ou, caso tenha motivos para isso, pedir a reversão da guarda.

Sinto-me muito mais tranquilo agora para conversar com Maria Eduarda sabendo que não sou um risco para ela. Tessa não poderia ter sido criada por pessoa melhor. Eu tenho consciência de que, mesmo não sendo sua mãe biológica, Duda ama demais a minha filha.

— É, meu primo — Millos me chama a atenção. — Tem uma missão difícil pela frente. — Dá um tapinha nas minhas costas. — Convencê-la de seus sentimentos e dizer a ela que sabe sobre a menina.

— Eu entendo agora a reação dela quando vi as fotos e disse que era o homem da boate. Mesmo não tendo certeza da paternidade, teve medo de que eu lhe tirasse Tessa. — Respiro fundo e olho para Millos. — Não sei o que fazer para ela acreditar que o que sinto nada tem a ver com tudo isso.

— Ah, meu Deus! — Hal exclama e pede uma cerveja. — Você ainda está apaixonado pela mulher?! — Balança a cabeça, rindo. — Que história! Que história!


Depois de ter contado tudo o que houve para Hal, continuei a beber enquanto recebia conselhos de como reconquistar Maria Eduarda. Acabei descobrindo que o advogado teve envolvimento direto na perda da minha gerente anterior, Malu Ruschel, pois ajudou que ela e o peão ficassem juntos.

Ah, o peão não era bem um peão!

Por causa desse feito e por ter praticamente apresentado Frank e sua esposa, Hal se sente sumidade em assuntos do coração. Millos, sempre muito reservado e misterioso, manteve-se calado na maioria do tempo, mas não deixei de notar que conferia as horas a todo momento, bem como mandava mensagens para alguém.

Já passava das 10h da noite quando, impossibilitado de dirigir por causa do álcool, os dois me puseram em um táxi – Hal subiria para o escritório do Frank no hotel e iria pegar carona com o carcamano, e Millos estava de moto – e me despacharam para casa.

Ainda estou dentro do carro, meio deitado, esperando chegar a minha casa, quando recebo mensagens de Maria Eduarda, falando do resultado do exame de Kyra e que minha irmã esteve lá com ela para conversar. Ela pergunta por mim, dizendo que Tessa quer me ver, e eu me sinto um lixo por não ter tido coragem de subir e participar desse momento com elas.

Aprumo meu corpo e digito uma pergunta direta:

 

 

Duda me responde de pronto:

 

 

Fecho os olhos, não me sentindo em condições de conversar com ela, mas ansioso demais por isso. Não quero dizer que já sei a verdade, espero que ela me diga, pois a mulher por quem me apaixonei faria dessa forma.

 

 

Começo a chorar como um bebê dentro do carro, assustando o motorista. Não consigo parar de soluçar ao imaginar minha irmã conversando com Maria Eduarda. A culpa pelo que fiz há anos ainda me consome, o senso de dívida que tenho para com meu avô, o motivo pelo qual achei que nunca iria encontrar alguém que me despertasse sentimentos novamente.

Estou aqui querendo sua sinceridade, quando nunca fui honesto com ela.

 

 

Aguardo ansioso a resposta e, quando ela vem juntamente ao endereço do apartamento, sinto o coração disparar e uma pontada de esperança surgir. Tremo dentro do carro, pois sei muito bem o que vou revelar a ela. Preciso que Maria Eduarda saiba quem eu sou de verdade, entenda os motivos que me fizeram ser como sou, conheça meus demônios e, se ainda assim me quiser, poderei me sentir o homem mais rico deste mundo.

O táxi para em frente ao prédio, eu pago a corrida e, um tanto trôpego, aperto o número do apartamento dela pelo interfone.

— É o Theo — digo assim que ela atende.

Entro na construção simples já à procura do elevador e aperto o andar onde ela está morando. Duda me espera na porta do apartamento e se surpreende com meu estado lamentável.

— Me desculpe por isso... — Encosto-me à porta. — Eu precisava vir conversar com você.

Ela assente e, sem dizer nada, afasta-se para eu entrar.

O apartamento deve ter sido alugado já mobiliado. Noto a sala completa, dois ambientes, mas sem nenhuma lembrança pessoal dela.

— O que houve? Por que você está assim?

Respiro fundo.

— Porque eu sou um merda, Maria Eduarda. — Ela arregala os olhos. — Porque estive esses anos todos pagando pelos meus pecados, afetando a vida dos outros ao meu redor e, hoje, com a notícia de que Kyra é compatível e que, mesmo eu a tendo feito sofrer durante anos, vai doar para Tessa, percebi o quanto sou um lixo.

— Theo, não estou entendendo nada! — Ela se aproxima de mim. — Kyra esteve comigo hoje, estava feliz e emocionada. É óbvio que ela te ama e...

— Eu fodi a vida dela, Duda! — falo mais alto do que gostaria, e isso a assusta. — Hoje ela falou comigo pela primeira vez depois de mais de vinte anos de silêncio. — Duda arregala os olhos. — 24 anos para ser exato. — Engulo com dificuldade, sentindo meus olhos queimarem, a emoção transbordar. — Todos me odeiam e têm motivos para isso.

— Não, Theo, ela não...

— Eu fui criado pelo meu avô — começo antes que perca a coragem, e ela percebe que é importante. — Enquanto meu pai mudava de mulher de tempos em tempos, sempre abandonando seus filhos sem olhar para trás, eu crescia sendo educado por meu avô. — Duda se senta, e eu começo a andar pela sala. — Minha mãe era uma moça pobre, mas muito bonita e, quando teve a oportunidade de melhorar de vida e ser independente, não pensou duas vezes: aceitou o dinheiro de pappoús e foi morar na Itália, onde seguiu, por alguns anos, a carreira de modelo.

Lembranças de quando era menino e acompanhava escondido a carreira da mulher que me gerou voltam com tudo, quase me transportando de volta aos momentos e às emoções que eu sentia naquela época. Eu nutri a mesma pergunta por muitos anos: por que ela não me quis? Cresci sonhando em encontrá-la um dia e poder descobrir essa resposta, mas, infelizmente, não tive tempo, pois ela morreu em um acidente de carro quando eu tinha 12 anos de idade.

Deixo de lado a dor do menino que fui, a frustração do adolescente que queria conhecer a mãe e volto a lhe contar a minha história.

— Meu pai, mesmo recém-casado com ela, nunca deixou suas namoradas. — Rio sarcasticamente. — Era assim que ele se referia às amantes: namoradas. Foi de namorada em namorada, em períodos intercalados com esposas, que se formou a nossa família. Kostas, de um casamento relâmpago com uma inglesa, Alex, de uma garota de programa com quem ele teve um caso, e Kyra... — respiro fundo — de uma jovem estagiária da Karamanlis, a única mulher que conseguiu virar a cabeça dele a ponto de renunciar a todas as outras.

A imagem da exuberante Sabrina aparece vívida na minha memória. Ela se casou com Nikkós com apenas 19 anos, adotou Alex e logo engravidou da Kyra. De longe eu acompanhei a formação dessa família e me senti feliz por meus irmãos caçulas.

— Quando Kostas fez 12 anos, seu avô o enviou para morar com o pai, e eu vim junto com ele, de férias, pois em breve iria para os Estados Unidos estudar. — Paro de andar um pouco, já tonto por causa da bebida e de toda a emoção. Há anos não falo sobre isso, não ressuscito essas lembranças, mas sei que é necessário fazer isso. — Conhecia a todos por fotos, falava pouco o português e me encantei com meus irmãos. Eles eram tão felizes, tão diferentes de mim e do taciturno Kostas. Alex me via como um herói, seu irmão mais velho, tinha orgulho disso, e Kyra... — Tampo o rosto com as mãos e choro. Sinto a mão de Maria Eduarda no meu ombro e a abraço forte. — Kyra era como a Tessa é hoje, sabe? Cheia de energia, iluminada, carinhosa, uma criança feliz.

— Theo, você não precisa fazer isso. — Encaro-a. — Não precisa remexer essas lembranças tão doloridas.

— Preciso. — Tomo coragem de me expor completamente para ela. — Eu vim aqui para dizer que eu amo você. — Duda fica imóvel, olhos arregalados e respiração suspensa. — Você disse que me amava uma vez, mas não conhecia o homem que eu sou. Eu não quero mais mentiras e omissões entre nós, por isso estou contando tudo. Se você ainda puder me amar depois de conhecer o verdadeiro Theodoros, nada mais ficará entre nós.

Ela assente, seca o rosto com as mãos – percebo que está tão emocionada quanto eu – e volta a se sentar.

— Meu pai trabalhava demais na época. Ele nunca ligou para os filhos, embora fosse muito mais presente com Alex e Kyra do que tentou ser comigo e com Kostas. Naquelas férias, nós ficávamos mais com nossa madrasta do que com ele. — A percepção do que aconteceu é visível no rosto de Duda. — É, eu não sabia quase nada da vida. Minha criação foi muito rígida, só estudava e estagiava na empresa, não tinha amigos ou mesmo namoradas, então me apaixonar pela mulher do meu pai não foi muita novidade.

Duda fecha os olhos, e eu sinto o choque da revelação.

Ainda me lembro de como eu ficava perto dela, extasiado, principalmente quando estávamos na piscina e a via de biquíni. Sabrina tinha 25 anos na época, e eu tinha completado 17, mas já era alto e, como sempre fiz muitos esportes, corpulento. Não me lembro de ter percebido minha libido antes dela. Nunca fui um adolescente punheteiro, mas acordava ereto todos os dias na casa do meu pai. Sonhava com ela, compunha e tocava músicas em sua homenagem.

Tudo, claro, era muito platônico, afinal, ela era a mulher do meu pai.

— Eu nunca teria dito nada, feito nada ou mesmo insinuado qualquer coisa que pudesse desrespeitá-la, mas ela já havia percebido e não só isso, gostava e alimentava minha adoração. — Duda balança a cabeça e seca novas lágrimas. — Isso começou a mudar quando, alegando “amor materno”, começou a me tocar, acariciando meus cabelos, elogiando meus olhos azuis, ressaltando que eu tinha um belo porte e que, mesmo com pouca idade, que era um homem grande.

Sofro ao me lembrar de como enlouquecia a cada dia, descontando toda a energia da frustração sexual debaixo do chuveiro, gozando com a imagem dela na mente. Durante aquele ano, lembro-me que o país estava em êxtase por ter conquistado o tetracampeonato mundial de futebol. Tudo à minha volta tinha as cores da bandeira do país, ou a imagem do ídolo de Fórmula 1 que tinha perdido a vida naquele ano e de quem eu gostava muito.

Lembro-me de estar usando uma camisa com a foto do famoso carro da McLaren quando ela me chamou em sua suíte. Era madrugada, eu tinha ido à cozinha para pegar água, as crianças estavam todas dormindo, e papai, como sempre, ainda não tinha chegado.

Fui até lá completamente tenso e, quando a vi com uma camisola transparente em cima da cama, soube que ali seria meu fim. Tentei lembrar quem eu era, o que tinha aprendido em casa sobre respeito, certo e errado, mas simplesmente não pude resistir. Ela tocou meu corpo como eu mesmo nem sabia que podia ser feito e me fez tocá-la como eu tinha feito apenas em meus sonhos.

A partir daquele dia, minha primeira transa, eu passei a buscar toda e qualquer oportunidade de estar dentro de Sabrina. As crianças iam para o playground, e eu ficava aprendendo com ela como chupar uma mulher. Meu pai programava uma ida ao cinema, ela e eu inventávamos uma desculpa e saíamos de carro juntos, trepando em motéis baratos da cidade.

No dia em que precisei voltar para casa, em Atenas, chorei como um bebê de colo, e todos se espantaram em como eu tinha, em tão pouco tempo, me apegado “ao meu pai”.

— Minha primeira experiência sexual e, como acreditava na época, meu primeiro amor, era a minha madrasta.

— Theo, você era um menino! — Duda tenta justificar.

Nego.

— Não terminou ali. Não foi somente naquelas férias. — Duda suspira. — Um ano depois, antes de eu começar o college nos Estados Unidos, quis novamente passar férias com meus irmãos. Alex, Kostas e Kyra ficaram felizes em me ver, mas eu só queria estar próximo de Sabrina. Mal cheguei ao país e já estava em alguma espelunca fodendo minha madrasta.

Continuo a contar a história para ela, excluindo alguns detalhes sórdidos desnecessários, mas que não posso deixar de revisitar neste momento.

As férias foram intensas, só que, daquela vez, a qualquer contato que Nikkós tinha com ela, eu enlouquecia de ciúmes. Pensava que a amava e não suportava dividi-la com mais ninguém.

Ele não me toca mais como mulher, ela alegava quando eu questionava seus sentimentos por meu pai. Estamos juntos apenas por causa das crianças. Ah, Theo, eu queria muito poder ficar só com você, mas não posso abandonar seus irmãos, eles precisam de mim.

Aquele argumento quebrava meu coração, e eu me obrigava a engolir o amor que sentia e a entender que eles precisavam mais dela do que qualquer coisa.

Nos Estados Unidos, fiquei uns meses tranquilo, estudava, confraternizava com meus amigos de classe e cheguei até a sair com algumas garotas, ampliando minha experiência e tirando um pouco da “magia” de Sabrina de sobre mim. Até que ela me ligou, em desespero, pedindo para que eu fosse ao Brasil.

Eu estava no meio das provas, tinha entrado para o time de polo da universidade e estava começando a engatar um namoro na esperança de esquecer toda aquela história sórdida com a esposa do meu pai; não tinha como ir.

Foi então que ela revelou que estava grávida e que, como não transava mais com meu pai, o filho era meu. Eu senti o chão sumir com aquela revelação! Fiquei uns instantes mudo, sem saber como agir ou o que pensar, olhando fixamente para um ponto qualquer dentro do meu quarto, vendo, um a um, todos os sonhos e planos que meu avô traçara para mim ruírem.

Eu havia decepcionado minha família!

É seu filho, Theo! Ela soluçava. Será que você se importa tão pouco com isso? Será que puxou ao seu pai?

Aquelas duas perguntas dispararam lembranças e mágoas em mim de uma maneira que meu corpo inteiro sacudiu. Eu não podia agir como meu pai fizera comigo e com meus irmãos, não faria isso! A decisão estava tomada.

Vim para o Brasil, enfrentei a fúria de Nikolaous Karamanlis, vi a confusão e o horror nos olhos dos meus irmãos menores e levei Sabrina comigo para Atenas.

— Vocês tiveram um filho? — Duda me pergunta, interrompendo minhas lembranças, com a voz trêmula.

— Não. Pensamos que meu avô iria nos amparar na Grécia, mas estávamos enganados. Tive que recorrer à família de minha mãe, pessoas que eu não via há anos e que me deram apoio e emprego.

— Você estava disposto a deixar tudo para assumir a criança — Duda afirma, e eu concordo.

— Eu me sentia culpado, mas acreditava que estávamos apaixonados e que, com o nascimento do bebê, as coisas começariam a entrar nos eixos. — Rio em desespero. — Eu não conseguia enxergar nada, era um completo idiota.

— Não! — Duda segura minhas mãos e me puxa para me sentar junto a ela no sofá. — Eu repito: você era um menino! Mesmo com 18 anos, não sabia nada da vida! Foi errado o que fez, mas não pode carregar isso para sempre!

Nego, pois eu sabia o que estava fazendo, sim! Trabalhei de sol a sol, vendi pescado nas ruas e mercados de Atenas, tudo para provar que eu conseguia suprir e ser um pai melhor do que o meu tinha sido.

Claro que viver daquela forma não estava nos planos de Sabrina e, um belo dia, cheguei à casa onde estávamos hospedados com minha tia e soube que ela tinha fugido com um homem que estava com o iate atracado ali por perto.

Quando quis ir atrás dela, preocupado com meu filho, minha tia revelou que, dias antes, Sabrina teve um aborto depois de tomar um medicamento e pediu a ela que não me contasse, e ela decidiu não interferir, porque sentia que a relação não ia durar muito.

Eu fiquei quebrado depois disso, comecei a beber, deixei de trabalhar, e, quando pappoús me encontrou jogado na rua feito um maltrapilho, levou-me de volta para casa, arrumou minhas malas e me despachou de volta para os Estados Unidos.

— Os primeiros anos em Boston foram difíceis, principalmente porque as notícias do Brasil, dos meus irmãos, não eram boas. Eu havia destruído a vida de todos, deixando-os nas mãos de um homem louco, transtornado e que fez da infância de cada um deles um inferno.

— Theo, eu sinto muito que isso tenha acontecido com você, de verdade. — Ela limpa meu rosto, e eu seguro sua mão e a levo até meus lábios. — Você não é mais aquele garoto; eles não são mais crianças.

— Mas nunca puderam me perdoar.

— Não foi culpa sua, seu pai já não era um homem equilibrado — ela pondera, mas isso não tira de mim a sensação de que despertei o monstro dentro dele. — Kyra te perdoou, eu tenho certeza.

Assinto com um sorriso.

— Ela o fez. Eu não sei o que fiz para receber o perdão dela, muito menos para ter você e Tessa na minha vida, e é por isso que não posso perder vocês. Eu não mereço, mas não posso perder vocês.

Duda me olha sem saber o que responder, e eu sinto o corpo inteiro gelar. Ela olha para o alto, e eu posso sentir sua preocupação de onde estou. Minha cabeça dói, não dormi na noite passada e sinto os efeitos da bebida e da confissão que acabei de lhe fazer.

— Eu amo você, Maria Eduarda. — Ela me encara. — Não quero mais nenhum segredo do passado entre nós. Fui sincero com você, mesmo correndo o risco de te perder para sempre. — Encosto-me ao sofá, não consigo segurar um bocejo e fecho os olhos, falando lentamente: — Eu só espero que você possa confiar em mim.


Eu só espero que você possa confiar em mim!

As palavras que Theo disse antes de dormir ficaram reverberando em minha cabeça a noite inteira enquanto eu o observava dormir e andava de um lado para o outro dentro do apartamento que aluguei.

Eu só espero que você possa confiar em mim!

Ele me pediu confiança, abriu-se comigo, e eu pude entender muito do seu jeito fechado com relação à sua família, ao seu passado. O que ele passou não foi fácil, a culpa que carregou, e ainda carrega, deve consumi-lo ao extremo. Fiquei feliz ao saber que Kyra o perdoou e sei que foi um perdão verdadeiro, pois senti afeto toda vez que ela tocou no nome do irmão enquanto esteve comigo e com minha filha no hospital.

Tessa.

Minha filha é o centro do meu mundo desde o primeiro instante. Apaixonei-me por ela na primeira ultrassonografia em que pude ver sua silhueta, o nariz arrebitadinho, as pernas longas e inquietas e a mãozinha sobre o rosto, como se estivesse envergonhada.

Eu faria qualquer coisa por ela, para protegê-la e vê-la feliz.

Ainda não lhe contei que Theo é seu pai e tenho certeza de que, o que foi um choque para mim, vai ser recebido com sorrisos e festa. Ela é totalmente apaixonada por ele e sentirá como se seu maior sonho tivesse se tornado real.

Hoje, pela primeira vez desde que descobri que Theo era o homem da boate, agradeci ao destino por ter nos reunido novamente. Se não tivéssemos nos encontrado, Tessa não teria um doador familiar, e a chance de eu perder minha menina seria palpável. Nós nos encontramos para que pudéssemos salvar sua vida.

E o amor? E o que sinto por ele, e ele por mim?

Eu só espero que você possa confiar em mim!

Eu amo Theo e devo a verdade a ele, mesmo correndo o risco de ele não querer mais nada comigo quando souber, afinal, eu não sou a mulher que ele escolheu naquela noite.

Eu quis ser, fui a primeira a vê-lo entrar, ao lado do amigo, sorrindo, com um copo de uísque na mão e olhando em volta como se procurasse algo. Nunca tinha sido atirada e já havia saído com Jean-Pierre duas vezes, então não fiz sinal algum de que ele me interessara, mesmo tendo interessado.

Eu lembro quando nossos olhares se cruzaram e como o brilho azul me encantou. Ele era perfeito, ainda que eu achasse que estava exagerando um pouco por causa do álcool. Comentei com minha amiga, Thereza, sobre os homens parados no meio da pista nos olhando, e ela, adepta da máxima “viva como se fosse o último dia”, começou a dançar e a fazer gestos para eles.

Theo se aproximou e foi diretamente atraído para ela, enquanto o outro, italiano, conversa com o resto do grupo. Eu assisti, com inveja, admito, ao deslumbre do homem por minha amiga, a forma como ela o conduzia para onde queria, os sorrisos de puro poder que me dava por ter um homem daquele aos seus pés.

Ela amava sentir isso! Sexo, para ela, nada mais era do que um combustível para sua autoestima, mais nada. Não importava se o homem era bonito, feio, rico ou sem um euro no bolso, se a fizesse se sentir poderosa, ela ia para a cama. Ela amava quando eles se arrastavam aos seus pés, sofriam, choravam, imploravam por ela. Era aí que perdia o interesse. Gostava do desafio, da conquista, mas, quando a coisa parecia fácil demais, simplesmente dispensava a relação sem nem considerar os sentimentos de ninguém. Gostava de iludir no percurso. Lembro-me das cartas de amor que me pedia para escrever, dos doces que fazia para presentear algum affair que era mais resistente a se render a ela. Entretanto, como todo o resto, assim que ela os fazia se apaixonarem, ficava entediada e se desinteressava.

Deixo os pensamentos e lembranças de lado quando Theo se remexe no sofá e abre os olhos assustado, mas se acalma quando me vê sentada na poltrona de frente para ele.

— Pensei que tivesse sido um sonho — diz sem jeito, sentando-se.

Vou até a cozinha, pego uma xícara de café que acabei de passar e a entrego a ele.

— Quer aspirinas?

— Não, foi mais cansaço do que bebedeira o que me derrubou ontem. — Sorri. —Tem notícias do hospital?

— Sim, Manola chegou lá agora. Tessa está bem, acordou, comeu, e o doutor já marcou a primeira sessão de quimio para hoje à tarde. Tia Do Carmo disse que ela dormiu a noite toda. — Sorrio. — Acho que está mais calma depois que soube que Kyra irá fazer a doação.

— Sim, graças a Deus. — Ele bebe um gole do café. — Me desculpe por ter desmaiado no seu sofá.

Não digo nada, apenas respiro fundo, esperando que ele termine de beber, tomando coragem para mostrar que confio nele e lhe contar toda a verdade sobre mim.

— Eu não sou a mãe biológica de Tessa — digo num só fôlego, sentindo minhas mãos trêmulas. — A mulher com quem você dançou e transou naquela boate não sou eu.

Espero ver em seu rosto a decepção de saber dessa verdade, mas não, Theo apenas assente, coloca a xícara vazia sobre a mesinha de centro da sala e me olha.

— Eu sei. — Isso me surpreende. — Nunca consegui ver você como se fosse ela. — Sorri. — Nem mesmo quando vi as fotos e o cabelo rosa conseguia me convencer de que vocês eram a mesma pessoa.

— Por quê? Por que não sou tão esfuziante como ela? — Ele parece não entender a pergunta. — Eu lembro como você ficou encantado, vidrado, não percebia mais ninguém. Eu estava lá naquele dia. — Isso, sim, o surpreende. — Fui eu quem a chamou para ir embora.

Nesse momento Theo parece se recordar de mim.

— Eu estava bêbado demais, e ela me atraiu, sim, não vou negar isso. — ouvir isso me faz sentir uma pontada no coração, mesmo sendo totalmente ridículo sentir ciúmes depois de tanto tempo. Theo se senta na beirada do sofá para ficar mais próximo de onde estou. — O que senti lá na Grécia há anos foi tesão misturado à bebida e ao clima da boate, à dança, tudo isso contribuiu para aquela loucura toda, mas, creia-me, não se compara ao que senti desde que te conheci.

— Theo... — tento continuar falando, mas ele não deixa:

— Eu sinto por você a loucura, o desejo, a atração, mas não é só isso. Eu conheci você, Duda, admirei a mulher com quem estava, aprendi a amar você de verdade. Nenhuma fantasia, nenhuma loucura de fim de noite se comparam a isso, e eu espero que você acredite. — Assinto em meio às lágrimas, ouvindo sinceridade em suas palavras. — Eu não sei por que você está criando minha filha ou onde se encontra a mãe biológica dela, mas agradeço por Tessa ter você.

— O nome dela era Thereza, e ficou apavorada quando descobriu que estava grávida. Demorou a descobrir, por isso não pôde abortar. — Choro ao me lembrar de como ela ficou transtornada com isso. — Eu prometi ajudá-la com o bebê, pois ela dizia que não fazia ideia de quem era o pai.

Foi o momento mais difícil da nossa amizade já tão complicada. Não era fácil viver com Thereza, mas eu era grata por ela ter me acolhido em seu apartamento e ter se tornado minha amiga logo que cheguei a Paris. Ela me entendia porque era brasileira também, embora tenha se mudado para Paris muito pequena, quando foi adotada por um casal francês que vivera no Brasil e depois retornara ao seu país de origem levando-a com ele.

Tinha boas condições financeiras, pois seus pais haviam sido executivos de uma empresa de veículos multinacional e lhe deixado, quando morreram em um lapso de tempo de apenas um ano entre um e outro, investimentos rentáveis que permitiram que ela entrasse e saísse de vários cursos até se encontrar na gastronomia.

Mesmo grávida, Thereza não deixou de se divertir, saía todas as noites, enquanto eu trabalhava no L’Amande e dormia durante o dia. Ela fumava, bebia e transava como se não estivesse carregando outro ser dentro de si. Tessa demorou a nascer, duas semanas além do normal, e os médicos tiveram que fazer uma cesariana para retirar a criança, o que a deixou profundamente depressiva, pois marcou seu corpo para sempre.

Eu era apaixonada pela bebê, cuidava dela como se fosse minha desde então e, quando Thereza se recusou a dar de mamar – Tessa tinha três meses – passei a me incumbir, junto com a babá, da tarefa de alimentá-la, o que criou um vínculo ainda maior entre nós duas.

No quinto mês de nascida de Tessa, Thereza se cansou da vida de mãe e me avisou que iria viajar por um tempo, mas que continuaria a arcar com a babá e com o apartamento. Ela só voltou a aparecer quando Tessa tinha pouco mais de um ano. Estava magra, abatida, sem um dente e completamente nervosa.

Reconheci os sinais assim que a vi e chorei a noite toda por ver mais uma pessoa que eu amava se afundando nas drogas. Tentei conversar, Jean-Pierre e Thierry tentaram convencê-la a se tratar, mas ela não reconhecia o que estava acontecendo a si mesma.

Olho para Theo, machucada por todas essas lembranças e continuo:

— Thereza foi achada morta no lixo de uma casa noturna. — Theo fecha os olhos, e eu vejo o espanto em seu semblante. — Além da dor de tê-la perdido, enfrentei o medo de ter de abrir mão de Tessa, afinal, não era minha filha e tinha acabado de ficar órfã. Então descobrimos que ela deixou registrado um documento dizendo que, se algo lhe acontecesse, Tessa ficaria comigo, pois vivíamos juntas. — Sorrio ao me lembrar disso, da sagacidade dela naquele momento. — Além do documento, havia uma carta, e nela Thereza me pedia para não me casar... — Theodoros franze o cenho. — Eu estava noiva de Jean-Pierre, um chef pâtisserie dono de uma padaria muito famosa na cidade.

— Por que ela escreveu isso?

— Porque, segundo ela, além de ele comer quase todas as funcionárias, eles tiveram um caso, e Tessa poderia ser filha dele.

Theodoros xinga e cerra os punhos como se pudesse bater no francês.

— Ele negou, claro, pelo menos por um tempo. — Respiro fundo e dou um sorriso triste. — Quando eu disse que estava disposta a perdoar o que quer que ele tivesse feito, mas que gostaria de que ele e eu adotássemos Tessa, Jean-Pierre simplesmente desapareceu. Vendeu a padaria e se estabeleceu na Suíça.

Theo fica um tempo mudo, olhando para o chão do apartamento, cabisbaixo.

— Foi por isso que voltou ao Brasil? — Encara-me. — Abriu mão de seus sonhos para criar Tessa?

Assinto, chorando, não por tristeza ou arrependimento, mas por sentir novamente o desespero por pensar que não conseguiria mantê-la. Eu ganhava pouco, mal pagava um aluguel, quanto mais uma babá para ficar com ela durante as 14 horas nas quais eu trabalhava.

Tive ajuda enquanto o processo de adoção não estava finalizado, mas foi tão extenuante que eu não me imaginava vivendo assim, sem poder acompanhar o crescimento dela, cansada demais para curtir e me alegrar com suas primeiras palavras. Não dava!

Liguei para casa, aqui no Brasil, contei a história ao papai, e ele me disse para voltar e nos recebeu de braços abertos.

— Ela é minha filha, Theo. Posso não a ter gerado, mas é minha, e eu faria qualquer coisa por ela. — Ele se levanta, ajoelha-se aos meus pés, segura minhas mãos e as beija. — Não a tire de mim! — peço aos prantos. — Mesmo que você não me queira mais, não a tire de mim!

— Eu amo você, Duda. Amo ainda mais depois de ouvir tudo isso, de saber que seu amor por nossa filha foi capaz disso tudo!

Abro um sorriso e sinto o coração disparado pelas palavras dele.

— Nossa filha?

— Sim, nossa filha! — Ele sorri. — Eu sou o pai dela, embora ainda precise aprender muito sobre paternidade, e você é a mãe independentemente se a concebemos juntos ou não. Você é a mãe, e Tessa tem muita sorte por isso!

Ele me puxa para um abraço, mas, antes, olhando dentro dos mesmos olhos azuis que chamaram minha atenção anos atrás, confesso:

— Amo você, Theo.

Ele me beija suavemente. Sinto o gosto salgado das nossas lágrimas se misturando ao doce beijo que trocamos. Suas mãos são carinhosas, deslizam pelos meus cabelos, tocam meu corpo com reverência saudosa de quem não o faz há semanas.

Mesmo em meio à emoção que passamos ontem e hoje, às lágrimas, o desejo nos alcança, nossos corpos despertam, e o sinto tremer de excitação.

— Eu sei que não é um momento para... — começa, mas coloco a mão sobre sua boca.

— Meu quarto é a terceira porta à esquerda do corredor.

Theo não diz mais nada, levanta-se rapidamente e me pega no colo, levando-me até o quarto onde ainda não dormi e me deita na cama devagar, erguendo o vestido que uso lentamente, deixando-o embolado na cintura.

— Eu sou louco pela sua pele. — Arrasta a ponta dos dedos pelas minhas coxas. — Por suas curvas, seu cheiro... — Abaixa-se e começa a aspirar meu perfume no pescoço. — Você é minha, Maria Eduarda.

— E você é meu, Theodoros.

Ele sorri.

— Eu sou! Só seu...

Beijamo-nos com toda a intensidade do momento, nossas línguas se tocando, corpos roçando um contra o outro, corações disparados e pele ardendo de desejo. Suas mãos puxam minha calcinha para baixo, ele geme contra minha boca, e, quando me toca intimamente, contorciono-me de prazer.

Seus dedos habilidosos estimulam meu sexo, brincam com minha lubrificação, exploram minha carne com conhecimento e perícia, deixando-me louca de tesão. Theo separa sua boca da minha e desce deslizando seus lábios sobre meu abdômen desnudo, parando exatamente entre minhas coxas.

— Theo... — gemo seu nome quando sua língua continua a estimulação antes realizada por seus dedos. Adoro o jeito como ele me lambe, a fome com que me suga até que eu goze em sua boca e mate minha sede de prazer.

Seguro-o pelos cabelos, forço-o a me penetrar com a língua o máximo que consegue e depois grito quando ele volta a açoitar meu clitóris. Ele não para, não cansa, chupa, lambe, mastiga até que eu sinta o corpo inteiro retesar e o orgasmo me tire o fôlego.

Ainda estou me recuperando das sensações quando ele, depois de ter arrancado a roupa, invade meu corpo, já muito molhado e quente, de uma só vez e se encaixa em mim perfeitamente.

Abraço seus quadris com minhas pernas e o acompanho em cada movimento, olhos nos olhos, boca resvalando uma na outra, mesmo sem beijar e todas as sensações maravilhosas que só ele me faz sentir, tomando conta de mim.

— Eu amo você... — diz quando estoca mais forte. — É uma delícia poder te amar assim... — Mais uma estocada. — S’agapo40!

Beijo-o, e ele aumenta a velocidade, grudado em mim de um jeito em que nunca o fez antes. É palpável o amor que temos um pelo outro e como ele deixa o sexo ainda mais gostoso e sensível. Ouço sua declaração em cada movimento que seu corpo faz dentro do meu. Mesmo que ele esteja apenas gemendo de prazer, eu o escuto dizer que me ama.

Theo gira na cama, e eu fico sobre ele. Retiro o vestido e sinto imediatamente suas mãos sobre meus seios enquanto o cavalgo. Planto meus pés sobre a colchão e me inclino para trás a fim de ter maior mobilidade, imprimindo um ritmo mais acelerado, potencializando as sensações de prazer.

— Eu vou gozar, Theo! — aviso assim que os primeiros espasmos atingem meus músculos. — Goza comigo!

Mal acabo de falar, e ele se senta, segurando-me contra si enquanto gemo em desespero, o prazer intenso descontrolando meu corpo, e ele me acompanha, seus gemidos ecoando pelo quarto enquanto fala meu nome e repete que me ama.


Uma vez, ainda quando eu era criança, ouvi num comercial de TV que ser mãe é padecer no paraíso. Nunca tinha entendido essa frase, e hoje, analisando-a corretamente, discordo. Ser mãe não é padecer, ser mãe é desfrutar do maior dom existente no mundo: o dom da vida!

Como vocês sabem, Tessa não nasceu de mim, pelo menos, não do meu ventre, mas eu digo que a gerei, sim, dentro do coração desde o momento em que soube que minha amiga estava grávida. Ela nasceu do meu coração duas vezes: a primeira, no dia do seu nascimento propriamente dito; e a segunda, no dia em que recebeu o transplante de medula.

Não é à toa esse dia ser considerado pelos médicos como o dia zero. É a nova chance, é a esperança concreta de continuar vivendo, de restauração da saúde e vida normal.

Fevereiro foi um mês difícil com a doença dela e a falta de um diagnóstico preciso, a viagem de Theo e tudo o que descobri sobre a promissória, a promessa dele ao avô e a fake new de seu noivado com Valentina. Não foi realmente um mês fácil, mas as coisas começaram a mudar no final dele. A começar, claro, pela notícia de que Kyra era compatível e iria doar para a sobrinha; em seguida, com minha reconciliação com Theo, sem mais carregar segredos do passado; e então, com o começo da preparação para que Tessa recebesse o transplante.

Suspiro ao me lembrar da madrugada em que contei ao Theo que não era a mulher da boate, mesmo temendo que isso fosse decepcionante para ele e que o afastasse de mim. Foi bom descobrir que o que temos é muito maior do que qualquer segredo entre nós. O sexo foi maravilhoso, mas a conversa enquanto nos arrumávamos para ir ao hospital foi linda.

— Eu não entendi até agora o motivo pelo qual você pinta seus cabelos de rosa todo ano — ele comentou enquanto secava minhas madeixas castanhas com uma toalha felpuda.

Sorri e dei de ombros.

— No aniversário de Thereza. — Ele parou de passar a toalha pelos meus cabelos e me olhou estarrecido. — Tessa sabe que é minha filha adotiva, do coração, mas não conhece a história da mãe totalmente. Eu não queria que minha menina se sentisse rejeitada, então, o que ela sabe é que a mãe morreu e a deixou sob meus cuidados porque sabia que eu a amava como filha e que cuidaria bem dela.

— O cabelo pintado, então, é um tipo de homenagem? — Assenti. — Você é incrível, Duda!

— Não, eu só amo Tessa demais e não tenho motivo para fazê-la sofrer com uma história que ficou para trás e só a faria infeliz. Eu optei por contar que não era sua mãe biológica porque ela tinha o direito de saber disso, então, quando ficou maiorzinha e viu fotos da Thereza com seus cabelos pink, quis fazer nos dela, e eu embarquei na homenagem.

— Eu amo você ainda mais por isso! — Ele me beijou.

Chegamos ao hospital de mãos dadas naquele dia. Nem preciso dizer que, além de olhares enviesados de Manola, minha tia resolveu conversar em particular com ele e, como minha única parente viva, deixou umas coisas bem claras para ele. E não, eu não sei o teor da conversa, pois nem ela, nem Theo me contaram.

Tessa fez a primeira sessão de quimo, e nós ficamos o tempo todo a observando depois, torcendo para que não tivesse efeitos colaterais e prontos para a assistir no que fosse necessário caso tivesse.

Sofremos um bocado com a febre e as náuseas durante o tratamento, até que o doutor Felipe marcasse o dia do transplante. Theo acompanhou Kyra durante todo o procedimento, que foi simples, mas delicado, pois foi feita uma pulsão e aspirada a medula de dentro do osso da bacia.

Kyra ficou sob observação durante um tempo, e Tessa recebeu, igual a uma transfusão sanguínea, as células que formariam sua medula nova e sadia. Após o transplante, para evitar rejeição, Tessa começou a tomar os imunossupressores, e nós ficamos aguardando os resultados sobre a restauração da medula.

Durante o tratamento antirrejeição, ela ficou muito suscetível a doenças, por isso apenas Theo e eu entrávamos no quarto dela, e o cuidado dele com a filha me fez amá-lo ainda mais.

— Lembra da música que cantou pra mim antes de viajar? — Tessa perguntou a ele. — Eu acho que é uma boa canção de ninar.

Ele sorriu e perguntou se ela queria que ele cantasse para ela novamente, e, claro, era tudo o que ela estava esperando.

Fiquei parada no quarto o ouvindo cantar baixinho, acariciando seus cabelos e beijando, mesmo ainda usando a máscara, sua testa. Quando terminou a canção, Tessa já dormia tranquila segurando o primeiro bichinho de pelúcia que lhe dei. Vi Theo limpar as lágrimas dos olhos, fechá-los e fazer uma oração em sua língua natal.

Aquilo me desconcertou, porque nunca imaginei que ele fosse do tipo religioso. Questionei-lhe depois o que fizera, e ele me disse que era uma oração em agradecimento que aprendera com sua giagiá ainda menino. Pesquisara para relembrar as palavras e a recitara para agradecer a Deus por sua menina.

Nós pouco saíamos de perto de nossa filha, e, por isso, Millos assumiu interinamente a direção da empresa, e Theo só teve que ir até a Karamanlis para explicar o motivo pelo qual pedira o cancelamento da ação executória da promissória e decidira desistir do projeto de quase 10 anos de comprar a propriedade de minha família.

Ele me contou por alto o que aconteceu, mas percebi que seu cargo estava ameaçado.

— Não quer voltar para a empresa? Eu posso ficar com Tessa durante o dia, e você vem quando sair de lá.

Ele negou.

— Minha filha é minha prioridade. O que tiver que acontecer na Karamanlis acontecerá independentemente de eu estar lá ou não.

Eu não poderia estar mais feliz com o homem que amo e pai da minha filha!

Os dias foram passando, e acabei conhecendo mais um membro dessa família tão complicada. Alexios, um dos caçulas, esteve aqui para conhecer Tessa e, embora só pôde acenar para ela do outro lado do vidro, pareceu bem contente em ter uma sobrinha.

Notei a tensão entre ele e Theo e imaginei que isso se devia ao trauma que foi causado a todos no passado. Eles se falam, ao contrário do que aconteceu durante anos com Kyra, mas não têm muito jeito para conversar. Trocaram algumas poucas palavras, um distante do outro, e Alex se foi sem nenhum abraço ou mesmo aperto de mão.

Theo e eu não esperávamos mais nenhum membro da família Karamanlis por aqui, muito menos o tão temido Geórgios Karamanlis, de 90 anos, andando pelo hospital resmungando com seu português precário e uma enfermeira a tiracolo.

Contudo, o melhor vocês não sabem! Eu nem sabia que ele era o avô do Theo quando nos encontramos.

Eu estava voltando para o quarto de Tessa quando vi um velhinho bem-vestido, forte e aprumado tentando andar depressa para alcançar o elevador. Coloquei a perna e o braço nos sensores da porta para a impedir de fechar e o esperei entrar.

— Boa tarde — cumprimentei-o, e ele apenas sacudiu a cabeça de volta.

Parecia impaciente, olhava para o display que contava os andares o tempo todo e resmungava baixinho com sua enfermeira. Quando paramos no andar onde Tessa estava internada, a enfermeira se distraiu com o telefone celular, e ele quase caiu ao passar pelo piso molhado, sinalizado com placa, e eu o segurei pelo braço, impedindo a queda.

— Obrigado — disse com seu forte sotaque e enviou um olhar carrancudo para a mulher que o acompanhava.

— Tudo bem. Posso acompanhá-lo? — eu disse sorrindo. — Será um prazer levá-los até onde precisam ir. Sabem o número do apartamento?

Ele olhou para sua acompanhante, e ela olhou o celular de novo.

— Ala pediátrica, apartamento 42.

Enruguei a testa, pois era o número do quarto onde Tessa estava.

— É para onde estou indo. — Olhei para o velhinho e reconheci os mesmos olhos azuis lindos de Theo. — O senhor é Geórgios Karamanlis?

Primeiro ele me olhou desconfiado, depois me mediu de cima a baixo, até assentir.

— Quem é você? — perguntou sem rodeios.

Porém, antes que eu respondesse, Theo apareceu apressado e parou surpreso quando nos viu de braços dados.

— Pappoús! Millos acabou de me informar que o senhor estava vindo para cá. — Olhou para mim sem entender o que estávamos fazendo juntos, e eu apenas sorri. — Vejo que já conheceu Maria Eduarda.

O velhinho insolente voltou a me olhar desconfiado, mas não se desvencilhou do meu apoio.

— Maria Eduarda — repetiu meu nome. — E minha bisneta?

— Tessa — assegurei que ele soubesse o nome da minha filha. — O nome dela é Tessa, senhor Karamanlis. É um prazer conhecê-lo.

Ele abriu um leve sorriso – se é que aquela careta podia ser considerada assim – e pediu ao Theo que o levasse até Tessa. Claro que ficou muito irritado por não poder entrar no quarto e só vê-la pelo vidro, mas, quando a viu, começou a chorar feito um bebê.

Eu não poderia nunca imaginar que algo assim aconteceria e só soube o motivo do choro quando Theo voltou do hotel onde o avô estava, depois de tê-lo deixado lá com a enfermeira.

— Tessa lembra demais a minha avó e também meu tio Geórgios, o filho mais velho dele, que morreu com a mesma doença que acometeu nossa filha.

Disse a ele que Millos já havia me contado sobre esse tio e que isso, na ocasião, deixara-me muito preocupada com Tessa.

— Eles mal sabiam sobre a doença e não tinham tantos recursos para tratá-la. Estamos falando dos anos 70, Duda. — Assenti. — Eu perguntei ao doutor Felipe se a doença pode ser hereditária ou familiar; ele não soube me informar, disse que os estudos nessa área são inconclusivos.

— Tomara que não seja.

— Sim, tomara que não. — Ele me abraçou. — Sabe que pappoús disse que a Karamanlis nunca teve uma mulher na diretoria, mas, se Tessa for igual à sua falecida esposa, será uma ótima diretora-executiva um dia?

Gargalhei disso.

— Ela será o que quiser ser, Theo. — Ele assentiu. — Sem pressão de ninguém.

— Sim, mas eu fiquei feliz ao ouvir isso. — Ele sorriu. — Pappoús é muito difícil, preconceituoso. Ter percebido que ele aceitou Tessa foi uma surpresa para mim.

— Faria diferença se ele não a aceitasse?

— Nenhuma! — garantiu. — Mas me liberou da promessa de lhe dar um bisneto.

Ergui a sobrancelha.

— Isso quer dizer que não pretende ter mais filhos?

Theo riu, negou e falou baixinho no meu ouvido:

— Se depender do nosso tesão, vamos ter muitos filhos ainda.

Olhei-o assustada, e ele gargalhou.

— Ei, estou atrasada? — a voz de Kyra me traz de volta à realidade, e abro um sorriso.

— Não. Theo ainda está lá dentro enchendo o pobre doutor Felipe de perguntas. — Aponto para os dois homens conversando e para Tessa, no colo do pai, com a expressão mais entediada do mundo.

— Eu adorei essa máscara que ela está usando hoje!

Kyra ri do objeto que uma funcionária da Karamanlis – Kika – mandou para a Tessa. O presente foi todo esterilizado antes do uso e, infelizmente, irá para o lixo no fim do dia, mas minha menina amou usar algo tão divertido quanto uma máscara com estampa de beijinhos.

Minha filha terá que continuar por algum tempo ainda com os medicamentos antirrejeição, fazer visitas periódicas ao hospital, além de seguir uma série de recomendações médicas em casa, mas está feliz por poder deixar o hospital e conhecer seu novo quarto na cobertura de Theo.

Nós ainda não contamos para ela que ele é seu pai. Estávamos esperando que recebesse alta e estivesse estável para lhe darmos a notícia, e esse momento chegou. Olho para Kyra, ao meu lado, sentindo o coração transbordar de alegria, pois sei da importância que a presença dela em nossa família tem para Theo.

Sinceramente espero que ele consiga alcançar o perdão dos outros irmãos e que essa família se acerte. Gostei muito de Alex e Kyra, mas confesso não nutrir bons sentimentos com relação ao Kostas, que sequer veio ver a sobrinha.

— Ah, finalmente!

Theo sai com nossa filha, pela primeira vez depois de tanto tempo no isolamento, e ela dá pulinhos de felicidade em seu colo.

Cumprimento o médico brilhante que salvou a vida de Tessa com o diagnóstico preciso que deu de uma doença tão rara e lhe agradeço por todo o empenho no caso.

— Mamãe, quero logo ir para a casa do Theo!

— É nossa casa, Tessa — ele a corrige. — Vamos todos morar juntos, mamãe, tia Do Carmo, você e eu. Ah, e a Vanda!

— Oba! Vem também, tia Kyra! — a menina convida, e Kyra gargalha.

— Vou visitar tanto você que vai achar que me mudei para sua casa!

Theo abre um sorriso enorme ao ouvir isso, e sua irmã o olha sem jeito.

— Se quiser se mudar, a cobertura é grande — ele brinca com ela.

— Não, eu tenho dois meninos para cuidar, e Tessa não pode ficar perto deles por enquanto. — Theo arregala os olhos, surpreso com a informação. — Um cachorro e um gato, Theo, ambos resgatados de um abrigo. Eu fui para adotar um gatinho, mas me apaixonei pela história da gata que adotou um filhotinho de cachorro e, então, resgatei os dois.

— Ah, tia Kyra, tem fotos? Eu amo animaizinhos!

Os olhos de Tessa brilham quando Theo a instala no assento de elevação do seu carro, todo preocupado com sua segurança.

— Tia Kyra mostra as fotos quando chegarmos em casa, minha filha — digo. Ela faz um bico de insatisfação, mas se despede da tia, que vai até seu próprio carro para nos seguir até em casa.

Casa! Abro um sorriso ao perceber que já penso na cobertura de Theo como sendo nossa casa.

— Qual o motivo do sorriso? — ele me pergunta, sentando-se atrás do volante do carro.

— Estava pensando em como é estranho pensar na sua cobertura como minha casa. — Sorrio. — Nós não fomos nada devagar nisso.

Ele ri.

— Nunca fomos devagar em quase nada, Maria Eduarda. — Gargalha. — E para que ir devagar? Eu amo você, você me ama, temos uma filha juntos. — Beija-me antes de ligar o carro e completar seu raciocínio. — Já somos uma família!

Ele tem razão! Olho para trás e vejo nossa filha com um livro nas mãos, entretida lendo a história. Já somos uma família!


Como é possível a vida dar uma guinada em apenas poucos meses? Sorrio, alisando o cabelo de Tessa enquanto ela dorme. Se alguém me contasse no fim do ano passado que eu iria passar pelo que passei nesses meses, eu iria rir bastante, além de chamar a pessoa de louca.

Beijo a testa da minha filha e saio sem fazer barulho do quarto, seguindo para a sala e me sentando no banco do piano. Não toco, não hoje. Nada de bebidas e músicas para uma noite solitária. Elas se foram. Agora tenho uma família.

Sinto um arrepio de antecipação e medo pelo futuro, mas sei que, com Maria Eduarda e Tessa ao meu lado, vou conseguir passar por qualquer situação. Eu não tive exemplos, nunca estive em uma família de verdade e por isso tenho medo de cometer alguma besteira e foder tudo.

Olho para o porta-retratos de prata recém-colocado sobre um móvel da sala e sorrio ante a beleza da foto. Nela, Tessa está sobre meus ombros e nós olhamos o pôr do sol na Ilha Raj, no primeiro dia em que chegamos lá. Ali eu nunca poderia imaginar que nossos destinos já estavam ligados, mas sentia uma conexão tão forte com aquela criança que, por vezes, surpreendia-me.

Olho em volta do apartamento onde moro há pelo menos oito anos e vejo, pontualmente, cada detalhe diferente da decoração, antes tão fria, agora cheia de vida, calor e sentimentos. Nada aqui agora é sem propósito.

Caminho até uma pequena concha deixada perto do porta-retratos de prata e me lembro do dia que passei com Tessa na praia, onde brincamos de pique-pega e corremos muito. Sinto uma enorme vontade de levar minha menina para a Grécia, mas sei que precisarei esperar até que ela esteja bem para uma viagem como essa.

Em outro móvel, outra foto chama minha atenção. Dessa vez é de Duda, ainda criança, com seus pais e o irmão falecido. Abro um sorriso ao ver a menina linda que ela era e em como a família parecia feliz e harmoniosa. É isso que eu quero para mim! Amor, um lar, sentimento de pertencimento, segurança. É assim que Tessa irá crescer, e os outros filhos que virão.

Uma fotografia tirada no hospital no dia em que pude participar do primeiro aniversário de minha filha me traz lágrimas aos olhos, além das lembranças daquele momento. Foi pouco depois do transplante, e, como ela estava em tratamento e recuperação, suas visitas estavam restritas.

Maria Eduarda e eu ficamos dentro do quarto com ela, enquanto Kyra, Manola e tia Do Carmo seguravam balões e mensagens de aniversário do outro lado do vidro. Foi emocionante. Minha menina tinha acabado de receber outra oportunidade de crescer e se desenvolver, tínhamos motivos em dobro para comemorar sua chegada ao mundo.

Eu estava louco para poder contar a ela que era seu pai, mas sabia que no hospital não era o momento certo. Ainda assim, não deixei de me emocionar no dia em que pude incluir meu nome em sua certidão de nascimento.

Hal navega disse que o procedimento era simples, e realmente foi. Preenchi um formulário requerendo a inclusão do meu nome e do nome dos meus pais na certidão de nascimento de Tessa, que, embora tenha nascido na França, foi registrada no consulado brasileiro por ser filha de brasileira e teve uma nova certidão emitida quando Duda, já morando aqui no Brasil, conseguiu a adoção.

Ela, por ser mãe, precisou concordar com meu pedido em uma anuência expressa. Hal, então, juntou todas essas informações e as levou até o cartório competente, e, antes mesmo de Tessa ter alta, meu nome já constava em seus documentos. Oficialmente e sentimentalmente eu já era seu pai, mas ela ainda não sabia.

Maria Eduarda e eu decidimos que contaríamos a ela no dia da alta médica e preparamos tudo para que ela pudesse já se acostumar à sua nova casa e família.

— Acho que já é hora de você se mudar para cá — eu disse para Duda em uma noite em que dormimos em casa e Tessa ficou com dona Do Carmo no hospital. — Ninguém mais vai naquele apartamento que você alugou, e o em cima do Hill também está vazio, apenas com suas coisas pessoais.

Ela sorriu e se aconchegou ao meu corpo na cama.

— Espero que isso não tenha sido seu pedido de casamento, porque, senão, ele é decepcionante.

Gargalhei.

— Não, não é. — Ela me olhou nos olhos. — No dia em que eu a pedir em casamento, não haverá dúvidas, e sim um belo par de alianças.

— Gostei disso! — Beijou-me. — Eu concordo em vir morar com você, mas não quero deixar tia Do Carmo sozinha. Você se importaria se ela...

— A cobertura é grande, e sua tia, mesmo sendo um tanto intimidadora, é uma pessoa maravilhosa.

Duda se ergueu na cama.

— Não vai mesmo me dizer o que ela te disse quando chegamos juntos no hospital?

Neguei, mas pude ouvir claramente a voz de dona Do Carmo.

— Nunca mais quero ver minha menina chorar por sua causa, está entendido? Ela tenta me proteger das coisas, não gosta de me preocupar, mas eu sabia que você tinha aprontado algo com ela e que ela estava muito triste. — Assenti sem jeito e baixei a cabeça. — Eu vou estar de olho em você, Theodoros, então se esforce ao máximo para ser o pai que Tessa merece e o homem que Duda ama, porque senão...

Senti o mesmo frio na barriga que sentira ao ver o olhar dela durante essa frase inacabada e abracei Maria Eduarda bem forte, prometendo em pensamento nunca a fazer infeliz. Claro que, em algum momento, posso deixá-la triste ou mesmo magoá-la. Não me iludo quanto a vida de casal ser um mar de rosas, mas vou sempre me esforçar para nunca a fazer infeliz.

A felicidade dela e de Tessa passou a ser minha prioridade, e nada no mundo é mais importante que isso.

Depois daquela noite, Vanda começou, junto com dona Do Carmo e Manola, a preparar o apartamento para receber minha família. Como Duda e eu estávamos sempre no hospital com Tessa, participamos pouco dessa transição e só fomos ver o quarto de Tessa, decorado como um presente de Kyra, um pouco antes da alta de nossa filha.

— Kyra, isso ficou perfeito! — elogiei-a emocionado.

— Tessa adora unicórnios, vai ficar deslumbrada! — informou Duda.

Minha irmã ficou emocionada e explicou o motivo pelo qual escolheu aquele tema específico:

— Unicórnios são seres mitológicos que possuem características de pureza e força. Além disso, passam uma mensagem de que tudo é possível, basta acreditar. Eu achei que é uma mensagem positiva para ela nesse momento.

— Sim, é muito sensível de sua parte. — Duda a abraçou.

Fiquei ali olhando as duas emocionadas e me lembrei do abraço que eu e Kyra trocamos depois de tantos anos. Não foi aquele em que a puxei no dia em que foi fazer o teste, mas o no dia em que doou a medula à minha filha. Kyra estava nervosa, apesar de saber bem o que aconteceria. Doutor Felipe a acompanhou em todos os momentos, conversou com ela, explicou detalhadamente como seria feito o processo, que doeria um pouco, que ela ficaria em observação e com o local dolorido depois, mas que não havia risco.

Acompanhei-a e estive ao seu lado durante todo o tempo, segurando sua mão, sorrindo e chorando junto a ela. Talvez eu nunca consiga externar tudo o que sinto por minha irmã, mas acredito que, quando ela olha em meus olhos, sente isso.

Quando Kyra foi encaminhada para o quarto a fim de descansar, velei seu sono, e tantas perguntas se fizeram em minha mente. Eu queria saber da vida dela, de todos esses anos que eu tinha perdido, de como foi sua adolescência, o começo da vida adulta, como foi que ela descobriu o gosto pela decoração e, por fim, por que escolheu trabalhar com eventos.

— Temos tempo. — Ela riu quando foi liberada e eu lhe perguntei tudo isso. — E eu quero o daqui para frente com você, Theo, não quero mais pensar e remexer o passado. — Respeitei esse pedido dela. — Quero ser parte da sua vida e estou feliz por ter você na minha.

— Para sempre! — Abracei-a. — Estarei sempre aqui contigo, sempre, agapi mou!

Sorrio sozinho no meio da sala, revisitando as memórias dessas seis semanas desde o transplante de Tessa até o dia de hoje.

Pego meu celular e passo as fotos que tiramos há poucas horas, na chegada de Tessa a nossa casa. Minha filha pôde receber a festa de aniversário que tanto esperava. Claro que, por causa dos medicamentos e de sua recuperação, ainda não pode comer de tudo, e Manola teve o cuidado ao preparar a comida segundo orientou a nutricionista.

Foi uma verdadeira festa, embora Tessa tenha podido participar pouco, pois não pode se cansar.

Pensam que ela ficou triste por ter de ir ao seu quarto? Absolutamente não! Ficou encantada com a decoração que tia Kyra fez para ela, mexeu em cada objeto, olho seu closet cheio de roupas, sapatos e acessórios de menina e pulou ao descobrir que tinha um banheiro só seu.

Duda demorou a desacelerá-la para que dormisse. Ajudou-a no banho, colocou-lhe o pijama novinho cheio de arco-íris que brilhavam no escuro, e ela se deitou em sua cama de casal com os braços e pernas abertos, usufruindo de todo o enorme espaço só seu.

Eu ainda não tinha pensado em como abordaríamos o assunto da paternidade com ela, mas ele chegou sem que fizéssemos nenhum movimento para isso. Fui abaixar a luz do quarto para que ela pudesse dormir quando a ouvi sussurrar para sua mãe:

— Mamãe, será que agora, que vamos morar com Theo, vou poder chamar ele de papai?

Maria Eduarda me olhou, e eu prendi a respiração por um tempo, preparando-me para o grande momento, ansioso por sua reação e temeroso que ela não aceitasse bem toda a história.

— Tessa me fez uma pergunta, Theo — Duda começou, imaginando que eu não tivesse ouvido. — Queria saber se, agora que vai morar com você, pode te chamar de papai.

Sorri, aproximei-me da cama, sentei-me ao lado de Duda e baguncei o cabelo de Tessa antes de dizer:

— Não só porque você mora comigo, Tessa. — Minha menina sorriu. — Você pode me chamar de papai porque sou o seu papai — tremi ao falar essas palavras, e ela olhou para Duda sem entender. Respirei fundo e continuei, buscando uma explicação simples, sem muitos detalhes, e que ela pudesse entender: — Nós não sabíamos, mas eu conheci sua mãe biológica, tive um namoro rápido com ela, e você nasceu.

— Verdade? — ela me questionou, mas olhava para sua mãe.

— Sim — Duda respondeu. — Theo soube que era seu pai quando fez o exame para doar a medula, por isso tia Kyra foi quem doou, porque é irmã do seu pai. Não é incrível?

Os olhos de Tessa se encheram de lágrimas, e a abracei forte.

— Meu desejo de aniversário se realizou — Tessa me confidenciou baixinho. — Eu pedi isso de presente, lá no hospital. — Sequei suas lágrimas. — Que você fosse meu pai.

— Eu amo você, minha filha. — Ela sorriu quando a chamei assim. — Prometo que farei de tudo para que consiga me amar também.

Foi nesse momento que ela me deu o sorriso mais lindo do mundo.

— Ah, bobinho, eu já te amava mesmo antes de saber que você era meu pai!

Chorei, agarrado aos dois amores da minha vida, intercalando lágrimas e sorrisos, agradecido por ter a chance de ser feliz ao lado delas.

Sim, eu estou feliz demais!

— Ei. — Duda toca meu ombro e me dá um pequeno susto. — Não vai se deitar? Acordei agora há pouco sozinha na cama e fiquei intrigada sobre seu paradeiro.

— Fui ver Tessa e depois acabei ficando por aqui. — Beijo-a e ergo sua mão direita, enfeitada com a aliança de ouro que coloquei ali há menos de duas horas. — Como se sente, futura senhora Karamanlis?

Duda sorri largo, e eu a pego no colo a fim de colocá-la de volta na cama.

— Sabe o que eu pensei? — inquire assim que nos deitamos. — Amanhã, quando Manola chegar aqui e vir a aliança, vai ficar toda curiosa sobre o pedido...

Sua voz risonha me assusta.

— Duda, você não vai...

— Ah, eu vou! — Ela ri solto. — Ela fica me chocando ao falar detalhes do Dionísio! — Eu gemo, não querendo entrar no assunto. — Agora vai saber que fui pedida em casamento no meio do orgasmo, que só vi uma caixinha sendo levantada em minha direção enquanto você chupava minha...

— Duda! — Gargalho, e ela se vira de frente para mim. Ah, Maria Eduarda, minha chef, cozinheira, a irritante dona do Hill que se tornou dona do meu coração! — Eu amo você!

— Eu também! — fala bocejando.

— Que romântico... — Beijo sua testa.

Ela dorme abraçada comigo, e eu me sinto seguro, em casa, amado e feliz.


Um ano depois.


Quem consegue enxergar os emaranhados do destino? Há algumas religiões que acreditam que a vida de uma pessoa é ligada à de outra por um fio que as prende desde o nascimento até a morte. Às vezes esse emaranhado de fiação se enrosca, embola e impede que um chegue ao outro, mas o fio nunca se parte, e, se um dia se encontrarem, nada poderá separá-los.

Acho que Theo e eu temos essa ligação, esse fio do destino nos ligando. Encontramo-nos pela primeira vez há dez anos, numa ilha no meio do mar Jônico, no final de uma noitada, numa boate cheia de jovens sonhadoras. Acho que, quando ele entrou lá, o fio que nos unia me puxou, e eu senti algo naquele olhar que não sabia explicar.

Entretanto, não era o momento ainda, nem para mim, muito menos para ele, reconhecermos isso. Tínhamos um propósito, mesmo sem saber disso, e os anos se passaram. Quando chegou a vez de cumprirmos nossa missão, algo puxou os fios e nos uniu de novo. Percebemos um ao outro, envolvemo-nos mesmo sem ter noção do que enfrentaríamos juntos.

Nossa missão era garantir a vida de Tessa. Nosso reencontro foi orquestrado para que pudéssemos ser a família que nos tornamos. Eu não fazia ideia de que poderia ser feliz como vi meus pais serem, e Theo imaginava que, por nunca ter uma referência positiva, jamais teria uma família.

Ainda bem que estávamos enganados.

— Estamos atrasados! — escuto alguém gritar ao meu redor, mas, sinceramente, não me importo.

A agitação de uma cozinha me fez aprender a não ficar alvoroçada com a pressa alheia, a seguir o tempo de cada preparação, a desfrutar de cada etapa de um prato. Aprendi a ter respeito pelos alimentos e pela hora da refeição, então, a gritaria ao meu redor agora não me assusta.

Fecho os olhos e me concentro apenas na sensação de plenitude, de alegria e amor que sinto transbordando de mim. Ah, como sou feliz! Passei por muita coisa triste nesta vida, mas, nesses últimos meses – um ano, para ser precisa – só sinto felicidade.

Imagino que vocês estejam curiosos para saber o que aconteceu em minha vida nesse período de tempo, então – abro um sorriso preguiçoso –, como tenho um tempo aqui ainda, posso contar com detalhes.

Primeiro de tudo, adianto que minha filha está muito bem de saúde. Não foi fácil para a pequena Tessa a recuperação, mas ela foi brava, mostrando indícios da mulher forte e guerreira que se tornará. Retornamos ao hospital algumas vezes por conta dos medicamentos contra a rejeição que, por vezes, deixavam-na muito suscetível a doenças.

Tessa não pôde retornar à escola, então tomou aulas em casa, e penso que isso foi o mais frustrante de sua recuperação. Por vezes ficou triste, revoltada por não poder brincar com seus amigos, mas o que a consolava era o pai. Theo se tornou seu melhor amigo nesse período.

É, quem viu o CEO posudo, com seus ternos de grife, sua coleção de relógios e seu gosto refinado para uísque nunca poderia imaginá-lo brincando de Barbie, construindo barracas de lençol no meio da sala para passar a noite em um safári de bichinhos de pelúcia ou mesmo assando cookies para uma festa do chá.

Sim, podem acreditar, ele fez tudo isso pela filha!

Os dois passavam horas vendo filmes, e o preferido dele era Moana, porque alegava que ela era uma líder excelente e um bom exemplo de mulher empoderada para Tessa, principalmente por não ter um “par romântico” na história. Pasmem, mas eu tinha razão sobre ele ser ciumento!

Lembro quando recebemos a visita de Frank Villazza, sua esposa e os três filhos. Tessa, claro, ficou encantada com Laura, a filha mais velha do melhor amigo de seu pai, e as duas começaram a brincar sem conseguir parar. Lucca, o irmão gêmeo dela, começou uma guerra de implicância com minha filha, e Theo detectou imediatamente que era interesse.

Pronto, foi o que bastou para ele não tirar os olhos das crianças e ser massivamente ameaçado pelo italiano.

— Eu acho que os dois formarão um belo casal daqui uns anos — Frank dizia com o semblante mais cínico do mundo, sem esconder seu divertimento. — O que acha, Karamanlis? Seremos, além de compadres, parentes por casamento.

— Frank... — Isabella tentava parar as brincadeiras do marido, mas acabava rindo do olhar desesperado de Theo. — Eu ficaria feliz, mas acho que está cedo demais para isso.

Theo gemia enquanto todos nós ríamos. Acho que sentiu na pele pela primeira vez o que era ser pai de uma menina linda, e, claro, não passou despercebido a ele que Frank também tinha uma filha.

— Ah, Laura é linda também! Tenho certeza de que no colégio ela tem alguns admiradores.

— Claro que nã...

— Ah, esses dias ela voltou para casa com cartinha de amor — Isabella disse rindo.

O italiano quase engasgou com o vinho que estivera bebendo e cobrou explicações da esposa.

— Ela me mostrou rindo e ainda ressaltou que os meninos são muito “bobinhos”. — Isabella deu de ombros. — O homem que conseguir conquistar o coração de Laura será um verdadeiro guerreiro.

— Não, será um cadáver!

Eu ri muito da reação do Frank, e aí Theo percebeu que ambos tinham um calcanhar de Aquiles, e os dois acabaram chegando a um entendimento mudo de que não era legal entrar nesse assunto ainda.

Outro episódio que me marcou por causa de seu ciúme foi quando Kyra foi jantar conosco e apareceu com um namorado que mal falava. Eu já havia percebido que minha cunhada tinha um gênio bem forte, era muito decidida e não suportava que lhe ditassem regras, fazia seu próprio destino. Particularmente eu gostava demais do jeito dela, mas entendia que isso também inibia alguns homens e que, por esse motivo, ela preferia uns bem calmos e discretos, diferentes de sua personalidade. Os namoros nunca duravam muito, e isso incomodava Theo, que achava que sua irmã estava sendo usada pelos homens e ficava com o coração destruído a cada término.

— Já pensou que pode ser o contrário? — questionei-lhe uma vez. — Que pode ser ela que não aguenta ficar muito tempo com alguém, que se cansa e põe a fila para andar?

— O quê? Claro que não! Kyra é sensível, doce, não uma devoradora de homens! São eles que não prestam e não a merecem.

— Bom... Acho que você não está enxergando sua irmã muito bem. Ela não é mais uma menininha indefesa, Theo.

Ele não respondeu, apenas bufou e entrou no banheiro ameaçando qualquer um que magoasse “suas meninas”.

Eu me diverti bastante nesses episódios, até sentir em minha própria pele e ter de ser dura com ele.

Desde que nos mudamos para seu apartamento, Theo enfiou na cabeça que iria recomprar o Hill para mim. Tentou negociar várias vezes com o pessoal da Dominus, mas não obteve sucesso. Ficava frustrado por nunca conseguir comprar o lugar, mesmo que para me devolver, e só sossegou quando eu disse que não queria voltar a trabalhar no bar. As lembranças que eu tanto amava estavam espalhadas pelo meu lar e no meu coração; eu podia muito bem seguir meu próprio caminho.

A Karamanlis começou a alugar os imóveis no entorno do pub, e a área vinha se transformando em um point gastronômico, com todo tipo de restaurantes e bares.

Theo quase caiu para trás quando lhe informei que tinha alugado um local para mim na galeria na mesma rua do Hill e que iria abrir um bistrô. Manola foi quem achou o local, e ele era exatamente como eu havia sonhado, pequeno, aconchegante e bem localizado, pois a galeria dava acesso à rua do Hill e à de trás. Havia várias lojinhas já alugadas, e os empreendedores tinham bom gosto, fazendo com que um público seleto frequentasse o local. Um bistrô para servir almoço. Eu daria adeus às noites em claro, poderia trabalhar durante o dia e estar em casa à noite com minha família. Era perfeito, quer dizer, eu achei, mas ele, não.

— Tessa ainda precisa de você e em breve você não poderá...

— Theo, ainda vou reformar, adequar e praticamente vou só gerir o local, pois Manola assumirá a cozinha e montará a equipe.

Ele relutou, apresentou vários motivos para que eu não investisse naquele momento, mas depois o convenci, com muito carinho e amor, que não estava pedindo autorização, só lhe comunicando. Usei o dinheiro da venda do Hill para iniciar o negócio, e em breve será sua inauguração.

Sim, ainda não comecei a trabalhar mesmo depois de um ano desde que vendi o Hill. Vocês querem saber o motivo? Eu posso contar...

— Duda, acho que ele dormiu.

Abro os olhos de repente e olho para Helena, amiga e funcionária de Kyra, notando seu olhar completamente encantado.

Olho para baixo e confirmo que Petros soltou meu seio e dormiu quietinho em meu colo enquanto eu estava perdida em memórias. Levanto-o, encostando sua barriguinha em meu ombro, ouvindo seu arroto forte, mesmo em meio ao sono, e escuto a risada de Tessa.

— Ele é barulhento, mãe! — Ri e olha para Helena. — Solta cada “pum” alto igual ao de um adulto.

A assessora de casamentos cai na gargalhada e ajeita o vestido de dama de honra de Tessa.

— Posso fechar seu vestido agora? — uma das suas ajudantes me pergunta.

Agora que meu filho já se alimentou, podemos seguir com o casamento.

— Pode, sim! — Sorrio quando ela começa a fechar botão por botão nas minhas costas e passa um outro tecido por cima do meu ombro. — Ah, obrigada! — Coloco Petros no sling desenhado junto ao vestido de noiva. — Está pronto para encontrar o papai?

Tessa dá voltas para que eu veja o balanço de seu vestido e, antes de se posicionar à minha frente, dá um beijo na cabeça de seu irmão, que dorme calmamente.

Descobri a gravidez uma semana depois da alta de Tessa. Theo e eu estávamos em uma semana intensa de discussões sobre o casamento: ele queria algo grandioso, e eu, íntimo. Quando passei mal, fui socorrida pela enfermeira de Tessa e obrigada a fazer uma desnecessária bateria de exames para acalmar meu futuro marido.

Foi o momento mais emocionante do mundo quando peguei o exame de sangue e a confirmação da gravidez. Theo não sabia se ria, chorava ou me beijava, então fez tudo ao mesmo tempo.

Contamos para Tessa – confesso que ele estava uma pilha, com medo de nossa filha se ressentir por deixar de ser filha única –, e sua reação foi lindíssima, beijando minha barriga e dando boas-vindas ao bebê.

Foi a gestação mais tranquila deste mundo. Não tive problema algum, nem desejos absurdos – o que gerou certa frustração em Theo, pois esperava por isso –, mas aumentou minha libido ao extremo, o que o deixou satisfeito e extenuado. Meu desejo era ele o tempo todo! Eu chegava a ligar para a empresa para dizer que estava com vontade de fazer amor, e ele, com medo de me deixar “aguada”, saía como um doido para me ver no meio do dia e me satisfazer. É, eu comi meu marido de todos os jeitos possíveis, em todos os locais – privados ou não – e misturei muita comida ao nosso sexo.

A torta com chantilly que usamos na primeira vez que ficamos juntos? Parecia coisa de amador diante do que fizemos. Imaginem que eu blindei seu pau com goiabada derretida e depois me deliciei com o doce! Passei doce de leite em seus gominhos do abdômen, chupei sorvete em seu umbigo e – que ele nunca descubra que contei isso para vocês – lhe dei um delicioso beijo grego com a boca cheia de gelo.

Só paramos de fazer sexo alguns dias antes do parto e por insistência dele!

Petros nasceu depois de 40 semanas de gestação, com quase quatro quilos e 52 centímetros. Revelou ao mundo que era um guloso já nas primeiras horas, pois estava sempre exigindo meu seio com um choro alto e forte.

— Sabe o que quer e como pedir! — Theo dizia encantado, tocando a pequena cabecinha cheia de cabelos negros. — É direto e objetivo como o pai.

Eu rolava os olhos, mas me sentia derreter com suas palavras cheias de orgulho e amor.

— Acho que chegou a hora de oficializarmos nosso casamento, não? — ele sugeriu assim que voltei para casa com o bebê.

— Pappoús está reclamando que Petros nasceu sem a bênção do casamento? — debochei, pois conhecia bem o pensamento de Geórgios Karamanlis.

— Está, sim, mas há meses fala do assunto, e eu já nem lhe dou ouvidos. — Theo deu de ombros. — Sou eu quem quer trocar essa aliança de lugar e unir meu nome ao seu como já uni minha vida.

Ah, tinha como eu resistir a um pedido desse?

Kyra ficou responsável pela organização do casamento e fez isso em tempo recorde: três meses. E bem, aqui estou eu, vestida de branco como manda a tradição, mas com um grande e importante detalhe diferente: ao invés de levar nas mãos um buquê de flores, decidi levar meu filho no colo junto comigo ao encontro de seu pai.

— Todos prontos? — Helena pergunta, pronta para abrir as portas do salão nobre do Villazza SP. — É hora do show!

Estranho quando noto que a música que ecoa no salão não é a que ensaiamos ontem, mas o sorriso encantado de Helena me faz prosseguir mesmo que eu não entenda o que está havendo.

Procuro por Theo no altar, mas tudo o que vejo é um enorme piano onde ele deveria estar. Meu coração dispara quando sua voz ecoa nos autofalantes. Paro devido a surpresa, então sorrio sem acreditar que ele está tocando e cantando em público, coisa que não faz de jeito algum.

A canção também é uma surpresa, diferente do gosto musical dele, mas tão perfeita para este momento que sinto meus olhos marejarem.


Vieste de olhos fechados, num dia marcado, sagrado para mim.

Vieste com a cara e coragem, com malas, viagem, pra dentro de mim,

Meu amor41


Quando chego perto do piano, ele se levanta, deixando que a banda que o acompanha continue a tocar a música apenas no instrumental. Primeiro, Theo beija a testa de Tessa antes que ela fique ao lado de Manola no altar. Depois, vem com um enorme sorriso e olhos brilhantes de lágrimas até onde estou, toca nosso filho, que dorme tranquilo em meu colo, e beija minha testa.

— Obrigado por confiar em mim — diz, e eu me lembro do dia em que apareceu bêbado, contou sua história e me pediu para que confiasse nele. — Obrigado por me fazer feliz.

Não resisto ao amor que vejo em seus lindos olhos azuis, então o beijo arrancando risadas dos convidados por ter quebrado o protocolo. Rimos juntos disso, e dessa vez é ele quem me beija, fazendo o juiz de paz clarear a garganta para que continuemos a caminhada até o altar.

Olho para Kyra, no altar, e percebo seu nervosismo por termos quebrado seu cronograma perfeitamente planejado. Minha cunhada percebe o quanto estamos felizes, principalmente pela visão que tenho dos nossos padrinhos nos esperando, e relaxa.

É, a vida não foi feita para seguir roteiros!


Fim


A noite está sendo um sucesso, e eu não caibo em mim de orgulho da minha esposa. É a primeira e única vez em que o Chez Hill irá servir um jantar, pois abrirá somente de segunda a sábado, no horário do almoço.

Minha chef de cozinha brilha, vestida com sua dolma com seu nome bordado, bem como as bandeiras do Brasil e da França. Olho em volta e reconheço o trabalho primoroso da equipe do meu irmão Alex na reforma e decoração do empreendimento. Está do jeito que minha esposa sempre sonhou, e é um privilégio poder acompanhar essa realização pessoal dela, ainda mais porque sei que abriu mão de tudo, há anos, para cuidar de nossa filha.

Sinto muito orgulho, sim, mas sou completamente apaixonado por ela. Cada dia mais eu a admiro, desejo-a e sou grato por tê-la ao meu lado. Duda é uma mulher especial. Eu não merecia tamanha sorte e me esforço a cada dia para ser o homem que ela me vê, o que ela aprendeu a amar.

Nós nos casamos há um mês e ainda não pudemos ter nossa lua de mel. Em parte, claro, por causa do nosso pequeno Petros, que está com apenas quatro meses e depende dela exclusivamente para seu sustento. O outro motivo para adiarmos a viagem que planejamos foi a inauguração do bistrô.

Maria Eduarda viveu, mesmo grávida, cada momento da montagem deste lugar. Escolheu a dedo cada equipamento, mobília e itens de decoração. Manola e ela passaram meses discutindo cardápio, marketing e escolhendo a equipe que a ruiva brava comandará com o chicote na mão.

É, a mulher é uma pimenta e conseguiu a proeza de deixar meu motorista de quatro, obediente e caseiro, totalmente domado. Os dois estão morando juntos há algum tempo, e Dio parece estar muito feliz.

Eu implico com a Manola – principalmente porque não começamos muito bem –, mas tenho muito carinho e admiração por ela e vejo a amizade sincera que sente por minha esposa, e isso já seria o suficiente para ela ter minha admiração.

Tessa passa correndo por mim, seguida por Laura e Lucca, e faço sinal para o garoto de que estou de olho nele. O filho de Frank ri e dá de ombros, uma atitude que me lembra muito o seu pai, e continua a seguir minha menina. Sorrio achando graça, mas o sorriso morre quando reconheço o doutor Felipe cumprimentando Maria Eduarda.

O médico tem a mão em seu braço e fala com ela cheio de sorrisos, o que me faz cruzar o salão com passadas largas e determinadas e a segurar pela cintura antes de cumprimentar o médico alto e bonitão.

— Boa noite! — ele me saúda de volta. — Estava elogiando o bistrô e parabenizando a Maria Eduarda pelo bebê.

Fecho a cara.

— É meu filho também. Agradeço os parabéns.

O corpo de Duda dá leves sacudidas contra o meu e vejo sua boca apertada, impedindo o sorriso. Ela sabe que estou com ciúmes! Encaro o médico.

— Espero que tenha desfrutado do jantar. — Ele assente. — Agora preciso mostrar algo para minha esposa...

— Claro! — Ele sorri e se despede.

— O que você quer me mostrar?

Não respondo, apenas arrasto Duda para dentro da cozinha, cumprimentando o pessoal que está cuidado da limpeza do local, e sigo para a parte de trás, onde ficam o depósito e a câmara fria.

— Theo? — ela questiona quando abro a porta de metal.

Sinto o frio nos atingir assim que fecho a porta e a encaro. Duda tem a testa franzida e os braços cruzados.

— O que significa...

Impeço-a de falar qualquer coisa, atacando sua boca, fervendo de tesão. Você é minha!, demonstro essa verdade com minha boca, esfregando a língua contra a dela. Você é minha!, minhas mãos cantam essa frase enquanto exploram seu corpo. Eu sou seu!, meu coração responde quando ela se agarra em mim, correspondendo com sofreguidão ao beijo.

Encosto-me contra uma prateleira e a seguro por baixo das nádegas, erguendo-a levemente, encaixando-a contra meu pau latejando de desejo, duro de vontade, desesperado para estar dentro dela mais uma vez.

Trepamos durante o banho, antes de vir para cá, mas minha vontade nunca passa, nem diminui, pelo contrário, cada vez que estou dentro dela, mais me desperta a fome, mais incendeia meu tesão. Somos a mesma carne, somos o mesmo fogo e necessitamos um do toque do outro, da pele e das sensações causadas por essa mistura perfeita de desejo e amor.

Maria Eduarda me completa em todos os aspectos, e eu sei que ela se sente da mesma forma com relação a mim. Somos amigos, companheiros, cúmplices, amantes e pais de duas crianças que nos enchem de orgulho.

— Theo... — ela diz com a boca colada na minha. — Nós vamos congelar aqui dentro.

Rio, esfregando-me a ela, mostrando quanto estou longe de congelar.

— Você é minha! — resmungo.

— Isso tudo é ciúme do doutor Felipe? — Tento negar, mas ela ri. — Eu sou louca por você. Ele tem que ser muito cego para não enxergar isso.

— Homem geralmente é burro, então, mesmo que enxergue, acaba fazendo bobagem. — Balanço a cabeça, segurando em seus peitos. — E você ficou ainda mais linda depois da maternidade. Adoro o volume deles, a textura...

— Estão cheios de leite. — Ela ri. — Nada sexy!

Levanto a sobrancelha.

— Tudo em você é sexy! — Eu a viro de costas, beijo sua nuca, mas não tiro as mãos de seus peitos, pois estão realmente muito gostosos. — Ah, Maria Eduarda... — Afasto-me, e ela me encara curiosa, não deixando de notar meu sorriso safado de quem está cheio de ideias mirabolantes na cabeça. — Acho melhor voltarmos para o salão.

— Não vai me dizer o motivo desse sorriso de gato que comeu o canário?

Gargalho, mas gosto muito da comparação.

— Esse gato aqui ainda vai comer esse canário... — Pisco. — Aguarde-me.

Voltamos para o salão recebendo olhares intrigados do staff, que ainda limpa a cozinha. Deixo-a com um beijo na testa, perto de Manola e seus amigos Lara e Cadu, e sigo ao encontro de Frank, Nicholas e Bernardo, junto às suas respectivas esposas.

— Algum problema? — Frank questiona assim que pego o celular.

— Não, só ansioso para ir para casa descansar.

O carcamano me conhece há muitos anos, por isso dá um sorriso torto e entendido e fala algo no ouvido de Isabella, que ri sem jeito. É, meu amigo, cada um ataca com as armas que tem! Você no ouvido, e eu...

Envio a primeira mensagem e fico observando Duda pegar seu telefone, suas bochechas se tingirem de vermelho e um sorriso aparecer em seu rosto.

 

 

Ela me procura com os olhos, balança a cabeça, mas responde:

 

 

Gosto da resposta provocativa.

 

 

Ela está bebendo água quando lê a mensagem, e eu rio quando engasga e Manola a socorre com um guardanapo, pois babou um pouco o líquido. Sua amiga enxerida acaba por espiar o telefone e rola os olhos, comentando algo para minha esposa, que digita uma mensagem.

 

 

Faço careta ante a cena que se desenha em minha mente, com meu motorista brincando com a sobremesa no quarto, e decido parar a brincadeira.

 

 

Ficamos nos encarando de longe, Duda com sua sobrancelha erguida, desafiando-me a continuar o jogo, e eu deslumbrado, tentando entender como foi possível que eu recebesse tamanho presente em minha vida. Essa mulher é mais do que perfeita; ela foi feita para mim.

Esse ano que vivemos juntos foi inesquecível, repleto de emoções, pois descobri e aprendi como ser pai da minha filha, participar de sua vida, fazer com que ela sentisse que eu estava ali para ficar em sua vida para sempre. E nisso, Duda me ajudou o tempo todo. Enquanto eu aprendia com Tessa, nosso filho se desenvolvia em seu ventre, e nós pudemos, os três, preparar-nos para sua chegada.

Nunca nesses meus 42 anos de vida, eu poderia imaginar experiência semelhante a que tive nos nascimentos dos meus filhos. O de Tessa quando recebeu a medula, e o de Petros quando meu meninão veio ao mundo e o peguei pela primeira vez.

Sorrio ao lembrar que Duda me perguntava como ele era, se estava bem, mas eu não conseguia falar nada, engasgado de sentimentos que nunca havia conhecido, transbordando de amor e cuidado que me deixavam imobilizado. Ouvi a risada da médica que acompanhou o parto e os comentários das enfermeiras sobre eu chorar mais do que o bebê, mas não me importei; meu filho estava em meus braços.

Ah, tanta coisa passou pela minha cabeça naquele momento! O menino carente que eu fui, sonhando em encontrar uma mãe que só veria em revistas, desejando que o pai o notasse e se alegrasse com sua existência, pôde finalmente sorrir. Eu tinha uma família e podia fazer tudo diferente do que tinha sido a minha história.

Tessa e Petros – e os outros que ainda virão, porque não desisti de ter uma família bem grande – significaram um renascimento para mim também, e eu só pude ter esse privilégio por causa de Maria Eduarda Braga Hill Karamanlis.

Pego o celular e respondo sua questão:

 

 

Ela sorri encantada, e leio a declaração de amor em seus lábios, mesmo sem emitirem nenhum som.

O som da risada alta e grave do meu avô me faz olhar em sua direção, para a mesa onde está sentado ao lado de dona Do Carmo e de Petros, que dorme tranquilo no carrinho. Tessa e ele estão fazendo algum tipo de jogo, e os dois se divertem bastante em um duelo em que um tenta capturar o dedão do outro.

Definitivamente, meu avô fica irreconhecível perto da minha filha!

A verdade é que ele se apaixonou por Tessa, e eu vi um lado dele que nunca tinha enxergado antes. Não entendam mal, ainda continua o velho rabugento e preconceituoso de sempre, conservador até a raiz dos cabelos, mas algo forte o ligou a minha menina – talvez a lembrança do filho preferido que perdeu para a mesma doença que Tessa conseguiu vencer – e o fez ser um avô que eu nunca imaginaria que fosse.

Lembro-me de sua visita quando Petros nasceu. Ele aproveitou que outro bisneto nascera e já veio para o Brasil a fim de ficar para o casamento. Ao longo desse ano, ele veio algumas vezes para o país, e a maioria delas foi surpreendente, mas essas são outras histórias. A que quero compartilhar é a do dia em que Tessa o desafiou no jogo de xadrez.

Eu havia comentado com ela o quanto meu avô era apaixonado pelo jogo, então minha filha passou meses estudando, vendo vídeos de estratégias e treinando comigo, até se sentir pronta para desafiar o velho Geórgios Karamanlis. Nem preciso dizer que, depois de horas de partida, minha menina o venceu com um xeque-mate surpreendente, olhou-me vitoriosa, depois beijou a testa do pappoús como se nada demais tivesse acontecido e foi brincar com suas bonecas.

— Theodoros... — ele me chamou, ainda olhando para o tabuleiro. — Sei que, por algum milagre, você engendrou outro herdeiro, agora um varão, mas...

— Eu sei, pappoús, ela é incrível!

— Não! Ela é uma Karamanlis como nenhum de vocês jamais foi! — Isso me surpreendeu, mesmo que tenha sido rude. — Eu confiaria a minha empresa a essa menina agora mesmo e tenho certeza de que ela faria um trabalho melhor que o de todos vocês juntos.

— Pappoús, nós já falamos sobre isso. Tessa gosta de artes, é sensível. Não vamos pressioná-la a nada, por favor.

Ele assentiu, mas eu reconhecia aquele olhar.

— Eu vejo, Theodoros, como eu via em Geórgios II, como vi em você. — Ele me encarou. — A menina nasceu para dirigir a empresa. — Pôs-se de pé. — Você já cumpriu sua missão comigo.

Abri um sorriso, mesmo ainda não concordando com as expectativas dele.

— Já posso morrer, então? — brinquei e, claro, recebi o olhar que ele sempre fazia quando algo o desagradava. — Desculpe, vovô.

As risadas dos dois voltam a ecoar pelo salão, agora seguida das de Laura e Lucca, então sorrio também. Eu acho que quem cumpriu uma missão foi Tessa! Não, não foi a de uma herdeira para a empresa, mas sim a de alegrar os últimos anos de um taciturno grego.

É, respiro fundo e olho ao redor, ainda nem posso acreditar que estão todos aqui!

A Deus, sempre!

 

 

                                                                                                    J. Marquesi

 

 

 

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